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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA
DAYANE CELESTINO DE ALMEIDA
Semiótica da poesia:
estudo de poemas de Paulo Henriques Britto
São Paulo
2009
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DAYANE CELESTINO DE ALMEIDA
Semiótica da poesia: estudo de poemas de Paulo Henriques Britto
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Semiótica e Linguística Geral do
Departamento de Linguística da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para obtenção do
título de Mestre em Linguística
Área de Concentração: Semiótica e Linguística
Geral
Orientador: Prof. Dr. Ivã Carlos Lopes
São Paulo
2009
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Nome: ALMEIDA, Dayane Celestino de
Título: Semiótica da poesia: estudo de poemas de Paulo Henriques Britto
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Semiótica e Linguística Geral do
Departamento de Linguística da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para obtenção do
título de Mestre em Linguística
Aprovado em: ____ / 12 / 2009
Banca Examinadora
Prof. Dr. Ivã Carlos Lopes
Instituição: Universidade de São Paulo (USP)
Julgamento:_________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. Antonio Vicente Seraphim Pietroforte
Instituição: Universidade de São Paulo (USP)
Julgamento:_________________________ Assinatura: ______________________
Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan
Instituição: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
Julgamento:_________________________ Assinatura: ______________________
Ao Ricardo, meu marido, com amor, admiração
e gratidão, pelo apoio e incentivo que me
fizeram trilhar o caminho que trilhei, e que me
mantiveram nele até o fim, mesmo nos
momentos mais difíceis.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Maria Aparecida e Sebastião, por simplesmente tudo que realizei
nesta vida.
A Deus, pelas oportunidades que me foram concedidas.
Ao meu orientador, o professor Ivã Carlos Lopes, pela paciência, confiança e apoio,
desde o início da minha pesquisa de Iniciação Científica.
Aos amigos Clarissa Mariano e Edison Gomes Júnior, pela amizade,
companheirismo, paciência e incentivo, desde a graduação.
Aos amigos do GES-USP, que me ouviram e me animaram em momentos de
incerteza.
Ao professor Waldir Beividas, por te me “adotado” durante a ausência do professor
Ivã.
À professora Norma Discini, pela leitura atenta do relatório de qualificação.
Ao professor Antonio Vicente Pietroforte, que despertou meu interesse pela
semiótica (ainda no início da graduação), pela leitura do relatório de qualificação e
incentivo.
À Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, pela oportunidade da realização da Pós-Graduação.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela
bolsa concedida para a realização deste trabalho.
Ao poeta Paulo Henriques Britto, pela prontidão e gentileza com que respondeu aos
meus e-mails.
A Poesia se estabelece na palavra; na
tensão organizada entre as palavras, é o
“canto”; nos mistérios da associação das ideias
e das colorações, entre lembranças, emoções e
desejos, provocados pelas palavras; e, enfim,
ousaria dizer, no poder oculto da palavra de
criar a coisa.
(Pierre Jean Jouve)
El poema no tiene objeto o referencia
exterior; la referencia de una palabra es otra
palabra. Así, el problema de la significación de
la poesia se esclarece apenas se repara en
que el sentido no está fuera sino dentro del
poema: no en lo que dicen las palabras, sino en
aquello que se dicen entre ellas.
(Octavio Paz)
RESUMO
ALMEIDA, Dayane Celestino de. Semiótica da poesia: estudo de poemas de
Paulo Henriques Britto. 2009. 125 f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009.
O trabalho que propomos é norteado por alguns objetivos: o primeiro, mais geral, é
reunir em um único trabalho várias questões importantes a respeito da semiótica
poética dispersas ao longo da literatura sobre o tema; o segundo, mais específico, é
analisar alguns poemas de Paulo Henriques Britto, poeta brasileiro contemporâneo,
sob a perspectiva da semiótica francesa, aumentando o quadro de estudos sobre a
poesia brasileira contemporânea, preenchendo a lacuna que no que diz respeito
a análises aprofundadas acerca dos poemas de um importante poeta da atualidade.
Apesar do crescimento considerável dos estudos semióticos, ainda são
relativamente poucas as análises de textos literários que se valem desse
instrumental teórico tão proveitoso. Assim, nossa pesquisa se justifica também ao
contribuir para a expansão dos estudos semióticos de poesia. Nossa investigação é
tributária de trabalhos de alguns linguistas, tais como Ferdinand de Saussure, em
seu estudo sobre os anagramas (STAROBINSKI, 1978), e Roman Jakobson (1962,
1990, 2004, s.d.), com seus estudos sobre análises estruturais e gramaticais de
poesia. Ademais, percorremos alguns estudos de semioticistas, principalmente
aqueles presentes em Ensaios de Semiótica Poética, coletânea organizada por
Greimas (1975). Importante foi, ainda, a leitura de textos do campo da semiótica
tensiva. Em todas as análises realizadas, foi dada bastante atenção ao plano da
expressão, procurando mostrar como se a sua construção e, sempre que
possível, qual é sua relação com o plano do conteúdo. O corpus selecionado para
nossa pesquisa é composto por cinco poemas de Paulo Henriques Britto. São eles:
“I”, da rie “Bonbonnière”, “V”, da rie “Bonbonnière”, “O prestidigitador”, da rie
“Três peças circenses” (Trovar Claro, 1997), “Véspera” (Macau, 2003) e “Para um
monumento ao antidepressivo” (Tarde, 2007).
Palavras-chave: Semiótica. Poesia. Literatura brasileira. Linguística. Greimas.
ABSTRACT
ALMEIDA, Dayane Celestino de. Semiotics of poetry: a study on poems by Paulo
Henriques Britto. 2009. 125 f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009.
The work that we propose is guided by two goals: the first one is to gather several
matters regarding poetic semiotics, scattered throughout the literature on the subject;
the second one is to analyze some poems by Paulo Henriques Britto, contemporary
Brazilian poet, from the French semiotics point of view, increasing the number of
studies on the contemporary Brazilian poetry, filling the existent gap concerning
detailed analysis of the work of an important poet of our times. Despite the
substantial growth of semiotic studies, the ones using such theoretical perspective
are not many. Thus, our research is also justified because it contributes to the
expansion of semiotic analysis of poetry. We rely on the work of some linguists such
as Ferdinand de Saussure, in his study on the anagrams (STAROBINSKI, 1978), and
Roman Jakobson (1962, 1990, 2004), with his studies on structural and grammatical
analysis of poetry. Furthermore, we have studied texts written by semioticians,
especially those found in Ensaios de Semiótica Poética, collection organized by
Greimas (1975). The reading of texts from the field of the so-called tensive semiotics
was also very important. In all cases, we tried to demonstrate how the expression
plan was built and, whenever possible, which was its interconnection with the content
plan. The corpus selected for our research consists of five poems by Paulo
Henriques Britto. They are: “I” and “V”, from the group “Bonbonnière”, “O
prestidigitador”, from the group “Três peças circenses” (Trovar Claro, 1997),
“Véspera” (Macau, 2003) e "Para um monumento ao antidepressivo” (Tarde, 2007).
Keywords: Semiotics. Poetry. Contemporary Brazilian literature. Linguistics.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Exemplo de paragrama ....................................................................... 23
Figura 2 – Função aliterativa ................................................................................ 24
Figura 3 – Anagrama ............................................................................................ 25
Figura 4 – Quadrado semiótico da junção ........................................................... 33
Figura 5 – Valores de absoluto e de universo ...................................................... 34
Figura 6 – Valoração da memória ........................................................................ 35
Figura 7 – Quadrado semiótico da veridicção ...................................................... 36
Figura 8 – Intensidade, extensidade e impacto .................................................... 39
Figura 9 – Versos “englobantes” e “englobados” ................................................. 42
Figura 10 – Regularidade e irregularidade rítmica ................................................. 46
Figura 11 – “Quiasmos fonológicos” ...................................................................... 48
Figura 12 – Percurso passional do remorso .......................................................... 54
Figura 13 – Configuração tensiva do remorso ....................................................... 57
Figura 14 – “mor”: núcleo endogramático .............................................................. 58
Figura 15 – Anagrama de “remorso” ...................................................................... 59
Figura 16 – Anagrama de “mortes” ........................................................................ 59
Figura 17 – Foremas e subdimensão do andamento ............................................. 61
Figura 18 – Relação entre ansiedade e espera ..................................................... 64
Figura 19 – Paciência versus Impaciência ............................................................. 65
Figura 20 – Anagramas para “amor” ...................................................................... 67
Figura 21 – Estrofes “englobantes” e “englobadas” ............................................... 67
Figura 22 – Semas aspectuais ............................................................................... 71
Figura 23 – Quadrado semiótico tensivo ................................................................ 72
Figura 24 – Oposições nos níveis do percurso gerativo do sentido ....................... 74
Figura 25 – Versos pares versus versos ímpares .................................................. 77
Figura 26 – Negativas ............................................................................................ 79
Figura 27 – Versos pares versus versos ímpares .................................................. 79
Figura 28 – “Quiasmo fonológico” .......................................................................... 81
Figura 29 – “Quiasmo fonológico”........................................................................... 81
Figura 30 – Acontecimento e exercício .................................................................. 91
Figura 31 –
Quadrado
semiótico: paradas e continuações; rotina e acontecimento
92
Figura 32 – Tensão, parada, espera, fechamento ................................................. 92
Figura 33 – Andamento e espacialidade ................................................................ 93
Figura 34 – Quadrado semiótico: a neblina e os sóis .......................................... 103
Figura 35 – Relações no espaço tensivo ............................................................. 104
Figura 36 – Apresentação versus predicação ...................................................... 105
Figura 37 – Paralelismo gramatical ...................................................................... 106
Figura 38 – “Quiasmo gramatical” ........................................................................ 106
Figura 39 – Versos pares versus versos ímpares ................................................ 107
Figura 40 – “Quiasmo fonológico” ........................................................................ 109
Figura 41 – Distribuição dos fonemas consonantais ............................................ 110
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1 SEMIÓTICA E POESIA ................................................................................. 18
2 SOBRE PAULO HENRIQUES BRITTO ........................................................ 28
3 REFLEXÃO SOBRE A MEMÓRIA: análise do poema “I”, da
série “Bonbonnière” .................................................................................... 32
4 AS PAIXÕES EM EVIDÊNCIA: análise do poema “V”,
da série “Bonbonnière” ............................................................................... 51
5 METAPOESIA: estudo do poema “O prestidigitador” .............................. 69
6 UM SUJEITO DA PERCEPÇÃO: análise do poema “Véspera” ................ 83
7 EXERCÍCIO DE CONDENSAÇÃO: estudo do poema
“Para um monumento ao antidepressivo” ................................................ 98
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 112
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 116
ANEXOS ................................................................................................................ 124
11
INTRODUÇÃO
Desde que, em meados do século XX, os estudos linguísticos ultrapassaram
a dimensão da frase e passaram a ocupar-se também da dimensão textual e
discursiva, uma série de teorias do texto e do discurso vem sendo desenvolvidas e
utilizadas para dar conta deste rumo de investigação no âmbito das ciências da
linguagem. A semiótica francesa (ou greimasiana) é uma dessas teorias e é em seu
quadro teórico que se desenvolve o nosso trabalho, cujo intuito é analisar alguns
poemas de Paulo Henriques Britto, poeta brasileiro contemporâneo.
Herdeira da linguística saussuriana, a semiótica de Greimas destaca-se por
ser concebida como uma teoria da significação, que busca desvendar os
mecanismos de construção (ou geração) do sentido nos diversos tipos de texto,
postulando que os discursos são redes de relações e que a partir destas o sentido é
gerado. Ou seja, o sentido está, não no signo a priori, mas nas relações que um
signo estabelece com o outro dentro de cada texto. Além de ser uma teoria da
significação, a semiótica é também uma metodologia de análise de textos,
entendendo como tais não apenas as manifestações verbais, mas também aquelas
em outras linguagens. Não se trata de uma teoria da gênese do texto, mas da
geração do sentido. Outros estudos linguísticos que estão em suas bases são
aqueles desenvolvidos por Hjelmslev e Jakobson. Encontram-se, ainda, estudos
antropológicos em suas fontes, principalmente os de Vladimir Propp (1983) e vi-
Strauss. Muito importante foi também a influência dos estudos da fenomenologia
voltados à percepção, realizados por Merleau-Ponty (1971).
Fazer uso, prioritariamente, de uma teoria de bases linguísticas para analisar
poemas pode parecer sem justificativa, uma vez que contamos com uma vasta
tradição de estudos literários de outra ordem. Porém, uma vez que o foco da análise
está em revelar a engenhosidade literária presente em cada poema (o que é o nosso
12
caso), o uso de uma teoria como a semiótica greimasiana se faz deveras pertinente.
Boa parte dos estudos literários tem como fio condutor uma investigação cujo ponto
de partida é o exame “externo” do texto, ou “de fora para dentro”. Em outras
palavras, a análise vale-se de dados sócio-históricos ou até mesmo biográficos,
frequentemente mais interessada em compreender os contextos do que os textos
em si. Traçando um percurso inverso e complementar a esse, a semiótica examina o
texto “de dentro para fora”, esforçando-se por construir, antes de mais nada, uma
escrupulosa descrição “interna” do texto, para, só então, ir em busca das suas
conexões intertextuais ou contextuais. Assim, a semiótica considera que o texto é
um todo de significação que “produz em si mesmo as condições contextuais de sua
leitura” (BERTRAND, 2003, p. 23). A teoria de Greimas constitui, então, um
proveitoso instrumental teórico para aqueles que desejam afastar-se de análises que
sejam primeiramente sociológicas, históricas, psicanalíticas, biográficas, etc., antes
de serem literárias. Por meio de uma análise semiolinguística acreditamos que
conseguimos chegar mais perto de revelar o que faz do poema um poema e não um
texto filosófico, social, biográfico, etc. Em nosso trabalho, pretendemos realizar “a
exploração dos procedimentos linguísticos que provocam o efeito de poeticidade”
(BALDAN, 1994, p. 249). Esse será nosso foco e, nesse sentido, concordamos com
Coquet (1975, p. 35) quando o autor afirma:
É indiscutivel que se pode discorrer de todas as formas sobre a
poesia, mas aqui considerar-se-á que [...] só é possivel construir uma
espécie de discurso de cada vez, caso se pretenda conservar a sua
coerência. Não vemos como seria possível, no estado atual de
nossos conhecimentos, unificar por meio de um único discurso as
palavras tão diversas do crítico literário, do antropólogo, do filósofo,
do gramático, do esteta, e de vários outros ainda [...].
Apesar do crescimento considerável dos estudos semióticos, ainda são
relativamente poucas as análises de textos literários (e, muito em particular, de
poesia) que se valem desse instrumental teórico. Uma das razões dessa
subutilização é a complexidade teórica. Conforme Tatit (2001, p. 11),
13
os recursos aplicativos da disciplina são, em geral, substituídos por
métodos menos rigorosos que atingem resultados imediatos, de
cunho interpretativo ou parafrástico, descuidando-se totalmente da
construção global de um modelo que subsista à descrição particular
de cada texto.
Em se tratando especificamente dos estudos sobre Semiótica e Poesia, o que
se é uma lacuna considerável, sendo que o livro organizado por Greimas (1975
[1972]), Ensaios de Semiótica Poética, é a única obra publicada inteiramente
dedicada ao assunto. Nela, procurou-se definir o objeto da semiótica poética e
levantar as questões relevantes para a análise dos textos poéticos. Os estudos de
Roman Jakobson sobre poesia também são fundamentais para o exame desses
textos, uma vez que propõem uma análise estrutural dos poemas e a descrição
detalhada de diversos níveis linguísticos e suas relações na construção do sentido.
Atualmente, encontramos estudos desenvolvidos principalmente por Claude
Zilberberg, no campo que chamamos de “semiótica tensiva”. Em um de seus
estudos, Zilberberg (2006b, p. 197) faz o seguinte comentário:
O estudo semiótico dos textos poéticos aparenta estar, algum
tempo ‘em pane’. Passada a época marcada pelas contribuições de
R. Jakobson [...], a publicação dos Ensaios de Semiótica Poética sob
a direção de A.J. Greimas, outros temas absorveram a atenção.
Teria sido um entusiasmo passageiro, fadado ao abandono? Ou
incertezas metodológicas oriundas do recurso simultâneo ao
apriorismo e ao método indutivo, que acarreta o ‘caso a caso’?
Deixemos essas interrogações como estão, e admitamos apenas que
os progressos da semiótica devem, de direito, trazer benefícios à
abordagem semiótica dos textos poéticos.
Dessa forma, nossa pesquisa se justifica ao contribuir para a expansão dos
estudos semióticos de poesia e se insere no campo da Semiótica Poética. Greimas
e Courtés (1983, p. 339) lembram que o termo poética designa, em sentido
corrente, não apenas o estudo da poesia, mas também os estudos sobre a prosa, ou
uma “teoria geral das obras literárias”. Os autores afirmam, ainda, que o fato poético
seria:
14
um domínio semiótico autônomo fundamentado no reconhecimento
de articulações paralelas e correlativas que envolvem os dois planos
(a expressão e o conteúdo) do discurso ao mesmo tempo (p. 340).
Tal afirmação nos faz pensar em outros tipos de textos, a pintura, por
exemplo, como poéticos. Aqui, no entanto, sempre que nos referirmos à poética ou à
semiótica poética, estaremos falando apenas do estudo de poesia, do texto literário
em verso.
Assim, o trabalho que propomos é norteado por alguns objetivos: o primeiro,
mais geral, é reunir, em um único texto, várias questões importantes a respeito da
semiótica poética, dispersas ao longo da literatura sobre o tema; o segundo, mais
específico, é analisar alguns poemas de Paulo Henriques Britto, sob a perspectiva
da semiótica francesa, aumentando o quadro de estudos sobre a poesia brasileira
contemporânea e preenchendo a lacuna que no que diz respeito a análises
aprofundadas dos poemas de um importante poeta da atualidade, cuja obra, apesar
de bastante comentada, carece de trabalhos críticos que se debrucem mais
atentamente sobre os textos, analisando-os pormenorizadamente, que mesmo
aqueles trabalhos de maior fôlego concentram seus esforços em explicar pontos
pertinentes a uma poética “geral” desse autor, fazendo apenas comentários sobre os
textos em si, ficando, pois, um espaço a completar no que diz respeito à análise
minuciosa, “verticalizada” dos textos.
Nossa investigação é tributária de trabalhos de alguns linguistas, tais como
Ferdinand de Saussure, em seu estudo sobre os anagramas
1
, e Roman Jakobson,
com seus estudos estruturais e gramaticais de poesia
2
. Ademais, percorremos
alguns estudos de semioticistas, principalmente aqueles presentes em Ensaios de
Semiótica Poética, a coletânea que, como dissemos, foi organizada por Greimas
(1975). Importante foi, ainda, a leitura de textos do campo da semiótica dita tensiva.
1
Cf. Starobinski (1978)
2
Cf. Jakobson (1962, 1969, 1990, 2004, s.d.)
15
A semiótica postula, na esteira de Hjelmslev (2003), que um texto é um signo
e que esse por sua vez é “um todo formado por uma expressão e um conteúdo”
(p. 53). Um conteúdo é, sempre, manifestado por uma expressão. Num primeiro
momento, os semioticistas preocuparam-se apenas com os estudos do plano do
conteúdo, concebendo-o, metodologicamente, sob a forma de um “percurso gerativo
do sentido” (GREIMAS; COURTÉS, 1983), talvez o maior legado da semiótica
greimasiana. De acordo com Tatit (2004, p. 206),
[...] a semiótica dissocia o plano do conteúdo do plano da expressão
e estuda-os separadamente até reunir condições conceituais para
relacionar categorias de ambos os planos e então compreender
melhor o mecanismo geral da semiose.
Com o passar dos anos, então, a semiótica passou a considerar também
questões relativas ao plano da expressão, complementando a análise do conteúdo.
Essa direção da semiótica é extremamente importante para os estudos de textos
literários, especialmente no que diz respeito à literatura em verso, na medida em que
o discurso da poesia mobiliza não apenas os recursos do significado, mas também
os do significante, em seu grau máximo.
Assim, no estudo de poemas, torna-se imprescindível uma análise rigorosa do
plano da expressão, pois
a compreensão de um texto com função estética exige que se
entenda não somente o conteúdo, mas também o significado dos
elementos da expressão (FIORIN, 2008, p. 57).
O trabalho minucioso com o plano da expressão é um dos fatores que confere
especificidade aos textos poéticos. Nas palavras de Fiorin (2008, p. 45)
a primeira característica do texto literário é a relevância do plano da
expressão, que, nele, serve não apenas para veicular conteúdos,
mas para recriá-los em sua organização.
16
Ao encontro de tais afirmações vai a definição de Jakobson (s.d., p. 41,
tradução nossa
3
) para poesia: “o enunciado no qual a ênfase é colocada na
expressão”.
Por isso, em todas as análises realizadas, foi dada bastante atenção a tal
plano, procurando mostrar como se dá a sua construção e, sempre que possível,
qual é sua relação com o plano do conteúdo, bem como quais as relações semi-
simbólicas existentes (há semi-simbolismo quando categorias do plano da
expressão se correlacionam a categorias do plano do conteúdo).
Uma outra motivação para empreender tal estudo foi a constatação de que
Paulo Henriques Britto tem sido visto pela crítica literária como um “artíficie do verso”
(PINTO, 2006, p. 235). De fato, há uma sofisticada organização do plano de
expressão em seus poemas, fato que é recorrentemente apontado por aqueles que
se propõem a comentar a sua obra. Na maioria das vezes, porém, esses
comentários se resumem a falar das rimas, do ritmo, do plano sonoro, etc. “por si
só”, isto é, no nível da substância da expressão. Ao contrário, nossa análise
pretende deslocar a observação para o nível da forma da expressão, verificando
como o poeta relaciona níveis da expressão entre si e também com o conteúdo.
O corpus selecionado para nossa pesquisa é composto por cinco poemas de
Paulo Henriques Britto. São eles:
“I”, da série “Bonbonnière”. Trovar Claro. 1997.
“V”, da série “Bonbonnière”. Trovar Claro. 1997.
“O prestidigitador”, da série “Três peças circenses”. Trovar Claro. 1997.
“Véspera”. Macau. 2003.
“Para um monumento ao antidepressivo”. Tarde. 2007.
Maiores considerações acerca do poeta e sua obra serão feitas mais adiante,
no capítulo 2.
3
Texto original: “énoncé dans lequel l’accent est mis sur l’expression”.
17
Quanto à metodologia, num primeiro momento, fizemos uma pesquisa
bibliográfica, com leitura e estudo dos principais textos (livros, revistas
especializadas, dissertações e teses) a respeito da teoria semiótica do texto,
principalmente daqueles voltados ao estudo de poesia, a fim de construir uma base
teórica para as análises que seriam efetuadas posteriormente. Dessa forma, a
metodologia de pesquisa foi a hipotético-dedutiva, ou seja, partindo dos princípios e
conceitos em direção aos objetos de estudo. Segundo Hjelmslev (2003, p. 33) “a
análise consiste efetivamente no registro de certas dependências ou certos
relacionamentos entre termos que, conforme o uso consagra” são as “partes do
texto”. Assim, foi a submissão dos poemas à análise o que marcou o segundo
momento do trabalho, no qual partimos dos textos em direção aos conceitos
teóricos, confrontando-os em busca de uma unidade, e configurando assim uma
metodologia empírico-indutiva. Vale ressaltar, porém, que em alguns momentos
estas metodologias foram intercaladas ou combinadas, sempre que isso se mostrou
adequado para a compreensão deste ou daquele texto específico.
Em termos de organização, esta dissertação está organizada em mais 7
capítulos, além da Conclusão e desta Introdução. Um breve panorama a respeito
dos estudos de Semiótica e Poesia com a exposição dos princípios que
direcionaram nossas análises é traçado no capítulo 1. O segundo capítulo é
dedicado à apresentação sucinta do poeta Paulo Henriques Britto, autor dos textos
de nosso corpus. Os capítulos de 3 a 7 constituem as análises realizadas, sendo um
capítulo voltado para cada poema. Cabe dizer que não dedicaremos um capítulo à
explicação aprofundada da teoria semiótica. Porém, os conceitos provenientes desta
serão convocados e explicados quando se fizer necessário, ao longo das próprias
análises dos poemas que compõem nosso corpus.
Com esse trabalho esperamos trazer, ainda que modestamente, algumas
luzes para a avaliação da obra poética de Paulo Henriques Britto e aos estudos
semióticos de poesia.
18
1 SEMIÓTICA E POESIA
O poema - essa hesitação prolongada entre o som e o sentido
(Paul Valéry)
Neste capítulo, pretendemos traçar um breve panorama dos estudos
relacionados ao campo da Semiótica Poética, a fim de, como dito na Introdução,
reunir em um único trabalho algumas referências significativas a respeito desse
tema, bem como apresentar os pressupostos teóricos específicos que nos serviram
de norte. Longe de fazer uma explanação minuciosa e uma exploração profunda do
textos percorridos (o que por si constituiria uma dissertação), procuramos,
simplesmente, apontar pontos essenciais que permearam as reflexões por nós
realizadas quando das análises que apresentaremos nos capítulos seguintes.
Conforme dissemos na Introdução, nos anos 70 foi publicada a única obra
inteiramente dedicada à Semiótica Poética, no âmbito da Escola de Paris: o livro
Ensaios de Semiótica Poética (1975), organizado por Greimas, que conta com
ensaios de pesquisadores importantes no campo da semiótica, tais como Jean-
Claude Coquet, Jacques Geninasca, Claude Zilberberg, Teun A. Van Dijk, Julia
Kristeva, François Rastier, entre outros. As correlações entre os diversos níveis
linguísticos perpassam todo o livro.
No primeiro capítulo dessa obra (p. 11), intitulado “Por uma teoria do discurso
poético”, Greimas procura definir o objeto da Semótica Poética. Para tanto, ele trata
da questão do fato poético, enfatizando que ele não é restrito aos textos verbais,
mas sim “indiferente à linguagem em que é produzido” (p. 12). Greimas diz, ainda,
que o fato poético é percebido intuitivamente e sua especificadade estaria calcada
em uma organização estrutural que seja peculiar ao discurso produzido (p. 12). Tal
organização seria dada pela correlação do plano da expressão e do plano do
conteúdo, correlação esta que seria o postulado da semiótica poética proposta pelo
semioticista e sua escola.
19
Apesar da definição de Greimas para fato poético, estendendo o conceito a
diversos tipos de textos, gostaríamos de ressaltar (como o fizemos na Introdução)
que, em nosso trabalho, quando nos referirmos ao “poético”, estaremos tratando
apenas de textos verbais literários, mais especificamente de poemas, ou seja, dos
textos literários produzidos em verso.
Greimas enxergava duas direções de pesquisa que a Semiótica Poética
deveria seguir. A primeira seria “fundamentar e justificar os processos de
reconhecimento das articulações” entre os dois níveis (da expressão e do conteúdo),
que o discurso poético projeta-se ao mesmo tempo nos dois planos (p. 12). A
segunda direção apontada por ele diz respeito ao estabelecimento de uma “tipologia
das correlações possíveis entre os planos da expressão e do conteúdo” (p. 13).
Em se tratando apenas do plano da expressão, Greimas ressalta, porém, que
faltam “modelos de articulação fêmicos estimulantes” (p. 21). Em outras palavras,
faltaria uma gramática capaz de dar conta da organização geral do “discurso
fonético”(p. 21) em poesia. Isso não impede, porém, que o analista busque
reconhecer, em cada texto, a organização de tal plano, com suas equivalências e
descontinuidades, bem como sua eventual relação com o conteúdo.
O texto Introdutório dos Ensaios não é, todavia, o primeiro texto de Greimas
sobre estudos da poesia no âmbito da semiótica. Essa problemática estava também
presente em Du Sens (1970), no capítulo “La linguistique structurale et la poétique”.
Em tal texto, Greimas afirma:
Tout discours poétique est la manifestation de deux combinatoires
parallèles restreintes ; […]. La co-occurrence des formes des deux
plans est l’un des éléments de la définition du langage poétique.
E, mesmo antes disso, em Semântica Estrutural (1973, p. 80 [1966]) –
discurso fundador da semiótica greimasiana Greimas tecia considerações
acerca do discurso da poesia.
20
É impossível falar de uma Semiótica Poética sem nos remeter aos estudos de
poesia realizados por Roman Jakobson. O célebre estudo “Linguística e Poética”
(1969) define a questão-objeto da Poética: “Que é que faz de uma mensagem verbal
uma obra de arte?” (p. 118). Ademais, propõe que a Poética seja parte integrante da
Linguística, conforme citação a seguir:
A Poética trata dos problemas da estrutura verbal [...]. Como a
Linguística é a ciência global da estrutura verbal, a Poética pode ser
encarada como parte integrante da Linguística (p. 119)
Por fim, é nesse texto que o linguista propõe a famosa “função poética” que,
dentre as outras funções da linguagem, é aquela cujo enfoque está “na mensagem
por ela própria” (p. 128). Na poesia, a função poética se sobrepõe às demais
funções da linguagem (p. 132). Tal função “projeta o princípio de equivalência do
eixo da seleção sobre o eixo de combinação” (p. 130). Em outras palavras, “um
poema combina, no eixo sintagmático, elementos que, na base de suas
equivalências naturais, constituem classes ou paradigmas de equivalência” (LEVIN,
1975 , p. 51).
Nas suas muitas análises de poemas, Jakobson (1962, 1990, 2004, s.d)
procurou evidenciar de que modo as relações estabelecidas entre os vários
elementos linguísticos contribuem para a significação geral do texto.
Nos Ensaios, Greimas reconhece que os estudos jakobsonianos com
destaque para a análise do poema “Les chats”, de Baudelaire, realizada em parceria
com Lévi-Strauss (1962) constituem a base para os trabalhos apresentados na
obra (GREIMAS, 1975, p. 15):
Assim, a análise dos Chats, de Baudelaire, proposta por R. Jakobson
e C. Lévi-Strauss, constitui, de per si, uma data a que se refere o
conjunto de estudos concretos desta coletânea, como representando
uma hipótese de trabalho e um modus operandi exemplar.
21
A ideia de Jakobson acerca da interação entre os diversos elementos
constituivos do poemas pode também ser percebida em outros trechos de seus
escritos, como por exemplo no que destacamos a seguir (JAKOBSON, 2004, p. 70):
Fenômenos como a interação entre as equilavências e discrepâncias
sintáticas, morfológicas e xicas, como os diferentes tipos de
contiguidades semânticas, similaridades, sinonímias e antonímias,
[...] todos esses fenômenos estão a exigir uma análise sistemática,
análise esta indispensável à compreensão e interpretação dos vários
mecanismos gramaticais da poesia.
Assim, Jakobson propõe que a análise dos poemas deve procurar levantar
tanto os paralelismos e as simetrias quanto os constrastes entre as classes
gramaticais
4
, entre os fonemas, os morfemas, as isotopias, a sintaxe, as rimas, os
versos, o ritmo, a distribuição das estrofes. Coquet (1975, p. 37) vai ao encontro de
Jakobson quando afirma que a análise de um poema deveria revelar os paralelismos
ou rupturas gramaticais, fônicos, prosódicos e/ou semânticos e as relações entre
eles. As análises jakobsonianas sempre procuraram descrever qual a funcionalidade
discursiva dos fatos gramaticais. Esse seria um resumo dos procedimentos que
devem ser investigados quando da leitura de um poema. Nos próximos capítulos
poderão ser verificados exemplos práticos de tal tipo de descrição, nos estudos
analíticos realizados por nós.
Além da imensa contribuição de Roman Jakobson, não podemos deixar de
mencionar os estudos de Ferdinand de Saussure sobre os anagramas
5
, certamente
precursores dos estudos semiolinguísticos de poesia.
Na linguagem corrente, um anagrama é simplesmente a “transposição de
letras de palavra ou frase para formar outra palavra ou frase diferente”
6
. Um exemplo
4
Cf. Jakobson (2004, p. 74): “Entre as categorias gramaticais utilizadas em paralelismos e contrastes
estão, com efeito, todas as classes de palavras, variáveis e invariáveis, as categorias de número,
gênero, caso, grau, tempo, aspecto, modo e voz, as classes de concretos e abstratos, de animados e
inanimados, os nomes próprios e comuns, as formas afirmativas e negativas, as formas verbais finitas
e infinitas, pronomes e artigos definidos e indefinidos e os diversos elementos e construções
sintáticos”.
5
Jakobson (s.d., p. 199, tradução nossa) afirma: “Nessa pesquisa, Saussure abre oportunidades sem
precedentes para o estudo linguístico da poesia”.
22
corriqueiro seria AMOR como anagrama de ROMA. Neste trabalho, porém, não é
essa a noção de anagrama que utilizamos, mas sim aquela proposta por Zilberberg
(2006b), na esteira dos estudos de Ferdinand de Saussure sobre poesia.
Foi no início do século XX, quando estudava os versos saturninos (uma forma
de versificação latina), que Saussure percebeu que algumas regras os regem no que
diz respeito a sua organização fonético-fonológica. Tais estudos só foram publicados
postumamente, nos anos 70, com comentários de Jean Starobinski (1971), na obra
Les mots sous les mots.
Duas constatações principais são feitas a partir destes estudos saussurianos:
a primeira tem a ver com o fenômeno da aliteração e a segunda, com a existência
de “hipogramas” ou “palavras-tema” nos textos poéticos. Com relação à primeira,
citamos Starobinski (1978, p. 7):
Ele (Saussure) percebe primeiro a lei de ‘acoplamento’, que pretende
que seja redobrado, no interior de cada verso, o emprego de toda
vogal e de toda consoante utilizadas uma primeira vez. A aliteração
deixa de ser um eco ocasional; repousa numa duplicação consciente
e calculada.
A redundância, a repetição dos fonemas dentro de um mesmo verso notadas
por Saussure foram também descritas posteriormente por Cohen (1982, p. 56): “O
verso (versus), é na essência um retorno, um discurso que repete total ou
parcialmente a mesma figura fônica”. A “figura fônica” de Cohen seria, então, o que
Zilberberg chamou de “núcleo endogramático” (2006b, p. 186) ou o hipograma
saussuriano.
As palavras-tema (ou hipogramas) são aquelas cujos sons servem de base
para o restante do verso ou do poema: “o poeta atualiza na composição do verso o
material fônico fornecido por uma palavra-tema” (STAROBINSKI, 1978, p. 9).
Saussure chega até mesmo, num segundo momento, a estender as suas reflexões à
poesia védica e chega a pensar se existiria um padrão indo-europeu de poesia.
6
Conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=anagrama&stype=k>. Acesso em 20/03/2008.
23
Os anagramas são, pois, a transposição dos sons ou módulos-fônicos
presentes na palavra-tema, para outras partes dentro do poema. Trata-se das
combinações de fonemas e não apenas de letras. Outro conceito tratado por
Saussurre foi o de “paragrama”, que nada mais é que “um anagrama escrito em
descontinuidade” (LOPES, 1997, p. 182). Tomemos como exemplo um poema de
Manuel Bandeira (1993, p. 205): “Nova Poética”
7
.
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
(...)
O poema deve ser como a nódoa no brim:
(...)
No primeiro verso, o narrador anuncia que lançaa teoria do poeta “sórdido”
e em seguida passa a descrever este tipo de poeta. No verso em destaque,
encontramos o adjetivo “sórdido” anagramatizado (ALMEIDA, p. 152, 2007) em
descontinuidade, ou seja, trata-se de um paragrama:
O poema deve ser como a nódoa no brim
poema deve ser como a nódoa no br im
s ó r d i d o
Então, o poema deve ser, assim como o poeta, sórdido.
Conforme dissemos anteriormente, o endograma de Zilberberg seria análogo
à palavra-tema de Saussure, mas para este último a unidade considerada era
apenas uma palavra, ao passo que o endograma pode ser de qualquer grandeza:
7
A transcrição completa do poema poderá ser vista no fim deste trabalho, em “ Anexos”.
Figura 1 – Exemplo de paragrama
24
uma palavra, um verso, um sintagma, uma sequência de fonemas, etc. O núcleo
endogramático existe, portanto, quando uma dessas grandezas se repete ao longo
de um poema, mostrando, segundo Zilberberg (2006b), que a função anagramática
(ou aliterativa) não é, nos termos de Hjelmslev, apenas intensa, local, pontual, mas
pode ser também global, ou seja, extensa.
Jakobson (2004, p. 82-83) também revisitou a teoria saussuriana ao dizer que
um poema deve apresentar simetrias fonéticas em torno de uma palavra que
apareceu anteriormente e, em outra passagem, afirma:
o texto está entretecido destas manifestações típicas do paralelismo,
como, por exemplo, a repetição de certas palavras ou de grupos
inteiros de palavras, ou a variação de certas palavras, ou seja, o
aproveitamento de diversos membros de um paradigma ou então de
diferentes formações de uma mesma raiz [...] (2004, p. 135).
Em qualquer um desses autores, portanto, fica clara a posição de que sempre
uma parte do poema (uma palavra, um bloco sonoro, um sintagma, etc.) que
convoca outras partes do poema, que é nelas ecoada, funcionando como uma
espécie de matriz geradora. A “função aliterativa” proposta por Zilberberg (2006b, p.
185), que reproduzimos na figura abaixo, ilustra o fenômeno:
função aliterativa
fonema de convocação fonema de evocação
Para Zilberberg (2006, p. 186), o endograma é a grandeza que contém os
fonemas de convocação. Por sua vez, a grandeza que contém os fonemas de
Figura 2 – Função aliterativa
25
evocação é designana por exograma. Temos, pois, que o anagrama é função do
endograma mais o exograma.
anagrama
endograma exograma
O parágrafo a seguir (ZILBERBERG, 2006b, p. 256) resume e explica de
maneira bastante clara a hipótese anagramática:
A hipótese anagramática corresponde, resumidamente, a ver no
lexema anagramatizado um endograma que concentra os fonemas
(ou, eventualmente, os traços) de convocação, em relação com um
exograma que faz propagar os fonemas do endograma, os quais se
tornam, por isso, fonemas (ou traços) de evocação: ou ainda, de
acordo com a terminologia saussuriana, contravogais e
contraconsoantes.
Principalmente no caso da ocorrência dos paragramas, podemos considerar,
de acordo com Lopes (1997, p. 184) que a teoria anagramática de Saussure contém
a ideia de que existem dois textos possíveis no poema paragramático: um primeiro
texto explícito, apreendido pela leitura linear; e um segundo texto, implícito,
paragramático, recuperável pela leitura tabular, que condensa alguma ideia
essencial ao poema ou ao trecho em questão.
A hipótese anagramática está pautada, obviamente, na elaboração fonética
do verso, importante constituinte dos poemas, mas não o único. E é que
retornamos às propostas de Jakobson, que considera, como vimos, os outros
níveis linguísticos como importantes para a geração do sentido: “Sem dúvida
alguma, o verso é fundamentalmente uma ‘figura de som’ recorrente.
Figura 3 – Anagrama
26
Fundamentalmente, sempre, mas nunca unicamente” (JAKOBSON, 1969, p. 144,
grifo nosso).
Sobre essa interação entre os diversos elementos linguísticos, cabe ainda
citar Coquet (1975, p. 37) quando ele diz que em um poema, num mesmo lugar de
uma sequência, “podem se encontrar e se somar categorias de nível linguístico
diferente, fônicas, gramaticais, semânticas, etc.”, o que seria análogo à ideia de
“acoplamentos” proposta por Levin (1975). Coquet ressalta, ainda, que o texto
poético seria formado tanto numa dimensão horizontal, como, principalmente, numa
direção vertical, “já que os níveis linguísticos empilham-se uns sobre os outros, e
são eco uns dos outros” (COQUET, 1975, p. 37).
A “soma” e o “empilhamento” de Coquet, remetem à ideia de uma
concentração. Também o fazem a figura de um “acoplamento”, proposta por Levin,
a noção de “palavra-tema” de Saussure, o “texto paragramático” citado por Lopes, o
“foco da mensangem em si mesma”, na função poética de Jakobson, enfim, todas as
explicações lançadas para tentar explicar o objeto poético carregam essa noção. Tal
concentração está sempre em jogo paralelamente a uma difusão. É nessa tensão
que se estabelece, pois, o discurso poético, uma vez que a concentração estaria
justamente na acumulação, no “empilhamento” de diversos elementos linguísticos,
de níveis diferentes num mesmo “pontodo poema. A difusão, por sua vez, seria a
quantidade, a multiplicação desses elementos. A mesma ideia pode ser vista quando
se trata de uma redundância, de uma repetição, como, por exemplo, na aliteração,
onde um mesmo elemento (fonema ou traço distintivo) se repete. No fato de ser um
mesmo elemento ou poucos elementos reside a concentração; na repetição (no
número de vezes que um elemento se repete) reside a difusão. Mesmo quando
um relacionamento entre partes diferentes do poema, isso se verifica, pois são
várias partes (tendência à difusão) se voltando para um fechamento, uma reiteração
dos mesmos elementos (concentração).
27
Seguindo a terminologia de Claude Zilberberg, no âmbito da chamada
“semiótica tensiva”
8
, concentrado e difuso
9
são extremos de um mesmo intervalo
na dimensão que se chama de “eixo da extensidade”
10
. O poema, porém, vai
“anular” essa oposição, no sentido de que esses dois regimes funcionam juntos na
constituição do texto. É nesse entrecruzamento que estariam os textos considerados
poéticos.
8
Fontanille; Zilberberg (2001, p. 19).
9
Zilberberg (2004).
10
O interesse em utilizar a abordagem tensiva para situar o texto poético reside no fato de que seus
princípios podem dar conta tanto das questões do plano do conteúdo, quanto do plano da expressão.
28
2 SOBRE PAULO HENRIQUES BRITTO
São as palavras que suportam o mundo
(Paulo Henriques Britto)
Poeta, prosador
11
, tradutor renomado e professor de literatura, o carioca
Paulo Henriques Britto faz parte da chamada “literatura brasileira contemporânea”.
Seu primeiro livro de poesia foi Liturgia da Matéria, publicado em 1982. Desde
então, escreveu mais quatro desses livros: Mínima Lírica (1989), Trovar Claro
(1997), Macau (2003) e Tarde (2007).
Em meio à diversidade
12
da produção poética da atualidade, Britto vem se
destacando como um poeta talentoso, “em torno do qual vem se estabelecendo um
ponderável interesse crítico” (LEITE, 2003, p. 53)
13
. Vencedor do Prêmio Portugal
Telecom de Literatura Brasileira, em 2004, com o livro Macau, e terceiro lugar na
categoria poesia no Prêmio Jabuti, em 2008, com o livro Tarde
14
, de fato Britto
conta com uma considerável fortuna crítica (uma crítica, em sua maioria, jornalística
ou de revistas especializadas) e vem despertando também interesse acadêmico,
sendo que seus livros constam até mesmo como obras de leitura obrigatória em
alguns vestibulares
15
.
Quando perguntado como se com relação a outros poetas brasileiros e
escolas literárias, Britto afirma não pertecer exclusivamente a nenhum lugar
11
Paraísos artificiais: contos (BRITTO, 2004).
12
O próprio autor reconhece essa diversidade: “Quanto ao momento atual brasileiro, eu diria que
temos um quadro de muita diversidade, em que convivem poetas com uma postura mais apolínea e
clássica, que concebem a poesia acima de tudo como artesanato verbal e intelectual, e poetas que
ainda insistem na articulação entre poesia e vida proposta pelos românticos e reafirmada por algumas
vanguardas” (2006, p. 74).
13
Seus poemas já foram até mesmo traduzidos para o inglês, por Idra Novey, na coletânea The clean
shirt of it (2007b).
14
Britto foi ainda premiado com o Prêmio Alceu Amoroso de Lima, em 2004, por Macau, e com o
Prêmio Alphonsus de Guimarães (concedido pela Fundação Biblioteca Nacional), por Trovar Claro,
em 1997 (SCHAEFFER; COSTA, 2006).
15
Por exemplo os vestibulares da Universidade Federal de São João del Rei
(http://oglobo.globo.com/educacao/arquivos/tabela_leituraobrigatoria.pdf) e da PUC-Poços de Caldas
(http://www.pucpcaldas.br/vestibular/2semestre2006/provas/lingua_portuguesa_e_literatura_brasileira
.pdf).
29
(NOVEY, 2007, p. 9). Seus poemas estão repletos de referências tanto pop, quanto
eruditas. É possível, ainda, reconhecer certas influências de poetas brasileiros como
Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, do português Fernando Pessoa, bem
como de poetas que traduziu, como Wallace Stevens e Elizabeth Bishop.
Um traço marcante da poesia de Britto sempre apontado por seus
comentadores é o uso de uma linguagem simples, coloquial, em contraste com a
utilização de formas (metro, rima, divisão entre estrofes) tradicionais. Por exemplo, a
orelha de seu livro Tarde traz a seguinte afirmação: “As formas canônicas de
metrificação são ferramentas diletas em seus livros”. Entretanto, tais formas o
reelaboradas, que, em muitos poemas, as formas fixas o são exatamente as
mesmas formas de outrora: o poeta se apropria das manifestações tradicionais, mas
as desconstrói, as reinventa (com ritmos ou rimas diferentes, com uma nova
separação das estrofes, etc.). O próprio Britto comenta a questão e diz usar formas
tradicionais ao lado de outras “inteiramente novas, inventadas por mim, com base no
repertório já existente” (BRITTO, 2007c).
Conforme dito na Introdução, são constantes os comentários acerca da
organização do plano da expressão em seus poemas e de sua poética “artesanal”.
Por exemplo, Carpinejar (s.d.) diz que Britto “tornou-se pouco a pouco um artesão
da língua, um alfaiate erudito [...]”. Fortuna (2007) assevera que ele é “um cultor das
formas fixas e versejador exímio” e Maffei (s.d.) fala do “rigoroso trabalho formal de
seus poemas”. O próprio poeta afirma (s.d.):
Gosto muito de explorar as formas fixas [...]. Gosto de experimentar
sobretudo com a rima, a assonância e a aliteração; em matéria de
métrica sou quase sempre fiel ao decassílabo. Mas gosto de fazer
experiências com o decassílabo, utilizar formas inusitadas - no meu
último livro trabalhei com um decassílabo meio maluco, dividido em
dois hemistíquios, com o acento recaindo na 2a, 5a, 7a e 10a sílaba.
E muitos anos que não consigo me livrar do soneto. Por isso às
vezes faço variações em torno da forma canônica, invento uns
sonetóides diferentes...
30
Tais comentários, contudo, são sempre gerais e nunca estão inseridos em
análises detalhadas de cada poema, além de estarem sempre relacionados apenas
à manifestação textual, desconsiderando suas relações com o conteúdo. Assim, não
relacionam os diversos níveis do plano da expressão entre si, nem estabelecem
relações entre expressão e conteúdo. É nesse sentido que dissemos, na
Introdução, que se trata de reflexões acerca da substância da expressão, enquanto
nossa reflexão pretende se debruçar sobre a forma da expressão e sua relação com
a forma do conteúdo.
Não importa apenas dizer que o poeta utiliza formas fixas ou elabora
minuciosamente o plano da expressão, mas sim que ele faz destas coisas
categorias e cria relações dessas categorias do plano da expressão (ou formais,
como se diz comumente) entre si mesmas e com categorias do plano do conteúdo.
No que diz respeito aos assuntos tratados por Britto, um tema recorrente é o
do fazer poético, presente em vários poemas de todos os livros, ao lado da questão
da relação entre linguagem e realidade. Corrente ainda é a discussão em torno do
“eu-lírico”, construído no e pelos textos. Um tom desiludido e um certo niilismo
também aparecem em vários poemas. É constante a presença de séries de poemas
interligados. Outra constante é a descrição de cenas cotidianas, triviais.
A trivialidade presente em muitos dos poemas, a linguagem coloquial e o
uso de “expressões corriqueiras” (PINTO, 2004, p. 52) , bem como a
desconstrução das formas tradicionais que acabamos de comentar fazem com que
os poemas de Britto pareçam, em sua maioria, simples. Essa simplicidade, contudo,
está apenas na aparência, que, como a análise revelará, os poemas são
construídos com uma sofisticada organização do plano da expressão e de suas
relações com o conteúdo. Assim, “A falsa simplicidade é um aspecto notável da
poesia de Paulo Henriques Britto (MARQUES-SAMYN, s.d.). O poeta consegue
esconder “o virtuosismo técnico sob uma aparência de espontaneísmo e facilidade”
(MOURA, 2007).
31
Assim, esperamos, com nosso estudo, revelar o que está por trás da
construção dos textos escolhidos, demonstrando que sob a aparente simplicidade
reside um enorme senso de organização, estruturando os dois planos da linguagem.
32
3 REFLEXÃO SOBRE A MEMÓRIA: análise do poema “I”, da série
“Bonbonnière”
O tempo é um rato roedor das coisas
(Machado de Assis. Esaú e Jacó)
O poema que ora estudamos, sem título, é identificado apenas pelo numeral
romano “I” e integra a série “Bonbonnière”, publicada em 1997, no livro Trovar Claro.
O texto pode ser dividido em duas partes: uma que tratada “seletividade da
memória”, ou seja, da ideia de que trazemos na memória aquilo de que
efetivamente queremos nos lembrar e a outra que apresenta as coisas que o sujeito
do enunciado rememora. Vejamos a transcrição do poema:
I
1.
A seletividade da memória —
2.
a cor exata da pele, a textura,
3.
o odor de cada côncavo e orifício,
4.
o lábio, a língua, o dente, o plexo
5.
solar, a sola do pé, o suor e a
6.
saliva, a coxa arisca, a dobra escura,
7.
o beijo salobro, o sabor difícil,
8.
a carne assombrada, o esperma perplexo
9.
— falsa perfeição, mero artifício
10.
do tempo, a desmaiar todos os tons
11.
do que destoaria do desejo
12.
como um menino a retirar sem pejo
13.
da caixa que lhe deram os bombons
14.
de que ele abre mão sem nenhum sacrifício.
Logo numa primeira leitura, percebemos, do ponto de vista narrativo, a
presença de um sujeito que não está em conjunção com o que descreve, uma vez
que tudo de que fala está apenas em sua memória. Seu objeto de valor seria,
portanto, as coisas que rememora por meio das imagens que vai descrevendo. O
sujeito esteve em conjunção com “a cor exatada da pele”, “a língua”, “o beijo”,
etc., no entanto, agora não está mais, ficando, pois, em um estado de não-
33
conjunção com seu objeto. O quadrado semiótico a seguir mostra essa relação entre
conjunção e disjunção:
Estando em não-conjunção com o objeto e sabendo que a conjunção “real”
com ele é impossível, a memória é o único modo que o sujeito tem de reparar a falta
e recuperar um certo tipo de conjunção com os momentos passados. A memória é a
concretização ou figurativização de um objeto modal: permite ao sujeito recuperar a
conjunção com o fato passado e acabado. O momento “real” o dura e a
memória restabelece essa duração. Podemos dizer que ela promove uma
presentificação do passado.
Observemos, porém, que não é com todo o passado que o sujeito quer entrar
em conjunção, mas apenas com o que é desejável. A memória seleciona apenas o
que vale a pena e exclui o resto.
A narrativa do sujeito que busca entrar em conjunção, por meio da memória,
apenas com aquilo que ele escolhe aparece no texto, então, por meio do tema da
seletividade da memória, que é reiterado novamente na última estrofe, pois assim
como um menino separa da caixa os bombons que não quer (“de que ele abre mão
sem nenhum sacrifício”), retiramos da memória os fatos que não queremos
presentes. Tudo que é dito a partir do lexema “memória” (verso 1) é dito para
exemplificar a sua seletividade, inclusive a comparação que perpassa o último
terceto. Existe, aí, um símile (MARTINS, 2003, p. 97), sendo que o termo comparado
conjunção disjunção
não-conjunção não-disjunção
Figura 4 – Quadrado semiótico da junção
34
é o sintagma “a seletividade da memória” e o comparante é dado pelo último terceto
(o menino que retira os bombons da caixa). O nexo gramatical é estabelecido pela
conjunção “como” (primeira palavra do segundo terceto). Com a comparação que é
feita, a seletividade do menino e também seu desprendimento são transferidos à
memória, reforçando a ideia colocada desde o primeiro verso.
Valendo-nos dos estudos de Fontanille e Zilberberg (2001) acerca dos
universos de valores, podemos considerar que a memória, de acordo com o poema,
opera por meio de triagens, no regime da exclusão
16
. Segundo esses autores, os
universos de valores são regidos no espaço tensivo pelas valências de intensidade e
extensidade. A intensidade diz respeito ao sensível, aos estados de alma e a
extensidade, ao inteligível, aos estados de coisas. Na ordem da extensidade, são
dois os grandes tipos de valores polares: os valores de universo (ou universal) e os
valores de absoluto. Os primeiros resultam na valorização da participação, da
expansão, do numeroso, regidos pelas operações de mistura e abertura; já os
últimos, dizem respeito a uma valorização do raro, do exclusivo, do puro, do pouco,
regidos pelas operações de triagem e fechamento. Podemos visualizar melhor tais
relações por meio do quadro abaixo:
Conforme Lopes (2005, p. 206) “A extensidade mostra-se na tensão contínua
entre o uno e o múltiplo”. Assim, quanto mais se caminha em direção ao “mais”, ao
numeroso, mais próximo se está dos valores de universo e, ao contrário, quanto
mais se vai em direção ao “menos”, ao uno, mais próximo se está dos valores de
16
Outro texto que trata da questão é o de Zilberberg, 2004.
Valores de absoluto Valores de universo
Regime
Exclusão Participação
Operadores
Triagem/Fechamento Mistura/Abertura
Benefícios
Concentração Expansão
Figura 5 – Valores de absoluto e de universo
35
absoluto. A memória, conforme o poema, seria, portanto, da ordem dos valores de
absoluto e das operações de seleção e triagem. A figura a seguir representa esta
relação
17
:
Observemos ainda o primeiro terceto, no qual menção à “falsa perfeição”,
apresentada pela memória:
falsa perfeição, mero artifício
do tempo, a desmaiar todos os tons
do que destoaria do desejo
As imagens rememoradas parecem perfeitas, mas não são. Dessa forma, a
memória é colocada como da ordem da mentira, de acordo com as modalidades
veridictórias (GREIMAS; COURTÉS, 1983) do ser e do parecer, conforme a figura a
seguir:
17
O termo “valoração” foi extraído de LOPES (2005).
Extensidade
VALORAÇÃO
Intensidade
+
+
Memória seletiva
Absoluto
Universal
Figura 6 – Valoração da memória
36
A memória apenas cria um simulacro e é uma tela que filtra somente as
lembranças que interessam ao sujeito e mesmo essas reminiscências não
correspondem exatamente ao que ocorreu, mas refletem uma idealização, com o
desejo dele. Logo, numa dimensão cognitiva, o sujeito sabe (conforme demonstra o
narrador ao declarar a “falsa perfeição”) que a memória é da ordem da mentira.
Numa dimensão afetiva, no entanto, opera um raciocínio concessivo, porque embora
saiba que a memória é de uma falsa perfeição, ainda assim é por meio dela que o
sujeito restabelece a conjunção com o passado.
Essa ideia da memória como uma construção que não corresponde
exatamente à realidade que se quer lembrar aparece em outros poemas da mesma
série “Bonbonnière” –, como, por exemplo, no poema “II”, cujas primeiras duas
estrofes transcrevemos a seguir (grifo nosso):
Aquela lua era falsa,
cenário de fancaria.
(Foi mentiroso o passado
Ou a memória mentiria?)
A noite era puro engodo,
Mero efeito Sherwin-Williams.
(Talvez o mundo e sua máquina
De suspeitas maravilhas,
(...)
Figura 7 – Quadrado semiótico da veridicção
segredo
ser parecer
não-ser não-parecer
mentira
verdade
falsidade
37
Ao discorrer sobre a memória na poesia brasileira contemporânea, Pedrosa
(2000, p. 113) afirma que, nessa poesia, tal figura não está relacionada,
normalmente, a uma evocação do passado como visto em poéticas de períodos
anteriores. A memória aparece, sim, como motivo de reflexão, mas “para ter o seu
valor questionado”. Tal questionamento aparece em Britto, como vimos, sob a
associação da memória com a mentira; a memória seria falsa, ideia que aparece,
ainda, em outros poemas do autor, como por exemplo no que transcrevemos a
seguir, também do livro Trovar Claro
18
.
(...)
pois a certeza, tal como a memória,
é por si só demonstração sobeja
da falsidade do que quer que seja –
Voltando ao poema “I”, cabe perguntar: do que se lembra o sujeito? Das
coisas que descreve no poema nas estrofes 1 e 2, separadas por travessões.
Aparece uma justaposição de imagens, uma sucessão de figuras que são partes do
corpo humano: “pele”, “lábio”, “língua”, “dente”, “plexo solar”, “sola do ”, “coxa”.
Aparecem também outras figuras ligadas ao corpo humano, que não são
propriamente partes, mas secreções: “saliva”, “suor”, “esperma”. O lexema
“esperma”, ao lado de “beijo” funciona como um desencadeador de isotopia e nos
faz reler as figuras anteriores não mais como apenas partes do corpo, mas como
imagens de uma cena constituída por um ato sexual. É o ato sexual que a memória
rememora seletivamente, com uma “falsa perfeição”, pois o tempo dispersa tudo de
que não se quer lembrar (“— falsa perfeição, mero artifício / do tempo, a desmaiar
todos os tons / do que destoaria do desejo”). A isotopia temática da memória como
seletiva e mentirosa é construída a partir da reiteração destes dois traços: 1) o que
não é perfeito: “falsa perfeição”, “mero artifício”, “tons”; 2) o que é selecionado e não
o todo: “seletividade”, “retirar”, “abrir mão”.
18
Poema “III”, da série “Sete estudos para a mão esquerda”. A transcrição completa desse poema
pode ser vista no fim deste trabalho, em “Anexos”.
38
O fato de serem relatadas apenas partes do corpo vai ao encontro da noção
da seletividade da memória: foram algumas partes e não o corpo todo ou a cena
toda que a memória trouxe de volta. Assim, podemos dizer que a memória filtra o
que vai entrar no campo de presença do sujeito, entendendo o campo de presença
como “o domínio espácio-temporal em que se exerce a percepção” (FONTANILLE;
ZILBERBERG, 2001, p. 125). A cena rememorada absorve o sujeito e os fragmentos
lembrados podem ser considerados objetos estéticos que causam no sujeito o efeito
de “emoção estética”, que ocorre a passivação do sujeito e a ativação do objeto
(ZILBERBERG, 2006b, p. 144, 145).
O modo de composição da cena rememorada imita o movimento da memória.
É como se as imagens das partes do corpo estivessem sendo recortadas e coladas,
numa certa velocidade. Elas o “jogadas” sucessivamente. Percebemos um
andamento acelerado tanto do ponto de vista do conteúdo (as imagens adentram o
campo de presença do sujeito e vão mudando rapidamente) quanto do ponto de
vista da expressão, visto que temos uma longa sequência de sintagmas separados
por vírgulas e sem verbos, criando um ritmo pido. Dessa forma, a tonicidade forte
e o andamento acelerado resultam, segundo Zilberberg (2006a, p. 171), num
impacto, corroborado no poema por “a carne assombrada” e “o esperma perplexo”
(grifo nosso). O autor afirma (2004) que “a dimensão da intensidade tem, como
intervalo de referência, [impactante vs fraco]” e “a dimensão da extensidade tem,
como intervalo de referência, [concentrado vs difuso]”. No poema, é nos poucos
elementos selecionados que o sujeito da memória concentra toda a sua afetividade.
Ou seja, ao passo que a intensidade opera na ordem dos valores de impacto, a
extensidade opera, como vimos, na ordem dos valores de absoluto, existindo,
pois, uma correlação inversa entre intensidade e extensidade. A figura a seguir nos
auxilia a visualizar esta questão:
39
Voltando à composição da cena lembrada, vale a pena ressaltar que ela é
construída metonimicamente e não temos acesso à cena toda, mas aos fragmentos,
a partir dos quais compomos o todo. Apesar de serem estas imagens fragmentárias,
vemos que as duas últimas expressões utilizadas o “a carne assombrada” e “o
esperma perplexo”, representando o ápice do ato sexual, evidenciando uma certa
sequência cronológica no surgimento das figuras.
Quanto à sintaxe discursiva, nesta parte em que a cena é recordada, o
enunciador não marca o ato de enunciar no interior do enunciado: não pronomes
pessoais, nem verbos em primeira pessoa, por exemplo. Logo, não uma
debreagem enunciativa de pessoa. Também o qualquer outra menção a um
ele como o sujeito possuidor das memórias. Não ocorre, portanto, uma
actorialização do sujeito da lembrança, mas ele está implícito. Não se fala apenas da
seletividade da memória, tal qual um conceito, uma ideia a expor, mas mostra-se o
que a memória traz: recordações que pertencem a alguém. O texto oscila entre uma
objetividade ao começar falando da memória (parece mesmo uma espécie de
“teoria” sobre a memória) e terminar com um exemplo em terceira pessoa, numa
debreagem enunciva e uma subjetividade ao explicitar as lembranças com um
grande nível de detalhes (lembra do corpo em várias partes e lembra da “cor exata
da pele”, da “textura”).
Valores de
ABSOLUTO
+
Extensidade
Valores de
IMPACTO
+
Intensidade
Figura 8 – Intensidade, extensidade e impacto
40
Quanto ao tempo, sabemos que, por se tratar da memória, estamos lidando
com um tempo e um espaço, respectivamente, do então e do algures. Todavia, a
ausência de verbos quando as imagens que remetem ao ato sexual são descritas
faz com que a cena se aproxime do momento mesmo da enunciação. Foi criada
uma concomitância entre o tempo da narração e o dos acontecimentos narrados,
dando a impressão de que eles acontecem no momento em que são descritos.
Assim, além de ser a memória, como vimos, a única solução do sujeito para
recuperar a conjunção com o ato sexual, com esse procedimento consegue-se o
efeito de sentido de proximidade do momento atual com o passado. A ausência de
verbos reforça, ainda, uma não ação do sujeito que apenas lembra o que passou,
sendo ele apenas um sujeito de estado e não do fazer.
Outro recurso que aproxima bastante o fato narrado do momento da narração
e reforça a subjetividade do poema é a sinestesia. Quatro dos cinco sentidos o
evocados:
O tato: “pele”, “textura”, “suor” (sente o suor escorrer), “carne
assombrada”;
O olfato: “odor”; “suor” (cheiro do suor);
O paladar: “beijo salobro”, “sabor difícil”;
A visão: “cor exata”, “dobra escura”.
O exemplo de que falamos última estrofe do menino que escolhe os
bombons que quer comer constitui um procedimento argumentativo com vistas a
convencer o enunciatário de que a memória é seletiva.
Passamos o foco, neste momento, à organização do plano da expressão. O
que primeiro salta aos olhos é o poema ser um soneto. Esta forma fixa de
composição é bastante utilizada por Paulo Henriques Britto ao longo de sua obra. É,
ainda, muito comum nos poemas do autor uma cuidadosa estruturação do plano da
expressão, que procuraremos examinar agora. Pinto (2006, p. 235) afirma: “Paulo
Henriques Britto é um artífice do verso e um pesquisador das formas fixas o que
41
faz com que seus poemas muitas vezes pareçam exercícios de estilo de um virtuose
da palavra”. Destacamos também a composição das rimas, compostas num
esquema ABCD / ABCD nos quartetos e CEF / FEC, nos tercetos. Note-se que a
rima “C” perpassa todo o poema, “amarrando” o texto e contribuindo para conferir-
lhe unidade.
Quanto à disposição geral, é possível perceber algumas simetrias. Notamos
que o poema é constituído de 14 versos, com exatamente 7 deles dizem respeito à
isotopia figurativa do ato sexual as coisas de que a memória se lembra e os
outros 7 dizem respeito a uma “teoria” sobre a memória: o primeiro terceto funciona
como um aposto da “seletividade da memória”, predicando-a, atribuindo-lhe uma
avaliação, e o segundo terceto apresenta uma comparação para exemplificar o que
foi antes proposto. Verificamos, ainda, que o segundo terceto é aquele no qual
temos o elemento que liga esse soneto ao título geral da série “Bonbonnière”, que é
a “caixa de bombons”. Justamente os versos correspondentes às recordações são
aqueles que estão entre os travessões, separados em um bloco independente do
restante do poema. Poderíamos, por isso, pensar numa divisão do poema entre os
versos “englobantes” e os “englobados”. Muitas são as oposições que podemos
estabelecer tanto no nível do conteúdo quanto no da expressão entre estes dois
conjuntos de versos, as quais tentamos resumir no quadro a seguir:
42
Todas estas oposições permitem perceber uma estratégia da construção do
poema, interligando os planos da expressão e do conteúdo. Elas também garantem
a coesão das partes do poema. Nas palavras de Tatit e Lopes, “uma solidez
estrutural, um adensamento” que garante o efeito de sentido de coesão do conjunto
(2008, p. 46).
A categoria topológica “englobantes” versus “englobados” faz parte do plano
da expressão e significa na medida em que é homologada a categorias do plano do
conteúdo. Estas relações ficam muitas vezes esquecidas nas análises dos poemas,
como se fosse mera divisão, totalmente aleatória, sem relação com outros pontos do
conteúdo ou da expressão. Contudo, de acordo com Geninasca (1975, p. 64) as
homologias posicionais
têm estatuto semiótico quando fazem reportar a homologias do plano
do conteúdo, quando refletem diagramaticamente as relações das
unidades isotópicas.
Versos "Englobantes" Versos "Englobados"
fora dos travessões dentro dos travessões
"teoria" sobre a memória lembranças; ato sexual
isotopia predominantemente temática isotopia figurativa
da ordem do geral da ordem do particular, específico
maior objetividade maior subjetividade
menor quantidade de estruturas paralelas maior quantidade de estruturas paralelas
predominância de vogais dia-altas predominância de vogais baixas
predominância de vogais anteriores predominância de vogais posteriores
mais equilíbrio entre as classes gramaticais predominância de substantivos
apenas ts adjetivos muitos adjetivos
poucos artigos e inclui um indefinido muitos artigos e apenas definidos
quantidade significativa de preposições poucas preposições
presença de verbos auncia de verbos
desaceleração aceleração
Figura 9Versos “englobantes” e “englobados”
43
Como vimos, é exatamente isso que acontece no texto em questão.
A utilização dos artigos definidos nos versos englobados ressalta a
especificidade da cena lembrada. Não se trata de qualquer beijo, de qualquer língua,
mas do beijo, da língua específicos. Tal especificidade se dá, também, pelos
adjetivos presentes significativamente em maior quantidade quando comparamos
essa parte com a parte dos versos “englobantes”. Esses recursos reiteram a
diferenciação entre as duas partes, sendo a parte englobante aquela que propõe
uma opinião sobre a memória, de ordem mais geral, e a englobada a que contém
uma particularização, um exemplo do que se propõe.
Quanto à métrica, há regularidades no poema “I”, porque os versos são
decassílabos, em sua maioria. As exceções ocorrem apenas nos versos 8 e 14
(respectivamente o verso final dos quartetos e final dos tercetos). É interessante
perceber que o verso 8 é aquele que fala sobre “assombramento” e “perplexidade”, o
que é corroborado pelo plano da expressão, visto que, conforme acabamos de
mencionar, em termos de métrica, este verso destoa dos demais, criando certa
perplexidade em quem o lê. A expressão “figurativiza” o que se diz no conteúdo.
Ainda quanto a esse verso, gostaríamos de destacar que ele é construído com duas
metades simétricas em termos sintáticos e semânticos. Cada hemistíquio é
construído por artigo + substantivo + adjetivo, sendo o substantivo sempre uma
metonímia (“carne” e “esperma”) e os adjetivos “assombrada” e “perplexo”, neste
texto, sinônimos. Ou seja, elementos semanticamente equivalentes são colocados
em posições equivalentes. Levin (1975, p. 52) afirma que, em poesia, é normal
ocorrer “a colocação de elementos linguísticos naturalmente equivalentes em
posições equivalentes”.
A circunstância acima constitui, assim, um bom exemplo do que Levin (1975)
chamou de “acoplamento”, pois correspondências entre partes do poema num
determinado nível e estas correspondências se relacionam a outro par de
equivalências, num outro nível. Na verdade, os acoplamentos ocorrem o tempo todo
44
no poema (inclusive no que explicamos acima e em coisas que ainda vamos
descrever), uma vez que eles o nada mais que cada uma das relações que os
diversos níveis do poema estabelecem entre si com a finalidade de criar um efeito
de unidade do poema. Quanto maior o número de acoplamentos, maior esse efeito.
Veremos que esse recurso será utilizado largamente por Paulo Henriques Britto
também nos demais poemas de nosso corpus.
Dito assim, pode parecer que os acoplamentos seriam apenas uma outra
denominação para o conceito, tão largamente empregado em semiótica, de semi-
simbolismo (quando categorias do plano do conteúdo são homólogas a categorias
do plano da expressão). Entretanto, além das relações semi-simbólicas que os
acoplamentos produzem (relacionando uma categoria da expressão a uma categoria
do conteúdo) eles também relacionam categorias de um determinado plano entre si
(embora Levin não se utilize dos termos “plano da expressão” e “plano do conteúdo”,
mas de “forma” para o primeiro e de “significadopara o segundo), sem que essa
associação seja necessariamente relacionada a uma ou mais categorias do outro
plano.
Ritmicamente, o poema “I” é organizado com a maioria dos versos no modelo
heróico, ou seja, decassílabos com acentos nas sílabas de número 2, 6 e 10. Em
versos com outro esquema rítmico também ocorrem regularidades. No verso 4, por
exemplo, ocorre uma simetria, visto que 4 sintagmas separados por vírgulas,
sendo que cada um destes sintagmas é sempre formado por artigo + substantivo. A
cada vírgula, uma cesura e o acento sempre cai na segunda sílaba de cada
sintagma, ou seja, num esquema regular, no qual uma sílaba forte sempre após
duas sílabas fracas. Vejamos:
O
bio, A
LÍN
gua, o
DEN
te, o
PLE
xo
Os acentos recaem nas sílabas 2, 5, 8 e 11 e o verso parece ser formado pela
solda de dois pentassílabos. Conforme Candido (2004, p. 84), este esquema rítmico
45
era muito utilizado pelos românticos e provinha de um tipo italiano de verso.
Semelhante estruturação ocorre nos versos de número 7 e 8, porque eles também
parecem ser formados pela junção de duas redondilhas:
O bei jo sa
LO
bro, o sa bor di
cil
A car ne as som
BRA
da, o es per ma per
PLE
xo
Nos dois versos acima, encontramos quatro sintagmas, cada um formado
pela sequência artigo + substantivo + adjetivo, com acento na quinta sílaba poética e
com todos os adjetivos paroxítonos.
Voltemos a nossa atenção para o verso de número 9. Apesar de possuir
também 10 sílabas, a sua acentuação é bem diferente daquela que predomina no
poema, que o acento recai sobre as sílabas de número. 1, 5, 6 e 10. Exatamente
onde está a vírgula, ocorre uma cesura, dividindo o verso em duas partes, como se
fossem dois pentassílabos. Esta acentuação singular permite notar uma forte
correlação entre expressão e conteúdo neste verso, na medida em que o verso é
imperfeito se considerarmos o todo do poema, embora pareça perfeito por ter a
mesma quantidade de sílabas, e isso ocorre justamente no verso que diz (grifo
nosso): “falsa perfeição, mero artifício”. O ritmo irregular (plano da expressão) é
homólogo à imperfeição (plano do conteúdo). Mesmo assim, há simetria interna no
verso, uma vez que cada uma das partes é sempre formada por adjetivo +
substantivo, e o acento tônico recai sempre na primeira sílaba de cada adjetivo.
Outro verso que chama atenção é o de número 12, pois trata-se de um sáfico
(acento nas sílabas 4, 8 e 10).
Percebemos, então, que há uma tensão entre regularidade e irregularidade do
ritmo no poema. versos isolados quanto ao seu padrão rítmico e outros que
repetem um determinado padrão. momentos específicos no poema em que se
percebe uma redundância da organização rítmica, interna ao próprio verso. A
semiótica francesa postula que quando identificamos um ritmo, criamos uma
46
expectativa a respeito do que virá depois, em outros termos, esperamos o que virá.
Postula, ainda, que quando um ritmo bem marcado, quando um padrão rítmico é
estabelecido, uma previsibilidade
19
e a espera se num estado de
relaxamento
20
. Quando o padrão é inexistente ou rompido, a tensão da espera é
aumentada. Logo, a alternância de momentos no poema com regularidade rítmica
(que podemos ver como uma continuidade) e outros irregulares
21
(descontinuidade)
cria uma oscilação entre relaxamento e tensão. Estas relações podem ser
visualizadas no quadrado semiótico a seguir:
Constatamos, também, um arranjo bastante sofisticado do plano fonético-
fonológico, além do que mencionamos no quadro-resumo exposto acima.
Descreveremos a seguir as ocorrências mais interessantes com relação a tal
aspecto. Observando as duas primeiras estrofes, observamos que é recorrente a
aparição de sequência de “s + vogal + l":
v. 1 seletividade
v. 5 solar
v. 5 sola
19
Encontramos essa mesma formulação nos estudos do Grupo µ (1980, p. 131, grifo nosso): “o ritmo
enquanto forma temporal [...] pertence positivamente à ordem, isto é, à previsibilidade”.
20
Segundo o Grupo µ, ”[...] a alternância regular entre expectativas e satisfações produz um efeito
euforizante” (1980, p. 134, grifo nosso).
21
“as desigualdades rompem os mecanismos de expectativa e de previsibilidade do discurso”
(TATIT, 1997, p. 22)
Regularidade
rítmica
relaxamento
retenção
distensão
contenção
Irregularidade
rítmica
Figura 10 – Regularidade e irregularidade rítmica
47
v. 6 saliva
v. 7 salobro
Essa repetição de uma sequência ao longo do poema constitui o que
Zilberberg chamou de “núcleo endogramático” (2006b, p. 186). O endograma seria,
para Zilberberg, mais ou menos o que foi a “palavra-chave” para Saussure, quando
o último trabalhou com a noção de anagramas (noções já explicadas no capítulo 1).
Voltando à estrofe 1, lembremo-nos do paralelismo formado pelos sintagmas
“o lábio”, “a língua”, “o dente”, o que compõe uma série dentro de um único verso.
Tal série é reforçada pela acentuação (como mencionamos) e também pela rima
interna provocada pela proximidade de “lábio” e de “língua”: dois vocábulos iniciados
por /l/ e terminados em um ditongo crescente. Ainda nesta estrofe, um
paralelismo entre as vogais de uma sequência de sílabas nos versos centrais (2 e 3)
da estrofe:
Sílabas 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Verso 2 A
co re xa ta
da pe le, a tex tu ra
Verso 3 oo
dor de ca da
côn ca vo e o ri fí cio
Na segunda estrofe, chamam a atenção os “quiasmos fonológicos” formados
entre as vogais presentes em sílabas adjacentes nos versos 2 e 3 e 3 e 4:
48
co xa
sa lo bro
sa lo bro
a ssom bra da
Encontramos, ainda, uma relação entre a primeira e a segunda estrofe, no
que diz respeito à repetição de uma determinada sequência dentro da sílaba 7,
sempre nos versos 2 e 3 de cada uma dessas duas estrofes:
Observe-se também a aliteração de /k/, alternando-se com a aliteração de
fricativas no verso 3, conforme destacamos a seguir: saliva, a coxa arisca, a dobra
escura. Além da aliteração do /k/ mencionada, podemos notar que a segunda e a
terceira vez que esta consoante aparece, ela está exatamente na terceira sílaba
depois do /k/ anterior.
Não podemos deixar de notar a aliteração do /s/ e outras fricativas na
segunda estrofe: solar, a sola do pé, o suor e a / saliva, a coxa arisca, a dobra
escura, / o beijo salobro, o sabor difícil, / a carne assombrada, o esperma
Sílabas
1 2 3 4 5 6
7
8 9 10
estrofe 1
verso 2
A co re xa ta da
/pé/
le, a tex tu ra
verso 3
Oo dor de ca da côn
/ka/
vo eo ri fí cio
estrofe 2
verso 2
so lar, a so la do
/pé/
o su or e a
verso 3
sa
li va, a co xa a ris
/ka/
do bra es cu ra
Figura 11 – “Quiasmos fonológicos”
49
perplexo”. Interessante notar que tal aliteração ocorre justamente em uma
sequência onde os três últimos versos têm muito em comum, pois são formados
(como já mencionamos) por 6 sintagmas, cada um formando uma metade do verso e
sempre formados por artigo + substantivo + adjetivo. Ainda quanto a esses 6
sintagmas, ressaltamos que 3 deles são femininos e três o masculinos. Quatro
dos adjetivos possuem o fonema /r/: “arisca”, “escura”, “salobro”, “assombrada”. Por
fim, todos esses quatro adjetivos são paroxítonos.
A aliteração das fricativas que mostramos há pouco cria uma oposição entre a
segunda estrofe e a primeira, na medida em que na primeira ocorre uma
predominância de consoantes oclusivas, conforme destacamos a seguir:
A seletividade da memória —
a cor exata da pele, a textura,
o odor de cada côncavo e orifício,
o lábio, a língua, o dente, o plexo
Estas recorrências sonoras podem ser chamadas de “isotopias de
expressão”, tal como propõem Rastier em seu estudo intitulado “Sistemática das
isotopias” (1975) e o Grupo µ no livro Retórica da poesia (1980) tomando o
conceito de isotopia numa acepção ampla, como recorrência de um traço, quer do
significado, quer do significante.
Assim como ocorreu nos dois quartetos uma espécie de rima interna formada
pela sequência “s + vogal + l", nos tercetos observamos a rima interna dada pela
repetição de /per/ em “esperma”, perplexo” (ainda as últimas palavras da estrofe
anterior) e perfeição”; e /des/ em desmaiar”, destoaria” e desejo”. Encontramos,
ainda, a sequência /arti/, em artifício” e em outra ordem, /tira/, “de retirar”, ambas
no verso 1 de cada estrofe.
Quanto a assonâncias, merecem destaque: o odor de cada côncavo e
orifício”, onde vemos a repetição da vogal /o/ (oral ou nasal), que ajuda a reiterar o
50
sentido de “côncavo” e “orifício”, os quais possuem forma arredondada, assim como
o /o/ que tem como um de seus traços distintivos o arredondamento (dos lábios); e
“do tempo, a desmaiar todos os tons / do que destoaria do desejo”, também com
a reiteração de /o/.
Note-se que as ocorrências que acabamos de descrever refletem uma
rigorosa estruturação dos elementos pertencentes ao plano da expressão, sem que
haja necessariamente uma relação entre expressão e conteúdo. Contudo, elas não
devem ser deixadas de lado, visto que são as primeiras responsáveis pelo efeito
estético do poema.
Com este trabalho procuramos mostrar como uma observação atenta dos
planos da expressão e do conteúdo – destacando, quando possível, suas relações
produz uma análise minuciosa do texto, levando-nos a enxergar vários
procedimentos de construção do poema. As correlações encontradas entre os vários
planos do poema reforçam os laços entre os diferentes níveis de análise, ampliando
os efeitos de sentido.
51
4 AS PAIXÕES EM EVIDÊNCIA: análise do poema “V”, da série
“Bonbonnière”
Até que ponto a recordação está próxima do remorso!
(Victor Hugo)
Desde a publicação dos textos pioneiros sobre as paixões, muitos estudos
sobre paixões específicas por exemplo, a cólera, o ciúme, o medo, a vergonha, o
ressentimento, entre outras têm sido feitos. Assim, procurando dar continuidade a
tais investigações, um dos objetivos deste capítulo é apresentar um breve estudo
semiótico da paixão do remorso, no que diz respeito aos seus aspectos temporais,
juntivos, tensivos, modais e aspectuais. Um segundo objetivo é verificar a ocorrência
do remorso em um poema de Paulo Henriques Britto encabeçado apenas pela
identificação numérica “V”, integrante da série “Bonbonnière” (Trovar Claro, 1997).
Por fim, mostramos como se constituem as relações entre outros estados afetivos no
poema - a espera, a ansiedade e a paciência, procurando destacar, ainda, que
recursos do plano da expressão ajudam a ressaltar estes estados passionais do
sujeito.
Vejamos a transcrição do poema:
V
1.
Remorso manso, sem dentes,
2.
do já vivido e apagado.
3.
Aquele instante, aquele quarto
4.
de hora, aquele desejo indecifrável,
5.
decifrado, é claro, quando já não mais nada.
6.
As mãos esperam, mudas.
7.
E o telefone, gordo como um rei.
8.
A vida não quis esperar.
9.
Memória,
10.
mãe amorosa de todas as mortes.
52
Os primeiros anos dos estudos semióticos, na década de 1960, foram
dedicados aos estudos da ação humana e do “fazer”, dos chamados “estados de
coisas”. Nessa primeira fase, a teoria semiótica estava centrada principalmente nos
estudos do nível narrativo, havendo uma lacuna a preencher no que dizia respeito
ao sensível, ao “ser” do sujeito e ao que viria a ser chamado de “estados de alma”,
fator decisivo no estudo de diversos textos e discursos.
Uma segunda fase da semiótica, em finais dos anos 1970 e início da
década de 1980, foi marcada pelos estudos das modalidades, cujo foco estava na
modalização e não tanto na ação. Procurava-se responder à seguinte pergunta: por
que o sujeito age? Nessa fase, ganharam força os estudos sobre competência
modal e tipologia dos sujeitos agentes. As “obras-chave” desta etapa são o artigo
"Pour une théorie des modalités” (GREIMAS, 1976) e o primeiro tomo de
Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage (GREIMAS; COURTÉS,
1979)
22
.
Os estudos da paixão ganharam força a partir de 1983, com a publicação, por
Greimas, do livro Du Sens II, que trazia o estudo pioneiro “De la modalisation de
l'être”. Desta data até 1991 (quando houve a publicação de miotique des
passions
23
, A.J. Greimas e J. Fontanille) houve um crescente interesse em se
verificar o que ocorre com o sujeito que sente e não apenas com o sujeito que faz.
Em Semiótica das Paixões, Greimas e Fontanille estabelecem que (1993, p. 50):
as paixões concernem, na organização do conjunto da teoria, ao ‘ser’
do sujeito e não a seu ‘fazer’, o que não significa, é claro, que as
paixões não tenham nada que ver com o fazer e o sujeito do fazer,
nem que seja porque também este último comporta um ‘ser’ que é a
sua competência. O sujeito afetado pela paixão será, portanto,
sempre, em última análise, sujeito modalizado segundo o ‘ser’, isto é,
sujeito considerado como sujeito de estado, ainda que, por outro
lado, ele seja responsável por um
fazer [...].
22
A tradução brasileira é Dicionário de Semiótica (1983).
23
A tradução brasileira é Semiótica das paixões (1993).
53
A princípio, a Semiótica vê as paixões como efeitos de sentido resultantes
das combinações, dos arranjos entre as modalidades (querer, dever, poder, saber)
que incidem sobre o “ser”. Entretanto, paulatinamente se nota que
além de ser uma expressão de um arranjo modal, as paixões
definem-se pelo tipo de objeto da conjunção ou disjunção (por
exemplo, a curiosidade tem um objeto cognitivo, enquanto a avareza
tem um objeto tesaurizável) ou pela presença e ausência de objeto
(por exemplo, a melancolia é uma paixão que não tem causa,
enquanto a tristeza tem um objeto bem determinado). As paixões
também se distinguem por uma temporalidade (o arrependimento, o
remorso e o lamento estão voltados para o passado, enquanto a
esperança, a preocupação e o temor estão dirigidos para o futuro e o
desdém, a veneração, a estima e o desprezo apontam para o
presente), uma aspectualização (a ira é pontual, o ódio é durativo) e
uma modulação tensiva (a diferença entre a alegria e a exultação é
de intensidade; também o são as distinções entre temor e desespero,
medo e pavor; algumas paixões, como o ressentimento, são
extensas, enquanto outras, como o horror, são intensas).
(FIORIN, 2007, p. 6).
Antes de iniciar o nosso estudo propriamente dito, faz-se necessária uma
consulta a alguns dicionários a fim de verificar o que eles definem como “remorso”. A
definição apresentada pelo dicionário Houaiss é a seguinte: “inquietação, abatimento
da consciência que percebe ter cometido uma falta, um erro; arrependimento,
remordimento”. Este mesmo dicionário traz como etimologia: “lat. remorsus,a,um,
part.pas. de remordére 'tornar a morder'”. o dicionário Aurélio diz que remorso é
“arrependimento por culpa ou crime cometido”. Por fim, o Petit Robert diz que
remorso é “um sentimento doloroso, acompanhado de vergonha e que traz a
consciência de se ter agido mal”.
Verificamos, portanto, que, nas definições encontradas nos dicionários, o
remorso incide sempre sobre o passado, sobre uma ação ocorrida no passado. Para
ter remorso, o sujeito precisa “ter lembrança” do fato passado. Então, quanto à
temporalidade, o remorso vai sempre incidir sobre algo que ocorreu. A paixão do
remorso resulta de um fazer do próprio sujeito (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p.
50).
54
Em termos de junção, o sujeito do remorso está em uma posição de não-
conjunção com o objeto (o fato passado), visto que esteve em conjunção
anteriormente e ainda não chegou à disjunção, pois ainda mantém o fato
continuamente na memória.
No que concerne à questão da aspectualidade, se pensarmos no sujeito do
remorso como um observador que analisa o fato passado como um processo
terminado, podemos dizer que, em termos de aspectualização, o remorso é um
estado passional associado a um aspecto perfectivo, ou seja, incide sobre uma ação
acabada. Por outro lado, se considerarmos o próprio “sentir remorso” como
processo, podemos dizer que o remorso é durativo, uma vez que não basta que o
fato passado venha à memória como erro, mas é necessário que permaneça
recorrentemente, como informa a própria etimologia da palavra: remordére = 'tornar
a morder'.
Podemos falar em um percurso passional que começaria na lembrança e iria
até o remorso, da seguinte forma:
Lembrança do fato passado >> percepção de que foi um erro >>
sentimento de culpa / arrependimento >> remorso.
Logo, o remorso não seria um sinônimo de arrependimento, como dizem os
dicionários Houaiss e Aurélio, mas sim um prolongamento aspectual deste, sendo o
arrependimento pontual e o remorso, como dissemos, durativo. Um sujeito pode
sentir culpa e arrepender-se, mas o que vai determinar se sente ou não remorso é a
recorrência, a reiteração, o “remordimento” do fato que percebeu como errado.
Como vimos, o sujeito do remorso percebe a ação cometida como um erro
e isso o atormenta, porque ele sabe que não pode mudar o que ocorreu. Seu
objeto de desejo seria, então, “fazer voltar o tempo”, tentar mudar as ações, mas ele
sabe que isso é impossível. Em termos modais temos, pois, um sujeito que quer-
Figura 12 – Percurso passional do remorso
55
estar em conjunção com um objeto, mas sabe-não-poder estar em conjunção com
este objeto.
Considerando o esquema narrativo canônico proposto pela semiótica
greimasiana (manipulação – ação – sanção), situamos o remorso na fase da sanção.
O sujeito do remorso é o seu próprio destinador-julgador que sanciona
negativamente a ação cometida no passado (Greimas e Fontanille (1993, p. 150)
falam em um actante “avaliador”). De acordo com Bertrand (2003, p. 372), a
moralização seria mais um traço que entra na definição semiótica da paixão. O
remorso não poderia configurar-se sem uma avaliação negativa do que se passou, a
qual é possível dentro de um determinado quadro axiológico, o que nos faz
entender o remorso como uma paixão moralizante e este traço é visto na definição
do Petit Robert, quando o remorso é associado à vergonha.
Bertrand (2007) afirma, ainda, que o remorso seria, como algumas outras
paixões, o que podemos chamar de uma “emoção ética” (BERTRAND, 2007, p. 1,
tradução nossa
24
):
Os sentimentos de revolta ou impotência, de compaixão ou de
desprezo, de admiração ou de repulsa, o remorso, a vergonha, o
arrependimento, a indignação diante do escândalo, etc. Aí estão
algumas palavras pelas quais se expressa o movimento de uma
emoção ética.
Passemos agora à análise do poema. Nos dois primeiros versos, temos a
descrição do estado do sujeito: “Remorso manso, sem dentes / do já vivido e
apagado”. Logo de início o poema já explicita que o remorso é sobre algo passado e
acabado, indo ao encontro do que dissemos anteriormente sobre o remorso ser
voltado para o passado e ter uma aspectualidade perfectiva. A memória aparece no
último dístico, seguida de sua definição: no poema, a memória seria a “mãe amorosa
de todas as mortes”. O sujeito que sente remorso o faz porque tem na memória
24
Texto original: Les sentiments de révolte ou d’impuissance, de compassion ou de mépris,
d’admiration ou de dégoût, celui du remords jusqu’à la honte et la repentance, ou celui de l’indignation
devant le scandale, etc., voilà quelques termes par lesquels s’exprime spontanément le mouvement
d’une émotion éthique”.
56
um fato passado que ele julga ter sido errado. No poema, porém, apesar de saber
desse erro, o sujeito continua lembrando do fato passado (já que a memória é “mãe
amorosa”) e o remorso é “manso”, fraco (trataremos disso mais adiante).
Recapitulando o que vimos sobre a questão modal, o sujeito do remorso quer
estar em conjunção com um objeto, mas sabe-não-poder estar em conjunção com
este. Para reparar a falta, o sujeito poderia seguir duas direções: a) partir para uma
ação que de alguma forma atenuasse ou compensasse o erro do passado; ou b)
resignar-se, conformar-se (BARROS, 2003, p. 51). No caso do poema estudado, fica
claro que a opção escolhida é a “b”, uma vez que o remorso é descrito como
“manso” e “sem dentes”. Sendo “tornar a morder” o significado etimológico de
remorso, concluímos que um remorso “sem dentes” é aquele que, de tão “fraco”
(“manso”) nem chega a atormentar o suficiente para desencadear uma nova ação;
não morde, ou seja, não causa mais ato nenhum, visto que a sua principal função
(morder) não pode ser realizada. A não-ação do sujeito que espera e não age
pode ser confirmada pelo verso 6: “As mãos esperam, mudas”, principalmente pelo
verbo “esperar” e pelo adjetivo “mudas”. Sendo as mãos uma parte do corpo que
não fala (portanto, não pode ser “muda”), compreendemos a figura das mãos que
esperam mudas como uma metonímia, porque quem espera mudo é o sujeito
“inteiro”. Ele não faz mais nada, espera. A ausência de verbos de ação também
realça a passividade do sujeito que espera.
Zilberberg (2006a, p. 169-170) propõe que a tensividade seja a união entre a
intensidade e a extensidade. O autor propõe que, enquanto a intensidade une o
andamento e a tonicidade, a extensidade une a temporalidade e a espacialidade.
Nesses termos, nós poderíamos situar o remorso numa área que cruzasse um
“mais” (+) no eixo da extensidade (uma vez que o remorso é um sentimento
prolongado e com uma certa extensão temporal, durativo) com um outro “mais” (+)
no eixo da intensidade, que é um sentimento doloroso, que causa uma
inquietação, ou seja, em termos de tonia, seria um sentimento tônico, forte.
57
Neste poema, porém, a relação entre extensidade e intensidade é outra, pois
o remorso é fraco, “manso e sem dentes”. Assim, para um “mais”(+) na extensidade,
temos um “menos”(-) na intensidade. As figuras que seguem nos ajudam a visualizar
estas relações:
Essas diferenças entre o remorso definido em dicionário e o remorso no
poema reforçam a ideia-chave nos estudos semióticos de que o sentido está, não no
signo a priori, mas nas relações que um signo estabelece com o outro dentro de
cada texto. Ideia que evoca o que disseram muitos pensadores da poesia, dentre os
quais, Youri Tynianov, que apresenta, como ideia principal de um de seus textos
(1982), a questão da significação flutuante presente na poesia. Segundo tal ideia,
as palavras “ganhamsignificação na sua relação com as outras palavras e outros
elementos do texto poético. Para ele, importa “o valor semântico particular da
palavra no verso” (1982, p. 18, grifo nosso).
Passemos agora para a última estrofe do poema que é aquela que vai falar
da memória que pode ser entendida como um componente do remorso, pois o
sujeito vai ter remorso se tiver o fato “vivido e apagado” na memória. Apesar de o
sujeito estar em um estado de não-conjunção com o fato passado, ele está em uma
conjunção afetiva com ele e tal conjunção é estabelecida por meio da memória.
+
+
Extensidade
Remorso
Intensidade
+
+
Extensidade
Poema:
Remorso
“manso”
Intensidade
Figura 13 – Configuração tensiva do remorso
58
A última estrofe do poema é composta, como vimos, por um dístico, sendo
um a explicação do outro:
Memória,
mãe amorosa de todas as mortes.
Como se a relação entre memória e morte? Ora, sendo a memória, a
lembrança o componente essencial do remorso, podemos dizer que a memória
levou ao remorso que levou à morte, ou, melhor dizendo, à mortificação do sujeito,
que fica se remoendo e de o “morto”, parado, não faz nada, fica resignado, como
vimos anteriormente.
O percurso seria, então, o seguinte:
memória >> remorso >> morte
Existem, ainda, recursos do plano da expressão que nos auxiliam a relacionar
a memória e o remorso à mortificação do sujeito. O primeiro deles é o fato de as
palavras “remorso”, “memória” e “morte”, além da palavra “amorosa”, conterem todas
a seqüência “mor” em seu interior, sendo, pois, “mor” o cleo endogramático do
poema (ZILBERBERG, 2006b, p. 186), como destacamos na figura a seguir:
re
mor
so
me
mór
ia
a
mor
o sa
mor
tes
Assim, a relação que propomos, no plano do conteúdo, entre memória,
remorso e morte é confirmada pela relação que estes termos estabelecem entre si
Figura 14 – “mor”: núcleo endogramático
59
no plano da expressão. Do mesmo modo que o remorso existe por conta de uma
reiteração do fato passado na memória, o poeta marca uma reiteração também no
planfo da expressão.
Outra ocorrência do plano da expressão, decisiva para sustentar a relação
que propomos, é a existência do anagrama (ou paragrama
25
) de “remorso” (primeira
palavra do poema) disseminado no último verso:
“mãe amorosa de todas as mortes”
e amorosa de todas as mortes
r e m o r s o
Voltando ao verso 1, também encontramos a palavra “mortes”
anagramatizada, antecipando, assim, a sua aparição que ocorre de maneira explícita
no último verso:
“Remorso manso, sem dentes,”
morso manso, sem dentes,”
Há, portanto, uma palavra do primeiro verso (a primeira palavra do poema)
anagramatizada no último e uma do último verso (a última palavra do poema)
anagramatizada no primeiro, o que ajuda a ressaltar o percurso indicado pelo
poema, que seria: memória >> remorso >> morte, entendendo morte, aqui, como
25
Segundo Lopes (1997, p. 182), um paragrama é “um anagrama escrito em descontinuidade”.
Figura 15 – Anagrama de “remorso”
Figura 16 – Anagrama de “mortes
60
mortificação do sujeito no poema em questão. Ou seja, o sujeito que não
desempenha nenhuma ação.
A memória é amorosa pois é ela que permite ao sujeito reviver o passado. Ela
presentifica o passado e é a única maneira que o sujeito tem de recupar a conjunção
com a anterioridade. Em sua “morte modal” (o sujeito nada faz, espera), resta
ao sujeito a memória que o acolhe (como uma “mãe”).
Voltando à segunda estrofe, são apresentados o espaço (“aquele quarto”) e o
tempo (“aquele instante”; “aquele quarto de hora”) lembrados pelo sujeito. O
pronome “aquele” funciona instaurando as debreagens enuncivas de espaço (o
espaço do algures) e de tempo (o tempo do então). O vocábulo “quarto” tem uma
dupla função, pois no verso 3 ele se refere ao espaço, mas se considerarmos a
junção dos versos 3 e 4, ele se refere ao tempo e retoma “instante”, do verso 3. A
fusão do tempo e espaço passados é então recriada por esta ocorrência, no
enjambement.
Em seguida, a menção a um “desejo indecifrável” que foi decifrado apenas
tardiamente (conforme “decifrado, é claro, quando não mais nada”). Logo, a partir
desta estrofe é possível verificar a existência de um descompasso entre o tempo do
sujeito e o tempo “do mundo”, que vai ser corroborado na terceira estrofe (“A vida
não quis esperar”), explorada por nós mais adiante. Quando o desejo foi decifrado, o
momento havia passado. não era mais a hora certa. Além disso, vemos que
há, no uso de “indecifrável” e “decifrado” um paradoxo aspectual, que este possui
uma aspectualidade perfectiva e aquele, imperfectiva. Tal paradoxo vem ilustrar
mais uma vez o impasse do sujeito que fica “perdido” num andamento lento,
enquanto o andamento do mundo à sua volta é acelerado.
Cabe, neste momento, fazer uma análise tendo por base os foremas
propostos por Zilberberg (2006a, p. 175): a direção, a posição e o e, e aqui
trabalharemos no seu cruzamento com a subdimensão do andamento. Em termos
de direção, podemos dizer que o sujeito estava num andamento desacelerado
enquanto “o mundo” exterior estava num andamento acelerado. Essa aceleração
61
pode ser confirmada por “quando não mais nada”, uma vez que o uso do advérbio
“já”, a ausência do verbo “haver” (elipse; o esperado seria que fosse “quando não
mais nada”) ressaltam a rapidez. No que se refere à posição, os diferentes
andamentos do mundo e do sujeito produzem um sujeito retardatário e um “mundo”
adiantado. Verificamos também que justamente neste verso, uma assonância do
/a/: “decifrado, é claro, quando já não mais nada”.
Por fim, quanto ao elã, que seria um “movimento”, um “impulso”, Zilberberg
propõe que “a aceleração do processo supõe, da parte do actante, uma vivacidade,
uma energia que supere as resistências e os obstáculos” (2006a, p. 175). Portanto,
foi justamente uma falta de energia que fez com que o sujeito não agisse e não
decifrasse o desejo na hora exata, perdendo o “momento certo”, estando o mundo
exterior funcionando na ordem da rapidez e o sujeito do remorso na ordem da
lentidão. O quadro abaixo resume o que acabamos de explicar:
Passamos agora à terceira estrofe do poema, constituída pelos três versos
seguintes:
As mãos esperam, mudas.
E o telefone, gordo como um rei.
A vida não quis esperar.
Subdimensão: Andamento
Foremas sujeito "mundo"
Direção
desaceleração aceleração
Posição
retardamento adiantamento
Elã
lentidão rapidez
Figura 17 – Foremas e subdimensão do andamento
62
Dissemos anteriormente que o remorso “manso” e “sem dentes” levava o
sujeito a um estado de conformação e resignação que não desencadeava um novo
fazer. Estando o sujeito em um andamento e o mundo em outro, quando “a vida não
quis esperar”, o que ocorre é algo brusco, algo que irrompe e deixa o sujeito
surpreendido. Zilberberg adota o termo “acontecimento” para falar do que acontece
bruscamente no percurso de um sujeito. O fato de o sujeito não fazer nada está de
acordo com o que afirma o semioticista ao dizer que “o acontecimento arrebata para
si todo o agir, não deixando ao sujeito nada além de suportar” (2006a, p. 198). Após
o acontecimento, o sujeito tem de se restabelecer. Sentindo-se mortificado, o que
resta é a memória (“mãe ‘amorosa’” da morte), única saída para sentir-se novamente
em conjunção com os fatos passados. O sujeito do poema é, então, somente um
sujeito do sofrer, e não da ação, pois não age no presente, não agiu no passado
(conforme explicamos quando da análise do trecho “aquele desejo indecifrável, /
decifrado, é claro, quando não mais nada.”) e, quando agiu, o fez, segundo ele
mesmo, de modo errado (já que houve posteriormente o remorso).
A espera do sujeito é mostra de um sujeito paciente. Segundo Tatit (2001, p.
120), o paciente é aquele que sabe e pode esperar. Eis algumas das acepções de
paciência encontradas no dicionário Houaiss (grifo nosso):
virtude que consiste em suportar os dissabores e infelicidades; resignação;
capacidade de persistir numa atividade difícil, suportando incômodos e
dificuldades; constância, perseverança;
calma para esperar o que tarda.
Já o dicionário Aurélio traz (grifo nosso):
qualidade de quem sabe esperar;
virtude que consiste em suportar dores, infortúnios, etc. com resignação.
Mesmo ansioso (como veremos adiante) o sujeito continua a esperar e não
parte para a ação propriamente dita. Em “V”, a paciência pode ser corroborada, uma
63
vez que “manso”, “sem dentes”, “esperam” e “mudas”, compõem o percurso
figurativo da passividade.
Contudo, o sujeito que não faz nada, que espera, espera ansiosamente que
outro sujeito faça alguma coisa. Tal ansiedade pode ser depreendida do verso “E o
telefone, gordo como um rei”. O sujeito que espera mudo não vai até o telefone para
fazer uma ligação, mas espera ansiosamente que ele toque. Podemos dizer que
uma espera fiduciária
26
, visto que o sujeito espera que outro sujeito telefone. O que
acabamos de citar estabelece uma comparação utilizando a imagem de um rei gordo
que está no imaginário de muitas pessoas e também a ideia de “orgulho”. O
telefone seria, assim como um rei, gordo e orgulhoso. até mesmo a expressão
coloquial “encher-se de orgulho” ou “estar todo cheio”, entre outras. Logo, a partir de
tal verso, relativiza-se o quadro de passividade e passamos a enxergar o sujeito
num estado de espera tensa. Instaura-se, pois, uma tensão entre paciência e
impaciência; o comportamento do sujeito oscila entre esses dois polos. A ansiedade
surge quando o sujeito percebe o descompasso que (do qual falamos
anteriormente) entre o seu andamento e o do mundo. A ansiedade e impaciência
são, ainda, corroboradas pelo modo de dizer “acelerado”. Aqui nos referimos
novamente ao trecho “quando não mais nada”, onde a elipse sugere uma
abreviação da duração do que é dito, ilustrando a ansiedade de quem quer fazer o
momento esperado chegar mais rápido (embora nada faça para tal).
Um sujeito ansioso é um sujeito aflito, inseguro. É aquele que quer-estar,
crê-não-estar, e sabe-poder-não-estar (BARROS, 2001, p. 64) em conjunção com
o objeto. Qual seria, neste caso, o objeto que o sujeito deseja? Lembremo-nos do
início do poema, quando o sujeito fala sobre o remorso. O desejo daquele que sente
remorso seria voltar no tempo e apagar as ações que julga ter cometido
erroneamente o que ele sabe ser impossível ou, ainda, outro objeto, algo que
atenuasse os resultados da ação errônea. No caso desse poema, o objeto é também
26
A espera fiduciária ocorre quando o sujeito espera que outro sujeito o coloque em conjunção com o
objeto. Nas palavras de Greimas (1983, p. 229, tradução nossa), “o sujeito de estado ‘pensa poder
contar’ com o sujeito do fazer para realização de ‘suas expectativas’ ou ‘seus direitos’[...]”.
64
a conjunção com o mesmo acontecimento causador do remorso (já que o remorso é
fraco; o sujeito sente remorso, mas ainda assim quer a conjunção com o que o
causou). Como o sujeito nada faz e espera, tendo, assim, delegado a tarefa de
tentar a atenuação a um S2, ele sabe que algo pode dar errado (sabe-poder-não-
ser) e fica inseguro e aflito. “Remorso”, “desejo indecifrável”, “morte”, “telefone
gordo”, a vida que o espera, as mãos que esperam mudas, formam uma isotopia
da aflição.
Quanto à temporalidade, a ansiedade, diferentemente do remorso (voltado
para o passado), está voltada para o futuro. Já quanto ao estado juntivo, enquanto o
sujeito do remorso está no estado de não-conjunção com o objeto, o sujeito da
ansiedade está em disjunção (aqui, em disjunção com aquilo que poderia atenuar o
remorso ou a aflição).
Quanto mais longa a espera, maior a ansiedade. Em outras palavras, quanto
mais a espera se prolonga no tempo (um mais” na ordem da extensidade), mais
aumenta a tensão, a ansiedade (um “mais” na ordem da intensidade), conforme a
figura abaixo:
Ansiedade
Intensidade
Espera
Extensidade - Tempo
+
-
+
-
Figura 18 – Relação entre ansiedade e espera
65
O quadrado semiótico que reproduzimos a seguir (FONTANILLE;
ZILBERBERG, 2001, p. 139) nos permite visualizar as relações entre os termos que
formam a dêixis da impaciência e a da paciência.
No plano da expressão, um elemento que, neste poema, ratifica o estado de
tensão é o ritmo. Conforme dissemos no capítulo anterior, a semiótica relaciona tal
elemento à espera
27
, isto porque, quando identificamos um ritmo, criamos uma
expectativa a respeito de que virá depois, em outros termos, esperamos o que virá.
Se existe uma regularidade rítmica, existe uma previsibilidade e a espera é relaxada.
Se o padrão rítmico é inexistente ou rompido, a espera é tensa.
Apesar de apresentar algumas regularidades, no poema “V” predomina a
irregularidade rítmica. Prevalece aqui, portanto, um estado de tensão, assim como o
estado do sujeito que sente remorso e está ansioso e impaciente num estado de
espera tensa (“E o telefone, gordo como um rei./A vida não quis esperar.”).
Diante da isotopia que se forma pelo uso de “quarto” e “desejo” presentes na
segunda estrofe, supomos que o remorso do sujeito e também o que ele quer
recuperar por meio da memória têm sua origem ligada a uma relação amorosa ou
sexual. Essa hipótese pode ser corroborada pela análise de anagramas (ou
27
Assim como Jakobson (s.d, p. 43, tradução nossa): “Assim, o tempo poético é tipicamente um
tempo de espera”.
Dêixis da paciência Dêixis da impaciência
Iminente
Futuro
Antecipado
Adiado
Sujeito paciente,
que espera
A “vida”, que “não
quis esperar”
Figura 19 – Paciência versus Impaciência
66
paragramas) que saltam aos olhos quando efetuamos um estudo minucioso do
plano da expressão.
Lembremo-nos da seqüência “-mor” que foi identificada como núcleo
endogramático do poema no item anterior. Segundo o dicionário Houaiss, duas
acepções para a palavra “mor” (grifo nosso):
1. adjetivo: maior
2. substantivo masculino: amor.
Além disso, observamos que, em vários versos do poema, a palavra “amor”
aparece anagramatizada (em paragrama). Vejamos:
“Remorso manso, sem dentes,”
“Re morso m anso, sem dentes,”
a mor
“decifrado, é claro, quando já não mais nada.”
r o ma
a m o r
“As mãos espe ram, mudas.”
A m o r
67
“Memória,”
R e morsanso, sem dentes,”
a mor
“mãe amorosa de todas as mortes.”
amor a mor
Vale ressaltar que em todos esses paragramas de “amor” encontramos
também o anagrama da palavra moraque, segundo o dicionário Houaiss, pode
significar “dilação do tempo; demora, delonga”, reiterando o que falamos
anteriormente sobre a espera do sujeito e o seu atraso com relação ao mundo e
sua lentidão.
No que diz respeito à organização do poema, os versos são divididos em dois
dísticos e dois tercetos, sendo os dísticos os versos “englobantes” e os tercetos, os
versos “englobados”. Da mesma forma que no poema anteriormente analisado (“I”,
da mesma série), podemos homologar categorias do plano da expressão ao
conteúdo, relacionando também estas oposições a essa oposição topológica de que
acabemos de falar. O quadro abaixo resume estas relações semi-simbólicas:
Plano da expressão
Estrofes “englobantes Estrofes “englobadas”
Dísticos Tercetos
predomínio de vogais centrais /a/ predomínio de vogais anteriores
predomínio de consoantes fricativas na
primeira estrofe e de nasais na última
predomínio de consoantes oclusivas
Plano do conteúdo
remorso, memória ansiedade, espera
Figura 20Anagramas para “amor”
Figura 21Estrofes “englobantes” e “englobadas”
68
Com esta análise, procuramos fazer um estudo das paixões presentes no
poema, mostrando a relação existente entre memória, remorso, espera, paciência,
impaciência e ansiedade, fazendo uma análise mais detalhada da paixão do
remorso no que diz respeito aos seus aspectos temporais, juntivos, tensivos, modais
e aspectuais. Ao longo do trabalho, procuramos mostrar como certos recursos do
plano da expressão podem ser analisados de modo a reiterarem questões
verificadas na análise do conteúdo.
69
5 METAPOESIA: estudo do poema “O prestidigitador”
Um poema nunca está acabado, somente abandonado
(Paul Valéry)
Ao longo de toda a literatura brasileira, desde a época colonial até os dias
atuais, é possivel encontrar metapoesia
28
. A obra de Paulo Henriques Britto está
repleta desses poemas, que falam do próprio fazer poético, do próprio ato de
escrever. É um desses textos que submetemos a análise neste capítulo: “O
prestidigitador”, metapoema de abertura do livro Trovar Claro
29
, de 1997. Ele
apresenta o tema da escritura, do ato de escrever, e fala da atitude do poeta frente à
obra que compõe. Segue a transcrição do texto:
O prestidigitador
30
1.
Este papel que se oferece virgem
2.
ao bel-prazer da pena e tinta
3.
é todo teu, só teu, como não é,
4.
nem nunca foi, a tua vida.
5.
A gozosa vertigem dos começos —
6.
esse friozinho bom no estômago —
7.
aqui encontra lastro, ainda que tênue,
8.
na realidade tão incômoda.
9.
E se esta página inaugural
10.
negar-te a façanha de um verso,
11.
um gesto rápido há de restaurar
12.
a virgindade do caderno.
13.
As vértebras flexíveis da espiral
14.
não vão guardar nenhum vestígio
15.
(como fazem as lombadas traiçoeiras)
16.
deste pequeno infanticídio.
17.
Somente a nova página primeira
18.
testemunhou a recaída.
19.
Tenta outra vez: Este papel, etc.
20.
(Restam noventa e nove ainda.)
28
Brandão (1992).
29
Em tal livro ocorre a “presença ostensiva do discurso metalinguístico” (MASSI, 1997, orelha).
30
“Prestidigitador” é um ilusionista. O vocábulo é utilizado como título do poema como uma metáfora
para o poeta que ilude, finge (lugar-comum em literatura).
70
Uma leitura preliminar é suficiente para que percebamos o caráter
metalinguístico desse texto. Existem figuras que constituem a isotopia do escrever,
tais como: “papel”, “verso”, “pena”, “tinta”, “página”, “caderno”, “espiral”. Aqui, trata-
se do processo de escrever, em oposição à obra já criada. No processo de escrever,
pode haver mudanças – conforme indicam (grifo nosso) “vértebras flexíveis da
espiral” (verso 13), “restaurar” (verso 11), “nova página primeira” (verso 17) e no
livro pronto, não conforme sugere o verso 15: “(como fazem as lombadas
traiçoeiras)”.
Tal mudança é euforizada ao longo do texto, mas não se trata de qualquer
mudança e sim de uma mudança total, um recomeço. uma euforização do início,
do começo, como podemos perceber pelos versos 5 e 6 (grifo nosso): “A gozosa
vertigem dos começos / esse friozinho bom no estômago”.
É possível pensar, aqui, em termos da aspectualidade que perpassa o
poema. O aspecto vem sendo estudado pela Linguística bastante tempo e foi,
mais recentemente, incorporado pelos estudos semióticos do discurso (ALMEIDA,
2008). A Linguística o define como a maneira de ser da ação ou como um ponto de
vista sobre um processo, no que diz respeito a sua duração. Camara Jr. (1977, p.
141) nos explica esse conceito com o seguinte exemplo:
Distingue-se, por exemplo, uma ação que principia, como em partir,
uma que termina como em chegar, uma que se desdobra, sem
alusão ao início ou ao fim como andar, viajar, uma que se repete,
como em saltitar, etc.
A semiótica, ainda que se abtenha de descer às minúcias da aspectualidade
nesta ou naquela língua específica, estende a noção de aspecto para além da
temporalidade: à espacialidade, à actorialidade e à axiologia, de acordo com
Bertrand (2003, p. 416). Esta noção também é estendida, na medida em que os
estudos sobre o aspecto realizados pela Linguística são geralmente relacionados ao
verbo e a semiótica postula que o aspecto pode incidir sobre enunciados inteiros
(frases, parágrafos, etc.) e também sobre outras classes gramaticais. Considera-se
71
que os processos são caracterizados pelos semas
31
duratividade ou pontualidade,
perfectividade ou imperfectividade, incoatividade ou terminatividade.
Sintagmaticamente
32
, os semas incoatividade, duratividade e terminatividade
formam uma categoria aspectual. É o que mostra a figura a seguir (BARROS, 2001,
p. 91):
incoativo durativo terminativo
(pontual) (descontínuo (pontual)
ou contínuo)
Ora, no poema que analisamos um predomínio de figuras que contêm o
sema “incoatividade”, visto que sempre falam de começar e recomeçar. Essas
figuras são: “papel virgem”, “gozosa vertigem dos começos”, “página inaugural”,
“restaurar a virgindade”, “vértebras flexíveis” e “nova página primeira”. A composição
do poema também enfatiza o recomeço, pois no penúltimo verso, depois dos dois
pontos, vem exatamente o início do primeiro verso do poema. Podemos dizer que
uma aspectualização do comportamento do sujeito que sempre recomeça, sendo,
portanto, um comportamento incoativo. Todavia, como o começo sempre se repete
(é mais um recomeço do que simplesmente começo), podemos pensar também num
aspecto iterativo.
Por outro lado, considerando o eixo paradigmático, encontramos a categoria
perfectividade/imperfectividade, ou seja, acabado e inacabado. O poema que clama
por um recomeço constante e prefere o processo de escrever à obra acabada
(porque as lombadas são “traiçoeiras”) é da ordem da imperfectividade. O uso do
adjetivo “traiçoeiras” é fundamental para percebermos a avaliação negativa que o
enunciador faz da obra acabada.
31
Cf. Dubois et al. (2004), p. 526: “o sema é a unidade mínima da significação (...) sinônimo de traço
semântico (...)”.
32
Para as noções de “sintagma” e “paradigma”, Cf. Saussure (2002), p. 142.
Figura 22 – Semas aspectuais
72
O sujeito deseja manter-se em conjunção com o ato de escrever. Não é a
obra completa o seu objeto de valor, mas sim o processo de composição. Ele nunca
completa o seu percurso; nunca chega, seguindo a terminologia de Zilberberg
(2006b), na continuação da parada, uma vez que sempre antes de isto acontecer,
na parada da continuação, ele recomeça e continua, nunca chegando ao fim. A
parada da continuação representa a parada do ato de escrever. Ocorrendo tal
parada, o sujeito é levado à falta ou perda e, assim, tem que liquidar essa falta para
recuperar a conjunção com seu objeto de valor
33
(o processo de composição).
Liquidando a falta, o sujeito se mantém num estado de relaxamento.
O quadrado semiótico a seguir (adaptado de TATIT, 2004, p. 200-201) nos
ajuda a entender as relações entre paradas e continuações:
Essa oposição entre o processo de escrever e o produto pronto, obra
acabada, aparece em outros momentos no livro em que “O prestididitador” está
inserido, como por exemplo nas séries “Dez exercícios para os cinco dedos” e “Sete
estudos para a mão esquerda”, que tanto o “exercício” quanto o “estudo” podem
ser vistos como um treino para algo; ambos carregam o traço de imperfectividade.
Dissemos anteriormente que o objeto de valor que o sujeito almeja é o ato de
escrever; ele quer manter a conjunção com esse ato. Dissemos, ainda, que o poema
33
Cf. Tatit, 1997, p. 133.
Continuidade
Relaxamento
(continuação da
continuação)
Descontinuidade
Retenção
(continuação
da parada)
Não-Continuidade
Contenção
(parada da continuação)
Não-Descontinuidade
Distensão
(parada da parada)
Figura 23 – Quadrado semiótico tensivo
73
estabelece uma oposição entre o ato de escrever e a obra acabada. A partir da
leitura da primeira estrofe (versos 3 e 4, que destacamos abaixo), a obra acabada
pode ser identificada à “vida real”:
1.
Este papel que se oferece virgem
2.
ao bel-prazer da pena e tinta
3.
é todo teu, só teu, como não é,
4.
nem nunca foi, a tua vida.
O poema é a única coisa que o enunciador crê poder controlar (verso 2: “ao
bel-prazer da pena e tinta”). Ele pode recomeçar um texto sempre que quiser e não
restarão vestígios, enquanto na vida tudo que acontece fica, de alguma forma,
gravado para sempre e não a possibilidade, segundo este enunciador, de um
total recomeço, sem vestígios. Da mesma maneira que num livro um recomeço não
é possível, pois as “lombadas traiçoeiras” guardariam vestígios, na vida também não
é, tendo em vista que sempre haveria lembranças ou vestígios do ocorrido. O estado
de relaxamento do sujeito se dá, então, justamente quando ele sente que tem o
controle da situação (verso 3: “é todo teu, teu”) e possibilidade de mudança.
Esses são, portanto, os valores almejados pelo sujeito, num nível mais profundo.
Como o sujeito crê não poder entrar em conjunção com tais valores na sua
“vida real” e como a realidade é “tão incômoda” (verso 8), ele encontra no processo
de escrever uma maneira de liquidar essa falta.
A tabela a seguir resume as principais oposições que explicitamos até o
momento. Note-se que estas oposições perpassam os vários níveis da significação,
indo do figural ao figurativo:
74
Níveis do percurso gerativo do sentido
34
Nível tensivo Euforia Disforia
Relaxamento Tensão
Nível aspectivo Incoatividade Terminatividade
Imperfectividade Perfectividade
Nível diretivo (ou modal) crer-poder-ser crer-não-poder-ser
Nível juntivo (ou narrativo) Flexibilidade/mudança Permanência
Controle da situação Descontrole da
situação
Nível discursivo Processo de escrever Obra completa
(“Vida”)
“papel virgem”;
“ao bel-prazer da pena e
tinta”;
“é todo teu, só teu”;
“gozosa vertigem dos
começos”;
“friozinho bom”;
“página inaugural”;
“verso”;
“restaurar”;
“virgindade”;
“caderno”;
“vértebras flexíveis”;
“não vão guardar
nenhum vestígio”;
“nova página primeira
“Tenta outra vez
“como não é, / nem
nunca foi, a tua vida”;
“realidade tão
incômoda”;
“lombadas
traiçoeiras”;
No que diz respeito ao plano da expressão, constata-se que em todas as 5
quadras versos octossílabos e decassílabos, regularmente. Percebemos que
características tanto do plano da expressão quanto do plano do conteúdo que fazem
dos versos pares um conjunto e dos versos ímpares, outro. “Versos pares” opostos a
“Versos ímpares” seriam, assim, uma categoria do plano da expressão que pode ser
homologada a outras categorias (tanto da expressão quanto do conteúdo),
evidenciando uma determinada estratégia de organização/composição do poema.
Os versos pares têm, todos, oito sílabas, recaindo o acento nas de número 4 e 8. Se
os versos fossem divididos ao meio, veríamos que o que se aplica regularmente é
um padrão ∪∪∪___ / ∪∪∪___. A única exceção quanto ao ritmo é o verso de
34
Modelo do Percurso Gerativo do Sentido conforme sua reformulação proposta por Zilberbeg
(2006b, p. 156).
Figura 24 – Oposições nos níveis do percurso gerativo do sentido
75
número 10, que diz: “negar-te a façanha de um verso,”, havendo aqui, portanto, uma
relação entre expressão e conteúdo, visto que o único verso par que está fora do
padrão rítmico de todos os outros é justamente o que fala em negar a façanha de
um verso, ou seja, é aquele que traz consigo uma noção de defeito, de falha. Vemos
uma convergência entre conteúdo e expressão, uma vez que o que se diz em
uma dessas faces é o que se faz na outra.
No que diz respeito às rimas, todos os versos pares rimam entre si dentro de
suas estrofes, sendo esta uma rima toante, ou seja, quando rimam as vogais
tônicas
35
. Observa-se também uma predominância de rimas graves (formadas por
palavras paroxítonas). Vejamos abaixo a transcrição desses versos, destacando as
sílabas acentuadas e também as rimas:
versos/sílabas
1 2 3 4 5 6 7 8
2
ao bel pra
zer
da pe na e
tin
ta
4
nem nun ca
foi
a tu a
vi
da
6
es se frio
zi
nho bom no es
tô
mago
8
na re a li
da
de tão in
cô
moda
10
ne
gar
te a fa
ça
nha de um
ver
so
12
a vir gin
da
de do ca
der
no
14
não vão guar
dar
ne nhum ves
ti
gio
16
des te pe
que
no in fan ti
cí
dio
18
tes te um
nhou
a re ca
íc
da
20
res tam no
ven
ta e no ve a
in
da
os versos ímpares são decassílabos. Todavia, uma exceção: o verso
15: “(como fazem as lombadas traiçoeiras)”, que tem 11 sílabas. Também aqui
35
Goldstein (2002, p. 44) descreve os vários tipos de rima.
76
uma relação entre expressão e conteúdo, pois o único verso do poema fora do
padrão é justamente aquele que fala das lombadas traiçoeiras, ou seja, da obra
completa que, como vimos, é disforizada pelo poeta. Sendo o controle sobre as
coisas um dos valores almejados pelo sujeito, justamente o verso que fala de algo
que ele não pode controlar e não pode mudar sem deixar vestígios é aquele que é
“traiçoeiro” porque trai alguma regra, ou seja, que está “fora de controle” com
relação aos demais versos do poema.
Quanto ao ritmo, ele é muito variado nos versos ímpares, predominando as
irregularidades. Irregulares são também as rimas desses versos. A seguir
apresentamos estes versos destacando as sílabas acentuadas a fim de melhor
demonstrar a irregularidade de que falamos:
Versos/Sílabas
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
1
Es te pa
pel
que se o fe re ce
vir
gem
3
é to do
teu,
teu, co mo não
é,
5
A go
zo
sa ver
ti
gem dos co
me
ços
7
a
qui
en con tra
las
tro, ain da que
nue
9
E se es ta
gi na i nau gu
ral
11
um ges to
pi do há de res tau
rar
13
As
vér
te bras fle
veis da es pi
ral
15
co mo
fa
zem as lom
ba
das trai ço
ei
17
So
men
te a no va
gi na pri
mei
ra
19
Ten
ta ou tra
vez:
es te pa
pel
et
tera
Existem, ainda, outros contrastes entre os versos pares e ímpares. No plano
fonológico, por exemplo, constatamos que nos versos pares um predomínio de
consoantes sonoras, enquanto nos versos ímpares predominam as consoantes
surdas. Outro contraste é que sempre os começos de proposições são feitos nos
versos ímpares (e são estes os únicos que começam com letras maiúsculas).
77
Com relação ao plano do conteúdo, verificamos que de 10 versos ímpares, 6
deles apresentam figuras relacionadas à escrita, contra apenas 3 versos dentre os
pares. Além disso, os vocábulos que remetem à incoatividade e à mudança estão
todos (com exceção de apenas uma palavra: “virgindade”, no verso 6) nos versos
ímpares: v.1: “virgem”; v.5: “começos”; v.9: “inaugural”; v.11: “restaurar”; v.13:
“flexíveis”; v.17: “nova” e “primeira”; v. 19: “tenta outra vez”.
Passando à observação das categorias gramaticais, percebemos que nos
versos ímpares, a grande maioria dos substantivos são qualificados por um adjetivo:
dos 12 substantivos presentes, 8 são ligados a adjetivos. Nos versos pares, por sua
vez, a quantidade de adjetivos não é tão significativa, que são apenas 3 para 14
substantivos. A tabela abaixo mostra essas ocorrências:
Versos Pares Versos ímpares
“friozinho bom” “papel virgem”
“realidade incômoda” “gozosa vertigem”
“pequeno infanticídio” “lastro tênue”
“página inaugural”
“gesto rápido”
“vértebras flexíveis”
“lombadas traiçoeiras”
“nova página”
Mais uma distinção interessante entre os versos pares e ímpares é que,
neste, todos os cinco pares de versos mantêm uma relação entre si, mesmo quando
isolados do restante do poema. São maiores os acoplamentos (conforme explicamos
no capítulo 1) encontrados nesses versos. No primeiro par, por exemplo, uma
relação entre sujeito (verso 1) e predicado (verso 3):
Figura 25 – Versos pares versus versos ímpares
78
1.
Este papel que se oferece virgem => Sujeito
3.
é todo teu, só teu, como não é, => Predicado
A mesma relação é encontrada no par seguinte:
5.
A gozosa vertigem dos começos => Sujeito
7
.
aqui encontra lastro, ainda que tênue, => Predicado
No par de versos 9 e 11, a relação encontrada é de ordem semântica, ambos
os versos comportando palavras com o sema /incoatividade/: v.9: “inaugural” e v.11:
“restaurar”. O par de versos 13 e 15 também apresenta uma relação semântica, mas
desta vez não há uma contiguidade, e sim uma oposição: “espiral” (flexível) versus
“lombadas” (permanente). Por fim, os versos 17 e 19 são da ordem do recomeço
tanto pela presença das palavras “nova” e “tenta”, quanto pela repetição do início do
poema, simulando um recomeço do próprio poema em questão: “Este papel”.
Diferentemente, as duplas de versos pares não mantêm relações entre si
36
.
Os versos ímpares conseguem fazer algum sentido mesmo isolados dos pares.
Estes últimos, por sua vez, quando isolados dos ímpares não se correlacionam;
ficam parecendo versos soltos. Não encontramos nem ligações sintáticas, nem
semânticas entre eles.
Ressaltamos ainda a ocorrência de 5 palavras da ordem da negatividade nos
versos pares contra apenas 1 nos versos ímpares:
36
Com exceção do par 14 e 16, onde um verso é complemento gramatical do outro.
79
Versos pares Versos ímpares
“nem” “não”
“nunca”
“negar”
“não”
“nenhum”
O quadro-resumo abaixo nos ajuda a visualizar o que acabamos de expor
acerca da organização dos versos pares versus os versos ímpares.
Versos pares Versos ímpares
Octossílabos Decassílabos
37
Ritmo regular: acento nas sílabas 4 e 8
38
Ritmo irregular
Rimas toantes e graves Predomínio de irregularidade rímica
Predomínio de consoantes sonoras Predomínio de consoantes surdas
Poucos adjetivos Muitos adjetivos
- Maioria das figuras relacionadas à escrita
Meio de períodos Início de períodos
- incoatividade; mudança
Pares de versos não se relacionam Pares de versos se relacionam
Negatividade -
37
Com exceção do verso 15, conforme exposto acima.
38
Com exceção do verso 10, que explicamos anteriormente.
Figura 26 – Negativas
Figura 27 – Versos pares versus versos ímpares
80
Gostaríamos agora de ressaltar uma rie de ocorrências no plano fonético-
fonológico que, apesar de nem sempre ligadas diretamente ao plano do conteúdo,
mostram uma sofisticada disposição do plano da expressão. A primeira dessas
ocorrências é o fato de aparecer em quatro das cinco estrofes alguma palavra com a
sequência “v + vogal + r”, núcleo endogramático do poema:
v.1 virgem
v.5 vertigem
v.10 verso
v.12 virgindade
v.13 vértebras
Em outras ocorrências, vemos aparecer sílabas semelhantes a estas,
aparecendo v + e + consoante, sendo /e/ a vogal que aparece na maioria das
ocorrências acima.
v.14 vestígio
v.19 vez
Percebemos, também, a existência de algumas rimas internas, como por
exemplo:
Estrofe 1: v.1: papel / v.2: bel
v.3: “é todo teu, só teu (...)”
Estrofe 2: v. 5 gozosa / v.6 friozinho
v.7 encontra / lastro
Note-se que nas palavras que destacamos no verso 7 um quiasmo entre
as vogais /o/ e /a/:
81
e n c o n t r a
l a s t r o
também um quiasmo das mesmas vogais nos versos 6 e 8, nas palavras
que compõem a rima:
E s t ô m a g o
I n c ô m o d a
Aparece também o ditongo nasal grafado por -em ou en em várias partes do
poema – outro núcleo endogramático:
v.1 virgem
v.4 nem
v.5 vertigem
v.7 encontra
v.15 fazem
v.17 somente
v.19 tenta
v.20 noventa
Figura 28 – “Quiasmo fonológico”
Figura 29 – “Quiasmo fonológico”
82
Na estrofe 3 a repetição da consoante /t/ nos versos 9, 10 e 11. Todos
possuem essa consoante na mesma sílaba poética. Na estrofe 4, destacamos a
aliteração de fricativas no verso 13: “As vértebras flexíveis da espiral”.
As situações acima podem ser vistas como atualizações da função aliterativa
ou anagramática, proposta por Saussure em seus estudos sobre poesia e os
anagramas, que expusemos no capítulo 1.
O poema estudado revela uma atitude do sujeito-poeta frente ao processo de
composição, sendo este último o seu meio de alcançar os valores desejados que
não alcança na “vida real”. O trabalho com figuras que sugerem uma aspectualidade
incoativa/iterativa e imperfectiva foi um dos principais recursos utilizados pelo poeta
para garantir o efeito de sentido pretendido e deixar clara a sua posição contra algo
“acabado” e “permanente”. Pudemos, também, levantar vários pontos do plano da
expressão importantes para a significação global do texto, seja porque se ligam de
alguma forma ao plano do conteúdo, seja porque revelam uma organização desse
plano não como algo casual, mas sim como sistematicamente trabalhada.
83
6 UM SUJEITO DA PERCEPÇÃO: análise do poema “Véspera”
Tudo dorme. Eu, no entanto, olho o espaço sombrio
(Manuel Bandeira. A Cinza das Horas)
“Véspera” foi publicado no livro Macau (2003). O poema descreve uma cena
noturna, dentro de uma casa. Uma rápida leitura do poema basta para percebermos
que estamos diante de um texto predominantemente descritivo. Segue a transcrição
do poema:
Véspera
1.
No trivial do sanduíche a morte aguarda.
2.
Na esquiva escuridão da geladeira
3.
dorme a sono solto, imersa em mostarda.
4.
A hora é lerda. A casa sonha. A noite inteira
5.
algo cricrila sem parar – insetos?
6.
O abacaxi impera na fruteira,
7.
recende esplêndido, desperdiçando espetos.
8.
A lua bate o ponto e vai-se embora.
9.
Mesmo os ladrilhos ficam todos pretos.
10.
A geladeira treme. Mas ainda não é hora.
11.
Se houvesse um gato, ele seria pardo.
12.
A morte ainda demora. O dia tarda.
Num primeiro momento, podemos pensar que a cena não conta com uma
presença humana, ou seja, as partes da casa descritas estão vazias enquanto todos
dormem (conforme “a casa sonha”, com “casa” representando “os habitantes da
casa”). Além disso, o abacaxi está “desperdiçando espetos” porque ninguém o e
a “morte”, de “a morte ainda demora”, pode ser vista como uma metáfora para o
84
sono que seria uma pequena morte (a associação entre sono e morte é um tanto
comum em literatura). Portanto, todos ainda estariam dormindo.
39
Contudo, uma leitura mais atenta revela que no espaço e tempo descritos
encontra-se inserido um sujeito que vê, que sente, que espera a noite passar. O
efeito é o de uma câmera que vai se deslocando, mostrando objetos diferentes da
casa, ao mesmo tempo em que o sujeito presente na cena os vê. O actante sujeito
não aparece figurativizado explicitamente no texto: não nenhuma menção a uma
pessoa (nem mesmo com pronomes), mas a actorialização deste actante começa a
se construir logo na primeira estrofe do poema, quando se fala do “trivial do
sanduíche” na “geladeira”, o que faz lembrar um hábito bastante comum em nossa
sociedade, que é levantar-se no meio da madrugada para comer algo existe até
mesmo a expressão coloquial “assaltar a geladeira”. Tal hábito só é percebido
quando aparece, na estrofe 2, a figura da “noite” e só sabemos que se trata
realmente da noite quando essa figura aparece e a partir dé que a associação
com “assaltar a geladeira” e com o hábito de que acabamos de falar é feita. Assim, a
ligação que o texto estabelece com o hábito conhecido da maioria dos leitores faz
com que imediatamente percebamos uma presença humana, um ator “humano” na
cena: existe alguém que acorda no meio da noite e vai até a geladeira. Outro
elemento do texto que corrobora essa leitura é o adjetivo “esquiva”(verso 2). Ora, a
escuridão da geladeira pode se tornar “esquiva” se a última é aberta por alguém,
momento em que, normalmente, as luzes dos refrigeradores se acendem e a pessoa
responsável pela ação enxerga muito rapidamente uma escuridão fugidia (“esquiva
escuridão”). A partir desses dois elementos, toda a descrição pode ser vista como
aquilo que essa pessoa enxerga.
O sujeito de “Véspera” não é descrito, não ocorre a instauração de uma figura
de pessoa, uma debreagem de pessoa como normalmente se vê. Todavia, os
39
A associação do sono a uma “pequena morte” ou a uma morte temporária é feita em outros
poemas de Britto, como por exemplo, em “I”, da série “Balanços”, publicado em Tarde (2007):
“(...) Todo tempo agora é pouco./ Nenhuma noite se dorme. / A morte tem que esperar”.
85
elementos que acabamos de mencionar, ao lado da isotopia da demora/espera (de
que falaremos a seguir), fazem emergir esse sujeito-ator que vê e espera.
Por meio das figuras “a hora é lerda” (verso 4), “ainda não é hora” (verso 10),
“ainda demora” e “o dia tarda” (verso 12) e também por meio de recursos do plano
da expressão como muitos pontos finais no meio dos versos e o uso de um
travessão, que nos obrigam a ir interrompendo a leitura é construído o percurso
figurativo da demora. Podemos, ainda, associar esse percurso figurativo a valores
de lentidão. Já a isotopia da espera é revelada pelas palavra “véspera” (título) e por
“aguarda” (verso 1). A situação da demora aliada à espera vai ao encontro da
afirmação de Tatit (1997, p. 155) de que a fase da espera corresponde a um tempo
arrastado, ou seja, lento, que demora a passar.
Figuras que aludem aos sentidos também aparecem no texto corroborando a
existência de um sujeito que sente, dentro da cena descrita. Essa sinestesia pode
ser vista em “sanduíche”, “mostarda” (paladar), “escuridão”, “o abacaxi recende”
40
(olfato), “ladrilhos pretos” (visão), “algo cricrila”, o barulho da geladeira que “treme”
(audição).
Ao falar sobre a escrita de Claude Simon em L’Acacia
41
, Bertrand (2003, p.
138) faz uma explicação que agora emprestamos, uma vez que ela apresenta
justamente o que acreditamos acontecer no poema de Paulo Henriques Britto. Nas
palavras do autor, a escrita (grifo nosso):
“retarda o sujeito: explora todo o espaço intermediário que o faz
surgir, nas dimensões passional, perceptiva e cognitiva (...). Ela
expõe a sensorialidade movente que insere o sujeito no mundo dos
objetos, mas suspende até o limite o momento de nomeá-lo, ou seja,
de fixá-lo”.
É interessante perceber que, nesse poema, o retardamento em nomear o
sujeito ressoa na isotopia da lentidão, da demora. Esse recurso também contribui
40
Segundo o Dicionário Houaiss, “recender” é “1. espargir (odor forte e penetrante); 2. cheirar a;
exalar suaveperfume”.
41
SIMON, Claude. L’Acacia. Paris, Ed. De minuit, 1989, p. 153.
86
para criar um efeito de expectativa, reiterando e fazendo eco à expectativa do sujeito
do enunciado.
Bertrand (2003) afirma, ainda, que o que é visado em uma descrição é o
percurso figurativo da percepção. O enunciador de “Véspera”, optando por revelar
o espaço, os objetos percebidos pelo sujeito e a lentidão, a demora que esse sujeito
sente, suspende a sua nomeação, a sua aparição, deslocando o foco para a
percepção do sujeito, de modo que a sua actorialização explícita (uma debreagem
de pessoa nos moldes “tradicionais”, com uma nomeação do sujeito) torna-se
desnecessária. O que comentamos até o momento acerca do texto descritivo e da
não existência da nomeação do sujeito (nem mesmo com pronomes) remete a
afirmação de Bertrand (2003, p. 94, grifo nosso): “a ‘narração’ se fundamenta em
debreagens ou embreagens actanciais, a ‘descrição’ em debreagens espaciais e
temporais”. O actante sujeito fica enfraquecido que a descrição o está centrada
nele, mas nos objetos de sua percepção. No entanto, ele é produto destes
mesmos objetos. Em outras palavras, é por meio da descrição do espaço, do tempo,
dos objetos inseridos que conseguimos acessar saber que há um sujeito
“humano”: alguém que levanta no meio da noite e espera o dia chegar, sem nada
para fazer para “passar o tempo” e que se depara com objetos conhecidos, triviais.
Já que “o dia tarda”, temos que o sujeito espera a noite acabar e o dia chegar.
Do ponto de vista narrativo, há, então, um sujeito que está em disjunção com o
objeto de valor (o dia). Mas esse sujeito nada faz, ele apenas espera o dia
amanhecer e o texto não apresenta, portanto, uma transformação. O que
encontramos é a apenas a descrição de um estado do sujeito: a disjunção com o
objeto de valor e a espera pela conjunção. Esta ausência do programa narrativo
completo é comum em textos descritivos, como diz Fiorin (2005b, p. 46):
Uma das características do texto descritivo poderia ser a
manifestação de apenas um dos estados do nível narrativo (o inicial
ou o final) e não da transformação completa (passagem de um
estado a outro).
87
No âmbito da sintaxe discursiva, gostaríamos ainda de ressaltar a existência
de um observador. O Dicionário de Semiótica (Greimas; Courtés, 1983, p. 313)
apresenta a seguinte definição de observador:
“Será chamado de observador o sujeito cognitivo delegado pelo
enunciador e por ele instalado, graças aos procedimentos de
debreagem, no discurso enunciado (...)”.
Segundo Bertrand (2003, p. 113-114) em textos narrativos, temos comumente
a presença de um narrador, mas “No discurso descritivo, o ponto de vista se refere
diretamente à atividade perceptiva (...). O ponto de vista é, pois, regido pelo
observador”. No poema que aqui estudamos, o observador sabe e descreve o que o
sujeito vê, estando em sincretismo com o papel de narrador
42
. O observador tem a
função de ver, de ouvir. o narrador tem a função de relatar. “Os dois actantes
podem estar em sincretismo, mas são completamente distintos em sua função”
(FIORIN, 2005a, p. 107). De toda a cena retratada, nós conhecemos o que foi
filtrado por esse observador e é a s revelado por quem narra. Num ensaio sobre o
poema “Maçã”
43
, de Manuel Bandeira, o crítico literário Davi Arrigucci Jr. afirma que
o leitor desse texto “é levado a situar-se como espectador, como quem olha um
quadro” e “é levado a seguir um olhar” (1990, p. 22). Da mesma forma, o leitor de
“Véspera” segue o olhar do observador e situa-se tal qual um espectador, não de um
quadro, mas de um filme.
Bertrand (2003, p. 115) propõe tipos de observadores, de acordo com o seu
modo de presença no discurso. O primeiro tipo de observador é aquele que está
totalmente oculto (como, por exemplo, quando se afirma “A Terra é redonda”). Um
segundo tipo seria aquele que pode estar “implicado pela indicação da posição de
observação (‘Vista da Lua, a Terra é redonda’)”; o terceiro pode estar (p. 425)
“assinalado no texto por uma marca pessoal e um predicado perceptivo” (por
exemplo, “vê-se que a Terra é redonda”). O quarto e último tipo de observador pode
42
“O observador entrará, algumas vezes, em sincretismo com um outro actante da comunicação (o
narrador ou narratário) ou da narração” (GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 314).
43
A transcrição do poema pode ser vista no fim deste trabalho, em “Anexos”.
88
estar “assumido por um ator da narrativa que toma a si a atividade descritiva”(p.
115).
O que é peculiar em “Véspera” é que não conseguimos saber se também
um sincretismo do narrador-observador com o ator do enunciado, que não se diz
nem ele, nem eu, no poema. Não conseguimos saber se o narrador-observador
outra pessoa e narra o que ela faz ou se o observador é o próprio sujeito do
enunciado que anda pela casa. Não conseguimos distinguir se o observador seria do
primeiro tipo explicado por Bertrand ou do quarto tipo. Transcrevemos a seguir um
trecho de um outro poema de Britto que se contrapõe a “Véspera” nesse sentido,
visto que é clara a separação entre narrador e ator:
Dorme a família. Este ser (ou objeto)
surge na sala, num surto (ou cio),
rola no chão, nas paredes, no teto
(...)
(“IV”, da série “Cinco Sonetetos Grotescos”. In: Tarde, 2007).
Com relação ao tempo discursivo, cabe destacar que a maioria dos verbos
está no presente do indicativo, ou seja, uma debreagem temporal enunciativa,
criando o efeito de sentido de uma concomitância entre o tempo da narração e o
tempo do narrado. Os verbos estão todos na terceira pessoa e, sendo assim,
poderíamos dizer simplesmente que o poema é um texto em terceira pessoa e que o
actante sujeito é figurativizado pelos objetos, que são estes que o descritos e
não uma “pessoa”. Conforme explicamos anteriormente, porém, não podemos negar
uma presença humana na cena, que é justamente o ator que os objetos. Finge-
se, pois, falar dos objetos para falar do “homem”. Ou seja, por meio da descrição
dos objetos e do ambiente é que se depreende o estado de inquietude daquele que
vaga pela casa esperando o dia chegar.
Voltando um pouco à questão da semântica discursiva, ressaltamos que a
figura da noite, explicitada (verso 4), também é reforçada por meio da presença da
figura da “lua”, da associação de que falamos anteriormente do “assalto à
89
geladeira” e de figuras que carregam o traço [escuro], tais como: “escuridão(verso
2) e “ladrilhos pretos” (verso 9).
O sujeito que não dorme, que tem insônia, é também retratado em outros
poemas de Britto, como, por exemplo, em “Aranha” de (Trovar Claro) e “VII” (da
série “Dez sonetos sentimentais”, in Liturgia da Matéria. A seguir transcrevemos
trechos desses poemas.
Aranha
Tentacular essa melancolia
que a mão batuca sobre a mesa
quando buscava na verdade
a música dos vértices mais nítidos
um canto de certezas
entre as exumações da insônia
e os sóbrios sortilégios da sintaxe
enquanto o mundo inteiro dorme
(...)
VII
A consciência exata dessa insônia,
a forma certa desse medo, o gesto
seco que rejeita essa necessidade
abjeta de ser quem não se é –
(...)
Já dissemos que o sujeito nada faz, só espera. Mesmo a única ação realizada
pelo sujeito durante a noite (ir à geladeira em busca do sanduíche), não tem o valor
de um “acontecimento” por ser “trivial”. O tema da trivialidade é, ainda, revelado por
expressões coloquiais como “o gato pardo” e por “a lua bate o ponto”, sendo “bater o
ponto” uma expressão muito utilizada para expressar algo repetitivo, que sempre
acontece e que é sem importância, como uma obrigação
44
e pela própria palavra
“trivial” usada logo no primeiro verso do poema. As imagens que vão sendo
“coladas” pelo enunciador para compor a cena descrita o imagens prosaicas,
cotidianas. Nas palavras de Carpinejar (s.d), o poeta “circula no espaço da
trivialidade, das revelações a partir do mais grosseiro, do mais visível, do mais tátil”.
44
Angela Maria Dias (2007, p. 168), ao comentar o poema em questão, utiliza a expressão “lua
burocrata”.
90
Temos, portanto, a configuração do tema da trivialidade, aliado à
passividade/espera que ocorre num andamento lento. Conforme dissemos no
capítulo 4, o andamento é, segundo Zilberberg (2006a, p. 170), junto com a
tonicidade, uma subdimensão da intensidade. O produto destas duas subdimensões
indo para o “mais” do eixo da intensidade é o que o autor chama de “acontecimento”
(2006c, p. 160). Ao contrário, quando as duas sudimensões estão enfraquecidas
(andamento lento e tonicidade caminhando em direção ao “menos”) o que é o
“fato”, um “estado”, em oposição ao acontecimento. O “acontecimento” é raro (um
“menos” no eixo da extensidade), inesperado e o “fato” é o rotineiro, o repetitivo (um
“mais” no eixo da extensidade), o esperado.
Assim, constatamos que o poema “Véspera” é da ordem da rotina, do
“exercício
45
e o do acontecimento. Nada de novo acontece, a cena descrita é
uma cena prosaica, comum, os objetos que aparecem são conhecidos do sujeito
que sente a lentidão, pois não nada novo ou raro adentrando o seu campo de
presença. A larga utilização dos verbos no presente do indicativo corrobora a ideia
de que nada daquela cena é novo para o sujeito. Isso se porque o emprego
desse tempo verbal cria no poema o efeito de sentido de um “sempre”, de algo que
sempre ocorre. “A hora é lerda” justamente porque nada novo se passa; o tempo
não passa. O fato de não haver surpresas é ainda evidenciado pelo verso 11: “Se
houvesse um gato, ele seria pardo”, que retoma o ditado popular “De noite todo gato
é pardo”, reforçando a noção de que é esperado. um raciocínio implicativo: se é
noite e há um gato, então, certamente ele é pardo. O próprio espaço da casa reforça
a trivialidade, que ela é conhecida, familiar ao sujeito. Assim, o espaço também
contribui para configurar a noção de “já esperado”.
O “acontecimento” e o “exercício” podem ser graficamente representados, em
termos de intensidade e extensidade, como a seguir:
45
Cf. Zilberberg, 2007, p. 25
91
Zilberberg aponta, ainda, que quando “acontecimento”, um sujeito da
admiração. Por outro lado, quando o o há, estamos diante de um sujeito da
percepção (2006c, p. 161). Podemos, então, confirmar que em “Véspera” existe um
sujeito da percepção (e não um sujeito do fazer).
Em termos de continuidades e descontinuidades (num nível mais profundo), a
noite instaura uma parada que o sujeito fica sem fazer nada até o dia clarear.
Quando o dia, que ele tanto espera (“mas ainda não é hora”, “o dia tarda”), chegar
ele será tirado desta parada. Assim, podemos perceber uma relação entre parada,
noite e rotina (fato, exercício), de um lado, e continuação, dia e acontecimento,
de outro. O quadrado semiótico que segue (adaptado de TATIT; LOPES, 2008, p.
86) permite melhor visualizar tais relações:
Intensidade
+
+
Extensidade
acontecimento
exercício
Figura 30 – Acontecimento e exercício
92
O próprio título do poema “Véspera” nos permite associar o dia que o
sujeito espera a um acontecimento, em oposição à noite, uma vez que uma das
acepções para este vocábulo é “os dias que mais proximamente antecedem um fato
ou acontecimento” (Dicionário Houaiss). Importa mais o dia que está por vir do que a
noite que passa.
À parada que acabamos de mencionar, podemos associar, também, um
estado de tensão do sujeito que espera, num espaço “fechado” que é a casa onde a
espera se passa. Dessa forma, toda essa relação que estabelecemos noite-rotina-
parada-tensão-fechamento evoca um modelo proposto por Claude Zilberberg
(2006b, p. 147) que a seguir reproduzimos:
TENSIVO tensão distensão figural
MISSIVO parada parada da parada
------------------------------------------------------------------------------------------------
TEMPORALIDADE espera repouso
ESPACIALIDADE fechamento abertura figurativo
- A noite em “Véspera”
Dia
Acontecimento
Noite
Rotina
Parada
(“ainda não é hora”)
Continuação
Parada da parada
Parada da continuação
Figura 31 – Quadrado semiótico: paradas e continuações; rotina e acontecimento
Figura 32 – Tensão, parada, espera, fechamento
93
Vimos que as duas subdimensões do par “intensidadee “extensidade” que
mais colaboram para a construção do sentido deste poema são o andamento (que é
subdimensão da intensidade) e a espacialidade (subdimensão da extensidade). Tais
subdimensões, quando cruzadas com os foremas da direção, elã e andamento
(como já explicado no capítulo 4) resultam em certas valências sobre as quais
repousa o sentido construído pelo texto. Para o poema sob análise, essas valências
são as que seguem:
Passemos agora a um exame mais direcionado ao plano da expressão. O
poema é composto por 12 versos quase todos de dez ou 12 sílabas distribuídos
em quatro tercetos. Muitos destes versos apresentam uma ambiguidade métrica e
podem ser lidos tanto como dodecassílabos quanto como decassílabos, como por
Dimensão Intensidade Extensidade
Subdimensão Andamento Espacialidade
Direção Desaceleração Fechamento
Posição Retardamento Interioridade
Elã Lentidão Repouso
Figuras no texto
“Véspera”
“aguarda”
“a hora é lerda”
“ainda não é hora”
“ainda demora”
“tarda”
As figuras que
remetem à
interioridade da casa:
“geladeira”,
“sanduíche”,
“casa sonha”,
“fruteira”;
“escuridão”
“ladrilhos pretos”
Plano da expressão
Uso de travessão e
pontos finais no meio
dos versos
Estrofes bem
delimitadas
Figura 33Andamento e espacialidade
94
exemplo os versos 3 e 11. Podemos falar em duas diferentes isotopias de expressão
que nos dão duas diferentes chaves de leitura rítmica do poema. Ainda quanto ao
ritmo, não uma regularidade e encontram-se tanto versos com ritmos mais
tradicionais (como os dodecassílabos com acento nas sílabas 4, 8 e 10 e os
decassílabos heróicos e sáficos) quanto versos com ritmo mais “solto”.
A construção das rimas é também um fator que merece atenção. Os tercetos
são sempre construídos com rima entre os versos ímpares, ficando o verso do meio
“sozinho”. Porém, esse verso sempre se liga ao terceto seguinte, pois rima com o
primeiro verso deste. Assim, os tercetos sempre estão ligados por meio da rima que
funciona como mais um elemento que garante coesão ao texto. Por exemplo, a
estrofe 1 se liga à estrofe 2 por meio da rima etos, final dos versos 2, 4 e 6. O
esquema das rimas no poema seria o seguinte.
1. A
2. B
3. A
4. B
5. C
6. B
7. C
8. D
9. C
10. D
11. A
46
12. A
Podemos observar que a última estrofe “quebra” um pouco o esquema de que
falamos. Por outro lado, entretanto, ele retoma a rima A da estrofe 1, ligando o fim
do poema ao seu começo, como que fechando um círculo. Esse recurso da
organização do plano da expressão acaba por imitar o que ocorre também no plano
do conteúdo, que a última estrofe repete as figuras da “geladeira” e da “morte”,
que também apareceram no início do poema. Notamos também que no meio do
46
Rima toante, ou seja, só apresenta semelhança na vogal tônica.
95
último verso há a palavra “demora”, que forma uma rima interna com “hora”, palavra
da rima do primeiro verso do terceto em questão:
A geladeira treme. Mas ainda não é hora.
Se houvesse um gato, ele seria pardo.
A morte ainda demora. O dia tarda.
No que diz respeito ao nível sonoro, verificamos que o modelo de sílaba
consoante + vogal + r perpassa todo o poema, reforçando tanto relações locais
quanto globais no texto
47
. Vejamos onde tal sequência aparece:
v.1 morte; aguarda
v.2 -
v.3 dorme; imersa; mostarda
v.4 lerda
v.5 parar
v.6 -
v.7 desperdiçando
v.8 -
v.9 -
v.10 -
v.11 pardo
v.12 morte; tarda
Há, ainda, outras ocorrências que evidenciam um cuidado na elaboração do
plano da expressão. O verso 2, por exemplo, apesar de não apresentar a sequência
silábica de que falamos acima traz uma rima interna dada pela repetição da
sequência sonora /esk/: esquiva-escuridão. Semelhante recurso ocorre no verso 7,
onde está a sequência sonora /esp/: “recende esplêndido, desperdiçando
espetos”, além da aliteração do /s/, que destacamos a seguir:
“recende esplêndido, desperdiçando espetos
47
Núcleo endogramático, conforme explicamos no capítulo 1.
96
Vemos, também, o recurso da aliteração sendo utilizado no verso 3: “dorme a
sono solto, imersa em mostarda”.
Quanto a toda sorte de recorrências sonoras, repetições, reiterações, etc.,
Lopes (1997, p. 184) lembra:
trata-se de procedimento que estava inteiramente significado no
termo ‘verso’, do latim versus (de vertere, ‘voltar’, ‘retornar’) [...], a
assinalar que, diversamente do que ocorre com o discurso em prosa,
que se constrói prospectivamente, projetando-se só para a frente
(este é o sentido de prorsus, étimo de ‘prosa’), em busca do
momento em que esse avanço de esgotar-se, na altura do ponto
final, o discurso poético caminha para a frente retornando sobre
seus próprios passos, recuperando os segmentos produzidos,
promovendo-os a formas-tipo citadas e (re)citando-as sem cessar de
modo levemente diferenciado na reescrita das novas formas
ocorrenciais.
Assim, gostaríamos de destacar algumas outras ocorrências interessantes
que evidenciam o cuidadoso trabalho do enunciador para criar uma sofisticada rede
de relações no nível da expressão. Destacamos primeiramente o uso do fonema /v/
exatamente na terceira sílaba poética de dois versos consecutivos (versos 1 e 2):
No / tri / vi / al do sanduíche a morte aguarda.
Naes / qui / va es / curidão da geladeira
O acoplamento (LEVIN, 1975) se ao se relacionar um elemento em dois
níveis diferentes: o fonema /v/ se repete no nível fonológico e está numa mesma
posição na sílaba poética.
Merece destaque também a rima interna formada por “sono solto”, no verso 3,
onde se a repetição tanto de vogais quanto de consoantes; e a escolha dos
vocábulos “imersa” e “impera”, que além de apresentarem as mesmas vogais, na
mesma sequência, estão posicionados no mesmo verso de suas respectivas
estrofes (verso 3). Ocorre também a repetição da mesma sílaba inicial em três
97
vocábulos da mesma estrofe (estrofe 2) formando um cleo endogramático interno
a esse tercerto: inteira – insetos – impera.
Pudemos perceber como se configura um sujeito da percepção e qual o papel
do observador na construção de um texto predominantemente descritivo, além de,
mais uma vez, mostrarmos o imbricamento dos vários níveis do texto na construção
do sentido do poema.
98
7 EXERCÍCIO DE CONDENSAÇÃO: estudo do poema “Para um
monumento ao antidepressivo”
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
(João Cabral de Melo Neto. A educação pela pedra)
Os versos na epígrafe são do poema “Num monumento à aspirina”, integrante
do livro A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto. Paulo Henriques
Britto retoma tal poema em seu “Para um monumento ao antidepressivo”, publicado
em 2007 no livro Tarde, objeto de nossa análise neste capítulo. A intertextualidade
pode ser percebida não apenas pelo título dos poemas, mas também pela figura do
“sol” portátil que é associado aos medicamentos em ambos os textos.
Vejamos a seguir a transcrição dos dois poemas:
Num monumento à aspirina
1.
Claramente: o mais prático dos sóis,
2.
o sol de um comprimido de aspirina:
3.
de emprego fácil, portátil e barato,
4.
compacto de sol na lápide sucinta.
5.
Principalmente porque, sol artificial,
6.
que nada limita a funcionar de dia,
7.
que a noite não expulsa, cada noite,
8.
sol imune às leis de meteorologia,
9.
a toda hora em que se necessita dele
10.
levanta e vem (sempre num claro dia):
11.
acende, para secar a aniagem da alma,
12.
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
13.
Convergem: a aparência e os efeitos
14.
da lente do comprimido de aspirina:
15.
o acabamento esmerado desse cristal,
16.
polido a esmeril e repolido a lima,
17.
prefigura o clima onde ele faz viver
18.
e o cartesiano de tudo nesse clima.
19.
De outro lado, porque lente interna,
20.
de uso interno, por detrás da retina,
21.
não serve exclusivamente para o olho
22.
a lente, ou o comprimido de aspirina:
23.
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
24.
o borroso de ao redor, e o reafina.
Para um monumento ao antidepressivo
1.
Um pequeno sol de bolso
2.
que não propriamente ilumina
3.
mas durante seu percurso
4.
dissipa a espessa neblina
5.
que impede o outro sol, importátil,
6.
de revelar sem distorção
7.
dura, doída, suportável,
8.
a humana condição.
99
A intertextualidade é importante fator de construção do sentido. Conforme
Discini (2004, p. 11), “o texto-base entra como condição de construção de sentido do
discurso da variante intertextual”. No caso em questão, o poema de Britto configura
um exemplo de intertextualidade que podemos chamar de condensação (LOPES,
2003, p. 70). As duas estrofes de João Cabral, contando com 12 versos cada, são
trocadas, no texto de Britto, por também duas estrofes, mas agora de apenas 4
versos cada. Ademais, os versos de Britto são sempre mais curtos que os de Cabral.
O texto fica reduzido ao “essencial” e é bem menos explicativo do que o texto-base.
No monumento à aspirina, traços de concisão o atribuídos ao comprimido, como
se pode ver por “compacto”, “sucinta”, “portátil”, concisão que Britto reproduz tanto
no conteúdo, ao falar do “pequeno sol de bolso”, quanto na expressão, conforme
acabamos de notar (note-se, ainda, que o poema de Britto é todo composto por
apenas uma proposição). Além disso, nos dois textos, o comprimido serve para
“dissipar” algo que atrapalha: a dor de cabeça em Cabral e a “neblina” em Britto.
Passemos à análise do texto. Primeiramente, cabe levantar o significado da
palavra “monumento”. Dentre as acepções fornecidas pelo Dicionário Houaiss,
destacamos as que seguem:
1. obra artística (escultura, arquitetura etc.), geralmente grandiosa, construída com o
fito de contribuir para a perpetuação memorialística de pessoa ou acontecimento
relevante na história de uma comunidade, nação etc.
2. sobrevivência, na memória, de alguma coisa significativa para alguém ou para um
grupo social; recordação, lembrança.
O monumento é, pois, o que é construído para exaltar algo. Normalmente,
porém, o que é euforizado é algo grandioso e não coisas tão prosaicas quanto um
comprimido. Fazendo essa associação, os poetas elevam algo simples a um
estatuto maior, conferindo grande valor ao que descrevem. No poema em questão,
há uma euforização da utilização do “antidepressivo”, figura do nível discursivo,
representada na metáfora do “sol de bolso”, que recobre, nesse mesmo nível, um
actante adjuvante do nível narrativo. Podemos ver a “neblina”, como figurativização
100
de um anti-sujeito que impede o sujeito de enxergar a vida sem distorção. Ela
esconde o que o sujeito precisaria ver. Com a neblina, a condição humana é vista
pelo sujeito de um modo distorcido, pior do que é: parece insuportável mas não é.
O sujeito não possui a modalidade do poder, uma vez que não-pode ver que a vida,
apesar de doída, é suportável e é a “neblina” aqui uma metáfora para a depressão
que o impede disso. Por outro lado, o “sol de bolso”, ou seja, o antidepressivo
presente desde o título, apesar de não iluminar, confere ao sujeito competência para
ver que a vida, apesar de tudo, é suportável. O “sol de bolso” seria, portanto, um
instrumento de poder, doado ao sujeito pelo actante Destinador, que aqui pode ser
compreendido como a “sociedade contemporânea”, que prega valores da felicidade,
do otimismo, da atitude positiva diante da vida. Tal imposição da sociedade atual é
expressa por Britto no poema “II”, da rie “Duas bagatelas”, publicada em Liturgia
da matéria. Segue um trecho do poema:
Então viver é ísso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
Resta ainda falar de mais um actante: o sol “de verdade”, o sol “importátil”,
que tenta revelar ao sujeito a “realidade”, mas é impedido pela neblina. Assim,
temos cinco actantes neste poema. O sujeito (não mencionado diretamente, mas um
sujeito “coletivo”), o objeto (a visão da vida como suportável, apesar dos percalços)
e as figuras da “neblina” e dos “sóis”, de bolso e importátil, atores que são,
respectivamente, anti-sujeito e adjuvantes.
Fontanille (2007) aprofunda a noção de actantes, desdobrando-os, segundo o
ponto de vista, em transformacionais ou posicionais. Os actantes
transformacionais são, segundo o semioticista, definidos pela sua participação junto
às forças que transformam uma conjuntura. Esta noção está ligada a uma lógica
das forças, também ilustrada pela gramática de casos de Charles Fillmore, em que
há uma intencionalidade associada a uma força, havendo actantes afetantes e
actantes afetados, constituindo dois polos de força. No caso de nosso poema, se
101
considerarmos os actantes em questão como transformacionais, vemos que uma
força que emana da “neblina”, atingindo o “sol importátil” (o primeiro, afetante e o
segundo, afetado) e, em seguida, a neblina passa a ser atingida pela força
proveniente do “sol de bolso”, passando a actante afetado, uma vez que agora o
afetante é o “sol de bolso”. A posição dupla da neblina, ora como afetante ora como
afetado é também evidenciada pela sua posição na organização do poema, uma vez
que os versos a seu respeito são o último da primeira estrofe e o primeiro da
segunda estrofe.
Outra proposição feita por Fontanille é que a gica das forças define os
actantes unicamente a partir de sua participação em uma transformação entre dois
estados e de seu engajamento em face dessa transformação. Ora, é exatamente
isso que ocorre com os actantes que acabamos de descrever, pois os dois sóis
estão engajados em fazer o estado modal do sujeito mudar do não-saber para o
saber (saber que a vida, apesar dos percalços, é suportável), e a “neblinaengaja-
se para manter o sujeito num estado de ignorância.
Podemos, ainda, pensar nos actantes deste poema como posicionais e
estes são definidos pelo seu lugar no campo posicional do discurso. A noção de
actantes posicionais é bastante análoga às categorias actanciais previstas por
Greimas. A lógica neste caso não é mais a das forças, mas a dos lugares. Então,
pensando neste tipo de actantes com relação ao poema, o sujeito seria o actante
que ocupa o lugar de fonte e o objeto ocupa o lugar de alvo. Podemos associar
estas posições dos actantes a dois atos perceptivos elementares: a visada e a
apreensão. O actante fonte primeiramente visa o alvo e entra em relação intensiva
ou afetiva com ele; é essa relação afetiva que vai fazer o sujeito querer a conjunção
com o objeto. Num segundo momento, o sujeito apreende o alvo. O par fonte-alvo é
homólogo ao par sujeito-objeto. Um terceiro actante neste modelo é o actante de
controle. Este é responsável por regular a relação entre fonte e alvo. Algumas das
funções destes actantes são a regulagem, o filtro e o obstáculo. No poema que
estudamos, a “neblina” se coloca como obstáculo ao sujeito, sendo, pois, o actante
102
de controle. Com esta noção de actante de controle, consegue-se uma maior
abstração do modelo, comparando com aquele proposto por Greimas, pois, no
modelo de Fontanille, o actante de controle faz as vezes tanto de “adjuvante” ou
“destinador” quanto de “oponente” ou “anti-sujeito”. Partimos então de três posições,
para apenas uma.
Apesar desta classificação, as noções de actantes posicionais e
transformacionais não devem ser separadas. Elas coexistem no discurso,
dependendo da maneira pela qual decidirmos abordar o texto. Além disso, conforme
explica Fontanille, os actantes posicionais não fazem nada por si próprios: eles
apenas ocupam lugares e são movidos por uma energia que os desloca (p. 161). Tal
energia, como já vimos, vem dos actantes transformacionais.
O “sol de bolso”, portátil, próximo do sujeito, está em oposição ao “outro sol,
importátill”, distante. É essa proximidade que faz com que o sujeito se apegue ao
comprimido, que pode levar consigo para onde quer que seja. A construção da
metáfora é feita por meio do emprego dos traços de esfericidade e de brilho do sol, o
astro.
O estado do sujeito que precisa do “sol de bolso” é um estado melancólico. A
definição de melancolia apresentada pelo dicionário Houaiss é “estado afetivo
caracterizado por profunda tristeza e desencanto geral; depressão”. A paixão da
melancolia aparece como depressão, o que vai ao encontro do que afirma Fiorin
(2007, p. 5):
“em nossa época, uma biologização dos estados de alma e, por
isso, a paixão da melancolia desaparece, transformando-se em uma
patologia física, a depressão.”
Em termos de semântica discursiva, existe uma isotopia dos fenômenos
meteorológicos que é dada por “sol” e “neblina” e que forma uma oposição entre
“claro” e “escuro”.
103
Construindo um quadrado semiótico com as figuras do poema, teríamos uma
oposição entre a neblina e o “outro sol, importátil”, uma vez que a neblina esconde e
escurece e o sol importátil revela e ilumina. O “sol de bolso”, por sua vez, estaria
numa posição de não-S1, já que não revela, mas também não esconde, dissipa; não
clareia, mas também não escurece. Vejamos essas posições no quadrado:
A relação entre esses termos pode ser representada tensivamente,
considerando-se, na dimensão da intensidade, o intervalo que vai do fraco ao forte
e, no eixo da extensidade, o intervalo que vai do concentrado ao difuso. A neblina é
“espessa”, ou seja, concentrada. O sol “normal”, por sua vez, está no polo oposto ao
mesmo tempo em que é fraco, pois distante do sujeito (“importátil”). No meio
caminho entre os dois está o antidepressivo. O gráfico a seguir nos ajuda a verificar
tais relações.
Figura 34 – Quadrado semiótico: a neblina e os sóis
neblina
(depressão)
sol real
esconde
escurece
revela
ilumina
?
sol de bolso
(antidepressivo)
dissipa
“não propriamente ilumina”
104
Quanto à organização do poema, vimos anteriormente que ele é construído
com apenas um período, composto por várias orações encaixadas, distribuídas em
duas quadras. Vamos agora levantar algumas ligações entre esses versos do ponto
de vista das correlações entre expressão e conteúdo.
Dos oito versos dos poemas, a metade deles está ligada numa relação entre
o que podemos chamar de apresentação e predicação. Existe um verso que
apresenta um elemento e outro que diz o que esse elemento faz. Mas o verso que
diz o que o elemento faz é justamente o que apresenta o próximo elemento.
Vejamos esse mecanismo com os próprios versos:
v1. Um pequeno sol de bolso (verso que apresenta o antidepressivo).
v.4. dissipa a espessa neblina (verso que diz o que o antidepressivo faz e
que, ao mesmo tempo, apresenta a neblina).
v.5. que impede o outro sol, importátil, (verso que diz o que a neblina faz e, ao
mesmo tempo, apresenta o outro sol).
v. 6 de revelar sem distorção (verso que diz que o outro sol faz).
concentrado
Figura 35 – Relações no espaço tensivo
Intensidade
Extensidade
“sol de bolso”
“espessa neblina”
sol importátil
difuso
fraco
forte
concentrado
105
O verso que diz o que o antidepressivo faz é justamente o verso que
apresenta a neblina. Por sua vez, o verso que diz o que a neblina faz é justamente o
que apresenta o sol importátil.
Dos 4 versos destacados, dois acumulam duas funções: tanto a de apresentar
quanto a de predicar um elemento, evidenciando ainda mais o que comentamos
acima sobre o poema ser da ordem da condensação. O quadro abaixo mostra os
versos aos quais nos referimos.
Apresentação
Um pequeno sol de bolso Antidepressivo (sol de bolso)
dissipa a espessa neblina Neblina
que o impede o outro sol, importátil Sol importátil
Predicação
dissipa a espessa neblina Antidepressivo (sol de bolso)
que o impede o outro sol, importátil Neblina
de revelar sem distorção Sol importátil
Considerando a divisão dos versos, percebemos que as estrofes 1 e 2
apresentam similaridades no que diz respeito à organização do plano da expressão,
bem como a distribuição das classes gramaticais. Cada uma das estrofes possui
exatamente dois verbos: A estrofe 1 tem “ilumina” e “dissipa”, ao passo que a 2 tem
“impede revela”. No plano fonológico, nas duas estrofes maioria de vogais
anteriores e não-arredondadas e consoantes oclusivas.
Por outro lado, constrastes são encontrados se considerarmos uma categoria
topológica “versos pares” versus “versos ímpares”, como vimos acontecer em
outro poema analisado neste trabalho. Tomando tal divisão como base,
Figura 36 – Apresentação versus predicação
106
encontramos contrastes em vários planos do texto. Os versos pares concentram três
verbos (“ilumina”, v.2; “dissipa”, v.4; “revelar”, v.6) contra apenas um dos ímpares
(“impede”, v. 1), relação que se inverte quanto à quantidade de adjetivos, que os
pares apresentam apenas dois (“espessa”, v.4; “humana, v.8”) e os ímpares cinco
(“pequeno”, v.1; “importátil”, v.5; “dura”, “doída”, “suportável”, v.7) , além da locução
adjetiva “de bolso” (v.1). Os versos pares possuem apenas substantivos femininos
(“neblina”, v.4; “condição”, v.8) e os ímpares apenas masculinos (“sol”, v.1 e v. 5;
“bolso”, v.1; “percurso”, v.3). Os versos pares contêm todos os adjuntos adverbiais
do texto (“propriamente”, “não”, v.2; “sem distorção”, v.6). As rimas dos versos pares
alternam-se entre graves (palavras paroxítonas) e agudas (palavras oxítonas),
enquanto as dos ímpares o apenas graves. paralelismo sintático nos versos
pares, enquanto não o há nos ímpares. Os versos 4 e 8, justamente os que
terminam cada estrofe, apresentam a sequência artigo + adjetivo + substantivo:
v.4: “a + espessa + neblina”
v.8: “a + humana + condição
Os versos 2 e 6, por sua vez, apresentam os mesmos elementos gramaticais,
mas em posições invertidas, formando um “quiasmo gramatical”:
v.2: “propriamente ilumina”
v.6: “revelar sem distorção
Figura 38 – “Quiasmo gramatical”
Figura 37 – Paralelismo gramatical
107
Além disso, da mesma forma que com os versos 4 e 8, uma semelhança
posicional, pois ambos são o segundo verso de cada estrofe.
Do ponto de vista fonético-fonológico, os versos pares apresentam maioria de
consoantes sonoras, enquanto os ímpares, surdas. Os versos pares contêm
majoritariamente vogais anteriores (/e/ e /i/) e os ímpares possuem, em sua maioria,
vogais posteriores ( /o/ e /u/).
O quadro a seguir resume as oposições de que acabamos de tratar:
Versos pares Versos ímpares
Maior quantidade de verbos Menor quantidade de verbos
Menor quantidade de adjetivos Maior quantidade de adjetivos
Substantivos femininos Substantivos masculinos
Com adjuntos adverbiais Sem adjuntos adverbiais
Com paralelismo de estruturas Sem paralelismos de estruturas
Rimas ou graves, ou agudas Apenas rimas graves
Maioria das consoantes sonoras Maioria das consoantes surdas
Maioria das vogais anteriores Maioria das vogais posteriores
Existem ainda outras ocorrências, que destacaremos agora, que mostram o
trabalho sobre o plano da expressão. Logo no verso 1, temos a expressão “sol de
bolso”, na qual podemos ver que a palavra “sol” está também contida,
anagramatizada, conforme destacado, na palavra “bolso”. Assim, a expressão que
é uma locução adjetiva que qualifica o substantivo “sol”, apresenta, mais uma
relação com esse substantivo, que é a relação sonora.
Figura 39 – Versos pares versus versos ímpares
108
Observamos, também, a sequência sonora “p + vogal + r”, ao longo de todo o
poema, constituindo um núcleo endogramático, conforme explicado em capítulos
anteriores. Vejamos:
v.3: percurso
v.5: importátil
v.7: suportável
Note-se que a repetição da sequência destacada ocorre sempre em versos
ímpares, mais uma vez ressaltando os contrastes entre versos ímpares e pares,
dentro do poema, formando dois conjuntos coesos, mas opostos, fazendo com que
“pares” versus “ímpares” se torne uma categoria posicional do plano da expressão.
Os fonemas da sequência que acabamos de descrever aparecem também
justapostos (mas em outra ordem) duas vezes no verso 2, criando também uma
ressonância: “que não propriamente ilumina”. E existe outra rima interna dentro de
um mesmo verso em “que impede o outro sol, importátil,”, com a repetição da
sequência –imp em dois pontos do verso.
E um trabalho anagramático e de acoplamento também pode ser visto nos
versos 5, 6 e 7, onde ocorre sempre a combinação “consoante + /o/ + /r/”, e sempre
na segunda sílaba da palavra onde aparece, sendo que a palavra é sempre a última
em cada verso:
v.5 importátil
v.6 distorção
v.7 suportável
Não podemos deixar de destacar o verso 4: “dissipa a espessa neblina”, onde
há um quiasmo fonológico dos fonemas /s/ e /p/ em “dissipa” e “espessa”. Vejamos:
109
di ssi pa
es pe ss a
No verso 7 (“dura, doída, suportável,), os dois adjetivos que estão ligados às
dificuldades ou aos obstáculos da vida “dura” e “doída” são compostos por
consoantes oclusivas, ao passo que o terceiro adjetivo do mesmo verso
“suportável” é formado pela mesma quantidade de oclusivas e fricativas, o que
pode ser ligado ao fato de que a “condição humana” não é totalmente perfeita,
“fluida”, mas é suportável. Fica portanto num meio termo entre o obstáculo e a
“fluidez” e por isso não a oposição com o uso de fricativas, mas de um adjetivo
que misture os dois tipos de consoantes.
Os versos 1 e 5 são ambos versos que iniciam estrofes e apresentam ao
mesmo tempo uma similaridade e um contraste. A primeira se porque os dois
apresentam a palavra “sol”. o contraste ocorre porque enquanto o primeiro trata
da portabilidade (“sol de bolso”), o segundo trata do seu oposto (“sol importátil”).
São pertinentes algumas considerações acerca do fazer anagramático.
Lembremo-nos que, conforme explicado no capítulo 1, um anagrama é a
transposição dos sons ou módulos-fônicos presentes na palavra-tema, para outras
partes dentro do poema. Por sua vez, a palavra-tema é aquela que serve de base
para o restante de um verso ou do poema todo.
Em “Para um monumento ao antidepressivo”, a própria palavra
“antidepressivo” do título é que funciona como uma palavra-tema, que tem os
seus fonemas propagados ao longo do poema. Os fonemas consonantais presentes
em tal palavra se repetem ao longo de todo o texto. Claro que outras consoantes,
mas as que provêm da palavra-tema são a grande maioria. De todo o inventário de
Figura 40 – “Quiasmo fonológico”
110
fonemas consonantais do português, apenas seis
48
representam cerca de 70% de
todas as consoantes do poema.
O quadro a seguir nos ajuda a visualizar estes dados quantitativos:
Abaixo transcrevemos mais uma vez o poema, destacando todas as
ocorrências dos fonemas consonantais provenientes da palavra-tema
“antidepressivo”:
Para um monumento ao antidepressivo
1.
Um pequeno sol de bolso
2.
que não propriamente ilumina
3.
mas durante seu percurso
4.
dissipa a espessa neblina
5.
que impede o outro sol, importátil,
6.
de revelar sem distorção
7.
dura, dda, suportável,
8.
a humana condição.
48
Estamos considerando os fonemas e não os alofones (Cf. SILVA, 2003, p. 135).
TOTAL de
consoantes
do poema:
69
100% 100%
/t/
6 9%
72%
/d/
9 13%
/p/
9 13%
/R/
11 16%
/S/
13 19%
/v/
2 3%
outros
fonemas
consonantais
19 28%
28%
Figura 41 – Distribuição dos fonemas consonantais
111
O estudo que apresentamos mostrou que “Para um monumento ao
antidepressivo” foi composto num regime de condensação, percebido, numa
primeira leitura, pelo tamanho do poema e, por meio de uma leitura mais
detalhada, pelos diversos relacionamentos entre níveis diferentes do poema,
condensando ou acumulando várias relações de níveis diferentes em apenas
poucas linhas, ou, no nível fonológico, se construindo com poucos fonemas que se
repetem. Além disso, pudemos mostrar a aplicabilidade dos modelos actanciais de
Fontanille e a a ocorrência do fazer anagramático explicitado por Saussure e
retomado por Zilberberg.
112
CONCLUSÃO
dizia Umberto Eco que uma tese “é como um porco: nada se desperdiça”
(2005, p. 173). Apesar de jocosa, essa frase expressa bem o nosso estado atual,
pois, ao concluir essa dissertação, resta-nos a sensação de que aproveitamos cada
momento no percurso da pesquisa, aprofundando nossos conhecimentos sobre a
teoria semiótica, sobre a poesia, sobre a literatura contemporânea, sobre Paulo
Henriques Britto e, acima de tudo, aprendendo a lidar com a complexidade e as
vicissitudes do trabalho científico. Nada foi desperdiçado. Mesmo aquelas leituras,
ideias ou indagações que surgiram ao longo do caminho e que não foram
aproveitadas diretamente na redação final contribuíram sobremaneira para forjar o
nosso “perfil pesquisador” de agora, certamente muito distinto daquele do início de
nossa jornada.
Nosso trabalho consistiu em análises minuciosas de cinco poemas do poeta
brasileiro contemporâneo Paulo Henriques Britto, apoiando-se no modelo semiótico
de orientação greimasiana. O estudo dos poemas escolhidos foi bastante proveitoso,
permitindo-nos realizar uma descrição minuciosa dos seus planos da expressão e do
conteúdo, ajudando a preencher a lacuna de estudos mais profundos acerca dos
poemas de Britto e evidenciando as estratégias de que se vale o enunciador para
engendrar os efeitos de sentido dos textos. Cada poema do corpus surgia para s
como um enigma a ser desvendado. E cada análise, como um trabalho árduo de
investigação.
Em todos os poemas, a descrição dos imbricamentos entre os vários níveis
do texto mostrou-se deveras relevante uma vez que revelou a engenhosidade
literária por trás de sua construção. Assim, nossas análises permitiram, ainda, testar
as hipóteses das investigações estruturais de poesia que primam pela capacidade
de evidenciar as similaridades e os contrastes que atuam na geração do sentido nos
113
diversos níveis. Ao cabo de nosso estudo, fica a certeza de que tais imbricamentos
não são casuais, mas sistematicamente trabalhados. A observação das
peculiaridades fonético-fonológicas e gramaticais, bem como a observação da
posição/distribuição dos versos no poema não é gratuita e é imprescindível para que
compreendamos a sua grandeza estética, como explica Jakobson (2004, p. 82):
Tanto um cálculo de probabilidade quanto um trabalho acurado de
comparação dos textos poéticos com outras espécies de mensagens
verbais demonstram que as peculiaridades marcantes dos processos
poéticos de seleção, acumulação, justaposição e distribuição das
diversas classes fonológicas e gramaticais não podem ser
consideradas acidentes desprezíveis regidos pela lei do acaso.
Qualquer composição poética significativa, seja um improviso, seja
fruto de longo e árduo trabalho de criação, implica escolha do
material verbal, escolha esta orientada num sentido determinado [...].
Ele (o poeta) pode não ter consciência das molas mestras desse
mecanismo, e isso ocorre com muita freqüência. Porém, embora
incapaz de especificar os procedimentos pertinentes à sua criação, o
poeta e também seu leitor receptivo percebe a superioridade
artística de um texto dotado desses componentes sobre um outro
similar, mas privado deles.
Gostaríamos de ressaltar que, no decorrer da pesquisa, tanto por meio dos
poemas que analisamos quanto pelos outros que apenas lemos, foi possível atestar
o trabalho de “arquitetura da palavra” realizado por Britto na elaboração de seus
textos e sua habilidade em articular os diversos elementos linguísticos em prol da
significação, criando poemas aparentemente simples, mas que contam com a
construção de uma sofisticada rede de relações tanto no plano da expressão, quanto
do conteúdo.
Quisemos, ainda, na esteira de Jakobson, defender uma análise linguística de
textos poéticos evidenciando a importância da interseção entre os dois campos de
estudos (a Linguística e a Literatura). Sobre as relações entre essas duas áreas do
conhecimento, retomamos uma vez mais as palavras do linguista (JAKOBSON,
1969, p. 162):
114
[...] compreendemos definitivamente que um linguista surdo à função
poética da linguagem e um especialista de literatura indiferente aos
problemas linguísticos e ignorante dos métodos linguísticos são, um
e outro, flagrantes anacronismos.
Nossas análises partiram de um ponto de vista prioritariamente linguístico por
acreditarmos que é o trabalho com a língua que faz de um poema um texto literário.
Como diz Pietroforte (2008, p. 247)
“a poesia e a prosa são feitas, antes de tudo, de signos verbais e
processos discursivos [...]. Há coerções históricas e sociais, sem
dúvida, mas estas pertencem ao humano em todas as suas
atividades discursivas, sejam elas literárias ou não”.
Nesse sentido, nossas reflexões ecoam as de Cohen (1974, p. 38) que afirma
que “[...] a poesia é imanente ao poema, tal deve ser seu princípio sico [...]. O
poeta é poeta não pelo que pensou ou sentiu, mas pelo que disse [...]. Todo seu
gênio reside na invenção verbal”. Ou seja, o que faz do poema um poema é, em
primeiro lugar, o trabalho diferenciado com a língua.
Ao prefacear dois estudos de semiótica poética realizados por Thierry Metzer,
Fontanille (2004, p. 5, tradução nossa) diz:
Thierry Metzer propõe dois estudos de semiótica poética retomando
e testando algumas fases das abordagens estruturais do discurso
poético: a de Jakobson, a de Greimas, a de Geninasca, e, mais
recentemente, a da semiótica das paixões e da semiótica tensiva.
É semelhante ao que fez Metzer (2004) o que procuramos fazer por meio das
análises que apresentamos: pôr à prova a adequação e a pertinência da teoria
semiótica no estudo de poemas, retomando em nossas análises várias fases do
desenvolvimento da disciplina, valendo-nos tanto dos conceitos consolidados da
teoria semiótica quanto dos desenvolvimentos mais atuais na área da semiótica
tensiva.
115
Aliás, a presença desta última vertente é uma constante no decorrer deste
trabalho, o que nos permitiu tratar mais acuradamente dos conteúdos sensíveis,
que a semiótica tensiva nasceu da necessidade de preencher uma lacuna existente
no modelo semiótico estrutural (calcado em análises do discreto, com atenção
prioritariamente voltada para a narratividade, para o fazer), passando a considerar
em primeiro plano o contínuo, o dinâmico, o gradual e centrando seus estudos na
primazia do ser. Nos poemas que estudamos, o sujeito foi sempre muito mais um
sujeito do sentir, do perceber do que do fazer. O resultado de nossas análises teria
sido bastante incompleto se não tivéssemos lançado mão dos conceitos dessa
abordagem. Além disso, acreditamos ter demonstrado a operacionalidade de novos
desenvolvimentos conceituais da semiótica francesa.
Por fim, diante da carência de estudos intrínsecos do fazer poético,
esperamos que este trabalho possa ser lido e aproveitado por outras pessoas que
futuramente queiram engajar-se nos estudos desta natureza. Esperamos também,
ainda que modestamente, contribuir para os estudos da obra poética de Britto e para
uma avaliação mais justa do valor de sua contribuição em nosso quadro
contemporâneo, bem como, num plano mais geral, para o aumento das
investigações acerca da literatura brasileira dos dias atuais.
116
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_______. Eléments de grammaire tensive. Limoges: Pulim, 2006c.
_______. Louvando o acontecimento. Revista Galáxia. Tradução de Maria Lucia
Vissotto Paiva Diniz. São Paulo, n. 13, p. 13-28, jun. 2007.
124
ANEXOS
ANEXO A – “Nova Poética” (Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira).
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito.
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e
[na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe
[o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e
[as amadas que envelheceram sem maldade.
19 de maio de 1949
ANEXO B “III”, da rie “Sete estudos para a mão esquerda” (Paulo Henriques
Britto, Trovar Claro).
Sou uma história, a voz que a conta, e o imenso
desejo de contar outra diversa,
que porém não deixasse de ser essa.
Palavra que não digo e que não penso
e no entanto escrevo – eu sou você?
(Mas não era isso o que eu ia dizer,
e sim uma outra coisa, obscura e bela,
que sei, com um certeza visceral,
ser a verdade última e total –
e só por isso já não creio nela,
pois a certeza, tal como a memória,
é por si só demonstração sobeja
da falsidade do que quer que seja – )
Mas isso já seria uma outra história.
125
ANEXO C – “Maçã” (Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira).
Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placen-
[tário
És vermelha como o amor divino
Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente
E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.
Petrópolis, 25.2.1938
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