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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Ana Kelly de Almeida
PAUL RICŒUR: entre hermenêutica
e crítica das ideologias
Natal/RN
2007
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1
Ana Kelly de Almeida
PAUL RICŒUR: entre hermenêutica
e crítica das ideologias
Dissertação de Mestrado, apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
da universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Orientador: Professor Dr. Abrahão
Costa Andrade, para obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Natal/RN
2007
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Divisão de Serviços Técnicos
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede
Almeida, Ana Kelly de.
Paul Ricouer: entre hermenêutica e crítica das ideologias / Ana Kelly de Almeida. – Natal, RN,
2007.
79 f.
Orientador: Abrahão Costa Andrade.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Filosofia.
1. Paul Ricoeur – Dissertação. 2. Hermenêutica – Paul Ricoeur – Dissertação. 3. Crítica – Paul
Ricoeur – Dissertação. I. Andrade, Abrahão Costa. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
III. Título.
RN/UF/BCZM CDU 140(043.3)
3
ANA KELLY DE ALMEIDA
PAUL RICŒUR: entre hermenêutica e crítica das ideologias
Aprovada em 31/10/2007 Nota: 10,0
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof. Dr. Abrahão Costa ANDRADE (UFRN)
(Presidente)
__________________________________________
Prof. Dr. Anazildo Vasconcelos da SILVA (UFRJ)
(Membro)
__________________________________________
Prof. Dr. Daniel DURANTE (UFRN)
(Membro)
__________________________________________
Prof. Dr. Jaimir COMTE (UFRN)
(Suplente)
4
A todos os leitores que, sem
pressa, sabem como apreciar
um texto filosófico.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Deus e à Deusa.
À minha mãe, Izaíra e minhas irmãs, Cíntia, Cristina e Klésia, mulheres de ações
grandiosas, obras vivas que me encorajam e me inspiram. E ao meu cunhado Jairo,
grande incentivador.
Aos meus sobrinhos, Dálete, Gleyson, Glenderson, Álefe, Zaine e Gilson, marcas
preciosas de nossa história familiar.
A todos os meus amigos e professores que direta ou indiretamente me ajudaram na
produção deste trabalho. Em especial ao Prof. Daniel pelas observações sobre física
quântica e minha irmã Cíntia pela ajuda técnica.
Ao meu orientador, Prof. Abrahão, que sabiamente soube como acolher uma idéia e
como fazê-la funcionar, indicando o melhor caminho para a construção deste
trabalho.
Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRN, pela oportunidade
concedida, bem como pelos serviços da secretaria, especialmente, pelo trabalho de
Albanir Aquino.
6
“Um grande filósofo é antes de
tudo aquele que perturba a
problemática anterior – que
retalha as questões principais,
segundo novas perspectivas”.
(Paul Ricœur)
7
RESUMO
Este trabalho expõe o pensamento de Paul Ricœur em relação ao debate
contemporâneo entre a hermenêutica e a crítica das ideologias. Procura mostrar,
neste sentido, a unidade existente entre texto e ação segundo a perspectiva
ricoeuriana. A proposta filosófica de Ricœur, afirma-se, está longe de qualquer
ecletismo, mas se caracteriza por um estilo dinâmico e inquietante, aqui explicado a
partir das analogias com o movimento das partículas subatômicas, da física
quântica, as quais ajudam a dispensar a idéia equivocada de compilação e
ecletismo, resultante de leituras superficiais de seus textos. Na verdade, este
trabalho é uma contribuição à construção de uma teoria da leitura do texto desse
notável filósofo.
Palavras chaves: Paul Ricœur. Texto. Ação. Hermenêutica. Crítica.
8
ABSTRACT
This work exposes the Paul Ricœur’s thought in relation to the contemporary
complaint between the hermeneutics and the ideologies’ criticism. It shows, in this
direction, the unity between text and action according to Ricœur’s perspective. The
philosophical view of Ricœur, It affirms, is far from any eclecticism, but if it
characterizes for a dynamic style, explained here from the analogies with the
movement of the particles, of the quantum physics, which help to excuse to the make
a mistake idea of compilation and eclecticism, resultant of superficial readings of its
texts. In deep, this work nothing more it is that a contribution to the construction of a
theory of the reading of the text of this notable philosopher.
Key-words: Paul Ricœur. Text. Action. Hermeneutic. Criticism.
9
SUMÁRIO
1INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10
2 UM ESTUDO SOBRE O ESTILO DE PENSAMENTO
DE PAUL RICŒUR ............................................................................................... .13
2.1 A DANÇA QUÂNTICA DO UNIVERSO............................................................. 13
2.2 UMA ANALOGIA ENTRE FÍSICA QUÂNTICA E ESTILO FILOSÓFICO.......... 23
3 PAUL RICŒUR: AÇÃO E TEXTO....................................................................... 45
3.1 ENTRE HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS............................... 45
3.2 A ESTRATÉGIA RICŒURIANA......................................................................... 62
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 75
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 77
10
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho, cujo objetivo é atinar para a unidade existente entre texto e
ação no debate contemporâneo sobre as relações entre Hermenêutica e Crítica das
Ideologias, a partir da perspectiva de Paul Ricœur, está composto de duas partes.
A primeira destas partes é um estudo sobre o estilo de pensamento de Paul
Ricœur, estudo julgado necessário porque não há nada mais suscetível de uma
atração pelo ecletismo do que a tentativa de aproximar essas duas correntes de
pensamento, tão díspares. Nós a realizaremos com o objetivo de contribuir para uma
teoria da leitura do texto filosófico ricœuriano. Para tanto, lançaremos mão de um
recurso que poderá parecer, à primeira vista, curioso: buscaremos estabelecer
analogias entre aquele estilo e alguns procedimentos da Física quântica, uma vez
que é no movimento do mundo das partículas subatômicas que encontramos um
exemplo notável, um modelo, mesmo, daquilo que visualizamos como sendo o estilo
fragmentário, porém singularmente coerente, do movimento do pensar de nosso
filósofo. A análise se limita, entretanto, a seus ensaios hermenêuticos, notadamente
àqueles do livro Do texto à ação (Ensaios de hermenêutica II, de 1986). É verdade
que, em um primeiro momento, pensamos em apresentar esta análise
cronologicamente; ou seja, desde 1950, quando o filósofo começava a desenvolver
a sua própria maneira de fazer filosofia, até 2004, quando publicou sua última obra.
Porém, o material ter-se-ia tornado demasiado e, então, optamos apenas pelos
ensaios, pois os entendemos suficientes para a demonstração de nossa proposta de
leitura. Esta, por sua vez, se deixa explicitar pela resposta à seguinte questão: Será
que Ricœur pode ser considerado, simplesmente, como um compilador do
pensamento alheio ou como um eclético, como proclamam alguns de seus críticos?
Apostamos que não. Mas, qual seria o problema em ser eclético? O problema não é
o ecletismo em si, que se diga logo, mas o entendimento da palavra como sendo
simples mistura, dando uma idéia de superficialidade e de preguiça mental, quando
não de fraqueza mesmo do pensamento. O termo “eclético”, com efeito, pode ser
facilmente confundido com as raízes do ecletismo intelectual brasileiro, explicada por
Holanda (1995). Buarque de Holanda chama a atenção para a formação desse
intelectual e de como ele se porta muito superficialmente, lidando com cópia de
idéias importadas, misturadas sem critérios e, principalmente, não verdadeiramente
pensadas. Porque, afinal, pensar uma idéia alheia é saber levá-la adiante. Ora, é
11
justamente saber levar adiante uma idéia alheia o que marca o trabalho Ricœuriano,
o qual se caracteriza por ser uma análise, sempre profunda e sugestiva, de uma
gama de teorias. Mas, no entanto, os textos que enfrentaremos apresentam fortes
indícios dessa possível compilação e desse ecletismo. Diríamos, todavia, que só
uma leitura superficial desses textos poderia nos levar a afirmar tal equívoco. Por
essa razão, com a ajuda do paradigma quântico, tentaremos apresentar Ricœur, não
como um filósofo eclético, categoria, em todo o caso, pobre, mas como portador de
um diálogo criativo e dinâmico com vários autores, demonstrando em seu estilo uma
generosidade intelectual que é também um convite a uma forma diferente de pensar,
forma demais próxima do tipo de movimento das partículas segundo a Física
quântica.
Assim, nossa primeira providência foi apresentar, de uma forma sucinta, o
mundo dançante das partículas subatômicas. A maneira como o fizemos não
poderia ser diferente, uma vez que fazemos parte do grupo de interessados leigos
em Física quântica. Para um físico quântico, o movimento é a base de tudo o que
existe. Por essa razão, os conceitos devem dançar como na realidade do micro
universo, formando infinitos pares de opostos que desafiam a nossa imaginação. O
paralelo entre o estilo ricœuriano e a Física quântica resultou da percepção de
diferentes pares opostos de conceitos lançados pelo movimento do pensar de nosso
filósofo, os quais funcionariam, na economia de seu texto, como aparecem, na
dança quântica do universo, os pares quânticos, ou seja, o mundo dançante das
partículas subatômicas. Neste, encontramos um mundo repleto de ritmo, movimento
e mudanças constantes; um mundo onde todas as partículas podem surgir como
combinação de outras; onde a realidade escapa ao enquadramento linear, causal e
mecanicista proposto pela ciência moderna; um mundo onde as coisas e os
acontecimentos anteriormente concebidos como entidades separadas pelo espaço e
pelo tempo são vistos agora como coisas e acontecimentos integralmente ligados.
Os físicos já explicaram que os padrões de comportamento das partículas
elementares são tão ligados que até mesmo em uma separação parece não haver
nenhuma distância entre eles. É como se eles se envolvessem numa espécie de
coreografia que desafia toda a nossa fantasia.
Ora, essa percepção é que nos ajudará a ver o texto de Ricœur de um modo
diferente do que viu a maioria dos leitores indispostos em relação ao seu estilo.
Assim, resolvida a questão do estilo, poderemos passar ao segundo capítulo do
12
trabalho e discutir mais livremente a temática mesma que os textos escolhidos nos
convidam a pensar, acolhendo a aparente dispersão de seu pensamento numa
estrutura capaz de divisar, nesta dispersão, não uma unidade, coisa que o próprio
Ricœur jamais disse possuir, mas o lugar de compreensão de seu estilo
fragmentário. Para isso, enfrentaremos, com gosto, o texto “A tarefa da
Hermenêutica”, que se encontra na obra Do texto à ação, de 1986. Nele, nosso
filósofo descreve a sua própria concepção do problema hermenêutico, mas de um
modo a passar a limpo com proveito toda uma pletora de pensadores:
Schleiermacher; Dilthey; Heidegger e Gadamer, autores pertencentes à chamada
tradição hermenêutica.
Mas, finalmente, e esta será a segunda parte de nosso trabalho, a
possibilidade de provar ser falso o alegado ecletismo de Ricœur é testada não mais
através da análise de vários autores que pertencem a uma mesma tradição, mas
através da análise ricœuriana de seu diálogo com duas tradições díspares, a
Hermenêutica, de Hans-Georg Gadamer, e a Teoria crítica das ideologias, de Jügen
Habermas. Aqui teremos a oportunidade de mostrar como é possível, para Ricœur,
considerar a especificidade e a legitimidade das reivindicações desses autores
diametralmente opostos, mas de um modo que o que se propõe não é mais o
conflito de duas tradições, mas uma forma ricœuriana de lidar com o objeto das
Ciências Sociais, a ação social como texto, e o texto como ação social, que é na
verdade o que está em jogo, como veremos, no debate entre a Teoria crítica das
ideologias e a Hermenêutica das tradições.
13
2 UM ESTUDO SOBRE O ESTILO DE PENSAMENTO
DE PAUL RICŒUR
2. 1 A DANÇA QUÂNTICA DO UNIVERSO
Antes de iniciar nossa tentativa de aproximação entre o estilo de Paul Ricœur
e a forma de percepção do movimento desenvolvida pela Física quântica, parece
necessário fazer, ainda que com brevidade, uma exposição sobre a realidade
quântica. De acordo com Greene (2004), a forma quântica de apreender a realidade
pode ser considerada uma das maiores reviravoltas a que o conhecimento humano
moderno foi submetido. Com ela, uma série de enigmas, antes de decifração
improvável, pôde ser resolvida, bem como pôde explicar-se uma variedade de dados
dos domínios atômicos e subatômicos, que só haviam aparecido recentemente.
Enquanto a intuição humana e a sua expressão por meio da física
clássica supõem uma realidade em que as coisas são
definitivamente ou de uma maneira ou de outra, a mecânica
quântica descreve uma realidade em que por vezes as coisas
flutuam em um estado nebuloso, em que são em parte de uma
maneira e em parte de outra. (GREENE, 2004, p. 26)
Depois da teoria quântica, os cientistas entenderam que a realidade não se
limita à leitura dos seus detectores, pois ela é maior que a soma total das
observações feitas em determinado momento. No entanto, eles continuam
empenhados em buscar explicações que possam determinar com precisão como as
leis fundamentais da física quântica, “para compreender como a estranheza mágica
do mundo atômico e subatômico se comporta de modo a possibilitar a formação de
objetos macroscópicos” (GREENE, 2004, p. 236), podem combinar-se com as leis
clássicas que explicam a experiência comum de cada um de nós.
A mecânica quântica está baseada em uma equação descoberta em 1926
pelo físico alemão Erwin Schrödinger. Mas a única coisa que é realmente necessário
saber a respeito é que ela toma como dado inicial a forma de uma onda de
probabilidade em determinado momento do tempo, e permite que determinemos a
forma da onda em qualquer outro momento do passado ou do futuro. Um texto, por
exemplo, que mostrasse uma onda de probabilidade que começa de uma maneira e
14
termina de outra pode ser passado do fim para o começo, mostrando uma onda de
probabilidade que começa de outra maneira e termina da maneira que antes era a
inicial, sem que haja meios de determinar que uma das evoluções seria a correta e a
outra a errada. Ambas as soluções seriam igualmente válidas, representando
maneiras igualmente sensatas em que as coisas poderiam evoluir.
Greene (2004) explica que as ondas de probabilidade não são coisas que
podemos ver diretamente. Porque elas só podem ser descritas através das
equações matemáticas ou da imaginação dos cientistas. Por isso, os únicos meios
de acesso a elas são indiretos, ou seja, por meios dos processos de mediação.
Greene (2004) continua dizendo que a formação-padrão da mecânica quântica
descreve o desdobramento dos fenômenos através de dois estágios: no primeiro, a
onda de probabilidade de um objeto como um elétron evolui de acordo com a
equação descoberta em 1926. Essa equação mostra que a forma da função de onda
modifica-se suave e gradualmente, de modo semelhante ao que acontece com as
ondas de água que atravessam um lago de um lado ao outro. No segundo estágio,
tomamos contato com a realidade observável pela medição da posição do elétron e,
ao fazê-lo, provocamos uma mudança forte e abrupta na forma da função da onda.
Ora, a função de onda do elétron é diferente das ondas de água ou de som que
conhecemos. Ao medirmos a posição do elétron, a sua função de onda dá um salto
e entra em colapso, caindo à zero em todos os lugares onde a partícula não está e
alcançando a probabilidade de 100% no lugar específico em que a partícula seria
encontrada por meio da mediação.
De tudo isso, pode-se asseverar o seguinte: o primeiro estágio é
matematicamente rigoroso, totalmente isento de ambigüidades e inteiramente aceito
pela comunidade dos físicos. O segundo é, ao contrário, algo que tem mantido os
físicos em certo estado de perplexidade, colocando problemas, enigmas e
paradoxos. Sobre o colapso, Greene (2004, p. 238) escreve o seguinte:
O colapso é um aditivo, introduzido depois que Schrödinger
descobriu a equação, com o fim de levar em conta o que os
pesquisadores observam na realidade. Se, por um lado, uma função
de onda pura e sem colapsos incorpora a estranha idéia de que uma
partícula está em diferentes lugares, por outro lado, os
pesquisadores nunca observam esse fato: sempre encontram a
partícula em um lugar definido; nunca a vêem parcialmente em um
lugar e parcialmente em outro; a agulha do seu instrumento de
15
medição nunca fica flutuando em uma mescla difusa de diferentes
valores possíveis.
O que Greene escreve é válido para as nossas costumeiras observações do
mundo, uma vez que nunca vemos que um livro esteja em dois lugares ao mesmo
tempo; nunca observamos o prédio do CCHLA (Centro de Ciências Humanas,
Línguas e Arte) em dois lugares simultâneos; nunca vemos um animal que esteja
vivo e morto em um mesmo momento. O que podemos fazer é imaginar
possibilidades para todas essas coisas. Então, a noção de colapso está de acordo
com a nossa experiência ao postular que o ato de medir induz o abandono de um
lugar quântico, por assim dizer, e traz para a realidade uma de suas múltiplas
potencialidades.
A medição é um enigma na física quântica. Porém, apesar do segundo
estágio da teoria permanecer envolto em mistério, os dois estágios podem prever as
possibilidades para a medição de um resultado ou outro. Essas previsões são
confirmadas através de uma repetição exaustiva de experimentos por parte dos
cientistas. Todavia, o insistente desconforto é sempre presente, uma vez que o
problema quântico da medição não se relaciona apenas com os limites da mecânica
quântica, mas também com a sua universalidade. Greene (2004, p. 239-240) o explica
da seguinte forma:
O enfoque do estágio um/estágio dois introduz uma visão entre o
que está sendo observado (um elétron, um fóton, ou um átomo, por
exemplo) e o pesquisador que faz a observação. Antes que o
pesquisador entre em cena, as funções de onda evoluem, dóceis e
felizes, de acordo com a equação de Schrödinger. Mas quando ele
se intromete nas coisas para fazer uma medição, as regras do jogo
mudam de repente. A equação de Schrödinger é posta de lado e o
colapso característico do segundo estágio toma o seu lugar.
Contudo, não há diferença entre os átomos, os prótons e os elétrons
que constituem o pesquisador e o equipamento que ele usa e os
átomos, prótons e elétrons que ele estuda, por que motivo haveria
uma diferença na maneira pela qual a mecânica quântica os trata?
Se a mecânica quântica é uma teoria universal, que se aplica a
tudo, sem limitações, o observador e o objeto deveriam ser tratados
exatamente da mesma maneira.
Greene (2004) comenta que Niels Bohr pensava diferente. Para ele, os
pesquisadores são diferentes das partículas elementares. Eles são feitos das
mesmas partículas, só que maiores. Dessa forma, as regras mudam por causa do
16
tamanho de cada um. Mas, se é assim, onde fica a fronteira? Como dois conjuntos
de regras interagem quando o mundo grande e cotidiano confronta o mundo
minúsculo dos átomos, como é o caso das medições? Na física, as propostas para a
medição são múltiplas e implicam concepções bem diferentes da realidade. Um
enfoque, por exemplo, propõe abandonar a visão de que as funções de onda são
características objetivas da realidade quântica e as observa como uma
representação do que conhecemos sobre a realidade. Um outro enfoque nega que
as funções de onda entrem em colapso, afirmando o que se pode traduzir por uma
interpretação de muitos mundos. Aqui, o conceito do universo sofre uma
amplificação e passa a incluir inumeráveis universos paralelos, ou seja, múltiplas
versões do nosso universo. Assim, tudo o que a mecânica quântica prevê que possa
ocorrer, mesmo que com probabilidades mínimas, efetivamente ocorre ao menos em
um dos exemplares do universo. Uma terceira proposição explica que as funções de
onda são intrinsecamente instáveis. Portanto, o colapso ocorre de modo espontâneo
e aleatório em freqüências muito baixas. Em média uma vez a cada bilhão de anos.
Para cada um desses e outros enfoques há defensores e detratores, fazendo com
que o problema quântico da medição permaneça insolúvel.
Zohar (2006), os físicos ainda não se entenderam inteiramente a respeito das
mudanças conceituais da nova física. Por isso, eles terminam se refugiando em uma
linguagem menos matemática, por assim dizer. Ora, é exatamente através do
esforço para produzir uma nova estrutura conceitual que está o verdadeiro desafio
da ciência atual. Mas, é muito difícil deixar para trás antigos hábitos intelectuais,
uma vez que continuamos impregnados em uma forma de pensar sobre a realidade.
A idéia de movimento, por exemplo, já pareceu um conceito bem mais simples na
física clássica. Todavia, falar em nível quântico da realidade é o mesmo que
desfazer todo o movimento contínuo pelo tempo e pelo espaço. A física quântica é
uma física de pacotes (quanta) e pulos descontínuos como explica Zohar (2006, p.
31)
:
A nova descrição do movimento como uma série de saltos
descontínuos foi uma das mudanças conceituais mais fundamentais
que emergiram da teoria quântica. Foi como substituir o suave fluir
da vida real por fotogramas como os que compõem as unidades
individuais de um filme. De fato, a teoria mostrava que todo
movimento – mesmo o que percebemos como suave e contínuo –
está estruturado da mesma forma que a sucessiva apresentação de
17
fotogramas. E assim como ocasionalmente um filme pode “saltar”
dentro de um projetor, também as partículas subatômicas podem
saltar “vários fotogramas para frente” pulando os estágios
intermediários que pareciam o caminho mais natural. As analogias
que se pode fazer com os processos mentais e culturais são
inumeráveis.
No mundo quântico a realidade escapa ao enquadramento linear, causal e
mecanicista proposto pela ciência moderna. Isso quer dizer que coisas e
acontecimentos anteriormente concebidos como entidades separadas pelo espaço e
pelo tempo são vistos agora como coisas e acontecimentos integralmente ligados.
Os aspectos aqui são múltiplos. Por isso, o que acontece na realidade vai depender
de como e quando a vemos. Os físicos já explicaram que os padrões de
comportamento das partículas elementares são tão ligados que até mesmo em uma
separação parece não haver nenhuma distância entre eles. É como se eles se
envolvessem numa espécie de dança que desafia toda a nossa imaginação.
A propósito, no prefácio de A dança do cosmos, de Félix Weber, Herwing
Schopper afirma que, ao decifrar os segredos da natureza, somos forçados a aceitar
resultados, e até mesmo modos de pensar, que contrariam nossa experiência
cotidiana e chegam, por vezes, a parecer absurdo. Interpretar esses segredos tem
sido um dos resultados mais impressionantes das realizações do intelecto humano.
Muito embora esses resultados sejam acessíveis a um pequeno círculo de pessoas.
Schopper diz que o autor conseguiu dar uma contribuição muito importante com
vistas à construção de uma ponte entre o mundo científico e os leigos interessados.
(WEBER, 1995) A apresentação descontraída de Weber, também, contribuiu para o
desenvolvimento deste capítulo ao demonstrar, de uma forma bem simples, o
mundo dançante das partículas que não podemos experimentar através dos
sentidos.
De acordo com Weber (1995), quanto mais progressos são feitos pelas
pesquisas científicas, maior é o número das questões que surgem. Pois, tentar
descobrir as respostas é fruto da criação livre da inteligência humana. Essa criação,
por sua vez, transmite esclarecimentos úteis para a compreensão dos eventos
dentro de nós e à nossa volta. Perguntar, por exemplo, do que é composta a matéria
do universo, tem sido uma busca sem fim, uma vez que a suposição de que cada
coisa tem de ser composta de outras provoca uma interminável série de perguntas e
respostas.
18
Weber (1995) chega a admirar-se com a espantosa quantidade de conceitos
produzidos pelos filósofos na antiguidade, reconhecendo que grande parte de suas
idéias são comprovadamente modernas. Demócrito (1973), por exemplo, acreditava
que tudo – inclusive ele mesmo – era formado por um enigmático conjunto de
átomos, ou seja, minúsculos grãos de matéria, totalmente invisíveis à percepção
humana. No entanto, a idéia de matéria indivisível e de expansão no espaço
terminou criando uma contradição. E, mais tarde, as experiências mentais de Zenão
de Eléia (1973) levaram às mesmas contradições. Quer dizer, como os átomos
podem ser indivisíveis e ainda assim se expandir no espaço?
Os atomistas estavam convencidos que os átomos ocultavam o mistério do
cosmos. Muito embora não soubessem explicar o “como”. Todavia, podemos afirmar
que a resposta dupla dos antigos nos colocou diretamente no campo da moderna
física das partículas elementares: os quarks. Os quarks constroem, juntamente com
os léptons, todo o universo. Cada uma dessas partículas elementares possui uma
antipartícula, podendo ser considerada como uma partícula adversária. Por exemplo,
cada quark possui um antiquark, bem como todo lépton possui um antilépton. A
antipartícula apresenta características opostas às da partícula que lhe corresponde.
Assim, quando uma partícula for negativa a outra será positiva. Weber (1995) diz
que podemos imaginá-las como partículas que retrocedem no tempo, movendo-se,
portanto, do futuro para o passado. Porém, isolada, uma antipartícula não possui
nenhuma chance de sobreviver, podendo ser destruída mais cedo ou mais tarde.
Essas partículas são infinitamente divisíveis, muito embora seja impossível separá-
las. Isso acontece porque elas nunca andam sozinhas, podendo até mesmo formar
trio quando em construções muito especiais. O autor explica da seguinte forma:
Tomemos um par construído de um quark e de um antiquark e
tentemos separá-lo. Puxamos as duas partículas brutalmente em
sentidos opostos. Quando imaginamos ter conseguido desmanchar
a união, ficamos subitamente com dois pares quark/antiquark diante
de nós, onde só havia um. Os dois novos pares também não se
separam de seus parceiros, mas são novamente divisíveis em pares
iguais. Podemos continuar essa brincadeira ad infinitum... (WEBER,
1985, p. 21, grifo do autor)
Weber declara que o mundo quântico é muito esquisito. Por isso, suas leis
são totalmente novas. A palavra quanta é explicada como pacotes de energia. Esse
conceito foi formulado em 1900 por Max Planck quando constatou que os átomos,
19
ao vibrarem, comportam-se de maneira inteiramente diferente do que havíamos
suposto até então. Eles não transmitem sua energia com continuidade, ou seja, em
um compasso regular. Átomos estimulados irradiam sua energia intermitentemente,
em pacotes. O tamanho desses pacotes depende da cor da luz que ilumina o átomo.
Cores iguais, portanto, representam um mesmo tamanho.
Em 1905, Albert Einstein descreveu com precisão a natureza quântica da luz,
dando às partículas de luz o nome de fótons. Ora, cem anos antes de Einstein, o
inglês Thomas Young demonstrou que a luz é composta de ondas. Apesar do
paradoxo, ninguém pode contestar Einstein ou Young. Pode parecer absurdo que
algo possa ser ao mesmo tempo, partícula e onda, uma vez que a primeira se
caracteriza como algo que possui volume e a segunda como algo que,
simplesmente, se espalha no espaço. As características das ondas e das partículas
parecem se excluírem mutuamente. Porém, ambas são necessárias para que se
compreenda a luz. Nas palavras de Weber (1985, p. 25):
As reações características das ondas e as reações características
das partículas não são características da luz em si, mas resultam da
maneira como interagimos a ela. De acordo com a orientação que
damos às nossas experiências, a luz se revela ora como fenômeno
ondulatório, ora como um fenômeno corpuscular.
Weber lembra que quanto mais os físicos tentavam entender esse micro-
mundo, mais confuso ele se tornava. Por isso, tiveram de aceitar como fato um “não
isso, mas também aquilo”. Isso porque as partículas quânticas não possuem
significado nenhum como unidades separadas. Para o físico Niels Bohr, isoladas,
essas partículas nada mais são que formas abstratas. Pois, suas características só
podem ser definidas e observadas quando estabelecem efeitos mútuos com outras
partículas. Dizendo de outra maneira, no mundo quântico não existe elemento
isolado e, sim, uma complicada rede de inter-relações entre as múltiplas partículas,
representando uma contínua dança da energia.
A multiplicidade das partículas foi sendo descoberta paulatinamente. Por
exemplo, nos anos 1920 acreditava-se que os átomos eram formados unicamente
de prótons e elétrons. Na década de 30 surgiram os nêutrons, os quais são
destituídos de carga e totalmente instáveis. Por um curto período de tempo essas
partículas foram consideradas como os elementos básicos do universo. Porém, a
continuidade das investigações científicas terminou demonstrando que isso não era
20
verdade. Ora, havia muitas coisas incompreensíveis, como o fenômeno da
radioatividade. Esse fenômeno, inclusive, forneceu uma prova definitiva da dupla
natureza atômica, demonstrando que os átomos de substâncias radioativas não só
emitem diversos tipos de radiação como, igualmente, transformam-se em átomos de
substâncias inteiramente diversas. Weber (1995, p. 41) explica essas
transformações através da experiência de um casal de físicos dizendo o seguinte:
O casal de físicos Frederic e Irène Joliot-Curie fez uma estranha
descoberta em 1934: quando bombardearam alumínio com raios
alfa, ele se transformou em fósforo. Seja como for, não se tratava do
fósforo comum, com 15 prótons e 16 nêutrons, na forma como ele
aparece na natureza. O fósforo dos Joliot continha 15 prótons e
apenas 15 nêutrons, e era radioativo.
A imagem da natureza se completava com duas forças: a força da gravidade
que atua, indiferentemente, sobre tudo o que existe no universo; e a força
eletromagnética que atua sobre a matéria carregada. A energia eletromagnética é
uma das forças mais pesquisadas na natureza e da sua união com a física quântica
surgiu a eletrodinâmica quântica. Weber (1995) explica que as partículas
subatômicas vivem repletas de atividade. Essa atividade pode ser compreendida
como uma brincadeira de esconde-esconde entre os elétrons e os fótons. É nesse
contexto que se pode falar de partículas virtuais, ou seja, iguais em essência e
efeito, porém inexistentes. Isso porque partículas virtuais possuem uma vida muito
curta, não podendo existir por si só. Atualmente, sabemos que existem milhares de
partículas virtuais cercando os elétrons. E, Tal como os elétrons, os prótons e os
nêutrons brincam de esconder; de preferência com as partículas virtuais, também
chamadas de mésons.
Foi, ainda, na década de 30 que o inglês Paul Dirac descobriu a antipartícula
ou antipróton. Para os físicos, a antimatéria leva uma vida muito misteriosa. Por isso,
tentaram produzi-la artificialmente para melhor estudá-la. Essa tentativa fez com que
eles entendessem que o surgimento das novas partículas advinha das colisões, nas
quais a energia era liberada em frações de segundos. A experiência provou,
também, que quanto mais profundamente quisermos penetrar a matéria para
conhecê-la, tanto mais energia será necessária. Essa conclusão mostrou aos
cientistas que o minúsculo não era tão simples como se pensava. Weber (1995, p.
56) continua dizendo o seguinte:
21
Quando um próton e um antiproton se encontram pode acontecer
que apenas as cargas se anulem mutuamente, mas não as massas.
Surge, assim, o protonium. O resultado não é, pois, a eliminação
recíproca e a radiação em forma de prótons, mas o surgimento de
partículas massivas e neutras.
Depois do protonium surgiu o antineutron, o neutrino, o antineutrino, os
mésons, os múons, os píons, etc. Ninguém mais poderia duvidar de que a cada
partícula correspondia uma antipartícula. Essas descobertas demonstraram que o
mundo subatômico é repleto de ritmo, movimento e mudanças contínuas. A
multiplicidade na física quântica parecia um reflexo da botânica para os
pesquisadores por causa de seus estranhos e diversos nomes. Weber explica que
essa diversidade das partículas acrescentou às teorias científicas uma quantidade
considerável de caos. Pois, cada partícula possui, praticamente, outra massa, outra
carga, outro spin, outra duração de vida, etc. Isso acontece porque todas as
partículas podem se transformar em outras, podendo ser criadas da energia ou
desfazerem-se em energia. Em razão disso, pode-se dizer que são destrutíveis e
indestrutíveis ao mesmo tempo. O que é um paradoxo. Mas, a situação ficou, ainda,
mais confusa quando os físicos descobriram que as partículas virtuais, também,
emitiam outras partículas virtuais.
O micro-mundo se revelou um verdadeiro caleidoscópio. As
partículas nunca permaneciam simplesmente as mesmas, mas
transformavam-se incessantemente em outras partículas e vice-
versa. [...] O que de fato ocorre é uma verdadeira dança cósmica:
todas as partículas podem surgir como combinação de outras. Para
o aparecimento de cada combinação há uma determinada
probabilidade, que pode ser calculada por meio da teoria quântica.
(WEBER, 1985, p. 65-66)
Em 1953, os pesquisadores encontraram algumas partículas excêntricas que
possuíam um intervalo de vida inimaginavelmente curto: um centésimo de
bilionésimo de segundo. Eles designaram essas partículas de efêmeras devido ao
comportamento que elas assumiam. Para os físicos, essas partículas eram
portadoras de uma nova característica da matéria: a estranheza. Muito embora, em
sua maioria, as partículas não sejam estranhas. Dez anos depois, os quarks foram
descobertos, ou seja, as partículas básicas dos mésons e dos bárions. Nesse
22
mesmo período foi descoberta uma nova força: a força cromática, a qual tem relação
com as cores. A teoria dos quarks só fez aumentar o número de possibilidades das
partículas. Porém, foi com base em sua mistura que os cientistas conheceram as
características dos mésons e dos bárions bem melhor. É bom lembrar que há vários
tipos de quarks, bem como de mésons.
Em 1974, os cientistas descobriram uma nova partícula altamente estranha.
Tratava-se de um méson três vezes mais pesado que um próton e que possuía uma
vida bem maior que os outros estudados até então. Essa nova partícula foi batizada
de gipsy (cigana): a famosa dama com o charme secreto. Os físicos diziam que a
partícula era composta de charme e anticharme, por isso deram a essa combinação
o nome de cigana. As pesquisas continuaram e em 1976 surgiu o tau, um elétron
ultrapesado. Depois, os físicos postularam novas partículas e produziram o épsilon.
Weber (1995, p. 78-79) conclui dizendo o seguinte:
Ao procurarem conhecer a estrutura básica da matéria, em primeiro
lugar os pesquisadores deram de encontro com as moléculas. Em
seguida, descobriram que a molécula é composta de átomos, que
por sua vez se compõem de núcleos e de elétrons. Os próprios
elétrons parecem destituídos de infra-estrutura. Há, no entanto,
partículas estreitamente relacionadas com eles: o múon e o tauon,
bem como os neutrinos correspondentes, todos eles classificados
sob o conceito geral de léptons.
Seriam os quarks e os léptons partículas fundamentais? O fato é que outras
partículas continuam sendo descobertas pelos pesquisadores através dos seus
aceleradores de partículas em todo o mundo científico. Mas, a lição mais importante
que podemos aprender, até aqui, é compreender que a idéia de unificar forças,
aparentemente, diferentes é algo tradicional na física. Por isso, os pesquisadores
continuam se aventurando na exploração do mundo das partículas elementares. E,
ninguém sabe quando e onde isso vai parar. Acontece que eles permanecem
fazendo perguntas, elaborando respostas e fazendo perguntas novamente. Isso
ocorre devido à própria dinâmica do mundo subatômico e da capacidade
extraordinária de pensar dos seres humanos.
23
2.2 UMA ANALOGIA ENTRE FÍSICA QUÂNTICA
E ESTILO FILOSÓFICO
A interpretação da física quântica é, ainda, um problema no mundo científico.
Por isso, este trabalho não esgota questões epistemológicas ou históricas. Mesmo
porque não teríamos condições de fazê-lo, nem este seria o lugar adequado. Há,
todavia, dois aspectos principais do micro-mundo que ficam em evidência na
construção das analogias entre as partículas subatômicas e o estilo de pensamento
de Ricœur, a saber, a dinâmica do mundo quântico e a dualidade da matéria.
Dizemos que a idéia da dança conceitual se ancora no movimento das partículas do
mundo quântico. Ora, os entrecruzamentos conceituais produzidos por Ricœur,
como possibilidades de novas investigações e descobertas, mimetizam, como
veremos, o mundo dançante das partículas do mundo subatômico.
A mimesis, aqui, não deve ser pensada como aquela que seria alvo fácil da
crítica platônica, mas como a que receberia de Aristóteles sua adesão: a atividade
mimética deve ser entendida no seu sentido dinâmico de produzir a representação
da realidade quântica. A natureza dupla da matéria descoberta no mundo quântico
revela o centro de toda a hermenêutica ricœuriana: a polivalência conceitual. Essa
polivalência mostrou-se na física através de uma verdade totalmente absurda: na
dupla composição da luz, como onda ou como partícula. Apesar dessa polivalência,
os físicos entenderam que todas as explicações são necessárias para que se
compreenda a luz. E não poderia ser diferente porque nesse micro-mundo não há
elemento isolado e, sim, uma rede de inter-relações. Seguindo esse filão, pode-se
afirmar que o trabalho intelectual de Ricœur pode ser visto também ele como
dançante, pois faz aflorar conceitos polivalentes e estranhos entre si, mas que, por
sua própria disparidade, dão o que pensar.
Aprendemos que as partículas subatômicas vivem em constante movimento.
Na verdade, Heisenberg (1995) descobriu que há mais energia à disposição das
atividades do micro-mundo do que se poderia supor. Isso faz da dança cósmica do
universo uma divertida brincadeira de esconde-esconde. É nesse contexto que
surgem o que os físicos denominaram de partículas virtuais. Ora, essas partículas só
existem por empréstimo, além de possuírem um período de vida extremamente
curto. Pode-se pensar o mesmo dos conceitos ou, pelo menos, deveríamos.
24
Finalmente, nessa dança ninguém se movimenta sozinho. Pois, há sempre
um par de opostos ou um trio, o qual é construído de uma forma especial, formando
associações infinitamente divisíveis. Nessa construção, cada partícula se apóia em
um adversário, fazendo da dança uma brincadeira sem fim. O caminho reflexivo não
é diferente para Ricœur, uma vez que o apoio do adversário se torna imprescindível
no prosseguimento das investigações e possibilidades do pensamento filosófico.
Como se verá, os assuntos tratados por Ricœur vão se unindo e se dividindo, tais
quais as duplas adversárias do mundo quântico, dando a idéia de uma dinâmica
conceitual que atravessa toda a construção do pensamento do autor. Esses pares
são formados por conceitos que se imbricam, formando diferentes concepções
através de novas questões que serão levantadas, uma vez que os conceitos se
mostram abertos para dançar.
No texto “A tarefa da Hermenêutica”, que se encontra na obra Do texto à
ação, de 1986, o filósofo Paul Ricœur descreve a sua própria concepção do
problema hermenêutico, mas de um modo a passar a limpo com proveito toda uma
plêiade de pensadores: Schleiermacher; Dilthey; Heidegger e Gadamer, autores
pertencentes à chamada tradição hermenêutica. Segundo Ricœur (1989), a história
desta tradição é dominada por duas preocupações, uma partícula e uma
antipartícula, diríamos: as preocupações epistemológicas, ou seja, o esforço para se
constituir em saber de reputação científica; e as preocupações ontológicas, segundo
as quais compreender deixa de aparecer como um modo de conhecer para se tornar
um modo de ser daquele ser que compreende. A primeira se caracteriza por um
movimento de desregionalização da hermenêutica, que assim busca um princípio
fundamental que possa lhe dá azo de universalidade; a segunda, por um movimento
de radicalização, pelo qual se opera um deslocamento que a afasta da
epistemologia e mais a aproxima de uma ontologia fundamental, que chegará a
tomar o próprio ser como linguagem.
O movimento de desregionalização começou com o esforço de Friedrich
Scheiermacher para destacar um problema geral da atividade de interpretação que
sempre se empreende em textos diferentes. Portanto, uma hermenêutica geral exige
duas coisas: elevar-se acima das explicações particulares; e discernir as operações
comuns a todos os ramos da hermenêutica. É preciso uma elevação acima da
particularidade dos textos e da particularidade das regras. Isto implica em destacar o
ato de compreender como central ao exercício hermenêutico.
25
A problemática geral da compreensão, com efeito, levantada por
Schleiermacher, constituiu-se em uma reviravolta semelhante à revolução kantiana
em relação às ciências da natureza. O programa hermenêutico de Schleiermacher,
Ricœur o expõe de um modo que ele aparece marcado por uma dupla filiação, um
quark e um antiquark: a romântica e a crítica. A primeira se caracteriza pelo seu
apelo a uma relação viva com o processo de criação. A segunda pela vontade de
elaborar regras de compreensão universalmente válidas. O problema era relacionar
duas formas de interpretação: a interpretação gramatical que se apóia nas
características do discurso que são comuns a uma cultura; e a interpretação
psicológica, a qual se dirige à singularidade da mensagem do escritor.
A interpretação gramatical é considerada como objetiva e negativa, pois
abarca as características lingüísticas distintas do autor (objetiva), indicando os
limites da compreensão (negativa). Portanto, o seu valor crítico abrange apenas os
erros que dizem respeito ao sentido das palavras. A interpretação psicológica
pretende atingir a subjetividade da pessoa que fala, esquecendo a língua. Por isso, é
chamada de positiva, pois atinge o ato do pensamento que produz o discurso.
Então, temos aqui um quark, positivo; e um antiquark, negativo. Em Schleiermacher,
e é isto que Ricœur não pode aceitar,
não apenas uma exclui a outra, mas cada uma exige talentos
distintos, como o revelam os respectivos excessos de uma e de
outra; o excesso da primeira origina o pedantismo, o excesso da
segunda, a nebulosidade. (RICŒUR, 1986, p. 88)
Nos últimos textos de Schleiermacher (1999), o caráter divinatório da
interpretação salienta o seu caráter psicológico. Porém, a interpretação psicológica
não se limita a uma afinidade com o autor, implicando motivos críticos na atividade
de comparação. Quer dizer, uma individualidade só pode ser apreendida por
comparação e por contraste. Ricœur explica que é complicado separar as duas
interpretações por causa dos pares de opostos que são formados: gramatical e
psicológico; divinação e comparação. No entanto, essas dificuldades podem ser
superadas através da ligação de uma obra com a subjetividade do autor e, na
interpretação, pelo deslocamento da tônica da investigação das subjetividades
escondidas para o sentido e a referência da própria obra.
26
Antes disso, Ricœur (1989) quer levar, ainda, mais longe o problema da
dualidade das “partículas conceituais”: a aporia central da hermenêutica – explicar e
compreender – através do alargamento provocado por Dilthey, o qual subordina a
problemática da interpretação à problemática histórica. Tudo se passa, para nosso
Autor, como se Dilthey tivesse cortado a dupla de quark e antiquark
shleiermacheriana, e, ao privilegiar a interpretação psicológica, criasse uma nova
dupla: explicar (a natureza) e compreender (o espírito). Dilthey, entretanto,
permanece no debate epistemológico, ainda que levante uma questão fundamental:
como é possível o conhecimento histórico, ou, como as ciências do espírito são
possíveis?
Ora, para uma hermenêutica que se encontra afastada de uma explicação da
natureza e rejeitada pela intuição psicológica, aquela oposição apresentará
conseqüências consideráveis. De acordo com Ricœur, é do lado psicológico que
Dilthey procura o traço distintivo do compreender. Pois, toda a ciência do espírito
pressupõe uma capacidade primordial: a de se transpor para a vida psíquica do
outro, ou seja, o ser humano não é radicalmente um estranho para outro, uma vez
que ele dá sinais da sua própria existência. Portanto, compreender esses sinais é
compreender o ser humano.
Em Dilthey, diz nosso autor, podemos nos libertar do conceito hegeliano do
espírito de um povo, para nos reencontrarmos com Kant, melhor dizendo, de onde
Kant havia parado: pois a chave da crítica do conhecimento histórico, ausente no
kantismo, e que Schleiermacher apenas divisou, é procurada ao lado do fenômeno
fundamental da conexão interna pela qual a vida do outro se deixa discernir e
identificar. É produzindo formas que a vida se exterioriza em configurações estáveis,
tornando possível o conhecimento do outro.
Sentimento, avaliação, regras de vontade tendem a depositar-se
num adquirido estruturado, oferecido à luz da decifração de outrem.
Os sistemas organizados que a cultura produz sob a forma de
literatura, constituem uma camada de segundo plano, edificada
sobre este fenômeno primário da estrutura teleológica das
produções da vida. (RICŒUR, 1986, p. 91)
Dilthey se apoiou em Husserl para dar consistência à noção de conexão
interna. Husserl (2002) afirmava que o psiquismo se caracterizava pela
intencionalidade, ou seja, pela propriedade de visar um sentido susceptível de ser
27
identificado. Pode-se dizer que a partir de Dilthey é preciso reconstruir a vida
psíquica através da interpretação dos signos fixados pela escrita ou por qualquer
outro processo de inscrição equivalente à escrita. Porém, essa reprodução ou
exigência de objetivação exige normas diferentes. A objetivação começa
extremamente cedo, desde a interpretação de si mesmo: pois todo o conhecimento
de si é mediado através de signos e obras. Porém, a interpretação de si mesmo se
torna uma tarefa mais difícil que a dos outros, uma vez que a compreensão de si
mesmo se realiza através dos sinais que o sujeito dá à sua própria vida, os quais
são remetidos pelos outros. Por essa razão, a vida aparece como um dinamismo
que se estrutura a si mesmo. Na opinião de Ricœur, a fusão entre o conceito de
dinamismo e o de estrutura em Dilthey se traduz na generalização do conceito de
hermenêutica. Pois as significações adquiridas, os valores presentes e os fins
longínquos estruturam, constantemente, a dinâmica da vida conforme as três
dimensões temporais do passado, do presente e do futuro.
O homem instrui-se só pelos atos, pela exteriorização da sua vida e
pelos efeitos que ela produz nos outros. Ele só aprende a conhecer-
se pelos meandros da compreensão que é, desde sempre, uma
interpretação [...] compreender-me é percorrer o maior trajeto, o da
grande memória que retém o que se tornou significante para o
conjunto dos homens. A hermenêutica é o acesso do indivíduo à
história universal, é a universalização do indivíduo. (RICŒUR, 1986,
p. 93)
Assumindo as aparências do espírito objetivo de Hegel (1992), a única
diferença entre a interpretação psicológica e a interpretação exegética prende-se ao
fato das objetivações da vida tender a depositar-se e a sedimentar-se em um
adquirido durável. É por essa razão que podemos encontrar os mundos
desaparecidos, uma vez que as sociedades criam os seus próprios órgãos de
compreensão ao criarem mundos sociais e culturais em que elas se compreendem.
Dessa forma, a história se torna o próprio campo hermenêutico. Mas pode-se
dizer que o empreendimento de Dilthey permanece psicológico na sua essência,
pois considera como alvo da interpretação, não o que o texto diz, mas aquele que
nele se exprime. O objeto da hermenêutica é, incessantemente, deslocado do texto,
do seu sentido e da sua referência para o vivido que nele se exprime. Ricœur (1986)
lembra que o conflito latente na obra de Dilthey é recolocado por Hans-Georg
Gadamer, a saber, o conflito entre uma filosofia da vida (um quark) e uma filosofia
28
do sentido (um antiquark). Essa dificuldade foi transformada por Dilthey na seguinte
proposição: a vida possui uma estrutura hermenêutica, ou seja, ela comporta em si
mesma o poder de se ultrapassar em significações.
Mas, de acordo com Ricœur (1986), afirmar que a vida faz a sua própria
exegese não torna compreensível que esta hermenêutica seja uma história. A
objetividade da vida reside em um encadeamento de obras que não é vivido por
ninguém. Pensar, pois, suas objetivações e tratá-las como dados, é pensar a própria
vida como espírito. Por isso, ele levanta a seguinte questão: a hermenêutica só é
possível como filosofia sensata através dos empréstimos do conceito hegeliano? Se
a resposta for positiva, pode-se dizer da vida o que Hegel diz do espírito, a saber,
que a vida apreende aqui a vida. Em outras palavras, que a vida só apreende a vida
pela mediação das unidades de sentido que se elevam acima do fluxo histórico.
Para Ricœur (1986), Dilthey indica a direção na qual o historicismo poderia ser
vencido por si mesmo, sem invocar coincidência triunfante com qualquer saber
absoluto.
Antes de continuar, porém, precisamos, já aqui, perguntar o que Ricœur fez
com Schleiermacher e Dilthey. Se, como sustentamos, não se trata de ecletismo,
então onde está a “dança cósmica” dos conceitos, que faria dele um pensador
quântico? A este respeito, necessário é dizer que ele escreve sobre uma
reorientação da discussão através de uma aporia que surge da própria reflexão
hermenêutica. Essa reorientação é, em sua opinião, de total importância para uma
discussão com as ciências do texto, da semiologia à exegese. A polivalência
conceitual será, pois, a causa do movimento de suas investigações. Porque, a
exemplo dos físicos, quando da descoberta da dualidade da luz através das teorias
de Young e Einstein, Ricœur entende que todas as explicações são necessárias
para que se compreenda o assunto. Por isso, as teorias apresentadas por ele se
caracterizam como elementos em conexão, em vista, porém, de um mesmo objeto, a
saber, um objeto de linguagem, seja a vida; a história ou o texto.
Para Ricœur (1986), com efeito, a primeira localidade que a hermenêutica
começa por escavar é a linguagem. Particularmente, a linguagem escrita. Ele diz
que a hermenêutica tem uma relação privilegiada com as questões da linguagem. E,
para provar essa afirmação, ele parte de um traço notável das línguas naturais, o
qual faz apelo a um trabalho de interpretação ao nível mais elementar e banal da
conversação: a polissemia; a saber, o fato das nossas palavras possuírem mais de
29
uma significação, quando consideradas em contextos diferentes. A polissemia pode
ser comparada ao “colapso”, na física. Pois, assim como o colapso traz para a
realidade uma de suas múltiplas possibilidades, a polissemia provoca a imaginação
prevendo possibilidades através de diferentes contextos.
A polissemia das palavras faz apelo, como contrapartida, ao papel
seletivo dos contextos conforme a determinação do valor atual que
revestem as palavras numa mensagem determinada, dirigida por um
locutor preciso a um ouvinte colocado numa situação particular. A
sensibilidade ao contexto é o complemento necessário e a
contrapartida inelutável da polissemia. (RICŒUR, 1986, p. 84)
O manejo dos contextos, explica, põe em jogo uma atividade de
discernimento que é a interpretação. Essa atividade consiste em reconhecer a
mensagem unívoca que o locutor construiu na base polissêmica do léxico comum.
Portanto, produzir um discurso unívoco e identificar esta intenção de univocidade na
recepção das mensagens é o primeiro e mais elementar trabalho da interpretação.
Mas a escrita recorta um domínio limitado no imenso círculo das mensagens
trocadas entre as pessoas. Para Wilhelm Dilthey, esse domínio é traduzido pelas
expressões da vida fixadas pela escrita. Ora, com a escrita, as condições da
interpretação direta pelo diálogo já não são preenchidas, isto é, a situação concreta
da conversa é sobrepujada pela sedimentação da escrita.
São, então, requeridas técnicas específicas para elevar a cadeia de
signos escritos ao discurso e distinguir a mensagem através das
codificações sobrepostas próprias da efetuação do discurso como
texto. (RICŒUR, 1986, p. 85)
É na elaboração das categorias do texto que ele prepara um caminho como
tentativa de resolver a aporia central da hermenêutica, ou seja, a alternativa
ruminosa entre explicar e compreender, antecedida no tempo pela dicotomia
deixada por Schleiermacher entre interpretação gramatical e interpretação
psicológica. O seu principal objetivo é fazer funcionar sem mútua exclusão duas
atitudes que a hermenêutica romântica tende a dissociar. Por isso, expressará, no
plano epistemológico, a reorientação da hermenêutica exigida pela noção de texto.
Esse objetivo nos remete, claramente, ao mundo das partículas subatômicas, as
quais se constituem, também, por uma anti-partícula que é considerada como
adversária. Quer dizer, para Ricœur, as duas atitudes não podem ser proveitosas se
30
tomadas separadamente. Por isso, como nos pares das partículas, ele “brinca” com
diferentes pares de conceitos através de vários autores.
Assim, o pressuposto de uma hermenêutica compreendida como
epistemologia, colocado por Dilthey, é, enfatiza Ricœur, posto em questão por
Heidegger (2004) e Gadamer (1992). Com eles surge uma nova questão, a saber,
qual é o modo de ser deste ser que só existe compreendendo? Em Heidegger
(2004), a interpretação está ligada ao esquecimento do ser. Em Ser e Tempo, com
efeito, este autor pergunta sobre o sentido do ser. Essa questão, todavia, é guiada
por aquilo que é procurado: a busca pelo sentido do ser indica o ser nas camadas do
sentido. Por essa razão, Ricœur explica que, em Heidegger, a teoria do
conhecimento é revolucionada por uma interrogação que a precede: o Dasein, esse
ser que nós somos, um ser no ser, designa o lugar onde surge a questão do ser. O
Dasein é um ser que compreende o ser. Portanto, como ser, possui em sua
estrutura uma pré-compreensão ontológica do ser. A compreensão prévia, desse
modo, engloba toda pesquisa, tanto a do cientista da natureza, quanto a do cientista
do espírito. Em outras palavras, o que foi colocado separadamente por
Schleiermacher anda agora de mãos dadas em Heidegger, ou seja, a explicação
como validação científica e a compreensão como especulação filosófica.
Mas, se a dicotomia entre explicar e compreender se desfaz em favor de uma
noção de compreender que engloba o explicar, a partir de Heidegger surge uma
oposição mais drástica entre fundação ontológica e fundamento epistemológico.
Ricœur (1986) explica que se o problema se encontra nos conceitos de base que
regem as regiões dos objetos particulares (como por exemplo: região-natureza,
região-vida, região-linguagem, região-história), a questão seria apenas sobre um
problema epistemológico. Porém, a função filosófica da fundação é bem diferente,
uma vez que ela visa destacar os conceitos fundamentais que determinam a
compreensão preliminar da região que fornece a base de todos os objetos temáticos
de uma ciência e que por ela orienta toda a investigação positiva.
O que é primeiro, filosoficamente, não é nem a teoria da formação
de conceitos em matéria histórica, nem a teoria do conhecimento
histórico, nem mesmo a teoria da história como objeto da ciência
histórica, mas a interpretação do sendo propriamente histórico
relativamente à sua historicidade (...) A hermenêutica não é uma
reflexão sobre as ciências do espírito, mas uma explicitação do solo
31
ontológico sobre o qual se podem edificar estas ciências. (RICŒUR,
1986, p. 97)
Se, em Dilthey, a questão da compreensão ligava-se ao problema do outro,
ou seja, de comunicação com o outro; se sua opção pela compreensão fazia-o ter de
escolher entre uma ciência do espírito e uma ciência da natureza, em Heidegger
(2004), com quem os fundamentos do problema ontológico devem ser procurados
na relação do ser com o mundo, o fim dessa dissociação entre explicar e
compreender, que outro pensador poderia ver como o fim de um problema, Ricœur,
de um modo quântico, percebe como o nascimento de um novo campo de questões,
a partir de uma nova distinção involuntariamente criada por Heidegger, a já referida
entre epistemologia e ontologia. Pois Heidegger, com efeito, jamais fora um
epistemólogo, e se resolveu o problema epistemológico de Dilthey, o fez largando-se
de qualquer afeição à lida epistemológica, para ele algo demasiado “ôntico”.
A melhor contribuição de Heidegger, todavia, está na idéia de que, para ele,
leitor de Nietzsche, o outro tanto quanto eu próprio, é-me mais desconhecido do que
qualquer outro fenômeno da natureza e, por essa razão, o ser-com heideggeriano se
caracteriza por um debate com o alguém (a gente), como o lugar privilegiado da
dissimulação, de modo que a ontologia da compreensão começa com o ser-em, o
ser-no-mundo, e não com a relação psicologizante entre um eu e um outro; porque
começar pelo ser-com seria duplicar a própria subjetividade, e perder o alcance
desta compreensão mais originária pela qual estar no mundo é já viver sob a égide
do compreender.
Para Ricœur (1986), o deslocamento do outro para o mundo é tão importante
quanto a transferência do problema do método para o problema do ser. Pois
Heidegger, ao mundanizar o compreender, despsicologiza-o. Esse deslocamento,
todavia, foi totalmente desconhecido nas interpretações existencialistas do filósofo.
Consequentemente, não ficou claro que as análises da preocupação, da angústia,
do ser-para-a-morte pertenciam a uma meditação sobre a mundaneidade do mundo,
e que elas visavam arruinar a pretensão do sujeito cognoscente a erigir-se em
medida de subjetividade. Ricœur diz que é necessário reconquistar, nesta
pretensão, a condição de habitante do mundo, a partir da qual há uma tríade:
situação – compreensão – interpretação.
32
É preciso encontrar-se (bem ou mal), encontrar-se aí e sentir-se (de
certa forma), antes mesmo de se orientar; se Sein und Zeit explora
certos sentimentos em profundidade, como o medo e a angústia,
não é para fazer existencialismo, mas para destacar, graças a estas
experiências reveladoras, uma ligação ao real, mais fundamental
que a relação sujeito-objeto; pelo conhecimento, nós colocamos os
objetos na nossa frente; o sentimento da situação precede este
frente-a-frente, impondo-nos um mundo. (RICŒUR, 1986, p. 98,
grifo do autor)
Nesse ponto, todavia, o compreender não chega a ser um fato de linguagem,
de escrita ou de texto. A compreensão deve ser descrita em termos de poder-ser.
De acordo com Ricœur, a primeira função do compreender é orientar-nos em uma
direção, dirigindo-se à apreensão de uma possibilidade de ser. Por isso,
compreender um texto significa revelar a possibilidade de ser indicada pelo texto.
Ora, antes da exegese de um texto, vem a exegese das coisas. Então, a
interpretação é, com efeito, um desenvolvimento da compreensão. Ricœur explica
que através da analítica do Dasein podemos entender o caráter da antecipação ou
pré-estrutura da compreensão que se caracteriza como a base do círculo
hermenêutico. Por isso, esse círculo é considerado a condição ontológica da
compreensão. Essa visão-prévia pertence à maneira de ser de todo o ser que
compreende historicamente. Pois a explicação de alguma coisa tem como
fundamento uma visão-prévia ou concepção-prévia.
Ricœur (1986) continua dizendo que na teoria do conhecimento a pré-
compreensão recebe a qualificação pejorativa de preconceito. Porém, em uma
ontologia fundamental esse preconceito só se compreende a partir da estrutura de
antecipação do compreender. Por essa razão, é preciso penetrar corretamente no
círculo, uma vez que ele encerra a possibilidade do conhecimento original. Ele,
também, nos lembra que na filosofia heideggeriana a questão da linguagem só é
introduzida depois da tríade: situação, compreensão, interpretação. Em Ser e
Tempo, a linguagem funciona apenas como articulação da explicação em
enunciados. Porém, a filiação do enunciado, a partir da compreensão e da
explicação, demonstra que a primeira função da linguagem não é a comunicação,
mas o fazer valer, a mostra, a manifestação. Ora, esse fenômeno tem as suas raízes
na constituição existencial da abertura do Dasein.
De acordo com Heidegger (2004), o discurso é a articulação daquilo que é
compreensão. Quer dizer, articulação significante da estrutura compreensível do ser-
no-mundo. Nesse contexto, podemos observar a passagem ao II Heidegger, o qual
33
parte diretamente do poder de manifestação da linguagem e não mais do Dasein. É
certo que desde Ser e Tempo, o dizer parece superior ao falar, possuindo como
determinação primeira o par ouvir/calar-se. Em Heidegger, compreender é ouvir.
Dizendo de outra maneira, a primeira relação que temos com a fala não quer dizer
que a produzimos, mas que a recebemos. Para Ricœur (1986), essa prioridade da
escuta marca a relação fundamental da fala com a abertura ao mundo e ao outro.
Nesse sentido, a lingüística, a semiologia e a filosofia da linguagem ficam ao nível
ôntico do falar e não atingem o nível ontológico do dizer.
Porém é justamente neste ponto que se torna mais explícita a nova aporia
deixada por Heidegger, a já referida quanto à distinção entre epistemologia e
ontologia. Para Ricœur, a questão que se deve fazer a Heidegger, neste limite, é:
como dar conta de uma questão crítica em geral, que deve recorrer àquelas
disciplinas, no quadro de uma hermenêutica fundamental? Para nosso Autor, é no
percurso de retorno que o círculo hermenêutico é fundado na estrutura de
antecipação da compreensão, no plano ontológico fundamental; porém, a
hermenêutica ontológica, sozinha, a ele parece incapaz de desenvolver essa
problemática de retorno. É preciso uma partícula adversária para prosseguir, a
exemplo do mundo quântico, mas esta deve brotar do interior da própria tradição em
foco.
Ora, para nosso Autor, essa nova aporia se transforma no problema central
da filosofia hermenêutica de Hans George Gadamer. Aqui como antes, tudo se
passa, para Ricœur, como se Gadamer, cortando o quark-antiquark de Heidegger, a
saber, a distinção entre epistemologia e ontologia, tomasse em mãos a partícula
ontológica que, entrementes, uma vez mais se bifurcaria. O incrível é que, nesta
nova bifurcação, o que está em jogo, do ponto de vista da história recente da
hermenêutica, é, justamente, para Gadamer, a tentativa de fazer justiça tanto a
Heidegger, quanto a Dilthey. O que resta-nos saber é se, de fato, Gadamer
consegue, na visão de Ricœur, realizar seu intento.
Com Gadamer, surge o embate entre experiência de pertença, no seio da
qual se vive em compreensão, e distanciamento alienante, com o que se faz teoria.
Esse “distanciamento” é alienante porque tenta se subtrair daquela experiência
incontornável; e é distanciamento, porque introduz no seio daquela experiência um
hiato mediante o qual a crítica pode viger. Para Gadamer (1999), a alienação é o
pressuposto ontológico que sustém a conduta objetiva das ciências humanas. Ele
34
explica que a metodologia destas ciências implica um distanciamento que exprime a
destruição da relação primordial de pertença pela qual cada ser é um ser-no-mundo,
In-der-Welt-Sein, como dizia Heidegger.
Essa posição, em Gadamer (1999), é desenvolvida, como se sabe, através de
três esferas nas quais ele divide a experiência hermenêutica: a esfera estética, a
histórica e a da linguagem. Na primeira delas, ele explica que a experiência de ser
apreendido pelo objeto artístico precede e torna possível o exercício crítico do juízo
estético, que Kant teorizou como juízo de gosto. Ora, o juízo de gosto, quer dizer
estético/reflexivo, não é lógico, mas fundado no sentimento de prazer e de
desprazer. Este juízo, para Kant, não gera conhecimento nenhum, pois é baseado
no sentimento do sujeito.
Na segunda esfera, Gadamer (1999) diz que a consciência de ser conduzido
por tradições que nos precedem é o que torna possível o exercício de uma
metodologia histórica ao nível das ciências humanas e sociais. Por isso, a tradição
se transforma em fonte importante de questionamento e verdade. De acordo com
Gadamer, pertencer a ela faz parte da condição existencial de ser histórico e finito
do ser humano.
Na última esfera que, também, percorre as duas anteriores, ele afirma que a
co-pertença às coisas ditas pelas grandes vozes dos criadores de discursos precede
e torna possível o tratamento científico da linguagem como um instrumento
disponível e a pretensão de dominar as estruturas do texto da nossa cultura. Dessa
forma, uma só e mesma tese percorre as três partes da obra de Gadamer, Verdade
e Método, que é a tese da antecedência da experiência (hermenêutica) sob o fundo
da ciência. Quer dizer, por dois pares de opostos.
De acordo com Ricœur (1986), a filosofia de Gadamer exprime a síntese de
dois movimentos, um quark e um antiquark, a saber, das hermenêuticas regionais
para a hermenêutica geral; e da epistemologia das ciências do espírito para a
ontologia. Gadamer marca o início do movimento de regresso da ontologia para os
problemas epistemológicos. O título de sua obra, Verdade e método, confronta o
conceito heideggeriano de verdade e o conceito diltheyano de método. Para isso,
realiza um longo percurso histórico que impôs a si mesmo antes de expor as suas
idéias. Mas Gadamer não queria voltar a cair na orla do romantismo. Pois, para ele,
o romantismo havia operado apenas uma reviravolta das teses sobre o iluminismo, e
não uma superação efetiva: nem deslocou a própria problemática nem mudou o
35
terreno do debate, desenvolvendo o seu combate em um terreno definido pelo
adversário, ou seja, o papel da tradição e da autoridade na interpretação.
Apesar do esforço de Gadamer, Ricœur (1986) faz as seguintes perguntas:
Será que a hermenêutica de Gadamer foi capaz de superar o ponto de partida
romântico da hermenêutica? Estaria correta a afirmação de que o ser humano
encontra a sua finitude através de um encontro no seio de suas tradições? Ricœur
diz que Dilthey permaneceu prisioneiro entre o conflito de duas metodologias, bem
como por não ter sabido como se libertar da teoria tradicional do conhecimento.
Portanto, o seu ponto de partida continuou sendo a consciência de si, dona de si
mesma, a reflexão. Em Gadamer (1999) há uma certa habilitação do preconceito, da
autoridade e da tradição que é dirigida contra os critérios da filosofia reflexiva.
Porém, a reabilitação do preconceito, da autoridade e da tradição foi dirigida contra o
reino da subjetividade, quer dizer, contra os critérios da reflexividade. Ricœur (1986)
diz que é, exatamente, essa polêmica anti-reflexiva que terminou contribuindo para a
reconquista da dimensão histórica sobre o momento reflexivo. Porém, Gadamer não
foi bem sucedido porque terminou reduzindo uma reflexão sobre o “ser para o texto”
em uma reflexão sobre o problema da tradução erigida em modelo do caráter de
linguagem do comportamento humano relativamente ao mundo.
Na visão de Ricœur (1986), Gadamer teria percebido que Dilthey não
compreendeu que a história nos precede, antecipando a nossa reflexão, ou seja,
que pertencemos à história antes mesmo de nos pertencer. Isso explica porque a
revolução diltheyana permaneceu epistemológica e porque o seu critério reflexivo
prevaleceu sobre a sua consciência histórica. Por isso, Gadamer pode ser
considerado como legítimo herdeiro de Heidegger. O auge de sua reflexão sobre a
fundação das ciências do espírito resultou desse feixe de influências na teoria da
consciência histórica: a consciência de estar exposto à história e a seus efeitos
sobre nós, como parte do próprio fenômeno histórico. Em outras palavras, estamos
sempre situados na história. A consciência é determinada por um devir histórico do
qual não podemos nos libertar ou nos colocarmos à distância. Por essa razão, o
passado não pode ser entendido como objeto separado. Quer dizer, ele não pode
ser visto apenas como um objeto de pesquisa, mas também como algo que nos
pertence.
Podemos afirmar que, para Gadamer, toda compreensão é preconceituosa.
Portanto, não deve ser concebida como uma ação da subjetividade de uma única
36
pessoa, mas como o inserir-se em uma tradição em que passado e presente se
fundem. A compreensão pode ser traduzida da seguinte forma: primeiro, como
historicidade, quer dizer, todo o conhecimento pessoal provém do que nos é dado
previamente pela história; segundo, como processo dialógico no qual um texto se
transforma em objeto de interpretação à medida que confronta o intérprete com uma
pergunta. Ora, entender essa pergunta e fazer perguntas a si próprio significa abrir-
se a novas possibilidades de sentido; e em terceiro lugar, como linguisticidade, quer
dizer a língua como meio, processo, fundamento e solo onde e através do qual o
diálogo possui o seu lugar.
Mas é justo aqui que se torna dramática a questão inicialmente posta: se
assim é nossa relação com a história, como então é possível introduzir uma
instância crítica qualquer em uma consciência de pertença expressamente definida
pela recusa do distanciamento? Ora, a distância não pode ser entendida como um
obstáculo. O distanciamento é o pressuposto ontológico que sustenta a conduta
objetiva das ciências humanas. Mas é, também, ele que pressupõe a destruição da
relação primordial de pertença. Apesar disso, ele é inevitável e se constitui condição
da possibilidade de interpretação. É através do distanciamento que podemos
compreender melhor um fato ou um texto, situando-os em contextos mais amplos,
que nos permitam apreender os seus significados. Porque, apesar dessa oposição,
a consciência da história contém em si mesma um elemento de distância. Assim, a
história dos efeitos, causados pelos textos e pelos fenômenos históricos, é aquela
que é exercida sob a condição da distância história. Ricœur reconhece que devemos
a Gadamer a idéia de comunicação à distância entre dois conceitos, desenvolvida
através do conceito de fusão de horizontes. Esse conceito significa que não vivemos
nem em horizontes fechados, nem em um único horizonte. Qualquer situação
histórica contém o seu próprio horizonte. E, para Gadamer é inadequado conceber
um horizonte isolado do presente. Por essa razão, um horizonte permanece em
constante processo de formação, pondo à prova os nossos preconceitos no encontro
com o passado, tentando, ao mesmo tempo, compreender partes de nossa tradição.
Por isso, eles devem ser alargados para poder interagir. É bom lembrar que essa
fusão de horizontes se torna inconcebível sem a intervenção da linguagem.
Para Ricœur (1986), a indicação mais precisa a favor de uma interpretação
menos negativa do distanciamento está contida na filosofia da linguagem, uma vez
que para Gadamer a minha pertença a uma tradição passa pela interpretação dos
37
signos, das obras e dos textos, nos quais as heranças culturais se inscrevem e se
oferecem à nossa decodificação. Portanto, o que nos faz comunicar a distância é a
coisa do texto que já não pertence nem ao seu autor nem ao seu leitor, ou seja, o
mundo do texto. Mas, a coisa do texto, para Gadamer, só aparece quando os
preconceitos são adequados ao conteúdo ou quando eles são alterados. Ele diz que
para compreender um texto é preciso estar sensível à novidade que ele anuncia.
Porém, isso não significa neutralidade ou anulação da personalidade, traduzindo
essa compreensão como assimilação consciente dos significados prévios e dos
preconceitos, ou seja, dos restos de uma mentalidade não esclarecida que
adquiriram uma conotação negativa no iluminismo. Por causa disso o preconceito
necessita ser reabilitado. Para Ricœur (1986), todavia, a experiência da linguagem
só exerce a sua função mediadora porque os interlocutores do diálogo se apagam,
um e outro, face às coisas ditas que, de certo modo, levam ao diálogo.
Para Ricœur (1986), o distanciamento não pode ser repudiado, mas
assumido. Por isso, é através da apropriação mútua de pertença e distanciamento,
de um quark e um antiquark, que ele desenvolverá sua própria reflexão, recolhendo,
como numa dança de partículas, as noções de interpretação gramatical e
psicológica (mas retomadas com uma nova linguagem, a saber, a análise estrutural
e a compreensão de si diante do texto); a explicação e a compreensão (dicotomia
que, com a lingüística moderna; a sociologia weberiana e a antropologia estrutural
deixa de ser válida como signo de oposição entre ciência da natureza e ciência do
espírito, uma vez que, a partir dessas disciplinas, também as ciências humanas se
tornam ciências explicativas e compreensivas); epistemologia e ontologia (graças à
idéia de “via longa”, com que ele pretende chegar ao mesmo porto de Heidegger,
porém tendo dispensado a devida atenção à tarefa de se instruir com as disciplinas
semiológicas e outras); e as noções de distanciamento, que ele toma, não como
alienante, mas como crítico; e pertença, que ele considera inelutável. Isto tudo,
todavia, por uma razão muito precisa, e não, repitamos, por ecletismo. Pois assim
como a física não pode ser considerada eclética e imatura por sustentar que a luz
são ondas e partículas, uma vez que a luz é isso mesmo, ao mesmo tempo, assim
também Ricœur não poderia ser considerado um autor sem vigor por assumir tantos
compromissos, uma vez que ele, em cada uma dessas apropriações, pressupõe um
conceito que, por sua própria natureza, pede todas aquelas “partículas conceituais”
anteriormente examinadas. Que conceito tão rico, como a luz dos físicos, seria este?
38
Este reino da coisa dita, por assim dizer, se torna visível quando a mediação
pela linguagem se torna mediação pelo texto. A hermenêutica passa a ser definida
por Ricœur como a teoria das operações da compreensão na sua ligação com a
interpretação dos textos. É na elaboração das categorias do texto que ele prepara
um caminho como tentativa de resolver todas as aporias da hermenêutica. O seu
principal objetivo é unir duas atitudes que a hermenêutica romântica tende dissociar.
Por isso, expressa, no plano epistemológico, a reorientação da hermenêutica exigida
pela noção de texto e, no plano ontológico, introduz a experiência de leitura como
mediação.
A tensão entre dois conceitos funciona como motor essencial nas teses
analisadas por Ricœur. No texto intitulado “A função hermenêutica do
distanciamento”, que se encontra na obra citada no início do capítulo, Ricœur recusa
a alternativa de Gadamer e tenta ultrapassá-lo através da escolha de uma
problemática dominante que, em sua opinião, escapa à alternativa entre o
distanciamento alienante e a participação por pertença. Esta problemática, a do
texto, Ricœur a desenvolve em torno de cinco temas: a realização da linguagem
como discurso, a realização do discurso como obra estruturada, a relação da fala
com a escrita no discurso e nas obras de discurso, a obra de discurso como
projeção de um mundo, o discurso e a obra de discurso como mediação da
compreensão de si.
A questão da escrita, todavia, não se constitui na problemática única do texto.
Porque, para Ricœur, não é a escrita como tal que suscita um problema
hermenêutico, mas a dialética da fala e da escrita. Esta dialética, por sua vez, é
constituída sobre uma dialética de distanciamento mais primitiva que a oposição da
escrita à fala, que pertence já ao discurso oral enquanto discurso. Logo, é no próprio
discurso que se deve procurar a raiz de todas as dialéticas posteriores. Ricœur
(1986), também, intercala a noção de realização do discurso como obra estruturada
entre a realização da linguagem como discurso e a dialética da fala e da escrita, a
partir da qual ele propõe o projeto de um mundo que ele chamou de o mundo do
texto. Então, a discussão anterior serve apenas para preparar o deslocamento do
problema do texto para o do mundo que ele abre. Da mesma maneira, a questão da
compreensão de si, que na hermenêutica romântica ocupava o lugar primordial, é
deslocada para o final, deixando de representar o centro de gravidade.
39
De acordo com Ricœur (1986), o discurso apresenta um traço primitivo de
distanciamento que é a dialética do acontecimento (um quark) e do significado (um
antiquark). A noção de acontecimento surge em razão da passagem de um código
para uma mensagem. Essa distinção foi feita por Ferdinand de Sausurre (2001), que
distingue a língua da fala; e por Louis Hjelmistev (1978), que distingue esquema de
uso. A lingüística estrutural põe entre parêntese a fala e o uso. Enquanto que a
teoria do discurso considera a existência de duas lingüísticas que se assentam em
leis diferentes, uma lingüística por assim dizer semiológica, e outra, semântica. A
teoria de Ricœur vai partir da lingüística da frase de Émile Benveniste, de cunho
semântico, uma vez que ela suporta a dialética do acontecimento e do sentido.
Ricœur (1986) diz que um acontecimento se realiza temporalmente e no
presente. Um sistema, todavia, é virtual e fora do tempo. O acontecimento consiste
em que alguém fala. Os signos, por sua vez, se remetem para outros signos. O
discurso como acontecimento é sempre sobre alguma coisa, pois se refere a um
mundo que pretende descrever. É no discurso que se trocam todas as mensagens,
enquanto que a língua é apenas uma condição prévia da comunicação. Tudo isso
quer dizer que o discurso possui um mundo e um outro ao qual se dirige, fazendo do
acontecimento o fenômeno temporal da troca. Ricœur explica que acentuar o caráter
de acontecimento no discurso é fazer surgir um dos pares de opostos constitutivos
do discurso. E, para fazer jus à dança quântica dos conceitos, ele convida o outro
par que é a significação. Porque, segundo ele, é na tensão entre os dois pares de
opostos que nasce a produção do discurso como obra, a dialética da fala e da
escrita, bem como todos os traços que enriquecem a noção de distanciamento pelo
texto.
À exemplo do mundo quântico, de fato, Ricœur (1986) apresenta um par de
opostos que é capaz de múltiplas divisões, muito embora não se possam separar. É
essa articulação que se constitui para ele o nó de todo o problema hermenêutico.
Quer dizer, “se todo discurso é efetuado como acontecimento, todo o discurso é
compreendido como significação” ( RICŒUR, 1989, p. 112). O primeiro
distanciamento explicado por Ricœur é o distanciamento do dizer ao dito. E, para
esclarecer esta problemática, a hermenêutica faz apelo à lingüística e a teoria do
Speech-Act desenvolvida por Austin e Searle. Para esses autores o ato do discurso
é constituído por três níveis: o ato locucionário que é o ato de dizer; o ato
ilocucionário que é o que fazemos ao dizer, podendo ser uma ordem, um desejo ou
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uma promessa; e o ato perlocucionário que é o que fazemos pelo fato de falarmos,
podendo provocar efeitos como o medo, por exemplo. O ato locucionário exterioriza-
se em frases enquanto proposição. Por isso o que é identificado é a própria estrutura
predicativa. O ato ilocucionário pode ser exteriorizado através dos paradigmas
gramaticais como os modos indicativo, imperativo, etc. Esse ato pode ser
identificado no discurso oral através da mímica e dos gestos. Mas o ato
perlocucionário constitui o aspecto menos inscritível do discurso, caracterizando o
discurso oral. Ricœur (1989) explica que o ato proposicional, a força ilocucionária e
a ação perlocucionária estão aptos, por ordem decrescente, à exteriorização
intencional que torna possível a inscrição pela escrita. Por isso, é preciso entender
por significação do ato de dizer todos esses níveis.
No que diz respeito à noção de obra, Ricœur (1989) a explicará através de
um trio, a saber, a obra como uma seqüência mais longa da frase, a obra submetida
a uma forma de codificação que se aplica a própria composição e a obra como uma
configuração única. Dizendo de outra maneira, pertença a um gênero, composição e
estilo individual são os traços distintivos que caracterizam o discurso como obra.
Para Ricœur (1989), o discurso se torna objeto de uma práxis e de uma techné,
formando um par inseparável. Portanto, trabalho manual e trabalho intelectual são
coisas que se realizam conjuntamente. Quer dizer, ao trabalhar o discurso, o ser
humano opera a determinação prática de uma categoria de indivíduos: as obras de
discurso.
À luz desses traços podemos perguntar o seguinte: como a noção de obra se
situa em relação ao par de opostos representado pelo acontecimento e pela
significação? Ora, a noção de obra surge como mediação prática entre a
irracionalidade do acontecimento e a racionalidade da significação. Ricœur explica
que o acontecimento é a própria estilização, a qual se dá no seio de uma
experiência já estruturada, comportando aberturas, possibilidades e determinações.
Por isso, apreender uma obra como acontecimento é o mesmo que apreender a
relação entre a situação e o projeto, no processo de reestruturação do
acontecimento. Assim, o acontecimento efêmero e o sentido identificável e repetível
que estavam no início da análise sobre o distanciamento no discurso, encontram na
noção de obra uma mediação notável. Ricœur lembra que a noção de estilo acumula
as duas características, ou seja, do acontecimento e do sentido. O estilo surge
41
temporalmente como um indivíduo único, porém a sua inscrição no material da
linguagem lhe dá a aparência de um universo concreto.
Ora, não é difícil perceber que os novos pares representados pela noção de
obra e pela noção de estilo lembram, uma vez mais, a dança das partículas do
mundo quântico ao se apresentarem como a dança das possibilidades. De acordo
com nosso Autor, quando o discurso se torna obra, a noção de sujeito é alterada por
causa da noção de estilo. O estilo é um trabalho que individualiza o seu autor, o qual
pode ser considerado como um artesão da linguagem. No entanto, a categoria do
autor é uma categoria da interpretação, pois a configuração singular da obra e a
configuração singular do autor são estritamente correlativas. Isso porque o ser
humano se individualiza ao produzir obras individuais. Ricœur diz que a assinatura é
a marca desta relação.
Em sua perspectiva, a conseqüência mais importante da introdução da
categoria de obra prende-se com a própria noção de composição, pois a objetivação
do discurso na obra e o caráter estrutural da composição, a que se acrescentará o
distanciamento pela escrita, obrigam-nos a questionar a oposição de Dilthey entre
compreender e explicar. Então, a análise estrutural termina dando início a uma nova
era da hermenêutica, na qual a explicação se transforma no caminho obrigatório da
compreensão. Para Ricœur, a hermenêutica continua sendo a arte de discernir o
discurso na obra. Porém, esse discurso é dado apenas em e pelas estruturas da
obra. Consequentemente, a interpretação se mostra como a réplica do
distanciamento fundamental que constitui a objetivação do ser humano nas suas
obras de discurso, comparáveis à sua objetivação nos produtos do seu trabalho e de
sua arte.
Mas, e quando o discurso passa da fala à escrita? Ricœur (1989) diz que a
escrita introduz uma fixação, a qual coloca o acontecimento de discurso ao abrigo da
destruição. A escrita torna o texto autônomo em relação à intenção do autor. Quer
dizer, o que o texto significa já não coincide com aquilo que o autor quis dizer. É
nesta autonomia do texto que está contida a possibilidade de que “a coisa do texto”
seja subtraída ao horizonte intencional acabado do seu autor. Por isso, é graças à
escrita que o mundo do texto pode desagregar o mundo do autor. O texto deve
poder, tanto do ponto de vista sociológico como psicológico, descontextualizar-se de
maneira a deixar-se recontextualizar em uma nova situação: é o que faz o ato de ler.
42
Diferente da situação dialogal, o discurso escrito chama a si um público que
se estende virtualmente a qualquer leitor. Por essa razão, a relação entre escrever e
ler deixa de ser um caso particular da relação entre falar e ouvir. O distanciamento,
pois, não é constitutivo do fenômeno do texto como escrita. Ele é a condição da
interpretação. A passagem da fala à escrita afeta o discurso de vários modos.
Veremos que o funcionamento da referência é profundamente alterado, uma vez que
já não é possível mostrar a coisa de que se fala como pertencendo à situação
comum aos interlocutores do diálogo.
Esse fenômeno é analisado por Ricœur sob o título de o mundo do texto. É
através desse traço que ele pretender ir bem mais longe das posições da
hermenêutica romântica, a qual afirmava como tarefa hermenêutica, tornar-se
contemporâneo da genialidade do autor. Dilthey fundava o seu conceito de
interpretação na apreensão de uma vida estranha que se exprimia através das
objetivações da escrita. O que explica o caráter psicológico e histórico da
hermenêutica romântica e diltheyana. Para Ricœur (1989), a principal tarefa da
hermenêutica está relacionada à noção de mundo do texto, escapando à alternativa
da genialidade ou de estrutura. Pois, quando o discurso se torna texto, a situação
comum ao escritor e ao leitor desaparece, bem como as condições concretas do ato
de mostrar, presente entre o falante e o ouvinte. Segundo Ricœur, a abolição do
caráter revelador da referência ostensiva torna possível o fenômeno da literatura em
que pode ser abolida toda a referência à realidade dada. A tese de Ricœur é a de
que a abolição de uma referência de primeira categoria, operada pela ficção e pela
poesia, é a condição de possibilidade para que seja libertada uma referência de
segunda categoria que atinge o mundo, ou seja, o ser-no-mundo.
Para Ricœur (1989), interpretar significa explicitar o modo de ser-no-mundo
exposto diante do texto. Dessa forma, a teoria da compreensão torna-se uma
estrutura desse ser. Portanto, o que se deve interpretar em um texto é uma proposta
de mundo. Esse mundo, por sua vez, não é o da linguagem cotidiana, mas constitui
uma nova espécie de distanciamento: o distanciamento que a ficção e a poesia
introduzem em nossa apreensão da realidade. Então, é através da ficção que se
abrem novas possibilidades de ser no mundo, na realidade cotidiana. Ricœur explica
que a realidade cotidiana é transformada graças às variações imaginativas que a
literatura opera no real. Por isso, é possível afirmar que a ficção ou a poesia visam o
ser sob a modalidade do poder ser. Notável, neste sentido, é que, chegado a esse
43
ponto de assimilação do pensamento de Ricœur, somos surpreendidos com uma
nova similaridade entre este pensamento e o mundo quântico, pois é também
imaginando possibilidades que o pesquisador pode transformar o poder-ser das
partículas em realidade.
Finalmente, Ricœur (1986) afirma que o texto é a medida pela qual podemos
conhecer a nós mesmos, marcando, assim, a entrada da subjetividade do leitor em
suas investigações. É nesse contexto que Ricœur escreve sobre o problema da
apropriação do texto à situação presente do leitor. Para ele, a apropriação está, em
primeiro lugar, ligada dialeticamente ao distanciamento característico da escrita. Por
isso, ela pode ser entendida como compreensão à distância. Em segundo lugar, a
apropriação está ligada dialeticamente à objetivação da obra, passando por todas as
objetivações estruturais do texto. A este respeito, ele assevera o seguinte:
Contrariamente à tradição do Cogito e à pretensão do sujeito de se
conhecer a si mesmo por intuição imediata, é preciso dizer que nós
apenas nos compreendemos pela digressão dos signos da
humanidade depositados nas obras de cultura. (RICŒUR, 1986, P.
123)
De acordo com Ricœur (1986), a apropriação tem como frente a frente aquilo
que Gadamer nomeou de “a coisa do texto”, explicado por ele como “o mundo da
obra”. Então, aquilo de que eu me aproprio é uma proposta de mundo, que está
diante do texto como aquilo que a obra desenvolve, descobre e revela. Por isso,
compreender é compreender-se diante do texto. Todavia, é preciso se expor ao
texto e receber dele um si mais vasto construído pela coisa do texto, que seria a
proposta de uma existência examinada.
Ora, o mundo do texto só é real na medida em que é fictício. Logo, a ficção se
torna uma dimensão fundamental da referência do texto. E a subjetividade do leitor
só se produz a si mesma quando é posta em suspenso, do mesmo modo que o
próprio mundo que o texto desenvolve. A leitura, pois, se introduz nas variações
imaginativas do ego. Por essa razão, pode-se afirmar que a transformação do
mundo é, também, a transformação lúdica do ego em si. Ricœur (1986) explica que
essa transformação do ego implica um momento de distanciamento até a relação de
si a si, fazendo da compreensão tanto uma desapropriação como uma apropriação.
Portanto, uma crítica das ilusões do sujeito deve ser incorporada na compreensão
de si.
44
A conseqüência, para a hermenêutica, é importante: já não se pode
opor hermenêutica e crítica das ideologias; a crítica das ideologias é
o percurso necessário que deve tomar a compreensão de si, se esta
tiver que se deixar formar pela coisa do texto e não pelos
preconceitos do leitor. (RICŒUR, 1986, p. 124)
Torna-se, assim, necessário reconduzir ao próprio âmago da compreensão de
si a dialética da objetivação e da compreensão percebidas ao nível do texto, das
suas estruturas, do seu sentido e da sua referência. Dizendo de outra maneira, é
necessário reconduzir à essência de si a polivalência conceitual que caracteriza o
movimento de nossas construções sobre o ser humano e a realidade que o cerca.
Nesse sentido, o distanciamento se torna a condição da compreensão, em todos os
níveis da análise. O que é dizer, afinal, que, se a noção de texto é pressuposta na
leitura feita por Ricœur da tradição hermenêutica, a tentativa de reconstruir uma
noção de sujeito irredutível ao sujeito cartesiano é o pressuposto da construção
ricœuriana da noção de texto. (ANDRADE, 2006)
A hermenêutica se faz filosofia e confirma, uma vez mais, sua vocação para
ser um pensamento que pensa junto o que se dá, antes, como separado. Tal como a
dança quântica dos físicos, conforme anunciávamos.
45
3 PAUL RICŒUR: AÇÃO E TEXTO
3.1 ENTRE HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS
Agora talvez estejamos prontos para lidar com o nosso maior desafio: traçar
a relação entre Hermenêutica das tradições e Teoria críticas das ideologias, numa
perspectiva em que possamos nos apropriar de ambas sem cairmos em vazio
ecletismo. Analisaremos, portanto, o diálogo de Ricœur com essas duas
proposições, que têm sido consideradas tensamente contraditórias. Para tanto,
leremos o texto “Hermenêutica e crítica das ideologias”, constante no livro Do texto à
ação. Assim, a leitura desse texto centraliza-se na reflexão crítica de duas
propostas: a hermenêutica das tradições, de Gadamer; e a crítica das ideologias de
Habermas.
Em um primeiro momento, essas tradições são apresentadas como
alternativas de dois grandes paradigmas que reivindicam um caráter universal.
Porém, em seguida, elas são elaboradas de uma forma a solucionar o problema
hermenêutico através de uma construção da compreensão das duas teorias como
possibilidade de atestar suas convergências e divergências. Na teoria apresentada
por Gadamer, a referência para a investigação do conhecimento humano se situa
em uma validação da consciência histórica. Ricœur (1986) diz que a teoria da
consciência histórica constitui o microcosmo de todo o pensamento de Gadamer em
Verdade e Método. Nesta obra, três conceitos surgem conectados como elementos
fundamentais, a saber, preconceito, autoridade e tradição. O objetivo de Gadamer
se traduz em uma tentativa de demonstrar os equívocos do uso e da deformação
desses conceitos protagonizadas a partir do iluminismo. Ora, ao tomar como eixo
reflexivo a consciência histórica e a questão da possibilidade das ciências do
espírito, Gadamer, no pensamento de Ricœur, orientou a filosofia hermenêutica para
a reabilitação do preconceito, da apologia da tradição e da autoridade, colocando
esta filosofia em uma posição conflitual com toda a crítica das ideologias.
Para Ricœur (1986), foi a luta entre o romantismo e o iluminismo que deu
corpo a oposição entre duas atitudes filosóficas: o iluminismo e a sua luta contra o
preconceito; e o romantismo e a sua nostalgia do passado. Ele explica que para
Gadamer, o preconceito é a categoria por excelência do iluminismo que assume
46
uma dupla precipitação, a saber, julgar demasiado depressa que seria um falso
juízo; e seguir o costume, a autoridade. Por causa disso, faz-se preciso reencontrar
um sentido menos negativo da palavra preconceito, bem como restaurar a
ambivalência da herança latina da tradição jurídica anterior ao iluminismo. Só assim
é possível começar a pensar de forma ousada. Então, é necessário repor a questão
em que os pressupostos de uma filosofia opõem razão e preconceito.
Ricœur (1989, p. 334) continua dizendo que “só uma filosofia que faz da
objetividade a medida do conhecimento é que erige o juízo em tribunal”. Logo, é
preciso investigar sob a filosofia do juízo, sob a problemática do sujeito e do objeto
uma reabilitação do preconceito que não seja a negação dominante do iluminismo. É
aqui, segundo Ricœur (1989), que a filosofia romântica se revela tanto como
primeira fundação do problema, uma vez que ousa negar o descrédito lançado sobre
o preconceito; como uma falência fundamental, pois apenas subverteu a resposta
sem subverter a questão.
O romantismo trava o seu debate no terreno definido pelo
adversário, a saber, o papel da tradição e da autoridade na
interpretação; é também neste terreno, também neste solo da
questão, que se magnífica o muthos em vez de celebrar o logos,
que se defende o Antigo à custa do Novo, a Cristandade histórica
contra o Estado moderno, a Comunidade fraterna contra o
Socialismo jurídico, o inconsciente genial contra a consciência
estéril, o passado mítico contra o futuro das utopias racionais, a
imaginação poética contra o racionalismo frio. A hermenêutica
romântica liga, assim, o seu destino a tudo o que aparece como
restauração. (RICŒUR, 1986, p. 335, grifo do autor)
Sabemos que Gadamer não tinha a intenção de voltar a cair na orla
romântica. Portanto, a hermenêutica da consciência histórica tinha como objetivo
ultrapassar o ponto de partida romântico da hermenêutica e escapar ao jogo das
inversões do romantismo filosófico. Será que Gadamer conseguiu? De acordo com
Ricœur, tudo o que ele fez surgir foi a aparência de um retorno a uma posição pré-
crítica. Esse retorno está preso à reconquista da dimensão histórica ao momento
reflexivo. Quer dizer, a história nos precede e antecipa a nossa reflexão:
pertencemos à história antes mesmo de nos pertencermos.
De acordo com Ricœur (1989), a revolução de Dilthey não pode
compreender isso. Essa compreensão surge com Heidegger, através da revolução
fundamental, que subordinou a teoria do conhecimento à ontologia, fazendo
47
aparecer o verdadeiro sentido da pré-estrutura do compreender. Ricœur explica que,
em Heidegger, o lugar do preconceito é ocupado pela história da metafísica. Isto
quer dizer que o preconceito faz parte da estrutura de antecipação. Porém,
Heidegger não está interessado no movimento de retorno da estrutura de
antecipação. O que para Ricœur (1989) é uma pena, porque é nesse trajeto que a
hermenêutica corre o risco de se encontrar, particularmente, com a crítica das
ideologias. Inclusive, o questionamento ricœuriano tanto sobre Heidegger quanto
sobre Gadamer parte desta dificuldade, uma vez que é no movimento de retorno aos
debates epistemológicos que a idéia da interpretação filológica se legitima como um
modo derivado do compreender fundamental. Ora, nada é fundamental, enquanto
algo não tiver sido derivado dela.
No pensamento de Ricœur (1989), a contribuição de Gadamer para a
problemática da hermenêutica pode ser entendida através de três níveis: romântico,
diltheyano e heideggeriano. Ele compara o texto de Gadamer a um palimpsesto
(unidade de dois textos, e não a substituição do texto latente pelo manifesto) no qual
se pode distinguir uma camada diltheyana e uma camada heideggeriana. É
interessante lembrar que em um palimpsesto se a última camada for destruída, a
primeira se perde para sempre. Então, a contribuição de Gadamer diz respeito a
três fenômenos. Em primeiro lugar, a um nível fenomenológico entre preconceito,
tradição e autoridade. Em seguida, a uma ontologia da consciência inserida no devir
histórico; e, finalmente, a uma consciência epistemológica ou a crítica da crítica.
Ricœur (1989) explica tratar-se de uma análise fenomenológica no sentido
em que ela tenta destacar a essência desses três fenômenos obscurecidos pelo
iluminismo. Dessa forma, o preconceito se torna um componente do compreender,
caracterizando-se como parte constitutiva da estrutura de antecipação, ou seja, a
condição para a compreensão de algo. A pretensão de criticar os preconceitos é
uma tentativa infundada para Gadamer, que era convicto dos efeitos da história na
consciência humana. Para ele não há um local isento que possa provocar a crítica
com precisão. Essa crítica é, na verdade, impossível aos olhos de Gadamer que vê
no preconceito uma dimensão positiva para o conhecimento. Portanto, os
preconceitos de um indivíduo, bem mais do que os seus juízos, constituem a
realidade histórica do seu ser. Ricœur (1989, p. 338) explica que “o preconceito,
para começar por ele, não é o pólo adverso de uma razão sem pressuposto; é uma
48
componente do compreender, ligada ao caráter historicamente finito do ser
humano”.
Já o conceito de autoridade é visto por Gadamer em divergência com o
iluminismo, o qual confundiu autoridade com domínio e violência. Por essa razão é
que se representou o preconceito contra o preconceito e a rejeição da autoridade
como elemento importante da tradição humana. O conceito de autoridade, em
Verdade e Método, é apresentado por Gadamer como o conceito de autoridade
relacionado a reconhecimento, dissociado de obediência, com a qual não teria
nenhuma relação imediata. Para ele, nenhuma autoridade deve ser fundada em um
ato de submissão ou abdicação da razão, mas em um ato de aceitação e
reconhecimento. No iluminismo, todavia, a autoridade implicou em uma obediência
cega. Na visão de Ricœur, o conceito chave seria, portanto, o do reconhecimento
que substitui o da obediência. É aqui que se pode inferir certo momento crítico.
Mas, apesar desse momento, Gadamer regressa a um tema do romantismo,
ligando autoridade e tradição. A tradição se torna o fundamento da validade de todos
os seus conceitos. Para ele, ela é a forma de autoridade que o romantismo
defendeu. Quer dizer, costumes e tradições são recebidos com toda a liberdade,
muito embora não sejam criados com toda a liberdade de discernimento ou
fundados na sua validade. No pensamento de Ricœur (1989), Gadamer tentou
aproximar autoridade e tradição ao invés de opô-las. O elo aí sugerido significa que
a tradição se revela como fator de liberdade, bem como da própria história. Portanto,
uma tradição exige ser preservada, assumida e conservada, tornando-se um ato de
razão. Ricœur também observa que Gadamer usou a palavra razão ao invés de
entendimento, facilitando um diálogo com Habermas e Apel, esses dois
preocupados em defender um conceito de razão distinto de um entendimento
planificador. Daí a distinção da Escola de Frankfurt entre a ação comunicativa como
obra da razão e a ação instrumental como obra do entendimento tecnológico.
Ora, essa distinção, lembra Ricœur (1989), sustenta-se no recurso à
tradição por oposição à tradição politizada e institucionalizada. Mas o topo da
reflexão de Gadamer é marcado pela interpretação ontológica da seqüência:
preconceito, autoridade e tradição que se cristaliza na categoria de consciência
histórica dos efeitos (da história). Ricœur (1989, p. 341) explica este conceito de
consciência da seguinte forma:
49
Em linhas gerais, pode dizer-se que é a consciência de ser exposto
à história e à sua ação, de tal modo que não se pode objetivar esta
ação em nós, porque esta eficácia faz parte do seu sentido
enquanto fenômeno histórico.
Quer dizer, a consciência é determinada por um devir histórico real. Por isso,
ela não tem a liberdade de se situar em face do passado. Assim, o passado que
experienciamos termina nos constrangendo a carregá-lo e a assumirmos a sua
verdade. De acordo com Ricœur quatro temas parecem concorrer para esta
categoria da consciência da história da eficácia, a saber, distância histórica,
sobrevôo, horizonte e fusão de horizontes. Por isso, a sua análise começa dando
ênfase a um par de opostos: consciência da história da eficácia e distância histórica.
Ricœur lembra que a pesquisa elaborada por Gadamer sobre a distância
histórica constitui uma condição metodológica, pois a distância é um fato. Por essa
razão, deve fazer dupla com a categoria de consciência da história da eficácia, uma
vez que a história eficiente é, na verdade, a eficácia na distância.
A história dos efeitos ou da eficácia é precisamente a que se exerce
sob a condição da distância histórica. É a proximidade do longínquo.
Daí a ilusão, contra a qual luta Gadamer, de que a distância põe fim
ao nosso conluio com o passado e, ao mesmo tempo, cria uma
situação comparável à objetividade das ciências da natureza, na
medida exata em que, com a familiaridade perdida, rompemos
também com o arbitrário. Contra esta ilusão, importa restaurar o
paradoxo da alteridade do passado. (RICŒUR, 1989, p. 342)
A segunda dupla formada por Ricœur é entre a eficácia histórica e sobrevôo.
Mas, a tensão por trás dessa diferença entre os pares de opostos faz surgir um novo
assunto, a saber, a ontologia da finitude. Isso porque, segundo Ricœur (1989), é
preciso fazer uma escolha entre finitude e saber absoluto, quando olhar o conjunto
da eficácia histórica se torna, praticamente, impossível através da idéia de sobrevôo.
Para explicar esse papel, Ricœur evoca a ontologia de Heidegger, que traz à tona a
idéia de projeto lançado ou o fora de si e o conceito de situação, ou seja, o modo
pelo qual nos encontramos no mundo. (HEIDEGGER, 2004, p.90-98, 188-194).
Ricœur afirma que o ser histórico é o que nunca passa para o saber de si,
lembrando o conceito de Substância em Hegel como idéia correspondente. Sabe-se
que a Substância é para Hegel a permanência que se manifesta em acidentes, os
50
quais contêm a substancialidade. A categoria substância é, pois, uma forma de
manifestação parcial da essência absoluta, caracterizando-se por uma manifestação
real, dialética. “A substância é essencialmente sujeito”. (HEGEL, 1992, p. 7) De
acordo com Ricœur esse é o conceito que Hegel emprega sempre que é preciso
dizer o fundo não dominável que vem ao discurso pela dialética.
Depois de pensar a inexistência de sobrevôo, isto é, de não podermos olhar a
história como se morássemos nas estrelas, Ricœur (1989) diz que não há situação
que nos limite em absoluto, colocando um novo par para dançar com a consciência
de história da eficácia que se mostra através da idéia de horizonte. Isso ele o faz
como uma forma de corrigir o tema anterior, por isso segue afirmando que onde há
situação, há horizonte, ou seja, há quem possa contrair-se ou alargar-se. “Como
atesta o círculo virtual da nossa existência, a paisagem hierarquiza-se entre o
próximo, o longínquo e o aberto”. (RICŒUR, 1978, p. 143) No pensamento do nosso
filósofo, o mesmo acontece na compreensão histórica. E, considerando um desastre
de assimilação falaciosa no que diz respeito ao conceito de horizonte, o autor (1978,
P. 243) diz o seguinte:
Acreditávamos ficar livres deste conceito de horizonte, ao identificá-
lo com a regra de método de se transportar para o ponto de vista do
outro; o horizonte é, então, o horizonte do outro; pensa-se, assim,
ter alinhado a história pela objetividade das ciências; adotar o ponto
de vista do outro, com o esquecimento do ponto de vista próprio,
não é objetividade?
Para Ricœur (1989), a assimilação é falaciosa, uma vez que o texto, tratado
como objeto absoluto, é desapossado de sua pretensão de dizer alguma coisa sobre
a coisa. Portanto, esta pretensão só se sustenta através da idéia de um acordo
preliminar da própria coisa. De acordo com o filósofo, nada arruína mais o próprio
sentido do empreendimento histórico do que este distanciamento objetivo que
suspende, ao mesmo tempo, a tensão dos pontos de vista e a pretensão da tradição
em transmitir uma fala verdadeira sobre o que é.
Então, com o restabelecimento da dialética dos pontos de vista e da tensão
entre o outro e o próprio, pode-se chegar a um conceito mais elevado que é, no
pensamento ricœuriano, o quarto par que passa a fazer dupla com a consciência da
história da eficácia, a saber, a fusão dos horizontes, a qual é considerada por
51
Ricœur como um conceito dialético que surge através de uma dupla recusa, ou seja,
da recusa do objetivismo e do saber absoluto.
Na primeira recusa pode-se afirmar que a objetivação do outro se faz no
esquecimento do próprio. E, na segunda, que a história universal é susceptível de se
articular em um único horizonte. Ora, não podemos existir somente em horizontes
fechados ou em um horizonte único. Por isso, para Ricœur não há horizonte
fechado, já que podemos nos transportar para um outro ponto de vista e para uma
outra cultura; nem tão pouco há horizonte único, por causa da tensão inultrapassável
do outro e do próprio.
Por um momento, diz Ricœur (1989), o Gadamer parece admitir a idéia de um
horizonte único capaz de englobar todos os pontos de vista. Essa posição, todavia,
talvez seja para lutar contra o pluralismo radical de Nietzsche, o qual conduz à
incomunicabilidade e arruína a idéia de se entender sobre a coisa. Por essa razão,
Gadamer tem mais afinidade com Hegel, uma vez que a compreensão histórica
requer um acordo sobre a coisa. Porém, essa afinidade é apenas tangencial em
razão de sua ontologia heideggeriana da finitude que lhe proíbe fazer um saber
deste horizonte único.
A própria palavra horizonte assinala um repúdio último pela idéia de
um saber em que seria recolhida a fusão dos horizontes. O
contraste, em virtude do qual um ponto de vista se destaca do fundo
dos outros, marca o afastamento entre a hermenêutica e todo
hegelianismo. (RICŒUR, 1978, p. 344)
No pensamento de Ricœur, é por causa do conceito inultrapassável de fusão
de horizontes que o preconceito termina recebendo a sua característica mais
própria. Em outras palavras, o preconceito é o horizonte do presente, é a finitude do
próximo na sua abertura ao longínquo. Portanto, a relação com o próprio e com o
outro faz com que o conceito de preconceito receba um último toque dialético, pois é
na medida em que nos transportamos para um outro, que transportamos a nós
mesmos o nosso horizonte presente, com os nossos preconceitos. Então, é nesta
tensão entre o outro e o próprio, ou seja, entre o texto do passado e o ponto de vista
do leitor, que o preconceito se torna operante, constitutivo de historicidade.
Para Ricœur (1989) é muito simples discernir as implicações epistemológicas
do conceito ontológico de eficácia histórica, pois elas dizem respeito ao próprio
estatuto da investigação nas ciências do espírito (hoje, ciências sociais). Essa
52
investigação não escapa à consciência histórica dos que vivem e fazem a história.
Portanto, o saber histórico não se liberta da condição histórica. O que torna
impossível o projeto de uma ciência livre de preconceitos.
É a partir de uma tradição que a interpela que a história põe ao
passado questões significativas, prossegue uma investigação
científica, atinge resultados significativos. A história como ciência
recebe as suas significações, tanto no início como no fim da
investigação, do elo que ela mantém com uma tradição recebida e
conhecida. (RICŒUR, 1978, p. 344)
Ricœur continua falando de um pacto que se estabelece entre a ação da
tradição e a investigação histórica. Esse pacto, segundo ele, não pode ser desfeito
pela consciência crítica, uma vez que poderia tornar insensata a própria
investigação. Por essa razão, a investigação histórica não é apenas busca, mas
transmissão de tradições. Ricœur (1989) lembra que, em Gadamer, a idéia de
conhecimento acabado da história é algo impensável, assim como o de um objeto
em si da história. Será, pois, que o ideal de uma comunicação sem limite e sem
constrangimento, que Habermas opõe ao conceito de tradição, escapa ao
argumento de Gadamer?
Para Ricœur (1989) qualquer que seja o alcance deste argumento contra uma
crítica das ideologias erigida em instância suprema, a hermenêutica pretende erigir-
se em crítica da crítica ou meta-crítica. Aqui o que está em jogo é aquilo que
Gadamer nomeou de universalidade do problema hermenêutico, no qual Ricœur
percebe três significações, a saber, pretensão de universalidade herdado da ciência,
universalidade de empréstimo e a linguagem como um elemento universal.
A primeira noção de universalidade é explicada por Ricœur como tendo a
mesma amplitude que a ciência, dizendo respeito ao nosso saber e ao nosso poder.
“A hermenêutica pretende cobrir o mesmo domínio que a investigação científica, ao
fundá-la numa experiência do mundo que a precede e envolve o saber e o poder da
ciência” (RICŒUR, 1978, p. 345) Essa noção, na verdade, procede da própria tarefa
da hermenêutica, ou seja, restabelecer os elos que unem o mundo dos objetos às
leis fundamentais do nosso ser. Portanto, a primeira tarefa meta-crítica pode ser
traduzida como aquela que deve subtrair ao nosso arbítrio o que a ciência submete
ao nosso arbítrio.
53
De acordo com Ricœur (1989), essa pretensão de universalidade pode ser
entendida como de empréstimo. Segundo Gadamer (1999), a hermenêutica tem
uma universalidade própria. Porém, ela não pode elevar a sua pretensão à
universalidade, senão a partir de domínios concretos, ou seja, de hermenêuticas
regionais que ela precisa sempre desregionalizar. É nesse esforço que Ricœur diz
que ela talvez encontre uma resistência que tem a ver com a própria natureza das
experiências de alienação. Ora, essa luta contra o distanciamento metodológico faz
da hermenêutica uma crítica da crítica. “É preciso voltar sempre a subir o rochedo de
Sísifo, restaurar o solo ontológico que a metodologia erodiu” (RICŒUR, 1978, p.
346). Ricœur, a propósito, lembra que Schleiermacher defendia a hermenêutica
como a arte de evitar a incompreensão. Porém, para Gadamer (1999), toda a
incompreensão é precedida por um acordo que funciona como suporte. Por essa
razão, é a idéia de acordo preliminar que faz surgir o tema meta-crítico por
excelência, que é a própria incompreensão.
Essa idéia é fundamental, diz Ricœur (1989), uma vez que é capaz de nos
conduzir ao terceiro conceito de universalidade, ou seja, o elemento universal que
permite desregionalizar a hermenêutica: a linguagem.
O acordo que nos transporta é a compreensão no diálogo; não
forçosamente o frente a frente calmo, mas a relação pergunta-
resposta na sua radicalidade: é, efetivamente, o fenômeno
hermenêutico primitivo, a saber, o que não há asserção possível
que não possa ser compreendida como resposta a uma questão e
que essa é a forma pela qual ela poderá ser compreendida [...] Por
isso, toda a hermenêutica culmina no conceito de dimensão da
linguagem [...] como o conjunto das coisas ditas, o resumo das
mensagens mais significativas, veiculadas não apenas pela
linguagem vulgar, mas por todas as linguagens eminentes que
fizeram de nós o que somos. (RICŒUR, 1978, p. 346)
Será que o diálogo que somos todos nós se torna o elemento universal que
permite desregionalizar a hermenêutica? É essa pergunta feita por Ricœur que nos
aproximará da crítica de Habermas: o segundo protagonista do debate desenvolvido
pelo filósofo. A exposição ricœuriana se faz através de conceitos em oposição, como
de costume. Dizendo de outra maneira, através de uma dança que apresenta a
crítica das ideologias de Habermas, enquanto alternativa a uma hermenêutica das
tradições.
54
O primeiro par de opostos é formado pelo interesse e pelo preconceito; o qual
entra na dança, também, com a noção heideggeriana de pré-compreensão. O
interesse é um conceito que Habermas (1992) desenvolve através das idéias
marxistas reinterpretadas por Lukács e pela escola de Frankfurt. O preconceito, por
sua vez, é um conceito que Gadamer pede emprestado ao romantismo filosófico,
sendo reinterpretado por meio da noção de pré-compreensão de Heidegger.
O conceito de interesse leva Ricœur a fazer algumas observações sobre as
relações de Habermas com o marxismo, o qual se remete para uma arqueologia do
saber, visando traçar a história contínua de uma problemática, a da reflexão,
mergulhada em um objetivismo e positivismo crescentes. O livro publicado em 1968,
Connaisance et interêt, pretende ser a reconstrução da pré-história do positivismo
moderno, tendo por finalidade recuperar a experiência perdida da reflexão.
O marxismo, remetido para a história das conquistas e dos
esquecimentos da reflexão, não pode aparecer senão como um
fenômeno muito ambíguo [...] Mas, esta forma simples de considerar
a filiação do marxismo a partir da questão crítica é em si mesma
muito reveladora [...] Assim, reposto na história da função crítica da
reflexão, o marxismo não pode deixar de aparecer como a posição
mais elevada da meta-crítica. (RICŒUR, 1978, p. 348)
É para uma melhor compreensão desta crítica interna ao marxismo que
Ricœur introduz o conceito de interesse. Em sua análise, ele começa afirmando que
esse conceito se opõe a toda a pretensão do sujeito teórico se situar para além da
esfera do desejo. Portanto, a tarefa de uma filosofia crítica é desmascarar os
interesses subjacentes ao empreendimento de conhecimento. Ricœur, também,
explora o aspecto familiar entre o conceito de interesse de Habermas e os conceitos
de preconceito e de tradição em Gadamer. Ele diz o seguinte:
Digamos, por agora, que ele permite introduzir, uma primeira vez, o
conceito de ideologia, no sentido de um conhecimento
pretensamente desinteressado, servindo para dissimular o
interesse, sob forma de uma racionalização, em um sentido muito
mais próximo do de Freud. (Ricœur, 1978, p. 349)
Para Ricœur (1989), é importante compreender que há um pluralismo de
esferas de interesse e Habermas vai distinguir três deles, regulando cada um deles
uma esfera de investigação ou grupo científico. O primeiro interesse explicado por
55
Habermas é o interesse técnico ou instrumental, o qual regula as ciências empírico-
analíticas. Para ele, a ciência e a técnica são vistas como a ideologia moderna. Essa
correlação entre conhecimento empírico e interesse técnico é definida por Habermas
como interesse cognitivo no controle técnico aplicado a processos objetivos.
O segundo interesse se caracteriza como a esfera da comunicação inter-
humana, direcionando-se a um lado mais prático. Dizendo de outra maneira, é o
domínio das ciências histórico-hermenêuticas, o da significação como compreensão
do sentido. Diferente, portanto, da previsão possível e da exploração técnica, uma
vez que a compreensão acontece por meio da interpretação. “Esta compreensão
faz-se pelo canal da interpretação das mensagens trocadas na linguagem vulgar,
por meio da interpretação dos textos transmitidos pela tradição, enfim, graças à
interiorização das normas institucionalizam os papéis sociais” (RICŒUR, 1978, p.
349). Ricœur explica que Habermas se aproxima mais de Gadamer do que de Marx,
pois a este nível da ação comunicativa, a compreensão é submetida às condições
da pré-compreensão pelo intérprete. A pré-compreensão, por sua vez, se faz com
base nas significações tradicionais incorporadas na apreensão de todo fenômeno
novo. Então, é da distinção entre os dois níveis de interesse, tecnológico e prático,
os dois níveis da ação, instrumental e ação comunicativa, e os dois níveis de
ciências, empírico-analítica e histórico-hermenêutica, que a crítica interna ao
marxismo procede. De acordo com Ricœur, Habermas distingue, em Marx, o esboço
de sua própria distinção pessoal entre os dois tipos de interesse, de ação e de
ciência, vendo-se na famosa distinção entre forças produtivas e relações de
produção.
O marxismo assenta, efetivamente, na discordância entre força e
forma; a atividade de produção deveria gerar apenas uma única
humanidade auto-produtiva, uma única essência genérica do homem;
é das relações de produção que procede a clivagem do sujeito
produtor em classes antagônicas. (RICŒUR, 1978, p. 350)
Ricœur afirma que Habermas vê nas relações de produção o início de sua
distinção, uma vez que os fenômenos de dominação e violência, a dissimulação das
relações de força em ideologias e o empreendimento político de libertação
acontecem na esfera das relações de produção, e não das forças de produção. É,
pois, a tomada de consciência da distinção entre as duas esferas da ação
56
instrumental e da ação comunicativa que pode dar conta dos fenômenos analisados
por Marx, a saber, antagonismo de classe; dominação burguesa; dissimulação
ideológica e libertação proletária. O marxismo, ao colocar forças e relações sob o
mesmo conceito de produção, não pode desdobrar realmente os interesses, nem os
níveis de ação, bem como as esferas de ciência. Por essa razão, ele pertence à
história do positivismo, ou seja, à história do esquecimento da reflexão.
O terceiro tipo de interesse é chamado por Habermas de emancipação e está
ligado a uma terceira espécie de ciência: as ciências sociais críticas. No pensamento
de Ricœur, este é o ponto mais importante de discordância com Gadamer. Pois,
enquanto ele toma como referencial as ciências do espírito, Habermas prefere as
ciências sociais críticas. As ciências do espírito estão mais próximas daquilo que
Gadamer chamou de humanidades, ou seja, ciências da cultura, da tradição
interpretada e continuada. Essas ciências podem comportar um momento crítico; no
entanto, por natureza se inclinam para lutar contra o distanciamento alienante da
consciência estética, histórica e de linguagem. Isso quer dizer que elas impedem de
colocar a instância crítica acima do reconhecimento da autoridade, da própria
tradição reinterpretada, pois a instância crítica só pode desenvolver-se como um
momento subordinado à consciência de finitude e de dependência relativamente às
figuras da pré-compreensão que precede e envolve a instância crítica.
O inverso aconteceria com as ciências sociais críticas, uma vez que elas são
críticas por constituição. Essas ciências tomam como tarefa distinguir, sob as
regularidades observáveis das ciências sociais empíricas, formas de relações de
dependência ideologicamente congeladas; cristalizações de pensamento que não
podem ser transformados senão criticamente. Para Habermas (1992), o interesse
pela emancipação regula a abordagem crítica, podendo ser chamado de auto-
reflexão, pois liberta o sujeito da dependência dos poderes hipostasiados. Daí, o
interesse pela emancipação é o mesmo que animou as filosofias do passado,
podendo ser traduzido como o interesse pela autonomia, pela independência. Esse
interesse, todavia, foi dissimulado pela ontologia como uma realidade já feita.
Ricœur (1989) lembra que ele só é ativo na instância crítica, a qual se coloca acima
da consciência hermenêutica. Para ele, o projeto hermenêutico e o projeto crítico
permanecem separados por um abismo, pois enquanto o primeiro coloca a tradição
assumida acima do juízo, a segunda coloca a reflexão acima do constrangimento
institucionalizado.
57
Outro ponto de discordância está no objeto de debate de Ricœur, a saber, o
conceito de ideologia. Para ele, esse conceito possui em uma ciência social crítica, o
lugar que tem o conceito de incompreensão na hermenêutica das tradições. Ele diz
o seguinte:
Era Schleiermacher quem, antes de Gadamer, aliava a
hermenêutica ao conceito de incompreensão. Há hermenêutica
onde há incompreensão. Mas há hermenêutica porque há a
convicção e a confiança de que a compreensão que precede e
envolve a incompreensão tem com que reintegrar a incompreensão
na compreensão pelo próprio movimento da pergunta e da resposta,
no modelo dialogal. A incompreensão é homogênea da
compreensão, do mesmo gênero que ela; é por isso que a
compreensão não faz apelo a processos explicativos, que são
excluídos das pretensões abusivas do metodologismo. (RICŒUR,
1978, p. 352)
De acordo com Ricœur, acontece algo completamente diferente com o
conceito de ideologia, uma vez que Habermas recorre constantemente ao
paralelismo entre psicanálise e teoria das ideologias. Esse paralelismo é explicado
através de três critérios: o primeiro deles tem a ver com a distorção constantemente
referida, na Escola de Frankfurt, à ação repressiva de uma autoridade, logo, à
violência. Aqui, a censura, no sentido freudiano, se torna um conceito chave por ser
um conceito de origem política que passa para o campo das ciências sociais críticas
depois de ter passado pela psicanálise. Para Ricœur (1989), a ligação entre
ideologia e violência se torna capital, introduzindo grandezas no campo da reflexão
que, sem estarem ausentes da hermenêutica, não são acentuadas por ela. São elas:
o poder e o trabalho. Ricœur explica que é por ocasião do trabalho humano que se
exercem fenômenos de dominação de uma classe por outra e que a ideologia
exprime esses fenômenos de dominação. Para Habermas, o fenômeno de
dominação é produzido na esfera da ação comunicativa. Ricœur diz que é
exatamente aí que a linguagem é distorcida nas suas condições de exercício ao
nível da competência comunicativa.
É por isso que uma hermenêutica que se mantém na idealidade da
dimensão da linguagem encontra o seu limite em um fenômeno que
só afeta a linguagem como tal porque a relação entre as três
grandezas – trabalho, poder e linguagem – é alterada. (RICŒUR,
1978, p. 353)
58
Então, as distorções da linguagem não provêm do uso como tal da linguagem,
mas da sua relação com o trabalho e o poder. Em razão disso, essas distorções são
desconhecidas pelos membros da comunidade.
O desconhecimento é, pois, o segundo critério. Ele é específico do fenômeno
da ideologia. Mas para fazer essa fenomenologia do aparecer ideológico é preciso
recorrer aos conceitos psicanalíticos de ilusão, projeção e racionalização. O
primeiro, enquanto diferente do erro; o segundo, enquanto constituição de uma falsa
transcendência e o terceiro, enquanto reorganização inoportuna das motivações,
segundo as aparências de uma justificação social. “Habermas fala de pseudo-
comunicação ou compreensão sistematicamente distorcida, por oposição à simples
incompreensão” (RICŒUR, 1978, p. 353). Ricœur explica que o desconhecimento é
inultrapassável pela via dialogal direta: daí a necessidade do terceiro critério, a
dissolução das ideologias.
Esta, por sua vez, precisa percorrer processos explicativos e não apenas
compreensivos.
Esses processos põem em jogo um aparelho teórico que não se
pode derivar de uma hermenêutica que prolongaria, apenas no
plano da arte, a interpretação espontânea do discurso vulgar na
conversação. Ainda aqui, a psicanálise fornece um bom modelo [...]
desenvolvido no artigo intitulado: A pretensão de da universalidade
da hermenêutica. (RICŒUR, 1978, p. 353, grifo do autor)
Para Ricœur, Habermas aprecia a interpretação da psicanálise segundo a
qual a compreensão do sentido se faz por reconstrução de uma cena primitiva, posta
em relação com outras duas cenas: a cena de ordem sintomática e a cena artificial
da situação de transferência. Porém, a psicanálise permanece na esfera de um
compreender que se completa na tomada de consciência do paciente. Para
Habermas (1992), isso pode ser traduzido como uma hermenêutica das
profundidades. Mas o compreender do sentido exige o percurso de uma
reconstrução dos processos de dessimbolização que a psicanálise percorre em
sentido inverso, ou seja, segundo as vias de uma ressimbolização.
A psicanálise não é, portanto, completamente exterior à
hermenêutica, uma vez que ainda se pode exprimir em termos de
dessimbolização e ressimbolização; ela constitui, antes, uma
experiência limite, por causa da força explicativa ligada à
reconstrução da cena primitiva. (RICŒUR, 1978, p. 354)
59
Dizendo de outra maneira, para compreender o quê do sintoma, é preciso
explicar o seu porquê. É nesta fase explicativa, acrescenta Ricœur, que atua o
aparelho teórico que põe em ação as condições de possibilidade da explicação e da
reconstrução: conceitos tópicos, conceitos econômicos e conceitos genéticos. De
acordo com Habermas, o eu – isso – super-eu se ligam à espera da comunicação
por meio do processo dialogal de elucidação pelo qual o paciente é reconduzido à
reflexão sobre si mesmo. Por essa razão, a metapsicologia só pode ser fundada
como meta - hermenêutica.
Habermas, entretanto, não esclareceu, segundo Ricœur (1989), a maneira
como se deveria transpor o esquema, ao mesmo tempo explicativo e meta-
hermenêutico, da psicanálise, para o plano das ideologias. Portanto, seria
necessário dizer que as distorções da comunicação, ligadas ao fenômeno social de
dominação e de violência, constituem também fenômenos de dessimbolização.
Habermas fala de excomunhão, pensando na distinção wittgensteiniana entre
linguagem pública e linguagem privada.
Para Ricœur, é preciso mostrar em que sentido a explicação destes
fenômenos exige uma reconstituição em que se encontrem certos traços da
compreensão cênica, mesmo da tripla cena, atual, original e transferencial. É preciso
mostrar como a compreensão exige uma etapa de explicação tal, na qual o sentido
só é compreendido se a origem do não-sentido for explicada. Por fim, é preciso
mostrar como esta explicação põe em jogo um aparelho teórico comparável à tópica
ou à econômica freudiana, cujos conceitos diretores não podem ser pedidos de
empréstimo nem à experiência dialogal, no quadro da linguagem vulgar, nem a
exegese dos textos, enxertada na compreensão direta do discurso.
De acordo com Ricœur (1989), os principais traços do conceito de ideologia
são o impacto da violência no discurso, dissimulação cuja chave escapa à
consciência e necessidade de digressão pela explicação das causas. É por meio
desses traços que o fenômeno ideológico constitui uma experiência limite para a
hermenêutica. Mas, enquanto a hermenêutica desenvolve apenas uma competência
natural, necessitamos de uma meta-hermenêutica para elaborar a teoria das
deformações da competência comunicativa que envolve a arte de compreender, as
técnicas para vencer a incompreensão e a ciência explicativa das distorções.
60
Enfim, para Habermas (1992), o principal defeito de Gadamer foi ter
ontologizado a hermenêutica. Segundo Ricœur, esta é a divergência mais profunda
que separa esse dois filósofos. A ontologização de Gadamer pode ser entendida
como a idéia de consenso como algo dado na história, a partir da experiência de
diálogo que a humanidade possui. Ora, para Habermas, isso não pode servir de
modelo para a ação comunicativa. Pois, é necessário reconhecer que há distorções
na linguagem, movidas por interesse, impedindo um diálogo perfeito, bem como a
emancipação humana.
Para Habermas (1992) é necessário superar as interferências da ideologia na
linguagem. Por essa razão, a sua teoria se intitula como crítica das ideologias.
Ricœur (1989) explica que se a ideologia fosse apenas um obstáculo interno à
compreensão, uma incompreensão que apenas o exercício da pergunta e da
resposta pudesse desintegrar, então poderíamos dizer que onde há incompreensão,
há acordo prévio. Por isso, compete a uma crítica das ideologias pensar em termos
de antecipação aquilo que a hermenêutica das tradições pensa em termos de
tradição assumida.
A crítica das ideologias implica que seja posto como idéia
reguladora, perante nós, aquilo que a hermenêutica das tradições
concebe como existente na origem da compreensão. (RICŒUR,
1978, p. 355
)
É nesse contexto que Ricœur diz entrar em jogo o terceiro interesse que
move o conhecimento, ou seja, o interesse pela emancipação. Na verdade, é ele
que dá um quadro de referência a todas as significações postas em jogo na
psicanálise e na crítica das ideologias. Assim, a auto-reflexão se torna o conceito
correlativo do interesse pela emancipação. Por essa razão, não se pode fundá-la em
um consenso preliminar. O que existe antes, diz Ricœur, é uma comunicação
quebrada.
Não se pode falar, com Gadamer, de entendimento que transporta a
compreensão sem presumir uma convergência das tradições que
não existe, sem hipostasiar o passado que é também o lugar da
falsa consciência, enfim, sem ontologizar a língua que é apenas
uma competência comunicativa desde sempre distorcida. (1978, p.
356)
61
De acordo com Ricœur, a crítica das ideologias precisa ser colocada sob o
signo de uma idéia reguladora, quer dizer a idéia de uma comunicação sem limites e
sem constrangimentos. Essa idéia reguladora possui uma tônica kantiana, ou seja, é
mais um dever-ser, mais antecipação que reminiscência. É ela que dá sentido à
crítica psicanalítica ou sociológica, uma vez que não há dessimbolização senão para
um projeto de ressimbolização. Ora, esse projeto só existe na perspectiva
revolucionária do fim da violência.
Para Ricœur (1989), onde a hermenêutica das tradições procurou destacar a
essência da autoridade para reatá-la com o reconhecimento de uma superioridade; o
interesse pela emancipação nos conduziu não a idéia de uma interpretação do
mundo, mas de uma transformação dele. Portanto, uma escatologia da não-violência
passa a constituir o horizonte filosófico último de uma crítica das ideologias,
tomando o lugar que a ontologia do acordo da linguagem tem em uma hermenêutica
das tradições.
Aqui, portanto, o ponto a partir do qual podemos ver mais viva a tarefa
filosófica de Paul Ricœur, anunciada através de uma construção da síntese dessas
tradições. O seu propósito, todavia, não é construir um super-sistema, que as
englobasse, uma vez que cada tradição fala de um lugar distinto. E não poderia ser
diferente. Pois, a dança conceitual ricœuriana não se caracteriza pela fundição de
seus pares, mas pelo reconhecimento da especificidade de cada um de seus
componentes e reivindicação da sua legitimidade. É uma construção sem
simplificações, que preserva a identidade de cada pensamento discutido.
62
3.2 A ESTRATÉGIA RICOEURIANA
Acreditamos ser agora possível colocar as duas questões fundamentais de
nosso trabalho; questões que, se postas antes de um estudo detido do estilo
ricœuriano, teriam com facilidade suscitado a suspeita, já agora irrelevante, de
ecletismo: 1) Em que condição pode uma filosofia hermenêutica dar conta em si
mesma da exigência de uma crítica das ideologias? A custa de que reformulação do
seu programa? 2) Em que condição é possível uma crítica das ideologias? Poderá
ela ser despida de pressupostos hermenêuticos? Tentaremos apresentar o
desenvolvimento dessas questões, menos com o intuito de estabelecer uma
discussão temática do que atentos à estratégia ricœuriana de pensamento.
Para Ricœur (1989), a primeira questão põe em jogo a capacidade da
hermenêutica de dar conta de uma instância crítica geral. Para ele, reconhecer a
instância crítica é uma vontade imperfeita da hermenêutica, incessantemente
reiterada, mas incessantemente abortada. Mas, é a partir de Heidegger que a
hermenêutica se compromete, completamente, com o movimento de remontar ao
fundamento que conduz à estrutura ontológica do compreender. Daí pode-se, então,
perguntar pela possibilidade do trajeto de retorno, do fundamento último àquilo que
demandou a busca pelo fundamento. Sobre isso, Ricœur diz o seguinte:
É, no entanto, neste trajeto de retorno que poderia atestar-se e
confirmar-se a afirmação de que as questões de crítica exegético-
histórica são questões derivadas, que o círculo hermenêutico, no
sentido das exegeses, é fundado na estrutura de antecipação da
compreensão, no plano ontológico fundamental. (RICŒUR, 1978, p.
357)
Acontece que a hermenêutica ontológica parece incapaz, por razões
estruturais, de desenvolver a problemática do retorno. Ricœur lembra que o próprio
Heidegger abandona a questão. Em Ser e Tempo, Heidegger (2004) faz uma
distinção entre a antecipação segundo as próprias coisas e uma antecipação
proveniente das idéias enviesadas e das noções populares. Ricœur explica que
esses dois termos possuem um parentesco visível com os preconceitos por
precipitação e por prevenção. Lembrando que, logo a seguir, Heidegger declara que
os pressupostos ontológicos de todo o conhecimento histórico transcendem
essencialmente a idéia de rigor próprio das ciências exatas e que se ilude a questão
63
do rigor próprio das ciências históricas, sendo difícil ir mais longe depois dessa
declaração. Por causa disso, a preocupação de enraizar o círculo hermenêutico
mais profundamente que qualquer epistemologia, termina impedindo a repetição da
questão epistemológica depois da ontologia.
Para Ricœur (1989), isso não quer dizer que não exista em Heidegger
nenhum desenvolvimento que corresponda ao momento crítico de uma
epistemologia. Entretanto, esse desenvolvimento é aplicado em outro sítio. Ele
continua dizendo o seguinte:
Ao passar da analítica do Dasein, à qual pertence também a teoria
do compreender e do interpretar, à teoria da temporalidade e da
totalidade, à qual pertence a segunda meditação sobre o
compreender, verifica-se que todo o esforço crítico é gasto no
trabalho de desconstrução da metafísica; compreende-se porquê: a
partir do momento em que a hermenêutica se torna a hermenêutica
do ser [...] a estrutura de antecipação própria da questão do sentido
do ser é dada pela história da metafísica que ocupa exatamente o
lugar do preconceito. (RICŒUR, 1978, p. 358, grifo do autor)
Depois disso, a hermenêutica do ser desenvolve todos os seus recursos
críticos no seu debate com a substância grega e medieval, com o cogito cartesiano e
kantiano. Por essa razão, o confronto com a tradição metafísica do Ocidente ocupa
o lugar de uma crítica do preconceito. De acordo com Ricœur, em uma perspectiva
heideggeriana, a única crítica interna que pode ser concebida como parte integrante
do empreendimento de desocultação é a desconstrução da metafísica; enquanto
que uma crítica propriamente epistemológica só pode ser reassumida indiretamente,
na medida em que os resíduos metafísicos podem ser discernidos em ação até nas
ciências pretensamente empíricas.
Porém, a crítica dos preconceitos de origem metafísica não substitui a
verdadeira confrontação com as ciências humanas, com a sua metodologia e com
os seus pressupostos epistemológicos.
No que diz respeito a Gadamer, Ricœur (1989) diz que ele apreendeu
perfeitamente a urgência desta dialética descendente ao declarar que podemos
interrogar sobre as conseqüências que arrasta, para as ciências do espírito, o fato
de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular do compreender da
temporalidade do Dasein. Para Ricœur, essas conseqüências não importam. Ele
afirma o seguinte:
64
É no movimento de derivação que o desempate entre pré-
compreensão e preconceito constitui problema e que a questão
crítica surge de novo, no próprio âmago da compreensão. Assim,
Gadamer, ao falar dos textos da nossa cultura, não deixa de insistir
no fato de ser por si mesmos que estes testos são significantes, que
há uma coisa no texto que se dirige a nós. Mas, como deixar falar a
coisa do texto sem enfrentar a questão crítica da mistura da pré-
compreensão e do preconceito? (RICŒUR, 1978, p. 359)
Na concepção de Ricœur, parece que a hermenêutica de Gadamer está
impedida de se comprometer a fundo nesta via, pois a própria experiência
hermenêutica dissuade de se avançar nas vias do reconhecimento de toda a
instância crítica. Ele diz que a sua obra, Verdade e Método, assume um caráter
dicotômico. Por essa razão, o reconhecimento da instância crítica é impedida, além
de não fazer justiça a uma crítica das ideologias. A interrogação ricœuriana procede
desta constatação; e em seguida levanta o seguinte problema:
Não seria conveniente, pergunto-me eu, deslocar o lugar inicial da
questão hermenêutica, reformular a questão de base da
hermenêutica, de tal forma que uma certa dialética entre experiência
de pertença e o distanciamento alienante se torne o próprio motor, a
chave da vida interna da hermenêutica? (RICŒUR, 1978, p. 360)
Ricœur sugere a idéia de deslocamento do lugar inicial da questão
hermenêutica em razão da própria história do problema hermenêutico. Para ele, ao
longo de toda esta história, a tônica nunca deixou de ser colocada sobre a exegese,
a filologia, ou seja, sobre a espécie de relação com a tradição que se funda na
mediação de textos, de documentos, de monumentos cujo estatuto é comparável ao
dos textos.
Ora, voltar a uma problemática textual significa, para Ricœur (1989), restringir
a mira, o alcance, o ângulo de visão da hermenêutica. No entanto, como toda a
reivindicação de universalidade é emitida de qualquer parte, pode-se esperar que a
restauração do elo da hermenêutica com a exegese faça aparecer, por sua vez,
características de universalidade que, sem contradizerem a hermenêutica de
Gadamer, a retificam no sentido decisivo para a própria resolução do debate com a
crítica das ideologias. Dito isto, Ricœur escreve sobre quatro temas que, segundo
ele, constituem uma espécie de complemento crítico à hermenêutica das tradições.
65
São eles: o distanciamento, a dicotomia entre explicar e compreender, o mundo do
texto e a subjetividade interpretativa.
O distanciamento aparece como um componente positivo do ser para o texto,
surgindo como propriedade da interpretação e não o seu contrário, pois aparece
como a sua própria condição. Para Ricœur (1989), este momento de distanciamento
está implicado na fixação da escrita, bem como em todos os fenômenos
semelhantes na ordem da transmissão do discurso. Mas, a escrita não se reduz à
fixação material do discurso. Por isso, o distanciamento se torna na condição de um
fenômeno muito mais fundamental: o da autonomia do texto. Essa autonomia é
explicada por Ricœur da seguinte forma:
Autonomia tripla: relativamente à intenção do autor; relativamente à
situação cultural e a todos os condicionamentos sociológicos da
produção do texto; relativamente, enfim, ao destinatário primitivo.
(RICŒUR, 1978, p. 361)
De acordo com Ricœur, a significação verbal e a significação mental possuem
destinos distintos, ou seja, o que o texto significa já não coincide com o que o autor
queria dizer. A autonomia, nesse caso, implica a possibilidade de que a coisa do
texto escape ao horizonte intencional limitado do seu autor, bem como que o mundo
do texto faça explodir o mundo do seu autor. Isso quer dizer que, pertence à obra
descontextualizar-se tanto de um ponto de vista sociológico como psicológico,
podendo recontextualizar-se de um modo diferente, ou seja, através do ato da
leitura:
Daí resulta que a mediação do texto não deveria ser tratada como
uma extensão da situação dialogal; com efeito, no diálogo, o frente a
frente do discurso é dado antecipadamente pelo próprio colóquio;
com a escrita, o destinatário original é transcendido; para além
deste, a obra cria para si uma audiência, virtualmente alargada a
todo aquele que souber ler. (RICŒUR, 1978, p. 361)
Mas o interessante é que, para Ricœur (1989), o distanciamento provocado
pelo texto pertence à ordem da própria mediação. Para ele, essas observações
apenas prolongam aquilo que Gadamer diz sobre da distancia temporal, além de
acrescentar novos traços à dimensão da linguagem. No entanto, a análise
ricœuriana desloca um pouco a tônica, uma vez que o distanciamento que a escrita
revela já está presente no próprio discurso que contém em germe o distanciamento
66
do dizer ao dito. A escrita, portanto, não representa nenhuma revolução radical na
constituição do discurso, muito embora cumpra o seu voto mais profundo. Como já
escreveu Hegel na Fenomenologia do Espírito (1992, p. 74): “O dizer desvanece-se,
mas o dito subsiste”.
Depois de pensar o distanciamento, Ricœur diz que a hermenêutica deve
ultrapassar a desastrosa dicotomia entre explicar e compreender, herdada de
Dilthey, lembrando que esta dicotomia procedia da convicção de que toda a atitude
explicativa é pedida de empréstimo à metodologia das ciências da natureza e, desse
modo, indevidamente estendida às ciências do espírito. Para Ricœur (1989),
todavia, o aparecimento de modelos semiológicos no campo da teoria do texto é
suficiente para nos convencer de que explicação não é redutível aos modelos
naturalistas ou causais. Esclarece que os modelos semiológicos são pedidos de
empréstimo ao próprio domínio da linguagem. Neste sentido, a categoria sob a qual
é preciso colocar o discurso já não é somente a da escrita, mas a da obra.
Ora, a produção do discurso como obra opera uma objetivação pelo que ele
se dá a ler em condições existenciais sempre novas.
Mas, diferente do discurso simples da conversação que entra no
movimento espontâneo da pergunta e da resposta, o discurso
enquanto obra pega em estruturas que fazem apelo a uma
descrição e a uma explicação que mediatizam o compreender.
(RICŒUR, 1978, p. 362)
Esta situação é, para Ricœur, semelhante a situação descrita por Habermas
quando ele afirma que a reconstrução é o caminho da compreensão. No entanto,
esta situação é uma condição da obra em geral, não sendo própria da psicanálise ou
da “hermenêutica das profundidades”, segundo Habermas (1992). Por essa razão,
contra o estruturalismo que pretendia se limitar a uma etapa explicativa, Ricœur
acredita que “se há uma hermenêutica, ela não se constitui a contracorrente da
explicação estrutural, mas através de sua mediação” (RICŒUR, 1978, p. 362).
Por conseguinte, a tarefa do compreender, no pensamento Ricœuriano,
consiste em trazer para o discurso aquilo que, em princípio, se dá como estrutura.
No entanto, é preciso percorrer ao máximo a via objetiva, até ao ponto em que a
análise estrutural ponha a descoberto a semântica profunda de um texto, antes de
pretender compreendê-lo a partir do mundo ou da coisa que nele fala. Mas, a coisa
do texto, é importante que se diga, não é aquilo que uma leitura ingênua do texto
67
revela, mas aquilo que o arranjo formal do texto mediatiza. Sendo assim, diz Ricœur,
verdade e método não constituem uma alternativa, mas um processo dialético.
No pensamento de Ricœur, a hermenêutica dos textos volta-se para a crítica
das ideologias de uma terceira forma, ou seja, através de um terceiro tema que é
explicado por ele como uma espécie de mundo aberto pelo texto. Para ele, o
momento propriamente hermenêutico do texto é aquele em que a interrogação,
transgredindo a clausura do texto, se transporta para aquilo a que Gadamer (1999)
chamou de “a coisa do texto”. O sentido da obra passa a ser a sua organização
interna. A sua referência é, pois, o modo de ser no-mundo exposto diante dele.
Portanto, não há intensão escondida a procurar por trás de um texto, mas um mundo
a expor diante dele.
Ora, este poder do texto para abrir uma dimensão de realidade
comporta, exatamente no seu princípio, um recurso contra toda a
realidade dada e, por isso mesmo, a possibilidade de uma crítica do
real. É no discurso poético que este poder subversivo é mais vivo.
(RICŒUR, 1978, p. 363)
Ricœur explica que, a estratégia deste discurso assenta no equilíbrio de dois
momentos, a saber, suspensão da referência da linguagem vulgar e abertura de
uma referência de segundo grau, ou seja, o mundo aberto pela obra. Ele diz o
seguinte: “Com a poesia, a ficção é o caminho da redescrição [...] é o caminho da
mimesis, da imitação criadora” (RICŒUR, 1978, p. 363, grifo do autor), remetendo-
nos, com isso, à Poética de Aristóteles, onde a mímesis é a representação do
possível mais do que uma imitação do real.
Mais uma vez, Ricœur consegue desenvolver um tema esboçado por
Gadamer. E, ao levar até o fim a meditação sobre a relação entre ficção e
redescrição, termina introduzindo um tema crítico que a hermenêutica das tradições
tende a lançar para fora de suas fronteiras. No pensamento de Ricœur, esse tema já
estava contido potencialmente na análise heideggeriana do compreender. Ele
explica que o modo de ser do mundo aberto pelo texto é o modo do possível, do
poder-ser, fazendo surgir a força subversiva do imaginário. Para Ricœur, portanto,
compete a uma hermenêutica do poder-ser voltar-se para uma crítica das ideologias,
da qual ela constitui a possibilidade mais fundamental. “É do real cotidiano que o
68
discurso poético se distancia, visando o ser como poder ser” (RICŒUR, 1978, p.
364).
O último tema, tratado por Ricœur, diz respeito ao estatuto da subjetividade
na interpretação. Para ele, se a primeira preocupação da hermenêutica não é
descobrir uma intensão escondida atrás do texto, mas expor um mundo diante dele,
então, a autêntica compreensão de si é aquela que, segundo Heidegger (2004) e
Gadamer (1999), se deixa instruir pela coisa do texto:
A relação com o mundo do texto toma o lugar da relação com a
subjetividade do autor; ao mesmo tempo, o problema da
subjetividade do leitor é, também, deslocado. Compreender não é
projetar-se no texto, mas expor-se ao texto; é receber um si mais
vasto da apropriação das propostas de mundo que a interpretação
desenvolve. (RICŒUR, 1978, p. 364)
Dizendo de outra maneira, é a coisa do texto que dá ao leitor a sua dimensão
de subjetividade; a compreensão já não é, então, uma constituição cuja chave o
sujeito possui. Portanto, a subjetividade do leitor não é menos posta em suspenso,
irrealizada, potencializada, que o próprio mundo que o texto desenvolve. Quer dizer,
se a ficção é uma dimensão fundamental da referência do texto, ela não é menos
uma dimensão fundamental da subjetividade do leitor. “Ao ler, eu irrealizo-me. A
leitura introduz-me nas variações imaginativas do ego” (RICŒUR, 1978, p. 364).
Para Ricœur (1989), a idéia de variação imaginativa do ego mostra a
possibilidade mais fundamental para a crítica das ilusões do sujeito. Essa ligação,
todavia, poderia permanecer dissimulada ou não desenvolvida em uma
hermenêutica das tradições com o risco de introduzir um conceito de apropriação
cuja ponta é dirigida contra o distanciamento alienante. Contudo, se o
distanciamento a si mesmo não é uma deformação a combater, mas a condição de
possibilidade da compreensão de si mesmo face ao texto, a apropriação é o
complemento dialético do distanciamento. Dessa maneira, a crítica das ideologias
pode ser assumida em um conceito de compreensão de si que implica uma crítica
das ilusões do sujeito:
O distanciamento a si mesmo exige que a apropriação das
propostas de mundo oferecidas pelo texto passe pela
desapropriação de si. A crítica da consciência falsa pode, assim,
tornar-se parte integrante da hermenêutica e conferir à crítica das
69
ideologias a dimensão meta-hermenêutica que Habermas lhe
atribui. (RICŒUR, 19878, p. 364)
Mas é preciso, ainda, pôr à prova a reivindicação de universalidade da crítica
das ideologias, ou seja, uma reflexão hermenêutica sobre a crítica. O objetivo de
Ricœur, agora, é provar o propósito de Gadamer, segundo o qual as duas
universalidades, a da hermenêutica e da crítica das ideologias, se interpenetram.
Ricœur explica que essa questão, também, poderia ser apresentada nos termos de
Habermas ou na seguinte pergunta: em que condições é que a crítica se pode dar
como uma meta-hermenêutica?
Ricœur (1989) começa pela teoria dos interesses que inspira a crítica das
ideologias, a da fenomenologia e a do positivismo: interesse técnico, interesse
prático e interesse pela emancipação. Para Ricœur (1989), toda pesquisa é regulada
por um interesse, o qual dá às significações de seu campo um quadro “prejudicial
de referência. Esses interesses, por sua vez, estão enraizados na história natural da
espécie humana. No entanto, marcam a emergência do homem acima da natureza,
tomando forma no meio do trabalho, do poder e da linguagem. Ele diz que, na
reflexão sobre si, conhecimento e interesse é uma coisa só. E que, a unidade do
conhecimento e do interesse é atestada em uma dialética capaz de distinguir as
marcas históricas da repressão do diálogo e de reconstruir o que foi reprimido.
De acordo com Ricœur (1989), estas teses não são dependentes de uma
descrição empírica. Por isso, não há porque cair sob o jugo das ciências empírico-
analíticas. Essas teses não são uma teoria, no sentido de uma rede de hipóteses
explicativas que permitam a reconstrução primitiva de uma cena, como na
psicanálise, por exemplo. Do contrário, elas se tornariam regionais como qualquer
teoria e, ainda, seriam justificadas, talvez, pelo interesse da emancipação. A sua
justificação se tornaria circular.
No pensamento de Ricœur (1989), é preciso reconhecer que a descoberta
dos interesses na raiz do conhecimento, a hierarquização dos interesses e a sua
relação com a trilogia trabalho – poder – linguagem relevam de uma antropologia
filosófica parente da analítica do Dasein de Heidegger, mais particularmente da sua
hermenêutica da inquietação. Portanto, esses interesses não são nem observáveis,
nem entidades teóricas como o ego, o superego e o isso, em Freud, mas
existenciais. Para Ricœur (1989), a sua análise releva de uma hermenêutica, na
70
medida em que são, ao mesmo tempo, o mais próximo e o mais dissimulado, sendo
preciso desocultá-los para os reconhecer.
Pode-se, efetivamente, se se quiser, chamar meta-hermenêutica a
esta analítica dos interesses, se se admitir que a hermenêutica é,
principalmente, uma hermenêutica do discurso, isto é, um idealismo
da vida de linguagem; mas vimos que não é nada disso, que a
hermenêutica da pré-compreensão é, fundamentalmente,
hermenêutica da finitude. (RICŒUR, 1978, p. 366)
Por essa razão, Ricœur aceita dizer que a crítica das ideologias ergue a sua
reivindicação a partir de um lugar diferente do da hermenêutica. Esse lugar é
explicado por ele como aquele em que se liga a seqüência trabalho – poder –
linguagem. No entanto, as duas reivindicações terminam se cruzando em um lugar
comum, a saber, a hermenêutica da finitude (embora essa assertiva não faça de
Ricœur um filósofo da mera finitude, já que existe, segundo Andrade (2003), um
pensamento do infinito no filósofo francês, assegurando a priori a correlação entre
conceito de preconceito e o de ideologia.
Ricœur (1989) segue considerando, uma vez mais, o pacto que Habermas
estabelece entre ciência social crítica e interesse pela emancipação. Mas ele opõe,
intensamente, o privilégio das ciências sociais ao das ciências histórico-
hermenêuticas, que se inclinam para o reconhecimento da autoridade das tradições
mais do que para a ação revolucionária dirigida contra a opressão. De acordo com
Ricœur, a questão que a hermenêutica dirige à crítica das ideologias é a seguinte:
pode-se atribuir ao interesse pela emancipação que motiva este terceiro ciclo de
ciências, um estatuto tão diferente como se supõe relativamente ao interesse que
anima as ciências histórico hermenêuticas? Para ele essa distinção é afirmada de
forma dogmática, como que para cavar o fosso entre interesse pela emancipação e
interesse ético. No entanto, as análises de Habermas terminam desmentindo a
intenção dogmática. Ricœur continua dizendo o seguinte:
É notável que as distorções que a psicanálise descreve e explica
sejam interpretadas ao nível da meta-hermenêutica em que
Habermas as coloca, como distorções da competência comunicativa
[...] todas as distorções, as que a psicanálise descobre, as que a
crítica das ideologias denuncia, são distorções da capacidade
comunicativa dos homens. (RICŒUR, 1978, p. 367)
71
Isso quer dizer que o interesse pela emancipação pode ser tratado como um
interesse distinto? Para Ricœur, a resposta é negativa. Pois, se ele for considerado
e tomado positivamente como um motivo próprio e não negativamente a partir das
coisificações que combate, o interesse pela emancipação não tem outro conteúdo
senão o ideal da comunicação sem entraves e sem limites. Esse interesse seria,
portanto, abstrato e pálido caso não se inscrevesse no próprio plano em que as
ciências histórico-hermenêuticas se exercem, quer dizer, no plano da ação
comunicativa. Pergunta-se: a crítica das distorções pode ser separada da própria
experiência comunicativa, no ponto em que ela começou, no ponto em que ela é
real, no ponto em que ela é exemplar?
Para Ricœur (1989), a tarefa da hermenêutica das tradições é relembrar à
crítica das ideologias que é com base na reinterpretação criadora das heranças
culturais que o homem pode projetar a sua emancipação e antecipar uma
comunicação sem entraves ou limites. Sem a experiência da comunicação, por mais
reduzida e mutilada que ela fosse, poderia ser desejada para todos os homens e
para todos os níveis de institucionalização do elo social? O filósofo responde da
seguinte forma:
Por minha parte, parece-me que uma crítica nunca pode ser
primeira nem última; só se criticam distorções em nome de um
consenso que não podemos antecipar simplesmente no vazio, sobre
uma forma de uma idéia reguladora, se esta idéia não for
exemplificada. (RICŒUR, 1978, p. 367)
No pensamento de Ricœur (1989), um dos lugares da exemplificação do ideal
da comunicação é precisamente a nossa capacidade de vencer a distância cultural
na interpretação das obras recebidas do passado. Assim, quem não é capaz de
reinterpretar o seu passado não pode ser capaz de projetar o seu interesse pela
emancipação.
Outro momento do desacordo, tratado por Ricœur, entre a hermenêutica das
tradições e a crítica das ideologias diz respeito ao abismo que separaria a simples
incompreensão, da distorção patológica ou ideológica. Segundo o filósofo, o aspecto
da teoria das ideologias que ele insiste em propor não deve nada ao paralelismo
entre psicanálise e teoria das ideologias. Pois, toda uma parte da obra de Habermas
se dirige às ideologias contemporâneas.
72
Ora, quando a teoria das ideologias é assim desenvolvida
concretamente, no quadro de uma crítica do tempo presente, ela
revela aspectos que pedem uma aproximação concreta, e já não
apenas teórica, entre o interesse pela emancipação e o interesse
pela comunicação, no quadro das tradições reinterpretadas.
(RICŒUR, 1978, p. 368)
De acordo com Habermas (1992), a ideologia dominante do tempo presente é
a ideologia científico-tecnológica. Os seus argumentos põem em jogo toda uma
interpretação do capitalismo avançado e das sociedades industriais desenvolvidas.
A análise Ricœuriana, todavia, vai direto à característica considerada central, a
saber, a teoria das ideologias no campo da hermenêutica. Ricœur explica que a
sociedade industrial moderna substituiu, segundo Habermas (1992), as legitimações
tradicionais e as crenças de base utilizadas como justificação do poder por uma
ideologia da ciência e da tecnologia. Portanto, o Estado moderno já não é um
Estado voltado a representar os interesses de uma classe opressora, mas a eliminar
as disfunções do sistema industrial e justificar a mais-valia, dissimulando o seu
mecanismo. Mas, lembra Ricœur (1989), o traço dominante do sistema se
transforma na produtividade da própria racionalidade, incorporada nos
computadores, pois a mais-valia deixa de ser a principal fonte de produtividade
nesse contexto. Por conseguinte, é o próprio sistema que precisa ser legitimado, ou
seja, a sua manutenção e o seu crescimento.
O aparelho científico-tecnológico erigido em ideologia serve, portanto, para
legitimar as relações de dominação e de desigualdades necessárias ao
funcionamento do sistema industrial. Em razão disso, a ideologia moderna difere
daquela que foi descrita por Marx. Mas, o que isso significa em termos de interesse?
Para Ricœur, significa que o subsistema da ação instrumental deixou de ser um
subsistema e que as suas categorias invadiram a esfera da ação comunicativa.
Habermas descreve esse fato como esquecimento e perda da diferença entre
o plano da ação instrumental, que é o do trabalho, e o plano da ação comunicativa,
que é o das normas, da troca simbólica, das estruturas de personalidade, dos
processos de decisão razoável. Ricœur diz que no sistema do capitalismo moderno,
a velha questão grega do bem viver é abolida em proveito do funcionamento de um
sistema manipulado. Os problemas da práxis ligados à comunicação não
desaparecem, mas subsistem recalcados.
73
É precisamente, porque a sua eliminação não é automática e
porque a necessidade de legitimação permanece insatisfeita, que é
sempre necessária uma ideologia para legitimar a autoridade que
assegura o funcionamento do sistema; técnica e ciência assumem,
hoje, este papel ideológico. (RICŒUR, 1978, p. 369)
Ora, se admitirmos que a ideologia consiste, hoje, na dissimulação da
diferença entre a ordem normativa da ação comunicativa e o condicionamento
burocrático, ou seja, na dissolução da esfera de interação mediatizada pela
linguagem nas estruturas da ação instrumental, como fazer para que o interesse
pela emancipação não permaneça uma intenção piedosa senão incarnando-o no
despertar da própria ação comunicativa? E em que se apoiaria concretamente esse
despertar, senão no retomar criador (isto é, hermenêutico) das heranças culturais?
São questões levantadas por Ricœur (1989). A aproximação inelutável entre o
despertar da responsabilidade política e a reanimação das fontes tradicionais da
ação comunicativa faz com que Ricœur elabore a sua quarta e última diferença entre
consciência hermenêutica e consciência crítica. A primeira, como vimos, estava
voltada para um consenso que nos precede; a segunda, por sua vez, antecipava o
futuro de uma libertação cuja idéia reguladora não é um ser, mas um ideal da
comunicação sem limites e sem entraves; a terceira, justamente, era a relação entre
incompreensão e ideologia. O quarto ponto é considerado pelo filósofo como o mais
formidável e vivo, bem como, talvez, o mais vão do debate. Sobre essa antítese
aparente (responsabilidade política e leitura hermenêutica) Ricœur (RICŒUR, 1978,
p. 370) escreve o seguinte:
Enfim, dirá o hermeneuta, de que falais quando chamais à auto-
reflexão, se não é deste lugar que vós próprios denunciastes como
um não lugar, o não lugar do sujeito transcendental? É do fundo de
uma tradição que falais. Esta tradição talvez não seja a mesma de
Gadamer; talvez seja precisamente a do iluminismo, enquanto a de
Gadamer seria a do romantismo. Mas é ainda uma tradição, a
tradição da emancipação, mais do que a tradição da rememoração.
Também a crítica é uma tradição.
Ricœur não pretende abolir a diferença entre uma hermenêutica e uma crítica
das ideologias, pois cada uma tem o seu lugar privilegiado, bem como preferências
regionais distintas: uma centrada na teoria do texto, dando atenção às heranças
culturais; a outra centrada na análise das ações reificadas e alienadas, dando
atenção às instituições e aos fenômenos de dominação. Por essa razão suas
74
diferenças precisam ser reservadas contra qualquer confusão. A tarefa da reflexão
filosófica é, pois, colocar ao abrigo das oposições enganadoras o interesse pela
reinterpretação das heranças culturais recebidas do passado e o interesse pelas
projeções futuristas de uma humanidade livre. “Que estes dois interesses se
separem radicalmente e, então, hermenêutica e crítica, elas próprias, já não serão
senão [... ] ideologias!” (RICŒUR, 1978, p. 371). A estratégia ricœuriana encontra-
se, pois, em propor, a uma hermenêutica das tradições, uma teoria do texto que a
aproxime da necessidade do distanciamento crítico; e a uma teoria crítica das
ideologias, uma teoria da ação capaz de reivindicar, com proveito para a própria
crítica, releituras inventivas (hermenêuticas) da tradição crítica.
75
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como Ricœur pôde entrar no debate com a tradição hermenêutica e, em
seguida, confrontar essa tradição com a teoria crítica das ideologias, sem, no final,
sair com a peja de um pensador eclético? A resposta construída por nosso trabalho
a essa questão possuiu duas pontas: uma pelo estudo do estilo de seu pensamento;
outra pelo estudo de sua estratégia.
No que diz respeito ao estilo, vimos como a análise feita por Ricœur é
perceptivelmente original; desde o início da abordagem de uma possível antítese
entre as duas tradições, e no interior da primeira delas, ele não parte de uma
tentativa de simplificação ou de mera justaposição; também não há pretensão
alguma de negar ou sufocar as diferenças que permanecem no pensamento dos
autores discutidos.
No que diz respeito à estratégia, Ricœur consegue desenvolver a tarefa de
olhar para a hermenêutica com base na teoria crítica das ideologias e refletir essa
mesma teoria crítica através de pressupostos da hermenêutica. Como de costume, é
através da tensão existente entre os conceitos que ele faz acontecer um trabalho de
reflexão consistente, criativo, dinâmico – e dançante.
No final, a unidade encontrada como própria, já não da relação entre os
pensadores hermenêuticos, já não da relação entre hermenêutica e crítica das
ideologias, mas do próprio pensamento de Ricœur, essa unidade, luminosa, é da
mesma natureza da luz dos físicos, que pode ser vista, em sua propagação, tanto
como ondas quanto como partículas. A unidade do pensamento de Ricœur pode ser
encontrada num feixe de conceitos entrelaçados, feixe que pode ser visto tanto
como “texto”, quanto como “ação”.
Com efeito, ação e texto são, em Ricœur, conceitos intercambiáveis.
Enquanto que ele define o texto como um paradigma apropriado para as ações
humanas e a ação ele a concebe como um referente para toda uma categoria de
textos, fazendo com que as duas teorias se entrecruzem, pode-se concluir que a
ação como texto é uma obra aberta que deixa marcas no tempo, tornando-se
documento. Pois, a transferência do texto para a ação demonstra as mesmas
possibilidades de significação, permanentemente abertas e inconclusas, uma vez
que Ricœur reconhece na ação múltiplas ligações. Isso porque, a autonomia da
76
ação é semelhante à autonomia do texto: à medida que se liberta de uma situação
inicial, permite a reinscrição do seu sentido em contextos completamente novos.
Essa polivalência conceitual, todavia, não visa um saber total ou definitivo do texto,
pois no pensamento de Ricœur não há lugar para uma última palavra. Portanto,
pode-se firmar que, a exemplo de um caleidoscópio, texto e ação são apenas
mediações parciais que demonstram as várias perspectivas de uma obra.
Para Ricœur, um método hermenêutico que visa a significação deve primar
pela compreensão, entendendo para isso a necessidade da mediação pela
explicação. E não poderia ser diferente, pois a complementaridade caracteriza o
apoio no adversário na construção do pensamento ricoeuriano. Dessa forma, o seu
método de interpretação continua com a mesma intenção reconciliadora face às
dicotomias encontradas em suas investigações, entre subjetividade e objetividade,
ou seja, entre a compreensão e a explicação.
A leitura, em Ricœur, salienta-se na importância concedida à imaginação
como capacidade de criar novos sentidos e recriar a própria realidade, permitindo a
preservação da comunicação, não deixando fechar o diálogo. A experiência humana
é trazida à linguagem e explicada como já desde sempre antecipada e
simbolicamente mediatizada; e todo o real é apresentado à maneira de um texto,
que pede para ser lido. Neste sentido, se o texto de Ricœur foi visto por nós como
uma luz, sua ação, como filósofo, em um século tão conturbado como fora o XX,
sem dúvida pode ser pensada como um pouco de lucidez a este mesmo tempo
ofertada.
77
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