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ELISA FRANCA E FERREIRA
O HOMEM, A ALMA E O VIVENTE: A DEFINIÇÃO DO
HOMEM NAS ENÉADAS DE PLOTINO
Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Linha de Pesquisa: História da Filosofia
Orientador: Leonardo Alves Vieira
Belo Horizonte- MG
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas- UFMG
2009
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Leonardo Alves Vieira, pela grandiosa dedicação à minha pesquisa, desde
o início da graduação, por nosso estudo frequente. A ele, minha imensa gratidão pelo auxílio
fundamental e decisivo, por sua orientação rigorosa e cuidadosa, um grande privilégio do qual
pude desfrutar; pelo esmero na leitura dos meus textos e na revisão das traduções do grego;
por seu estímulo para o estudo de outras tradições filosóficas além da greco-romana.
Ao prof. Fernando Rey Puente, pela maneira como me despertou para a Filosofia e o estudo
de Plotino.
À profª. tutora do PET durante minha passagem pelo grupo na graduação, Lívia Guimarães,
pelos incentivos à pesquisa.
À profª. Miriam Campolina, por ter me convidado e acolhido em seu grupo de estudos. Pelas
colaborações na pesquisa. À querida Miriam, sempre gentil e atenciosa, pelos encontros
especiais.
Ao prof. Mauricio Pagotto Marsola, pelas importantes contribuições na pesquisa.
Aos meus interlocutores de pesquisa: em especial, à Loraine, pela grandiosa contribuição, as
discussões, o material bibliográfico cedido e as atenciosas leituras, sugestões e observações
aos meus textos; ao Bernardo, agradeço imensamente a revisão da tradução, as discussões e o
material bibliográfico cedido.
À Andréa, secretária do programa da Pós-Graduação, pela prontidão e destreza em nos
auxiliar.
Às instituições e bibliotecas, fundamentais para minha formação acadêmica, UFMG e FAJE.
A Capes.
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Ao meu magnânimo pai, Cid, a quem dedico esta dissertação, pelo amor, puro e
incondicional, e pelos generosos incentivos. A ele, minha eterna gratidão, por tudo.
À minha irmã gêmea Sílvia, “Pequena”, pelo amor e companheirismo, por tudo. Ao meu
cunhado Marcus e à Marlene, sempre presentes. A toda a família.
Aos amigos. Carol, amiga de infância, Paulinha, Aline e Fabiane, amigas de longa data. Juca,
“Criatura”, pelo carinho. Aos amigos mais que especiais, Anderson, Júnia e Maria Helena.
Loraine, querida irmã” gaúcha. Turma da graduação e amigos da Fafich, Daniel Arelli,
Marília, Mônica e Roberta, também Camila, Daniela, Débora, Felipe, Juliana, Juliano, Karina
e Leila, pelos momentos inesquecíveis, como o Simpósio no Caraça e outros; turma da Fale e
os encontros divertidos, em especial, Clara e Manuela, também à Lira, pela revisão do texto.
Aos amigos da Faje, Sérgio e Álvaro.
Ao Govinda, Alexandre, e a Beatriz/ Núcelo Ananda, por tudo que semearam e despertaram
em meu coração. À querida Lúcia/ Núcelo Satya. A todos os alunos. Agradeço muito as
oportunidades e experiências, todo o aprendizado.
À Wiliane, por ter me conduzido ao curso de Filosofia.
A todos que contribuíram de alguma maneira para este trabalho e que certamente reconhecem
meu agradecimento. A todos que estiveram e estão em meu percurso da Filosofia, acadêmica
e extra-acadêmica.
A Plotino.
Se é preciso ousar dizer mais claramente contra as opiniões dos outros,
diremos que nem mesmo nossa alma está completamente mergulhada, mas
algo dela está sempre no inteligível. Mas, se aquilo que está no sensível
domina, ou melhor, se é dominado e perturbado, não nos é permitido
perceber
aquelas coisas que o ápice da alma contempla.
Plotino. Enéada IV 8 [6], 8, 1-6.
RESUMO
O objetivo desta dissertação é discutir a definição do homem nas Enéadas de Plotino.
A pesquisa aborda alguns aspectos da alma individual que se mostraram importantes como
pressupostos. Tentamos compreender a descida da alma aos corpos e analisamos a alma que
sempre permanece no inteligível, separada. Para tanto, esclarecemos a unidade e a
divisibilidade da alma, bem como o direcionamento de suas potências, daquelas que se voltam
para o corpo e das que se mantêm no alto. Assim, o homem é examinado considerando a
união e a separação da alma e do corpo. O trabalho prossegue investigando a articulação do
homem com a alma, por meio da discussão da identidade do homem sensível e a alma
sensível e o lógos, e do homem racional e a alma racional e o lógos, e com o Intelecto, pelo
âmbito da Forma. Quanto à articulação com o sensível e o corpo, o intuito é esclarecer as
distinções entre o homem e o vivente ou conjunto da imagem da alma e o corpo,
compreendendo a atribuição das afecções. Buscando a definição do homem a partir do critério
do inteligível e do sensível, mostramos que, sob a perspectiva do Intelecto, ele é a Forma, sob
a da alma, alma e lógos, sob a do corpo, ele o o é, nem é o vivente, ao qual se atribuem as
afecções. Desse modo, ao oferecer uma leitura de partes do texto plotiniano para a discussão
do tema proposto, este estudo pretende elucidar algumas dificuldades decorrentes da definição
do homem.
Palavras-chave: Homem. Alma. Corpo. Afecções. Vivente.
RÉSUMÉ
L’objectif de cette dissertation est de discuter la définition de l’homme dans les
Ennéades de Plotin. La recherche aborde quelques aspects de l’âme individuelle qui se sont
montrés importants comme préssuposés. Nous tentons de comprendre la descente de l’âme
dans les corps et analysons l’âme qui reste toujours à l’intelligible, separée. Dans ce but, nous
éclairons l’unité et l’indivisibilité de l’âme, aussi bien que l’orientation de leurs puissances, de
celles qui se tournent vers les corps et de celles qui si maintiennent dans le haut. Ainsi,
l’homme est examiné considérant l’union et la séparation de l’âme et du corps. Le travail se
poursuit en investigant l’articulation de l’homme avec l’âme, à travers la discussion de
l’identité de l’homme sensible et l’âme sensible et le lógos, et de l’homme rationel et l’âme
rationnelle et le lógos, et avec l’Intellect, à travers le champ de la Forme. Quant à
l’articulation avec le sensible et le corps, le propos est d’éclaircir les distinctions entre
l’homme et le vivant ou l’ensemble de l’image de l’âme et le corps, en comprenant
l’attribuition des affections. Cherchant la définition de l’homme sous le critère de l’intelligible
e du sensible, nous montrons que sous la perspective de l’Intellect, l’homme est la Forme,
sous celle de l’âme, il est l’âme et le lógos, sous celle du corps, il ne l’est pas ni est le vivant,
auquel s’attribuent les affections. De cette manière, en offrant une lecture de certains parties
des Ennéades pour la discussion du sujet proposé, cette étude prétend élucider quelques
difficultés issues de la définition de l’homme.
Mots-clé: Homme. Ame. Corps. Affections. Vivant.
ADVERTÊNCIAS
Seguimos o seguinte critério da numeração das Enéadas de Plotino: o primeiro
número, em algarismo romano, indica a Enéada de acordo com a edição de Porfírio, de I a VI.
O segundo, arábico, indica a posição do tratado dentro da Enéada, entre 1 a 9. O terceiro,
arábico e entre colchetes, representa a ordem cronológica do tratado. O número seguinte
indica o capítulo, e os dois últimos, as linhas da citação, onde ela se inicia e termina. Por
exemplo, Enéada IV 8 [6], 7, 1-5 deve ser lido do seguinte modo: oitavo tratado da quarta
Enéada, sexto na ordem cronológica, capítulo sete, linhas um a cinco. Essa numeração situa o
tratado tanto na edição de Porfírio como na ordem cronológica. Nas referências a alguma
Enéada, omitimos o nome de Plotino e da obra, optando, pois, somente pela notação
numérica. Por vezes, no corpo do texto, referimo-nos ao tratado na ordem cronológica e, entre
parênteses, sua posição na edição de Porfírio, por exemplo: segundo tratado (Enéada IV 7).
Quanto às traduções das passagens das Enéadas, são de nossa responsabilidade. Foram
consultadas as traduções lusófonas de B. G. L. Brandão para a Enéada VI 9 [9] e de J. C.
Baracat Júnior para as Enéadas I a III. Utilizamos a edição grega de Henry-Schwyzer.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................ 10
CAPÍTULO 1: Aspectos da alma individual
1.1 Introdução..................................................................................................................... 15
1.2 Unidade e divisibilidade da alma.................................................................................. 18
1.3 A descida e a união [da imagem] da alma aos corpos................................................... 27
1.3.1 Enéada IV 8 [6].......................................................................................................... 27
1.3.2 Enéada I 1 [53]........................................................................................................... 35
1.4 A alma que não desce.................................................................................................... 41
1.5 Aspectos das potências da alma..................................................................................... 55
1.5.1 Alma vegetativa e alma sensitiva................................................................................ 58
1.5.2 Alma racional.............................................................................................................. 62
1.5 Conclusão....................................................................................................................... 66
CAPÍTULO 2: A Forma do homem, o homem racional e o homem sensível
2.1 A definição do homem- Enéada IV 7 [2]...................................................................... 68
2.2 A definição do homem- Enéada VI 7 [38]. Lógos e lógoi............................................ 75
2.2.1 A Forma do homem.................................................................................................... 82
2.2.2 O homem racional e o homem sensível...................................................................... 87
2.3 Conclusão...................................................................................................................... 98
CAPÍTULO 3: O homem, as afecções e o vivente
3.1 Introdução..................................................................................................................... 100
3.2 A atribuição das afecções.............................................................................................. 101
3.3 O homem, o vivente e o nós.......................................................................................... 112
3.4 O vivente e a separação do corpo e do sensível............................................................ 123
3.5 Conclusão...................................................................................................................... 126
CONCLUSÃO.................................................................................................................... 128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................. 135
APÊNDICE......................................................................................................................... 141
10
INTRODUÇÃO
Nas Enéadas, deparamo-nos com certa identidade entre o homem e a alma, bem como
com certa separação e distinção entre o homem e o corpo, o homem e o vivente, e entre a
alma e o corpo. O intuito desta pesquisa é discutir a definição do homem, compreendendo
suas articulações com a alma, o corpo e o conjunto desses dois, o vivente. Fazem-se
necessárias, no entanto, algumas observações sobre a palavra definição utilizada aqui. Ela não
se refere a um objeto estático, unidimensional e fechado em si mesmo, mas multifacetado e
multidimensional. Ademais, não pretende ser uma palavra final sobre o homem, mas uma
reflexão sobre sua estrutura ou constituição fundamental. Definição diz respeito a certas
perspectivas tomadas por Plotino a partir dos debates com seus interlocutores, nas quais sua
concepção de homem vem à tona. De acordo com a interconexão dessas perspectivas e esse
sentido preciso, “a definição do homem” é investigada ao longo deste texto.
Mas qual seria um bom ponto de partida? Percebemos que teríamos que investigar
pressupostos fundamentais. No decorrer de nossa investigação, procurando a questão
específica da definição do homem, vimos que seria forçoso desenvolver um exame preliminar
de temas e questões que lhe fornecem bases e a antecedem argumentativamente, isto é, que
geram e consolidam a definição do homem.
Nessa nossa busca incessante pela compreensão do que é o homem para Plotino,
constatamos que algumas dificuldades concernentes à alma individual humana voltavam
insistentemente, o que nos fez manter a decisão de traçarmos a ordem deste trabalho, mesmo
vislumbrando sua amplitude e suas dificuldades. Uma vez que Plotino afirma, de um modo
amplo, que o homem é a alma, vimos que precisaríamos compreender o que é a alma
individual, mais especificamente sua estrutura, isto é, suas partes, funções, potências e
11
faculdades. Também a questão do vivente e sua distinção do homem nos levaram a discutir
alguns pontos sobre a alma, a fim de esclarecermos a união e a separação entre ela e o corpo.
Mas como não abordar tais questões da alma superficialmente, sobrevoando por temas o
caros e complexos? Em virtude disso, a fim de evitar a superficialidade, delimitamos alguns
aspectos a serem examinados e, neles, alguns pontos fundamentais, tentando não perder de
vista nossa questão crucial.
Devido à exigência de percurso que, a nosso ver, o tema nos impôs, fomos conduzidos
a tratar primeiramente da alma, tendo em vista a alma individual, pois notamos também que o
âmbito da alma é base para aquele do homem e ambos possibilitam uma melhor compreensão
do das virtudes. Pode-se dizer que uma convergência desses campos e, até mesmo, uma
superposição. Sendo assim, mesmo que uma pesquisa exija certa separação deles, é mister
ressaltar que eles constituem uma rede complexa em que os fios se interligam. Não incluímos
um estudo mais detido sobre a purificação, mas delineamos e indicamos alguns fundamentos
para tanto.
Tentemos esclarecer a metodologia a partir da qual nosso trabalho foi desenvolvido.
Sabemos da dificuldade de lidar com as Enéadas no que concerne aos diversos temas
abordados, às vezes, em mais de um tratado. Ademais, geralmente, uma questão pressupõe e
implica outra(s), formando um grande e complexo bloco temático, o que gera a dificuldade de
nos concentrarmos em determinados problemas e aprofundá-los em todos os pontos. Em
outras palavras, o pensamento de Plotino envolve questões em que uma converge para outra.
Muitas vezes, Plotino não erige demonstrações evidentes, mas nos apresenta apenas algumas
premissas, lançando a conclusão de súbito.
Nosso percurso por alguns tratados se deve ao fato de que as questões relativas ao
homem não se limitam a um único texto, mas se dispersam coerentemente, apesar de
aparentes incoerências. É claro que esse caminho pode ser problemático em algum momento.
12
Buscando e considerando o contexto de cada tratado, julgamos que procedemos de um modo
adequado. Algumas vezes fomos conduzidos a enveredar por tratados aparentemente sem
conexão direta com nosso propósito a fim de que alguma nota que julgamos importante fosse
registrada. Mesmo na amplitude de alguns tratados, escolhemos alguns pontos relevantes para
nosso tema. Esse talvez não seja o método mais propício, mas, pelo menos, assim nos
mantemos em ressonância com a descontinuidade temática dos escritos, nesse sentido em que
Plotino retoma alguns pontos recorrentemente ou, diríamos, circularmente. Nosso
procedimento é, pois, uma leitura analítica transversal das Enéadas, concentrando-nos mais
em alguns tratados 2 (Enéada IV 7), 4 (Enéada IV 2), 6 (Enéada IV 8), 38 (Enéada VI 7) e
no 53 (Enéada I 1) –, mas, muitas vezes, buscando as nuances do tema em outros.
Outra metodologia que adotamos é sempre considerar a especificidade de cada tratado
e de algumas passagens, mesmo sabendo que dispomos dos textos tais como foram
organizados por Porfírio e não como foram compostos por Plotino. Ainda que Porfírio tenha
dividido alguns tratados e agrupado notas às vezes sem conexão entre elas, apoiamo-nos no
fato de que vemos, por exemplo, uma continuidade ou uma sequência imediata num mesmo
capítulo e entre um capítulo e outro de um mesmo tratado. Se esse não é um método muito
condizente com o arranjo e a edição das Enéadas, pelo menos nos permite ter mais uma chave
de compreensão. Se Plotino delimitou intencionalmente ou não a particularidade de cada texto
ao elaborá-los, não importa tanto. A questão é que não perder de vista a(s) finalidade(s) do
tratado facilita sua análise, bem como sua relação com os outros e seu lugar na totalidade das
Enéadas, a qual não estamos desconsiderando. Apesar de cientes dos problemas da escolha
desse caminho, ele foi uma tentativa de iluminar para nós algo que por si é iluminado, mas
que se mostra obscuro.
A partir do que foi exposto, apresentamos a sequência do presente estudo. O primeiro
capítulo versa sobre alguns aspectos da alma individual. Tais aspectos foram selecionados
13
pela relevância para o esclarecimento da definição do homem. A questão da unidade e da
divisibilidade da alma se impôs como condição para compreendermos a descida da alma ao
corpo, a união e a separação dos mesmos. Por sua vez, essa descida da alma exigiu-nos uma
análise de sua imagem que se dirige ao corpo formando o vivente e, por conseguinte também,
de algo da alma que permanece no alto, separada. Tal união e a efetivação das potências
inferiores da alma no corpo, bem como tal separação e o desempenho das atividades
superiores exigiram que expuséssemos, na medida do possível e necessário, alguns aspectos
relevantes das potências da alma. Analisamos algumas relações do apetitivo e do irascível
com a alma vegetativa e com a sensitiva. Discutimos as relações entre o dianoetikón, o
logistikón e o noûs da alma, tendo em vista a possível identificação deles, como alma superior
ou alma racional como um todo, ou de algum deles, com a alma que não desce.
No segundo capítulo, analisamos o início do segundo tratado (Enéada IV 7), o qual
nos oferece uma definição do homem de acordo com seu contexto de enfatizar a
incorporeidade e a imortalidade da alma. Procuramos esclarecer o enfoque que Plotino
confere ao homem, apresentando-o atrelado à alma e sua natureza, em oposição ao corpo. O
argumento de que o homem é a alma e tem o corpo mostra-se chave para compreendê-lo em
sua definição e em sua composição. Entrementes, concentramo-nos, sobretudo, no tratado 38
(Enéada VI 7), a fim de compreendermos os homens ou tipos de homens ali expostos, a
Forma do homem, o homem racional e o homem sensível. Mostramos em que sentido a
Forma do homem é superior aos outros homens. Discutimos a definição desse texto de que o
homem é a alma e o lógos. Conduzimos o exame dos homens racional e sensível, visando
suas articulações ou coincidências com as respectivas almas e lógoi, racional e sensível. As
noções de lógos e lógoi se mostraram fundamentais para a definição do homem nesse tratado
e, portanto, não podiam escapar de nossa pesquisa.
14
O terceiro capítulo, finalmente, é dedicado a uma detida análise do tratado 53 (Enéada
I 1). Examinamos a atribuição das afecções a fim de compreendermos o que é o vivente,
ordinariamente tido como o homem. Acompanhamos Plotino traçar as diferenças entre o
homem e o vivente, apontando, assim, para uma definição do homem através da
demonstração do que ele não é, do que é distinto dele. Defrontamo-nos com o nós e suas
relações com o homem e o vivente. Apesar de não nos determos em alguns pontos
concernentes ao nós, como a especificidade de suas atividades, discutimos alguns pontos
sobre ele, como a possibilidade de sua identificação com o homem. Por fim, discutimos a
separação do vivente em relação ao corpo, mostrando que nossa investigação fornece bases
para o âmbito moral, da purificação e das virtudes.
Nas considerações finais, apontamos o que esta pesquisa pôde depreender sobre a
definição do homem nas Enéadas. Apresentamos nossa busca em compreender o homem de
um modo mais abrangente, em sua relação com o sensível e o inteligível.
15
CAPÍTULO 1
ASPECTOS DA ALMA INDIVIDUAL
1.1 INTRODUÇÃO
Nosso propósito é analisar a concepção de homem nas Enéadas por meio do exame de
alguns tratados e passagens que a discutem direta e indiretamente. Entretanto, deparamo-nos
com alguns impasses que dificultam a compreensão do tema. A importância do tema é
percebida, sobretudo, pela recorrência em todas as fases das Enéadas, desde os primeiros
tratados até o penúltimo. No segundo tratado (Eneáda IV 7), Plotino relaciona o homem à
imortalidade da alma e no 38 (Enéada VI 7), às almas sensitiva e racional; no tratado 53
(Enéada I 1), a partir da problematização da atribuição das afecções, Plotino apresenta o
vivente, diferenciando-o do homem.
Constatamos que, para Plotino, o principal problema em torno da definição do homem
é a sua relação com a alma e com o corpo, por conseguinte, a relação da alma com o corpo.
No segundo tratado (Enéada IV 7), ao relacionar o homem com a alma e sua imortalidade,
parece-nos que Plotino sugere uma identificação do homem com a alma, conferindo também
ao primeiro, como essência, o caráter atemporal. Todavia, se o homem é eterno, Plotino o
descarta o corpo, temporário, na composição do mesmo, uma vez que afirma que o homem é a
alma e tem o corpo. Enquanto tem um corpo, o homem não é algo simples. Todavia, mesmo
se ele tem um corpo, isso não é o principal e sim a alma. O homem é a alma, independente se
ela é como a forma na matéria ou como aquela que se serve de seu instrumento. Dessa
maneira, nesse texto, o homem parece ser essencialmente a alma, apesar de manter alguma
16
articulação com o corpo que possui, mas que o o define. Mas, se o homem tem um corpo,
como se sua relação com ele e quais seriam as implicações disso, por exemplo, quanto às
afecções?
No tratado 38 (Enéada VI 7), Plotino apresenta o homem como eterno e independente
do corpo, como Forma no Intelecto. Esse homem no Intelecto é completo, tendo
potencialmente tudo que constitui o homem; ele é o homem antes de todos os outros. Mas
Plotino também expõe sobre o homem como alma determinada por um lógos. Ele o descreve
através dos homens sensível e racional, relacionando-os às almas sensitiva e racional e
sugerindo que eles se identificam com elas e seus respectivos lógoi. Ora, se há a possibilidade
e a hipótese dessa identificação do homem com a alma ou com certas almas, é preciso
esclarecê-las, na medida do possível, atendo-nos mais a uma caracterização geral das mesmas.
Portanto, faz-se necessária uma articulação do homem com sua Forma e com a alma e o
lógos. Por conseguinte, julgamos que teríamos que tentar compreender melhor a estrutura da
alma individual com suas potências e lógoi, bem como a relação deles com o inteligível e com
o devir, isto é, o sensível e o corpo.
Sem perder de vista a definição do homem, seguimos o percurso da argumentação de
Plotino que, por meio do tratado 53 (Enéada I 1), mostra como se dá a relação da alma com o
corpo mediante a discussão sobre o vivente e as afecções. Plotino diferencia o homem do
vivente, atribuindo as afecções a esse último, indicando a impassibilidade da alma, que não
é ela propriamente que se une ao corpo para produzir o vivente, mas um traço dela, como uma
luz que projeta um reflexo; é preciso discutir se Plotino também sugere a impassibilidade do
homem como alma. Sendo assim, notamos a importância da delimitação entre o homem e o
vivente e entre a alma e sua imagem. Se o vivente é definido como o conjunto da imagem da
alma e do corpo, isso requer uma discussão sobre a descida da alma aos corpos. Diante disso,
uma análise sobre a tangência do homem com a alma e com o corpo, através do vivente e das
17
afecções, mostrou-se necessária. A noção de vivente e de imagem da alma nos leva a adentrar
na questão da potência e das potências da alma, tentando esclarecer o que é exatamente essa
projeção da alma que se associa aos corpos.
Por sua vez, o tema da descida da alma exige, por si só, que compreendamos seu
oposto, a alma que não desce. E a abordagem dessas questões demanda uma apresentação
mínima do que as fundamenta, a unidade e a divisibilidade da alma. Afinal, se seguirmos o
percurso de Plotino na ordem cronológica dos tratados, percebemos que ele expõe sobre a
unidade e a divisibilidade da alma para então discorrer sobre a união e a separação da alma,
construindo as bases teóricas para mostrar, no penúltimo tratado, que não é a alma que desce
ao corpo formando o vivente, mas sua imagem.
A partir do estudo preliminar proposto neste capítulo, teremos condições de discutir a
pertinência de algumas interpretações dualistas e não dualistas das relações do homem com a
alma e com o corpo. Com esse exame, poderemos indicar a questão da separação do homem e
da alma em relação ao sensível e ao corpo.
É evidente que uma análise de toda a teoria da alma em Plotino seria demasiado ampla
e complexa para nossa atual pesquisa, o que justifica o ser possível realizá-la, mas nos
restringirmos a apenas alguns aspectos mais importantes para o nosso tema. Assim, nosso
objetivo é fornecer alguns pressupostos para a questão central da definição do homem, sem
pretendermos dar conta de toda a teoria da alma; por exemplo, não nos caberá problematizar a
imortalidade da alma, mas sim tomá-la como pressuposto.
Logo, ao investigarmos as questões envolvidas na definição plotiniana do homem,
vimos que ela implica uma articulação com a alma e sua estrutura, assim como nos impele a
discutir a relação do homem e da alma com o inteligível, o corpo e o sensível. Desse modo,
esperamos ter justificado a importância de um estudo preliminar da alma e, por conseguinte,
18
da seleção de alguns aspectos da teoria da alma, tomados como pressupostos ou condições
para a compreensão da definição do homem para Plotino.
Indicamos, resumidamente, os passos seguidos neste capítulo que fornece o substrato
teórico desta pesquisa, isto é, os argumentos preliminares para os outros capítulos e para a
questão principal da definição do homem nas Enéadas. Partiremos de uma discussão sobre a
unidade e a divisibilidade da alma, pois esse é o tema que justifica e fundamenta as questões
sobre a descida da alma aos corpos. No segundo tópico, sobre a união da alma aos corpos,
investigaremos a imagem da alma que se volta para os corpos, por meio dos tratados 6
(Enéada IV 8) e 53 (Enéada I 1). Abordaremos a problemática da alma que não desce e,
finalmente, alguns aspectos das potências da alma, a fim de compreendermos melhor a união
e a separação entre a alma e o corpo.
Julgamos que é importante tecer algumas considerações acerca do contexto, da
estrutura e do procedimento de cada tratado. Procuraremos sempre delimitar, ao menos de um
modo geral, a finalidade dos tratados analisados, pois, a nosso ver, não podemos prescindir da
especificidade de cada um deles, que eles têm seus objetivos em si mesmos, referindo-se
raramente a outro(s)
1
. Analisaremos também, na medida do possível, as rupturas e
continuidades entre eles, afinal, exigir uma coerência pura e simples entre os escritos
plotinianos pode ser um sinal de que se está desconsiderando a particularidade dos mesmos.
1.2 UNIDADE E DIVISIBILIDADE DA ALMA
Tentaremos esclarecer algumas passagens das Enéadas nas quais Plotino expõe a
natureza una e divisível da alma. Vejamos o quarto tratado (Enéada IV 2) segundo a
1
Cf. PLOTIN, Ennéades, p. xxx.
19
cronologia de Porfírio. Nesse texto, nota-se que Plotino não se ocupa em postular a unidade-
multiplicidade da alma para estabelecer a imortalidade da alma; a isso, ele já dedicou o
segundo tratado (Enéada IV 7). O que se encontra, pois, em questão é expor a essência da
alma por ela mesma, sem ter em vista qualquer outra particularidade da alma. Logo, esse
objetivo não pode ser ignorado, pois, do contrário, compromete a compreensão do tratado e
do modo como ele é desenvolvido, enfim, do que é e não é importante nesse momento.
Plotino visa discorrer sobre a essência da alma que, como ele já argumentou no
segundo tratado, não é nem um corpo, nem harmonia, nem mesmo entelékheia do corpo. Para
ele, tais teses, além de não serem verdadeiras, não dizem o que é a alma. Ele, então, menciona
noções fundamentais, apesar de saber que não são suficientes para a compreensão desse seu
objeto de pesquisa: a alma é de natureza inteligível e divina
2
. Essa caracterização de base da
alma é necessária, visto que Plotino recorrentemente deseja ressaltar as distinções entre as
coisas inteligíveis e as sensíveis. As sensíveis são divisíveis por natureza, tendo essência
divisível; suas partes são diferentes e cada parte é menor que o todo; cada uma ocupa um
lugar, não podendo estar em vários ao mesmo tempo
3
. Diferente dessas e de sua essência
divisível, uma outra natureza, uma essência indivisível da qual a divisível deriva e que não
é fragmentada como os corpos.
Mas não só as coisas sensíveis têm uma essência divisível, a alma também. Assim,
Plotino indica a distinção entre duas essências na alma, uma divisível e uma indivisível
4
. A
divisível recebe a indivisibilidade da indivisível, mas ela tende para a divisibilidade e não é
como uma qualidade (poio/thv) que é a mesma em todos os lugares. Mas em que sentido a
alma possui uma essência divisível? Plotino declara que somente porque os corpos são
2
IV 2 [4], 1, 5-7.
3
IV 2 [4], 1, 11-17. o é de se espantar que Plotino recorra a essa distinção de base entre sensível e inteligível
para explicar o desenvolvimento de seu pensamento, endossando sua exegese de Platão.
4
Cf. PLATÃO, Timeu 34c-35a. Cabe a ressalva de que, ao aludir à alma como essência indivisível, Plotino
indica que a alma faz parte do inteligível e é inteligível (noeto/n).
20
divisíveis a forma contida neles se divide; mantendo-se inteira, a forma se multiplica e cada
parte se separa das outras:
Como os corpos são divididos, a forma contida neles também é dividida. No
entanto, ela está inteira em cada uma das partes. É a mesma forma que se
multiplica e cada uma das partes se separa totalmente da outra, uma vez que
ela se torna totalmente dividida
5
.
O verbo “tornar-se” (gi/gnomai) é crucial: a alma o é divisível, mas torna-se
divisível nos corpos e somente neles. Mas como a alma se torna divisível ao vir aos corpos?
Em que sentido deve ser compreendido que a forma (ei]dov) da alma se divide e torna-se
múltipla?
Ainda a propósito das diferenças entre as coisas sensíveis e as inteligíveis, Plotino
sublinha que a unidade do corpo é diferente daquela da alma. A unidade do corpo se pela
continuidade das partes, as quais são diferentes. A unidade da alma, por sua vez, não é a
unidade de algo contínuo de partes distintas. Segundo Plotino, a alma é divisível na medida
em que esem cada parte do corpo e, indivisível, por estar toda inteira em todas e em cada
uma das partes do corpo; assim, ela se divide e se dá toda inteira ao corpo
6
.
Portanto, a alma é, ao mesmo tempo, indivisível e divisível, pois se divide nos corpos,
mas permanece toda inteira e a mesma. Ela é “divisível nos corpos” (meristeh\ peri\ ta\
sw/mata), mas tal divisão é acidental, não constituindo, portanto, uma propriedade da alma e
sim do corpo; por isso, ela mesma não se divide, mas se divide no corpo o qual só a recebe
5
IV 2 [4], 1, 34-38. #Wste diairoume/nwn tw~n swma/twn meri/zesqai me\n kai\ to\ e)n au)toi~v ei}dov, o#lon ge
mh\n e)n e0ka/stw|? ei}nai tw~n merisqe/ntwn polla\ to\ au)to\ gigno/menon, w{n e#kaston pa/nth a1llou a)pe/sth,
a#te pa/nth meristo\n geno/menon. Plotino compara essa divisão da forma da alma com a da forma (morfh/), a
das cores e a das qualidades (poio/thtev), as quais também permanecem inteiras ao mesmo tempo em vários
corpos separados.
6
Cf. IV 2 [4], 1, 60-66 e IV 1 [21], 1, 18-22.
21
indivisivelmente devido à divisão que lhe é própria. Assim, divisível, ela não é divisível
7
. A
essência divisível procede da essência indivisível e mantém o caráter indivisível.
Percebemos como Plotino prevê possíveis confusões e refutações que poderiam surgir
com essas noções de unidade e divisibilidade da alma ao rechaçar qualquer transferência de
propriedades do corpo à alma. Dizer que a alma é divisível significa que ela o é por
concomitância e acidente de uma necessidade exclusivamente do corpo. Denotar qualquer
outro sentido implica o que Plotino ora insinua, ora explicita: que conhecer a alma a partir do
corpo é um grande erro. Transcrevemos uma passagem que resume bem indivisibilidade e a
divisibilidade da alma:
Então, nos corpos para os quais ela vem, mesmo que venha no maior e que
se estenda a todos, ela se inteiramente sem deixar de ser una; não no
sentido em que o corpo é uno, porque ele é uno pela continuidade; cada uma
das partes é diferente da outra e também em lugares diferentes
8
.
Plotino postula a unidade e a multiplicidade da alma como algo necessário. O autor
explicita que é preciso admitir que algo possa estar em vários lugares, tendo e administrando
tudo com sabedoria
9
. O leitor, por sua vez, poderia indagar: mas como a alma pode estar em
vários lugares ao mesmo tempo? O tratado 53 (Enéada I 1) nos auxiliará, pois a metáfora da
difusão da luz que projeta seu reflexo e a noção de imagem (ei!dwlon) da alma conferem-nos
respostas chaves a esse tipo de indagação.
No tratado em questão, Plotino se posiciona contra aqueles que defendem que a alma é
um corpo divisível e aqueles que negam sua divisibilidade. Quanto à refutação da tese
7
Cf. IV 2 [4], 1, 69-76.
8
IV 2 [4], 1, 57-60. )En oi{v ou}n gi/netai sw/masi, ka@n e)n tw~| megi/stw| gi/netai kai\ e)pi/ pan/ta diesthko/ti,
dou~s e9auth\n tw|~? o#lw| ou)k a)fi/statai tou~ ei}nai mi/a: ou)x ou#twv, w(v to\ sw~ma e#n. tw~| ga\r sunexei~ to\
sw~ma e#n, e#kaston de\ tw~n merw~n a!llo, to\ d a!llo kai\ a)llaxou~.
9
Cf. IV 2 [4], 1, 39-48. Supomos que tal necessidade também se deva à natureza divisível do corpo ao qual a
alma precisa associar-se. Pretendemos examinar a necessidade da descida alma aos corpos no próximo item.
22
segundo a qual a alma é um corpo divisível, em suma, ele mostra que, se a alma tivesse partes
diferentes em lugares diferentes, quando uma delas fosse afetada, as outras não sentiriam as
afecções. Haveria então várias almas para governar cada parte de nós. Por conseguinte, o
existiria uma alma única, mas uma infinidade de almas separadas umas das outras e, assim,
seria em vão defender a continuidade das partes diferentes
10
. Ora, Plotino está ratificando a
ideia de que a alma é de uma natureza capaz de ser única e a mesma em diversos lugares ao
mesmo tempo: se for o caso dela sofrer as afecções, o faz como um todo e o mesmo. Em
relação à necessidade da divisibilidade da alma, eis o que Plotino diz:
Se, ao contrário, a alma fosse totalmente una, completamente indivisível e
una nela mesma, se escapasse à toda multiplicidade e à divisão, nada
daquilo que ela envolve seria animado por inteiro; mas se ela mesma fosse
colocada no centro de cada um, ela deixaria inanimada toda a massa do
vivente
11
.
Plotino ataca os estoicos, segundo os quais as afecções chegam à parte dirigente da
alma por uma transmissão progressiva. Para ele, além dos estoicos o realizarem um exame
suficiente sobre essa parte dirigente (h(gemo/nov) da alma, não é claro se, admitindo tal tese,
somente a parte dirigente perceberia a sensação. Se assim o fosse, as outras partes não o
fariam, pois seria inútil; ou haveria uma infinidade de sensações diferentes. Plotino questiona:
se ela não é a única a sentir, não motivo para ser dirigente, afinal, por que ela seria a
dirigente quando é outra que sente? E por que a sensação precisaria chegar até ela
12
?
10
Cf. IV 2 [4], 2, 5-10.
11
IV 2 [4], 2, 35-39. Ei ) dau} pa/nth e$n h( yuxh\ ei!h, oi{on a)me/riston pa/nth kai\ e)f e)autou~ e#n, kai\ pa/nth
plh/qouv kai\ merismou~ e)kfeu/goi fu/sin, ou)de\n o#lon, o#ti a@n yuxh\ katala/boi, e)yuxwme/non e!stai: a)ll
oi[on peri\ ke/ntron sth/sasa e9auth\n e)ka/stou a!yuxon a@n ei!ase pa/nta to\n tou~ zw/|ou o!gkon.
12
Frequentemente, Plotino convoca o leitor em seu discurso, evocando interlocutores fictícios para o
desenvolvimento das questões.
23
Nesse tratado, além dessas, Plotino suscita diversas perguntas retóricas sobre a
concepção estoica de alma: como eles dividem a alma; como dizem onde começa uma parte e
onde termina outra; qual a diferença entre elas, já que formam algo contínuo; e qual a
extensão conferida a cada uma delas. As críticas aos estoicos são constantes, sendo que
adquirem um tom retórico, pois, na maioria das vezes, sem se aproximar detidamente do
pensamento dos mesmos, Plotino ressalta que eles se enganaram, que não explicaram bem
certas noções etc. É como se o leitor os conhecesse bem e não precisasse de uma
recapitulação minuciosa de suas ideias. Afigura-nos que Plotino opta retoricamente por deixar
prevalecer suas ideias sobre aquelas de seus adversários ao invés de discutir com eles de um
modo mais detido e deixar que o leitor tire suas próprias conclusões.
A respeito da divisibilidade da alma devido às suas potências ou faculdades, Plotino
explicita, em algumas passagens das Enéadas, que a alma é una apesar da multiplicidade de
suas potências. O oitavo tratado (Enéada IV 9), que expõe o tema da unidade das almas,
elucida brevemente a questão. Plotino argumenta que a essência que se divide nos corpos é
una e produz as potências, como a de sentir, dividindo-se; assim, apesar de refletir mais de
uma potência, tal essência é una, sendo que dessa unidade provém a multiplicidade una
(polla\ e#n)
13
. A ideia de multiplicidade una ou de unidade diferenciada é esclarecedora, pois
mostra como a unidade prevalece na diversidade: as potências procedem de uma unidade que
se desdobra em uma multiplicidade sem deixar de ser una. Uma breve passagem merece
atenção, pois, nela, Plotino é enfático em afirmar que a alma tem potências, mas não tem
partes: “então, também a alma é múltipla, mesmo se não tem partes, pois muitas potências
nela”
14
.
13
Cf. IV 9 [8], 3, 10-18.
14
VI 9 [9], 1, 39- 40. e1peita de\ pollh\ h( yuxh\ kai\ h( mi/a ka@n ei) mh\ e)k merw~n: plei~stai ga\r du/nameiv e0n
au)th|~. Cf. II 9 [33], 2, 6.
24
Blumenthal
15
auxilia-nos ao comentar que, muitas vezes, Plotino não segue a
tripartição platônica, mas o modelo aristotélico de alma una com várias potências, funções e
faculdades, apesar de também mostrar, por uma aparente inconveniência, as dificuldades das
categorias aristotélicas. Diríamos que as Enéadas se mostram fiéis a Platão e a algumas de
suas noções, deixando-se impregnar por seu vocabulário e por suas ideias, mas também
dialogam com Aristóteles
16
. Os principais textos nos quais Plotino alude à tripartição da alma
e a adota são as Enéadas IV 4 [28] e IV 7 [2]. A Enéada IV 4 aborda a divisão da alma em
potências ou faculdades e as distinções entre elas. Em IV 7, ele delineia a alma tripartite
encarnada em oposição àquela que é indivisível em sua natureza. Pode-se dizer que Plotino
está sugerindo dois modos de existência da alma?
Vejamos brevemente se e como é possível falar em diferentes modos de existência da
alma. É claro que, se a alma vive no corpo, isso não deixa de ser um modo de existência dela,
no sentido de ser um tipo de manifestação de sua essência, diríamos. O outro modo seria sua
vida junto à Alma universal, sem estar encarnada. Portanto, não vemos problema em dizer que
há modos da alma expressar sua essência, mas que ela pode viver de modos diversos.
Voltando à discussão sobre as partes da alma, Plotino oscila entre os termos “parte”
(me/rov) e potência” (du/namiv). Porém, apesar de falar recorrentemente de partes, parece-nos
que esse é mais um dos termos utilizados por ele que não podemos entender literalmente, pois
essa é mais uma exigência de coerência nossa do que dele. Isso não significa dizer que Plotino
não foi cuidadoso em seus escritos, mas que aponta ciente ou não os limites do discurso
para expressar as sutilezas próprias aos inteligíveis, nesse caso. É como se ele pensasse que
seus leitores não se ateriam às falhas próprias à razão discursiva e que, por isso, não fosse
necessário ser tão minucioso na distinção dos termos, o que poderia implicar mais falhas.
15
Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 23.
16
Poder-se-ia dizer que uma síntese peculiar de Platão e Aristóteles, mas lembramos que há, sobretudo, uma
centralidade de Platão nos textos plotinianos.
25
Como bem nota Blumenthal
17
, Plotino parece frequentemente inconsistente e incoerente em
sua terminologia, mas o em seu pensamento. Com efeito, a linguagem discursiva se mostra
ambígua, contraditória e insuficiente muitas vezes nas Enéadas, gerando dificuldades
conceituais no leitor.
Santa Cruz
18
nota que a alma é essencialmente una, mas possui uma função dupla: a
superior, que se mantém consagrada à contemplação de sua fonte, e a inferior, que se dirige
para o sensível sem se separar da outra. Blumenthal também utiliza esse termo e Pradeau, por
sua vez, o indica ao dizer que o caráter divisível da alma não é uma divisão substancial, mas
uma aptidão funcional
19
. Vejamos a pertinência e o cuidado exigido para adotar essa
interpretação.
Pensar em função ao invés de parte da alma parece-nos adequado, pois remete ao
sentido de atividade (e!rgon), termo bastante empregado por Plotino para se referir às
operações das potências da alma. Afinal, é exatamente desse modo que compreendemos: a
alma desempenha várias funções através de suas potências, mas permanece a mesma, ou seja,
ela realiza diferentes atividades, sem, no entanto, deixar de ser ela mesma, isto é, una
20
.
Depreendemos que a divisibilidade da alma não é oposta à sua indivisibilidade, mas
algo que procede dela necessariamente, pois sua multiplicidade de potências não anula sua
unidade. Assim, pode-se notar que Plotino ratifica as teses platônicas de simplicidade e de
composição da alma. Entrementes, isso não significa unificar as duas concepções na natureza
da alma, que, em essência, é una, pois, do contrário, torná-la composta seria retirar seu caráter
divino e imortal; ademais, sintetizá-las seria igualá-las, conferindo-lhes o mesmo peso e
sentido. A composição e a divisibilidade da alma devem ser compreendidas como uma
17
Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 14.
18
Cf. SANTA CRUZ, La genèse du monde sensible dans la philosophie de Plotin, p. 48.
19
Cf. PRADEAU, L’imitation du principe. Plotin et la participation, p. 77-78.
20
Seria preciso esclarecer os conceitos de potência e ato para Plotino através, por exemplo, da Enéada II 5 [25].
Apesar de o ser possível adentrarmos nesse complexo tratado, sabemos que isso seria forçoso para evitar
equívocos sobre as distinções entre ato e potência no sensível e no inteligível, tema que ele apresenta nesse
texto.
26
necessidade do corpo, mas não dela propriamente, de sua essência. Em outros termos, a alma
é divisível nos corpos, mas não em si mesma. Dizer que ela é composta é uma maneira de
expressar e é mais uma falha da linguagem que não é capaz de traduzir, nesse caso, a natureza
da alma. Esse é mais um dos momentos em que percebemos a limitação e a imperfeição do
discurso para transcrever determinadas coisas como elas são exatamente e de um modo que
seja compreensível para todos.
Muitas vezes, Plotino parece delimitar os receptores de seu discurso, o qual não seria
para todos, mas somente para aqueles que podem compreendê-lo, aqueles que, de alguma
maneira, experienciaram o que ele diz. Na medida em que cada um está em um nível
cognitivo, muitos não o compreendem nem mesmo o aceitam. Ora, como aceitar um discurso
que sempre será falho, que se encontra na dualidade? O discurso, de algum modo, é capaz
de conduzir a alma para o alto, mas Plotino parece querer demonstrar que nenhuma teoria
esgotará toda a verdade sobre o tipo de experiência que ele teve e que incita os outros a terem.
Afinal, o discurso, o raciocínio e mesmo a presença das hipóstases e do Uno em todas as
coisas não são suficientes e não substituem a apreensão do Intelecto e do Uno.
Vimos que Plotino é enfático em conceber a alma, ao mesmo tempo, como indivisível
e divisível nos corpos. Por isso, é mister discutir, de modo mais profundo, como é essa
divisão da alma nos corpos, em outros termos, como se opera sua descida (ka/qodov) ou queda
(e!kptwsiv) nos mesmos
21
. Afinal, a união e a relação desses dois elementos constituem um
problema que gera implicações em uma discussão sobre a natureza do conjunto deles; enfim,
elas incluem importantes noções e argumentos que as fundamentam e que conduzem à
justificação do que é o homem. Plotino introduz o tema no quarto tratado (Enéada IV 2) e o
desenvolve mais detalhadamente no sexto (Enéada IV 8).
21
Vogel nota bem que a descida da alma nos corpos não é necessariamente uma queda no sentido de ser um mal
em si mesmo. Isso pode ocorrer se a alma perder o contato com o que está acima dela e permitir que o corpo
lhe seja uma prisão. A alma tem que cuidar do corpo, mas ela pode realizar essa tarefa devidamente mantendo-
se para o que lhe é anterior. Cf. VOGEL, Plotinus’ image of man. Its relationship to Plato as well as to later
neoplatonism, p. 147-148.
27
1.3 A DESCIDA E A UNIÃO [DA IMAGEM] DA ALMA AOS CORPOS
1.3.1 Enéada IV 8 [6]
Logo no início do sexto tratado (Enéada IV 8), de um modo muito breve, mas
impactante, Plotino relata seu frequente (polla/kiv) despertar para si e sua saída do corpo
para a contemplação de uma beleza imensa e admirável, pertencente ao que de melhor.
Interior a ele mesmo e estabelecido no divino, exerce uma atividade suprema. Ele vive a
melhor vida e se assemelha ao divino, mas, após esse repouso no divino, desce do Intelecto ao
raciocínio (logismo/v)
22
. A partir de então, questiona por que ocorre tal descida e por que a
alma adentrou no corpo, estando ela nela mesma tal como lhe pareceu, apesar de habitá-lo.
Percebemos que, de início, Plotino fixa o propósito de esclarecer não a união e a
separação da alma com o corpo, mas também de ratificar a natureza divina da alma. Mesmo
estando no corpo, a alma não é somente divisível, mas conserva sua indivisibilidade, a
natureza de sua totalidade
23
.
É evidente como Plotino utiliza sua experiência para tentar expor sua visão de que a
alma não desce, efetivamente, aos corpos. Ele sublinha que voltou para si mesmo,
permanecendo alheio e estranho a qualquer outro
24
. Então, explicita que a alma que
contemplou naquele momento se encontra no inteligível e, portanto, difere daquela ligada ao
sensível. É notável como Plotino sugere a interiorização e o mergulho para dentro de si em
22
Por ora, traduzimos logismo/v por raciocínio, sem especificar sua discursividade, reflexividade e logicidade;
também é traduzido por reflexão e pensamento reflexivo. Optamos por um termo mais geral que designa, com
menos problemas, a atividade intelectiva própria da alma, sendo que, somente quando houver necessidade de
acrescentar sua especificidade, assim o faremos para uma melhor compreensão dos diferentes aspectos do
termo e de seus derivados, como o logistikón; mas observamos a fluidez da terminologia de Plotino e, por isso,
a dificuldade em determinar a qual acepção ele se refere – o que gera as adequações dos tradutores e
intérpretes.
23
Cf. IV 1 [21], 1, 17-19.
24
IV 8 [6], 1, 2. Gino/menov tw~n me\n a1lwn [e!xw], e)mautou~ de\ ei!sw.
28
oposição à exteriorização para que se realize a contemplação do que é superior ao sensível e
imediato. Lembramos que, no tratado 49 (Eneáda V 3), Plotino compara a atividade da
potência sensitiva da alma de se direcionar para o exterior com aquela do Intelecto, cujos
objetos de conhecimento são internos, para afirmar a superioridade do conhecimento de si
desse último. Também cabe observar que tal atitude de se interiorizar é um despertar
(e)geiro/menov), como se estar voltado para o exterior fosse um estado de sono, nesciência ou
ilusão.
Nesse texto, Plotino analisa o aspecto moral da descida da alma aos corpos e o âmbito
cosmológico do governo dos corpos pela alma e da necessidade (e1dei) da descida da alma.
Seu intuito é discutir os problemas decorridos das interpretações que foram feitas a respeito
desses dois aspectos. No que tange ao aspecto moral, a questão é discutir se qualquer relação
da alma com o corpo é um mal.
Analisemos o que Pradeau e Santa Cruz comentam sobre o tema
25
. Em suma, um
paradoxo nessa descida da alma aos corpos que, por um lado, é um mal que impede a alma de
exercer suas atividades superiores como o pensamento discursivo (diánoia), mas, por outro,
faz parte de uma necessidade cosmológica de haver, no sensível, todos os entes do inteligível,
e de a alma animar todo o mundo e os entes
26
. Não nos parece satisfatória tal justificativa de
ser um mal a alma não exercer o pensamento discursivo quando está no corpo, afinal, ela o
exerce, mas a questão é como o faz; o mal dela esem se deixar dominar por ele, isto é,
deixar as atividades da alma inferior sobressaírem. Ademais, o fato de a alma estar em um
corpo é o que possibilita suas potências exercerem suas atividades, como essa do pensamento
discursivo, já que não vemos dificuldade ou problema em admitir que elas são potências da
alma encarnada.
25
Cf. PRADEAU, L’imitation du principe. Plotin et la participation, p. 73-79. SANTA CRUZ, La genèse du
monde sensible dans la philosophie de Plotin, p. 118-123.
26
A nosso ver, nesse tratado, Plotino sugere que a necessidade da alma de descer aos corpos é a primeira
encarnação; em outros tratados ele irá discutir a escolha da alma para novas encarnações, retomando o mito do
livro X da República.
29
está o caráter, por assim dizer, positivo da descida da alma aos corpos: Plotino
explica que ela possibilita a manifestação das potências, que, do contrário, elas seriam
inertes
27
. Ora, é assim que a razão discursiva e a linguagem se revelam e se desenvolvem.
Nesse contexto, mergulhar na multiplicidade é um movimento necessário para a processão.
Ademais, também é uma oportunidade para a alma conhecer o Bem comparando-o com seu
contrário
28
. Desse modo, poderíamos dizer que essa descida tem sua importância, tem uma
função pedagógica no sentido de auxiliar e ensinar a alma a conhecer o Uno-Bem. É possível
inferir também o papel do mal como contrário do bem e como falta dele e do corpo. Mas é
claro que tal vantagem ou positividade tem também seu reverso, qual seja, a de as almas se
afastarem do Uno-Bem, que a razão discursiva e a linguagem geram a dualidade e
permanecem nela. Sendo assim, abre-se um ciclo de afastamento e de aproximação do
Princípio Supremo. Podemos concluir que Plotino tenta integrar os dois aspectos da descida
da alma aos corpos, mostrando que eles são compatíveis e não excludentes.
Notamos que, durante todo o tempo, se trata da seguinte questão: por que a alma ou
melhor, determinada alma inclina-se para o sensível e para o corpo, para fora do inteligível?
Segundo Plotino, uma vez que uma multiplicidade de inteligências no inteligível, é preciso
que, a partir de uma alma única, surjam várias almas, diferentes hierarquicamente. Ele ainda
esclarece que a alma se inclinaria para baixo porque se lembra das coisas terrestres.
também uma imprudente temeridade ou audácia (to/lma) da alma de se afastar do inteligível,
direcionando-se para o oposto do Bem a matéria e para o sensível
29
. Contudo, apesar de se
difundir em direção ao sensível, isso não impede que ela possa se voltar para o inteligível.
Assim, percebe-se que um conjunto de causas que levam a alma a se voltar para o
sensível, embora ela tenha a possibilidade de se manter no inteligível. Também se nota que
Plotino não é explicito quanto à ordem dessas causas, qual ou quais teriam mais força,
27
Cf. IV 8 [6], 5, 29-33.
28
Cf. IV 8 [6], 7, 15.
29
Cf. V 2 [11] 2, 6. Tal audácia possibilita à alma constituir-se no sensível.
30
determinando a inclinação ao sensível. Mas nos parece que a causa intrínseca ao inteligível,
de ter que haver diferentes almas por haver diferentes inteligências, é a causa base. Tentemos
mostrar o que nos impele a adotar tal posição.
Julgamos importante discutir brevemente alguns aspectos da liberdade e
voluntariedade, e da necessidade da inclinação da alma aos corpos, que um problema se
impõe: a descida seria motivada não pelo desejo e pela audácia da alma, mas também por
um certo dever imposto a ela? A inclinação para o sensível é voluntária e importante para que
a alma desenvolva suas potências e, assim, ordenar o que está abaixo dela. Para Plotino, não é
ruim que a alma fuja rápido e conheça o mal e o vício, exercitando suas potências. Pelo
contrário, manifestá-las é bom, pois, no incorpóreo, elas são inativas e, logo, seriam vãs se
não passassem ao ato
30
. Sendo assim, se necessidade e exigência de ordenação, ela não é
contraditória à liberdade e voluntariedade na descida
31
. Mas como dever de ordenação e de
liberdade em ordenar conjugada com o desejo de descer não seriam excludentes nesse
caso?
Banacou-Caragouni aprofunda bem tal questão da necessidade da descida da alma aos
corpos, auxiliando-nos a obter uma compreensão mais precisa sobre o caráter voluntário da
inclinação da alma ao sensível. Segundo ele, a necessidade é a expressão de uma lei universal
que determina a conduta das hipóstases, de modo que sempre haja ordem no universo; essa lei
é a própria natureza das hipóstases, no sentido de ser uma exigência (a)napo/drastov) natural
à qual não se pode escapar; em outras palavras, a necessidade se estabeleceu na natureza da
alma. Por isso, a determinação de ordenar, por ser natural e intrínsica à alma, significa
liberdade, não havendo, portanto, nenhuma contradição. Para ele, é nesse sentido que se deve
30
Cf. IV 8 [6], 5, 26-30.
31
IV 8 [6], 5, 7-8. To\ e)kou/sion th~v kaqo/dou kai\ to\ a)kou/sion au}.
31
compreender que “a necessidade implica a liberdade”
32
. As almas não se sentem limitadas
pela necessidade, pois essa lhes é uma tendência natural e, por assim dizer, inoprimível
33
.
O tratado 27 (Enéada IV 3) é explícito em afirmar, ao mesmo tempo, a necessidade, a
justiça, a involuntariedade, a vontade e a espontaneidade da descida da alma. Não é preciso
que algo a conduza, mas, no momento certo, ela desce ao corpo apropriado e semelhante, e de
acordo com sua disposição (diaqe/sewv)
34
. É como se ela seguisse apelo de um arauto. Assim,
presume-se (ei)ka/zw) que a alma é movida por uma potência mágica de uma atração
irresistível. Portanto, a descida não é voluntária, mas, ao mesmo tempo, a alma não é enviada;
pelo menos sua vontade ou desejo (proqumi/a) não é uma escolha, mas é como um salto por
impulso, segundo a natureza (kata\ fu/siv) ou como quando se realizam belas ações sem
reflexão (logismo/v).
Todavia, por vezes, Plotino sugere que a queda da alma, sua “perda das asas” e seu
aprisionamento nos corpos fazem parte de uma espontaneidade ruim de determinadas almas e
não da necessidade da ordem das coisas. As almas se desviaram do governo dos seres
superiores, guiados pela Alma do todo ou universal (yuxh/ th~~v o#lhv). Mas tal afastamento
em relação à Alma universal ou hipóstase é devido a um impulso de produção
35
. Assim, as
almas são obrigadas” a se introduzirem nos corpos para governá-los, pois o fazem o por
vontade
36
de escolha delas, mas por seguirem inevitavelmente uma lei estabelecida nelas
mesmas. Mas, como vimos, seguir essa lei ou necessidade não é algo contrário à natureza e
tendência das almas. Assim, Plotino às vezes afirma a necessidade, mas o faz no sentido de
32
IV 8 [6], 5, 3-4. )Epei/per e!xei to\ ekou/sion h( a)na/gkh.
33
Cf. BANACOU-CARAGOUNI, Observations sur la descente de l’âme dans les corps chez Plotin, p. 59, 62.
34
Nesse texto, Plotino explica que “cada alma desce para um corpo feito para recebê-la, conforme sua própria
disposição; elas são transportadas para o corpo com o qual elas têm mais semelhanças, uma em um corpo de
homem, outra em um corpo de um animal, diferente para cada uma”. IV 3 [27], 12, 35-39. Ressaltamos que
esse tratado é fundamental no tema amplo e complexo da liberdade e da responsabilidade, junto à providência,
ao determinismo e ao destino; mas não temos condições de discuti-lo aqui e lembramos ainda que tal tema é
pouco examinado pelos intérpretes de Plotino e merece uma investigação.
35
Cf. IV 7 [2], 13 e IV 8 [6], 4.
36
Banacou-Caragouni lembra a diferença da vontade espontânea e unívoca das almas individuais daquela
“vontade de essência” da Alma universal. Cf. BANACOU-CARAGOUNI, Observations sur la descente de
l’âme dans les corps chez Plotin, p. 62-64. Cf. IV 8 [6], 2, 18-29; IV 3 [27], 9, 38-40.
32
ela implicar automaticamente e simultaneamente a liberdade. Daí o caráter paradoxal da
descida: involuntária, mas, ao mesmo tempo, efeito do movimento próprio à alma, ou seja,
liberdade e necessidade estão juntas e não se excluem.
Em contrapartida, se as almas permanecem no inteligível, preservam-se do sofrimento;
mas elas se separam dele e das outras almas, o que faz com que vivam uma vida entre o
sensível e o inteligível. Significa que, uma vez que elas caem nos corpos, têm
necessariamente essa vida dupla, tornando-se anfíbias e desenvolvendo uma função (e!rgon)
dupla
37
. Elas vivem a vida do sensível “daqui” e a do inteligível “de lá”. Ressaltamos
que, mais uma vez, Plotino emprega o verbo “tornar-se” (gi/gnomai): as almas passam a ter
uma vida dupla, pois elas não a têm desde a origem
38
, o que demonstra que essa é uma
característica que lhes foi acrescida ou adquirida. Schniewind
39
reforça a ideia de que é
somente porque as almas descem e entram no devir que elas vivem, necessariamente, uma
vida dupla. De fato, é o que Plotino diz:
Após sua queda, a alma foi presa e acorrentada, agindo apenas pelos
sentidos, pois, no início, está impedida de agir pelo intelecto. Ela está, como
se diz [Platão], em um túmulo e em uma caverna, mas, voltando-se para a
intelecção, livra-se dos laços e parte da reminiscência para contemplar os
seres. Pois ela tem algo que sempre permanece no alto. Então, as almas
passam a ter necessariamente, por assim dizer, vidas duplas e vivem, em
parte, a vida de e, em parte, a daqui; vivem mais a de lá, quando são
37
Cf. IV 8 [6], 3, 21-31. É importante ressaltar que, nesse contexto, se trata da vida dupla da alma. Quando
discutirmos a concepção de homem para Plotino, avaliando a possibilidade de sua identificação com a alma,
retomaremos esse ponto, analisando se é adequado dizer que o homem também tem uma vida dupla.
38
Mais tarde tentaremos esclarecer a natureza originária da alma (a(rxai~an fu/siv), isto é, a alma sem
acréscimos, no item “A alma que não desce”.
39
Cf. SCHNIEWIND, Les âmes amphibies et les causes de leur différence. À propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4.
31-5, p. 185.
33
capazes de se unir ao Intelecto e mais a daqui, quando, ou pela natureza ou
por circunstâncias acidentais, ocorre o contrário
40
.
Tentemos compreender melhor essa vida dupla da alma. Destacamos que Plotino
ressalta a ideia de consequência (ou}n): como a alma pode agir apenas pelos sentidos ou se
voltar para o Intelecto, então, ela tem, necessariamente, uma vida dupla. Segundo
Schniewind
41
, uma perspectiva espacial através dos termos “aqui” e “lá”, sendo que o ser
anfíbio é sublinhado por essa dimensão. Dessa forma, a alma estaria dividida entre o sensível
e o inteligível, vivendo, ao mesmo tempo, uma e a outra vida. Para ela, essa natureza dupla da
alma permite-lhe viver nos dois elementos. Entretanto, não nos parece adequado analisar tais
termos, aqui” e “lá”, somente e simplesmente no sentido espacial e nem afirmar que uma
ideia implícita de que a alma vive as duas vidas sempre e ao mesmo tempo.
Literalmente, Plotino diz que ela vive em parte (para/ me/rov) a vida de lá, em parte, a
daqui. A nosso ver, estar entre o inteligível e o sensível significa que a alma pode se dirigir
para um ou para o outro, não de um modo simultâneo. Afinal, certamente, essa sua
possibilidade de alternância de foco é que a faz ser algo intermediário. Ademais, é evidente
que as metáforas são falhas, mas, ao comparar a alma a um anfíbio, Plotino elucidaria o
significado do ser anfíbio, aquele que vive ora em um ambiente, ora em outro e não nos dois
ao mesmo tempo. Preferimos então sustentar que Plotino parece destacar que ora a alma está
voltada para o inteligível, ora para o sensível, sendo que, com isso, ele traça o papel
intermediário da alma. A alma pode viver no inteligível e participar do sensível ou vice-versa.
40
IV 8 [6], 4, 25-35. Ei!lhptai ou}n pesou~sa kai\ pro\v tw|~ desmw~| ou}sa kai\ th~ ai)sqh/sei e)nergou~sa dia\ to\
kwlu/esqai tw|~ nw|~ e)nergei~n katarxa/v, teqa/fqai te le/getai kai\ e)n sphla/iw| ei}nai, e0pistragei~sa de\
pro\v no/hsin lu/esqai\ te e)k tw~~n desmw~~n kai\ a)nabai/nein, o#tan a)rxh\n la/bh| e)c a)namnh/sewv qea~sqai ta\
o!nta. !Exei ga\r a0ei\ ou)de\n h{tton u(pere/xon ti. Gi/gnontai ou}n oi{on a)mfi/bioi e)c a)na/gkhv to/n te e)kei~ bi/on
to/n te e(ntau~qa para\ me/rov biou~sai, plei~on me\n to\n e)kei~, ai$ du/nantai ple/on tw~| nw~~| sunei~sai, to\n de\
e0nqa/de plei~on, ai{v to\ e)nanti/on h@ fu/sei h@ tu/xaiv u(ph~rcen.
41
Cf. SCHNIEWIND, Les âmes amphibies et les causes de leur différence. À propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4.
31-5, 185-186, 190.
34
A função intermediária da alma é mencionada em várias passagens desse tratado, eis uma
delas:
Sendo sua natureza dupla, inteligível e sensível, então, é melhor para a alma
estar no inteligível, mas é necessário, tendo aquela natureza, que ela
participe também do sensível. E ela não deve se irritar contra si mesma se
ela não é, de modo pleno, o superior. Ela ocupa uma posição intermediária
entre os seres, pois, tendo uma parte divina, está na extremidade inferior do
inteligível. Estando no limite do sensível, ela lhe algo; dele, ela recebe
algo em troca se não se ordena em sua estabilidade e se, por muito ardor,
mergulha para dentro sem permanecer completamente junto à alma do todo.
Contudo, é possível a ela novamente vir à tona a partir do sensível
42
.
Plotino ainda tece uma comparação entre as almas no que concerne à capacidade de se
orientarem para o Intelecto, deixando prevalecer a vida do inteligível. É claro que, apesar de
estarem nos corpos e, por isso, terem que participar do sensível, elas têm a liberdade e a
possibilidade de retornarem para o inteligível, porém, umas têm mais dificuldades do que
outras para tanto, ou por natureza ou por circunstâncias acidentais
43
. O curioso é que Plotino
não se refere às almas nesses tratados como homens. Ele estaria aludindo às diferenças dos
42
IV 8 [6], 7, 1-14. Ditth~v de\ fu/sewv tau/thv ou!shv, th~v me\n nohth~v, th~v de\ ai)sqhth~v, a!meinon me\n yuxh~|
e)n tw|~ nohtw|~ ei}nai, a)na/gkh ge mh\n e!xei kai\ tou~ ai)qhtou~ metalamba/nein toiau/thn fu/sin e)xou/sh|, kai\
ou)k a)ganakthte/on au)th/n, ei) mh\ pa/nta e)sti\ to\ krei~tton, me/shn ta/cin e)n toi~v ou}sin e)pisxou~san, qei/av
me\n moi/rav ou}san, e)n e)sxa/tw| de\ tou~ nohtou~ ou}san, w)v o#moron ou}san th|~ ai)sqhth|~ fu/sei dido/nai me\n ti
tou/tw| tw~n par au(th~v, a)ntilamba/nein de\ kai\ par au)tou~, ei) mh\ meta\ tou~ au9th~v a)sfalou~v
diakosmoi~, proqumi/a|, de\ plei/oni ei)v to\ ei!sw du/oito mh/ mei/nasa o#lh meqo#lhv, a!llwv te kai\ dunato\n
[o@] au)th~| pa/lin e)canadu~nai, i9stori/na w{n e)ntau~qa ei}de/ te kai\ e!paqe proslambou/sh| kai\ maqou/sh|, oi{on
a!ra e)sti\n e)kei~ ei]nai kai\ th~| paraqe/sei tw~n oi{on e)nanti/wn safe/steron ta\ a)mei/nw maqou/sh|.
43
O que as torna mais ou menos capazes de retornarem ao Intelecto e ao Uno? No tratado em questão, Plotino
admite a existência de uma causa interna e de algumas externas: a primeira seria a disposição (dia/qesiv)
interna da alma e as segundas, os eventos fortuitos (tu/xai). Nesse texto, Plotino não precisa essas causas, mas
o faz em IV 3, quando as elenca: 1. diferença dos corpos nos quais a alma entra; 2. eventos fortuitos; 3. tipos
de educação; 4. diferença inerente das almas; 5. todas as razões juntas; 6. combinação de algumas razões.
Plotino ainda expõe sobre causas geográficas e ambientais, hereditárias e astrológicas; além dessas, a
experiência passada, a qual também contribui para o caráter. Cf. III 1 [3], 5 e IV 3 [27], 8.
35
homens ou das almas? Fazemos coro com Schniewind
44
em afirmar que isso soa como um
problema de árdua compreensão nas Enéadas. Acrescentamos que esse é um ponto que
mostra o quanto se faz necessário uma discussão sobre a identificação do homem com a alma,
a qual constitui a grande questão que motiva este trabalho.
Segundo Plotino, antes de se separarem do inteligível e das outras almas, as almas
estavam em um estado melhor, pois, após a queda, agem apenas pelos sentidos e não pela
inteligência. Retornando ao inteligível e se mantendo ligada a ele, a alma se livra dos seus
laços com o sensível e se eleva quando parte da reminiscência para contemplar os seres
superiores. Isso ocorre porque “ela tem algo que sempre permanece no alto”
45
. Assim, se a
alma se inclina para o sensível, ela não desce completamente. Mas o que seria esse algo da
alma que permanece sempre no inteligível? É o que nos propomos a tentar compreender em
seguida.
1.3.2 Enéada I 1 [53]
A fim de compreender melhor como se a descida ou a união da alma aos corpos,
ateremo-nos a essa questão no tratado 53 (Enéada I 1). Esse tratado é fundamental para a
compreensão do tema, pois Plotino traz à cena um nível psíquico, qual seja, o da imagem da
alma, para justificar que não é a alma que se inclina para baixo, mas algo derivado dela. A
alma gera essa imagem quando desce, isto é, quando se inclina para o sensível e o corpo.
Consciente de que a linguagem não é capaz de exprimir adequadamente a descida ou a união
da alma aos corpos, Plotino recorre à metáfora da luz que projeta seu reflexo sem se confundir
44
Cf. SCHNIEWIND, Les âmes amphibies et les causes de leur différence. À propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4.
31-5, p. 199.
45
IV 8 [6], 4, 30-31. !Exei ga\r ti a0ei\ ou)de/n h{tton u(pere/ron ti.
36
ou ser afetada pelo que ilumina
46
. Desse modo, quando Plotino apresenta a descida e a união
da alma aos corpos, não se pode esquecer que ele se refere à imagem da alma; logo, quando
ele exprime que o corpo participa da alma e que a recebe, refere-se a essa “outra espécie de
alma”
47
.
É importante destacar que Plotino discute com a tradição, em especial, Platão,
Aristóteles e os estoicos. Contudo, nosso intuito não é analisar como Plotino retoma algumas
doutrinas da tradição e estabelece relações com esses autores; visamos apenas reproduzir o
modo como ele se apropria de algumas teses de Platão, de Aristóteles e dos estoicos, e não
avaliar a pertinência ou não da leitura plotiniana dos mesmos. Evidenciaremos a presença
desses autores e os diálogos mantidos com eles por Plotino por meio de alguns temas que são
importantes para este trabalho.
Dito de um modo geral, para Plotino, o instrumentalismo platônico
48
não conta
plenamente da união da alma com o corpo – expressa, no tratado 53, sobretudo, pela sensação
e pela afecção , pois não garante a impassibilidade da alma
49
. Na analogia instrumentalista
do piloto no navio, a qual representa a forma em contato com o corpo, o piloto está
presente em uma parte do navio, ao contrário da alma, que anima todo o corpo. O timoneiro,
sim, tem uma relação diferente com o timão: ele não tem apenas uma presença espacial, local
ou parcial, pois o timão é seu instrumento conatural. Reformulando o instrumentalismo
platônico, Plotino sugere que a alma e o corpo podem estar unidos à tese aristotélica de que o
corpo é um instrumento conatural da alma, porque ele não subsiste sem ela
50
. A questão é que
ele explicita que não é a alma que se une aos corpos, mas sua imagem, o que assegura a
impassibilidade daquela. Sendo assim, dizemos que o instrumentalismo não dá conta da união
46
Cf. I 1 [53], 4, 12-16; 7, 4; 12, 25; 11, 14.
47
Cf. I 1 [53], 7, 1-6 e 12, 23-24.
48
Cf. PLATÃO, Alcibíades, 129c.
49
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 137.
50
Cf. ARISTÓTELES, De Anima II 1. 413a.
37
de certa alma com o corpo ou que ele não se aplica irrestritamente a todo tipo de união da
alma e do corpo.
Em I 1 [53], 3, 21-26, Plotino afirma que uma alma separada que utiliza o
instrumento e outra que se mistura de alguma maneira. A dificuldade está em compreender
qual alma exatamente é essa que é separada e utiliza o corpo como seu instrumento conatural.
Ademais, de qual alma Plotino almeja estabelecer a impassibilidade? Essa alma que utiliza o
corpo o seria a alma indivisível, pois ela o tem nenhuma relação com o corpo, nem
mesmo de instrumento. A alma que se mistura ao corpo é a imagem da alma, mas o que ela é
não é evidente nesse tratado, muito menos o que é a alma que utiliza o corpo como
instrumento conatural. Eis o que pode ser uma evidência de que a alma utilizadora e a que se
mistura, isto é, a imagem da alma, são diferentes: se a alma utilizadora é separada, ela não
seria a imagem da alma, pois vimos que essa última desce e se une ao corpo. Mas em que
sentido a alma que utiliza o instrumento é separada dele? Não precisaria haver alguma relação
entre eles? Para Aubry, a alma utilizadora é a diánoia, a qual governa e comanda o corpo
51
.
Retomaremos a questão mais adiante.
Em relação aos estoicos, Plotino tece sua objeção à mistura (kra/siv) da alma e do
corpo tal como apresentada por eles. Ele ratifica a tese estoica de que, em uma krâsis, os
componentes não perdem sua identidade, ao contrário de uma fusão (su/gxisiv), na qual há
uma troca de qualidades. Se a alma e o corpo estivessem unidos em uma fusão, a alma, o
melhor, teria se tornado pior, e o corpo, o pior, melhor; isso significa que a alma receberia a
morte e o corpo, a vida
52
; e, por conseguinte, recebendo a morte, a alma não seria impassível.
Sendo assim, a fusão da alma e do corpo contraria o modelo de união de ambos proposto por
Plotino.
51
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 150-151.
52
Cf. I 1 [53], 4, 1-4.
38
Plotino aceita a krâsis no sentido de que ela expressa uma união em que a alma
permanece essencialmente inalterada. Todavia, se, para os estoicos, a aliança é corpórea
entre dois elementos corpóreos –, para Plotino, ela o é entre um corpóreo e um incorpóreo.
Ele os critica, pois, para ele, em toda mistura corpórea, os componentes perdem suas
qualidades, permanecendo apenas em potência. Dessarte, para Plotino, a krâsis estoica não lhe
parece verdadeira, uma vez que os elementos se alteram. Na concepção de Plotino, a alma
desenvolve suas funções em direção ao corpo, porque ela não é corpórea nem se corporaliza.
Faz-se mister lembrar que, nesse tratado, Plotino não visa demonstrar a imortalidade da alma
o que foi feito no segundo tratado (Enéada IV 7)
53
–, mas identificar os problemas da união
ou mistura de dois elementos corpóreos. Segundo ele, é preciso pensar a união da alma e do
corpo, mas de um modo restrito.
Quanto a Aristóteles, Plotino não adere à sua concepção de uma união substancial da
alma e do corpo, o que evidencia uma diferença crucial entre os autores nesse ponto. Ao
contrário, ele postula uma união acidental, ou seja, pensa a união, pensando na separação, ou
melhor, sugere uma distinção na união, através da imagem platônica de um entrelaçamento de
ambos. Essa imagem confere a impassibilidade à alma, apesar de o ratificar sua
possibilidade: o entrelaçamento não implica, necessariamente, a simpatia pela qual um
experencia algo do outro. Plotino acrescenta, à imagem do entrelaçamento, aquela da luz, para
demonstrar que a alma projeta sua sombra (skia/) nos corpos, não se dividindo, de fato,
neles
54
: como a luz que ilumina (oi{on fw~~v e!llamyiv), a imagem da alma se difunde e
entrelaça-se nos corpos. Ele utiliza os termos simulacro, aparência, vestígio, espécie de eco,
53
Em suma, nos primeiros sete capítulos, ele aponta argumentos contra a corporeidade da alma, dos quais
enumeramos alguns: se ela fosse um corpo, não seria possível explicar nem a memória, pois não haveria
fixação das impressões nem o pensamento, que algo corpóreo, que admite grandeza, não perceberia algo
sem grandeza; como ela permanece inteira em cada parte do corpo, não pode ser corpórea. No oitavo e no
nono capítulos, ele discorre sobre a natureza divina em geral, demonstrando, no décimo, que a alma pertence a
tal natureza para, a partir disso, deduzir sua imortalidade no décimo primeiro e no décimo segundo. Cabe
registrar que Plotino descarta qualquer caracterização que implique uma concepção material da alma e, por
isso, não permite que se entreveja qualquer delimitação ou localização espacial da alma.
54
Cf. I 1 [53], 12, 12-18 e 20-30.
39
espécie de luz, traço, calor e irradiação. Com essa metáfora, Plotino explica a imanência e a
transcendência da alma nos corpos, ela está ao mesmo tempo presente e separada deles. Logo,
a alma permanece indivisível apesar da diversidade das almas individuais, pois a
divisibilidade é imagética e funcional não substancial –, sendo necessária para animar os
corpos.
Ainda em relação a Aristóteles, Plotino aceita o hilemorfismo, isto é, a imposição da
forma à matéria ou a união de ambas, ou, ainda, a alma como forma (morfh/) do corpo. Ele
retoma a analogia aristotélica de que a alma está para o corpo, assim como a forma imposta ao
ferro está para o machado. Se Plotino adapta o instrumentalismo platônico pelo viés do
hilemorfismo, ele modifica esse último: a forma que se une à matéria é a imagem da alma; a
alma indivisível se mantém separada da matéria, havendo, portanto, uma separação na
união
55
.
Nos tratados analisados, percebemos que Plotino concilia
56
Platão e Aristóteles,
independente se ele tem ou não essa intenção, o que é difícil de detectar. Às vezes, ele parece
pressupor que seus leitores e interlocutores já têm conhecimento desses autores. Outras vezes,
as alusões são mais pormenorizadas e ele explicita o que não é evidente nos textos platônicos,
ou seja, revela suas entrelinhas, buscando explicar seus enigmas. É cabível considerar que,
nessa explicitação, aos olhos do leitor e de alguns intérpretes, Plotino modifica ou transforma
Platão. Entretanto, a nosso ver, seria exagerado afirmar que ele vai até mesmo contra Platão e,
ainda, que o faz propositalmente, mas é nítido que ele não repete nem aceita pura e
simplesmente a tradição, não a abraça integralmente. Em suma, ele realiza uma exegese
55
Quanto à tese aristotélica de que a alma é entelékheia do corpo, no segundo tratado (Enéada IV 7, 8), Plotino
elabora alguns argumentos contra ela, os quais apenas elencamos, sem ser possível mostrar como Plotino os
desenvolve e também sem investigar a pertinência da crítica plotiniana: 1. um membro mutilado deveria levar
uma parte da alma com ele; 2. não seria possível explicar a oposição da razão ao desejo; 3. não seria possível
explicar a existência do pensamento independente do corpo; 4. o seria possível explicar a conservação de
imagens independentes das coisas sensíveis; 5. não seria possível explicar a direção do desejo em relação ao
objeto incorpóreo; 6. o seria possível explicar a propagação da alma vegetativa de uma planta a outra; 7. a
alma seria divisível, se é entelékheia de um corpo divisível; 8. não seria possível explicar como os animais
transformam-se em outros animais.
56
Pode-se dizer que, nessa conciliação, há uma centralidade dos textos platônicos.
40
explicativa e crítica dos antigos. É fato que ele apresenta algumas questões de um modo
singular, como essa da imagem da alma, mesmo se, para ele, elas estão em Platão de um
modo implícito e obscuro. Contudo, a discussão da exegese plotiniana de Platão na qual es
em questão a ortodoxia e o ecletismo ultrapassa este estudo, pois esse é um tema grandioso
por si só
57
.
Pode-se inferir que Plotino atenua, de certa maneira, o alcance da descida da alma aos
corpos. Como bem declara Schuhl
58
, a descida, na verdade, é como o raio de uma luz que se
estende para baixo, emitindo apenas seu reflexo. Portanto, a alma é essencialmente separada
do corpo ao qual se associa através de sua imagem. Desse modo, Plotino explicita um nível
psíquico entre a alma propriamente dita e o corpo. Mediante a noção de imagem da alma, ele
demonstra como a alma desce ao corpo: ela comunica ou participa algo (ti) dela a ele. Em
outras palavras, o corpo não recebe a alma mesma, mas um vislumbre (i!ndalma) dela; a alma
não se dirige diretamente aos corpos, mas o faz com algumas de suas potências. Ademais,
como vimos, a descida é uma inclinação da alma. Descer e entrar no corpo significa que a
alma algo dela a ele, mas não se torna ele
59
. Assim, Plotino garante a impassibilidade e a
indivisibilidade da alma em si e por si.
Enfim, para Plotino, a separação da alma e do corpo, garantida pela imagem da alma, é
a condição de sua união; a alma é separada do corpo no sentido de não perder sua essência ao
se unir a ele. Em outros termos, uma participação sem cisão e uma união que não é
comunhão devido à superabundância e à difusão das imagens ou potências da alma. Através
das noções de imagem da alma e de separação na união corpo-alma, Plotino explica a
presença da alma nos corpos e salvaguarda, ao mesmo tempo, sua transcendência e sua
impassibilidade. O fato de a alma gerar uma imagem não lhe modifica em nada. O que se
57
Aubry, em seu comentário ao tratado 53, sustenta o ecletismo em vários momentos. Pradeau tende à ortodoxia,
apesar de não ser tão incisivo, pois afirma que Plotino tem particularidades distintivas quando conduz a
definição de processão. Cf. PRADEAU, L’imitation du principe. Plotin et la participation, p. 63.
58
Cf. SCHUHL, La descente de l’âme selon Plotin, p. 67.
59
Cf. VI 4 [22], 16, 14-15.
41
pode extrair é que a alma não se relaciona diretamente com o corpo, mas o faz por meio de
sua imagem que constitui um elemento intermediário entre a alma e o corpo. Dir-se-ia que
uma relação de exterioridade entre a alma e o corpo o que não significa que não relação
entre eles –, sendo que o elemento que os liga é a imagem da alma.
1.3 A ALMA QUE NÃO DESCE
Vimos que Plotino insiste em afirmar que não é a alma que se une ou desce aos
corpos, mas algo derivado dela, sua imagem. Eis uma passagem importante em que Plotino
expõe sobre a alma ou algo dela que não desce, isto é, que permanece sempre no inteligível:
Se é preciso ousar dizer mais claramente o que nos parece contra as
opiniões dos outros, diremos que nem mesmo a nossa alma está
completamente mergulhada [no sensível], mas algo dela está sempre no
inteligível. Mas, se aquilo que está no sensível domina, ou melhor, se é
dominado e perturbado, não nos seria permitido perceber aquelas coisas que
o ápice da alma contempla
60
.
Essa passagem é crucial por vários motivos. Primeiro, porque Plotino é audaz em relação
às outras opiniões, opondo-se a elas. Segundo, porque ele nos oferece poucas, mas
importantes informações acerca dessa alma que não desce:
60
IV 8 [6], 8, 1-6. Kai\ ei) para\ do/can tw~n a!llwn tolmh~sai to\ faino/menon le/gein safe/steron, ou) pa~sa
ou)d h( h(mete/ra yuxh\ e!du, all e!sti ti au)thv~ e)n tw~| nohtw~| a)ei/: to\ de\ e)n tw~| ai)sqhtw|~ ei) kratoi~,
ma~llon de\ ei) kratoi~to kai\ qoruboi~to, ou)k e)a|~ ai!sqhsin h(min ei}nai w{n qea~tai to\ th~v yuxh~v a!nw.
Aludindo ao Fedro, Plotino recorre a algumas metáforas de imersão para explicar em que sentido a alma está
fora ou além do corpo: um mergulho da alma superior para seu lugar originário, subindo para um lugar
supracelestial.
42
1. A alma, mesmo a nossa, não está completamente mergulhada no sensível e no corpo;
2. Há algo da alma que sempre permanece no inteligível;
3. Se aquilo da alma que está no sensível domina e está perturbado, não conhecemos a
atividade do cume da alma;
4. Esse algo da alma que permanece no inteligível é superior àquela alma que está no
sensível.
A primeira e a segunda coincidem ou se complementam: algo da alma que sempre
permanece no inteligível ou que não está completamente mergulhado no sensível
61
. Todavia,
a primeira enfatiza a diferença da opinião de Plotino em relação àquelas segundo as quais a
alma estaria totalmente mergulhada no sensível. Entendemos que a “nossa” alma que não está
inteiramente no sensível seja a individual encarnada, a qual nos interessa mais neste estudo.
Mas é mister observar que Plotino também discorre sobre outra alma que também não está
completamente voltada para o sensível, a Alma do todo, cujo algo inferior
62
organiza o
universo. Segundo ele, toda alma tem algo de inferior voltado para o corpo e algo de superior
voltado para o Intelecto
63
.
O fato de algo da alma estar sempre no inteligível merece atenção: isso implica que
essa alma não se relaciona com o sensível e com o corpo? Mas como é possível que a alma
esteja separada do corpo mesmo estando nele? A questão é que sempre a dificuldade de
identificar a qual alma Plotino se refere.
A segunda informação é obscura e problemática quando diz que algo (ti) da alma
permanece sempre no inteligível: Plotino emprega o pronome indefinido ti, deixando incerto o
que exatamente da alma que não desce. Ela é explícita em postular que é algo da alma – e não
do Intelecto hipóstase. Porém, ser algo da alma o implica estar nela, necessariamente;
61
Essa alma superior que permanece sempre no inteligível às vezes é interpretada como sendo a “parte primeira
da alma” (prw~ton) de algumas passagens como em III 8 [30], 5, 9.
62
Alma do mundo.
63
Cf. IV 8 [6], 8, 11-13.
43
somado a isso, a afirmação volta a ser vaga quando diz que essa alma sempre está no
inteligível (nohto/v), não o diferenciando segundo as hipóstases, afinal, ele pode ser tanto a
alma quanto o Intelecto, que ambos são inteligíveis. Portanto, pode-se dizer que não é
evidente se a alma que não desce permanece em si mesma ou no Intelecto
64
. A nosso ver,
Plotino estaria recorrendo, mais uma vez, à linguagem metafórica para dizer que a alma está e
não esno Intelecto, do mesmo modo que diz que tudo está e não esno Uno. Desse modo,
ele expressa relações de participação e dependência. Ademais, estar no sensível e no corpo ou
estar no inteligível e no Intelecto significa que as potências da alma se dirigem para baixo ou
para o alto. Outra passagem confirma a imprecisão pelo pronome indefinido: “como a alma é
indivisível? É porque ela não se afastou completamente, mas algo dela que não vem, cuja
natureza não é divisível”
65
.
A dificuldade, explica Szlezák e com o qual concordamos, reside nas descrições
imprecisas da alma que não desce, as quais ora a aproximam da própria alma, ora do Intelecto
hipóstase, sendo que isso se deve ao fato de não haver uma separação clara entre eles, alma e
Intelecto. E lembramos que as que se aproximam da alma o são evidentes quanto à sua
relação com a alma racional. Em um de seus estudos, Szlezák afirma que ela se encontra no
Intelecto. Segundo ele, o inteligível no qual a alma que não desce sempre esé o Intelecto,
porque a independência em relação ao corpo significa um acesso direto às Ideias
66
. Parece que
ele identifica a alma que não desce com a alma “mais racional”, a alma sem acréscimo, que é
puro pensar e não se distingue do Intelecto, sendo um intelecto singular, individual; essa alma
mais racional não pode ser o dianoetikón, pois ele transcorre no tempo. Não obstante, ele
reconhece que problemas na localização da alma que não desce e em sua relação com o
raciocínio discursivo. Portanto, como ele bem observa, é incorreto dizer que o problema da
64
Cf. BLUMENTHAL, On soul and intellect, p. 100.
65
IV 1 [21], 1, 12-13. Pw~v ou}n kai\ a)me/ristov; Ou) ga\r o#lh a0pe/sth, a)ll e1sti ti au)th~v ou0k e)lhluqo/v, o$
ou) pe/fuke meri/zesqai.
66
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 246.
44
alma que o desce está solucionado. Em outro estudo, ele diz que é impossível encontrar o
lugar da alma que não desce entre as duas hipóstases, a Alma e o Intelecto
67
.
Ademais, essa segunda informação suscita um problema quanto à divisão da alma
individual: Plotino se refere a uma mesma alma ou parte da alma, que ora se inclina para o
sensível, ora se mantém afastada dele, ou a almas distintas? Para Szlezák, a parte orientada
para o alto, além do corpo, é separada daquela que está voltada para o corpo
68
. A questão é
que em alguns momentos Plotino diz que uma alma que não desce, em outros, algo dela,
sendo que as duas maneiras de expressar, a nosso ver, se confundem. É notável como Plotino,
muitas vezes, não parece tão rigoroso com as terminologias, ou melhor, não se interessa pelas
distinções que nós exigimos; o uma inconsistência terminológica, mas uma fluidez. Por
isso, são válidas as perguntas do tipo: uma alma que está no sensível ou existe uma parte
dela que se volta para o sensível? uma alma superior ou uma parte da alma que é superior
em relação às outras?
No tratado 6 (Enéada IV 8), quando Plotino se refere a algo da alma, o diz
explicitamente que uma parte” da alma está no sensível e uma “parte” está no inteligível.
Entretanto, poder-se-ia dizer que a noção de parte está subentendida. O que reforçaria essa
hipótese é que ele argumenta que não conhecemos tudo que se passa em uma parte (me/rov)
qualquer (o(tiou~~n) da alma antes de conhecermos a alma inteira (o#lh). Ele afirma que toda
alma, a alma do todo e as almas individuais, tem algo (ti) de inferior voltado para o corpo e
algo de superior voltado para o Intelecto
69
. A nosso ver, não se pode afirmar categoricamente
que a alma que não desce é uma parte da alma, pois o termo nos afigura ser mais um que deve
ser analisado como uma espécie de metáfora que facilita a compreensão. Uma vez que a alma
é una e indivisível, o que se pode dizer é que o texto se atém em estabelecer que há funções da
67
Cf. SZLEZÁK, L’interprétation plotinienne de la théorie platonicienne de l’âme, p. 185.
68
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 252.
69
Cf. IV 8 [6], 8, 7-24.
45
alma que exigem uma comunicação com o corpo para realizarem suas atividades e funções
que não se submetem ao corpo.
Hadot comenta que Plotino se liga à tradição platônica segundo a qual a alma tem
partes diferentes, uma inferior e uma central, que correspondem respectivamente à alma
vegetativa e à racional, sendo que essa central desenvolve seu discurso interior ou exterior ao
tempo. No entanto, Plotino se distancia da tradição quando apresenta uma parte superior da
alma que exerce o pensamento puro, característico do Intelecto
70
. Logo, para Hadot, o algo da
alma que não desce está além da alma racional. Para justificar sua posição, em suma, ele diz
que isso ocorre porque a alma é originalmente uma das Formas inteligíveis, um intelecto que
se pensa no interior do Intelecto ou uma Forma do indivíduo. Em outras palavras, antes a
alma era pensamento puro ou intelecto particular no Intelecto e, desse modo, a Forma do
indivíduo seria a parte superior da alma que estava no Intelecto. Blumenthal, por sua vez,
pensa ser possível que Plotino tenha mudado sua posição nos últimos tratados nos quais ele
tende a o admitir ou não confirmar as Formas dos indivíduos
71
. Se de fato ocorre tal
mudança, isso seria um dos motivos que geram e reforçam a dificuldade em inserir a alma que
não desce na alma racional ou além dela.
A terceira informação da passagem citada não diz que a atividade da alma que não
desce é interrompida por aquela da que está no sensível, mas que cessa a percepção ou o
conhecimento dos resultados e efeitos de sua atividade. Em outros termos, se aquilo da alma
que está no sensível domina, isso impede que se conheça a atividade da que não desce. Na
quarta, Plotino afirma a superioridade da alma que não desce em relação à que está no
sensível; ele não especifica essa superioridade, mas, nesse momento, talvez seja devido aos
objetos contemplados, já que eles são destacados na passagem. Ao contrapor o algo da alma
que não sai do inteligível com aquilo da alma que está no sensível, Plotino indica que não é a
70
Cf. HADOT, Les niveaux de conscience dans les états mystiques selon Plotin, p. 246-247.
71
Cf. BLUMENTHAL, On soul and intellect, p. 96 e BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of
the embodied soul, p. 112-133.
46
alma propriamente que se volta para o alto ou para o corpo, mas suas potências. Portanto, isso
nos leva a considerar a alma que não desce como alguma(s) de sua(s) potência(s). Mas
também a hipótese da oposição entre a essência indivisível da alma e a essência divisível
com suas potências inferiores que se direcionam para o corpo.
Szlezák desenvolve um estudo notável acerca da alma que não desce. Ele o faz de um
modo detalhado, partindo de algumas passagens das Enéadas e dos textos de Platão e
Aristóteles retomados por Plotino
72
, levantando, assim, o quadro histórico no qual o discurso
sobre a alma que não desce é desenvolvido. Ele enfatiza que não faz como Armstrong, que
analisa a parte da alma que não desce a partir da experiência mística de Plotino e não a partir
da tradição ou raciocínio filosófico
73
. Para ele, a tentativa de Armstrong de demonstrar que a
experiência mística é o único elemento formador do discurso de Plotino sobre a alma que não
desce não convence, pois, se assim o fosse, haveria questões particulares não respondidas.
Armstrong não considera as referências platônicas nem peripatéticas e confunde a
interpretação decisiva de Platão com o relato da apreensão do Uno. Szlezák argumenta que,
enquanto na experiência da unificação o espaço para perguntas, uma teoria pode
respondê-las.
Szlezák discute sobre a alma que não desce tentando relacioná-la com o intelecto da
alma, e esse, com as potências da alma, analisando se ela se identifica com o logistikón ou
com o dianoetikón. Primeiro, ele identifica todos esses, alma que não desce, intelecto da alma,
logistikón e dianoetikón, e sublinha que o intelecto da alma é uma imagem do Intelecto
perfeito e divino, hipóstase
74
; depois, sugere que a alma que não desce, o intelecto da alma,
72
Szlezák mostra como Plotino utiliza alguns textos de Platão como base sobre os quais irá desenvolver, não
havendo, portanto, somente semelhanças casuais entre os autores e simples paráfrases. Ele evidencia a
importância do Fedro na questão da alma que não desce, além das alusões à República.
73
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 275. Entendemos que as duas
interpretações, aquela que parte da experiência mística e a que parte da análise da tradição e do raciocínio
filosófico, não são, necessariamente, de todo excludentes e seria possível conciliá-las; afinal, Plotino relata sua
experiência recorrendo à tradição.
74
Szlezák dialoga com outros intérpretes e explica que isso o é o claro, pois um dilema quanto à questão
do Intelecto em nós. Em síntese, a alma que permanece no alto está separada do que vê; mas, se então há uma
47
não poderia coincidir com o dianoetikón, sobretudo pelo fato de esse último não ter uma
atividade contínua, ao contrário da parte sempre pensante da alma
75
. Ainda assim, para ele, a
relação da alma que não desce com o dianoetikón não é clara. O mérito de Szlezák é manter
ressaltada a distinção entre a atividade descontínua do dianoetikón, o pensamento discursivo
que se desenvolve no tempo e que não pensa sempre, e a atividade contínua da alma que não
desce
76
. De fato, o dianoetikón como raciocínio discursivo, é descontínuo, o que impede sua
identificação com a alma que não desce, se essa tem e deve ter uma atividade contínua. Vale
ainda registrar que, em várias passagens das Enéadas, em especial o tratado 49 (Enéada V 3,
3), o dianoetikón e o logistikón são indistintos. Contudo, é preciso recordar a proposta desse
texto. Nesse momento, não importa a especificidade das funções da alma, pois a questão é
demonstrar a diferença entre o conhecimento de si da alma como um todo e do Intelecto
hipóstase, atribuindo o verdadeiro autoconhecimento a esse último.
No segundo tratado (Enéada IV 7, 13), buscando esclarecer a diferença entre a
essência indivisível e a essência divisível da alma, Plotino argumenta: 1. tudo que é simples
inteligência é impassível, permanece sempre e tem uma vida puramente intelectual, pois
não tem desejos nem impulsos
77
; 2. mas aquela na qual o desejo (o!reciv)
78
é acrescido e
que tende a produzir uma ordem conforme o que viu no Intelecto; ela se esforça (speu/dw) em
produzir e criar. Tal alma que exerce esse esforço em direção ao sensível não pertence
exterioridade entre o sujeito e o objeto, o Intelecto não estaria em nós; logo, o Intelecto em nós teria de ser
uma parte do próprio Intelecto e não uma imagem dele. Ora o Intelecto está na alma como ele mesmo, ora
como imagem e não como uma parte ou faculdade da alma. Ele nota que Armstrong e Merlan colocaram o
problema do pertencimento do Intelecto à alma em relação com a interpretação de Alexandre de Afrodisia do
noûs poietikós aristotélico. Ele discorda de Merlan, para o qual a questão da alma que não desce teria surgido
historicamente e se relaciona, portanto- com a problemática do noûs poietikós aristotélico; para Szlezák,
Plotino expressa essa questão como exegese platônica e não como resposta aos problemas de Alexandre de
Afrodisia. Cf. V 3 [49], 3, 22-26. Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p.
261-263; 267-273.
75
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 227.
76
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 227; 247.
77
IV 7 [2], 13, 2-4. #Oti o#sov me\n nou~~v mo/nov, a)paqh\v e0n toi~v nohtoi~v zwh\n mo/non noera\n e1xwn e)kei~ a)ei~
me/nei: ou) ga\r e!ni o(rmh\ ou)d o!reciv.
78
Segundo Bréhier, trata-se do desejo como tendência de agir e não de uma afecção. Cf. PLOTIN, Ennéades IV,
nota 1. Também entendemos dessa maneira, que Plotino se refere à ação da alma de ordenar o que recebeu
do Intelecto.
48
completamente ao corpo, pois ela tem algo (ti) exterior (e!cw) a ele; sua inteligência-noûs não
é afetada e está ora no corpo, ora fora dele
79
.
A questão é como interpretar essa última afirmação, crucial: ora o intelecto da alma
está no corpo, ora fora do corpo. Nessa passagem, a alma que não desce seria algo da alma
encarnada. Aqui Plotino parece utilizar o termo noûs para a razão ou alma racional. Se assim
o for, Plotino está indicando que mais de um tipo de atividade ou apreensão da alma
racional, uma que se volta para o corpo e outra para o alto, além dele. Tais apreensões se
difeririam tanto por seus objetos como pelo grau de domínio sobre o corpo.
De acordo com Szlezák, Plotino muda a interpretação do Timeu, segundo o qual o
daímon não está totalmente fora do corpo, ou seja, a parte divina da alma reside no ponto
supremo do corpo, na cabeça. Plotino entende que a parte divina da alma, seu daimon, é uma
parte acima da cabeça que está fora do corpo, além dele e, portanto, não interna a ele ou sobre
seu ponto mais elevado, sendo que essa sua superioridade ao corpo significa não estar ligada
ou presa a ele, dominada por ele
80
.
É importante e notável como Plotino afirma a existência de uma parte da alma que é
divina (qei/av me/n moi/rav ou}san)
81
, bem como a de uma alma purificada que, mesmo estando
no corpo, não acolhe desejo irracional (e)piqumi/av a)logo/uv), ira (qumo/v) e outras afecções e
que, na medida do possível (kaq o#son oi{on), não se comunica (koino/w) com o corpo
82
. A
questão é se essas almas e aquela que sempre permanece no alto (IV 8 [2], 4, 30-31) são a
mesma. Ora, se a alma é pura, ela é divina e assim o é porque está sempre voltada para o alto
e não para o corpo. Nesse sentido, poderíamos dizer que se trata de uma alma, dito de
maneiras sutilmente diferentes.
79
IV 7 [2], 13, 14-15. Ou!koun ou)de\ o( tau/thv nou~~v e)mpaqh/v. au)th\ de\ o(te me\n e)n sw/mati, o(te\ de\ sw/matov
e!cw.
80
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 252. Entendemos que, no Timeu,
Platão refere-se ao “imortal” ou princípio imortal” como aquilo que está fora do corpo, em oposição ao
logistikón, encarnado.
81
Cf. IV 8 [6], 7, 6.
82
Cf. IV 7 [2], 10, 7-11.
49
Outro ponto fundamental é que essa alma pura e divina ou alma originária se difere da
alma que se misturou a ela e na qual são acrescidos os males
83
. Mas, como vemos
frequentemente que a alma e sua maior parte é corrompida (lwba/zw), o conseguimos
pensá-la como divina e imortal. Segundo Plotino, é preciso analisar a natureza da alma em seu
estado puro, já que tudo que se acresce a ela é um obstáculo para conhecê-la; quando
retiramos tudo que foi acrescido à alma, tudo aquilo que ela não é, deparamo-nos com uma
inteligência-noûs que não (o(ra/w) o sensível nem essas coisas mortais, mas que concebe o
eterno pelo que ela tem de eterno; ela verá tudo no inteligível e se tornará inteligível
84
. Essa
natureza originária da alma parece ser algo superior da alma individual
85
.
Tentemos compreender se a alma que não desce seria alguma faculdade ou
potencialidade da alma. Para Szlezák, o logistikón não é somente raciocínio discursivo, mas
também é atribuído ao Intelecto puro; ou seja, ele tem uma função primária, noética, e uma
secundária, discursiva. Desse modo, segundo ele, Plotino diferencia o logistikón platônico ou
a alma suprema em pensamento discursivo e noético
86
. Contudo, apesar de Szlezák admitir
que o logistikón plotiniano tem um aspecto superior, noético, ele nota que Plotino o evita para
designar a alma superior voltada para o alto, pois ele geralmente enfatiza o aspecto discursivo
do mesmo. Szlezák entende que, no Fedro, o cocheiro representa a parte superior da alma,
isto é, aquela que não desce ou o intelecto da alma, e está além do logistikón ao qual participa
o que viu; portanto, o intelecto da alma, que está fora do corpo, guia a alma individual,
estando além do que ele governa. Sendo assim, o logistikón seria a parte intermediária da
alma e o a suprema. Entretanto, como ele assinala, nas Enéadas, não se pode afirmar
categoricamente que a alma que não desce está acima da estrutura tripartite da alma, porque
83
Cf. IV 7 [2], 9, 26-29.
84
Cf. IV 7 [2], 10, 25-37. Plotino contrapõe a natureza originária da alma ou alma pura à alma que passou por
acréscimos e, para representar essa última, recorre à imagem de Glauco, desfigurado por algas, conchas e
pedras. Cf. I 1 [53], 12, 14. Cf. PLATÃO, República 611d.
85
Cf. PLATÃO, Timeu 90d.
86
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 241; 246-247.
50
mudanças no decorrer dos tratados; o é sempre que Plotino sugere que o intelecto da
alma está além do logistikón isso seria correto somente para alguns tratados
87
.
Szlezák ainda lembra uma passagem (Enéada III 8 [30], 5, 10-13) em que o logistikón
é tido como a primeira (prw~ton) parte da alma, aquela que permanece no alto e pensa
continuamente; ele observa que, no Timeu, essa alma pensante é o logistikón
88
. Para ele, a
alma superior é essa criada pelo demiurgo, a alma racional em sua totalidade
89
. Entretanto,
lembramos que se deve considerar o contexto do tratado 30 referido: ele sugere a
anterioridade e a superioridade da Alma universal em relação às almas individuais. Portanto,
sempre haverá a dificuldade de saber a qual alma Plotino se refere.
De fato, Plotino sugere aspectos do raciocinar da alma. Eis uma passagem
fundamental em que ele mostra as diferenças entre o logizómenon e o logízesthai, sugerindo a
superioridade do primeiro:
A alma que possui o intelecto é perfeita. Mas é preciso distinguir o intelecto
que raciocina e o que expõe o raciocínio. Esse elemento raciocinante
(logizómenon) da alma não precisa de um órgão corpóreo para raciocinar;
ele tem sua própria atividade no puro, a fim de que assim seja possível
raciocinar puramente; ninguém falharia em colocá-lo como separado e sem
mistura com o corpo, no primeiro inteligível. Não se deve perguntar onde
ele se encontra, mas é preciso tê-lo como totalmente sem lugar
90
.
O problema, diz Szlezák, é a aparente contradição entre a descontinuidade do
logízesthai, devido ao seu aspecto discursivo, e a continuidade dessa alma superior noética. O
87
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 237-241; 247; 258.
88
Cf. SZLEZÁK, Plotin et la theorie platonicienne de l’âme, p. 179-180.
89
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 277-278.
90
V 1 [10], 10, 12-18. Telei/a de\ h( nou~n e!xousa: nou~v de\ o9 me\n logi/zo/menov, o9 de\ logi/zesqai pare/xwn. To\
dh\ logizo/menon tou~to th~v yuxh~v ou)deno\v pro\v to\ logi/zesqai deo/menon swmatikou~ o0rga/nou, th\n de\
e0ne/rgeian e(autou~ e0n kaqarw~|| e!xon, i#na kai\ logi/zesqai kaqarw~v oi{on te h}|, xwristo\n kai\ ou0
kekrame/non sw/mati e0n tw~| prw/tw| nohtw~| tiv tiqe/menov ou0k a@n sfa/lloito.
51
pensar da alma superior expressa a presença da Alma hipóstase, sendo que ele dura sempre,
mesmo de modo inconsciente; tal atividade é ininterrupta, mas como a alma nem sempre faz
uso daquela presença, parece que ela não é contínua
91
. Com efeito, talvez Plotino esteja
mesmo indicando um aspecto noético
92
com o logizómenon, pois o apresenta aqui como puro
e independente do corpo. A grande dificuldade aqui esno uso de noûs para ambas as almas
ou atividades da alma. De todo modo, vimos que o intelecto da alma também não depende do
corpo, pois está separado dele.
Ainda não é claro se o logistikón é a alma intermediária ou a suprema. Algumas
passagens obscuras geram essa dificuldade. Em IV 3 [27], 12, 4-8, Plotino diz que as almas
individuais, quando descem para a terra, mantêm sua cabeça no céu, e que descem porque
uma parte intermediária que é forçada a cuidar do corpo. Em II 9 [33], 2, 4-10, Plotino afirma
que uma alma sempre direcionada para o inteligível, uma para o sensível e uma
intermediária. Entendemos que a intermediária é aquela que ora se volta para o sensível, ora
para o inteligível. Mas será, então, que a alma intermediária seria o aspecto dianoético do
logistikón e a alma superior seu aspecto noético? Se esse for o caso, ou, de fato, o logistikón
tem um aspecto superior, noético, que sempre está no inteligível, ou o intelecto da alma será a
alma suprema que não desce.
A questão é que o próprio Plotino expressa a falta de sentido em perguntar onde tal
alma separada do corpo se encontra, pois ela não está em nenhum lugar propriamente. E
mesmo que o contexto aqui seja a explicação sobre a presença das hipóstases em nós e, por
isso, ele distingue a alma que raciocina e a que fornece o raciocínio, Plotino é claro em
91
Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 250-251.
92
Estamos entendendo noético nesses sentidos: algo contínuo, não sucessivo, não discursivo, imediato. Portanto,
trata-se de uma caracterização que ultrapassa a natureza sensível e divisível da alma; por sua vez, a alma
indivisível deve ter algo semelhante ao Intelecto divino ao qual pode se unir.
52
afirmar que o logizómenon se mantém fora do corpo. Ademais, afigura-nos que a questão é
mais evidenciar que a alma tem um intelecto e não o que ele é ou onde está
93
.
Outro problema é que Plotino não é tão minucioso em expor as competências do
logistikón, como Platão o fez, por exemplo, discorrendo sobre seu papel de direcionamento
das potências inferiores da alma no que concerne ao controle das afecções e à prática das
virtudes, âmbitos nos quais o logistikón está envolvido e que interessam Plotino. Se Plotino
desenvolvesse mais sobre esse papel tanto em relação ao logistikón quanto ao intelecto da
alma, talvez teríamos condições de justificar até que ponto o logistikón é superior, sendo ou
não o ápice da alma.
Para Blumenthal
94
, o logistikón não é a alma que não desce, pois, segundo o tratado 26
(Enéada III 6, 2), ele pode ter vício e isso é contrário à impassibilidade e impecabilidade
daquela alma. Mas vejamos, brevemente, o que Plotino indica nesse texto, a nosso ver. Em
suma, Plotino discute se virtude e vício implicam alteração e passibilidade da alma. Seu
propósito é sustentar que a alma não é afetada e não sofre modificações próprias ao corpo ou
algo corpóreo
95
. Ele discorre sobre a virtude e o vício das potências apetitiva, irascível e
racional (logistiko/n), tendo em vista a questão da passibilidade e impassibilidade das
mesmas. A virtude de cada uma das partes da alma é agir conforme a essência e obedecer à
razão; depreende-se que o vício é o contrário, não obedecer à razão. O vício da racional é o
não conhecimento (a!gnoia) produzido pelas opiniões falsas, e sua virtude é agir conforme o
Intelecto a virtude das outras depende da racional; essa se relaciona com o Intelecto e o
sem que lhe apareça uma marca como a figura na cera
96
. Ademais, as potências da alma não
se alteram quando se atualizam. Plotino explica que não é a alma propriamente que tem
93
Em I 1 [53], 8, 1-2, Plotino emprega o termo “estado” (e#civ) para descrever o intelecto da alma e diferenciá-lo
do Intelecto em si.
94
Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 103-105. Cf. III 6 [26], 2 e
3.
95
III 6 [26], 1, 11-14.
96
III 6 [26], 2, 29-41.
53
afecção e se modifica, pois as atividades dos seres imateriais são desenvolvidas sem que eles
se alterem, senão, eles pereceriam; ser afetado é próprio dos seres acompanhados de
matéria
97
. A alma é, pois, princípio de movimento de apetites, raciocínios e opiniões –, mas
ela mesma não se movimenta, sendo imutável em sua essência
98
. Sendo assim, Plotino indica
que o logistikón, ainda que tenha vício, é impassível. Mas não se alterar não é suficiente para
identificá-lo ou não ao intelecto da alma e à alma que não desce, afinal as outras potências
também não se modificam. Blumenthal ressalta uma passagem sobre a alma que, com efeito,
vemos constituir um forte indício de que o logistikón e o logizómenon são distintos do
intelecto da alma: “Deve-se admitir que um outro intelecto além do que raciocina e que é
denominado racional”
99
.
Logo, a relação da alma que o desce com a alma racional (yuxh/ h( logikwte/ra),
com o dianoetikón, o logistikón e o intelecto-noûs da alma, permanece obscura. O fato de
Plotino se referir tanto ao logistikón como ao intelecto da alma como aquilo da alma que pode
ser e é independente do corpo, leva-nos a não ter indícios claros e argumentos suficientemente
fortes para a distinção dos mesmos e a identificação deles com a alma que não desce. A
fluidez da terminologia contribui para essa obscuridade, que Plotino, às vezes, utiliza o
termo noûs para a alma racional e às vezes os diferencia
100
. Ademais, Plotino não evidencia se
uma ou mais potencialidades ou aspectos do logistikón, se ele inclui ou não intelecto da
alma. Constatamos, pois, uma tensão relativa ao intelecto da alma e ao logistikón, sendo que
tendemos a encará-los, enquanto potências superiores da alma, como aquilo da alma
individual encarnada que não desce, mas apenas como uma hipótese. Quanto ao impasse da
igualdade ou da diferença do logistikón e do dianoetikón, discutiremos no próximo item.
97
III 6 [26], 2, 45-52.
98
III 6 [26], 3, 22-36.
99
VI 9 [9], 5, 7-9. Meta\ de\ tau~ta nou~n labei~n e#teron tou~ logizome/nou kai\ logistikou~ kaloume/nou.
100
Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 104-105.
54
Outra maneira de considerar a alma que o desce seria pensar não em suas potências
superiores, mas em sua essência, como alma indivisível que está fora e além do corpo, já que,
em contraposição a ela, é sua imagem que desce ou se dirige para o sensível. Plotino estaria se
referindo simplesmente à alma essencial ou propriamente dita, e essa é uma hipótese que não
pode ser descartada. E outra hipótese é a de que a alma essencial indivisível e a alma racional
coincidem
101
. Nesse caso, o logistikón e o intelecto da alma seriam manifestações da alma
essencial; se a alma essencial coincide com o intelecto da alma, o logistikón seria sua
manifestação. Sendo assim, as dificuldades não estão somente na terminologia. Encontramos,
pois, essa tensão relativa à alma superior, que ora seria tida como a essência indivisível da
alma, ora como as potências superiores da alma individual encarnada. Uma passagem que
parece reforçar a hipótese das potências superiores da alma individual encarnada é aquela em
que Plotino diz que há virtudes da intelecção estabelecidas na alma separada a qual é separada
mesmo estando aqui
102
.
O curioso é que Plotino poderia dizer explicitamente que aquilo da alma que não desce
é sua essência, afinal, esse termo seria menos obscuro que o impessoal ti, o qual ele enfatiza.
Mediante o uso do impessoal, ele estaria indicando uma tensão irresoluta entre as potências
superiores do logistikón, do dianoetikón e o intelecto da alma, bem como a essência
indivisível da alma. Mantemos em aberto a questão de qual deles seria o algo da alma que não
desce, sendo que optamos pelas seguintes hipóteses: ele seria a alma essencial, o intelecto da
alma, o logistikón ou seu possível aspecto noético ou mesmo a alma racional como um todo.
Notamos que a essência indivisível da alma e as potências superiores da alma
individual permanecem direcionadas para o alto ou inteligível. Por um lado, Plotino indica
que algo da alma que não está de todo imerso no sensível e no corpo, não se submetendo
aos seus limites. A alma que não desce, considerada no corpo, é independente dele no sentido
101
Plotino estaria conciliando a alma essencial e indivisível ou o “princípio imortal” do Timeu com o logistikón
da República.
102
Cf. I 1 [53], 10, 7-10.
55
de não ser dominada por ele, pois permanece sempre no inteligível. Por outro lado, ele mostra
que a alma desce aos corpos, perdendo suas asas, à medida que se liga ao sensível através de
sua imagem ou de algumas de suas potências, esquecendo-se do inteligível. Sendo assim,
analisaremos as potências da alma a fim de tentarmos esclarecer quais seriam as que se
dirigem para o sensível e quais, para o inteligível.
1.5 ASPECTOS DAS POTÊNCIAS DA ALMA
Uma vez que nos propomos a desenvolver este estudo preliminar acerca da alma, não
poderíamos deixar de apresentar, de algum modo, algumas discussões sobre alguns aspectos
das potências da alma, envolvidas direta e indiretamente no mesmo. Entretanto, além de não
ser possível neste trabalho, não é nosso intuito desenvolver plenamente as dificuldades
concernentes às potências da alma. Apresentaremos, portanto, algumas das muitas aporias
relativas à estrutura da alma individual, sempre que elas se relacionarem com nosso tema,
bem como forneceremos alguns pressupostos e condições para a questão central da definição
do homem nas Enéadas, pois não pretendemos dar conta de toda a teoria da alma.
Tendo em vista os tipos de homens do tratado 38 (Enéada VI 7), homem sensível e
homem racional, e a frequente interpretação de identificação desses com a alma sensível e
racional, analisaremos as potências da alma a partir dessa divisão. E, ainda, a fim de
compreendermos a distinção entre o homem e o vivente, faz-se necessário o esclarecimento
da imagem da alma em termos de potência e das potências da alma.
Finalmente, não deixaríamos de fazer algumas observações preliminares acerca das
potências da alma. Plotino mostra que a potência é diferente da capacidade que fornece
56
àqueles que a possuem, isto é, ela é princípio ou causa da capacidade de agir e de sentir
103
. Ou
seja, as potências são eficazes pela simples presença. Sendo assim, pode-se afirmar que elas
são produtivas e ativas no sentido de possibilitarem a ação àquele que as possui. Ademais,
elas são potências das coisas e não “em potência” das coisas
104
.
Para Aubry, a potência plotiniana é atual e ativa, o é algo que se torna ativo como
uma tendência. Ela pontua que, em Aristóteles, a noção em potência” evoca uma tendência
que se encaminha para um futuro, o que implica uma incompletude e uma passividade; tal
noção também indica uma dependência de outro, pois ela se faz a partir de outro e não por si
mesma. Segundo Aubry, a potência plotiniana é autárquica e ativa e não em potência”. Ela
sustenta que a alma não tende para o ato, mas é o ato do qual procede a potência
105
. Para a
intérprete, a potência plotiniana é princípio da faculdade: enquanto a primeira é imóvel e
procede do ato, a segunda é movida e exige o corpo para ser em ato. Assim, além de ser ato, a
potência é produtiva, autônoma e acabada
106
. Notamos que, nesse tratado, é possível concluir
que as potências geram ação
107
. Contudo, julgamos que o tratado 53 (Enéada I 1), um dos
textos alvos de nossa pesquisa, não é suficiente para esclarecer as noções de ato e potência, o
que pode ser feito por meio do tratado 25 (Enéada II 5). Por isso, não avaliaremos o
comentário da intérprete reproduzido aqui.
Ainda em I 1 [53], 6, Plotino afirma a imobilidade das potências da alma mesmo que
gerem o movimento. Aubry assinala que o movimento se relaciona com a matéria e não com a
forma
108
. Dessa imobilidade das potências da alma, pode-se extrair que elas, por si sós, não se
alteram, não sofrem afecções
109
. Junto à alma, elas são princípios de movimento. Parece-nos
103
Cf. I 1 [53], 6.
104
Cf. II 5 [25], 3.
105
Nesse raciocínio, segue-se que se a alma é ato, a potência também o é na medida em que é produto dela.
106
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 182-186.
107
Não se pode esquecer essa distinção sutil que sugere que não é a alma nem as potências que possuem e
desenvolvem as atividades, pois aquelas são causas dessas.
108
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 190.
109
Trata-se também da questão da mortalidade e da imortalidade das partes ou gêneros da alma, na qual não
iremos adentrar, pois seria preciso um estudo do tratado 26 (Enéada III 6).
57
que é por isso que Plotino ressalta uma oposição entre a causa ou o princípio da vida – a alma,
incluindo suas potências –, que é sem afecções, e o que recebe e possui a vida o conjunto
(sunamfo/teron) ou vivente (zwo/v) –, que sofre as afecções; a alma é e tem a vida uma
vida perene que a faz ser imortal.
Sublinhamos que a alma é a causa da vida, pois fornece vida por meio das potências
que procedem dela; sendo assim, a alma não é a vida do corpo, pois não é ela quem o anima
diretamente. E, uma vez que a alma confere vida ao corpo através de suas potências, essas,
por conseguinte, pode-se dizer, também acabam sendo a causa da vida. Desse modo, Plotino
indica que a alma é a causa das afecções, mas não aquilo a que se deve atribuí-las, mantendo-
se, portanto, impassível.
Assim, percebemos o quão importante é a teoria da imagem e das potências da alma
para Plotino, pois elas garantem a impassibilidade da alma, permitindo e exigindo que a
transcendência da alma aos corpos seja condição da sua presença neles. Ela assegura a
continuidade da processão e a união sem comunhão da alma e do corpo, refletindo a
superabundância da alma. Então, pode-se afirmar que essa noção de imagem da alma
consegue acabar com o dualismo corpo-alma? Sim, pois estamos entendendo o dualismo
como uma separação total entre dois elementos impermeáveis e não somente como uma
distinção entre eles; em outras palavras, como uma exterioridade radical entre elementos sem
nenhuma articulação.
Com efeito, Plotino desenvolve uma distinção, diríamos, radical entre a alma e o
corpo, sobretudo, quanto à impassibilidade da primeira e, para isso, recorre a um tipo de
“separação na união” entre eles possibilitada por esse elemento de mediação, a imagem da
alma. Mas o objeto principal de Plotino é a impassibilidade da alma em sua união com o
corpo através de sua projeção, o que significa que a articulação entre eles é aceita e
pressuposta. Contudo, a interação entre a alma e o corpo não invalida a autonomia da
58
primeira, como essência una e inalterável. Sendo assim, a nosso ver, Plotino distingue dois
elementos, corpo e alma, nesse caso, pelas afecções ao mostrar a impassibilidade da alma em
oposição à passibilidade do corpo, mas não os opõe sem nenhuma relação. Logo, não é
cabível dizer que há um dualismo na união da imagem da alma e do corpo, que ela mantém
relações com ele através desse elemento intermediário.
Mesmo se ainda nos restam dúvidas e o conseguimos delimitar com precisão o que
seria exatamente a alma que o desce, admitimos que um dualismo talvez caiba a ela e ao
corpo, pois, como vimos, ela permanece sempre no inteligível, independente do corpo.
Dizemos talvez porque vimos que a relação dela com o corpo guarda um grau de incerteza, já
que Plotino afirma que ela, na medida do possível (kaq o#son oi{on), não mantém relações
com o corpo. De todo modo, notamos que, quando se questiona sobre a relação da alma com o
corpo para Plotino, é preciso especificar, antes de tudo, qual alma e em quais condições ela se
relaciona com ele. Ademais, o que nos interessa compreender é se, uma vez que a alma
existiria sem o corpo, o homem como a alma também existiria ou seria homem sem o corpo;
essa questão será investigada no tratado 38 (Enéada VI 7).
1.5.1 A alma vegetativa e a alma sensitiva
Uma vez que nos importa compreender a imagem da alma, a qual, como vimos, se une
e se dirige ao corpo formando o vivente –, tentaremos esclarecer qual ou quais potências da
alma ela incluiria. Notamos que a alma divisível e inferior abarca as potências vegetativa (to\
futiko/n), desiderativa (to\ orektiko/n, o)re/gesqai) e sensitiva (to\ ai)sqhtiko/n) e a perceptiva
(a)ntilamba/nesqai); a indivisível e superior se identifica com a racional (to/ logiko/n,
logi/zesqtai).
59
Quanto à alma ou potência vegetativa, deparamo-nos com a dificuldade de se ela
pertenceria à alma irascível-apetitiva ou, o contrário, se essa última é que se incluiria naquela.
Vejamos como alguns intérpretes nos auxiliam na questão. Igal desenvolve um estudo
interessante sobre o problema, mostrando que ora a alma vegetativa é incluída na irascível-
apetitiva” (III 4 [15], 6, 39-40), ora é excluída dela (IV 9 [8], 3, 15-16); por vezes, a apetitiva
(to\ e)piqumhtikón) e a irascível (qumiko/n) se relacionam, de algum modo, com a vegetativa e
a sensitiva (III [15], 4, 2, 12-14)
110
. Collette, por sua vez, somente indica que o desejo
(e)piqumi/a) concerne à alma vegetativa
111
. Em III 4 [15] 2, 3-4, Plotino divide a alma em
vegetativa (futikh/), sensitiva (ai)sqhtikh/) e racional (logikh/), e em VI 9 [9], 1, 40, o faz nas
potências de desejar (o)re/gesqai), perceber (a)ntilamba/nesqai) e raciocinar (logi/zesqai).
Logo, pode-se dizer que vegetativa e desiderativa, assim como sensitiva e perceptiva se
correspondem de algum modo.
uma passagem das Enéadas que, a nosso ver, é fundamental: em IV 4 [28], 28, vê-
se que o apetite e a cólera, como afecções e tendências, são gerados pela alma vegetativa
mas não nela, isto é, como interior a ela –, a qual lhes dá seu traço (i!xnov) e se difunde a todo
o corpo; desse modo, a alma vegetativa é responsável pela atividade deles, os quais não se
identificam com ela, sendo-lhe posteriores:
Mas, se se divide o irracional da alma em desiderativa e irascível a
desiderativa seria a potência vegetativa e a irascível um traço da vegetativa
no sangue e na bile ou nos dois , não se chega a uma divisão correta,
porque a desiderativa é anterior e a irascível, posterior. Mas nada impede
que os dois sejam posteriores e que a divisão seja feita como as duas
110
Cf. IGAL, Aristoteles y la evolucion de la antropologia de Plotino, p. 322-323.
111
Cf. COLLETTE, Dialectique et hénologie chez Plotin, p. 25.
60
derivando do mesmo. Pois a divisão dos desejos concerne a impulsos e não
à essência da qual eles derivam
112
.
Blumenthal observa bem que a dificuldade de se compreender as várias funções da
alma se agrava com a ausência de uma terminologia fixa. Ele mostra que Plotino emprega
geralmente o termo “vegetativa” para designar a alma inferior, mas que, às vezes, também a
denomina “nutritiva” (to\ oreptikón), opondo-as à sensação (IV 9 [8], 3, 21-23). Blumenthal
sugere que o termo “nutritiva” é utilizado em um sentido limitado que denota uma das
faculdades da alma inferior ou uma subfaculdade da faculdade inferior, a vegetativa. Assim
como a nutritiva, também outras, como potência de crescimento (au)cetikón) e de
reprodução (gennhtikón), sendo que todas elas formam um grupo para expressar a
vegetativa
113
.
Em VI 4 [22], 15, 14-17, Plotino relata como se forma o corpo animado ou o vivente.
Em síntese, ele diz que isso ocorre através de um traço da alma, um calor ou irradiação não
de uma parte (me/rov) dela que faz surgir os desejos, prazeres e dores. Ora, se essa projeção
da alma não é exatamente uma parte dela, tudo indica que é uma ou algumas de suas
potências, as quais se dirigem para o corpo, gerando o vivente. Logo, a imagem da alma,
referida em I 1 [53] 7, 1-6; 8, 15-18, como “a outra espécie de alma” refletida para formar o
vivente, parece se identificar com as potências apetitiva e irascível projetadas pela alma
vegetativa. Concordamos com Igal de que se trata da imagem da alma inferior, a qual projeta
sua sombra, mas não que ela, alma inferior, seja a imagem da alma
114
; afinal, o reflexo seria
sua(s) potência(s).
112
IV 4 [28], 28, 64-70. )All ei) to\ a!logon th~v yuxh~v diairoi~to ei)v to\ e)piqumhtiko\n kai\ qumoeide\v kai\ to\
me\n ei!h to\ futiko/n, to\ de\ qumoiede\v e)c au)tou~ i!xnov peri\ ai{ma h@ xolh\n h@ to\ sunamfo/teron, ou)k a@n
o)rqh\ h9 a0ntidiai/resiv gi/noito, tou~ me\n prote/rou, tou~ de\ u(ste/rou o!ntov. @H ou)de\n kwlu/ei a!mfw
u#stera kai\ tw~n e)pigenome/nwn e)k tou~ au)tou~ th\n diai/resin einai: o0rektikw~n ga\r h( diairesiv, h[|
o0rektika\, ou) th~v ou)si/a, o!qen e0lh/luqen.
113
Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 26-27.
114
Cf. IGAL, Aristoteles y la evolucion de la antropologia de Plotino, p. 326.
61
Igal nota que, às vezes, o apetite e a cólera são potências desiderativas (o)rektika/),
subordinadas à essência vegetativa, da qual derivam, mas não a constituem
115
. No mesmo
sentido, Blumenthal também entende que, para Plotino, apetite e cólera o atividades da
mesma “área” da alma, sendo tipos de desejo (o!reciv) da faculdade desiderativa (to/
o)rektikón)
116
. Talvez Plotino se refira a eles desse modo, incluídos na alma desiderativa, em
VI 9 [9], 1, 40 quando divide a alma nas faculdades de desejar (o)re/gesqai), perceber
(a)ntilamba/nesqai) e raciocinar (logi/zesqai).
A alma ou potência sensitiva (ai)sqhtikh/), segundo Blumenthal, inclui os sentidos e a
sensação (a1isqesiv) externa e interna, imaginação, memória, opinião e copercepção
(sunai/sqhsiv). Ele assinala que, embora a alma vegetativa seja a base do desejo, só o
percebemos quando ele atinge a faculdade sensitiva; em outras palavras, o desejo permanece
confinado à faculdade desiderativa e não nos despertamos para ele até que a sensação nos faça
percebê-lo
117
. Ora, se assim o for, parece que a potência sensitiva é um complemento
necessário à vegetativa, ou seja, para que essa última desempenhe por completo sua função,
ela precisa daquela. Nesse sentido de que a vegetativa está atrelada à sensitiva, pode-se
depreender que a sensitiva também se dirige para o corpo. E, se essa dependência da
vegetativa em relação à sensitiva, seria admissível dizer que a sensitiva é, em última instância,
a causa ou a responsável pela produção do vivente.
Constatamos que também existem dificuldades quanto às potências de sentir
(ai)sqhtikh/) e de perceber (a)ntilamba/nesqai), sendo que alguns intérpretes as consideram
iguais, outros, diferentes. Uma vez que ultrapassa o escopo desse breve estudo das potências
115
Cf. IGAL, Aristoteles y la evolucion de la antropologia de Plotino, p. 323.
116
Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 31-40. Blumenthal
aprofunda na discussão sobre desejo (o!reciv) e impulso (o(rmh/), incluindo esse último na alma ou faculdade
desiderativa.
117
Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 40, 42. Cf. IV 4, 20, 14-
17; IV 3-5; IV 8 [6], 8, 9-11. A sensação interessa-nos, sobretudo, na relação corpo-alma e, logo, na sua
relação com o homem sensitivo, com o vivente e as afecções. Sobre a natureza da sensação e a percepção de
objetos sensíveis exteriores, cf. COLLETTE, Dialectique et hénologie chez Plotin, p. 27-33.
62
da alma, não é o caso de adentrarmos na discussão sobre elas, assim como sobre a memória e
a imaginação
118
, pois não seria possível aqui e não é nossa pretensão, como dissemos,
analisar todos os aspectos das potências da alma.
Notamos que são as potências inferiores, ditas de modo geral e ordinário, que descem
ou se dirigem para o corpo. a dificuldade de se estabelecer quais elas seriam porque
Plotino concilia a terminologia platônica da tripartição da alma em racional, irascível e
apetitiva, com a aristotélica das funções intelectiva, sensitiva e vegetativa. Por isso, pode-se
dizer que ora a alma vegetativa inclui o apetite e a cólera, ora não, bem como que a alma
sensitiva se relaciona com a vegetativa e, por conseguinte, participa da imagem da alma ou
coincide com ela.
1.4.2 A alma racional
Para apresentar a razão, suas atividades e suas potências, Plotino emprega vários
termos: diánoia, dianoetiko/n, logismo/v, lo/gov, logistiko/n, logi/zesqai e logizo/menon.
Tentaremos esclarecê-los na medida do possível, analisando algumas interpretações sobre os
mesmos.
A alma racional (dianoetikón), para Blumenthal, inclui o julgamento (kri/siv) e a
razão (logismo/v). Para ele, o logistikón e o dianoetikón o sinônimos, apesar de serem
utilizados em variações livres. Ele recorre ao tratado 49 (Enéada V 3) para justificar tal
equivalência
119
. Vejamos a especificidade desse texto no qual ele se baseia. Plotino mostra
que o logizómenon estabelece um juízo (e)pi/krisiv) a partir das operações de divisão
118
Para uma análise mais detida sobre a percepção e a sensação, assim como sobre a memória e a imaginação,
cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 67-99.
119
Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’ Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 102-103.
63
(diaire/w) e síntese (suna/gw) em relação a objetos externos, às representações
(fa/ntasmatoi) derivadas da sensação, como também às impressões (tu/poi) do Intelecto
hipóstase. Tendo acabado de se referir às operações do logizómenon, Plotino questiona se o
intelecto da alma (nou~~v o( th~v yuxh~~v) chega somente a esse ponto com sua potência ou se é
capaz de se conhecer a si mesmo; em seguida, se o dianoetikón, voltando-se também para
objetos internos, é capaz de conhecer a si mesmo. Imediatamente após, ele discorre sobre a
operação da diánoia que utiliza as impressões (tu/poi) advindas da sensação, operando pela
divisão e se pronunciando sobre elas, realizando uma atividade semelhante à do
logizómenon
120
. Assim, vemos que, nesse tratado 49 (Enéada V 3, 3), a natureza da diánoia é
ambígua, pois, ao mesmo tempo em que se volta para as sensações, ela é a pureza da alma,
aquela que recebe os traços do Intelecto.
Desse modo, em V 3 [49], Plotino, às vezes, parece identificar os três termos e suas
atividades, logizómenon, dianoetikón e diánoia. Notamos que, por esse texto, não é
apropriado relacioná-los com a alma que não desce, pois Plotino enfatiza que eles se voltam
também para o sensível ou para o exterior, mas em um caso ou contexto específico, no
processo do conhecimento de si. Sendo assim, como dissemos, esse texto o nos parece
ser o mais adequado para compreendê-los à luz da alma que não desce, que Plotino os
identifica à alma como um todo que é incapaz do verdadeiro conhecimento de si; assim, eles
não diferem quanto à tal incapacidade. Portanto, para desenvolver a proposta do tratado,
Plotino utiliza-os indistintamente, que não é seu intuito diferenciá-los nesse momento, mas
opô-los conjuntamente ao Intelecto e seu autoconhecimento, assim como à faculdade sensitiva
direcionada exclusivamente para o exterior. Logo, nesse tratado, muitas vezes os três termos
aparentam recobrir uma única potência ou parte da alma. Entre os intérpretes consultados, é
consenso que Plotino faz uso conjunto dessas expressões.
120
Cf. V 3 [49], 2.
64
De acordo com Lacrosse, o logistikón e o dianoetikón manifestam potências
diferentes, cada um tendo sua especificidade. Enquanto a diánoia não tem uma necessidade
exclusiva de se voltar para o sensível, pois, sendo parente do Intelecto e tendo saído dele, se
volta a ele, o logismós volta-se para o exterior
121
. Ele afirma, junto com Couloubaritsis
122
, que
a faculdade dianoética, dianoetikón, é fundadora do processo de raciocinar, sendo parente do
Intelecto – o que se constata em sua etimologia. Para Collette, a potência dianoética manifesta
o parentesco e a origem do poder de conhecer; assim como Lacrosse, ele toma por base o
tratado 49 (Enéada V 3, 6, 20-27 e 35-41), reafirmando-a como intelecto ou algo intelectual
(noero/n), pois, como afirma Plotino nessa passagem, é pelo Intelecto (dia\ nou~) e do Intelecto
(para\ nou~) que ela tem seu poder.
Contudo, junto com Ham
123
, vemos que se trata de mostrar ao dianoetikón que ele é, à
sua maneira, intelecto, e que sua capacidade de conhecer vem do Intelecto, sendo uma
projeção do ato dele. Assim, fazemos coro também com Corrigan
124
: o dianoetikón é um certo
intelecto, um intelecto individual. Plotino argumenta que o dianoetikón enuncia o que vem do
alto porque é um lógos e porque toma o que lhe é semelhante adaptando-o aos tros
presentes nele. A nosso ver, quando Plotino diz que o dianoetikón tem seu poder a partir do
Intelecto, significa que ele tem seus princípios no Intelecto, mas vemos no decorrer das
Enéadas que não é só ele, mas a alma racional e a alma como um todo
125
.
Para Collette, a faculdade de raciocinar, logistikón, é mais próxima de uma operação
noética. O uso conjunto de mais de um termo para a alma soberana não destrói sua
indivisibilidade, pois é o discurso que a divide para especificar suas potencialidades. E é nisso
que se encontra a dificuldade: ao mesmo tempo, dividir a alma e não esquecer sua unidade.
121
Cf. LACROSSE, L’amour chez Plotin. Érôs hénologique, hérôs noétique, érôs psychique, p. 83-85.
122
Cf. COULOUBARITSIS, Le logos hénologique chez Plotin, p. 232.
123
Cf. PLOTIN, Traité 49, p. 146.
124
Cf. CORRIGAN, L’auto reflexivité et l’experience humaine, p. 152.
125
Voltaremos a algumas questões sobre dianoetikón e à diánoia no capítulo 3, quando examinarmos o tratado
53 (Enéada I 1).
65
Plotino identifica o logistikón e o dianoetikón quando estabelece a afinidade entre a alma e a
Inteligência pela faculdade dianoética e os diferencia, que a alma superior precisa estar nos
raciocínios. Por isso, Collette também considera a faculdade dianoética como fundadora ou
causa da faculdade de raciocinar, que é seu modo de funcionamento. Assim, “os dois
[logistikón e dianoetikón] manifestam, à sua maneira, um aspecto ou uma potência de um
mesmo poder de conhecer”
126
.
ainda uma passagem ambígua em V 3 [49], 4, 24-26. Após discorrer sobre o
dianoetikón, Plotino diz que é por uma outra potência (a!llh| duna/mei) que conhecemos o
Intelecto e seu ato de conhecimento de si. Uma vez que ele excluiu o dianoetikón e não
explicitou nem o intelecto da alma nem o logistikón, como estava fazendo, poderíamos pensar
em uma outra potência da alma e, nesse caso, intuitiva, além deles? Ou ela se confundiria com
algum deles?
Talvez Plotino possa estar se referindo a uma potência intuitiva, mas, a nosso ver,
somente essa passagem de V 3 não é suficiente para se afirmar categoricamente que se trata
disso. O que talvez também se afirmaria é que essa potência da alma ou a própria alma se
confunde com o Intelecto, sendo ao mesmo tempo alma e Intelecto, ou melhor, tornando-se
Intelecto
127
. Uma hipótese é que talvez essa outra potência seja o algo da alma que permanece
sempre no inteligível, o que reforçaria a ideia de que a alma que não desce é uma de suas
potências. Entretanto, Plotino não menciona claramente o que seria essa outra potência. Em
seu comentário a esse tratado, Ham sustenta que se trata de uma ultrapassagem do exercício
da razão discursiva e não de uma outra potência da alma, ou seja, trata-se da alma levada à
126
COLLETTE, Dialectique et hénologie chez Plotin, p. 52-53.
127
Trata-se do tema da união da alma com o Intelecto, no qual se inclui uma questão complexa, qual seja, a da
permanência ou não da individualidade ou personalidade. O problema é se haveria uma distinção entre a alma
que se torna Intelecto e o próprio Intelecto. Isso se estende para o homem e sua individualidade na união com
o Intelecto e, por conseguinte, com o Uno. Cf. O’DAILY, Plotinus’ Philosophy of the Self, p. 53-59. Cf.
PLOTIN, Traité 53, p 236-238.
66
sua própria essência quando é liberada do exercício de uma faculdade que a conduz abaixo do
que ela é. O argumento não é de todo absurdo, pois faz sentido pensar na essência da alma.
Constatamos que permanece a dificuldade de delimitar precisamente os elementos
constituintes da alma superior, ou ainda, as potencialidades e atividades da alma racional
(logikh/), sua amplitude e sua divisão. Pode-se concluir que ela é sede do logismós e da
diánoia, das potências do logistikón e do dianoetikón; o intelecto da alma ora parece estar
incluído nela ora além dela, mais especificamente, ora como parte das atividades do logistikón
ora superior a ele. A nosso ver, o intelecto da alma, o dianoetikón, o logistikón e o
logizómenon devem ser tomados no contexto de cada tratado para serem identificados ou
diferenciados, pois Plotino os emprega, ora indistintamente, ora com alguma sutil
diferenciação dependendo da especificidade do texto.
1.5 CONCLUSÃO
Vimos que Plotino estabelece a unidade e a divisibilidade da alma como fundamento
para demonstrar que a alma permanece una e a mesma apesar de dirigir sua imagem, isto é,
suas potências inferiores para o corpo, formando o vivente. A noção de imagem da alma
assegura a unidade da alma ao mesmo tempo em que explica como se opera a descida da alma
aos corpos; através dela, a alma está presente toda inteira nos corpos, sem, no entanto, deixar
de ser una. Em outras palavras, a alma se torna divisível quando se associa aos corpos, mas,
mesmo estando neles, é e permanece indivisível. Enquanto a imagem da alma ou suas
potências inferiores se unem ao corpo, algo dela que não desce e que parece se identificar
tanto com sua essência indivisível quanto com suas potências superiores que se voltam para o
67
alto. Não se pode esquecer que as várias potências da alma representam suas múltiplas
funções, mas não partes que a dividem, de fato.
Portanto, se a alma é sempre una e a mesma em sua essência, dizer que, para Plotino,
uma alma que desce e uma alma que não desce significa que, enquanto algumas potências
da alma se direcionam para o corpo, para baixo ou para o sensível, outras permanecem sempre
orientadas para o alto ou inteligível. Discutir, nem que seja de modo mais geral e breve,
acerca dessas potências, inferiores e superiores, auxiliar-nos-á quando Plotino apresentá-las
como imagem da alma que forma o vivente e como alma que não desce, respectivamente.
Ademais, tal discussão nos permitirá compreender a possível identificação do homem sensível
com a alma sensível e do homem racional com a alma racional. Logo, com este estudo
preliminar, temos bases argumentativas para discutir a concepção do homem nos tratados 2
(Enéada IV 7), 38 (Enéada VI 7) e 53 (Enéada I 1).
Notamos que a divisão da alma nos corpos mediante sua imagem impede sua
participação nas afecções, mantendo-a impassível. Assim, Plotino erige seu substrato
argumentativo para mostrar que não é à alma a que se deve atribuir as afecções. Mas, se a
alma permanece impassível, resta ainda saber se o mesmo ocorre com o homem ou com
algum homem. Para tanto, é preciso compreender se o homem é somente a alma ou se, de
alguma maneira, inclui o corpo em sua definição. Se ele for idêntico à alma, ele também deve
ser impassível. Mas em que sentido o homem poderia coincidir com a alma e quais as
implicações dessa possível identificação? O homem seria um tipo de alma? O homem não
teria nenhuma relação com o corpo? O vivente seria tido como homem em algum sentido e os
homens sensível e racional seriam considerados homens verdadeiros? É o que tentaremos
esclarecer nos próximos capítulos.
68
CAPÍTULO 2
A FORMA DO HOMEM, O HOMEM RACIONAL E O
HOMEM SENSÍVEL
2.1 A DEFINIÇÃO DO HOMEM ENÉADA IV 7 [2]
Ao longo das Enéadas, Plotino constrói sua concepção de homem. Analisaremos
algumas passagens nas quais ele define o homem, tentando compreendê-lo à luz de cada
tratado. Seguiremos a ordem cronológica dos textos a fim de mostrar as continuidades e
consonâncias dos mesmos.
No segundo tratado (Enéada IV 7), Plotino se atém em demonstrar a incorporeidade
da alma na maior parte do texto. Ele analisa as teses materialistas de que a alma é um corpo, é
harmonia do corpo e entelékheia do corpo. Ele, então, define a natureza divina em geral para
demonstrar que a alma pertence a essa natureza. A partir disso, define a alma como imortal.
Portanto, ele tem por escopo demonstrar a imortalidade da alma. Contudo, ele aponta também
a imortalidade do homem. Logo, essas duas noções, alma e homem ou imortalidade da alma e
imortalidade do homem, se misturam e muitas vezes parecem até mesmo coincidir.
Plotino inicia o tratado perguntando se cada um de nós (h(mw~n) é imortal ou se
perecemos completamente. Todavia, não é evidente se está se referindo à alma ou ao homem,
isto é, a cada um de nós como almas ou como homens. Talvez não seria esse o caso,
justamente, porque os dois coincidem? Em seguida, Plotino lança um argumento
fundamental: “então, o homem não seria algo simples, mas é, nele mesmo, a alma e tem
69
também um corpo, seja se temos um corpo como instrumento ou se ele se aproxima dela de
outro modo”
128
. É curioso que ele coloca a questão da imortalidade utilizando o termo nós e,
em seguida, ao respondê-la, fala do homem, indicando, assim, uma identidade dos mesmos.
Parece, então, que o homem, a alma e o nós aqui coincidem, pois Plotino os apresenta
indistintamente. Pode-se dizer que, nesse tratado, o foco de Plotino não é tanto o de discutir a
relação de união da alma com o corpo e sim a imortalidade da alma. Admitindo essa divisão,
ele visa analisar a essência de cada um, da alma, do homem e do corpo. Eis como Plotino
caracteriza o corpo:
O corpo é um composto; a razão nos diz que ele não pode subsistir e
também a sensação o se decompondo, dissolvendo-se e sofrendo perdas
de todo tipo, cada um de seus componentes voltando para sua origem. Um
corpo destrói o outro, o modifica em outro e o faz perecer, sobretudo
quando a alma que os une não está presente em suas massas. Mesmo se se
considera cada coisa isoladamente, ela não é una, pois admite a
decomposição em forma e matéria, cujos corpos simples são
necessariamente compostos. Porque são corpos, eles têm uma grandeza,
dividem-se e se fragmentam em partes, sofrendo a destruição
129
.
Com essa concepção de corpo, Plotino conclui sua relação com o homem, e a desse
com a alma:
128
IV 7 [2], 1, 4-7. (Aplou~n me\n dh/ ti ou)k a@n ei!h a!nqtropov, a)ll e!stin e0n au)tw~| yuxh/, e!xei de\ kai\ sw~ma
ei!tou]n o!rganon o2n h(mi~n, ei!tou}n e#teron tro/pon proshrthme/non.
129
IV 7 [2], 1, 8-19. To\ me\n dh\ sw~ma kai\ au)to\ sugke/menon ou1te para\ tou~ lo/gou du/natai me/nein, h# te
ai!sqhsiv o9ra~| luo/meno/n te kai\ thko/menon kai\ pantoi/ouv o)le/qrouv dexo/menon, e)ka/stou te tw~n
e)no/ntwn pro\v to\ au)tou~ ferome/non, fqei/ronto/v te a!llou e#teron kai\ metaba/llontov ei)v a!llo kai\
a0pollu/ntov, kai\ ma/lista o#tan yuxh\ h( fi/la poiou~as mh\ parh~| toi~v o1gkoiv. Ka@n monwqh~| de\ e#kaston
geno/menon e$n, ou)k e!sti, lu/sin dexo/menon ei!v te mofh\n kai\ u#lhn, e)c w{n a)na/gkh kai\ ta\ a)pla~ tw~n
swma/town ta/v susta/seiv e!xein. Kai\ mh\n kai\ me/geqov e!xonta, a#te sw/mata o!nta, temno/mena/ te kai\
ei)v mikra\ qrauo/mena kai\ ta/th| fqora\n a@n u(pome/noi.
70
Se [o corpo] é uma parte de nós, não somos completamente imortais; se é
um instrumento, ele nos foi dado pela natureza por um tempo limitado. O
outro [a alma] é o principal. O homem ele mesmo seria como uma forma
em relação à matéria [corpo] ou como aquele que se serve de um
instrumento em relação a esse instrumento; nos dois casos, ele é a alma
130
.
Ora, se Plotino pretende estabelecer a imortalidade do homem, ele não pode incluir o
corpo ou nenhum elemento corpóreo, mortal, decomponível em sua definição. Dizer que o
homem tem um corpo não significa necessariamente que esse o define, mas que ele não é algo
simples; o corpo faz parte de sua composição, mas o de sua definição, ou seja, ele não é o
corpo. O corpo é tido como parte de nós, mas não como parte essencial. Certamente, como
composto, o homem tem o corpo como parte não essencial e, por conseguinte, não é
completamente imortal. Por isso, é plausível dizer que o corpo contribui para a totalidade do
conjunto homem. Logo, quando Plotino se refere a partes de nós, entendemos que esteja
remetendo ao homem como conjunto de alma ou melhor, de imagem da alma e corpo, o
que mais tarde veremos no tratado 53 (Enéada I 1), não é o homem exatamente, mas o
vivente.
Através do termo “principal” (kuriw/tatov) na passagem citada, poder-se-ia ainda
questionar que o principal do homem é a alma, mas não que necessariamente o homem é a
alma e somente ela. A nosso ver, com o termo “principal”, Plotino parece estar contrapondo
alma e corpo sem desconsiderar esse último como algo que o homem tem, mas afirmando a
alma como fundamental, aquilo que o define. Nesse momento, a relação de união da alma
130
IV 7 [2], 1, 20-25. #Wst ei) me\n me/rov h(mw~n tou~to, ou) to\ pa~n a)qa/natoi, ei) de\ o!rganon, e!dei ge au)to\
ei)v xro/non tina\ doqe\n toiou~ton th\n fu/sin ei}nai. to\ de\ kuriw/taton kai\ au)tov o( a!nqtrwpov ei!h a@n
kata\ ei}dov w(v pro\v u#lhn [to\ sw~ma], h@ kata\ to\ xrw/mwnon w(v pro\v o!rganon. (Ekate/rwv de\ h( yuxh\
au)to/v.
O’Daily identifica o homem e o nós com o “eu”. Cf. O’DAILY, Plotinus’ Philosophy of the Self, p. 20-21;
nessa passagem citada, ele interpreta que a alma é o “eu” verdadeiro. Cf. Platão, Alcibíades 130 a-d. Nesse
diálogo, são discutidas três possibilidades sobre o homem: ele é a alma – que se serve do corpo –, o corpo ou o
conjunto dos dois; a conclusão é que o homem é a alma, pois apenas ela usa e governa o corpo (130 a-d). Ali,
o conhecer a si mesmo é conhecer a própria alma.
71
com o corpo não importa tanto, pois, independente se se considera que a alma está no corpo
como a forma na matéria ou se o corpo é um instrumento da alma, o importante é que o
homem é a alma nos dois casos. Notamos ainda que Plotino parece identificar o homem com a
alma quando considera a possibilidade de o homem realizar associações próprias à alma tais
como a da forma na matéria e a utilização do corpo como instrumento. Assim, mesmo se o
homem é uma alma que mantém relação com o corpo, ele é a alma e não o corpo.
No tratado 28 (Enéada IV 4), Plotino também emprega o termo principal”
(timiw/tatov) com relação à alma, ao homem e ao nós:
Entendo por nós o resto da alma, ao qual o corpo não é estranho, pois é
nosso; e é porque é nosso que nos preocupamos com ele. Embora o corpo
não seja nós mesmos, não estamos livres dele; ele está ligado e suspendido
a nós; o nós é o principal, mas o corpo é nosso de outro modo. É porque nos
preocupamos com seus prazeres e suas dores e, quanto mais somos fracos,
menos nos separamos dele; quanto mais admitimos que o corpo é o
principal, que é o homem, mais mergulhamos nele
131
.
Mais uma vez, tem-se que o corpo é nosso ou faz parte de nós, mas não como algo
essencial que nos define. Preocupamo-nos com ele e, por isso, não nos separamos dele.
Entretanto, por mais que estejamos ligados ao corpo, ele não é nosso principal elemento. Não
estamos imunes a ele no sentido de haver alguma comunidade com ele através da qual se
essa nossa ligação, mas não que somos afetados por ele como almas –, pois sentir ou
conhecer a afecção é diferente de sofrê-la ou tê-la atribuída. Embora estejamos condicionados
a ele e suas afecções as quais não são só dele, mas do vivente, como veremos no tratado 53
131
IV 4 [28], 18, 10-19. Le/gw de\ h(mi~n th~| a!llh| yuxh~|, a#te kai\ tou~ toiou~~de sw/matov ou0k a0llotri/ou, a0ll
h)mw~n o!ntov: dio\ kai\ me/lei h(mi~~n au)tou~ w9v h9mw~n o!ntov. Ou!te ga\r tou~to/ e0smen h(mei~v, ou!te kaqaroi\
tou/tou h9mei~v, a)lla\ e0ch/rthtai kai\ e)kkre/matai h(mw~~n, h(mei~v de\ kata\ to\ ku/rion, h(mw~n de\ a!llwv o#mwv
tou~tou. Dio\ kai\ h(dome/nou kai\ a)lou~ntov me/lei, kai\ o#sw| a0sqene/steroi ma~llon, kai\ o#sw| e9autou\v mh\
xwri/zomen, a)lla\ tou~tou h9mw~n to\ timiw/taton kai\ a!nqtrwpon tiqe/meqa kai\ oi{on ei0sduo/meqa ei)v au)to/.
72
(Enéada I 1), ele não é nós mesmos. Enfim, o que nos define é o principal, a alma, e não o
corpo.
Outro ponto que nos chama a atenção na passagem citada é que Plotino introduz a
noção de acréscimo e temporalidade quando considera que, se o corpo é um instrumento, foi
dado por um tempo. Ou seja, o corpo não está sempre junto do homem – e da alma – e, nesse
sentido, não é algo próprio dele, o que reforça a tese de que corpo não seria o que define o
homem. Assim, ele fixa a relação de adição temporária e não de implicação necessária entre
homem e corpo, também entre alma e corpo. Logo, talvez Plotino esteja indicando a
atemporalidade do homem, através da alma, em contraposição à temporalidade do corpo.
Afinal, por que ele introduziria essa breve alusão ao homem no início de um tratado que busca
estabelecer a imortalidade da alma? Em todo caso, esse seria o objetivo desse tratado:
distinguir o corpo e a alma através do caráter mortal e imortal, respectivamente.
É importante notar que Plotino refere-se ao homem engendrado ou sensível sempre
que considera o corpo em sua composição. Mesmo se a intenção de Plotino é apenas a
diferença entre ser e ter o corpo, ele está discorrendo sobre o homem que tem um corpo. E
ainda que tenha em mente o homem na esfera do vir a ser, admitindo que o corpo é uma parte
de seu conjunto, postula que seu principal é a alma.
Portanto, a nosso ver, nesse tratado, Plotino concebe o homem como
fundamentalmente a alma, sendo que nos parece ser o argumento de base para sua definição
de homem. Assim, o homem é, em sua essência, alma, mas tem um corpo, uma vez que não é
algo simples e possui outro elemento secundário além da alma. Pode-se concluir que o corpo
é indispensável na formação do conjunto do homem, mas não em sua definição; ou seja, a
destruição do corpo destrói o conjunto, mas não a essência do homem, a alma. Por
conseguinte, baseando-se nesse tratado, dir-se-ia que a alma esgota a definição do homem,
mas o sua composição de conjunto (sunamfo/teron) de imagem da alma mais corpo. É
73
mister observar que a noção de conjunto é implícita nesse texto, mas é desenvolvida no
penúltimo texto, o tratado 53 (Enéada I 1).
Cabe a ressalva de que não analisaremos o homem do tratado 46 (Enéada I 4). Esse
texto aborda “um outro homem”, o sábio (spoudai~ov) modelo de virtude e de felicidade,
conceitos chaves do texto e a partir dos quais é viável extrair possíveis caracterizações e
definições do homem, atreladas a eles. Portanto, deve-se ler o comentário de Bodéüs
132
à luz
desse tratado. Segundo o intérprete, o homem é rigorosamente distinto de tudo que lhe está
em redor, inclusive seu corpo e, assim, todas as afecções do corpo e os males do entorno lhe
são estranhos. Mas não se pode perder de vista o que norteia esse texto de Plotino: em suma, a
purificação da alma em sua comunidade com o corpo, a felicidade e a vida feliz, as
comparações e oposições entre o homem sábio, virtuoso e feliz, e os outros homens, comuns
ou ordinários. A nosso ver, qualquer definição proveniente desse tratado exige sua análise e
contextualização nas questões morais dos escritos de Plotino, o que ultrapassa o limite
demarcado para nossa investigação.
Na discussão de Plotino sobre a possibilidade de a alma ser corpórea, o que nos
interessa mais é como ocorreria sua união com o corpo se ela assim o fosse e não tanto sua
incorporeidade
133
. Plotino analisa os problemas da mistura (kra~siv) estoica, como vimos no
capítulo precedente de nosso texto. A questão é que ele concebe uma união em que a alma
permanece inalterada em sua essência, e isso ocorre se ela não for corpórea. Ademais, na
medida em que a alma deve estar e está toda inteira e a mesma nos corpos, isso exige que ela
132
Cf. BODÉÜS, L’autre homme de Plotin, p. 256-264.
133
Para demonstrar a imortalidade da alma, Plotino precisa afastar dela todo caráter corpóreo. Ele discute e
refuta alguns argumentos estoicos e aristotélicos, quais sejam: 1. a alma não pode ser nem um corpo simples,
pois os quatro elementos não têm vida, nem a combinação de corpos simples, pois a alma teria de ser a causa
da mistura deles. A alma o pode ser um corpo simples, pois esse possui efeitos simples enquanto a alma
produz efeitos complexos, como os movimentos opostos; 2. a propriedade de estar toda inteira nos corpos não
pode ser própria a algo corpóreo; 3. se a alma fosse um corpo, não seria possível explicar nem a percepção dos
objetos sensíveis, pois não haveria a unidade da sensação, nem a memória, pois as impressões se dissolveriam
umas nas outras. Também não seria possível explicar o pensamento, isto é, algo sem grandeza a partir de uma
grandeza; 4. Se o corpo é ativo, sua atividade pode advir de algo incorpóreo; 5. se a alma fosse um corpo,
sua união com os corpos seria impossível, pois ela desapareceria numa mistura total ou numa penetração
mútua. Cf. IV 7 [2].
74
seja incorpórea, pois, do contrário, ela seria menor” e diferente em cada parte do corpo
134
;
isso possibilita que em cada parte exista a mesma alma. O mais importante é que se percebe
que a incorporeidade da alma é uma prova de que ela é divina e imortal. A natureza divina,
por sua vez, comprova sua imortalidade. Não obstante, tal natureza ou essência não é
percebida devido às afecções e à força da alma irracional.
Em IV 7 [2], 14, Plotino postula a necessidade de que todas as almas sejam imortais,
mesmo aquelas que estão em corpos de bestas, pois todas provêm de um mesmo princípio
ou de uma natureza viva (zw/shv fu/siv) –, o qual é a causa de vida de todos os viventes, têm
vida própria e são incorpóreas. Plotino, então, questiona se, por sua vez, a alma humana,
mesmo sendo tripartite, não se decompõe, pois a alma abandona aquilo que lhe é acrescido no
devir, isto é, o elemento ou parte inferior da alma; tal parte não perece, mesmo sendo
abandonada, pois permanece junto ao seu princípio (a)rxh/). Mais uma vez, ele indica a
separação da alma em relação ao corpo no sentido de ela o precisar dele para ser o que é,
imortal, e que ele não altera a sua natureza ou essência, mesmo ela estando presente nele. Ora,
antes de tudo, Plotino está fixando a imortalidade da alma que está em todos os tipos de
corpos, mas, como ele afirma a coincidência do homem com a alma, poder-se-ia dizer que ele
também está sugerindo a imortalidade do homem. Ademais, parece que Plotino estabelece a
imortalidade também das partes inferiores da alma ou da alma inferior. Novamente,
comprova-se a unidade da alma como um todo uno e o mesmo.
Vimos que, nesse tratado, o homem ao qual Plotino se refere é o homem no devir,
pois, embora ele seja definido pela alma, tem um corpo e, portanto, não é simples. O corpo é
parte de sua composição, mas não de sua definição. Assim, o corpo não é excluído por
completo, mas tem uma relação com o homem no devir, o homem sensível e o vivente.
134
Cf. IV 7 [2], 5. Plotino exemplifica o caso dos gêmeos nos quais a semente se divide, mas cada parte é um
todo e possui a mesma alma.
75
Tendo em vista essa identificação do homem com a alma nesse segundo tratado,
procuraremos algumas consonâncias no tratado 38 (Enéada VI 7), onde Plotino expõe sobre
alguns homens ou tipos de homens, a Forma do homem, o homem racional e o homem
sensível, indicando uma possível coincidência deles com a alma.
2.2 A DEFINIÇÃO DO HOMEM ENÉADA VI 7 [38]. LÓGOS E LÓGOI
Plotino inicia o tratado 38 (Enéada VI 7) suscitando a aporia de que a sensação e as
coisas sensíveis, como o homem no devir, surgiram a partir de um raciocínio divino
135
. Os
sete primeiros capítulos visam discuti-la e solucioná-la. Em suma, ele discute a hipótese de
um raciocínio do Intelecto para a produção da sensação, explicando que o raciocínio diz
respeito a futuros contingentes, o que não seria próprio ao Intelecto divino. Plotino também
argumenta que a providência (prono/ia) não é resultado de um raciocínio (logismo/v) que
tem princípio e fim no Intelecto, pois esse não preveria as coisas fora dele
136
. O Intelecto não
teria condição de antecipar o que aconteceria com a alma no devir, pois seus raciocínios não
se refeririam aos objetos sensíveis. Ademais, as Formas estão no Intelecto de maneira
simultânea e disso decorre que cada uma é o próprio Intelecto, o todo e vice-versa; assim,
como o todo está presente em cada uma delas, não necessidade de separar o presente e o
futuro e, dessarte, se não há antes e depois, não há previsão ou deliberação
137
.
No capítulo 4, Plotino atém-se ao homem e aventa algumas hipóteses que norteiam
sua investigação do que é o homem no devir, isto é, o homem encarnado ou no sensível:
135
Essa estrutura é comum a muitos dos escritos de Plotino tal como dispomos: começam com um aporia, segue-
se a discussão sobre ela, com perguntas e respostas, bem como a elaboração de uma ou mais teses.
136
Cf. VI 7 [38], 1, 20-25.
137
Cf. VI 7 [38], 1, 45-50.
76
1. o homem daqui de baixo é um lógos ou uma razão formal
138
que faz com que o
homem seja homem, diferente da alma que produz esse homem e que lhe o viver e
o raciocinar?
2. o homem é uma alma de um certo tipo?
3. o homem é uma alma que se une a um corpo para se servir dele?
Plotino visa discutir o que é essa razão formal e se ela difere da alma. Então, diz que,
como o homem é um vivente racional e o vivente é formado pelo conjunto alma e corpo, esse
lógos que faz com que o homem seja homem é diferente da alma. Se o lógos for o conjunto de
alma racional e corpo, ele se atualiza quando a alma e o corpo se encontram. Assim, o
lógos não é o conjunto alma e corpo e também não é uma alma que se serve do corpo
139
.
Corroborando que a razão formal determina o vivente, Plotino afirma que ela revela aquele
que será e não o homem em si
140
. Aqui, Plotino contrapõe o homem no devir – o vivente – ao
homem no Intelecto. Investigando o lógos, Plotino busca a essência do homem: “Qual é,
então, o ser do homem? O que ele é, o que é aquilo que o faz homem, que está nele, não
separado?”
141
.
Plotino argumenta que o homem não é a alma racional mais o corpo, pois isso implica
que sua existência não seria eterna por causa do corpo, temporário – e, portanto, só existiria
quando a alma se unisse ao corpo. Ademais, essa definição o revela a essência do homem
ou o homem em si nem a forma na matéria
142
.
Sigamos a argumentação de Plotino. Se o animal racional tem uma vida racional, o
homem também a tem, mas: 1. ou é possível uma vida sem alma; 2. ou a alma dará essa vida
138
Nesse contexto, mantemos a tradução de lógos por razão formal, uma vez que, como veremos mais adiante,
trata-se de uma projeção das Formas na alma.
139
Cf. VI 7 [38], 4, 11-15.
140
Cf. VI 7 [38], 4, 16-18. Nossa observação coincide com a de Hadot, para o qual Plotino refere-se ao composto
de alma e corpo nessa passagem. Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 96.
141
VI 7 [38], 4, 28-29. Ti\ ou}n e)sti to\ ei}nai a)nqtrw/pw|; tou~to de)sti/, ti\ e)sti to\ pepoihko\v tou~ton to\n
a!nqrwpon e0nupa/rxon, ou) xwristo/n;
142
Cf. VI 7 [38], 4, 13-19.
77
racional e o homem será uma atividade e não uma essência; 3. ou a alma será o próprio
homem. Plotino indica que o animal racional e a vida racional coincidem e que não vida
sem alma. Ele sugere uma diferença entre o homem e a alma racional: “se a alma racional é o
homem, quando essa alma vai para outro vivente, como ela não será homem?”
143
. Portanto, o
homem não seria uma alma assim qualificada ou de certo tipo, pois, afinal, se fosse assim, ele
se definiria somente no agir racional, quando realizasse plenamente sua função racional; em
outras palavras, o homem seria definido pela efetivação de sua função racional e o
simplesmente por tê-la. Parece-nos, então, que, nesse momento, Plotino exclui a possibilidade
de o homem ser somente a alma ou a alma racional, pois não seria possível justificar a
produção de outro vivente animado pela alma. Ele conclui que, uma vez que o lógos é
diferente da alma, mas não existe sem ela, o homem é o lógos ou a razão formal da alma:
Certamente é preciso que o homem seja um lógos diferente da alma. O que
impede que o homem seja um conjunto, ou seja, a alma em um determinado
lógos, sendo esse lógos como que um determinado ato daquela, ato que não
pode existir sem aquele que age? Isso também é assim para os lógoi
seminais. Pois eles não existem sem a alma, nem são simplesmente
almas
144
.
Assim, nesse tratado, deparamo-nos com essa definição de homem: ele é a alma com
uma razão formal ou seminal
145
, um lógos ou, ainda, uma razão formal ou seminal da alma. O
143
VI 7 [38], 4, 33-38. )All ei) h( yuxh\ h( logikh\ o9 a!nqrwpov e!stai, o#tan ei)v a!llo zw~|on i!h| h( yuxh/, pw~v
ou)k a!nqrwpov;
144
VI 7 [38], 5, 1-5. Lo/gon toi/nun dei~ to\n a!nqrtwpon a!llon para\ th\n yuxh\n ei]nai. Ti\ [ou]n] kwlu/ei
sunamfo/tero/n ti to\n a!nqrwpon ei]nai, yuxh\n e)n toiw~~|de lo/gw|, o!ntov tou~ lo/gou oi[on e)nergei/av
toia~sde, th~v de\ e)nergei/av mh\ duname/nhv a!neu tou~ e)nergou~ntov ei]nai; Ou#tw ga\r kai\ oi( e)n toi~v
spe/rmasi lo/goi: ou1te ga\r a!neu yuxh~v ou!te yuxai\ a9plw~v.
145
Tendemos a considerar as razões seminais como, no mínimo, semelhantes às razões formais, na medida em
que Plotino as caracteriza do mesmo modo no que concerne à dependência existencial delas em relação à
alma. Ademais, as consideramos como princípios, causas ou sementes capazes de formar ou produzir. Embora
Plotino utilize dois termos distintos, ele não recorre tanto às razões seminais e não as aprofunda aqui, daí a
dificuldade em afirmar que elas são idênticas às razões formais. No contexto desse tratado, é consenso entre os
78
que importa é que ele é um conjunto de alma e lógos e não somente a alma, conforme foi dito
no segundo tratado (Enéada IV 7). O homem, então, é definido como a imagem da Forma na
alma. Ora, como o lógos está na alma, segue-se que o homem é uma alma determinada por
um lógos, sendo que percebemos uma ênfase maior do lógos e não da alma nessa definição do
homem.
De todo modo, poderíamos dizer que o homem é definido como um conjunto não de
alma e corpo, mas de alma e lógos. Não obstante, é preciso recordar a especificidade desse
tratado, ou melhor, desses primeiros capítulos. Desde o início do texto, Plotino atém-se ao
problema da pré-existência da sensação no Intelecto. Por isso, essa definição de homem es
atrelada a essa aporia. O argumento que soluciona a questão é o de que a sensação está no
lógos do homem, sendo que isso é possível graças à Forma do homem, da qual o lógos
procede. Sendo assim, a definição do homem como a alma não justifica a sensação e, por isso,
a relevância é dada a algo na alma que a possibilite, isto é, ao lógos. Isso justifica o acréscimo
do lógos na definição do homem que se inscreve nesse tratado, pois Plotino precisa
fundamentar a sensação. Ora, se o lógos está na alma ou faz parte dela, tal definição do
homem parece-nos complementar àquela do segundo tratado – o homem é a alma.
Adentremos na noção de lógos no contexto do tratado 38 (Enéada VI 7) a fim de
compreendermos melhor sua relação com o homem. Com efeito, que a alma tem seus
princípios no Intelecto, ela tem elementos que necessariamente advêm dele. Dessa maneira, a
alma deve ter algo que expressa o Intelecto de alguma maneira, qual seja, utilizando-se de
uma imagem dele, da Forma
146
. Sendo assim, a origem do lógos é o Intelecto. Percebemos,
então, que um ciclo a partir da Forma do homem e do lógos do homem ou da alma
racional: se existe a Forma do homem, ela tem que se revelar na alma, a qual, por sua vez,
tradutores que consultamos traduzir lógos por razão formal e lógoi spermatik por razões seminais, mantendo
a diferença dos termos empregados por Plotino.
146
Hadot lembra outras passagens das Enéadas (II 3 [52], 16, 15; 17, 15; 18, 19 e III 5 [50], 9) em que Plotino
retoma essa ideia do lógos como projeção ou imagem das Formas na alma. Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 214.
Assim, percebemos que essa é uma noção importante que Plotino mantém e ressalta até os últimos tratados.
79
mostra que tem um lógos derivado da Forma. Se o lógos faz com que cada coisa seja o que é,
não é no sentido de revelar sua essência, pois isso é próprio da Forma. Entendemos que a
Forma expressa a quididade através da alma e do lógos. Como projeção ou imagem da Forma,
o lógos faz com que cada coisa seja o que é, pois a Forma lho permite ou possibilita.
Hadot sublinha que esses termos m muitas nuances e representam um
desdobramento e uma explicitação das Formas. Ele ainda observa que o lógos não é formal,
mas formador, por ser o princípio que faz cada coisa ser o que é. Em outras palavras, o lógos
é uma razão produtora e não uma simples definição ou fórmula lógica que descreve o que é
cada coisa, o que é o homem
147
. Ademais, Hadot nota bem que o lógos permite compreender
dois pontos: 1. a necessidade da existência da Forma do homem; 2. se a alma racional tem
sensações, então, isso estabelece a existência delas na Forma do homem.
Portanto, o lógos da alma faz com que o homem seja homem, mas, indiretamente, é a
Forma do homem que lhe confere sua essência
148
; nesse sentido, poder-se-ia dizer que o lógos
faz com que a alma seja homem? Diríamos que o lógos determina que a alma defina e atualize
o homem. Não se deve esquecer que o lógos está na alma e faz dela uma alma humana.
Plotino enfatiza que os lógoi ou razões formais não existem sem a alma, mas não a são pura e
simplesmente. Hadot recorda uma passagem (V 7 [18], 1, 7), em que é dito que a alma possui
as razões formais não do homem, mas de todos os viventes. Para ele, a alma escolhe o
lógos do homem, determinando-se a ser e a agir segundo ele. Em suas palavras, “se a alma
age segundo o lógos do homem, isso significa que ela imita e realiza a Forma transcendente
do homem em si”
149
.
147
Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 218-219.
148
Cf. VI 7 [38], 5, 1-5.
149
Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 214. Nesse tratado, não vemos um aprofundamento sobre o tema da escolha da
alma pelo gos do homem, atualizando-o ao invés dos outros lógoi; por isso, teríamos que investigar outros
textos para tentar compreender como tal escolha se fundamentaria.
80
Os lógoi, assim, são determinações e atos da alma
150
. Entendemos o lógos e os lógoi
como, antes de tudo, atos ou atividades da alma, uma vez que Plotino é enfático em explicitar
tal termo (e)nergei/a) para designá-los e distingui-los da essência propriamente da alma. Na
passagem em que citamos (VI 7 [38], 5, 1-5), ele explica que é a alma que age pelo lógos, que
expressa um ato da alma. Sendo assim, entendemos que é possível dizer que o lógos é
essência quando participa da Forma e depende dela e a manifesta. De acordo com Hadot,
os lógoi são atos e não essências da alma; eles pertencem, no entanto, à essência da alma.
Turlot também considera o lógos como ato da alma, “uma vez que opera a ligação do
inteligível e do sensível, transferindo a esse as Formas inteligíveis e permitindo a constituição
do mundo”
151
. Ora, mas eles não poderiam ser, ao mesmo tempo, atividade e essência da
alma? Parece que não, pois Plotino diferencia a alma e suas atividades, a essência da alma e o
que pertence a ela. Poder-se-ia dizer que a alma expressa sua essência através do lógos.
Brisson e Turlot também contribuem para a compreensão do lógos nas Enéadas.
Brisson nota bem que os lógoi são equivalentes das Formas, isto é, são as Formas no nível da
alma. O lógos plotiniano não tem somente o sentido corrente de discurso, razão ou faculdade
racional, no contexto do tratado 38 (Enéada VI 7), mas corresponde a um conteúdo racional
ou essência que supõe uma Forma da qual ele depende e a qual ele representa e faz presente.
Desse modo, por um lado, os lógoi representam a expressão das Formas no discurso racional
e, por outro, princípios ativos de raciocínios que fazem surgir as imagens das Formas no
sensível. Em suas palavras, “o lógos é o conjunto dos lógoi que asseguram a possibilidade do
raciocínio e da produção e organização do mundo sensível”
152
. Segundo Turlot, o lógos é uma
150
Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 219-220. Cf. II 3 [52], 16, 20.
151
TURLOT, Le “logos” chez Plotin, p. 523.
152
BRISSON, Logos et logoi chez Plotin. Leur nature et leur rôle, p. 91. Segundo Brisson, esse sentido que
Plotino confere ao lógos se aparenta com a noção de gos dos estoicos e também de Aristóteles, retomada no
contexto platônico. Brisson discute a presença e a localização do lógos no Intelecto, na Alma hipóstase e na
Alma do mundo: de acordo com ele, precisamente, o lógos corresponde ao movimento da passagem do
Intelecto em direção à Alma racional e criadora e assim em todos os planos: Alma hipóstase, Alma do mundo
e almas particulares”. Em síntese, no Intelecto, o lógos encontra-se sob o modo da Forma. Na Alma hipóstase,
o lógos é o seu aspecto racional; as Formas como lógoi encontram-se nela de uma maneira discursiva,
81
ponte entre o inteligível e o sensível, sendo uma espécie de “veículo” das Formas
153
. Com
efeito, o lógos é um elo entre o sensível e o inteligível, mas não se deve esquecer que também
o é no inteligível, entre o Intelecto e a alma, o que faz com que esses últimos não estejam
completamente separados.
Fattal desenvolve um comentário acerca do lógos na matéria. Ele mostra que tal lógos
é uma potência produtora que modifica a matéria para lhe informar e produzir as coisas e que
se encontra na alma vegetativa, assegurando a geração dos corpos e de todas as espécies de
seres
154
. Por isso, é graças ao lógos que os viventes surgem (IV 7 [2], 2, 22-25 e II 7 [37], 3,
1-12)
155
.
Fattal ressalta que Plotino diferencia o lógos das Formas exatamente pela noção de
imagem. O lógos, na medida em que é uma imagem, deriva e participa das Formas, de sua
separadas umas das outras, apresentando-se sobre o plano do pensamento, ora pelo raciocínio, ora pela palavra
no discurso. Disso, pode-se dizer que o lógos na alma individual humana é princípio de raciocínio, de um
modo geral. Brisson mostra que algumas vezes a Alma hipóstase é tida como o próprio lógos (II 9 [33], 8 e V
1 [42], 10). Quanto à Alma do mundo, seu nível inferior, a natureza, é a multiplicidade dos lógoi. Cf.
BRISSON, Logos et logoi chez Plotin. Leur nature et leur rôle, p. 92-94. O lógos também perpassa a matéria,
agindo nela e lhe conferindo forma, qualidade e movimento. Lembramos que, enquanto no tratado 38 (Enéada
VI 7) o lógos é produção ou princípio formador, no 30 (Enéada III 8) ele é contemplação. Desse modo, vemos
que algumas noções nas Enéadas têm mais de um sentido, dependendo de seu contexto.
153
Cf. TURLOT, Le logos chez Plotin, p. 518-519. Turlot observa que, apesar de estabelecer essa ponte entre
o Inteligível e o sensível, o lógos não é um princípio intermediário por estar na alma, entre o inteligível e o
sensível; “ele não é a alma, embora não seja independente dela”. O lógos tem seu princípio no Intelecto, o qual
abandona para se fixar na alma. Portanto, o lógos não é um princípio ou hipóstase, uma vez que não é
produzido pela conversão em direção ao princípio superior, mas é um produto ao mesmo tempo do Intelecto,
sua fonte, e da alma, seu “lugar”. Ou seja, o lógos não é um princípio nesse sentido estrito, mas, em um
sentido amplo, é um princípio de transmissão dos objetos de pensamento à Alma e de produção das coisas
sensíveis. Turlot lembra outros sentidos do lógos nas Enéadas: 1. a Alma é o lógos e o ato (e)ne/rgeia) do
Intelecto e o Intelecto é o gos e o ato do Uno (V 1 [10], 6); 2. o lógos é contemplação (III 8 [30], 3, 3) e
também tem o sentido de discussão (III 8 [30], 8, 25). Cf. TURLOT, Le “logos” chez Plotin, p. 520-522.
154
Fattal indica importantes passagens que apontam que a alma vegetativa recebe sua potência de produção da
Alma universal (yuxh/ panto/v), a qual a ilumina e lhe transmite as Formas. A Alma universal comunica esse
poder à alma vegetativa quando contempla as Formas. A alma vegetativa é uma imagem (i!ndalma) ativa e
produtiva da Alma universal. Cf. FATTAL, Logos et image chez Plotin, p. 24. Cf. II 3 [52], 17, 13-17; 18, 9-
16. O estudo de Fattal, como o de Brisson, estende-se para o comentário do lógos perpassando todos os planos,
do Uno à matéria. Ele explica que o lógos tem origem no Uno, potência de produção primeira e última de
todos os seres. Nesse sentido em que depende do Uno, ele é um lógos, antes de tudo, henológico. o
obstante, o lógos é igualmente produto do Intelecto e representa a projeção das Formas na alma. Por
conseguinte, ele também é algo da alma. Assim, na medida em que os lógoi informam os viventes no sensível,
é possível constatar que o lógos opera em todos os níveis, do Uno ao sensível.
155
Nesse sentido, pode-se dizer que o lógos é uma imagem ativa das Formas. Fattal compara a concepção
plotiniana de imagem com a dos estoicos, mostrando a originalidade do caráter ativo da imagem plotiniana.
Cf. FATTAL, Logos et image chez Plotin, p. 45-58. A imagem também inclui a imitação, pois na medida em
que ela espelha seu objeto, o imita. A participação também se relaciona com a imitação. Sobre o tema da
imagem e da imitação, ver PRADEAU, L’imitation du príncipe. Plotin et la participation, p. 69-79.
82
fonte. Enquanto o lógos é uma forma na matéria, mas sem matéria e diferente dela, a Forma é
completamente separada da matéria
156
. Fattal ainda nota a distinção que Plotino faz do lógos
como definição lógica e como potência produtora. Como definição lógica, o lógos faz com
que cada coisa seja o que é e, como potência produtora, ele é produtor devido ao seu
engajamento na matéria. Considerado nele mesmo, o lógos é uma forma separada, sem
matéria, tendo, pois, a função de forma definidora
157
. Enfim, para salvaguardar a
transcendência da Forma, Plotino mostra que não é ela como um todo que se engaja na
matéria, mas sua imagem, o lógos, o qual se torna seu representante no sensível
158
.
À guisa de conclusão, vimos que o lógos é um princípio formador ou formativo, sendo
uma imagem das Formas do Intelecto na alma, e percebemos que Plotino fundamenta muitas
de suas concepções em torno da noção de imagem. Alguns argumentos de base como esse se
repetem no decorrer das Enéadas. Se o sensível é tido como imagem do inteligível a beleza
sensível como imagem da beleza inteligível, por exemplo –, no caso das Formas e do lógos, o
objeto e sua imagem são inteligíveis. Para esclarecer em qual alma se encontram as razões
formais ou lógoi, se na alma sensitiva ou na racional, Plotino inicia uma exposição sobre dois
homens, o sensitivo e o racional, imagens do homem no Intelecto.
2.3 A FORMA DO HOMEM
Na Enéada VI 7 [38], Plotino discorre sobre um homem que está antes de todos os
outros homens, isto é, o homem que se encontra no Intelecto, o homem de ou a Forma do
156
Cf. FATTAL, Logos et image chez Plotin, p. 29-30.
157
Cf. FATTAL, Logos et image chez Plotin, p. 33-34.
158
Cf. FATTAL, Logos et image chez Plotin, p. 35.
83
homem
159
. Ele, então, descreve a natureza da Forma (ei]dov) no Intelecto – e, por conseguinte,
a natureza desse último – a fim de esclarecer a anterioridade desse homem.
Plotino explica que a Forma expressa o Intelecto e é completa porque tudo já está nele,
o qual, por sua vez, está presente em cada uma das Formas
160
. No Intelecto, o todo está
contido em cada uma de suas partes e cada uma delas é o todo. Assim, cada Forma tem uma
relação consigo mesma e com o todo; cada uma é para o todo, ou seja, ela não está dissociada
de sua relação com o todo. Portanto, ela é ao mesmo tempo para si e para o todo. Assim, a
razão de ser da Forma é proveniente de sua relação com a totalidade e com ela mesma. Na sua
relação com o outro, a Forma mostra o que ela é e, na relação consigo mesma, mostra o que é
o todo; no ser para o outro, ela exprime seu ser para si, revelando a totalidade. A Forma é
completa e acabada; ela é bela e é causa de si. Cada Forma é uma totalidade que se basta.
Mas como a Forma do homem seria explicada nessa relação com o Intelecto e consigo
mesma? Cada uma das Formas, tomada nela mesma, tem seu porquê (dioti) em si. Isso
ocorre por uma relação mútua entre Intelecto e Forma: 1. que a Forma se identifica com o
Intelecto, ela recebe dele seu porquê. 2. o Intelecto, porque possui as Formas, tem o porquê
das coisas que estão nele
161
; o porquê de cada coisa esno todo ao qual ela pertence e, sendo
assim, o porquê da Forma está no Intelecto
162
. A “coisa” ou o quê” (o(ti) e seu porquê
coincidem no Intelecto.
163
. Plotino ainda introduz a noção de razão de ser (ai)tiolo/gov) de
algo como os olhos e as sobrancelhas – indicando que ela é sinônimo do porquê e
mostrando que ela está no todo e faz parte da essência – ou seja, contribui para a sua
integralidade. A essência, o ser e o porquê são uma coisa só
164
. Hadot explica que a essência é
159
Literalmente, Plotino diz o homem de lá (e)kei~ a!nqrwpov), aquele (e)kei~nov) e o homem no Intelecto (o( e)n nw~|
a!nqrwpov). Seguimos Hadot referindo-nos à Forma do homem, pois depreendemos que é ela que está em
questão nesse discurso sobre a pré-existência da sensação no Intelecto ou sobre a existência de um modelo, no
Intelecto, do homem sensível ou no devir.
160
Cf. VI 7 [38], 1, 45-50.
161
Cf. VI 7 [38], 2, 20-25.
162
Cf. VI 7 [38], 2, 30-45.
163
Cf. VI 7 [38], 2, 45-50.
164
Cf. VI 7 [38], 3, 14-21.
84
anterior à razão de ser no sentido de essa estar naquela ou fazer parte dela, mesmo se se pode
distingui-las formalmente
165
. A Forma do homem é, pois, o porquê ou a razão de ser do
homem no devir, uma vez que ela faz parte do Intelecto, no qual o ser e seu porquê são
idênticos
166
.
Mas como a Forma do homem reflete si mesma e a totalidade? Ora, através da Forma
do homem, pode-se compreender a totalidade do Intelecto, a integralidade da Forma do
homem exprime a integralidade do Intelecto. De acordo com a descrição do que é a Forma,
depreende-se que a Forma do homem tem potencialmente tudo o que constitui o homem. Ela
tem todas as condições necessárias para formar um homem, isto é, tem tudo que deve ter, não
sendo preciso lhe acrescentar nada. Transcrevemos as palavras de Plotino:
Certamente, em todo pensamento e em toda atividade [do Intelecto], como
aquele do homem, o homem inteiro é iluminado e traz a si mesmo junto a
ele; e, na medida em que possui tudo desde o início, ele mesmo está pronto
em sua totalidade. Se não fosse completo, mas precisasse de acréscimo,
seria gerado. Ele é eterno e, por isso, é completo. Mas o homem no devir é
gerado
167
.
Logo, a Forma do homem não pode então deixar nada de lado: os olhos e as
sobrancelhas fazem parte dela enquanto concernem à totalidade
168
, porém, mostram apenas
um aspecto da totalidade da Forma. Notamos que Plotino sublinha uma distinção entre o
homem eterno, representado aqui pela Forma do homem, e o homem no devir. Plotino
165
Cf. PLOTIN. Traité 38, p. 207.
166
Cf. VI 7 [38], 2, 5-10.
167
VI 7 [38], 2, 50-55. )En e(ka/stw| toi/nun noh/mati kai\ e)nergh/mati oi[on kai\ a)nqrw/pou pa~v proefa/nh o(
a!nqrwpov sumfe/rwn e(auto\n au)tw~|, kai\ pa/nta o#sa e!xei e)c a0rxh~v o(mou~ e!toimo/v e)stin o!lov. Ei}ta, ei)
mh\ pa~v e)stin, a)lla\ dei~ ti au0tw~| prosqei~nai, gennh/mato/v e)stin. !Esti d a)ei/: w#ste pa~v e(stin. )All o(
gino/menov a!nqrwpov genhto/v.
168
Cf. VI 7 [38], 3, 15-21. Plotino explica que os olhos e as sobrancelhas já estão na essência em virtude de uma
função interna de conservação, ou seja, ela tem nela mesma um princípio de conservação; a essência tem sua
razão de ser ou seu porquê nela mesma. Portanto, a essência tem seu porquê e sua razão de ser nela mesma,
sendo perfeita e completa.
85
evidencia o pressuposto da atemporalidade para que algo seja completo e, então, explicita
que, enquanto a Forma do homem é eterna e, por isso, completa, o homem no devir só adquire
seu acabamento e sua completude no tempo. Em outras palavras, o homem como Forma é
eterno e imortal, donde se segue que é completo, pois, se precisasse de algo, entraria no devir
para que suas necessidades fossem geradas. Potencialmente, ele tem tudo desde o início,
enquanto é uma Forma que expressa a totalidade do Intelecto, cujas partes, por sua vez,
exprimem o homem.
Ora, se a Forma do homem é completa e tem tudo desde o início, e o homem no devir
precisa de acréscimos, esses não viriam de fora, confirmando a necessidade de um raciocínio
para gerar o homem no devir? Em VI 7 [38], 3, 1-3, Plotino afirma que o homem no devir é
conforme à Forma do homem de modo que o é preciso retirar nem acrescentar nada desse
último. Mas como o homem no devir é, ao mesmo tempo, incompleto e conforme à Forma
completa? A tradução e o comentário de Hadot indicam tal conformidade pela noção de
imagem. Hadot comenta que não é preciso retirar ou acrescentar nada ao conteúdo inteligível
eterno do homem para obtermos a noção ou o conceito do homem no devir, mas que o homem
no devir não é inteiramente a Forma eterna e que ele precisa de acréscimos
169
. De fato, dizer
que o homem no devir é conforme à Forma não significa que há uma igualdade total entre eles
em todos os pontos. Tal distinção entre esses homens faz com que Plotino retome a aporia do
raciocínio para gerar o homem no devir.
Percebemos que, enquanto no segundo tratado (Enéada IV 7) Plotino estabelece a
imortalidade do homem como alma em contraposição à mortalidade do corpo, aqui ele o faz
em relação ao homem como Forma no Intelecto. A eternidade de ambos os homens é devido
ao caráter inteligível e incorpóreo da alma e do Intelecto. Por conseguinte, aesse momento,
o que nos afigura comum entre os dois textos é que Plotino indica que o elemento corpóreo
169
Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 205-206.
86
não faz parte da essência homem. O corpo, como algo mortal e temporário, não está incluído
na definição do homem que denota seu aspecto intemporal, como alma e como Forma. Em
outras palavras, o corpo limitaria o homem a existir somente no momento em que a alma se
unisse a ele.
Através da demonstração da completude da Forma, Plotino constrói uma primeira
solução à aporia de um raciocínio para gerar a sensação: ela não foi engendrada por algum
raciocínio divino, mas pré-existe no Intelecto, na Forma do Homem. O Intelecto não raciocina
para criar a sensação, pois ele está presente em cada uma de suas Formas, as quais, por sua
vez, têm sua razão de ser nelas mesmas. Cabe a observação de que, nos sete primeiros
capítulos do tratado em questão, Plotino refere-se à Forma do homem no Intelecto sem
questionar a pré-existência de objetos sensíveis no Intelecto e o faz entre os capítulos oito e
quatorze.
Dessa maneira, pode-se concluir que a sensação presente no Intelecto pertence à
integralidade da Forma do homem. A nosso ver, Plotino indica que a sensação dos objetos
corpóreos e sensíveis é atualizada quando a alma desce e se volta para o sensível. Como bem
nota Hadot, a potência de sentir já está no Intelecto e na Forma do homem, mas ela se atualiza
quando o homem entra no devir
170
. A potência de sentir e a sensação, as quais têm suas causas
no Intelecto, existem na Forma do homem devido a uma necessidade e uma perfeição
eterna
171
.
Vogel esclarece que Plotino está suscitando o problema se o homem é, essencialmente,
um ser com percepção sensível, já que era assim como Forma
172
. Segundo ele, Plotino precisa
investigar a questão tentando examinar primeiro o que é o homem “aqui” ou sensível, isto é, o
170
PLOTIN, Traité 38, p. 207-208. Hadot observa que no inteligível há a sensação de objetos incorpóreos; então,
a sensação realiza-se também no inteligível, de uma maneira própria ao Intelecto.
171
Cf. VI [38], 3, 22-25. A pré-existência da sensação no inteligível Intelecto parece pressupor uma descida
necessária do homem e da alma ao sensível e ao corpo.
172
Cf. VOGEL, Plotinus’ image of man. Its relationship o Plato as well as to later neoplatonism, p. 149-150.
Como Hadot, Vogel também lembra que a percepção sensível parece ser da Forma do homem, indicando que
no inteligível existem objetos inteligíveis e um tipo de percepção da qual a nossa é uma imagem imperfeita.
87
conjunto (sunamfo/teron) da imagem da alma e do corpo, sugerindo que é a alma que faz o
homem sensível ganhar vida; concordamos com Vogel que esse homem não seria definido
como alma e, sim, como tal conjunto. Esse seria o “homem no corpo” ou “homem concreto”,
termos dos quais muitos intérpretes fazem uso para compreender os múltiplos aspectos do
homem. Destacamos que essas designações para o homem nos parecem razoáveis somente
quando são adaptações interpretativas ao vocabulário de Plotino a fim de compreender melhor
o tema do homem nas Enéadas; a expressão “homem no corpo” parece-nos mais razoável,
pois Plotino sugere essa ideia tanto em relação à alma – a alma no corpo – como ao homem.
Vimos que a Forma do homem tem eterna e potencialmente tudo para atuar no devir e
no sensível. Notamos que Plotino mostra a noção de completude do homem eterno como
Forma, em oposição à carência do homem engendrado e necessitado de acréscimos. Nesse
sentido, o homem no devir expressa apenas um aspecto da Forma do homem. Depreendemos
que o mais importante é que o homem como Forma existe eternamente. Plotino, então,
começa a delinear algumas diferenças, as quais iremos abordar no próximo item, entre o
homem inteligível como Forma no Intelecto e o homem no devir. A aporia de um raciocínio
para gerar a sensação e o homem no devir continua a ser discutida através da definição do
homem e da comparação entre a Forma do homem e os homens sensível e racional, dos quais
Plotino traça as diferenças
173
.
2.4 O HOMEM RACIONAL E O HOMEM SENSÍVEL
Ainda com o intuito de esclarecer a aporia sobre a pré-existência da sensação no
Intelecto e sua projeção na alma como lógos, Plotino discute em qual alma se encontra o lógos
173
Ao contrário do que fizeram outros que os tinham como idênticos – ele se refere provavelmente aos estoicos e
epicuristas.
88
da sensação. Para tanto, introduz as noções de homem sensitivo e homem racional,
identificando-os, parece, à alma sensitiva e à alma racional. Plotino demonstra que o lógos
está presente hierarquicamente no homem racional e no sensitivo, expressando-se nos níveis
da alma racional e sensível, respectivamente.
Primeiro, Plotino questiona em qual alma se encontram os lógoi que produzem o
homem: se eles seriam atos da alma vegetativa (futikh/), ou antes, da alma que produz o
vivente (zwo/v), a qual é mais iluminada e, tomada nela mesma, é mais rica de vida que
aquela
174
. Hadot nota que essa alma que produz o vivente é a alma sensitiva
175
. Com efeito,
tudo indica que tal alma é a alma sensitiva, sendo que o homem produzido por ela e o lógos, o
homem sensível, coincidiria com o vivente. Afinal, nesse tratado, Plotino precisa justificar a
origem da sensação.
Plotino ressalta que tal alma, vindo para a matéria disposta ou que lhe corresponde,
mesmo sem o corpo, já é homem devido ao lógos do homem que recebeu. Dessa maneira, a
alma é determinada pelo lógos. Em outras palavras, entendemos que a alma é homem no
sentido de ter o lógos que o determina. Então, por um lado, o homem sensível e a alma
sensível coincidem e, sendo assim, o homem como alma é um homem inteligível. Modelando
o corpo que é capaz de acolhê-la, tal alma produz outra imagem do homem. Portanto, o corpo
recebe essa alma, fazendo surgir um homem que possui as razões (lo/goi), as potências
(duna/meiv), as disposições (diaqe/seiv) e os caracteres (h!qh) do homem, mas tudo isso de
modo obscuro, que a imagem do homem não é o primeiro homem
176
. Assim, Plotino indica
outro aspecto do homem inferior: ele não é nem somente a alma nem somente o corpo; por
outro lado, o homem sensível é o conjunto formado pela alma sensitiva e o corpo. Em todo o
caso, Plotino diz que ele é uma imagem. Ora, essa imagem deve ter sua origem no que lhe
antecede, no homem racional e na Forma do homem.
174
Cf. VI 7 [38], 5, 9-11.
175
Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 98 e 221.
176
Cf. VI 7 [38], 5, 11-13. Plotino diz que, do mesmo modo, o artista pode representar um homem inferior.
89
É importante observar que, até esse momento do tratado, o homem racional é tido
como o primeiro homem ou homem superior e o homem sensível, inferior. Posteriormente, o
primeiro homem será a Forma do homem, o segundo, o racional e o terceiro, o sensível. Essa
ordem se inverte quando Plotino os enumera a partir de baixo, do sensível, primeiro, para
cima, a Forma, o terceiro.
Plotino, então, erige uma rie de comparações e relações entre o homem racional e o
homem sensível, entre a alma racional, superior, e a sensível, inferior. A comparação que
mais ressalta nesse momento é sobre a sensação. Percebe-se que o interesse de Plotino é,
sobretudo, analisar a sensação em todos os níveis, desde o Intelecto, descendo por toda a
alma, a o sensível e desse à alma e ao Intelecto. Cada um desses homens tem
hierarquicamente as sensações que lhe correspondem: as do sensível são mais obscuras do que
as do racional, pois são imagens dessas que lhes antecedem. A alma do homem racional é
mais divina, sendo que tem um homem melhor e sensações mais claras
177
. Nota-se que se trata
de uma hierarquia da sensação e da alma dos homens sensível e racional. O curioso é que a
alma do homem racional não é mais divina, mas “já” é mais divina, ou seja, certa
anterioridade desse caráter divino.
Tentemos compreender melhor porque as sensações do homem racional são mais
claras que as do homem sensível. A obscuridade de tal sensação como imagem daquela
precedente pode ser devido ao seu grau inferior de percepção e aos seus objetos inferiores.
Talvez também porque é a alma racional (o logizómenon e a diánoia) que recebe diretamente
as impressões (tu/poi) do Intelecto, como vimos no capítulo anterior. Afinal, a sensação é o
encontro de impressões sensíveis e impressões inteligíveis. Plotino ressalta que as impressões
sensíveis não são da sensação, mas são produzidas a partir dela; portanto, elas são o sensível
177
Cf. VI 7 [38], 5, 19-22.
90
modificado, pois são destituídas do elemento corpóreo. As impressões inteligíveis, por sua
vez, são traços das Formas na alma, já sendo inteligíveis por elas mesmas.
Plotino volta à hipótese de que o homem seria a alma que se serve do corpo e indica
que haveria dois modos de utilização do instrumento, direto e indireto. Enquanto a alma
inferior utilizaria o corpo de maneira primeira ou imediata, a superior, mediata ou
secundária
178
. Como ressalta Hadot, a alma racional não se une diretamente ao corpo e se
serve dele por meio da alma sensitiva, unida diretamente a ele
179
. É o que sugere esta
passagem:
Quando o homem sensível nasce, ela [alma superior] o acompanha dando-
lhe uma vida mais iluminada. Antes, não acompanha, mas como que a
anexa [a alma inferior], pois ela mesma não sai do inteligível, mas,
permanecendo sempre junto a ele, tem a inferior como que suspendida nela,
misturando seu lógos com o lógos daquela
180
.
O homem sensível ou inferior, que era obscuro, torna-se mais claro uma vez que é
iluminado pela alma racional. Nessa passagem é nítida a identificação do homem inferior com
a alma inferior e, por conseguinte, do homem racional com a alma racional. Mas o que
significa dizer que a alma racional anexa a inferior? Elas estão juntas e separadas, pois a
superior se mantém voltada para o inteligível. Hadot sugere que a relação da alma superior
com a inferior se estabelece quando essa segunda se torna capaz de sensação, provavelmente
pelo nascimento
181
.
178
Cf. VI 7 [38], 5, 24-25.
179
Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 221.
180
Cf. VI 7 [38], 5, 26-30. !Hdh ga\r ai)sqhtikou~ o!ntov tou~ genome/nou e)phkolou/qhsen au#th tranote/ran
zwh/n didou~sa: ma~llon d ou)d e)phkolou/qhsen, a)lla\ oi{on prose/qhken au)th/n: ou) ga\r e)ci/statai tou~
nohto~u, a)lla\ sunayame/nh oi{on e0kkremame/nhn e!xei th\n ka/tw summi/casa e)auth\n lo/gw| pro\v lo/gon.
181
Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 222.
91
Nesse tratado, é notável que Plotino se refere à alma racional como aquela que é
mais divina e que não desce, pois permanece sempre no inteligível. Entretanto, aqui ele não se
preocupa em distinguir as potências racionais (logistikón, dianoetikón), mas toma a alma
racional como um todo. Ao mesmo tempo, vemos uma tensão e uma dificuldade em expressar
a separação e a mistura da alma racional com a inferior. Não vemos evidências para
depreender que a alma inferior é anexada à racional por alguma necessidade de uma das duas
ou mesmo externa a elas. O que é explicado, mas não de fácil compreensão, é que a mistura
delas se pelo lógos. Diante dessa caracterização da alma superior, Plotino questiona como
a potência de sentir estaria presente nela. A potência de sentir relaciona-se com os objetos
sensíveis tais como eles se encontram na alma superior.
Através dessa passagem citada acima, percebemos que o homem sensível também
seria entendido como o homem capaz de sensação, isto é, a alma e sua potencialidade
sensitiva, a qual é efetivada quando a imagem da alma se liga ao corpo. Se assim o for, ele é a
alma sensitiva e seu lógos
182
. Portanto, parece que, por um lado, o homem sensível é a alma
sensitiva mais o corpo e, por outro, a alma e seu lógos. Percebe-se que mais uma vez Plotino
demonstra que o homem é a alma determinada por um lógos, sendo que nesse momento ele se
refere ao homem sensível. E, na medida em que a alma é determinada por um lógos no qual a
sensação está incluída, e se o lógos é uma expressão da Forma que se encontra no Intelecto,
então, mais uma vez se constata que a sensação e a capacidade de sentir já estão na Forma.
Após descrever a Forma, a Forma do homem e os homens racional e sensível, Plotino
conclui:
182
Na Enéada I 1 [53], 7, 9-14, Plotino discute sobre o sujeito da sensação e, para tanto, descreve o seu processo.
Ele mostra que a sensação é o encontro de impressões sensíveis e impressões inteligíveis. Logo, a sensação
não é um fato do corpo, pois ela pressupõe traços do Intelecto na alma. Plotino ressalta que as impressões
sensíveis não o da sensação, mas o produzidas a partir dela; portanto, elas são o sensível modificado, pois
são destituídas do elemento corpóreo. Segundo Hadot, o homem sensível, capaz de sensação, é de ordem
temporal. Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 221.
92
O homem no Intelecto é o homem antes de todos os homens. Esse homem
ilumina o segundo [homem racional] e esse, o terceiro [homem sensível]. O
último [homem sensível] contém os outros de alguma maneira, mas não que
ele se torna aqueles, mas porque é justaposto a eles
183
.
Não se pode esquecer que a anterioridade da Forma do homem em relação aos outros
homens é, antes de tudo, causal. Ao explicitar que o homem sensível possui os outros de
alguma maneira e que não se torna os outros porque é justaposto a eles, entendemos que ele
tem os outros em potência por ser uma imagem do que lhe é anterior. Mas por que o homem
sensível não se torna os outros homens? Parece que é exatamente porque ele é e sempre será
diferente deles, já que é acrescido aos outros. A atividade do homem sensível provém do
racional, e a desse, por sua vez, da Forma do homem. Nesse sentido é que cada um dos
homens contém e não contém os outros
184
.
Por fim, Plotino ainda aponta uma importante diferença entre a Forma do homem e o
homem no devir. O primeiro homem ou a Forma do homem e sua vida são completamente
separados do corpo. Lembramos que tal separação decorre do fato da Forma do homem estar
no Intelecto e, por conseguinte, não se sujeitar ao tempo e ao devir. Quanto ao segundo
homem, o racional, pode ocorrer que sua vida seja junto ao corpo, mas, se ele se mantém
mesmo assim separado ou distante do corpo, pode-se dizer que essa sua vida coincide com
aquela suprema da Forma do homem
185
.
Laurent
186
recorda que, em VI 4 [22], 14, 16-26, Plotino aponta outro homem
empírico (prose/kh/luqen a1nqrwpov a!llov) que foi acrescido (prose/qhken) ao homem
inteligível que éramos e que nos tornamos. Nesse texto, Plotino discorre sobre o Uno e
183
VI 7 [38], 6, 11-15. kai\ o( e)n nw~| a!nqrwpov to\n pro\ pa/ntwn tw~n a)nqrw/pwn a!nqrwpon. )Ella/mpei d
ou{tov tw~| deute/rw| kai\ ou{tov tw~| tri/tw|: e!xei de/ pwv pa/ntav o9 e!sxatov, ou) gino/menov e)kei~noi, a)lla\
parakei/menov e)kei/noiv.
184
Cf. VI 7 [38], 6, 15-19.
185
Cf. VI 7 [38], 6, 19-21.
186
Cf. LAURENT, L’homme et le monde selon Plotin, p. 87.
93
questiona se o somos ou se somos aquilo que é vizinho dele e que surge no tempo, isto é, se
somos algo no âmbito da alma. Ele explica que, antes de nascermos, éramos homens, almas
puras e inteligências unidas lá, como partes do inteligível e pertencendo ao todo, sendo que
até hoje não somos separados de lá. Hoje nos tornamos ou somos os dois homens e não aquele
de antes; algumas vezes, somos apenas o segundo homem que é acrescido, na medida em que
o primeiro não mais opera.
A ideia principal parece-nos ser a de que a Forma do homem no Intelecto projeta-se
como lógos na alma para que, então, a imagem da alma ou a outra alma se volte para o
sensível e o corpo, formando o vivente ou o homem empírico. Sendo assim, esse outro
homem acrescido ressoa com a alma que sofreu acréscimos do segundo tratado (Enéada IV
7), com o homem inferior ou no devir do tratado 38 (Enéada VI 7), e, como veremos, com o
vivente do tratado 53 (Enéada I 1). Todavia, Plotino fala em homem e não em alma, o que
gera a dificuldade em compreender exatamente os homens aos quais ele se refere e se eles se
identificam com a alma ou com sua imagem, seja a sensitiva ou a racional. De todo modo,
as noções de acréscimo e de tornar-se que expressam e distinguem a posterioridade do homem
no devir.
Resta compreender melhor onde éramos homens e do que não estamos separados;
ademais, por que o homem de pode não mais operar. Schniewind nota bem que Plotino
evoca dois estados do homem, sua origem inteligível e sua atualidade no sensível: antes de
sermos homens no sensível, éramos outros homens no inteligível e éramos, assim, uma parte
do todo. Ela ressalta que esses dois tipos de homens recebem a mesma designação
a1nqrwpov a!llov –, sendo que o que os distingue é o ser (o!n) e o tornar-se (gi/gnomai). O
homem atual (nu~n), portanto, é a união do ser e daquilo que foi acrescido a ele, o tornar-se.
Segundo a intérprete, isso mostra que o homem atual é constituído de dois homens e que a
possibilidade de o homem ser somente a parte no sensível quando a inteligível não estiver
94
presente. Para ela, o homem verdadeiro tem uma prioridade ontológica e o atual permanece
duplo e, por isso, deve ser analisado pelo devir
187
. Ora, a origem inteligível do homem não
seria a Forma do homem no Intelecto? Mas de que maneira ela pode não estar presente?
Ainda no tratado em questão, VI 4 [22], 15, Plotino ilustra as relações entre tais
homens através da imagem de uma assembleia
188
. Os anciãos deliberam calmamente diante do
povo que se rebela contra a ordem, sendo que aqueles seriam dominados por esses ou vice-
versa. Nessa situação, ou a ordem prevalece, quando o elemento melhor predomina e o pior
não sobrevém, ou o pior predomina silenciando o melhor. Plotino sublinha que essa relação se
no interior do homem, que domina esse tumulto de prazeres, desejos e medos, voltando-se
para o homem que era antes. Essa passagem nos ajuda a compreender que o homem pode se
direcionar para o Intelecto, onde encontra sua Forma ou o homem que éramos antes e, nesse
sentido, torná-la presente não que ela não esteja presente, mas ela não predomina nesse
momento. Plotino explica que o voltar-se ao homem que éramos e que somos (kai\ e1stin
e)kei~nov) é também viver segundo ele ou em acordo com ele (kat e)kei~no/n te zh~|). Assim, o
homem distancia-se do corpo, dando-lhe aquilo que como sendo um outro de si mesmo
189
.
A nosso ver, esse distanciamento do homem em relação ao corpo reflete uma não
identificação com esse último.
Com efeito, Plotino ora indica dois homens ora um homem duplo ou, diríamos
também, um homem que possui duas forças, funções ou aspectos; ou ainda, como sugere
Schniewind
190
, duas partes que constituem o homem em seu ser duplo. Entrementes, se um
homem ao qual é possível se voltar para o alto ou deixar prevalecer os prazeres, desejos e
medos, nessa imagem da assembleia, Plotino também indica um homem que tem uma vida
187
Cf. SCHNIEWIND, L’éthique du sage chez Plotin. Le paradigme du spoudaios, p. 104.
188
Schniewind lembra que a imagem da assembleia é retomada no tratado 28 (Enéada IV 4), com o mesmo
propósito de comparação entre os homens, mas de um modo mais detalhado e se apoiando em um exemplo de
formas de legislações democráticas ou aristocráticas. Cf. SCHNIEWIND, L’éthique du sage chez Plotin. Le
paradigme du spoudaios, p. 104.
189
Cf. VI 4 [22], 15, 37-38. Didou\v tw~| sw/mati, o#sa di/dwsin w(v e(te/rw| o!nti e)autou.
190
Cf. SCHNIEWIND, L’éthique du sage chez Plotin. Le paradigme du spoudaios, p. 106-107.
95
mista. Schniewind afirma que esse seria um terceiro tipo de homem, um homem intermediário
que participa do bem e do mal. Observamos que através desse homem intermediário, do sábio
(spoudai~ov) do tratado 46 (Enéada I 4) e dos homens comuns (em contraposição ao
spoudai~ov) do 33 (Enéada II 9), Plotino expõe sobre a dimensão ética do homem, tema que
extrapola nosso estudo.
Segundo Laurent
191
, Plotino expõe sobre uma humanidade racional que está em um
nível intermediário, entre a humanidade empírica de nossa alma sensitiva e a transcendente ou
puramente espiritual. Dessarte, a humanidade é pensada não como Forma, mas como um
lógos que expressa a Forma pura. Nesse sentido é que Plotino distingue três homens, sendo
que o homem sensível é o homem inferior, o homem inteligível no tempo e no espaço ou uma
imagem do homem em si imagem produzida graças à presença do lógos do homem.
Constatamos, então, uma ambiguidade ou uma fluidez quanto ao homem sensível, que
ora nos afigura como alma sensitiva e lógos, ora como o conjunto formado por essa alma
sensitiva e o corpo
192
. O homem racional, por sua vez, é tido como a alma racional e o lógos,
mas também como o homem que pode se inclinar para o alto ou para baixo. Entrementes,
ainda não nos é claro se esses dois homens, sensível e racional, são separados e independentes
ou se coexistem, formando um homem que tem um aspecto sensível que se realiza juntamente
ao corpo e também outro com aspecto racional.
Se por um lado esses três homens, Forma do homem, homem racional e homem
sensível, parece que também um homem duplo. Em nosso primeiro capítulo
193
, vimos que
a alma tem uma vida anfíbia e desempenha uma função dupla – o que é exposto, por exemplo,
no sexto tratado (Enéada IV 8) ou tripla, uma sempre voltada para lá, outra para as coisas
191
Cf. LAURENT, L’ homme et le monde selon Plotin, p. 88.
192
Conjunto que pode ser entendido como sinônimo do vivente sobre o qual Plotino tratará na Enéada I 1 [53],
tema de nosso próximo capítulo.
193
Cf. Cap. 1, “A descida e a união da [imagem] da alma aos corpos”, p. 32-34.
96
daqui e uma intermediária – no tratado 33 (Enéada II 9). Ora, se o homem identifica-se com a
alma e se essa é anfíbia, o homem também tem uma vida dupla.
Em II 3 [52], 9, 30-31, Plotino diz: “cada homem é duplo, um é o conjunto, o outro é
ele mesmo”
194
. Plotino não explicita que a natureza do homem é dupla. A nosso ver,
contrariamente a Schniewind, aqui Plotino expressa dois aspectos de um homem, sendo que o
principal é o que o define ou é ele mesmo. Os dois pólos e critérios pelos quais pode se
considerar o homem parecem ser, antes de tudo, sua composição e sua simplicidade. Sendo
assim, a passagem sugere que, por um lado, o homem é um conjunto enquanto tem um corpo,
mas, por outro, é ele mesmo, isto é, a alma. Tal passagem, se analisada como se referindo
também ao homem sensível como conjunto e ao homem racional como o outro, confirma que
eles coexistiriam tanto logicamente quanto ontologicamente.
Entendemos que o homem como alma tem uma condição dupla, mas não uma natureza
assim qualificada. E, se assim o for, talvez não se trate de superar sua condição, transpor sua
duplicidade. Paradoxalmente, ela é algo permanente e necessário no devir, no âmbito do
impermanente. Mesmo que os aspectos sensível e inteligível do homem não coexistam bem,
sem tensão
195
, eles estão juntos.
Schniewind ressalta a condição dupla do homem a partir de várias passagens das
Enéadas, mas emprega indistintamente os termos natureza, caráter e condição para expressar
a duplicidade do homem. Segundo ela, pode-se dizer que o homem é duplo em razão da
natureza da alma humana cuja função é dupla; se a alma é concebida como anfíbia, o homem
é um ser duplo
196
. Para ela, o homem é sempre o conjunto de alma e corpo
197
. Notamos que
ela restringe o homem ao seu aspecto composto, sensível.
194
Ditto\v ga\r e#kastov, o( me\n to\ sunamfo/tero/n ti, o( de\ au)to/v.
195
Cf. HADOT, Les niveaux de conscience dans les états mystiques selon Plotin, p. 264.
196
Cf. SCHNIEWIND, L’éthique du sage chez Plotin, p. 100.
197
Cf. SCHNIEWIND, L’éthique du sage chez Plotin, p. 112.
97
Diante das diferenciações desses homens, poder-se-ia indagar se eles são, de fato,
vários homens ou somente um sob mais de um aspecto ou através de diferentes imagens. E a
pergunta é válida porque Plotino, como um platônico, estrutura boa parte de seu pensamento,
dentre outras, na noção de imagem: o homem sensitivo é uma imagem (mi/mhma) do homem
racional, o qual o ilumina
198
e é iluminado pela Forma do Homem, anterior aos outros
homens. O primeiro homem, o Homem no Intelecto, ilumina o segundo e, esse, o terceiro”
199
.
Segundo Vogel
200
, na medida em que o homem “daqui de baixo” é um reflexo do homem
racional (primeiro e inteligível), esse ilumina aquele porque o engendrou. Observa-se que
cada um desses homens é a imagem do outro que lhe é superior e também têm neles essa
imagem. Ora, então, a alma sensitiva, por exemplo, tem nela uma imagem do homem
racional e a modela nos corpos
201
.
Dessa maneira, Plotino indica que algumas imagens de homens a partir da Forma
inteligível do homem no Intelecto. Trata-se de demonstrar que o homem existe, completo,
como Forma no inteligível. E, como a Forma do homem é o modelo, a origem das suas
imagens, ele é tido como o verdadeiro homem no tratado 38 (Enéada VI 7). Por isso, a Forma
do homem poderia ser analisada como o único homem, e os outros como suas imagens ou
seus aspectos. Vemos, então, que Plotino mostra que há vários modos de existência do
homem, no sensível e no inteligível. Pelo critério da demarcação entre o sensível e o
inteligível, a Forma do Homem seria o homem superior e verdadeiro e o homem sensível, o
inferior.
198
Plotino recorre a essa metáfora da iluminação (e!llamyiv) muitas vezes, principalmente no tratado 9 (Enéada
VI 9), para tentar ilustrar o momento do contato com o Uno. Em VI 9, 7, 12-16, é dito que a alma deve se
despojar de suas impressões (sensíveis e inteligíveis) e de tudo, a fim de que possa ter a visão do Uno sem
forma e para que seja iluminada pela presença desse Princípio Supremo. A metáfora também ilustra o Uno
como uma luz que está nas coisas que ilumina, mas o se confunde com elas. Para esse sentido da noção de
iluminação, Cf. PRADEAU, L’imitation du principe. Plotin et la participation, p. 67-68.
199
VI 7 [38], 6, 10-15.
200
Cf. VOGEL, L’image de l’homme chez Plotin et la critique de Jamblique, p. 152.
201
Cf. PLOTIN, Traité 38, p. 221.
98
2.4 CONCLUSÃO
A nosso ver, Plotino aponta uma diferença entre a natureza ou essência do homem e
sua condição ou estado. A primeira sugere algo permanente, o que indica sua definição pela
alma; a segunda parece incluir o corpo e a dimensão temporária do homem, o que o define
como um conjunto ou composto de alma e corpo, como um vivente. Portanto, parece-nos que
a condição do homem seria dupla, mas não sua natureza. Essa distinção pode ser uma das
causas das várias interpretações e divergências a respeito da definição do homem nas
Enéadas.
Nos tratados analisados até então, percebemos que um homem que Plotino
identifica com a alma de um modo geral, em contraposição ao corpo, que o homem possui,
mas que não o define. Ou, dito de outro modo, em algumas passagens das Enéadas, Plotino
refere-se ao homem tomado sob o viés da alma. Mais especificamente, ele o descreve como
alma e lógos e, assim, tem-se o homem racional, alma racional e lógos, e o homem sensível,
alma sensitiva e lógos.
Diante do exposto, o que podemos extrair é que não uma concepção única e fixa
de homem para Plotino, sendo que a dificuldade do tema reside, sobretudo, em tal fluidez
202
.
Entendemos que não homens separados ou totalmente distantes e estranhos uns aos outros,
mas se trata, até então nos tratados analisados, de um homem que se realiza no Intelecto e na
alma. Ao mesmo tempo, todos poderiam ser tomados como homens ou tipos de homens ou
poder-se-ia-se dizer que a Forma do homem se realiza nos níveis que lhe procedem. Plotino
parece indicar modos de existência do homem e, sendo assim, dizemos que o homem viveria
202
Não afirmamos que uma fluidez total no tema do homem e em outros, pois observamos que algumas teses
de Plotino permanecem ao longo das Enéadas.
99
em planos diferentes
203
. Nesse sentido, propomos que se tenha uma visão mais ampla do
homem nos escritos plotinianos.
O problema é que muitas vezes se fala do homem nas Enéadas sem especificar o
contexto em questão. Além do contexto, notamos que, se se quer investigar algo sobre o
homem para Plotino, é preciso delimitar o critério e a perspectiva envolvidos. A falta desses
elementos algumas vezes parece gerar uma análise confusa por parte dos intérpretes. Se
uma perspectiva do inteligível, onde o homem se realiza no Intelecto e na alma, também a
do sensível, onde ele também se realiza: esse é o homem “daqui” e com o qual lidamos
diretamente. Então, precisamos de mais elementos para discutir como a relação do homem
com o corpo e o sensível seria vista nas Enéadas. É mister, pois, compreendermos o homem
no devir, que é apresentado por Plotino no tratado 53 (Enéada I 1) como o vivente e que será
objeto de estudo do próximo capítulo. Assim, teremos percorrido os campos de possibilidade
nos quais o homem se inscreveria.
203
Talvez também esteja envolvida uma escolha da alma: viver segundo o Intelecto e as Formas ou voltada para
o sensível e o corpo.
100
CAPÍTULO 3
O HOMEM, AS AFECÇÕES E O VIVENTE
3.1 INTRODUÇÃO
Após termos analisado o homem à luz do inteligível pelo Intelecto e pela alma –,
investigaremos como ele se exprime no sensível. O tratado 53 (Enéada I 1) mostrou-se
fundamental para compreendermos o homem no devir. Se o segundo tratado (Enéada IV 7)
enfatiza que o homem não é o corpo, mas o tem, fazendo dele algo que não seja simples, isso
nos conduz a investigar esse homem que tem uma composição. O tratado 53 (Enéada I 1)
apresenta-nos o vivente, o conjunto formado pela imagem da alma e o corpo, distinguindo-o
do homem. Esse texto é essencial para esclarecer a divisão e a descida da alma no corpo,
que nos apresenta um elemento intermediário responsável pela ligação entre eles, e para
ratificar a unidade e a impassibilidade da alma. A questão, por exemplo, das potências
inferiores da alma que se dirigem para o corpo em contraposição à alma superior que não se
volta para baixo pode ser melhor compreendida através das afecções. Desse modo, ele nos
fornece explicações para a união e a separação da alma e do corpo.
Através do vivente e da atribuição das afecções, o texto delineia um homem aparente,
o homem sensível. Tentaremos mostrar a relação do homem com o corpo e o sensível. Assim,
em uma análise do tratado 53, buscaremos mais elementos para nossa investigação sobre a
definição do homem nas Enéadas.
101
3.2 A ATRIBUIÇÃO DAS AFECÇÕES
O tratado 53 (Enéada I 1) investiga a que (tinov) se deve atribuir as afecções (pa/qh)
como medo (fo/bov) e confiança (qa/rrov), prazer (h(donh/) e dor (lu/ph), desejo (e)piqumi/a) e
aversão (a0postrofh/), assim como as ações e as opiniões que resultam delas. Plotino
sublinha que o problema também se coloca para o raciocínio discursivo (diánoia) e a opinião:
se ambos são atribuídos àquele ao qual as afecções o atribuídas. Do mesmo modo, ele
questiona a atribuição das intelecções (noh/seiv), do exame ou investigação (e)pi/skopov)
204
,
e, ainda, a do ato de sentir (to\ ai)sqa/nesqai), que, como ele diz, as afecções são certas
sensações ou o existem sem a sensação
205
. Logo, percebemos que as funções vegetativa,
sensitiva e racional da alma relacionam-se, cada uma à sua maneira, com as afecções.
Plotino, então, propõe três hipóteses para a atribuição das afecções: a alma, a alma que
utiliza o corpo e o conjunto formado pela imagem da alma mais corpo, denominado vivente
(zwo/v) ou conjunto (sunamfo/teron). Primeiro, ele examina a alma, depois, a alma no corpo
e o vivente.
Plotino enumera as razões para negar essa atribuição das afecções à alma separada,
essencial e indivisível. De início e recorrentemente, Plotino argumenta que, sendo ela divina,
imortal e incorruptível, é, necessariamente, impassível, não sofre mudanças em sua essência.
Ademais, ela não recebe nada do que lhe é posterior no movimento de processão, mas
somente do que lhe é anterior; ora, o podendo receber nada que lhe seja estranho ou
exterior, ela não teme nada
206
. Ele, então, desenvolve uma investigação acerca da alma, da
204
Ao indagar por aquele que examina, Plotino indica que a reflexão se volta para si mesma, como objeto e
substrato de sua própria pesquisa e interrogação; em outras palavras, a investigação confunde-se com sua
própria atividade. Plotino detém-se na questão da atribuição das afecções e essa do exame é suspendida. Aubry
discute a natureza daquele que investiga, se ele seria uma substância ou uma consciência, e daquele ao qual as
afecções são atribuídas. Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 118-119.
205
Cf. I 1 [53], 1, 12-13.
206
Cf. I 1 [53], 2, 9-14.
102
alma que utiliza o corpo e do conjunto formado pela imagem da alma e pelo corpo, com o
propósito de saber se eles são considerados substâncias e de qual espécie, simples ou
compostas.
Recorrendo ao critério aristotélico de substância simples e composta, Plotino
hipotetiza que as afecções o são atribuídas à alma se ela for uma substância simples, se for
idêntica ao ser-alma ou sua essência, mas, se ela for composta, isto é, diferente de sua
essência, as afecções podem ser atribuídas a ela
207
. Ora, como ele diz que a alma não admite
receber nada do que não lhe é anterior, conclui-se que ela permanece sempre a mesma em sua
essência. Aubry
208
observa que Plotino trata com rigor a hipótese da alma como substância
composta, sublinhando sua coerência; e que, concentrando-se na afirmação da alma como
substância simples, ele não apenas suscita e investiga sua possibilidade lógica, mas também
evidencia a possibilidade real da mesma. Lembramos que, como vimos em nosso capítulo
anterior
209
, Plotino colocou a mesma questão para o homem, se ele é simples ou composto.
Ainda quanto à possibilidade de se atribuir as afecções à alma essencial, Plotino
sustenta que ela não tem os prazeres e os desejos (e)piqumi/ai) do corpo
210
, o qual, por si só,
não seria seu objeto de desejo, que ela não procura nenhum suplemento, por ser simples e
completa, bastando-se a si mesma. Ela não sofre de nada, pois o precisa de nada. Ela não
aspira nem mesmo a mistura com o corpo. Então ela não tem nenhum desejo próprio e
inerente? Tem, mas o procura nenhum bem relativo, apenas o Bem
211
, sendo que esse seu
desejo (o/)reciv) não lhe implica dor ou sofrimento.
207
Cf. I 1 [53], 2, 1-14.
208
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 131.
209
Cf. Cap. 2, “A definição do homem- Enéada IV 7 [2]”, p. 68-69.
210
Entendemos aqui os desejos ligados à dimensão corpórea, tais como a posse de bens e riquezas materiais. Não
que o corpo por si só deseje, já que não é capaz de representação.
211
Cf. I 1 [53], 5, 27. Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 134.
103
Plotino discute, então, a hipótese de que as afecções são atribuídas à alma que utiliza o
corpo como instrumento, a alma no corpo e antes ou separada dele
212
. Em um primeiro
momento, ele afirma que a alma que se serve do corpo não é forçada a receber as afecções
dele
213
; depois, diz que talvez ela seja forçada a receber a sensação, necessariamente, pois é
preciso que conheça as afecções a partir da sensação para se servir do instrumento e, por
último, que tal relação se confunde com a própria sensação
214
. Nas palavras de Aubry
215
,
Plotino sugere que essa relação de utilização deveria significar um agir junto, um ato comum
da alma e do corpo. Em outros termos, a alma não utilizaria as sensações recebidas e
transmitidas pelo corpo, não as sentiria por ele ou através dele, mas com ele. Sendo assim,
Plotino demonstra que a sensação é uma propriedade do corpo e da alma que se liga a ele.
Afinal, o corpo, sendo animado pela alma, não sentiria sozinho, independente dela, e ela, sem
ele. Ao que tudo indica, a sensação é fundamental para o processo das afecções, estando
ambas atreladas.
Plotino não afirma que há uma separação total entre o corpo e a alma que o utiliza. Ela
pode proteger e cuidar excessivamente do corpo e, se assim proceder, entregando-se a ele,
esquece-se de si mesma, de sua natureza e origem. Ela, então, terá as dores, o sofrimento, os
apetites e tudo aquilo que ocorre ao corpo
216
. Nesse caso, deve haver uma separação a fim de
que ela desvie seu olhar dele, dos ditos bens corpóreos e exteriores
217
.
Plotino expõe a insuficiência do instrumentalismo para justificar a atribuição das
afecções: se na relação de utilização, a alma e o corpo estão separados, como as afecções
212
Cf. I 1 [53], 3, 21-22. Lembramos que, ao analisar a natureza da união da alma com o corpo, Plotino descarta
várias hipóteses, a primeira delas, de que uma ligação local entre eles; também a de que a alma não é uma
superfície em contato com o corpo. Sobre a relação da Alma do mundo com o corpo, cf. FRAISSE,
L’intériorité sans retrait. Lectures de Plotin, p. 74.
213
Plotino pode estar indicando o conceito estoico de sympátheia, que expressa uma comunhão de impressões e
sentimentos.
214
Cf. I 1 [53], 3, 3-8.
215
Cf. PLOTIN. Traité 53, p. 139-140.
216
Cf. I 1 [53], 3, 8-11.
217
Cf. I 4 [46], 14.
104
chegariam do corpo à alma
218
? Plotino, então, adentra na hipótese da atribuição das afecções
ao que deriva da alma e do corpo. Para tanto, analisa como a alma era misturada ao corpo
antes da filosofia separá-los.
Primeiro, Plotino tece sua argumentação contra a concepção estoica de mistura, pois,
nesse caso, o corpo, o pior, seria melhor e a alma, pior
219
. Depois, considera a mistura em que
a alma e o corpo estão entrelaçados. Essa imagem de um entrelaçamento de ambos confere a
impassibilidade à alma, pois ela não implica, necessariamente, a simpatia pela qual um
experencia algo do outro. Portanto, mesmo se está entrelaçada ao corpo, a alma o segue
suas afecções. Plotino, então, recorre a uma metáfora fundamental, a da luz que projeta seu
reflexo sem se confundir ou ser afetada pelo que ilumina
220
. A luz difunde-se, mas sua fonte
permanece a mesma. Como a luz, a alma penetra todo o corpo através de sua imagem, gerada
quando a alma desce, inclinando-se para baixo, para o corpo e o sensível. Presente, ela mesma
não está presente. Através dessa metáfora, Plotino mostra que a alma não segue as afecções
do corpo por estar nele. Ela somente dá algo de si a ele, sem necessitar e receber nada dele, de
fora.
Por fim, ele também considera a mistura como forma imposta à matéria para apontar o
corpo instrumental que tem a vida em potência como aquele ao qual as afecções são atribuídas
e a alma como causa
221
. Plotino sugere mais uma vez a impassibilidade da alma, que tal
corpo assim qualificado, e somente ele, age e sofre pela alma, mas isso não implica que ela
sofra também ou sofra com ele. Esse corpo animado parece ser aquele para o qual a alma
vegetativa e sensitiva está direcionada, sendo, pois, indissociável dessa alma; ele é o que
deseja, logo, quando dizemos desejo do corpo, é a esse corpo que estamos nos referindo. O
vivente é proposto como aquele que tem as afecções e, por isso, emergem novas aporias.
218
Cf. I 1 [53], 3, 11-17.
219
Cf. I 1 [53], 4, 1-10.
220
Cf. I 1 [53], 4, 12-18.
221
I 1 [53], 4, 19-25.
105
O quinto e o sétimo capítulos mostram o que é o vivente ou animal exatamente, se ele
é o corpo que tem a vida em potência –, o comum (koinóv) ou o conjunto de imagem da
alma e corpo (sunamfo/teron). Para esclarecer o conjunto, Plotino investiga suas condições
de existência: conclui que é preciso entendê-lo como algo distinto de seus elementos
componentes e que ele existe pela presença da alma, assim como a sensação, pela da alma
sensitiva
222
.
Se as afecções são atribuídas ao conjunto, em que condições e por qual processo elas o
são? Plotino aventa duas hipóteses: por uma transmissão (diádosiv) do corpo à alma ou o
contrário. A discussão de tais hipóteses auxilia Plotino em sua análise da teoria estoica da
transmissão
223
. Vejamos também algumas passagens do tratado 28 (Enéada IV 4), nas quais
se trata de fixar a impassibilidade da alma e o lugar do corpo e da sensação no processo das
afecções.
Plotino explica que corpo tem ou sente a afecção, e a alma sensitiva (ai)sqhtikh/),
vizinha ao corpo, a recebe e a conhece pela sensação, ou seja, ela se apropria da impressão
transmitida e a elabora ou ressignifica, à sua maneira; depois, ela faz com que a alma em que
chegam as sensações a conheça também
224
. Plotino ilustra tudo isso através dos seguintes
exemplos: se o corpo tem um corte, ele sofre, mas a irritação (a)gana/kthsiv) difunde-se
porque se trata não de uma simples massa corpórea, mas animada; uma queimadura está no
corpo, mas a alma sente e recebe sua impressão por intermédio da sensação, pois é contígua
ao corpo, mas não é ela mesma afetada
225
. É o que sugerem suas palavras quando diz, nesse
contexto, que é o corpo quem sofre: “assim, o corpo sofre; e digo sofre enquanto sofre”
226
.
Estando e percebendo-se toda inteira no corpo, a alma é capaz de pronunciar de onde lhe veio
a impressão. Se a alma fosse afetada, não seria possível que o fosse somente em uma parte ou
222
Cf. I 1 [53], 7, 1-5.
223
Cf. IV 2 [4], 2.
224
I 1 [53], 19, 6-7. Kai\ a0paggeila/shv tw~| ei0v o$ lh/gousin ai( ai0sqh/seiv.
225
Cf. IV 4 [28], 19, 5-13.
226
IV 4 [28], 19, 7-8. Kai\ h)lgu/nqh me\n e)kei~no: le/gw de\ to\ h)lgu/nqh to\ pe/ponqen e)kei~no.
106
região definida, como é o caso do corpo. Com isso, Plotino assegura a impassibilidade da
alma, pois, se ela fosse afetada, seria toda afetada e não conseguiria localizar a afecção em
uma região definida, que estaria completamente penetrada por ela
227
. Através da
transmissão da afecção do corpo à alma pela sensação, Plotino ratifica a distinção entre a alma
e o corpo – discutida no segundo tratado (Eneáda IV 8) –: a alma é incorpórea porque
permanece toda inteira onde estiver.
Portanto, as afecções chegariam do corpo à alma pela sensação e a alma sentiria com o
corpo e simultaneamente a ele; a sensação parece estar incluída na comunicação (koinwni/a)
entre ela e o corpo. Desse modo, a sensação seria uma mensageira que ligaria as afecções do
corpo à alma
228
. Por essa relação de comunicação, pode-se entender que a alma e o corpo não
são capazes de provar as afecções por si mesmos, somente ao se comunicarem em uma união
por participação. Na verdade, é plausível dizer que a alma é a condição de atualização das
capacidades do corpo que ela anima.
Plotino parece indicar a diferença entre o homem e o vivente não explicitado nesse
tratado com esse termo, mas referido. Se o dedo sofre, o homem sofre porque é seu dedo,
mas é na região afetada que ele sofre; por sua vez, a região afetada é uma parte do corpo ou o
corpo animado pela imagem da alma. Não é o homem propriamente que sofre, mas um
homem aparente, o corpo animado ou o vivente, no qual as afecções se mostram; assim,
dizemos que é o homem por força de expressão. O curioso é que Plotino nos oferece
exemplos nos quais uma afecção que parece ser puramente física ou, pelo menos, de
origem corpórea, uma vez que aparentemente ela sobrevém primeiro ao corpo. Mas é preciso
considerar dois pontos: 1. o que sobrevém primeiro ao corpo é a impressão sensível externa 2.
a afecção se mostra no corpo ou através dele. Plotino se refere a uma dor física de um corte
ou de uma queimadura – e diz que o corpo sente a afecção e a alma a conhece, sugerindo que,
227
Cf. IV 4 [28], 19, 13-22.
228
O tema da sensação como mensageira também é exposto por Plotino no tratado 49 (Enéada V 3).
107
de todo modo, alma e corpo estão implicados. Além dessa dor, também outra afecção, que
parece se misturar àquela uma vez que deriva dela ou de sua sensação, qual seja, a irritação,
que se difunde para o corpo devido à alma. Assim, se Plotino enfatiza o sofrimento do ou no
corpo, também indica a atuação conjunta do elemento irascível da alma. Ora, se a alma
apontaria a região afetada no corpo, é porque, do seu modo, ela participa do processo e o faz
junto com ele. Afinal, o corpo sente a afecção devido ao princípio que o anima.
As mesmas dificuldades surgem para as afecções aparentemente psíquicas. No tratado
26 (Enéada III 6, 3), Plotino diz que as afecções do medo, da dor (lu/ph), do prazer e do
desejo (e)piqumi/a) têm princípio ou causa na alma e que seus efeitos ou resultados são
conhecidos pela sensação. Esse texto busca estabelecer a impassibilidade dos incorpóreos, da
alma, e dialoga com a concepção estoica de que a afecção surge da opinião ou assentimento
da alma. Plotino sugere que, mesmo se, em alguns casos, a afecção surge devido a uma
opinião, a alma não é afetada, mas o ser conjunto diferente dela. De todo modo, o importante
é que nenhuma afecção é atribuída à alma. Pode-se dizer que ele indica que as afecções são,
ao mesmo tempo, corpóreas e psíquicas, isto é, envolvem sempre o conjunto imagem da alma
e corpo ou a relação entre eles.
Nota-se, pois, que a garantia da impassibilidade e da natureza da alma é fundamental.
Descrevendo o sofrimento do corpo animado pela alma, Plotino desvia a afecção da alma
propriamente e do homem, assegurando a natureza dos mesmos. Assim, ele mostra como a
alma percebe ou conhece as afecções sem ser afetada por elas através de uma distinção sutil
entre a sensação da afecção pelo corpo e a percepção ou conhecimento dela pela alma:
A sensação ela mesma não deve ser dita [ser] sofrimento, mas
conhecimento do sofrimento; sendo conhecimento, ela é impassível por
108
conhecer e transmitir sem alteração. Um mensageiro que sofre quando
dominado pela afecção não as transmite ou não é um mensageiro fiel
229
.
Plotino indica que o corpo se torna um instrumento para as afecções se revelarem, mas
jamais deixa de ser um meio que é mantido pela alma. Alma e corpo sentem as afecções
conjuntamente, mas de modos diferentes, diríamos. A ênfase é mostrar que não sofrimento
que escape à sensação e, por conseguinte, ratificar que a alma através de sua imagem que
desce e o corpo se relacionam. Se uma anterioridade da afecção no corpo, é porque a
sensação dela é o pressuposto para seu conhecimento. Agora compreendemos melhor porque
Plotino diz que as afecções são certas sensações ou não existem sem a sensação, ou seja,
originam-se a partir delas e são condicionadas por ela
230
. Ademais, notamos que a atribuição
das afecções para Plotino é ampla, pois denota não somente aquele que as sente e as sofre,
mas também aquele que as conhece; trata-se de um processo no qual todos os elementos
envolvidos são igualmente importantes e necessários.
Plotino reforça a impassibilidade da alma e as relações entre sua imagem e o corpo
explicando que as afecções como os apetites (e)piqumi/ai) têm princípio no comum (koino/n)
ou no corpo animado, ocorrem nele ou o atribuídas a ele. Portanto, o princípio dos apetites,
das tendências e inclinações não são nem de um corpo qualquer nem da alma ela mesma,
isolada: não é a alma que busca o amargo e o doce, mas o corpo que não é simples corpo
231
.
Plotino esmiúça algumas questões sobre a sensação e explica o papel do corpo em sua
interação com a alma sensitiva no processo das afecções: as sensações ocorrem por
229
IV 4 [28], 19, 26-29. )All0 ou}n th\n ai!sqhsin au)th\n ou)k o)du/nhn lekte/on, a)lla\ gnw~sin o)du/nhv: gnw~sin
de\ ou]san a0paqh~ ei]nai, i#na gnw|~ kai\ u9giw~v a)paggei/lh|. Peponqw\v ga\r a!ggelov sxola/zwn tw|~ pa/qei
h@ ou0k a)pagge/llei, h@ ou)k u(gih\v a!ggelov.
Nota-se que o vocabulário de Plotino sobre as afecções e a impassibilidade denota o âmbito da saúde: uma
alma boa mensageira é aquela que está sã ou inalterada e desempenha sua função livre das afecções.
230
Mas, de fato, não haveria para Plotino afecções originadas exclusivamente da alma, como o prazer
intelectual? Por exemplo, não haveria desejos de origem e natureza psíquica, como o amor ao conhecimento e
à verdade? Plotino aponta o prazer puro que pode estar na alma sozinha em Enéada I 1 [53], 2, 29-30, mas não
retoma a questão.
231
Cf. IV 4 [28], 20, 1-6.
109
intermédio dos órgãos corpóreos. Eles são afetados pelo objeto externo e a sensação transmite
sua forma ou representação (ei]dov, morfh/, fantasi/a) sensível à alma, que a sente e
conhece; assim, a afecção que eles sentem torna-se forma na alma
232
. Assim, a alma vizinha
ao corpo, a imagem da alma ou natureza, tem o desejo que se iniciou no órgão corpóreo e no
corpo animado
233
. Nesse momento, destacamos que o texto se atém em estabelecer o lugar do
corpo e da sensação nas afecções, o que gera certa ênfase na origem ou no aspecto corpóreo
da afecção.
A transmissão das afecções da alma ao corpo teria a alma como causa daquelas, as
quais floresceriam de uma opinião (do/ca) ou julgamento (kri/siv). Dessa forma, a tristeza, a
cólera e o desejo, por exemplo, derivariam de uma opinião ou crença sobre o que se crê ser
um mal ou um bem. Entretanto, Plotino parece aventar essa hipótese como crítica à
formulação estoica de que as afecções são atribuídas à razão e sua atividade de assentimento.
Erigindo a tese de que não é à alma essencial que as afecções são atribuídas, Plotino
sustenta que ela o tem nem a sensação, o raciocínio discursivo ou a opinião. A afecção não
é admitida nela, pois a sensação a recebe do corpo e, se ela o está atrelada ao corpo, não
tem a sensação; o raciocínio discursivo e a opinião também não o são, já que eles vêm da
sensação
234
. O que se percebe é que Plotino apresenta a estreita relação entre afecção e
sensação, a qual se no âmbito não da alma essencial, mas daquela que se liga ao corpo.
Plotino, então, retoma o conceito da transmissão de uma maneira diferente: a transmissão
das impressões sensíveis do corpo à alma sensitiva.
No primeiro capítulo do tratado 53 (Enéada I 1), Plotino indica que as ações
pertencem àquele a que se atribuem as afecções, ao vivente ou conjunto, enquanto as opiniões
são de outro modo. Portanto, agir e sofrer estão juntos, formando um par de potências ou
232
Cf. IV 4 [28], 23, 15-43.
233
Cf. IV 4 [28], 20, 16-17.
234
Cf. I 1 [53], 2, 25-27. Não se pode esquecer que o raciocínio (logizómenon e dianoetikón/diánoia) também
recebe as impressões do Intelecto. Cf. V 3 [49], 2, 8-10.
110
potencialidades. No quinto capítulo, ele afirma que ainda não é claro se as opiniões pertencem
à alma ou ao conjunto. Ele questiona se o vivente também sofre transformações dolorosas do
corpo quando se tem uma opinião de algo nocivo. A opinião de uma afecção nela mesma não
contém tal afecção. casos de se ter a opinião do sofrimento e do bem e não sofrer, não se
encolerizar e não mover o desejo. Apesar de Plotino o explicitar casos em que uma afecção
pode se seguir de uma opinião, não diríamos que ele descarta de todo essa possibilidade. Com
efeito, cabe dizer que ele indica que não há nenhuma conexão direta e necessária entre
opinião e afecção. Ademais, se as opiniões não são comuns à alma e ao corpo, como as
afecções o são, elas devem ser atribuídas à alma. Ele tece sua argumentação para esclarecer
que elas não são do vivente, como as afecções.
A afecção é algo comum à imagem da alma e ao corpo. Se o apetite pertencer à
potência apetitiva, e a cólera, à irascível, não serão comuns; é necessário que o sangue e a bile
fervam e o corpo, assim disposto, mova o desejo
235
. No tratado 26 (Enéada III 6), ele oferece
o exemplo da vergonha (ai)sxu/nh), que surge na alma quando se tem a opinião de uma ação
vergonhosa; mas o corpo, por estar contido na alma, ser vizinho a ela e animado, sofre uma
mudança do sangue. Ainda que se inicie na alma, pela opinião ou de outro modo, a afecção
também se dá no corpo, sendo, portanto, de ambos.
Uma noção de grande relevância envolvida aqui é a de potência (du/namiv), a qual
adquire um significado particular. Segundo Plotino, uma vez que as potências estão presentes,
aqueles que as têm agem segundo elas
236
. Isso significa que as potências da alma são
definidas como princípios de capacidades, sendo que o ativas pela simples presença
naqueles que as possuem. Contudo, apesar de fornecerem a ação, as potências são imóveis;
235
Cf. I 1 [53], 9, 17-21.
236
Cf. I 1 [53], 6, 1-4.
111
pode-se dizer que Plotino sugere aqui que elas são produtivas, como dissemos
237
. Assim,
Plotino demonstra que a potência é diferente da capacidade de agir (to\ du/naisqai) gerada por
ela. Por exemplo, a sensação ocorre pela presença da potência sensitiva, mas não é ela quem
sente e sim aquele que a possui, o vivente.
A questão é que a teoria das potências da alma possibilita a presença-transcendência
da alma em relação ao corpo: ela não se mistura a ele, não o é, na medida em que é sua
imagem ou suas potências que estão presentes nele. Portanto, não é ela que sente e que tem as
afecções. A vida do corpo não é a da alma, mas um efeito ou reflexo da potência dela; a alma
anima o corpo porque permanece separada, por estar, ao mesmo tempo, presente e
transcendente. Por conseguinte, não é a alma que está no corpo nem como parte dele, nem
como uma forma na matéria –, mas o contrário, o corpo é que está na alma, no sentido de
haver corpo configurado pela alma e de ser o acessório o que deve estar no principal
238
. O
curioso é que Plotino não detalha sobre as afecções próprias a cada uma das potências
inferiores da alma tal como Platão o fez. Talvez por pensar que seu mestre o havia feito tão
bem a seus olhos, além de pressupor que seus leitores e interlocutores conheciam o que
Platão expôs.
Vimos que Plotino atribui as afecções ao vivente, ao conjunto formado pela imagem
da alma e o corpo. Portanto, elas não são nem somente da alma por si e de sua imagem
nem somente do corpo. De um modo geral, pode-se dizer que elas são da alma encarnada – já
que é sua imagem que se une ao corpo ou do corpo vivificado pela imagem da alma. As
afecções nas Enéadas não são, assim, meramente estados corpóreos no sentido estrito. A alma
como tal é isenta de afecções e só quando se liga ao corpo através de sua imagem é que tem as
afecções, juntamente ao corpo. Dessarte, através das noções de imagem da alma e de
237
Para uma interpretação das potências da alma, ver o comentário de Aubry em PLOTIN. Traité 53, p. 182-191.
Como dissemos em nosso primeiro capítulo, um estudo do tratado 25 (Enéada II 5) talvez ajudaria a
compreender melhor o tema potência e ato.
238
Cf. IV 3 [27 ], 20.
112
separação na união corpo-alma, Plotino salvaguarda a transcendência da alma e sua
impassibilidade, bem como a unidade do conjunto da imagem da alma e do corpo,
esclarecendo, pois, a que as afecções são atribuídas.
3.2 O HOMEM, O VIVENTE E O NÓS
Diante da análise do tratado 53 (Enéada I 1) e sob a perspectiva de nosso tema, logo
uma pergunta se impõe: por que Plotino relaciona as afecções e o vivente com o homem?
Percebemos que tal texto busca esclarecer o a atribuição das afecções, mas o que é
exatamente esse sujeito da atribuição, bem como sua distinção em relação a outros possíveis
sujeitos. O escopo do tratado, portanto, ultrapassa uma investigação sobre a alma e sua
imagem ou suas potências, assim como sobre o conjunto ou vivente. A nosso ver, Plotino
também almeja definir o homem através de sua distinção do vivente. Não obstante, o que
sobressai é que um desvio da questão do homem propriamente, pois antes de saber o que
ele é, ou talvez, exatamente para saber o que ele não é, Plotino discute a atribuição das
afecções, bem como se a alma pode estar separada do corpo e se a união de ambos é essencial
ou acidental.
O vivente, ao qual Plotino atribui as afecções, é diferente de seus componentes,
imagem da alma e corpo, ou seja, ele não é nem a imagem da alma nem o corpo, mas o
conjunto deles, o que faz com que Plotino o aponte como sinônimo do synamphóteron. Parece
que, antes de ser uma mistura ou mais que ela, o vivente é um conjunto de elementos que se
relacionam e que formam uma unidade.
Plotino, então, sublinha que o vivente tem a alma como causa:
113
Certamente o conjunto existe pela presença da alma não porque ela se deu a
ele ou a outro, mas porque ela produz, a partir de um determinado corpo e
de algo como uma luz que foi emitida por ela, a natureza do vivente como
algo diferente
239
.
Desse modo, Plotino mostra a eficácia da alma e suas potências: pela simples
presença, como um feixe de luz, ela ilumina o corpo, estando junto a ele, mas, ao mesmo
tempo, sendo autônoma- livre dele para ser o que é, una. Ademais, a alma, sozinha ou ainda
sem o corpo e a partir das Formas, controla o vivente
240
. A alma é autônoma e,
potencialmente, já tem o domínio sobre o vivente e o corpo.
Lembramos que Plotino também se refere ao vivente como o comum (koinóv),
ressaltando a relação de comunidade entre a imagem da alma e o corpo. Plotino ainda
emprega outro termo para o vivente: o complexo (su/mpan), constituído pela mistura de coisas
inferiores, da alma inferior com o corpo
241
. Plotino utiliza, pois, vários termos para o vivente,
indicando que ele pode ser dito de vários modos; resta-nos saber se isso também é possível ao
homem.
Se o vivente expressa a alma inferior ligada ao corpo, por sua vez, o ser do homem,
nesse tratado, coincide com a alma racional (h( logikh/). Mas por que essa definição ali, por
que Plotino almeja diferenciar o homem do vivente pelo tipo de alma? Ora, é necessário
esclarecer qual alma se relaciona com a atribuição das afecções. Isso é o que Plotino aponta
quando diz: “nada impedirá de denominar vivente o complexo, aquele misturado às coisas
inferiores, e homem verdadeiro o que está ali acima disso; aquelas [inferiores] são como o
239
I 1 [53], 7, 1-5. @H to\ sunamfo/teron e!stw th~v yuxh~v tw~| parei~nai ou)k au(th\n dou/shv th~v toiau/thv
ei)v to\ sunamfo/teron h@ ei)v qa/teron, a)lla\ poiou/shv e)k tou~ sw/matov tou~ toiou/tou kai\ tinov oi{on
fwto\v tou~ parau)th\n doqe/ntov th\n tou~ zw/|ou fu/sin e#tero/n ti.
240
I 1 [53], 7, 15-16. Aubry lembra bem que através desse poder que lhe vem devido às Formas, a alma
reconhece o Intelecto nela. Esse controle da alma sobre o vivente é uma potência de sua essência. Cf.
PLOTIN, Traité 53, p. 216.
241
I 1 [53], 7, 18-19.
114
leão, e a besta integral é como o multiforme”
242
. Se o vivente pode coincidir com o complexo
(su/mpan), o homem não deriva dessa mistura da alma inferior com o corpo, pois ele é outra
alma. A questão é que Plotino não explicita a função da alma racional com a qual o homem
coincidiria, nem mesmo se seria a alma racional discursiva ou noética. Aqui, o que importa é
a alma racional como um todo, definindo o homem e o excluindo da atribuição das afecções,
em contraposição à alma inferior que se liga ao corpo, definindo o vivente e lhe atribuindo as
afecções.
Entrementes, deparamo-nos com mais dificuldades com as seguintes argumentações
que tangem o vivente, o homem e a alma:
À natureza do vivente se diz que pertencem a sensação e todas as outras
afecções do vivente, quantas foram ditas. Mas como nós sentimos?
Certamente não somos separados de tal vivente, mesmo se outras coisas
mais nobres estão presentes em nós para [formar] a essência integral de
homem, [essa] sendo múltipla. A potência de sentir da alma não carece dos
sensíveis, mas antes, essa potência percebe as impressões [produzidas] no
vivente e advindas da sensação, pois essas já são inteligíveis desde então
243
.
O contexto nesse momento é a investigação daquele que sente e como sente. Ora, a
sensação é atribuída ao vivente, ou melhor, à sua natureza, e Plotino indaga como sentimos e
diz que não somos separados do vivente empregando o termo nós nesse escopo mais amplo.
Se a sensação pertence à natureza do vivente, ela não é somente do corpo nem somente da
alma, mas do conjunto. Mas o que significaria que a essência do homem, além de ser
múltipla, não está separada do vivente? Nota-se que Plotino diz essência integral, o que
242
I 1 [53], 7, 18-21. Kwlu/sei de\ ou)den to\ su/mpan zw~|on le/gei, mikto\n me\n ta\ ka/tw, to\ de\ e)nteu~qen o(
a!nqrwpov o9 alhth\v sxedo/n: e)kei~na de\ to\ leontw~dev kai\ to\ poiki/lon o#lwv qhri/on.
243
I 1 [53], 7, 5-12. Ou{ to\ ai)sqa/nesqai kai\ ta\ a!lla o#sa zw/|ou pa/qh ei!rhtai. 0Alla\ pw~v h9mei~~v
ai)sqano/meqa; !H, o#ti ou)k a0phlla/ghmen tou~ toiou/tou zw/|ou, kai\ ei) a!lla h(mi~n timiw/tera ei)v th\n o#lhn
a)nqrw/pou ou)si/an e)k pollw~n ou]san pa/resti. Th\n de\ th~v yuxh~v tou~ ai)sqa/nesqai du/namin ou) tw~n
ai)sqhqw~n ei}nai dei~, tw~n de\ a0po\ th~v ai0sqh/sewv e)ggignome/nwn tw~| zw/|w| tu/pwn a)ntilhptikh\n ei]nai
ma~llon: nohta\ ga\r h!dh tau~ta:
115
parece indicar o homem como um todo, ou melhor, a alma como um todo, com suas múltiplas
funções que constituem tanto o homem como o vivente e que, nesse sentido, não estão
separadas, mas fazem parte da alma ela mesma. Por isso, ao mesmo tempo em que está acima
do vivente, o homem não esseparado dele. Na mesma direção, pode-se dizer que o vivente
corresponde ao homem sensível como composto de imagem da alma e corpo.
Plotino diz que coisas mais nobres estão presentes na essência integral do homem.
Embora não explicite quais coisas mais nobres seriam essas, Plotino indica certa
multiplicidade do homem em sua essência ou da essência do homem. A questão é que aqui ele
está comparando o homem com o vivente: tais coisas seriam aquelas virtudes da alma
superior, em contraposição às da inferior que formam o vivente. Não é claro se nessa
distinção Plotino indica que o homem, de alguma maneira, é a alma separada por ter as
virtudes dela.
O problema de tentar fixar inflexivelmente a definição do homem nas Enéadas reside
em sua fluidez. Esse tratado atém-se em ratificar não o que o homem é, mas o que ele não é:
ele não é o vivente ao qual se atribuem as afecções, mas está acima dele. Parece que é
suficiente ou é mais importante esclarecer a atribuição das afecções ao vivente e sua distinção
em relação ao homem, sobretudo, por elas.
Outra grande questão do tratado 53 é o que seria exatamente o nós (h(mei~v), uma noção
difícil introduzida mais amplamente nesse texto do que suas breves alusões em outros.
Registremos uma primeira observação que se faz necessária, pois se relaciona com nosso
tema: o que mais ressalta são as articulações do nós com o homem e o vivente. Ora, deve-se
analisar o nós não somente por si só, mas, sobretudo, em sua relação com o homem e com o
vivente – e devido a esse, com as afecções e com a alma essencial. Se os pares mais
imediatos, nessa ordem, são vivente e homem, vivente e nós, como seria a articulação entre o
nós e o homem? Vejamos cada uma dessas relações.
116
Ao discorrer sobre a distinção do que é o nós e o que é nosso, Plotino nos fornece
pistas do que é o nós e sugere sua possível identificação com o homem:
Certamente, a partir das Formas das quais a alma, estando sozinha,
recebe o domínio sobre o vivente , surgem os discursos, as opiniões e as
intelecções; é, sobretudo, nisso que nós estamos. Então, as coisas antes
dessas são nossas, mas s somos exatamente a partir disso, situados acima
do vivente
244
.
Plotino ressalta que aquilo que constitui o nós, isto é, os discursos, as opiniões e as
intelecções (dóxai, diánoiai e noéseis)
245
, vem das Formas. Não é de se espantar que ele
frequentemente mostre que a alma tem suas origens no Intelecto, afinal, esse é o princípio que
a antecede. É através ou por causa das Formas que a alma, ainda sozinha, já tem o domínio do
vivente. As coisas antes dos discursos, opiniões e intelecções e que são nossas sugeririam as
atividades da imagem da alma e o corpo, as quais são nossas, mas são inferiores ao nós. Aqui
Plotino enfatiza a distinção entre o vivente e o nós que, assim como o homem, também está
acima daquele. No sentido em que estão acima do vivente, o nós e o homem coincidem, mas
esse critério afigura-se demasiado amplo. Tentemos afunilar as semelhanças e as diferenças
entre o homem e o nós.
Se nas referências ao homem, nesse tratado, Plotino o relaciona e o identifica com a
alma e com a alma racional como um todo, quanto ao nós, ele recorre mais especificamente à
dóxa, à diánoia e à nóesis. Pode-se dizer que isso ocorre porque Plotino enfoca o homem
como alma e o nós como um conjunto de atividades da alma. Em outros termos, porque ele
estaria definindo o homem por sua essência ou pela essência da alma, e o nós, pelas diversas
244
I 1 [53], 7, 14-18. )Apo\ dh\ tou/twn tw~n ei)dw~~n, a0fw{n yuxh\ h!dh parade/xetai mo/nh th\n tou~ zw/|ou
h(gemoni/an, dia/noiai dh\ kai\ do\cai kai\ noe/seiv: e!nqa dh\ h(mei~~v ma/lista. Ta\ de\ pro\ tou/twn h(me/tera,
h(mei~v dh\ to\ e)nqeu~qen a!nw e0festhko/tev tw~| zw/|w|.
245
Plotino pode estar retomando a imagem da “linha”: eikasia, pistis, diánoia e nóesis. Cf. PLATÃO, República
511d-e.
117
atividades da alma: “Como o homem coincide com a alma racional, quando raciocinamos,
somos nós que raciocinamos, que os raciocínios são atividades da alma”
246
. Aubry nota
essa distinção: enquanto o homem é uma essência múltipla, o nós é o agente de múltiplas
operações
247
. No entanto, se parece haver uma diferença sutil entre o homem e o nós, Plotino
também estaria simplesmente usando termos distintos para um mesmo referente
248
.
Mas poder-se-ia objetar: a alma e suas atividades não seriam o mesmo? Ou, a alma
não poderia ser definida por suas atividades ou atos? Parece que a alma como um todo não,
mas, talvez, cada uma de suas partes, por exemplo, a racional e o mesmo com as outras. Mas
se assim o for e, se o homem é a alma racional, ele e o nós seriam o mesmo, isto é, as
atividades da alma. Ademais, permanece a ambiguidade se a alma é a fonte das atividades
sendo, portanto, diferente delas ou coincide com elas e, ainda, se a alma é o agente delas ou
aquilo que permite ao agente realizá-las.
Plotino insiste em discutir a confusão gerada pela atribuição das afecções aos nós. Ele
apresenta a distinção entre o nós e o que é nosso: o comum ou o vivente e o corpo são nossos,
mas o são o nós. O erro é que dizemos que nós sofremos quando o corpo sofre
249
. Por isso,
o nós parece ser duplo, ora ele é tido como aquilo que é nosso, o corpo e o vivente, ora que
não o é. Prevendo e impedindo tal engano, Plotino explica a duplicidade do nós: ou inclui a
besta ou o que está acima disso
250
. Poder-se-ia pensar que o nós faz parte da besta. Mas, ao
contrário, o que Plotino diz é que a besta estaria incluída no nós, o que significa, a nosso ver,
que ela o faz parte dele, mas lhe é acrescida. A besta é dominada pelo nós ou se submete a
246
I 1 [53], 7, 21-24. Sundro/mou ga\r o!ntov tou~ a0nqrw/pou th~| logikh|~ yuxh~|, o#tan logizw/meqa, h(meiv
logizw/meqa tw~| tou\v logismou\v yuxh~v ei}nai e)nergh/mata.
Essa passagem ratifica aquela do tratado 49 (Enéada V 3, 3, 35), onde, em referência ao “nós”, é dito que
somos aqueles que raciocinam (oi( logizo/menoi).
247
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 207.
248
Blumenthal entende que algumas vezes os termos homem” e “nós” são usados em um mesmo sentido. Ele
cita algumas passagens nas quais isso ocorre, dentre elas, aquela do tratado 53 que citamos acima (outras: I 4
[46], 14, 1; IV 3 [27], 27, 1; IV 4 [28], 18, 9-15 e 43, 7; VI 4 [22], 14, 16-31). Cf. BLUMENTHAL, Plotinus’
Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 111.
249
Cf. I 1 [53], 10, 2-4.
250
Cf. I 1 [53], 10, 5.
118
ele: no primeiro caso, poder-se-ia dizer que ela se torna o nós e, no segundo, ela é nossa
251
.
De todo modo, o importante é que homem verdadeiro é outro, pois é purificado das afecções
do vivente e possui as virtudes da intelecção
252
. Plotino recorre a uma disjunção para mostrar
que o nós ou inclui a besta ou algo acima disso, isto é, os discursos, as opiniões e as
intelecções, como ele disse antes, ou mesmo a alma essencial, que também é superior à besta.
Assim, ao evitar uma conjunção, ele estaria indicando que se trata de uma possibilidade
ocasionada pela atribuição errônea das afecções, por uma compreensão nossa, e não uma
efetividade. Como bem nota Schniewind, o nós é duplo porque depende do ponto de vista
adotado
253
. Essa duplicidade do nós pode ser entendida como sendo também do homem.
Portanto, ainda vemos ambiguidade na identificação do homem e do nós.
Se o nós pode estar entre o vivente e o que está acima disso, no sentido exposto, não
nos é evidente que ele seja, de fato, uma relação. Dito de outro modo, se o nós articula-se com
outros elementos, o se segue que ele se define por essa relação. Quanto ao nós por si só, ou
melhor, sem relação imediata com o vivente e com o homem, Plotino sustenta que é nos
discursos, nas opiniões e nas intelecções que nós somos, apontando a sutileza de “onde” o nós
“está” mais do que “o que é”. Mas o que significa dizer que o nós se situa em algum “lugar”?
O nós é identificado com a dóxa, a diánoia e a nóesis. Contudo, Plotino não detalha as
especificidades dessas atividades, pois o que lhe importa mais são suas operações como
definidoras e determinantes do nós. Diante da deficiência de explicações mais aprofundadas
dessas atividades nesse texto, afloram-se algumas dúvidas que permanecem em aberto: a
nóesis da alma seria uma atividade de qual potência ou parte dela? Em que condições ela seria
exercida e quais seus efeitos? Cabe dizer que o nós vai além da diánoia, que atua também
como nóesis, elevando-se para além daquela.
251
Resta saber em que condições essas possibilidades se concretizariam.
252
Cf. I 1 [53], 10, 7-9.
253
Cf. SCHNIEWIND, L’éthique du sage chez Plotin, p. 101.
119
Para Aubry, o nós é mais amplo que o homem, dado que é mais que raciocínio, é
também nóesis
254
. Por um lado, vemos que aparentemente Plotino amplia o nós ao especificar
suas atividades, mas, por outro, ao delimitá-lo ou fechá-lo nas mesmas, ele deixa em aberto a
amplitude do homem. Ademais, entendemos que, enquanto as atividades são o conteúdo da
alma e essa, o continente, por conseguinte, ela é mais ampla, se é possível aplicar essas
categorias a ela; se assim o for, o homem afigura-se mais amplo que o nós. De todo modo,
ambos se fundam no nível da alma racional.
Com efeito, Plotino afirma que somos os discursos, as opiniões e as intelecções. Ou
seja, o nós é um conjunto de atividades. Ele é movimento na medida em que é atividade da
alma; é ativo porque se define pelo desempenho de suas funções. Entrementes, a nosso ver,
contrariamente a Aubry
255
, isso não significa que ele seja de todo um movimento. Ele é causa
de movimento juntamente à alma, uma vez que ela é princípio de movimento mediante suas
potências. Entendemos que o fato de ele poder se dirigir e oscilar para baixo ou para cima
para o vivente e o sensível através da dóxa e da diánoia ou para o Intelecto e o inteligível
através da nóesis – não faz dele um movimento propriamente e em sentido geral. Tal
mobilidade do nós o implica necessariamente que ele seja uma relação ou uma “situação”
caracterizada por suas operações porque transita entre os níveis inferiores e superiores.
Dizemos que é possível o nós se ligar ao inferior e ao superior, voltando-se para baixo ou para
cima. Talvez caiba dizer que o nós é um elemento intermediário, pois está entre a alma
separada e o vivente, e que isso lhe confere uma fluidez, mas não que ela o defina. Pode-se
admitir um movimento no sentido moral das suas atividades, desde que seja arrastado para o
vivente ou para além dele, deixando um deles prevalecer. De todo modo, se o nós é ou tem
movimento, ele difere da imobilidade do homem como essência.
254
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 225.
255
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 219, 252.
120
O último capítulo do tratado 53 (Enéada I, 1, 13) responde a questão colocada no
primeiro capítulo por aquele que examina e julga quem é: somos nós que examinamos, pela
alma, pois somos alma. Se aqui o nós é definido pela alma e não por suas atividades, ele
parece coincidir com o homem. Diante do exposto, não vislumbramos uma solução
conclusiva para o impasse se o homem e o nós coincidem sempre e necessariamente.
Uma passagem do tratado 28 (Enéada IV 4) que relaciona o nós com o corpo e as
afecções merece atenção. Segundo Plotino, os sofrimentos e os prazeres chegam até nós ou
são conhecidos por nós, mas não somos afetados. O que é o nós nesse contexto? Após
explicar que é o corpo animado pela sombra da alma que tem as afecções, Plotino diz:
Entendo por nós o resto da alma, pois o corpo assim qualificado não é
estranho a ele, mas é nosso; e porque é nosso, nos preocupamos com ele.
Não somos o corpo, mas não estamos imunes a ele, o qual está ligado e
suspendido a nós; o nós é o principal e o corpo é nosso de outro modo. É
por isso que nos preocupamos com prazeres e sofrimentos e, quanto mais
fracos, menos nos afastamos do corpo; quanto mais admitimos que ele é o
principal e que é o homem, mais mergulhamos nele
256
.
Então, o resto da alma deve ser algo outro de sua sombra que anima o corpo. Aqui
Plotino distingue o nós do nosso: não somos o corpo, mas ele é nosso. O corpo animado pela
imagem da alma não é estranho ao nós, porque é nosso e está suspendido a ele. Mas isso não
significa que o nós se define pela ligação com o corpo e sim que não estamos apartados do
corpo e imunes a ele. Plotino sugere aqui que essa ligação entre o corpo e o nós se através
de nossa preocupação com as afecções; mas somente com essa passagem o nos é possível
256
IV 4 [28], 18, 10-19. Le/gw de\ h(mi~n th~| a!llh| yuxh~|, a#te kai\ tou~ toiou~de sw/matov ou)k a)llotri/ou, a)ll
h(mw~n o1ntov: dio\ kai\ me/lei h(mi~n au)tou~ w(v h9mw~n o1ntov. Ou!te ga\r tou~~to/ e0smen h(meiv, ou!te kaqaroi\
tou/tou h9mei~v, a)lla\ e)ch/rthtai kai\ e)kkre/matai h(mw~n, h(meiv de\ kata\ to\ ku/rion, h(mw~n de\ a!llwv o#mwv
tou~to. Dio\ kai\ h(dome/nou kai\ a)lgou~ntov me/lei, kai\ o#sw| a)sqene/steroi ma~llon, kai\ o#sw| e9autou\v mh\
xwri/zomen, a)lla\ tou~to h(mw~n to\ timiw/taton kai\ to\n a1nqrwpon tiqe/meqa kai\ oi[on ei)sduo/meqa ei)v
au)to\.
121
discorrer detalhes sobre essa ligação. Em relação ao corpo, o nós é o principal. Como disse no
segundo tratado (Enéada IV 7, 1, 20-25), Plotino ratifica que o corpo não é o principal, não é
o homem. Considerá-lo como tal é uma falsa concepção que nos afasta do inteligível e
dificulta nossa separação, já que nos mantém imersos nele.
Em seguida, nesse tratado, Plotino explicita a atribuição das afecções ao conjunto
(sunamfo/teron) e ao corpo ligado à alma. Elas não são nem só do corpo que, sozinho, não as
tem, porque é inanimado, nem da alma que, por si só, também não as tem, pois, sendo o que é,
escapa a elas. Ao afirmar que é na união da alma e do corpo que surge o sofrimento, Plotino
também já mostra que é a imagem da alma que se liga ao corpo:
Quando uma natureza quer se unir a outra de nero diferente, a inferior
recebe algo, retém algum traço dela. Assim, tornam-se duas e uma se torna
mediana entre o que era e o que não pôde apreender. Ela criou dificuldades
para si mesma, porque formou uma comunhão perigosa e pouco sólida,
sempre instável; ela oscila entre o baixo e o alto; quando desce, testemunha
a dor, quando se eleva, anuncia seu desejo de união
257
.
No decorrer de nosso exame sobre o nós, a questão se ele coincidiria com algum “eu”
sobreveio várias vezes. A questão colocou-se porque aventamos a possibilidade de Plotino
estar indicando um eu ou alguns eus distintos do vivente, sendo que o homem no Intelecto
seria o eu superior. Para Schniewind, o retorno em direção ao homem de é uma caminhada
para o autós
258
. Os aspectos do homem poderiam ser os eus ou os níveis do eu. Mas Plotino é
enfático em falar do homem mais explicitamente. Hadot é adepto dessa ideia, mas com uma
interpretação própria: o eu se encontra na alma racional e na consciência, entre o pensamento
257
IV 4 [28], 18, 27-39. )All o#tan a!llh fu/siv a!llh| e)qe/lh| koinwnei~n kai\ ge/nei a!llw|, kai\ ti to\ xeiron
la/bei~n, e)kei/nou de/ ti i!xnov, kai\ ou#tw ge/nhtai du/o kai\ e$n metacu\ geno/menon tou~ te kai\ tou~ o$ mh\
e)dunh/qh e!xei, a)pori/na e)ge/nnhsen au9tw| e0pi/khron koinwni/na kai\ ou) bebai/na ei)lhxo/v, a)ll ei0v ta\
e)nanti/a a)ei\ ferome/nhn. Ka/tw te ou]n kai\ a!nw ai)wrou/menon fero/menon me\n ka/tw a0ph/ggeile th\n au(tou~
a)lghdo/na, pro\v to\ a!nw th\n e!fesin th~v koinwni/av.
258
Cf. SCHNIEWIND, L’éthique du sage chez Plotin, p. 107.
122
puro e sensação, entre a parte superior da alma e a sensível
259
. Para ele, dois eus, um
“central” consciente das vidas racional e sensível da alma, e um transcendente; nosso eu
verdadeiro participa do pensamento, é uma Forma
260
. Apesar de o explicitar, Hadot parece
admitir eus no homem através de seus aspectos, por exemplo, o eu “central” no homem
racional ou na alma racional e o verdadeiro eu na Forma do homem.
Observa-se que analisamos o nós em sua relação com o tema do homem e das
afecções, cientes, no entanto, de alguns outros textos nos quais Plotino discorre sobre ele.
Aludimos um deles, o tratado 49 (Enéada V 3), o qual identifica o nós com a alma racional.
Mais uma vez, notamos que muitos dos conceitos e noções das Enéadas estão atrelados ao
contexto em questão, sendo, por isso, fluidos e abertos. Sendo assim, é fundamental que se
delimite bem o objeto de uma investigação temática dos escritos de Plotino.
Notamos que o tratado 53 (Enéada I 1) ratifica, antes de tudo, poder-se-ia dizer, a
impassibilidade da alma essencial com a demonstração de que as afecções são atribuídas não
a ela, mas ao vivente ou ao conjunto da imagem da alma mais o corpo. Mas, ao mesmo
tempo, nesse seu percurso, Plotino sublinha também as diferenças entre o vivente e o homem,
sobretudo, entre o nós e o nosso
261
. De todo modo, as duas questões parecem igualmente
importantes. Vimos que a compreensão do homem e do nós é auxiliada pela distinção entre
eles e o vivente. Como bem nota Aubry
262
, o nós o pode ser definido independente do
vivente, o que nos parece ocorrer o mesmo na definição do homem: Plotino precisa ratificar
sua definição mostrando suas relações e distinções com o vivente.
A partir de nossa investigação desse texto, depreendemos que o homem não é o corpo
nem o conjunto desse e da imagem da alma, o vivente. E, visto que as afecções são do
259
Cf. HADOT, Les niveaux de conscience chez Plotin, p. 247, 249, 251. Para ele, a consciência está ligada às
atividades discursiva e imaginativa, sendo a parte mediana da alma.
260
Cf. HADOT, Les niveaux de conscience chez Plotin, p. 255 e 262.
261
Essa parece ser a ideia central do texto para Porfírio, que ele intitulou o tratado de “Sobre o vivente e o
homem”.
262
Cf. PLOTIN, Traité 53, p. 274.
123
vivente, o homem não é afetado por elas, nem também a alma por si nem o corpo. Mas,
embora as afecções atinjam conjuntamente a imagem da alma e o corpo, cuidamos do corpo
porque ele é nosso e depende da alma. Se o corpo é nosso, o vivente também o é, na medida
em que aquele é concebido animado pela imagem da alma. Eles, o corpo e o vivente, são
nossos, mas não nos definem, nem o homem nem o nós. Enquanto o nós é definido pelas
atividades superiores da alma, o homem é essencialmente a alma superior.
3.3 O VIVENTE E A SEPARAÇÃO DO CORPO E DO SENSÍVEL
Ao longo de nossa pesquisa, notamos que a definição do homem está atrelada à
separação do corpo e da alma, a qual, por sua vez, remete à purificação e às virtudes. Essas,
por si só, constituem outro grande tema a ser examinado e, por isso, não adentraremos no
âmbito da purificação propriamente, analisando tal separação pelas virtudes (Enéada I 2 [19]).
Contudo, julgamos ser cabível e mesmo importante elucidar consonâncias “éticas” mais
gerais na concepção do homem e do vivente para Plotino no que concerne à separação entre a
alma e o corpo.
Se Plotino enfatiza tanto a definição do homem pela alma e não pelo corpo, vemos
um indício de que importa muito a separação do homem que está no corpo – o vivente –, mas
que pode se manter desatrelado a ele, de alguma maneira. O vivente ou a alma encarnada –,
desviando-se do corpo e evitando sua hegemonia, precisa dominar as afecções , impondo-
lhes medida. Assim, eliminando todos os obstáculos para se dirigir ao alto e despojando-se de
tudo que a force a descer e se manter presa ao corpo, a alma se liberta dele, podendo
desempenhar melhor suas atividades superiores.
124
Se a imagem da alma se liga ao corpo para lhe garantir vida, quando unidos, no
entanto, eles devem estar separados. Mas como isso é possível? A separação entre alma e
corpo é no sentido de não haver uma extrema e permanente necessidade dela em relação a ele,
que o mal dela está em se deixar dominar por ele, permitir sobressair a alma inferior,
prevalecendo a desmedida. Isso significa que o mal da alma não está em simplesmente animar
o corpo, mas no modo como ela se relaciona com ele
263
. Mesmo estando no corpo, a alma
deve manter um contato distanciado com ele, isto é, manter-se nele sem lhe pertencer ou se
abandonar às coisas inferiores
264
; ela precisa agir por si e não pelo corpo, dominado pelas
afecções
265
. Em outras palavras, ao invés de se deixar influenciar pelo corpo e mergulhar
completamente no sensível, a alma deve desapegar-se dele e se recolher nela mesma, a fim de
que se volte para o que lhe é anterior e superior, mantendo-se no alto. Portanto, se afastando
do corpo tanto quanto possível e se isolando em si mesma, a alma raciocina melhor
266
.
Portanto, o se trata de abandonar o corpo estando nele, mas de governá-lo. A questão é
cuidar da alma a fim de que ela não se torne escrava do corpo, que o apego e o cuidado
excessivo a ele constituem um entrave para a purificação, a assemelhação ao Intelecto e a
elevação ao Uno.
Nesse sentido, a separação da alma em relação ao corpo constitui-se em um
afastamento do sensível e das afecções e um redirecionamento para o inteligível e uma
permanência lá. Trata-se de “desativar” por alguns momentos as potências que se dirigem
para o sensível e o corpo. Em referência a Platão
267
, Plotino diz:
263
Cf. IV 8 [6]; I 8 [51], 4, 15-20; I 6 [1], 5, 48-55. Lembramos, sumariamente, que o corpo, para Plotino, é
constituído de matéria e forma, sendo, portanto, um mal secundário, visto que possui a matéria, a qual é um
mal primário; esse tema é tratado na Enéada I 8 [51].
264
Cf. PIETRO, Plotino e la fondazione dell’umanesimo interiore, p. 68.
265
A razão não deve consentir as afecções da alma inferior ligada ao corpo. Cf. I 2 [19], 5.
266
Cf. PLATÃO, Fédon 65c-d; 67a.
267
Cf. PLATÃO, Fédon 63 a, 67c; Timeu 34b; Fedro 247e.
125
A exortação para nos separamos [do corpo] não denota uma separação local
–essa é estabelecida pela natureza , mas no sentido em que não se incline
em direção ao corpo, mesmo em imaginação, e que se lhe mantenha
estranho; é o que ocorre quando se consegue elevar a alma e voltar para o
alto aquilo dela que está aqui e que é somente criador e modelador do
corpo, para o qual dedica sua atividade
268
.
Ora, essa separação “ética” entre a alma e o corpo não parece ecoar de alguma maneira
com a separação definidora do homem como alma? Talvez, nessa definição do homem,
Plotino já esteja concebendo um distanciamento do corpo. Sendo assim, a dualidade
definidora do homem já incluiria e implicaria a purificação. Poder-se-ia refutar essa
articulação observando que, por um lado, a definição do homem é algo substancial ou
essencial e, por outro, a purificação, algo adicional e adquirido. Mais uma vez, vemos que a
dualidade ocorre na distinção e não na relação entre a alma, imortal, e o corpo, acrescido.
Plotino parece sugerir a separação purificadora entre a alma e o corpo como resultado
efetivo da prática filosófica e o somente como consequencia do procedimento puramente
argumentativo. Como discurso, a filosofia os une e os separa por um correto raciocínio de
como se dá a união e a separação dos mesmos. Mas ela pode afastar a alma do corpo de modo
a não permitir o domínio dele sobre ela ou uma total e permanente necessidade dela para com
ele
269
. Ela proporciona o distanciamento desses elementos, realizando, de fato, tal separação
“ética”.
268
V 1 [10], 10, 24-30. Kai\ h( parake/leusiv de\ tou~~ xwri/zein ou) to/pw| le/getai - tou~~to ga\r fu/sei
kexwrisme/non e)sti/n- a)lla\ th~~| mh\ neu/sei kai\ tai~v fantasi/aiv kai\ th~| a)llotrio/thti th~| pro\v to\ sw~ma,
ei! pwv kai\ to\ loipo\n yuxh~v ei}dov a0naga/goi tiv kai\ sunene/gkai pro\v to\ a!nw kai\ to\ e)ntau~qa au)th~v
i(drume/non, o$ mo/non e0sti\ sw/matov dhmiourgo\n kai\ plastiko\n kai\ th\n pragmatei/na peri\ tou~to e!xon.
269
Cf. I 1 [53], 3, 17-18, 24-26.
126
3.4 CONCLUSÃO
Notamos que o discurso de Plotino sobre o vivente e a atribuição das afecções é-lhe
caro porque fornece argumentos para esclarecer a união, as relações e a separação entre a
alma e o corpo, além de ratificar a concepção do homem. Também contribui para distinguir o
que é nosso e o que somos.
No tratado 53 (Enéada I 1), Plotino não aprofunda certos detalhes das afecções, como
se elas são de origem natureza psíquica estados da alma ou apenas processos corpóreos e
fisiológicos, ou, ainda, se são psicofísicas – estados da alma que se concretizam ou se
expressam no corpo. Depreendemos que, às vezes, Plotino prioriza ou enfatiza o aspecto
corpóreo das afecções e por vezes, o psíquico, ou ainda, a origem corpórea ou a psíquica; mas
ele ressalta que elas são do conjunto da imagem da alma e do corpo. Também não esmiúça as
afecções de cada gênero da alma. Ele nos oferece exemplos de afecções originadas do corpo,
ou melhor, que se mostram nele, mas que são próprias a ele e à alma conjuntamente. O que
surge delas – ações, opiniões e raciocínio discursivo – e o que as desencadeia o interessam em
seu diálogo com os estoicos e a concepção desses de que as afecções resultam de opiniões e
julgamentos. Como experimentar, ordenar e governar as afecções, como lidar com elas,
também não é discutido nos textos em que analisamos. Um exame do tratado das virtudes e da
purificação oferecer-nos-ia algumas respostas
270
.
O fundamental desse texto é a que as afecções pertencem. Isso ocorre porque é preciso
fixar a impassibilidade da alma e delimitar a diferença entre o homem e o vivente. Ele os
diferencia através das afecções e dos elementos constitutivos de cada um deles. Se o vivente é
aquele ao qual se atribuem as afecções e é formado pelo conjunto de imagem da alma mais o
270
Uma abordagem interessante seria discutir o papel de cada gênero da alma no controle das afecções.
127
corpo, o homem não é afetado por elas e é somente a alma, mesmo tendo um corpo ou
estando nele.
Delimitando bem o vivente e seus componentes, imagem da alma e corpo, Plotino
rechaça as aparentes e ordinárias atribuições das afecções à alma, ao homem ou ao corpo. A
atribuição das afecções ao vivente constitui um reforço para a impassibilidade da alma, para a
definição do homem e um pressuposto para se compreender a união e a separação entre a
alma e o corpo. A questão das afecções auxilia na compreensão da unidade e da divisibilidade
da alma, a partir da descida imagem da alma para o corpo, além de mostrar que o homem não
é o vivente.
Discutindo como seria uma mistura entre a alma e o corpo, Plotino os distingue e, ao
mesmo tempo, mostra como ocorre a união e a separação entre eles mediante a descida da
imagem da alma ao corpo e a formação do vivente. Acrescentando as noções de luz, imagem,
sombra e traço da alma, e atribuindo as afecções ao vivente, Plotino tem condições de
estabelecer a impassibilidade da alma. Mesmo estando no corpo, a alma não sofre nada ou não
se altera, mantém-se tal como é, sempre una e a mesma. Assim, Plotino constrói com esmero
um percurso argumentativo que lhe permite estabelecer uma união na separação da alma e do
corpo, traçando algumas definições do homem.
128
CONCLUSÃO
Notamos que os temas nas Enéadas se entrecruzam, formando um emaranhado de
questões que se encontram em vários pontos. Por isso, surgem várias dificuldades quando se
investiga essa rede tecida de um modo tão belo e, ao mesmo tempo, preciso e impreciso,
calculado e não deliberado. Percebemos que não basta um olhar externo, mas alguma
participação no texto é forçosa, mesmo que o discurso e sua forma insistam em nos manter
distantes dos conteúdos. Uma aproximação acurada faz-se importante e necessária para
tentarmos compreender cada parte e o todo, bem como as relações entre eles. Mas como
capturar as articulações, sobretudo as menos evidentes ou mais sutis, como nos fixar em
determinados pontos sem nos manter apartados dos demais e negligenciar questões talvez
fundamentais? Para não nos perder em tantos fios, concentramo-nos naqueles do homem,
procurando nos conduzir o mais rente possível a eles e permitindo ser conduzidos por
algumas vias, suas etapas e obstáculos.
O intuito deste estudo foi discutir a definição do homem para Plotino, analisando
questões relevantes que a envolvem direta e indiretamente, ampliando, assim, o modo de
interpretar os escritos plotinianos. A abordagem de alguns aspectos da alma individual, do
vivente e das afecções mostrou-se fundamental para tanto. Concentramo-nos, sobretudo, nos
tratados 2 (Enéada IV 7), 4 (Enéada IV 2) e 6 (Enéada IV 8), nos sete primeiros capítulos do
38 (Enéada VI 7) e no 53 (Enéada I 1) como um todo.
Analisando a natureza da alma, compreendemos que ela é una e divisível ao mesmo
tempo. Una porque permanece sempre a mesma, e divisível por projetar sua imagem nos
corpos, dando-lhes vida. Como uma luz, ela ilumina o corpo, concedendo-lhe não ela mesma,
mas um traço dela. Ela direciona suas potências inferiores para o corpo, desempenhando suas
129
funções e atividades, enquanto suas potências superiores se mantêm voltadas para o alto, o
inteligível e o Intelecto. Assim, a alma é divisível nos corpos, mas não em si mesma.
Portanto, a divisibilidade da alma não exclui sua unidade, pois ela é uma essência que engloba
o divisível e o indivisível. Por isso, diz-se que a alma está unida ao corpo, mas separada.
Discutimos a questão da necessidade e da voluntariedade da descida da alma e depreendemos
que elas não se excluem. Ao mesmo tempo em que a necessidade se estabeleceu na alma em
vista de uma ordem no universo e da oportunidade de manifestação de suas potências, trata-se
de um desejo voluntário e de certa audácia de se afastar do alto. Vimos que o fato de a alma
descer ao corpo não constitui por si um mal, a questão é como ela se relaciona com ele.
Com efeito, o corpo é nosso e, por isso, nos preocupamos com ele, mas se trata de não deixar
que ele e as potências inferiores da alma prevaleçam, dominando as superiores. Em outros
termos, a questão é estar no corpo, mas voltado para o alto; cuidar dele, mas com
distanciamento.
Essa sombra, traço ou imagem da alma que se liga ao corpo forma um conjunto, o
vivente. Unida ao corpo através dessa sua projeção, a alma mantém-se separada, ou seja,
uma “união na separação”, possibilitada por tal elemento de mediação. Então, se o dualismo é
entendido como uma separação radical entre dois elementos, ele não cabe à alma e ao corpo,
uma vez que eles se relacionam através da imagem da alma. De fato, não é a alma
propriamente que se articula com o corpo, mas algo dela. De todo modo, alma e corpo são
distintos, afinal, aquela é incorpórea, impassível, imortal e divina.
É certo que a imagem da alma que se dirige ao corpo corresponde à alma inferior. As
dificuldades sobre as potências da alma as quais ela inclui decorrem da fluidez da
terminologia de Plotino junto à conciliação das divisões platônica (apetitiva, irascível e
racional), e aristotélica (vegetativa, sensitiva e intelectiva) da alma. Ela coincide com as
potências apetitiva, irascível e sensitiva, sendo que as duas primeiras às vezes se mostram
130
como pertencentes à alma ou função vegetativa. O fato é que por meio da imagem da alma,
Plotino nos apresenta uma divisão da alma individual encarnada que explica a atribuição das
afecções ao vivente eo ao homem.
Se há uma alma que se volta para o corpo, permanece a dificuldade em compreender o
que é exatamente a alma que não desce ou alma separada. Em alguns contextos, ela parece ser
a Alma universal. Mas ela parece ser algo da alma encarnada quando Plotino diz que, na
medida do possível, ela não se relaciona com o corpo. Ela seria as potências da alma que o
se voltam para baixo: aventamos as hipóteses de ela ser o intelecto da alma, o logistikón ou
seu possível aspecto noético, sendo que permanece a dificuldade se eles coincidem. Mas ela
também seria a alma essencial indivisível, anterior ao corpo, a qual, por sua vez, coincidiria
com o intelecto da alma e com o logistikón e, nesse caso, eles seriam suas manifestações; se a
alma essencial coincide com o intelecto da alma, o logistikón é sua manifestação. O intelecto
da alma ora é tido como além do logistikón, ora como termo para a alma racional e suas
potencialidades. Com efeito, algo da alma que sempre permanece no inteligível, na alma
mesma ou no Intelecto. Constatamos uma tensão relativa à alma racional ou intelectiva, no
que concerne à sua extensão e às suas potencialidades.
O importante é que a discussão de tais aspectos da alma revelou-se fundamental para
compreendermos a natureza do vivente e, por conseguinte, a atribuição das afecções a ele. As
afecções, independente se têm origem corpórea ou psíquica ou se sobressaem seus aspectos
corpóreos ou psíquicos, são do conjunto da imagem da alma e do corpo; assim, elas não são
nem da alma, nem da imagem da alma nem do corpo. Compreendendo o vivente e suas
afecções, notamos as distinções entre ele e o homem, aduzindo uma definição negativa do
homem: ele não é o vivente ao qual as afecções são atribuídas. Justificamos, assim, o estudo
preliminar de alguns aspectos da alma como pressuposto para discutir a união e a separação
da alma e do corpo e, logo, a definição do homem.
131
Vimos que, de um modo amplo, o homem é identificado à alma como um todo quando
é necessário distingui-lo do corpo. O homem tem um corpo, mas não se define por ele; e, na
medida em que o tem em sua composição, ele não é simples. Depreendemos outra definição
negativa do homem: ele o é o corpo. Contudo, embora o homem não seja o corpo, esse é
nosso e, por isso, cuidamos dele, o que pode ocasionar seu domínio sobre a alma. Entra em
questão a separação do corpo no sentido de manter a alma voltada para si e para o que lhe é
superior; nesse retorno à essência, a filosofia tem seu papel. Notamos que a separação entre a
alma e o corpo forma tanto uma premissa quanto uma conclusão dessa definição ampla do
homem, a alma.
De um modo mais específico, Plotino apresenta o homem como alma e lógos, o qual,
por sua vez, é a imagem ou a projeção da Forma na alma. Ora, se o homem é a alma e o lógos
e se o lógos é um ato da alma e faz parte dela, pode-se dizer que o homem é a alma. Mas o
lógos do homem é determinante em sua concepção, pois sem ele a alma seria de outro
vivente. O homem mostra-se como homem racional, isto é, alma racional e lógos, e como
homem sensível, alma sensitiva e lógos. O homem sensível como alma sensitiva e corpo
coincidiria com o vivente. Esses homens são iluminados pela Forma do homem no Intelecto, a
qual é completa, tendo potencialmente tudo que o homem precisa. Se a Forma do homem é o
verdadeiro homem, superior ao racional e ao sensível, o homem racional é o verdadeiro e
superior em relação ao homem sensível.
Mas o homem verdadeiro em relação ao vivente é aquele purificado das afecções e
que possui as virtudes da intelecção estabelecidas na alma separada; o homem como alma é
impassível. Em relação ao nós, que coincide com as atividades da alma, dóxai, diánoiai e
noéseis, o homem é uma essência múltipla. É possível que o homem e o nós sejam tanto
diferentes como coincidentes.
132
Uma das grandes dificuldades em nossa pesquisa esem compreender e concluir se o
homem, em sua definição, coincidiria, de algum modo, com a alma que não desce. A questão
surgiu porque Plotino afirma que o verdadeiro homem, que está acima do vivente, é
purificado das afecções e possui as virtudes que estão estabelecidas na alma separada. Afinal,
se a oposição é entre homem e vivente, deveria ser também entre alma que o desce e alma
que desce. Ademais, não é claro o que há entre a alma separada e sua imagem e se isso seria o
homem. A questão permanece em aberto pela dificuldade de se compreender a amplitude da
alma racional e, por conseguinte, se ela incluiria a alma separada ou estaria incluída nela. Em
nosso primeiro capítulo, apresentamos alguns problemas relativos às atividades da alma
racional, logistikón e dianoetikón. Depreendemos que eles são apresentados indistintamente
quando está em questão a alma racional como um todo. Vimos também que o logistikón teria
um aspecto noético, que volta a alma para o alto. Mas permanece a dificuldade em
compreender melhor o desempenho da nóesis, sobretudo, se ela pertence a alguma alma ou
potência da alma, se o intelecto da alma faz parte do logistikón ou está além dele. Antes de
tudo, a nosso ver, Plotino parece querer enfatizar o homem como alma racional ou superior
como um todo, em oposição à alma inferior do vivente, ou, ainda, a alma à sua imagem que
forma o conjunto com o corpo.
Notamos que, sob a perspectiva ou o critério do sensível e do inteligível, o homem é
sua Forma no Intelecto e também a projeção dessa na alma, isto é, o lógos, sendo, portanto, a
alma e seu lógos; sob a da alma e tendo em vista o corpo, o homem é a alma ou não é o corpo;
sob a da alma, o homem é a alma e seu lógos; sob a do corpo, o homem não o é, ainda que o
tenha; sob a do sensível e do inteligível, junto à das afecções, o homem não é o vivente ao
qual se atribuem as afecções ou o conjunto de imagem da alma e corpo. A nosso ver, o é o
caso de sintetizar todos os aspectos do homem em uma definição do mesmo. Ao invés de
tentar conciliar as várias perspectivas do homem que Plotino nos apresenta, sustentamos ser
133
mais adequado mantê-las como complementares, que uma auxilia a compreensão da(s)
outra(s).
Concluímos também que a distinção e a separação entre a alma e o corpo objetivam
fixar o homem no inteligível, seja em sua definição, seja em seu percurso virtuoso em direção
ao Intelecto e ao Uno. O reducionismo puro e simples a um dualismo absoluto entre a alma e
o corpo, bem como entre o homem e o corpo nas Enéadas desconsidera todas as nuances de
uma união na separação ou de uma separação na união e compromete a riqueza do
pensamento plotiniano.
Julgamos que nossa investigação desse grande tema, trilhada por caminhos o tão
óbvios e comuns, oferece uma forma de se examinar as Enéadas. Mais que preencher lacunas
na bibliografia secundária, o presente estudo preza pela aproximação acurada do texto
primário. Ademais, também fornece bases para estudos posteriores como o tema da
purificação e das virtudes, contribuindo até mesmo para as questões da liberdade e
necessidade do homem e da alma.
Percorrendo as Enéadas com o intuito de captarmos a concepção do homem,
depreendemos que ela permanece aberta no sentido de estar atrelada ao seu uso, o qual
depende da especificidade do texto ou da perspectiva apresentada e analisada. Em outras
palavras, o extraímos uma definição fixa do homem nas Enéadas, devido à fluidez do
escopo dos tratados. Pode-se dizer que uma plurivocidade do homem nas Enéadas.
Contudo, não se trata de definições separadas e totalmente independentes, mas inter-
relacionadas; pode-se dizer que elas são mutuamente interdefinidas. Afigura-nos que Plotino
vê o homem ao mesmo tempo como todas as suas definições e cada uma delas.
De modo algum exaurimos o intrincado tema da definição do homem para Plotino.
Procuramos iluminar o que nos é obscuro e acreditamos ter dado alguns passos nesta árdua
investigação, discutindo possibilidades de interpretações dos tratados e indicando horizontes.
134
Ao longo desta pesquisa, aventamos algumas hipóteses sobre a alma e um olhar sobre a
definição do homem nas Enéadas. Apresentamos nossa busca em compreender o homem de
um modo mais abrangente, em sua relação com o sensível e o inteligível. A questão é que
muitas das dificuldades no estudo das Enéadas devem-se ao diálogo com a tradição e,
sobretudo, ao fato de que o discurso de Plotino encontra limites da linguagem, sendo o relato
de uma experiência que pressupõe, de alguma maneira, que o interlocutor tenha visto o que
ele viu para compreender ao certo o que diz.
135
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141
APÊNDICE
ENÉADA I 1 [53]
PERI TO Z
PERI TO ZPERI TO Z
PERI TO ZWON KAI PERI TO ANQROPOS
WON KAI PERI TO ANQROPOSWON KAI PERI TO ANQROPOS
WON KAI PERI TO ANQROPOS
SOBRE O VIVENTE E O HOMEM
1. Ἡδοναὶ καὶ λῦπαι φόβοι τε καὶ
θάρρη ἐπιθυμίαι τε καὶ ἀποστροφα
καὶ τὸ ἀλγεῖν τίνος ἂν εἶεν; γὰρ
ψυχῆς, χρωμένης ψυχῆς σώματι,
τρίτου τινὸς ἐξ μφοῖν. Διχῶς δὲ καὶ
τοῦτο· γὰρ τὸ μῖγμα, ἄλλο [5]
ἕτερον ἐκ τοῦ μίγματος.
Ὁμοίως δὲ καὶ τὰ ἐκ τούτων τῶν
παθημάτων γινόμενα καὶ πραττόμενα
καὶ δοξαζόμενα. Καὶ οὖν καὶ διάνοια
1. A que
271
se atribui prazeres e dores,
medos e confiança, desejos e aversões, e
sofrimento? À alma, à alma que utiliza o
corpo ou a um terceiro derivado de
ambos, o qual pode ser de dois modos:
ou é uma mistura
272
ou algo [5] diferente
derivado dela.
Ocorre o mesmo
273
para o que surge das
afecções
274
, as ações e as opiniões. O
raciocínio discursivo
275
e a opinião são
daquele ao qual as afecções são
271
Optamos por uma tradução mais geral de tínos e evitamos a tradução por “sujeito”, concordando com Marzolo,
segundo o qual Plotino tem a intenção de compreender todas as hipóteses com esse termo. Cf. PLOTINO, Che
cos’è l’essere vivente e che cos’è l’uomo? I 1 [53], p. 83.
272
Mígma. Traduzimos mígma e krâsis por mistura. Plotino oscila entre esses termos que expressam associações
em que os elementos não perdem sua identidade.
273
Isto é, coloca-se a mesma questão: a que se atribui o que resulta das afecções, as ações e as opiniões, bem como
o raciocínio discursivo?
274
A nosso ver, “afecções” designa melhor o termo páthe, pois expressa o que afeta e mobiliza aquele que as
possui, enquanto “paixões” ecoa um sentido predominantemente passivo.
275
Procuramos manter a tradução de diánoia por raciocínio discursivo e pensamento discursivo (dianoetikón -
razão discursiva, diánoiai - discursos), diferenciando-a de logismós, raciocínio, e de nóesis, intelecção.
142
καὶ δόξα ζητητέαι, πότερα ὧν τὰ
πάθη, αἱ μὲν οὕτως, αἱ δὲ ἄλλως.
Καὶ τὰς νοήσεις δὲ θεωρητέον, πῶς
καὶ τίνος, καὶ δὴ καὶ αὐτὸ τοῦτο τὸ
[10] ἐπισκοποῦν καὶ περὶ τούτων τὴν
ζήτησιν καὶ τὴν κρίσιν ποιούμενον τί
ποτ´ ἂν εἴη.
Καὶ πρότερον τὸ αἰσθάνεσθαι τίνος;
Ἐντεῦθεν γὰρ ἄρχεσθαι προσήκει,
ἐπείπερ τὰ πάθη εἰσιν αἰσθήσεις
τινὲς οὐκ ἄνευ αἰσθήσεως.
atribuídas ou alguns deles são assim,
outros, de outro modo?
É preciso observar as intelecções, a que
pertencem e como surgem, [10] bem
como examinar esse mesmo que faz essa
investigação e julga quem é
276
.
Primeiro, a que se atribui o ato de
sentir? É conveniente começar daqui,
que as afecções ou são certas sensações
ou não existem sem a sensação.
2. Πρῶτον δὲ ψυχὴν ληπτέον, πότερον
ἄλλο μὲν ψυχή, ἄλλο δὲ ψυχῇ εἶναι.
Εἰ γὰρ τοῦτο, σύνθετόν τι ψυχὴ κα
οὐκ τοπον ἤδη δέχεσθαι αὐτὴν καὶ
αὐτῆς εἶναι τὰ πάθη τὰ τοιαῦτα, εἰ
ἐπιτρέψει καὶ οὕτως λόγος, [5] καὶ
ὅλως ἕξεις καὶ διαθέσεις χείρους καὶ
βελτίους. , εἰ ταὐτόν ἐστι ψυχὴ καὶ
τὸ ψυχῇ εἶναι, εἶδός τι ἂν εἴη ψυχὴ
ἄδεκτον τούτων ἁπασῶν τῶν
2. Primeiro, então, deve-se compreender
a alma, se ela é algo e o ser dela outro.
Se for assim, a alma é algo composto e
não é absurdo que ela receba e que
sejam dela tais afecções se a razão
também lhe permitir [5] e, de modo
geral, os estados e disposições
277
piores
e melhores. Mas, se a alma é idêntica ao
ser da alma, ela seria uma forma incapaz
de receber todas essas atividades as
276
Segundo Aubry, Plotino interroga-se por aquele que realiza a investigação, para o qual a reflexão se volta;
porém, a questão da atribuição do raciocínio é suspendida. Cf. PLOTINO, Traité 53, p. 116-117.
277
Héxeis (sing.: héxis) e diathéseis (sing.: diáthesis).
143
ἐνεργειῶν, ὧν ἐποιστικὸν ἄλλῳ,
ἑαυτῷ δὲ συμφυᾶ ἔχον τὴν ἐνέργειαν
ἐν ἑαυτῷ, ἥντινα ἂν φήνῃ λόγος.
Οὕτω γὰρ καὶ τὸ ἀθάνατον [10]
ἀληθὲς λέγειν, εἴπερ δεῖ τὸ ἀθάνατον
καὶ ἄφθαρτον ἀπαθὲς εἶναι, ἄλλῳ
ἑαυτοῦ πως διδόν, αὐτὸ δὲ παρ´ ἄλλου
μηδὲν ὅσον παρὰ τῶν πρὸ αὐτοῦ
ἔχειν, ν μὴ ἀποτέτμηται κρειττόνων
ὄντων.
Τί γὰρ ἂν καὶ φοβοῖτο τοιοῦτον
ἄδεκτον ὂν παντὸς τοῦ ἔξω; Ἐκεῖνο
τοίνυν [15] φοβείσθω, δύναται
παθεῖν. Οὐδὲ θαρρεῖ τοίνυν· τούτοις
γὰρ θάρρος, οἷς ἂν τὰ φοβερὰ μὴ
παρῇ; Ἐπιθυμίαι τε, αἳ διὰ σώματος
ἀποπληροῦνται κενουμένου καὶ
quais são concedidas a outro diferente
dela; ela tem um ato conatural a ela
mesma, o qual a razão nos revela.
Assim, é verdadeiro dizer que ela é
imortal [10], que o imortal e
incorruptível deve ser impassível. Isso,
de alguma maneira, dando algo de si a
outro. Ela não recebe nada de outro,
somente do que lhe é anterior, do qual
ela foi separada e que lhe é superior.
Então, o que algo assim temeria, sendo
incapaz de receber tudo do exterior?
Que tema aquele [15] que é capaz de
sofrer. Certamente nem a coragem
existe nela; são corajosos aqueles que
não são capazes de receber as coisas
temíveis? Nem também os apetites que
são satisfeitos pelo corpo preenchendo e
se esvaziando, sendo ela diferente do
278
Como Plotino disse acima que a alma recebe o que lhe é anterior, depreende-se que ela recebe somente o
Bem supremo e não os bens inferiores.
279
Marzolo nota que a diánoia aqui é praticamente um sinônimo de juízo (krísis). PLOTINO. Che cos’è l’essere
vivente e che cos’è l’uomo? I 1 [53], p. 100.
280
Aqui os tradutores consultados oscilam entre “intelecção pura” e “intelecção”; Aubry opta por “pensamento” e
“inteligência pura” e Marzolo, “intelecção”. Como Plotino se refere posteriormente ao prazer puro,
explicitamente, talvez esteja referindo também à intelecção pura. Todavia, mantemos a tradução literal
“intelecção”. Lembramos que Plotino emprega os termos nóesis e noeîn tanto para a alma como para o Intelecto,
mas se trata de modos diferentes de intelecção.
281
Para Marzolo, a alma ne é aquela que está em condição de isolamento ou de autonomia, de ser somente alma,
em contraposição àquela sua condição de quando forma o conjunto. PLOTINO. Che cos’è l’essere vivente e che
cos’è l’uomo? I 1 [53], p. 102.
144
πληρουμένου, ἄλλου τοῦ
πληρουμένου κα κενουμένου ὄντος;
Πῶς δὲ μίξεως; τὸ οὐσιῶδες
ἄμικτον. Πῶς δὲ ἐπεισαγωγῆς [20]
τινων; Οὕτω γὰρ ἂν σπεύδοι εἰς τὸ μὴ
εἶναι ἐστι. Τὸ δ´ λγεῖν ἔτι πόρρω.
Λυπεῖσθαι δὲ πῶς ἐπὶ τίνι; Αὔταρκες
γὰρ τό γε ἁπλοῦν ἐν οὐσίᾳ, οἷόν ἐστι
μένον ἐν οὐσίᾳ τῇ αὑτοῦ. Ἥδεται δὲ
προσγενομένου τίνος, οὐδενὸς οὐδ´
ἀγαθοῦ προσιόντος; γάρ ἐστιν, [25]
ἔστιν ἀεί. Καὶ μὴν οὐδὲ αἰσθήσεται
οὐδὲ διάνοια οὐδὲ δόξα περὶ αὐτό·
αἴσθησις γὰρ παραδοχ εἴδους καὶ
πάθους σώματος, διάνοια δ καὶ δόξα
ἐπ´ αἴσθησιν.
Περὶ δὲ νοήσεως ἐπισκεπτέον πῶς, εἰ
ταύτην αὐτῇ καταλείψομεν· καὶ περὶ
ἡδονῆς αὖ καθαρᾶς, εἰ συμβαίνει [30]
περὶ αὐτὴν μόνην οὖσαν.
que é preenchido e esvaziado?
Então como [a alma] se mistura? O
essencial não é passível de mistura.
Como essas coisas se introduzem [20]
nela? Pois assim esforçar-se-ia em não
ser o que ela é.
O sofrimento está longe dela. Como e de
quê ela sofreria? Algo simples é
autosuficiente em sua essência capaz de
permanecer em sua própria essência. Ela
teria prazer com algo acrescido, ainda
que nada, nenhum bem,
278
seja admitido
nela? Pois o que é, [25] é sempre. E
também nem mesmo a sensação, nem o
raciocínio discursivo
279
nem a opinião
são admitidos nela; pois a sensação
recebe a afecção do corpo; o raciocínio
discursivo e a opinião vêm da sensação.
Quanto à intelecção
280
, é preciso
examinar se a deixaremos nela; também
quanto ao prazer puro, se ele se encontra
[30] nela quando está sozinha
281
.
145
3. Ἀλλὰ γὰρ ἐν σώματι θετέον ψυχήν,
οὖσαν εἴτε πρὸ τούτου, εἴτ´ ἐν τούτῳ,
ἐξ οὗ καὶ αὐτῆς ζῷον τ σύμπαν
ἐκλήθη. Χρωμένη μὲν οὖν σώματι οἷα
ὀργάνῳ οὐκ ἀναγκάζεται δέξασθαι τὰ
διὰ τοῦ σώματος παθήματα, [5]
ὥσπερ οὐδὲ τὰ τῶν ὀργάνων
παθήματα οἱ τεχνῖται· αἴσθησιν δὲ
τάχ´ ἂν ναγκαίως, εἴπερ δεῖ χρῆσθαι
τῷ ὀργάνῳ γινωσκούσῃ τὰ ξωθεν
παθήματα ἐξ αἰσθήσεως· ἐπεὶ καὶ τὸ
χρῆσθαι ὄμμασίν στιν ὁρᾶν. Ἀλλὰ
καὶ βλάβαι περὶ τὸ ὁρᾶν, ὥστε καὶ
λῦπαι καὶ τὸ ἀλγεῖν [10] καὶ ὅλως τι
περ ἂν περὶ τὸ σῶμα πᾶν γίγνηται·
ὥστε καὶ ἐπιθυμίαι ζητούσης τὴν
θεραπείαν τοῦ ὀργάνου. Ἀλλὰ πῶς
ἀπὸ τοῦ σώματος εἰς αὐτὴν ἥξει τὰ
πάθη; Σῶμα μὲν γὰρ σώματι ἄλλῳ
μεταδώσει τῶν ἑαυτοῦ, σῶμα δὲ ψυχῇ
3. Todavia, é preciso considerar a alma
no corpo, seja antes dele ou nele
282
; o
todo, porque provém de ambos, é
denominado vivente
283
. Certamente, a
alma que se serve do corpo como
instrumento
284
não é forçada a receber
as afecções dele, [5] assim como o
artesão, as afecções dos instrumentos;
talvez [ela é forçada a receber], a
sensação, necessariamente, que é
preciso que ela conheça as afecções
exteriores oriundas da sensação para se
servir do instrumento; pois se servir dos
olhos é ver. Contudo, pode haver danos
para a visão, assim como também dores
e sofrimento [10] e, em geral, tudo que
ocorre ao corpo; de tal modo, também
os apetites, ao procurar o cuidado do
instrumento. Mas como as afecções
vindas do corpo chegarão a ela? Um
corpo transmitirá as suas a outro corpo,
mas como um corpo à alma? Isso
282
Sempre a dificuldade de identificar a alma à qual Plotino se refere. A alma antes do corpo parece ser a alma
que se serve do corpo como instrumento, pois, em seguida, a discussão sobre ela. A alma no corpo, então,
deve ser a alma misturada ou unida a ele.
283
Cf. PLATÃO, Fedro 246c. Primeira definição do vivente (zóon): o todo (sýmpan) derivado da alma e do corpo.
Mantemos a tradução de sýmpan como “todo” para a distinção do “conjunto” (synamphóteron).
284
Cf. PLATÃO, Alcibíades 129c.
146
πῶς; Τοῦτο γάρ ἐστιν οἷον ἄλλου
παθόντος λλο [15] παθεῖν. Μέχρι
γὰρ τοῦ τὸ μὲν εἶναι τὸ χρώμενον, τ
δὲ χρῆται, χωρίς ἐστιν ἑκάτερον·
χωρίζει γοῦν τὸ χρώμενον τὴν
ψυχὴν διδούς.
Ἀλλὰ πρὸ τοῦ χωρίσαι διὰ φιλοσοφίας
αὐτὸ πῶς εἶχεν; μέμικτο. Ἀλλὰ εἰ
ἐμέμικτο, κρᾶσίς τις ἦν, ὡς
διαπλακεῖσα, ὡς εἶδος [20] οὐ
κεχωρισμένον, εἶδος ἐφαπτόμενον,
ὥσπερ κυβερνήτης, τὸ μὲν οὕτως
αὐτοῦ, τὸ δὲ ἐκείνως· λέγω δὲ τὸ μὲν
κεχωρισμένον, ὅπερ τὸ χρώμενον, τὸ
significaria que, quando um é afetado,
outro também é [15]. Pois na medida em
que um é o que utiliza o instrumento e
outro, o que é utilizado, eles estão
separados um do outro. Quem diz que a
alma é a utilizadora certamente os
separa.
Mas, antes de estarem separados pela
filosofia, como a alma se encontrava
285
?
Certamente misturada. Mas, se era
misturada, ou era uma mistura, ou era
entrelaçada ao corpo
286
, ou uma forma
não separada [20], ou uma forma em
contato como um timoneiro
287
ou uma
era assim e outra de outro modo. Com
285
O trecho margem a uma confusão acerca do sujeito da oração: au)to/ - a filosofia ou a alma e não o que
utiliza ou o que é utilizado. Entendemos que, nesse momento, a alma é o sujeito, pois está em questão examinar
se ela era e é separada ou não do corpo; logo em seguida, no fim deste capítulo e no início do próximo, Plotino
examina como a alma seria se ela e o corpo estivessem misturados. Depreendemos que a separação entre a alma
e o corpo seria um efeito da filosofia. Marzolo admite que haveria tanto uma separação efetiva entre a alma e o
corpo, atingida com a prática filosófica, como uma distinção operada pelo raciocínio filosófico ou por um
procedimento filosófico; mas ele afirma que sua tradução por “raciocínio filosófico” é influenciada pelo tema do
lógos que deve ser um instrumento afiado que separa a alma do corpo. Cf. PLOTINO, Che cos’è l’essere vivente
e che cos’è l’uomo? I 1 [53], p. 106. Com efeito, pode se tratar tanto de uma separação efetiva resultante da
prática filosófica, quanto de uma separação realizada por procedimento filosófico, já que Plotino retoma algumas
concepções filosóficas de união do corpo e da alma estabelecidas por outros autores.
286
Cf. PLATÃO, Timeu 36e.
287
Cf. ARISTÓTELES, De Anima II 1. 413a.
288
A dificuldade está em compreender o que é a alma separada que utiliza o instrumento. Para Marzolo, ela seria a
alma propriamente dita ou alma essencial – à qual não se pode atribuir as afecções e que permanece no
inteligível em oposição à sua imagem que forma o vivente. Essa interpretação não nos parece adequada, pois a
alma essencial é separada do corpo e não tem nenhuma relação com ele, não o utilizando como instrumento,
portanto. Aqui, a nosso ver, Plotino refere-se à alma que é separada do corpo, mas mantém uma relação de
utilização com ele, indicando, talvez, a alma racional como um todo, pois sugere que a alma utilizadora é
superior àquela que se mistura, isto é, à imagem da alma. Cf. PLOTINO, Che cos’è l’essere vivente e che cos’è
l’uomo? I 1 [53], p. 112. Para Aubry, a alma utilizadora é a diánoia. Cf. PLOTINO, Traité 53, p. 150-151.
147
δὲ μεμιγμένον ὁπωσοῦν καὶ αὐτὸ ὂν
ἐν τάξει τοῦ χρῆται, ἵνα τοῦτο
φιλοσοφία καὶ αὐτὸ ἐπιστρέφῃ πρὸς
τὸ [25] χρώμενον καὶ τὸ χρώμενον
ἀπάγῃ, ὅσον μὴ πᾶσα ἀνάγκη, ἀπὸ
τοῦ χρῆται, ὡς μὴ εὶ μηδὲ
χρῆσθαι.
isso, digo que uma separada isto é,
a que utiliza o instrumento
288
e outra
misturada de alguma maneira essa
sendo da mesma ordem daquilo que é
utilizado –, a fim de que a filosofia
converta isso [que é utilizado] para junto
daquele [25] que utiliza e afastar o que
utiliza de seu instrumento, conquanto
não haja uma completa necessidade e de
tal modo que não se sirva dele sempre.
4. Θῶμεν τοίνυν μεμῖχθαι. Ἀλλ´ εἰ
μέμικται, τὸ μὲν χεῖρον ἔσται βέλτιον,
τὸ σῶμα, τὸ δὲ χεῖρον, ψυχή· καὶ
βέλτιον μὲν τὸ σῶμα ζωῆς
μεταλαβόν, χεῖρον δὲ ψυχὴ θανάτου
καὶ ἀλογίας. Τὸ δὴ ἀφαιρεθὲν
ὁπωσοῦν ζωῆς πῶς [5] ἂν προσθήκην
λάβοι τ αἰσθάνεσθαι; Τοὐναντίον δ´
ἂν τὸ σῶμα ζωὴν λαβὸν τοῦτο ἂν εἴη
τὸ αἰσθήσεως καὶ τῶν ἐξ αἰσθήσεως
παθημάτων μεταλαμβάνον. Τοῦτο
τοίνυν καὶ ὀρέξεται - τοῦτο γὰρ καὶ
ἀπολαύσει ὧν ὀρέγεται - καὶ
4. Suponhamos que estivessem
misturados. Mas, se estivessem
misturados, aquilo que é pior, o corpo,
seria melhor e a alma, pior; seria melhor
o corpo que participa da vida e pior a
alma que participa da morte e do
irracional. E como o que é privado de
vida [5] receberia, em acréscimo, o
sentir? Ao contrário, o corpo, recebendo
vida, seria o que participa da sensação e
das afecções derivadas das sensações.
Então, ele desejará e usufruirá das coisas
que deseja, e temerá por si mesmo, pois
não alcançará [10] os prazeres e será
148
φοβήσεται περὶ αὑτοῦ· τοῦτο γὰρ καὶ
οὐ τεύξεται τῶν [10] ἡδέων καὶ
φθαρήσεται. Ζητητέον δὲ καὶ τὸν
τρόπον τῆς μίξεως, μήποτε οὐ
δυνατὸς , ὥσπερ ἂν εἴ τις λέγοι
μεμῖχθαι λευκῷ γραμμήν, φύσιν
ἄλλην ἄλλῃ.
Τὸ δὲ «διαπλακεῖσα» οὐ ποιεῖ
ὁμοιοπαθῆ τὰ διαπλακέντα, ἀλλ´
ἔστιν ἀπαθὲς εἶναι τὸ διαπλακὲν καὶ
ἔστι ψυχὴν [15] διαπεφοιτηκυῖαν
μήτοι πάσχειν τὰ κείνου πάθη,
ὥσπερ καὶ τὸ φῶς, καὶ μάλιστα, εἰ
οὕτω, δι´ ὅλου ὡς διαπεπλέχθαι· οὐ
παρὰ τοῦτο οὖν πείσεται τὰ σώματος
πάθη, ὅτι διαπέπλεκται.
Ἀλλ´ ὡς εἶδος ν ὕλῃ ἔσται ἐν τῷ
σώματι; Πρῶτον μὲν ὡς χωριστὸν
εἶδος ἔσται, εἴπερ οὐσία, καὶ [20]
destruído.
Deve-se indagar pelo modo da mistura,
talvez tão impossível como se alguém
dissesse que a linha é misturada ao
branco, uma natureza à outra.
Quanto à entrelaçada, não significa que
os entrelaçados têm as mesmas
afecções, mas que o entrelaçado seja
impassível. [15] Mesmo tendo
atravessado o corpo, a alma não sofre as
afecções dele, como ocorre com a luz e,
principalmente, se ela foi totalmente
entrelaçada
289
. Ela não sofrerá as
afecções do corpo por estar entrelaçada.
Mas ela estará no corpo como a forma
na matéria? Primeiro, sendo essência,
estará como forma separada e [20] seria
como aquela que utiliza. Entretanto, se
ela está para o corpo assim como a
figura imposta ao ferro está para o
289
Ao retomar os diferentes modos de mistura da alma e do corpo propostos por outros autores, Plotino discute se a
hipótese da separação da alma e do corpo poderia contradizer a da comunhão das afecções. Ele mostra que, na
verdade, as afecções o comuns à imagem da alma e ao corpo e não à alma e ao corpo. A metáfora da luz é
fundamental para entender a impassibilidade da alma: como uma luz, a alma pode se difundir e penetrar toda
inteira no corpo, permanecendo separada e a mesma, pois é seu reflexo que se une a ele.
149
μᾶλλον ἂν εἴη κατὰ τὸ χρώμενον. Εἰ
δὲ ὡς τῷ πελέκει τὸ σχῆμα τ ἐπὶ τῷ
σιδήρῳ, καὶ τὸ συναμφότερον
πέλεκυς ποιήσει ποιήσει σίδηρος
οὕτως ἐσχηματισμένος, κατὰ τὸ
σχῆμα μέντοι, μᾶλλον ἂν τ σώματι
διδοῖμεν ὅσα κοινὰ πάθη, τῷ μέντοι
τοιούτῳ, τῷ φυσικῷ, [25] ὀργανικῷ,
δυνάμει ζωὴν ἔχονtι. Καὶ γὰρ ἄτοπόν
φησι τὴν ψυχὴν ὑφαίνειν λέγειν>, ὥστε
καὶ ἐπιθυμεῖν καὶ λυπεῖσθαι· ἀλλὰ τὸ
ζῷον μᾶλλον.
machado
290
e se é o conjunto
291
, o
machado, que fará o que o ferro assim
configurado fizer, atribuiríamos ao
corpo todas as afecções comuns
certamente, ao corpo natural, [25]
instrumental e que tem a vida em
potência. Pois, diz [Aristóteles]
292
que é
absurdo afirmar que a alma tece, assim
como que deseja e sofre; antes, isso
deve ser dito do vivente
293
.
5. Ἀλλὰ τ ζῷον τὸ σῶμα δεῖ λέγειν
τὸ τοιόνδε, τ κοινόν>, ἕτερόν τι
τρίτον ἐξ ἀμφοῖν γεγενημένον. Ὅπως
δ´ ἂν ἔχῃ, ἤτοι ἀπαθῆ δε τὴν ψυχὴν
φυλάττειν αὐτὴν αἰτίαν γενομένην
5. Mas é preciso dizer o que é o vivente:
ou o corpo assim qualificado, ou o
comum ou algo terceiro derivado dos
dois
294
. Seja como for, é preciso manter
a alma impassível, sendo ela a causa da
afecção para outro ou compartilhando as
290
Cf. ARISTÓTELES, De Anima II 1. 412a.
291
Plotino sugere duas hipóteses: 1. se o conjunto (synamphóteron) é que realiza as ações, ele o faz segundo a
forma (schêma), isto é, a alma como forma e essência. Portanto, as ações não seriam da alma, mas do conjunto;
2. se o corpo realiza as ões, ele o faz graças à alma que o anima. Preferimos a tradução por “conjunto” para
diferenciá-lo do “composto”, synthetós.
292
Cf. ARISTÓTELES, De Anima I 4. 408 b.
293
Nesse momento, é explícita a tese de que as afecções são atribuídas ao vivente, já que é ele quem deseja e sofre.
294
O corpo assim qualificado (toiónde soma) é aquele que tem a vida em potência e o comum (koinón) é o ser
comum à alma e ao corpo.
150
ἄλλῳ τοῦ τοιούτου, συμπάσχειν καὶ
[5] αὐτήν· καὶ ταὐτὸν πάσχουσαν
πάθημα πάσχειν, ὅμοιόν τι, οἷον
ἄλλως μὲν τὸ ζῷον ἐπιθυμεῖν, ἄλλως
δὲ τὸ ἐπιθυμητικὸν ἐνεργεῖν
πάσχειν. Τὸ μὲν οὖν σῶμα τ τοιόνδε
ὕστερον ἐπισκεπτέον·
τὸ δὲ συναμφότερον οἷον λυπεῖσθαι
πῶς; Ἆρα ὅτι τοῦ σώματος οὑτωσὶ [10]
διατεθέντος καὶ μέχρις αἰσθήσεως
διελθόντος τοῦ πάθους τῆς
αἰσθήσεως εἰς ψυχὴν τελευτώσης;
Ἀλλ´ αἴσθησις οὔπω δῆλον πῶς.
Ἀλλ´ ὅταν λύπη ἀρχὴν πὸ δόξης
καὶ κρίσεως λάβῃ τοῦ κακόν τι
παρεῖναι αὐτῷ τινι τῶν οἰκείων,
εἶτ´ ἐντεῦθεν τροπὴ λυπηρὰ ἐπὶ τὸ
σῶμα [15] καὶ ὅλως ἐπὶ πᾶν τὸ ζῷον
γένηται; Ἀλλὰ καὶ τ τῆς δόξης οὔπω
δῆλον τίνος, τῆς ψυχῆς τοῦ
mesmas afecções
295
; [5] e, sofrendo,
sofre a mesma afecção ou alguma
semelhante como, por exemplo, o
vivente ter apetite de um modo e a
potência apetitiva agir ou ser afetada de
outro. O corpo, tal como foi dito, é
preciso examinar mais tarde.
Como o conjunto sofre? Talvez porque
o corpo esteja [10] disposto assim e a
afecção o atravesse até a sensação e
dessa chegue à alma? Porém, ainda não
é evidente como a sensação surge.
Quando a dor se origina da opinião e do
juízo de que um mal está presente ou
sobre a pessoa ou sobre algum de seus
próximos, a partir de então ocorrem
transformações dolorosas para o corpo
[15] e, de modo geral, para o vivente
como um todo? Porém, ainda não é
evidente a que se atribui a opinião, se à
alma ou ao conjunto
296
. Ademais, a
opinião sobre o mal o contém a
295
A alma e o corpo podem compartilhar as mesmas afecções, mas cada um pode ter as suas sem que isso
implique, necessariamente, que eles sofram a mesma afecção, o que será dito em seguida.
296
Plotino identifica o vivente e o conjunto, em oposição à alma essencial.
297
Plotino indica não o desejo de bens particulares e inferiores, mas aquele em relação ao Princípio Supremo.
298
É curioso que aqui Plotino emprega o termo homem quando parece se referir ao conjunto.
151
συναμφοτέρου· εἶτα μὲν δόξα περὶ
τοῦ κακὸν τὸ τῆς λύπης οὐκ ἔχει
πάθος· καὶ γὰρ καὶ δυνατὸν τῆς δόξης
παρούσης μὴ πάντως πιγίνεσθαι τὸ
λυπεῖσθαι, μηδ´ α τὸ ὀργίζεσθαι [20]
δόξης τοῦ ὀλιγωρεῖσθαι γενομένης,
μηδ´ αὖ ἀγαθοῦ δόξης κινεῖσθαι τὴν
ὄρεξιν.
Πῶς οὖν κοινὰ ταῦτα; , ὅτι κα
ἐπιθυμία τοῦ ἐπιθυμητικοῦ καὶ
θυμὸς τοῦ θυμικοῦ καὶ ὅλως τοῦ
ὀρεκτικοῦ ἐπί τι ἔκστασις. Ἀλλ´
οὕτως οὐκέτι κοινὰ ἔσται, ἀλλὰ τῆς
ψυχῆς μόνης· καὶ τοῦ [25] σώματος,
ὅτι δεῖ αἷμα κα χολὴν ζέσαι καί πως
διατεθὲν τὸ σῶμα τὴν ὄρεξιν κινῆσαι,
οἷον ἐπὶ ἀφροδισίων. δὲ τοῦ
ἀγαθοῦ ὄρεξις μ κοινὸν πάθημα
ἀλλὰ ψυχῆς ἔστω, ὥσπερ καὶ ἄλλα,
καὶ οὐ πάντα τοῦ κοινοῦ δίδωσί τις
λόγος. Ἀλλὰ ὀρεγομένου ἀφροδισίων
τοῦ ἀνθρώπου ἔσται μὲν [30]
ἄνθρωπος ἐπιθυμῶν, ἔσται δὲ
afecção da dor. Pois é possível que, a
opinião estando presente, o sofrimento
não sobrevenha absolutamente nem a
ira, havendo a opinião [20] sobre ser
menosprezado, e nem o desejo seja
movido quando houver a opinião sobre
algum bem.
Como essas [afecções] são comuns [ao
corpo e à alma]? Talvez porque o apetite
pertença à potência apetitiva, a ira, à
irascível e, em geral, o impulso, à
desiderativa. No entanto, assim não são
comuns, mas pertencerão somente à
alma; ou também [25] ao corpo, já que é
necessário sangue e bile para ferver e o
corpo disposto assim para mover o
desejo, por exemplo, o desejo sexual. O
desejo do bem
297
não é afecção comum,
mas da alma, do mesmo modo também
outras: nenhum discurso atribui todas ao
comum. Entrementes, quando o
homem
298
deseja prazeres sexuais, [30]
será o homem que deseja, mas, de outro
modo, será a potência apetitiva. Como?
152
ἄλλως καὶ τὸ ἐπιθυμητικὸν
ἐπιθυμοῦν. Καὶ πῶς;
Ἆρα ρξει μὲν ἄνθρωπος τῆς
ἐπιθυμίας, ἐπακολουθήσει δὲ τὸ
ἐπιθυμητικόν; Ἀλλ πῶς ὅλως
ἐπεθύμησεν ἄνθρωπος μὴ τοῦ
ἐπιθυμητικοῦ κεκινημένου; Ἀλλ´
ἄρξει τὸ ἐπιθυμητικόν. Ἀλλὰ τοῦ [35]
σώματος μὴ πρότερον οὑτωσὶ
διατεθέντος πόθεν ἄρξεται;
O homem iniciao desejo e a potência
apetitiva o seguirá? Mas como, de modo
geral, o homem desejou sem que a
potência apetitiva tenha se movido? A
potência apetitiva iniciará [o desejo].
Mas a partir de onde iniciará, [35] uma
vez que o corpo não estava disposto
assim antes?
6. Ἀλλ´ ἴσως βέλτιον εἰπεῖν καθόλου
τῷ παρεῖναι τὰς δυνάμεις τὰ ἔχοντα
εἶναι τὰ ἐνεργοῦντα κατ´ αὐτάς,
αὐτὰς δὲ ἀκινήτους εἶναι χορηγούσας
τὸ δύνασθαι τοῖς ἔχουσιν. Ἀλλ´ εἰ
τοῦτό ἐστι, πάσχοντος τοῦ ζῴου τὴν
[5] αἰτίαν τοῦ ζῆν τῷ συναμφοτέρῳ
δοῦσαν αὑτὴν ἀπαθῆ εἶναι τῶν
παθῶν καὶ τῶν ἐνεργειῶν τοῦ ἔχοντος
ὄντων. Ἀλλ´ εἰ τοῦτο, καὶ τὸ ζῆν ὅλως
οὐ τῆς ψυχῆς, ἀλλὰ τοῦ
6. Mas, da mesma maneira, é melhor
dizer que, de modo geral, pela presença
das potências, aqueles que as têm agem
segundo elas; mas essas potências são
imóveis, fornecendo a capacidade de
agir aos que as possuem. Entretanto, se
for assim, o vivente sendo afetado, [5] é
necessário que a causa que deu vida ao
conjunto seja impassível, enquanto as
afecções e as atividades são daquele que
a possui
299
. Contudo, assim, o viver não
299
Notamos a oposição entre a causa da vida a alma –, impassível, e aquele que recebe e possui a vida e as
afecções o conjunto ou vivente. Essa nos parece ser a ideia principal da passagem. Mais uma vez, vivente e
conjunto coincidem.
153
συναμφοτέρου ἔσται; τ τοῦ
συναμφοτέρου ζῆν οὐ τῆς ψυχῆς
ἔσται· καὶ δύναμις δὲ αἰσθητικὴ
[10] οὐκ αἰσθήσεται, ἀλλ τ ἔχον τὴν
δύναμιν. Ἀλλ´ εἰ αἴσθησις διὰ
σώματος κίνησις οὖσα εἰς ψυχὴν
τελευτᾷ, πῶς ψυχὴ οὐκ αἰσθήσεται;
τῆς δυνάμεως τῆς αἰσθητικῆς
παρούσης τῷ ταύτην παρεῖναι
αἰσθήσεται. Τ αἰσθήσεται; τὸ
συναμφότερον; Ἀλλ´ εἰ δύναμις [15]
μὴ κινήσεται, πῶς ἔτι τὸ
συναμφότερον μὴ συναριθμουμένης
ψυχῆς μηδὲ τῆς ψυχικῆς δυνάμεως;
será totalmente da alma, mas do
conjunto; ou o viver do conjunto não
será da alma.
Ademais, a potência sensitiva [10] não
sentirá, mas aquele que tem a potência.
Mas, se a sensação é um movimento que
chega à alma através do corpo, como a
alma não sentirá? Ou, estando presente a
potência sensitiva, haverá sensação na
medida em que ela está presente. Quem
sentirá? O conjunto. Mas, se a potência
[15] não for movida, como o será o
conjunto, que não é contabilizado
conjuntamente nem a alma nem a
potência da alma?
7. τὸ συναμφότερον ἔστω τῆς
ψυχῆς τ παρεῖναι οὐχ αὑτὴν δούσης
τῆς τοιαύτης εἰς τ συναμφότερον
εἰς θάτερον, ἀλλὰ ποιούσης ἐκ τοῦ
σώματος τοῦ τοιούτου καί τινος οἷον
φωτὸς τοῦ παρ´ αὐτὴν δοθέντος τὴν
7. Certamente o conjunto existe
300
pela
presença da alma; não porque ela se deu
a ele ou a outro, mas porque produz a
natureza do vivente [5] como algo
diferente, a partir de um determinado
corpo e de algo como uma luz que foi
emitida por ela; a isso
301
se diz que
300
Literalmente, a ideia é que o vivente existe pela presença da alma, mas, talvez, Plotino esteja referindo-se à
sensação do conjunto, observando uma continuidade do fim do capítulo anterior, no qual pergunta por aquele
que percebe.
301
Ao conjunto.
154
τοῦ [5] ζῴου φύσιν ἕτερόν τι, οὗ τὸ
αἰσθάνεσθαι καὶ τὰ ἄλλα ὅσα ζῴου
πάθη εἴρηται. Ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα; , ὅτι οὐκ
ἀπηλλάγημεν τοῦ τοιούτου ζῴου, καὶ
εἰ ἄλλα ἡμῖν τιμιώτερα εἰς τὴν ὅλην
ἀνθρώπου οὐσίαν ἐκ πολλῶν οὖσαν
πάρεστι. Τὴν δὲ τῆς ψυχῆς τοῦ
αἰσθάνεσθαι δύναμιν [10] οὐ τῶν
αἰσθητῶν εἶναι δεῖ, τῶν δὲ ἀπὸ τῆς
αἰσθήσεως ἐγγιγνομένων τῷ ζῴῳ
τύπων ἀντιληπτικὴν εἶναι μᾶλλον·
νοητὰ γὰρ ἤδη ταῦτα· ὡς τὴν
αἴσθησιν τὴν ἔξω εἴδωλον εἶναι
ταύτης, κείνην δὲ ἀληθεστέραν τ
οὐσίᾳ οὖσαν εἰδῶν μόνων ἀπαθῶς
εἶναι θεωρίαν.
Ἀπὸ δὴ τούτων τῶν [15] εἰδῶν, ἀφ´ ὧν
pertence o sentir e todas as outras
afecções do vivente, quantas foram
ditas. Mas como nós sentimos? Não
somos separados de tal vivente, mesmo
se outros elementos mais nobres estão
presentes em nós para [formar] a
essência integral de homem, múltipla.
Não é necessário que a potência
sensitiva da alma [10] seja [perceptiva]
dos [objetos] sensíveis, mas, antes, que
seja receptora das impressões que
surgem da sensação para o vivente, pois
essas são inteligíveis desde então
302
.
A sensação externa é imagem dessa que
é mais verdadeira em essência por ser
contemplação impassível das Formas
apenas.
Certamente, a partir [15] dessas Formas
das quais a alma, sozinha, recebe o
302
Como bem observa Aubry, trata-se da distinção entre o vivente e a potência sensitiva através da distinção entre
a sensação e a percepção: a recepção do estímulo sensorial é realizada pelo vivente e o ato cognitivo que se
segue disso, pela potência sensitiva. Assim, Plotino ratifica e explica o capítulo anterior: aquele que sente é o
conjunto ou vivente, mas o a alma e a potência sensitiva; as afecções são do vivente, enquanto a alma e a
potência sensitiva são impassíveis. Cf. PLOTINO, Traité 53, p. 208-209.
303
O “nós” aqui é explicitado como diverso do vivente, superior a ele.
304
Sýmpan: parece-nos que esse é mais um dos termos empregados para designar o vivente.
305
Cf. PLATÃO, República 588 c, 590 a.
306
Alguns tradutores (Bréhier e Faggin) optam por homem verdadeiro; com efeito, trata-se do homem verdadeiro
em oposição ao vivente.
155
ψυχὴ ἤδη παραδέχεται μόνη τὴν τοῦ
ζῴου ἡγεμονίαν, διάνοιαι δὴ καὶ δόξαι
καὶ νοήσεις· ἔνθα δὴ ἡμεῖς μάλιστα.
Τὰ δὲ πρὸ τούτων ἡμέτερα, ἡμεῖς δὴ
τὸ ἐντεῦθεν νω ἐφεστηκότες τῷ
ζῴῳ. Κωλύσει δὲ οὐδὲν τὸ σύμπαν
ζῷον λέγειν, μικτὸν μὲν τὰ κάτω, τὸ
δὲ [20] ἐντεῦθεν ἄνθρωπος ἀληθὴς
σχεδόν· ἐκεῖνα δὲ τ λεοντῶδες καὶ τὸ
ποικίλον ὅλως θηρίον. Συνδρόμου
γὰρ ὄντος τοῦ νθρώπου τῇ λογικῇ
ψυχῇ, ὅταν λογιζώμεθα, ἡμεῖς
λογιζόμεθα τ τοὺς λογισμοὺς ψυχῆς
εἶναι ἐνεργήματα.
domínio do vivente –, surgem os
discursos, as opiniões e as intelecções;
é, sobretudo, nisso que nós estamos. As
coisas antes dessas são nossas, mas nós
somos exatamente a partir disso,
situados acima do vivente
303
. Assim,
nada impedirá de denominar vivente o
complexo
304
das coisas inferiores [20], e
homem verdadeiro, o que está cima
disso; essas [inferiores] são como o leão
e a besta de todo tipo
305
. Como o
homem
306
coincide com a alma racional,
quando raciocinamos, somos nós que
raciocinamos, que os raciocínios são
atividades da alma.
8. Πρὸς δὲ τὸν νοῦν πῶς; Νοῦν δὲ
λέγω οὐχ ἣν ψυχὴ ἔχει ἕξιν οὖσαν
τῶν παρὰ τοῦ νοῦ, ἀλλ´ αὐτὸν τὸν
νοῦν. ἔχομεν καὶ τοῦτον ὑπεράνω
ἡμῶν. Ἔχομεν δὲ κοινὸν ἴδιον,
καὶ κοινὸν πάντων καὶ ἴδιον· κοινὸν
μέν, [5] ὅτι ἀμέριστος καὶ εἷς καὶ
πανταχοῦ αὐτός, ἴδιον δέ, ὅτι ἔχει
8. Como estamos em relação ao
Intelecto? Não entendo por Intelecto o
estado que a alma possui das coisas que
vêm do Intelecto, mas o Intelecto em si.
Certamente o temos acima de nós; ou o
temos como [algo] comum [5] ou
próprio, ou comum a todos e ao mesmo
tempo próprio; comum porque é
indivisível, um e o mesmo em tudo;
156
καὶ ἕκαστος αὐτὸν ὅλον ἐν ψυχῇ τ
πρώτῃ. Ἔχομεν οὖν καὶ τὰ εἴδη διχῶς,
ἐν μὲν ψυχῇ οἷον ἀνειλιγμένα καὶ
οἷον κεχωρισμένα, ἐν δὲ νῷ ὁμοῦ τὰ
πάντα.
Τὸν δὲ θεὸν πῶς; ς ἐποχούμενον
τῇ νοητῇ φύσει καὶ τῇ [10] οὐσίᾳ τῇ
ὄντως, ἡμᾶς δὲ ἐκεῖθεν τρίτους ἐκ τῆς
ἀμερίστου>, φησί, τῆς ἄνωθεν καὶ ἐκ
τῆς περὶ τὰ σώματα μεριστῆς, ἣν δὴ
δεῖ νοεῖν οὕτω μεριστὴν περὶ τὰ
σώματα, ὅτι δίδωσιν ἑαυτὴν τοῖς
σώματος μεγέθεσιν, ὁπόσον ν ζῷον
ἕκαστον, ἐπεὶ καὶ τῷ παντὶ ὅλῳ,
οὖσα [15] μία· , ὅτι φαντάζεται τοῖς
σώμασι παρεῖναι ἐλλάμπουσα εἰς
αὐτὰ καὶ ζῷα ποιοῦσα οὐκ ἐξ αὐτῆς
καὶ σώματος, ἀλλὰ μένουσα μὲν
αὐτή, εἴδωλα δὲ αὐτῆς διδοῦσα,
ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς
κατόπτροις. Πρῶτον δὲ εἴδωλον
αἴσθησις ἐν τῷ κοινῷ· εἶτα ἀπὸ
próprio porque também cada um o tem
por inteiro na alma primeira. Por
conseguinte, também temos as Formas
de dois modos: na alma como
desdobradas e separadas, e no Intelecto,
todas juntas.
E em relação ao deus, como estamos?
Esse está acima da natureza inteligível
[10] e da verdadeira essência. Nós
viemos em terceiro a partir de lá, da
[essência] indivisível, a superior, diz
[Platão]
307
, e daquela divisível em
relação aos corpos. Essa deve ser
pensada como divisível em relação aos
corpos porque se às grandezas do
corpo tanto quanto cada vivente é capaz
de receber e também se ao todo,
permanecendo [15] una; ou porque se
mostra como presente nos corpos tendo
lhes iluminado e lhes fazendo viventes,
não a partir dela e do corpo, mas
permanecendo em si mesma e dando
imagens de si, como uma imagem em
307
Cf. PLATÃO, Timeu 36a. Essência indivisível e essência divisível da alma.
157
ταύτης αὖ πᾶν ἄλλο εἶδος λέγεται [20]
ψυχῆς, ἕτερον ἀφ´ ἑτέρου εί, καὶ
τελευτᾷ μέχρι γεννητικοῦ καὶ
αὐξήσεως καὶ ὅλως ποιήσεως ἄλλου
καὶ ἀποτελεστικοῦ ἄλλου παρ´ αὐτὴν
τὴν ποιοῦσαν ἐπεστραμμένης αὐτῆς
τῆς ποιούσης πρὸς τὸ ἀποτελούμενον.
muitos espelhos. A primeira imagem é a
sensação no comum; depois, a partir
dessa, diz [Platão], vem toda outra
forma [20] da alma, sempre uma a partir
da outra, e chega na generativa e na de
crescimento e, de modo geral, na
produtiva de outro e na que efetiva outro
distinto de si, a produtiva, essa se
voltando para o que foi produzido.
9. Ἔσται τοίνυν ἐκείνης ἡμῖν τῆς
ψυχῆς φύσις ἀπηλλαγμένη αἰτίας
κακῶν, ὅσα ἄνθρωπος ποιεῖ καὶ
πάσχει· περὶ γὰρ τὸ ζῷον ταῦτα, τὸ
κοινόν, καὶ κοινόν, ὡς εἴρηται.
Ἀλλ´ εἰ δόξα τῆς ψυχῆς καὶ διάνοια,
πῶς ἀναμάρτητος; [5] Ψευδὴς γὰρ
δόξα καὶ πολλὰ κατ´ αὐτὴν πράττεται
τῶν κακῶν. πράττεται μὲν τὰ κακὰ
ἡττωμένων ἡμῶν ὑπὸ τοῦ χείρονος -
πολλὰ γὰρ ἡμεῖς - ἐπιθυμίας
θυμοῦ εἰδώλου κακοῦ· δὲ τῶν
ψευδῶν λεγομένη διάνοια φαντασία
οὖσα οὐκ ἀνέμεινε τὴν τοῦ
9. A natureza dessa alma em nós será
inimputável pela causa dos males que o
homem produz e sofre. Pois esses
concernem ao vivente, ao comum, e ao
comum como foi dito.
Mas, se a opinião e a razão discursiva
são da alma, como ela será isenta de
erros? [5] Pois a opinião é enganadora e
é por causa dela que muitos males são
praticados; ou são praticados quando
somos vencidos pelo pior em nós pois
o nós é múltiplo –, pelos desejos, pela
ira ou por uma imagem do mal. Essa
razão discursiva sobre coisas falsas é
uma imaginação que não aguardou o
158
διανοητικοῦ κρίσιν, ἀλλ´ [10]
ἐπράξαμεν τοῖς χείροσι πεισθέντες,
ὥσπερ ἐπὶ τῆς αἰσθήσεως πρὶν τῷ
διανοητικῷ ἐπικρῖναι ψευδῆ ὁρᾶν
συμβαίνει τῇ κοινῇ αἰσθήσει.
δὲ νοῦς ἐφήψατο οὔ, ὥστε
ἀναμάρτητος. οὕτω δὲ λεκτέον, ὡς
ἡμεῖς ἐφηψάμεθα τοῦ ἐν τῷ νῷ
νοητοῦ οὔ. τοῦ ἐν ἡμῖν· [15]
δυνατὸν γὰρ καὶ ἔχειν καὶ μὴ
πρόχειρον ἔχειν. Διείλομεν δὴ τὰ
κοινὰ καὶ τὰ ἴδια τῷ τὰ μὲν σωματικὰ
καὶ οὐκ νευ σώματος εἶναι, ὅσα δὲ
οὐ δεῖται σώματος εἰς ἐνέργειαν,
ταῦτα ἴδια ψυχῆς εἶναι, καὶ τὴν
διάνοιαν ἐπίκρισιν ποιουμένην τῶν
ἀπὸ τῆς αἰσθήσεως τύπων εἴδη ἤδη
[20] θεωρεῖν καὶ θεωρεῖν οἷον
συναισθήσει, τήν γε κυρίως τῆς ψυχῆς
τῆς ἀληθοῦς διάνοιαν· νοήσεων γὰρ
ἐνέργεια διάνοια ἀληθὴς καὶ τῶν
juízo da potência discursiva; e [10]
agimos cedendo às partes piores, como
no caso da sensação, em que, antes de
julgar com a potência discursiva, ocorre
à sensação comum ver coisas falsas.
O Intelecto tocou ou não, de modo que é
isento de erro; ou é preciso dizer que
nós tocamos ou não o inteligível no
Intelecto; ou temos o inteligível em nós
[15]. Pois é possível tê-lo e não tê-lo
facilmente. Certamente distinguimos as
coisas comuns das próprias: as comuns
são as corpóreas e não existem sem o
corpo, enquanto as que não precisam do
corpo para sua atividade são próprias à
alma. A razão discursiva, que realiza o
juízo sobre as impressões provenientes
da sensação, contempla as Formas
[20] e as contempla como
copercepção
308
, ao menos a razão
discursiva da alma verdadeira. A
verdadeira razão discursiva é um ato de
intelecções e frequentemente estabelece
308
Synaísthesis: também pode ser traduzido por consciência. Plotino oferece-nos uma explicação sobre o ato de
contemplar da diánoia: ele ocorre na medida em que tem uma concomitância com a sensação.
159
ἔξω πολλάκις πρὸς τἄνδον ὁμοιότης
καὶ κοινωνία.
Ἀτρεμήσει οὖν οὐδὲν ἧττον ψυχὴ
πρὸς ἑαυτὴν καὶ ἐν ἑαυτῇ· αἱ δὲ
τροπαὶ καὶ [25] θόρυβος ἐν ἡμῖν
παρὰ τῶν συνηρτημένων καὶ τῶν τοῦ
κοινοῦ, τι δήποτέ ἐστι τοῦτο, ὡς
εἴρηται, παθημάτων.
a semelhança e a comunhão entre os
objetos do exterior e do interior.
A alma permanecerá estável junto a si e
em si mesma. Então, as alterações [25] e
a perturbação em nós vêm dos que estão
juntos e das afecções do comum
309
, o
que quer que seja isso, como foi dito.
10. Ἀλλ´ εἰ ἡμεῖς ψυχή, πάσχομεν δὲ
ταῦτα ἡμεῖς, ταῦτα ἂν εἴη πάσχουσα
ψυχὴ καὶ αὖ ποιήσει ποιοῦμεν.
καὶ τὸ κοινὸν ἔφαμεν ἡμῶν εἶναι καὶ
μάλιστα οὔπω κεχωρισμένων· ἐπεὶ
καὶ πάσχει τὸ σῶμα ἡμῶν [5] ἡμᾶς
φαμεν πάσχειν. Διττὸν οὖν τὸ ἡμεῖς,
συναριθμουμένου τοῦ θηρίου, τὸ
ὑπὲρ τοῦτο ἤδη· θηρίον δὲ ζῳωθὲν τὸ
σῶμα. δ´ ἀληθὴς ἄνθρωπος ἄλλος
καθαρὸς τούτων τὰς ἀρετὰς ἔχων
τὰς ἐν νοήσει αἳ δ ἐν αὐτῇ τῇ
χωριζομένῃ ψυχῇ ἵδρυνται,
10. Mas, se nós somos a alma, então,
sofremos essas afecções e, assim, a alma
seria a que sofre e a que faz o que
fazemos. Também dizíamos que o
comum é nosso e, principalmente,
quando ainda não estamos separados.
Nessas condições, o que o nosso corpo
sofre dizemos que nós sofremos. [5]
Logo, o nós é duplo: ou está incluído a
besta ou o que já está acima disso
310
.
Assim, a besta é o corpo que tem vida.
O homem verdadeiro é outro: purificado
dessas [afecções] e possui as virtudes da
intelecção, as quais certamente estão
309
Plotino corrobora que a mobilização vem das afecções do comum (koinón).
310
No capítulo 7, o “nós” foi tido como diferente do vivente e da besta (zóon e theríon).
160
χωριζομένῃ δὲ καὶ χωριστῇ [10] ἔτι
ἐνταῦθα οὔσῃ· ἐπεὶ καί, ὅταν αὕτη
παντάπασιν ἀποστῇ, καὶ ἀπ´ αὐτῆς
ἐλλαμφθεῖσα ἀπελήλυθε
συνεπομένη. Αἱ δ´ ἀρεταὶ αἱ μὴ
φρονήσει, ἔθεσι δὲ ἐγγινόμεναι καὶ
ἀσκήσεσι, τοῦ κοινοῦ· τούτου γὰρ αἱ
κακίαι, ἐπεὶ καὶ φθόνοι καὶ ζῆλοι καὶ
ἔλεοι. Φιλίαι δὲ τίνος; αἱ [15] μὲν
τούτου, αἱ δὲ τοῦ ἔνδον ἀνθρώπου.
estabelecidas na alma separada sendo
separada ainda aqui
311
. [10] Quando
essa se afasta totalmente, também a que
é iluminada por ela sai, acompanhando-
a. As virtudes que não derivam do
pensamento, mas do hábito e do
exercício, atribuímos ao comum; os
vícios o dele e, então, ciúmes, invejas
e compaixões também o são. E as
amizades, a que são atribuídas?
Algumas [15] a esse, outras, ao homem
interior
312
.
11. Παίδων δὲ ὄντων ἐνεργεῖ μὲν τὰ
ἐκ τοῦ συνθέτου, ὀλίγα δὲ ἐλλάμπει
ἐκ τῶν ἄνω εἰς αὐτό. Ὅταν δ´ ἀργῇ εἰς
ἡμᾶς, ἐνεργεῖ πρὸς τ ἄνω· εἰς ἡμᾶς
δὲ ἐνεργεῖ, ὅταν μέχρι τοῦ μέσου ἥκῃ.
Τί οὖν; Οὐχ ἡμεῖς καὶ πρὸ [5] τούτου;
Ἀλλ´ ἀντίληψιν δεῖ γενέσθαι· οὐ γάρ,
ὅσα ἔχομεν, τούτοις χρώμεθα ἀεί,
11. Enquanto somos crianças, são as
potências que derivam do composto que
agem; logo, pouco das [potências]
superiores ilumina para ele. Quando são
inativas em nós, agem em direção ao
alto; agem em nós quando chegam até a
[parte] intermediária. Como? Não somos
também [5] anteriores a isso? Mas é
preciso haver a apreensão
313
, pois não
311
Plotino enfatiza a diferença entre a besta, o corpo animado, e o homem o homem verdadeiro. Ele procura
esclarecer o nós, mas parece que indica, não tão evidentemente, uma resposta para a pergunta que iniciou o
capítulo 5 se o vivente poderia ser o corpo animado. Ademais, aponta que a alma está separada do corpo
mesmo unida a ele.
312
Cf. PLATÃO, República 589a. O homem interior é o homem verdadeiro, a alma racional. Cf. LAURENT,
L’homme et le monde chez Plotin, p. 84-85.
313
Antílepsis: Pode ser traduzido por consciência.
161
ἀλλ´ ὅταν τὸ μέσον τάξωμεν πρὸς
τὰ νω πρὸς τ ἐναντία, ὅσα ἀπὸ
δυνάμεως ἕξεως εἰς ἐνέργειαν
ἄγομεν.
Τὰ δὲ θηρία πῶς τὸ ζῷον ἔχει; εἰ
μὲν ψυχαὶ εἶεν ἐν αὐτοῖς ἀνθρώπειοι,
ὥσπερ λέγεται, [10] ἁμαρτοῦσαι, οὐ
τῶν θηρίων γίνεται τοῦτο, ὅσον
χωριστόν, λλὰ παρὸν οὐ πάρεστιν
αὐτοῖς, λλ´ συναίσθησις τὸ τῆς
ψυχῆς εἴδωλον μετὰ τοῦ σώματος
ἔχει· σῶμα δὴ τοιόνδε οἷον ποιωθὲν
ψυχῆς εἰδώλῳ· εἰ δὲ μ ἀνθρώπου
ψυχὴ εἰσέδυ, ἐλλάμψει ἀπὸ τῆς ὅλης
τὸ τοιοῦτον ζῷον [15] γενόμενόν
ἐστιν.
utilizamos sempre tudo que temos, mas
somente quando ordenamos o
intermediário ou para cima ou para
baixo, conduzimos da potência e do
estado ao ato.
E as bestas, como o vivente as tem?
Certamente, se nelas estiverem almas
humanas [10] que erram, diz-se
314
, o que
estiver separado não se torna das bestas,
mas, estando presente, não está presente
nelas; mas a copercepção tem a imagem
da alma que está junto ao corpo. O
corpo qualificado é como que feito pela
imagem da alma. Se a alma do homem
não entrou [na besta], o vivente desse
tipo [15] deriva da iluminação da alma
do todo.
12. λλ´ εἰ ἀναμάρτητος ψυχή, πῶς
αἱ δίκαι; Ἀλλὰ γὰρ οὗτος λόγος
ἀσυμφωνεῖ παντὶ λόγ, ὅς φησιν
αὐτὴν καὶ μαρτάνειν καὶ κατορθοῦν
καὶ διδόναι δίκας καὶ ἐν Ἅιδου καὶ
12. Mas, se a alma não erra, como
punições? Mas isso está em desacordo
com todo discurso que diz que ela erra e
é purificada, é punida no Hades e passa
de um corpo a outro. Decerto, é preciso
[5] assentir a algum discurso que se
314
Cf. PLATÃO, don 82a; Fedro 249b; Timeu 42c.
162
μετενσωματοῦσθαι. Προσθετέον μὲν
οὖν ὅτῳ [5] τις βούλεται λόγῳ· τάχα δ´
ἄν τις ἐξεύροι καὶ ὅπῃ μὴ μαχοῦνται.
μὲν γὰρ τὸ ἀναμάρτητον διδοὺς τῇ
ψυχῇ λόγος ἓν ἁπλοῦν πάντη ἐτίθετο
τὸ αὐτὸ ψυχὴν καὶ τὸ ψυχῇ εἶναι
λέγων, δ´ ἁμαρτεῖν διδοὺς
συμπλέκει μὲν καὶ προστίθησιν αὐτῇ
καὶ ἄλλο ψυχῆς εἶδος τὸ τὰ δεινὰ ἔχον
πάθη· [10] σύνθετος οὖν καὶ τὸ ἐκ
πάντων ψυχὴ αὐτὴ γίνεται καὶ
πάσχει δὴ κατὰ τὸ ὅλον καὶ
ἁμαρτάνει τὸ σύνθετον καὶ τοῦτό ἐστι
τὸ διδὸν δίκην αὐτῷ, οὐκ ἐκεῖνο. Ὅθεν
φησί· τεθεάμεθα γὰρ αὐτήν, ὥσπερ οἱ
τὸν θαλάττιον Γλαῦκον ὁρῶντες.
Δεῖ δὲ περικρούσαντας τὰ
προστεθέντα, [15] εἴπερ τις ἐθέλει τὴν
φύσιν, φησίν, αὐτῆς δεῖν, εἰς τὴν
φιλοσοφίαν αὐτῆς ἰδεῖν, ὧν
queira; talvez se encontre algo que não
está em desacordo. Pois, com efeito,
aquele que concede impecabilidade à
alma a concebe como uma unidade
absolutamente simples, dizendo que ela
e seu ser são o mesmo; o que lhe
concede o errar associa e adiciona a ela
outra forma de alma que tem afecções
terríveis; [10] assim, a própria alma
torna-se um composto que sofre em sua
totalidade, erra e é punido, mas não
aquela
315
. De onde [Platão] diz: “ela é
contemplada como os que vêem o
Glauco marinho”
316
.
É preciso separar as coisas que foram
acrescidas [15] se, todavia, se quer ver
sua natureza e olhar para sua filosofia,
para as coisas com as quais está em
contato e pelas quais, sendo congênita, é
o que é. Há nela outra vida e outras
atividades, sendo diferente a que é
punida. A direção e a separação não são
315
Mais uma vez, Plotino aponta o conjunto ou composto (synthetós) como agente das ões: algumas virtudes e
erros provêm dele. Plotino evoca alguns discursos que consideram a alma como a agente das ações e, por
conseguinte, como sendo modificada por elas. No entanto, os traz à cena para reafirmar a inalterabilidade da
alma.
316
Cf. PLATÃO, República 611d.
163
ἐφάπτεται καὶ τίσι συγγενὴς οὖσά
ἐστιν ἐστιν. Ἄλλη οὖν ζωὴ καὶ ἄλλαι
ἐνέργειαι καὶ τ κολαζόμενον ἕτερον·
δὲ ἀναχώρησις καὶ χωρισμὸς οὐ
μόνον τοῦδε τοῦ σώματος, ἀλλὰ καὶ
ἅπαντος τοῦ [20] προστεθέντος. Καὶ
γὰρ ἐν τ γενέσει προσθήκη· ὅλως
γένεσις τοῦ ἄλλου ψυχῆς εἴδους.
Τὸ δὲ πῶς γένεσις, εἴρηται, ὅτι
καταβαινούσης, ἄλλου του ἀπ´ αὐτῆς
γινομένου τοῦ καταβαίνοντος ν τῇ
νεύσει. Ἆρ´ οὖν ἀφίησι τὸ εἴδωλον;
Καὶ νεῦσις δὲ πῶς οὐχ ἁμαρτία;
Ἀλλ´ εἰ [25] νεῦσις ἔλλαμψις πρὸς τὸ
κάτω, οὐχ ἁμαρτία, ὥσπερ οὐδ´
σκιά, ἀλλ´ αἴτιον τ ἐλλαμπόμενον· εἰ
γὰρ μὴ εἴη, οὐκ ἔχει πῃ ἐλλάμψει.
Καταβαίνειν οὖν καὶ νεύειν λέγεται
τῷ συνεζηκέναι αὐτῇ τὸ ἐλλαμφθὲν
παρ´ αὐτῆς. Ἀφίησιν οὖν τὸ εἴδωλον,
εἰ μὴ ἐγγὺς τὸ ὑποδεξάμενον· ἀφίησι
[30] δὲ οὐ τῷ ποσχισθῆναι, ἀλλὰ τῷ
μηκέτι εἶναι· οὐκέτι δέ ἐστιν, ἐὰν ἐκε
do corpo, mas também de tudo [20]
que foi acrescido; pois a adição ocorre
na geração; de modo geral, a geração é
da outra forma da alma.
Foi dito como ocorre a geração, já que,
quando a alma desce, gera outra a partir
dela, a que desce no declínio. Então ela
transmite sua imagem? E como a
inclinação não é erro? Mas, se [25] a
inclinação é iluminação para o inferior e
não erro como também não o é a
sombra –, a causa será o iluminado;
pois, se não existisse, não teria o que
iluminar. Diz-se que ela desce e se
inclina porque o que é iluminado
convive com ela. Ela transmite sua
imagem se o que a recebeu não está
próximo; transmite [30] o por se
separar, mas por não existir mais; ela
não existe mais, se ela toda olhar para
lá.
Parece que o poeta [Homero] distingue
isso no caso de Héracles, dizendo que
sua imagem está no Hades, mas que ele
164
βλέπῃ ὅλη. Χωρίζειν δὲ ἔοικεν
ποιητὴς τοῦτο ἐπὶ τοῦ Ἡρακλέους τὸ
εἴδωλον αὐτοῦ διδοὺς ἐν Ἅιδου, αὐτὸν
δὲ ἐν θεοῖς εἶναι ὑπ´ ἀμφοτέρων τῶν
λόγων κατεχόμενος, καὶ ὅτι ἐν θεοῖς
καὶ ὅτι ἐν Ἅιδου· ἐμέρισε δ´ [35] οὖν.
Τάχα δ´ ἂν οὕτω πιθανὸς λόγος εἴη·
ὅτι δὴ πρακτικὴν ἀρετὴν ἔχων
Ἡρακλῆς καὶ ἀξιωθεὶς διὰ
καλοκἀγαθίαν θεὸς εἶναι, ὅτι
πρακτικός, ἀλλ´ οὐ θεωρητικὸς ἦν,
ἵνα ἂν ὅλος ἦν ἐκε, ἄνω τέ ἐστι καὶ
ἔτι ἐστί τι αὐτοῦ καὶ κάτω.
mesmo está entre os deuses, expondo os
dois discursos: que ele está entre os
deuses e no Hades. Logo, ele o
distinguiu [35]. Talvez o discurso seja
convincente assim: Héracles tem a
virtude prática e é digno de ser deus pela
excelência, pois era prático e não
contemplativo; em todo caso, estava
inteiro lá; está no alto e ainda algo
dele em baixo.
13. Τὸ δὲ ἐπισκεψάμενον περὶ τούτων
ἡμεῖς ψυχή; ἡμεῖς, λλὰ τῇ
ψυχῇ. Τὸ δὲ «τῇ ψυχῇ» πῶς; Ἆρα τῷ
ἔχειν ἐπεσκέψατο; ψυχή. Οὐκοῦν
κινήσεται; κίνησιν τὴν τοιαύτην
δοτέον αὐτ, μὴ σωμάτων, [5] ἀλλ´
ἔστιν αὐτῆς ζωή. Καὶ νόησις δὲ
ἡμῶν οὕτω, τι καὶ νοερὰ ψυχὴ καὶ
13. Quem examina essas questões, nós
ou a alma? Nós, mas pela alma. Como
pela alma? Então examinamos porque a
temos? Porque somos alma. Ela não será
movida? É preciso dar a ela certo
movimento, não aquele dos corpos, [5]
mas a sua vida. Do mesmo modo, a
intelecção também é nossa porque a
alma também é intelectiva
317
; a
317
Plotino sublinha a diferença do “nosso” e do “nós”. Cabe lembrar que ele também fez isso no tratado 49
(Enéada V 3). Aqui ele indica uma atividade da alma como sendo nossa.
165
ζωὴ κρείττων νόησις, καὶ ὅταν ψυχὴ
νοῇ, καὶ ὅταν νοῦς ἐνεργῇ εἰς ἡμᾶς·
μέρος γὰρ καὶ οὗτος ἡμῶν καὶ πρὸς
τοῦτον ἄνιμεν.
intelecção é a melhor vida quando a
alma intelige e quando o Intelecto age
em nós, pois ele também é parte de nós
e em direção a ele nos elevamos.
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