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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM SOCIOLOGIA
DISSERTAÇÃO
“Quem é filho de Gérson não deve temer a ninguém!” - Trajetória de uma mãe-
da-santo na Umbanda.
Jandson Ferreira da Silva
Fortaleza
Setembro de 2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM SOCIOLOGIA
DISSERTAÇÃO
“Quem é filho de Gérson não deve temer a ninguém!” - Trajetória de uma mãe-
da-santo na Umbanda.
Jandson Ferreira da Silva
Dissertação submetida à Coordenação
do Curso de Pós-Graduação em
Sociologia, como exigência parcial
para a obtenção do grau de Mestre em
Sociologia.
Área de concentração: Sociologia
Orientador: Prof. Dr. Ismael Pordeus Jr.
Fortaleza
Setembro de 2009.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM SOCIOLOGIA
DISSERTAÇÃO
“Quem é filho de Gérson não deve temer a ninguém!” - Trajetória de uma mãe-
da-santo na Umbanda.
Jandson Ferreira da Silva
Esta dissertação foi julgada, em sua
forma final, por banca examinadora
composta pelos seguintes membros:
________________________________
Dr. Gilmar de Carvalho
________________________________
Drª Cármen Luísa Chaves
________________________________
Dr. Antônio Welington de
Oliveira Júnior
Fortaleza
Setembro de 2009.
“Lecturis Salutem”
Ficha Catalográfica elaborada por
Telma Regina Abreu Camboim – Bibliotecária – CRB-3/593
Biblioteca de Ciências Humanas – UFC
S58q Silva , Jandson Ferreira da.
“Quem é filho de Gérson não deve temer a ninguém!” [manuscrito] –
trajetória de uma mãe-da-santo na umbanda / por Jandson Ferreira da Silva.
– 2009.
128f. : il ; 31 cm.
Cópia de computador (printout(s)).
Dissertação(Mestrado) – Universidade Federal do Ceará,Centro de
Humanidades,Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Fortaleza(CE),
29/09/2009.
Orientação: Prof. Dr. Ismael de Andrade Pordeus Júnior.
Inclui bibliografia.
1-MÃE VALKÍRIA.2-MÃES-DE-SANTO – PIRAMBU(FORTALEZA,CE) – USOS E
COSTUMES.3-MÃES-DE-SANTO – PIRAMBU(FORTALEZA,CE) – BIOGRAFIA.
4-UMBANDA – PIRAMBU(FORTALEZA,CE) – RITUAIS.5-UMBANDA – PIRAMBU
(FORTALEZA,CE) – HISTÓRIA. I- Pordeus Júnior, Ismael de Andrade,orientador.
II-Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. III-Título.
CDD(22ª ed.) 299.6728098131
18/10
Dedico este trabalho a Dona Das Dores -
mulher de fibra e única criatura encarnada
que meus lábios chamaram verdadeiramente
de mãe - por me sempre apoiar nas horas em
que mais precisei.
Dorme menino
Que lá vem Mamãe Tutú
Lá no mato tem um bicho
Chamado carrapatú
(Canção de ninar)
AGRADECIMENTOS
A meus pais Omolu e Índio da Solidão, por me acompanharem aonde quer que
eu vá.
A Oxum e Seu Gérson, por abrirem sua casa e a vida de sua filha para mim.
A minha mãe Iansã e a Seu Preto Velho da Mata escura, por fazerem de sua casa,
meu lar e porto seguro.
A Mãe Valkíria, por ter sido minha musa inspiradora por durante quase três anos.
A meu orientador e padrinho Prof. Ismael Pordeus, pelo inestimável esmero e
paciência com os quais tratou a produção desse trabalho.
Aos professores da banca que tão gentilmente aceitaram o convite.
Aos meus colegas irmãos - Juliana, Juliano, Herbert e Monalisa - pelas
indispensáveis e preciosas interlocuções cotidianas.
A meu Pai Valdo e todos meus irmãos-de-santo, por terem se tornado minha
família e minha referência no mundo.
Ao Programa de Educação Tutorial, pelas sementes plantadas em meu trajeto
acadêmico que reverberam até hoje
Enfim, a cada orixá e encantado, por tornarem a vida nesse mundo maluco um
pouco mais colorida.
RESUMO
A religião, como forma de conhecer e organizar as coisas do mundo, surgiu na
condição de questão para a Antropologia e tem acompanhado seus desenvolvimento desde
seus primórdios como ciência. Tomado como fato social total, a análise do campo religioso
possibilita vislumbrar as mais variadas esferas da vida social, tais como: economia, política,
estética, relações de parentesco...
Proponho aqui um estudo de caso de um terreiro de Umbanda localizado no bairro
do Pirambu, em Fortaleza. A partir das narrativas - rituais e pessoais - acompanho as gerações
de um grupo que não permanece o mesmo ao longo do tempo.
Ritualisticamente, alguns elementos entram; outros (já sem uso) saem; outros
ainda são ressignificados, porém sem uma mudança radical da estrutura de culto. Admitindo-
se que toda religião é um rearranjo de crenças preexistentes, a Umbanda somente se utiliza
destas interritualidades para reafirmar sua condição desde o surgimento: uma religião flexível
e em constante construção.
Palavras-Chave: Umbanda - Memória Coletiva - Performance
ABSTRACT
The religion, like a form of. To know about and to organize the things of the
world, appeared as question for the Anthropology and it has folloied its development since
its beginning as science. Like a fact social total, the analysis of the religious field makes
possible to glimpse the most varied spheres of the social life, such as: economy, politics,
aesthetic, blood relations…
I consider here a study of case of a place of fetichism of Umbanda located in the
quarter of the Pirambu, Fortaleza. From the narratives - ritual and personal - I’ve folloied the
generations of a group that does not remain the same throughout the time.
Some elements enter; others (already without use) leave; others still are
remeaning, however without a radical change of the cult structure. Admitting itself that all
religion is a rearrangement of preexisting beliefs, the Umbanda is only used of these
interrituals to reaffirm its condition since the sprouting: a flexible religion and in constant
construction.
Key Words: Umbanda - Collective Memory -Performance
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO………………………………………………………………… 12
1.1 MEU BRASIL, BRASILEIRO………………………………………………. 14
1.2 VOZ E CORPO NA PERFORMANCE ORAL...................................................18
2 PERCURSOS………………………………………………… ...........…............21
2.1 NASCE UMA MÃE-DE-SANTO......................................................................22
2.2 MADRINHA BAÍA............................................................................................31
2.3 CAMBONE SÉRGIO.........................................................................................34
2.4 MÃE DULCE DO OGUM.................................................................................37
3 NARRATIVAS RITUAIS: A BAIA......................................................................50
3.1 SURGIMENTO DA UMBANDA…………………………………………......50
3.2 LOCALIZAÇÃO E ESTRUTURA DO TERREIRO EM ESTUDO.................54
3.3 ESQUEMA RITUAL.........................................................................................56
3.4 A ENTRADA: ABRINDO A BAIA................................................................. 61
3.5 OS PONTOS CANTADOS.............................................................................. 66
3.6 A CHAMADA DOS CABOCLOS....................................................................70
3.7 O DESENVOLVIMENTO E OS CRUZOS......................................................73
3.8 OS TRABALHOS..............................................................................................79
3.9 A SAÍDA: FECHANDO A BAIA......................................................................80
3.10 A BAIA EM OUTROS TEMPOS...................................................................82
4 NARRATIVAS RITUAIS: O PANTEÃO............................................................85
4.1 OS PRETOS VELHOS.....................................................................................93
4.2 A LINHA DE OGUM.......................................................................................100
4.3 CRIANÇAS DE SOMBRA.............................................................................103
4.4 OS ÍNDIOS OU CABOCLOS DE PENA........................................................104
4.5 A LINHA DAS CACHOEIRAS......................................................................108
4.6 A LINHA DO MAR........................................................................................109
4.7 LINHA DE MESTRE.....................................................................................112
4.8 OS MARINHEIROS......................................................................................114
4.9 OS BOIADEIROS..........................................................................................116
4.10 ZÉ PILINTRA.............................................................................................118
4.11 OS CIGANOS..............................................................................................120
4.12 A LINHA DE EXU......................................................................................122
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................132
6 BIBLIOGRAFIA..............................................................................................134
7 GLOSSÁRIO....................................................................................................138
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA I - Consagração de mãe-de-santo no terreiro de Pai Luis da Serrinha. -
Pág. 27.
FIGURA II - Relações de troca no terreiro de Umbanda (BIRMAN, 1985, p. 78)
- Pág. 39.
FIGURA III - Cambone Sérgio e Madrinha Baía. - Pág. 35.
FIGURA IV - Altar no terreiro de Mãe Valkíria - Pág. 57.
FIGURA V - MESA DE CAMBONAGEM DO TERREIRO DE MÃE
VALKÍRIA - PÁG. 58.
12
1 INTRODUÇÃO
Quando nasci, meu mundo era católico! Tal catolicismo não se resumia apenas às
missas dominicais, batizados e enterros, para além do eventual, estava presente em todo meu
cotidiano e no de meus pares de forma recorrente. Acredito que tal quadro não destoasse
muito da vida na maior parte dos lares brasileiros. Desta mesma forma, durante minha
infância e boa parte da adolescência, tempo, espaço, duração, ética, corpo, estética, enfim,
todo conceito utilizado para me orientar no mundo estava alicerçado num plano comum de
catolicismo.
Era a Fortaleza dos anos 80, suas ruas abrigavam diversas formas de religião que,
durante muito tempo, me soaram estranhas. Não que ignorasse por completo a existência
delas, mas ainda não havia espaço em minha vida para gerar interesse ou fala sobre elas. Se o
assunto surgia em conversas familiares, era algo eventual e o tom do discurso logo servia para
demarcar bem os limites entre o Nós-estabelecidos e o Eles-outsiders
1
.
A certeza desse mundo unívoco se mantém até um primeiro encontro com a
alteridade. Falo aqui de um encontro-acontecimento, onde esse Outro intima ser ouvido, ser
visto, ser percebido na condição própria de diferença. É quando me percebo refém desse
encontro e me reconheço como diferença também. Não tendo o conforto do desdém pela
novidade ou mesmo de recognicizar a nova experiência por meio dos velhos referenciais, pois
não mais, no nomos formado, amparo imediato para tal angústia, apenas material a ser
questionado.
Ainda no campo da religião, tal encontro se deu comigo por ocasião de uma
pesquisa de campo para uma disciplina de minha graduação, Psicologia. Era primeira vez que
entrava num terreiro de Umbanda: o batuque, as pessoas, os movimentos dos corpos, as
vozes, as cores... Tudo era estranho para mim, muito aprazível, devo confessar. Porém, o mais
positivo que aquilo tudo poderia adicionar em meus valores, era a categoria do exótico. Qual
não foi meu espanto ao escutar, de uma senhora ao meu lado, no meio da sessão, um canto
que dizia: "Olha o tombo da jangada nas ondas do mar! / Quem quer ver Mãe Tutú
trabalhar?", tempo depois, fiquei sabendo que a senhora por mim apreciada estava
incorporada com uma “preta-velha” de nome Mãe-Tutú, que cantava seu ponto pela boca de
seu aparelho.
1 Mais sobre os conceitos de Estabelecidos e outsiders em Elias (2000).
13
Logo que ouvi, lembrei da canção de ninar
2
que minha avó cantou, noites e mais
noites, a me embalar, durante boa parte de minha infância. Naquela época, vovó não era
viva e, pelo que sabia, nunca teve ligação com Umbanda. Na verdade, não sei se pelo menos
imaginava que os versos com os quais me ninava às noites falavam de uma preta-velha. Eu
mesmo já não lembrava essa canção até a experiência no terreiro.
De modo que o ponto cantado da Mãe-Tutú teve aos meus ouvidos, o valor do
instante em que a Madalena embebida em chá toca os lábios do protagonista de Em Busca do
Tempo Perdido. Da mesma forma que este, a música me arrastou por um fluxo desenfreado de
memórias recalcadas, que voltaram plenas de sabores e sentidos novos. Lembrei das histórias
de engenho que minha avó contava; da migração de minha família de Barbalha a Fortaleza; de
minha mãe e meus tios trabalhando como artesãos na periferia das fábricas de redes, das vezes
em que minha mãe me levou criança para ser rezado como forma de afastar alguma mazela da
carne. E, pela primeira vez, me dei conta do quanto de negritude existia nos interstícios
daqueles trajes brancos dos quais minha família decidiu se travestir, fiados a partir do mais
puro catolicismo europeu, carregado de todos os seus valores. É finalmente, quando encontro
o familiar no estranho, que me percebo de todas as estranhezas que habitam as frestas do
familiar.
É desse quadro confuso de afetos que nasce o desejo de fazer essa pesquisa. O
texto dissertativo que aqui apresento, trata-se de um estudo de caso dentro do campo da
Antropologia da Religião. Pesquisei durante os anos de 2007 e 2009 a vida de D. Valkíria,
uma mãe-de-santo de Umbanda cujo terreiro fica localizado no bairro Pirambú, em Fortaleza.
A história de vida desta senhora me chamou atenção por ser plena de rupturas e
mudanças bastante peculiares no caminho que percorreu até chegar à idade adulta e adquirir o
cargo de mãe-de-santo na religião Umbanda. É natural do estado do Acre, de Xapuri, filha de
pai judeu e médico e mãe professora, donos de latifúndios. Ainda mocinha, casa-se com um
auditor fiscal federal e por conta do trabalho do marido, viaja a Manaus e daí a Fortaleza,
onde vem a ficar viúva, nem bem entrou na casa dos vinte.
Nesta época lhe vêm as primeiras manifestações de uma doença cujo diagnóstico a
medicina cearense não vai conseguir formalizar: ausências, desmaios, ataques epilépticos. E,
buscando cura para suas mazelas, é orientada por amigos da família a procurar um pai-de-
santo de Umbanda, cuja fama já se espalhava pelas camadas mais abastadas da sociedade
alencarina, conhecido como Luis da Serrinha. Uma vez no terreiro de Sr. Luis, a jovem viúva,
2 Cujos versos foram devidamente registrados na epígrafe da presente dissertação.
14
católica, branca, filha de classe abastada, troca o preto do luto fechado pelo branco da farda de
médium desenvolvente de Umbanda e início à sua jornada para tornar-se mãe-de-santo.
Anos mais tarde troca as ruas da Aldeota, bairro nobre da cidade, por um pequeno beco
próximo à uma colônia de pescadores, onde funda seu primeiro centro (ativo até hoje). Em
pouco tempo, torna-se uma pessoa de referência à comunidade do entorno. Branca, vinda de
outro estado, filha da camada alta da sociedade acreana, de formação católica, instruída no
ensino formal. Isso para citar alguns, entre uma série de predicados que quebram o estereótipo
mais difundido sobre o que seja uma mãe-de-santo de Umbanda, moradora de um bairro de
periferia. Além do mais, trata-se de uma senhora de 80 anos, que abriu casa nos finais da
década de 50, portanto, é retrato vivo de uma época em que as casas de Umbanda começam a
ganhar visibilidade por ocasião da fundação das primeiras federações. Dentre elas, a mais
conhecida até hoje é a UECUM (União Espírita Cearense de Umbanda), fundada em 1954,
pela portuguesa (Sic), Mãe Júlia. (PORDEUS JR., 2002).
1.1 MEU BRASIL, BRASILEIRO
Foram inúmeras, as mentes que tentaram dizer sobre o Brasil ao longo da
história... Tantas que, creio eu, a menção de seus sobrenomes, tomariam páginas e mais
páginas de texto. Da mesma forma, foi abordado de tantas óticas - algumas próxima e outras
totalmente alienígenas entre si - que qualquer tentativa contemporânea de tentar decifrá-lo,
corre o risco de se fazer tarefa árdua, ingrata e por vezes até frustrada. Sobre isto, comenta o
professor Diatahy:
Inúmeras tentativas foram realizadas em obras que se consagraram como
momentos decisivos do pensamento brasileiro, compondo as pedras e a argamassa
da arquitetura cognitiva que tenta dar conta do enigma ‘Brasil’. Este como toda
nação viva, tem escapado aos ensaios que pretendem subsumi-lo num esquema,
numa tipologia, numa definição. Seja porque é próprio de enigmas suplantarem as
decifrações, seja porque ainda não sedimentou-se o processo que adensa no tempo
e na memória coletiva as peculiaridades da construção nacional, abrindo
possibilidades para as vias que permitem rastrear o sentido do itinerário do homem
brasílico. (MENEZES, s/d).
Aventuro-me a lançar mais um olhar sobre tal sociedade, de forma à acrescentar
uma pequena contribuição à resolução desse enigma de proporções continentais. Ir pelo
caminho da Economia, enfocando os meios materiais de produção do capital, provavelmente
15
me trariam respostas bem interessantes. Poderia concluir, por exemplo, que entre Brasil, na
condição de país subdesenvolvido, e Estados Unidos, um enorme abismo a ser superado
se quisermos estabelecer condições igualitárias de concorrência nos mercados
internacionais.
Poderia também, dissertar sobre a precariedade da educação, saúde e da
qualidade de vida do cidadão brasileiro em geral. Entretanto, seria bem provável, que pouco
apreciasse dos vetores que fazem da sociedade brasileira única, singular, ou seja, o que,
mesmo partilhando formas comuns de dominação político-econômica com outras áreas
subdesenvolvidas - ou “em desenvolvimento”, como queiram - faz com que o Brasil se
diferencie entre as demais?
Ensaiando mais uma decifração possível da sociedade brasileira, DaMatta toca
nesse ponto ao conceituar o que chama de plano de elaboração interna do sistema, que de
acordo com ele é a “zona onde se processam as escolhas que irão determinar o curso da ação
após o recebimento do estímulo (seja do passado, seja do presente) e antes de se ter uma
resposta”. (DAMATTA, 1997, p. 17-18). Em outras palavras, é a zona onde agem as forças
mortrizes que dirigem as relações sociais por diversos canais, produzindo resultados
distintos. Em nosso caso específico, é saber sobre aquilo que faz do “brasil”, Brasil.
Neste intuito resolvi estudar a religião, por acreditar que se trata de um lócus
privilegiado de observação desse plano de elaboração interna do qual fala DaMatta, na
medida que fornece a seus adeptos uma possibilidade de racionalização e organização das
coisas do mundo, inserido-lhes assim, no plano das plausibilidades. (BERGER, 1985).
Segundo Leach (1996), toda ação social é regida por dois aspectos que adquirem
maior ou menor relevância de acordo com as circunstâncias nas quais essa ação se processa,
uma primeira dimensão técnica, que diz respeito ao funcional e tudo que se faz necessário à
manutenção da vida ordinária, e uma segunda dimensão ético-estética que rege a “forma de
fazer” de uma sociedade.
A técnica tem consequências materiais e econômicas que são mensuráveis e
predizíveis; o ritual, por outro lado, é uma declaração simbólica que “diz” alguma
coisa sobre os indivíduos envolvidos na ação. (...) Em suma, portanto, minha
opinião aqui é que a ação ritual e crença devem ser entendidas como formas de
afirmação simbólica sobre a ordem social (ibidem, p. 76-77).
Como forma de ter acesso à materialidade e às verdades desse plano simbólico
no grupo em que estudei, optei por me debruçar sobre as narrativas em dois aspectos
fundamentais: as narrativas individuais e as narrativas rituais.
16
O capítulo intitulado Percursos é dedicado à análise das primeiras. Trago a
compilação das entrevistas e conversas informais que tive com Mãe Valkíria e com algumas
pessoas que acompanharam sua trajetória. As informações que seguem constituem relatos
sobre a história pessoal de cada entrevistado, com ênfase nos caminhos que lhes levaram a
entrar em contato com a Umbanda e, posteriormente, se iniciar. O texto segue em primeira
pessoa, pois é a própria mãe-de-santo quem narra, juntamente com seus pares. Atrevo-me a
uma pequena interferência num momento ou em outro quando for necessário a um melhor
esclarecimento da história para fins de meu trabalho.
Sobre a categoria de lembranças que trato nesse capítulo, escreve Halbwachs:
(...) nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos
outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais nós estivemos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É por que em realidade, nunca estamos
sós
3
. Não é necessário que outros homens estejam lá, que, que se distingam
materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de
pessoas que não se confundem (1990, p. 26).
A principal tese defendida na obra de Halbwachs (ibidem) é a de que um
alicerce coletivo subjacente a toda lembrança individual, que ele vai chamar de memória
coletiva. Esta, por sua vez, é construída a partir de quadros sociais reais, cada memória
estando sempre referida a um grupo específico, limitado no tempo e no espaço.
O processo de individualização da memória, ou seja, sua transformação” de
coletiva em individual dá-se mediado por uma faculdade chamada por Halbwachs intuição
sensível, “haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência
puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram elementos do
pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível.” (ibdem, p. 37).
4
Portanto, é por via da intuição sensível que se cria nas consciências dos sujeitos
a ilusão de uma memória estritamente individual que, na verdade, consiste apenas no reflexo
das posições dos destes dentro dos grupos aos quais essas memórias estão referidas.
Desta forma, as narrativas aqui descritas são guiadas por estas lembranças
individuas que, por sua vez, são pontos de vistas sobre a memória coletiva, construídas a
partir das referências e experiências próprias do grupo. Da mesma forma que lançam luz
sobre certos aspectos, outros acabam sendo obscurecidos em conseqüência, mantendo-se
assim, a relação conteúdo/continente entre memória individual e coletiva, respectivamente,
propostos por Halbwachs. O que explica alguns desencontros e contradições entre os relatos
3 Grifo meu.
4 Grifo do autor.
17
quando se referem a tal ou qual fato da trajetória do terreiro.
Nesses termos, tais narrativas me ajudaram a compreender a formação do
terreiro -Casa Mamãe Oxum, do grupo de iniciados que preenche a instituição e do corpo
ritualístico que tem se processado no terreiro desde sua fundação. E, além da formação,
servem para salientar também as mudanças e permanências que estes construtos sofreram ao
longo de sua história.
O capítulo seguinte traz a segunda categoria de narrativas e aparece intitulado
como Narrativas Rituais: a Baia. Nele tomo como exemplo a descrição de uma gira, ritual
público realizado no terreiro de Mãe-Valkíria, como forma de dar visibilidade ao conjunto
de relações que se estabelecem naquele grupo.
Ritual, aqui entendido como conduta formal que se passa num tempo separado
do tempo do dia-a-dia, ou seja, trata-se de um evento extraordinário. Contudo, distingue-se
de acontecimentos identificados como as “catástrofes“, “milagres” ou “golpes do destino”,
pelo seu caráter prescrito. Significa dizer que, embora ocorra num tempo à parte, tem data,
duração e freqüências definidas no calendário do grupo. E, sua relação com o tempo
cronológico, é a de demarcar seus limites e fronteiras, os retornos e as mudanças de tempo.
Van Gennep (1977) entende a sociedade como uma grande casa dividida em
vários compartimentos menores, onde a passagem de um a outro é regrada por certa ascese
ritual. Debruçando-se sobre o tema, classifica os chamados Ritos de Passagem em: Ritos de
Separação, Ritos de Margem e Ritos de Agregação. Dito de outra forma: ritos preliminares,
liminares e pós-liminares, ressaltando o eventual caráter autônomo do estado de margem em
certos casos onde estes aparecem hipertrofiados.
Inspirado pela teoria de Van Gennep, Victor Turner (1987) se refere a gêneros
performativos e gêneros liminóides para dar nome a atividades específicas que oferecem à
sociedade espaço e tempo liminares nos quais enfocar seus dramas sociais, pondo em
destaque certas experiências coletivas selecionadas (como valores, conflitos, ideologias...).
O ritual condiciona a experiência e a congela no tempo ou, de outra forma, coloca-a num
tempo apartado do cotidiano, permitindo que o grupo possa pensar a si mesmo neste
processo.
A matéria-prima da qual são construídos os rituais em nada se distingue da que
tece as rotinas cotidianas. É no tempo do rito em que o grupo se volta para tudo que forma
seu cotidiano e lhes concede visibilidade de uma forma ou outra, que não aquela do mundo
18
do trabalho. É na forma ritual que a sociedade encontra a resolução de certos problemas
coletivos, performatizando-os e dando relevo àquilo que mais vale à pena reforçar, para ser
lembrado e aprendido. E, por consequência, anulando aquilo que se quer esquecer e que
insiste em não ser esquecido pelos meios comuns ao tempo cronológico.
É, portanto, uma ferramenta construída pela sociedade e para a sociedade, como
forma de espelhar várias das relações que a constituem, dando a possibilidade de regrá-las
através da dramatização (DAMATTA, op. cit.).
Nesta perspectiva, o símbolo ritual se converte num fator de ação social, uma
força positiva dentro de um campo de atividade (TURNER, op.cit., 2005). Performance
entendida sobretudo como um ato social de comunicação, ou seja, é a interação entre duas
instâncias: um emissor (aquele que produz o enunciado) e um receptor (aquele a quem o
enunciado se destina). Ainda, compõe-se de uma mensagem (o próprio enunciado, suas
significações ou o efeito que ele produz), um vetor (o veículo material utilizado).
Além destes, ainda se faz necessário atender a certas condições para que a
comunicação seja possível. Talvez a mais basal delas seja a de que existam certas normas
codificadas que estejam partilhadas pelos termos envolvidos no processo, segundo Zumthor
“ação (e dupla: emissão-recepção), a performance põe em presença atores (emissor,
receptor, único ou vários e, em jogo, meios (voz, gesto, mediação)” (1997, p. 156)
5
.
1.2 VOZ E CORPO NA PERFORMANCE ORAL
Sobre a importância da voz nas religiões afro descendentes, escreve Ismael
Pordeus:
(...) a vocalidade rege todo o conhecimento tradicional, no que concerne ao valor
do conteúdo de sua expressão. No universo Luso-Afro-Brasileiro, os textos são, em
sua essência, vocais. O seu conhecimento implica em um exercício mnemônico
imenso: suas transmissões são objeto de rituais cuidadosos que em decorrência de
seu caráter sacramental necessitam de preocupações particulares. Essas memórias
são transmitidas oralmente, de geração em geração, por mães e pais-de-santo aos
filhos-de-santo. Essa transmissão é cercada de garantias destinadas a proteger o
saber de qualquer sacrilégio. (PORDEUS JR, 2000, p. 13).
6
5 Grifos do autor.
6 Grifo do autor.
19
Como se pode observar um plano de vocalidade que rege toda tradição afro-
religiosa, portanto, seria um trabalho deveras exaustivo e ambicioso tentar apreendê-la em
toda extensão de seus usos, mesmo somente dentro da Umbanda. No presente trabalho,
entretanto, pretendo me deter à abordagem do ponto cantado, partícula essencial na
composição do ato mágico umbandista, na medida em que podem ser tomados como atos de
fala.
O ponto cantando está situado numa categoria de sentença que Austin (1990)
nomeou performativos. São falas orientadas não propriamente a descrever, informar, relatar
ou constatar algo. Servem para forjar realidades. Para tanto, o autor supõe a existência de
certas ações sociais que não se completariam sem a presença de um proferimento específico,
mais ainda, devido tais proferimentos, que esses atos são disparados e concretizados. Como
exemplo pode-se citar: casar, batizar, apostar, desejar, sugerir, advertir, agradecer, criticar,
acusar, afirmar, suplicar, prometer, desculpar-se, jurar, autorizar.
Tais proferimentos não são passíveis de julgamento através dos conceitos de
“verdadeiro” ou “falso”. Como tratam de fazer coisas”, muito mais válido que estejam
classificados quanto ao seu sucesso, em “felizes” ou “infelizes”. Austin (ibidem) chama
atenção para determinadas condições que devem ser satisfeitas para ter-se um performativo
feliz, ou seja, cuja ação pretendida logre plena realização. No que diz respeito ao presente
trabalho explicitarei essas regras propostas por Austin, na medida em que me forem
necessárias à explicação da função do ponto cantado dentro da estrutura ritual da Umbanda.
Outro vetor semântico importante a ser abordado quando se fala de performances
e rituais é o corpo. Nessa condição, faz duplo papel, o de emissor e o de receptor, na relação
do homem com o mundo. “Pela corporeidade, o homem faz do mundo a extensão de sua
experiência; transforma-o em tramas familiares e coerentes, disponíveis à ação e permeáveis à
compreensão.” (LE BRETON, 2007, p. 8).
Não é pelo fato de conferir ao corpo uma importância central como suporte do ato
performático, que se deve assumi-lo como dado de realidade, uma “coisa” preexistente às
relações sociais. Pelo contrário: se existe é como realidade simbólica, produto das inteirações
humanas. Em outras palavras: não existe corpo anterior ao discurso. Na situação específica da
performance oral, tal assertiva ganha ênfase na medida em que gesto, olhar, posturas e
movimentos vão se interpor ao que é falado, conferindo ao proferimentos uma estruturação
corporal. É um corpo oralizado, prenhe de poesia, fundado pela palavra. (ZUMTHOR, op.
20
cit.). Sobre o corpo como suporte ritual para as representações coletivas, escreve Douglas:
Ainda mais direto é o simbolismo sobre o corpo humano. O corpo é um modelo que
pode significar qualquer sistema limitado. Seus limites podem representar qualquer
sistema limitado. Seus limites podem representar quaisquer limites que estejam
precários ou ameaçados. O corpo é uma estrutura complexa. As funções de suas
diferentes partes e suas relações proporcionam uma fonte de símbolos para outras
estruturas complexas. Não podemos, possivelmente, interpretar rituais concernentes
a excrementos, leite de peito, saliva e tudo o mais, a menos que estejamos
preparados para ver no corpo um símbolo da sociedade, e os poderes e perigos
creditados à estrutura social reproduzidos em miniatura no corpo humano
(DOUGLAS, 1976, p. 142).
Seguindo a linha de pensamento do que já foi explanado, tentarei explicitar as
formas como o corpo do iniciado suporte à performance ritual, produzindo enunciados
através de gestos, olhares, danças e posturas. Na parte em que trato do ritual de
desenvolvimento, abordarei as técnicas utilizadas na produção do corpo do transe e da
incorporação.
Darei continuidade à minha análise sobre as Narrativas Rituais, desta vez,
falando sobre o panteão umbandista e sua hierarquia e dedicando o penúltimo capítulo de
meu trabalho a isto. Apresento uma construção que fiz a partir, principalmente, dos pontos
cantados.
Nas Considerações Finais, além de explicitar, como de praxe, a que conclusões
meu trabalho me levou, aponto alguns temas de pesquisa como sugestões para algum
pesquisador que leia meu trabalho e esteja interessado em dar prosseguimento ao tema.
21
2 PERCURSOS
Os relatos que seguem são frutos de entrevistas que realizei ao longo da pesquisa.
Dentro de todas as que tinham comigo, estas quatro me chamaram mais atenção, por tanto,
seguem aqui explicitadas. O critério que utilizei para fazer esta seleção foi a presença de
informações que me levassem a uma descrição da vida ritualística do terreiro ao longo de sua
história.
Utilizei o método proposto por José Carlos Sebe Bom Meihy (1991) no tratamento
desses textos: transcrever, textualizar e transcriar. A primeira fase é velha conhecida dos
trabalhos etnográficos: nada mais do que passar para o papel Ipsis Litteris o que foi
mencionado em fala, sem suprimir nem acrescentar nada. A segunda etapa consiste em dois
passos interdependentes: a) eliminar a voz do entrevistador, dando destaque à do narrador e b)
modificar a estrutura do texto de forma conferir coerência e sonoridade à narrativa. A
originalidade do método recai principalmente na terceira etapa: a transcrição. Inspirado do
“teatro de linguagem” de Barthes, Meihy se propõe a teatralizar o que foi dito, resgatando seu
contexto original e criando no texto uma atmosfera semelhante à experimentada durante a
entrevista. Realizei essa terceira etapa através da inserção de algumas falas e informações que
não estavam originalmente explícitas na entrevista original, mas que foram ditas ou
insinuadas em conversas informais com os sujeitos de pesquisa ou esclarecidas em consultas
posteriores.
Segue o relato de vida de Mãe Valkíria por ela mesma, a entrevista com D. Maria
(a Madrinha Baía), uma de suas cambones antigas e a fala de Sérgio, seu cambone atual.
Estes, falando sobre suas histórias dentro do terreiro. O quarto relato é de Mãe Dulce do
Ogum, mãe-de-santo de Umbanda, iniciada por Pai Luis da Serrinha, irmã-de-santo de D.
Valkíria.
Em linhas gerais, eram estes os temas discutidos nas entrevistas: I - Trajetória
pessoal aa iniciação na Umbanda: qual a orientação religiosa de sua família? / Teve alguma
ligação com a Umbanda ou com outra religião de matriz africana antes de conhecer a casa
onde se iniciou? Qual?/ Houve algum umbandista ou alguém de outra religião de matriz
africana na família? Quem foi? Qual era essa religião? / Como conheceu a Umbanda? /
22
Passou por outras casas antes de conhecer sua atual?/ Qual o motivo de sua iniciação? /
Passou por dificuldades financeiras ou teve complicações com a saúde? / Procurou outros
meios de resolução para a crise? Deram resultado positivo? Parcial, total ou nenhum? / A
crise, se existiu, se resolveu com a iniciação? De que forma? / Quem lhe apresentou a casa
onde se deu sua iniciação? / O que lhe motivou na escolha da casa para sua iniciação? Havia
outras opções? / Houve resistência pessoal ou familiar que se fez de obstáculo à sua iniciação?
Quais?; II- Vida de iniciado: Algo mudou em sua rotina de vida? O quê? / Você permanece na
casa onde se iniciou? / Se não, qual o motivo? Mudou de religião? Migrou para outro terreiro?
Abriu sua própria casa? Impossibilidades pessoais de manter as obrigações? Quais?
Financeiras? Saúde? Divergências com pai/mãe-de-santo? / Que rituais e festas acontecem no
terreiro ao qual você está ligado (a) atualmente? / Essa ritualística permanece a mesma desde
a época de sua iniciação ou você observa mudanças? / Que mudanças são essas? / Consegue
localizá-las no tempo? / Porque essas mudanças rituais aconteceram? Consegue relacionar as
causas dessas mudanças a algum evento ocorrido no terreiro? Qual (is)?; III - Árvore familiar
iniciática: Você teve mais de um (a) pai/mãe-de-santo durante sua vida religiosa? / Como era
o funcionamento da casa de seu pai/mãe-de-santo? / Que rituais ele (a) realizava? / Se você
tem casa aberta, quais rituais você mantém hoje em dia que identifica como herança? /
Conheceu seu (sua) avô/avó-de-santo? / Qual o funcionamento da casa dele (a)? Parecia com
a casa de seu (sua) pai/mãe-de-santo? / Até onde consegue voltar em sua árvore iniciática?
Todas estes eram questionamentos me acompanharam durante as conversas e
orientavam minhas entrevistas. A maioria não foi feita diretamente ou de forma estruturada,
estando presente, na maior parte do tempo, apenas de forma implícita, norteando minha
investigação.
2.1 NASCE UMA MÃE-DE-SANTO
“Eu nasci e me criei em Xapuri, no Acre. Fiquei lá até casar. Lá era a coisa melhor
do mundo. De ruim só tem o frio, que eu não gosto.
“Minha mãe se chamava Else, era professora lá. Meu pai era judeu e médico da
região. Tinha seringal, criava gado e atendia as pessoas das redondezas. Eu sou a primeira
filha dos dois juntos. Meu pai queria que nascesse um homem, nasceu Valkíria: ele não
23
gostou! Mas fazia de tudo por mim, me queria muito bem!
“Quando eu era moça menor... Assim, três ou quatro anos, ele comprou um
carneirinho todo equipado e me deu de presente de aniversário. Queria que aprendesse a
montar, para andar a cavalo. Porque meu pai tinha tudo: cavalo, boi... Mas como eu era muita
pequena para aprender num cavalo, me treinou no carneirinho. E eu tive que aprender a
montar, porque se não ele gritava: ‘Você tem que aprender a montar! Vamos! Você tem que
aprender a montar! Ande’! À fina força, não? Até que aprendi mesmo!”
“Papai e mamãe tiveram Valkíria, Valmira, Valdir, Valdira e Vagner. E o Simão,
que a mamãe criou. Quase todos já morreram, fiquei eu e Valdir, meu irmão que é da
Marinha. Fora esses, alguns irmãos que a gente está descobrindo agora, mas que são por
parte de pai’.
“Meu marido, conheci em Xapuri. Era um federal... Auditor fiscal! Foi servir lá,
foi quando me casei. Logo depois foi transferido para Manacapuru
7
e de lá, para Fortaleza. Eu
vim com ele. Aqui ele morreu! Era 51, o ano! E eu fiquei... Estou até hoje... Pagando”!
“A Hárima, nossa única filha, era bebê, quando aconteceu. Morávamos em
Antônio Bezerra e, logo que ele faleceu, nos mudamos para Aldeota, na Lídia Valente”.
“Depois que meu marido morreu veio a doença... Sofri muito! Eu adoeci de uma
tal maneira que ficava abirobada. A Hárima era pequenininha e o outro menino era menor.
Eles ficavam com a empregada e eu ia receber o dinheiro da pensão. Até hoje como e bebo do
que meu marido me deixou... É meu marido: cuida de mim até hoje! Eu vejo as coisas e,
depois que ele se foi, ainda apareceu para mim umas três vezes, me dando aviso de doença ou
de alguém que estava para morrer”.
Uma das categorias nativas que aparece referida ao longo de todo texto é a dos
Fenômenos Mediúnicos. Por mediunidade se entende a capacidade que uma pessoa (ser
encarnado, dotado de matéria) possui de comunicar-se com espíritos (seres imateriais, que
tiveram vida e história na terra). A mediunidade varia de acordo com a qualidade dessas
mensagens, pode ser: auditiva, visual, de acordo com o sentido que é “tomado de
empréstimo” pelos espíritos, ou incorporativa (quando a consciência pessoal fica em
suspensão e o corpo do sujeito é tomado totalmente pelo ser espiritual). A presença dessa
terminologia no vocabulário umbandista deve-se ao contato que tais religiões tiveram com o
Kardecismo, em solo brasileiro, como dito mais a frente.
7 Região Metropolitana de Manaus.
24
Os umbandistas acreditam que o percurso que vai do nascimento à morte de um
indivíduo como apenas um pequeno trajeto de sua existência. Segundo tal crença, a pessoa
seria formada por duas partes: o corpo físico (também referido como matéria), que é perecível
e provisório e a alma ou espírito, que é eterno ao tempo e as mudanças. Durante a existência,
essa alma (que vai caracterizar a consciência individual do ser) adquire morada em várias
formas materiais presentes na natureza como rochas, plantas e animais. A mudança de uma
forma material para a outra, se com a destruição da matéria antigamente habitada (onde
uma das formas conhecidas é a morte) e a subsequente passagem do espírito para outra forma.
Acredita-se também que a alma chega a uma nova forma com consciência parcial de seu
período como forma anterior e vem com uma missão específica para concluir naquela forma
atual, antes de mudar para outro estágio, que obrigatoriamente é mais evoluído. Isso se
num continuum evolutivo onde a forma mais avançada seria Deus, que é referido dentro da
Umbanda por vários nomes.
A forma material mais avançada a ser alcançada é a de ser humano dotado de
escolhas. Uma alma pode reencarnar por diversas vezes como ser humano, antes de
completar sua escala evolutiva e todas as suas missões e desencarnar. O desencarne é a
passagem para outro estágio da evolução, onde o espírito pode cumprir suas missões sem
necessitar de uma matéria própria.
Acredita-se que as divindades reverenciadas na Umbanda são seres que tiveram
vida como humanos encarnados e que desencarnaram. Embora não precisem de um corpo
físico o tempo todo, têm como missão orientar a vida das pessoas na terra com relação aos
seus estados de aflição e, em troca, poder evoluir na condição de espírito.
“Quando ia receber o dinheiro para sustentar minha família, me perdia no mundo
de tal forma que desconhecia onde estava. Lembro uma vez que eu fui pro lado de
Maranguape... Sabia nem onde era! Cheguei lá, perguntei onde é que ficava a delegacia. A
mulher disse:
‘_ A senhora tá doida?’
‘_ Não!’ Eu disse. ‘Eu atrás de procurar aonde eu estou! Porque eu não sei
aonde eu estou!’
‘_ Ah! A senhora não normal, não! Eu vou botar a senhora num ônibus. A
senhora que voltar pra Fortaleza?’
‘_ Quero!’ voltei pra Fortaleza, não levei dinheiro nem nada. “Quando foi no
25
outro dia eu peguei uma pessoa pra ir comigo no banco”.
“Nessa época ainda não conhecia a Umbanda... Não conhecia nada! Era católica
apostólica romana, dessas que se confessam e comungam toda semana... Beata! Passei um ano
de luto fechado... Não tirava nem as sobrancelhas, usava vestido preto de mangas compridas
que iam até o pulso e um cabelão enorme”.
“Quando adoeci, não tive condições de ficar com as crianças: mandei chamar a
mamãe no Acre para me ajudar e ela veio. Quando eu dava ataque, ficava dura, dura, dura...
Sem condição de nada! A mamãe chamava a Assistência para vir em casa. Naquela época não
existia ainda IJF
8
, esses carros de para-médicos de hoje. Chamava a Assistência e a o carro da
Assistência vinha buscar em casa. Minha filha ficava agarrada com uma estátua de Nossa
Senhora das Graças que tenho até hoje. Quebrou muitas vezes o pescoço dessa santa.
Levavam-me ao hospital e ela ficava atracada com a santa pedindo que não levasse a mãe, que
já tinha lhe levado o pai. E normalmente quebrava! Apertava tanto que quebrava o pescoço da
imagem. E os médicos diziam: ‘Não é nada! Não é nada’! E davam uma injeção pra nervos,
era quando eu voltava. Passava de um médico pra outro e as pessoas não descobriam o
fundamento daquela doença. Aque um alguém, conhecida da minha mãe, disse: ‘Odico
falou que não tem solução! A medicina não tem solução! Então por que é que você não
procura o Espiritismo? Um centro espírita’? E ela foi procurar... Na época tinha o Irmão
Almeida, que era uma mesa Kardecista”.
“Fui a esse Irmão Almeida... Quando começou o negócio lá, comecei a gritar...
Um espírito pegou... Não sei o que foi! Me senti pior e queria sair dali. Me senti pior, pior,
pior”...
“Esculhambei todo mundo! Porque a mulher disse que eu estava assim porque
estava namorando com homem casado. Coitada de mim! Eu nem pra namorar! Porque eu era
tão doente que não tinha tempo nem pra namorar. Dei uma esculhambada! Eu falei pra ela que
ela é quem devia estar doida. Eu não estava doida não, estava precisando de ajuda. Nisso,
desci as escadas correndo e um senhor do bairro viu que eu tava chorando e gritando... Ainda
hoje me lembro... Ele me sentou dizendo: ‘Espere que eu vou lhe dar um calmante’. E trouxe
um pílula e me deu para beber. Nunca mais voltei lá”!
8 Instituto Doutor José Frota. Hospital da Prefeitura Municipal de Fortaleza e primeiro
serviço de pronto-socorro da cidade. Trata-se da mesma Assistência Pública de Fortaleza
referida por D. Valkíria. A instituição foi inaugurada em 22 de agosto de 1932, em parceria
com a Santa Casa de Misericórdia. Passando por várias mudanças ao longo dos anos,
adquirindo o nome atual na década de 70, quando se torna uma autarquia municipal.
26
“Nessa época, freqüentava em casa um amigo de minha mãe que era sobrinho
daquele empresário que morreu de desastre. Foi ter com mamãe e disse: ‘Você sabe qual é o
problema? A Valkíria está precisando de um caboclo... De Umbanda! Leve-a na Umbanda que
ela vai ficar boazinha’. Daí ele me levou para conhecer meu pai-de-santo que já morreu
9
.
“E a Umbanda dele... Ele era um Umbandista muito fino. Famoso, não sabe? Bem
forte, bem alinhado, ele andava muito chique, perfumado... Foi quem me deu a vida. Foi onde
fui pegar caboclo pela primeira vez e me curar dos males que passava.”
Recorrendo à linguagem do teatro, Victor Turner (1987) elabora um conceito o
conceito de drama social” que vai usar de analisador para compreender certos processos da
vida coletiva, sobretudo os momentos aflitivos. Trata-se de um processo que envolve quatro
momentos: a) ruptura; b) crise e intensificação da crise; c) ação reparadora e d) desfecho, com
a possibilidade da reintegração à ordem social ou do reconhecimento de uma cisão
irreparável.
Em boa parte das narrativas de vida as quais tié acesso no decorrer da pesquisa, no
tempo que antecede a iniciação do fiel, referências a um estado de crise denominado
cobrança. Fenomenicamente, em nada se distingue de outros estados de aflição mais comuns
ao cotidiano (doença, aflições amorosas e financeiras), salvo pela explicação apontada para a
ocorrência deste: a causa espiritual. Em outras palavras, o indivíduo carrega, de vidas
passadas, a missão de ajudar na incorporação dos espíritos, seja emprestando seu corpo, seja
auxiliando os espíritos já incorporados. A ação reparadora, nesta situação, é a iniciação. Caso
a pessoa carregue consigo uma mediunidade incorporativa, uma outra forma de se referir ao
estado de cobrança é dizer que fulano está com as linhas em cima.
“Durante muito tempo, fui a segunda pessoa dele nas obrigações do terreiro. O
Terreiro era cheio! Ele ficava dentro quando fazia a festa e a Valkíria era quem pegava o
todo o abacaxi.”
9 Senhor Luis Ladislal da Silva, conhecido com Sr. Luis da Serrinha, por ter casa no
bairro da Serrinha, em Fortaleza.
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“Nessa época minha filha estudava. E era eu, ela e o menino e uma
empregada. Quando entrei, deve ter sido por volta do ano de 57. Logo depois, abandonei a
Umbanda e para cuidar de casa e de minha vida pessoal. Aí eu fui convidada pra uma festa de
aniversário... E eu não como carne de porco! E eu pra não fazer sujeira... Estava com esse
dedo indicador inflamado. E eu, pra não fazer sujeira, comi aquele pedacinho de nada de
carne de porco cozinhada. Casa de pessoal chique: não podia fazer feio! No outro dia
amanheci com o corpo todo inchado, parecia um bicho!”
“Nisso, chegou-me onde estava deitada, uma entidade... Pulando e brincando e
disse assim:
‘_ Tá doente?!’
‘_ Tô!’ Eu disse. ‘Me mate logo!’
‘_ Não! Não vim pra lhe matar não. Vim lhe firmar! Posso até matar, se você não
fizer o que eu mandar!’
Sou uma pessoa que também sou vidente: o que é de lá eu enxergo.
‘_ Olhe’, continuou a entidade ‘eu vou deixar você boazinha amanhã mesmo, mas
se você voltar pra Umbanda! Se não voltar eu passo amanhã mesmo. Eu passo você amanhã
mesmo!’ E era um rapazinho! E eu disse:
‘_ Mas eu tenho dois filhos, não tenho marido, não tenho ninguém, não tenho com
quem deixar meus filhos... Como é que eu vou deixar meus filhos sozinhos em casa esse
tempo todo?’
28
‘_ É, se você voltar pra Umbanda você vai ficar boa. Mas se não voltar, amanhã
mesmo eu lhe carrego!’ Aí eu só tive esse jeito: voltar!
‘_ Agora voltar pra nunca mais sair, sair quando eu disser. (...) E aí? Você vai
voltar?’ Eu disse:
‘_ É o jeito! Qual é o outro jeito que eu tenho? É esse! Tenho que voltar!’
‘_ Pois bem, amanhã você se levanta, dá banho, veste a roupa branca e procura um
lugar pra fazer uma fé, um trabalho... Rezar, receber seu caboclo lá! Eu vou lhe orientar onde
é. Você quer ficar boa?’
‘_ Quero!’ Mandou fazer um chá assim, assim, assim! Eu tinha minha empregada,
acordei a pobre da empregada pra fazer o chá.
‘_ Faça o chá pra eu beber todo dia!’ Era mais ou menos... Era de manhã! Eu
estava deitada entra a vida e a morte, tive de escolher’! Voltei para Umbanda”!
A mediunidade é encarada pelos féis como um dom inato, um presente de Deus e
algo que vem acompanhada de uma “missão“. Em minhas entrevistas, é recorrente a fala do
umbandista carregada de imperativos quanto ao uso da mediunidade, a exemplo: “Deve ser
usada para a caridade!”, “Filho de caboclo tem uma missão: fazer o bem!” ou “Cuidar dos
aflitos é nossa sina!”. São comuns histórias de pessoas que entraram pra Umbanda e que,
depois de iniciadas, abandonam a religião passam a sofrer com um novo estado de cobrança.
Temos assim, um recomeço do ciclo do drama social descrito acima, quando há o afastamento
das funções religiosas (ruptura); o conseguinte estado de cobrança (crise e intensificação da
crise); por vezes, o retorno à religião (ação reparadora) e o apaziguamento das forças que
geram aflição (desfecho).
Isso nos remete ao sistema de prestações totais que Marcel Mauss (1974) enuncia
em seu Ensaio sobre a Dádiva. O esquema dar-receber-retribuir aparece implícito nesses
discursos, uma vez que o dom recebido de deus precisa ser retribuído através do seu uso
contínuo na caridade. Àqueles que têm suas aflições aliviadas graças aos poderes curativos
dos médiuns são os clientes (pela relação mercadológica e eventual que estabelecem com a
religião). É de praxe que estes últimos retornem sua gratidão ao terreiro através de bens
materiais (como pagamento pelos serviços mágicos ou donativos para a comunidade do
terreiro) e/ou de forma simbólica (através do reconhecimento da eficácia dos serviços
mágicos do pai/mãe-de-santo e dos médiuns que compõem seu terreiro, concedendo-lhes
prestígio perante a sociedade). Criando, desta forma, uma rede de relações em torno da
29
atividade religiosa, como mostra a figura abaixo.
“Fui à casa de uma senhora que permitisse chamar meu caboclo. Chamei meu
caboclo, ele pediu permissão... Ela ficou feliz, satisfeita, porque as minhas entidades são
nobres, são boas... Faz em nome de Deus”!
“Lá na Lídia Valente eu trabalhava, tinha clientes, filhos-de-santo... Mas minha
mãe comprou um barraco na Joaquim Lino, bairro do Pirambu, e insistiu muito para que
mudássemos. Comprou uma casa de barraco ali, essa de barraco acolá, me deu. Foi quando
nos mudamos. Melhor do que ficar na Aldeota, pagando um horror de dinheiro. Pronto, nesse
mesmo endereço, desde 61. Desde 8 de dezembro de 61 até hoje”.
“De início, era só uma casa. O primeiro terreiro era onde hoje fica a garagem e a
gente morava do outro lado da rua, numa casa de esquina, onde hoje é uma lanchonete.. Logo
depois, mamãe comprou mais três casas ao lado e me deu. Vendemos a casa da esquina e
passamos a morar embaixo e o terreiro subiu, ficou a um andar do chão: Seu Gérson não
gostou! Reclamava muito e dizia que não tava certo isso, que a casa tinha que ser embaixo, no
chão. É de onde a energia telúrica brota: da terra. Tinha que ficar embaixo. No chão! De onde
brota energia! a gente veio morar ocupando os andares de cima, três no total. Até hoje a
construção desses ainda está por terminar”.
“A Baia aqui é aos domingos. Nesse dia se canta para caboclo, se recebe e eles
30
vêm fazer o que tem para fazer. A exceção são os trabalhos particulares e as obrigações de
filhos-de-santo. Para esses, geralmente se marca um dia da semana, porque às vezes têm de
ser feito fora do terreiro”.
Como descrevo no capítulo seguinte, a Umbanda surge nos finais do século XIX,
início do século XX, numa sociedade em processo de urbanização e industrialização. Gênese,
em parte, impulsionada por mudanças sócio-econômicas ocorridas nas décadas anteriores. As
de maior relevância seriam: a abolição das escravidão; a migração de europeus para o Brasil e
a necessidade de mão-de-obra especializada nas operações das novas indústrias, em parte,
suprida pela mão de obra estrangeira. Era um novo mundo do trabalho que se formava do qual
o negro recém-liberto e seus descendentes estavam alheios, excluídos ou deslocados para
posições periféricas (como subempregos, por exemplo).
Se nos detivermos um instante nas nomenclaturas utilizadas para designas os
elementos rituais na Umbanda, vamos encontrar refletido todo contexto histórico no qual
surge a religião e que colocava o mundo do trabalho como questão central da vida cotidiana.
E é esta mesma sociedade que aparece codificada nos termos umbandistas (PORDEUS JR.,
1993). Desta forma, trabalho é o termo utilizado para designar o ato mágico em geral. O
médium incorporado é chamado de cavalo ou aparelho, como referência um instrumento de
ofício. Baia ou corrente é como chamam as duas filas paralelas formadas pelos médiuns
durante o ritual. É referência indireta à “baia”, local de trabalho dos funcionários nas firmas e
repartições e também pode ser interpretado com o lugar no estábulo onde fica o cavalo. Dois
dos instrumentos mais comuns de trabalho são os pontos cantados, preces cantadas, entoadas
pelas entidades, e os pontos riscados, sobreposições de desenhos geométricos feitos no chão
com pemba
10
. Ambos são referências ao ponto de trabalho do operário de chão de fábrica. As
roupas utilizadas durante os rituais são chamadas fardas.
“Fazemos três festas comemorando as datas litúrgicas principais. A primeira do
ano é a de Iemanjá, no dia 15 de agosto. O povo daqui do Ceará vai à praia para baiar, eu não
vou! Fui três vezes, mas não vou mais: na praia da muita confusão e eu não gosto de
chafurdo. A segunda é a de Cosme e Damião, no dia 21 de setembro, quando louvamos as
crianças na Umbanda. A terceira é a festa maior do terreiro porque é a do santo da casa, no dia
8 de dezembro, a festa de Oxum, meu orixá. Quando meu pai-de-santo era vivo, ele vinha me
ajudar na festa de Oxum. A gente combinava: dia 4 de dezembro ele batia para Santa Bárbara
10 Giz utilizado em certos rituais de religiões de matriz africana. É encontrado no
mercado em várias cores. A cor utilizada varia conforme a necessidade do ritual.
31
na casa dele e eu ia ajudar; quatro dias depois, ele que vinha na minha festa”.
“Quando meu pai-de-santo morreu, eu fui à Bahia. Tive de ir à Bahia para tirar a
Mão-de-Vumbe. Isso foi no final da década de 80, creio. Quem me levou foi o pai do meu neto
Hassam. Acompanhei-o numa viagem à Bahia e procuramos uma pessoa que pudesse fazer
o ritual em minha cabeça. Fiquei sete dias comendo bolacha Cream-Craker bebendo chá.
Foi na floresta que dei minha cabeça. tem um lugar apropriado para isso. Tem até polícia!
É cheio de policial em volta, como fosse um parque”.
Nas religiões de matriz africana, invariavelmente, a cabeça é considerada a parte
mais importante do corpo, por isso, a mais carregada de simbolismos e objeto central de vasta
ritualística. A exemplo do Candomblé, as deidades cultuadas recebem o nome de orixás. Do
iorubá: Ori (cabeça); Isa (guardião). A cabeça é sua morada, ligação com sagrado por
excelência. É por esse motivo que antes processo de iniciação do Candomblé, chamado
Feitura, o fiel passa por um ritual chamado Bori. Em iorubá, Bori poder ser traduzido como
“dar comida à cabeça”
11
. O ato está alicerçado na crença de que a cabeça precisa ser
preparada para entra em contato com a energia sagrada - Orixá - sendo fortalecida com
comidas sagradas.
Usa-se a expressão mão na cabeça para se referir à família religiosa de um
iniciado. Portanto, se digo que Luis tem a mão na cabeça de Valkíria, estarei dizendo que
Vakíria foi iniciada na religião por Luis, sendo este, seu pai-de-santo. Quando um pai ou mãe-
de-santo falece, diz-se que seu espírito ainda permanece sobre as cabeças dos que foram por
ele iniciados de forma parasitária, sugando as forças e se alimentando de toda a comida que
se a essas cabeças. Para se livrar dessa influência maligna, o iniciado deve procurar outro
pai ou mãe-de-santo, que seja mais velho dentro da religião, disposto a renovar-lhe as
obrigações
12
, numa espécie de adoção ritual. Tal ato recebe o nome de tirar a mão do morto
ou tirar a Mão-de-Vumbe.
2.2 MADRINHA BAÍA
“Sou natural de Baturité, mas moro em Fortaleza desde que tinha oito anos de
11 Corruptela das palavras Ebó (comida) e Ori (cabeça).
12 Nome dado aos sacramentos recebidos nas religiões de matriz africana no geral.
32
idade. Casei aos vintes e dois e, logo então, veio a doença... Nessa época, minha mãe rezava.
Ela era de mesa branca
13
! Quando eu passava mal, ela rezava, aí pronto: eu melhorava!”
“Foi para tentar me curar que também fui procurar uma mesa branca. Encontrei
uma que ficava no Pirambu. Quando cheguei lá, o mestre do recinto mandou me botar na
ponta da mesa. Depois de acabada a sessão, ele chegou e disse ao meu cunhado: ‘Irmão
Raimundo, essa senhora não é de mesa branca. É da Umbanda! Procure um terreiro! Eu vou
lhe dar o nome de um terreiro’. Então me indicou o nome da Madrinha Valkíria. Isso
aconteceu numa sexta-feira! No domingo, eu fui”...
No Brasil, relação do Kardecismo com a Umbanda sempre foi estreita e, ao
mesmo tempo, contraditória, por se tratar de uma religião onde incorporação também tem um
lugar privilegiado no rito. As manifestações caboclas, de entidades que remetiam à
brasilidade, insistiam em acontecer nas mesas brancas. As respostas que os centro kardecistas
davam eram as mais diversas. Alguns tentavam doutrinar o médium de forma que controlasse
sua incorporação, restringindo-a aos boca-funda - categoria utilizada para classificar um
espírito recém-desencarnado, a quem são destinadas as sessões de mesa branca. Outros
doutrinavam os espíritos caboclos a somente se manifestar em determinado dia da semana,
quando o ocorria uma sessão especial, com a finalidade de atender somente a esses espíritos.
Geralmente eram sessões secretas ao grande público, acessíveis apenas a uma elite mediúnica
preparada do centro. Havia ainda os que encaminhavam o médium para se desenvolver nos
terreiros de Umbanda. Noto que estas três ações visam fazer certa ascese ritualística, de forma
que o rito kardecista ficasse preservado e não sofresse influência dos meios umbandistas.
“Quando cheguei na porta do terreiro, o Seu Gérson, incorporado na Madrinha
Valkíria, vinha chegando, ele falou: ‘Se tu não morreu até ontem, de hoje em diante tu não
morre mais!’ Aí eu já entrei para me desenvolver”...
“Não dei trabalho no desenvolvimento: com dois desenvolvimentos, peguei
caboclo. Com um me que estava no terreiro, o caboclo já cantou, já dançou,bebeu cachaça,
bebeu café... Eu sou filha de preto-velho, mas trabalhava com o Raimundão. Na minha
cabeça, ele bebia cachaça, bebia vinho... Bebia o que desse”!
“Eu era cabona e meu marido o cabono
14
. Ele, filho de tranca-ruas e eu, filha de
preto-velho. pronto: ele recebia o caboclo dele, eu recebia o meu. Ás vezes eu estava meio
13 Ritual do Kardecismo onde a incorporação acontece. Tem como uns dos objetivos
doutrinar espíritos desencarnados para que estes continuem seu caminho evolutivo.
14 Formas aportuguesadas do termo canbone.
33
assim... Ela mandava logo eu trabalhar pra poder receber a corrente, pra poder ficar ajudando
ela no desenvolvimento do povo. Depois que despertava, ajudava no desenvolvimento do
povo”.
“Depois que a gente estava bem firme no caboclo, começavam os cruzos. Se fosse
preto-velho, tinha a obrigação de preto-velho! Tinha a oferenda de preto-velho, o café, o
cachimbo, farofa... Essas coisas assim! Eu sou cruzada em todas as linhas... Mas depois
que eu estava bem firme, foi que pude receber cruzo. Não era ela quem dava a odre, era Seu
Gérson. Quando estava no tempo, ele falava: ‘Maria, tu vais te cruzar tal dia! Te limpa, não
venhas suja!’ Quem viesse ajudar se preparava, se isolava das farras, das bebedeiras... Como
eu era a cambona da casa, toda obrigação que tivesse, eu passava a noite com a Madrinha.
voltava para casa depois das quatro da madrugada. Dormia no terreiro, no chão. Daí eu fui
pembada na cabeça, nas costas, na frente, nos lados... Esse era o cruzo”!
“Seu Pedro e eu acompanhávamos a madrinha a todos os lados. Nessas andanças,
conheci inclusive o Seu Luis da Serrinha. O terreiro dele era muito bonito. Nas festas, lotava
de gente! E a gente sempre foi muito bem recebido, davam tudo na mão: comida, bebida,
assento... Era muita gente que ela levava! A madrinha que abria o trabalho - por ser filha-de-
santo dele - e ele fechava”.
“A madrinha sempre gostou de fazer as coisas certas! Desde que o terreiro abriu,
somos registrados na Federação. Ela dizia que ia A esses cantos para tirar a licença para
podermos trabalhar em paz, sem ser perturbado por polícia. Desta forma, nunca tivemos
problema! Os policias entravam, falavam com a madrinha... O caboclo na cabeça da madrinha
sempre foi muito amigo! Eles olhavam unicamente se tinha a bebida. Como não viam, iam
embora. Pronto! Quanto a isso, nunca deram flagrante: os nossos caboclos trabalhavam com a
garrafa escondida embaixo da roupa, enrolada num pano”.
O surgimento das federações de Umbanda pelo país vem atender a duas demandas
específicas. A primeira delas diz respeito a legalidade da religião: a força da instituição
juridicamente alicerçada iria conferir armas no combate às medidas discriminatórias e
repressivas que, muitas vezes, eram implementadas pelo próprio Estado. A segunda era tentar
trabalhar no rumo oposto ao da segmentação e da dispersão da religião, ou seja, era num
longo prazo, tornar a Umbanda como a religião legitimamente brasileira. (BIRMAN, 1985)
Para tanto, o cuidado para que sua difusão pelo território nacional seguisse certa
homogeneidade era primordial. Uma das medidas para assegurar tal homogeneidade era
34
elaborar um modelo ritual, composto de normas que passavam a ser seguidas pelos filiados a
essas instituições, em troca da proteção judicial no que diz respeito à liberdade de prática
religiosa. Práticas como a Macumba, o Terecô e o Camtibó, que remetiam a um passado
“étnico” (como uma identificação com os povos africanos ou indígenas, a exemplo) eram
rejeitadas ou, por vezes, fagocitadas e incorporadas pelo panteão umbandista. No Ceará, esse
movimento se inicia com a fundação da UECUM (União Espírita Cearense de Umbanda), em
1954. Foi esta a primeira instituição da classe a emitir alvará de funcionamento para os
terreiros.
Elementos que remetiam à Macumba (a exemplo da bebida, como bem destaca D.
Maria) eram condenáveis. Cabia à instituição eliminá-las ou corrigi-las. O nome “Centro
Espírita de Umbanda” era preferido outras denominações comuns - a saber: tenda, cabana,
terreiro etc. Nas palavras do professor Ismael Pordeus: “o que nos leva a pensar naquilo que
concerne às tentativas de legitimarão e codificação da religião umbandista - a Macumba
utiliza o nome Umbanda para se legitimar, do mesmo modo que a Umbanda utiliza a
designação espírita com objetivos similares, em relação ao Espiritismo Kardecista”
(PORDEUS JR., 2003, p. 13).
“E assim seguimos durante muito tempo: eu sempre como a pessoa de confiança
da madrinha. Quando ela viajou pra Salvador, eu que fiquei tomando conta das coisas aqui. A
ordem que ela saiu dando era a ordem que era cumprida. Ela telefona, falava comigo, dizia
como queria que as coisas fossem feitas e eu fazia. Eu que abria os trabalhos, fechava, acendia
os pontos, cuidava dos assentamentos... E assim se passaram os meses em que ela esteve fora.
Quando voltou, entreguei a ela o terreiro da mesma forma que estava quando ela saiu”.
2.3 CAMBONE SÉRGIO
“Nasci no Rio de Janeiro. Aliás, no que hoje chamam de Rio de Janeiro! Naquela
época, era estado da Guanabara. Minha infância foi boa... Convivi com minha família até os
dezenove anos, quando saí de casa para morar num terreiro de Umbanda. Meu pai era
funcionário público e minha mãe, dona de casa. Tiveram eu, o único filho homem, e mais
duas mulheres, minhas irmãs, que ainda hoje moram por lá.”
35
“Larguei o estudo cedo por causa de farra. Na época tinha discotecas, seresta,
samba... Tudo perto de casa, vizinho... A gente conhecia de tudo! Não tinha coisa certa! Muita
bagunça! Por causa disso. tive de começar a trabalhar cedo também.”
“Minha mãe vivia na Umbanda e eu sempre acompanhava. Certo dia, por causa de
briga e bebida, fiquei com um inchaço muito grande no braço... Ela me levou vou a um
terreiro, para rezar. Daí eu gostei e fiquei”!
“A mãe-de-santo se chamava Sílvia. era uma mistura! Porque ela era de
Candomblé e o marido dela, meu padrinho era de Umbanda. Para não desfazer dele, ela
misturou. Daí ficou, como se chama: Omolocô. Ficou aquela Umbanda traçada... Candomblé
traçado”...
A fala de Sérgio me remete à constatação de Prandi quando, ao abordar o cenário
religioso no sudeste brasileiro, diz:
Durante os anos 1960, alguma coisa surpreendente começou a acontecer. Com a
larga migração do Nordeste em busca das grandes cidades industrializadas no
Sudeste, o candomblé começou a penetrar o bem estabelecido território da
umbanda, e velhos umbandistas começaram e se iniciar no candomblé, muitos deles
abandonando os ritos da umbanda para se estabelecer como pais e mães-de-santo
das modalidades mais tradicionais de culto aos orixás. Neste movimento, a
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umbanda é remetida de novo ao candomblé, sua velha e "verdadeira" raiz original,
considerada pelos novos seguidores como sendo mais misteriosa, mais forte, mais
poderosa que sua moderna e embranquecida descendente. (Prandi, 2009)
Este movimento de adesão ao Candomblé por parte dos umbandistas fez com que
o próprio rito umbandista absorvesse elementos rituais próprios do Candomblé. Esse
movimento elevado à máxima potência deu origem a religiões híbridas, chamadas de
Umbandomblé, Omolocô ou Umbanda traçada.
“Foi que eu conheci a Hárima. O ex-marido dela era meu irmão-de-santo. Ela
era da marinha e viaja muito. Foi viajando que eles se conheceram. Quando ele convidou-a
para conhecer a casa da Madrinha Sílvia, eles já tinham o Hassam. Foi que fizemos aquela
amizade... Algum tem depois, eles viajaram para Fortaleza e fizeram o convite para eu ir
também. Eu vim e estou aqui até hoje. Fiquei morando! Desde a década de 70! Nesse
tempo que passou, fiquei pelo menos uns vinte anos morando fora. Casei, tive filho, saparei,
voltei a morar no terreiro... Assim: passei vinte anos morando fora, porque deixar as
funções, nunca deixei. Sempre vinha, ajudava e voltava para casa. Também nunca saí do
bairro, morava aqui próximo”.
“O terreiro ficava no meio do quarteirão, onde é hoje, e a gente morava mais para
lá, numa outra casa, na esquina. Com o tempo, foi preciso vender a casa e usar o dinheiro na
reforma e na construção de outras instalações. A estrutura era totalmente diferente: onde hoje
é o terreiro, ficavam o quarto da Oxum, o quarto de Oxalá e a camarinha. Os trabalhos eram
realizados no local onde hoje em dia é a garagem e a escada que para os modos
superiores. Mais para trás ficavam o quarto de Exu e o quarto do Seu Gérson”.
“O ritual também era diferente... Antes era mais puxado na Umbanda pura,
tradicional. Principalmente a abertura: vinham os rondas abrir o trabalho. Passavam três
rondas, às vezes quatro... Variava! Dependia muito de como a casa estivesse na ocasião.
Quando nós chegamos do Rio, começamos a modificar alguma coisa. O ritual era mais
voltado para os caboclos, os orixás vieram com a mistura”.
15
“Hoje em dia, ela começa despachando Exu. Louva Ogum, que é o homem da
casa. Xangô, as santas e, no final, Oxalá. O pessoal até se admira porque, se Oxalá é o
supremo, deveria ser o primeiro. Mas Oxalá é sempre o último. Porque primeiro sempre vem
o povo da rua, que é quem toma conta do trabalho e da casa. Eles que são os guardiões da
casa, por isso tem que cantar pra eles primeiro”.
15 Falo no capítulo seguinte sobre essas mudanças na estrutura do ritual.
37
“A gente saia pouco, passava mais tempo dentro do terreiro, fazendo as
obrigações. Antigamente, tinha baia três vezes na semana: na terça, na quinta e no domingo. A
macumba acontecia a partir da orientação do Seu Gérson, que dizia em qual linha trabalhar:
se era mata, se era água, se era Ogum... Aos domingos, geralmente aconteciam os
desenvolvimentos e, na última baia do mês, geralmente era Exu”.
“Ela desenvolveu muita gente! Tem pai e mãe-de-santo desenvolvido por ela até
morando no exterior. Gente com terreiro aberto, gente que desenvolveu gente... Hoje em dia,
o terreiro é pequeno. Uns se foram, outros morreram, outros deixaram a religião, outros
abriram casa”...
“Agora ela não mais cruzo, porque não tem médium com preparo para receber
cruzo. Eu não sei o que acontece... Parece que os caboclos estão mais maneiros hoje. Não
duvido dos caboclos, não é questão de fé, não é isso! A minha esmantida! Mas não vejo
mais, hoje em dia, caboclo fazer como fazia antigamente. No canto em frente à dispensa, fica
a pedra da peia. Quando o caboclo queria disciplinar o filho por alguma coisa que estivesse
fazendo de errado, batia com as mãos deste na pedra até sair sangue. A pancada era forte. A
gente olhava e se arrepiava todo, sentia a energia...
16
Sabia que o caboclo estava mesmo! O
cavalo ia embora com as mãos inchadas, tal quilo um sapo cururu: grossa e cheia de bolha das
pancadas. Hoje eu não vejo mais isso... O caboclo pede licença pra disciplinar o filho e só faz
alisar a pedra. Parece que está limpando, tirando a poeira... Quando a gente ia trabalhar
fora, na encruzilhada ou nas matas, tinha Exu que matava galinha no dente. Tinha um filho-
de-santo que trabalhava com o Exu Gato Preto... Diversas vezes ele despertava em cima de
uma árvore, porque o Exu subia e não descia mais. Hoje não tem mais isso”.
2.4 MÃE DULCE DO OGUM
Chego à casa de Mãe Valkíria para realizar minha pesquisa num tempo em que seu
terreiro está bem reduzido. A maioria dos médiuns que trabalham nas baias são pessoas
oriundas de outros terreiros, que já chegaram lá pais ou mães-de-santo, carregando os trejeitos
16 A pedra da peia é um paralelepípedo, de aproximadamente meio metro de aresta, na
frente do qual o caboclo se ajoelhava para castigar o médium que não estivesse cumprindo
com suas obrigações religiosas. O castigo era aplicado batendo repetidamente as palmas e
as costas das mãos e a cabeça na pedra, até verter sangue.
38
de seus grupos de origens. Os poucos médiuns da corrente que eram seus filhos
originalmente, ainda estavam se desenvolvendo. Ganhou independência religiosa cedo, em 61,
quando funda seu terreiro. Passa desta forma, à condição de mãe-de-santo, de forma que as
responsabilidades com sua casa e seus filhos-de-santo acabam por apartá-la da convivência
cotidiana com seu pai-de-santo, na condição de filha/aprendiz. O contato dos dois, a partir de
então, fica restrito a umas poucas datas festivas, onde um chegava à casa do outro, como uma
visita querida e distante.
Halbwacs (op.cit.) fala que os quadros sociais precisam se manter próximos no
tempo para que a memória não se desarticule, caso o contrário, ocorre um esquecimento pelo
afastamento do grupo. Creio que as mudanças nos rituais na casa de Mãe Valkíria, as quais
descrevo no próximo capítulo, ocorreram por causa deste fenômeno, que foi se intensificando
ao longo dos anos, à medida que esta mantém contato com outras tradições religiosas - e por
conseqüência, outros grupos, outras memórias - que acabam sobrecodificando experiências
anteriores. De modo que, no tempo da pesquisa, a única testemunha do tempo de Mãe Vakíria
no terreiro de Sr. Luis da Serrinha é ela própria.
Neste sentido, o encontro com Mãe Dulce de Ogum me foi de extrema
importância para o desfecho deste trabalho. Trata-se de uma senhora que acompanhou Pai
Luis até seus últimos dias de vida e que veio abrir terreiro muito recentemente. No momento
que tive com ela, pude perceber uma memória de sua árvore iniciativa ainda muito viva. De
tal forma que pude comparar as formas de rito presente nos dois terreiros e perceber as
mudanças e as permanências descritas por Sérgio no relato anterior.
“Sou a mais velha de quatro irmãos! Até os onze anos de vida, eu não conhecia
Umbanda! Filha de mãe dona de casa e cantora de igreja! A minha mãe era prima do Padre
Tito de Fortaleza e da Madre Fé, que era diretora do Colégio das Dorotéias. Morava em
Messejana! Meu pai era comerciante! Era um homem de muitos recursos e, graças à sua boa
condição financeira, vivíamos muito bem, nessa época”.
“Foi por essa idade que comecei a me sentir doente! Eu não sentia nada! Apaguei
de tudo! Fiquei dentro de uma rede, sem comer e sem beber...foram pra médico, fizeram
exame... Naquele tempo a medicina era mais fraca, não tinha os recursos, nem as máquinas
que têm hoje... Um primo meu médico... Ele se aposentou como coronel do exército, mas
nessa época ele não era coronel, disse: ‘Leve pra morrer em casa’! Porque eu não comia, não
bebia, não conhecia pai, não conhecia mãe! a lavadeira da minha avó, D. Laura - ela vou
39
roupa pra minha avó vinte e cinco anos - disse:
‘_ Essa menina tá doente? Isso é coisa é de caboclo’!
“Aí minha avó disse: ‘_ E o que é caboclo’?
“Uma família muito católica, muito religiosa. Que se fazia o terço às primeiras
sextas-feiras, às segundas-feiras... A minha mãe era cantora praticante da Igreja! E a gente
tudo dentro! Negócio de Macumba era coisa do Cão, do Satanás! Ave-Maria! Não se ouvia
falar disso”!
“Minha avó disse: ‘Bem, se é da minha neta morrer, a gente leva ela pra qualquer
canto’! Nessa época a minha avó tinha uma Rural com motorista. Me deitaram dentro, me
levaram no terreiro do Luís Ladislau da Silva, o Pai Luís da Serrinha, como ele era
conhecido”.
“Foi em 1964! E me deitaram no chão: ele rezou e defumou e recebeu Ogum
Beira-Mar, que era o guia dele, o guia de consulta, o dono da casa dele... E fez uma cura em
mim! Quando terminou, que acordei, estava dentro! Nessa época o terreiro dele o piso era
de barro, as paredes eram de taipa e o telhado era de palha. Era bem simples o terreiro dele. E
a irmã dele, que já é falecida, a D. Rita, veio me servir uma xícara de caldo, que eu tomei com
uma fome muito grande. E ele disse pra minha que eu era médium de nascença e que eu tinha
que seguir a minha trajetória, que Deus tinha escolhido, porque senão era arriscado até eu
ficar louca. Quando minha avó chegou em casa e contou pra minha mãe, minha mãe disse:
‘Mais antes ver minha filha morta, do que metida nas coisas do Satanás!’ Foi essa a expressão
da minha mãe. Só que a minha avó fez as minhas fardas, e minhas coisas todas ficaram dentro
da casa dela. Na semana, eu estudava. Nos fins-de-semana, ficava com ela em sua casa no
Bairro de Fátima. E era aos domingos que ela aproveitava para me levar na baia de meu pai,
escondido da minha mãe”.
“Lá os trabalhos eram quartas e domingos. Começavam às três da tarde. Dia de
domingo era Linha do Mar e dia de quarta-feira era Pretos-Velhos... uma semana ele abria
com Preto, tinha semana que era com Xangô... Nas quartas! Agora o domingo sempre era
Linha do Mar”.
Os espíritos ritualizados se encontram organizados em linhas. Tais categorias
nativas vão conferir organicidade e hierarquia ao panteão. De um terreiro a outro, são
invariáveis em número: sempre sete. Contudo, uma enorme variedade de nomes. Os
critérios adotados para rotular as linhas também são diversos: por vezes, carregam o nome do
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orixá que a chefia; outras dão idéias que locais externos ao terreiro, onde se realizam ritos
específicos. Cito como exemplo a experiência de pesquisa do Professor Ismael:
Assim, no terreiro Santa Bárbara, temos: Linha de Floresta, Linha Branca, Linha
de Santo Antônio, Linha do Cemitério, Linha de Preto Velho e Linha do Mar. No
terreiro de Umbanda Rei de Minas: Linha Astral, Linha de Jurema, Linha de
Iemanjá, Linha de Guerra, Linha do Cemitério e Linha de Preto Velho. No terreiro
Simiromba de Lisboa: Linha de Xangô, Linha de Ogum, Linha de Sereia, Linha de
Jurema, Linha de índio, Linha de Exu e Linha de Caboclo. (PORDEUS JR., Op.
Cit., p.16)
Os nomes das sete linhas cultuadas nos terreiros descendentes da tradição de Pai
Luis da Serrinha são: Linha de Preto Velho, Linha das Matas (regida por Oxóssi), Linha de
Ogum, Linha das Cachoeiras (regida por Xangô), Linha de Exu, Linha de Mestre e Linha do
Mar (regida por Iemanjá). É importante destacar que a classificação das entidades em linhas é
extremamente dinâmica, uma vez que a linha descreve a função que a entidade está exercendo
naquele momento, sendo possível um deslocamento da mesma entidade por várias linhas.
Sendo assim, Mãe Maria, uma preta velha, pode passar na Linha de Exu quando vai fazer ou
desfazer uma feitiçaria. Da mesma forma, a Cabocla Braba, que é uma índia, pode vir na
Linha de Xangô quando quer pedir justiça para os filhos.
“Casei em 71, Casei e meu marido disse... Eu contei tudo pra ele, que eu era
umbandista. ‘Pois se você é umbandista, você vai seguir. Você não tem o que se esconder de
ninguém’! Meu marido era uma pessoa que viajava muito: era motorista! O pai dele tinha
frota de caminhão e ele dirigia um carro e o irmão, outro. Eles andavam muito, o que fez com
que ele conhecesse a Macumba do Maranhão. Por isso, aceitou a Umbanda muito bem e
passou a freqüentar a casa do meu pai-de-santo comigo”.
“Meu pai tinha muito clientes particulares! A casa era lotada! Ele vendia uma
ficha pra consulta. Pra saúde, ele não cobrava nada. A pessoa podia chegar muito doente, ele
fazia aquela caridade, o que ele tivesse na casa dele, ele fazia. Agora se fosse pra amor, pra
comércio ou pra alguma coisa, ele cobrava. Porque ele vivia da Umbanda e tinha uma família
pra sustentar. Clientela de todo o tipo: tinha o preto, o branco, o doutor, e tinha a doutora. De
manhã à noite, não se tinha tempo pra nada! As filhas-de-santo viviam ajudando lá, porque
era gente demais”.
“Tinha uma cambone que ficava com ele dentro do quarto de consulta. Chama-se
D. Raimundinha! Inclusive ela ainda é viva, mas é uma senhora muito doente! Ela vem a
minha festa que eu faço de Oxum todo ano. Quando ela vem, ela chora, ela relembra. Porque
ela passou a vida inteira cambonando às consultas particulares do Seu Ogum Beira-Mar na
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cabeça do meu pai. Tinha uma saleta, e ela ia chamando de cinco em cinco pessoas, trazendo
de dentro do terreiro, e botando nessa saleta e as pessoas iam entrando. Vi muitas curas que
meu pai fez... Muitas mesmo! Curas de pessoas que não andavam, pessoas doentes. Chegaram
muitas pessoas obsediadas lá, que ele curava. E depois algumas passaram a fazer parte do
corpo mediúnico da casa”.
Durkheim (1989) define religião como um conjunto de crenças e práticas que tem
por objetivo manter em separado dois planos: o sagrado e o profano. Mais do que mantê-los
em separado, uma preocupação constante com o trânsito das coisas do mundo entre estes
dois planos. Tais intercâmbios não se fazem sem um quantum de perigo evolvido. D a
necessidade de cercar a feitura do sagrado de regras e o acesso a ele, pelos seres profanos, de
proibições.
A própria palavra latina sacer, por exemplo, tem este significado de restrição
totalmente pertencente aos deuses. (...) Similarmente, a raiz hebraica de h-d-sh, que
usualmente é traduzida como Santo baseia-se na idéia de separação. Ronald Knox,
sabendo da dificuldade de traduzir literalmente k-d-sh para Santo, utiliza em sua
versão do Velho Testamento “posto à parte” (DOUGLAS, Op. Cit., p. 21).
Baseado nessa idéia de sagrado como algo apartado e cercado de perigos,
Durkheim classifica os ritos em: positivos, quando constituem numa ação ou num conjunto de
ações seriadas sobre o mundo e negativos, onde se classificam os tabus, as proibições e
interdições rituais. Tudo arrumado de forma a se precaver contra os perigos que a própria
condição de manipulação do sagrado impõe.
No que diz respeito à Umbanda, creio que seja válido descrever e classificar os
perigos rituais que consegui identificar durante meu trabalho. Faço isso agora, pois tratam-se
de categorias nativas que aparecem referidas por diversas vezes ao longo do texto. De outra
forma, correria o risco de um não entendimento de certas passagens por parte de um leitor
leigo a respeito da religião.
O primeiro desses riscos é a demanda. Trata-se de um ato mágico
17
por meio do
qual o mago causa um malefício voluntário a outrem.
A virada é uma categoria derivada da primeira, pois consiste na mudança de
objeto de um malefício para seu feitor original, o tornado alvo de sua própria magia. É feita
por outro mago que, voluntariamente, “manda o feitiço de volta para quem o fez”. As
tecnologias utilizadas para virar um feitiço são chamadas pontos virados.
A obsessão é uma categoria que entra na Umbanda por influência do kardecista.
17 Ainda compreendendo magia com Durkheim (Op. Cit.), conjunto de crenças e práticas
que têm como efeito a interpenetração dos planos sagrado e profano.
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Ocorre quando um espírito desencarnado, por razões variadas, não consegue seguir seu
caminho evolutivo e fica ligado à terra por meio da proximidade de uma pessoa encarnada.
Tal espírito é denominado obsessor e passa a agir de forma maléfica na vida do indivíduo que
lhe serve de elo à vida terrena, voluntária ou involuntariamente. Os indícios de uma obsessão
são comportamentos moralmente reprováveis, tais como vícios por álcool, drogas, comidas,
sexo, jogo; comportamento agressivo; mudanças repentinas de comportamento e doenças
físicas (geralmente uma doença da qual o espírito era acometido quando em vida) e/ou
mentais. A ação reparadora de um quadro de obsessão chamada desobsessão. Por meio dela o
espírito restituído ao seu correto caminho evolutivo - o termo utilizado é doutrinar o espírito.
O mau-olhado é herança da influência européia ibérica sobre a religião e consiste
uma ação involuntária da psique de um indivíduo sobre o outro. Seu desencadear é atribuído
em geral a fatores afetivos, tais como inveja, fúria e rancor do indivíduo emissor ao receptor.
O carrego é uma categoria de perigo que pode ser enquadradas no gênero
poluição. Sobre a poluição, escreve Mary Douglas:
No meu modo de ver, poluição é uma fonte de perigos numa classe totalmente
diferente: as distinções entre voluntário, involuntário, interno, externo, não são
relevantes. A poluição precisa ser identificada de uma maneira diferente. (...)
Admitido que todos os poderes são partes do sistema social. Expressam-no e
fornecem instituições para manipulá-lo. Isto significa que o poder, no universo, é
em última análise preso à sociedade, visto que tantas mudanças de sorte são
causadas por pessoas, numa ou noutra posição social. Mas, existem outros perigos
para serem levados em conta, os quais, as pessoas podem provocar conscientemente
ou inconscientemente, que não são parte da psique e não devem ser comprador ou
aprendidos iniciação ou treino. Estes são poderes da poluição inerentes à
própria estrutura das idéias e que punem uma quebra simbólica daquilo que
deveria estar separado. Resulta saí que a poluição é um tipo de perigo incomum de
ocorrer, exceto onde as linhas da estrutura, cósmica ou social, são claramente
definidas (Douglas, ibidem, p. 123 - 139)
A não observância de certos princípios rituais que visam demarcar os espaços
sagrados pode resultar num carrego por parte do fiel. Por exemplo, dar oferenda de sangue
Exu, na sexta-feira, dia consagrado a Oxalá (considerados potências opostas). Outro
exemplo é a não observânvia com certos cuidados com o corpo que se deve ter de modo a
prepará-lo para a hora-ritual. Como não beber, fazer sexo ou ir às festas nas horas que
antecedem a baia. Portanto, “uma pessoa que polui está sempre em erro. Desenvolveu
alguma condição indevida ou, simplesmente, cruzou alguma linha que não deveria ter sido
cruzada, e este desvia desencadeia perigo para alguém” (Ibidem, p. 139).
Obstáculos de qualquer natureza à conclusão de um trabalho são chamados nós
ou contrários. Da mesma forma, dificuldades na execução de projetos da vida cotidiana (tais
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como: doenças físico-mentais, mau-logro de atividades financeiras, sucessivos fracassos na
afetiva ou até a morte súbita do alvo, por desastre, doença, assassinato ou causa ignorada)
que tenham sua origem ligada a algo do mundo espiritual são chamados atrapalhos.
“Ele fez muitos filhos-de-santo! Tem a Olendina, do José Walter; tem a Valkíria,
do Pirambu; tem Carmina, da Caio Prado... Teve a Odilha Barata, que essa já falecida. Teve
a Gercina, que era do Carlito Pamplona. O Moreira, do Carlito Pamplona. A Lindalva, que
hoje deixou a Umbanda: é evangélica! Também era mãe-de-santo, filha-de-santo dele. Teve
o Ananías, que esse faleceu de desastre. Teve a Itamar que era mãe-de-santo consagrada por
ele. Que essa também é falecida, com dois anos ela faleceu de um AVC! A D. Isabel, da
Serrinha, que é muito conhecida! Que é próximo da UECE, ali. Tanto ela, quando o
marido dela, que é falecido, Sr. Augusto, faziam parte do corpo da casa, dos médiuns.
Hoje ela tem o canto dela, que ela consultas particulares e atende baralho. Então, foram
muitos filhos-de-santo... Ele tinha no Canindé umas três casas de filhos-de-santo abertas”.
“Passei vinte e anos na casa do meu pai-de-santo. Quando ele operou-se de um
câncer nos rins e veio a falecer, sete meses depois da cirurgia. Antes de morrer, me chamou
para entregar a casa a mim. Mas eu sabia que eu ia enfrentar muitas barreiras com pessoas
da própria família dele que ficaram tomando conta do congá, porque muitos não eram
umbandistas. Moravam lá, mas não aceitavam bem a Umbanda. Então, eu não quis isso
para mim”.
“Ele casou-se com uma senhora chamada Valkíria, que eu não a conheci porque
quando eu cheguei na casa dele, tinha acontecido o casamento e até a separação. E desse
casamento ele teve um filho chamado Micías. Depois ele adotou uma menina de nome
Sandra. E depois um menino de nome André Luiz. E quando ele faleceu, eu abri a minha
casa. Ele faleceu em janeiro e eu abri a minha casa no dia 8 de dezembro”.
“Ele sempre contava a história de como se iniciou na Umbanda... Dizia que
ficou meio desorientado da cabeça e começou a andar nos terreiros... Porque nessa época era
proibido, a polícia perseguia muito! Até que ele foi parar no Bruno do Maranhão, numa
cidadezinha chamada Nazaré do Bruno”
18
.
“Eu estive com ele em 1976. Nós passamos: eu, meu esposo, ele... Nós passamos
15 dias em Nazaré do Bruno, com o Pai Zé. tem a casa dele e perto têm muitos quartos.
Toda pessoa que chega à cidade... Não sei hoje, mas estou me referindo a 76, todo mundo
tinha que se hospedar naqueles quartos deles. Era café, almoço e janta que a pessoa pagava
18 Na realidade, um povoado da cidade de Caxias - MA.
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da hospedagem. Ali você ficava, ali era chegando aqueles carros, era com bombeiro, era
com tudo”...
“Vizinho a casa dele, tinha a Igreja São Luiz de Gonzaga. Nessa igreja, o padre
vinha uma vez no mês,batizava, fazia a primeira comunhão, casava quem o Pai
Bruno mandasse. E lá, essas terras, quase todas, eram dele, Zé Bruno. E ele dava um pedaço
pra um, um pedaço pra outro. Para os próprios filhos-de-santo dele, os que ajudavam na
casa”.
Creio que não cometo um pecado acadêmico tão grave ao comparar a forma de
dominação exercida por Bruno sobre sua cidade com o coronelismo. Defendo-me: as
semelhanças são várias! Senão, vejamos...
O Coronel era uma figura que, independente de possuir ou não patente militar,
detinha reconhecida autoridade e prestígio sobre uma determinada localidade, tendo a
capacidade de atender as demandas de sua clientela, fossem públicas ou privadas.
Solidamente enraizada na proteção e na lealdade, a sociedade rural repousava na
troca de favores, de homem. O Coronel oferecia proteção e exigia irrestrita adesão.
Em algumas localidades isoladas, o chefe comportava-se como um pequeno senhor
feudal, chegando alguns a ter força armada própria (JANOTTI, 1992, p.57).
Quando se fala do coronelismo, logo se tende a associá-lo ao controle das forças
políticas de uma determinada população. Como aparece explícito na citação anterior, o
domínio do Coronel ia muito além, capilarizando-se até na vida ordinária de seus
apadrinhados.
Os historiadores consideram-no como um fenômeno de transição do Império pra a
República. Desta forma, classificar o quadro descrito por Mãe Dulce como exemplo de
coronelismo seria, no nimo, um anacronismo, já que estamos falando da década de 70 do
século XX. Contudo, creio que todas estas semelhanças o se dão por acaso: a
permanência de uma estética coronelista nas relações exercidas por Bruno com relação ao
seu povo.
você encontrava uma casazinha de taipa, coberta de palha, o piso de barro.
Ali era a casa da raiz eira, que era uma mulher que fazia banhos, fazia garrafadas, orientava o
médium ali. Outra casa que tinha era a casa da D. Constância - que eu lembro bem -, a casa da
D. Constância, era a velha das orações. Ela que ensinava as orações, como pra quebranto, pra
cobreiro, pra erisipela. Era a casa das orações... Qualquer tipo de oração, essa senhora, D.
Constância, ela sabia. E assim, tinha a casa de cada um, que era uma coisa”!
O ofício do rezador abarca desde o diagnóstico até o tratamento de enfermidades
45
às quais cada oração se destina resolver. Dentre essas enfermidades, posso citar: íngua,
erisipela, carne cortada, ventre virado, espinhela caída, arca aberta, peito aberto, quebranto,
murrinha... Cada qual com sua sintomalogia bem definida e decorada pelos especialistas.
“Os tambores dele, os atabaques, eram feitos de tronco de mangueira ou de
cajueiro, cobertos com couro, plantados no chão. Eram tocados deitados. Eram quatro ou
cinco tambores”.
“Ele tinha dois terreiros: um grande e um menor. No menor, ele usava muito a
baia do Terecô. Como é essa baia do Terecô? Os médiuns todos fardados, ao redor de uma
guma feita de tronco de carnaúba. E cantando e batendo palma pra poder tirar as correntes
negativas, tirar a negatividade de uma pessoa, ajudar no desenvolvimento, a pessoa pegar
força... E ele sentado numa espreguiçadeira, fumando o cachimbo dele ali. Aos domingos a
baia era no terreiro grande, e era tocada no ritmo da Macumba de meu pai”.
Mãe Júlia é a grande representante do movimento de institucionalização do
Espiritismo de Umbanda no Ceará. Como dito anteriormente, os partidários movimento
visava concediam a legitimidade jurídica ao terreiro que, em troca, moldasse seu corpo
ritualismo de forma a eliminar gradativamente elementos que dessem relevo à origem
“étnica” da Umbanda (leia-se: elementos africanos e ameríndios). A presença de bebida
alcoólica como parte do ritual, por exemplo, era condenável. Outro elemento problemático era
a figura do Exu, pois era uma referência direta ao passado africano da religião. Por outro lado,
não podia ser eliminado por completo, pois cumpria função importante dentro do ritual: a de
mensageiro por excelência, entre os dois mundos. Não por acaso, dentro dos terreiros, à um
ditado que diz: “Sem exu não se faz nada”! Esse paradoxo foi resolvido tornando os exus,
figuras periféricas dentro do Espiritismo de Umbanda, dando-lhe uma menor visibilidade
dentro dos rituais.
Não se colocava imagens de exus nos terreiros. O médium cujo guia fosse um
exu, logo este era trocado por outro. Era reservado um dia da semana para o trabalho com os
exus, geralmente, acessível somente a médiuns experientes e escolhidos a dedo pelo dirigente
do terreiro.
Num tempo anterior à chegada de Mãe Júlia no Ceará, alguns pais-de-santo
maranhenses percorreram as terras de Iracema com objetivo de expandir seu capital religioso:
conquistando clientes e filhos-de-santo por onde passavam. Alguns de seus nomes ainda são
conhecidos: Zé Bruno, Negreiros, João Cobra... O modelo de Umbanda que estes senhores
46
professavam no rumo exatamente oposto ao da idéia do espiritismo de Umbanda. Os
elementos que o último objetivava esconder eram enaltecidos pelo primeiro. Mesmo depois da
institucionalização da Umbanda no Ceará, ainda é possível reconhecer terreiros da tradição
maranhense a parir da permanência de alguns elementos. Um destes é tocado por Mãe Dulce
quando descreve o Terecô: num determinado momento do ritual, as duas correntes se
desfazem, formando uma espécie de ciranda, onde um médium dança atrás do outro, cantando
e batendo os pés no chão e girando no sentido horário.
“Mais um pouco adiante da casa dele, tinha um olho d’água. Contam lá, que em
58 foi uma seca muito grande... E ele se ajoelhava meio-dia em ponto, pedindo a Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro; água, porque senão o povo dele ia morrer. E, de repente, brotou
essa água. Isso é o que contam lá: não sei se é lenda ou se é verídico. Eu vi, com os meus
olhos, o buraco no chão: você tira aqui dois baldes d‘água e na mesma hora está cheio. Todo o
tempo brotando aquele olho d’água... E ao lado, tem o banheiro masculino e o banheiro
feminino. Dentro desses banheiros, são feitos uns tanques onde eles põem raízes. Quando a
gente está lá, que está de obrigação ou doente, a gente toma aqueles banhos. Toma os banhos
e depois termina com a água da fonte. Vizinho a essa fonte, ele mandou construir uma
capelinha, pequenininha, de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em agradecimento a ter
aparecido aquela fonte. Depois disso, lá eles não tiveram mais precisão de tanta água”.
“Ele era um homem muito sábio! Era um preto, muito alto! Ele sentava cinco
horas da tarde, todo dia, na calçada da casa dele e, se tivesse pessoas, iam fazendo a fila. Ele
olhava pra você e dizia a sua vida. Dizia a vida olhando, não era incorporado com nenhuma
entidade: ele mesmo contava a vida das pessoas. Ele gostava muito de tomar cinzano. Um
golinho ou dois de cinzano pra molhar ali a garganta, ele dizia que era pra tomar banho, pra ir
jantar”.
“Ele tinha uma mania de fazer uma oração num cordão... Perguntava seu nome e
fazia uma oração num cordão. Ele fez pro meu esposo! Dizia assim: ‘Tá aí! Leve! Enquanto
essa oração durar você será defendido de tudo... De desastre, de virada, de faca, de bala!
Muitos anos duraram essa oração! Era num cordão grosso, antigo... Com o tempo, destruiu!
Mas ele tinha esse negócio de dar essa oração às pessoas que ele simpatizava”.
“A casa de meu pai também era muito festiva! As maiores festas eram as de Oxum
e a de São Jorge Guerreiro. Eram festas grandes, que ele fazia vinte e quatro. Também tinha a
de Oxóssi e a de Preto-Velho, que ele gostava de fazer festas boas. Mas essas não eram
47
menores em duração. Vinte e quatro horas de festa na casa dele, era a de São Jorge e a de
Oxum. E, como tempo, ele acabou a de São Jorge, ficou a de Oxum. Eu repito a festa da
Oxum e São Jorge, porque eu sou filha de Ogum e Oxum. Então, faço o mesmo ritual na
minha casa, a festa da Oxum e a de São Jorge Guerreiro... Todos os anos, enquanto eu tiver
vida e saúde”.
“E como é essa festa? Você inicia com um terço. Depois do terço, o Ofício da
imaculada Conceição. Isso era um hábito que meu pai tinha de rezar todos os dias: o Ofício da
Imaculada Conceição! E depois se reza a Prece de Cáritas. Aí se dá por aberta a comemoração
da festa de Oxum”.
“E depois se vai fazer ronda com Exu. Quando uma hora da manhã, encerra e
todos os médiuns vão deitar no chão, na sua esteira, no seu cantinho, no seu local... Cinco
horas da manhã levanta, até as sete e meia da manhã se faz uma ronda de índio. Sete e meia,
toma-se café, para começar a botar as coisas no fogo, que é para a comida da festa. Porque é
naquele dia que se abre ao público, a partir das três horas da tarde”.
“Às dez horas da manhã, os médiuns retornam ao terreiro... Vão trabalhar com
Pretos-Velhos, com Boiadeiro, com Xangô... A linha fica liberta! O meio-dia pára para o
almoço dentro do terreiro, todos no chão como manda o figurino da Umbanda! E quando
termina a comida, todo mundo tem direito de sair e repousar. Aí às quatro horas da tarde, volta
todo mundo a casa e o trabalho é aberto na Linha de Ogum. Às seis horas, uma médium fica
sendo preparada durante sessenta dias, com obrigações pra Oxum. E ela vem e ela senta em
um lugar específico pra fazer a bênção das águas em cada uma das pessoas. E a festa
termina e aí vai todo mundo comer, beber alguma coisa em comemoração à festa”.
“É uma festa cansativa, mas é uma festa bonita, é uma festa que a gente se sente
feliz! A minha filha, Amanda, quem me ajuda hoje na minha casa muito... Ela diz:
‘_Mãe, a senhora devia fazer essa festa, três dias!’ Eu respondo:
‘_ Minha filha, se eu fizer uma festa dessa três dias, quando eu terminar eu vou
pro cemitério! Porque é cansativo”!
“Mas antes de todas as festas grandes da casa, se mata para Exu. Não mato pra
Exu na sexta-feira! Na quinta-feira, a gente faz toda a obrigação de matança de Exu. A gente
faz na quinta à noite anterior a todas as festas grandes. Não nas pequenas comemorações, mas
em todas as festas grandes, a gente faz primeiro a festa do Exu pra o caminho ficar livre, ficar
abençoado”.
48
“Eu resido neste terreiro desde 2004. Antes, morava perto! Meu marido comprou
o terreno inicialmente para servir como garagem dos caminhões dele. Os caminhões passavam
o dia trabalhando e à noite, iam dormir lá com o vigia. Aí, quando o meu pai-de-santo morreu,
fiquei sem lugar pra ficar... Porque eu andei em outros terreiros com objetivo de ficar
agregada naquelas casas. Mas meu coração não se abria! Não desmerecendo nenhuma casa:
de maneira nenhuma! Porque eu não me sentia à vontade! Aí meu marido foi e disse:
‘_ Minha filha, você é preparada! Por que é que você não abre sua casa?’
Respondi:
‘_ Eu não queria abriar casa! É tanto trabalho, tanta responsabilidade!’
‘_ Mas se você não está se agradando de canto nenhum, então é melhor você
abrir!’ Então, meu marido construiu para mim o meu terreiro e me deu na minha mão a chave.
‘_ Tome, minha filha! Vá cuidar da sua Umbanda, que aqui é seu! Quem grita,
quem manda é você”!
“E foi assim: inaugurado no dia 8 de dezembro de 86. E convidei o pessoal do
meu pai-de-santo pra virem. Porque eu era benquista por todos da casa deles, dos
familiares dele. E a cambone do terreiro dele, que era quem tomava conta de tudo na casa
dele, chamava-se Maria de Fátima Rosa. Que ela era sobrinha dele e nasceu na casa dele e
ficou com ele até ele falecer, ajudando a ele. E ela veio aqui, chorou muito nesse dia,
recordando as coisas de lá. E eu convidei pra ela ser minha cambone. Ela disse que não! Não
queria se meter mais muito com a Umbanda muito na! Já que o tio dela tinha falecido, ela não
tinha mais graça pra isso; Mas com uma semana ela me telefonou e perguntou se o convite
ainda estava de pé. E eu respondi que estava. Ela disse: ‘Pois eu vou cambonar a sua casa até
o dia que Deus quiser! ’ E realmente ela cambonou até o dia em que ela faleceu mesmo... Não
até o dia que faleceu, porque ela adoeceu e, no processo de doença, teve de se afastar da casa.
Faleceu em 5 de fevereiro de 2005. Mas ela me ajudou muito na minha casa, porque era o
mesmo regime da casa do meu pai. Eu aplicava aquilo que aprendi... Pratico! Então ela sabia
tudo o que era necessário para ajudar nos trabalhos. Foi uma grande amiga! Até hoje, até o
presente momento, ainda não achei nenhuma pessoa pra substituí-la à altura. Ninguém que
chegasse nem à metade do que ela era”.
“Nesses vinte e poucos anos, um bocado de gente passou por minha casa. Já
desenvolvi um bocado de gente. Tenho uma ata com os nomes dessas pessoas, que
estiverem na minha casa: umas que já são mães-de-santo, outras que abandonaram, outras que
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deixaram pra ser evangélicas, outras que deixaram o meu terreiro pra ir pra outro terreiro...
Isso na Umbanda existe muito! Ás vezes a pessoa não está satisfeita num canto, segue pra
outro. Segue! Deus acompanhe! Nossa Senhora lhe guie! Fique aonde quiser, onde tiver
vontade! Porque esse é um direito que a gente tem: de estar aonde estiver se sentido bem! Não
é isso”?
“Tenho um bocado de clientes também. Amigos, amigos de outra amiga... Um
vem, o outro traz, o outro convida... Tá entendendo? Porque realmente aqui, o meu terreiro eu
não divulgo. Assim, porque tem gente que divulga com panfleto ou de outra forma... Eu não!
Não tenho nenhum tipo de divulgação! A minha divulgação aqui do meu centro, do meu local
é um amiga que traz uma amiga, outra traz outra... Uma vem jogar um baralho: ‘_ Ai, gostei
do baralho! ‘Aí traz outra pra jogar baralho, porque eu jogo baralho trinta anos. Jogo
aquele baralho, o Magia Cigana. Consulto tanto com baralho, quanto incorporada. As
entidades que dão consulta em minha cabeça são o Cigano Tubá, que é meu guia de consulta
e o Exu Tranca-Ruas das Almas, que é meu exu”.
50
3 NARRATIVAS RITUAIS: A BAIA
Após sucessivas observações das sessões abertas realizadas aos domingos na casa
de Mãe Valkíria, elaborei um tipo ideal de sessão que aqui segue descrita. Minha intenção
primeira é lançar uma visão sobre o ritual, de forma a tornar evidente os símbolos que estão
implicados nele.
Com Turner, acredito que o símbolo é a menor unidade do ritual que, contudo,
conserva as propriedades específicas da conduta ritual. Símbolo é algo que se crê tipificar
naturalmente ou representa ou recorda algo, seja por possuir qualidades análogas, seja por
associação de ato ou pensamento (TURNER, 2005).
Os símbolos que tomo para compreender o esquema ritual são os mais variados:
objetos, gestos, orações-canções, adereços de vestuário, divisões do espaço... Além de
descrevê-los dentro do ritual, tento abordá-los em sua construção histórica, dentro de uma
linha de tempo. Em outras palavras: uma de meus objetivos é acompanhar a migração de
significado que tais símbolos fazem ao longo da história da religião, observando que novos
significados vão sendo agregados ao mesmo símbolo com o passar do tempo.
Inicio com uma breve descrição sobre o surgimento da Umbanda, de forma a
acompanharmos a construção do terreno propício para a emergência dos símbolos dos quais
vou falar.
3.1 SURGIMENTO DA UMBANDA: INOVAÇÕES NO CENÁRIO RELIGIOSO
BRASILEIRO
Apesar dos efeitos destrutivos do tráfico e do sistema escravocrata, a presença
africana conseguiu sedimentar muito de sua herança cultural em terras brasileiras,
transformando aos poucos essa herança negra e estrangeira em produções afro-brasileiras. São
51
inegáveis suas marcas na língua, valores, estruturas mentais, estética, arquitetura, culinária,
dentre outros campos. Essa contribuição provavelmente veio com mais força na música e na
religião.
Durante quase quatro séculos, negros africanos foram caçados e levados ao Brasil
para trabalhar como escravos. Separados para sempre de suas famílias, de seu povo,
do seu solo (de fato apenas alguns poucos conseguiram retornar depois da abolição
da escravidão), os africanos foram aos poucos se adaptando a uma nova língua,
novos costumes, novo país. Foram se misturando com os brancos europeus
colonizadores e com os índios da terra, formando, como disse, a população brasileira
e sua cultura, como também aconteceu em outros países da América (PRANDI,
2009).
Apesar dos efeitos destrutivos do tráfico e do sistema escravocrata, a presença
africana conseguiu sedimentar muito de sua herança cultural em terras brasileiras,
transformando aos poucos essa herança negra e estrangeira em produções afro-brasileiras. São
inegáveis suas marcas na língua, valores, estruturas mentais, estética, arquitetura, culinária,
dentre outros campos. Essa contribuição provavelmente veio com mais força na música e nas
religiões.
Cabe salientar que essa influência não se de uma forma homogênea por todo
território nacional, pois ocorreu ao sabor das diversas etnias que aqui aportaram. Do ponto de
vista religioso, costuma-se concebê-la a partir de três grandes grupos: os sudaneses, os
islâmicos e os bantos (ORTIZ, 1999).
Tais grupos chegam ao Brasil em momentos distintos, de acordo com a demanda
por mão-de-obra escrava que variava de região para região, de acordo com os diferentes ciclos
econômicos e do que se passava na áfrica em termo de domínio colonial europeu. Dessa
forma, em diversas cidades surgiram grupos que reconstruíram no Brasil as manifestações
culturais da África. Essas manifestações não se restringiram â religião, como dissemos,
contudo, a estrutura religiosa serviu de continente adequado para preservar diversos outros
aspectos da vida africana. De acordo com a localidade, esses novos construtos religiosos
ganhavam nomes diferentes. Assim temos: Candomblé na Bahia, Xangô em Pernambuco,
Tambor-de-Mina no Maranhão, Batuque no Rio Grande Sul... (PRANDI, op. cit.).
Em meados do século XIX, o país começa a sofrer transformações econômicas e
políticas que vão desembocar numa desvalorização do mundo do negro e numa gradativa
desagregação dessa memória coletiva construída no período colonial.
A elevação do Brasil a Vice-Reino, em 1808, vem demarcar uma mudança na
administração dos recursos do país por Portugal. Com a chegada da família real ao rio de
52
Janeiro, portanto, a mudança da sede administrativa do Império Português, as práticas
predatórias de exploração da terra perdem o sentido. A necessidade agora era forjar em terras
latinas o mesmo conforto e desenvolvimento tecnológico dos quais os nobres desfrutavam em
Portugal. (SCHWARCZ, 1995).
Época da fundação dos primeiros museus etnográficos, institutos históricos e
geográficos, da Imprensa Régia, das primeiras faculdades. O Brasil precisava ser mostrado,
seu nome tinha de reverberar nos meios científicos internacionais, enfrenta a outras nações. A
ciência era a instância máxima de legitimação dos saberes e anda de mãos dadas com o ideal
de progresso almejado pelos políticos positivistas. Era um tempo em que se buscava através
das instituições de pesquisa científica conferir uma identidade nacional ao homem brasileiro,
transformando estas terras num verdadeiro laboratório racial (foi quando também as primeiras
idéias naturalistas e eugenistas por aqui passaram).
Anos mais tarde, a Primeira República trouxe consigo agitações entre três
correntes políticas (a saber: liberais, jacobinos e positivistas) que se arvoravam, cada uma a
seu modo, o direito de compôr as novas cores da nação, através da composição de símbolos
nacionais que sintetizassem os parâmetros de civilidade almejados pelos novos dirigentes da
nação. A exemplo: hino nacional, uma bandeira, heróis da luta pela independência.
(CARVALHO, 2006)
Em épocas pós-Abolição, o trabalho negro, outrora valorizado como principal
motor da economia colonial, agora perdia seu valor de mercado. O novo mundo do trabalho
clama por operários, e a mão de obra especializada vem, sobretudo, das famílias de imigrantes
europeus, recém-chegadas ao país. O negro seu mundo pela segunda vez se desagregar
desde a Diáspora Africana. Aos escravos recém-libertos e seus descendentes resta a
condição de subempregados (quando muito), operando nas periferias dos centros urbanos.
Todos esses saberes e movimentos sociais são transpassados por uma linha
comum: a idéia de que é preciso higienizar o Brasil. E, no que diz respeito à constituição do
seu povo, higienizar adquire o sentido de embraquecer, para que o país pudesse progredir,
acompanhando as grandes nações européias. Nesse sentido, o mundo negro se torna um
obstáculo ao avanço. Os valores que remetam à origem africana do brasileiro são
paulatinamente desvalorizados e a religião afro-descendente, como conservatório principal
destes, torna-se um dos principais alvos dos defensores do branqueamento. As idéias
européias são exaltadas nas mais diversas áreas e a figura do mulato surge como imagem ideal
53
da atualidade brasileira, caminho transitório para o branqueamento gradativo da "raça
brasileira" e seu consequente progresso (SCHWARCZ, op.cit.). O cenário da também não
escapa impune a esses, idéias de branqueamento. O mundo religioso brasileiro parecia clamar
por uma nova estética que acompanhasse o ritmo frenético e a cientificidade da nova ordem
social trazida com o Capital Industrial.
O crescimento das cidades, deslocamento do eixo econômico da zona rural para a
zona urbana, o êxodo rural e entrada de imigrantes europeus ocasionaram uma hipertrofia das
zonas suburbanas. A periferia se torna, nas palavras de Ortiz (op. cit., p. 35): "o foco do
feitiço, ou em outros termos, o lugar onde se agrupa uma classe marginal à sociedade, que tem
como único consolo a religião e as práticas mágicas que se enriquecem na medida em que
cada povo traz a sua contribuição".
Nos finais do século XIX, início do século XX, se tinha a notícia de práticas
religiosas incorporativas conhecidas genericamente pelo nome de Macumba (Berkenrock,
1999). Entidades caboclas são mencionadas incorporando nas periferias dos terreiros de
Candomblé ditos fora da tradição Yorubana (LANDES, 2002). Essas práticas aconteciam de
forma fragmentada, sem um nome que trouxesse a homogeneidade da instituição.
Representavam a transição entre um passado colonial, saturado de tradição ruralista (como o
catolicismo ibérico e os candomblés baianos, por exemplo) e a criação de uma nova tradição,
repleta dos ares da urbanidade e da industrialização (a exemplo do Espiritismo Kardecista e
da Umbanda). Ainda com Ortiz (ibidem, p. 32) “a formação da Umbanda segue linhas
traçadas pelas mudanças sociais. Ao movimento de desagregação social corresponde um
desenvolvimento larvar da religião, enquanto que ao movimento da consolidação da nova
ordem social corresponde a organização da nova religião”.
Nesse campo, o processo de embranquecimento reverbera de duas formas
principais: (a) pela gradativa desvalorização dos elementos afro-religiosos; (b) pelo
surgimento de lideranças religiosas brancas nas religiões caboclas. Além desse fenômeno
(embranquecimento), Ortiz (op. cit.) ainda identifica outro, paralelo, chamado
empretecimento. Este último é nada mais, do que reconhecer a presença do preto na nova
estética religiosa que emergia. Aqui, o preto de opõe ao negro, pois não se trata de um retorno
às tradições africanas, mas da aceitação do fato social da raça (entendida como fenótipo, a
despeito dos valores culturais) segundo a conveniência de uma cultura branca. Isso vai
permitir que diversos desses elementos apareçam reinterpretados dentro da nova religião -
54
como descrevo a seguir.
3.2 LOCALIZAÇÃO E ESTRUTURA DO TERREIRO EM ESTUDO
A Casa de Umbanda Mamãe Oxum fica localizada na Rua General Costa Matos,
217, bairro do Pirambú. O bairro carrega esse nome devido a um peixe outra abundante na
região, o Sargo-de-beiço (Anisotremus surinamensis). O nome em tupi-guarani tem pode ser
traduzido aproximadamente por “peixe grande” ou “abundância”.
O bairro teve seu início em 1911, como um povoado habitado por índios da região
e depois por uma colônia de pescadores seminômades.
No início do século XX, Fortaleza, que desenvolvia como pólo de importância
comercial, começou a atrair um grande número de trabalhadores rurais, fugidos da seca.
Diante da política de segregação espacial existente naquela época, tais indivíduos foram
banidos para aquela região da Zona Oeste, ainda pouco habitada, que se constituiu como
“depósito” de tudo aquilo que deveria ser “varrido” do lado rico da cidade. Era uma região de
difícil acesso, com pouca infra-estrutura, onde se concentravam as indústrias (e, por
conseguinte, seus poluentes), o leprozário, o lazareto e tudo considerado contrário a uma
cidade em próspero desenvolvimento.
Aos poucos, a comunidade do Pirambu apresentou outra face: com o
desenvolvimento do turismo, por volta de 1930, os olhares se voltam para todo o litoral
cearense.
Na década de 40, após o governo de Getúlio Vargas, disseminou-se por todo o
Brasil um forte clima democrático. Os movimentos populares atingiam um crescimento
expressivo: os trabalhadores das fábricas começavam a se organizar em sindicatos e a
influência do Partido Comunista era notável em todo este processo, bem como a atuação
social da Igreja.
O Pirambu começa a se destacar diante desse contexto. uma crescente ligação
entre o Partido Comunista e os moradores, consolidada através da criação do Comitê
Democrático Nacional, da Sociedade Feminina do Pirambu e da Sociedade de Defesa do
Pirambu, de onde surgiram as futuras associações de moradores do bairro.
55
Aspectos relacionados à precária realidade do bairro, como a questão fundi[ária,
da eletricidade e do transporte passam a ser bastante discutidos entre os moradores do bairro,
repercutindo em outros bairros devido à boa circulação do jornal O Democrata.
Em 1962, ocorre uma manifestação que veio a se tornar marco na história do
bairro, conhecida por Grande Marcha. Teve como objetivo chamar sobre as autoridades
competentes as responsabilidades sobre os problemas do lugar. Trouxe como resultado a
desapropriação do terreno pelo governo e sua entrega à Igreja. A administração era feita por
meio de um conselho comunitário onde o pároco era o presidente. Data desta época também a
composição do hino do bairro.
De um plano onde a religiosidade é umas das principais forças motrizes das
relações sociais, surge, nos anos 50, uma liderança de imagem extremamente controversa e
que divide opiniões: o Padre Hélio Campos. quem defenda a idéia de que sua presença
representou uma estratégia da Igreja Católica para diminuir a influência que o Partido
Comunista exercia no bairro. Por outro lado, grande parte dos moradores advogam que Pe.
Hélio foi fundamental na consolidação do processo de luta comunitária. O grupo de oração
que ele coordenava constituiu não apenas um espaço de celebração religiosa, mas também de
discussão acerca dos problemas locais e de deliberação de ações concretas para a solução dos
mesmos. Em 1964, o padre, trabalhando em conjunto com assistentes sociais e com o povo,
funda o Centro Social Paroquial Lar de Todos (CSPLT). Frutos desse trabalho são: o Conselho
Comunitário, a Associação Cooperativa de Peixes; o Sindicato dos Pescadores; o Grupo de
Mulheres.
Com intuito de facilitar o trabalho do CSPLT, o Pirambu foi dividido em quatro
zonas, a saber: Arpoadores, Casa Nova, Japão e João XXIII. Tais regiões correspondemaos
bairros Nossa Senhora das Graças, Cristo Redentor, Jacarecanga, Barra do Ceará e Novo
Pirambu na divisão feita pelo governo do Estado e pela Prefeitura Municipal (CPDOC, s/d).
A Casa de Umbanda Mamãe Oxum fica localizada na porção pertencente ao
Nossa Senhora das Graças. É uma construção de três andares. O superior é destinado aos
quartos dos residentes, a saber: a Mãe-de-Santo; Hárima, sua única filha carnal; Hassam, seu
neto; Jane, esposa de Hassam; Emir, seu sobrinho; o cabone Sérgio e três garotos que estão
sendo cuidados por D. Valkíria, de chamados Leonardo, Foguinho e Victor
19
. No piso do
19 Os templos das religiões de matriz africana, em sua esmagadora maioria, são
utilizados também como moradia tanto pela família de seu dirigente, quanto por pessoas
que se agregam à religião como forma de sobrevivência, buscando melhores condições de
vida no aconchego proporcionado por uma comunidade de terreiro. Desta forma, afasta-se
56
meio, fica a cozinha e uma sala de estar com uma pequena sacada voltada para a rua defronte
à casa. O térreo é destinado às funções sagradas.
3.3 ESQUEMA RITUAL
Antes de cruzar a porta da rua em direção ao interior da casa, é de praxe que cada
pessoa espera outra, lhe receba pelo lado de dentro, jogar a água de uma quartinha branca por
três vezes na calçada, como forma de cortar qualquer carrego que acompanhe quem entra, de
modo que não entre com a pessoa, poluindo o ambiente da casa. Logo que se o primeiro
passo para dentro, antes de se chegar ao barracão, do lado direito de quem entra, está a escada
que acesso aos pisos superiores. Do lado esquerdo fica o assentamento
20
do Exu Tranca-
Ruas, entidade guardiã da casa. Quem entra deve se virar de frente para o assentamento, se
curvar e tocar os lados dos pulsos um no outro, três vezes, de forma alternada e dizer:
Laroiyê, Exu! Desta forma, pedindo-lhe licença e aviando de sua entrada.
O barracão ou terreiro propriamente dito é um espaço retangular bem amplo com
duas colunas de sustentação em seu meio. Numa das extremidades um altar de dois
patamares. Várias imagens são organizadas, como num continuum que vai do mais sagrado
(em cima) até o mais profano (em baixo). O patamar mais alto é dedicado a Oxalá,
demonstrando, pela sua posição acima dos outros, a superioridade hierárquica do orixá no
panteão afro-descendente. Vários objetos tradicionalmente consagrados a ele identificam esta
pertença: a estátua de Jesus Cristo (que, no sincretismo é Oxalá); vasos com rosas brancas;
uma quartinha de louça branca. Neste patamar também fica um adjá, instrumento utilizado no
candomblé para chamar os orixás à incorporação. No patamar do meio, dividem o espaço
imagens de entidades caboclas e santos católicos, da esquerda para a direita: Nossa Senhora
da Conceição, representando Oxum, orixá da mãe-de-santo da casa; Seu Nêgo Gérson guia
espiritual da mãe-de-santo, chefe/dono da casa; São Gerônimo, representando Xangô;
Sibamba, espírito de marinheiro, chefe da Linha do Mar; Iemanjá, orixás das águas salgadas,
de grande popularidade na Umbanda cearense. No chão, embaixo do altar, fica a imagem da
do modelo jurídico de templo religioso vigente no Brasil, que reza que não pode servir
como residência.
20 Representação física da deidade. Local onde são colocadas as oferendas destinadas à
ela.
57
Tapuia, entidade infantil, criança de sombra da mãe-de-santo. Bombons e bonecas são
colocados ali como presentes que se ofertam a ela. Copos com água e velas acesas também se
encontram dispostos ao longo dos três níveis do altar. Uma vela é acesa em frente a uma
determinada imagem como forma de pedir proteção àquela entidade em questão. As velas
todas têm de estar acesas no início dos trabalhos de forma para que as energias a quem elas se
dirigem se ponham em movimento, na defesa da casa. Lembro, certa vez, em que uma das
velas caiu do altar, apagando-se. Mãe Valkíria exclamou para mim: “Você está vendo?
Alguma coisa ruim acabou de passar por ali”!
Do lado esquerdo do altar está uma poltrona reservada à mãe-de-santo, onde esta
permanece sentada no início e fim das sessões, quando não está incorporada com alguma
entidade
21
. Do lado esquerdo, fica a cambonagem, uma pequena mesa de gavetas onde se
encontram materiais diversos dos quais os espíritos incorporados nos médiuns vão se servir
enquanto trabalham. Tais objetos m uma grande variedade, a tulo de exemplo, pode-se
contar com: chapéus, cachimbos, fumo, café, chá, copos, cigarros, charutos, bombons,
perfumes, bebidas alcoólicas... Ao lado da cambonagem se posta o cambone Sérgio, cuja
função é servir as entidades com o material à medida que o requisitam. O termo cambone é
21 Nome genérico dado no Brasil às divindades dos cultos afro-religiosos.
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herdado de uma tradição jeje-nagô que deu origem à macumba carioca, chamado cabula.
Descreve Ortiz:
As sessões de cabula chamavam-se mesa, eram secretas, e se praticavam no bosque,
onde, sob uma árvore, improvisava-se um altar. Um espírito chamado tata
encarnava nos indivíduos e os dirigia em suas necessidades temporais e espirituais.
O chefe de cada mesa chamava-se embanda e era secundado pelo cambone; a
reunião dos adeptos formava a engira (Ortiz, op. cit. P. 37).
De maneira análoga ao cabula, o cabone de Umbanda secunda o pai/mãe-de-
santo. É chamado também ponta-de-mesa e, durante a incorporação do pai/mãe-de-santo,
adquire a função de sacrificador, organizando as pessoas nas correntes, controlando o tempo
da baia, orientando qual caboclo deve cantar seu ponto naquela vez... Quando em terra, é ao
cambone que as entidades se dirigem.
Antes de entrar para a baia, cada iniciado deve manter certos cuidados com o
corpo a fim de afastar os perigos rituais descritos no capítulo anterior, bem como colocá-lo
num estado de maior contato com as potências sagradas. Pede-se que resguarde nas horas que
antecedem ao ritual - desde o dia anterior até a hora da gira - de álcool, festas, sexo e que,
momento antes de entrar para a corrente se banhe com uma mistura de ervas previamente
preparada.
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Os filhos/filhas-de-santo trajam fardas usualmente brancas. Os formatos variam
muito, a única constante é: saias para as mulheres e calças para os homens. Anáguas, rendas,
bordados são apenas alguns dentre os vários detalhes que se juntam para compôr a
diversidade do vestuário. Uma das formas usuais de se referir à Umbanda é A Lei de Oxalá, é
em homenagem a este orixá que se adota a cor branca padrão no terreiro de Mãe Valkíria.
Adereços que lembrem a vida comum - tais como: bonés, maquiagem, brincos,
calçados - são proibidos de serem usados durante as baias. Lembro de uma ocasião, no
término de um trabalho, uma filha-de-santo, maquiada foi tomar a bênção a Mãe Valkíria.
Estava eu próximo então e pude escutar as palavras que a sacerdotisa lhe dirigiu: “Não venha
mais assim: pintada! Isso não é bom!” Logo após, virou-se para mim dizendo: “Ela é tão
bonita! Não precisa estragar o rosto desse jeito!” Uma das virtudes mais celebradas pelo
discurso dos umbandistas é a humildade. Um fala muito recorrente é a de quê: Médium
pintado quer aparecer, não tem humildade!” O mesmo vale para os s descalços: são
considerados sinais de humildade. Em termos usuais: “Caboclo bom, é caboclo de cara limpa
e de no chão!” No meu modo de entender, creio que se trata de uma forma de coação para
manter o tempo do sagrado afastado do tempo comum, pois não vi igual repreensão com o
argumento da humildade, à pompa das vestimentas rituais, por exemplo.
Um a um, os filhos e filhas-de-santo vão tomar a bênção à mãe-de-santo, se
ajoelham à sua frente e entregam em suas mãos suas guias, colares enormes feitos de
miçangas coloridas e que vão definir (de acordo com as cores e formato utilizados) sua
posição na comunidade religiosa, bem como a entidade a quem o pertence. Sementes
arroxeadas para os filhos de preto-velho, contas de louça verde ou amarela para os filhos de
índio e azuis para os filhos de marujo ou de outra entidade ligada à linha do mar. A mãe-de-
santo, por sua, vez fixa os colares um a um em volta do pescoço do filho ajoelhado e responde
a bênção com um “Oxalá que te dê paz, força e tranqüilidade. Que coloque o que tu desejas na
palma da tua mão!” Depois disso, o filho ou filha toma sua posição na corrente mediúnica.
As correntes mediúnicas correspondem a duas filas paralelas, dispostas ao longo
do terreiro. Uma feminina, que se inicia da poltrona da mãe-de-santo e segue em direção à
porta de saída, seguindo assim a hierarquia da filha mais graduada na religião àquela que está
de iniciando ou é cliente. O mesmo se dá com a corrente masculina, que se coloca em frente à
primeira, do lado oposto do terreiro e tem seu início marcado pela mesa de cambonagem.
O termo corrente pode adquirir também outra conotação: os fluídos energéticos
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referentes às entidades caboclas ritualizadas. Formas comuns de se referir ao estado de
tontura que antecede o transe são: “Fulano está com as correntes todas em cima”! ou “Está
irradiado”! Ou ainda “Está sombreado”! Vejo aqui, uma terminologia muito próxima à que é
utilizada por engenheiros e eletricistas... É sabido que a corrente mediúnica deve ser formada
para que as energias dos caboclos percorram livres, de um lado a outro, até que se concentrem
num determinado indivíduo e este incorpore (as pessoas funcionam como “condutores” desta
energia). Se alguém cruza os membros ou fecha as mãos, a condução é interrompida, cortada,
pára ali (como um fio que se parte) e a energia passa a não ter por onde fluir, dificultando
assim o bom desempenho do trabalho. Não quero com isso supor que na fundação da
Umbanda, existiram intelectuais letrados em eletricidade ou termodinâmica, que lançaram
mão das cnicas aprendidas em seus ofícios na hora, construir um dialeto específico da
religião.
Contudo, alguns anos de leitura em Psicanálise me levam a desconfiar que a
palavra aponta sempre para algo a mais do que o que está explícito no primeiro momento. No
que diz respeito às minhas suspeitas, creio que uma Estética do Progresso” endógena à
Umbanda, herança do contexto de urbanidade e industrialização pelo qual passava o Brasil na
época do surgimento da religião. Isto explicaria a presença da nomenclatura do mundo do
trabalho na linguagem religiosa e a boa aceitação das idéias kardecistas de evolução da alma,
em detrimento noção de temporalidade cíclica presente em outras religiões de matriz africana,
como Candomblé, por exemplo. Explica também a substituição das performances circulares
(presentes em outras tantas tradições das quais sofreu influência, como a indígena e a
africana) por formas mais retas, como retângulos, linhas e quadrados. A meu ver, todos estes
fenômenos apontam para um plano simbólico comum, presente na religião e do qual
emergem. É este plano que chamei “Estética do Progresso”.
Na extremidade oposta ao altar, se localizam os instrumentos de percussão que
vão acompanhar o ritual: um tambor, símbolo da influência africana sobre a religião e um par
de maracás, símbolo da influência ameríndia. Em outras casas, é comum também ver presente
um triângulo, um agogô ou outros tambores, compondo uma bateria sagrada. O tambor é
tocado por uma moça de nome Raquel, que tem cargo de ogã da casa (portanto, a
responsabilidade sobre o tambor é exclusividade sua), posição considerada de destaque pela
importância do instrumento no ritual. Os maracás têm função secundária, apenas de se juntar
ao toque do tambor, floreando e estendendo-lhe a batida. É indiferente se ou não alguém a
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tocá-los, ou quem seja esta pessoa (geralmente um ou dois se revezam nesta tarefa).
Ogã é palavra utilizada para identificar uma das funções na casa de Candomblé. É
um título dado aos iniciados, do sexo masculino, que não incorporam. É considerada uma
posição de autoridade dentro da casa onde nasceu para o santo” e até perante a sociedade
mais ampla da religião, pois lhe são destinadas tarefas de essenciais na realização da maioria
dos rituais. Tais tarefas são consideradas masculinas e o título de Ogã varia conforme a que
lhe é designada. Desta forma: o Axogun é responsável pelos sacrifícios de animais; o Alagbê
toca os instrumentos de percussão (atabaques e agogô); o Olossaim é responsável por colher e
tratar as folhas rituais... Como a função de Alagbê é a mais visível para o grande público,
ocorre que, muitas vezes, se diz de forma errônea que a função do Ogã é somente tocar os
atabaques. É desta forma que este termo entra na Umbanda: em substituto ao termo antigo
utilizado para designar os tocadores de tambor, o de tambozeiro.
3.4 A ENTRADA: ABRINDO A BAIA
Antes de o tambor começar a bater, se reza duas orações católicas: o Pai Nosso e a
Ave Maria, para então dar início ao ritual de despachar a porta. A mãe-de-santo então saúda
Exu e se dirige até aporta de entrada do terreiro levando pemba branca, cachaça e água.
Materiais que devem ser jogados à frente da porta para o lado de fora da casa, assim
despachando a porta ou pondo Exu em movimento. Ou seja, espera-se que Exu proteja o lugar
do rito enquanto a sessão correr e defenda de toda impureza vinda do lado de fora, evite a
contaminação dos espaços sagrados por energias profanas. Note que Exu aqui é a grande
potência liminar, pois é aquele responsável por guardar as fronteiras. Por sua ligação com a
rua e o “fora” é o mais indicado para realizar o papel de guardião do terreiro. Portanto, é o
primeiro que deve ser saudado para o bom desenrolar do ritual. Enquanto isso se processa, as
correntes cantam em coro, voltadas para a porta:
Deu meia-noite
A Lua se escondeu
Lá na encruzilhada,
dando sua gargalhada
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Tranca-Ruas apareceu!
Anaruê! Anaruê! Anaruê!
Ê Mojibá! Ê Mojibá! Ê Mojibá!
Qual é o homem que confia em Tranca-Ruas?
É só pedir que ele dá!
Pomba-Gira Malelê!
Malelê! Maleleá!
Ô Malelê, malelê. Malelê, Maleleá!
Ô Malelê, malelê. Malelê, Maleleá!
Me ajoelhei na encruzilhada à meia-noite
para pedir o seu perdão
Ah, Exu! Me livra dos meus inimigos!
E vem abrir os meus caminhos
E me livrar dos perigos!
Cuidados com a porta feitos é hora de defumar o terreiro. A mãe-de-santo toma
nas mãos um fogareiro improvisado com lata de leite e arame, em brasas, onde queima ervas
cheirosas, chamado defumador. Sacode o construto de um lado para o outro de forma que a
fumaça gerada pela combustão possa preencher todo o ambiente, levando as impurezas que
porventura ainda persistam no local. Defuma em seqüência o altar, os objetos ritualísticos
(que serão usados por suas entidades tão logo estejam em terra, incorporadas), cada pessoa
das correntes, o tambor e, por fim, a porta da rua, como que varrendo a sujeira pelo ar. Logo
que a fumaça assa, o cambone Sérgio passa com uma garrafa cheia de um preparo de ervas e
perfumes e despeja um pouco do líquido nas mãos de cada integrante da corrente que passa
nos braços e por sobre a cabeça, tirando assim também as impurezas residuais do próprio
corpo. Esse ritual é acompanhado pelos cânticos:
Meu pai Oxóssi
daí-me licença para defumar!
Eu defumo, eu defumo
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essa aldeia real!
E, depois de concluída a defumação:
Essa casa foi defumada
Foi São Miguel/ quem a defumou!
Os contrários que tinha na casa
Anjo Miguel com a espada levou
Casa de Deus/ de Nossa Senhora
contrário aqui não entra
Se entrar, eu mando embora!
Antes de chamar os espíritos caboclos à terra, deve-se saudar os orixás, como que
pedindo-lhes a permissão para enviar “os seus” ao mundo físico. Sendo mais um das várias
influências do Candomblé de origem iorubana sobre a Umbanda, os nomes dos orixás passam
a substituir gradativamente os dos ancestrais bantos. As entidades passam então a se organizar
em falanges ou linhas, que são chefiadas por um orixá específico, como descrevi no capítulo
anterior. A entrada dos elementos iorubanos nos rituais banto-descendentes acontece sem uma
mudança na estrutura do culto. É comum encontrar autores que concordam que a presença dos
orixás nestes cultos é meramente (sic) simbólica (PRANDI, s/d). Portanto, acredita-se que, se
um espírito vem de Aruanda (morada mítica dos orixás e dos caboclos) incorporar em um
médium, é porque o orixá que lhe chefia permitiu, para que venha fazer seus mandados -
que o mesmo não pode fazê-los, pois não incorpora na Umbanda. Cada filho (a) vai tomar a
bênção novamente à mãe-de-santo, na hora em que a saudação a seu orixá é entoada, como
atitude de respeito e devoção àquela entidade que lhe adotou no mundo espiritual.
Na seqüência são:
Ogum: Deus da agricultura, dos metais e da guerra. É sincretizado com São Jorge. Sua
saudação é Ogun . Comanda uma falange de espíritos guerreiros que vêm à terra
vencer às demandas, ou seja, feitiçarias que têm como objetivo causar malefícios. Seu
cântico:
Ogum não devia beber
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Ogum não devia fumar
A fumaça é a nuvem que passa
e a cerveja é a espuma do mar!
Oxóssi: Deus da caça e da fartura. Sincretizado com São Sebastião. Comanda uma
falange de espíritos índios. Sua saudação é Oxóssi Ê! Seu cântico:
Se você não sabe eu vou dizer:
Oxóssi Odé é o Rei Sebastião
Ele é o dono da lavoura e do campo
Ele o dono da fartura e do pão
Para sua vida melhorar
e nunca lhe faltar o que comer
Acenda uma vela lá na mata pra Oxossi
e peça que ele vai lhe socorrer!
Xangô: Orixá da justiça e da burocracia. Sincretizado com São Gerônimo ou São João
Batista. Sua saudação é Kaô Kabecile e seu cântico:
Meu pai São João Batista é Xangô!
É dono da coroa até o fim!
Enquanto me faltar a fé no meu senhor
Derruba essa pedreira sobre mim.
Iemanjá: Rainha das águas e da maternidade. Sincretizada com Nossa Senhora dos
Navegantes e, no Ceará, com Nossa Senhora da Assunção. Sua saudação é Odó .
Essa divindade tem uma popularidade tão grande na Umbanda, que é o único orixá a
ter representação pictórica específica da religião. Uma construção que coloca a deusa a
meio caminho entre uma iabá e uma santa católica. Na imagem, apesar de conservar
alguns caracteres que realçam a sexualidade - como os seios e os quadris em relevo,
por baixo de um justo vestido azul - a face é branca e não negra, como era de se
esperar de uma deusa africana. As feições são delgadas e possui longos cabelos
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castanhos e lisos. Em sua personalidade, é descrita como a mãe boa, paciente, zelosa e
devotada aos filhos. Retiraram-lhe quase todos as caracteres mais explicitamente
sexuais que seu mito ainda conserva no Candomblé. Provavelmente é a prova mais
relevante da moralização acentuada a qual o mito tem sido submetido, apontada por
Roger Bastide (1971). O autor associa o fenômeno ao sincretismo com Nossa Senhora.
Iemanjá! Iemanjá!
No fundo do mar tem areia
Areia no fundo do mar
Em cima do mar têm as ondas
As ondas que vão me levar
O mar enfeitado de flores
Para saudar a Rainha do Mar.
Iemanjá!
Oxum: Orixá feminino, protetora do parto e do lar. Deusa das águas doces, das
cachoeiras, da riqueza, da beleza e da vaidade. Sincretizada com Nossa Senhora da
Conceição. Sua saudação é Ora . É também o Orixá da de D. Valkíria, portanto,
na hora em que se está cantando para Oxum, todos da correntes devem, por ordem
hierárquica, ir até ela e tomar-lhe a bênção novamente. Seu cântico:
Eu vi Mamãe Oxum na cachoeira
Sentada na beira do rio
Colhendo o lírio, lírio ê
Colhendo o lírio, lírio a
Colhendo o lírio pra enfeitar nosso congá.
Oxalá: O Grande Pai Branco. Regente de todos os orixás e deus da paz. Sua saudação
é Êpa Babá. Sincretizado com Jesus Cristo. Na hora em que se entoa seu cântico,
todos os filhos e filhas se prostram no chão em sinal de respeito e submissão.
Oxalá, Oxalá!
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Venha me valer!
Venha me valer, Oxalá!
Venha me valer!
Meu Oxalá! Oh, meu Oxalá!
Venha nos abençoar!
Me tira do que está errado!
Me mostra o que está escondido!
Oxalá, oh meu Oxalá!
Eu quero você comigo!
Está nos olhos de quem ama!
No fundo do coração
Foi a Mãe Natureza
Quem me ensinou essa reza-oração!
Oxalá, meu pai!
Tenha pena de nós!
Tenha dó!
A volta do mundo é grande!
O poder de Deus ainda é maior!
3.5 OS PONTOS CANTADOS
Como dissemos antes, o ponto cantado tem valor performativo, ou seja, visa fazer
algo, agir sobre a realidade e é partícula central no ato mágico umbandista. Além disso,
identifica a entidade, pois cada espírito, da infinidade que incorporam a Umbanda, tem seu
conjunto de pontos cantados. Muitas vezes a letra desses pontos também descreve
características pessoais da entidade que canta. Características como sexo, idade, casta,
ocupação que teve em vida... Daí o seu valor mnemônico de extrema importância na
construção e permanência do panteão umbandista, pois cria uma identidade para o espírito e
faz com que ela fique congelada no tempo.
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Na condição de performativo, o ponto cantado precisa atender certas condições
para que logre êxito em sua ação. A primeira delas, diz respeito às circunstâncias em que o
proferimento é feito:
Deve existir um proferimento convencionalmente aceito, que apresente um
determinado afeito convencional e que inclua o proferimento de certas palavras,
por certas pessoas, e em certas circunstâncias; e além disso, que as pessoas e
circunstâncias particulares, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento
específico invocado. (AUSTIN, Op. Cit., 31)
Para existir tal consenso, é necessário a existência de um código comum e
partilhado pelo grupo. Esse papel, não é preenchido totalmente pela gramática da língua
oficial, mesmo que todos os envolvidos sejam falantes dela. Trata-se de um código utilizado
para a comunicação na situação específica e que se adeque a esta. No caso da Umbanda,
engloba todos os gestos e categorias nativas que são utilizadas para compor o linguajar
ritualístico.
Quem fala/canta tem que ser referendado pelo grupo para isso. Ou seja, não se
trata somente do “que” se fala, mas, principalmente de “quem” fala.
Cumprindo um ato ilocucionário, o locutor exprime um certo papel e designa ao
auditor um outro papel complementar; o locutor exprime sua vontade de que o
auditor siga uma dada conduta, colocando-se como possuidor de uma autoridade
que deixa o auditor se conduzir de determinada maneira, simplesmente porque é
vontade do locutor. O papel social assumido pelo locutor, quando emite uma ordem,
é o de superior hierárquico institucionalizado (PORDEUS JR.., 2000, p. 12).
Situações de contrato social ritualizado, que para acontecerem, deve existir um
exercício de uma competência social específica, a competência do locutor legítimo Portanto,
“eu te batizo”, “eu vos declaro marido e mulher”, “eu aposto”, “faça-se luz”, “declaro aberta a
sessão”..., não são proferidos ao acaso, senão por locutores cheios de autoridade, legitimados
pelo seu Outro, ou seja, o grupo receptor. Caso contrário tais sentenças se esvaem de seu valor
performativo.
Da mesma forma, o ponto cantado é “feito” para ser proferido pelo caboclo
incorporado, de outra forma, terão um valor performativo diferente. É o que acontece, por
exemplo, com as rezas aos orixás descritas acima: de acordo com o exposto, estão
classificadas como louvações (como objetivo de enaltecer) e não conjurações (com objetivo
de forjar realidades).
Portanto, o ponto cantado adquire o valor de discurso jurídico, na medida em que,
lançando mão da infinita capacidade generativa da língua faz existir aquilo que enuncia e,
para que logre êxito, necessita da aprovação entre locutor e ouvinte sobre suas posições dentro
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do jogo performático. Austin (op.cit., p. 31) ressalta que “o procedimento tem de ser
executado, por todos os participantes, de modo correto e completo.
Para se falar de uma performance plena, esta deve ser pública aos seus
participantes e as rotinas relacionadas à teatralização do proferimento precisam ser
rigorosamente cumpridas.
Um exemplo disso é a expectativa depositada nos ouvintes... Quando o ponto é
puxado pelo caboclo, precisa ser entoado várias vezes, como resposta, de forma repetitiva
pela corrente. Todas de forma correta, sem errar palavra, para ser firmado. Caso o
procedimento seja interrompido antes de sua conclusão, deve-se iniciar novamente a cantiga,
pois aquela certamente não alcançará o objetivo desejado.
Tais rotinas não se reduzem apenas à voz, mas também ao corpo dos participantes.
Um Preto-Velho que realiza um ritual de cura em determinado indivíduo, por exemplo, deve,
além de entoar seu ponto de cura, realizar uma série de movimentos corporais para que a
performance produza o efeito desejado, como: banhar de perfumes a parte enferma do corpo;
fazer sobre esta, movimentos repetitivos em cruz com as mãos (os passes); sacudir sobre o
membro enfermo folhas plantas sagradas (como arruda, pião-roxo ou pau d’Angola); soltar
baforadas de cachimbo ou charuto sobre a parte enferma...
As respostas dos ouvintes também são coreografadas. A primeira indicação para
quem está na corrente é a de que se mantenha sempre em movimento, para que a energia que
passa por eles também se ponha em movimento. Quando uma reza de caboclo falar em vencer
demanda tirar os contrários, se espera que as pessoas que estão na corrente dêem uma volta
completa em torno de seu corpo e parem com a fronte voltada para a porta da rua, encerrando
com uma forte batida de no chão. Quando o ponto menciona o pedido de coisas boas, se
coloca as duas mãos abertas, paralelas ao chão e com as palmas voltadas para cima, como que
numa espera de agarrar as bonança, tão logo caiam do céu. Quando o ponto menciona vitória
ou sucesso, se ergue o braço direito logo em frente à face, com o punho fechado e se bate com
força o pé no chão, num gesto de triunfo. Mimetizando, desta forma, o que é dito na canção.
E é exatamente por serem cantados e não ditos, que os pontos reforçam a presença
física daquele que canta, dando uma importância central a tais gestos/coreografias no
acabamento da performance. Sobre esta oposição, escreve Zumthor (Op. Cit., p.188):
No dito, a presença física do locutor se atenua mais ou menos, tendendo assim a se
diluir nas circunstâncias. No canto, ela se afirma, reivindicando a totalidade do seu
espaço. Por isso, a maior parte das performances poéticas, em todas as
civilizações, sempre foram cantadas; e, por isso, no mundo de hoje, a canção,
69
apesar de sua banalização pelo comércio, constitui a única e verdadeira poesia de
massa. Portanto, é pela relação de oposição entre dito e cantado que defino o modo
da performance.
Da mesma forma, a postura, os trejeitos e o timbre de voz assumidos pelo cavalo
incorporado são componentes importantes dessa performance. Vão agir na construção da
imagem que se tem daquela determinada entidade, de forma que se garanta que essa imagem
possa perdurar ao tempo quando for transmitida de uma geração de iniciados à outra,
mantendo-se, esta forma, a tradição a partir das memórias construídas no ritual.
Neste contexto, os sons percussivos que dão ritmo ao canto também são
narrativas, pois são fonte e modelo mítico do discurso que configura a religião. Há um
entrelace entre som e linguagem que forma um “estilo oral rítmico”, que faz com que os
atabaques e maracás sejam componentes de um gênero poético particular. Os instrumentos são
dotados de uma fala que se manteve ao longo do tempo em sua qualidade de música (idem).
É sobre este tripé que os pontos cantados tecem o panteão umbandista é
construído: narrativas orais propriamente ditas, as narrativas orais percussivas e as narrativas
corporais. De forma mais precisa, posso dizer que o ritual é o próprio panteão, inspirado por
Leach, quando este diz: “O mito, em minha terminologia, é a contrapartida do ritual; mito
implica ritual, ritual, implica mito, ambos são uma e a mesma coisa” (LEACH, Op. Cit., p.
76). Contrariando, desta maneira, uma tendência clássica da antropologia social inglesa de
tomar o ritual é como a dramatização do mito e o mito como uma justificativa do ritual
(ibdem).
Ainda me detendo em Austin e as condições que se deve atender para que se
formem performativos felizes:
Nos casos em que, como ocorre com frequência, o procedimento visa às pessoas
com seus pensamentos e sentimentos, ou visa à instauração de uma conduta
correspondente por parte de alguns dos participantes devem ter a intenção de se
conduzirem de maneira adequada, e, além disso, devem realmente conduzir-se
dessa maneira subsequentemente (AUSTIN, Op. Cit, p. 31).
Pode ocorrer que uma pessoa, agindo de fé, durante a sessão, finja estar
incorporada, de forma a convencer os outros membros da corrente e os espectadores do ritual
da veracidade de seu transe. Tal feito é chamado ekê, no linguajar religioso e é visto de forma
extremamente pejorativa pela comunidade de fiéis. Os atos concretizados por um indivíduo
que esteja dando ekê não são dignos de crédito, nem deles se espera eficácia.
70
3.6 A CHAMADA DOS CABOCLOS
Uma vez saudados todos os orixás, é hora de chamar os caboclos chefes da casa
para declararem os trabalhos abertos. Respeitada a hierarquia, os primeiros a passar são
sempre os caboclos chefes da casa, na cabeça
22
da mãe-de-santo. Esta segue até o altar, fecha
os olhos e franze a testa em sinal de concentração. Ergue a cabeça um pouco, como estivesse
esperando algo vindo de cima. De repente, seu corpo começa a tremer em movimentos
epilepsiformes, cessados por um firme pisão de seu direito contra o chão. Sua face adquire
feições masculinas e sua voz se torna grave e firme. Nessa hora não é mais Mãe Valkíria
quem está no comando, mas Tapinaré (ou Rei dos Índios, como também é conhecido), o
flecheiro
23
da mãe-de-santo. Ao chegar em terra, o cabone lhe entrega os instrumentos que são
seus: uma faixa de tecido branco que este coloca por sobre o ombro e o cigarro aceso.
Antes de tudo, cumpre protocolo cabível a todo caboclo, se dirige ao cambone
dando graças: “Louvado seja Deus”! A resposta: “Para sempre seja louvado!” (acompanhada
do sinal da cruz católico). E saúda: “Salve Deus!” A resposta: “Salve!” (acompanhada por
palmas). Facultando-se aqui, acrescentar a esta, saudações a outras pessoas/elementos,
conforme a necessidade. A exemplo, a entidade pode saudar: o grande dia de hoje, ogã, os
pais e mães-de-santo que estão no reino, os filhos da casa, quem tem fé, quem não tem fé, o
seu chefe superior; todas estas respondidas com um “Salve”! acompanhado de palmas.
Finalmente, pede licença para trabalhar: Daí-me a permissão”! A resposta: “Dada por Deus
e a Virgem da Conceição”! E canta:
Sou eu um caboclo índio
Eu sou filho do Pará
Eu sou um caboclo guerreiro, meu pai
Nasci para guerrear
A flecha que eu atirar, meu pai
Só Deus quem pode tirar!
22 Quando um determinado médium incorpora um espírito, diz-se que aquele espírito está
na cabeça ou na coroa do médium.
23 Flecheiro é o nome dado ao caboclo chefe da linha das matas.
71
Finda sua passagem saudando todos que estão presentes e declarando: Abertos
sejam nossos trabalhos de paz, luz e caridade. E até a minha volta, se Deus permitir.”
A cena de espasmos se repete no corpo da mãe-de-santo. Tapinaré vai-se embora,
dando lugar a outra entidade. A posição ortopédica do corpo lugar a movimentos
cambaleantes, imitando os de um bêbado. Logo que percebe sua presença, o cambone retira-
lhe dos ombros a faixa de tecido branco pertencente ao índio e lhe outro cigarro aceso, um
copo de uísque e um chapéu de marinheiro. Foi o marujo Sibamba, chefe da linha do mar, que
chegou ao terreiro. Repete-se então, a cena a cena anterior até a entidade cantar seu ponto:
É de paz, é de paz!
É de paz, meu senhor!
Alegria do povo,
O Sibamba chegou!
Como de praxe, depois que o marinheiro anuncia sua chegada, todos silenciam
para ouvir as mensagens e as ordens que este traz do mundo espiritual. Tem por hábito
derramar um pouco do uísque que está bebendo na palma da mão de uma pessoa, gesto que
simbolizada a entrega de um presente trazido dos céus para a vida daquele invidíduo.
Terminada a pequena conferência, o espírito canta mais um pouco para firmar o trabalho que
veio realizar:
Meu Mestre me mandou,
Eu vim foi levantar!
O Sibamba é bebarrão,
Não promete pra faltar!
Com seu garrafão de pinga!
Bebe aqui, cai acolá!
Pisa no Massapê,
Escorrega!
Quem não sabe andar
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Cai no chão!
Simbamba das sete ondas
Ô, Sibamba,
Bebe até rolar pelo chão!
Folha por folha,
Lá das matas vem Sibamba,
Olha o bebo na Macumba já rolou!
Olha o bebo na Macumba vai rolar!
Embola, embola é na Macumba auê!
É na Macumba, auê! É na macumba, auá!
O terceiro espírito a chegar à cabeça de D. Valkíria é Seu Nêgo Gérson, guia da
mãe-de-santo. O cabone cuida para que o chapéu de marinheiro seja trocado por um gorro
branco pertencente à entidade, para que o cigarro seja trocado por um charuto e para que o
pequeno copo não fique totalmente vazio de uísque. Cumprido mais uma vez o protocolo de
chegada, é hora do espírito anunciar sua chegada em música:
Eu tava longe, eu
Tava longe, eu
Tava longe
Dessa terra!
Ao que as pessoas respondem:
Tava longe, ele
Tava longe, ele
Tava longe
está em terra!
Cumprimenta os componentes da sessão, um a um. Observando de forma zelosa
quem é visita, quem é amigo antigo do terreiro, quem é cliente e quem está na eira pela
73
primeira vez, dando a cada um o tratamento e atenção que lhe são devidos (na condição de
chefe espiritual da casa, é de bom tom que faça as honras de recepção).
Observa também se alguém na corrente que esteja em desenvolvimento. O
médium em desenvolvimento é aquele que possui a missão de trabalhar com caboclos, mas
que ainda não incorpora, portanto, sua incorporação precisa ser treinada. Via de regra, são
pessoas que entraram para a religião pouco tempo, sendo esta a primeira fase de sua
iniciação.
3.7 O DESENVOLVIMENTO E OS CRUZOS
Os desenvolventes são chamados um por vez. O filho saúda o altar tocando-lhe a
cabeça num dos patamares; saúda o tambor tocando-lhe o chão com a mão e depois, a própria
cabeça; ajoelha-se aos pés de Seu Gérson para tomar-lhe a bênção. Este, por sua vez, o
sarava
24
e o conduz ao centro do terreiro ordenando: “Pense em Deus!” A ordem soa como
aval para o desenvolvente começar a se concentrar. Forma-se ao seu redor um círculo
composto pelas pessoas que vão ajudar no processo.
Tão logo o novo médium esteja de olhos fechados, Seu Gérson começa a cantar os
pontos de chamada - pontos cantados que têm por objetivo convocar os caboclos da corrente
que o novo médium carrega a se manifestarem por meio da incorporação. Tais orações variam
de um terreiro a outro. Abaixo transcrevo algumas das que escutei no período de campo:
Se eu chamar ele vem!
Se eu mandar ele vai!
Sustenta a Gira, Caboclo!
Filho de Umbanda não cai!
Bota esses médiuns para trabalhar!
Pra ver a força que a Jurema tem!
Jurema! Ô, Jurema!
Ela é uma linda cabocla de penas!
24 Saravá - Bantunização da palavra “salve” (LOPES, 2003). Gesto de cumprimento
utilizado nos terreiros de Umbanda. Realizado fazendo seu ombro tocar o ombro oposto de
outrem, de ambos os lados, enquanto lhe aperta as mãos ou no decorrer de um abraço.
74
Aiô, Juremeiro!
Aiô, Juremá!
A folha caiu serena, Jurema,
dentro desse conga
A folha caiu serena, Jurema,
Dentro desse conga
Vou chamar todos caboclos de pena
Para trabalhar!
Oxalá chamou
E já mandou buscar
Os caboclos da Jumrema
No seu Juremá!
Pai Oxalá,
Que é rei do mundo inteiro
Já deu ordens pra Jurema
Mandar seus capangueiros
Mandai, mandai!
Linda Cabocla Jurema,
Os seus guerreiros!
Essa é a ordem suprema!
Oxalá chamou!
Arreia capangueiro!
Capangueiro da Jurema!
Arreia Capangueiro!
Arreia na santa paz!
Seu Rei dos Índios
Chama os índios é pra aldeia
É pra aldeia, caboclo!
75
É pra aldeia!
Caboclo não tem caminho para caminhar
Caminha por cima,
Por baixo da folha,
Em qualquer lugar
Okê, caboclo!
A Jurema mandou dizer
Que na sua aldeia ainda tem caboclo
Pisa no rastro do outro, caboclo!
Pisa no rastro do outro!
Eu já selei meu cavalo sopra não andar a pé
A minha casa é num morro de areia
É céu! É mar!
É morro e não é maré!
Olha palha do coqueiro, orirê!
Olha palha do coqueiro, orirá!
Orirê! Orirá!
Se a sua banda não vier,
Eu vou buscar!
Abre essa porta,
Eu não mandei porta fechar,
Quem tem sangue de caboclo
Tá na hora de baiar!
O corpo do desenvolvente no centro do terreiro, antes em repouso, começa a
demonstrar tímidos movimentos: breves contrações dos músculos da testa, pequenos tremores
nos ombros e nas pernas, um balanço pendular do tronco para frente e para trás... Conforme as
76
canções avançam, tais movimentos vão ganhando intensidade até se transformarem em
verdadeiros espasmos que colocam o médium para rodar incessantemente, percorrendo, de
forma irregular, todo o espaço do terreiro. As pessoas que se colocam em sua volta abrem os
braços de forma a aparar seu corpo, impedindo com isso que se machuque, escorregando,
caindo ou tombando com algum obstáculo (como pilastras, o altar, cadeiras ou outras
pessoas). Relata-se que, durante este estado de semi-transe, os sentidos adormecem, sobretudo
o tato. Portanto, é comum que se machuque enquanto se roda, chegando até a verter sangue
por conta de uma pancada numa zona mais delicada do corpo, e vir a sentir as
consequências do acidente horas mais tarde.
A sessão de desenvolvimento continua por dez ou quinze minutos, até que Seu
Gérson indique que é o bastante. Toma o desenvolvente em seus braços, como num abraço
e lhe sopra em cada um dos ouvidos para que este torne ao estado de consciência desperto.
Pode levar meses ou até anos para o primeiro espírito tomar por completo corpo e
mente de um indivíduo, necessitando passar por várias sessões de desenvolvimento. O
primeiro espírito a incorporar no cavalo de forma completa o suficiente para conseguir cantar
o ponto por sua boca é chamado guia ou caboclo da direita. Acredita-se que este acompanha
o médium a todo o momento, como um duplo espiritual. É ele que abre as linhas, ou seja, que
abre (e mantém aberto) o canal de comunicação do corpo físico do médium com o plano
espiritual. Portanto, todas as outras entidades que incorporarem naquele cavalo, o farão
com a permissão de seu guia. Este, por sua vez, funciona como uma espécie de zelador da
cabeça de seu aparelho, fechando-lhe o corpo para quaisquer energias indesejáveis.
Certa vez, foi-me contada uma história de uma garota que já trabalhava de
caboclo certo tempo, mas não estava cumprindo com as ordens passadas por seu guia...
Receio que havia algo relacionado com afastar-se de festas e álcool ou resguardos
semelhantes. Seu guia aproveitou-se da ocasião de uma baia para vir em sua cabeça e disse
em alto e bom tom (provavelmente se dirigindo ao cambone, porém, quem estava presente
também escutou):Diga a meu cavalo que não sou menino pra ficar dizendo uma coisa e ela
se fazer de surda! De hoje em diante eu não venho mais na cabeça dela! Se ela me der uma
cabeça de boi como sacrifício, talvez eu até volte, antes disso não!” E a garota, nunca mais
incorporou!
Espírito e matéria (corpo físico) são potências estranhas entre si. O processo de
desenvolvimento consiste numa gradativa aproximação das duas metades de um modo que
77
possam se conhecer aos poucos e criar vínculos cada vez mais fortes. Para tanto, a Umbanda
lança mão de várias cnicas que agem tanto sobre o corpo do iniciante, quando sobre a
potência sagrada a qual se quer acessar. Tais técnicas transcendem o espaço do terreiro e o
tempo da baia, incidindo inclusive na vida comum do sujeito. A exemplo: banhos de força
(banhos de ervas que têm por função preparar o corpo para a aproximação do guia), orações,
velas e oferendas para seu guia. A forma e a frequência dessas técnicas auxiliares são
definidas e ensinadas por Seu Gérson e variam dependendo da pessoa e dos caboclos que ela
carrega.
O status de desenvolvente é considerado uma condição liminar, pois seu corpo
está se abrindo para as energias sagradas, porém, seu caboclo ainda não está em plena
harmonia com o corpo físico para defendê-lo de quaisquer malefícios. Como o médium se
encontra numa posição espiritualmente fragilizada, as precauções contra os perigos rituais são
redobradas e as medidas de ascese religiosa que descrevi anteriormente se tornam ainda mais
imperativas neste período.
Nas primeiras incorporações de um médium, o espírito ainda não tem o total
controle de seu corpo, porque ainda não se acostumou totalmente com ele. Vem com
movimentos robóticos, sem equilíbrio e, muitas vezes, mudo. Cabe às pessoas que estão
dando assistência orientá-lo ordenando: “Dê sustento à matéria!”; “Cuidado com seu
aparelho! Não precisa maltratar!”; Pode cantar, meu velho! Seu cavalo tem boca!”; “Abra a
boca do cavalo! Comece o ponto, que a gente ajuda”!
Pode acontecer também uma disputada entre dois ou mais espíritos pelo domínio
de um aparelho. Nesses casos, é tarefa do pai ou mãe-de-santo ou d’alguma entidade em sua
cabeça intervir, resolvendo a disputa. Sobre isto, uma vez Seu Gérson incorporado em Mãe
Valkíria, por ocasião de uma sessão de desenvolvimento, virou-se para mim e explicou a
situação do médium que era jogado de um canto a outro do terreiro na intenção de incorporar:
“Tem dois caboclos querendo a cabeça desse menino! Estão em guerra! Eu que tenho de
resolver isso: tenho que passar um dos dois pra frente, pra toma conta da cabeça e o outro fica
em segundo”!
Uma vez que a incorporação tenha se dado, o processo de educação do corpo
em transe ainda não termina. As entidades que ocupam o corpo do médium precisam ser
ensinadas a se portar. Portanto, faz parte também do processo de desenvolvimento, treinar o
corpo em transe a adquirir comportamentos que vão caracterizar cada entidade e diferencia-
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lãs entre si. Fazem parte dessa pedagogia: ensinar aos pretos-velhos a fumarem cachimbo,
tomarem chá e café; às crianças de sombra a pedirem moedas e bombons...
Quando a incorporação do médium já está bem treinada e as entidades vêm em seu
corpo com movimentos mais definidos e seguros, o fiel passa da categoria de desenvolvente a
trabalhador. Nessa nova condição, tem por obrigação trabalhar nas baias.
Conforme o iniciado vai avançando na religião, vai passando por sacramentos por
nome cruzos. São sete ao todo, cada um correspondente a uma das linhas da Umbanda. Os
cruzos têm a função de consagrar o médium à energia referida pela linha, conferindo-lhe mais
controle sobre seu acesso e manipulação desta.
A hora de dar o cruzo é dita por um caboclo incorporado na mãe-de-santo ou no
próprio médium a ser cruzado e este tempo varia muito de um médium para outro. Varia
também a ordem deles. Portanto, não é porque um fiel é cruzado na Linha das Matas antes de
fazê-lo na Linha de Preto-Velho, que a mesma ordem valha como regra para outro filho-de-
santo. Nisto se diferencia do Candomblé, onde as obrigações são datadas no tempo contado a
partir da feitura
25
. A exemplo do Candomblé Ketu, temos obrigações com um, três, sete,
quatorze e vinte e um anos.
O ritual de cruzar um médium é feito à parte da baia, a portas fechadas, pois é
secreto. Só iniciados escolhidos a dedo pela mãe-de-santo (ou por seu caboclo) podem assistir
a um médium ser cruzado.
Cada médium possui uma entidade que responde por cada linha na qual foi
cruzado. Estas entidades são chamadas chefes de linha. Na hora de receber o cruzo, é
chamada a entidade que vai ser chefe daquela linha que essendo cruzada naquele médium.
também o caso de entidades híbridas que, por sua própria caracterização, podem trabalhar
em mais de uma linha. Nestes casos, pode ocorrer, por exemplo, de Sibamba, que é um
Mestre, ser o chefe da Linha de Mestre numa cabeça porque foi a entidade que respondeu à
chamada quando aquele indivíduo fio cruzado na linha. De outra forma, por ser marujo e
passar também na Linha do Mar, pode chefiar esta quando em outra cabeça, desde que tenha
respondido na hora de dar o cruzo referente.
Sendo assim, o processo inicíático na Umbanda segue a fórmula “vários espíritos
numa só cabeça” (BIRMAN, op. cit., p. 23), fundando, desta forma, o corpo-iniciado como
palco de um teatro afetivo (LÉVI-STRAUSS, 1996) onde será encenado o drama mítico das
narrativas que constituem a religião.
25 Nome dado à iniciação no Candomblé.
79
3.8 OS TRABALHOS
Na Umbanda, a incorporação tem um valor mais central do que em outras
religiões das quais sofreu influência. No Candomblé, os atos mais valorizados são aqueles
ligados aos ritos sacrificais realizados assentamentos dos orixás, quando, via de regra, se
fazem presentes os iniciados ou um e outro amigo mais íntimo da casa. A festa pública,
quando os orixás baixam e vêm dançar, é considerada de menor importância. É referida muita
vezes como um suplemento ou uma consequência do que se passou nos dias anteriores, uma
espécie de satisfação que se à sociedade e não aos orixás. A mesa branca kardecista tem
como principais objetivos a orientação espiritual dos seres, estejam estes encarnados ou não.
Porém, nestes processos, a mediunidade incorporativa tem tanto valor quanto outras formas
de mediunidade, sendo facultado ao médium de mesa branca incorporar ou não.
Existe também um ditado comum neste meio que diz: O telefone toca de
para cá!” Como o recurso da mesa branca fosse utilizado apenas em casos extremos, por
exemplo: na desobsessão de um espírito que atrasado que já deu provas de sua presença
nociva ou no caso de um espírito de luz querer se comunicar com os fiéis para passar-lhes
alguma orientação.
Portanto, nas mesas kardecistas, não o equivalente à chamada na Umbanda e
os espíritos não são invocados para solucionar aflições corriqueiras de forma imediatista. Na
Umbanda, por sua vez, se diz que: “Sem caboclo não trabalho”. A evolução dos médiuns
dentro da religião é possível através de seu constante exercício durante as baias. A
presença dos médiuns nas baias (sejam elas quinzenais, semanais ou de maior frequência) é
observada com rigor semelhante à que se verifica à de um trabalhador numa empresa. Pois se
crê que em todo dia de baia há algo a se fazer, mesmo que não haja clientes na casa.
A prática da caridade é talvez o argumento mais comumente invocado para
justificar a centralidade da incorporação na religião. Ouvi certa vez de Seu Gérson: “Filho de
caboclo tem mais é que vir pro terreiro baiar. Uma Umbanda é muito bonita pra ajudar o
próximo! Por isso, quem tem seu caboclo, se bem souber, vai estar sempre na casa do seu pai-
de-santo, da sua mãe-de-santo recebendo seus guias pra ajudar quem precisa. A caridade
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fortalece e deixa o médium humilde”! Outra vez, ouvi do caboclo Pilintra: “Orar e vigiar
sempre! Enquanto o filho estiver dentro do terreiro fazendo o bem, mal nenhum encosta”!
Depois de terminado o desenvolvimento, chega a vez dos médiuns que são
preparados chamarem seus caboclos para realizarem os trabalhos do dia. A categoria de
entidade a ser chamada varia de acordo com a ordem deixada por Seu Gérgon.
Da mesma forma que os desenvolventes, os médiuns preparados saúdam na
ordem: altar, tambor e Seu Gérson. Posicionam-se um ao lado do outros, em frente ao tambor,
de olhos fechados, se concentrando para chamar os entidades à terra.
Um a um, o corpo dos filhos sai do repouso, envergando para um dos lados e
maneira brusca, tal como se fossem arrastados por uma ventania forte. E, deste impulso
inicial, começam a rodar e rodar, para então parar bruscamente, ainda com os olhos fechados,
com o corpo voltado para o altar: sinal de que o espírito chegou.
O cambone se encarrega de despejar nas mãos de cada um, um pouco de perfume,
que o caboclo joga por sobre a cabeça do cavalo que está a ocupar, descarregando a matéria
para que possa usá-la em seu trabalho.
Na ordem em que incorporam, têm a permissão para cantar seus pontos e consultar
quem quer que esteja na casa necessitando de seus auxílios. Assim vão chegando e passando
os espíritos que vêm trabalhar... Um mesmo médium pode receber um número enorme de
espíritos numa mesma sessão (diferente, por exemplo, do Candomblé onde não é comum um
filho receber mais de um orixá num mesmo ritual). É nessa hora da baia que Seu Gérson
também atende aqueles que vieram em busca de sua ajuda, chamando um a um, num espaço
reservado ao lado do terreiro. Quando termina de atender a todos, geralmente traz mais uma
ou duas entidades na cabeça da mãe-de-santo, antes de despertá-la. A forma como estes
trabalhos prosseguem é por mim descrita no próximo capítulo, quando vou abordar a função
de cada elemento do panteão dentro da religião.
3.9 A SAÍDA: FECHANDO A BAIA
decorrido o tempo de trabalho determinado pela mãe-de-santo, pelas oito e
meia da noite, o cambone o comando: “Tá na hora de encerrar! Cada um trazendo o guia
81
do cavalo para despertar!” Uma vez que as entidades tiveram tempo e oportunidade para
cumprir com suas obrigações na terra, não se faz necessário que permaneçam por mais tempo.
Os médiuns que ainda estiverem incorporados trazem seus guias. Depois de cantar
seu ponto o guia vai embora e o corpo do cavalo começa dar voltas novamente, em torno do
eixo da coluna, como se fosse incorporar uma nova entidade. Desta vez, pára arqueado para
trás, com os braços derreados ao lado do corpo e o quadril esticado para frente, para dar-lhe
equilíbrio. Desperta de um solavanco violento para frente. É necessário que uma ou duas
pessoas estejam próximas para lhe dar sustento e evitar um possível acidente. O filho desperta
do transe resfolegante, com os cabelos desgrenhados, suado e sem lembra-se de nada do que
passou durante o tempo em que seus caboclos lhe usavam o corpo para trabalhar.
Os filhos, um a um, retornam aos pés da mãe de santo (já fora do transe), para que
esta lhes retire os colares dos pescoços, demarcando assim o retorno à vida profana. Depois
tomando à bênção ao cambone, à ogã e aos irmãos mais velhos, nesta ordem.
Depois de terminada a pequena “procissão”, todos dão as mãos para rezar a
Oração de São Francisco:
Senhor, fazei-me instrumento de Vossa Paz!
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, Fazei que eu procure mais
Consolar, que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois, é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
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E depois, numa última saudação à deusa Oxum, cantam a louvação a seguir, antes
de se despedirem da baia:
Salve a Oxum!
Ela é a deusa mais querida
Salve a Oxum!
Ela é a deusa mais bonita!
Mamãe Oxum
Que ilumina nossa vida!
Mamãe Oxum!
Ela é a deusa mais querida!
3.10 A BAIA EM OUTROS TEMPOS
A partir dos relatos do cabone Sérgio fiquei sabendo que aquele ritual que
observava durante vários domingos, nem sempre foi realizado daquela forma. Como me
proponho a estudar memória, julguei importante construir um modelo do que teria sido a baia
realizada no Terreiro Mamãe Oxum, na época de sua implantação. Dessa forma, poderia
observar de forma mais minuciosa mudanças e permanências dos elementos rituais ao longo
de sua história.
É um trabalho deveras delicado, pois se trata de um esforço arqueológico: tentar
reconstruir um quadro no qual não estive presente como observador direto. O material que
tive acesso para fazer essa reconstrução, também era escasso, pois poucas eram as pessoas
que viveram o tempo que tento remontar e ainda freqüentam o terreiro. E mesmo estas não
lembravam todos os detalhes que estavam bastante afastados no tempo.
Neste aspecto, o contato com Mãe Dulce do Ogum - irmã-de-santo de Mãe
Valkíria - foi extremamente importante. Pelos mesmos motivos que relato no capítulo anterior,
a conversa com ela me ajudou a preencher algumas lacunas deixadas pela fala de Sérgio, D.
83
Baía e Mãe Valkíria, esclarecendo fatos que as entrevistas com eles só apontavam.
A maior diferença entre a forma antiga e a atual está na presença dos rondas:
caboclos cuja função era vigiar e proteger a casa de perigos espirituais durante a realização
dos trabalhos.
A abertura começa da mesma forma até a hora da defumação. Logo em seguida, a
mãe-de-santo chama o um espírito para abrir o trabalho, que pode vir em qualquer linha.
Depois de cantar seu ponto, declara: “Abertos sejam os trabalhos do dia, na força e na luz!” O
segundo caboclo a baixar é sempre o dono da casa, guia da Mãe-de-Santo. Quando este
chega, todos os filhos tocam o chão com os dois joelhos, em sinal de reverência. Logo em
seguida, em ordem hierárquica, as pessoas que estiverem no terreiro devem tomar a bênção
ao guia em terra: do cambone ao tambozeiro (inclusive os clientes, visitantes e curiosos que
por ventura ocupem a casa no momento). É neste o momento que se aproveita para se
consultar ou pedir algo ao espírito chefe da casa. Somente depois de ter falado com todo
mundo é que este sobe. As entidades que vêm em seguida são os rondas. O número é variável,
podem passar três, quatro ou até mais rondas na abertura de um trabalho (não um critério
específico para definir esta quantidade). A estes não se toma a bênção ou se consulta, sua
única função é passar e proteger o terreiro durante a duração da baia. quem tem a
permissão de se dirigir a eles, muito rapidamente, é a pessoa que estiver cambonando os
trabalhos, mas apenas para lhes servir alguma coisa que necessitem, como cigarro ou bebida,
por exemplo. Quando último ronda passa, anuncia declarando: Rondado é o reino!
Rondados estão os filhos!” É o comando para todos que estão na corrente darem uma volta
em torno do corpo, indicando que serão defendidos, a partir daquele momento, por todos os
lados.
Terminada a passagem dos rondas, os médiuns estão autorizados a incorporar.
Não se pode tirar os rondas de sua função de vigília para ocupá-los em outra tarefa enquanto a
baia não estiver encerrada, portanto é proibido uma nova incorporação deles, seja em que
médium for. Os trabalhos prosseguem sem diferir em nada dos que são realizados hoje em dia
na casa. Diferindo apenas na hora de encerrar os trabalhos, quando o guia volta à terra na
cabeça da mãe-de-santo para declarar: “Encerrados estão os trabalhos de hoje e suspensos
estão os rondas”!
Como podemos ver, a maior alteração nas rotinas da baia é na abertura, onde a
ronda com os espíritos é substituída por louvações aos orixás, na ordem que vai de Exu a
84
Oxalá, seguindo o modelo de um xirê de Candomblé. Contudo, a entrada destes novos
elementos não altera a função que este momento tem na cerimônia: a de garantir uma
passagem segura da vida comum para a vida sagrada, minimizando a ação dos perigos que
esta implica.
85
4 NARRATIVAS RITUAIS: O PANTEÃO
Nestas poucas linhas, apresento um modelo para o panteão umbandista que montei
durante as observações de campo. Tentei construí-lo como uma derivação direta das práticas
cerimoniais com as quais tive contato. Cabe salientar que se trata de uma mera virtualidade
pois, como apontei antes, na prática, ritualística e mitologia coincidem.
Como todo modelo, é impreciso e sujeito a falhas. Essa limitação se torna ainda
mais forte quando se fala de uma religião de matriz africana, onde o saber oral é pedra angular
de todo ato. Onde não propriamente um regimento universal, nem se trata de uma
instituição de administração centralizada (como é o caso da Igreja Católica, por exemplo),
tampouco há texto ou prescrições escritas a serem seguidas por seus fiéis . Tais características
fazem com que a Umbanda seja uma religião em constante construção, de modo que o modelo
que segue não tem a pretensão de ser definitivo.
No topo da hierarquia celeste está um deus único e supremo. Adquire vários
nomes, oriundos de diferentes tradições, sem critério definitivo quanto a seus usos, como:
Zâmbi, Olorum, Olodumare, Tupã ou simplesmente Deus. Sua importância não é negada,
contudo, é pouco ritualizado. É distante e sua influência no cotidiano dos fiéis parece ser
mínima. Na maioria das vezes, é lembrado na hora das rezas de abertura e encerramento
das baias ou quando eventualmente um de seus muitos nomes aparece mencionado num
ponto de algum caboclo que está em terra. Transcrevo alguns desses momentos abaixo:
Eu dou viva a Zâmbi!
Eu dou viva a Glória!
Eu dou viva ao Rosário de Nossa Senhora!
A quem Zâmbi promete, tudo!
É só ter paciência e esperar!
Corimba com eu!
Corimba!
Foi Zâmbi quem criou o mundo!
É Zâmbi que vem governar!
86
Foi Zâmbi quem criou as estrelas,
Iluminou Oxóssi,
Lá no Juremá!
- Saravá Tupã!
- Tupã é Deus!
Os orixás, descritos no capítulo anterior, são forças da natureza que têm por
missão mediar as vontades de Deus na terra. Embora não incorporem na Umbanda, é comum
serem ritualizados com presentes/oferendas em diversos momentos e sua presença ganha cada
vez mais espaço dentro da religião. A cada orixá foi dado uma parcela do mundo para presidir,
no qual este é encantado. É nestes respectivos domínios onde geralmente se realiza estas
oferendas. A citação de Berkenrock (Op. Cit., p.222) aponta de forma sucinta a função que
lhes é designada: “A bondade de Olorum não alcança, porém, os seres humanos e o Ayie
26
de
uma forma direta. Entre Olorum e o Ayiê estão os Orixás, como mediadores ou
administradores dos bens de Olorum”
27
Um fenômeno bastante comum é encontrar imagens de santos católicos em altares
umbandistas. Como explicitado anteriormente, herança de uma colonização ibérica e
consequência da grande influência cristã/católica formação do Brasil, sobretudo na cultura das
etnias negras que aqui desembarcaram. Como essa influência se deu de forma ampla e
irregular ao longo da história, seus efeitos na construção das brasilidades são plurais. Dessa
forma, os santos católicos aparecem cumprindo as mais variadas funções na Umbanda, sendo
frustrada a tentativa de encontrar-lhes um lugar único no panteão, que, na realidade,
ocupam mais de um.
O primeiro digno de nota é o de equivalente aos orixás. Por conta do sincretismo,
é comum encontrarmos, dentre os santos mais cultuados, São Jorge, Nossa Senhora da
Imaculada Conceição, Sant’Ana, São Lázaro, São Roque, Santa Bárbara, São Sebastião, São
Gerônimo. É comum, por exemplo, encontrar terreiros onde alguns destes são regentes de
linhas. Exemplos de pontos nos quais este aparecem:
Para quem não conhece
26 Mundo físico, da matéria. Oposto ao Orum, mundo espiritual.
27 Grifos meus.
87
Eu vou dizer:
Oxóssi-ode é São Sebastião!
Ele é o dono da lavoura e do campo!
É o dono da fartura e do pão!
Para a sua vida melhorar,
E nunca lhe faltar o que comer!
Acenda uma vela,
lá na mata pra Oxóssi
E peça, que ele vai lhe socorrer!
Ilumina o terreiro,
Santa Bárbara!
Saravá Umbanda!
Saravá Quimbanda!
Senhora Sant’Ana,
Quando andou pelo mundo
Ela cruzou as velas,
Iluminou o mundo!
Dizem que Xangô mora na pedreira
Mas não é lá sua morada verdadeira
Xangô mora é na Cidade de Luz
Aonde mora Santa Bárbara,
Oxumarê e Jesus
Lá fora estão batendo!
Jesus mandou ver quem é
Ô abre a porta gente:
Deixa a falange São Jorge entrar!
A herança ibérica também pode ser sentida por sinais, nos pontos cantados, que
88
remetem às práticas de feitiçaria portuguesa. De maneira recorrente, aparecem alguns santos
referidos na maioria desses pontos: Santa Bárbara, São Cipriano e Santo Antônio. Este último
geralmente aparece citado nos ponto de Exu, quando se precisa amansar o coração de
alguém. Isto é, quando a feitiçaria tem objetivo de subjugar a vontade alheia, de forma que o
indivíduo não tenha forças de lhe fazer o mal ou, nos casos de amarração (nome utilizado
para os trabalhos de amor), não tenha como revidar às investidas amorosas do requerente.
Como podemos ver abaixo:
Santo Antônio Pequenininho,
Amansador de touro brabo,
Amansai meus inimigos,
É com mil e seiscentos diabos!
Santo Antônio entrou no fogo,
Com sapato de algodão!
O sapato pegou fogo,
Santo Antônio não pegou, não!
Santo Antônio é casamento,
Cipriano é bruxaria!
Eu quero ver nêgo amarrado
É debaixo da bruxaria!
Ilumina o terreiro Santa Bárbara!
Saravá Umbanda!
Saravá Quimbanda!
Salve Santa Bárbara!
Salve o santo dia!
Virgem coroada
ela é nossa guia!
Salve, salve, salve
O povo de Aruanda!
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Salve, salve, salve
A Santa Lei de Umbanda!
Salve Oxalá! Salve Iemanjá!
Salve, salve, salve
Todos orixás!
Noto que essa linguagem da religiosidade ibérica também emerge nalguns outros
pontos que citam figura bíblicas - como o Rei Salomão - e de figuras míticas da cultura
portuguesa, como é o caso do Rei Sebastião
28
.
Quando a Jurema fulorô
Eu vi as folhas cair no chão
Salve a Linda Cabocla de Pena da Jurema
Filha do Rei Salomão!
Eu sou o Príncipe Danilo
Não tombo e nem giro
E nem tenho que girar
Com a minha espada na mão
Faço o Círculo Salomão
E os contrários vou levar!
Dom Rei Sebastião,
Eu sou guerreiro militar!
Rei Xapanã, eu sou pai de terreiro!
Baixei na guma com a bandeira imperial
Vim montado em meu cavalo branco
28 Neto de D. João III, representante da Dinastia de Ávis, D. Sebastião foi coroado 16º
monarca de Portugal aos três anos de idade, vindo a tomar a frente do governo aos
quatorze. Faleceu no Marrocos, em 1578, aos vinte e quatro anos de idade, no episódio
histórico conhecido como Batalha de Alcácer-Quibir, numa tentativa frustrada de expulsar
os mouros da costa norte da África e reviver o passado heróico de conquistas do povo
português. O Movimento Sebastianista surge em Portugal a partir da crença na volta do Rei,
como um cavaleiro de Cristo que vem reinar sobre o país, restaurando-lhe os dias de glória.
No Brasil são vários os momentos em que esta crença ressurge, geralmente agregada a
algum outro movimento religioso.
90
Com a minha espada na mão
Mas eu sou rei! Ah, eu sou rei!
Eu sou Rei Sebastião!
Montado em meu cavalo branco,
Com minha espada na mão!
As imagens de São Francisco e do Padre Cícero também são muito frequentes nos
altares umbandistas, entretanto, não encontrei referência a estes nem nos pontos cantados,
nem pela fala de entidades incorporadas. E nos rituais, apenas na hora de fechar a gira São
Francisco é lembrado através de sua oração. Creio que aqui estamos diante de um fato que
aponta para uma genuína linguagem cearense, formado a partir da conjugação de duas esferas:
por um lado, o espaço de poiesis proporcionado pela própria religião; por outro, a experiência
coletiva da gente da terra na construção simbólica do que é “legitimamente cearense”! Sendo
assim, era de se esperar que esse espaço fosse preenchido também pelas imagens desses dois
santos, que o Ceará conta com dois grandes pólos de migração religiosa (os principais) em
Juazeiro do Norte, a “Terra do Padre Cícero” e Canindé, de onde São Francisco é o santo
padroeiro.
Encontrei outras referências dessa linguagem cearense na sintaxe umbandista
nalguns pontos cantados que fazem referência ao Ceará:
O Maranhão é terra de Macumba!
Eu deixei Macumba lá
E vim baiar no Ceará!
Na Igreja de Juazeiro
Tem vinte e cinco janelas
Em cada janela um cruzeiro,
Em cada cruzeiro uma vela!
Abaixo dos orixás, figurando como seus mensageiros, estão os espíritos que
incorporam, os trabalhadores. Conforme mencionei, aparecem classificados nas linhas,
categorias nativas que uso de forma a organizar minha análise. Entretanto, a dada a dinâmica
91
da classificação pelas linhas e seu número limitado, não são suficientes para caracterizar toda
classe de entidades que baixam na Umbanda. Portanto, adianto que minha intenção é
ultrapassá-la na medida em que se fizer necessário.
Cabe salientar que estas divindades seguem uma estética própria: a do herói
civilizador. Ou seja, o ser sobrenatural que é concebido à imagem e semelhança de seus
devotos. Sofrendo dos mesmo males, enfrentando os mesmos perigos e recorrendo às mesmas
soluções (PORDEUS JR., 1993). Dentro de um panteão adquirem o status de figuras
paradigmáticas do mundo do umbandista, seja como um exemplo a ser imitado e
possivelmente seguido, ou como um tipo a ser evitado e banido para as zonas escuras de seu
mundo social (DAMATTA, Op. Cit.).
Para Maurice Halbwachs, “a história começa onde a tradição termina”
(HALBWACHS, Op. Cit., p. 80), entendendo aqui tradição” como sinônimo de “memória
coletiva”. Segundo ele, isto acontece porque não necessidade de se deitar em registro
escrito a lembrança que ainda encontra seu grupo de referência coeso, pois sua constante
afirmação no presente vai fazer com que não se perca no esquecimento. Quando não se tem
mais o suporte do grupo,
aquele mesmo que lhe assistiu ou dela recebeu relato vivo dos primeiros atores e
espectadores, quando ela [a memória] se dispersa por entre alguns espíritos
individuais, perdidos em novas sociedades paras as quais esses fatos não interessam
mais porque lhes são decididamente exteriores então o único meio de salvar tais
lembranças, é fixa-lãs por escrito em uma narrativa seguida uma vez que as
palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem (idem, p. 80-81).
Daí nasce a história, como uma compilação de fatos que ocuparam maior espaço
na memória dos homens, ou seja, um tecido feito a partir de elementos de tradições mortas,
referenciadas em grupos extintos.
Trato aqui do caminho exatamente oposto: a invenção de uma tradição a partir das
narrativas históricas. Cabe lembrar que não um primeiro ritual e que uma religião é
construída a partir da superposição de várias crenças. Sendo assim, a Umbanda vai buscar em
vários setores da sociedade (história e outras tradições), os elementos necessários para a
confecção dos tipos humanos que vão compor seu panteão.
Nas descrições que se seguem, estarei sempre buscando vislumbrar o argumento
histórico-social para o qual aponta aquele mito. Contudo, não de se pensar que as
narrativas rituais da Umbanda seguem fidedignamente o curso das narrativas históricas,
reatando os fatos da maneiram como estes aconteceram. Não há este compromisso!
O ritual tem o efeito de selecionar aquilo que de mais importante na narrativa
92
histórica, para construir uma outra onde estes elementos emergem reinterpretados: a narrativa
mítica. Lembro ainda a principal função desta: organizar a vida ordinária, colocando seus
aspectos integradores num plano de visibilidades, reforçando o que é desejado, rechaçando o
que é reprovável. Portanto, mais que ligar o presente ao passado, o ritual serve para organizar
o próprio presente.
Sendo assim, é comum que a sintaxe ritual cometa algumas incoerências do ponto
de vista histórico. Contudo, dentro de um contexto ritual, estas incoerências não podem ser
consideradas propriamente erros. Dessa forma, essas narrativas constroem verdadeiras
geografias, faunas e floras fantásticas, utilizando nesses rearranjos dois recursos essenciais:
como instrumento, a lógica do mito; como matéria-prima, as experiências coletivas. Sob essa
ótica, fica então plausível dizer que uma índia é filha do Rei de Nagô. Ou que um índio é filho
da Virgem Maria. Ou que Maria Molambo, entidade que, segundo contam, em vida era filha
de fazendeiros alagoanos, saúde o Rei de Nagô
29
(mesmo sem nunca ter estado na África),
como demonstram os pontos a seguir:
Salve a cabocla de pena
Que agora aqui chegou
Foi encantada nas águas
No Reinado de Nagô
Eu já rufei meu tambor
Eu toquei maracá
Salve a Cabocla Julinha
Filha do Rei de Nagô
Caboclo Arranca-Tôco
É tua luz, é tua guia
Caboclo Arranca-Tôco
É filho da Virgem Maria
Rei de Nagô, Rei de Nagô!
Ela vai girar, Rei de Nagô!
29 Nagô - “Nome que se ao iorubano ou a todo negro da Costa dos Escravos que
falava ou entendia o Ioruba“ (Wikipédia, 2009).
93
Na encruzilhada do cemitério
Maria Molambo saúda o Rei de Nagô!
Na encruza ela é um exu
É rainha das correntezas
O sorrido de Molambo
Leva embora a tristeza!
4.1 OS PRETOS-VELHOS
A desarticulação de memória africana no Ceará foi mais intensa que em outros
estados brasileiros. Até certo ponto, pelas ações de uma elite intelectual humanitarista, cuja
visão obscureceu durante anos o conhecimento das condições de vida dos negros e do
comportamento dos escravistas da província (CAMPOS, 1998). O fato de ter sido palco da
abolição da escravatura, quatro anos antes da Assinatura da Lei Áurea, é exaltado até os dias
de hoje na expressão “Ceará, Terra da Luz”. Essa aversão a qualquer lembrança que remeta ao
passado escravista contribuiu (e ainda contribui) para a cristalização da fantasia de que no
Ceará não existe negro. É inegável que o trabalho escravo no estado teve uma importância
menor se comparado a outras formas de trabalho que com ele coexistiram. Também é verdade
que os números que denunciam a população negra da terra são midos se comparados aos de
outros estados do Nordeste. Contudo, não é menos verdade que os negros que por aqui
passaram deixaram suas marcas estampadas na cultura da terra (a exemplo da Congada e do
Maracatu).
A importação de escravos para o Ceará era secundária. Os negros que aqui
chegavam eram, em sua maioria, provenientes do tráfico interprovincial, sobretudo dos
entrepostos de Recife e São Luís. Em quase sua totalidade, eram da etnia Congo-Angolês e
muitos carregavam características de miscigenação. Frequentemente, em anúncios de busca,
apareciam descrições como: “muito ladinos”, de cor parda”, “de cabelos cacheados ou
corridos”, “ausência de escalificações tribais” (RIEDEL, 1998). Estes dados apontam para
94
uma preponderância no Ceará de negros despidos de sua africanidade, adaptados à cultura
branca (pelo menos, em sua maioria).
É a imagem desse negro seduzido pelos valores do colonizador que vai figurar na
Linha de Preto-Velho. Trata-se mais de um processo de reconhecimento da presença do negro
como um dos componentes do povo brasileiro do que de uma real valorização da herança
africana. Ou como bem disse Ortiz (Op. Cit.): é um processo de Empretecimento e não de
Enegrecimento.
Quando um Preto-Velho desce, o corpo do aparelho se curva, denotando
humildade, passividade e a idade avançada. O rosto adquire uma expressão amena e afável.
No tempo em que passam em terra, bebem chá e café, fumam cachimbo e são especialistas em
curar as enfermidades da matéria e da alma. Suas conversas prosseguem em tons amigáveis e
arrastados, podendo durar horas, dependendo da gravidade do problema a ser resolvido. Como
indumentária, usam bengala para apoiar o peso da idade e chapéu, se homem ou um pano
enrolado na cabeça, se mulher. As entidades masculinas carregam os títulos pai” ou “vovô”
prefixando seus nomes e as femininas, “mãe”, “tia”, ou “vovó”; como que indicando um
aconchego quase que familiar a ser encontrado em suas figuras. Muito de seus pontos indicam
uma devoção extrema ao catolicismo e uma imersão em todos os hábitos que esse universo
implica, como, por exemplo, o uso de terços e as orações para os santos. O dia em que se
festas em homenagem a eles, por exemplo, é a mesma data em se comemora Nossa Senhora
de Fátima: 13 de maio. Abaixo seguem alguns pontos que salientam bem sua função como
rezadores católicos:
As minhas Almas Santas Benditas, Aê!
Eu vou pedir para São Pedro, Aê!
Que abra as portas do Céu, Aê!
Oi, deixa as almas trabalhar, Aê!
Na mato tem flor,
Tem Rosário de Nossa Senhora!
Aroeira, meu São Benedito!
Meu São Benedito,
Que me valha nessa hora!
95
Pai João da Costa com sua ternura,
Sentado no toco,
Ele reza as criaturas
Estrela de Oxalá
Seu povo iluminou,
Pai João da Costa,
Ele é um guia protetor!
Eu tava sentado na minha tarimba,
Fumando a cachimba,
Meu pai me mandou!
Ai, eu sou índio,
Eu sou guerreiro,
Eu sou índio africano,
Baixei no terreiro!
Confia em Deus!
Acredita em mim!
Quem vai te ajudar
É o Senhor do Bonfim!
No que diz respeito à lembrança do tempo de escravidão, seus pontos cantados
variam de lamentos conformistas pela vida árdua a comemorações pela alforria do cativeiro.
Muitos deles refazem o trajeto da África ao Brasil, fazendo menção aos porões dos navios
negreiros ou às regiões de onde predominavam os negros que aqui desembarcavam. A
exemplo:
Lá vem navio negreiro,
Que vem beirando o mar!
Trazendo os africanos,
Para trabalhar!
96
Aqui chegou Preta-Velha de Mina, meu pai!
Eu moro é no porão do mar!
Ah, eu vim de Mina!
Ah, eu vou pra Mina!
Baixei em terra pra meus filhos alevantá!
30
Os peixinhos do mar me circulam
31
Olha lá: Pai Francisco chegou!
Aiô-ô-ô, chegou Pai Francisco de Nagô!
Preto na Senzala bateu sua caixa
Deu Viva a Iaiá
Preto na Senzala bateu sua caixa
Deu via a Ioiô
Viva Iaiá, Viva Ioiô
Viva Nossa Senhora!
O cativeiro acabou!
Quem trabalha na Linha de Congo
É de Congo, é de Congo aruê!
Quem trabalha na Linha de Congo,
Agora é que eu quero ver!
Preto-Velho que veio de Angola
Para saravá o congá
Auê, auê, auá!
Para sarava o congá!
Preto-Velho que veio de Cambinda!
Preto-Velho que veio de Luanda!
30 “Porão do mar” é uma alusão ao porão dos navios negreiros onde eram depositados os
negros. “Mina” é uma referência ao Tambor de Mina, religião maranhense de origem Jêje
que teve bastante influência na formação da macumba cearense.
31 O verso “Os peixinhos do mar de circulam” é outra referência aos navios negreiros:
evoca a imagem de estar cercado pelas águas do mar, enquanto se está no porão da
embarcação
97
Preto-Velho que veio lá do Congo
Para saravá a nossa banda!
Ao contrário do que se imagina, as atividades nas quais foram empregadas as
forças de trabalho dos cativos não se limitaram a aplicações agrícolas, mas a tudo aquilo que
fosse conveniência senhorial. Um leque de possibilidades se abre ao lançarmos um olhar
sobre o levantamento percentual feito por Eduardo Campos destas ocupações, em consulta aos
documentos das Juntas de Classificação, no Arquivo Público do Ceará:
(...) no campo, como lavradores (31,10%); em outros, ainda de caráter doméstico
(21,05%); costureiras (5,74%); vaqueiros (2,87%); trabalhadores braçais (2,39%);
lavadeiras (1,91%); engomadeiras (1,43%); fiandeiras (0,95%); pedreiros e
carpinas (0,47%). Tal projeção de trabalho foi obtida a uma listagem de 691 cativos
do Ceará, principalmente da zona rural, dos quais 209 (33%) tinham profissão
identificada. Partindo-se desse indicativo, e aceitando-se que existiam ao redor
30.000 escravos quando ocorreu a libertação destes, no Ceará, pode-se admitir uma
força de trabalho escravocrata, com profissão definida, da ordem de 11.000
(CAMPOS, Op. Cit., p. 57).
Interessante notar que toda esse quadro de ocupações aparece referido nos pontos
dos Prtero-Velhos:
Mãe Maria, Mãe Maria
Lavadeira de Iáiá
Vai lavar sai de renda
Não é dela, é de Iemanjá
Cadê minha agulha?
Cadê meu dedal?
Chegou Tia Rosa
Pra levar o mal
Bota a panela no fogo, Caetana
Pra cozinhar Jerimum, Caetana
O Jerimum não é nada, Caetana
A panela é que é!
Lá na Bahia,
98
Estão me chamando
Pra beber assaré
E comer vatapá
Tempero que tem na panela
É o tempero que a velha tem
Vamos saravá Preta-Velha
Saravá na Bahia
A força maior que a Mãe Joana tem!
Eu plantei mandioca,
A formiga comeu!
Eu plantei,
Não planto mais!
Meu pito tá apagado,
Minha marafa
32
acabou!
Vou trabalhar pra suncê
Porque sou trabalhador!
Eu vou trabalhar,
Suncê vai ganhar!
É muito pouco, meu filho!
33
Você vai ter que pagar!
No geral, as entidades pertencentes a esta linha são relacionadas a negros
africanos ou seus descendentes escravizados. Contudo, existem aqueles que não o são, mas
baixam nesta linha por possuir características comuns ao ideal do “preto bom” que nela
aparece (como a idade avançada, o gosto pelo cachimbo, a humildade, a subserviência aos
32 “Marafa” ou “marafo” é palavra usada para se referir a aguardente.
33 Comum algumas rezas virem carregadas de expressões antigas ou consideradascios
de linguagem pela norma culta. É uma forma de caracterizar a entidade como “pobre” ou
“sem estudo” quando em vida. Desta forma, dando visibilidade às características próprias
ao espírito que se que reafirmar. No caso dos Pretos-Velhos, por exemplo, a “humildade”.
No caso de um índio, a “selvageria”. Em observância as prescrições rituais, se orienta aos
fiéis que mantenham essa forma da reza, considerada a original. Tentar “consertá-la” é
considerado um erro, muitas vezes corrigido com repreensões do tipo: “Não mude!” ou
“Você tá querendo consertar?” Ou ainda, de forma jocosa: “Essa aí é lançamento: vai fazer
sucesso na FM!”
99
valores do homem branco...). Exemplo disso é a Mãe Tutú, Preta-Velha de grande
popularidade na Umbanda cearense e que, no entanto, sua representação pictórica é a de uma
senhora de tez clara e não de uma negra.
No que diz respeito ao índios que m nesta linha, acredito que é fruto da
experiência íntima que os negros de origem Congo-Angolesa tiveram com os indígenas
durante a história colonial (Prandi, 2008), inclusive, experimentando também a escravidão
pelas mãos de europeus. No que diz respeito a esta relação no Ceará, cito Riedel (Op. Cit., p.
16):
Nos albores da colonização os indígenas eram chamados ‘negros’ pelos
portugueses. Estes, sob vários pretextos, escravizavam tapuias ou tribos tupis
inimigas dos potiguares. Este fato atingiu o clímax no século XVIII, quando da
‘Guerra dos Bárbaros’. Soares Moreno, quando pretendeu manter fábrica e
criações de negros (sic) e fazer um trapiche de açúcar’. possivelmente se referia a
africanos. Mas a primeira prova documental inequívoca da existência do negro
cativo no Ceará nós devemos a Matia Beck, holandês cujo escravo Domingos,
preto, nascera no Ceará e falava, com desenvoltura, o abanheenga. Segundo
inventário do fazendeiro Mendes Lobato no Icó, em 1919, o preço de um escravo
africano ou crioulo equivalia ao de 47 bois, isto é, 160$000rs. Em contrapartida,
índios Calabaças e Cariris, reduzidos à escravidão, eram avaliados de 13 a 30 mil
réis cada um.
Alguns pontos que falam dessa diversidade étnica entre os Pretos-Velhos:
Seu Jataquara Índio Velho brasileiro
Baixou na eira pra saldar fi de terreiro
Vamos saravá, vamos saravá
Vamos saravá, seu Jataquara brasileiro
Tapuia Velha quando vem das matas,
Bebe marafo é na sua coité!
Tapuia Velha é vencedora!
Levanta os filhos é na linha de moura!
Eu sou um caboclo índio,
Eu sou Pajé Curador!
Eu venho é da aldeia,
Do Reinado de Nagô!
Cigana velha cansada
100
Cigana velha do amor
Cigana velha cansada,
Cigana Dolores, cigana do amor!
Além de servirem de mentores espirituais para os seres viventes, também o fazem
aos espíritos desencarnados. A cerimônia fúnebre da Umbanda - chamado Tambor de Choro -
tem por objetivo orientar a alma do morto na passagem entre os dois mundos, para que
desprenda do mundo físico de uma forma rápida e pouco dolorosa, podendo, desta forma,
continuar sua evolução em outros planos. É um ritual muito ligado aos Pretos-Velhos. Certos
traços de personalidade possuídos por eles são quesitos essenciais para o espírito se este
deseja o bom sucesso nesta jornada. Tais como desprendimento dos vícios terrenos,
considerados valores atrasados (vaidade, avareza, luxúria); apego aos valores considerados
nobres e evoluídos (obediência, devoção, religiosidade, sabedoria, paciência). Juntando isso à
imagem da velhice - tempo da vida onde a morte, o luto e a finitude da carne se fazem mais
presentes - fazem dos Pretos-Velhos exemplos de abnegação, modelos morais a serem
seguidos.
4.2 A LINHA DE OGUM
Espíritos atitudes belicosas e movimentos firmes. Quando em terra, fazem o
médium que ocupam adquirir feições austeras e posturas ortopédicas. Dançam como se
segurassem espadas invisíveis, sacolejando-as pelo ar, de um lado a outro do terreiro. Ato que
indica que estão cortando as demandas.
São as entidades chamadas para dominar exu e cortar os efeitos indesejáveis de
seus feitiços, figurando assim como símbolos da potência masculina: os únicos do panteão a
subjugarem uma força caótica. Isso vale mesmo para os espíritos considerados femininos que
vêm nessa linha. A exemplo da Nobre Guerreira, cuja representação pictórica é de uma
pessoa jovem, de pele clara e feições delgadas, trajando uma armadura de combate e capacete,
segurando numa das mãos uma grande bandeira branca cujo mastro lhe ultrapassa em altura.
Ou seja, não nenhum traço que aluda à feminilidade da entidade, como relevo de seios,
101
quadris largos ou cabelos longos, por exemplo.
Seus pontos falam sobre batalhas, guerras e vitórias sobre monstros fantásticos ou
sobre alguns dos perigos rituais já referidos (como os contrários e as demandas).
Eu chamo sete oguns guerreiros
Eu chamo sete oguns pra guerrear
Ele é guerreiro, meu pai!
Ele é guerreiro!
Ele é guerreiro nas ondas do mar!
Eu é guerreiro! Ele é guerreiro!
Ele é guerreiro militar!
Ai, o meu pai sustenta a gira,
Pra ninguém não derrubar!
Salve Ogum Naruê!
Espada! Lança! Guerra!
Ele é feiticeiro!
Quem não pode recuar
Ogum maneja a sua espada
Defende esse terreiro!
No alto da romaria
Eu vi um cavaleiro de ronda
Trazia lança, sua espada na mão
Ogum-Megê vai vencer o Dragão!
A primeira espada quem ganhou fui eu
Mas eu sou...
Eu sou Ogum-Megê!
Eu vim de Aruanda
Pra meus filhos proteger
Quando eu monto em meu cavalo galope
102
Com minha espada de brigada na mão
O meu peitoral é de aço
Salve as estrelas que brilha no mar!
Eu sou uma Nobre Guerreira Cabocla
Dentro do meu areal
Montada em meu lindo cavalo
Caboclo Oriente Estrela-do-Mar
Ogum Humaitá de Umbanda
Oi, diz papai que mironga tem!
Ogum de Lê! Lê, lê!
Ogum de Lá! Lá, lá!
Este último ponto é referência à Tomada da Fortaleza de Humaitá, episódio
importante na resolução da Guerra do Paraguai, marcada na história do povo brasileiro como
o conflito internacional mais sangrento no qual as forças militares do país tiveram
participação. Esse tempo também ficou marcado na história pelas campanhas publicitárias
promovidas pelo governo em incentivo ao alistamento voluntário dos cidadãos brasileiros,
como forma de tentar sanar as deficiências do exército nacional (que não tinha condições de
se envolver sozinho numa guerra de igual porte), fazendo circular por todo território nacional
idéias de exaltação à pátria.
Na província cearense, fez-se muito para motivar o alistamento de voluntários para
a guerra. Investiu0se no discurso que exaltava o patriotismo dos brasileiros, que
teve eficácia(...) O discurso ufanista de defesa da nação, e a divulgação da
vantagens apresentadas pelo Governo Imperial para os do ‘Corpo dos Voluntários
da Pátria’, em reuniões populares, comícios e praças públicas, serviram de fonte de
informação das notícias da Corte. Os jornais, no período, publicaram artigos de
reforço ao apelo a ser voluntário para a guerra, com argumentos de sentimentos de
‘honra e glória’ dos engajados na luta pela Pátria. No Ceará, envolvem-se na
campanha do ‘Corpo de Voluntários’, João Brígido, B. Cordeiro e Sr. Sarmento,
elogiados em artigo do jornal O Cearense, por terem proferido, em 22 de fevereiro
de 1865, discurso do esclarecimento da população como voluntários para a guerra
(SOBRINHO, 2005, pp. 59 E 60).
A experiência coletiva tão intensa vivida pelo povo brasileiro durante este período
fez com que suas marcas figurassem em vários pontos de Umbanda, cantados até os dias de
hoje, como, por exemplo, o do Preto-Velho Pai João que transcrevo abaixo:
Sou Preto-Velho,
103
Mas não ligo essa canalha.
Já ganhei minha medalha
Na Guerra do Paraguai!
Quando era moço,
Que andava na missão
Agora como estou velho,
Só me chamam de Pai João.
4.3 AS CRIANÇAS DE SOMBRA
Espíritos infantis, que exalam irreverência. Quando baixam, o médium adquire
feições, por vezes maliciosas, por vezes abobalhadas. Caminham de forma irrequieta,
saculejando a cabeça para e para cá, como brincassem. Alguns, ao invés de andar, saltitam
de um canto a outro do terreiro. Fazem galhofo por tudo e, por vezes, pregam peças nas
pessoas que estão na baia, escondendo-lhes objetos ou atirando-lhes coisas que têm à mão.
Têm o hábito de pedir moedas (que chamam bandeira).
Muita vezes são confundidos com os êres, entidades de Candomblé que
simbolizam um estado de transe intermediário, entre a consciência desperta e a incorporação
pelo Orixá. Têm como função a limpeza do ambiente, livrando as pessoas das impurezas.
Acredita-se que a alegria que lhes é tão característica ajude a tirar o peso e a negatividade do
ambiente. É muito comum baixarem logo em seguida à uma gira com exus, pois acredita-se
que o trabalho com magia deixa no terreiro energias residuais que precisam ser limpas.
Sua festa é celebrada no dia 21 de setembro, dia de São Cosme e São Damião,
santos gêmeos, protetores das crianças.
Menino Jorge, Caboclim de opinião
Quando a Princesa manda
Venho trazer a proteção
E quando ela não me manda
Venho fazer malinação
104
Janira é flor
É flor do mar (2x)
É moça bonita
Dos Orixás
Onde a Jarina mora?
Na praia do lençol
É hora, é hora!
Criança chora!
Eu sou um menino malvado
Das matas do Maranhão
Eu sou um menino Marabô
Um menino Marabô
das Matas do Maranhão
4.4 OS ÍNDIOS OU CABOCLOS DE PENA
A valorização do índio, embora ele tenha sido dizimado, é o paradigma da nova
nação, como corte do cordão umbilical com Portugal. O índio livre que nunca foi
escravizado, a partir de uma visão romântica, guerreiro, corajoso e valente, fiel à
sua liberdade (PORDEUS, 2003, P. 26).
Essa valorização do elemento ameríndio figurou nas mais diversas áreas do
conhecimento. Durante o século XIX e início do século XX e cientistas naturais a
publicitários políticos elegeram o índio como representante legítimo da nação (SCHWARCZ,
Op. Cit.). A literatura romântica é um dos fortes exemplos de saberes que se debruçou sobre
essa questão, construindo um leque de tipos e alegorias cujas características mais exacerbadas
se aproximam bastante dos personagens mitológicos que compõem a Linha das Matas na
Umbanda. Sobretudo nos personagens da literatura indigenista
34
(FERREIRA &
PELLEGRINI, 1996).
34 Tão forte foi esse movimento de valorização do índio na América Latina como um
todo, que gera um fenômeno literário que é considerado como uma escola independente
pelos estudiosos.
105
Na Umbanda, incorporam eretos. Têm expressões ariscas e movimentos rápidos.
Dançam pelo terreiro como se atirassem flechas com a ponta dos dedos. Gritam e uivam
conforme vão trabalhando. Trazem consigo todo o estereótipo do índio valente, arrogante e
rebelde. É o mito do selvagem atualizado no teatro de possessão.
Seus pontos falam das caçadas aos animais, na luta constante pela comida e pela
sobrevivência nas matas virgens:
Ele andava nas matas
Ele andava caçando
Em cima do rochedo se perdeu
Foi lá que se encantou
Olha quem chegou: o Índio da Solidão
Com sua flecha,
Vai flechar no coração.
E com seu punhal,
Vai vencer toda questão
Eu tava na mata caçando tatu
Ah, eu vi meu pai lá no Arerê
Caboclo bom!
Caboclo baia, Dendê!
A patrulha de Umbanda
mandou procurar
Um bom caçador
Que soubesse atirar
Ele atirou, atirou,
Atirou no veado e não matou!
Atira! Atira!
Ela vai atirar!
Atira! Atira!
Ele já atirou!
106
Caboclo Gentil,
Lá do pé da serra
É matador de onça
E atirador de flecha!
Vamos embora, gente!
Que eu não sou dessa terra!
Eu moro é muito longe,
É na loca das pedras!
A referência constante à Jurema nas orações denota a presença de um linguajar
nordestino na religião. A árvore ocorre em todo semi-árido e é símbolo de extrema relevância
na construção da cultura cabocla, como planta que se destaca na paisagem por uma série de
propriedades, sobre as quais fala Euclides da Cunha:
As juremas, prediletas dos caboclos - o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhes, grátis,
inestimável beberagem, que os revigora depois das caminhadas longas,
extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito filtro mágico - derramam-se em
sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os
maxixeiros raros - misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas e das
épocas aneladas do verde e o termo da magrém - quando, em pleno flagelar da
seca, lhes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d’água;
reverdecem os angicos; loureiam os juás em moitas; e as baraúnas de flores em
cachos, e os araticuns à ourela dos banhados... (CUNHA, 2007, PP. 56 E 57).
Como reflexo da importância desta planta para a vida do caboclo nordestino, a
Jurema ganha lugar de destaque dentro da religião. É comum, por exemplo, encontrarmos
tocos da árvore como parte dos assentamentos dos caboclos. No dia 20 de janeiro, dia de São
Sebastião, é a data em que se celebra Oxossi (orixá regente dos caboclos) na Umbanda.
Comumente é preparada a beberagem homônima à árvore para ser servida aos espíritos
incorporados, de forma a reconstruir no espaço mítico a realidade sob a qual viveram os
caboclos.
Eu bebi Jurema!
Eu bebi Jurema!
Não me embriaguei!
Não me embriaguei!
Eu comi guiné!
107
Eu comi guiné!
Não adormeci!
Não adormeci!
Entrei nas matas sem pedir licença
Só pra ver a força que a Jurema tem
Aiô, Jurema! Aiô, Jurema!
Aiô Jurema! Filha de Tupinambá!
Indícios de uma linguagem tipicamente cearense são encontrados nesta parcela do
panteão. O melhor exemplo disto são os personagens dos livro de José de Alencar (maior
expoente da literatura indigenista do estado) figurando como caboclos de pena e a presença de
algumas figuras famosas da literatura de cordel.
O índio Peri chegou!
O índio Peri chegou!
Ele vem na linha de nagô!
Ele vem virar os contrários,
Virar a macumba que a Ita mandou!
Quem canta seus males espanta!
Quem chora relembra uma dor!
Solta os cabelos entre as penas!
Sou eu uma índia Iracema!
Sou ínida brava guerreira
Nascida em Acaraí
Fui batizada nas águas
E o meu nome é Necy!
Avança guerreira, avança!
Dispara flecha que traz!
Só temo a Deus nas alturas
108
E o meu mano Jupi
4.5 A LINHA DAS CACHOEIRAS OU LINHA DE XANGÔ
Assim como a Linha das Matas, a Linha das Cachoeiras é composta de espíritos
selvagens, de uma estrema ligação com a natureza, que não conheceram a “civilização” do
homem branco. Acredita-se que estes se encantaram nas pedras ou nas águas que compõem as
cachoeiras e delas retiram a energia para trabalhar.
Regidos pelo orixá Xangô, estas entidades quando vêm à terra é para trabalhar
numa súplica por justiça aos filhos quando estão sendo vítimas de algumas perseguição, seja
jurídica, seja pessoal, seja na forma de feitiços. Quando estão trabalhando na desmancha dos
feitiços, fazem o corpo do médium se curvar e sua cabeça dar repetidas voltas em torno de sua
coluna (em movimentos parecidos com o da incorporação, mas com os pés firmes, sem batê-
los contra o chão), como num movimento de mimetismo ao de um redemoinho de águas.
É comum aparecerem menções a Oxum e Iansã (às vezes identificada como Santa
Bárbara) nos pontos dessa linha, fato que se justifica por ambas terem sido esposas de Xangô
e o acompanharem.
Xangô, meu pai!
Eu vou pedir a proteção ao meu Xangô!
Os inimigo quer me derrubar
Quem rola pedra por cima da cachoeiras,
Por cima da cabeça de quem quer me ver na poeira!
Quarta-feira à mie-noite
Eu fui na pedreira de Xangô
Acendi uma vela
Chamei pelo meu protetor!
Saravá! Saravá!
Chamei pelo meu Pai Xangô!
109
Ô, ô! Ô, ô!
Xangô é o meu protetor!
Eu vi Santa Bárbara no céu
Eu vi Santa Bárbara no mar
Santa Bárbara é virgem,
Rainha coroada
Na aldeia de pedra
Virgem Santa Bárbara!
Eu vi Santa Bárbara no céu
Eu vi Santa Bárbara no mar
Salve a Rainha da pedreiras
Salve o Caboclo das Sete Cachoeiras
Eu sempre ouvi dizer, ouvi falar:
“Quem rola pedra na Pedreira é Xangô!”
Ô, ô, ô, ô, ôô!
Cabocla Braba vem na Linha de Xangô!
Xangô morreu de madrugada
E foi estirado em uma pedra
Ele escreveu na justiça:
“Quem deve paga,
Quem merece recebe!”
4.6 A LINHA DO MAR
Sendo um estado agraciado com uma extensão de aproximadamente 573 km de
terras litorâneas, era de se esperar que o Ceará comportasse um leque proporcionalmente
extenso de atividades ligadas ao mar. No que diz respeito as comunidades tradicionais, por
110
exemplo, a marca das águas salgadas na vida de seus indivíduos é fato digno de nota.
O maior movimento social situado na zona costeira cearense é autodenominado
“povos do mar“. Maior pela quantidade de categorias de sujeitos que o movimento
abarca, congregando organizações de pescadores, catadores de caranguejo,
marisque iras, produtores de algas, “moradores” e, em certas circunstâncias,
indígenas e quilombolas. É o maior também pela quantidade de comunidades
distribuídas ao longo da zona litorânea, e também pela importância da produção de
pescado para a economia cearense. Os números não são precisos, porém estima-se
em mais de 100 comunidades pesqueiras distribuídas em 20 municípios cearenses.
Outro número é que entre30 e37 mil pescadores artesanais atuam no estado do
Ceará em embarcações que em 2002 constituíam a maior parte da frota estadual
(78,17%), respondendo por mais da metade (64,66%) do pescado produzido no
Ceará (AIRES, 2009, PP. 43 - 44).
O impacto produzido nos homens pela proximidade das terras com o mar molda
atividades econômicas, cria tradições laicas, inventa categorias políticas identitárias... Com a
religião não haveria de ser diferente! Portanto, não é à toa que a festa de maior importância
dentro da Umbanda cearense é a festa de Iemanjá, realizada nas pais de Fortaleza no dia 15 de
Agosto.
A Linha do Mar representa exatamente estes domínios de Iemanjá na Umbanda.
Vários tipos de trabalhadores do mar aparecem representados nesta linha, desde o pescador
até o marinheiro aventureiro (deste último, falarei mais detidamente no tópico sobre a Linha
de Mestre). Aqui aparece também uma categoria de entidades que aparentemente destoa da
imagem do herói civilizador citada no início do capítulo. Estes são os encantados do fundo:
seres fantásticos, habitantes das profundezas do oceano e que, ao contrário da maioria das
outras entidades cultuadas na Umbanda, não se admite que tiveram um prévia existência
como seres viventes. Embora não cumpram a função de figurar como heróis civilizadores,
certamente são imagens tecidas a partir das lendas que povoavam o imaginário luso-brasileiro
na época das grande navegações. Cumprem portanto a função de colorir o universo mítico que
esses heróis civilizadores percorreram, de modo a conferir pano de fundo para as grandes
odisséias pelas quais passaram. De peixes gigantes a sereias figuram nesta linha.
Rei Tubarão, peixe feroz!
Rei tubarão, peixe do mar!
Abre as postas de Aruanda
Pra Rei Tubarão passar!
Eu vi a moça
Na beira d’água
111
Solte os cabelos, Janaína
E caia n’água!
Janaína é uma princesa real
Ela é encantada na cobra coral!
Sereia, ó linda sereia!
É encantada na cobra coral!
Eu tava na beira da praia
Pra ir o balanço do mar
Foi quando eu vi
um retrato na areia
Me lembrei da seria
Comecei a cantar:
Oh Janaína, vem ver!
Oh Janaína, vem cá!
Receber essas flores
Que eu vim lhe ofertar!
Cheguei, Cheguei
Das ondas do mar sem fim!
Eu sinto frio à meia-noite
Rei dos Cavalos Marinhos!
Me chamo é João Pescador
Sou Pescador do Mar
Eu moro é no tronco da baleia, eira!
Aonde a maré faz virar mar!
Olha a gira! Olha a gira! Olha a gira!
Olha a gira! Ele vai girar!
Caboclo sustenta a gira!
Foi meu pai quem me mandou!
112
4.7 LINHA DE MESTRE
Se o preto-velho preenche todos requisitos para ser enquadrado na alegoria do
“negro bom”, o mestre juremeiro o faz com relação à do negro safado” e do “negro
feiticeiro”! Figuras irreverentes, fazem troça por tudo. Soltam altas gargalhadas de celebração
à vida. Quando em terra, fazem o médium adquirir movimentos incertos e cambaleantes.
Dados aos excessos do vinho e da bebida jurema, também são chamados de os bêbados.
Sabem ser “camaradas”, prezando uma boa amizade; da mesma forma que sabem ser severos
no castigo aos filhos que desobedecem seus desígnios. Quando em campo, mais de uma vez
escutei histórias de médium que despertaram num estado lastimável, semelhante a uma
embriaguez, com requintes de sintomas (como vômitos e perda de parte da noção da
realidade), sem ter consumido nenhuma bebida alcoólica (às vezes bebiam água, suco,
refrigerante ou mesmo nada bebiam). O estado era explicado como um castigo de seu mestre a
alguma coisa que o médium tinha lhe negado.
Representantes maiores do “jeitinho brasileiro” dentro da religião, são conhecidos
por “dar em pingo d’água” e resolver problemas que se apresentam como situações sem
saída os olhos comuns. Ocupam um espaço liminar entre os rigores e responsabilidades da
vida regrada dos “doutores” e dos homens de bem” e os excessos da vida mundana,
extraindo com destreza os brios e vantagens de ambas as esferas.
Acredita-se que tenham sido, quando em vida, pessoas que foram abençoadas com
o dom da feitiçaria ao nascer. O dom precisou ser inato (e não aprendido) pois são dados
demais aos prazeres mundanos para se submeterem aos rigores de qualquer instituição formal
de ensino.
Fazem parte dessa linha também os marinheiros e os boiadeiros.
Todo mestre, quando é mestre
Não discute com ninguém:
Toca fogo na cachimba
E a fumaça é pro além!
113
Se tu me queres como amigo
Serei um bom teu amigo
Se tu me queres camarada
Serei um bom camarada
Sou feiticeiro de nascença
Trago meu corpo fechado
A morte não é desculpa
Orgulho não vale nada
A morte não é desculpa
Orgulho não vale nada
Quer, quer, quer...
Tudo mundo quer!
Nêgo Chico Feiticeiro,
Quimbandeiro de Guiné!
Tem gente que diz:
“Nêgo Chico não vale nada!”
Trabalha com galo preto
À meia-noite na encruzilhada!
Sou Nêgo Chico Feiticeiro!
(Oi Sá Dona!)
Ai eu não sou de caçoar!
(Oi Sá Dona!)
Eu pego o Nego é na encruza
(Oi Sá Dona!)
E jogo na encruzilhada!
Essa noite eu vou sair para beber
Eu vou beber até rolar pelas calçadas!
Bebo porque é a minha sina,
Bebo porque estou apaixonada!
114
Chiquita Preta do Reinado de Codó
Quanto mais a nêga bebe,
Mais a nêga arroxa o nó!
Papai, mamãe me chama
À meia-noite na encruzilhada!
Saravá Seu nego Gérson
À meia-noite na encruzilhada.
Gérson é feiticeiro
Quando assim lhe convém
Quem é filho de Gérson
Não deve temer a ninguém!
Vem beber mais eu, meu mano!
Vem beber mais eu, mano meu!
Mano meu! Mano meu!
Se eu cair tu me segura!
Mano meu! Mano meu!
Se eu cair segura eu!
4.8 OS MARINHEIROS
Sérgio Buarque de Holanda chama atenção para dois princípios que se fazem
presentes, combatendo-se e regulando-se, em toda atividade humana, em maior e menos grau,
manifestando-se desde as sociedades mais antigas. Tais princípios se encarnam nas figuras do
aventureiro e do trabalhados, como dois contrapontos éticos da vida coletiva.
Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo
do tipo trabalhador atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de
praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do
aventureiro - audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade,
vagabundagem - tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do
mundo, característica desse tipo. Por outro lado, as energias e esforços que se
dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias
que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva
de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para
eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador
115
(HOLANDA, 1995, p. 44).
Embora nenhum destes dois tipos exista de forma pura no mundo real, as
narrativas locais estão a produzi-los a todo momento. O Caxias, Policarpo Quaresma e
Selma Jezkova (a protagonista de Dançando no Escuro, drama assinado pelo dinamarquês
Lars Von Tier) são exemplos de tipos trabalhadores: indivíduos de visão estreita, persistentes
em seus ofícios, zelosos quanto às regras e à forma de fazer, mesmo que isso lhes custe um
progresso lento e pouco compensador de suas ambições. De outra forma, Macunaíma,
Carioca e Ícaro são exemplos do tipo aventureiro: mais interessados nas recompensas
imediatas que no esforço em alcançá-las.
Na esfera umbandista, o melhor exemplo do segundo tipo é o marinheiro. Símbolo
por excelência das grandes odisséias, o marinheiro é movido nas águas pelo sentimento de
curiosidade ante ao inexplorado. A personalidade audaciosa e desbravadora faz dos marujos
figuras prenhes do saudosismo pela época das grandes navegações. O mar é um território
selvagem, traiçoeiro e cheio de mistérios, pronto a ser conquistado pela jeito alegre dos
marujos.
Quem tá na proa do navio é o Sibamba!
Senhora Santa Bárbara
Levantou bandeira branca
Marinheiro é hora!
É hora de trabalhar!
É céu! É terra! É mar!
Ô marinheiro,
olha o balanço do mar!
Quem ta proa do navio, marinheiro?
É no balanço do mar, marinheiro!
Agüenta o tombo!
É o tombo do mar!
Eu não sou daqui
(Marinheiro só)
116
Eu não tenho amor
(Marinheiro só)
Eu sou da Bahia
(Marinheiro só)
De São Salvador
(Marinheiro só)
Ô marinheiro, marinheiro!
(Marinheiro só)
Quem te ensinou a nadar?
(Marinheiro só)
Ou foi o tombo do navio,
(Marinheiro só)
Ou foi o balanço do mar
(Marinheiro só)
Lái vem! Lái vem!
(Marinheiro só)
Ele vem chegando
(Marinheiro só)
Todo de branco
(Marinheiro só)
Com seu chapezinho
(Marinheiro só)
4.9 OS BOIADEIROS
O passado como colônia de exploração marca profundamente o Brasil. Talvez a
mais imediata destas marcas seja o próprio nome que o país carrega: o nome de uma
mercadoria, a primeira a ser extraída de suas terras pela metrópole. Outra destas marcas é o
nome que rotula os que aqui são nascidos: brasileiro. Em bom português, o sufixo “eiro” não
forma adjetivo pátrio, mas se refere aos ofícios (como em sapateiro, marceneiro, costureiro,
117
cozinheiro, carpinteiro...). Tanto que na época colonial, o nome brasileiro foi dado aos
autônomos que, movidos pelo espírito da aventura e por promessas de riquezas fácies, vinham
de Portugal “fazer o Brasil”, explorando-lhe as terras e a madeira (MENEZES, Op. Cit.).
No que diz respeito à Capitania do Ceará, ficou durante anos esquecida pela
metrópole por ser considerada improdutiva para o mercado financeiro da época ( no auge da
cultura canavieira, era raro o estado que fizesse frente com Bahia ou Pernambuco em
potencialidade produtiva). Somente a partir do final do século XVII, por conta de certa
organização na administração das doações de sesmarias, a política de ocupação territorial se
inicia no Ceará. Essa ocupação é muito marcada pela expansão da pecuária. Uma das
consequências mais impactantes dessa mudança no cenário do sertão cearense foi o etnocídio
indígena. Esse etnocído se deu de duas formas: através da morte física, em conflitos armados
e através da morte cultural, desconstruindo o as referências simbólicas dos nativos para
colocar outras no lugar (MAIA, 2009). O último destes caminhos criou tipos novos de
sertanejos, filhos da implantação e desenvolvimento cultura do gado, são estes: o caboclo, o
jagunço e o vaqueiro.
Sobre este último, escreve Euclides da Cunha (Op. Cit., pp. 105 - 106):
Raça forte e antiga, de caracteres definidos e imutáveis mesmo nas maiores crises -
quando a roupa de couro do vaqueiro se faz a armadura flexível do jagunço -
oriunda de elementos convergentes de todos os pontos, porém diversa das demais
deste país, ela é inegavelmente um expressivo exemplo do quanto importam as
reações do meio. Expandindo-se pelos sertões limítrofes próximos, de Goiás, Piauí,
Ceará e Pernambuco, tem caráter de originalidade completa expressa nas
fundações que erigiu. Todos os povoados, vilas ou cidades, que lhe animam hoje o
território, têm uma origem uniforme bem destacada da dos demais que demoram ao
norte e ao sul.
O mito que bem traduziu e sintetizou as idiossincrasias da cultura do gado dentro a
Umbanda foi o do boiadeiro. Usam chapéu de couro e, por vezes, laços e calças de couro. Quando
carimbam seus pontos, entremeiam de gemidos que lembram aboios. Dançam como se cavalgassem
cavalos.
Caboclo é boiadeiro
É morador da chapada!
Baiano Chapéu de Couro
Ele é o rei da boiada!
Aiô-ô-ô-ô-ô! Aiô-ô-ô-ô-ô!
Caboclo bebeu Jurema,
Jurema não embriagou!
118
Na folha da Juremera
Caboclo se levantou!
Aiô-ô-ô-ô-ô! Aiô-ô-ô-ô-ô!
Que lamento triste
Que tem um boiadeiro!
De ver todo o seu gado
Espalhado no rochedo!
Getu Ê! Getu Á!
Corda de laçar meu boi!
Getu Ê! Getu Á!
Corda de meu boi laçar!
Getu Ê! Getu Á!
Na boiada falta um boi!
Getu Ê! Getu Á!
O patrão mandou buscar!
Getu Ê! Getu Á!
Quem vem lá sou eu!
Quem chegou fui eu!
Quando as cancelas bateu,
Boiadeiro eu sou!
Ah, eu vim de tão longe,
O meu cavalo malhado,
Meu chapéu na cabeça,
Tocando a minha boiada!
4.10 ZÉ PILINTRA
119
Uma das figuras mais paradigmáticas da Umbanda cearense é o caboclo
Pilintra. Sua importância e popularidade na terra são tantas, que resolvi dedicar um tópico
exclusivamente a ele.
Encontrei na literatura especializada várias referências que relacionavam a
entidade com a figura do malandro carioca. Em campo, verifiquei essa relação se confirmar
somente nalguns dos terreiros que conheci, apesar de ter encontrado alguma referência do
mito em todos eles. Os que destoavam da classificação malandra apresentaram Seu como
um mestre bruto do sertão: conhecedor das folhas e das raízes, usando chapéu de palha e
bengala, mancando de uma perna, fumando cigarro de palha. Nestes casos, seus pontos eram
carregados de referências nordestinas, chegando até a mencionar cidades pelo qual a mestre
teria passado em vida, como vemos abaixo:
Aê, Palmeiral dos Índios
Aê, Boqueirão de Ara
Ele é Zé pilintra
De Pernambuco
Caboclo pra trabalhar
Na linha da encruza
Os inimigos vai levar!
Nos casos em que a identificação com a malandragem se fazia, o caboclo
incorporava com movimentos faceiros. Era como cortejar as damas que estivessem no
terreiro durante sua passagem e dançar sambando ou ensaiando passos de gafieira. Nestes
casos, seus pontos faziam referências a lugares consagrados da boemia carioca e os hábitos
que coloriram o cotidiano do típico boêmia durante as primeiras décadas do século XX, tempo
ao qual a figura do malandro geralmente é referida.
Aê, Praça Onze!
Aê, Praça Mauá!
Seu Zé Pilintra bebe marafo,
Roda no pé e tira onda!
120
De madrugada quando vou descendo o morro,
A nega pensa que eu vou trabalhar.
Eu boto meu baralho no bolso,
Meu cachecol no pescoço.
E vou pra Barão de Mauá!
Mas trabalhar, trabalhar pra quê?
Se eu trabalhar eu vou morrer
Noto que estas últimas situações ocorrem quando o terreiro ou o pai-de-santo
tiveram algum contato com a Umbanda carioca durante seu percurso dentro da religião. O que
me leva a reforçar a tese de quê os mitos da Umbanda seguem a estética do herói civilizador e
que a religião é um sistema extremamente permeável a absorção dessas linguagens locais.
Sustenta a gira Zé,
Que eu já cheguei!
Eu sou de Mina,
Sou mourão que não bambeia
Eu venho de Mina, vou passar para Nagô!
Oi abalou! Abalou! Abalou!
4.11 OS CIGANOS
Outro fato histórico que não passou despercebido pela religião foi a migração
cigana para o Brasil (ou pelo menos a representação que se tem desse fato). Assim como nas
histórias, os ciganos da Umbanda são um povo nômade, que vivem em cabanas e andam em
caravanas pelo mundo. Seguem de perto o estereótipo da tribo alegre que realiza festividades
ao redor das fogueiras doas acampamentos, regadas a vinho, marcadas pelo toque do pandeiro
e do violino. As mulheres e alguns homens quanto são videntes letrados nos mais diversos
tipo de oráculos, desde o baralho até a quiromancia.
121
Ganhei uma barraca bela
Foi a cigana quem me deu
O que é meu é da cigana
O que é dela não é meu
Oi, a Cigana Suerê
Suerê, Suerá
Ô, minha mãe!
Ô, minha mãe!
Não maltrate essa cigana!
Jogo baralho e leio a mão!
Lá nas sete encruzilhadas
vou vencer toda questão!
Louvado seja deus!
Louvado seja meu senhor!
Aqui chegou Rei dos Ciganos
Saravá Umbanda de Babalaô!
Cigano Zarô
na paz de Oxalá
Cigano Zarô
A força é Deus quem dá!
O que fizera, de ti, Jerusalém?
Cidade tão bonita!
Hoje eu vou girar o Sol
Gira a Terra e giro o mar
Quem chegou foi o Cigano
Das Colônias do Pará!
Meu pai me disse que eu era
Um príncipe nobre!
122
Um príncipe nobre que baixou pra trabalhar!
Leio o passado, o presente e o futuro!
Um príncipe nobre das colônias do Pará!
Ah, eu vou girar!
4.12 A LINHA DE EXU
Émile Durkheim (Op. Cit.) definiu magia como conjunto de crenças e práticas que
têm como efeito a interpenetração dos planos sagrado e profano. A sua esfera compreendem
performances que podem ser praticadas de forma particular sem prejuízo, não dependendo da
existência uma coletividade de fiéis para lograr êxito, ao contrário da religião.
Dentro da Umbanda não figura mais representativa dos domínios da magia que
o Exu. Habitantes de um plano intersticial, capazes de se situarem entre o mundo sobrenatural
e o terreno, seu trabalho é assunto cercado de mistérios, perigos e, consequentemente,
precauções. Para se ter idéia, o cruzo de exu, via de regra, é o último a ser tomado e sua
incorporação é algo para uns poucos iniciados (geralmente com um tempo relativamente
longo dentro da religião). Essas precauções e cautelas que se deve ter com os exus são
constantemente lembradas em pontos, que soam como alerta para os perigos inerentes ao trao
com estas entidades.
Exu não brinca!
Exu não é brincadeira!
Meio-dia, Exu plantou bananeira!
Meia-noite, bananeira deu cacho!
A banana amadureceu,
Exu plantou bananeira embaixo!
Cuidado com ela!
Ela é um perigo
Ela é Pomba-Gira,
123
Mulher de sete maridos!
Seu culto tem relação estreita com os lugares da passagem, como a encruzilhada, a
estrada, a porta da rua, o cemitério, a hora da meia-noite (também chamada de hora da
virada)... Como, a exemplo, menciona o ponto:
Deu meia-noite!
Cemitério treme!
Catacumba racha!
E defunto geme!
Ah, eu também quero ver
Caldeirão sem fogo ferver!
Em Portugal, tantos as estradas, quanto fundação de algumas vilas são
consagradas ao Diabo. Muitas práticas mágicas e os rituais de feitiçaria (às vezes
historicamente herdados da cultura celta ou árabe, por exemplo) também são relacionadas a
ele ou a algum santo com quem tenha um contato mais estreito (como, por exemplo, São
Bartolomeu) (SANTO, 1990). A superposição desses elementos somada ao clássico
preconceito etnocentrista da época colonial fez com que o mito do Exu fosse relacionado ao
do Diabo no sincretismo. Relação ainda lembrada na Umbanda por diversos pontos:
Subi uma calçada bem alta,
Dei uma gargalhada,
Mandei ver quem é
É ela, Maria Padilha
Dona Pomba Gira
E Seu Lucifér
Abre as porteiras do Inferno
Pra Besta Fera passar
Sendo eu uma Maria Padilha
Sendo eu a mulher do Diabo
124
Em meu cavalo
Cheguei montado
Das catacumbas de Jerusalém!
Ferrabrás! Ferrabrás!
É o cavaleiro do Satanás!
São sete velas roxas!
São sete castiçais!
Já chegou o Diabo Loiro
Eu sou irmão do Satanás!
Eu também já fui anjo,
Filho de Deus Nosso Senhor!
Eu desci ao Inferno,
Por ordem do Criador!
De cartola e bengala,
Meu pai era mercador!
Eu me chamo Antônio
E o homem é:
Sete encruzilhadas ele é de fé!
Exu que veio do lodo
Minha palavra não volta atrás!
Exu é o Tiriri!
Sou enviado de Satanás!
Exu que tem duas cabeças
Ah, ele faz sua gira com fé!
Ai uma é Satanás no Inferno!
E outra é Pomba-Gira de fé!
125
O portão do Inferno estremeceu!
As almas correu pra ver que é!
Era o Seu Sete Catacumbas na encruza,
Conversando com Seu Lucifér!
Por conta de seu antagonismo com relação ao que é considerado santo e celestial,
se proíbe que, na gira de exus se pronuncie o nome de Deus, a não ser para reforçar esse
antagonismo, como é o caso do ponto do Exu da Cruz:
Não conheço esse teu Deus!
Nem tampouco o teu Jesus!
Na virada da ladeira
Eu me chamo Exu da Cruz!
Por tanto, o pedido de licença feito pelas entidades na linha de exu (“Daí-me a
permissão!”), não é respondido da forma habitual - “Dada por Deus e a Virgem da
Conceição!” - mas com a frase: “Na força da linha!”
Por conta da sua ligação com a rua, essas entidades trabalham voltadas para a
porta da saída e não para o altar, como é costume dos espíritos que baixam nas outras linhas.
Chamados também de povo da rua ou linha da esquerda, sua gira é feita com as lâmpadas do
terreiro apagadas. A casa, a luz e a direita são domínios reservados aos outros espíritos.
Esse antagonismos (luz-trevas, direita-esquerda, casa-rua, Deus-Diabo) gerou uma
série de interpretações do panteão umbandista a partir de uma outra dicotomia: bem-mal. A
literatura clássica reforça essa idéia quando, ao descrever exu, localiza-o em plano moral
hierarquicamente mais atrasado em relação às outras entidades.
São espíritos de seres humanos cujas biografias terrenas foram plenas de práticas
anti-sociais. É nesse modelo que todas os personagens de moralidade questionável,
como as prostitutas e os marginais, são acomodados. Para resumir, o bem conta
com entidades do bem, que são os caboclos, os pretos-velhos e outros personagens
cuja mitologia fala de uma vida de conduta moralmente exemplar (PRANDI, 2008).
Creio que esta leitura é fruto de relatos de informantes que identificam exu como o
“pagão a ser batizado”. Ou seja, uma figura que precisa de reza para poder evoluir e expiar as
faltas morais que cometeu quando em vida. Entretanto, o que encontrei em minha experiência
de campo foi algo sensivelmente diferente...
Em minha leitura Umbanda é território polifônico, onde não um princípio ético
126
universal que possa orientar toda ação (seja ela humana ou “divina”). A pluralidade de seu
panteão faz com que várias éticas coexistam num mesmo plano. E não é pelo fato de serem
princípios éticos diferentes que sejam antagônicos ou necessariamente estejam alocados num
continuum hierárquico de “mais evoluído” e “mais atrasado”. Portanto, não é toda entidade da
direta que segue os princípios da ética da renúcia como os pretos-velhos fazem. Os índios,
por exemplo, são regidos por um estica da sobrevivência. Não carregam em suas
personalidades a humildade nem a docilidade do povo de Congo. Na luta pela vida na selva,
podem até flechar os inocentes, como deixam claro em vários pontos:
Atira! Atira! Atira!
Eu atirei pro mar!
Atira! Atira! Atira!
Eu atirei pra matar!
De forma análoga, Ogum segue uma ética de guerra. Uma espécie de Lex Talionis
umbandista, onde o “Olho por Olho! E dente por dente!” é representado pela espada em
punho, pronta para cortar a cabeça dos que cruzarem o caminho.
As Crianças de Sombra são insubordinadas, irrequietas e teimosas (muito
distantes do ideal da “obediência evoluída”). São rancorosas, podendo “descontar” um
desafeto de maneira traiçoeira, se assim quiserem. São danadas (Palavra oriunda de
“danação”! Isto é: “maldição”.) e encapetadas (De “Capeta”!) e endiabradas (De “Diabo”!).
O espírito de aventura e de alegria dos marinheiros não deixa espaço para
disciplina da abnegação, nem a mortificação da carne.
Da mesma forma, creio que exu segue um princípio ético diferente, que vou dar
nome aqui de ética da faca sobre a mesa. Resolvi dar esse nome por duas razões... A primeira
delas é a comparação que feita por meus informantes, mais de uma vez, com o instrumento.
Diziam que exu era uma faca na mesa: pode servir para cortar o pão que vai à boca, pode
servir para furar o corpo de alguém, vai depender da intenção da mão que a segura. A segunda
é que não registrei nenhum relato que equiparasse exu com uma potência maligna ou mesmo
moralmente atrasado. Para ilustrar, cito o ponto:
Ó, que pessoal tão mal
127
É o povo do Exu!
Exu tá fazendo o bem, oi ganga!
Tão pensando que é o mal!
As entidades masculinas que ocupam esta linha, incorporam com expressão
sisuda. O corpo do médium se curva para a frente, os braços contorcem para as costas e os pés
para dentro. A postura arqueada para a frente simboliza a ligação das entidades com a terra e
em nada lembra a passividade dos pretos-velhos. Pelo contrário: os movimento que o corpo
em transe adquirem mais parecem de animais que de seres humanos. O tipo de serviço ao qual
são designados varia muito de acordo com a entidade: desde limpar e descarregar um fiel a
“fazer a passagem” de alguém.
Coveiro lá do pé da serra
Lá do pé da serra
Do Cemitério do Maranhão!
Eu girando e os contrários vou levando
E vou sepultando no Cemitério do Maranhão!
Ele é na linha de mouro!
Eu desgraço!
Exu abre meus caminhos!
Exu abre meus caminhos!
Exu vai me ajudar!
Lá nas sete encruzilhadas,
Dando a sua gargalhada,
Exu vai me ajudar!
Aê, Veludo!
Lá na mata deu um berro!
Arrebentou cerca de arame!
Arrebentou portão de ferro!
128
Os exus femininos são chamados pombas giras ou lebaras. São conhecidas pela
sua vaidade e sensualidade exacerbadas. Quando em vida, dizem ter sido mulheres muito
ligadas à sexualidade pelos mais diversos motivos. Algumas foram prostitutas da beira do
cais, outras amaram homens casados, outras ainda foram donas de prostíbulos, houve também
as que morreram de amor ou abandonaram uma vida de posses para seguir uma paixão
sincera, fugindo de casamentos arranjados. Por conta dessas histórias as quais são ligadas, o
tipo de serviço mais comum a que são chamadas são os trabalhos amorosos. Quando em
terra, caminham faceiras pelo terreiro, como se desfilassem. Dançam de forma sensual,
sacolejando os quadris e dando longas e altas gargalhadas. Usam saias (mesmo quando na
cabeça de um homem) e bebem de champanhe a licores, bebidas que geralmente lhes são
servidas em taças.
Rasgaram minha blusa
Rasgaram minha saia
É por isso que me chamam
Rapariga da gandaia!
Rapariga é aquela que rola na esteira!
Rapariga é aquela que dança gafieira!
É cuicoá! É cuicoím!
Rapariga bebe cana quando a coisa tá ruim!
Na calada na noite,
Meu amor me chama:
“Venha cá meu bem! Venha cá meu bem!”
“Diga que me ama!”
Estou sofrendo por esse amor!
Venha cá amiga e me faça um favor!
A vim de longe
Pra trazer a proteção
A Leviana vai trabalhar
e vai botar na tua mão!
129
Macho, se não me querias...
Se não me querias por que tu me alisaste?
O macho disse que ia me deixar,
Eu alisei o macho e ele resolveu ficar!
Coração ferido!
Coração ferido!
Coração sem amor!
Coração que engana a gente
Coração que mata a gente
De ciúme e de dor!
Eu vou pedir a ela!
(Vou pedir a ela!)
Para ela me ajudar!
Eu vou dar uma cerveja
Eu vou dar outra cerveja
E um cigarro pra fumar!
Ele me bateu: eu mandei prender!
Arrependida, mandei soltar!
Que coisa boa! Que coisa boa!
Que coisa boa é cheiro do coroa!
Dói!
Dói, Dói, dói, dói!
Uma amor faz sofre,
Dois amor faz chorar!
Amar a um seria bem melhor
Do quer amar a dois
Na força do Catimbó!
130
Capitão deitou na cama da Paulina!
E depois do capitão:
O batalhão!
Coronel deitou na cama da Paulina!
E depois do coronel:
Todo o quartel!
Coronel e o capitão
deitou na cama da Paulina!
Mas o seu coração
É de um ladrão!
A mulher pra ser direita
Tem que ter nove maridos:
Quatro embaixo da cama,
Cinco no mato escondido!
Você me traiu!
(Você me traiu!)
Você me enganou!
(Você me enganou!)
Eu fiquei com pena,
Quando você chorou!
Eu te dei amor!
(Eu te dei mor!)
Eu te dei paixão!
(Eu te dei paixão!)
Agora vai sair da lama
Quando voltar pra minha mão!
Ele me bateu. eu mandei embora!
Arrependido, pediu pra voltar!
Eu não volto não! Eu não volto não!
131
Quem bate esquece, quem apanha não!
Das entidades da direita que costumam passar também na linha de exu, os mais
frequentes são mestres e ciganos que, dada sua condição liminar acabam se aproximando, por
afinidade, dos domínios do exu. Abaixo cito como exemplo alguns pontos do Zé Pilintra
trabalhando na esquerda:
Saravá Seu Zé Pilintra!
Cabra do chapéu virado!
Na direita ele é maneiro,
Na esquerda ele é pesado!
Na encruzilhada caboclo me chama!
Na encruzilhada pronto eu a trabalhar!
Na encruzilhada o caboclo é o Zé Pilintra!
Na encruzilhada todo mal eu vou levar!
Quem tiver raiva do Zé,
Que não possa se vingar,
Bote a corda no pescoço
E dê a ponta pra eu puxar!
O martelo do Pilintra
Não martelo! É marreta!
Cadê o bravo daqui?
Que eu quero passar-lhe a prensa!
132
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seguindo o modelo do “catolicismo à brasileira” (ZALUAR, Op. Cit.) e das
religiões africanas no geral, a Umbanda se constituiu como uma religião adogmática, onde
uma boa relação com as divindades é uma preocupação mais premente do que a moral. Não
que não haja uma preocupação moral, muito pelo contrário: como vimos, diversas asceses
comportamentais que devem ser observadas na prática da religião. Contudo, se trata de algo
secundário, derivado dos imperativos passados pelas entidades na orientação de como querem
seus filhos.
A possibilidade de ressemantização das identidades étnicas no teatro de possessão
fez do panteão um verdadeiro palco dos tipos brasileiros. A dinâmica da incorporação tornou
possível preservar experiências coletivas dos grupos nas figuras mitológicas e organização
deste num panteão fez com que extrapolassem o próprio grupo de origem e circulassem pelo
território nacional (e até fora dele, com o processo recente de transnacionalização da
Umbanda). Entre mouros, europeus, ciganos, negros e índios todos tiveram sua cota na
formação nacional reconhecida nos dramas mitológicos.
O recente processo de candombleização” das cerimônias no terreiro de Mãe-
Valkíria é apenas um reflexo tardio de um fenômeno que já se anunciava nos estados
brasileiros mais ao sul, desde as décadas de 50 e 60. Trata-se de uma modernização na busca
de construir seu espaço perante outras instituições e uma resposta às ofertas cada vez mais
plurais de um mercado mágico-religioso que se está em plena expansão.
Alguns elementos entram; outros (já sem uso) saem; outros ainda são
ressignificados, porém sem uma mudança radical da estrutura de culto. Admitindo-se que toda
religião é uma bricolagem de crenças preexistentes (PORDEUS JR., 2009), a Umbanda
somente se utiliza destas interritualidades para reafirmar sua condição desde o surgimento:
uma religião flexível e em constante construção.
Chego ao fim deste trabalho com a certeza de quê se trata de uma agulha no
universo de possíveis interpretações do Brasil. Como é intuito da ciência humana que suas
proposições não sejam definitivas, ceio que é meu dever apontar algumas possibilidades
futuras de investigação para as quais meus olhos apontaram no decorrer da pesquisa.
133
Quando me propus a fazer um estudo de caso, estava me comprometendo a
abordar a religião a partir da ótica de quem estava dentro. Portanto, meus sujeitos de pesquisa
foram todos iniciados, mesmo que não tivessem uma ligação direta com o terreiro que elegi
como lócus de pesquisa. Entretanto, era de se esperar que, em vários momentos, minha
investigação apontasse para esferas que se situassem no fora e que, por isso mesmo, tivessem
uma importância cabal nas feitura da Umbanda. Primeiro porque estruturam as condições de
possibilidade de emergência da própria religião. Em segundo lugar, interferem nos rumos das
transformações pelo que ela passa, sejam alterações na forma ritual, seja no lugar social que a
religião ocupa. Como não pude abordar mais detidamente esse lado de fora (nem era minha
intenção), me contentei em tocá-lo na medida em que se fazia necessário para o
esclarecimento dalguma parte de meu trabalho que ficaria por demais hemértica, caso não o
fizesse. Contudo, dada a sua importância, é sua investigação que me parece mais interessante
neste momento final.
As representações sociais que se tem da Umbanda são as mais variadas. Em meu
trabalho, decerto que toquei nalgumas. Minha experiência diz que, nas vezes em que a
imprensa midiática tomou a religião como tema central de notícia, produziu alguns efeitos
bastante interessantes e que merecem ser estudados algum dia. Uma idéia para uma pesquisa
futura, neste sentido, é ver que tipos de enunciados os jornais impressos produziram na
religião num determinado período de tempo (provavelmente os modelos e o teor das notícias
vão variar largamente). Se foi produzido algo parecido até o momento, não é meu
conhecimento.
Outro tema original seria reconstruir essa representação da religião a partir da
ótica do cliente. que estes possuem interesses na religião totalmente diversos dos iniciados
e, ao mesmo tempo, complementares e de fundamental importância para a própria
sobrevivência da religião.
Por último, gostaria de chamar atenção mais uma vez para meu local de pesquisa:
o bairro Pirambu. Como dito, trata-se de um local que tem uma história intimamente
relacionada com os chamado movimentos políticos populares. Movimentos estes que
costuravam, nos bastidores, o cenário religioso do bairro. Pois variavam de comunistas-
ateístas a grupos com lideranças oficias da Igreja Católica.
134
6 BIBLIOGRAFIA
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Sabiá: Contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult/ Museu do Ceará/
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Pero Rio de Janeiro, Pero nunca mais ti vê, Amaru Mambirá”: O Ceará no tráfico
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do Ceará. Mimeo.)
VAN GENNEP, A. Os Ritos de Passagem: Estudo sistemático dos ritos da porta e
da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade,
iniciação, ordenação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc. Petrópolis: Vozes,
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Vozes, 1974.
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ZUMTHOR, P. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: HUCITEC, 1997.
138
7 GLOSSÁRIO
Aparelho - Maneira dos espíritos se referirem ao médium incorporado.
Armanda - Morada mitológica dos orixás.
Atuado - Diz-se do médium incorporado.
Baia - Ritual público da Umbanda. Principal ritual.
Baixar - Ato de incorporação (da ótica do espírito).
Bandeira - Dinheiro. Também chamado de acossi, ouw-ouw, felebé e aqué.
Burro - Veja aparelho.
Cambone - Pessoa que secunda o pai/mãe-de-santo nos trabalhos.
Cambono - Forma aportuguesada para cambone.
Candomblé - Religião de matriz africana de culto aos orixás.
Cavalo - Veja aparelho.
Congá - Altar umbandista.
Contrário - Obstáculo, de qualquer natureza, à conclusão de um trabalho ou de um projeto
de vida.
Carrego - Impurezas espirituais.
Coité - Cuia.
Corrente - Dois sentidos possíveis: a) as duas filas, divididas por sexo, que se formam no
início de cada baia.
Demanda - Malefício mágico praticado voluntariamente.
Desenvolvimento - Treinamento da incorporação
Egbome - “Irmão mais velho” Título conferido à pessoa que passou pelos rituais de sets
anos de iniciação no Candomblé.
Ekê - Mentira, fingimento.
Em terra - Diz-se do espírito incorporado.
Exu - Orixá da comunicação. Mensageiro dos outros orixás.
Falange - Veja linha.
Gira - Veja baia.
Guia - Pode adquirir dois significados distintos : a) colares de miçangas coloridas que os
iniciados utilizam; b) espírito protetor de um determinado médium.
Guma - Veja terreiro.
139
Homem-de-anel - Médico.
Homem-de-saias - Padre.
Iabá - “Grande Mãe” Termo utilizado para de referir aos orixás femininos em geral.
Iansã - Deusa dos ventos e das tempestades. Primeira esposa de Xangô.
Iemanjá - “Mãe daqueles que são peixes” Deusa do mar e das cabeças.
Linha - Categoria utilizada para classificar os espíritos na Umbanda de acordo com a função
que estão exercendo naquele momento.
Macacos, Os - Polícia.
Mandina - Veja mironga.
Médium - Indivíduo que possui capacidades de contato com o mundo dos espíritos.
Mironga - Mistério, segredo, magia.
Murrinha - Azar, esgotamento. Estado geralmente associado a alguma carrego.
Nana - Iabá mais velha. Mãe de Omolu. Deusa da lama do fundo dos rios e senhora da
morte.
Obaluayê - Veja Omolu.
Obsessor - Veja Quiumba.
Obsidiado - Diz-se do indivíduo sob a influência de um obsessor.
Ogum - Deus do ferro, da tecnologia e da guerra.
Omolu - Deus da cura e das doenças (sobretudo a varíola e a tuberculose e modernamente,
associado também a AIDS). Divindade ligada à terra.
Ori - Cabeça.
Orixá - O guardião da cabeça”. Divindades cultuadas no Candomblé e, de forma menos
intensa, na Umbanda.
Oxaguian - “O comedor de Inhame” Qualidade de Oxalá jovem e rebelde.
Oxalá - O Grande Pai Branco. O mais poderoso orixá do panteão afro-brasileiro. Deus da
origem e da criação.
Oxalufan - Qualidade de Oxalá velho e doente.
Oxóssi - Caçador das matas. Orixá da comida e da fartura.
Pai/Mãe-de-Santo - Autoridade máxima de um terreiro e dirigente dos rituais na Umbanda.
Pemba - Giz ritual multicolorido.
Pito - Cigarro.
Ponto Cantado - Orações ritmadas proferidas pelos espíritos incorporados.
140
Ponto Riscado - Desenhos mágicos feitos no chão com pemba.
Ponto Virado - Classe de ponto riscado que tem como objetivo mandar uma demanda de
volta ao seu feitor.
Quebranto - Mal-olhado.
Quimbanda - Linha ritual de Umbanda que trabalha principalmente com os exus.
Quiumba - Espírito atrasado, inoportuno. Sua presença é considerada parasitária.
Rosário das Almas - Guia dos Pretos-Velhos.
Terreiro - Denominação dada aos templos das religiões de matriz africana de modo geral.
Trabalho - A categoria mais ampla dentro dos rituais umbandistas. Abarca todo ato
cerimonial dentro da religião.
Toco - Banco.
Umbanda - Maior e mais difundida religião de matriz africana no Brasil. Fortemente
influenciada pelo Espiritismo Kardecista.
Veleiro - Vela.
Xangô - Deus dos raios e dos trovões. Orixá da justiça.
Xirê - Designação para a sequência das canções r ritmos em homenagem aos Orixás, que
são cantadas no início de uma cerimônia de Candomblé.
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