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Maria Roseane Corrêa Pinto Lima
Ingleses Pretos, Barbadianos Negros,
Ingleses Pretos, Barbadianos Negros,
Brasileiros Morenos?
Brasileiros Morenos?
Identidades e Memórias (Belém, séculos XX e XXI
Identidades e Memórias (Belém, séculos XX e XXI)
Belém, PA
Janeiro/2006
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE S-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO ANTROPOLOGIA
Ingleses Pretos, Barbadianos Negros, Brasileiros Morenos?
Identidades e Memórias (Belém, séculos XX e XXI)
Maria Roseane Corrêa Pinto Lima
Belém, Pará
Janeiro / 2006
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Ingleses Pretos, Barbadianos Negros, Brasileiros Morenos?
Identidades e Memórias (Belém, séculos XX e XXI)
Maria Roseane Corrêa Pinto Lima
Belém, Pará
Janeiro / 2006
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Ingleses Pretos, Barbadianos Negros, Brasileiros Morenos?
Identidades e Memórias (Belém, séculos XX e XXI)
Maria Roseane Corrêa Pinto Lima
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais, área de concentração em Antropologia, do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Pará, para obtenção do grau de mestre em Ciências
Sociais (Antropologia).
Orientadora: Profª Drª Maria Angelica Motta-Maués.
Este exemplar corresponde à redação final da
dissertação defendida e aprovada pela Comissão
Julgadora em ____ /_____/ 2006.
Comissão Julgadora:
Profª Drª Maria Angelica Motta-Maués (orientadora) ____________________
Profª Drª Rosa Elizabeth Acevedo Marin (examinadora interna) ____________________
Prof° Dr. Isidoro Maria da Silva Alves (examinador externo) ____________________
Profª Drª Carmem Izabel Rodrigues (examinadora suplente) ____________________
Belém, Pa
Janeiro / 2006
5
Ingleses Pretos, Barbadianos Negros, Brasileiros Morenos? Identidades e
Memórias (Belém, séculos XX e XXI)
Maria Roseane Corrêa Pinto Lima
RESUMO: Este trabalho discorre sobre a imigração de negros do Caribe Inglês para
Bem, ocorrida nas primeiras décadas do século XX, mais precisamente dos
chamados, de modo geral, de barbadianos. Discute os contornos desta identificação em
Bem, analisando os relatos de histórias de vida dos descendentes de segunda e
terceira gerações. Procura discutir os contextos e situações nas quais os sinais de suas
identificações foram manipulados para marcar distinções, por eles e pelos outros, em
fuão dos símbolos (de prestígio e de estigma) das identidades inglesa, brasileira e
barbadiana, quando postas em relão, perpassadas pelo processo de demarcação da
alteridade, mas tamm pelo racismo.
Palavras-chave: Imigração, barbadiano, inglês, identidade, racismo.
Negro British, Black Barbadians, “Moreno” Brazilians? Identities and
Memories (20
th
and 21
st
centuries)
Maria Roseane Corrêa Pinto Lima
ABSTRACT: This study deals about Negro immigration from British Caribbean Islands to
Belém, which occurred in the first decades of the 20
th
century, more precisely of those who
were generally called Barbadians (“barbadianos”). It discusses the contours of this
identification in Belém and analyses the life stories of the descendants of the second and third
generations. It aims to discuss in which contexts and situations the signs of their
identifications were manipulated to mark distinctions, by them and by others. In order to do
this, it considers the symbols (of prestige and stigma) of the British, Brazilian and Barbadian
identities, when they were related one to the other, and passed through by the process of
demarcation of alterity, but also by the racism.
Key-words: Immigration, Barbadian, British, identity, racism.
6
O diferente é o outro, e o reconhecimento da diferença é a consciência da
alteridade: a descoberta do sentimento que se arma dos símbolos da cultura para
dizer que nem tudo é o que eu sou e nem todos são como eu sou. Homem e mulher,
branco e negro, senhor e servo, civilizado e índio... O outro é um diferente e por
isso atrai e atemoriza. É preciso domá-lo e, depois, é preciso domar no espírito do
dominador o seu fantasma: traduzi-lo, explicá-lo, ou seja, reduzi-lo, enquanto
realidade viva, ao poder da realidade eficaz dos símbolos e valores de quem pode
dizer quem são as pessoas e o que valem, umas diante das outras, umas através
das outras. Por isso o outro deve ser compreendido de algum modo, e os ansiosos,
filósofos e cientistas dos assuntos do homem, sua vida e sua cultura, que cuidem
disso. O outro sugere ser decifrado, para que os lados mais difíceis de meu eu, do
meu mundo, de minha cultura sejam traduzidos também através do que há de meu
nele, quando, então, o outro reflete a minha imagem espelhada e é às vezes ali
onde eu melhor me vejo. Através do que ele afirma e torna claro em mim, na
diferença que há entre ele e eu.
Carlos Rodrigues Brandão, em Identidade e Etnia. Construção da pessoa e
resistência cultural, 1986, p. 7.
7
SUMÁRIO
Lista de Reduções
9
Índice de Ilustrações
10
Índice de Fotografias
10
Índice de Quadros
11
Agradecimentos
12
1. Barbadianos na Amazônia: negros, estrangeiros
14
Trabalhadores para a Amazônia. Mas, barbadianos? 14
Seguindo pistas sobre os barbadianos na Amazônia 22
Barbadianos, antilhanos, west-indians no Pará: como chegar até eles? 26
2. Quem são eles? Quem Somos Nós? Barbadianos
37
pelos outros e através dos outros
Iniciando contatos, conhecendo as famílias 37
Dos bondes da Pará Eletric às salas de aula 39
Usando as pontes” para chegar a outros barbadianos 42
Ainda pela IEAB ou entre ingleses e americanos 48
As telefonistas da Base rea de Belém 58
Ainda na Pará Eletric... e nas aulas de ings 63
Entre Barbados, Londres e Belém 64
Barbadiano da “alta roda... mas, sempre barbadiano” 76
Às voltas com a Pan Air 79
3. Barbadianos Por Eles Mesmos
85
Nas ruas, nos bondes, nos portos, nos navios 85
Nos lares 87
Fora do lar? 96
No serviço de puericultura 97
Na Base Aérea de Belém, a tradutora... 99
... e as telefonistas 104
Nas salas de aula: os professores de ings 108
Nos escritórios, os guarda-livros 115
Nas salas de aula, nos escritórios, mas também em outros lugares 118
Mas, como a vida não é só trabalho... 119
Uns casaram, outros não 128
Sobre as três gerações: juntando fios (não tão) soltos 135
4. Ingleses Pretos, Barbadianos Negros, Brasileiros Morenos?
152
Mais alguns relatos... 161
“Lá vem a barbadiana!...” 174
8
Referências
177
Bibliografia
Fontes
Manuscritas
Eletrônicas
Impressas
Obras de referência
Apêndices
1. Roteiro da entrevista
2. Famílias Barbadianas em Belém, a partir dos informantes
3. Os Barbadianos no Catálogo da Exposição Belém dos Imigrantes
9
LISTA DE REDUÇÕES
APEP
Arquivo Público do Estado do Pará
BPAV
CEDENPA
Biblioteca Pública Arthur Vianna
Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará
CDP
Companhia Docas do Pará
EFMM
ENASA
FAB
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
Empresa de Navegação S/A
Força Aérea do Brasil
FEB
Força Expedicionária Brasileira
IEAB
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Paróquia de Santa Maria, em Belém
LBA
Legião Brasileira de Assistência
MPEG
Museu Paraense Emílio Goeldi
PPGCS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
SNAPP
Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará
UFPA
Universidade Federal do Pará
UEPA
Universidade do Estado do Pará
UNIPOP
Universidade Popular
10
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
1. Mapa da América Central; Barbados em destaque
2. Irmãos Burnett, lista de nomes escrita por James Burnett
ÍNDICE DE FOTOGRAFIAS
1 Grupo de west-indians em frente à Igreja Anglicana em Belém/PA, c. 1920 31
2 Carlota Alberta e James Christopher de Coursy Burnett, em frente à residência do
casal, na avenida São Jerônimo (hoje, Governador José Malcher)
44
3 Beatriz White, em agosto de 2005 50
4 Robert Scantlebury, com os filhos, lembranças do Arraial de Nazaré 61
5 Phyllis Chase, na rua João Alfredo, no comércio de Belém 65
6 Doris Chase, na rua João Alfredo, no comércio de Belém 66
7 Dudley Elias Chase, entre Barbados, Londres e Belém 68
8 Ellis Chase. Fruto da “segunda mistura”, segundo seu filho Nicholas Chase 71
9 Rosl Chase, a “ariana pura”, segundo seu filho Nicholas Chase 72
10
Ellis Chase e Rosl Chase, em Londres 73
11
Octavio e Nicholas Chase na rua João Alfredo, no comércio de Belém 74
12
No “tempo áureo”: Rosl e Octavio Chase, no carro da família... 75
13
Liliana Skeete, em sua residência, em novembro de 2005 81
14
Lili Skeete, em sua residência, em novembro de 2005 82
15
Marieta Marshall, amiga das irmãs Scantlebury, toda elegante 94
16
Marieta Marshall. As irmãs Scantlebury costuravam e tinham vestidos plissados
como este da amiga
95
17
Liliana Skeete, formada como contadora pelo Colégio Moderno 117
18
Convite das Bodas de Diamante do casal Burnett, com a reprodução da foto de
casamento
122
19
Alice Scantlebury 130
20
Dudley Chase, barbadiano, com seus dois netos. “Estes já são da terceira mistura”
(Nicholas Chase)
169
11
ÍNDICE DE QUADROS
1 Informantes por gerações 28
2 Barbadianos, segundo os outros 34
3 As gerações e suas diferenciações sociais e identitárias 136
4 Sobre a primeira geração (Robert Clyde Skeete) 137
5 Sobre a segunda geração (James Burnett) 138
6 Sobre a segunda geração (Beatriz White) 139
7 Sobre a segunda geração (Alice Scantlebury) 140
8 Sobre a segunda geração (Lilian Scantlebury) 141
9 Sobre a segunda geração (Lili Skeete) 142
10
Sobre a terceira geração (Nicholas Chase) 143
11
Sobre a terceira geração (Tatiana Deane) 144
12
Sobre a terceira geração (Liliana Skeete) ) 145
12
AGRADECIMENTOS
Fica o que significa. Pensando e sentindo a intensidade desta expressão, citada por Ecléa
Bosi (1979), quero agradecer às pessoas que me acompanharam nestes dois últimos anos e que
colaboraram para a elaboração desta dissertão.
Então, o que em mim fica?
Fica o agradecimento sincero à Maria Angelica Motta-Maués, por ter gostado desde o
início do projeto e ter acreditado na realização desta dissertação, que traz muito das suas
colaborões sempre pertinentes, fruto de sua compencia profissional, mas também de sua
dedicação e atenção, que pude desfrutar como aluna e como orientanda. Com ela aprendi esta
lição fundamental: o basta ser bom e belo, é preciso ser agradável, o que vale para o que
fazemos e somos. Você significou muito para mim, Angelica.
O agradecimento se estende aos professores, que leram e discutiram partes do projeto e da
dissertação: Diana Antonaz, que muito admiro e com quem muito aprendi sobre Antropologia e
sobre humanidade; Jimena Felipe Beltrão, que me fez pensar e repensar os métodos de análise das
fontes, entendendo os relatos orais como textos; Marilu Marcia Campelo, que para mim é um
exemplo de antropóloga e professora dedicada, o que pude perceber nas duas vezes em que fui
sua aluna; Mônica Prates Conrado, por seu interesse pelo projeto, que acompanhou à distância,
mas esteve perto para debater comigo uma parte da dissertação, e, também, pela admiração que
tenho por ela como mulher, negra, que discute sobre mulheres e homens, sobre racismo e
violência, temas para mim fundamentais – a mesma admirão que tenho por Marilu e Angelica.
À Jane Felipe Beltrão, por ter me orientado durante parte deste percurso que, agora,
culmina com a dissertação, sempre indicando os caminhos possíveis, as leituras pertinentes,
também emprestando livros, o que muito significou para o refinamento das questões que eu
levantava.
Ao professor Raymundo Heraldo Maués, por sua competência como antropólogo e
professor, mas também por ter se travestido de informante quando precisei saber mais sobre
barbadianos, como também o fizeram Zélia Amador de Deus, Jane Felipe Beltrão, Cândida
Barros e Romero Ximenes, este último sem a menor pretensão neste sentido. Vocês significaram
muito para a viabilização da pesquisa e, conseqüentemente, para a escrita do texto.
Aos professores que aceitaram o convite para a discuso e defesa da dissertação,
compondo a banca examinadora da mesma: o Prof. Dr. Isidoro Alves, a Profª Drª Rosa Elizabeth
13
Acevedo Marin, e à Profª M. Sc. Carmem Izabel Rodrigues. Deixando um pouco de lado o
formalismo, agradeço à Rosa, pois foi com ela, na sala de aula, nos seminários e nos trabalhos de
campo com quilombolas, que aprendi a gostar de Antropologia e pensar a História como algo
vivo e necessário para o entendimento, mas também para o questionamento de nossa realidade. À
Carmem pela ateão e companheirismo ao longo do mestrado, nas salas de aula, mas também
nos corredores, quando, mesmo estando às voltas com o seu doutoramento, se fez colega sem
deixar de ser professora, permitindo que eu aprendesse muito, mais e melhor.
Aos colegas queridos, Leandro Xavier, Francilene Parente, Wanda Pantoja, Rachel Abreu,
Shirley Monteiro, Euzalina Ferrão e Marilene Pantoja, pela amizade e companheirismo, pelas
trocas de conhecimento e experiências.
Àqueles que colaboraram nos momentos mais diversos, dando uma mãozinha nas diversas
tarefas acadêmicas: Rita Domingues-Lopes e Ézyo Lamarca da Silva, pessoas de quem gosto e
admiro; Rosângela e Paulo, que na secretaria do curso sempre deram um importante auxílio; e
Roselene Corrêa Pinto, pelo empenho e interesse em me ajudar no trato com o material da
pesquisa e que se orgulha de “saber mais do que ninguém” sobre os barbadianos e o meu trabalho.
Valeu irmã.
Aos meus colaboradores na pesquisa: James Skeete e Saulo Barros, que indicaram
caminhos para “chegar aos barbadianos”, também pela amizade e respeito; agradecimento que
estendo aos seus companheiros da IEAB, que sempre me receberam com presteza e simpatia. Não
poderia deixar de agradecer, também, aos demais interlocutores, que abriram suas portas, seus
álbuns de família e seus corações para lembrar e me contar suas histórias em Belém, de Belém e
com Belém, por isso meu sincero abraço à Beatriz White, Nicholas Chase, Tatiana Deane de
Abreu Sá, Alice e Lilian Scantlebury, Lili e Liliana Skeete; sem esquecer de Elizabeth Busby,
Mara e Ovio Chase e Lucy Burnett.
Por último, e por primeiro, à minha família, que significa tudo para mim: amor, incentivo,
solidariedade e compreensão. Meus pais, Flávio e Raimunda, meus iros, Júnior, Roselene,
Rosana e Luciane, a minha sogra-mãe “Milourdes”, os amados Wendell, Lecia, Gabriel,
Mariléia, Rauni e minha vovó Margarida. Ao meu amor Helder, que foi mais uma vez um
companheiro e tanto, e à nossa vida Rafael, que sentiu o corre-corre da mamãe, mas sempre pôde
alegrá-la com seu sorriso lindo – igual ao pai, esse menino! A vocês dois dedico este trabalho.
14
Capítulo 1
BARBADIANOS NA AMAZÔNIA: NEGROS, ESTRANGEIROS
Trabalhadores para a Amazônia. Mas, barbadianos?
Ingleses Pretos, Barbadianos Negros e Brasileiros Morenos? Esta dissertação traz um
estudo sobre os “barbadianos” no Pará, e mais especificamente em Belém, entre o século XX
e este início do XXI. O termo “barbadianoé uma categoria que não indica simplesmente
uma origem ou nacionalidade, mas foi empregada como uma identificação englobadora,
atribuída aos negros estrangeiros, o introduzidos aqui como escravos, que vieram, desde o
início do século XX, de diversas partes do Caribe, mais especificamente de áreas de
colonização inglesa, para Belém e outras cidades da Amazônia. Tal termo guarda relação
com as imagens que a sociedade construiu acerca desse grupo de pessoas, e que se estendeu
sobre seus descendentes, chegando ao ponto de se constituir como uma espécie de rótulo a
identificar, pelo menos até meados do XX, inclusive de forma negativa, o negro que é
estrangeiro, falante do inglês e, ainda, anglicano.
Nem todas as pessoas por mim entrevistadas afirmam-se como “barbadianas” - mesmo
aquelas que confirmam serem descendentes de pessoas assim designadas apesar de serem
tidas por outros como tal. Neste sentido é que o termo aqui em questão encontra-se até aqui
aspeado. Entretanto, como de resto em toda a dissertação, o mesmo será empregado sem
aspas daqui por diante, para não cansar o leitor.
Apesar da designação remeter, de forma direta, a pessoas oriundas de Barbados, na
América Central, a categoria parece recobrir nuanças mais finas, de cor/raça (negra),
nacionalidade (diversas áreas da América Central), de religião (reformada/protestante) e de
língua (inglesa). Sobre estes sujeitos investigados, registros na literatura coeva acerca da
presença negra/africana na Amazônia, tanto nas obras de Raymundo Moraes
1
e Vicente
Salles
2
, e nos escritos sobre os percalços da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,
1
Cf. MORAES, Raymundo. Amphitheatro Amazônico. São Paulo: Melhoramentos, s/d [1936 ?].
2
Cf. SALLES, Vicente. O Negro no Pará. Sob o regime da escravidão. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas/UFPA, 1971.
15
analisados por Neville Craig
3
, Manoel Rodrigues Ferreira
4
, Márcio Souza
5
e Francisco Foot
Hardman,
6
quanto na memória dos descendentes de barbadianos e demais contemporâneos.
Retornando ao século XIX, através dos relatórios dos presidentes de província, é
possível perceber que, nas últimas décadas, implementava-se a propaganda em favor da
imigração para o Grão-Pa, dado que era tomada como o “magno problema da colonização e
povoamento da Amazônia”.
7
A importação de trabalhadores estrangeiros ou de outras regiões
do Império brasileiro era uma das respostas apresentadas, não para o Pará, mas para a
Amazônia, o Brasil até.
8
A navegação a vapor avançava, ou melhor, os navios, sobretudo estrangeiros,
avançavam sobre a região, transportando pessoas, mercadorias, idéias, ou “pessoas-
mercadoria”, através do Porto de Belém, que demarcava a entrada para os demais “rincões”
da Amazônia. Ao lado dos interesses de Estado, estavam os interesses de particulares, através
de diversas firmas. Dentre os projetos implementados com vistas ao desenvolvimento,
sobretudo econômico, da região, também se viabilizava o da implantação das ferrovias. E a
história, ou a grande aventura, da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, neste
sentido, tem muito para nos contar sobre a experiência dos trabalhadores na região.
9
3
Cf. CRAIG, Neville B. Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma expedição. São Paulo:
Nacional, 1947.
4
Cf. FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia. São
Paulo: Melhoramentos/ Secretaria de Estado da Cultura, 1981.
5
Cf. SOUZA, Márcio. Mad Maria. São Paulo: Marco Zero, s/d [1980].
6
Cf. HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
7
E isto o era nenhuma novidade naquele contexto marcado pelas discussões em torno da economia gomífera
na região, a qual delimitou o período que se convencionou chamar de Bellé-époque, apesar do fausto ser
experimentado por poucos. Sobre o assunto, consultar: DIAS, Edinéia Mascarenhas. A Ilusão do Fausto, Manaus
(1890-1920). Manaus: Valer, 1999; SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas Produzindo a Bellé-époque (1870-
1912). Belém: Paka-Tatu, 2000. Ano após ano, os discursos se repetiam quanto à tentativa de se solucionar dois
velhos problemas: a propalada escassez de mão de obra e o problema dos transportes na região. Quanto aos
transportes, melhorias aconteceram e estavam por acontecer, afinal desde 1867 havia-se decretado a abertura do
“grande rio do Amazonas aos pavilhões de todas as nações amigas”. Sobre o assunto, consultar: PARÁ.
Presidente da Província (Miguel José d’Almeida Pernambuco). Relatório apresentado à Assembléia Legislativa,
em 18 de mao de 1889. Pará, Typ. de A. Fructuoso da Costa, 1889. Acervo da Biblioteca Orlando Bittar, do
Conselho Estadual de Cultura do Pará, sob a guarda da Biblioteca Pública Arthur Vianna (doravante BPAV).
8
Havia uma preocupação com a introdução de trabalhadores europeus no Brasil, em especial na Amazônia.
Sobretudo quando se considera o fim da escravidão, enquanto instituição (como proceder à “extinção do
elemento servil” ?; leia-se: o que fazer dado o fim iminente da escravidão?), bem como a intensificação da
economia gomífera, que, para muitas autoridades governamentais, concentrava a mão-de-obra regional no
extrativismo do látex, deixando outros setores importantes alijados ou carentes de mão-de-obra.
9
Adentrando o rio Amazonas, alcançando os rios Madeira e Mamoré, no extremo ocidental da Amazônia, nas
fronteiras com a Bolívia, imaginemos o trajeto da viagem para se chegar ao Porto de Santo Antônio, onde
16
Na bibliografia referente à construção da EFMM, são enfatizadas as circunstâncias
enfrentadas pelos diferentes trabalhadores no contexto da construção da EFMM, a ponto de
constituírem-se como uma situação limite
10
aquela experimentada por eles, dada a
precariedade das condições de trabalho, a vivência tensa, perigosa, por vezes conflituosa, nas
áreas que estavam sendo desbravadas áreas de mata, entrecruzando rios com trechos
encachoeirados, sem contar as doenças a que ficavam expostos os trabalhadores recém-
chegados, como a malária.
O fato é que uma massa de operários de diferentes países fora arregimentada para a
construção desta ferrovia,
11
assim como imigraram muitos para outras áreas, como Belém.
Quanto aos trabalhadores caribenhos, especificamente, tratava-se de negros, de formação
protestante e falantes do idioma inglês, denominados genericamente de barbadianos.
12
Na
verdade, eram procedentes de diversas localidades centro-americanas: Barbados, Trinidad,
Jamaica, Santa Lúcia, Martinica,
13
São Vicente, Guianas, Granada, e outras ilhas das Antilhas
inicialmente foi tentada a implantação da ferrovia, doravante EFMM, nas décadas de 1870 e 80, embora a
construção efetiva tenha se dado a partir de 1907, depois de assinado o Tratado de Petrópolis (1903) entre
Bolívia e Brasil, no qual este último se comprometia em construir a dita estrada de ferro. A empresa Madeira
Mamoré Railway Company, com sede nos Estados Unidos, incumbiu-se da realização da obra, só concluída por
volta de 1912.
10
Trata-se de situações extremas que, segundo Diana Antonaz, as pessoas experimentam sem dispor de um
instrumental para lidar com elas, posto que são situações desconhecidas e, freqüentemente, dolorosas. No caso
deste trabalho, trata-se da situação de imigrantes dos trabalhadores da EFMM, a qual é marcada pela inserção
dos mesmos na Amazônia como trabalhadores submetidos aos interesses das empreiteiras estrangeiras
responsáveis pela execução das obras, tendo estes experimentado as tensões provocadas pelas “fricções” e/ou
conflitos étnicos, violência, doenças, dentre outros. E, na medida em que conferem visibilidade aos “quadros
mentais, relações e outros aspectos do social, que normalmente permanecem submersos”, tais fatos, enquanto
“fatos sociais totais”, revestem-se de grande interesse para os estudos antropológicos. Conferir: ANTONAZ,
Diana. Relevância Antropológica das “Situações Limite” Programa de Curso. Belém: PPGCS/UFPA, 2004
(mimeo), p. 1. Ver, também, o trabalho final da disciplina produzido a partir da problemática do projeto de
pesquisa, em: LIMA, Maria Roseane Pinto. “Barbadianos na Amazônia via Mad Maria: ensaio sobre uma
situação limite através da leitura de um romance de Márcio Souza”. Belém: PPGCS/UFPA, 2004 (mimeo).
11
Dentre os europeus que vieram para a região construir a EFMM, é possível citar: italianos, alemães, espanhóis,
ingleses, gregos e portugueses. Mas vieram, também, asiáticos: hindus e chineses. Do próprio continente, além
dos norte-americanos, foi proposta e implementada a introdução dos nativos das colônias inglesas da América
Central, dado que muitos destes trabalhadores teriam adquirido experiência na construção de ferrovias em sua
região de origem, bem como no estabelecimento do canal do Panamá.
12
FERREIRA, 1981.
13
Léti (2003), ao discorrer sobre a imigração para a Martinica, na segunda metade do século XIX, aponta para os
tipos de imigração possíveis (européia, asiática indianos e chineses, e africana), refletindo o contexto pós-
abolição, inclusive sendo utilizada contra os antigos escravos como meio de pressão sobre os salários. Dado o
malogro da introdução de europeus passou-se a considerar a imigração africana como a que “melhor convém” às
Antilhas, sobretudo entre 1857-1862. o só africanos mas, também, indianos foram grandemente introduzidos
naquela região, evidenciando o trânsito destes indivíduos, que se dava desde seus continentes de origem,
passando pela América Central e chegando à Amazônia. Ver: LÉTI, Geneviéve. L’Immigration Indienne à La
Martinique (1853-1900). Fort-de-France: Conseil Général de la Martinique / Archives Départementales de la
Martinique, 2003.
17
(Ilustração 1). Sua presença na região amazônica foi registrada desde a primeira fase de
construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, ainda no século XIX, quando foram
introduzidos cerca de mil trabalhadores que embarcaram rumo àquela área. Sua presença foi,
ainda, intensificada no século XX, entre os que compuseram a força de trabalho naquele
espetáculo audacioso e trágico da obra símbolo do capitalismo e da modernidade na selva
amazônica, como já ressaltara Francisco Foot Hardman.
14
14
Sobre o assunto, consultar: HARDMAN, 1988; FERREIRA, 1981; e também SOUZA, s/d [1980].
18
Ilustração 1. Mapa da América Central; Barbados em destaque
Fonte Eletrônica: http://www.guiageografico.com/mapas/mapa-america-central.htm e
http://www.purevacations.com/surf/barbados/barbados.gif
Acesso em: 11/10/2004
19
Sobre a saga dos trabalhadores envolvidos na construção da EFMM, existem, então,
outros indícios a partir das obras de Neville Craig, Manoel Rodrigues Ferreira, Márcio Souza,
além do já citado Francisco Foot Hardman.
15
Em todas elas os barbadianos são mencionados,
como parte da massa de trabalhadores para aquele empreendimento, constituindo uma
memória daquele lugar como marcado pela exploração, mas, principalmente, pela morte de
seus trabalhadores. “Cada dormente uma morte”, célebre frase apresentada em “A Ferrovia do
Diabo” (Ferreira, 1981). Quanto aos barbadianos, de forma mais específica, a literatura que
procura dar conta da história da EFMM, corrobora determinadas imagens/idéias sobre sua
diferença, lingüística, racial, religiosa, às vezes como negros estranhos, violentos, e como um
contraponto a outros trabalhadores com os quais são contrastados racial e culturalmente, como
é o caso dos alemães; imagens que, difundidas de longa data, alcançaram recentemente o
grande público com a apresentação da minissérie Mad Maria, pela Rede Globo, em de janeiro
de 2005, baseada no romance de Márcio Souza, e que impulsionou uma série de reportagens
sobre a “ferrovia da morte” e seus trabalhadores “mortos-vivos”.
16
Importante, contudo, é destacar que as diferentes obras que tratam da EFMM, para
além das pistas que possam fornecer sobre as imagens acerca dos trabalhadores e dos
significados de que a entrada de negros, como os barbadianos, possam ter se revestido
naquele contexto na região, indicam o movimento mais amplo de trabalhadores de diferentes
15
A obra de Neville Craig (1947) é, na verdade, o relato de alguém contemporâneo ao fato, lá atuando na
condição de engenheiro que, no seu relatório, apontava os problemas enfrentados pelos trabalhadores. Manoel
Rodrigues Ferreira (1981 [1959]) é o autor que mais claramente trabalhou com a idéia de uma “ferrovia do
diabo”, dados os percalços para sua construção, doenças e mortes dos trabalhadores. Ao discorrer sobre a
“legião estrangeira de trabalhadores” utilizada na construção dessa ferrovia do diabo, afirmou que apenas no ano
de 1910, dos 6.090 homens engajados nas obras, 494 eram engenheiros, maquinistas, mecânicos, dentre outras
especialidades, enquanto a grande maioria, isto é, 5.596 eram operários, exercendo atividades braçais; destes
operários, o maior contingente teria vindo das Antilhas e de Barbados, mais especificamente: 2.211
trabalhadores. Os demais seriam brasileiros e portugueses (1.636), espanhóis (1.450), sendo que 299 tinham
procedência desconhecida. Márcio Souza (s/d [1980]), conhecido escritor nascido no Amazonas, produziu um
romance, em que a locomotiva, Mad Maria (Maria Louca) aparece como uma mulher naquele cenário de
homens, povoando os sonhos dos engenheiros e os pesadelos dos trabalhadores. Realidade e ficção se misturam
numa narrativa que recupera importantes fatos da história da construção de ferrovias no Brasil, e na qual uma
atenção especial é conferida pelo autor aos barbadianos, sempre às voltas com conflitos ora com os
preconceituosos alemães, ora com os famintos e subordinados hindus. Francisco Foot Hardman (1988),
finalmente, analisa a história da EFMM no quadro geral da construção das ferrovias, do império do ferro e do
vidro, a partir das proposições marxistas críticas ao capitalismo, e apontando modernidade e fantasmagorias
como elementos que caminham juntos. Trata-se de uma obra fundamental, sobretudo, pela pesquisa de fôlego
que disponibiliza ao leitor, feita em arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiros, que procura apontar,
também, os problemas enfrentados por aqueles trabalhadores, “proletários mades contratados”, como definiu
Hardman, denunciando a situação dos mesmos, que foram valorizados apenas enquanto força de trabalho.
16
O governo do estado de Rondônia financiou a execução do projeto, com claros fins turísticos. Além disso, e
aproveitando aquele momento, publicações foram lançadas, como o DOSSIÊ Madeira-Mamoré. A Ferrovia da
Morte”. In: Revista História Viva, n. 14, 30-53, o Paulo: Duetto, dez. 2004; e outras relançadas, como a obra
aqui já mencionada de HARDMAN, 1988, pela Companhia das Letras, em edição revista e ampliada.
20
países pela América Central e desta para a Amazônia, num trânsito entre Belém, Manaus e
Porto Velho, isto de forma relativamente constante, sobretudo entre os anos de 1907 e 1912
(Ferreira, 1981); em que pese as especificidades desta presença no Pará.
17
Sobre este movimento de trabalhadores, é preciso considerar que seu fluxo envolvia
migrações para dentro e para fora das Índias Ocidentais Britânicas, desde 1840, mas
principalmente nas duas primeiras décadas do século XX, como aponta Michael Craton.
18
Segundo este autor, os trabalhadores migrantes foram “vítimasdo capital internacional que
se lançou sobre ao-de-obra disponível nestas áreas, e que passava por dificuldades
impostas pelo crescimento populacional, a carência de terras de subsistência e a insuficiência
de seus salários locais, sem contar a opressão colonial. Craton (1995: 66) considera,
entretanto, que estes trabalhadores, ao migrarem, “(...) estavam fazendo opções voluntárias
que, ao que esperavam e pelo menos de início, eram preferíveis às condições de suas terras
natais”.
De fato, para além deste período de construção da EFMM, também foi assistida a
entrada de barbadianos, antilhanos ou west-indians, como eram identificados os procedentes
da América Central, nas cidades mais urbanizadas (ou em urbanização) da região (este é o
caso de Belém), ao longo da primeira metade do século XX, ainda por conta da ação de
empresas estrangeiras na Amazônia, como nos é informado pela literatura, bem como pelos
próprios relatos de descendentes de barbadianos.
19
A literatura coeva informa sobre “uma corrente aberta (...) de Barbados para Belém”,
20
no início do século XX, quando trabalhadores das Antilhas foram contratados por firmas
17
É preciso, por exemplo, relativizar a idéia (ou impressão) de que barbadianos da EFMM e os de Belém
passaram pela mesma situação limite, considerando-se as agruras e morte que sofreram os trabalhadores
encarregados da construção de uma ferrovia em plena selva, como tanto a literatura pertinente ao tema destaca.
Mas as aproximações/contrastes podem ser pensados, sobretudo se atentarmos para as formas de arregimentação,
transporte e estabelecimento da mão-de-obra dirigida às duas localidades em questão, bem como para
preconceitos e discriminações raciais que podem ter experimentado de forma física ou simbólica.
18
CRATON, Michel. “Reembaralhando as Cartas: a transição da escravidão para outras formas de trabalho no
Caribe britânico. In: Estudos Afro-asiáticos, n. 28, Rio de Janeiro: Centro de Estudos Afro-asiáticos, out/1995,
pp. 31-83.
19
Nestes relatos há referências às empresas que executavam obras de infra-estrutura, como viação pública e
iluminação a gás (Pará Eletric Railway and Lighting Company), implantação de linha telegráfica por cabos
submarinos (The Amazon Telegraph Company, substituída posteriormente pela Western Co.) e serviços de
navegação e nos portos de Belém (Amazon River, Port of Pará). Sobre a atuação de tais empresas como
reveladoras da incursão de capitais estrangeiros em Belém, no contexto do boom da economia gomífera e da
política urbanizadora do intendente Antônio Lemos, consultar: SARGES, 2000.
20
Assim escreve Raymundo Moraes, no capítulo em que trata do negro no Amphitheatro Amazônico, o qual
comentamos adiante (s/d [1936]: 140).
21
estrangeiras, principalmente inglesas, que executavam serviços de infra-estrutura no Estado
do Pará. Neste período, como um prolongamento do que vinha acontecendo desde finais
dos Oitocentos, assistia-se à propaganda em favor da imigração para o Grão-Pará, e os
discursos das autoridades provinciais apontavam para a escassez de mão de obra
21
e a
deficiência dos transportes como os dois principais problemas da região. Ambos foram
tomados como graves, especialmente, naqueles anos em que as atenções, na Amazônia, e no
Brasil como um todo, concentravam-se na economia gomífera, que proporcionou à região
uma época de fausto, com grande crescimento econômico seguido de estagnação. A
importação de trabalhadores estrangeiros ou de outras regiões do Império brasileiro era uma
das respostas apresentadas; mas no caso dos barbadianos, trabalhadores em sua quase
totalidade negros, tal imigração não era nem conduzida pelo Estado e, muito menos, vista com
bons olhos, dadas as discussões quanto aos rumos da mestiçagem no Brasil e, especialmente,
no Pará.
22
Do que pude ler e do que pude apreender dos relatos feitos por descendentes de
barbadianos em Belém, a entrada destes imigrantes na cidade se deu no início do século XX,
23
especialmente na fase de crescimento da economia gomífera e da intensificação da presença
estrangeira, sobretudo inglesa, interessada no comércio, sim, mas também empenhada na
execução de obras de infra-estrutura, para as quais havia a necessidade de o-de-obra, para
instalação de energia, do sistema de transporte por bondes, serviços portuários, telegráficos,
dentre outros.
No início da construção do projeto de pesquisa, do qual acabou resultando este
trabalho, era premente a necessidade de incursionar pela história dos ditos barbadianos, que
vieram para a Amazônia, quer dizer, o só para Belém, mas também para outras áreas,
21
Quanto a tal questão, tomo como fundamental a consideração do processo de emancipação do braço escravo,
cuja discussão permeava os relatórios provinciais pelo menos desde a década de 1870. Na condução desse
processo, que culminou com a abolição da escravatura, eram apresentadas pelas autoridades provinciais, dentre
outras coisas, as medidas a serem adotadas com vistas ao tipo de trabalhador que poderia “substituir” o escravo
negro e/ou mestiço. Decorria daí a defesa de uma determinada emigração, incentivada pelo Estado, a qual pode
ajudar a entender, inclusive por contraste, como se deu a inserção dos barbadianos na Amazônia.
22
Sobre isto bastaria lembrar que, em fins da escravidão no Brasil, o Império Brasileiro vedava a entrada de
trabalhadores negros livres no país, a exemplo do que aconteceu nas primeiras tentativas de construção da
EFMM, para qual foram selecionados cerca de 70 trabalhadores, “homens de cor com a certeza de que se
adequariam melhor ao clima”, mas que foram impedidos de embarcar no vapor Mercedita, que partira dos
Estados Unidos rumo ao Pará, dada a proibição expressa de um ministro brasileiro em Washington, como foi
noticiado no jornal New York Herald, de 3 de janeiro de 1878, apud SANTILI, Marcos. Madeira-Mamo:
imagem & memória (1909-1912). São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 1982, p. 11.
23
Cf: CRATON, 1995.
22
especialmente para a fronteira entre o Brasil e a Bolívia, onde se estabeleceu a construção da
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, considerando tanto o trânsito dos mesmos por diferentes
áreas, quanto as muitas relações estabelecidas com brasileiros e estrangeiros na região,
intentando uma análise a partir dos pontos de inflexão entre Antropologia e História.
Entretanto, à medida que o trabalho foi se desenvolvendo, e, principalmente, depois
que procedi às primeiras entrevistas com descendentes de barbadianos em Belém, percebi que
estava diante de um rico material para a história destes sujeitos aqui,o de uma história que
se aproximasse da oficial, isto é, daquela que partia dos relatórios de governo e dos discursos
em torno da imigração e dos imigrantes que se pretendia para a região, e que condenava a
presença barbadiana no Pará, a exemplo do que é possível encontrar na literatura coeva. Mas,
uma história a partir dos pontos de vista daqueles que viveram uma época marcada, ainda,
pelos problemas advindos de séculos de escravidão, que tiveram de lidar com o fato de
estarem na confluência entre costumes, línguas, identidades diferentes - como brasileiros,
ingleses e barbadianos.
Seguindo pistas: sobre os barbadianos na Amazônia
“Puxando pela memória”, apresentarei, neste capítulo introdutório um pouco dos
“percursos” que fiz para a construção de meu objeto de pesquisa, bem como do refinamento
das questões que serão tratadas nesta dissertação.
A proposta inicial de pesquisa surgiu antes mesmo de minha seleção no mestrado
das discussões possibilitadas através do curso “Sociedades Quilombolas e Comunidades
Negras Rurais Contemporâneas – Perspectivas de estudos”.
24
No mesmo, foi avaliada a
bibliografia existente sobre a temática da escravidão negra e do racismo no Brasil, além de
questões em torno de trabalho, etnicidade, identidade e cultura. Das “conversas” com a
bibliografia, sobretudo àquela concernente à história da presença negra/africana na Amazônia,
e mais especificamente no Pará, desde as obras consideradas clássicas como as de Vicente
Salles (1971) e de Figueiredo e Vergolino-Henry,
25
até os estudos mais recentes, como os de
24
Ministrado pela Profª D Rosa Acevedo Marin, como um dos Tópicos Especiais ofertados pelo Curso de
Mestrado em Antropologia, da Universidade Federal do Pará, no segundo semestre de 2002.
25
Cf. FIGUEIREDO, Arthur Napoleão & VERGOLINO-HENRY, Anaíza. A Presença Africana na Amazônia
Colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Estado do Pará, 1990.
23
Motta-Maués,
26
Acevedo Marin,
27
Gomes
28
e Bezerra Neto,
29
é possível perceber que,
atualmente, não se trata mais de procurar demarcar a presença do negro na região, a despeito
dos esforços daqueles trabalhos pioneiros citados aqui, os quais muito contribuíram para o
avanço do que se conhece hoje sobre os grupos humanos postos em contato desde o período
colonial, isto é, da visualização da Amazônia como área de múltiplos contatos, inter-relações
e experiências étnicas, sociais e culturais.
30
A iniciativa desta pesquisa surgiu, portanto, a partir de uma revisão bibliográfica que,
dentre outras coisas, forneceu-me algumas pistas sobre a incursão, pela Amazônia, dos
chamados barbadianos. Mas quem seriam eles? Vicente Salles, ao discorrer sobre as etnias
na rego, apontou um primeiro indício da presença daqueles negros em Belém (1971: 87-89),
na crítica que faz a Raymundo Moraes, como exemplo de “enfoque distorcido e eivado de
preconceitos. Isto porque este último autor, ao se propor a analisar o negro no seu
“Amphitheatro Amazônico”, escrevendo nos idos da década de 1930, indicava “uma corrente
aberta não há muito de Barbados para Belém”, muito preocupado com os rumos que a
mestiçagem poderia tomar na região, especialmente no Pará.
31
De fato, Moraes (s/d [1936?]:141) percebia de forma muito negativa a incursão dos
barbadianos imigrados para Belém; pior ainda porque vinham a somar com o “cabra
nordestino” de “cabeça chata, cara quadrada, pelle grossa, anguloso, cabello de fogo, ás
26
Cf. MOTTA-MAUÉS, Maria Angelica. “ “Mãe-Preta” & “Mulata”: reconstituindo imagens da mulher negra”.
In: Cadernos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas. 7 (12), 29-43, Belém: UFPA, 1987; e “É Tempo de
Negro: o centenário e as notícias na imprensa”. In: Cadernos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas. 8
(18), 45-68, Belém, UFPA, 1988; além de sua tese: Negro Sobre Negro: a questão racial no pensamento das
elites negras brasileiras (1930-1988). Rio de Janeiro: IUPERJ, 1997. Tese de doutorado (mimeo).
27
Cf. ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Du Travail Esclave au Travail Libre: le Pará (Brésil) sous le
Regime Colonial et sous l’Empire (XVII-XIX siécles). Paris: École das Hautes Études en Sciences Sociales, 1985.
Tese de doutorado (mimeo); e ACEVEDO MARIN, Rosa & CASTRO, Edna. Negros do Trombetas, guardiões
das matas e dos rios. Belém: UFPA, 1993.
28
Cf. GOMES, Flávio dos Santos. “Gênero, Etnicidade e Memórias na Amazônia: notas de pesquisas
etnográficas em comunidades negras”. In: ALVARES, Maria Luiza Miranda & SANTOS, Eunice Ferreira dos
(orgs.). Mulher e Modernidade na Amazônia. Belém: CEJUP/GEPEM/CFCH/UFPA, 1997.
29
Cf. BEZERRA NETO, Jo Maia. Escravidão Negra no Grão-Pará (Sécs. XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu,
2001.
30
Estudos estes relevantes, tanto pelo contexto em que foram produzidos, quanto para as pesquisas recentes, que
sobre eles se alicerçam, lançando-se sobre novas abordagens e temas, seja refletindo sobre discursos e projetos
abolicionistas, experiências escravas, ou sentidos das comemorações em torno da Lei Áurea, seja tratando da tão
discutida “transição” para o trabalho livre, ou mesmo revelando os negros nas comunidades de fugitivos.
31
Antes de tecer considerações sobre a mestiçagem, Moraes analisou, neste capítulo sobre o “Negro no
Amphitheatro”, o início da introdução dos escravos africanos em Belém, em 1753, vindos de Bissau, via
Maranhão. Para este autor, a escravatura do africano foi uma solução para a liberdade do índio, sendo o negro
importante por ter se constituído como a “base econômica de nossa nacionalidade” e “factor principal de nossa
civilização”. Ver: MORAES, s/d [1936]: 136-137.
24
vezes de olhos azues”, sendo ambos considerados como “duas correntes de segunda mão” e
que, junto com a leva mestiça “egressa dos mocambos matogrossenses povoados de escravos
paulistas fugidos” e “cruzada com os índios vizinhos de Rondônia”, seriam os “perturbadores
da eugenia africandó”.
32
Com tudo isso, o autor mostrava-se taxativo na condenação da
mestiçagem com estes três grupos de imigrantes, visto que considerava que, apesar de Bem,
comparativamente a Manaus, possuir mais sangue africano, os afros introduzidos diretamente
no Pará “possuíam, com raras excepções, qualidades apreciáveis de brandura e bondade”;
além disso, aqui estaria se processando uma mestiçagem que produzia um pardavasco
“alegre” e de “feição branda”. Tanto que os barbadianos foram tomados como “feios” e
intrusos, afirmando ele que se tratava de “typos estes de cara antipáthica [e que] mesclaram a
seleção que se fazia no pardavasco aqui nascido, toldando-lhes o semblante alegre e a feição
branda” (Moraes, s/d [1936?], p. 140).
Pelo exposto, é possível perceber o teor da crítica de Vicente Salles a Raymundo
Moraes, em que pese o fato de, compreendendo a obra no contexto em que ela foi produzida,
as considerações deste último autor sobre a mestiçagem não serem diferentes das análises que
se produziam nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
33
Duas obras, contextos diferentes, estratégias divergentes. Na década de 1960, quando
escreveu O Negro no Pará, Salles (1971), ao discorrer sobre as procedências dos negros neste
Estado, através de uma reconstituição histórica, comentou algo sobre a imigração de negros
livres nos finais do século XIX, e, mais especificamente, sobre a fracassada tentativa de
introdução de negros norte-americanos para Amazônia. É no meio desta discussão que o
autor destacou os barbadianos, como leva de imigração diferenciada, composta por negros
diferentes dos daqui, por seus nomes, idioma e condições.
32
Sobre a relação entre a tese do branqueamento e a política de imigração no Brasil, Motta-Maués (1997) afirma
que aquela pressupunha o “extermínio das supostas raças inferiores”, através “(...) da injeção cada vez maior e
bem distribuída de sangue branco, processo esse ajudado pelo desaparecimento puro e simples do negro.” Daí a
política patrocinada pelo próprio Estado, visando a introdução de brancos (europeus), com o “projeto maior de
uma assimilação em todos os veis”, e que era “(...) contrária à vinda de negros e ‘amarelos’ que estes o
resolveriam o problema da clarificação do brasileiro.” Segundo a mesma autora, a relação entre uma política e
outra adquire mais sentido ainda quando se considera que “(...) as elites brasileiras, embora desejosas de um
‘futuro branco para o Brasil, resguardavam como podiam sua posição de ‘nobreza racial’. Sua proposta não
incluía ela mesma, permanecendo, assim, a separação entre uma elite não ‘misturada’ (supostamente branca) e a
massa (de cor) que se branqueia.” Conferir: MOTTA-MAUÉS, 1997: 32-33.
33
Uma discussão interessante sobre o tema da mestiçagem no pensamento social brasileiro pode ser encontrada
em SCHWARCZ, Lilia. O Espetáculo das Raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993; e em MOTTA-MAUÉS, 1997.
25
Nos fins do culo XIX e começos do atual, houve interessante movimento
migratório: negros barbadianos, isto é, originários da colônia inglesa de
Barbados, Caribe, imigraram sobretudo para Belém, onde ainda há
remanescentes. Esses negros, ostentando nomes anglo-saxônicos e falando o
idioma inglês, chegaram em condições bastante favoráveis e galgaram
posição social em diferentes setores: arte, magistério, economia, etc. são
geralmente industriosos. Não foram ainda estudados devidamente. E certos
cronistas, como Raimundo Morais, a eles se referiram com lamentável
desprezo. (Salles, 1979: 59).
O que interessa registrar aqui são as duas formas de tratar esta presença barbadiana,
que Moraes testemunhou, porque foi contemporânea a ele, e que Salles tomou como evidência
de que em Belém havia outros negros, que não os que descenderam dos africanos introduzidos
na região pelo sistema escravista, diferentes pela origem, diferentes, também, por sua
condição. Não foi por acaso que Salles destacou que os barbadianos “chegaram em condições
bastante favoráveis e galgaram posição social em diferentes setores”. Esse grupo de negros
“industriosos” deveria, portanto, ser objeto de estudo, e lamentável era o desprezo conferido a
eles por Moraes.
Tratando do mesmo tema, mas com visões e estratégias políticas bem diferenciadas,
um condenando, o outro valorizando, os dois autores produziram duas leituras: o 1°) que mais
negros chegavam para atrapalhar a miscigenação pela qual estava passando o negro no
Pará; e o 2°) que a despeito da forma negativa com que foram vistos, estes negros imigrantes
“galgaram posição social”, ostentando os referenciais culturais ingleses, o que lhes
possibilitou chegarem “em condições bastante favoráveis”.
O ponto a que pretendo chegar é que, nos dois casos, os barbadianos foram pensados
por oposição aos escravos negros e aos negros livres, isto é, saídos da escravidão, existentes
no Estado. No dizer de Moraes, nas primeiras décadas do século XX, a miscigenação se
processava no Pará, o que levaria, acreditava o autor, ao abrandamento (branqueamento) das
feições dos negros aqui existentes, não fosse o empecilho da entrada de mais negros no
Estado, desta vez, os “feios”, de “cara antipática”, como foram descritos os barbadianos.
Assim, negros daqui e de alhures foram colocados frente a frente, diante do
comprometido cálculo da mistura dos “tipos” humanos, que poderia culminar com a
pretendida civilização no Norte. Um pensado em função do outro, um diante do outro.
Pensados por correspondência com os pretos escravos, depois com os negros das primeiras
décadas do século XX, feio era o retrato dos barbadianos, negros piores do que os negros
daqui. Eram negros “fora do lugar”. Por que inseridos no rol de imigrantes “indesejáveis”,
26
por serem “raça inferior”, expressa em suas feições retintas, mas também por seus
comportamentos, supostamente cheios de “ódios de raça, como mencionado por Moraes.
Eram estranhos, não eram daqui. Precisavam ser decifrados, e o foram, através de práticas
racistas, ora veladas, ora escancaradas, como o leitor pode observar ao longo desta
dissertação.
Na década de setenta, entretanto, quando Salles publicou sua clássica obra sobre o
negro no Pará, o retrato foi recomposto. tempos se refletia sobre os obstáculos que
tiveram que enfrentar os negros na sociedade de classes. Sociedade que teria reservado aos
negros um lugar como subalternos; desqualificados que eram no Brasil que se pretendia
moderno. Contrastando com os negros daqui, marcados pelo passado escravo, não que os do
Caribe também não o fossem, eis que foram apresentados os barbadianos como sujeitos que
teriam chegado em condições bastante favoráveis”, e “galgaram posição social”. Por isso
deveriam ser estudados, decifrados. Eram médicos, advogados, engenheiros... diferentes da
imagem de negros desqualificados, brais. Estranhos novamente.
Mas, afinal, quem seriam esses barbadianos, que vinham somar-se às diversas gentes
da região, reconhecida, muito, como cenário demarcado pelas cores das pessoas,
diversidade de matizes, condições, origens ou nacionalidades, e, dessa forma mesmo,
grandemente registrada por viajantes e naturalistas?
34
Hoje, pouca gente tem alguma
referência a respeito. Foi preciso seguir várias pistas. Algumas delas se revelaram através de
conversas informais, outras, das entrevistas que pude fazer com pessoas de famílias tidas
como de descendentes de barbadianos em Belém. Permita-me, leitor, apresentar algumas
destas pistas que precisei seguir, e que também serão apresentadas ao longo desta dissertão.
Barbadianos, antilhanos, west indians no Pará: como chegar até eles?
Barbadianos? Quem são os barbadianos? Quando eu tentava convencer a
minha mãe de que ela deveria se assumir como uma negra, ela, depois de
tanto relutar, afirmou: eu não sou uma negra, sou uma barbadiana.
Este é um trecho da conversa que tive com uma militante da mais antiga entidade de
movimento negro em Belém (CEDENPA), em setembro de 2004, em que a mesma comentava
34
A exemplo de BATES, Henry. Um Naturalista no Rio Amazonas. São Paulo: Livraria Itatiaia, 1979 [1848-
1859]; e WALLACE, Alfred. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. o Paulo: Companhia Editora Nacional,
1939 [1848-1852], para citar, apenas, dois dos viajantes que passaram pela Amazônia no século XIX. Para uma
consulta sobre viajantes e naturalistas, entre os séculos XVII e XIX, ver, entre outros: Dossiê “Brasil dos
Viajantes”. In: Revista USP, n. 30, 1996.
27
sua curiosidade diante da resposta da mãe. Após uma série de leituras sobre o negro no Pará,
os barbadianos da EFMM, a “leva de barbadianos em Belém”, e , ainda, confeccionada uma
versão do projeto de pesquisa e dados os primeiros passos para chegar aos descendentes de
barbadianos em Belém, eis que, desta conversa informal, ficaram evidentes, ou pelo menos
indicadas, duas questões: 1) um desconhecimento sobre o que vem a ser um barbadiano (por
parte da interlocutora), e 2) a idéia formada de que não se trata de qualquer negro, mas de um
negro diferente, algo superior aos demais aqui existentes (segundo a mãe da informante).
De fato, depreende-se esta imagem na obra de Salles, como comentei acima, na qual é
destacada a posição social deles em “diferentes setores: arte, magistério, economia”, se
acrescentado que “[S]ão geralmente industriosos”.
35
E isto tudo parecia reforçado em
conversas outras que tive, desde 2003, com professores de diversas áreas de estudo da
Universidade (UFPA) os quais, quando comentava sobre o projeto de pesquisa, logo remetiam
àqueles negros professores de inglês da própria instituição ou de escolas tradicionais em
Belém, ou indicavam os negros da Igreja Anglicana, situada no bairro de Batista Campos
36
Hoje um bairro considerado de elite na cidade.
As conversas informais acabaram por definir os rumos da pesquisa. Era preciso
inquirir sobre os barbadianos em Belém, cujas imagens inicialmente pareciam destoar
daqueles famintos, doentes ou destinados à morte, às vezes perigosos, de feições estranhas,
tomados apenas como o de obra barata, embora experientes, descritos nos relatos da
EFMM.
Quais as estratégias de pesquisa que utilizei? Ir à Igreja Anglicana existente em
Belém e montar uma pequena lista com nomes de famílias ditas barbadianas, a partir do que
consegui através das muitas conversas, foram os primeiros passos. Participei de cultos,
35
Cf: SALLES, 1971: 59. Assim o autor indica a diferenciação destes negros recém-chegados em relação
àqueles aqui existentes, que experimentavam os percalços advindos dos tempos da escravidão, tais como a
dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Não é à toa, por exemplo, que Salles muito enfatizou a precária
situação dos negros e mestiços saídos da escravidão, a ponto de afirmar que, para muitos, mais valia viver como
escravo do que como liberto.
36
Refiro-me à Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Paróquia de Santa Maria, existente na avenida Serzedelo
Corrêa, em Belém. Doravante IEAB. Trata-se de um ramo da Igreja Católica, mas reformada, que foi
estabelecida nas Ilhas Britânicas, desde os “primeiros dias do cristianismo”, e encontra-se no Brasil desde 1890.
Esta Paróquia, denominada de Santa Maria, teve iniciada a sua construção a partir de 16 de agosto de 1912,
tendo à frente o reverendo A. Miles Moss. A data da fundação, oficialmente, é 2 de setembro de 1912. No
entanto, seu histórico liga-se ao culo XIX e à presença de ingleses em Belém, marcada, dentre outras coisas,
pela construção do Cemitério dos Ingleses (ao lado da igreja), cujo terreno foi comprado pelo governo britânico
em 1815. Vale ressaltar que outras igrejas anglicanas em Belém, como a dos bairros da Marambaia e da
Pratinha, cada um recebendo a invocação de um santo. Informações contidas no folheto da Paróquia de Santa
Maria, que é distribuído para os seus visitantes.
28
conversei com outras pessoas, consegui algumas entrevistas e nestas informações sobre outras
famílias. A partir dos sobrenomes referidos, fiz consultas em listas telefônicas antigas e,
ainda, contei com informações de conhecidos, para, em seguida, poder marcar e fazer outras
entrevistas. Os detalhes do processo de pesquisa, especialmente de como fui fazendo os
contatos e indo, literalmente, de uma família a outra, é o que o leitor poderá encontrar no
segundo capítulo. Nele, demonstro como as mais diversas pessoas, descendentes ou não,
ajudaram-me a reconstituir algumas histórias de vida que foram fundamentais para que eu
pudesse discutir aspectos da identidade barbadiana em Belém, ou do jogo de identidades que
contorna esta identificação.
Ao longo do texto, menciono várias famílias, mas principalmente as seguintes: Skeete,
Burnett, White, Scantlebury, Chase, Deane, e uma outra família Skeete. São as de que eu
pude saber mais, a partir dos relatos de seus filhos e netos. Dos relatos destes, menções a
outras famílias que, apesar das informações esparsas a seu respeito, procurei não
desconsiderar, apresentando-as junto com as demais; é o caso, por exemplo, dos Linch e dos
Busby. No quadro abaixo se encontra, por gerações, a lista dos informantes com quem mais
conversei, informalmente e através das entrevistas propriamente ditas.
QUADRO 1: INFORMANTES POR GERAÇÕES
GERAÇÕES INFORMANTES DATAS DAS
ENTREVISTAS
Segunda James Skeete 3 de setembro de 2004
James Burnett 30 de outubro de 2004
Beatriz White 1° de dezembro de 2004
Alice Scantlebury 2 de novembro de 2004
Lilian Scantlebury 2 de novembro de 2004
Lili Skeete 15 de novembro de 2005
Terceira Tatiana Deane 10 de janeiro de 2005
Nicholas Chase 1° de setembro de 2005
Liliana Skeete 15 de novembro de 2005
Acima, apenas as datas das entrevistas gravadas, que considero terem sido feitas em
profundidade, sendo que algumas delas tiveram cerca de quatro horas de duração. Entretanto,
as mesmas foram antecedidas por várias e preciosas conversas informais e, também,
encontros posteriores; houve, ainda, conversas (às vezes longas) por telefone, para
complementar informações, tirar dúvidas, dependendo da relação estabelecida com o
informante. Os passos foram: fazer contato, marcar entrevista, efetivá-la, a partir de um
roteiro de questões. As entrevistas foram semidirigidas e, na medida em que foram se dando,
pude acrescentar ao roteiro outras questões que me interessavam no sentido de uma
29
comparação entre relatos distintos. Mas isso só foi possível ao longo do processo de escuta e
transcrição das fitas.
Além das entrevistas com os filhos e netos destes imigrantes de que trato nesta
dissertação, contei com a colaboração de outras pessoas, como os professores da UFPA: Jane
Felipe Beltrão, Maria Angelica Motta-Maués, Raymundo Heraldo Maués, Zélia Amador de
Deus, Romero Ximenes; do MPEG: Cândida Barros; e do reverendo da IEAB, Saulo Barros.
Os professores aqui citados puderam se tornar meus informantes porque foram ex-alunos ou
colegas de trabalho dos imigrantes e de seus filhos e netos. E na medida em que fui
apresentando os resultados parciais desta pesquisa, também pude contar com as contribuições
de conhecidos e desconhecidos, nas menções que fizeram sobre barbadianos, como no
exemplo que citei no tópico acima.
Antes de contatar os informantes preferenciais, isto é, os filhos de imigrantes tidos
como barbadianos, foi preciso saber minimamente sobre eles. Então, a pesquisa foi se dando
desta maneira. Primeiro, meus professores no mestrado me foram indicando nomes, por
exemplo, ao comentarem sobre famílias barbadianas que sabiam freqüentar a IEAB. Depois,
aproveitando o que uns mencionavam sobre os outros descendentes, fui construindo a rede de
informantes.
Passei a freqüentar a IEAB, na qual contei com a colaboração de James Skeete e do
reverendo Saulo Barros.
37
Assim, tornou-me possível falar brevemente das intenções de
pesquisa aos barbadianos da IEAB. Quando se tem alguém para nos apresentar e solicitar a
colaboração de desconhecidos”, a tarefa torna-se menos árdua, e logo um tudo bem”, ou
“quem sabe qualquer dia desses a gente marca para conversar” eram as respostas dadas pelas
pessoas inicialmente listadas como barbadianas. Mas faltava alguma coisa. Como viabilizar
as entrevistas, no sentido de saber com abordar pessoas de quem eu só tinha o nome?
Nas conversas com o reverendo, que sabia de meus objetivos na pesquisa, o mesmo
mostrou-se muito interessado em aproveitar minha presença para reler papéis que continham
um pouco da história da igreja e de seus religiosos, bem como da atuação dos ingleses na
implantação e administração da IEAB, até finais da década de 1950. Assim, tive acesso a um
37
Os mesmos tornaram-se “indivíduos-chave” com os quais pude contar ao longo desta fase da pesquisa. Por
isso, mais do que tomá-los como informantes passivos, os considero como colaboradores, como afirmava
FOOTE-WHYTE, William. “Treinando a Observação Participante”. In: GUIMARÃES, Alba Zaluar.
Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1990, p. 80).
30
acervo relativamente interessante para a história dos anglicanos no Pará, tal qual pretende
compor o reverendo, sobretudo por ele conter o diário de um dos padres que esteve no Pará,
ainda no século XIX, intentando formas de implantar o anglicanismo nestas terras de maioria
românica.
38
Nos momentos das celebrações e confraternizações, procurei participar com e
como as outras pessoas, observar mais do que falar ou inquirir, e deixar para fazer o registro
em outro momento e lugar, ou quando não chamasse muito a atenção das pessoas.
Para iniciar o diálogo com quem eu pretendia entrevistar, sentia que precisava de um
mote, algo, por exemplo, que remetesse à História da presença dos barbadianos em Belém. O
livreto de uma exposição sobre os imigrantes em Belém
39
e uma fotografia (Fotografia 1)
foram os dois recursos utilizados para intentar as entrevistas que sempre pretendemos “em
profundidade.”
38
Românicos é o termo muitas vezes utilizado pelo reverendo Richard Holden para referir aos católicos no
Brasil, isto às speras da Questão Religiosa. Conferir: HOLDEN, Richard. Diário do Reverendo Richard
Holden na Amazônia entre 1860 e 1864, tentando implantar a Igreja Episcopal no Brasil. Porto Alegre: Igreja
Episcopal do Brasil, 19ª Província Anglicana, Secretaria Geral, 1990 (mimeo).
39
Refiro-me à Exposição “Belém dos Imigrantes”, da qual foi curador o historiador e professor da UFPA, Aldrin
Moura de Figueredo, sendo a mesma inaugurada em setembro de 2004. Dentre os grupos de imigrantes
destacados na exposição, encontram-se os barbadianos. Cf. ARRAES, Rosa & FIGUEIREDO, Aldrin (Coord.).
Catálogo. Belém dos Imigrantes – história e memória. Belém: Museu de Arte de Belém, 2004.
31
Fotografia 1
Grupo de west- indians em frente à Igreja Anglicana em Belém/PA, c. 1920
Fonte: EVERY, Edward Francy. South American Memories of 30 Years. Society for Promoting Christian
Knowledges (SPCK), 1933.
32
Remetendo à parte do livreto que apresentava brevemente os barbadianos, foi-me
possível, por exemplo, fazer com que pessoas das quais tinha os nomes, endereços e
telefones, viessem a se transformar em profícuos colaboradores da pesquisa, como foi o caso
das irmãs Lilian e Alice Scantlebury, filhas de barbadianos.
40
A fotografia serviu, sobretudo, diante daqueles descendentes ligados à Igreja
Anglicana, tais como as famílias White e Burnett. A mesma encontra-se impressa no livro em
que o missionário Edward Francy Every (1933) descreveu sua experiência religiosa como
bispo para as capelanias inglesas da Argentina (nas ilhas Falkland, ou Malvinas), entre 1910 e
1937. Estando no Pará, registrou a participação dos west-indians, termo utilizado para
designar “(...) justamente, o que é da[s] colônia[s] inglesa[s]”, como afirmou Beatriz White.
41
Na imagem constam cerca de 30 negros, sendo três adultos e os demais são crianças (apenas
uma das crianças não é negra; dois adultos brancos, sendo um deles, provavelmente, o
próprio bispo), todos em frente à Igreja de Santa Maria esta é a denominação da primeira
Igreja Anglicana no Pará.
42
Segundo a senhora White, “(...) eles são ingleses mesmo. Muitas
colônias tornaram-se independentes, mas a nacionalidade era inglesa.” Interessante é que,
olhando para a fotografia, inclusive reconhecendo algumas pessoas que naquele contexto
ainda eram crianças, a senhora White afirmou: “(...) é, aqui tem muitos pretiocas”. De fato, os
“pretiocas” eram o destaque da fotografia tirada na frontaria da Igreja Anglicana, pelos idos
de 1930. Assim, tal qual o termo barbadiano, west-indians remetia àquele que veio do
Caribe
43
e, ainda, referia mais à condição de colonizado do que à nacionalidade inglesa, e a
40
As quais ficaram muito contentes de poder comentar acerca da exposição em que os barbadianos foram
focalizados, e a família delas referenciada, até porque as duas irmãs ainda não tinham tido contato com o
material que resultou da mencionada exposição. Os comentários que fizeram sobre as fotos contidas serviram
de mote para o início de nossa entrevista.
41
Beatriz White, em entrevista realizada em 1° de dezembro de 2004.
42
Vale ressaltar que a IEAB manteve-se como capelania inglesa, isto é, ligada diretamente à Inglaterra, até 1956,
quando foi entregue ao comando da Igreja Episcopal Brasileira, esta campo de missão norte-americana. Ver:
EVERY, Edward Francy. South American Memories of 30 Years. Society for Promoting Christian Knowledges
(SPCK), 1933, p. 155. Tive acesso a tais informações através de referências, gentilmente cedidas, pela Profª Drª
Cândida Barros (MPEG) e pelo Reverendo Saulo Barros (IEAB, Belém). Para mais informações sobre os
missionários do Reino Unido, acessar: www.mundos.ac.uk.
43
O termo west indians ou west-indianness como a qualidade de ser caribenho, também é utilizado por Stuart
Hall, para discutir a identidade compartilhada pelos barbadianos com os demais migrantes do Caribe, ao discutir
a situação dos mesmos na Grã-Bretanha (isto sob as condições contemporâneas da globalização), e apontar o
quanto “na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas”, isto é, o quanto que, estando em um outro
país, o indivíduo ou um grupo pode ter seus elos de ligação definidos/refoados não por terem a mesma
origem, mas por sentirem-se parte de um conjunto maior (ser caribenho), e/ou sentirem-se identificados com
“(...) outras populações ditas de minoria étnica, identidades “britânicas negras” emergentes, a identificação com
os locais de assentamentos, também as redefinições simbólicas com as culturas “africanas” e, mais recentemente,
com as “afro-americanas” todas tentando cavar um lugar junto, digamos, à sua barbadianidade”
33
identidade étnico-racial, no sentido de demarcadora das diferenças entre uns e outros
fotografados, também é evidente.
Outro aspecto a destacar é que, a despeito dos dois termos serem empregados de forma
genérica, “barbadiano” parece ter sido, para os habitantes do Pará, o mais comumente
utilizado para englobar aqueles que eram negros, estrangeiros, que falavam inglês e vieram
trabalhar para os ingleses (e/ou norte-americanos). É isto que é percebido através das
afirmações de Salles (1971) ou nas falas de pessoas como o Sr. José Mesquita dos Santos que,
em meio às memórias acerca da constituição do bairro da Marambaia, de suas experiências
como um dos primeiros moradores do lugar e comentando sobre os trabalhadores dos portos
em Belém, afirmou: “em Val-de-Cães é que tinha barbadianos. Eles trabalhavam nos portos.
A Port of Pará era dos ingleses. Os barbadianos falavam inglês. Daí que eles traziam eles, era
mais fácil.”
44
Só para mencionar o quanto certas conversas informais podem ser pertinentes na
consecução de uma pesquisa, relatamos a curiosidade/dúvida que uma conhecida de nossa
“informante” eventual tinha em relação a uma vizinha negra, posto que a mesma, proveniente
de Caiena, falava “diferente”, dizia a curiosa: “aquela negra, que fala diferente, não pode ser
francesa: ela é barbadiana.”
45
A fala diferente era o francês, e isto a enunciadora parecia não
ignorar. Entretanto, até que ponto o que se procurou tornar evidente não foi a condição de
diferente/não francesa e/ou colonizada, subalterna? O fato é que, no enunciado em questão,
barbadiano designa o negro que fala diferente, outra língua, portanto não é daqui.
Até aqui, apareceram algumas “pistas” sobre os barbadianos, a partir do que se
apresentou das obras de Vicente Salles e Raymundo Moraes, e, também, de algumas pessoas
com quem conversei, ou ouvi falar sobre os sujeitos que estou pesquisando. O conjunto
destas primeiras observações pode ser melhor visualizado no quadro que reúne os enunciados
sobre o que é barbadiano “para os outros” (Quadro 2).
[Barbadianness].” Consultar: HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte/UFMG: Representações da UNESCO no Brasil, 2003, pp. 19 e 27.
44
José Mesquita dos Santos, durante conversa informal, em 3 de outubro de 2004. Conheci este senhor de forma
bem inusitada, numa das vezes que fui ao bairro da Marambaia, onde morei muitos anos. Ao comentar sobre
minha pesquisa com uma amiga, este senhor falou o que destaquei acima, posto que me chamou atenção a
relação estabelecida por ele entre ser barbadiano, falar inglês e trabalhar para ingleses; por isso considerei
pertinente registrar aqui esta contribuição.
45
Este foi o breve relato de Zélia Amador de Deus, numa conversa informal que tivemos em 8 de outubro de
2004, quando discutíamos questões referentes à pesquisa.
34
QUADRO 2. BARBADIANOS, SEGUNDO OS OUTROS*
N
.
ENUNCIADO FONTE ATRIBUIÇÃO E
OPOSIÇÃO
1.
“(...)[os negros introduzidos no Pará] não eram
feios como os da corrente aberta não há muito de
Barbados para Belém. (...) Typos estes de cara
antiphatica, mesclaram a seleção que se fazia no
pardavasco aqui nascido”.
Bibliografia (Raymundo
Moraes, 1932?, p. 140-
141)
Pretos, feios, estrangeiros,
que atrapalhariam a
miscigenação
(branqueamento) no Pará.
Pensados por oposição aos
negros do Pará, já
mestiçados (de “semblante
alegre” e “feição branda”,
caracterizados por
“brandura e bondade”), e
tidos, por isso, como fator
de civilização
2.
“aquela negra [de Caiena], que fala diferente
[francês] não pode ser francesa; ela é barbadiana”.
“(...) eles trabalhavam nos portos. A Port of Pa
era dos ingleses. Os barbadianos falavam inglês.
Daí que eles traziam eles, era mais fácil”
Conversa informal com
Zélia Amador de Deus, em
referência a terceiros
Conversa informal com
José Mesquita dos Santos.
Ser negro e falar diferente,
falar outra língua, mas ser
colonizado, subalterno,
que trabalha para ingleses
Pensados por oposição ao
estrangeiro colonizador,
“superior”, principalmente
o inglês
3.
“eu não sou uma negra, sou uma barbadiana”
“esses negros (...) galgaram posição social (...).
São geralmente industriosos”
Conversa informal com
militante do CEDENPA,
referindo sua mãe
Bibliografia (Salles, 1971)
Não ser um negro
qualquer, mas de tipo
superior, inteligente, que
ascendeu socialmente
Pensados por oposição aos
negros brasileiros,
inferiores/inferiorizados
pela cor/raça e pela
situação no mercado de
trabalho, marcados pelo
passado da escravidão
4.
“esses negros, ostentando nomes anglo-saxônicos e
falando o idioma inglês, chegaram em condições
bastante favoráveis e galgaram posição social em
diferentes setores: arte, magistério, economia, etc.”
Bibliografia (Salles, 1971) Negro que não é daqui, e
não é como os ex-
escravos, ascendeu;
ostenta nomes ingleses.
Pensado por oposição aos
escravos africanos e suas
atividades
manuais/braçais.
* As atribuições aqui apresentadas são resultado da listagem feita a partir da bibliografia que refere à presença
dos barbadianos no Pará, bem como das conversas informais com pessoas a quem esta categoria não recobre.
35
Nele já aparecem questões muito pertinentes para uma discussão sobre identidade,
como a importância da língua nas identificações dos barbadianos e seus descendentes, sendo
um elemento recorrente nas suas histórias de vida.
46
Estes últimos receberam dos pais não só
os traços físicos, mas também culturais, que revelavam aos outros, por exemplo: ao falar
inglês fluentemente (o que garantiu para muitos deles a entrada no mundo do trabalho, tal
qual os pais), ou ostentar nomes ingleses, embora os mesmos acabassem sendo
aportuguesados pelas pessoas “que não sabiam pronunciá-los corretamente”, como afirmou
um dos informantes.
47
Considerando os diferentes depoimentos, é possível concordar com
Fredrik Barth que afirma ser a língua um dos sinais manifestos da identidade étnica, isto é, um
dos signos que as pessoas exibem para mostrar sua identidade, sobretudo em situações de
contato, interação social.
48
De fato, nossos informantes destacaram como significativa a
ascendência barbadiana (aspecto positivo desta identidade), que lhes propiciou, pela
convivência com os pais, uma habilidade com a língua inglesa que os diferenciava das demais
pessoas da cidade, mesmo as que eram suas colegas de trabalho, permitindo com que se
perceba a “conveniência de se manter uma distinção”.
49
Mas, não só a língua. A religião, as roupas e/ou a forma de usá-las e os costumes, são
aspectos que contornam a identidade barbadiana, ou melhor, as identificações das pessoas que
entrevistei e daquelas de quem se tem as memórias, as quais oscilam entre outras identidades,
mais precisamente, neste sentido, entre a inglesa e a brasileira. Precisei “convidar” diferentes
autores para “ler” comigo tantas histórias, que entrelaçam identidades e memórias. No
terceiro capítulo, foi preciso fazer os informantes contar suas histórias no mundo do trabalho,
apresentando os ofícios a que se dedicaram, atentando para as diferenças de uma geração a
outra, entre homens e mulheres. Com suas famílias, no lar e fora dele. Pela cidade,
46
Definida como “(...) o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstituir os
acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu. Narrativa linear e individual (...), através
dela se delineiam as relações com os membros de seu grupo, de usa profissão, de sua camada social, de sua
sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar.” De forma simplificada, trata-se de (...) uma técnica
(qualitativa) de coleta de material, que exige muitos encontros entre o pesquisador e o narrador” e que “(...) capta
o que sucede na encruzilhada da vida individual com o social (...)”, como pode ser conferido em: QUEIROZ,
Maria Isaura Pereira de. “Relatos Orais: do “indizível” ao “dizível””. In: SIMSON, Olga de Moraes von (Org.).
Experimentos com Histórias de Vida: Itália/Brasil. São Paulo: Vértice/Editora Revista dos Tribunais, 1988, pp.
20 e 36.
47
James Burnett, em entrevista realizada em 30 de outubro de 2004.
48
Cf: BARTH, Fredrik. “Os Grupos Étnicos e Suas Fronteiras”. In: O Guru, o Iniciador e Outras Variações
Antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, pp. 25-67.
49
Cf: CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros Estrangeiros. Os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo:
Brasiliense, 1985; BOURDIEU, Pierre. Gostos de Classe e Estilos de Vida”. In: Pierre Bourdieu: sociologia.
Organizado por Renato Ortiz. São Paulo: Ática, 1983, pp. 82-121.
36
envolvidos em várias atividades. Mas também nas igrejas, como a IEAB, da qual a
memória de lugar da “colônia”. Aos poucos, ao contarem sobre si e sobre os outros,
barbadianos ou não, acabaram evidenciando em que contextos e situações é possível pensá-los
como grupo ou não, como barbadianos, ingleses ou brasileiros, tudo isso dependendo das
relações estabelecidas por eles,
50
e revelado nas suas auto-atribuições e nas atribuições dos
outros, agora passadas pelos filtros da memória.
51
No capítulo final, considerando tudo que disseram, ou melhor, o que puderam e
quiseram contar sobre suas experiências, também sobre preconceito, discriminação e
racismo,
52
demonstro de que forma foi possível perceber quando, como e por que os mesmos
sinais que serviam para marcar suas diferenças, como símbolos de prestígio, acabavam
também funcionando como símbolos de estigma,
53
daí o jogo identitário entre ser visto e
sentir-se com brasileiro, barbadiano ou inglês, sendo negro, preto ou moreno.
50
Cf: BARTH, 2000; CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, Etnia e Estrutura Social. o Paulo:
Pioneira, 1976.
51
Cf: POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2,
n.3, 3-15, 1989; “Memória e Identidade Social” In Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, n.10, 1992, pp.
200-212; BOSI, Ecléa. “A Substância Social da Memória” In Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São
Paulo: T. A. Queiroz, EDUSP, 1987, pp. 329-386.
52
Cf: MOTTA-MAUÉS, 1997; GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. São
Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo/Ed. 34, 2002, pp. 170 e seguintes.
53
Cf: GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
LTC, 1988.
37
Capítulo 2
QUEM SÃO ELES? QUEM SOMOS NÓS? “BARBADIANOS”, DIANTE DOS
OUTROS E ATRAVÉS DOS OUTROS
Iniciando contatos, conhecendo as famílias
Numa manhã de julho de 2004 fui, pela primeira vez, à Igreja Anglicana, em Belém.
Helder, que é professor de história e meu marido, acompanhou-me nesta tentativa inicial de
contatar descendentes de barbadianos nesta cidade. Estávamos em frente à IEAB, e eu
copiava as informações contidas na fachada, quando Helder notou que algm nos observava
atentamente, e que se dirigiu até nós. Foi então que nos apresentamos àquele senhor negro,
alto, simpático e cortês, que me pareceu ter mais de quarenta anos (mais tarde descobri que
ele tinha, na verdade, 53 anos). Era o James. Mostrou-se muito contente ao saber que
estávamos anotando os horários dos cultos e que gostaríamos de conhecer a igreja, talvez
pensando que fôssemos fiéis anglicanos. Rapidamente, nos convidou para entrar.
Levou-nos ao salão central da Paróquia,
54
onde ocorrem as celebrações, chamando
nossa atenção para a porta de entrada da mesma, que fica na parte de trás, ao contrário das
demais igrejas. Com muita simpatia e bastante falante, apesar de apresentar certa dificuldade
na pronúncia das palavras, foi logo nos mostrando o Livro de Orações Comum
55
, utilizado
nos cultos, informando-nos de que no mês de julho, em que o reverendo se encontrava na
Inglaterra, havia apenas celebrações, e não outros ritos, com freqüência em torno de 20 a 30
pessoas. Os cultos acontecem às quartas-feiras (às 19h, com a Bênção da Saúde) e aos
domingos (às 9h, com a Eucaristia).
Mais tarde, quando nos apresentou um dos seminaristas, um jovem com cerca de 20
anos, contaram-nos que no segundo domingo de cada mês, além da celebração,um café da
54
citei este termo no capitulo anterior, mas vale lembrar que paróquia é um dos termos empregados pelos
informantes para se referirem à IEAB.
55
O Livro de Orações Comum é, na maioria das vezes, chamado simplesmente de LOC pelos fiéis da igreja, bem
como pelo próprio reverendo.
38
manhã, preparado pelos próprios freqüentadores da Paróquia, quando “cada um traz um farnel
e todos comem, segundo James.
56
Comentei que ouvira falar da Igreja Anglicana através de um de meus professores de
Filosofia do segundo grau, chamado Fernando Ponçadilha. Os dois afirmaram conhecê-lo,
ressaltando que o mesmo encontrava-se, naquele momento, em Manaus, em missão anglicana.
O seminarista nos falou sobre a formação de outros rapazes e moças para os serviços
litúrgicos na Igreja Anglicana, cujos cursos acontecem na avenida Senador Lemos, na
UNIPOP,
57
e comentou sobre as possibilidades de serviços que podem ser exercidos pelas
mulheres. Tive a impressão que eles procuravam indicar alguns caminhos que eu poderia
seguir... O que é compreensível pela própria situação que aqui procurei descrever
brevemente, de ser alguém que estava em busca de contatar possíveis informantes para uma
pesquisa sobre os barbadianos, mas que para eles, posto que recém-chegada e perguntando
sobre a Igreja, seus ofícios e sua história, era percebida não como uma curiosa, mas como
possível freqüentadora. Afinal, eu estava diante não só do seminarista, mas também do
acólito da IEAB, James. E foi desempenhando este papel de acólito da igreja que ele nos
recebeu, isto é, como alguém que atende às pessoas e dá assistência aos celebrantes nos cultos
e em outras atividades litúrgicas; daí James comparar seu trabalho com as tarefas dos
coroinhas da Igreja Católica, inclusive por fazer uso de batina em determinadas
circunstâncias.
58
Ao final de nossa visita, James ainda nos entregou um panfleto da Igreja e apontou-
nos a biblioteca lá existente, que se encontra aberta para consultas e estudos. Fiquei de
retornar ali, como de fato retornei nas noites de quarta-feira e em muitos domingos, quando
aconteciam as celebrações nas quais era possível observar e tentar algum contato com famílias
que congregam na IEAB. Além disso, como também havia acordado com James em nossa
conversa inicial, liguei dias depois para falar com o reverendo Saulo Barros, quando este
retornou de sua viagem de férias com a família para a Inglaterra, isto no início de agosto de
56
Conversa com James Skeete, em 22 de julho de 2004. Quando Romélia Julião estava elaborando sua
dissertação de mestrado, foi instada a participar de uma destes encontros na IEAB, sendo acompanhada por sua
orientadora, Maria Angélica Motta-Maués. Também cheguei a participar deste e de outros encontros de
confraternização dos membros desta igreja.
57
Universidade Popular, dirigida os membros da Igreja Luterana em Belém.
58
Participando de alguns ritos na Igreja, observei, dentre as atividades de James, a acolhida às pessoas que
chegam para os cultos, com um cumprimento breve, seguido da distribuição do material comumente utilizado
naquelas ocasiões: a Bíblia, o livreto de cânticos e o Livro de Orações Comum. Nos momentos do ofertório, da
comunhão e dos batismos, ele também ajudava o celebrante. Além disso, James também se encarrega de
repassar avisos, fazer convites, e algumas tarefas burocráticas na IEAB.
39
2004. Desta visita à IEAB, do contato com James e com o reverendo Saulo, resultou um
passo importante para a minha inserção entre os anglicanos da Paróquia de Santa Maria, a
mais antiga e tradicional paróquia anglicana no Pará.
Dos bondes da Pará Eletric às salas de aula
Depois de algum tempo de conversa, continuava esperando uma oportunidade de
perguntar sobre os barbadianos. Aque aproveitei o momento em que James falava sobre o
reverendo e a Inglaterra para perguntar se ele próprio era inglês. Afirmou que não, tinha
nascido em Belém. E disse que era descendente de barbadiano. Perguntei se era filho de
barbadiano, ao que ele me respondeu enfaticamente que não. Seu pai era inglês (referindo-se
à nacionalidade do mesmo) e nascera em Santa Lúcia. Sua avó materna, por outro lado, teria
vindo de Trinidad e Tobago e casado com barbadiano, daí advindo sua condição de
descendente. Para minha surpresa, ao comentar sobre minhas pesquisas em torno de
barbadianos, o informante disse que era filho do professor Robert Clyde Skeete. Esta era uma
família que eu andava tentando contatar a partir de algumas pessoas que os conheciam como
“barbadianos, professores de inglês e anglicanos.
Por outro lado, aquele jeito meio “enrolado” de falar de James, que eu julgava ser um
certo sotaque, no início, acabou mostrando, com o decorrer da conversa, que se tratava de
algum problema físico deste meu primeiro informante descendente assumido de barbadianos,
em que pese o mesmo ter deixado bem claro que tal identificação não cabia ao seu pai.
Perguntado sobre o contexto da chegada da família a Belém, James remeteu-se ao
tempo do funcionamento da Pará Eletric, que contratara trabalhadores das Antilhas para os
serviços de implantação de energia no Pará. Lembrou, ainda, do tempo da chegada dos
ingleses em Belém, quando os britânicos compraram uma grande faixa de terra que ia do
Cemitério da Soledade – que, segundo ele, ficava “no meio do mato – até a travessa
Presidente Pernambuco. Mais tarde, ainda segundo James, os ingleses teriam cedido uma
parte do terreno ao Estado para a construção de uma delegacia.
59
Atualmente o terreno limita-
se ao espaço da Paróquia e da casa paroquial em anexo, à frente do Cemitério da Soledade,
60
e
ao lado de uma escola particular o prédio da escola pertence à IEAB, que a aluga para uma
59
Pela localização indicada, acredito tratar-se não de uma delegacia de polícia, mas de uma repartição de saúde
estadual, onde se encontra o antigo Centro de Saúde n° 1.
60
O Cemitério da Soledade é o campo santo mais antigo ainda existente em Belém, embora há muito não se faça
mais enterramentos neste local.
40
rede de ensino particular de Belém, tendo sido a antiga Escola Kennedy
61
e hoje abrigando o
ensino infantil do Colégio Ideal.
Além da conversa informal que mantive com James Skeete em julho de 2004, pude
encontrá-lo outras vezes, nas minhas idas à IEAB, e, também, o entrevistei meses depois,
62
buscando, tanto saber um pouco mais sobre a história da vinda de seu pai Robert Clyde
Skeete, do Caribe para Belém, quanto tentar aproveitar minhas conversas com James para
entrar em contato com outros membros da família. Este foi um contato muito importante,
especialmente pela atenção concedida por James, nas inúmeras vezes que conversamos,
inclusive, por telefone, sobre vários assuntos, mas, principalmente, comentando sobre um ou
outro membro da IEAB. De conversa em conversa fui conseguido encontrar outros
descendentes de barbadianos, mas sobre Clyde Skeete... quase silêncio.
Apesar de perceber o interesse e a disponibilidade do informante para colaborar com a
minha pesquisa,o posso negar certa frustração, especialmente para um início de entrevista,
quando, ao ser perguntado sobre o que conhece da história de seu pai e de sua chegada a
Belém, afirmou de pronto, que não sabia de nada, até porque o pai, Robert, “não é de
conversar com os filhos”. Mesmo assim, James pôde informar que seu pai viera de Santa
Lúcia e aqui chegou para trabalhar na Pará Eletric, e que “ele lidava com os bondes”. James
procurou justificar o desconhecimento da história do pai não só através do silêncio deste, mas
também pelo fato de tratar-se de um tempo do qual ele próprio não tem a lembrança, por ser
uma época que “não era a sua”; afinal, como ele afirmou, “não era nem nascido” e “a
lembrança que tenho é dele lecionando inglês”.
63
De fato, Clyde Skeete, como é mais
conhecido, é até hoje lembrado por muitas pessoas, especialmente por aqueles que estudaram
nas escolas tradicionais de Belém na segunda metade do século XX, mais especificamente nas
décadas de 50, 60 e 70, inclusive por professores da UFPA, pelos anos em que lecionou inglês
no Colégio Estadual Paes de Carvalho e no Colégio Moderno.
O ensino da língua inglesa é algo que permeia a falia Skeete, por tratar-se de uma
atividade exercida por vários de seus membros e advir de um conhecimento adquirido pela
convivência com pessoas que tinham suas raízes em terras estrangeiras, antigas colônias
61
A Escola Kennedy foi uma instituição muito conceituada em Belém até a década de 1980, tendo, em seus
quadros, professores formados por universidades, com proposta de ensino tida, na época, como moderna.
62
Entrevista com James Skeete, realizada em 3 de setembro de 2004.
63
Entrevista com James Skeete, realizada em 3 de setembro de 2004.
41
inglesas, como Santa Lúcia, Trinidad e Tobago e Barbados, como me foi informado por
James Skeete, ao falar de seu pai e de seus avós maternos.
A família Skeete é formada por Robert Clyde Skeete, o filho mais novo de uma
família de negros de Santa Lúcia, nascido em 1909, e que chegou a Belém em 1933, com
cerca de 24 anos, aqui casando com Alberta Beatrice Burnett, sobrenome que foi substituído,
com o casamento, pelo do marido. Alberta, ou Vita,
64
como era chamada, nasceu em 1912, e
faleceu em 1975, com 63 anos. O casal teve sete filhos. A filha mais velha é contabilista e
mora atualmente em Santarém. James lembrou que “no tempo que ela se formou [este ofício]
ainda era guarda-livros”.
65
Seguiram a mesma profissão mais dois dos irmãos, um residente
em Natal/RN, e o nosso informante James (nascido em 1951), que chegou a exercer tal função
no antigo Colégio Kennedy. A mais nova da família é médica e mora no Rio de Janeiro. A
terceira das irmãs é casada e mora com sua família nos Estados Unidos. Outra filha lecionou
inglês no passado, formou-se em direito, sendo aposentada por seu tempo de serviço junto à
Justiça do Trabalho. Esta, quando deixou de dar aulas de língua estrangeira no Colégio
Kennedy, passou o cargo para a irmã.
66
James mantém-se, até hoje, solteiro, como duas de suas irmãs. Moram com o pai
numa casa situada na avenida Conselheiro Furtado, isto há cerca de trinta anos. Para James, o
fato de manter-se solteiro, trata-se de uma escolha, à qual ele se refere ao contar assim:
Eu também não [casei], graças a Deus. [risos] (...) E quando os meus
colegas me encontram na rua, eles dizem: “Pôxa, Skeete, tu o envelheces,
meu”. eles perguntam: “Tu já casaste? Aí eu digo não. “Ah, já sei
porque tu não envelheces, tu não tens preocupação!” [risos]. Eles dizem que
é que eu não tenho com quem me preocupar.
67
Suas irmãs cuidam do pai, hoje quase centenário. Não tive oportunidade de conversar
com as mesmas, apesar das tentativas de contato através do próprio James e delia Amador
de Deus, conhecida de ambas, posto que, segundo as mesmas, como também James afirmou
64
Vita Burnett, filha de barbadianos, irmã de James Burnett.
65
Entrevista com James Skeete, realizada em 3 de setembro de 2004.
66
Entrevista com James Skeete, realizada em 3 de setembro de 2004.
67
Entrevista com James Skeete, realizada em 3 de setembro de 2004. Nas citações, os grifos em itálico indicam
a ênfase dada pelo informante no momento da entrevista; convenção que adotarei ao longo desta dissertação.
42
inicialmente, nada sabem acerca do passado do pai como estrangeiro, especialmente como
barbadiano, embora assim ele seja tido, por exemplo, na IEAB.
68
Robert Clyde Skeete, como afirmei anteriormente, é muito lembrado pelos longos
anos em que atuou como professor de inglês. Do que pude ouvir de seus antigos alunos
alguns destes atualmente lecionando na UFPA é enfatizada sua postura como um
profissional muito rígido, descrito como alguém que se destacava por sua rispidez no trato
com as pessoas, e, também, por seus modos de vestir e portar-se, polido e alinhado”
69
o
que pude, de fato, observar num dos cultos dominicais de agosto de 2004, quando o reverendo
retomou os trabalhos na IEAB (depois de sua viagem), e Clyde Skeete participou como um
dos aniversariantes de julho (24 de julho é a data do seu aniversário). Não me foi possível
conversar com ele, mas observei sua forma de portar-se, o terno que ele usava, a altivez do
olhar; são nuanças que parecem indicar o que as pessoas, nas idéias do senso comum,
apontam como a postura de um inglês, no sentido de um homem bem posto, fino. Uma
postura que, naquele culto dominical, somente se comparava a de Lucy Burnett, com seu
elegante tailleur, ressaltado ainda mais pelo uso de chapéu, costume que caiu em desuso entre
as anglicanas,
70
como entre as demais mulheres das camadas médias e altas de Belém, em
geral, há bastante tempo (desde os anos 30/40 do século XX).
Usando as “pontes” para chegar a outros barbadianos
Ao lembrar da figura de Lucy Burnett, acabo me remetendo a outra família tida como
barbadiana, que contatei através do entrecruzamento de informações sobre descendentes de
estrangeiros, participantes da IEAB, antigos professores de inglês: a família Burnett. Isto me
foi possível pela colaboração, muito profícua, de James Skeete que, ao contar sobre a história
de vida da sua família, acabou revelando laços de parentesco e de amizade, que me serviram
como pontes para chegar a outros barbadianos em Belém.
Lucy Burnett é participante assídua da IEAB desde muito jovem. Tem parentesco de
afinidade com James Skeete porque a mãe deste, Vita, é irmã de James Burnett, com quem
Lucy se casou. Conversando com ela após as celebrações dominicais, e também com a ajuda
68
Apesar das tentativas de contato, ficou clara a recusa das duas irmãs em tratar do assunto por mim abordado,
por razões que podem ser várias, afinal, quantas pessoas gostam de falar com estanhos sobre seu passado
familiar?
69
“Alinhado”, não no sentido de algm que “anda na linha”, mas como comumente empregamos para indicar
que uma pessoa é bem vestida, elegante.
70
Comentarei sobre o uso de chapéus pelas mulheres tidas como barbadianas, mais adiante.
43
de Zélia Amador de Deus, ex-colega de seu marido na UFPA, pude chegar ao senhor James
Burnett, que é chamado carinhosamente pelo Skeete como “tio Jaime”, sendo esta a forma
abrasileirada de seu nome. Estas “pontes” ou contatos foram importantes, especialmente, pelo
fato do senhor Burnett não freqüentar a IEAB, sendo, portanto, as oportunidades de encontrá-
lo um pouco remotas. Podia vê-lo, rapidamente, quando ele passava de carro, na frente da
Igreja, para buscar Lucy e a filha Walquíria, ao final dos cultos. Foi assim, inclusive, que
pude falar, pela primeira vez, com ele que me deu o mero de seu telefone, através do qual
marquei a entrevista com o mesmo. Soube que ele andava adoentado e, relembrando os passos
da pesquisa, ocorre-me que cheguei a pedir à Zélia Amador de Deus, para reforçar o convite
para uma entrevista. Usando mais esta “ponte, consegui a confirmação de que ele estaria
disposto a falar comigo, com a condição de que aguardasse certo tempo para que se
recuperasse de uma cirurgia que tinha feito e, além disso, conseguisse reencontrar uma
fotografia que tem dos seus pais (Fotografia 2). Passadas algumas semanas, liguei para o
senhor James que, muito solícito e cortês, como depois percebi ser sua forma habitual de lidar
com as pessoas, convidou-me para ir à sua residência, naquela tarde de sábado, em outubro de
2004. O casal Burnett morava sozinho em seu apartamento, posto que os filhos hoje são todos
casados e nenhum mora com os pais.
No momento da entrevista, ao ser perguntado sobre a genealogia da família, James,
que segurava um envelope que continha uma antiga fotografia de seus pais, citou os nomes
dos mesmos, enfatizando bem sua pronúncia e grafia: James Cristopher de Coursy Burnett e
Carlota Alberta Burnett - barbadianos, como ele os apresentou e como se encontrava escrito
no dito envelope. Quanto aos irmãos, havia preparado, previamente, um pequeno pedaço de
papel em que listou, a lápis, os nomes, seguidos do ano de nascimento de cada um deles
(Ilustração 2).
44
Fotografia 2
Carlota Alberta e James Cristopher de Coursy Burnett, em frente à residência do casal, na
avenida São Jerônimo (hoje, Governador José Malcher)
Fonte: Acervo da família Burnett
45
Ilustração 2
Irmãos Burnett, lista de nome escrita por James Burnett
Fonte: Entrevista realizada em 30/10/2004
46
Na verdade, tal lista traz tanto nomes ingleses, quanto os “aportuguesados” pelas
pessoas, bem como os apelidos de alguns dos irmãos do informante. Assim Burnett explicou
o conteúdo da pequena lista:
Todos nasceram aqui, cresceram aqui, alguns foram morar para outros
lugares, alguns faleceram. A primeira, a Alberta, que nós chamamos de
Vita, o nome era Beatrice, mas no Brasil ficou Alberta, ela faleceu em 1977
[trata-se da mãe de James Skeete]. A Bárbara, que não mudou o nome (esse
é um nome inglês), morou muito tempo em Nova Iorque e morreu na
Jamaica. O Dodó era Randolph, aqui o pessoal chamava de Rodolfo, ele
morreu em 1942. Depois veio o Silvio, mas no inglês é registrado com Y,
mora em Nova Iorque, é da FEB e casou com uma mulher do Paraná [mais
tarde, a Lucy, esposa de James Burnett, mostrou-nos algumas fotos da
viagem que fizeram para os EUA em que este último casal aparece. Ele
negro, ela branca]. Depois sou eu que, de James, virei Jaime, porque o
pessoal não pronunciava meu nome direito, até que ficou Jaime;
71
hoje estou
com 83 anos. Meu outro irmão era o Jorge, no inglês o nome dele era
George; ele foi da aeronáutica, da FAB, viajou para a África; foi o que
faleceu mais recentemente, faz uns quatro anos. (...) Por último o João, que
é John, que foi para o Rio de Janeiro.
72
Através destas afirmações, o informante possibilita ao leitor perceber o trânsito e as
trajetórias dos diferentes irmãos da família Burnett, indicando deslocamentos por cidades e
países, inclusive evidenciando ligações com as antigas colônias inglesas, as uniões com
pessoas de outros lugares, com destaque para os postos militares ocupados por dois dos
irmãos, a possível ascensão social dos membros da família, além do aspecto mais evidente
dos ajustes dos nomes estrangeiros de cada um, abrasileirados e com o tratamento coloquial
carinhoso através dos apelidos.
Ao relembrar a história de vida dos seus pais, James Burnett assim contou: “(...) Eles
nasceram em Barbados. Meu pai veio para trabalhar na Pará Eletric. Eles vieram casados.
Ele morreu com 71 anos, em 1948, em Macapá. Minha mãe faleceu em 1966, com 82 anos,
mais ou menos; ela residiu muitos anos em Trinidad e Tobago, [para onde James chegou a
viajar com os irmãos e os pais, quando era criança]. ela foi sempre do lar”. Sobre os seus
avós:
Lembro muito pouco do meu avô, pois eu era muito pequeno quando meus
pais nos levaram para Trinidad; quando eu fui, deveria ter uns dois anos.
Não para lembrar. tenho alguns vultos, eu passando a mão no meu
71
Entretanto, pelo que soube através de seus colegas de trabalho, na UFPA ele era tido como James, mesmo.
72
Entrevista com James Burnett, realizada em 30 de outubro de 2004.
47
avô... Hoje, quando minha netinha faz isso comigo, me vem à lembrança o
meu avô
.
73
Patrícia é o nome da netinha à qual Burnett se refere, demonstrando como, no jogo do
lembrar e esquecer, certa memória de um passado distante é acionada a partir de sensações do
presente (Bosi, 1979), como a de estar junto com a neta de sua predileção - esta revelada pelo
informante, por exemplo, quando mencionava as viagens que fazia o casal nos finais de ano,
quando visitavam seu filho mais novo, que mora em Miami/EUA, e quando destacam o fato
de Patrícia falar três idiomas: inglês, espanhol e português, cujo interesse destoaria do dos
demais filhos do casal, quanto ao conhecimento de outras línguas, especialmente do inglês.
Sobre estes, Burnett comentou:
Nós tivemos primeiro o Sérgio, ele é engenheiro elétrico. Depois veio a
Luzinete, que é assistente social. Em seguida, o Victor Maurício, que você já
deve ter ouvido falar... Ele foi submetido a uma cirurgia... acabou sendo
vítima de erro médico... [silêncio] (...) Ele tinha 26 anos. Nasceu em 1942 e
faleceu com 26 anos... Ele estudava química... [breve pausa]. Tá faltando,
agora, a Walquíria, minha filha, que você deve conhecer. (...) Ela fez
universidade, mas não sei o que aconteceu que ela acabou desistindo do
curso... Por último o Lúcio, que mora em Miami e é engenheiro químico. É
pra casa dele que a gente vai quando viaja para os EUA.
74
Além de enumerar os filhos, destacando suas profissões, e deixando entrever a
importância conferida à formação universitária dos mesmos, razão pela qual lamenta o fato de
uma das filhas não ter continuado seu curso superior, o que mais me chamou atenção neste
momento da entrevista foi o fato de que, ao adentrar os lares de nossos informantes, nós,
pesquisadores, acabamos nos deparando com as histórias privadas, com os casos de família,
que fazem retornar sensações que vão da alegria à dor, como quando o Sr. Burnett tentava
lembrar dos seus avós através dos momentos de carinho com a neta, ou mesmo quando o
informante revela um drama da família, com a morte prematura de um de seus filhos.
Histórias de vida, história privada. Algo delicado, tanto para o informante, pois “(...) falar de
sua vida é expor-se, entregar-se ao olhar de seus inimigos”, quanto para o pesquisador que vai
ter que lidar com a “tripla operação que constitui a memória acumulação primitiva,
rememoração, ordenamento da narrativa”, como nos lembra Michelle Perrot,
75
e, também,
com as sensões, as emoções contidas nos diferentes relatos.
73
Entrevista com James Burnett, realizada em 30 de outubro de 2004.
74
Entrevista com James Burnett, realizada em 30 de outubro de 2004.
75
Cf: PERROT, Michelle. “Práticas da Memória Feminina”. In: Revista Brasileira de História, vol. 9, n. 18, São
Paulo: ANPUH/ Marco Zero, ago.-set. 1989, pp. 17-18.
48
E, tratando de sensações, não posso deixar de registrar as minhas próprias ao ter que,
aqui, escrever sobre alguém que conheci, que me permitiu, com tanta presteza, saber um
pouco mais sobre as histórias dos barbadianos em Belém e que, poucos meses, acabou
falecendo em decorrência daquela doença que o acometia em 2004, quando eu intentava
fazer com que o “tio Jaime”, de que tanto James Skeete falava, que era o mesmo James
Burnett de quem outros de meus professores da UFPA também sempre comentavam, aceitasse
ser por mim entrevistado. Talvez por isso eu tenha procurado pontuar a forma como entrei
em contato com esta família, e com aquele informante, através das pontes de que eu dispunha
no momento. Não que isso o seja uma situação pela qual todo pesquisador seja levado a
passar; afinal, pessoas morrem todos os dias. Entretanto, caberia aqui registrar o quanto, ao
entrar ou compartilhar das histórias de vida dos outros, ficava em mim sempre uma certa
sensação/necessidade de retornar, manter contato, conversar novamente o que nem sempre
nos é permitido, especialmente quando os guardiões da memória (como definido por Pollak,
1989), são pessoas de idade avançada, e se encontram convalescentes, como no caso aqui
citado. Neste sentido, procurava/procuro fazer de cada entrevista, a entrevista, se é que isso é
realmente possível a alguém. Nem sempre deixar para perguntar algo depois como acabou
acontecendo – ou voltar para reproduzir uma fotografia de família, por exemplo, pode ser uma
boa idéia. Nem tanto porque o informante pode, no dia seguinte, não mais existir, mas
também, por outro lado, porque as portas podem não mais se abrir para nós em outro
momento.
Ainda pela IEAB ou entre ingleses e americanos
Participar dos cultos dominicais, conversar com o reverendo Saulo Barros, assumir
compromisso de ajudar na organização do acervo da igreja, tudo isso compôs minhas
estratégias e meu cotidiano de pesquisa, vez por outra relembrando as lições sobre trabalho de
campo, bem como sobre os sucessos e percalços daqueles que se lançam/lançaram na tarefa
da observação participante.
76
Além de produzir anotações no caderno de campo, muito me
preocupava também a forma como estava sendo observada, o que pensavam a meu respeito, e
76
Esta entendida como uma forma de investigação essencial em muitos ramos das Ciências Sociais, e em que o
pesquisador se dedica ao estabelecimento de alguma forma de associação ou de contato estreito com o grupo
investigado, seja este da própria sociedade da qual o cientista faz parte, seja este um grupo estrangeiro ou exótico
– como no “arquétipo dos estudos de observação participante realizado por MALINOWSKI, Bronislaw.
Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (1922), sobre os trobriandeses, cujo modelo
fora objeto de críticas a partir da divulgação do diário de campo do referido autor. Sobre o assunto, ver: SILLS,
David L. (Org.). Enciclopédia Internacional de Las Ciencias Sociales. Madrid: Aguilar, 1974 (1968); e,
também: MALINOWSKI, Bronislaw. Um Diário no Sentido Estrito do Termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.
49
até o que esperavam de mim; afinal, nos momentos em que começamos a treinar nossos
métodos de investigação, especialmente nas pesquisas antropológicas, é que nos
questionamos sobre como agir diante do outro. Como ter uma postura “amável e
interessada”, compreender os “códigos sociais” do grupo em estudo, tornar-se “integrante da
turma”, ao mesmo tempo lidando com a curiosidade do outro a seu respeito, tal como Foote-
Whyte destacou em “Treinando a observação participante”?
77
Os contatos e aproximações foram se dando no cotidiano das tarefas em que os
paroquianos estavam engajados. Assim, das idas à IEAB e das conversas com James Skeete,
pude contatar com outra falia, a família White, também de origem barbadiana. Conheci
Beatriz (Fotografia 3) e Nazaré White nos cultos dominicais anglicanos na paróquia de Santa
Maria. Pareceu-me, assim, que foi como fiel que as duas irmãs me encararam na Igreja.
mais tarde é que tomaram conhecimento da minha posição de pesquisadora e, bem depois, da
minha intenção de perscrutar as vivências barbadianas; mais uma prova de que os limites
entre ser visto como pesquisadora ou como alguém que poderia ser convertida ao
anglicanismo pareciam muito tênues.
77
Cf: FOOTE-WHYTE, 1990.
50
Fotografia 3
Beatriz White, agosto de 2005
Fonte: Acervo de Maria Roseane C. P. Lima
51
Soube das White, primeiramente, através de Skeete, quando este contava sobre como
percebia sua atividade de acólito da IEAB:
Eu sou acólito 36 anos, desde 1968... Eu sou acólito porque a mamãe
queria... e eu deixei muito tempo de acolitar. voltei a acolitar porque
membros da família White me pediram. Justamente, [falo] da Beatriz, da
Nazaré, da Alice [que é mãe] da Meire. Porque eu não queria voltar.
78
Se James voltou àquela atividade que lhe foi, segundo ele, imposta pela mãe, foi por
influência das White, ou melhor, da força dos laços que os unem, laços de amizade reforçados
pela convivência na IEAB. De fato, trata-se de duas irmãs, e da filha (Meire) de uma delas
(Alice), que são participantes e muito ativas na Igreja, envolvidas em todas as atividades que
acontecem lá.
Acompanhando alguns ritos da IEAB é que pude, depois de certo tempo, marcar uma
entrevista com Beatriz White (83 anos), que foi apontada por sua irmã, Nazaré, como a
guardiã da memória da família, chegando mesmo, a segunda, a afirmar que o gostaria de ser
entrevistada sem a presença da primeira. Mantive rias conversas informais com as irmãs
White, até conseguir marcar uma entrevista (mesmo) com Beatriz. Combinamos de nos
encontrar na IEAB, e cheguei, muito animada, numa manhã de sábado. Mal sabia que,
naquele horário,
79
como de costume, minha informante estava encarregada de preparar o altar
da Igreja para o culto dominical. Sua tarefa, então, era a de arrumar as flores, as toalhas, e
demais objetos do culto seriam utilizados pelo reverendo, especialmente no rito da comunhão.
Tais objetos (Castiçais, as taças para o cálice e as hóstias) deveriam não ser arrumados
mas, antes, lustrados, e lá tive que, por umas duas horas, ajudar Beatriz nesta atividade que ela
executava com muita presteza. Entre lustrar um castiçal ou posicionar velas, conversamos
várias coisas sobre a IEAB, os cultos, assuntos correntes na tv, de política à maternidade, e
por aí fomos, sendo que preferi não entrar nas questões que me interessavam mais diretamente
78
Entrevista com James Skeete, realizada em 3 de setembro de 2004.
79
Refletindo sobre minha experiência de pesquisa, posso afirmar que todo cuidado ainda é pouco ao se marcar
uma entrevista. O lugar, o dia, a hora, devem ser pensados em função da disponibilidade do informante e, no
geral, são eles quem definem os mesmos. Entretanto, quando é o caso de não se ter conhecimento mínimo do
cotidiano daquele que será entrevistado, as complicações sempre aparecem. Com Beatriz, aconteceu da
entrevista ser marcada por ela, para o mesmo momento em que estava ocupada com suas tarefas na IEAB, algo
que fugia ao controle de qualquer pesquisador. Outras complicações comuns, e que tive que enfrentar: marcar
entrevista pela manhã, mas próximo ao horário do almoço (contando-se o tempo médio de uma hora e meia de
conversa, é recomendável o marcar depois das dez horas); marcar no final da tarde ou à noite e ser
surpreendido pela ansiedade do informante que costuma assistir novelas ou o noticiário da tv, isto sem contar as
circunstâncias em que, ao chegar para a entrevista, somos surpreendidos pela notícia de que o informante tem um
compromisso “daqui há pouco, não podendo se demorar. Em todos estes casos, creio que é melhor não
atrapalhar e voltar outro dia, se isto for possível.
52
daí que a entrevista não foi realizada, mas pude aproveitar para conhecer um pouco mais
aquela mulher tão simpática e dedicada à Igreja, iniciando a construção de laços que me
valeram muito mais depois, dada a amizade conquistada, de forma meio inusitada.
Marcamos outra data para conversarmos, desta vez na casa de Beatriz. Fui munida
com uma fotografia da frente da IEAB que registrava a Sunday School, isto é, a Escola
Dominical, que reunia, como se percebe na imagem produzida na década de 1930, os filhos de
west-indians, como eram chamados, pelos ingleses, aqueles nascidos nas possessões
inglesas;
80
tal como registrado na legenda da foto e explicado pela entrevistada. Foi a partir
daquela antiga imagem da IEAB que Beatriz White remeteu-se ao tempo em que:
Vinham muitos ingleses por aqui... Nós tínhamos companhias inglesas aqui,
né. E todo mundo sabe, é, as pessoas que já moraram [há] muitos anos aqui,
é, conheceram a Booth Line, que era uma navegação inglesa. Então tinha
muitas pessoas que trabalhavam pra essa companhia...
81
Isto para remeter-se aos barbadianos como ingleses, dada a nacionalidade forjada pela
origem em uma área colonial britânica, os quais “vinham pra aventurar a vida”, mas que,
ao chegarem aqui, “(...) tinham que lutar muito para ganhar o seu pão de cada dia”, como os
west-indians que vieram para trabalhar nas companhias inglesas instaladas no Pará, lembradas
pela informante.
A presença estrangeira em Belém, especialmente a inglesa, foi muito ressaltada por
Beatriz, durante toda a entrevista. Presença esta marcada não pelo estabelecimento das
companhias que se encarregavam de importantes obras de infra-estrutura na cidade, dos
funcionários com altos cargos que para cá se dirigiram como foi o caso do ade uma de
minhas informantes, como veremos adiante da gama de trabalhadores que migraram para a
região em busca de trabalho, mas também através de diversos ritos, como os casamentos e
outras festas comemorativas inglesas, que eram celebradas na cidade, ou lembradas, através
da ação do Consulado Britânico em Belém ou da IEAB, quando não pelas próprias
companhias, das quais os barbadianos, ou west-indians, participavam por conta de sua
nacionalidade inglesa, afinal, como disse Beatriz:“(...) quem nascia em Barbados era inglês,
porque eles eram da colônia inglesa. (...) Justamente são de nacionalidade inglesa e o tinha
80
Comentamos, em capítulo anterior, o uso desta fotografia (Fotografia 1) como forma de contatar e interagir
com os anglicanos da IEAB.
81
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
53
outra, não tinha como colocar outra nacionalidade a não ser a inglesa”. Das celebrações de
ingleses para ingleses em terras paraenses, Beatriz lembrou que:
(...) naquele tempo, quando coroavam, quando tinha alguma festa na
Inglaterra, coroação do Rei e da Rainha, e aqui como tinha os ingleses, que
justamente foi também a (...) Pará Eletric [que] era inglesa, também. Então,
eles tinham a festa, sabe pra quem? Eles mandavam de lá uma caneca com a
fotografia da Rainha que tinha sido empossada, coroada, para distribuir para
os ingleses daqui, que eram west-indians, que eram barbadianos. Eles
mandavam, vinham do Consulado, que o Consulado era uma autoridade
aqui. Faziam casamento [sic] quando as pessoas de Barbados não tinham se
casado ainda. Eles faziam o casamento, mas o casamento seria um
casamento, é, pela lei inglesa, né, não era pela lei brasileira (...) a não ser que
ele [o cônsul] fizesse o casamento e você convidasse também o juiz pra,
naquele tempo o juiz fazia... [casamentos].
82
Os laços que ligavam os barbadianos aos ingleses são indicados através da preservação
de hábitos da terra de origem, como celebrar os momentos festivos da monarquia britânica,
marcando sua situação colonial, o que é revelado, inclusive, pelo emprego do termo west-
indians, que demarcava os índios do ocidente, os nativos da América subjugados pelos
ingleses. O estatuto colonial era, de certa forma, aqui mantido, revelado nos símbolos da
autoridade e do poder britânicos através das imagens dos reis, das atribuições do consulado
ou da ação das firmas inglesas. Símbolos estes que se encontravam, inclusive, no ambiente
privado dos lares dessas pessoas:
(...) Em casa tinha até nas paredes [risos] fotografia da Rainha, do Rei,
bonitos e tudo. (...) [pessoas da geração seguinte] Acabaram com tudo [lá em
casa] (...) ficava porque aquilo era dado. Quando eu fui no consulado
falar com o cônsul, um tempo atrás, a mesma fotografia que está no
consulado, deste tamanho, era o mesmo quadro que nós tínhamos em casa, o
Rei Jorge.(...) não tem diferença nenhuma; que era presenteado.
83
Assim, percebemos estas enunciações como registros de pertença, como súdita
britânica, evocados pela informante: as festas de coroação dos reis ingleses, as firmas
inglesas, a foto da rainha coroada na caneca, o quadro do rei pendurado na parede, tal qual
outros que mencionaram o papel do consulado na manutenção de certas ligações com os
parentes distantes, pois, como afirmou uma de minhas informantes, sobre quem comentarei
82
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
83
Entrevista com Beatriz White, realizada em de dezembro de 2004. Neste excerto, Beatriz menciona o Rei
George VI (1895-1952), pai da atual rainha da Inglaterra, Elizabeth II.
54
mais adiante, quando os parentes no Caribe demoravam a mandar notícias, eles iam ao
consulado que deveria fazer procuração na respectiva cidade.
84
Migrar e formar família, aventurar. Foi essa a história, segundo a filha, dos pais de
Beatriz, Joseph e Louise White. Segundo a informante,
Os casais se gostavam e saíam da sua terra, saíam da sua terra [e] se
encontravam com a pessoa com quem as amavam [sic], e eles ficavam juntos
a vida toda, e outros casavam, e outros até se separavam, porque não dava
certo, saía pra uma aventura que não deu certo, então era quebrada aquela
aventura, né... Os meus [pais] eram [juntos] muitos anos, uma vida, uma
vida. Meu pai, minha mãe.
85
Joseph e Louise, tal qual outros casais, tiveram sua história de vida marcada pelo ato
de sair da terra natal, migrar em busca de trabalho e “juntar-se” com a pessoa amada. Um
outro lugar, muitas expectativas, uma mesma aventura. Os casais juntavam-se
86
na nova terra.
Desta aventura”, podia resultar uma união para a vida toda, tal qual a esperada por aqueles
que chegavam a casar-se. Juntos” ou casados, a formação de uma família parecia sinalizar,
em compasso com a conquista do trabalho, que a aventura deu certo, diferentemente daqueles
que acabavam se separando, como contava Beatriz.
Sobre seu pai, Joseph, Beatriz lembrou que “ele trabalhou como caldeireiro, era
funcionário do Cais do Porto”. Deixou para trás todos os parentes, que Beatriz não chegou
a conhecer, a não ser por ouvir dizer, como de seu avô James, ou ver fotografias de tios e
primos. Lembranças vagas, afinal “(...) morreu tanta gente”. O pai dela teria deixado para
trás o apenas os parentes, mas também sua parte na herança da família que, depois que ele
estava estabelecido em Belém, foi dividida, mas Joseph abriu mão do que lhe era de direito
em favor de um de seus irmãos; o que não foi bem recebido pela família White, pelas filhas,
dado que o tio delas “era bem de vida, os filhos dele tudo bem de vida” e “(...) nós estávamos
precisando aqui”, contou Beatriz, ainda inconformada com a atitude do pai. Tudo isso
podendo ter funcionado como uma espécie de atualização das identidades dos imigrantes e de
suas famílias.
84
Entrevista com Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
85
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
86
Juntar-se, no sentido empregado pela informante, no contexto da entrevista, equivale a amasiar-se, isto é, uma
união consensual, diferente do casamento formal pela inexistência de rito oficial, seja religioso – como acontecia
na IEAB, seja civil como se davam os casamentos no Consulado Britânico em Belém, nas primeiras décadas
do século XX.
55
O casal White teve nove filhos, sendo que Beatriz restringiu-se a falar apenas dos que
se encontram vivos:
(...) eu sou de 22 [1922]. (...) Tem o mais velho, que está nos Estados
Unidos. E tem outra também que está mais velha (...) ela é viúva. (...) Ela
foi daqui com uma família pros Estados Unidos. Eles eram até militares
conhecidos.
87
Beatriz referia-se à Anita, que casou com um porto-riquenho depois de ter sido levada
para os EUA. Ainda apontou, brevemente, outras duas irmãs: Alice, hoje viúva de um
“brancão”, Godofredo dos Reis Rocha; e Nazaré, que “(...) é solteira e nunca trabalhou”.
Beatriz quase nada comentou acerca de seu marido, Pedro Belarmino de Carvalho, já falecido,
a não ser que se tratava de um brasileiro, “branco”, “de raça clara”, que conheceu alguns anos
depois que ela retornara de Porto Velho, para onde viajou acompanhando sua madrinha
barbadiana.
Tanto Beatriz quanto sua irmã, Anita, experimentaram o deslocamento de seu lugar de
origem e convívio familiar, uma vez que passaram a morar com outras famílias. Como acabei
de citar, Anita foi para os Estados Unidos, enquanto Beatriz foi para Porto Velho. Esta última
seguiu para outro Estado com uma “madrinha”, uma barbadiana que ficou viúva e, não tendo
filhos, “pediu a menina Beatriz aos pais para que esta fosse criada como “uma espécie de
dama de companhia”, como contou a informante. Creio que foi algo semelhante o que
aconteceu com Anita. Beatriz, ao destacar que viajou com uma madrinha, apontou um
parentesco simbólico, isto é, um parentesco que vai além do aspecto biológico, como nos
lembra Ovídio Abreu Filho,
88
ao discutir parentesco e identidade social a partir das definições
nativas de consangüinidade e afinidade, na pesquisa de campo que fez em Iraxá, Minas
Gerais. Caberia ressaltar, aliás, que uma das funções primordiais do compadrio, tal como
apontado por Antônio Arantes,
89
é a criação de vínculos de solidariedade entre seus
participantes (no caso, a família de Beatriz e Anita, com uma pessoa de origem barbadiana e,
ainda, com uma certa família de militares que seguiram para os EUA ou eram de lá), vínculos
estes que se expressam através, por exemplo, da cooperação econômica. Além disso, o caso
87
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
88
Cf: ABREU FILHO, Ovídio. “Parentesco e Identidade Social”. In: Anuário Antropológico 80. o Paulo,
Editora Tempo Brasileiro, 1982, pp. 95-118.
89
Cf: ARANTES, Antônio Augusto. “Pais, Padrinhos e o Espírito Santo. Um reestudo do compadrio In:
ALMEIDA, Maria Suely Kofes et alli. Colcha de Retalhos. Estudos sobre família no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1982, pp. 195-204. Caberia lembrar que Arantes trata deste tema desde 1975, quando publicou pela
primeira vez, este artigo.
56
das duas irmãs remete ao que se costumou chamar, nos estudos antropológicos, de “circulação
de crianças”, isto é, o caso de crianças que “passa[m] parte da infância ou juventude em casas
que não a de seus genitores”, e que pode indicar a utilização das mesmas em serviços
domésticos, como afirma Cláudia Fonseca
90
(1995) ao apontar a relação entre criar alguém e
ter um “criadoforma como, outrora, os empregados domésticos eram chamados, “(...) pelo
fato de muitos deles chegarem à casa do empregador em tenra idade, usufruindo durante
alguns anos um status um tanto ambíguo que variava entre o de criança engraçadinha e o de
serviçal” (Fonseca, 1995: 35).
Depois de ter passado mais de dez anos em Porto Velho, e ter retornado para Belém, é
que a senhora White se casou com “um brasileiro”, sendo que, desta união, nasceu Márcia,
que faz curso superior numa faculdade particular em Belém, é solteira e tem um filho, e
ambos moram com Beatriz, na casa que têm na Rua dos Mundurucus, onde mora muitos
anos.
Caberia aqui comentar sobre a forma como Beatriz White procurou se colocar, no
momento da entrevista como a guardiã de uma memória não sobre os barbadianos, mas
sobre os negros, especialmente as mulheres negras, que tiveram que lidar com preconceitos e
discriminações, de base racista, mas que tudo superaram pelo trabalho, com dignidade e
honradez. O que ficou claro, inclusive, pelo fato de Beatriz, assim como suas irmãs, Alice e
Nazaré, terem sido informantes de alguém que elaborou uma dissertação, justamente, sobre as
famílias negras e seus projetos de ascensão social, sobretudo através das filhas e de sua
escolaridade.
Beatriz não colaborou com seus depoimentos, como também assistiu à defesa da
dissertação. Ciente de sua posição como guardiã de memórias é que, em seu relato, ela
procurou mostrar-se como conhecedora da história dos barbadianos, com um discurso claro
acerca do racismo enfrentado pelos mesmos, permeado por frases que alegavam ser o passado
deles um tempo no qual o eram valorizados mas que, hoje, isso mudou, posto que estão
sendo reconhecidos. Neste sentido, não tive problemas ao buscar Beatriz como barbadiana,
mesmo, sem os “rodeios”, isto é, sem ter que, primeiro, perguntar sobre ingleses para chegar
aos barbadianos, como tive que fazer com outras famílias. Tudo isso para eu dizer aqui que o
lugar em que o entrevistado se coloca, no momento da entrevista, é importante de ser
identificado, pois indica, mais do que seu status sócio-econômico, a imagem que ele faz de si
90
Cf: FONSECA, Cláudia. Caminhos da Adoção. São Paulo, Cortez, 1995.
57
e dos outros, remetendo, inclusive, aos papéis instituídos no discurso e às relações de lugares
(as negociações do lugar de cada um), permitindo que se entenda os porquês de certas
construções que fazem acerca de si e dos outros, no jogo entre identidades.
91
Na conversa que tivemos, Beatriz dedicou-se, em boa parte do tempo, a contar sobre
os anos em que morou em Porto Velho, onde “(...) tinha uma colônia bem vasta” de
barbadianos que para se deslocaram em busca de trabalho, e se reuniam para conversar e
beber “um tipo de aluá” e comer um prato típico da terra natal, feito à base de fubá de milho e
quiabo:
(...) Misturava bem quiabo e ficava consistente parece um purê de batata. E
essa comida podia comer com peixe, com carne. (...) Pegavam [a carne],
punham num prato e punham um molho – chamavam cou-cou. Até que tem
muita gente que não gosta. Eu já comi, a minha mãe fazia, mas isso era lá
uma vez ou outra.
92
Após retornar para Belém, Beatriz começou a trabalhar na Base Aérea de Belém,
como assistente/tradutora de um dos comandantes americanos, quando estes “encamparam”
[acamparam] na cidade, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, foi empregada
num posto de puericultura.
93
Além de descrever suas atividades laborais, e dos problemas de
transporte para chegar ao trabalho, que ela enfrentava como os demais trabalhadores naquele
período, a informante falou longamente sobre sua viagem para os EUA, possibilitada por sua
situação de membro da IEAB, e que costuma receber estrangeiros, ingleses e norte-
americanos anglicanos em sua residência. O interessante de ser aqui observado é que estes
três momentos da vida de Beatriz, nos quais ela procurou se deter na entrevista, giram em
torno da sua experiência como alguém que trabalhou junto a norte-americanos e de sua
condição de falante do idioma inglês.
94
91
Sobre a categoria lugar, segundo a Análise de Discurso, consultar: MAINGUENEAU, Dominique. Termos-
chave da Análise do Discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000. Sobre a dissertação citada, conferir:
JULIÃO, Maria Romélia Silva. “Donas da História”: relações raciais, gênero e mobilidade social em Belém.
Belém: UFPA, 2000. Dissertação de Mestrado em Antropologia (mimeo).
92
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
93
No qual as mulheres faziam o pré-natal e as crianças recém-nascidas, sobretudo as mais pobres”, eram
assistidas com o fornecimento de leite, o que Beatriz contou, inclusive, descrevendo seu cotidiano de trabalho.
94
Ainda desenvolverei esta observação no capítulo seguinte.
58
As telefonistas da Base Aérea de Belém
Do tempo de trabalho na Base Aérea de Belém, Beatriz lembrou de outras filhas de
barbadianos que também trabalharam lá: as irmãs Scantlebury, as quais eu tinha tido a
oportunidade de entrevistar em novembro de 2004. Lancei mão da lista de famílias tidas
como barbadianas, que montei a partir da colaboração de várias pessoas, da UFPA, da IEAB,
dos nomes que também apareciam no Catálogo da Exposição Belém dos Imigrantes,
95
de
conhecidos e até desconhecidos.
96
Na mencionada exposição pude, inclusive, observar Lílian
e Alice Scantlebury, que se faziam presentes. Tempos depois, partindo dos nomes de
famílias e dos resultados da pesquisa que fiz em listas telefônicas, para encontrar endereços e
telefones dos possíveis informantes, pude marcar para conversar com estas duas irmãs que
moram juntas, numa casa do bairro do Telégrafo, em Belém.
97
Talvez a facilidade com que
elas aceitaram me receber em sua casa tenha se dado menos por uma habilidade minha na
realização do trabalho de campo, do que pelo fato delas sentirem-se como guardiãs de uma
memória que, de alguma maneira, estava sendo reconhecida, pois tinham sido não
consultadas para a composição de um breve relato sobre a presença dos imigrantes
barbadianos na cidade, mas também figuraram como ilustres convidadas do evento que
marcou a abertura da exposição temática sobre eles.
98
As irmãs Alice (82 anos) e Lilian Scantlebury (84 anos) são filhas de barbadianos que
fixaram residência em Belém, depois de passarem por Manaus e Santarém, por volta dos anos
1920. Seus pais eram Robert (c. 1895) e Florence Scantlebury (que era chamada no Brasil de
Flora), ambos nascidos em Barbados, e que migraram para a Amazônia na década de 1910,
quando ainda solteiros. Conheceram-se em Santarém, onde casaram e tiveram duas filhas
(Maria dos Passos e Lilian), depois fixaram residência em Belém, onde tiveram mais três
filhos (Alice, Martha e Alberto). Ao relatar a formação da família, Alice exclamou: “havia de
casar barbadiano com barbadiano!”. Dos filhos do casal Scantlebury, somente o último
95
Cf: ARRAES e FIGUEREDO, 2004.
96
Os desconhecidos também acabaram colaborando para que eu aumentasse minha lista de possíveis
informantes, especialmente quando, nos momentos em que apresentei os resultados parciais da pesquisa, ao
ouvirem falar de barbadianos, alguns ouvintes puxaram pela memória nomes como o do professor Thomas
Busby, apontado, naquela ocasião, como barbadiano, mas que apenas consegui a colaboração de seus membros
através de indagações sobre os ingleses em Belém, uma vez que ambas a família aqui citada é enfática em se
afirmar-se como inglesa, não apenas por nacionalidade, mas por origem/naturalidade.
97
Bairro antigamente chamado de Telégrafo Sem Fio. As irmãs Scantlebury moram numa vila, localizada em
uma passagem próxima ao Campus da UEPA.
98
Sobre a menção aos barbadianos no Catálogo da mencionada exposição, vide o material em anexo nesta
dissertação.
59
formou família, tendo deixado de ser anglicano para casar na Igreja Católica, com sua mulher
brasileira, com quem teve três filhos. Da família Scantlebury original, apenas as duas
informantes são vivas. Lilian foi batizada na Igreja Católica. Alice, por sua vez, foi batizada
na Igreja Anglicana, embora não freqüente a mesma, posto que “não gosta de ir lá, e já tenha
se questionado por que não se converteu ao catolicismo, a exemplo de dois dos seus irmãos já
falecidos. Ao que Alice procurou responder justificando-se pelo fato de não ter casado (com
alguém católico) e o ter entrado para nenhuma instituição assistencial e religiosa, tal qual
sua irmã Martha.
Robert, o pai de Alice e Lilian Scantlebury, trabalhava num navio, “(...) desde a idade
de 14 anos. Ele trabalhou nesse navio até morrer” contou Alice. Mesmo com o pouca
idade, parece ter chegado ao Brasil sozinho, pelo menos ele, segundo as filhas:
(...) nunca falou se ele veio ou não. (...) Parente do nosso pai a gente não
conheceu. uma prima, não, dois, dois primos. Um que veio aqui nesta
casa. Ele era Charles, agora eu não sei de quê. E a outra, a Josephina...
[digo] Albertina! É, ela foi pro Rio [de Janeiro] no ano que meu pai morreu:
1947. Foi pro Rio, ficou de dar notícia, ainda estamos esperando até hoje!
[risos].
99
Imigração motivada pela busca de trabalho. Imigração que leva, dentre outras coisas,
a quebra das raízes familiares, como afirma Ecléa Bosi (1979: 429) para explicar o silêncio
dos narradores acerca dos seus parentes, especialmente os avós. No caso das irmãs
Scantlebury, o relativo desconhecimento acerca dos parentes por parte de pai ou a falta de
laços mais fortes com os dois primos que elas chegaram a conhecer, mas que deles não
tiveram mais notícias.
Sobre a mãe das informantes, Florence, ou Flora, como ela gostava de ser chamada, há
a lembrança de uma irmã dela, Beatriz, como contou Alice: “(...) A minha mãe veio de
Barbados porque tinha uma irmã que morava em Manaus e mandou buscá-la. Ela estava com
16 anos quando ela veio pra Manaus. (...) Eu não me lembro... porques não vimos ela!”.
100
Sabiam, por ouvir a mãe contar, que Flora tinha, ainda, dois irmãos, os quais foram para os
Estados Unidos.
Da tia, apenas a lembrança, mas uma lembrança baseada, provavelmente, nos relatos
da mãe, posto que, como afirma Bosi (1979: 407), “(...) muitas recordações que incorporamos
99
Entrevista com Alice Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
100
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
60
ao nosso passado o são nossas: simplesmente nos foram relatadas por nossos parentes e
depois lembradas por nós”. Além disso, aquilo que foi destacado pela informante nos permite
perceber a importância dos laços de parentesco nos deslocamentos por rios lugares. Flora,
depois de sair de Barbados, residiu em Manaus com a irmã, em seguida mudou-se para
Santarém, provavelmente casada com Robert, e, depois o casal e os dois primeiros filhos
mudaram-se para Belém. Foram morar no bairro do Comércio, numa casa que ficava na
Travessa Campos Sales, de esquina com a Rua Aristides Lobo. Sobre o tempo em que
moraram Alice afirmou:
Eu me lembro sim. Nós éramos crianças, mas eu me lembro. Meu irmão
[Alberto] ainda nem era nascido, ainda... A mamãe vivia doente, doente,
doente, com tal de... naquele tempo era impaludismo, né, uma coisa! E a
gente ficava só. Não podia nem ir pra aula nem pra coisa nenhuma porque
quem ia ficar com ela? E a minha irmã mais velha [Maria] tinha que tomar
conta, e a gente, tomar conta da cozinha. A Marta [nascida em 1924] tava
com menos de dois anos, por assim. E a mamãe sempre doente com a
bendita malária! (...) E o papai indo e vindo, indo e vindo...
101
A lembrança da primeira casa em que a família morou, em Belém, possibilitando a
evocação de um tempo fluido que é marcado pelo nascimento e idade dos irmãos, a doença da
mãe, o trabalho do pai e as tarefas cotidianas das informantes. Alice nasceu nesta casa,
provavelmente alugada, como a segunda residência do casal Scantlebury, desta vez, uma
“barraca” numa vila situada numa passagem chamada Anglá [Engelhard]. A mesma era
coberta de zinco, por isso “(...) fazia um barulho quando chovia!”, contou Alice. Ao
comentarem sobre a doença da mãe, as Scantlebury acabaram lembrando que o pai, que
sempre viajadas, como elas repetiam, havia prometido, certa vez, que quando retornasse de
uma certa viagem levaria a família ao arraial de Nazaré. Na época do Círio de Nazaré, o
arraial transforma-se num local de divertimento de grande movimentação; entre as décadas de
1930 e 40, tinha, ainda, contornos de evento social importante para pessoas tanto de camadas
pobres, como de camadas altas da sociedade. Pelo que contaram, aquele era um passeio muito
esperado. Quando o pai chegou, entretanto, a mãe estava com o impaludismo, novamente. O
resultado foi que “(...) acabou indo todo muno e a mamãe ficou”, como contou Alice,
apontando para a fotografia tirada naquele dia (Fotografia 4).
102
101
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
102
Alice Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
61
Fotografia 4
Robert Scantlebury, com os filhos, lembrança do Arraial de Nazaré
Fonte:
ARRAES
, Rosa &
FIGUEIREDO
, Aldrin (Coords.). Catálogo.
Belém dos Imigrantes – história e memória. Belém, Museu de Arte de
Belém, 2004.
62
Tempos depois, a família voltou para a travessa Campos Sales, passando a morar num
sobrado “(...) em cima do depósito de vinagre, também alugado. O nascimento de Alberto,
no final da década de 1920, marca o tempo em que viveram no bairro do Jurunas.
Moraram, também, no bairro do Umarizal, mais precisamente na travessa Dom Romualdo de
Seixas, próximo à rua Domingos Marreiros. moraram por mais de vinte anos. Dessa
época, as irmãs Scantlebury lembram, saudosas, das vezes em que iam ao cinema com as
colegas e com a mãe, sendo que o pai é sempre lembrado como alguém que nunca estava em
casa, a não ser um domingo ou feriado, quando o navio em que trabalhava encontrava-se na
cidade. Comentando sobre o trabalho do pai, e demonstrando o conhecimento que elas têm de
outros barbadianos na cidade, as irmãs Scantlebury mencionaram, ainda, um período anterior
ao de sua ida para o Umarizal, quando moraram na avenida Assis de Vasconcelos: “(...) a
gente morava bem onde é aquela Clínica de Criança...”
103
. Dessa época, as lembranças foram
evocadas pelo tempo em que estudavam e que eram vizinhas de outra família de barbadianos,
a de James Burnett, que morava na antiga avenida São Jerônimo, hoje Governador José
Malcher: “(...) o pai dele trabalhava, nessa época, na Pará Eletric”. Enquanto a família
Burnett é apontada como de gente que “tinha mais condições”, a Scantlebury, segundo Alice,
“(...) Era pobre diabo, que não tinha eira nem beira...”.
104
Casa própria, mesmo, a família só teve em meados da cada de 1950, portanto após a
Segunda Guerra Mundial, quando as irmãs Alice e Lilian trabalhavam na Base Aérea de
Val-de-Cães. Este foi um marco na história de vida das duas entrevistadas: tanto de sua
entrada no mercado de trabalho,
105
quanto da aquisição da casa, que fica numa pequena vila
do bairro do Telégrafo, próximo à UEPA, onde residem, até hoje, Alice e Lilian. Não é à toa
que Alice afirmou: “Ah, a Guerra, a Guerra me beneficiou. Se não fosse a Guerra, eu não
tinha essa casa”.
106
Mas esta casa também remete à memória do pai delas, que morreu antes
da família se mudar para lá: “(...) Veio todo mundo, só meu pai que não veio”.
107
Deste lugar, as lembranças da vizinhança, no tempo em que havia uma estação de
bonde no Curro Velho; sem contar a Hospedaria dos Imigrantes, bem em frente à vila na qual
103
Alice refere-se à Clínica de Crianças Pio XII, existente nesta avenida do bairro da Campina, bem em frente à
praça mais antiga e importante da cidade: a Praça da República (antigo Largo da Pólvora).
104
Alice Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
105
Especialmente para Alice, que o tinha, até então, nenhum emprego formal, enquanto que lian havia
trabalhado em uma loja de roupas denominada “A Infantil”, no comércio de Belém.
106
Alice Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
107
Lilian Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
63
elas moram, onde hoje é a UEPA, e onde as informantes podiam observar os “arigós”: “(...)
Chamavam arigós, os que era (sic) cearense. E, depois, tinha também [outros] brasileiros aí,
não era só arigós. Eram nordestinos os arigós. A maior parte era cearense”.
108
Estas informantes tornaram-se telefonistas da Base rea de Belém, quando os norte-
americanos, no contexto da Segunda Guerra Mundial, aqui “encamparam [acamparam]”, e
tiveram que contratar pessoas que falassem tanto o português quanto o inglês, o que abriu um
campo de trabalho para muitas mulheres, dentre elas, as negras filhas de barbadianas, pela
fluência do seu inglês, o que também foi o caso de. Beatriz White, como comentei
anteriormente.
Se este conhecimento da língua inglesa possibilitou o acesso destas mulheres ao
mundo do trabalho, naquele contexto de guerra, dada a necessidade de pessoas que
traduzissem as informações que circulavam entre os militares de aqui e alhures, por outro
lado, foi no ensino daquele idioma que muitos barbadianos se destacaram, não sendo à toa que
os mesmos são lembrados até hoje pelo exercício desta atividade, seja no interior dos lares
(seus ou dos alunos), seja nas escolas particulares ou públicas. James Burnett e Robert Clyde
Skeete, sobre quem comentamos anteriormente, mas também Doris e Phyllis Chase, Thomas
Busby, Luís Linch e Isaías Skeete, sendo este último membro de uma família distinta dos
outros Skeete que descendem de Robert Clyde Skeete. Trata-se pois de negros, professores
de ings, tidos como barbadianos, muito embora alguns deles sejam apresentados ou se
apresentem como ingleses, no sentido da origem, da nacionalidade, como é o caso de Thomas
Busby.
Ainda na Pará Eletric... e nas aulas de inglês
Ao comentar sobre minhas pesquisas em torno deste grupo, um professor da UFPA
lembrou o nome de Thomas Henry Busby, sem maiores referências além de sua experiência
como professor de inglês.
109
Buscando pelo sobrenome da família, pude conversar com
Elizabeth Busby, ou Bebeth, como também é chamada a filha do professor Thomas.
110
Um
homem “bem moreno”, um “negro lindo”, como o descreveu Elizabeth (63 anos), contando
108
Lilian Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
109
Por esta referência, agradeço ao professor Romero Ximenes.
110
Elizabeth C. Busby formou-se em direito e foi, durante muitos anos, conforme me disse, colaboradora de
“uma empresa de cosméticos norte-americana”, a Avon, atuando em vários Estados e, segundo ela, tendo sido
homenageada em Londres, justamente na terra do meu pai”, por seu desempenho naquela empresa. Conversa
com Elizabeth Busby, em 10 de agosto de 2005.
64
que seu pai veio numa aventura”, veio tentar a vida”, aportando em Belém depois de uma
penosa viagem de barco. Filho de um francês branco” e de uma “inglesa negra” que era
“serviçal do marido”, Busby, aqui chegando, casou-se com Maurícia, uma mulher “bem
branca”, como destacou sua filha. Atenta aos termos empregados pela informante para dizer
sobre seus pais e sobre si é que procurei destacá-los entre aspas, observando, ainda, que a
mesma apontou-se como o resultado dessa mistura de seus pais, considerando-se morena,
quase negra, mas digo que sou negra, mesmo”.
111
Busby trabalhou na Pará Eletric, tendo, entretanto, dedicado a maior parte de sua vida
ao ensino da língua inglesa. Lecionou no Colégio Moderno, no que hoje é a Escola Técnica
Federal do Pará e na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Pará. Elizabeth
recordou que o pai falava “um inglês britânico”, era “muito ríspido”, “pontual demais”, e que,
por isso, os alunos o gostavam dele o que também se comenta acerca de Robert Clyde
Skeete. Dentre seus inúmeros alunos, um certo médico, de nome Léo, é citado por Elizabeth
como alguém que muito conversava com Thomas, e que, segundo ela, saberia contar mais
sobre seu pai, posto que este lhe falava sobre tudo de si, nas longas conversas que
mantinham.
112
Thomas Busby faleceu em maio de 1983.
Entre Barbados, Londres e Belém
De conversa em conversa, cheguei a outro professor de inglês, melhor dizendo, duas
professoras: Doris e Phyllis Chase (Fotografia 5). Foi conversando com Maria Angelica
Motta-Maués que primeiro ouvi falar da sua antiga professora de inglês do Colégio Gentil
Bittencourt, Doris Chase, como uma mulher negra “fina”, “elegante”. Doris (Fotografia 6)
não era tida como barbadiana pela informante, embora esta tenha afirmado saber que ela
descendia de uma família de estrangeiros, negros, falantes do inglês.
113
111
. Conversa com Elizabeth Busby, em 10 de agosto de 2005.
112
Elizabeth Busby comprometeu-se em entrar em contato com este amigo de seu pai, para que eu pudesse ouvir
outras histórias que ela mesma o saberia contar “tão bem quanto este médico” a respeito do pai, mas,
infelizmente, até agora não pude contar com esta colaboração, nem mesmo saber o sobrenome do dito médico.
113
Conversa com Maria Angelica Motta-Maués, em 23 de agosto de 2005.
65
Fotografia 5
Phyllis Chase, na rua João Alfredo, no comércio de Belém
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
66
Fotografia 6
Doris Chase, na rua João Alfredo, no comércio de Belém
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
67
Mais uma vez, debrucei-me sobre uma não tão antiga lista telefônica e cuidei de ligar
para os Chase que nela apareciam, até chegar a mais um de meus informantes, Nicholas
Chase, sobrinho de Doris, apontado por seus parentes como aquele que “sabe toda a história”
da família.. De fato, foi com bastante presteza que Nick como era chamado até poucos
anos pelas pessoas do “seu tempo”, pois (...)os mais novos, não, hoje me conhecem por
Nicholas” recebeu-me em sua casa, situada na travessa Benjamim Constant, quase esquina
da avenida Nazaré, onde passamos algumas horas conversando e comentando as belíssimas
fotos da família, algumas produzidas em casas de fotografia de renome na Belém do passado
(anos 40 e 50 do século XX), como o Foto Fidanza, outras tiradas no exterior; algumas
eram reproduções ampliadas dos originais; havia, ainda, aquelas que traziam inscrições com
datas, locais e mensagens de/para a família, sendo que aquele rico acervo particular foi
organizado por Altair, segunda esposa de Nicholas, e com quem tem um filho, Paulo.
114
A história da família Chase no Pará teve início com Dudley e Josephine Chase.
Dudley Elias Chase nasceu em Barbados, por volta de 1873, e conheceu Josephine em
Londres, casando com ela. No início do culo XX, época do “fausto da borracha”, como
afirmou Nicholas, o casal mudou-se para Belém, por conta dos negócios de uma companhia
inglesa de exportação de látex, a Adalberto H. Ardner,
115
da qual Dudley (Fotografia 7) era o
vice-gerente. Barbadiano, “bem moreno”, anglicano, casado com uma inglesa, em plena
capital da borracha a imagem de um homem próspero é descrita em detalhes por Nick. Os
negócios iam bem e a família foi crescendo. Josephine estava grávida do primeiro filho
quando chegou ao Brasil. Nasceram os quatros filhos do casal: Phyllis, Doris, Clarice e Ellis.
Brasileiros, sim, mas “(...) Todos foram estudar na Europa [Londres]. Naquele tempo não
tinha história de estudar em São Paulo. na Europa. Todos foram estudar na Europa.
Depois regressaram...”.
116
114
Tanto Dona Altair quanto Paulo foram muito simpáticos e atenciosos comigo, apesar da correria e da
“revoluçãoque estava acontecendo na casa, na segunda vez que a visitei, por conta dos preparativos para o dia
do Círio de Nazaré, apontado por Nicholas como a data máxima da família. Ao Paulo devo, inclusive, agradecer
pela reprodução de algumas fotografias da família Chase, que constam nesta dissertação.
115
Segundo Nicholas, a Adalberto H. Ardner tinha sua sede na travessa. Castilho França, e as exportações que
fazia dirigiam-se para o mercado europeu.
116
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
68
Fotografia 7
Dudley Elias Chase, entre Barbados, Londres e Belém
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
69
O filho mais novo, Ellis, um (...) moreno de olhos azuis” (Fotografia 8), conheceu
uma “alemã, austríaca”, Rosl Pohl, formada como enfermeira na Alemanha (Fotografia 9) Os
dois teriam casado em 1924, em Viena, pouco antes de migrarem (Fotografia 10). Ellis
estudou comércio e trabalhou, junto com o pai, na exportação da borracha. Teve com ela dois
filhos: Octavio (1925-1987)
117
e Nicholas Chase (este nascido em 1927) (Fotografia 11). A
imagem do “tempo áureo” foi registrada numa fotografia de 1927 (Fotografia 12), tirada em
frente à residência da família, na avenida São Jerônimo, hoje Governador José Malcher, em
frente ao que hoje é o Memorial dos Povos.
118
O foco é centrado no carro da família:
(...) o primeiro carro Mercedes Benz que chegou no Pará, que era de
propriedade do meu avô. Aqui você como era. A minha mãe, com meu
irmão, pequenininho; eu tô na barriga dela. Isso aqui foi em 27, esse retrato.
Eu estou. Ela está grávida de mim. Meu pai aqui, e o motorista fardado.
Pra ver como era o negócio...
119
Assim disse Nicholas, referindo-se à imagem de prosperidade de sua família. As
fotografias permitem, através das imagens que contêm, que o pesquisador perceba elementos
que, em situações de trabalho de campo, mesmo procedendo-se a uma cuidadosa observação
direta, podem escapar ao seu olhar, assim devolvendo a ele informações importantes, detalhes
até, “um mundo pelo intermédio da máquina”.
120
No caso da foto da família Chase, como de
todas aqui mostradas, este recurso apresenta um valor maior ainda, posto que, através dele,
pude me remeter a um tempo que não vivi, mas que esdiante dos meus olhos, “congelado”,
permitindo que seja observada uma imagem das primeiras décadas do século XX que trás a
frontaria da casa dos Chase na avenida Governador José Malcher, pavimentada com
paralelepípedos, a expressão alegre de Rosl, usando um chapéu, tendo ao lado seu
primogênito, no interior de um automóvel, guiado por um chofer negro, de cabeça baixa e
usando um quepe, impossibilitando, assim, que seja visualizada sua expressão. Todos estes
elementos, junto com a descrição feita pelo informante (que procurou destacar sua presença
na foto, bem como a exclusividade daquele bem de família), sintetizam o que foi chamado por
este de “tempo áureo”. Afinal, quem, naquele contexto, podia ter um carro como o que é
117
Este era chamado pela mãe de Bug, como de costume é apelidado o primogênito de uma família alemã, como
me contou o informante. Octavio Chase casou-se com Maria Teresa Ramos Chase, tendo dois filhos: Otávio e
Pedro. Conversei com Otávio e com a esposa deste, Mara Nooblath Chase, aos quais devo agradecer a atenção
com que me atenderam nas várias ligações que fiz em busca da história daquela família, achegar a Nicholas
Chase.
118
Justamente onde se deu a Exposição Belém dos Imigrantes.
119
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
120
Como afirmou o professor Ernani Chaves, em uma de nossas aulas em Seminários de Dissertação, ao discutir
as possibilidades de uso das fotografias para uma boa etnografia.
70
destaque da fotografia? Prosperidade, status, distinção social, ali revelados através da casa,
do lugar e tipo de moradia, da vestimenta, dos bens de consumo e dos empregados tudo
registrado naquelas fotografias, verdadeiros “herbários da lembrança”, como definiu Michelle
Perrot, que “(...) alimentam uma nostalgia indefinidamente declinada”.
121
121
Cf: PERROT, 1989, p. 13.
71
Fotografia 8
Ellis Chase. Fruto da “segunda mistura”, segundo seu filho Nicholas Chase
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
72
Fotografia 9
Rosl Chase, a “ariana pura”, segundo seu filho Nicholas Chase
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
73
Fotografia 10
Ellis Chase e Rosl Chase, em Londres
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
74
Fotografia 11
Octavio e Nicholas Chase, na rua João Alfredo, no comércio de Belém
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
75
Fotografia 12
No “tempo áureo”: Rosl e Octavio Chase, no carro da família, em frente à sua residência, na avenida
São Jerônimo (atualmente, Governador Jo Malcher), em 1927, ano em que Nicholas nasceu
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
76
Do “tempo áureo” às “vacas magras”. Na década de 1930, com a queda da borracha,
os negócios da família declinaram, Dudley recusou-se a abrir falência, em consideração aos
seus funcionários. Juntou-se a isto a doença do filho Elis, como Nicholas comentou:
(...) meu pai adoeceu, ele teve derrame cerebral. Ele ficou inutilizado.
Quando foi em 30, a borracha caiu. foi a derrocada. O meu avô não quis
abrir falência pra salvar os bens dele, não quis a falência. Ele sustentou os
estivadores até o último centavo.
122
Dudley morreu pouco tempo depois. Elis ficou doente em casa. Rosl com dois filhos
pequenos, junto com as cunhadas Phyllis e Doris. A casa passou ao comando das mulheres,
como contou Nicholas:
(...) ele [Dudley] acabou falecendo com 58 anos. ficaram as minhas
tias, meu pai doente e a minha mãe. Então as minhas tias, justamente,
foram ensinar inglês; a minha mãe ensinava alemão e eu fui criado nas
vacas magras.
123
Barbadiano da “alta roda”... mas, sempre “barbadiano”
Como Dudley, outros barbadianos em melhor situação vieram para Belém no início do
século XX. Foi o caso de Leonard Eustace Deane. Quem conta a história do Sr. Deane é sua
neta, Tatiana Deane de Abreu Sá, agrônoma, atual chefe geral da EMBRAPA/ Amazônia
Oriental.
124
. Tatiana contou-me sobre sua “ascendência barbadiana”, ao destrinçar a sua rede
de parentesco, que envolve muitas origens, costumes, línguas – e que ela pôde remontar
através da composição da árvore genealógica da família, oportunizada pela “viagem de volta”
que fez, isto é, a viagem de reconhecimento da terra natal de seu avô, Barbados, em meados
da década de 1990.
125
Segundo Tatiana, Leonard Eustace Deane, nascido por volta de 1884, era “(...)
um negro, mas claro”, posto que “(...) filho de uma negra, casada com uma pessoa de
ascendência irlandesa”. Em Barbados, Leonard era contador, tendo viajado por vários países
“(...) trabalhando sempre com uma firma que trabalhava com a questão de portos. Ele
trabalhou na construção do Panamá, trabalhou também na Bolívia, e veio trabalhar na época
122
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
123
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
124
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Entrei em contato com Tatiana Deane através de Cândida
Barros, pesquisadora do MPEG.
125
Nessa viagem, a neta participou de uma reunião familiar em que “estavam presentes dezenas de pessoas,
algumas vindas de várias partes do mundo, todos descendentes da família Deane. Entrevista com Tatiana Deane,
realizada em 10 de janeiro de 2005.
77
da construção do porto de Belém, e depois ele trabalhou no de Manaus também.”
126
Sua neta
conta que Leonard veio como um “alto funcionário” de uma empresa inglesa, a Port of Pará,
a Amazon River, depois SNAPP, que transformou-se na atual ENASA.
127
Casou-se, em 1911,
com Helvécia de Melo, nascida em 1891, belemense (com ascendências portuguesa e
holandesa) e estudante de direito. Ela, católica, ele, anglicano “não muito praticante”.
Casaram em Belém com bolo de noiva e móveis da casa encomendados de catálogo da
Inglaterra. Leonard seguiu com a esposa para Paris, onde assumiu a coordenação da empresa
em que trabalhava. “(...) foi com ela pra lá, e ela depois engravidou, e resolveu que não
queria ter o filho, nem francês, nem inglês, porque ele era cidadão inglês, ele teve que pedir
pra sair do emprego lá, pra voltar aqui à estaca zero, continuar..., e voltou pra pra
Belém”.
128
Ainda segundo a neta Tatiana, o casal teve quatro filhos: Leônidas, conhecido
infectologista que morou em São Paulo e morreu no Rio de Janeiro; Gladstone, outro médico;
Pierce, pintor; e Dolly Deane de Abreu Sá. Esta última, falecida, era a mãe da informante
aqui citada, tendo casado com Benedito de Abreu Sá (o B.Sá), conhecido e conceituado
químico e professor em Belém, hoje aposentado, natural do Pia, com quem teve três filhos:
Leônidas, em homenagem ao avô; Dolly, como a mãe, e, finalmente, Tatiana. Interessante é a
descrição que Tatiana fez da “mestiçagem”, como ela diz, da qual sua família, por parte de
mãe, resultou:
[Meu avô] Era praticamente [mestiço], quer dizer, se você olhava, na
definição é negro. Na realidade, eu digo sempre (...) que meu atestado de
entrada no CEDENPA,
129
a foto da minha avó. E, mas ele era negro,
embora fosse claro, mas tem característica... então os irmãos dele, todos são
o que poderia ser distinto [definido] como mulato de olho claro, aqui; e é
interessante porque ele veio para o Brasil, e casou com uma pessoa de
ascendência portuguesa e holandesa. Eu acho que, a minha avó, ela mais o
meu bisavô, tinham olhos azuis, e teve filhos que tiveram características,
dois de olhos bem claros e cabelos crespos, inclusive minha mãe, de olho
verde, e o meu tio com olho azul, os outros dois, tipo mais assim, quase que
mourisco, moreno, mas pra caracteres mais pra Arábia, coisa assim.
130
126
Entrevista com Tatiana Deane de Abreu Sá, realizada em 10 de janeiro de 2005.
127
O Serviço de Navegação da Amazônia e Administração do Porto do Pará (SNAPP), foi criado em 1940,
substituindo a Port of Pará; e extinto em 1967, quando foi substituído pela Companhia Docas do Pará (CDP) e
pela Empresa de Navegação da Amazônia S/A (ENASA). Conferir: http://www.cdp.com.br/museu_porto.aspx,
acesso em 30 de novembro de 2005.
128
Entrevista com Tatiana Deane de Abreu Sá, realizada em 10 de janeiro de 2005.
129
Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará.
130
Entrevista com Tatiana Deane de Abreu Sá, realizada em 10 de janeiro de 2005.
78
Ser negro e ter traços diferenciados. Não só a cor da pele do avô foi lembrada pela
descendente dos Deane. Descrito como um homem cordial, bem sucedido, preocupado com a
educação dos filhos, sem preocupação de acumular fortuna, o que é afirmado por Tatiana ao
indicar as casas, nas quais a família morou, sempre alugadas, no Largo da Trindade, na
travessa Benjamim Constant, próximo à Brás de Aguiar ou na travessa Rui Barbosa, entre
avenida Nazaré e avenida Brás de Aguiar, todas em áreas bem consideradas, centrais da
cidade.
Leonard era “negro claro”, barbadiano, mas convivia entre os ingleses, circulava entre
a elite branca em Belém. Naturalizou-se brasileiro, aprendeu o português, falava esta
língua com os filhos, era “patriota”, e não freqüentava a Igreja anglicana, a não ser quando era
requisitado pelos reverendos de lá, quando lhe pediam algo. Convivia na “alta roda”, e era
bem aceito, o que foi explicado, pela neta, como resultado de seu cargo na dita empresa. Mas,
segundo ela também, quando queriam insultá-lo, logo diziam: “ah, aquele negro
barbadiano!”
131
Observamos esta última enunciação como um insulto que discrimina o
sujeito pelo fato de ser negro, ser originário de uma área colonial, desqualificando-o dentro de
uma categoria: barbadiano. Como afirma Guimarães (2002: 170), os insultos verbais têm,
nestas situações, dentre outras coisas, contornos raciais, constituindo-se como atos,
observações ou gestos que expressam uma opinião bastante negativa sobre uma pessoa ou
grupo, e que têm, dentre outras funções, as de legitimação e reprodução de uma ordem moral,
legitimação de hierarquias entre grupos sociais e/ou no interior de grupos, e de socialização de
indivíduos, enfim, sempre relacionadas a relações de poder. Leonard podia circular pela “alta
roda”, ser “aceito” entre os brancos, os ricos, mas em certas situações de interação com os
outros (como no ambiente de trabalho) o conflito se instaurava através do insulto que
demarcava a volta das fronteiras que o separavam dos demais (Barth, 2000).
Relatando as histórias de Dudley Chase e de Leonard Deane, barbadianos abastados,
percebemos as diferenças de condição social dos mesmos em relação aos outros barbadianos,
diferenças que começavam pela situação da chegada em Belém. Os dois aqui chegaram com
cargos de chefias em empresas inglesas, enquanto os relatos das outras famílias apontam a
chegada de negros barbadianos que vinham aventurar e acabavam empregados nas firmas
inglesas (Arraes e Figueredo, 2004), como as já citadas Port of Pará, Pará Eletric, Both Line,
Amazon River, dentre outras (Sarges, 2000). E parte deles, depois desta experiência primeira
131
Entrevista com Tatiana Deane Abreu Sá, em 10 de janeiro de 2005.
79
de trabalho, implantando os bondes, os cabos telegráficos, construindo portos, carregando
mercadorias, passaram a dar aulas de inglês, atividade também seguida pelos seus filhos,
brasileiros, e falantes dos dois idiomas.
Barbadianos de diferentes condições. Segundo Tatiana, ao lembrar as
distinções entre os membros de sua família (ressaltando o parentesco por parte da mãe e do
avô materno), destacou não o fato de Leonard sair da terra natal com um emprego, bem
remunerado, mas também, remetendo-se aos seus demais parentes, toda a relação de
casamentos, o país onde mora, e a condição que ficou. Dependendo do casamento, da
escolha, status diferentes”. Tatiana afirmou isto ao comentar os casamentos de seus tios:
(...) como outros irmãos dele, um casou com uma portuguesa; os filhos
muitos migraram para o Canadá, são considerados brancos praticamente.
os outros dois irmãos dele, casaram com senhoras no Brasil, mulatas, um
com uma barbadiana, e um com uma pessoa da Guiana, e eles foram pra
trabalhos (bairros?) negros nos EUA, sendo que um é até professor
universitário, aposentado, mas você vê, toda a relação de casamentos, o país
onde mora, e a condição que ficou. Dependendo do casamento, da escolha,
status diferentes.
132
O que me fez pensar sobre as afirmações feitas pelos informantes acerca do o-
casamento, ou da “escolha” pelo celibato, o que tratarei mais adiante.
Às voltas com a Pan Air
Por hora, caberia aqui contar mais uma história de vida, ou histórias de vida, de outros
Skeete, que não os da família de Robert Clyde Skeete, sobre quem comentei no início deste
texto. No início da pesquisa, ouvia falar que havia “outro Skeete”, o que foi, inclusive
informado por James, o acólito da IEAB, filho de Clyde. Depois de conversar com outras
pessoas e, mais uma vez, fazer buscas pelos números de telefone, pude conversar com Liliana
Odélia Skeete (Fotografia 13), que, junto com sua mãe, narrou a história da família que tem,
como referencial de memória, o Sr. José Oscar Skeete, pai de Liliana.
133
José Oscar Skeete, brasileiro, é um dos quatro filhos de Mabel Skeete, que migrou de
Barbados para o Pará, junto com “a leva de barbadianos” que para vieram no início do
século XX. A família de Mabel trabalhava em canaviais na terra natal e ela, depois de sua
132
Entrevista com Tatiana Deane de Abreu Sá, realizada em 10 de janeiro de 2005.
133
Entrevista com Liliana e Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
80
chegada a Belém, passou a trabalhar na casa de um inglês, Mc Clayd.
134
Mabel criou os
filhos, constituindo uma família de “posse média”, contou sua neta Liliana, apontando para o
fato da avó paterna ter, na sua casa, mulheres empregadas na lavagem das roupas da Pan Air.
Além disso, dos seus quatro filhos, uma era professora, outra era “estilista” (costurava “para
fora”, para pessoas abastadas daqui), e outro foi José Oscar Skeete, que se tornou almoxarife.
Este último casou-se com Doris Victoria Charles, brasileira, filha de uma barbadiana, Una
Long Charles, com um indiano, Joseph Victor Charles. Doris teve seu nome abrasileirado
para Doroty, embora seja chamada pelo seu apelido, Lili (esta é a informante que estarei
citando, conjuntamente com sua filha Liliana). Ela é irmã de Lucy [que não é a Lucy
Burnett], esposa de James Burnett, outra família sobre quem aqui já comentei (Fotografia 14).
José Oscar Skeete e Lili casaram em Belém, na IEAB (assim como os pais dela), local
que freqüentavam na infância, embora tenham se convertido, mais tarde, à Assembléia de
Deus, onde Oscar congregou até falecer, em 1993. Pelo conhecimento que tinha do inglês e
pela indicação de americanos, ele conseguiu um emprego na antiga Pan Air, onde trabalhou
durante grande parte de sua vida como encarregado do almoxarifado, tendo sido, segundo sua
filha, o primeiro empregado desta empresa rea, que abriu falência na década de 1960,
quando Oscar se aposentou. Lili, junto com uma de suas irmãs, era responsável pela lavagem
das roupas, especialmente os uniformes, da Pan Air. Lavar, passar e cozinhar, isso no
ambiente de sua casa.
134
Um dos filhos de Mabel é quem deu origem a família Lewis, cujos membros vivem em Belém e em Manaus;
tive oportunidade de falar brevemente com um dos descendentes da família Lewis apenas uma vez, por telefone.
81
Fotografia 13
Liliana Skeete, em sua residência, em novembro de 2005
Fonte: Acervo de Maria Roseane C. P. Lima
82
Fotografia 14
Lili Skeete, em sua residência, em novembro de 2005
Fonte: Acervo de Maria Roseane C. P. Lima
83
Os relatos de Lili e Liliana Skeete foram permeados pela memória do que era Belém
no contexto das duas grandes guerras, da presença dos ingleses, as possibilidades de formação
e emprego, evidenciando-se o orgulho pela formação dos membros da família. o quatro os
filhos do casal Skeete: Liliana, que nasceu em 1939, trabalhou como contadora, professora
primária, também tendo cursado direito, tal qual seu irmão, Isaías Oscar Skeete, nascido em
1941, que chegou a montar escritório de advocacia em Belém, mas destacou-se como
professor de inglês em colégios como Augusto Meira, Santa Rosa e Escola Técnica Federal,
além de ter sido diretor de vários colégios da rede pública e reitor da antiga Faculdade do
Estado do Pará (FEP), hoje Universidade do Estado do Pará (UEPA). O terceiro filho do
casal é José Wilson, também professor de ings. David Victor Skeete (1943), foi outro
formado como contador pelo Colégio Moderno, além de sua formação em Educação Física e,
ainda, em Direito, além de ter sido professor do Colégio Augusto Meira. A caçula da família
era Ruth, nascida em 1944, professora formada pela Escola Normal, especializando-se em
orientação educacional. Esta última casou, fixou-se no Rio de Janeiro e faleceu alguns
anos. Seu filho, Fabrício, mora atualmente com Liliana e sua mãe, Lili, numa casa situada na
rua João Balbi a primeira e única casa da família Skeete, adquirida num tempo em que este
local era considerado subúrbio de Belém. Liliana não casou e mora até hoje com a mãe.
Liliana Skeete, ao ser entrevistada, lembrou de outras famílias de barbadianos em
Belém, como a de Iulie (mãe de Cléa Simões)
135
que ensinava as primeiras letras aos filhos de
barbadianos; e, também, a família de Luís Linch. O pai era sapateiro, a mãe lavadeira.
falavam inglês em casa. Com este capital cultural, Luís tornou-se professor de inglês, mas
135
Cléa Simões é uma atriz paraense, negra, que atuou em várias novelas da Rede Globo. Foi informante de
Vicente Salles, sendo citada, inclusive, no livro O Negro no Pará. tempos ela reside no Rio de Janeiro.
Tentei entrevistá-la em uma das vezes em que se encontrava em Belém, pela ocasião do Círio de Nazaré, em
2004, mas não consegui, primeiro porque Dona Cléa precisou ligar para Vicente Salles, seu amigo, para
perguntar-lhe o que ele achava dela contar suas lembranças sobre os barbadianos para algm desconhecido,
como eu. Como Salles sinalizou positivamente, segundo ela mesma me informou, resolveu marcar para
conversarmos. Mas depois de adiar a entrevista para datas posteriores, Dona Cléa acabou deixando claro que
não gostaria de me contar suas histórias, preferindo chamar duas estudantes, com quem tem laços de parentesco
e amizade, para que registrassem sua história de vida, a qual envolve a história de outra senhora barbadiana, avó
das duas estudantes. A respeito desta impossibilidade de entrevistar alguém que eu sabia ser importante para
minha pesquisa, por tratar-se de uma descendente de barbadianos, além dela ter sido informante de Vicente
Salles, formulei duas hipóteses: ou aquela senhora não se sentiu à vontade para confiar histórias privadas a uma
desconhecida, ou resolveu não atender ao meu pedido pelo fato de não tê-la tratado pelo que ela é e representa
enquanto figura pública – o que se deu pelo meu desconhecimento, naquela ocasião, de sua trajetória profissional
e de que tratava-se da mesma informante citada por Vicente Sales em seu livro, posto que foi apenas como Dona
Cléa que ela me foi indicada como possível informante. Eis mais um atropelo no processo de pesquisa. Algo que
dificilmente poderá ser revertido, inclusive porque, pelo que soube recentemente, Cléa Simões, que estava
adoentada quando a contatei em 2004, encontra-se no Rio de Janeiro com estado de saúde bastante precário.
84
exerceu tal atividade em casa, como atividade complementar ao seu trabalho no serviço
público, aonde chegou a ser um alto funcionário.
136
Mas, voltando à família de José Oscar Skeete, as duas informantes, mãe e filha,
narraram, dentre outras coisas, a situação dos barbadianos, dos que chegaram na “primeira
leva”, no início do século XX, e dos que vieram depois, no contexto da Segunda Guerra e da
busca de ouro em garimpos da região,
137
tendo sido os primeiros aqueles que mais teriam
sofrido com a discriminação que envolvia sua origem, língua, raça, religião, costumes,
vestimentas... símbolos, sinais diacríticos, como nos ensina Goffman (1988), os quais eram
utilizados para identificá-los, pois eles mesmos assim não o faziam, diferenciando-os dos
outros ingleses, os “brancos”, os “graúdos”, como afirmou Lili.
138
Dos Skeete de Robert Clyde, através de James, aos Skeete de José Oscar, através de
Liliana e Lili, os informantes demonstraram conhecimento sobre a existência uns dos outros,
evidenciando diversas relações que me ajudam a pensar as situações de interação, conflituosas
ou não, de acordo com o que foi dito, lembrado, em função de como os entrevistados, nas suas
construções como sujeitos, recortaram suas memórias, como nos lembra Pollak (1989).
Este não tão breve relato em torno das famílias tidas como barbadianas em Belém foi
aqui necessário para a apresentação das pessoas sobre as quais estou tratando, da forma como
chegaram e de como as outras gerações se referiram a elas. Neste trajeto, procurei indicar as
questões que serão trabalhadas nas próximas partes da dissertação, que procura entender, de
forma mais pontual, quatro aspectos das vivências “barbadianas”, tais como trabalho,
família/educação, religião/Igreja, raça e preconceito.
136
Heraldo Maués estudou inglês com Luís Linch. Heraldo ainda recorda deste tempo de estudo. Foi aluno de
Clyde Skeete, enfrentando, como outros colegas seus, os riscos de reprovação, no Colégio Paes de Carvalho.
Começou a ter aulas com Luis Linch, que disse: “(...) primeiro, para passar com o Skeete” esse era o desafio
maior dos alunos; depois, para a aprender a língua inglesa, como de fato aprendeu. Angelica teve aulas com ele,
bem depois, para se preparar para a seleção de mestrado. Conversa informal com Maria Angelica Motta-Maués,
em 23 de agosto de 2005, e com Raymundo Heraldo Maués, em 9 de dezembro de 2005.
137
As outras famílias por mim entrevistadas não mencionaram esta “segunda leva” de imigração de barbadianos
para Belém. Sobre este contexto de imigração voltada para as áreas de garimpo, considero tratar-se de imigração
envolvendo pessoas de vários países, não exclusivamente negros, nem caribenhos. O que, inclusive, acaba sendo
indicado pela informante quando esta afirma que vinham pessoas de toda parte, e que estes não sofreram como a
primeira geração, isto é os imigrantes que chegaram no início do século XX.
138
Entrevista com Liliana e Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
85
Capítulo 3
BARBADIANOS POR ELES MESMOS
Nas ruas, nos bondes, nos portos, nos navios
Os informantes, ao lembrarem de seus pais e demais parentes e conhecidos,
descreveram, em diversos momentos, um cenário de Belém marcado pela chegada e saída de
navios, brasileiros e estrangeiros, com todo tipo de gente e de produtos a bordo, e fazendo
inúmeras rotas. Não é à toa que é registrada, nos textos, memórias e outras fontes, uma
imagem de Belém pelos seus portos, sempre movimentados, com muitas “pessoas de cor”,
dentre elas muitos ditos barbadianos, isto é, provenientes das diversas ilhas britânicas, em sua
maioria negros, quando o, seus filhos já nascidos na cidade. As fotografias dos portos de
Belém no início do século XX, ilustram isso muito bem,
139
sem contar a referência a Belém
como o “alegre porto”, como a “barbadianinha”, presente na “modinhacomposta por Mário
de Andrade, “revivendo as lembranças próximas” de sua estada na cidade, de onde partira em
1927.
140
A cidade experimentava um tempo de crescimento econômico com as exportações
de borracha, e a conseqüente incursão de capitais estrangeiros, presentes em diversos serviços
e obras que passaram a ser realizados, como parte de seu processo de urbanização (Sarges,
2000). Homens, mulheres (de origens, cores e condições diferenciados), firmas e costumes
estrangeiros, circulavam pela cidade. Dentre os muitos trabalhadores imigrantes na cidade, os
barbadianos.
Robert Clyde Skeete, James Christopher Burnett, Thomas Busby, foram lembrados,
por seus filhos, como negros que imigraram para Belém, para trabalhar na Pará Eletric.
Beatriz White, por sua vez, recordou o tempo em que vinham muitos navios para Belém,
como os da companhia inglesa Booth Line. Seu pai foi caldeireiro de um navio, como ela
contou. Robert Scantlebury foi empregado da Amazon River, sendo lembrado por suas
filhas como alguém que vivia num constante trânsito pela Amazônia e até pelo exterior:
139
Cf. Acervo Fotográfico do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.
140
Cf: ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades/ Secretaria da Cultura, Ciência e
Tecnologia, 1976, p 185-186.
86
(...) ele ia e vinha, ia e vinha, ia e vinha [no navio]. Teve uma vez [que]
quase eles vão à pique, porque o comandante tava meio coisado da cabeça,
eu acho. Pegar um navio daquele, que não tinha porte nenhum, assim, pra ir
pra Inglaterra!.
141
Das idas e vindas do pai aos percalços enfrentados nas longas viagens de navio. Isto
que também é recordado por aqueles que escutaram seus pais contarem a “aventura”
experimentada pela saída de seus locais de origem no Caribe Inglês, com a finalidade de
encontrar uma condição de vida melhor em terras estrangeiras: no caso, a Belém da Bellé-
époque, que foi palco da incursão de capitais estrangeiros envolvidos no comércio da
borracha, do investimento em urbanização e do estabelecimento de serviços de comunicação
como o de cabos e telégrafos. Algo, por exemplo, lembrado pelas irmãs Scantlebury, pois
“(...) não era como o telégrafo agora, né, era muito diferente”, comentando a implantação
daquele serviço pela “ribeirinha todinha”.
142
A maioria dos entrevistados lembrou da chegada de seus ancestrais que migraram para
Belém, remetendo aos homens e às atividades que realizavam nas firmas estrangeiras,
implantando a energia elétrica ou os bondes, trabalhando nos navios ou nos portos, também
na instalação do sistema telegráfico, incluindo a realização de trabalhos que iam desde os
manuais ou braçais, como estivadores, até atividades mais específicas: marinheiros,
carpinteiros, caldeireiros, sapateiros, dentre outras. Alguns informantes apenas mencionaram
os nomes das firmas para os quais seus pais trabalharam, e que tipo de serviço cada empresa
estava executando na cidade, sem, contudo, precisar o ofício do pai, afirmando desconhecê-lo.
O desconhecimento, ou possível silêncio sobre o ofício dos pais, pode ser analisado
considerando-se o que Eca Bosi (1979: 468) apontou sobre a memória do trabalho.
Manual, mecânico ou intelectual, o ofício transparece, na memória, com uma dupla
significação: a) seu caráter corpóreo, envolvendo os movimentos do corpo e as fases de
adestramento, de práticas; e, b) a inserção obrigatória do sujeito no sistema de relações
econômicas e sociais. Sob este aspecto, (...) Ele é um emprego, o como fonte salarial,
mas também como lugar na hierarquia de uma sociedade feita de classes e de grupos de
status (grifos da autora). E isto deve ser considerado para entender: a) o que a segunda
geração das famílias entrevistadas conseguiu “dizer” sobre o ofício dos pais; e b) como essa
mesma geração lidou com uma memória existente acerca dos barbadianos, relacionada a
certos ofícios/funções (como discutirei adiante); afinal, “dizer” o ofício dos pais ou avós
141
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
142
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
87
poderia evidenciar um “lugar na hierarquia” aquém daquela posição ostentada ou pretendida
por sujeitos com outros ofícios e situação social diferenciada. Além disso, a afirmação de
Bosi sobre a dupla significação do trabalho pode ajudar na percepção acerca das escolhas
feitas pelos membros da terceira geração, não só na condão de suas vidas, como também na
forma como contaram sobre seus ancestrais e, principalmente lidaram com a identificação
barbadiana.
Nos lares
Se os descendentes de barbadianos lembraram sobre seus ancestrais homens,
lembraram também das mulheres. Sobre as mulheres barbadianas que para Belém migraram
há a memória daquelas que se empregaram nas casas de famílias inglesas e/ou brancas
nativas, residentes na cidade, como governantas
143
ou domésticas. Una Long, como contou
sua neta, Liliana Skeete, “(...) era governanta do inglês que tinha aqui... naquele tempo usava
aquelas casas grandes, né, e ali eles hospedavam principalmente gente que vinham (sic) de
fora. Então tinha que ter a governanta, cozinheira, empregada, lavadeira, tudo tinha nessa
casa”.
144
Segundo a informante, tratava-se de uma casa, no bairro de Batista Campos, alugada
para receber os ingleses, os brancos”, as pessoas de alto nível”, como os engenheiros,
dentre outros, que chegavam na cidade para a execução de servos diversos. Com os termos
que empregou, a informante quis demarcar uma diferença entre ingleses “brancos” e os
barbadianos, que seriam os ingleses pretos”. Todos ingleses, mas uns eram os graúdose
outros, “os miúdos, aqui transparecendo o caráter relacional da identidade, ou das
identidades, o qual não pode deixar de ser observado, na medida em que, como afirma Michel
Agier,
145
“(...) somos sempre o outro de alguém, o outro de um outro, cuja relação pode se dar
por encontros, conflitos, alianças”. Neste sentido, a identidade deve ser buscada “(...) a partir
de um olhar externo, até mesmo de vários olhares cruzados”. Do que foi dito pela informante,
percebo o jogo das semelhanças e diferenças sendo operado para mostrar como os
barbadianos se aproximavam dos (ou eram) ingleses, embora diferentes pela cor/raça e pela
condição.
143
Liliana Skeete tem a lembrança da avó paterna, Mabel, como governanta na casa de ingleses, e, ainda, como
responsável pela lavagem de roupas da Pan Air, serviço que seria executado por suas “empregadas”, como
contou a informante.
144
Entrevista com Liliana Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
145
Cf: AGIER, Michel. “Distúrbios Identitários em Tempos de Globalização”. In: Mana 7(2), 2001, p. 9.
88
Além das governantas e outras domésticas, havia mulheres que prestavam serviços
não para famílias abastadas, mas também para determinadas empresas, ou mesmo para os
navios que aportavam em Belém –, seja cozinhando, lavando roupas, ou costurando. Beatriz
White, filha de barbadianos, lembrou que
(...) Quando chegava o navio, tinha as mulheres que (...) lavavam roupa
para... [os navios e/ou seus funcionários]; já eram quase como pessoas
cadastradas, que eles não davam as roupas para as pessoas natas, daqui,
brasileiras, né. Eles davam, justamente, pra essas senhoras, lavadeiras, que
eram barbadianas.
146
A chegada dos navios em Belém significava para algumas falias de barbadianos,
como a Scantlebury, o retorno de um de seus membros, depois das constantes viagens a
trabalho. No caso do que fora exposto por Beatriz White, ficou a lembraa de que as
mulheres barbadianas para acorriam com o fito de obter uma renda com a lavagem das
roupas da tripulação dos navios; roupas estas que pegavam para lavar nas suas casas. “Quase
cadastradas”, foi a expressão usada pela informante para indicar que se tratava de mulheres
certas as “lavadeiras”; seriam as “barbadianas”, e não as mulheres “natas”. Caberia, aqui,
considerar que entre “natas” e “barbadianas” haveria uma diferenciação que poderia ir além
da naturalidade, provavelmente perpassando esta última designação por uma origem familiar
estrangeira e negra, por certo, até porque pessoas da segunda geração, como a própria Beatriz
White, por serem socializadas recebendo tal designação acabavam se apresentando, elas
próprias, como barbadianas”, o que é esboçado através de enunciados que poderiam ser
descritos como compondo uma memória étnica, como apontado por Pollak (1989).
Pensando a relação entre a identificação “barbadiano(a)” e a realização de
determinados servos, posso aqui citar outra informante, Tatiana Deane, a qual recordou que
sua avó, mulher de barbadiano, “sempre teve empregadas barbadianas”. Uma delas foi a
“Hellen Cook”, no nome trazendo a atividade, cozinheira, que trabalhou por mais de 20
anos na casa dos Deane, terminando por se aposentar desta forma. Fazendo dos relatos de sua
mãe a sua própria lembrança, Tatiana contou que Hellen “(...) tinha o sobrenome, mas (...), se
perguntavam o nome dela, ela já dizia que o nome era Hellen-cozinheira.
147
Sobre as mulheres da primeira geração, pode ser observado que as atividades se
davam, geralmente, no interior das casas em que moravam, fossem essas as suas próprias ou
146
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
147
Entrevista com Tatiana Deane de Abreu Sá, realizada em 10 de janeiro de 2005.
89
as de seus patrões. Muitas, como Carlota Burnett ou Flora Scantlebury,
148
são lembradas
como mulheres “do lar”, isto é, como quem trabalha em casa, mais precisamente para a
família. Entretanto, o se excluía a possibilidade de que as mesmas realizassem trabalhos
manuais, como costurar, bordar, fazer flores, sem contar a própria lavagem de roupas, muito
embora, nos depoimentos, fosse destacado quando se tratava de atividade feita para fora”,
indicando, principalmente, que obtinham renda com tais serviços.
Como lavadeiras, engomadeiras, governantas, cozinheiras, amas-de-leite e amas-secas,
é assim que as mulheres barbadianas são lembradas, pelo que pude ouvir dos relatos de Maria
Angelica Motta-Maués, de Tatiana Deane, de Lili e Liliana Skeete, do que li também. Algo
interessante de ser aqui relatado é que consta, no Catálogo da Exposição Belém dos
Imigrantes, a afirmação de que Abguar Bastos, em suas memórias, fez referência às
barbadianas como “(...) negras vindas de Barbados que serviam como amas de leite para as
crianças mais ricas ou iam aos mercados e feiras com cestas nos braços e os chapelões na
cabeça” (grifos meus).
149
De pronto, Liliana Skeete afirmou, séria, que “(...) isso é uma
mentira, isso é uma mentira! Elas não foram nada disso! [amas-de-leite]”.
150
Esta imagem acerca das barbadianas também consta no relato de Tatiana Deane, que
afirmou: “(...) então você vê, barbadiano, era quase sinônimo de empregado doméstico. A
minha avó mesmo (...) dizia assim: “Eu peguei uma barbadiana, fulana contratou uma
barbadiana”. Elas serviam até de ama de leite”, muito embora esta informante acabasse
remetendo para o fato de que semelhante seria a situação de outras mulheres estrangeiras na
cidade: “(...) Então em grande parte das empregadas domésticas nessa época, na realidade, no
século XX, elas eram barbadianas, portuguesas e espanholas. Então tanto que, quando a
minha avó morreu em Manaus, como morou em Belém, ela praticamente o tinha quase
empregada brasileira”.
151
A partir de conversas com pessoas que viveram o cotidiano de Belém das décadas de
1950 a 1970, obtive outros contornos do que seria uma memória sobre as barbadianas na
148
Burnett e Scantlebury, duas famílias de barbadianos, mas sendo que a primeira foi apontada como de
“melhores condições”, comparativamente à segunda, que era pobre, segundo o que obtive com as entrevistas
feitas com James Burnett, em 30 de outubro de 2004, e com Alice e Lilian Scantlebury, em 2 de novembro de
2004.
149
Cf: Aldrin Moura de Figueredo, citando Abguar Bastos, no Catálogo Belém dos Imigrantes; história e
memória. Belém, MAB, 2004.
150
Entrevista com Liliana Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
151
Entrevista com Tatiana Deane, realizada em 10 de janeiro de 2004.
90
cidade. Recordando sua infância e juventude na cidade, Maria Angelica Motta-Maués acabou
se tornando uma de minhas informantes, lançando mão de uma memória visual ou de uma
possível tradução dos comentários que escutou no convívio com famílias de camadas dias
e altas.
152
O interessante, aqui, é atentar para a descrição do que seria um perfil dos
barbadianos e barbadianas.
O estilo de trajar das barbadiana, mencionadas por Angelica, as diferenciava das
mulheres negras de Belém, quase as aproximando de uma figura européia ou pelo menos das
mulheres de outra classe (mesmo que produzidas” para seu poder aquisitivo), sem contar o
seu porte: alta, longelinea, busto avantajado, cabelo preso em coque ou bandó na nuca, sapato
fechado, com roupas muito engomadas. Havia, ainda, outra figura feminina, que prestava
serviço aos pais de Angélica, e foi lembrada por se tratar de alguém que não era católica, mas
sim membro da Assembléia de Deus, algo incomum nos anos 40, que podia ser brasileira, mas
era pensada próxima das barbadianas. De que forma? Como mulheres negras que tinham
atividades, como lavadeiras, amas-secas (cuidar de crianças, sem dar leite), governantas,
“empregadas perfeitas”, por serem educadas, “asseadas”, que “sabiam se colocar no seu
lugar”, que não trabalhavam para qualquer família, mas para famílias abastadas ou de
melhores posses, sem serem ricas. Boas empregadas que não pulavam de casa em casa”,
dedicando-se a uma mesma família, inclusive as acompanhando em suas viagens nos paquetes
conformando um conjunto de representações que as constituíam como negras de “outra
categoria”; diferentes das que cercavam os negros brasileiros, paraenses pobres (tidos como
“mulambada”), tudo isso contornado por uma ideologia do trabalho e seu discurso pautado
pela competência, honradez, confiança, mesclado com os estigmas
153
que cercavam os negros
e seu lugar no mercado de trabalho e na sociedade deste período.
154
Estigmas estes fundados
em ideologias racistas que, nas primeiras cadas do período republicano, quando
continuavam os embates em torno do “trabalho livre” no Brasil, chegaram a influenciar a
152
Maria Angelica Motta-Maués, em conversa no dia 23 de agosto de 2005.
153
Estigma como “(...) um atributo profundamente depreciativo”, fundado no que Goffman define como
identidade social virtual, ou seja, aquela pautada na caracterização “efetiva”, que imputamos ao indivíduo, por
um retrospecto potencial”, baseado em nossas preconcepções. Neste sentido, diferenciando-se do que seria sua
identidade social real, isto é, “a categoria e os atributos que ele, na realidade, prova possuir”. Consultar:
GOFFMAN, 1988, p. 12.
154
HASENBALG, Carlos. “Entre o Mito e os Fatos: racismo e relações raciais no Brasil”. In: MAIO, Marcos &
SANTOS, Ricardo (Orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil,
1996, pp. 235-249.
91
política migratória do país,
155
na medida em que, como afirma Giralda Seyferth (1996: 46),
“(...) o efeito mais imediato de “trabalho livre” é a desqualificação dos negros e mestiços para
o trabalho independente”. Em um país que se pretendia “moderno”, as raças ditas “inferiores”,
como eram encarados negros, índios e mestiços, tinham apenas um lugar secundário,
subalterno, como desqualificados”.
156
Com tudo isso, não seria outra a situação das
mulheres e homens barbadianos, e seus filhos aqui nascidos, senão a de ter que lidar com as
representações e estigmas que circundavam os negros “naturais” deste país o marcado pelo
passado de escravidão, com os quais acabavam sendo comparados, confrontados; por isso
certa admiração em torno das figuras femininas aqui lembradas, por seu porte, modo de vestir
e comportar-se, como se fossem pessoas que ocupavam um lugar que não era esperado para
mulheres negras, mesmo quando exerciam atividades que, geralmente, eram associadas às
escravas negras. No jogo de oposições identitárias, aparecem os barbadianos comparados a
figuras européias (mais precisamente inglesas) e contrastados aos negros naturais”, através
das nuances étnicas, entrecortadas por aspectos como status, sexo e posição social (Barth,
2000: 37; Cardoso de Oliveira, 1976: 36).
Lavar e engomar roupas, cozinhar, costurar, dentre outras atividades, foram não
lembradas como também exercidas pelas mulheres da segunda geração, aporque relatos
de que, desde meninas, acompanhavam as mães em seus trabalhos, do qual resultava um
aprendizado importante. Lili Skeete lavou e passou roupas e, também, cozinhou para a Pan
Air, tal qual outras mulheres de sua família (sua sogra, Mabel, no passado, ou sua irmã,
Rejane, a quem acompanhou). “(...) Eu ficava mais no negócio de comida, ajeitando um,
ajeitando outro. Agora, quando faltava uma [mulher que lavava e passava], eu ia fazer o
serviço dela. [Cuidava] Do meu [serviço] e das outras”, contou Lili Skeete, ao que sua filha,
155
Cf: RAMOS, Jair de Souza. “Dos Males que m com o Sangue: as representações raciais e a categoria do
imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20. In: MAIO, Marcos & SANTOS,
Ricardo (Orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, pp.
59-82.
156
Tanto que Carlos Hasenbalg, ao fazer uma avaliação dos estudos sobre o racismo e as relações raciais no
Brasil, ressaltou as conseqüências dessa desqualificação, dessa discriminação no modo de inserção no mercado
de trabalho a que estão expostos negros e mestiços até hoje: “Além de ingressar nele [mercado de trabalho] com
uma dotação menor de educação formal que a dos brancos, os negros e mestiços estão expostos à discriminação
ocupacional, pela qual a avaliação de atributos não-produtivos, como a cor das pessoas, resulta na exclusão ou
acesso limitado a posições valorizadas no mercado de trabalho. Soma-se a isto a discriminação salarial,
evidenciada nas menores taxas de retorno à educação e à experiência obtidas por não brancos, sendo que a
diferença na taxa de retornos nos veis educacionais aumenta. ainda evidências de que quando ocupam
empregos no mercado formal de trabalho, os não brancos enfrentam bloqueios na mobilidade dentro de suas
ocupações. As barreiras raciais existem no recrutamento para os empregos como nas promoções dentro dos
empregos. Esse conjunto de fatores resulta em uma concentração desproporcional de pretos e pardos nas
ocupações manuais urbanas, particularmente nas menos qualificadas e pior remuneradas, como é o caso da
construção civil, emprego doméstico e prestação de serviços pessoais”. Conferir: HASENBALG, 1996, p. 240.
92
Liliana, completou: “(...) Eles vinham deixar e levar [a roupa] (...) roupa de avião, toda aquela
roupa de avião, travesseiros, de piloto, camisas brancas... tudo era, tudo (sic)”.
157
entre as Scantlebury, enquanto Flora, a mãe, fazia os serviços de casa, as filhas
desdobravam-se entre a fabricação de flores de papel, a costura e o bordado. Alice costurava
para fora, tinha muitas encomendas: “Quando eu vinha do trabalho, sentava na máquina pra
fazer uns trocados”, contou ela.
158
Lilian fabricava flores e as vendia com a ajuda de suas
irmãs;
159
também ajudava Alice no acabamento das roupas, afinal, como esta lembrou: “Nesse
tempo não tinha boutique, não tinha roupa feita. Era costureira quem fazia roupa. Ela [Alice]
costurava, eu bordava pra fora. Eu arrematava, fazia bainha, chuleava. Ela tinha muita
costura!”.
160
Não que as filhas não tivessem, junto com os trabalhos “para fora”, a
responsabilidade dos servos domésticos. Entretanto, pelo que contou Alice, tais servos
eram negociados, por assim dizer, até porque “(...) a mamãe, era a gente que levava no bico.
Ah, a mamãe era legal! Quando eu costurava, e ela queria um vestido, a gente dava um corte
pra ela”. Davam o corte de tecido, mas a costura do vestido virava moeda de troca:
(...) Ela logo me perguntava: “Quando tu vai (sic) fazer?”. Eu dizia: pra
quando a senhora vai precisar? É pra tal dia”. [Então eu dizia:] Ah, mas se
eu precisar de alguma coisa... – eu detesto cozinhar! [E falava para ela:] Não
posso fazer isso porque tenho que costurar! [risos].
161
Dos serões sobre a máquina de costura, ou sobre linhas e agulhas dos bordados, as
duas “recordadoras”, no dizer de Ecléa Bosi (1979), contaram vários pequenos
acontecimentos do dia-a-dia delas, com os pais e com as amigas. Amigas como Marieta
Marshall, (Fotografia 15) sobre quem comentaram enquanto mostravam a antiga caixa de
costura ou as fotos em que a mencionada amiga posava, toda elegante: (...) É a Marieta. O
pai dela [Samuel] era barbadiano e trabalhava com o papai (...) Ele era carpinteiro, (...) muito
157
Lili e Liliana Skeete, entrevista realizada em 15 de novembro de 2005.
158
Alice Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
159
Vale destacar, aqui, que a atividade de florista é uma das que se encontram no entremeio dos espaços público
e privado, posto que a produção era feita em casa, mas a venda se dava nas ruas, nos mercados, etc. As flores de
papel e tecido eram valorizadas, como contou Lilian Scantlebury, pois, em meados do século XX, constituíam-se
como um ornamento muito usado, até porque não existiam as flores artificiais de plástico, como hoje. Entrevista
com Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004. Tal atividade, pelo menos em São Paulo, também
era realizada pelos homens, pelo que se observa em Bosi (1979), posto que um de seus informantes exercia tal
ofício. Outra referência sobre esta atividade e as demais nas quais as mulheres se lançaram em sua “conquista do
espaço público”, pode ser encontrado em: RAGO, Margareth. “Trabalho Feminino e sexualidade”. In: História
das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000, pp. 578-606.
160
Lilian Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
161
Alice Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
93
amigo do papai. Pareciam dois irmãos. A mamãe era muito amiga da mãe dela [Amelie]”.
Apontavam apara uma das fotografias de Marieta (Fotografia 16) lembrando que tinham
vestidos como aquele da amiga, os quais eram plissados na Tinturaria Marechal, que ficava na
rua Treze de Maio.
162
Algumas descendentes da segunda geração foram destacadas como mulheres que
costuravam para a “alta sociedade”. Liliana Skeete lembrou da “(...) minha tia, irmã do papai,
ela era, como diz?... estilista!. Costurava pra alta sociedade. Pra aquele pessoal dos
bancos...”.
163
Isto a informante comentou para reforçar a idéia de que sua avó paterna, Mabel,
constituiu uma família que “(...) não era muito pobre”, inclusive porque a mesma tinha como
empregadas outras mulheres que lavavam, para ela, as roupas que chegavam da Pan Air. O
termo utilizado para a referência à tia foi “estilista” embora o termo “modista” também
fosse bastante empregado em meados do século XX,
164
parece usado para indicar uma
aproximação com os gostos e estilos de vida de mulheres das classes altas, que funciona como
“marcador de distinção”, tal como apontado por Bourdieu (1983: 83).
162
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004
163
Liliana Skeete, entrevista realizada em 15 de novembro de 2005.
164
Sobre o universo do trabalho feminino, do início a meados do século XX, consultar RAGO, 2000; e
BASSANEZI, Carla. “Mulheres dos Anos Dourados”. In: História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
2000, pp.607-639.
94
Fotografia 15
Marieta Marshall, amiga das irmãs Scantlebury, toda elegante
Fonte: ARRAES, Rosa & FIGUEIREDO, Aldrin (Coords.). Catálogo. Belém
dos Imigrantes – história e memória. Belém, Museu de Arte de Belém, 2004.
95
Fotografia 16
Marieta Marshall. As irmãs Scantlebury costuravam e tinham vestidos plissados
como este da amiga.
Fonte: ARRAES, Rosa & FIGUEIREDO, Aldrin (Coords.). Catálogo. Belém dos
Imigrantes – história e memória. Belém, Museu de Arte de Belém, 2004.
96
Outras, ainda no ambiente do lar, davam aulas, especialmente de ings, posto que a
segunda geração, conforme foi relatado pela maioria das pessoas entrevistadas, falava com os
pais naquela língua estrangeira, daí resultando um conhecimento do qual lançavam mão para
obter renda, tal qual os homens da família, que se tornaram professores em escolas públicas e
privadas da cidade. Assim, Vita, filha de barbadianos, irmã de James Burnett e mulher de
Robert Clyde Skeete, era “do lar” mas dava aulas de inglês em casa. Da mesma forma, Phyllis
e Doris Chase embora esta última também exercesse a mesma atividade fora de casa, em
colégios religiosos femininos tradicionais, e no particular misto, considerado de elite em
Belém.
Fora do lar?
No caso das mulheres, o trabalho fora de casa acabou se revelando como um
diferencial importante entre as diferentes gerações e suas respectivas atividades. Além da já
mencionada Doris Chase, outras como Beatriz White, Alice e Lilian Scantlebury, Rejane
Charles (Geni ou Lelê, como era conhecida a irmã de Lili Skeete), tiveram suas histórias de
vida marcadas pelo trabalho fora de casa, mais precisamente na Base Aérea de Belém. A
primeira como tradutora de um comandante (tendo, depois, trabalhado no servo de
puericultura existente na cidade), as últimas como telefonistas.
Recuperando suas histórias de vida, vejamos como algumas mulheres da segunda
geração lembraram suas experiências de trabalho, num esforço de atentar para o que Cardoso
de Oliveira (1976: 50) denomina de “condições de existência geradoras das identidades
focalizadas”, no caso, a identidade barbadiana, ou a identificação (barbadiana) em curso,
relacionada e contrastada com a inglesa e a brasileira.
97
No serviço de puericultura
(...) eu comecei [a trabalhar], já com os meus 24 pra 25 anos. (...) Eu
trabalhava no Posto de Saúde, no começo era um Posto de Puericultura, era
um posto que era de tratamento. Os médicos, [o tratamento] era [sic]
pra conservar a saúde da criança e dar o alimento da criança. Nós
preparávamos as mamadeiras. Nesse tempo, as mães pobres que não tinham
como se sustentar, estes postos que o governo abria, justamente, era para
esse fim: pra dar o alimento da criança. A mãe fazia o pré-natal, a mãe saía
e a criança continuava. A criança era mantida com leite. Primeiramente que
a mãe, se ela tivesse bastante leite, ela o daria, [digo] eles não davam leite,
não davam mamadeira pras crianças. A mãe tinha que ter o leite pra dar pra
criança. Mas tinha mãe que não tinha. Então, elas tinham umas mamadeiras
que a gente lavava, esterilizava as mamadeiras no autoclave, conheces? Nos
hospitais ainda tem, pra esterilizar naqueles crivos enormes, e colocavam
quatro grades de mamadeiras em cada um. Eram mil e poucas mamadeiras,
tinha o termômetro... Depois, envelopar todas aquelas mamadeiras, conferir,
distribuir... desde que [as mães, as crianças] fossem pobres...
165
Assim Beatriz White referiu-se ao tempo em que trabalhou no Posto de Puericultura
do bairro do Telégrafo, nos idos de 1950, que funcionava, como os demais postos de mesmo
tipo em Belém, sob a coordenação da Fundação Legião Brasileira de Assistência (LBA). No
início, estes postos eram encarregados, mais especificamente, do serviço de aleitamento das
crianças; depois, passaram a prestar atendimento médico mais amplo, para as crianças e para
as mães destas. Da entrevista com Beatriz White, chamou-me atenção a forma como ela se
deteve na descrição de seu trabalho nos serviços de puericultura, demonstrando conhecimento
sobre as técnicas de preparo do leite para as crianças, entre esterilizar, armazenar e distribuir o
mesmo, os tipos diferentes de leite, “(...) era leite de gado, mas tinha o LBV e tinha o L2, que
era um leite fino, quase como o materno, quer dizer, com pouca mucilagem e pouco açúcar”,
afirmou ela, ao mesmo tempo em que enfatizava o sentido assistencial de seu trabalho, no que
concerne ao atendimento de famílias carentes. Mas isso não se deu à toa, afinal, entre um
posto de saúde e outro, foram cerca de quarenta anos de trabalho, do qual Beatriz se
aposentou em 1991.
166
No começo, Beatriz, ainda solteira, morava com seus pais na passagem Sol (entre as
muitas existentes, algumas até hoje, na avenida Conselheiro Furtado, chamadas vilas ou
165
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
166
Segundo a informante, seus anos de trabalho no serviço de saúde transcorreram em atividades exercidas no
posto do bairro do Telégrafo, mas também em outros postos, localizados em outros bairros da cidade, como o
Marco e o Guamá. Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
98
passagens) de onde partia, cedo do dia, para o trabalho. Uma vez mais detalhando suas
atividades, e apontando as dificuldades de transporte naquele contexto, Beatriz contou:
(...) O que acontecia é que a gente preparava aqueles regimes, tinha que
preparar. Tudo medido, tudo pesado, feito, dado pra elas [as mães] levarem
a primeira mamada de manhã, seis horas. Por tu já viste como começava.
Seis da manhã! E não tinha condução pra levar a gente.
167
Alice White, irmã de Beatriz, também trabalhava para a mesma Fundação, que no
posto localizado no bairro do Marco, enquanto Beatriz dirigia-se para o do bairro do
Telégrafo. Ambas conseguiram este emprego graças ao “conhecimento” de um renomado
médico, também deputado federal e superintendente do mencionado serviço de saúde, Acelino
Leão, que cuidou de Louise White, mãe da informante, quando esta adoeceu: (...) Sabendo
que a gente era pobre, vendo a minha mãe com derrame, viu a força de vontade da gente
...[por isso] nos conseguiu esse emprego”.
168
Mais uma vez, o “conhecimento”, isto é, a
indicação, como uma forma de se conseguir um emprego, algo muito difícil” para todos, e
para as mulheres especialmente, como afirmou a entrevistada, revelando o peso das relações
pessoais sobre os meios de se buscar a melhoria da condição sócio-econômica e, talvez mais
do que isso, indicando a obtenção de um emprego como a saída para as dificuldades que a
família enfrentava.
Para chegar ao trabalho no horário, as duas irmãs tinham que caminhar até a avenida
Nazaré, próximo à avenida Generalíssimo Deodoro, e entrar numa fila para pegar uma
condução. Beatriz, entretanto, costumava entrar em (...) uma fila compriiida, que tinha
homens, militares, e só eu de mulher!... Era de madrugada, e a gente escutava bater o sino de
Nazaré, chamando os fiéis pra igreja...”. Era o ônibus da Viação Real, que transportava os
militares para a Base Aérea de Belém, e no qual Beatriz pegava carona:
(...) a necessidade faz tudo! (...) Era uma frota de carros que tinha ali, ônibus.
(...) [eu] ficava lá esperando. O primeiro [ônibus] saía, depois ia saindo, (...)
um atrás do outro. Mas era pra eles [militares]. Eu é que me metia no
meio. (...) eu trabalhava lá na [avenida] Senador Lemos, era um posto de
puericultura que era na Marina Crespi, [que é] o nome do prédio. (...) Eu
entrava na fila mesmo, e nunca me tiraram! (...) Quando chegava lá, eles já
sabiam onde eu ia saltar, porque era quase em frente do mercado do
Telégrafo. eles puxavam [a cordinha que dava o sinal ao motorista, que
fica próximo ao teto do ônibus], que eu tinha dificuldade, eu baixa, e o carro
era assim [gesto indicando a altura]. Ah! Era um inferno pra descer! Eu
167
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
168
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
99
sentava logo na frente. o ia lá pro miolo de jeito nenhum! E pra voltar era
outra tristeza.
169
A necessidade faz tudo. Ir para o trabalho de carona num ônibus cheio de homens
podia ser constrangedor, mas era menos pior do que ter que esperar pelo ônibus circular que,
além da demora, deixaria Beatriz longe do trabalho. Sentar na frente era um atenuante da
exposição a que acabava se submetendo aquela mulher, num ambiente de forte presença
masculina. Contar com a ajuda deles para chegar ao trabalho, e até para dar o sinal na descida
do ônibus, parece, entretanto, revelar que havia uma relativa interação da jovem Beatriz com
aqueles militares. O que pode ser entendido, até certo ponto, pelo fato da mesma ter
trabalhado na Base Aérea de Belém poucos anos antes. Uma experiência que Beatriz contou
com detalhes.
Na Base Aérea de Belém, a tradutora...
A presença dos norte-americanos em Belém guarda relação com a entrada do Brasil na
Segunda Guerra Mundial. O que se deu, de fato em 1942, quando o governo Vargas, sob
pressão dos Estados Unidos, acabou declarando guerra ao Eixo (Berlim-Roma-Tóquio). Daí
toda a construção de um discurso pautado no Estado de Guerra, incentivando os que foram
chamados de soldados da borracha. Belém entrou neste circuito da guerra, tornando-se palco
da ação militar americana, dentre outras coisas, por sua posição junto ao oceano Atlântico,
constituindo-se como o ponto brasileiro mais próximo dos Estados Unidos. O “esforço de
guerra” incluía o incentivo à entrada das mulheres no trabalho fora de casa. “Ajudar a pátria”,
enquanto os homens guerreavam, constituía o discurso. Neste contexto é que muitas mulheres
marcaram sua entrada no mundo do trabalho. No caso das minhas informantes, Beatriz White
e as irmãs Alice e Lilian Scantlebury, tal entrada se deu através da prestação de serviços na
Base Aérea de Belém, por serem bilíngües, falantes tanto do portugs quanto do inglês.
169
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
100
Fui trabalhar na Base porque falava o inglês. o comandante queria uma
pessoa que... [soubesse as duas línguas], ele não falava nada [em
português], foi. eu cheguei, antes de terminar a Guerra. Eu ficava lá
esperando pelas pessoas que chegavam. Lia isso e aquilo outro. Ficava até
dez horas da noite.
170
Beatriz não trabalhava para a Base, foi contratada apenas para assistir a um dos
comandantes americanos de lá, como tradutora, como a mesma fez questão de frisar: “(...)
Não trabalhei muito tempo. Foi só enquanto ele estava por aqui”. Tal emprego ela conseguiu
pela indicação de um de seus irmãos, Augusto White, falecido, que trabalhou. Beatriz
lembrou que custou a aceitar o convite para aquela atividade por conta do horário, iniciava à
tarde e transcorria até altas horas da noite e, mais uma vez, apresentava-se o problema do
transporte. O que foi resolvido pelo comandante: “(...) Ele pensou bem e disse: ‘Você vai ter
um carro pra lhe apanhar, mas também você não pode trazer ninguém. Olha!? [E o
comandante continuou:] ‘E o carro (...) vai lhe pegar em casa, e lhe deixar’”, contou Beatriz,
remetendo à questão da condução mas, com isto, nos possibilitando conhecer um pouco mais
sobre a experiência de trabalho de outras pessoas, homens e mulheres, barbadianos ou não.
Segundo ela, “(...) tinha outras barbadianas, mas elas trabalhavam como telefonistas. Eu
estava fora. Trabalhava direto com o comandante. E, justamente, elas iam num carro grande;
eu não”. Este momento da entrevista foi muito interessante porque pode ser observado como
a informante se coloca como uma barbadiana, manipulando esta identidade, no sentido de que
a evoca quando convém (Cardoso de Oliveira, 1976: XVIII), ao indicar que existiam outras
trabalhando no mesmo lugar, mas com atividades e condições (privilégios?) diferentes, o que
é indicado, por exemplo, pelo fato de ter uma condução específica, com motorista, e ordens
expressas para não “trazer ninguém”, o que não era obedecido por Beatriz, porque, como
contou, (...) eu ficava com pena, porque era tanta gente... [e dizia ao motorista] uma
carona pra ele?...”.
171
Beatriz o era uma telefonista como as outras, era a assessora direta do comandante.
Até por isso, não era uma negra entre as negras ou uma barbadiana entre as demais. Será?
Talvez ela fosse tida como uma pessoa que ocupava um lugar, uma posição que não era
esperada para uma mulher que vinha de certas “frações de classe e de cor”, como mencionado
por Hall (2002: 409) para evidenciar as identificações e lógicas de pertencimento que guiaram
suas vivências como jamaicano, na interseção entre ser inglês e caribenho. De fato, Beatriz
170
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
171
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
101
veio de uma família com pais negros, de pele bem escura, pobres, estrangeiros; o que era
exposto na sua aparência e modo de falar. O fato é que sua situação não deixou de ser
observada por aqueles que com ela conviveram, tanto que, vez por outra, acontecia uma
“confusão” envolvendo o fato dela ter condução específica para o trabalho, deixando entrever
um campo de disputas no qual o preconceito racial não deixava de se fazer presente. Beatriz
lembrou o dia em que...
Deu-se uma confusão lá, que o capitão telefonou pra mim dizendo... –
penso que ele achava que era muito, com tantas mais bonitas por aqui,
penso eu. E é isso mesmo, sabe, aí ele disse pra mim: ‘É o capitão. Não
vai ter mais transporte!’. Menina, [isso] escangalhou com a minha vida!
172
Como entender a ordem de um capitão, proibindo-lhe o transporte que fora garantido
pelo comandante? Apontei para o preconceito racial que se assenta, dentre outras coisas na
aparência das pessoas, como um marcador da posição que se espera que ela ocupe
socialmente; evidência, inclusive, da especificidade do racismo à brasileira: o preconceito de
marca. Na década de 1950, Oraci Nogueira,
173
preocupado em entender a especificidade do
preconceito e da discriminação racial no Brasil, isto a partir de suas observações sobre as
relações raciais no interior de São Paulo, acabou formulando um modelo de explicação para
os mesmos a partir de dois tipos ideais: o preconceito de marca (ou de cor) e o preconceito de
origem. No caso brasileiro, haveria o preconceito de marca, posto que o membro do grupo
discriminado é identificado através de uma preterição, em que pesa o fenótipo ou aparência
racial. Assim, os traços físicos, a fisionomia dos gestos, o sotaque dos indivíduos são
tomados como pretexto para as manifestações de preconceito. O contraponto comparativo
estaria no caso dos Estados Unidos, onde o membro do grupo discriminado é marcado pela
exclusão, esta definida a partir de sua ascendência. Neste sentido, a suposição de que um
indivíduo descende de certo grupo étnico é bastante para que sofra as conseqüências do
preconceito.
Tal obra teve o mérito de nos indicar como a ascensão social e o branqueamento são
aspectos do mesmo processo, numa sociedade em que, desde os tempos do sistema escravista,
a cor branca é associada à ascensão social, daí a preterição dos indivíduos portadores de
“traços negróides”, a incorporação dos “mestiços mais claros ao “grupo branco”, e a
172
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
173
Cf: NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de Marca. As Relações Raciais em Itapetininga. o Paulo: Edusp,
1998.
102
preferência estética pelo tipo “moreno” (Nogueira, 1998: 67). Assim, o autor nos permite
refletir sobre o papel da “aparência racial” na atribuição de categorias de identificação, como
aparece nos relatos, através das referências aos parentes e/ou conhecidos que são tidos como
pretos, ou mais claros, ou moreninhos, dentre outros tantos. Segundo Nogueira (1998: 146-
147),
(...) a variedade de combinação de tros, que pode ir do preto ‘retinto’ (...)
ao branco de cabelos finos (...), uma vez posto de lado o critério de origem e
considerado apenas o fenótipo, fez com que os limites entre as diversas
categorias (...) seja indefinido, possibilitando o aparecimento de casos de
identificação controversa, podendo, além disso, a identificação do indivíduo
quanto à cor, ser influenciada pela associação com outros característicos de
status (...) com a tendência a se atenuar a cor de indivíduos socialmente
bem-sucedidos.
Cor e status aparecem, em muitos dos relatos, de forma associada. Afirmar-se como
moreno, ser tido como preto pela ocupação/condição social, ou ser aceito como branco, dado,
por exemplo, o sucesso financeiro. Como entender este jogo de atribuições? Como deixar de
perceber o racismo incutido nestas atribuições que têm, como base, idéias acerca do
branqueamento e as possibilidades de melhoria de inserção social através do mesmo? Até que
ponto podemos ignorar que, ao lado do fenótipo das pessoas, a origem, uma origem muitas
vezes presumida, pode transformar-se num critério de classificação dos indivíduos com
relevância também aqui no Brasil, o qual, juntando-se com a atribuição da cor,
174
faz com que
estes mesmos indivíduos sejam tomados de forma preconceituosa?
Sobre o que aconteceu com Beatriz, também poderia remeter ao que Hasenbalg define
como discriminação ocupacional, “(...) pela qual a avaliação de atributos não-produtivos,
como a cor das pessoas, resulta na exclusão ou acesso limitado a posições valorizadas no
mercado de trabalho” (1996: 240). Não à toa, Beatriz buscou explicação para o acontecido
com ela, apontando para a situação de ser mulher, na Base, em meio a tantos homens, e onde
às “mais bonitas” poderia ser admitida a concessão de algum “privilégio”, “vantagem” ou
“regalia”, como o carro com motorista; mas, como ela não estava, não se achava ou não a
achavam, entre as “mais bonitas”... O fato é que, tendo que esperar por condução, Beatriz
174
Atributos como a cor, ao servirem para identificar grupos e/ou pessoas, baseiam diversas discriminações.
Caberia aqui lembrar que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de “cor” enseja o
“efetivamente raciais e não apenas de “classe, a despeito de que, no Brasil, e mais ainda, no senso comum, o
preconceito, a discriminação e o racismo propriamente sejam tomados como sendo mais claramente de ordem
social, de classe. O que mascara o fato de que em sociedades, como a brasileira, as relações sejam grandemente
racializadas. Sobre isto conferir: GUIMARÃES, 2002.
103
começou a se atrasar para o trabalho, o que quase a levou a desistir do emprego, até o
momento em que o comandante intervém, garantindo-lhe transporte de ida e de volta. O que
fazia aumentar o “tititi” a seu respeito: “Olha, como é que ela vem, ela?”, como lembrou a
informante. Por sua posição, acabava sendo alvo de xingamentos:
Tinha muito preconceito. Tinha tanto preconceito que tinha um rapaz, ele
era negro, (...) e eu tinha pedido [a ele] roupas para o comandante, [na
lavanderia, onde ela foi proibida, pelo comandante, de freqüentar, pois era
tido como lugar de “mulheres da vida”] (...) e escutei ele dizer: ‘Eu vou levar
isto aqui pra aquela negra, porque ela me pediu...’, e começou a me
xingar. Ele me disse tanta da coisa (sic). E eu fiquei com tanta da raiva
(sic). Eu fui reclamar! Quase que ele vai pra rua.
175
Neste momento, diferentemente do anterior, Beatriz aponta, mais claramente, para o
fato de ser uma negra como a causa do incômodo que provocava, como se ela estivesse
ocupando um lugar, ou desempenhando uma função, que não lhe competia, estar fora do
lugar, daí sua indignação por, ao estar executando suas tarefas, quer dizer, agindo segundo
ordens que recebia, ser xingada, ainda mais por um negro, posto que aquele funcionário, por
ser da sua mesma raça” (termo empregado por ela), não deveria ter este tipo de atitude.
Como se as pessoas, inclusive as negras, não tivessem que lidar com a realidade de viver
numa sociedade racista e racializada, lembrando as assertivas de Motta-Maués (1999: 306).
Esta autora aponta para a raça como o eixo central de nosso pensamento”, o que é revelado,
por exemplo, no fato de nós brasileiros, em situações de interão, nunca nos furtarmos de
mencionar cor ou misturas de raças para marcar quem é quem, ou quem não é, não está. O
que é válido para todos, não só para os brancos, mas também para pardos, pretos, mulatos. As
relações são racializadas, portanto, no sentido de que a “raça” é uma das maneiras de
expressar e vivenciar a etnicidade, uma maneira que, como afirma Lívio Sansone, coloca
ênfase no fenótipo.
176
Neste sentido, aquele negro da Base, que tanto aborreceu Beatriz White, o deixava
de revelar o racismo, ou pelo menos o preconceito em relação aos negros, tão característicos
de nossa sociedade, sobre a qual recai o peso da tão propalada democracia racial que tem,
dentre seus efeitos, o de fazer com que o negro seja marcado pela invisibilidade, como alguém
que é e não é, está e não está – idéia desenvolvida por Motta-Maués, a partir da noção de não-
175
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
176
Cf: SANSONE, Lívio. Negritude Sem Etnicidade. Salvador: Edufba; Pallas, 2003, p. 16.
104
pessoa de Goffman,
177
sobre o que comentarei adiante, nesta dissertação. Por enquanto, posso
adiantar que se este não lugar, ou não ser, marca de forma estigmatizante a situação dos
negros brasileiros, os barbadianos, por sua vez, porque negros, mas negros diferentes,
estranhos, tiveram que conviver com um rótulo muito pior. o é à toa que os filhos,
nascidos brasileiros, tiveram que jogar com os signos de várias identidades, como pessoas que
são e não são, estão e não estão.
De volta aos relatos, para continuar demonstrando a pertinência desta análise, outro
“incidente”, como qualificou Beatriz, aconteceu quando ela foi “apanhar o carro” e o chofer,
que era “(...) desses homens que vinham atrás de emprego, que chegavam de fora, do Ceará”,
recusou-se a transportá-la, mas foi obrigado a levá-la para casa, graças à intervenção de um
sargento da Base, que se encontrava próximo. “(...) Fiquei calada, disse que era ordem do
comandante. (...) vim com medo... Soltei no Plaza e a mamãe tava lá”, contou Beatriz, para,
depois de refletir um pouco, concluir: “Já tive uns bons pedaços na minha vida, viste? Pra
poder viver, tive uns bons pedaços”.
178
... e as telefonistas
O ofício de telefonista encontra-se no rol daquelas atividades tidas como femininas.
179
No caso de minhas informantes, Alice e Lilian Scantlebury, por exemplo, tinham, por fuão,
transmitir as ligações telefônicas tanto entre os que estavam dentro da Base, quanto entre estes
e “os de fora”.
Estas duas irmãs, assim como outras filhas de barbadianos em Belém, foram trabalhar
na Base Aérea de Belém, a partir de 1944. Segundo Alice Scantlebury, “no tempo do
americano falava em inglês”, foi por isso que mulheres bilíngües, como ela, foram
contratadas, (...) senão tu achas que eles iam dar lugar pra neguinhas? É... o pessoal é esse
negócio, né. É, mas quando a Base Aérea chegou, eles não sabiam lidar com aquele negócio
todo. nós fomos ficando...”.
180
A primeira a ser empregada foi Alice; depois, por sua
indicação, foram, chamadas suas irmãs Martha e Lilian. Esta última, nessa época, trabalhava
177
GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975.
178
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
179
Sobre as atividades tidas como tipicamente femininas, a situação da mulher no trabalho e a conquista do
espaço público, consultar: RAGO, 2000.
180
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
105
em uma loja de roupas infantis, que ficava na rua Manoel Barata, no centro comercial de
Belém, e as três irmãs, como comentei anteriormente, tinham atividades para fora” (costurar,
bordar, fazer flores), com as quais faziam seu “rico dinheirinho”,
181
e que não abandonaram
depois que entraram para o mercado de trabalho formal.
O servo, “com os americanos”, durou cerca de dois anos e meio. Depois que eles
foram embora, pois a Guerra tinha acabado, as irmãs Scantlebury continuaram empregadas
na Base, somando mais de trinta anos de trabalho, do qual se aposentaram no limiar da década
de 1980. Na Base havia mulheres e homens, mas o setor das telefonistas “era separado”.
trabalharam com outras “barbadianas” (filhas de barbadianos), como a amiga Ivone e sua irmã
Lucy [que não é a Burnett]. Sobre estas amigas, Alice contou: “Nós as conhecíamos porque
eram filhas de barbadianos. Tu não sabes? Naquele tempo barbadianos tinha muito (sic). A
mamãe não se dava com todo mundo (...) e nós fomos criadas afastadas deles (outros
barbadianos) e pronto!”. Havia, também, amigas filhas de famílias naturais do Pará: “(...) a
Sinhá era mulata, mas não era filha de barbadianos. Ela era de Soure. Nós éramos muito
amigas... tanto tempo trabalhando juntas! (...) Naquele tempo ela sabia o number please,
número faz favor, ah, ah! E eu [a] ensinava, comecei a dar aulas pra ela”.
182
Assim, Alice
acabava demarcando uma diferença em relação às outras telefonistas, pelo fato de descender
de uma família falante do inglês, que possibilitou a elas, assim como às suas colegas
barbadianas, um capital cultural importante para a aquisição e manutenção de um emprego
que lhes assegurou a renda com que passaram a sustentar a família, desde a morte do pai até
hoje, quando se encontram aposentadas. Mas, também, é visível a forma como Alice demarca
uma diferenciação dela e de sua família, em relação aos outros barbadianos da cidade, dos
quais foram afastadas, em termos de convívio, de acordo com os conselhos da mãe; exceção
feita às poucas colegas de trabalho, e a uma única família barbadiana com a qual os
Scantlebury “se davam” (a família Marshall).
As irmãs Scantlebury, ao discorrerem sobre o trabalho na Base Aérea, centraram suas
observações em torno dos colegas de trabalho, mais especificamente das colegas, posto que
os homens, quando aparecem em seus relatos, são aqueles que chegaram a namorar, e alguns
até a casar, com as “meninas” da Base. Assim, a lembrança do tempo do trabalho transparece
cheia de alegria, ao especificar as atividades e tarefas: “Era ótimo... Era telefonista. Quem
181
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
182
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
106
trabalhava de dia, trabalhava de dia, quem trabalhava de noite, trabalhava de noite”. Elas não
tinham uma condução própria, como Beatriz White, mas havia o ônibus encarregado de
transportar os trabalhadores, por um determinado percurso. Também o comentaram sobre
como eram vistas, por trabalharem fora, muitas vezes à noite. Apenas afirmaram que as
telefonistas trabalhavam em área separada dos demais trabalhadores, muito embora
soubessem do que acontecia em toda a Base, inclusive os namoros, posto que tinham que
efetuar e transmitir as ligações.
Chegaram, inclusive a comentar acerca de colegas que namoraram e depois casaram
com oficiais da aeronáutica. Sobre os namoros dos militares com mulheres de fora da Base,
Alice chegou a comentar: “(...) E tu achas que uma Base, cheia de homens, as meninas não
iam correr atrás? (...) O Saraiva [que encontram sempre, nos dias de pagamento], dizia que eu
fui culpada por ele ter casado (...) porque eu transmitia as ligações dele... [risos]”.
183
As
meninas podiam ter corrido atrás, mas, aparentemente, as duas irmãs o. Procuraram frisar
isso contando que, nem mesmo nos contatos que tiveram com outros barbadianos nas poucas
idas à IEAB, as Scantlebury “se misturavam”: “(...) [não mexiam com a gente] porque sabiam
que a gente era filha do senhor Scantlebury. [ e diziam:]“Olha o respeito!””, contou Alice,
relembrando a autoridade e o autoritarismo de seu pai. De fato, as mulheres desta família não
casaram. Lembrança ruim, mesmo, a do acidente de Alice, que sofreu uma descarga
elétrica no ouvido e ficou com problemas para suportar ruídos altos, como os das salas de
cinema – a diversão favorita das duas irmãs.
Era um trabalho fora do lar. Dos relatos de Beatriz White e das irmãs Scantlebury,
somos remetidos a uma tempo em que “(...) toda e qualquer atividade fora do espaço
doméstico poderia representar um risco” para as mulheres, que eram tidas, mesmo neste
contexto de meados do culo XX, como “frágeis”, que precisavam ser protegidas e
controladas, como afirmou Guacira Lopes Louro.
184
Segundo esta autora, “(...) Mesmo o
trabalho das jovens das camadas populares nas fábricas, no comércio ou nos escritórios era
aceito como uma espécie de fatalidade”, ainda que o trabalho feito por elas fosse fundamental
para a sobrevivência da família, como apontaram as informantes.
183
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
184
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na Sala de Aula”. In: História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2000, pp.443-481.
107
Não é à toa que as mulheres que entrevistei, vez por outra, contaram suas experiências
de trabalho deixando entrever suas posturas como mulheres de respeito, seja lembrando a
figura do pai autoritário ou remetendo às paqueras no ambiente de trabalho como algo que
acontecia com as outras mulheres caso das Scantlebury, ou contando como suportaram as
dificuldades para se manterem no espaço público, de homens, que, de alguma forma, não as
aceitavam, toleravam, e com os quais pessoas, como Beatriz, tiveram que lidar. No caso dela,
o sentido da proteção é expresso na garantia do transporte para casa, à noite, e pela presença
da mãe, que a esperava no local da descida. Se o trabalho fora era “aceitável” para as moças
solteiras até o momento do casamento, ou para as mulheres que ficassem sós – as solteironas e
viúvas (Louro, 2000: 453), as irmãs Scantlebury devem, de fato, ter enfrentado menos
problemas que Beatriz, posto que as primeiras não casaram, ao contrário da segunda para
quem o trabalho fora do lar, de acordo com os códigos culturais da época, deveria ser,
preferencialmente, um trabalho transitório, que findasse (fosse interrompido) com o
casamento, não fosse a situação da família.
Para além destas considerações sobre a situação da mulher no mercado de trabalho, o
que poderia destacar, aqui, é que, a despeito de como minhas interlocutoras procuraram se
posicionar, no momento da entrevista, uma forma de narrar sobre o trabalho evidenciando
de que maneira as mesmas conseguiram seu “rico dinheirinho”, no dizer de Alice Scantlebury.
O que as ajudava a vencer os problemas econômico-sociais, muito embora, por trás deles,
estivessem os de ordem racial através de uma ideologia que relaciona trabalho com
ascensão social, mas também o próprio racismo. Como afirmou Cardoso de Oliveira (1976:
XVII), os indivíduos articulam sua identidade social, através de categorias como classe social
e etnia, cujos contornos ora são encobertos, ora são ativados.
No caso das irmãs Scantlebury, bem como de Beatriz White, é posvel perceber isso,
através das formas como as mesmas acabaram ativando a identidade barbadiana, para
demarcar uma diferença em relação aos outros trabalhadores filhos de brasileiros, por meio,
principalmente, da menção à língua (inglesa). Houve, ainda, a demarcação da diferença, por
Beatriz, em relação aos próprios barbadianos da Base, que não tinham certas condições de
trabalho como ela teve. Estava em jogo o uma posição no trabalho, o que fica claro se
lembrarmos a afirmação de Alice: será que dariam emprego para as neguinhas” se elas não
fossem mulheres que respondiam à demanda por falantes do inglês naquele contexto de
guerra? As barbadianas eram “neguinhas”... mas falavam inglês, e melhor do que as outras.
Havia muitos motivos para que estas pessoas da segunda geração procurassem encobrir-se de
108
uma identificação como barbadianos – o que irei explorar mais adiante. Entretanto, nas
entrevistas, isto não é “claramente dito”, pelo contrário. Apesar de ser evidente a forma como
se esquivam, por assim dizer, de uma afirmação como barbadianos, remetendo à
nacionalidade e cultura inglesas, ou tentando se firmar como brasileiros, já que na verdade o
são. Nessa negociação de lugares, dentro do jogo identitário, a identidade barbadiana aparece
em alguns momentos como uma identidade renunciada, tal qual apresentada por Cardoso de
Oliveira (1976:12), apoiado na formulão de Van Woodward, a qual nada mais seria do que
aquela identidade que fica latente e, dependendo das circunstâncias, pode ser atualizada,
invocada, apoiada em uma ideologia étnica. No caso das pessoas aqui entrevistadas, esta
ideologia é nuançada por imagens acerca do trabalho e da cultura, o que conferia um lugar aos
barbadianos, ora mais próximo dos ingleses, ora mais próximo dos brasileiros, resultando daí
a virtualidade da identidade ou identificação barbadiana (Goffman, 1988: 12).
Nas salas de aula
Robert Skeete e Thomas Busby foram homens da primeira geração das famílias
apontadas como barbadianas que, depois de deixarem os empregos nas firmas estrangeiras,
passaram a dar aulas de ings em escolas da cidade, assim como algumas mulheres que
saíram do ambiente do lar para trabalhar em espaços públicos, como Doris Chase (mulher da
segunda geração), como comentei em capítulo anterior. Sobre esta última, a atividade fora
do lar talvez tenha sido menos problemática em termos de um controle social e moral sobre as
mulheres, por conta deste ofício ter sido revestido de representações que o “positivavam”, já
que o magistério passou a ser tomado como “(...) uma extensão da maternidade, cada aluno
sendo visto como um filho ou uma filha espiritual”.
185
O magistério, neste sentido,
relacionado com a maternidade; o que transparece na forma como Nicholas Chase lembrou
sua tia, afirmando que ela trabalhou como professora para ter que, junto com a irmã, Phyllis,
criar os sobrinhos, em vista da impossibilidade do pai deste o que foi apontado, inclusive
como razão para que estas duas mulheres não tivessem casado.
186
185
Cf: LOURO, 2000, p. 450. Vale lembrar, a partir do estudo desta mesma autora, que o magistério, no Brasil,
era uma atividade exercida pelos homens, desde o período colonial, e que sofreu um processo de feminização a
partir do momento em que o Estado passou a intervir mais diretamente sobre o ensino, com a instituição de
escolas separadas por sexo, como acontece desde a segunda metade do século XIX.
186
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em de setembro de 2005. Sobre o o casamento, comentarei
mais adiante.
109
Deixando um pouco de lado esta questão de gênero, e atentando para a questão da
identidade ou identificação barbadiana, caberia aqui ressaltar, entretanto, que, no exercício
desta atividade, estes professores, tal qual Beatriz White e as irmãs Scantlebury o fizeram,
lançaram mão de um capital cultural, tal como definido por Bourdieu (1983): um saber não
sancionado pelo sistema escolar, mas herdado de suas famílias. Além de fonte de renda, o
conhecimento da língua inglesa transparece, na memória, como um aspecto importante (de
uma “cultura legítima”, a inglesa),
187
muito lembrado pelos descendentes de segunda e
terceira gerações, acabando por constituir-se, como um dos demarcadores da identidade
barbadiana, como um “símbolo que transmite uma informação social”, um “símbolo de
prestígio”, tal qual definido por Erving Goffman (1988: 53), pois operava como algo que os
aproximava dos ingleses e sua cultura (dominante), e os diferenciava dos negros nativos do
país (dominados; tidos como culturalmente inferiores). A socialização destas pessoas, afinal,
se dava acompanhando o aprendizado e uso do inglês: assim falavam em casa, rezavam na
Igreja Anglicana, arranjavam emprego.
Se entendermos a língua, tal como Bourdieu (1983: 74), como exemplo de sistemas de
relações simbólicas, como parte das estruturas objetivas que produzem o habitus (sistemas de
disposições socialmente constituídas; internalização de normas e valores, conformando a
apreensão do mundo, de acordo com a posição social ocupada), teremos a medida exata do
peso deste capital cultural para caracterizar o grupo de pessoas aqui estudado. Afinal,
barbadianos eram “ingleses”, só que “pretos” e “miúdos”, todos falavam o inglês, aqui
citando, uma vez mais, o relato de Lili Skeete.
188
O que é válido não para os professores,
mas também para as funcionárias da Base Aérea e para o almoxarife da empresa de aviação
norte-americana (José Oscar Skeete), posto que foi por conhecerem aquele idioma que os
mesmos conseguiram seus postos de trabalho. Saber e poder, o habitus e a situação; as
condições sociais fundando práticas que, juntamente com as “propriedades (a posse de
determinados bens) permitem aos indivíduos (e grupos) se marcarem e demarcarem no espaço
social (Bourdieu, 1983: 82-83).
187
Adquirida através do “(...) aprendizado total, precoce e insensível, efetuado desde a primeira infância no seio
da família”, conforme definição, de Pierre Bourdieu, para indicar um dos modos de aquisição da cultura, o qual
se opõe ao “(...) aprendizado tardio, metódico, acelerado que uma ação pedagógica explícita e expressa
assegura” (1983: 97).
188
Entrevista com Lili Skeete, em 15 de novembro de 2005.
110
O campo de trabalho para professores de inglês em meados do século XX, em Belém,
era promissor, tendo em vista o reduzido número de professores de que se dispunha.
189
Muito
embora o inglês falado por Robert Skeete ou Luis Linch, assim como o dos demais
barbadianos, não fosse propriamente um inglês britânico (como muitas vezes alegavam), tal
qual observou Heraldo Maués,
190
mas um inglês das ilhas de colonização inglesa, que recebeu
influência dos falares nativos como é apontado por Odete Burgeile.
191
Todavia, a situação
da segunda geração já era diferente, pelo que se evidencia, por exemplo, no relato de Burnett,
no qual é destacada a excelência da pronúncia em inglês, que o diferenciava dos demais
professores com origem familiar local.
192
(...) Eu sempre falei inglês. Meus pais me ensinaram. Depois eu fiz minha
proficiência por Michigan, nos Estados Unidos. Eu sempre me destaquei
porque falava fluentemente, a minha pronúncia sempre foi muito boa,
porque eu fui educado assim, desde menino. Eu estudei numa escola que
ficava na [avenida] Assis de Vasconcelos (...) que não sei se ainda existe,
mas deve existir. E todas as disciplinas, português, matemática, tudo era
ensinado em inglês. Eu era muito pequeno, mas sei que estudavam os
filhos de barbadianos, era uma escola específica para filhos barbadianos. Eu
saí de cedo porque todos fomos obrigados pelo Vargas a sair. Quando
veio o Vargas, ele cortou esse tipo de escola. Aí eu tive que estudar em outro
lugar, agora em português. Mas, na minha casa, os meus pais falavam
inglês. Nós todos nos comunicávamos em inglês, de forma que sempre
exercitei meu inglês.
193
Assim, tratava-se de um conhecimento que James obteve da família, depois
aperfeiçoou com a proficiência, e dividiu, de certa maneira, com outros descendentes, como
seu sobrinho, Isaías Skeete, que foi uma espécie de parceiro seu no negócio que envolvia o
recebimento de turistas na capital paraense. “Isaías precisava treinar”, teria dito Burnett,
como contou Liliana Skeete.
194
No caso de Doris Chase, o conhecimento daquele idioma foi
possibilitado não só pelo convívio com seus pais, mas também pelo tempo em que estudou em
189
Tal cargo, nas escolas públicas e privadas de Belém, era, recorrentemente, preenchido por pessoas formadas
em direito, engenharia e medicina, como lembrou Maria Angelica Motta-Maués, em conversa no dia 28 de
agosto de 2005. Para mais informações sobre a história do magistério, e o processo de sua constituição como
atividade feminina, consultar: LOURO, 2000, pp. 443-481.
190
Heraldo Maués, em conversa informal em 9 de dezembro de 2005.
191
Cf: BURGEILE, Odete. Aspectos cio-lingüísticos de uma Comunidade Falante da Língua Inglesa, em
Porto Velho-RO. UFPR, 1989. Dissertação de Mestrado (mimeo). No caso de Barbados, ao lado do inglês
britânico, que é a ngua oficial, o dialeto Bajan, sendo os barbadianos também denominados de Bajans
naquele país.
192
Entrevista com James Burnett, realizada em 30 de outubro de 2004.
193
Entrevista com James Burnett, realizada em 30 de outubro de 2004.
194
Liliana Skeete, em entrevista realizada em 15 de novembro de 2005.
111
Londres, que lhe serviu como aperfeiçoamento. Falar inglês “melhor” do que os colegas de
profissão, filhos de famílias brasileiras, por terem sido nascidas e criadas falando o inglês,
também foi apontado, como comentamos acima, pelas irmãs Scantlebury. Tudo isso
confirmando ser a língua um sinal diacrítico, identificador, tal qual apontado por vários
autores (Barth, 2000; Hall, 2003; Bourdieu, 1983; Goffman, 1988).
Afirmei, anteriormente, que o trabalho fora do lar evidenciou-se como uma das
principais diferenças entre as gerações de mulheres barbadianas. Entretanto, considerando
esta perspectiva geracional, as diferenças maiores, válidas para homens e mulheres, giram em
torno da escolarização. Tanto que, de uma geração a outra, as profissões, advindas não
precisamente do capital cultural da família, mas de um aprendizado escolar, foram se
diversificando. As pessoas por mim investigadas também foram contadores (ou guarda-
livros), advogados e professores, tanto os homens quanto as mulheres, ressaltando-se, nisto, a
importância da formação superior, enfocada por praticamente todos os entrevistados,
enquanto símbolo de prestígio, indicadora de ascensão social. O que tinha início nas
primeiras letras, quando os barbadianos iam ter aulas, em língua inglesa, nas poucas escolas
que havia em Belém e podiam abrigar os filhos de estrangeiros – como é lembrada a escola de
Iulie (mãe de Cléa Simões), barbadiana que alfabetizava os filhos de estrangeiros,
principalmente barbadianos, em sua escola na avenida Assis de Vasconcelos.
195
A falta de escolas foi apontada como um dos problemas enfrentados pelos
barbadianos, para sua entrada numa educação formal, o que foi descrito, num primeiro
momento, como a mesma enfrentada pelos filhos de estrangeiros em geral. Como apontou
Guacira Louro, em seu estudo sobre Mulheres na sala de aula”, as diferenças de etnias
também implicavam diferenciadas práticas educativas. Tanto que, segundo Louro (2000:
445):
Imigrantes de origem alemã, italiana, espanhola, japonesa etc., tinham
propostas educativas diferentes e construíram escolas para meninos e
meninas muitas vezes como auxílio direto de suas regiões de origem. Suas
diferentes formas de inserção na produção e na sociedade brasileiras (como
operários fabris, lavradores ou pequenos proprietários) também teriam
conseqüências nos processos educativos.
Além das diferenças de etnia, a autora chama a atenção para as diferenças de classe e
de sexo (Louro, 2000: 445). No que concerne às famílias que eu estudo, seria o caso de
195
Entrevista com Liliana e Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
112
lembrar o acúmulo das tarefas domésticas, com trabalhos “para fora”, no caso das mulheres, e
os trabalhos a que se dedicavam os homens, indicadores de suas diferentes condições sociais e
das possibilidades de instrução, principalmente para a primeira e a segunda geração de
barbadianos.
Refletindo sobre estes aspectos, remeto ao relato de James Burnett, que foi um dos que
lembrou que, durante sua infância, estudara em uma escola em que todas as matérias eram
ministradas em inglês, mas que, no período do governo de Vargas, as mesmas acabaram
deixando de existir. Alice e Lilian Scantlebury, por sua vez, contaram que aprenderam a ler,
escrever e contar com a e, Flora. Esta, além de falar o inglês, aprendeu o português, pois
“(...) barbadiana, ela era uma. Mas estava mais acostumada (...) no costume dos
brasileiros”. Sabia ler e escrever em inglês, e “(...) aprendeu o português pra nos ensinar o
português. Ah, ah! [aprendeu] a ler e a escrever, mas era uma piada! [risos]”, indicando que a
mãe tinha dificuldades para ler e, conseqüentemente, ensinar em português. “A mamãe, como
ela dizia, como é que ela ia [nos] ensinar? Meu pai, piorou!. E meu pai ainda dizia que é ela
que devia ensinar pra ele, pra nós. Ah, não dá!”, contou Alice que, junto com seus irmãos, foi
estudar no Grupo Escolar Floriano Peixoto, tendo cursado até a quarta-série. De seu relato
fica a constatação da dificuldade que os pais, estrangeiros, tinham de ensinar, e socializar, os
filhos, quando se falava uma língua em casa e outra na rua embora este não fosse o caso de
Flora.
As cobraas existentes sobre as mulheres, no que concerne ao seu papel de instrução
e educação dos filhos, vêm de longa data, e se assentam num conjunto de representações que
qualificariam a mulher, de quem se exigia que fosse “a mãe virtuosa, o pilar de sustentação do
lar, a educadora das gerações do futuro”, realizando o que seria sua função social; o que, no
período republicano, era a de “formadora dos futuros cidadãos”, tal como afirma Louro (2000:
446-447). No caso do relato das irmãs Scantlebury, aliás as duas figuras referenciais são o
pai, sempre ausente, que vivia trabalhando, mas que, chegando em casa, punha ordem, exigia
que os filhos tivessem bons modos, e cobrava da mulher o controle e educação dos filhos;
enquanto a mãe é descrita como “uma irmã”, legal, alguém que as filhas levavam “no bico,
que cuidava e educava a eles, enchendo as filhas de recomendações, dentre elas, a de que não
se metessem com os outros barbadianos, como os que se encontrava na IEAB.
Das escolas especiais (para barbadianos) aos grupos escolares, a menção acima feita
por James Burnett remete ao contexto permeado pelas dificuldades enfrentadas pelos
113
estrangeiros, características da situação da imigração, tais como os problemas de acesso à
educação formal, o círculo de convivência relativamente restrito, por conta da diferença
cultural, e as discriminações de que eram alvo, por motivos diversos cor/raça, origem,
religião, pobreza (Sayad, 1991; Seyferth, 1996 e 1997); o que acabava por atingir os filhos, a
ponto de serem tidos, também, como “estrangeiros”; até porque, como afirma Cardoso de
Oliveira (...) o processo de identificação pessoal ou grupal chega a estar mais condicionado
pela sociedade envolvente do que pelas ´fontes` originárias dessas mesmas identidades”.
196
O
fato é que as primeiras décadas do século XX foram um tempo marcado por um Estado que,
na busca de um “tipo nacional”, se lançou em uma política, pautada na tese do
branqueamento,
197
que visava a assimilação e o caldeamento (miscigenação), projetada sobre
certos grupos de “imigrantes desejáveis”.
198
Vale ressaltar que, diferentemente de outros
grupos de imigrantes, os afro-americanos não tiveram sua entrada no Brasil apoiada pelo
estado, com incentivos diversos, constituindo-se a imigração de barbadianos para cidades,
como Belém, um movimento não sistemático, e conduzido pelos interesses de empresas
privadas. E, como parte dessa política, foram impostas proibições à organização de
“associações de base étnica”, principalmente na cada de 1930, durante a ditadura de Getúlio
Vargas. Por isso a escola de James fora fechada.
Quem tinha “mais condições”, no dizer de Liliana Skeete, mandava os filhos para fora
do país, como fez Dudley Chase; daí seu neto, Nicholas, lembrar que seu pai e suas tias foram
196
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Os (Des)caminhos da Identidade”. In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v.15, n.42, São Paulo, fev. 2000, p. 8.
197
Talvez fosse desnecessário lembrar que as tentativas do Estado brasileiro em formar um povo “civilizado”,
tendo como modelo os países europeus almejando o branqueamento da população pela introdução sistemática
de imigrantes brancos, tidos como elementos superiores, de acordo com as teorias racistas que embasavam tal
política -, já existia na segunda metade do século XIX. O que procuro destacar, entretanto, é o momento em que
o debate sobre a condução da imigração passa a se dar a partir de uma preocupação de viés nacionalista, em que
nem todo branco era “desejável”. Cf: MOTTA-MAUÉS, 1997; e, também: SEYFERTH, Giralda. A
Assimilação dos Imigrantes como Questão Nacional”. In: Mana: estudos de antropologia social, v. 3, n. 1, 95-
131, Rio de Janeiro, 1997.
198
Cf: SANSONE, 2003, p. 13. Dentre os imigrantes “desejáveis” estavam os portugueses, espanhóis e
italianos, isso em função de três categorias, apontadas por Jair Ramos: “a eugenia da raça imigrada, sua
civilização, e sua disponibilidade à assimilação”. Neste sentido, têm-se, também, os “indesejáveis”,isto é,
aqueles portadores de inferioridade racial, de um alto grau civilizatório e/ou de uma rejeição à assimilação; daí
as críticas à imigração de japoneses e de afro-americanos (dentre eles os barbadianos), estes últimos acusados de
poder trazer o “ódio de raças” contido nas relações raciais (violentas) dos Estados Unidos, como consta nas
respostas ao Inquérito Sobre Imigração e Raça, da Sociedade Nacional de Agricultura, de 1925, citado por
Ramos: “(...) Os negros de hoje viriam dos Estados Unidos, de São Salvador, de Barbados, elementos cheios de
defeitos, carregando o ódio ao branco que os tem perseguido, possuindo apurados vícios que o tiveram os
antigos escravos”. Confira: SNA, 1926: 73 apud RAMOS, 1996, p. 78. Consultar, também: SEYFERTH, 1996;
e MOTTA-MAUÉS, 1997. Confira, também: SEYFERTH, Giralda, “Construindo a nação: hierarquias raciais e
o papel do racismo na política de imigração e colonização”, In: Marcos Chor e Ricardo Ventura Santos. (Eds.)
Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, pp. 41-58.
114
educados em Londres.
199
Neste caso, a formação no exterior funcionando como um símbolo
de prestígio, inclusive porque reforçava uma aproximação, desejada por muitos, com hábitos e
um modo de ser inglês. O que se pode observar nas fotografias da família Chase,
especialmente as que retratam seus membros no exterior.
Afinal, eram brasileiros, sim,
negros também, mas ao modo inglês. No falar, no vestir, no modo de portar-se e viver.
Nicholas Chase, descendente da terceira geração, branco (“pintado”, mistura de barbadiano
com inglês e alemão) sustenta, até hoje, o gosto pelo fumo fino, portando um cachimbo que o
acompanha décadas, sempre comprando tabaco importado;
200
além de relembrar, saudoso,
os anos em que estudou no Colégio Ipiranga,
201
tal qual costumam recordar os membros de
segunda e terceira geração de famílias barbadianas. Para entender o quanto colégios
funcionavam como símbolos de prestígio para seus alunos, posso citar a visão de Nicholas
Chase, quando lembrou que estudou o primário no Colégio Ipiranga, depois estudou o
secundário no Colégio Moderno, onde sua tia Doris ensinou duas escolas particulares de
elite –, para, em seguida, cursar o científico no Ginásio Paes de Carvalho (público, mas
restrito) de status comparável ao que era o Pedro II, no Rio de Janeiro, até passar para o nível
superior, no qual formou-se como engenheiro. Sobre os tempos do primário, recordou: (...)
Então eu fiz os cinco anos no Colégio Ipiranga, que, aliás, era um colégio maravilhoso, se
você perguntar pelos descendentes, que dava uma educação privilegiada. Tudo em
português, agora os métodos alemães... a maneira de estudar era da Europa. (...) era uma
maneira de educar, com os princípios de padrão [disciplina] e higiene”.
202
Colégio Ipiranga, Colégio Moderno, eram as escolas particulares; Ginásio Paes de
Carvalho, por outro lado, era a grande referência como ensino público, mas para o qual se
dirigiam os filhos da elite em Belém, ou aqueles que tinham “conhecimentos” para lá
conseguir uma vaga. Aqui, “conhecimentos” foi o termo empregado por Liliana Skeete, para
referir-se à necessidade de indicação, de um “pistolão” ou pertencer a uma família renomada,
199
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em de setembro de 2005; e com Liliana Skeete, em 15 de
novembro de 2005.
200
Sobre as distinções sociais ou de classe a partir de uma discussão sobre a sedução das coisas” (estilos,
gostos, moda), consultar: LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. A moda e seu destino nas sociedades
modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
201
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
202
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
115
para poder fazer parte daquele colégio.
203
Marcas de distinção. Assim é possível entender a
importância conferida às relações que se conseguia estabelecer, bem como a recorrente
menção aos colégios, “brasões de distinção social”, segundo Cláudia Fonseca,
204
reveladora
do valor dos mesmos em termos de capital social e simbólico (Bourdieu, 1983).
Nos escritórios, os Guarda-livros
Apesar das dificuldades que se apresentavam para a escolarização, bem como para a
entrada no mercado de trabalho, poderia citar aqui um exemplo das estratégias dos “miúdos”,
no dizer de Liliana Skeete, para conseguir uma formação que lhe garantisse uma mobilidade
social ascendente. Este exemplo baseia-se na história de uma família barbadiana, citada em
meio às lembranças de Liliana Skeete e Maria Angelica Motta-Maués: a família de Luís
Linch. Do que elas disseram, ficou a questão de como alguém, que depois soube ser filho de
um sapateiro e uma lavadeira barbadianos, pôde chegar a ser um alto funcionário público,
inclusive podendo comprar uma casa num local nobre como era e é a avenida Nazaré, numa
área que antes pertencia e onde moram até hoje membros de renomada família de Belém, a
Meira?
205
Os pais trabalhavam, mas o filho também teve que “se virar”: além de estudar e dar
aulas de inglês, outra saída era trabalhar com pessoas “conhecidas
206
e “pro pessoal do
dinheiro” (políticos e profissionais liberais de posses):
(...) o Luís [Linch] estudou porque... [desde] rapaz, trabalhou com um senhor
que tinha uma alfaiataria muito grande [Alfaiataria Pinto?] e que era muito
conhecido, seu Ítala (?) (...) e ele trabalhava muito, trabalhava só pro pessoal
do dinheiro... (...) ele, daí, foi estudar na Fênix Caixeiral Paraense...
207
Este era um tempo em que os cursos técnicos tinham grande valor, como o de guarda-
livros, que formava contadores, como eram chamados (aliás, “peritos contadores”), a exemplo
do curso oferecido pela Fênix Caixeiral Paraense. Havia, também, o curso oferecido pela
203
Vale ressaltar que, no contexto a que se refere a entrevista, o ingresso no Ginásio Paes de Carvalho (atual
CEPC), como nos demais cursos ginasiais do Estado, era feito através de exame de admissão, o que não descarta
a hipótese, pelo menos na consideração das pessoas, e que a informante reproduz, de que a rede de influências
acabasse permeando a seleção dos que seriam admitidos naquele estabelecimento de ensino reconhecido
socialmente.
204
Cf: FONSECA, Cláudia. “Solteironas de Fino Trato” In: Revista Brasileira de História, vol. 9, n. 18, São
Paulo, ANPUH/ Marco Zero, ago.-set. 1989, p. 108.
205
Conversa com Maria Angelica Motta-Maués, em 23 de agosto de 2005, e entrevista com Liliana Skeete, em
15 de novembro de 2005.
206
Não pessoas que se conhecia, mas pessoas que eram reconhecidas socialmente, que tinham prestígio social e
influência nas camadas altas da sociedade.
207
Entrevista com Liliana Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
116
Escola Prática de Comércio.
208
Segundo o que nos informou Liliana, eram geralmente os que
já trabalhavam com algum comerciante, de dia, os encaminhados para estes cursos. Trabalhar
de dia e fazer estes cursos noturnos era o recurso que pessoas da segunda geração dispunham,
por isso “(...) todos se formavam em contabilidade (...) porque o existia outra opção”,
explicou Liliana. Assim teriam sido formados outros filhos de famílias tidas como
barbadianas. Foi o caso, por exemplo, de alguns dos filhos de Robert Clyde Skeete, como
Ionie, que trabalhava numa livraria da cidade.
209
os contadores da outra família Skeete, como Liliana, teriam sido de “uma outra
turma”, a que se formou pelo curso oferecido pelo Colégio Moderno; curso particular e
diurno, indicando que tiveram uma condição de vida e estudo mais favorável, garantida pelo
pai: (...) papai não deixava a gente estudar à noite”, contou Liliana (Fotografia 17).
O que
também é apontado por Liliana pelo fato de ter, junto com seu irmão Isaías, feito faculdade, e,
mais precisamente, o curso de direito.
210
Mesmo tendo uma “outra condição” de estudo,
Liliana marcou sua entrada no mundo do trabalho aos 17 anos, em um escritório de
contabilidade, como ajudante de um contador conhecido em Belém. Depois, por indicação de
alguém, foi trabalhar na Companhia das Águas, com o mesmo ofício, até passar a se dedicar
ao ensino primário, convidada por um amigo, sendo esta a atividade que passou a exercer até
se aposentar.
208
A Escola Prática de Comércio funcionava nos altos do prédio da Associação Comercial do Pará, na avenida
Presidente Vargas. Entrevista com Liliana e Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
209
Entrevista com Liliana Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
210
Muito embora Liliana não tenha concluído o curso de direito, dentre outras coisas, por problemas de saúde.
Entrevista com Liliana Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
117
Fotografia 17
Liliana Skeete, formada como contadora pelo Colégio Moderno
Fonte: Acervo Família Skeete
118
Nas salas de aula, nos escritórios, mas também em outros lugares
Os descendentes de barbadianos enfrentaram as dificuldades impostas por sua
condição, qual seja: a de serem de famílias negras, com origem estrangeira e, portanto, num
primeiro momento “desenraizadas”, “fora do lugar”, em vista de seus referenciais familiares,
culturais e sociais, mas também econômicos, que operavam de forma a distingui-los e, ao
mesmo tempo, aproximá-los da situação dos negros de famílias naturais do Brasil, sobre os
quais recaía um conjunto de representações que determinavam, previamente, sua posição, o
seu lugar social (como negros e despossuídos)
211
neste sentido, não podemos desmerecer o
significado da expressão “colocar-se no seu lugar”, a noção de habitus mais uma vez
ajudando a entender o simbolismo das relações e das marcações das posições sociais de
indivíduos e grupos a partir dos sistemas de disposições (pré)existentes. (Bourdieu, 1983).
Neste enfrentamento das condões adversas, os entrevistados e seus parentes
utilizaram-se das práticas que eram norteadas por normas e valores que eles, de certa forma,
entronizaram, mas também souberam aproveitar, fazendo do jogo de relações (elas próprias
simbólicas), que reservava a eles um lugar determinado na sociedade, por serem negros, o
instrumento de sua incorporação no meio social das camadas médias e altas em Belém. Se era
preciso ter “conhecimentos”, no duplo sentido do termo, eles então o buscaram: investindo em
sua formação profissional e se apoiando, por vezes, no pessoal do dinheiro”, sem deixar de
aproveitar os “nichos” nos quais sempre (e até hoje) se abrigam os negros, como o magistério
e o funcionalismo público, nos quais podiam ter garantia de entrar por sua competência e
onde pode ser contornada a exigência da boa aparência, não contabilizada nos concursos
públicos.
212
De uma geração à outra, as profissões foram se diversificando, em compasso com a
escolarização experimentada por estes descendentes de barbadianos. Dos contadores, cujo
conhecimento advinha da prática e da formação, aos médicos, advogados e engenheiros,
professores, assistentes sociais, pintores, agrônomos, administradores, dentre outras
profissões. Não é à toa que se constituiu uma memória em torno das famílias barbadianas
como famílias de negros que ascenderam socialmente, como se estivessem “fora do lugar”,
211
Cf: SANSONE, 2003; HASENBALG, 1996; e SANTOS, José Rufino. O Negro como Lugar”. In: MAIO,
Marcos & SANTOS, Ricardo (Orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz/Centro Cultural Banco
do Brasil, 1996, pp. 219-223.
212
Agradeço a Maria Angelica Motta-Maués esta referência sobre a relação entre o cargo e o ocupante, tendo em
vista a questão racial. Sobre as dificuldades de inserção dos negros no mercado de trabalho, consultar:
SANSONE, 2003; e MOTTA-MAUÉS, 1999.
119
por isso deveriam ser estudados, como recomendava Vicente Salles (1971). E foi essa
memória que os netos de barbadianos (os descendentes de terceira geração) procuraram
destacar/reivindicar, durante meus contatos com eles, na pesquisa de campo para este
trabalho.
Mas, como a vida não é só trabalho...
213
Os barbadianos em Belém “(...) eram como uma família”, e na IEAB “era a
concentração”, contou Liliana Skeete, evidenciando uma memória daquela igreja como lugar
de encontro dos estrangeiros e seus descendentes, principalmente “ingleses”, fossem eles
“pretos” ou “brancos”, sobretudo nos cultos dominicais que, antigamente, eram realizados de
manhã e à noite.
214
Do tempo em que morou em Porto Velho, Beatriz White lamentou os
anos que ficou sem freqüentar a paróquia anglicana em Belém.
215
Naquele tempo, o culto
era em inglês, é, o padre era inglês, lembrou Lilian Scantlebury; ao que Alice completou:
“(...) o Padre [Miles] Moss é que batizou a Lili. (...) eram mais ingleses que americanos...”.
216
A IEAB também era palco da socialização dos jovens e crianças. Estas iam porque os pais
freqüentavam ou mandavam os filhos, os quais dispunham do Sunday School, Escola
Dominical, à tarde, para tomar lições sobre a religião anglicana, no “textuário”, como
mencionou Lili Skeete, ao que se seguiam as brincadeiras no terreno da Igreja, prolongando-
se pelo bairro:
(...) a professora dizia: “Quem fizer o jardim mais bonito, ganha um
prêmio!”. Era mais quem queria. (...) A gente vinha com aquele vestidinho
engomadinho, bonitinho, sapato e meia. Chegava em casa tudo cheio de
barro, apanhava um bocado, mas apanhava satisfeito. tinha feito o
canteiro mais bonito...[risos]
217
Através de diversos depoimentos, surge a imagem de Vita Skeete, tocando o antigo
órgão da Igreja, as crianças sendo batizadas, depois crismadas... Talvez por sua participação
213
Estou, com esta expressão, parafraseando o título do artigo de José Maia Bezerra Neto, que procurou mostrar,
que a despeito das imagens acerca dos negros como cativos, pensados exclusivamente pelo trabalho e como um
problema para o trabalho no Brasil, tinham um cotidiano marcado por diversas relações e experiências.
BEZERRA NETO, José Maia. “A Vida não é só Trabalho: fugas escravas na época do abolicionismo na
Província do Grão Pará”. In: Cadernos do CFCH, v. 12, n. 1/2, 141-154, Belém: UFPA, 1993.
214
Entrevista com Liliana Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
215
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
216
Entrevista com Alice Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
217
Entrevista com Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
120
na IEAB é que Robert Clyde Skeete foi lembrado por Nicholas Chase como professor de
inglês e como “integrante da colônia barbadiana”, como se o lugar da colônia fosse a IEAB.
218
Se os barbadianos se encontravam, seus filhos também se conheciam, alguns chegando a
namorar e casar, como aconteceu com o casal Burnett: Foi que nos conhecemos... [olha
para a esposa, que sorri]... a gente era menino... eu tinha uns 13 anos (...) eu via ela...”.
Lucy Burnett, neste momento da mesma entrevista, contou sobre o namoro: Era semana
Santa, eu tava com minhas amigas... começamos a nos conhecer [risos]. Aí, namorávamos
escondidos, imagina! Os pais eram ali, em cima... A gente ia pra Igreja e se encontrava por
lá... até namorarmos, mesmo”. Ao que James contou que “(...) foram uns dez anos de namoro.
Desde lá, ela me aturando todos estes anos! Ela é muito paciente... [risos]. “Nós somos”
[concluiu ela]”. Lucy mostrou-me as fotos do casamento, bem como as da sua lua-de-mel na
“Bucólica”.
219
“Etapas (flirt”, namoro propriamente dito, noivado, casamento (...) e regras
(aceitação familiar, vigilância, horários, lugares apropriados); uma estrutura familiar que
garantisse a vigilância; uma relação sexual ligada ao casamento...”, aspectos apontados por
Gladys Ribeiro e Martha Esteves como parte de um padrão de comportamento moral exigido
em meados do século XX, especialmente, para a formação de “trabalhadores moralizados
220
(mas o isso, pois também atingia outras camadas) no qual a igreja não deixava de ter o
seu papel.
Assim, a longa história de amor do casal Burnett foi tecida em meio a IEAB, local que
os dois freqüentaram desde criança. Depois de adulto, James passou a ir somente em
ocasiões muito especiais, pois...
218
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
219
Entrevista com James Burnett, realizada em 30 de outubro de 2004. Bucólica é a forma com que, muitas
vezes, é denominada a Ilha de Mosqueiro, em Belém, aonde era chique passar a lua-de-mel, quando o percurso
feito para chegar envolvia viagem de barco, mais um trecho de carro/ônibus, sem contar as charretes. O que
também chegou a ser comentado por outro de meus informantes, Nicholas Chase, que passou a lua-de-mel com a
esposa na ilha e mantém, até hoje, o Casal Flórida”, espécie de chalé, tal como batizado pelos antigos donos,
portugueses, com o sobrenome da família, daí o sentido do nome ser Chalé Flórida, este localizado no
Murumbira. Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
220
Cf: RIBEIRO, Gladys e Esteves, Martha. “Cenas de Amor: histórias de nacionais e de imigrantes”. In:
Revista Brasileira de História. V. 1, n. 17, São Paulo, ago./set. 89, pp. 217-235.
121
Os pais levavam, mandavam os filhos. Eu ia por isso. Mas algumas coisas
que pregam até hoje não calaram em mim... De forma que hoje eu não
participo da Igreja, você deve ter percebido... A Lucy gosta de ir. Se ela
gosta, então eu digo: vá, pode ir. Mas eu não vou, aquilo não me chama.
221
Apesar disso, as datas mais marcantes da história do casal tiveram a IEAB com palco,
não o início do namoro, o casamento, o batizado dos filhos, mas também as bodas de ouro
e de diamantes no convite da celebração dos 60 anos de casados de James e Lucy, a foto
do dia de seu casamento (Fotografia 18); muito embora, infelizmente, cerca de dois meses
depois a Igreja também tenha sido o local das celebrações pelo falecimento deste informante.
As famílias de Robert Clyde Skeete e de Beatriz White, junto à Burnett, são
conhecidas por muitos como de “barbadianos da Igreja Anglicana”, certamente por uma
referência à primeira geração mas, principalmente, pela importância que a IEAB tem em suas
vidas até hoje. Casar, introduzir os filhos, freqüentar e colaborar com a igreja, cotidianamente.
Nas lembranças de Beatriz White é recorrente a menção à Igreja, onde ela estabeleceu sua
rede de convivência mais profunda, e que oportunizou contatos e viagens com outros
estrangeiros, norte-americanos, também anglicanos, que Beatriz sabia receber em sua casa.
222
Também Lili e José Oscar Skeete se conheceram e casaram na IEAB, em 1938.
Liliana Skeete, utilizando-se de uma memória familiar, recordou que quando Lili nasceu,
levaram Oscar para visitá-la, na casa de Una Long (avó materna de Liliana), e “(...) disseram
que ele seria esposo dela”. Ao que Lili completou: “[Disseram] ´Vamos ver a tua namorada
que nasceu`. Eu tinha nascido mesmo. Deu certinho”. Os dois freqüentaram a IEAB desde
quando nasceram, sendo que Oscar está, inclusive, entre as crianças da foto do Sunday
School, em frente à IEAB, na década de 1920.
223
Depois de casados, o casal passou a
congregar em outra igreja, a Assembléia de Deus, assim como seus filhos, isto cerca de 60
anos, mas a memória da IEAB como local de sua socialização, e de lugar da “colônia
barbadiana” persiste até hoje.
221
Entrevista com James Burnett, realizada em 30 de outubro de 2004.
222
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
223
Entrevista com Lili e Liliana Skeete, em 15 de novembro de 2005.
122
Fotografia 18
Convite das Bodas de Diamante do casal Burnett, com a reprodução da foto de casamento. As Bodas foram
comemoradas com culto na IEAB e jantar no Parque da Residência.
Fonte: Acervo de Lili Skeete
123
as irmãs Scantlebury m uma memória da IEAB entremeada pela marcação entre
ser barbadiano e ser brasileiro, quando contaram que...
(...) a gente só ia uma vez ou outra. A mamãe era aquela fina: ia na Igreja de
Nazaré! Pra [o papai?] não dizer e pro pessoal não falar, quando era pelo
Natal, ou pelo Ano, e coisa e tal, ela mandava a gente na Igreja Anglicana. Ia
a negrada todinha! Tinha muito barbadianos naquele tempo.
224
Sendo a Igreja Anglicana com lugar de reunião da “negrada”, freqüentá-la levava a
que se fosse identificado com os barbadianos de lá. Flora era uma barbadiana, mas fina”,
que o gostava de ir à IEAB se juntar com os (“outros”) barbadianos, os “pretiocas”. Sob
este aspecto, esta Igreja, e sua religião, deixam de ser um símbolo de prestígio, por referência
aos missionários, fiéis, falares e costumes ingleses, para se tornar um símbolo de estigma, do
ponto de vista da informação social que se pode transmitir pelo relacionamento “com” alguém
(barbadianos), conforme proposto por Goffman (1988: 57):
(...) em certas circunstâncias, a identidade social daqueles com quem o
indivíduo está acompanhado pode ser usada como fonte de informação sobre
sua própria identidade social, supondo-se que ele é o que os outros são.
Neste sentido, ao repetirem a forma como Flora se relacionava com a Igreja e seus
freqüentadores, a ponto de justificar seu desapego em relação à religião anglicana, é possível
perceber a manipulação que as irmãs Scantlebury fazem sobre as informações transmitidas
sobre a sua própria identidade social.
Como entender esta manipulação da identidade, pelos entrevistados, que oscila entre
ser inglês, barbadiano e brasileiro e, ao mesmo tempo, entre ser anglicano e ser católico? Em
Negros, Estrangeiros Manuela Carneiro da Cunha (1985) focaliza não só a situação dos
libertos no Brasil do século XIX, através de uma perspectiva histórica, como também discute
a questão da identidade étnica a partir da história dos libertos africanos e crioulos que
retornaram à África (mais especificamente à costa ocidental da África, isto desde a década de
1830) e que tanto reivindicaram suas origens, reatando ligações familiares e políticas,
afirmando suas identidades como africanos, com vistas a benefícios econômicos e políticos,
quanto procuraram, de certa forma, manter-se distantes da “sociedade hospedeira”, como
estrangeiros. Ao mesmo tempo em que se consideravam como uma etnia do mesmo tipo das
demais existentes em Lagos, os “retornados” se afirmavam como brasileiros, quer dizer, como
224
Entrevista com Alice Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
124
um grupo com uma origem específica (brasileira), língua própria (portuguesa), roupas
ocidentais, cozinha, festas e cultos religiosos singulares (Cunha, 1985), demarcando suas
fronteiras, enquanto grupo, frente aos demais existentes no lugar.
Ao comentar sobre as opções culturais dos brasileiros em Lagos, a autora percebeu os
mecanismos através dos quais estes exibiam sua alteridade para marcar, de forma explícita, a
situação de alguém que está na sociedade, mas não é da sociedade, questionando-se sobre o
por quê da manutenção de uma identidade separada. Mais do que por saudade ou desejo de
distanciamento em relação à sociedade hospedeira, tratar-se-ia da conveniência de se
preservar uma distinção e, de acordo com o contexto, afirmar uma das identidades operativas
(ser brasileiro, retornado, egba retornado, ijexá retornado), as quais permitiam a ação política
e o comércio.
E, ao buscar os significados dessa auto-afirmação como brasileiros, como estrangeiros
em Lagos, a partir de uma discussão de identidade, é que a autora me ajuda a refletir sobre os
barbadianos em Belém, guardadas as devidas proporções dos paralelos que são possíveis
estabelecer entre o objeto e o contexto por mim estudados, e aqueles sobre os quais Manuela
se debruçou. Exemplo disso é quando a autora, após toda uma reconstituição histórica e
etnográfica da vivência dos brasileiros em Lagos, procura mostrar que “(...) a religião católica
foi o foco principal, o sinal por excelência da identidade em Lagos”. (Cunha, 1985:151). Os
“brasileiros teriam se apropriado do catolicismo, sendo a conversão ao mesmo um ritual que,
antes de mais nada, fazia com que um indivíduo se tornasse precisamente brasileiro, o que é
refletido, por exemplo, na adoção de nomes portugueses aquando dos batismos. Foi, ainda,
percebida pela autora a relação entre a conversão à outra religião e a busca de status, de
ascensão social, bem como a questão da língua que, em decorrência de determinados
interesses (seja o de preservação da identidade do grupo, o de atuar no mercado existente na
Costa africana, ou mesmo de ter acesso às oportunidades de emprego na administração
colonial ou firmas européias), oscilou entre a manutenção do português e a adoção da língua
inglesa (Cunha: 1985:152-180).
Destas e de outras observações feitas pela autora no que concerne à religião, educação,
ocupações, língua e costumes, é que pude refletir sobre os significados, para os barbadianos
em Belém, de ser anglicano ou ser católico, converter-se a uma ou outra destas duas religiões,
e até de religiões para além destas, manter-se ou não como um de seus partícipes.
125
Pelo que lembraram os informantes, a IEAB aparece como lugar onde se juntava a
“negrada todinha”, os barbadianos. A Igreja de Nazaré como um distintivo que aproximava,
como pretendia Flora Scantlebury, mais dos “costumes dos brasileiros”, ao que se somava,
nesta tentativa de manipulação da identidade, o falar português, preferencialmente ao inglês.
Língua e religião demarcando as fronteiras entre quem não se sentia parte, embora, ao mesmo
tempo, não pudesse deixar de ser: os conterrâneos se encontravam; pelo menos nas festas
de final de ano havia a necessidade de marcar presença, para não ser alvo do controle/crítica
dos anglicanos, tanto os pretos”, quanto os “brancos, embora aparentemente o houvesse
divisão entre eles, dentro da Igreja: (...) Sentava todo mundo junto. Não tinha preto pra um
lado, branco pro outro. Tinham poucos [americanos], eram mais ingleses”.
225
Sobre a relação
com os barbadianos que freqüentavam a IEAB, Alice contou que “(...) eu falava como quem
tinha que falar, e quem eu queria falar, eu não falava. (...) Até agora eu não gosto muito de ir
lá”; ao que Lilian completou: “(...) Primeiro porque diziam que a gente era metida [ou
esnobes, porque não se misturavam com eles]”. As informantes disseram, ainda, que sua mãe
“tinha um gênio esquisito”, pois não de dava com todo mundo, e dizia: “não se meta com esse
pessoal (os barbadianos)”.
Ser e não ser, participar e não participar. Esta também era a situação de Leonard
Deane que era anglicano não praticante, vivia entre os ingleses brancos, a “a alta roda”, talvez
por isso não conseguia se desligar completamente da IEAB, depois que casou com uma
brasileira católica. Ele não ia muito lá, embora fosse solicitado a dar contribuições à IEAB,
especialmente quando tinha enterro dos amigos, pessoal da colônia”, afirmou sua neta
Tatiana – mais uma indicação dos barbadianos como grupo que tinha a IEAB como referência
de encontro. Tatiana ainda recordou que a empregada dos Deane, Hellen Cook, que tinha
“uma vida muito difícil”, pois sua patroa, Helvécia Deane, avó da informante,
(...) não abria muito espaço para ela, [que] ficava muito solitária durante a
semana toda, ela não podia falar quase com ninguém”, mas que tinha a IEAB
como um lugar onde encontrava os seus “pares”: “(...) E era assim, ela tinha
as amigas dela lá na igreja, que ela ia com aquele chapéu, todo domingo, ela
ia na missa, freqüentava, e tinha uns pares dela, tanto que quando ela se
aposentou, a minha avó disse que ela podia ficar morando lá. Ela ficou um
tempo, depois tinha uma dessas amigas dela onde ela se mudou.
226
225
Entrevista com Alice Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
226
Entrevista com Tatiana deane, realizada em 10 de janeiro de 2005.
126
No geral, para a primeira geração a IEAB constituía um referencial de sociabilidade e
identidade fundamental, do qual, mesmo que quisessem, era difícil se desligar (exemplo de
Flora Scantlebury e Leonard Deane); a segunda geração teve a sua relação com a Igreja
marcada pela proximidade ou não dos seus pais em relação a ela (Lilian e Alice quase não iam
lá, porque a mãe preferia a Igreja de Nazaré e buscava se afastar dos barbadianos) e, também,
de como se davam as uniões (casamentos): casar com anglicano (James Burnett, Lili Skeete),
casar com alguém que se converte a esta religião (Beatriz White), casar com católico (Alberto
Scantlebury, por casar com uma católica, acabou se convertendo a esta religião), pesava sobre
o significado da igreja para as pessoas da segunda geração; o que se intensificava na terceira
geração. Nick Chase, por exemplo: neto de barbadiano, anglicano; filho de brasileiro,
anglicano como o pai, mas que casou com uma alemã católica; este casal batizou os filhos na
religião anglicana mas, depois que Dudley morreu, rebatizaram os mesmos “(...) porque
ninguém freqüentava a Igreja Anglicana, e mais, minha mãe veio de e era católica. Quer
dizer então, que todo mundo passou a adotar o catolicismo. (...) Nem entrei lá... Me levaram,
na certa, quando eu era criaa, que o meu avô era anglicano (...) mas eu sou da [religião]
católica”.
227
Tomando por base as entrevistas, e considerando as assertivas de Manuela Carneiro da
Cunha (1985) sobre a religião como um dos referenciais identitários, pude, em certa medida,
dividir os informantes considerando que existem os barbadianos que são anglicanos e
compõem o círculo de participantes da IEAB (famílias Skeete, White, a Srª Lucy Burnett), os
que têm a IEAB como um local freqüentado na infância, mas do qual procuraram se afastar
(irmãs Scantlebury e Sr. James Burnett); os que nasceram anglicanos, criaram-se como
anglicanos, converteram-se a outra religo, mas mantém a IEAB como referência de
sociabilidade (família de Lili Skeete); os que no passado eventualmente a visitaram, não
tendo os descendentes seguido o credo anglicano (Leonard Deane) e aqueles que, mesmo
batizados nesta igreja, não a freqüentaram e procuraram se manter distantes, enfatizando suas
identidades como católicos (Nicholas Chase); compondo, portanto, círculos diferenciados,
muito embora nos momentos das entrevistas os informantes demonstrem conhecimento sobre
a existência uns dos outros, o que nos ajuda a pensar as situações de interação, conflituosas ou
não, de acordo com o que é lembrado e dito por eles.
227
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
127
Dos relatos aos textos, e vice-versa. As pessoas que entrevistei, de acordo com certos
contextos, afirmaram uma das identidades operativas (tal como os escravos brasileiros
retornados à África, estudados por Cunha): ser brasileiro como os outros daqui, distanciando-
se da identidade barbadiana e dos estigmas que a permeiam (relacionados ao estranhamento, à
construção do estrangeiro, este negro como os negros daqui, mas diferente pelos modos
ingleses), e aproximando-se dos ingleses “fora de lugar”, de acordo com a conveniência
desta distinção, posto que, em outros momentos, era preferível afirmar-se como barbadiano
para demarcar as fronteiras frente aos brasileiros negros, nas situações de interação e conflito
(Barth, 2000).
Quanto à questão da língua, tomando ainda como referencial as observações de Cunha
(1985), foi possível avaliar o peso conferido pelos informantes ao fato de descenderem de
uma cultura com costumes próprios e falante do inglês e sua relação não com a
manutenção de uma ligação com tal cultura, mas, também, com as possibilidades de inserção
no mundo do trabalho (como revelado pelo fato de muitos barbadianos terem se tornado
professores de inglês nas escolas tradicionais de Belém, ou mesmo em casa
228
); e, finalmente,
as opções relacionadas tanto ao tipo de educação formal pretendido, inclusive como símbolo
de prestígio (caso dos informantes que enfatizaram o acesso a escolas para estrangeiros e/ou
com os métodos europeus, ou a experiência de estudos no exterior), quanto à manutenção de
nomes ingleses ou troca por nomes abrasileirados.
também que ser observada a relação entre língua e religião, exemplificada no fato
do anglicanismo, enquanto uma “religião do livro” (isto é, religião assentada numa catequese
baseada no acompanhamento literal das escrituras sagradas), preconizar pela alfabetização dos
fiéis na língua em que se tomavam os fundamentos de uma evangelização, como a apregoada
como oficial nas áreas de colonização inglesa, das quais descendem aqueles por mim
entrevistados. Por outro lado, é possível entender a relação entre a conversão ao catolicismo e
o aprendizado da língua portuguesa como algo que é enfatizado pelos informantes como
forma de aproximação com o ser brasileiro, sobretudo no sentido de se afastar de uma
identificação como estrangeiro, demarcando-se, de algum modo, uma distância da identidade
barbadiana relacionada à participação na IEAB, por exemplo. Língua e religião, através do
que apreendi da leitura de Manuela (1985), bem como das questões aqui levantadas,
evidenciam-se como aspectos importantes no jogo pelo qual se revelam os contrastes de
228
Percebemos que, geralmente mas não exclusivamente, eram as mulheres barbadianas que davam aulas de
língua estrangeira no ambiente do lar, como é o caso de Phyllis Chase.
128
identidades diversas, uma ou outra enfatizada dependendo da situação e contexto. Até porque
Manuela Carneiro da Cunha discute identidade apoiada em Barth (2000), Cardoso de
Oliveira,
229
dentre outros. Daí enfocar tal noção como construída de forma situacional e
contrastiva, como “(...) resposta política a uma conjuntura, resposta articulada com as outras
identidades em jogo, com as quais forma um sistema(Cunha, 1985: 206).
Uns casaram, outros não
Ao percorrer as trajetórias das famílias aqui entrevistadas, um dos aspectos que pôde
ser observado foi o não casamento, ou a “opção” pelo celibato. Excetuando-se duas das
famílias, de um universo de 24 pessoas da segunda geração, 11 delas são celibatárias,
perfazendo 45, 8%, cifra não desprezível, portanto. No capítulo anterior, citei, inclusive, a
justificativa apresentada por um dos informantes, homem, na qual afirmava a positividade do
não casar, relacionado a não ter com que se preocupar. Entretanto, como ao longo da
pesquisa observei que se tratava de algo mais recorrente entre as mulheres descendentes de
barbadianos (na verdade, o único homem celibatário foi este que acabei de comentar),
comparativamente aos homens, priorizarei as informações contidas, nos diferentes relatos,
sobre a situação destas mulheres e a opção de não-casar.
Questionar o celibato das mulheres barbadianas, de forma mais específica, não
significa considerar o casamento como “o destino natural de toda mulher”, como lembrava
Cláudia Fonseca (1989), que buscou entender a lógica de mulheres celibatárias francesas – as
“solteironas de fino trato” do título de seu artigo que viveram a experiência da Primeira
Guerra Mundial. Mas, o que seria uma “solteirona”, no dizer de Fonseca? Há, inicialmente,
uma definição de base estatística, que remete à mulher acima de 50 anos que nunca casou.
Entretanto, que se fazer uma retenção sobre tal definição, uma vez que a mesma recobre
pessoas que vivem em união livre, o que não era o caso das mulheres que Fonseca estudou,
nem é o caso das mulheres que estou apontando aqui. Em ambos os casos, trata-se de
mulheres cuja reputação é que pesa sobre sua definição. Assim, a “verdadeira solteirona”, de
acordo com Fonseca (1989: 104), seria (...) aquela mulher que aparentemente nunca se
casou, nunca teve filhos e nunca viveu maritalmente com um homem (grifo da autora).
229
No caso, a autora utilizou-se dos estudos de Cardoso de Oliveira em torno das populações indígenas no Brasil
a partir da noção de fricção interétnica, a saber: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Estudos de Áreas de
Fricção Interétnica no Brasil” In América Latina, ano V, n. 3, 1962; Idem. O Índio e o Mundo dos Brancos. São
Paulo, Difel, 1964; e idem. “Problemas e Hipóteses Relativos à Fricção Interétnica: sugestões para uma
metodologia” In A Sociologia do Brasil Indígena, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1972, pp. 85-130.
129
Do texto à memória, através dos relatos de descendentes de barbadianos, sobre casar
ou não casar, as irmãs Scantlebury, depois de contarem várias coisas sobre sua experiência de
trabalho na Base Aérea de Belém, e comentar acerca dos namoros entre funcionários de lá, e
entre estes e mulheres de fora, foram taxativas quanto sua própria situação:
A gente nem se casou, nem se amigou. Ah, eu digo que nem a Ercelina [uma
conhecida, não mencionada como barbadiana] (...) que quando vai no
médico (sic), vai logo dizendo: Bom dia, doutor. Olha, eu sou encalhada!”
Ah, ah! [risos] Isso pra evitar que ele fizesse mais perguntas...
230
Ao que Lilian completou: “(...) As três mulheres ficaram encalhadas, e o irmão, só ele,
o Alberto, casou ... com a vizinha mais adiante”. Perguntei, em seguida, se elas tinham algum
amigo barbadiano (isto, é, do sexo masculino). De imediato Alice (Fotografia 19) sentenciou:
“Não, nem me perguntem! Não conhecemos ningm, e quando a gente se for, agora, fica
esses”, apontando para as fotografias dos sobrinhos-netos, que há na parede da sala. Algo que
me chamou bastante a atenção, durante a entrevista, foi o momento em que as informantes
listaram algumas trabalhadoras da Base e outras mulheres de fora deste ambiente de trabalho,
as quais casaram com militares que transitavam pela Base de Belém, sendo que algumas
“foram embora com eles”. Acrescente-se a isto, a justificativa apresentada por Alice, para o
fato de não ter se convertido ao catolicismo como fizeram dois de seus irmãos:
(...) A Lili [Lilian] foi batizada na Igreja de Santana. Eu, Martha e o Alberto
fomos batizados na Igreja Anglicana. Martha, quando entrou para a
Associação Luizas de Marilaque se batizou católica. Alberto, quando casou,
o padre diz que ele tinha que fazer não sei o quê católico; fez. Eu, como
não fui nem pra lá, nem pra cá, fiquei no ora veja. Não fiz nada... [risos].
Ora veja, quando chegar o tempo eu entro! Ah, quer saber uma coisa? Não
vou casar, não vou entrar em associação, não tem negócio... ah! Nunca
apareceu nenhum maluco! [risos]. [Lilian completou: É como a música,
quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora...”].
231
230
Alice Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
231
Entrevista com Alice e Lilian Scantlebury, realizada em 2 de novembro de 2004.
130
Fotografia 19
Alice Scantlebury
Fonte: ARRAES, Rosa & FIGUEIREDO, Aldrin (Coords.). Catálogo.
Belém dos Imigrantes – história e memória. Belém, Museu de Arte de
Belém, 2004.
131
Se procurasse analisar o que estas informantes quiseram dizer, apenas lendo estes
excertos, poderia apontar, rapidamente, que as irmãs Scantlebury ficaram “encalhadas”
porque, possivelmente, foram mais exigentes que seu irmão na escolha de um par. Mas é
preciso lembrar que é como mulheres negras, filhas de barbadianos, falantes da língua inglesa,
telefonistas, e também filhas do Sr. Scantlebury”, que Lilian e Alice falaram/produziram os
seus depoimentos. É deste lugar que elas se pronunciaram, não para relatar suas
lembranças sobre o trabalho, como comentei acima, mas também para dizer algo sobre suas
vivências, as relações estabelecidas, com os pais, os amigos, no trabalho, na IEAB também.
Mesmo considerando os filtros da memória, as entrevistadas reconstituíram suas histórias de
vida através de um esforço de demarcação de uma identificação que as diferenciasse dos
“outros barbadianos”, muito embora, ao fazê-lo, acabassem evidenciando, também, o que as
distinguia das paraenses. [N]ão apareceu nenhum maluco”, e não apareceu, talvez, porque
elas eram filhas do Sr. Scantlebury, descrito como uma figura autoritária e exigente, e também
porque as filhas ficavam às voltas com os conselhos da mãe para não se meter com os
barbadianos, o que significava, por extensão, não ir muito à IEAB, afastando-se da “negrada
todinha” que se reunia. O que, possivelmente, diminuía suas chances de encontrar alguém
que as quisesse e que elas também quisessem, afinal a IEAB era e é um “lugar onde as coisas
acontecem”, como disse Liliana Skeete.
232
Quem eu quero não me quer, quem me quer
mandei embora”. Será que elas se referiram aos estrangeiros da Base, que parte deles se
uniu às conhecidas delas, estas paraenses?
Mencionei acima os pais das informantes também porque Alice e Lilian destacaram
que a mãe era uma barbadiana, casou com um barbadiano, mas um barbadiano que viveu
trabalhando esubiu”. Pelo jeito que Lilian enunciou “havia de casar barbadiano com
barbadiano! Que arrumação!” e, juntando com o que as duas irmãs disseram sobre os
conselhos da mãe, de que as filhas não deviam “se meter com os barbadianos”, é possível
perceber que este tipo de aproximação/união não era desejada. Por trás disso parece existir a
idéia de que o casamento com negro reforçaria a negrura.
233
Portanto, o reconhecimento de
que isso trazia aspectos negativos para suas identidades ou identificações sociais.
232
Entrevista com Liliana Skeete, em 15 de novembro de 2005.
233
Muito embora também possa ser cogitado que as advertências de Flora dirijam-se ao fato de ter casado com
alguém que vivia viajando, portanto, sempre ausente, o que a colocaria numa situação o só de solidão, mas
também de maior responsabilidade no trato do lar e dos filhos, diante das constantes cobranças do marido.
132
“Quem eu queria me quis, mas eu mandei embora”. Parafraseando o trecho da
música cantada por Lilian Scantlebury, remeto para a história de outra mulher da segunda
geração, que contou sobre seu namoro com o filho de um judeu. O rapaz era amigo da
família, e muito querido do pai da informante, o que não impediu que este último, ao saber do
namoro, passasse a vigiar e controlar os dois a ponto de minha informante desistir do
romance. Ela lembra com saudades daquele rapaz, seu “primeiro e único amor”, um “branco
encardido”, no dizer da e, Lili, o qual, vez por outra, ainda visita a ex-namorada, mesmo
depois de tanto anos. Ela passou a trabalhar, e continuou morando com os pais, sendo que o
pai nunca deixou de “vigiar” a filha: “(...) Eu dizia pra ele: “Se manca, velho!”. depois ele
dizia: “É. Tu na idade de casar”. Agora tem que casar? Agora quem não quer sou eu!”.
E foi assim, mesmo. Afinal, esta informante é uma mulher que tem uma trajetória marcada
pelo fato de descender de uma família de camadas médias, dentre outras coisas, porque
souberam aproveitar o capital cultural familiar e juntar ao adquirido com a formação escolar,
conquistando uma profissão e uma posição, assim como seus irmãos, melhor do que a dos
pais. Ela conta, com orgulho, as viagens que fez e costuma fazer, os lugares que conheceu,
aproveitando os frutos do seu trabalho, o que talvez não lhe fosse possível como casada.
Se se tratava de uma “opção” manter-se celibatário, a mesma o deixava de ser
condicionada por fatores como a educação obtida, seja a familiar, seja a formal, a entrada no
mundo do trabalho, o sentimento de obrigação para com a família o que é relatado, por
exemplo, por Nick Chase para justificar porque Doris que, segundo Angelica Maués, era
bonita, já na meia idade - e Phyllis acabaram não casando: tiveram acesso a uma formação
destacada e, talvez mais que isso, sentiram-se responsáveis pela crião dos filhos do irmão,
Elis, doente que estava, impossibilitado de trabalhar.
Ah, sim... [Elas namoravam?] Sim. Eu acredito, mas não casaram... acho
que, assim como a professora Anunciada Chaves e as irmãs dela, todos não
casaram, elas tinham um padrão intelectual muito grande e, eu acredito que
as minhas tias não casaram porque elas nos criaram. Porque mudava toda
a situação. (...) preferiram ficar solteiras. E isso eu devo a elas, né.
Sacrificaram a vida pra poder me dar educação.
234
Com isto, acabo concordando com Fonseca (1989: 104) quando resume tais fatores a
três: status sócio-econômico, organização doméstica e estratégia de reprodução. Juntando-se a
isto o aspecto étnico-racial, que se sobressai na identificação daqueles que são apontados
234
Entrevista com Nicholas Chase, realizada em 1° de setembro de 2005.
133
como barbadianos. Fica, ainda, a imagem da Hellen Cook, que não constituiu família,
dedicou sua vida de trabalho a uma família abastada, sempre na cozinha, com suas velhas
meias de algodão, a ponto de que “(...) até a identidade dela ela jogou no nome da profissão”,
como contou Tatiana Deane. Como mulher barbadiana, quase sem pertences, e dependente de
uma família, as chances para ela devem ter sido bem menores.
235
Celibatárias mas, nem por isso, mulheres tristes. Da juventude, quase esquecida, Alice
e Lílian lembraram, como Beatriz White, das idas aos cinemas. Alice contou que:
(...) Eu sei que eu ia toda... [semana], não, quase, porque o dinheiro não
dava, que nós sempre fomos pobres. Ah! No cinema! Até hoje eu sou, como
se diz, vidrada na tv. Ah! Eu adoro ver novela. Passa filme, vejo... [Ia muito
ao cinema] Oh! Uh! Às segunda-feira (sic)? Uh! Ver os seriados? Oh!
236
O cinema como a principal diversão. As idas às salas do “(...) Moderno, porque a
gente morava ali perto da Beneficente,
237
na [avenida] Dom Romualdo [de Seixas]. E a gente
ia pro cinema em Nazaré, tinha o Poeira e o Nazaré”. Isto sempre acompanhadas das
“parceiras”, (...) a B, a Tina e a Nadir, [que eram] três irmãs...”, as quais, somando com
outras colegas, e mais Alice, Martha, Lilian, chegavam a 11 pessoas, dentre elas, a mãe das
informantes, Flora, “(...) pra entrar, também, na bandalheira”.
238
Para demonstrar como Flora
acabou se encantando com o cinema, Alice contou uma pequena história:
235
Cláudia Fonseca (1989: 101) ao tratar das “solteironas de fino trato”, chega a comentar sobre os estudos que
analisam o celibato em função de categorias de classe, ou de profissão, nos quais as empregadas domésticas
aparecem como categoria com taxa de celibato tradicionalmente alta. Teresinha Bernardo, em seu estudo
sobre a memória de velhos, homens e mulheres, negros e descendentes de italianos de o Paulo, ao analisar as
lembranças das velhas negras, remeteu à especificidade do trabalho de empregada doméstica, (...) que dava às
mulheres o local onde dormir e o alimento para continuar vivendo”; outras ocupações, neste sentido, seriam mais
complicadas, em vista da dificuldade de se conciliar o salário recebido com o pagamento de aluguel,
constituindo-se, neste sentido, o apoio dos parentes como fator importante para uma mobilidade ocupacional por
parte das mulheres. Cf. BERNARDO, Terezinha. Memória em Branco e Negro. Olhares sobre São Paulo. o
Paulo: EDUC: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 183.
236
Alice Scantlebury, em entrevista realizada no dia 2 de novembro de 2004.
237
Alice refere-se ao Hospital Beneficente Portuguesa, localizado na avenida Generalíssimo Deodoro, no bairro
do Umarizal.
238
Alice Scantlebury, em entrevista realizada no dia 2 de novembro de 2004.
134
A mamãe, logo no princípio, ela não gostava: ´Ah, tu só vive no cinema! Tu
só gasta (sic) dinheiro com cinema!’. Até que depois (...) eu disse pra
mamãe um dia: Mamãe, passando um filme, eu não tenho dinheiro, mas
vamos fazer o seguinte: se a senhora me der o dinheiro, é um pedaço só que
eles passam, o seriado, toda segunda-feira era só um pedaço – mas ela ainda
não tava entendendo o negócio. eu arranjei o dinheiro com as minhas
colegas. Quem não tinha, uma emprestava para a outra. Era assim que a
gente fazia. eu fui pro cinema. Quando eu voltei, diz a menina Biá:
´Senta e conta pra dona Flora todinho o filme`. Sentei e contei todinho pra
mamãe! A mamãe ficou agora agoniada pra saber o resto, é. disse pra
mim: ´E depois?`. Ah, agora mamãe, volta na próxima semana! E disse: pra
segunda-feira, eu tenho que ir de novo. Ah... [risos] A mamãe não gostou
muito. [Mas ela foi depois], ora se foi! Ela era a primeira a se vestir quando
chegava a segunda-feira [risos].
239
Segundo Lilian, “(...) o pessoal ficava admirado porque nós parecíamos irmãs”.
240
O
que é evidenciado pela relação de cumplicidade e ajuda mútua, inclusive na hora de arranjar o
dinheiro para a entrada no cinema. Mas, ao relatarem que iam sempre acompanhadas, e com
a mãe, não deixaram de evidenciar aspectos morais que pesavam sobre as mulheres e sua
presença em determinados locais. Por exemplo, chegar à bilheteria de um cinema
desacompanhada podia ser tomado como indicador de que a moça tinha um comportamento
impróprio, por assim dizer. Beatriz White comentou sobre isto quando contou que chegou a
ser convidada, por um de seus pretendentes da Base Aérea, para ir ao cinema, mas com a
seguinte observação:
(...) Vamos ao cinema, mas não trás procissão!”, contou ela. Hoje,
relembrando este fato, a senhora White, parecendo ainda escandalizada com
tal convite, exclamou: Nunca fui pro cinema! Eu não ia pra bilheteria.
Tinha pavor! Era aquela criação de antigamente. Mas, também, [tal criação]
não me fez mal nenhum.
241
Pelo fato de ter sempre um homem a lhe buscar em casa e, depois, trazê-la de volta,
certos comentários acabavam sendo feitos, do tipo: Beatriz, teu namorado chegou”, para
indicar a chegada de um certo chofer, sobre quem Beatriz lembrou: “(...) Era distinto, era
branco”, em seguida, apontando que os homens da Base, os motoristas, (...) queriam
namorar, mas eu não dava chance. (...) Aqui conversamos e tchau. (...) [os homens] Só
querem deixar [a gente] como bagaço”. Não dar chance, não se envolver, evitar falatórios,
guardar os conselhos e proibições concernentes ao comportamento das “moças de família,
tudo isso em conformidade com uma educação moralmente rígida, uma “criação de
239
Alice Scantlebury, em entrevista realizada no dia 2 de novembro de 2004.
240
Lilian Scantlebury, em entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
241
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
135
antigamente, como Beatriz denominou a forma como foi educada, marcando uma diferença
em relação à geração de hoje”, que “faz e acontece”, e para a qual causa admiração certos
receios comuns ao tempo de mocidade da informante.
Sobre as três gerações: juntando fios (não tão) soltos
Ao longo deste capítulo, esbocei como cada uma das três gerações acabou
empregando diferentes capitais culturais (o herdado e o adquirido com a escolaridade),
lembrando Bourdieu (1983: 50) para não só a sustentão, mas também a melhoria das
condições das respectivas famílias. Famílias estas que, originárias de “pretos ingleses”, tidos
como barbadianos, foram, com o tempo, unindo-se com outras pessoas, resultando, daí, outras
“misturas” (casamentos), recordando o que disseram Tatiana Deane e Nicholas Chase. De
uma geração a outra, identidades e identificações foram sendo construídas, a partir dos
recortes da memória dos entrevistados, que lembraram dos pais e avós em determinados
ofícios, freqüentando ou não a IEAB, casando ou não com filhos de outros barbadianos.
Através dos diferentes relatos, foi possível vislumbrar um pouco do cotidiano de
trabalho das pessoas aqui reunidas por esta referência de ter uma origem familiar barbadiana.
Sobre o trabalho, foi possível perceber, mais claramente, que os ofícios mudaram, passando as
novas gerações, especialmente a terceira, a dedicar-se a atividades nas quais também se usam
as os, mas (de forma mais intensa na terceira geração) agora empregando-se (...) em um
ofício que exige também cabeça”, reutilizando o depoimento de um dos informantes de Ecléa
Bosi, para indicar aqui os investimentos em “profissões de caráter verbal e intelectual” (1979:
478). O que, juntando com outros aspectos econômicos, sociais e religiosos, apresentados ao
longo desta dissertação, procurei resumir nesta seência de gerações, atentando, mais
especificamente, para nacionalidade/origem, cor, língua, posição social, escolaridade,
trabalho, casamento, religião; aspectos estes que, analisados em conjunto e de forma
relacionada com o que se contou sobre as histórias de vida das pessoas aqui investigadas,
poderão nos ajudar a entender um pouco mais da forma como se operou uma construção, ou
manipulação da identidade, a partir do jogo de afirmações entre ser inglês, barbadiano e
brasileiro, revelada na forma de lidar com o rótulo de barbadianos. Para tanto, foi preciso,
através de um jogo de oposições, tentar entender como eles também foram pensados pelos
outros, na construção da alteridade. Desta feita, foi possível resumir as informações neste
quadro (Quadro 3):
136
QUADRO 3: AS GERAÇÕES E SUAS DIFERENCIAÇÕES SOCIAIS E IDENTITÁRIAS
GERAÇÃO
IDENTIFICAÇÃO
Inglês Barbadiano Brasileiro
COR
Preto Negro Moreno
LÍNGUA
Inglesa Inglesa e portuguesa Portuguesa
POSIÇÃO SOCIAL
Pobre Pobre ou média Média ou média alta
ESCOLARIDADE
Alfabetizado na língua
de origem
Primário e secundário Superior
TRABALHO
Manual Manuais e técnicos Intelectual ou verbal
CASAMENTO
Com barbadiano de
mesma condição
Com brasileiro (filho ou
não de barbadiano, com
certa escolaridade)
Com brasileiro, com
escolarização, de mesma
condição
RELIGIÃO
Anglicana Anglicana, católica,
evangélica
Católica, evangélica,
outras, nenhuma
Este quadro apresenta-se como uma tentativa de síntese do que esbocei, na forma de
texto, até aqui. Por isso mesmo, ele acaba sendo uma espécie de tipo ideal, tal qual definido
por Max Weber,
242
no sentido de que reflete uma tentativa de sistematização que, na
realidade, não “cabe” de forma precisa em nenhuma das histórias de vida comentadas por
mim, muito embora possibilite aproximações que, espero, ajudem no entendimento das
questões por mim propostas. Para mostrar sua validade, mas também para permitir ao leitor
uma caracterização do perfil de meus principais informantes, apresento-os, segundo os
parâmetros do quadro acima, e a seqüência das gerações.
242
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002. O conceito de tipo ideal ´´e definido como
um conceito vazio de conteúdo real, mas que “depura” as propriedades dos fenômenos reais “desencarnando-os”
pela análise, para depois os reconstituir.
137
QUADRO 4: SOBRE A PRIMEIRA GERAÇÃO (ROBERT CLYDE SKEETE)
243
243
Atribuições feitas por seu filho, James Skeete, em entrevista realizada em 03 de setembro de 2004. Outras
atribuições sobre Robert Clyde Skeete feitas por pessoas com quem conversei, professores da UFPA, antigos
alunos dele; e pessoas que entrevistei (entre aspas).
GERAÇÃO ATRIBUIÇÕES DO
INFORMANTE
ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Inglês Barbadiano
COR
o referida “Preto”, Negro
LÍNGUA
Inglesa (depois, também
portuguesa)
Inglesa e portuguesa
CONDIÇÃO
o referida Média
ESCOLARIDADE
o especificada (mas
alfabetizado na língua de
origem, depois na
portuguesa)
Não referida
TRABALHO
Instalação de bondes,
depois professor de
inglês
Professor de inglês
CASAMENTO
Com brasileira, filha de
barbadianos
“Casado com filha de
barbadianos” [negra]
RELIGIÃO
Anglicana Anglicana
138
QUADRO 5: SOBRE A SEGUNDA GERAÇÃO (JAMES BURNETT)
244
244
Auto-atribuições, por meio de entrevista realizada em 30 de outubro de 2004. Atribuições dos outros: através
de pessoas com quem conversei, professores da UFPA (antigos colegas da UFPA e dos Correios); de pessoas
que entrevistei (entre aspas); minhas atribuições (entre colchetes).
245
Pequenas moradias feitas em madeira, das camadas pobres, muitas das quais não possuíam casas próprias,
sendo estas estâncias casas de aluguel com preço relativamente módico, construídas no estilo dos chamados
“cortiços” do Rio de Janeiro.
GERAÇÃO AUTO-ATRIBUIÇÕES
ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Brasileiro Brasileiro; “filho de
barbadiano
COR
Negro de tez mais clara o referida
LÍNGUA
Inglesa e portuguesa Inglesa e portuguesa
CONDIÇÃO
[Média] minha família
tinha uma condição um
pouco melhor,
comparativamente aos
outros barbadianos, que
moravam em
“estâncias”
245
[média] “tinha mais
condições”
ESCOLARIDADE
Sem o curso superior,
mas fez exame de
proficiência do inglês por
Michigan
o referida
TRABALHO
Funcionário dos Correios;
professor de inglês em
escolas particulares e na
UFPA
Professor de inglês de
escolas e universidade
CASAMENTO
Casado com brasileira [Casado com brasileira,
neta de barbadianos,
morena clara]
RELIGIÃO
Anglicana, mas hoje eu
não participo da igreja
[IEAB]
Anglicana
[não praticante]
139
QUADRO 6: SOBRE A SEGUNDA GERAÇÃO (BEATRIZ WHITE)
246
246
Auto-atribuições registradas por meio de entrevista realizada em de dezembro de 2004. Atribuições dos
outros: através de pessoas com quem conversei na IEAB (sem aspas), com quem entrevistei (entre aspas);
minhas atribuições (entre colchetes).
GERAÇÃO AUTO-ATRIBUIÇÕES ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Brasileira Brasileira, “filha de
barbadianos”
COR
Negra o referida
LÍNGUA
Inglesa e portuguesa “Inglesa e portuguesa”
CONDIÇÃO
Pobre [média baixa]
ESCOLARIDADE
Não referida o referida
TRABALHO
Tradutora na Base Aérea;
serviço de saúde, pela
LBA
“Trabalhava na Base;
trabalhava no posto [de
saúde]”
CASAMENTO
Casada e viúva de um
brasileiro, branco
“viúva”
RELIGIÃO
Anglicana
Anglicana
140
QUADRO 7: SOBRE A SEGUNDA GERAÇÃO (ALICE SCANTLEBURY)
247
247
Auto-atribuições, na primeira coluna, por meio de entrevista realizada em 2 de novembro de 2004.
Atribuições dos outros: através de pessoas que entrevistei (entre aspas); minhas atribuições (entre colchetes).
GERAÇÃO AUTO-ATRIBUIÇÕES
ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Brasileira, filha de
barbadianos
“Barbadiana”; “filha de
barbadianos”
COR
neguinha [Negra]
LÍNGUA
Inglesa e portuguesa Inglesa e portuguesa
CONDIÇÃO
Pobre [Pobre ou média baixa]
ESCOLARIDADE
Primário, até a quarta
série
o referida
TRABALHO
Telefonista, costureira “Telefonista”
CASAMENTO
[Celibatária] “Encalhada” “solteira”
RELIGIÃO
Anglicana, mas não
gosto de ir lá
o referida
141
QUADRO 8: SOBRE A SEGUNDA GERAÇÃO (LILIAN SCANTLEBURY)
248
248
Auto-atribuições registradas por meio de entrevista realizada em 2 de novembro de 2004. Atribuições dos
outros: através de pessoas que entrevistei (entre aspas); minhas atribuições (entre colchetes).
GERAÇÃO AUTO-ATRIBUIÇÕES ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Brasileira “Barbadiana”, “filha de
barbadianos”
COR
Negra [Negra]
LÍNGUA
Portuguesa e inglesa “portuguesa e inglesa”
CONDIÇÃO
Pobre [Pobre ou média baixa]
ESCOLARIDADE
Primário o referida
TRABALHO
Telefonista; florista,
bordadeira
“Telefonista”
CASAMENTO
[Celibatária] “Encalhada”
“Solteira”
RELIGIÃO
Batizada católica,
[participava da IEAB na
infância]
o referida
142
QUADRO 9: SOBRE A SEGUNDA GERAÇÃO (LILI SKEETE)
250
249
Lili Skeete disse que estudava numa escola que só tinha pretos”, e que era visada na rua porque “era como os
barbadianos” (ingleses pretos, que falavam inglês).
250
Auto-atribuições, na primeira coluna, por meio de entrevista realizada em 15 de novembro de 2005.
Atribuições dos outros: através de pessoas que entrevistei (James Skeete, a filha da informante, Liliana Skeete).
GERAÇÃO AUTO-ATRIBUIÇÕES ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Brasileira “Barbadiana, filha de
barbadianos”
COR
Preta
249
, Negra “Negra (mas clara, de
cabelo liso)”
LÍNGUA
Inglesa e portuguesa Não Referida
CONDIÇÃO
Pobre, média [Média]
ESCOLARIDADE
Primário o referida
TRABALHO
[Manuais] lavar roupas,
passar, cozinhar
o referida
CASAMENTO
Casada com brasileiro,
filho de barbadianos
“Casada com brasileiro,
filho de barbadianos”
[negro]
RELIGIÃO
Anglicana, até casar;
evangélica da Assembléia
de Deus
“Evangélica da
Assembléia de Deus”
143
QUADRO 10: SOBRE A TERCEIRA GERAÇÃO (NICHOLAS CHASE)
251
251
Auto-atribuições, na primeira coluna, por meio de entrevista realizada em de setembro de 2005.
Atribuições dos outros: através de observação direta, no momento da entrevista.
GERAÇÃO AUTO-ATRIBUIÇÕES
ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Brasileiro [Brasileiro]
COR
Branco Pintado, fruto da
3ª mistura [porque neto
de moreno barbadiano e
filho de moreno brasileiro
com branca, ariana,
alemã]
[Branco]
LÍNGUA
Portuguesa [Portuguesa]
CONDIÇÃO
Antes, da alta sociedade,
depois médio
[Média alta]
ESCOLARIDADE
Superior Não referido
TRABALHO
Engenheiro Não referido
CASAMENTO
Casado com brasileira Não referido
RELIGIÃO
Católica; batizado como
anglicano, depois
rebatizado como católico,
na infância
o referida
144
QUADRO 11: SOBRE A TERCEIRA GERAÇÃO (TATIANA DEANE)
252
252
Auto-atribuições, na primeira coluna, por meio de entrevista realizada em 10 de janeiro de 2005. Atribuições
dos outros: através de pessoas com quem conversei, professores da UFPA e do MPEG; minhas atribuições (entre
colchetes).
GERAÇÃO AUTO-ATRIBUIÇÕES ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Brasileira Brasileira [algumas
pessoas sabem que é
descendente de
barbadianos, mas porque
ela conta]
COR
Negra [considera a
cor/raça de sua avó
paterna]
Branca
LÍNGUA
Portuguesa Portuguesa
CONDIÇÃO
Família de boas
condições
Média alta
ESCOLARIDADE
Superior (com pós-
graduação)
[Superior, com pós-
graduação no exterior]
TRABALHO
Pesquisadora; agrônoma Pesquisadora de
instituição renomada
CASAMENTO
Não referida [Separada]
RELIGIÃO
cresci sem seguir
nenhuma
o referida
145
QUADRO 12: SOBRE A TERCEIRA GERAÇÃO (LILIANA SKEETE)
253
253
Auto-atribuições, na primeira coluna, por meio de entrevista realizada em 15 de novembro de 2005.
Atribuições dos outros: através das informações da própria mãe, e da observação direta, no momento da
entrevista (entre colchetes).
GERAÇÃO AUTO-ATRIBUIÇÕES
ATRIBUÕES DOS
OUTROS
IDENTIFICAÇÃO
Brasileira o referida
COR
Negra, morena escura Não referida [negra]
LÍNGUA
Portuguesa [Portuguesa]
CONDIÇÃO
Média baixa, Média [Média]
ESCOLARIDADE
Superior incompleto o referida
TRABALHO
Intelectual ou verbal
[contadora, professora]
Professora
CASAMENTO
[Celibatária] Solteira
Solteira
RELIGIÃO
Evangélica da
Assembléia de Deus
Evangélica da
Assembléia de Deus
146
Através do primeiro quadro apresentado é possível perceber um aspecto importante da
primeira geração de imigrantes. Sua condição de estrangeiro é evidenciada: a) pela
nacionalidade a qual é reafirmada pelo informante (James Skeete), ao lembrar do pai –; b)
pela língua (inglesa), que acabou sendo um importante capital cultural que permitiu que
Robert Clyde Skeete, que trabalhou na instalação de bondes da Pará Eletric, pudesse se tornar
um professor de inglês, possivelmente saindo de uma atividade manual para uma profissão de
caráter intelectual e verbal; e c) pela religião anglicana, num contexto em que a grande
maioria era de católicos na cidade. Estas três características aproximaram Clyde Skeete de
uma identificação como inglês, somado ao uso de determinadas roupas que os ingleses
usavam. Entretanto, por ser um “preto”, que migrou para Belém num contexto em que outros
negros do Caribe também chegaram em busca de trabalho, teve que lidar com a identificação
como barbadiano, sendo esta uma identificação não assumida por ele, em que pese os relatos
das pessoas, inclusive seus ex-alunos, de que ele era assim identificado.
Desta forma, ele nasceu em Santa Lúcia, recebeu a nacionalidade, a língua, a religião e
os costumes ingleses, os quais ostenta até hoje (em que pese ter tido que aprender o
português), mas estes símbolos de prestígio acabaram funcionando como símbolos de estigma
(Goffman, 1988), na medida em que o associavam aos barbadianos”, tidos como ingleses
pretos”, “miúdos”, subalternos, braçais. Seus filhos, brasileiros, tiveram que lidar com este
rótulo conferido ao pai até hoje. James Skeete negou esta identificação e suas irmãs nem
quiseram falar a respeito. Nos relatos daqueles que conviveram com esta família, transparece
a imagem de ascensão social, o que é confirmado pela formação superior dos filhos.
Nos quadros referentes à segunda geração, é possível perceber que os informantes
procuraram reforçar sua identificação como brasileiros, marcando diferença em relação aos
pais, e evidenciando um pouco da forma de lidar com a referência feita a quase todos eles
como barbadianos, por extensão da identificação atribuída aos seus pais. James Burnett,
entretanto, se apresentou como alguém que apenas tinha leves lembranças da vivência dos
pais, enquanto barbadianos (contou, porém, que a mãe dele morou muitos anos em Trinidad e
Tobago, para onde foi levado com os irmãos na infância) e o tinha, em sua identificação,
esta referência; o que é também comentado por pessoas que foram suas colegas de trabalho.
Nas conversas que tive com algumas pessoas que o conheciam, menções sobre a origem
dos pais de James, mas não uma referência direta a ele como barbadiano, a exceção de uma
pessoa, hoje conhecido professor da rede particular, que afirmou ter sido aluno de James, e
147
que sabia que ele era barbadiano, pois falava com os alunos sobre isso o que comentarei
mais adiante nesta dissertação.
As demais informantes, ao contrário de James, evidenciaram, em seus respectivos
relatos, que mesmo sendo brasileiras, acabavam sendo identificadas como barbadianas, por
isso procuraram se afirmar como filhas de barbadianos, sobretudo quando comentam acerca
de outros barbadianos (porque filhos destes).
Um ponto interessante destes membros da segunda geração é que todos eles cresceram
sabendo as duas línguas, o inglês e o português (procurando mostrar que são hábeis na
pronúncia, em vários momentos das entrevistas) aproveitando este capital cultural para a
entrada no mercado de trabalho formal: para James (professor de inglês), Beatriz (tradutora),
Alice e Lilian (telefonistas) – atividades estas de caráter mais intelectual/verbal –ou informal:
para Lili (cozinhando, lavando e passando para firma norte-americana); demarcando assim,
uma diferença importante em relação ao que se sabe da primeira geração, caracterizada pelos
trabalhos manuais/braçais (o que também cabe para Clyde Skeete, que depois se tornou
professor de inglês). que ser ressaltado que algumas mulheres desta geração, ao lado
destes trabalhos citados, ainda dedicavam-se a trabalhos remunerados nos seus lares (caso de
Lilian e Alice), como as mulheres da primeira geração.
No tocante às suas auto-identificações de cor, todos se percebem como negros. No
caso de Beatriz, o termo é mencionado enquanto raça, para indicar oposição aos brancos, e
comentar o racismo de que as pessoas negras em geral são alvo. Outros ressaltaram o
gradiente de cor, como James ao comentar sua tez mais clara, tal qual a de sua e,
comparativamente ao seu pai; e Alice, que utilizou um diminutivo (neguinha). A este
respeito, e pensando os mais diversos termos empregados pelos informantes ao longo desta
pesquisa, muitos dos quais citados no segundo capítulo, caberia aqui destacar que, como
apontam diversos estudos sobre as relações raciais no Brasil, o uso do diminutivo e da
gradação de cor são práticas recorrentes no discurso cotidiano das pessoas, evidenciando a
complexidade do nosso sistema classificatório, em que pese as implicações que isso acaba
tendo para o reconhecimento dos problemas relacionados ao racismo no Brasil (Maggie,
1996; Motta-Maués, 1999; Sansone, 2003). O que as pessoas querem, usando estes artifícios,
é evitar as oposições mais marcadas entre pretos e brancos, negros e brancos, acabando por
148
preferir termos que indiquem misturas, nuaas, muito embora também assentadas em
oposições, do tipo claro e escuro, ou mais claro e mais escuro.
254
Interessante de notar é que os mais velhos mais facilmente referem o termo preto,
também para indicar seus contemporâneos, sendo que os mais jovens, como se apresenta na
terceira geração, usam mais o termo moreno. É como analisa Sansone: as relações raciais e
étnicas brasileiras “(...) são baseadas num continuum de cor supostamente não polarizado,
verbalizado numa pletora de termos étnicos, e com uma certa continência quanto à adoção de
formas francas de polarização da etnicidade” (Sansone, 2003: 13).
Para Yvone Maggie, a razão disto pode ser encontrada nos mitos que falam em raça e
cor. Primeiro, a “fábula das três raças”, como analisado por Roberto da Matta,
255
que é o mito
fundador da nacionalidade brasileira – viemos de três raças, negros, brancos e índios; destaca-
se a oposição negros versus brancos, a partir de uma referência às diferenças culturais,
implicando no silêncio acerca das diferenças sociológicas. Cor e raça, que das últimas
décadas do século XIX para as primeiras décadas do século XX, definiam os que eram tidos
como biologicamente inferiores, passaram também a hierarquizar as culturas. Neste mito
fundador da nossa nacionalidade, (...)as três raças se misturaram em razão de nossa
democracia racial” (Maggie, 1996: 228), sendo este outro mito que tem implicações sérias
para as análises, posto que uma vez que nos encontramos no paraíso dos mestiços, a
segregação e o racismo não existem. Por fim, o mito do branqueamento, “(...) que fala na cor
e evita a oposição preto versus branco, fundando uma sociedade povoada de claros e escuros
que deve ser um dia totalmente branca, sem diferenças” (Maggie, 1996: 226).
Também que ser considerado que, dependendo do contexto, os termos tendem a ter
conotações diferentes. Sansone (2003: 73), por exemplo, ressalta que o termo negro, que se
relaciona ao fenótipo negróide, era considerado, até a década de 1930, como mais
depreciativo do que preto (a cor negra propriamente dita); sua conotação mudou e foi
positivada, ao ser empregado pelos primeiros etnógrafos da cultura negra no Brasil”.
Feita esta digressão, posso pontuar outro aspecto concernente à segunda geração. À
exceção de Lilian, todos os informantes foram batizados na IEAB, demonstrando a relevância
desta igreja no processo de socialização destas pessoas, e na ambigüidade das relações com a
254
Cf: SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros. Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
255
Cf: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia. Petrópolis: Vozes, 1980.
149
mesma pois, como a igreja era e é tida como “de ingleses”, tanto brancos quanto pretos, as
pessoas que lá se reuniam acabavam tendo sua identificação marcada por este pertencimento.
Não admira portanto que, nas conversas informais que tive com algumas pessoas que
conhecem parte de meus informantes, as famílias White, Skeete, principalmente, foram
referidas como de negros da IEAB, ou mais claramente de barbadianos da IEAB. É a partir
daí que se pode entender, no jogo das identificações, a manipulação da identidade por aqueles
que procuraram se afastar da IEAB, como Flora Scantlebury, embora não conseguisse isto de
pronto. Tal qual o falar inglês, a participação na IEAB funcionava como símbolo de prestígio
porque aproximava os seus participantes negros, caribenhos, do referencial cultural e social
dos ingleses brancos. Entretanto, acabava sendo um símbolo de estigma porque, como
afirmou Alice: lá “se juntava a negrada todinha”. E a “negrada, jogando com a posição social
a que o termo remetia (remete até hoje) era “barbadiana.
Lá muitos se casaram, também com filhos de barbadianos (Burnett, Lili Skeete),
freqüentadores da IEAB. Quem não gostava de ir lá, como Alice e Lilian, ficaram
celibatárias; não que haja uma relação direta entre uma coisa e outra, mas, talvez, tenham
diminuído suas oportunidades de encontrar quem quisessem e que as quisessem. Beatriz
casou com um branco que não era anglicano, mas nem por isso deixou de ter um casamento
sacramentado lá – mulher de respeito como ela, nem pensar o contrário.
Ainda pontuarei, mais adiante, a forma como estas pessoas afirmaram ter sido alvo de
preconceito ou discriminações raciais. Caberia aqui adiantar que, como cotidianamente
acontece, em nosso sistema de classificação e de pensamento racial, muitas vezes as
discriminações o mais tidas como de classe do que de raça/cor (Guimarães, 2002; Motta-
Maués, 1997).
Quanto às pessoas da terceira geração, a identificação é brasileira, e não menção
direta a elas como barbadianas. Neste sentido, esta identificação aparece nas suas
construções, enquanto sujeitos dos discursos (Brandão, 1998), pela memória dos ancestrais.
A rigor, as outras pessoas não procederiam, hoje, a essa identificação para os três aqui em
questão, o que pode ser suposto para os netos de barbadianos, em geral, existentes na cidade.
Tanto que todos os três aqui listados, ao mencionarem termos sobre a cor, se apresentaram de
diferentes maneiras, mas sempre informando a relação que tinha/tem com a cor/raça de seus
pais e avós. Assim Liliana e Tatiana se auto-atribuem a cor negra, mas a primeira o faz no
momento em que se compara com outros membros da família, preferindo o termo “morena”, e
150
as nuanças de claro e escuro para designar a si e aos outros, algo que é recorrente entre os
brasileiros, em geral (Maggie, 1996). Tatiana foi buscar na “foto da avó” paterna negra as
justificativas para sua entrada no CEDENPA, o que não deixa de se constituir como uma
afirmação política, de alguém intelectualizado, posto que, pelo fenótipo, creio que ninguém a
identificaria enquanto tal por seu tipo físico, talvez ela passasse até por uma inglesa branca.
Nicholas Chase, por sua vez, foi retraçar as diferentes “misturas” operadas entre as três
gerações de sua família para indicar porque, de um avô “moreno”, barbadiano, casado com
uma inglesa, poderia nascer um outro “moreno” que se casaria com uma alemã pura, ariana,
daí resultando ele, Nicholas, um “branco pintado”, como ele diz, mas que traz “inoculado”
nele essa foi a expressão utilizada –, tanto o sangue barbadiano, quanto o sangue alemão,
revelados, principalmente, na constituição de seu caráter e retidão. Eis que, de repente, o que
parecia tão separado, se junta, numa revelão da popularidade do mito da democracia racial
brasileira e da tese do branqueamento.
256
Quanto à língua, todos são falantes do portugs, e apenas Liliana recordou que, por
conta da exigência de sua avó barbadiana (ela tinha que falar com a mesma em inglês)
resultou daí seu conhecimento da língua. Nicholas tinha duas professoras de inglês em casa,
sua tias, com quem também aprendeu, mas ressaltou o fato de que, porque não tinha um
contexto em que pudesse falar naquela língua, acabou perdendo o que tinha aprendido.
Tatiana não mencionou nada sobre seu conhecimento da língua inglesa, muito embora sua
formação intelectual, e sua experiência de estudo e pesquisa no exterior, me façam supor que
ela tem essa habilidade lingüística, mas por escolarização, e não como algo herdado por
convívio, como no caso de Liliana, e, de certa maneira, também de Nicholas. A diferença
maior da terceira geração em relação à anterior, quanto a este aspecto, é que o inglês não
funciona para eles como um símbolo de prestígio, ou como um capital cultural que lhes
viabilize empregos. Suas chances, agora, são/foram apostadas na escolarização, daí advindo
suas profissões de caráter verbal e intelectual. Em que pese a importância que o
conhecimento da ngua inglesa tem no mundo moderno, não funciona como um distintivo
propriamente étnico e social, da forma como era até as décadas de 1940 e 1950. Até aqui,
enfatizei mais o ings como símbolo de prestígio. No próximo capítulo, comentarei um
pouco mais dele como símbolo de estigma.
256
Cf: DOMINGUES, Petrônio José. “Negros de Almas Brancas? A Ideologia do Branqueamento no Interior da
Comunidade Negra em São Paulo, 1915-1930”. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 3, 2002, pp. 563-599.
151
Quanto à questão do casamento, apenas Nicholas comentou sobre os seus; primeiro
com uma amazonense, com quem teve seus filhos, mas os quais ele perdeu em um trágico
acidente de avião; depois, sua segunda esposa, dona Altair, brasileira, católica, sem nenhuma
aproximação com os referentes de identificação barbadiana. Liliana contou sobre a frustração
de seu romance, que a fez optar pelo celibato, e Tatiana nada comentou a respeito.
A IEAB não constitui para eles um referencial de identidade. Apenas para Liliana ela
ainda é um local onde os barbadianos se juntam, ou seus descendentes, como nas bodas e
falecimento de James Burnett.
152
Capítulo 4
INGLESES PRETOS, BARBADIANOS NEGROS, BRASILEIROS MORENOS?
Pelo que apreendi das vivências das pessoas que entrevistei, baseada no que elas
puderam lembrar e/ou quiseram contar, sobre os aspectos e significados da identificação
barbadiana, mas também inglesa e brasileira, procurei retraçar, através dos jogos da memória
e das identidades, as histórias dos barbadianos em Belém, de Belém, e com Belém, no sentido
de que também nos permitiram excursionar pela cidade, na qual, como em geral nos meios
urbanos, rios olhares se cruzam, encadeando ou reforçando processos identitários; afinal,
com lembra Michel Agier:
A cidade multiplica os encontros de indivíduos que trazem consigo seus
pertencimentos étnicos, suas origens regionais ou suas redes de relações
familiares ou extrafamiliares. Na cidade, mais que em outra parte,
desenvolvem-se, na prática, os relacionamentos entre identidades, e na
teoria, a dimensão relacional da identidade.
257
A cidade, então, como palco onde se encontram o eu e o outro, o daqui e o de alhures,
pondo em relação identidades díspares que, assim, têm seus diversos referentes de
pertencimento originais alterados. Assim aconteceu em Belém, onde, desde o início do século
XX, e certamente desde antes também, ingleses chegaram. Mas os “ingleses” sobre os quais
me debrucei, não foram aqueles meramente definidos por um local de nascimento (Inglaterra)
ou nacionalidade (inglesa) e étnico/racial (brancos). Estes três referentes se juntaram para
marcar pessoas que são ingleses como estes primeiros, mas, ao mesmo tempo, muito
diferentes, afinal, se a nacionalidade era a mesma (eles eram ingleses, como vários
entrevistados disseram), era uma nacionalidade auferida através de um estatuto colonial, que
provocou sucessivas diásporas, e como aponta Stuart Hall (2003), as diásporas negras:
primeiro, do continente africano para as colônias inglesas no Caribe e, depois, no contexto
recoberto pela memória dos meus informantes, a dispersão dos negros para outros países,
como o Brasil. Eles vieram de vários lugares do Caribe. Eram ingleses, e eram “pretos”,
como disseram os informantes. Uma distinção, aliás, que não é de cor/raça, mas também
de condição.
257
Cf: AGIER, 2001: 10.
153
Chegaram a cidades como Belém, trabalharam para diversas firmas e pessoas inglesas,
depois também para os nacionais. Eram pretos, mas com os referentes encimados nos padrões
culturais ingleses (revelados, principalmente, na língua, na religião, e na vestimenta, mas
também nos costumes) – por isso foram tão atentamente observados pela cidade, nas ruas, nos
mercados, nos portos, nos lares de famílias abastadas, também. Foram vistos como
estrangeiros. O estrangeiro é uma pessoa que chega hoje e amanhã fica”.
258
Muitos deles
ficaram. A relação com eles, então, havia que ser pautada por uma “proporção especial” entre
distância e proximidade, e por uma tensão recíproca, como afirma Simmel (1983: 188): a
distância significando que eles que estão próximos, estão distantes e, a condição significando
que eles que estão distantes, na verdade estão próximos. Estavam por toda parte.
Trabalharam em atividades em que também os pretos do Pará trabalharam, e tinham
habilidades e conhecimentos para fazer o que os daqui, nem brancos, nem pretos sabiam, ou,
pelo menos, não sabiam fazer tão bem é o que consta na memória. Eram pretos, mas eram
pretos diferentes dos daqui. Usavam roupas diferentes, se comportavam de forma diferente e
falavam diferente.
Vieram de vários lugares do Caribe inglês. Será, que aqui chegados, pensou-se que
vieram todos de Barbados? O fato é que acabaram sendo reunidos sob um mesmo termo,
barbadiano. Será que isto se deu porque foi maiscil identificá-los como barbadianos do que
como santa-lucenses, por exemplo? O que está por trás desta identificação?
Foi isto que procurei investigar, entrevistando pessoas que são tidas como de famílias
barbadianas em Belém. E elas realmente, em algum momento, para marcar distinções entre
os brasileiros e ingleses, acabaram evidenciando de que forma se relacionam com tal
referência. Entrevistei pessoas de segunda e terceira geração. Em sua maioria mulheres, que
me contaram muitas histórias sobre homens e mulheres.
A maior parte do que relataram remete a uma forma de lidar com os aspectos positivos
de suas identidades, ou do jogo estabelecido entre ser e não ser inglês, barbadiano e/ou
brasileiro, afinal estas pessoas entrevistadas são brasileiras, nasceram no Brasil. Mas
brasileiras também diferentes, porque filhas de barbadianos e vistas, muitas vezes por
extensão, como tais. Do que disseram, captei, também, os aspectos que, evidenciados,
colocavam estas pessoas, principalmente as da segunda geração, em suspeição sobre seu lugar
258
Cf: SIMMEL, George. “O Estrangeiro”. In: Sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais (Org.: Evaristo de
Moraes Filho). São Paulo: Ática, 1983, p. 182.
154
nesta sociedade tão racista e racializada. No contraste entre identificações diversas, a
barbadiana foi ora encoberta, ora ativada, porque operava para o bem e para o mal, no sentido
de indicar prestígio ou estigma (Goffman, 1989).
Elaborei, como base nos relatos, uma espécie de modelo que procura evidenciar, por
contrastes, as identificações presentes para cada uma das gerações, a partir de tudo que
apontei até aqui sobre aspectos de suas vivências e os referentes identitários em jogo, com a
finalidade de sistematizar, mas também de permitir a melhor visualização das diferenças entre
as três gerações de “barbadianos”, que denominei de ingleses pretos, barbadianos negros,
brasileiros morenos, de acordo com os relatos, indicadores das atribuições e auto-atribuições
em jogo. Depois de apresentar o modelo, comentarei, mais detidamente, sobre a forma como
os descendentes lidaram com tal designação, pontuando aspectos do racismo, das
discriminações e do preconceito racial de que foram alvo, em compasso com os signos ou os
símbolos que informavam socialmente sobre quem eram, são, ou que os outros pensaram que
eram.
Foi isto, aliás, que busquei fazer ao longo desta dissertação, na medida em que,
atentando para os aspectos relacional, situacional e contextual das identidades (Barth, 2000,
Agier, 2001), suas construções e manipulações pelos sujeitos (Cardoso de Oliveira, 1976;
Cunha, 1985; Goffman, 1988), demonstrei como o conhecimento da língua inglesa, enquanto
capital cultural, somado a outras características culturais que os aproximavam dos ingleses (a
IEAB como ponto de convergência), constituía-se como símbolo de prestígio, a ponto de
indicar a conveniência de se preservar uma distinção (Cunha, 1985), muito embora, em outros
momentos e circunstâncias, estes símbolos acabassem se transformando em símbolos de
estigma (Goffman, 1989). É este último aspecto que procurarei pontuar neste capítulo final.
Quem são ou o que foram os barbadianos? Foi preciso deixá-los se apresentar, contar
as histórias dos que por primeiro chegaram, dos avós, dos pais, mas também os pais
discorrendo sobre seus filhos e netos, seus ofícios, encontros, desencontros, o trabalho e
outras formas de socialização, na Igreja Anglicana, onde diferentes gerações de descendentes
se encontraram, e onde os casais se formavam e viviam, ou não. Para alguns não casar foi,
não o destino, mas a situação. Situações favoráveis, situações adversas, como jogar com
identificações diferenciadas, que permeavam três identidades: inglesa, barbadiana e brasileira,
duas línguas, inglesa e portuguesa, duas religiões, anglicana e católica, mas também outras
evangélicas? Comportamentos em público vigiados e punidos. Várias famílias, gerações
155
diferentes, diferenciadas formas de recortar o passado, e também de constituir uma memória
digna do grupo, pelo menos distante do rótulo, dos estigmas que recobrem, ou podem
recobrir, esta identificação barbadiana.
Para isto, é preciso retornar ao que comentei aqui sobre a memória existente em torno
dos ofícios e da condição da primeira geração de barbadianos em Belém, para analisar um
exemplo da dificuldade em ser visto com o mesmo “rótulo” recebido pelos imigrantes negros
do Caribe inglês, do início do século XX.
Pelo que pude perceber com a pesquisa, a imagem das mulheres barbadianas como
empregadas domésticas, assim como a dos homens como trabalhadores braçais, também
presente em alguns relatos, todos serviçais”, guarda uma relação mais direta com os
membros da primeira geração destas famílias. O que vinha a pesar mais na identificação dos
mesmos como pessoas de segunda categoria”, se aqui formos relembrar a expressão de
Raymundo Moraes (s/d [1936]), somando-se ao fato de serem “pretos”, ingleses “miúdos”,
estrangeiros. O que, certamente, destoa da imagem que se destaca dos relatos das histórias de
vida de barbadianos como Dudley Chase, Leonard Deane e, mesmo, James Christopher
Burnett, nos quais são apontados como negros
259
de melhores condições de vida e com
trabalhos especializados: os dois primeiros com cargos de direção o que nem sempre era
garantia de que o sofreriam com o rótulo de barbadiano, tal qual relatamos sobre Leonard
Deane, no capítulo anterior.
Refletindo sobre a afirmação de Liliana Skeete, de que era uma mentira que as
barbadianas fossem amas-de-leite, penso que ali se deu a negação da imagem das barbadianas
como serviçais, inclusive porque Lili (a mãe) e Liliana referiram-se à responsabilidade que a
primeira, junto com a irmã, tinham na lavagem das roupas da Pan Air, mas não se disseram
“lavadeiras” ao contrário, mencionaram a utilização de “empregadas” por elas. Também
pode ser considerado o fato de que a atividade de ama-de-leite, assim como outras listadas,
tem uma história como função própria das pretas escravas e suas descendentes libertas – o que
era, inclusive, anunciado em jornais
260
do período imperial brasileiro–, não sendo diferente
259
Respectivamente, os três foram apresentados pelos informantes como “moreno”, “negro, mas claro”, e
“negro”; muito embora, pelo que observei das fotografias do primeiro e do último, os dois pudessem ser
classificados como “pretos”, como se dizia na época, e costumamos falar até hoje.
260
Lilia Schwarcz, analisando a presença dos negros nos jornais do século XIX, destacou dois anúncios sobre
amas-de-leite escravas, nos quais os donos ofereciam suas cativas, a primeira uma “(...) preta de 24 anos, perfeita
costureira e com todos os préstimos para casa de família, servindo também de ama-de-leite por estar próxima a
dar a luz, é sadia, sem cios, e bem educadacaracterísticas anunciadas como o contrário das “atribuições
156
em Belém. Entretanto, mais que isso, ali se revelou a atitude de uma mulher negra, de outra
geração (a terceira), que experimentou uma escolarização, tendo estudado em colégios
particulares tradicionais, como o Moderno, e, ainda, obteve uma formação profissional e
exerceu uma profissão -os quais, dentre outras coisas, atuam como símbolos de prestígio,
indicadores de uma mobilidade social ascendente. Mas que, também, cresceu ouvindo sua
mãe contar a forma como era identificada na rua como barbadiana ela, que afirma não ter
nada com barbadiano, posto que é brasileira, só nossos pais que eram”. Isto depois de listar
os parâmetros desta identificação: a família, a cor, as roupas, os chapéus, o modo de falar... e
de explicar o motivo dos barbadianos serem apontados nas ruas: as pessoas tinham ódio de
ingleses, e os barbadianos eram ingleses, por isso passaram a odiá-los!
Considerando a trajetória de Liliana Skeete, atentando para o lugar a partir do qual ela
se pronunciou sobre sua ascendência e suas vivências em Belém, é possível perceber uma
trajetória que é individual e familiar, ao mesmo tempo, mas que remete às trajetórias de
outros, e recobre uma atualização do que viria a ser ou descender de barbadianos cuja
história, segundo Liliana fez questão de ressaltar, deveria ser registrada, “deveriam buscar as
raízes” para con-la. Mas nesta história, não caberia essa imagem dos barbadianos e
barbadianas como serviçais.
De tudo o que ouvi e, depois, li e reli, a identidade é o tema recorrente, perpassando
toda uma construção potica, interessada, que tem a ver com as imagens que a sociedade
constrói sobre seus personagens, seus grupos e suas origens.
Porque não ser barbadiano? Porque não se vêem (?) assim. O primeiro dado é que se
apresenta como uma identidade englobadora atributiva, que acabou juntando todos sob um
rótulo. Num primeiro momento, esta identificação nem corresponde à realidade, tendo em
vista que, a rigor, barbadiano seria aquele oriundo de Barbados. Para pessoas como Clyde
Skeete, tal identificação serviu como um rótulo. Talvez eu pudesse afirmar algo diferente
se houvesse indícios de que este indivíduo, em conjunto com os outros assim designados,
nutrissem um sentimento de grupo, de pertencimento, baseado em uma origem comum no
Caribe, tal como apontado por Stuart Hall (2003), ao discorrer sobre a qualidade de ser
caribenho, como algo que aglutina pessoas de diversas partes do Caribe. O que não parece
procedente, uma vez que os descendentes de segunda geração em nenhum momento referiram
morais” pejorativas, às quais os negros eram associados; e, no segundo: “Ama de leite./ Inspeccionada e
affiançada por médicos, quem precisar e quiser pagar pode dirigir-se à praça do mercado...” a garantia
apresentada em razão da proximidade delas com seus senhores.
157
este sentimento de pertença por parte de seus pais. E James Skeete, pelo contrário, fez
questão de demarcar a diferença entre ser barbadiano, que o pai dele não era e não é, ser
santa-lucense, que o pai dele é apenas por nascimento, e ser inglês, que sua identificação é
afirmada pela atribuição da nacionalidade inglesa, com o recorte da situação imposta pelo
estatuto colonial.
A primeira geração se via como inglesa, é o que eu pude afirmar em função dos relatos
obtidos com as histórias de vida que pude recuperar, através das entrevistas com descendentes
de segunda e terceira geração, com a validade, mas também com os riscos que isso possa ter,
em vista da memória ser uma construção que está sempre se atualizando, e dos descendentes
se construírem, nos depoimentos, através da negociação de lugares entre estar sob uma ou
outras destas categorias. Se eles eram ingleses, e pretos e miúdos, não podemos, então, deixar
de considerar que se tratava de pessoas que migraram de áreas nas quais o sistema de
classificação era estreitamente hierárquico, posto que ligados ao Reino Unido, portanto, desde
lá já traziam a separação entre ingleses e barbadianos, uns em cima, outros em baixo.
Porque negam a identificação como barbadianos? Porque ninguém quer ter uma
identificação diminuída, estigmatizadora; pois há uma marcação negativa na constituição
histórica de sua identificação. Talvez, por isso, etnia não caiba para eles.
Barth (2000), preocupado com a questão de como a diversidade étnica é socialmente
articulada e mantida, ou como os grupos mantêm suas fronteiras, defende que é, justamente,
nas situações de interação, e não de isolamento, que as fronteiras étnicas o definidas e,
assim, a organização de determinado grupo. Tais fronteiras, apesar de se relacionarem com o
território, são, segundo o autor, prioritariamente sociais. São os atores sociais, nas utilizações
que fazem de categorias de atribuição e identificação para si ou para os outros, que devem ser
observados, e foi isto que procurei observar ao tratar o material obtido a partir das entrevistas.
Uma questão que surgiu ao longo da pesquisa foi se as pessoas que eu investigo
configuram, nas suas relações, um grupo étnico. Esta é uma questão delicada, para qual a
minha resposta é sim, e não, posto que, como procurei mostrar ao longo da dissertação, o que
é possível observar é um jogo de identificações entre três identidades.
Mas, qual o diálogo que é possível fazer com a bibliografia a este respeito? Ao discutir
sobre identidade para penetrar na etnia, Barth (2000), que fez pesquisas em várias partes do
mundo, no Oriente Médio, África, Nova Guiné, Golfo Pérsico, Bali, Butão e Noruega, e que,
158
na coletânea de textos intitulada O Guru, o Iniciador e Outras Variações Antropológicas,
elaborou seu modelo teórico a partir dos dados coligidos em trabalho de campo, procedeu à
definição de identidade étnica como tipos de papéis que um indivíduo pode assumir e quanto
aos parceiros que ele pode escolher para cada tipo diferente de transação (Barth, 2000: 36).
Sob este prisma é possível perceber as formas como as pessoas entrevistadas, de alguma
maneira, procuraram evidenciar os referenciais a partir dos quais demarcavam a forma como
se vêem e percebem, vêem e percebem os outros, e, dependendo da posição em que se
colocam (ou dos papéis que assumem, segundo Barth), aparecem imagens diferentes deles e
dos outros.
Procurei atentar para as categorias de atribuição e auto-atribuição que utilizaram, pois,
como afirma Barth (2000: 37) elas revelam os papéis assumidos pelos atores sociais (mas
também como autores, digo eu) postos em relação, e dos sinais que exibem para mostrar sua
identidade (vestimenta, língua, estilo de vida, modos de ser, dentre outros), bem como das
experiências relacionadas à religião, educação/ escolaridade, trabalho e família, destas pessoas
reunidas sob a designação de barbadianos, sem deixar de considerar, a relação que a
identidade étnica guarda com status, sexo, posição social. Porém, mais do que falar em
identidade étnica, creio que é mais apropriado considerá-la como identificação étnica, no
sentido das identidades em processo de articulação, dependendo das situações, contextos, e
relações estabelecidos, e que envolve aspectos das diferenças racial (negra), étnica (origem e
nacionalidade), religiosa (anglicana) e lingüística (inglês).
Mais do que defini-los como grupo étnico, supondo que, com isto, talvez incorresse no
mesmo jogo estigmatizante que, nas primeiras décadas do século XX englobou estas pessoas
sob o rótulo de barbadianos, quando elas não se sentiam ou o queriam ser assim
identificadas, considero que seja pertinente considerar que se trata de identificações étnicas,
tal qual a noção elaborada por Daniel Glaser, em 1958, citada por Cardoso de Oliveira (1976:
3): estamos lidando com identificações étnicas quando observamos que uma pessoa faz uso de
termos raciais, nacionais ou religiosos para se identificar e relacionar-se aos outros. A
identificação barbadiana foi, de fato, operada de diversas maneiras, constituída por contraste
com a inglesa e a brasileira, não sendo produto de uma afirmação isolada, mas como uma
afirmação, nem sempre tranqüila, do nós diante dos outros (Cardoso de Oliveira, 1976: 36).
Muitas vezes ela foi constituída, nos relatos, como uma identidade negativa, tal qual definida
por Erikson, em 1970, citado por Cardoso de Oliveira (1976: 29), ou seja, “(...) a soma de
todas aquelas identificações e fragmentos de identidade que o indivíduo tem que reprimir em
159
si mesmo por serem indesejáveis ou irreconciliáveis, ou pela qual indivíduos atípicos e
minorias marcadas são forçadas a se sentir ‘diferentes’”.
O que se observa são “relações de identidades”: identidades, no plural,
complementares e combinadas, uma negando a outra, num processo assentado numa
dimensão que é também ideológica, posto que encobre as contradições reais, mas também
serve como “(...) um mapa a orientar indivíduos e grupos”.
261
Os sujeitos manipulam sua
identidade, evocando-a quando lhe convém, ou esta é manipulada por outros, ao estigmatizar-
se alguém “(...) em situações concretas de competição e de conflito” (Cardoso de Oliveira,
1976: XVIII). Exemplo este que podemos corroborar ao observarmos, nos depoimentos que
tomamos, relatos de casos em que o indivíduo tido, pela origem, como barbadiano, e, inglês
por seu status, condição social e relações estabelecidas (inclusive em meio à elite belemense),
muito embora ele próprio se pensasse também como brasileiro, fosse, em situação de conflito,
apontado, e estigmatizado, como “negro barbadiano”. Estamos lidando aqui, pelo menos,
com três identidades: barbadiana, inglesa e brasileira, postas em jogo na constituição do eu
diante do outro, ou do nós diante dos outros, através de determinadas formas de identificação
e dos papéis assumidos pelos sujeitos sociais frente a estas três identidades postas em relação.
Se a identidade barbadiana, como toda identidade, é uma identidade contrastiva, e,
muitas vezes, também negativa, ela foi, também apresentada como uma identidade
renunciada, tal qual apresentada por Cardoso de Oliveira (1976:12), apoiado na formulação
de Van Woodward, a qual nada mais seria do que aquela identidade que fica latente e,
dependendo das circunstâncias, pode ser atualizada, invocada, apoiada em uma ideologia
étnica. Este aspecto, aliás, é que merece uma atenção especial. Pelo que pude analisar a
partir dos relatos de descendentes, é operada uma identificação com barbadiano em contextos
nos quais se faz necessária uma diferenciação em relação às pessoas naturais da cidade,
262
no
sentido de uma demarcação social mais favorável; mas isto se acompanhando uma
aproximação com os referentes identitários ingleses. Neste sentido, relembro o esforço de Lili
Skeete em afirmar que os barbadianos eram pretos, mas eram, em primeiro lugar, ingleses,
261
Cf: CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 50 e 54. O caráter ideológico das identidades é apontado uma vez que
a ideologia teria, por função “(...) ocultar as contradições reais, reconstruir em um plano imaginário um discurso
relativamente coerente, que sirva de horizonte ao vivido dos agentes, dando forma a suas representações
segundo as relações reais e inserindo-as na unidade das relações de uma formação” (Poulantzas,1969:265, citado
por Cardoso de Oliveira, 1976: 40).
262
Mais especificamente, uma diferenciação em relação aos negros, marcados que o, no Brasil, pelo fato de
que a tez escura e o fenótipo africano acabaram se associando a uma posição de classe baixa, através de uma
associação entre cor e classe, historicamente estabelecida.
160
diferentes dos daqui. Nessa negociação, às vezes poderia ser mais lucrativo” ser diferente
dos daqui, sobretudo se considerarmos as condições e representações negativas existentes
sobre os negros no país, evidenciadas, dentre outras coisas, no racismo e nas conseqüentes
dificuldades de inserção destes no mercado de trabalho.
263
Seria o caso de uma identidade sem etnicidade? Os contornos étnicos desta
identificação barbadiana são evidentes, entretanto, o há, para as pessoas que entrevistei, a
perspectiva de movimento social no sentido de revirar o processo de estigmatização da
identidade, no sentido de transformá-la de negativa em positiva, no sentido de retraçar os
aspectos que os faziam ser vistos como grupo, muito embora não o quisessem. Tal processo,
aliás, nem poderia ser avaliado, em vista da pequena representatividade numérica destas
famílias. E, o que vem a ser mais importante ainda, ao longo das gerações estas pessoas
foram deixando de ser identificadas como antes, até porque os sinais de sua diferença foram
se atenuando. Hoje dificilmente seriam apontados na rua como foram alguns da primeira e da
segunda geração, até os idos anos da década de 1970 algo que deixei para registrar ao final
desta dissertação. Não são mais um grupo de negros estrangeiros, os filhos revelam os níveis
de “mistura étnico-racial, a IEAB guarda o referencial de igreja onde os negros
barbadianos se encontravam, ao lado dos ingleses brancos, para pessoas que conviveram com
membros destas famílias assim identificadas; ficaram, assim, no terreno da memória. Das
poucas pessoas da quarta geração com quem pude conversar brevemente, nem ao menos o
inglês aparece como ngua que referencia uma história familiar, que dirá de grupo; o que,
aliás, já era apontado, de certa forma, como uma reclamação, pela segunda geração, em
relação a terceira. James Burnett, por exemplo, contou sobre sua relativa tristeza pelo fato de
que nenhum dos seus filhos se interessou em aprender inglês mas mesmo esta afirmação
deve ser entendida como a de alguém que construiu sua identificação social como professor
de inglês conceituado, que, aparentemente, não teve “colada” em sua identificação o rótulo de
barbadiano, e que, portanto, não era isso que ele visava para os filhos.
263
Estudos apontam que é no âmbito do trabalho que as marcações, e as conseqüentes discriminações,
assentadas na cor/raça das pessoas, apresentam-se como mais fortes, comparativamente a outros aspectos, como
o lazer, tal como analisado por Sansone, que, em sua pesquisa sobre as ligações entre classe e raça, a partir da
análise da situação de dois bairros de Salvador, denominou estas duas áreas de área dura (trabalho) e área leve
(lazer). Ver: SANSONE, 2003, p. 51 ss.
161
Mais alguns relatos...
Passar por “uns bons pedaços”. Beatriz relembrou os tempos de trabalho sem deixar
de evidenciar os problemas enfrentados pelas dificuldades de condição social, de sexo, de
cor/“raça”, de origem, de função, demonstrando, também, sua compreensão destes problemas
através do reconhecimento de que sua diferença era percebida e tratada de forma
preconceituosa e racista, o que, no seu entendimento, levava a uma discriminação que não
afetava exclusivamente a ela, mas às pessoas negras em geral, muito embora, atualmente, isto
estivesse mudando:
A gente é discriminada porque a gente é negra. Mas agora não. Estão
reconhecendo que o negro é gente, que o negro é inteligente também, e o
negro sabe entrar e sair em qualquer lugar, desde que ele queira ser uma
pessoa decente, , ele pode. [o que significa que originalmente este não
seria] Mas, eu vou contar...
264
A gente é negra e o negro é gente. Quantos capítulos de estudos sobre as relações
raciais brasileiras o foram escritos em torno desta situação, historicamente constituída,
dos negros no Brasil que ora foram chamados de pretos, ora de negros, depois de mestiços,
mulatos, morenos? Cada contexto, um sentido diferente para cada uma destas categorias
(Maggie, 1996), que demarcam diferenças étnicas, raciais, sociais, políticas, econômicas, e
que foram explicadas também de diferentes maneiras: pelo viés da biologia, hierarquizando
raças e culturas; pelo viés da cultura, enfatizando as diferenças étnico-culturais, em prejuízo
das diferenças sociais, de classe; ainda pelo viés econômico, ressaltando-se as precárias
condições a que estavam expostos os negros, as desvantagens frente aos brancos, acumuladas
por gerações (Hasenbalg, 1996); sempre desvantagens, defasagens.
No início do século o discurso e a política eram mais complicados ainda. Não se tinha
ao menos o viés ideológico da democracia racial como marca da identidade brasileira, e os
negros, que tinham deixado de ser pretos, porque saídos da escravidão e jogados no mundo do
trabalho livre, eram vistos como raça inferior, a ponto de serem marcados, pelas idéias,
ideologias e práticas racistas, como portadores de uma meia humanidade (Motta-Maués,
1997).
Tornar-se gente. Beatriz é uma mulher que viveu as cadas de 1930 e 40, quando
estas idéias acerca dos negros eram tidas com verdades, com estatuto científico e tudo. Os
264
Entrevista com Beatriz White, realizada em 1° de dezembro de 2004.
162
próprios negros eram tidos como culpados por sua condição. Para melhorar era preciso se
misturar com um tipo superior, ser trabalhador e morigerado – o referencial é o homem
branco, europeu; mais tarde, os europeus que melhor se assimilassem aos nacionais, ajudando,
assim, a branquear, civilizar o Brasil, mas também a acabar com o problema o negro”, que
deveria, com o tempo, se perder nas “águas da mestiçagem”. Na fala de Beatriz isso parece
tão perfeitamente resumido. Quer dizer, como é que o negro se quiser ser decente, pode
entrar e sair de qualquer lugar. Como se ele, por sua própria culpa, além de errado por
natureza, estivesse fora do lugar. Sempre fora do lugar, então era preciso saber o seu lugar.
Usar os referenciais tidos como dos brancos, no que se refere a um padrão econômico,
mas também moral. É essa perspectiva assimilacionista e integracionista, e que absorveu a
ideologia do branqueamento, que Motta-Maués (1999) refere em seu estudo sobre as elites
negras em Campinas, no contexto do início do desenvolvimento do movimento negro no
Brasil, para caracterizar um dos três períodos por ela analisados, os anos de 1930, em que os
valores da honra e da vergonha eram apregoados aos negros dos quatro cantos do Brasil
(1997: 299); sendo, também, um dos pares de termos apresentados pela autora como eixos
principais que governam nosso pensamento, nossas atitudes e nossas relações no âmbito
racial” (1997: 302).
O outro par seria a invisibilidade (positiva) e a visibilidade (negativa), que, trocando
em miúdos, representam a forma como, no Brasil, o pensamento social e as próprias relações
se constituíram assentados numa cultura da escravidão”, isto é, um passado escravista que
marcou nossa forma de “(...) lidar com os negros e pensar a seu respeito como
hierarquicamente (porque “naturalmente”) diferentes” (1997: 303), o que acaba se
manifestando tanto numa ética na qual não se permite nenhum tipo de igualdade (formal,
jurídica, dentre outras) para negros e brancos, quanto nas relações e expressões concretas do
racismo, historicamente registradas. Em que pese este dado, o fato é que, no Brasil, se
constituiu uma forma de pensar e tratar o negro, como se ele fosse marcado por uma condição
(escrava) de o-pessoa, tal qual apresentada por Goffman (1975), e de que Motta-Maués se
apropria para analisar o que ela denominou de sua invisibilidade, pois é tratado, assim como
os empregados domésticos e os escravos (exemplos citados por Goffman) como quem todos
sabem que estão ali, mas são definidos pelos outros como quem não está, o que permite
Motta-Maués (1997: 305) resumir aquela combinação, discorrendo sobre o negro como...
163
(...) alguém “que é e não é”, que vemos e o vemos”, “que está e não
está”, e até “que se vê e não se vê”, o que além de retratar sua situação, casa,
perfeitamente, com a forma de ser, ou com a lógica do pensamento
brasileiro.
Tudo isso para pontuar o processo pelo qual de africano a negro, depois preto, acabou
se tornando não-pessoa, marcado pela junção esdrúxula da invisibilidade, com a visibilidade,
revelada tanto no plano do pensamento quanto das relações. No plano do pensamento, o mito
da democracia racial, com sua exaltação do elemento mestiço como síntese da mistura de
raças, parece ter feito desaparecer o problema o negro, se constituindo numa ideologia racial
que escamoteia o racismo e o racialismo no Brasil. No âmbito das relações, que é o que me
interessa mais objetivamente aqui, estas idéias se revelam no fato de não se falar de uma
pessoa sem referir-lhe a cor (o que foi muito presente nas entrevistas) todos, inclusive os
negros, pensando racializadamente, no mínimo, e sendo todos brancos” e negros”
preconceituosos também.
O resultado, segundo a autora, seria, dentre outras coisas, “uma miopia do negro em
relação a ele mesmo”, no sentido do não reconhecimento dessa identificação (Motta-Maués,
1997: 308). Se nos anos 30, mesmo apontando o preconceito, constituiu-se um discurso,
pelas elites negras, de que era preciso que o negro se colocasse num outro lugar, cujo
referente era o branco (misturando a ideologia do branqueamento e as perspectivas
assimilacionistas e integracionistas), nos anos 40 e 50, com a ênfase na tese da harmonia
racial brasileira, a perspectiva era a da ascensão social, para o que o negro deveria deixar os
“costumes bárbaros” e os complexos que o cercavam. Apenas nos anos 70/80, e a partir daí
lideranças do movimento negro teriam se voltado mais explicitamente, para a denúncia do
racismo e da desigualdade a que estava submetido o negro no Brasil (Motta-Maués, 1997:
309).
O que procurei aqui, ao resumir um pouco destas considerações sobre a forma de se
pensar e tratar os negros no Brasil? Primeiro, afirmar que estas ideologias acabam sendo
absorvidas pelas pessoas, cotidianamente; segundo, pontuar aspectos relevantes para o
entendimento das formas como os meus interlocutores, ao relatarem situações vivenciadas por
eles e identificadas pelos mesmos como decorrentes de suas condições (sociais, econômicas,
raciais), se posicionaram de formas também diferentes. E isto farei ao pontuar, mais adiante,
estas posições, mas analisando, de forma mais especial, a dificuldade que tiveram em lidar
com uma identificação como barbadianos, pelo que disseram ou não conseguiram expressar,
164
posto que negros, mas negros estigmatizados também pela sua constituição como estranhos.
O que, creio eu, ajuda a fechar o círculo de construção desta dissertação: dos textos, aos
relatos, dos relatos às memórias, das memórias aos textos novamente, os quais analisei, de
forma meio compartimentada, e, aqui, apresentei como uma grande narrativa acerca das
experiências destes sujeitos, atores e autores. Assim, finalizarei contando algo que consta nas
minhas lembranças de infância, mas não só nas minhas... Antes, porém, permitam-me
retornar ao relato de Beatriz e comentar mais um pouco sobre o que disseram os entrevistados
acerca de ra, preconceito e discriminação racial.
Ser decente, como afirmou Beatriz, aparece como condição para que o negro possa
entrar e sair de qualquer lugar, bastando seu próprio esforço, até porque, hoje, as coisas
parecem estar diferentes (mais fáceis?) já que estão reconhecendo que o negro é gente e
inteligente. Outro aspecto que pode ser destacado deste depoimento é que a informante
demarca uma diferença entre o antes, que parece ser o do seu passado, e o momento atual. A
diferença entre o primeiro e o segundo momento, estaria assentada no atual reconhecimento
do valor do negro, mas do negro decente. É possível aqui observar o alcance de certas
ideologias, como indicado por Motta-Maués (1997) e Maggie (1996), que procuravam incutir
nos negros o desejo de se igualar ao branco, vencer os cios da raça negra, tida como
inferior. Não foi à toa, aliás, que Beatriz, ao retraçar sua história de vida, procedeu de uma
forma a ressaltar os aspectos morais que nortearam sua vivência como mulher negra.
As diversas situações que relatou, identificadas por ela como os “bons pedaços” que
teve que enfrentar na vida, no trabalho, foram apontados como fruto do racismo de que todos
os negros são vítimas, e as mulheres de forma mais específica e se negras, pior ainda.
Então, é deste lugar que ela se pronunciou: como uma mulher negra, trabalhadora, decente,
que já passou por uns “bons pedaços”, não havendo menção à discriminação por ser mulher
negra identificada como barbadiana. Sua facilidade de lidar com a situação ao ser perguntada
sobre racismo e preconceito, pode ser explicada pelo fato de que foi uma das entrevistadas
numa pesquisa sobre racismo e ascensão social das famílias negras em Belém, através da
escolarização; algo, aliás, que comentei no segundo capítulo, quando apresentei as famílias.
Passemos ao relato de outro entrevistado, também da segunda geração. Agora é a vez
de James Burnett:
(...) eu posso relatar algo que eu não contei nem para a Lucy... Quando eu
estudei (...), eu gostava muito de aritmética e geometria, e estudava bastante,
165
tinha prazer. De formas que eu acabei me destacando. Ia ter uma seleção, eu
não sei direito, mas o diretor da escola tinha que indicar dois alunos da
escola para irem-na representar. Ele, sabendo de mim, do meu desempenho,
logo me indicou. Eu e mais outro aluno. Quando fomos colocados na frente
do secretário [de educação?] este olhou pra mim e disse: este não. E pronto.
Não pude participar. Eu, na época, fiquei assim, não entendi. Depois de
muito tempo, e refletindo, observando outras coisas, cheguei à conclusão
que era porque eu sou negro.
265
Aqui, o preconceito racial, enquanto uma “crença prévia (preconcebida) nas
qualidades morais, intelectuais, físicas, psíquicas ou estéticas de alguém baseada na idéia de
raça”,
266
leva à discriminação, “o tratamento diferencial de pessoas baseado na idéia de raça,
podendo tal comportamento gerar segregação e desigualdades raciais (Guimarães, 1998:
17). Assim, o aluno que se destacava pela inteligência e empenho, foi “barrado”,
discriminado, por sua cor/raça e, no excerto, Burnett reconhece isto, ao mesmo tempo em
que ele se afirma como negro, sem reserva “(...) era porque eu sou negro”. O fato daquele
episódio ter se dado em uma situação de competição apenas acrescenta mais um elemento à
trama, reconstituída pelo entrevistado como um segredo, algo que ele só pôde entender
tempos depois do acontecido, e que deveria ficar sem exposição, não se devendo, neste
sentido, nem comentar o nome daquele que discriminou.
O segredo, algo recorrente em nossas relações, a ponto de muitas pessoas afirmarem
que nunca foram vítimas de discriminação racial, embora conham tantos outros que sim.
Não seria este mais um aspecto da invisibilidade positiva de que trata Motta-Maués (1999), no
sentido de que não se fala no problema, logo ele não existe; o problema racial não existe, o
negro, por tabela, também não? Mas este não parece ter sido o caso de James, afinal, o
segredo foi contado, possivelmente, para indicar o entendimento ou a consciência do
entrevistado quanto às questões raciais, de que ele procurou não se isentar, como um negro,
professor, filho de negros... mas nenhuma referência de tratamento diferenciado relacionado a
uma identificação como barbadiano, reforçando a idéia de que era uma identificação da
primeira geração. Outro aspecto que posso destacar, ao nível ideológico, acompanhando
alguns autores (Hasenbalg, 1996) é que, a despeito da discriminação racial se constituir como
um obstáculo para ascensão social do negro, o indivíduo, se for esforçado”, consegue
reverter isto ao seu favor. De fato, James, tornou-se um excelente professor de inglês, ainda
hoje lembrado por suas aulas, seu carisma, seus todos. Usar músicas para ensinar inglês
265
James Burnett, em entrevista realizada em 30 de outubro de 2004.
266
Cf: GUIMARÃES, Preconceito e Discriminação. Queixas de ofensas e tratamento desigual dos negros no
Brasil. Salvador: Novos Toques, 1998, p. 18.
166
era algo inusitado na década de sessenta, por exemplo, mas James usava e cativava os
alunos.
267
Quanto às irmãs Scantlebury, ao serem perguntadas se alguma vez se sentiram tratadas
de forma diferente por serem negras, as entrevistadas apresentaram-se receosas; certa demora
nas respostas parecia evidenciar uma ponderação sobre o que deve e o que não deve ser dito
sobre racismo, preconceito, discriminação, revelando o jogo da memória, através do silêncio.
As respostas: “sempre teve” e, de outro lado, “eu o sei”. Entre negar e admitir. Parecia
melhor remeter a algo que, de alguma maneira, colocava as duas sob certo distanciamento:
[Preconceito, discriminação] Sempre teve! Sempre teve. [silêncio longo]. ...
E não esqueço nunca, eles [os norte-americanos encampados (sic) na Base
Aérea de Belém, aquando da Segunda Guerra Mundial] disseram: a melhor
coisa que eles deixaram eram as telefonistas... Porque falavam duas
línguas.
268
Ah! Eu não sei [se havia discriminação com as negras na Base Aérea] minha
filha, porque a nossa estação era separada. [o setor das telefonistas] era do
outro lado do campo.
269
No primeiro enunciado, admite-se o preconceito. O valor delas, para os americanos da
Base Aérea, residia no fato de que falavam duas línguas: a inglesa e a portuguesa. Como
negras, a priorio teriam sido pensadas para assumir aqueles postos. Mas, como a demanda
era maior que a oferta... Mesmo revelando o preconceito existente, de pronto a locutora
remete a uma positividade, elas sabiam muito bem o inglês, “(...) senão tu achas que eles iam
dar lugar pra neguinhas? É... o pessoal é esse negócio, né. É, mas quando eles chegaram,
quando a Base Aérea chegou, eles não sabiam lidar com aquele negócio todo. Aí, nós fomos
ficando.”
No segundo excerto, a negação, o ocultamento: “Ah! Eu não sei [se havia
discriminação com as negras na Base Aérea] minha filha, porque a nossa estação era
separada”. Mudando de assunto, a informante passava a descrever o local de trabalho das
telefonistas.
267
Informação transmitida, informalmente, por um professor de ensino dio em Belém, ex-aluno de James
Burnett.
268
Lilian Scantlebury, em entrevista realizada no dia 2 de novembro de 2004.
269
Alice Scantlebury, no contexto da mesma entrevista.
167
Entendemos que as posturas das entrevistadas, seus receios, pausas, certo
distanciamento ou mesmo silêncio acerca de suas experiências no ambiente de trabalho,
podem ser explicadas, como afirma Pollak (1989), pelo fato de que as lembranças
transmitidas pelos indivíduos, tal qual os discursos oficiais, sofrem clivagens, posto que
definem o lugar social daquele que fala, suas relações com os outros, construindo a imagem
de si, para si e para os outros, daí os filtros da memória. O que é válido não só para as irmãs
Scantlebury, mas também para todos os entrevistados. Por isso, no momento da entrevista, até
os bloqueios dos informantes, quando estimulados a tratar de assuntos como racismo, são
pertinentes para a análise pois, mais do que “brancos da memória”, revelam a preocupação do
informante quanto a utilidade de se falar sobre certos temas, a dúvida se os outros o
compreenderão. Alice e Lilian, quanto à questão aqui discutida, não mencionaram nada a
respeito de serem barbadianas ou filhas de barbadianos. O silêncio sobre si próprio aparece,
neste sentido, como uma alternativa, diferenciando-se, portanto, de esquecimento.
E o que teria a dizer Nicholas Chase, um “homem da sociedade”, um “branco
pintado”, como ele gosta de repetir? Ele contou um pouco sobre sua família, desde o tempo
do avô, negro (ou como disse o informante, “moreno”), barbadiano/inglês, afirmando que a
discriminação existe, ela até pode ser racial, mas seria, fundamentalmente, social:
(...) Não, naquele tempo não havia discriminação. Ele [avô Dudley] seja
moreno, era da alta sociedade. É, sem dúvida. (...) Eu vou lhe dizer. Depois
que já teve um determinado padrão financeiro, né, não tem problema
nenhum. Agora com o pobre é que tem. é que tá... Eu acho que é assim.
Agora eu acho que a herança que me deixaram, tanto da minha mãe, como
do meu avô, como meu pai, pra mim foi em questão de caráter. E tenacidade
para a luta na vida.
[Meu pai] não teve problema. Tanto que ele casou com a minha mãe que é
ariana pura. Você aqui, olhando para essa fotografia você vê. Você vê
que ele vivia num estado financeiro bem elevado.
270
Dois aspectos se destacam neste excerto: primeiro, a relação entre discriminação racial
e classe, segundo, a questão da miscigenação. Para Nicholas seu avô é um moreno, assim,
não era um negro, era alguém misturado (atenuado? branqueado?), que tinha posses, “era
da alta sociedade”, tanto que acabou casando com uma inglesa, teve seus filhos no Brasil, que
Nicholas denomina de “segunda mistura”, até nascerem os netos. Seu “padrão financeiro”
alto o isentaria de discriminação racial, ao contrário do moreno” que fosse pobre. Este
270
Entrevista com Nicholas chase, realizada em 1/ de setembro de 2005.
168
aspecto é muito recorrente na forma como se dão as relações no Brasil, bem como nas
análises sobre as mesmas, no sentido de que discriminações assentadas no racismo (enquanto
doutrina que hierarquiza grupos e pessoas através da idéia de raça), seriam, mais propriamente
causadas por questões de classe, situação econômica, status, como quer que se considere
certas distinções econômico-sociais (Guimarães, 2002). O que, sem dúvida, é mais um
aspecto da invisibilidade, como aqui referi, na medida em que o racismo existente passa a ser
negado.
Quanto à questão da miscigenação, ela fica clara neste excerto:
Sempre houve discriminação contra o preto, né. Pois, ninguém quer ser
preto. Agora ele [avô] sai, já houve a primeira mistura lá. E meu avô já veio
para de lá, já de Londres, não veio de Barbados. Ele deve ter ido de
Barbados pra Londres e de Londres ele já veio com o chefe pra cá. E aqui já
meu pai foi pra Europa, e já casou com a minha mãe, que é ariana pura.
271
O avô já tinha vindo “misturado” desde Londres, casou, teve filhos morenos, um deles
casou com uma “ariana pura” (Fotografia 20). Há a indicação de uma formulação das
diferenças assentadas na idéia de raça, de pureza racial e de misturas, miscigenação,
apresentadas pelo entrevistado como evidências de que o preto pobre é quem acaba sendo
discriminado. Já os “misturados”, e misturados com os tipos puros superiores.. Parece até um
tratado “científico” do início do século XX. Ou, o que é importante de se destacar: o será
esta uma idéia ainda usual para explicar as diferenças raciais no Brasil?
271
Entrevista com Nicholas chase, realizada em 1/ de setembro de 2005.
169
Fotografia 20
Dudley Chase, barbadiano, com seus dois netos. “Estes já são da terceira
mistura” (Nicholas, Chase)
Fonte: Acervo de Nicholas Chase
170
Para o informante a miscigenação não levou apenas ao branqueamento tal como
revela ao falar de sua cor branca pintada”, fruto das misturas na família mas também à
transmissão de características morais elevadas, ou elevadoras do caráter, daí mencionar que
herdou a “tenacidade para a luta na vida”, o que permite ao informante reconstruir o sentido
da história de sua família. Afinal, no trabalho da memória, “(...) um desejo de explicação
[que] atua sobre o presente e sobre o passado (...) integrando suas experiências nos esquemas
pelos quais a pessoa norteia sua vida” (Bosi, 1979: 419). Assim, Nicholas pôde explicar
como a família foi do “tempo áureo” às “vacas magras”, mas, em seguida, se recuperou
novamente, desta vez pelo empenho das tias na educação de Nicholas e Octávio Chase, o
desempenho deste dois e, em seguida, o sucesso dos mesmos pelo trabalho, como
engenheiros.
Todos os entrevistados até aqui mencionados, quando referiram à questão da
discriminação racial não comentaram acerca da identificação barbadiana, para si ou para seus
ancestrais. Quem acabou quebrando o silêncio”, foi Lili Skeete, no que foi acompanhada
pela filha, Liliana.
Das histórias contadas por Lili Skeete, muito me chamou a atenção o que ela contou
ao ser perguntada sobre sua juventude. Segundo ela, a situação dos barbadianos e dos seus
filhos em Belém era tensa, pois “(...) naquele tempo, os barbadianos não eram bem vistos
aqui”, ao que Liliana completou: “(...) eles eram hostilizados porque eram ingleses e não
podiam ficar assim na evidência, porque o povo de antigamente era muito atrasado. Então, se
eles iam passando na rua, eles apedrejavam, apelidavam [Lili, demonstrando como eram
apontadas nas ruas, sob gritos: ´Barbadianos, barbadianos!`]”.
272
Para Lili, o fato de ser apontada na rua como barbadiana se dava “por causa da
guerra”, que, segundo ela, as pessoas “(...) não gostavam de ingleses. Acho que era [por
isso], que chamavam a gente de barbadiana, a gente não tinha nada com barbadianos, os
nossos pais. Mas nós sofremos muito... Era os estudantes que apedrejavam”.
O primeiro ponto a ser ressaltado, no relato, é que Lili Skeete acaba se colocando
como testemunha de um tempo, através de uma “memória coletiva”, ao mencionar o contexto
de guerra, uma memória que (...) se desenvolve a partir de laços de convivência familiares,
escolares, profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica,
272
Entrevista com Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
171
diferencia, corrige e passa a limpo”, isto no sentido de que a informante remete, pelo que pude
analisar da entrevista, ao contexto da Primeira Guerra Mundial, que terminou justamente no
ano em que Lili nasceu (1918), mas, sendo contado por sua mãe, acabou se apropriando deste
passado (Bosi, 1979: 415). A guerra pode ter acabado quando Lili nasceu, mas ainda houve
os anos do entre-guerras e a Segunda Guerra Mundial, que devem, de algum modo, ter feito
com que fosse atualizada a lembrança de um tempo de guerra, no qual as pessoas nem podiam
pensar direito, como contou Lili.
Entretanto, o aspecto mais interessante a ser destacado é a construção identitária
presente no relato: Lili efetivamente vivenciou a experiência de ser apontada e chamada
(“xingada”) na rua como barbadiana. Mas a explicação que foi buscar para isso encontra-se
no outro e no mesmo. As pessoas odiavam os ingleses. Os barbadianos eram ingleses. Por
isso, também sofriam com o ódio das pessoas “atrasadas”, como definiu Liliana. Do que se
depreende que: 1) as pessoas sabiam identificar um inglês; 2) as pessoas consideravam os
barbadianos como ingleses; 3) brasileiros, filhos de barbadianos, como Lili, também eram
identificados como barbadianos.
Mas porque gritavam barbadianos! Barbadianos! E não: ingleses! Ingleses!? Para Lili
Skeete, é porque os barbadianos eram ingleses, que ingleses pretos, eram os “miúdos.
Toda a carga negativa, estigmatizante, se é possível concluir desta maneira, estava no fato de
serem “pretos”, “negros” ou “morenos”, conforme as diferentes atribuições presentes nos
relatos, todos em oposição aos brancos, ingleses. Mas também demarcando-se as distâncias
frente às pessoas de Belém, em seus mais diferentes matizes.
E como estas distinções eram operadas? Através dos mesmos símbolos que, de outro
modo, apresentavam-se como símbolos de prestígio: a língua inglesa, as roupas... o uso de
chapéu pelas mulheres. Acrescentando-se, é claro, a religião e igreja anglicanas, os costumes,
e por vai. Tudo o que fazia com que alguém que “(...) não tinha nada com barbadianos,
os nossos pais”, como afirmou Lili, ficasse “em evidência”, acabava por se tornar um símbolo
de estigma.
Deste modo, ficar em evidência significava, do que se pode apreender dos relatos,
denunciar-se como barbadiano, através, por exemplo, do modo de falar e da vestimenta
utilizada, estes apontados por Barth (2000) como sinais manifestos da identidade, que as
pessoas exibem em situações de interação ou conflito.
172
Vejamos a questão da língua, enquanto um “sinal manifesto de identidade”: Lili
contou que...
Se começasse a falar em português era respeitado. Se fulano passasse, se
eu dissesse, se eu não falasse: Bom dia, em inglês, Good Morning... em
inglês, chegava em casa e ainda fazia queixa pra mamãe, a gente apanhava.
A gente tinha medo porque se a gente falava em inglês, eles: “Olha a
barbadiana! Olha a barbadiana!
273
O comportamento em público dos identificados como barbadianos era fundamental no
sentido do controle da informação social ao seu respeito (Goffman, 1988). Falar em
português configurava-se como forma de proteger-se de um rótulo indesejável, porque
indicador de um lugar social subalterno, e, se posso chegar a tanto, racialmente inferiorizado –
pois acredito que a aproximação com a situação de pretos, e pretos estrangeiros, é que pesava
como negativo para as pessoas assim identificadas. Lembremos do relato das irmãs
Scantlebury, do esforço de sua mãe em aprender o português, comunicar-se nessa língua com
os filhos e, assim, se aproximar “dos costumes do brasileiro”.
O que acabei de comentar acima, encontra-se claro neste trecho do relato de Lili:
(...) A maior parte dos ingleses aqui eram brancos, né? Era o gerente da
Pará Eletric, gerente do banco... só branco falavam inglês (sic). Quer dizer,
quando os pretos começaram falar inglês, eles achavam que a gente não
podia falar inglês.
274
Neste momento, é evidente que Lili Skeete se identifica como preta, preta que falava inglês, portanto,
mesmo sendo brasileira como os outros”, não era como “eles”; eles os brasileiros, belemenses eram o
mesmo e o outro de Lili. Fico imaginando a cena: Lili encontrando um inglês, branco, tendo que cumprimentá-
lo em inglês, como um sinal de respeito, mas, ao mesmo tempo, sendo observada pelas outras pessoas que, ali,
podiam gritar: barbadiana! Barbadiana! Entre ser xingada” na rua e apanhar quando chegasse em casa... o que
fazer? Lili, como outras conhecidas de mesma situação, preferiam, muitas vezes, não falar.
A gente se desgosta. Muitas, muitas, muitas de nós deixava de falar por
causa disso, questão social. Não falei pra não saberem, né. Precisavam da
gente [para traduzir o inglês, nas situações cotidianas], eles faziam pouco:
“Olha a barbadiana! Ê barbadiana! Ê barbadiana!”. Essas barbadianas
antigas gostavam de um chapeuzinho, botar na cabeça... aí mesmo que
eles...
275
273
Entrevista com Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
274
Entrevista com Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
275
Entrevista com Lili Skeete, realizada em 15 de novembro de 2005.
173
Mas não a língua. A vestimenta também. Caberia lembrar que o vestuário é da
esfera pública, e neste contexto é que atua para o bem ou para o mal, ao contrário, por
exemplo, da roupa de cama, mesa e banho estes, da esfera íntima (Perrot, 1989: 14). A
partir desta consideração, posso retornar à imagem de Lucy no culto da IEAB, bem como de
outras barbadianas, e à afirmação inicial sobre o uso do chapéu, peça ainda importante do
traje das mulheres naquele contexto de meados do século XX, mas do qual declinaram na
atualidade. As razões deste declínio o apontadas por Lili. Segundo ela, Una Charles, sua
mãe, era uma mulher muito elegante e vaidosa, que sempre usava chapéu, mas que “(...) teve
que deixar”. Mas, porquê? “Porque o povo ficava perturbando ela, ela deixava de usar o
chapéu”. Ao que Liliana completou: “Perturbando: ‘Olha, vai Diana” [barbadiana]”. Do
chapéu ao turbante, este era o costume entre elas. As brancas de chapéu passavam
despercebidas, mas as negras... Assim, era negra, de chapéu, nem precisava falar nada (isto é,
revelar seu idioma inglês) facilmente seria identificada como barbadiana e, assim, hostilizada.
O vestir é a reprodução da condição social e da visão de mundo. O vestir
reproduz o que somos ou que gostaríamos de ser. Através das vestes
expressamos as nossas posturas sociais, culturais e os momentos históricos.
Cada povo ao seu tempo vestiu-se das suas realidades e dos seus sonhos
276
Desta afirmação sobre o vestir e sua função de identificação, posso remeter a outros
comentários de Nilza Menezes (2002) que, mencionando o contexto da presença das mulheres
barbadianas em Rondônia, encontrou, em meio às fontes relativas à Estrada de Ferro Madeira-
Mamoré, registros fotográficos nos quais chamam a atenção, pelo modo de vestir-se, as
“barbadianas, negras caribenhas que chegaram em Porto Velho por volta de 1912”. Segundo
ela, “[N]as fotos oficiais da ferrovia são apresentadas como enfermeiras e lavadeiras. Elas
foram observadas e comentadas pelo uso do chapéu, hábito britânico que trouxeram para a
floresta e que preservaram, sendo assim registradas e lembradas”. De fato, como inclusive
lembra a autora, Mário de Andrade (1976: 152) registrou em seu diário de “turista aprendiz”,
que “(...) Mulher do povo e de chapéu, sabe, é barbadiana. (Andrade,1983), isto quando
esteve visitando Porto Velho e Guajará-Mirim em 1929.
Barbadianos daqui e de lá. Entre os ingleses e os brasileiros, entre as línguas inglesa e
portuguesa, entre as religiões anglicana e católica, entre pretos e brancos. Fico refletindo
sobre este entre-lugar... e sobre os relatos de Stuart Hall (2002), que nasceu jamaicano e
276
MENEZES, Nilza. “Rondônia: vestida para tirar fotos”. In: Revista Eletrônica Primeira Versão, Ano i, n.
113, setembro. Porto Velho, 2002. Disponível on line: http: //www.unir.br/~primeira/artigo113.html; acesso em:
12 de setembro de 2005.
174
inglês, pelo estatuto colonial britânico (de novo!), que o se sentia e não era visto como um
inglês, como a mãe dele desejava que fosse, nem pelos da sua terra natal, nem pelos ingleses,
mais ingleses que ele, da Grã Bretanha, para onde teve que migrar, por vontade de sua mãe de
que o filho estudasse num verdadeiro colégio inglês... tempos passando sem sentir-se parte
nem de um lado, nem de outro. Este o foi precisamente o caso de Lili Skeete, afinal ela é
brasileira... mas a condição ou a situação de sentir-se ou de estar entre o daqui e o de alhures...
Antes de concluir sem uma conclusão, quero lembrar algo que pode ajudar a pesar e
pensar mais e melhor sobre os relatos de Lili Skeete, a dona Lili, aquela que é parte da
segunda geração de imigrantes negros do Caribe, que lavou, passou e cozinhou para
estrangeiros, que casou com um filho de barbadianos, que foi filha de uma barbadiana junto
com um indiano..., e que sentiu-se estrangeira em sua própria terra. É hora de lembrar, uma
vez mais.
“Lá vem a barbadiana!...”
Num dia, quando estava apresentando um trabalho que fiz sobre esses assim chamados
barbadianos, a partir dos relatos de seus descendentes, como parte da pesquisa que desenvolvi
no mestrado em Antropologia, um dos estudantes do Centro de Letras, que participavam da
sessão do mesmo encontro científico, fez uma intervenção, na qual sugeria que eu
investigasse a história da “velha barbadiana da Marambaia”, que andava pelas ruas daquele
bairro de camadas populares em Belém, na década de 1970.
277
Não fui atrás, na verdade não precisei ir atrás, da “velha barbadiana da Marambaia”,
uma vez que o relato feito naquele contexto remetia à mesma pessoa que figurava em meio às
minhas lembranças de infância no mesmo bairro da Marambaia, entre as décadas de 1970 e
80, quando, tal qual as outras crianças que brincavam pelas ruas, sobretudo à noitinha,
ouvíamos nossas mães falarem em tom ameaçador: “lá vem a velha barbadiana”.
Interessante o jogo do lembrar e esquecer. Foi preciso aquele rapaz relatar este caso
para que eu recuperasse algo que estava meio escondido no fundo do baú da memória. De
fato, no final da tarde, pela rua da Mata, onde morei a maior parte de minha infância, passava
uma senhora negra, de olhar rebaixado, meio desconfiado, caminhando lentamente,
277
Sobre o trabalho por mim exposto, o mesmo intitulava-se: “Barbadianos em Belém, a partir da memória de
seus descendentes”, tendo sido apresentado no XII Encontro de Ciências Sociais – CISO, na UFPA, em abril de
2005.
175
certamente já contando que, quando a viam, as crianças corriam e gritavam: “Olha a
babadiana, assim mesmo, “engolindo” o “r”. o sabíamos o que ela tinha que nos
ameaçasse (porque era estrangeira? porque falava diferente?
278
ou porque passava sem falar
nada?, não sei... não consigo lembrar), além do tom com que nossas mães se referiam a ela,
utilizando isto para reprimir nossas andanças pela rua. Nem sabíamos o que era “babadiana”,
ou barbadiana, nem mesmo as mães deveriam saber ao certo a que tal nome remetia, sendo
este termo tomado, simplesmente, como o nome ou apelido da velha senhora. Era o que eu
podia, pude lembrar, pensando como criança.
Fui, então, dia desses, perguntar à minha mãe, fazendo dela, então, minha informante.
O que ela me contou é que havia, naquela mesma rua, um casal de pretos velhinhos que eram
barbadianos, “barbadianos de verdade”, como ela frisou. Fiquei pensando, como assim?
Porque eram diferentes, ela me disse. Diferentes? Não porque fossem pretos já que, como ela
fez questão de destacar, “preto por preto, tinha muito por aqui”. Explicou-me, então que
sempre passavam pela rua, às vezes junto com uma criança brasileira, criada por eles, sendo
que os idosos vestiam roupas diferentes, falavam diferente, e era por isso que as pessoas
sabiam o que eram. Eles falavam de um jeito que ninguém entendia. A senhora foi descrita
por suas saias e bolsas de materiais que não se tinha, ou não se via costumeiramente por aqui,
sempre carregando no braço uma sombrinha, e usando panos na cabeça, “aqueles panos
diferentes, bonitos”. Passavam de mãos dadas pela rua, sendo observados pelos olhares
curiosos das pessoas. Perguntei, então, porque as mães metiam medo nas crianças? Eu, pelo
menos, fiquei com a visão de uma mulher que nos podia fazer algum mal. Minha mãe, então,
meio acanhada e sorridente, disse que as mulheres chamavam as crianças para observá-los
porque “eram diferentes”... por isso diziam para as crianças “lá vem a barbadiana”, como se a
figura da mulher chamasse mais atenção, talvez porque reunia mais elementos ou sinais
identificadores dos barbadianos.
Curioso também de notar é que, quando estava escrevendo esta dissertação, um
certo professor do ensino médio em Belém, ao ver as fotografias aqui contidas, e saber do seu
tema, logo disse: “sabe quando eu perdi o medo de barbadiano? Quando entrou, na minha
sala de inglês, no Cogio Naza, o professor James Burnett”, ressaltando bem a pronúncia
deste nome, tal qual o fez James quando fui entrevistá-lo. Disse que ele era um excelente
278
Numa conversa informal com um antigo morador do bairro da Marambaia, Aquiles Corrêa Cadete, o mesmo
disse conhecer uma família de barbadianos daqueles lados”, referindo-se às ruas que cortam” a Rua da Mata,
onde morei; o mesmo descreveu as pessoas da mencionada família como pessoas que falavam diferente, “tudo
atrapalhado”, “uns pretos”, “estrangeiros”. Conversa com Aquiles Corrêa Cadete, em 13 de julho de 2005.
176
professor, que dava aulas com músicas, e que contava coisas sobre os barbadianos. Pelo que
contou, pode ser notado, então, que não na Marambaia, mas tamm no centro da
cidade, como se encontra a Rua dos 48, onde mora este ex-aluno de Burnett, há esta referência
de barbadiano como figura usada para meter medo em crianças, por que seriam diferentes... E
os meus outros informantes, nem o próprio James, em nenhum momento mencionaram coisas
deste tipo. Não é isto que deve ficar na memória...
Enfim, hoje, passados tantos anos, depois de tudo que li e ouvi acerca de tais
barbadianos, especialmente quando me deparei com o relato de Lili Skeete, das vezes em que
era ameaçada por pedras e mangas atiradas nelas e nos seus conhecidos, por estudantes nas
ruas, fico atinando para o fato do etnocentrismo, do preconceito e da discriminação racial
serem coisas que se aprende, também, em casa, e que se manifestam através de gestos
agressivos como gritar, jogar pedras e frutas em alguém, ou mesmo de uma violência
simbólica, não expressa propriamente em gestos, tal como definida por Pierre Bourdieu a
violência que encerra as relações de força entre uma classe (ou fração de classe) e outra, de
forma reconhecida ou ignorada, reveladora de um poder simbólico (que está em toda parte, é
invisível e que constrói a realidade estabelecendo um sentido imediato para o mundo).
279
Violência evidenciada quando alguém é apontado na rua porque falou diferente, porque é tido
como um diferente que, por isso, atrai e atemoriza, como bem lembrou Carlos Rodrigues
Brandão:(...) atrai e atemoriza. É preciso domá-lo e, depois, é preciso domar no espírito do
dominador o seu fantasma: traduzi-lo, explicá-lo, ou seja, reduzi-lo, enquanto realidade viva,
ao poder da realidade eficaz dos símbolos e valores de quem pode dizer quem são as pessoas e
o que valem, umas diante das outras, umas através das outras...” (Brandão, 1986, p. 7).
Aquela velha negra não espantava criancinhas, não ameaçava ninguém, mas sua presença, sua
figura de negra diferente das outras, sua origem, fisionomia, fala e/ou cultura revelavam-se
como o outro que atemoriza, que deveria ser compreendido e dominado. Pode ser tudo isso e
pode ser mais: pode ser que ela seja também o espelho através do qual eu ou você, leitor,
puxemos pela memória, nos percebamos e entendamos nossos próprios preconceitos, afinal
“(...) o outro reflete a minha imagem espelhada e é às vezes ali onde eu melhor me vejo”
(Brandão, 1986, p. 7).
279
Cf: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. São Paulo, Difel, 1989.
177
REFERÊNCIAS
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Diário de campo
Entrevistas:
James Skeete, em 03 de setembro de 2004.
James Burnett, em 30 de outubro de 2004.
Alice Scantlebury, em 2 de novembro de 2004.
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Beatriz White, em 1° de dezembro de 2004.
Tatiana Deane de Abreu Sá, em 10 de janeiro de 2005.
Nicholas Chase, em 1° de setembro de 2005.
Lili Skeete, em 15 de novembro de 2005.
Liliana Skeete, em 15 de novembro de 2005.
Conversa informais:
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183
APÊNDICE
1. Roteiro das entrevistas
280
Não produzi entrevistas dirigidas, no sentido da seqüência de um roteiro pré-
estabelecido, operei aparentemente sem roteiro, mas de alguma forma conduzindo os
informantes a discorrerem sobre determinados temas, entre eles:
1. As origens familiares: genealogia (dados gerais sobre os parentes conhecidos).
2. Histórico geral dos pais, mudanças de residência da família, irmãos (idades, escolaridade,
carreiras, casamento, filhos, contato com irmãos).
3. Histórico pessoal: escolaridade, empregos, lazer.
4. Formas de sustento da família.
5. Experiências no ambiente de trabalho.
6. Namoro e casamento.
7. O que é ser barbadiano. Por quem e de que modo é atribuído.
8. Relacionamentos com barbadianos: parentesco, amizade, vizinhança
9. Participação em igrejas, como a anglicana.
10. Idéias, expressões, relatos sobre preconceito e racismo.
280
Roteiro adaptado de BOTH, Elizabeth. Família e Rede Social. Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1976,
pp. 223-230.
184
2. QUADRO: FAMÍLIAS BARBADIANAS EM BEM, A PARTIR DOS INFORMANTES
NOME, FILIAÇÃO,
ANO DE
NASCIMENTO
ORIGEM
CHEGADA
EM
BELÉM/
IDADE
ATIVIDADE
BAIRRO ONDE
MORA
FONTE
BURNETT
James Burnett (1921-2005)
James Christopher
de Coursey
Burnett (1877-
1948)
Carlota Alberta
Burnett (c. 1884-
1966);
Belém
Barbados
Barbados
c. 1910, ?
Idem
Funcionário dos Correios e Professor de
Ings
Funcionário da Pará Eletric
Do lar
São Brás
Entrevista
feita em
30/10/04
CHASE
Nicholas Chase (1927)
Ellis Chase
Rosl Chase
Avós Paternos:
Dudley
Elias Chase
(1873-1931)
Josephi
ne Chase
Belém
Belém
Áustria/Alem
anha
(Anschluss)
Barbados
Inglaterra
1925
1900?
1900?
Engenheiro, aposentado
Comércio [negociante de exportão de
borracha, com o pai]
Do lar
Vice-gerente de firma de exportação de
borracha
?
Naza Entrevista
feita em
01/09/05
DEANE
Tatiana Deane Abreu Sá (c.
1951)
Benedito de Abreu
Sá
Dolly Deane de
Abreu Sá
Avós Maternos:
Leonar
d Eustace
Deane
(1884-1956)
Helvéci
a de Melo
Deane
(1891-?)
Belém
Piauí
Belém
Barbados
Belém
Década de
1910, ?
Pesquisadora, agnoma, Chefe Geral da
EMBRAPA/Pará
Contador e administrador da Port of Pará
Estudante de Direito em Belém ?
?
Pedreira
Entrevista
feita em
10/01/05
SCANTLEBURY
Lilian Scantlebury (1920)
Alice Alicida
Scantlebury (1922)
Robert
Scantlebury (c. 1890)
Florence (Flora)
Scantlebury (c. 1890-?)
Santarém
Belém
Barbados
Barbados
c. 1921, 1 ano
década de
1910, ± 20
anos
Idem
Florista;
Costureira; e ambas foram telefonistas da
Base Aérea de Belém, durante a II Guerra
Mundial; aposentadas
Marinheiro em navios ingleses ;
implantão de cabos telegficos
Do lar
Telégrafo
Idem
Entrevista
feita em
02/11/04
185
SKEETE
James Skeete (1952)
Robert Skeete (c.
1910)
Beatrice (Alberta)
Skeete (c. 1912)
Belém
Santa Lúcia
Belém
c. 1934, com
24 anos
Contador; alito da Igreja Anglicana em
Belém
Funcionário da Pará Eletric
assentamento de trilhos para bondes;
professor de inglês
Professora de ings, dava aulas em casa.
Batista Campos
Entrevista
feita em
03/09/04
SKEETE
Liliana Odélia Skeete (1939)
Jo Oscar Skeete
Lili Skeete (1918)
Avó Paterna:
Mabel
Skeet
e
Avós Maternos:
Joseph
Victor
Charles
Una
Long
Belém
Belém
Belém
Barbados
Índia
Barbados
c. 1908
?
1910/20?
Contadora; professora, aposentada
Almoxarife da Pan Air
Prestou serviços para a Pan Air
Governanta dos Mc Clayd
Instalação de bondes
Governanta na casa de ingleses
Fátima
Entrevista
feita em
15/11/05
WHITE
Beatriz White (1922)
Joseph White e
Louise White
Belém
Barbados
Barbados
?
?
Tradutora/assessora de um comandante
norte-americano na Base Aérea de Belém,
na Segunda Guerra Mundial; serviço de
saúde (puericultura), aposentada
Caldeireiro
Do lar
Cremação
Entrevista
feita em
01/12/04
186
3. OS BARBADIANOS NO CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO BELÉM DOS IMIGRANTES
Fonte: ARRAES & FIGUEREDO, 2004.
187
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