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PETER DIETRICH
SEMIÓTICA DO DISCURSO MUSICAL
Uma discussão a partir das canções de Chico Buarque
Tese apresentada à Área de Semiótica e Lingüística
Geral do Departamento de Lingüística da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para a obtenção do título
de Doutor.
Orientador:
PROF. DR. LUIZ AUGUSTO DE MORAES TATIT
SÃO PAULO
2008
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Para Luiza e Pedro,
pequenas pessoas ainda,
mas já grandes companheiros,
verdadeiros criadores do sentido de tudo e todas as coisas.
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AGRADECIMENTOS
Ao mestre Luiz Tatit, pelos preciosos ensinamentos, e pela renovada disposição
em acompanhar mais esse empreendimento.
Ao professor Ulisses Rocha, grande responsável pela minha iniciação no terreno
musical, pelo apoio desde os tempos da graduação na UNICAMP.
Ao CNPq, pela bolsa concedida para o desenvolvimento desse trabalho, e ao
programa de pós-graduação do departamento de lingüística da FFLCH-USP pelo
acolhimento e apoio a essa pesquisa.
Um agradecimento mais que especial ao amigo Ivã Carlos Lopes, parceiro na
fundação do Gesusp, na edição da revista Estudos Semióticos, na organização dos Mini-
Enapóis e Seminários de Semiótica na USP, e parceiro também nas muitas discussões
sobre esse e outros trabalhos.
Aos professores José Luiz Fiorin, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, Norma
Discini, Waldir Beividas, Ana Cristina Fricke Matte e Ricardo Castro Monteiro pelas
aulas, obras e discussões que tanto enriqueceram a mim e a esse trabalho.
À Sônia Albano de Lima e todos os amigos da Faculdade de Música Carlos
Gomes, pelo interesse na minha pesquisa e pelo apoio.
Ao amigo e compadre André Vasconcellos, pelo apoio constante na longa
jornada, e pelas diversas contribuições diretas a essa tese.
Aos grandes amigos Francisco Merçon, Juliana di Fiori Pondian e Dílson
Ferreira da Cruz, pelo carinho, apoio e amizade sempre constantes.
Aos professores Mozart Melo, José Roberto Zan, Claudiney Carrasco, Ricardo
Goldemberg, Paulo Justi, Gogô, Ciro Pereira, Fernando Faro, Eduardo Andrade, Mara
Leporace, Sérgio e Sidney Molina, Fernando de la Rua, Alexandre Zilahi, e todos
aqueles que me acompanharam na aventura do saber.
Aos amigos da música, Estevan, Guto, Denise, Fábio, Joana, Flávio, Cláudio,
Renato, Carla, Carlos, Tiê , Evandro, Rogério, Paula, Ana, Mônica, Vivian.
Aos amigos da semiótica, Márcio Coelho, José Roberto do Carmo Jr., Renata
Mancini, Maria Rita Arêdes, Fabiane Borsato, Lucas Takeo Shimoda, Bruna Paola
Zerbinatti, Camila Kinzel e todos do Gesusp.
Aos meus alunos, que tanto me ensinaram, muitas vezes sem saber.
À Maria José Lima Lordelo, pelo apoio e incentivo, e pelos dias de absoluta paz,
que representaram uma ajuda efetiva para o desenvolvimento da pesquisa.
À minha mãe, Sonia Machado de Campos Dietrich, pelo carinho e pelo infalível
apoio em tudo e todas as coisas.
Ao meu pai Carl Peter von Dietrich (in memoriam) e Helena Nader, pelo
carinho e constante incentivo à pesquisa.
Às minhas irmãs Flávia, Paula e Júlia, pelo carinho e apoio constantes.
Finalmente, à Carina, pelos muitos anos de parceria, e aos meus filhos Pedro e
Luiza, pelo fornecimento contínuo de amor e motivação.
RESUMO
Ao longo das últimas três décadas observamos o progressivo interesse que a
semiótica da canção popular desenvolvida por Luiz Tatit a partir da semiótica
greimasiana vem despertando no meio acadêmico. Situada na fronteira dos domínios da
lingüística e da música, e justamente por isso, a canção se apresenta como um objeto de
difícil análise. Teorias específicas para o componente verbal e musical raramente se
compatibilizam a ponto de permitirem uma análise homogênea. O êxito obtido até agora
pela semiótica greimasiana pode em parte ser explicado por sua forte vocação para a
multidisciplinaridade, a despeito de sua origem e tradição lingüística.
Em suas formulações iniciais foram considerados apenas alguns parâmetros
musicais que estruturam a melodia da canção. Dessa maneira, poderíamos afirmar que
em um primeiro momento a canção foi considerada uma “palavra cantada”, opondo-se a
“palavra falada” da nossa fala cotidiana. Percebemos que parte dos esforços dos
pesquisadores que se dedicam ao desenvolvimento dessa teoria consiste em tentar
incorporar cada vez mais elementos musicais.
A partir de uma revisão crítica da literatura atual, esse trabalho discute e propõe
procedimentos de semiotização do material musical, especialmente no que se refere ao
timbre e às questões de harmonia. Para garantir a coerência necessária com os
fundamentos da teoria, propusemos a distinção entre o discurso da produção musical e o
discurso musical propriamente dito, discutimos a relação entre plano da expressão e
plano do conteúdo no discurso musical, assim como sua organização hierárquica.
Dentro dessa diversidade de assuntos e abordagens, elegemos como fio condutor
do trabalho a obra cancional de Chico Buarque, que representa a um só tempo a fonte de
indagações e a sustentação dos resultados obtidos.
Palavras chave: semiótica; música; canção; harmonia; timbre.
ABSTRACT
Throughout the last three decades it has been observed the increasing interest of
the academic environment on the semiotic theory of popular song developed by Luiz
Tatit, based on greimasian semiotics. Situated midway between linguistics and music,
and exactly because of that, songs are difficult to analyse. Specific theories for the
verbal and the musical components are rarely compatible enough to allow an
homogeneous analysis. The success achieved so far by greimasian semiotics can in part
be explained by its strong multidisciplinary vocation , in spite of its linguistic origin.
In its initial formulation, only musical parameters that structuralyze the song’s
melody had been considered. Therefore, it could be said that, at first, the song was
considered a "sung word", as opposed to the "spoken word" of our daily speech. Part of
the efforts of the researchers dedicated to the development of this theory consists in
trying to incorporate increasingly more musical elements.
Based on a critical review of the current literature, the present work discusses
and proposes semiotization procedures of the musical material, especially timbre and
harmony aspects. To guarantee the necessary coherence with the theory’s foundations,
we propose the distinction between the speech of musical production and the musical
speech per se; we discuss the relationship between expression and content in the
musical speech, as well as its hierarchic organization.
Within this diversity of subjects and approaches, we chose the songs composed
by Chico Buarque as a guideline, as a source of the investigation as well as a support of
the results.
Keywords: semiotics; music; song; harmony; timbre.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS................................................................................................... 3
RESUMO......................................................................................................................... 6
ABSTRACT .................................................................................................................... 7
SUMÁRIO....................................................................................................................... 8
1. Introdução................................................................................................................. 10
1.1 A canção no Brasil.......................................................................................... 10
1.2 A canção e a semiótica da canção na FFLCH-USP........................................ 11
1.3 Estrutura do trabalho ...................................................................................... 17
2. Discurso musical e discurso de produção musical................................................. 19
3. Semiótica musical: plano da expressão, plano do conteúdo ................................. 37
3.1 O sentido musical ........................................................................................... 37
3.2 Expressão e conteúdo ..................................................................................... 40
4. Níveis de descrição no discurso musical ................................................................. 48
4.1 Primeira formulação ....................................................................................... 48
4.1.1 Macroforma ................................................................................................... 52
4.1.2 Forma............................................................................................................. 67
4.1.3 Uma análise: “Garota de Ipanema” ............................................................... 73
4.1.4 Frase .............................................................................................................. 88
4.1.5 Célula............................................................................................................. 98
4.1.6 Intervalo....................................................................................................... 108
4.1.7 Nota ............................................................................................................. 111
4.1.8 Semiótica da canção .................................................................................... 112
4.2 Música e glossemática........................................................................................ 118
4.2.1 Restrições do modelo .................................................................................. 118
4.2.2 Aparelho fonador e instrumentos musicais ................................................. 122
4.2.3 Constituintes e caracterizantes .................................................................... 125
4.2.4 Hierarquia melódica .................................................................................... 129
4.2.5 Células e silabação....................................................................................... 133
5. Estatuto semiótico do timbre................................................................................. 137
6. Harmonia................................................................................................................. 149
6.1 Harmonia na teoria musical.......................................................................... 149
6.2 Harmonia e harmonias.................................................................................. 157
6.3 Narrativa harmônica ..................................................................................... 167
6.4 Harmonia e aspectualização ......................................................................... 173
6.5 Harmonia da melodia.................................................................................... 176
6.6 Harmonia do arranjo..................................................................................... 183
6.7 Modulações (deslocamento de centro tonal) ................................................ 190
7. Ritmo ....................................................................................................................... 196
8. Três análises............................................................................................................ 200
8.1. A história de Lily Braun: valores de absoluto e de universo........................ 200
8.2. Eu te amo: surpresa e espera......................................................................... 215
8.3. A ostra e o vento: a eficácia de um modelo.................................................. 227
9. Considerações finais ............................................................................................... 245
10. Referências Bibliográficas ................................................................................... 250
Introdução 10
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1. Introdução
1.1 A canção no Brasil
“Você tem uma idéia incrível? É melhor fazer uma canção. Está provado que
é possível filosofar em alemão” (VELOSO, 1984). Extraídos da canção Língua” de
Caetano Veloso, esses versos impregnados de verdade e ironia dão a mostra da
importância a que chegou a canção no Brasil. Desde as semi-eruditas modinhas
imperiais até o surgimento de um “rock nacional”, passando pelo tropicalismo e bossa-
nova, a canção foi eleita lugar privilegiado para a manifestação das idéias e ideais da
cultura brasileira. Ela foi a um tempo o objeto e o veículo de discussões sobre
questões sociais, culturais, econômicas e raciais. Polêmicas como as de Noel Rosa e
Wilson Batista sobre a autenticidade do samba, a crítica a um americanismo infiltrado -
e uma traição nacional - no surgimento da bossa-nova, sob a forma da “influência do
jazz”, arte engajada vs. arte alienada, imperialismo cultural na adoção da guitarra
elétrica, rural vs. urbano, axé vs. rock: a canção é o nervo exposto da cultura brasileira.
Não é à toa que ao longo da nossa história ela tem sido o centro de atenção não de
compositores e músicos, mas também de acadêmicos e estudiosos.
A canção vem recebendo atenção tanto de músicos e letristas especializados,
dotados de amplo conhecimento técnico, quanto de compositores “intuitivos”, que
atuam aparentemente sem nenhum estudo formal da língua ou de música. No entanto,
existe um elo que une os cancionistas de todos os gêneros musicais, sejam eles
intuitivos ou especializados. Esse elo provém do duplo desafio implícito ao ato de
compor. O cancionista deve cristalizar sua obra em canção, seja ela uma idéia, um
acontecimento ou um sentimento. Depois ele deve persuadir seu ouvinte, ou seja,
Introdução 11
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convencê-lo de que aquilo que sua canção diz é verdadeiro. A perícia de um cancionista
é justamente a medida da eficácia na solução deste duplo desafio, que independe do
estudo formal. Eficácia aqui não é um julgamento do que é belo, apropriado ou original,
mas sim o resultado de uma estratégia de persuasão.
Caracterizar um determinado compositor não é, portanto, apenas listar sua obra e
relacioná-la a sua biografia. O que caracteriza um compositor, o que faz com que ele
seja de fato único, é o conjunto de estratégias e procedimentos por ele utilizados no
conjunto de sua obra.
1.2 A canção e a semiótica da canção na FFLCH-USP
A relação entre diversos cursos que compõem a FFLCH e a música popular não
é recente. Silvano Baia defende em sua dissertação de mestrado “A pesquisa sobre
música popular em São Paulo” que é da FFLCH a primeira dissertação de mestrado em
música popular no estado paulista:
Encontramos trabalhos sobre música popular em 14 programas de s-
graduação na FFLCH: antropologia social sociologia filosofia - geografia
humana - história social - história econômica - semiótica e lingüística geral -
filologia e língua portuguesa ngua inglesa e literatura inglesa e norte-
americana - literatura brasileira - língua e literatura italiana - ngua hebraica,
literatura e cultura judaica - teoria literária e literatura comparada. É da FFLCH a
primeira dissertação sobre música popular defendida no Estado de São Paulo, em
1971: Canção popular e indústria cultural {1}, de Othon Fernando Jambeiro
Barbosa. (BAIA, 2005, p. 45)
Entre 1971 e 2004, foram defendidas 63 dissertações e teses sobre música
popular na FFLCH, sendo 33 delas nas áreas de letras e lingüística. Neste mesmo
Introdução 12
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período, a ECA (Escola de comunicação e Artes), que iniciou seu mestrado em 1971 e o
doutorado em 1980 produziu 30 (21 nos cursos de Comunicação, 9 nos cursos de Arte).
Duas décadas se passaram desde a defesa da tese de doutorado de Luiz Tatit,
“Elementos semióticos para uma tipologia da canção popular brasileira” (1986a), na
área de Semiótica e Lingüística geral, FFLCH-USP. Esse foi o segundo trabalho
apresentado em nível de pós-graduação em semiótica musical no Brasil: o primeiro foi a
dissertação de mestrado defendida pelo próprio Tatit em 1982, “Por uma semiótica da
canção popular”, neste mesmo departamento. Ao longo desses vinte e seis anos, dezenas
de pesquisadores vêm realizando trabalhos de aplicação e desenvolvimento da semiótica
musical, especialmente em canção popular, fato que comprova não o interesse pelo
tema, mas também a longevidade da teoria:
- Semiótica da canção: fundamentos para uma construção do sentido melódico e
lingüístico, de Luiz Tatit, tese de livre docência, 1994.
- Blanco/Bosco: arte e resistência, de Ciley Cleto, 1996, Mestrado. Orientador: Luiz
Tatit.
- Sgt Pepper na roda do senhor da dança: uma abordagem da capa e das letras do álbum
dos Beatles, de Márcia Angélica dos Santos, 1996, Mestrado. Orientador: Luiz Tatit .
- A desinvenção do som: leituras dialógicas do tropicalismo, de Paulo Eduardo Lopes,
1996, Doutorado. Orientador: Diana Luz Pessoa de Barros.
Introdução 13
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- A paixão no samba-canção: uma leitura semiótica, de Álvaro Antônio Caretta, 1997,
Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- Análise do Discurso Musical: Uma Abordagem Semiótica, de Ricardo Nogueira de
Castro Monteiro, 1997, Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- A paixão no samba-canção: uma leitura semiótica, de Álvaro Antonio Caretta, 1997,
Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- Abordagem semiótica de historias e canções em discos para crianças, de Ana Cristina
Fricke Matte, 1998, Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- Dicção dos intérpretes da canção popular: uma abordagem semiótica, de Sérgio
Fernando Campanella de Oliveira, 1999, Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- Para uma aprendizagem musical integrada, de Ricardo Breim, 2001, Mestrado.
Orientador: Luiz Tatit.
- Elementos para a análise semiótica do arranjo na canção popular brasileira, de Márcio
Luiz Gusmão Coelho, 2002, Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- Vozes e canções infantis brasileiras: emoções no tempo, de Ana Cristina Fricke Matte,
2002, Doutorado. Orientador: Luiz Tatit.
Introdução 14
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- O sentido na música: semiotização de estruturas paradigmáticas e sintagmáticas na
geração do sentido musical, de Ricardo Nogueira de Castro Monteiro, 2002, Doutorado.
Orientador: Luiz Tatit.
- Araçá Azul: uma análise semiótica, de Peter Dietrich, 2003, Mestrado. Orientador:
Luiz Tatit.
- Chico Buarque e a transgressão: análise semiótica de três canções, de Eduardo
Calbucci, 2003, Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- Plano da expressão verbal e musical: uma aproximação glossemática, de José Roberto
do Carmo Júnior, 2003, Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- A canção e a criança: a imagem da criança em canções infantis de produção
fonográfica, de Roseli Novak, 2005, Mestrado. Orientador: Luiz Tatit.
- Dinamização nos níveis do percurso gerativo: canção e literatura contemporânea, de
Renata Ciapone Mancini, 2006, Doutorado. Orientador: Luiz Tatit.
- A música de Hermeto Pascoal: uma abordagem semiótica, de Marcos Augusto Galvão
Arrais, 2006, Mestrado. Orientador: Antonio Vicente Seraphim Pietroforte.
- O arranjo como elemento organicamente ligado à canção popular brasileira: uma
proposta de análise semiótica, de Márcio Luiz Gusmão Coelho, 2007, Doutorado.
Orientador: Luiz Tatit.
Introdução 15
___________________________________________________________________________________
- Melodia & prosódia: um modelo para a interface música-fala com base no estudo
comparado do aparelho fonador e dos instrumentos musicais reais e virtuais, de José
Roberto do Carmo Júnior, 2007, Doutorado. Orientador: Luiz Tatit.
Todos os trabalhos acadêmicos defendidos ou publicados sobre música popular
até o início da década de 80 dedicam-se quase exclusivamente ao estudo da letra. Até
então não existia uma ferramenta capaz de descrever, dentro de um campo teórico
homogêneo, a interação entre os fenômenos verbais e musicais presentes na canção.
Essa lacuna foi preenchida pela Semiótica da Canção, cujo foco de estudo era
justamente a melodia das canções, ponto de interseção entre o verbal e o musical,
conduzida pela “dicção” do compositor e do intérprete. Neste sentido, a acepção de
canção se aproxima ao conceito de “palavra cantada”, em oposição à “palavra falada”,
ou seja, a fala cotidiana.
Podemos perceber que recentemente alguns dos trabalhos propostos pelos
próprios orientandos de Luiz Tatit estão trazendo para o centro das investigações
elementos que foram, em um primeiro momento da teoria, colocados em segundo plano.
Em 1999, Sérgio Oliveira propõe um estudo da dicção dos intérpretes a partir do timbre
e da intensidade. Em 2002 e 2007, Márcio Coelho preocupa-se com o estudo do arranjo,
a partir de uma abordagem semiótica. Ricardo Monteiro, em 1997 e 2002, propõe
estudos aplicáveis ao discurso musical em um sentido mais amplo, não restrito ao
território da canção. Monteiro é o pioneiro no Brasil na aplicação da semiótica
greimasiana ao estudo da música instrumental. Destacamos aqui seus esforços - também
pioneiros - em determinar a importância estrutural dos intervalos na geração do sentido,
em enfatizar os movimentos de abertura e fechamento presentes em todas as categorias
musicais, assim como os primeiros passos dados para uma descrição da harmonia em
Introdução 16
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termos de aspectualização e narratividade. O diálogo com sua obra é ponto de partida
para qualquer estudo teórico em semiótica musical.
Podemos perceber que o modelo semiótico destinado ao estudo da “palavra
cantada” vai pouco a pouco caminhando para um estudo musical mais abrangente. O
enriquecimento do modelo com ferramentas capazes de dar conta de elementos
puramente musicais é uma conseqüência inevitável do campo de estudo, já que a canção
popular raramente se manifesta a cappella, mas sim dentro de uma complexa rede de
produção de significados musicais. É necessário entender a atuação dos arranjadores,
instrumentistas e intérpretes dentro desta rede de significados. Estudos neste caminho
poderão abrir novas linhas de pesquisa, além de possibilitar um melhor entendimento
dos mecanismos implicados na produção de sentido na própria melodia das canções.
Além disso, acreditamos que o desenvolvimento de algumas pesquisas em semiótica
musical especialmente as que se referem ao timbre - poderão ser muito úteis para a
compreensão da linguagem verbal oral, ou seja, a fala cotidiana.
Um trabalho científico que não se posiciona em relação à literatura recente é
como um grão de areia no deserto: não encontrará jamais um lugar específico, e tenderá
a ser esquecido. Todo o trabalho realizado terá sido em vão. É por isso que demos uma
grande ênfase aos trabalhos acadêmicos mais recentes, especialmente as teses de
doutorado defendidas neste mesmo departamento nos últimos anos. Destacamos aqui,
além das dissertações e teses mencionadas, o brilhante trabalho defendido por José
Roberto do Carmo Júnior (2007), que, assim como os trabalhos de Ricardo Monteiro,
constitui um verdadeiro divisor de águas na literatura da semiótica musical brasileira.
Apesar de termos escolhido preferencialmente estes dois autores para um
diálogo mais intenso, gostaríamos de ressaltar que esse mesmo diálogo pôde chegar
Introdução 17
___________________________________________________________________________________
ao estágio em que se encontra graças ao trabalho de todos os pesquisadores que listamos
anteriormente.
1.3 Estrutura do trabalho
O objetivo central desta tese é aprofundar a discussão sobre alguns aspectos do
discurso musical que ainda não foram contemplados pelo modelo atual da semiótica da
canção. O nosso esforço recairá principalmente sobre o estudo da forma, do timbre, da
harmonia e do ritmo.
Para que essa tarefa possa se desenvolver com o rigor que o modelo teórico
escolhido exige, iniciaremos o estudo discutindo alguns pontos que consideramos
frágeis na abordagem usual do discurso musical. O primeiro deles diz respeito à
necessidade de diferenciação entre o discurso musical propriamente dito e o discurso de
produção musical. Acreditamos que o embaralhamento destas duas esferas distintas de
discurso esteja no centro de vários problemas teóricos que acabam por desviar a análise
do seu verdadeiro objeto. Essa discussão é efetuada no capítulo 2.
O segundo conflito epistemológico, que durante uma década inteira dividiu os
trabalhos acadêmicos em semiótica da canção, é o próprio estatuto do discurso musical
enquanto semiótica. Partindo de um aprofundamento do conceito de sentido musical,
chegaremos a uma descrição que nos parece a um tempo operacional e coerente com
os fundamentos da teoria semiótica. Esse estudo encontra-se no capítulo 3, Semiótica
musical: plano da expressão e plano do conteúdo.
Uma vez estabilizado o terreno epistemológico, iniciaremos a abordagem dos
temas principais deste trabalho. No capítulo 4, veis de descrição no discurso musical,
realizaremos o estudo da forma musical em seus diversos níveis. O capítulo 5 é
Introdução 18
___________________________________________________________________________________
reservado para a discussão do estatuto do timbre dentro deste modelo expandido de
semiótica da canção que estamos esboçando. No capítulo 6 estudaremos os efeitos de
sentido produzido pelos fenômenos do discurso musical ligados à harmonia.
Finalmente, no capítulo 7, investigaremos os sentidos produzidos pelos diversos
elementos que compõem o componente rítmico do discurso musical.
Dentro de uma diversidade tão grande de tópicos e de abordagens, adotamos
como corpus e fio condutor do trabalho a obra de Chico Buarque. É bem verdade que
outras notas vão entrar: a canção “Garota de Ipanema”, de Jobim e Vinícius, no capítulo
4; ainda de Jobim, em parceria com Newton Mendonça, aproveitamos a “Samba de uma
nota só” para o estudo da harmonia, no capítulo 6. Ainda neste capítulo, utilizamos a
canção “Aonde quer que eu vá”, do grupo “Os paralamas do sucesso”. Mas a base é
uma só: ao todo, 25 canções de Chico Buarque foram aproveitadas para análises ou
exemplos.
Finalizando o trabalho, apresentamos no capítulo 8 a análise de três canções,
incorporando os procedimentos e resultados obtidos pela nossa pesquisa: “A história de
Lily Braun”, “Eu te amo” e “A ostra e o vento”.
A escolha do repertório de Chico Buarque para compor o corpus da pesquisa não
ocorreu por acaso. Como poderemos observar nas páginas que seguem, suas canções
apresentam um grau de coesão tão grande entre discurso musical e discurso verbal que
por vezes parece que a banda da semiótica toca pra ele. Com tamanha riqueza e
precisão, tanto no componente verbal quanto no musical, as ferramentas descritivas que
o modelo oferece parecem ganhar, na análise de sua obra, um brilho especial. No
entanto, é preciso ressaltar que essas mesmas ferramentas têm o propósito de serem
genéricas, ou seja, precisam funcionar na análise de qualquer canção, realizada ou
realizável.
Discurso musical e discurso de produção musical 19
___________________________________________________________________________________
2. Discurso musical e discurso de produção musical
O fazer musical é sempre distribuído entre diversos profissionais, e a cada um
cabe uma tarefa específica. No caso da canção, identificamos nitidamente as funções de
compositor, arranjador e intérprete. Essa seqüência de “autores” da canção parece
configurar um encadeamento lógico: o compositor seleciona as idéias musicais,
estabelecendo um primeiro recorte. O arranjador confere a esse recorte um grau maior
de especificidade, organizando a forma, e escolhendo o andamento, melodias e timbres
de acompanhamento. Finalmente, o intérprete o tratamento final a estas informações,
atuando dentro das suas possibilidades sobre o roteiro produzido pelo arranjador.
É interessante notar que essa seqüência lógica tende a ser um esquema que vai
da unidade para a pluralidade. A composição é uma atuação única. Uma canção é
sempre composta uma única vez, mesmo que esse processo leve anos a fio e exija o
trabalho de vários compositores. O produto da composição também é único: para
receber o estatuto de “composição”, uma canção precisa ter elementos suficientes para
que lhe seja atribuída uma identidade unívoca, caso contrário ela será considerada
“plágio” de uma outra composição já existente. No ambiente específico da canção
popular, dentre os diversos elementos que compõem o discurso musical, aqueles eleitos
para construir esse efeito de sentido de identidade são a letra e a melodia que a sustenta.
O binômio letra+melodia foi definido por Tatit como sendo o “núcleo de identidade da
canção”(1986b, p. 24).
O arranjo é a etapa posterior à composição. Como vimos, a função do arranjador
seria a de dar um contorno mais detalhado ao recorte operado pelo compositor. É
importante frisar que a concepção cotidiana acerca da função do arranjador não
corresponde precisamente ao seu papel na produção da canção. Estamos habituados à
Discurso musical e discurso de produção musical 20
___________________________________________________________________________________
idéia de que o arranjador sempre transforma uma obra já existente em outra, produzindo
uma nova versão. Mas se atribuirmos ao arranjador a função de detalhar o recorte
produzido pelo compositor, temos que admitir que toda canção apresenta
necessariamente esse detalhamento. Na forma bruta, tal qual talhada pelo compositor, a
canção de fato ainda não existe. O arranjo não é um processo facultativo, mas sim uma
etapa obrigatória, mesmo que a canção seja executada a cappella, sem nenhum
acompanhamento instrumental. Há que se escolher um andamento, e até mesmo a
escolha de não haver acompanhamento é por si uma escolha de timbres, e são
exatamente essas as atribuições do arranjador. Se for o próprio compositor a fazer essas
escolhas, ele é ao mesmo tempo compositor e arranjador.
Se a atuação de ao menos um arranjador é obrigatória para a produção da
canção, nada impede que outros se dediquem a essa tarefa. Uma composição pode
receber diversos arranjos diferentes, e isso freqüentemente ocorre. Se a composição é
marcada pela unidade, o fazer do arranjador costuma ser marcado pela diversidade.
Uma vez definido o arranjo, surge a figura do intérprete, que executa à sua
maneira as instruções deixadas pelo compositor, devidamente detalhadas pelo
arranjador. Quando nos referimos ao “intérprete”, no singular, estamos designando
aquele que manifesta exatamente o núcleo de identidade da canção, seguindo as
especificações do arranjador (especialmente no que se refere ao andamento). Esse
intérprete é o cantor. Se a canção for executada pelo próprio compositor, ele é ao
mesmo tempo compositor, arranjador e intérprete. Mas, a menos que ainda se trate de
uma versão a cappella, uma canção terá provavelmente muitos intérpretes. Cada
instrumento designado pelo arranjador terá que produzir também uma interpretação,
cada qual deixando no produto final a sua “marca pessoal”. Essa pluralidade inerente à
etapa da interpretação também pode ser apreendida de outra maneira: um mesmo
Discurso musical e discurso de produção musical 21
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arranjo pode ser interpretado por cantores (e instrumentistas) diferentes. E cada cantor
(com seu grupo de instrumentistas) pode apresentar esse mesmo arranjo uma série de
vezes, nenhuma exatamente igual à outra. É o intérprete que finaliza a seqüência de
produção da canção: a cada execução, temos uma interpretação diferente. A partir de
uma única composição, podemos ter uma grande diversidade de arranjos e uma
infinidade de interpretações.
Em sua tese de doutoramento, Márcio Coelho relaciona essas três etapas da
produção de uma canção aos chamados modos de existência semiótica” (COELHO,
2007, pp. 5-60). Depois de uma a um só tempo precisa e divertida descrição histórica do
desenvolvimento do conceito, o pesquisador adota o formato proposto por Zilberberg e
Fontanille (2001, p. 58) para elaborar o seu modelo:
Embora tenha sido apresentado para dar uma descrição aos modos de existência
do valor, esse modelo se aplica igualmente aos modos de existência tanto do sujeito
narrativo (que nos interessa particularmente neste caso) quanto do sujeito
epistemológico, assunto que perturba a semiótica desde os primórdios.
Para explicar o processo que vai da composição à interpretação, Coelho faz a
seguinte homologação (2007, p. 67):
Realização
Conjunção
Atualização
Não-disjunção
Virtualização
Disjunção
Potencialização
Não
-
conjunção
Discurso musical e discurso de produção musical 22
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O pesquisador propõe então uma série de esquemas, sempre homologados aos
modos de existência, que descrevem de maneira econômica e elegante os vários
processos envolvidos na produção de canções. Estes esquemas encontram-se resumidos
na tabela abaixo (2007, pp. 72-77):
potencialização virtualização atualização realização
Período existencial
manifestante
1-Composição 2-Arranjo 3-Interpretação
Período protático
existencial
2-Desarranjo 3-Recomposição 1-Interpretação
Rearranjo 1-Desarranjo 2-Recomposição 3-Rearranjo
Reinterpretação 1-Desarranjo 2-Recomposição 3-Rearranjo 4-Reinterpretação
As etapas de cada esquema foram assim descritas:
Etapa Descrição
Composição Investimento em determinados valores numa obra cancional
Arranjo Preparação do núcleo de identidade virtual da canção para ser manifestado
Interpretação Manifestação dos valores inscritos no núcleo de identidade virtual da obra cancional
Realização
(interpretação)
Atualização
(arranjo)
Virtualização
(composição)
Discurso musical e discurso de produção musical 23
___________________________________________________________________________________
Etapa Descrição
Desarranjo
Performance de natureza essencialmente abstrata, por meio da qual o arranjador
desfaz um arranjo e, dessa maneira, potencializa valores inscritos numa determinada
canção anteriormente manifestada.
Recomposição
Retorno da canção ao estágio de núcleo de identidade virtual e, conseqüentemente,
revirtualização dos valores inscritos na canção quando da sua composição
Rearranjo
Preparação do núcleo de identidade virtual da canção para ser manifestado de
maneira que a reinterpretação possa manifestar conteúdos camuflados quando da
manifestação original.
Reinterpretação
Manifestação dos valores inscritos no núcleo de identidade que se mantiveram em
estado virtual, ou camuflados, quando da interpretação original.
A única questão que se impõe, e que não encontra luz no texto de Coelho, é a
determinação desse sujeito a que se atribui os diversos modos de existência, e
especialmente a determinação do sujeito do fazer que transforma esses estados. A
semiótica é uma teoria de análise de textos, que não se propõe a ser uma teoria de
análise de sujeitos “reais” atuando no “mundo real”. Os sujeitos da análise semiótica são
forçosamente “sujeitos de papel”, nunca sujeitos de carne e osso. São sujeitos
encontrados em textos.
A pergunta central que resulta deste raciocínio pode ser formulada da seguinte
maneira: em que texto esses sujeitos atuam?
A resposta a essa pergunta é um pouco mais complicada do que possa parecer
em um primeiro momento, e envolve uma reflexão aprofundada sobre a enunciação do
discurso musical. Para tanto devemos primeiro verificar o tratamento que a semiótica dá
ao processo de enunciação.
Se a enunciação é sempre pressuposta, e a ela temos acesso apenas pelas marcas
que deixa no discurso, fica claro que não é na análise das canções que podemos
encontrar todos esses percursos e modos de existência. Se a enunciação é um ato único,
Discurso musical e discurso de produção musical 24
___________________________________________________________________________________
que instaura as categorias de pessoa, espaço e tempo, não podemos tentar desmembrá-la
em um processo, sob o risco de estar fazendo uma semiótica das condições de produção
do texto-canção. A enunciação da canção não pode ser descrita em etapas, e portanto
nenhum membro da tríade compositor-arranjador-intérprete pode receber o estatuto de
enunciador – muito menos os três ao mesmo tempo.
A pergunta então continua sem resposta: em que texto esses sujeitos atuam? A
solução pode ser encontrada no próprio trabalho de Márcio Coelho. Ao discorrer sobre a
função da partitura (2007, p. 62), o autor cita um famoso texto de Greimas publicado em
1983: “La soupe au pistou ou la construction d’um object de valeur.” (GREIMAS, p.
160). Neste artigo, Greimas realiza a análise de uma receita de sopa ao pesto,
colocando-a em uma categoria de textos que são essencialmente um conjunto de
programas encadeados que visam a construção de um objeto de valor. O primeiro ponto
a ressaltar é que Greimas não se propõe a fazer a análise de um prato que é um texto
que tem sabor, cheiro, textura e forma mas sim de sua receita. E, ainda mais
importante, o objeto de valor construído pela receita também não é um prato real, com
sabor, cheiro, textura e forma, mas é um prato “de papel”, uma sopa linguageira,
exatamente como o sujeito que a produz.
Da mesma maneira, o texto em que aparecem as figuras do compositor,
intérprete e arranjo nada mais é que uma “receita” para a produção de um objeto no
caso, uma canção. Esta canção assim como o prato de sopa de Greimas não se
confunde com a canção real, que apreendemos pela audição. Ela é também uma canção
de papel.
O discurso analisado por Márcio Coelho pode ser chamado de “Discurso de
produção musical”. Neste discurso, os papéis de compositor, arranjador e intérprete não
são nada além de papéis temáticos. Esses papéis recobrem as posições actanciais dos
Discurso musical e discurso de produção musical 25
___________________________________________________________________________________
sujeitos descritos pelos modos de existência semiótica sujeitos narrativos que
transformam o estado do objeto de valor “canção”. Compositor, arranjador e intérprete
não são enunciadores, mas tão somente atores deste discurso.
Da mesma maneira, dentro de um discurso de produção musical, não podemos
falar em manifestação da canção, mas sim construção da canção:
Se o núcleo de identidade virtual de uma canção pode ser realizado a
partir de um mero mínimo de escolhas descritas acima, trata-se, então, de uma
primeira organização visando à sua manifestação. Portanto, estamos diante de
um gesto mínimo de arranjo, considerando a interpretação como um dos
elementos inerentes e subordinados ao processo de realização desse cleo
cancional [Grifos nossos]. (COELHO, 2007, p. 66).
No lugar de “realização do núcleo cancional”, temos na realidade a realização do
sujeito do fazer que constrói o objeto-valor canção. O mesmo pensamento pode ser
aplicado a todos os esquemas propostos por Coelho. Todos eles são programas
narrativos de construção, destruição e reconstrução de objetos de valor.
É sob a mesma perspectiva que entendemos o conceito de “Próteses Musicais”
de Carmo Jr. No capítulo de sua tese de doutoramento dedicado ao estudo da
enunciação musical, Carmo Jr. qualifica os instrumentos musicais como próteses, já que
eles ampliam a extensão do poder-fazer do sujeito da enunciação:
É nesse sentido que os instrumentos musicais, meios de discursivização
musical por excelência, constituem casos exemplares de próteses, uma vez que
são extensões de um /poder-fazer/ musical (CARMO JR., 2007, p. 151).
Se o instrumento ao intérprete o /poder fazer/ música, então fica claro que as
próteses não podem aparecer no discurso musical, mas apenas no discurso de produção
musical.
Discurso musical e discurso de produção musical 26
___________________________________________________________________________________
Acreditamos que fazer a distinção entre o discurso de produção musical e o
discurso musical propriamente dito seja um meio de evitar confusões desnecessárias e
assim garantir a confiabilidade dos resultados obtidos pela análise. Tentar levar a
semiótica a um evento anterior à enunciação nos coloca em um terreno de hipóteses
impossíveis de serem comprovadas. No entanto, a dificuldade inerente à semiotização
das estruturas puramente musicais tende a levar os pesquisadores a confundir essas duas
esferas distintas de discurso. Acreditamos que o fator que está por trás desta confusão é
uma interpretação do papel da partitura na produção musical e sua relação com o
discurso musical.
A questão central aqui é a forma de circulação da informação musical. Antes de
tudo, que se pensar de que maneira a informação musical poderia circular entre os
produtores do discurso musical ainda em uma fase “virtual” ou “atual”. Como poderia
o arranjador conhecer seu objeto antes de sua manifestação?
Se o compositor apresentasse sua composição ao arranjador com uma
interpretação a cappella, ou seja, apenas cantando sem acompanhamento, ele estaria
efetuando um arranjo (escolhendo seu próprio timbre de voz como instrumento único) e
uma interpretação. Essa dificuldade foi percebida por Márcio Coelho em sua tese:
A única maneira de registrar virtualmente esse núcleo de identidade é por
meio da partitura musical, embora saibamos de antemão que a notação em
partitura é insuficiente para registrar todas as nuanças de uma canção
manifestada. Por que, então, não registrá-la por meio de gravação eletromagnética
ou digital? Podemos, sim, registrar canção, no entanto, nunca o seu núcleo de
identidade virtual, pois, caso registrássemos a letra e o contorno melódico de uma
canção em um gravador, aquilo o que era cleo de identidade virtual seria
manifestação, ou seja, o que era discurso, nesse caso, passaria a ser texto
(COELHO, 2007, p. 62).
Discurso musical e discurso de produção musical 27
___________________________________________________________________________________
A partitura surge aqui como o meio capaz de registrar o “núcleo de identidade da
canção”, sem no entanto manifestar os elementos que, segundo o próprio autor, seriam
acrescentados pelo arranjador e depois pelo intérprete. Curioso é notar que a
insuficiência imputada à partitura, apresentada como restritiva (“embora saibamos que a
notação em partitura é insuficiente”), é justamente o que permite afirmar que ela
consegue registrar apenas o núcleo de identidade da canção. Se a partitura não tivesse
tais “insuficiências”, e fosse capaz de registrar “todas as nuances”, ela estaria
atualizando e realizando o objeto que na economia da teoria ali esboçada ainda
precisaria estar em estágio virtual.
Mas o problema central é muito mais amplo e profundo. Ao afirmar que uma
gravação da melodia realiza o objeto, antecipa-se a impossibilidade de fracionar a
enunciação em etapas. O fato é que a transcrição em partitura de maneira nenhuma
resolve o problema. Para resolver a equação colocada, ou seja, para poder transmitir
apenas o “núcleo de identidade”, a partitura teria que ser ainda dentro dessa lógica -
um “discurso sem texto”. A partitura aparece então como um artifício usado para tentar
resolver um problema que, como vimos mais acima, não precisaria ser resolvido
porque sequer existiria - se fosse feita a distinção entre discurso de produção musical e
discurso musical.
A partitura é apenas um método de transcrição que organiza as informações
musicais dentro de um sistema que define de maneira discreta durações e alturas.
Quando dizemos que a anotação é “discreta”, queremos dizer que estes dois elementos
se organizam de maneira descontínua: a passagem de uma nota a outra, ou de uma
duração a outra, é abrupta e bem delimitada. Reconhecer alturas e durações é condição
necessária para escrever e ler uma partitura. O mesmo não acontece com as outras
propriedades do som. Embora haja um conjunto de símbolos destinados a anotar
Discurso musical e discurso de produção musical 28
___________________________________________________________________________________
variações de intensidade, dentro do sistema contínuo que ela constitui, uma partitura
pode simplesmente ignorar esse dado e não apresentar nenhuma marcação de
intensidade. Algo semelhante acontece com o timbre: embora o compositor possa
descrever o timbre empregado para cada linha melódica (violino, viola, flauta, guitarra,
voz humana, etc.), assim como variações do timbre no decorrer da linha (por exemplo,
indicando a surdina para uma melodia de trompete), ele também pode não realizar
indicação nenhuma. Desta maneira, ao transmitir a informação para o arranjador, esse
hipotético compositor bem treinado que teria usado a partitura anotando apenas alturas e
durações teria transmitido apenas parte de um discurso musical, que seria chamado de
“virtual” justamente por faltar-lhe alguns elementos. Mas a partitura é mais que isso.
O problema está justamente no tratamento dado aos elementos “ausentes” da
partitura em questão. Isso porque “não marcado” não quer dizer obrigatoriamente
“ausente”. Se o compositor preferiu não anotar intensidades e timbres, isso não quer
dizer que eles não existam. Trata-se apenas de uma escolha que transmite não
“ausência” mas antes “neutralidade”. A relação entre a partitura e a música é em tudo
similar a que existe entre a língua escrita e a oral. Um texto escrito pode não dar
detalhes sobre o timbre e intensidade de voz de quem fala – coisa que um texto oral não
pode fazer. E o registro escrito de um texto oral é tão impreciso e omisso em nuances
como o registro em partitura de um texto musical. A partitura evidentemente não é um
objeto sonoro assim como a língua escrita, ela é visual. Mas ela representa um objeto
sonoro, que sempre tem obrigatoriamente altura, duração, intensidade e timbre. O
sistema de notação em partitura musical não é capaz de resolver a questão de
transmissão do “núcleo de identidade” entre compositor e intérprete, o que torna a
aplicação do conceito nesses termos um tanto problemática.
Discurso musical e discurso de produção musical 29
___________________________________________________________________________________
Cabe aos pesquisadores, além de especificar qual é a esfera de discurso sobre a
qual recai sua análise, transcrever (ou ao menos indicar) os textos que compõem esse
discurso. No caso do discurso de produção musical, os textos costumam acompanhar o
suporte físico pelo qual as canções são divulgadas os CD’s em forma de encarte.
Geralmente nos encartes encontramos claramente identificados os diversos atores do
discurso de produção (compositores, arranjadores, instrumentistas). Mas essa não é a
única fonte. Todas as aparições dos artistas comentando suas obras, todas as entrevistas,
toda a campanha publicitária de lançamento tudo isso compõe essa esfera de discurso.
Muitos outros atores atuam nesse discurso: produtores, técnicos de som e estúdio,
críticos de arte, gravadoras, cada qual atuando em algum ponto da narrativa e
recobrindo algum papel actancial. As gravadoras, por exemplo, podem atuar como o
/poder-fazer/ produzir o objeto-valor canção, mas em muitos textos aparecem como
anti-sujeitos (ao vetar o lançamento de alguma obra), e em outros tantos figuram como
destinadores (ou antidestinadores), manipulando os compositores (e arranjadores e
intérpretes), instaurando deveres e quereres de toda ordem. Trata-se de um discurso
amplo e diversificado, mas totalmente passível de análise como qualquer outro
discurso – mas que não se confunde com o discurso musical propriamente dito.
Márcio Coelho encerra o capítulo sobre os modos de existência da canção
brasileira com mais uma pertinente observação:
Salientamos que esse processo não é prerrogativa da canção popular.
Com certeza, outras linguagens podem dele lançar mão como, por exemplo, o
teatro, o cinema [...] (COELHO, 2007, p. 77).
Isso continua sendo verdade, mesmo com as restrições que colocamos aqui.
Afinal, também existe um discurso de produção teatral e cinematográfica, com todos os
atores que lhe são próprios (atores, cineastas, diretores, etc.). E, mais ainda, isso
Discurso musical e discurso de produção musical 30
___________________________________________________________________________________
também é válido para textos verbais escritos. Um texto verbal escrito também passa por
um processo de produção, que parte de um rascunho e termina na revisão e edição.
Embora não seja uma prática corriqueira, alguns poetas elaboram – e publicam
“rearranjos” de seus poemas. Esse é o caso do poema Na noite gris, de Carlito Azevedo
(2001, p. 26-27):
Na noite Gris (1991)
Na noite gris
este fulgor
no ar? Tigres
à espreita? Claro
sol de um cigarro
em lábios-lis?
Na lixa abrupta
súbita chispa?
Choque de peles
a contrapelo
(tal numa rua
escura mutua-
mente se enlaçam
as contraluzes
de dois faróis)?
Na noite Gris (1996)
Na noite gris
nenhum fulgor
no ar. Tigres
ausentes? Vultos
no breu convulso:
latas de lixo.
Lixas de unha
mortas, roídas
até o sabugo
Nenhuma pele
cede ao apelo
líquido, escuro
da sede (cegos,
engavetados,
carros se matam).
Mas embora o discurso musical e o de produção musical sejam essencialmente
distintos, nada impede que uma canção – como texto autônomo que é – utilize o
discurso de produção musical como tema. Quase todo compositor tem ao menos uma
canção no seu repertório falando sobre o ato de compor. A letra da canção “De volta ao
samba” (BUARQUE, 1993b) é um bom exemplo deste procedimento:
De volta ao Samba
Pensou que eu não vinha mais, pensou
Cansou de esperar por mim
Discurso musical e discurso de produção musical 31
___________________________________________________________________________________
Acenda o refletor A1
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim
Fechou o tempo, o salão fechou
Mas eu entro mesmo assim
Acenda o refletor A2
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim
Eu sei que fui um impostor
Hipócrita querendo renegar seu amor
Porém me deixe ao menos ser
Pela última vez o seu compositor B1+A3
Quem vibrou nas minhas mãos
Não vai me largar assim
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Preciso lhe falar
Eu vim
Com a flor
Dos acordes que você
Brotando cantou pra mim A4
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim
Eu era sem tirar nem pôr
Um pobre de espírito ao desdenhar seu valor
Porém meu samba, o trunfo é seu
Pois quando de uma vez por todas
Eu me for B2+A5
E o silêncio me abraçar
Você sambará sem mim
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim
Essa é uma canção como qualquer outra. Exibe sujeitos e valores, ações e
paixões. Acontece que o narrador aqui é figurativizado em “aquele que compõe”, e o
objeto em “composição”. O ato de compor é narrativizado, e o /saber fazer/ do sujeito-
compositor é personificado na figura do “samba”. aqui um sincretismo atorial entre
o objeto-composição e esse sujeito do saber, que ambos são figurativizados como
Discurso musical e discurso de produção musical 32
___________________________________________________________________________________
“samba”. O sujeito-compositor tenta convencer o sujeito-samba a fornecer-lhe a
competência necessária ao ato de compor, utilizando para isso várias estratégias de
persuasão: a confissão de culpa (“eu sei que fui um impostor...”), o apelo à memória de
um passado eufórico (“quem vibrou nas minhas mãos não vai me largar assim) e a
promessa da eternidade como recompensa (“quando de uma vez por todas eu me for,
você sambará sem mim”).
Desta maneira, a canção se inscreve também na esfera de discurso de produção
musical. Mas enunciador não se confunde com narrador. Do enunciador desta e de
qualquer outra canção sabemos apenas o que está inscrito no discurso musical, e é neste
último que teremos que procurar seu corpo, seu tom de voz e seu ethos. Não é na
letra que encontraremos essas marcas: o enunciador está presente na melodia, na
escolha dos instrumentos, no modo de interpretar, na harmonia, na forma, no ritmo.
Percebemos, ao ouvir a canção, de que ela é de fato um samba o que significa, em
última análise, que ela apresenta elementos rítmicos suficientes para enquadrá-la neste
gênero. Esta escolha tmica recobre musicalmente a competência reclamada pelo
sujeito-compositor, que afirma “aqui é meu lugar” ao referir-se ao samba. Se essa letra
fosse apresentada em forma de uma valsa, o sentido depreendido seria completamente
diferente: não haveria mais como crer na competência do sujeito, e o que é dito seria
entendido como uma ironia. O fato de esta canção ser um samba mostra não apenas a
competência do sujeito em um plano geral mas também nos a prova de que suas
estratégias de persuasão tiveram sucesso: um novo samba acaba de ser produzido.
A forma é igualmente importante para a percepção do sentido global da peça. A
estrutura geral não apresenta nada de surpreendente: AAB AAB A. O ponto que chama
atenção é um tratamento local dado à emenda entre o final das partes B e o início das
partes A subseqüentes. Enquanto as partes A m um limite final bem estabelecido, as
Discurso musical e discurso de produção musical 33
___________________________________________________________________________________
partes B simplesmente não terminam. Elas são emendadas nas partes A por uma
pequena frase cromática (“compositor” e “eu me for”). As frases cromáticas são
construídas em intervalos de semitom, que é o menor intervalo possível. Isso cria um
efeito de sentido de elo inseparável, de continuidade absoluta e profunda. Nada melhor
para figurativizar o elo que o compositor afirma manter com seu samba. Embora a
separação possa existir (isso se com a delimitação precisa das partes A), existe uma
ligação que é mais profunda e indissolúvel (representada pela emenda entre B e A).
A última questão que resta analisar, e que também diz respeito à precisa
distinção entre discurso musical e discurso de produção musical, é a de “núcleo de
identidade da canção”. A qual desses discursos esse conceito diz respeito? Qual o
alcance e qual a função deste conceito nesses discursos?
Tatit define o núcleo de identidade da canção como sendo a letra e a melodia que
a sustenta, e afirma que nem todos os valores investidos se manifestam em todas as
interpretações. É essa a idéia que está por trás do detalhamento proposto por Coelho,
que coloca compositor como o criador do núcleo de identidade virtual, o arranjador
como o “preparador” do núcleo virtual para manifestação, e o intérprete como o
responsável pela manifestação deste núcleo.
Acontece que, dos diversos valores investidos numa obra pela atividade
de composição, apenas alguns se manifestam durante o processo de execução.
[...] A mesma canção, interpretada sob a influência da desaceleração, tem suas
durações sicas naturalmente ampliadas criando tensões de percurso mais
compatíveis com os sinais de desejo, da espera e do próprio itinerário narrativo.
Imediatamente, os conteúdos da letra camuflados na primeira versão vêm à tona
[...] [Grifos nossos](TATIT, 1997, p. 23).
Vimos que a canção, tomada como objeto de análise, é sempre um texto
acabado, sendo impossível extrair dele uma enunciação fragmentada, em etapas. As
Discurso musical e discurso de produção musical 34
___________________________________________________________________________________
marcas da enunciação estão inseridas na letra e em todos os elementos musicais, o
apenas na melodia. Separar a atividade do compositor e do intérprete é algo que só pode
ocorrer no discurso de produção musical.
O núcleo de identidade poderia então surgir na comparação entre duas versões
diferentes da mesma canção. Mas afinal, quais são os critérios para definir se estamos
diante de duas canções diferentes ou de duas versões de uma mesma canção? A resposta
a essa pergunta é sutil, mas fundamental para compreender o estatuto desse conceito. O
fato é que aquilo que usamos como critério para definir o “núcleo de identidade” é
exatamente o próprio núcleo de identidade. Tentar defini-lo por meio da comparação
implica em uma lógica falaciosa, pois estaríamos usando como prova aquilo que
queremos provar. Se duas canções apresentam letras e melodias suficientemente
próximas, dizemos que elas são versões. A margem de variação, no entanto, não segue
nenhum critério rígido. Intérpretes costumam alterar tanto a letra quanto a melodia,
omitindo frases e alterando notas. Versões instrumentais não exibem letras, e algumas
interpretações em estilo rap, por exemplo eliminam completamente o perfil
melódico. Isso no entanto não prejudica a capacidade do senso comum de avaliar se
estamos diante da mesma canção.
Pensemos agora em duas canções, com letra e melodia diferentes, mas
pertencentes a um mesmo gênero, construídas com os mesmos timbres. Entre elas
também existe um certo número de identidades, o que nos possibilita por exemplo
classificar as canções em gêneros. Entre duas canções, a rigor, podemos apresentar
graus de identidades e alteridades em níveis variados. Duas versões diferentes, quando
colocadas em comparação, jamais poderão ser consideradas como sendo “a mesma
canção”.
Discurso musical e discurso de produção musical 35
___________________________________________________________________________________
Mesmo no discurso de produção musical, o conceito de “núcleo de identidade”
pode ser aceito se identidade for tomada no sentido estrito de identificação. Os
elementos que uma determinada cultura elege para construir o efeito de sentido de
identidade (e não “núcleo de identidade”) de uma canção, e que nos permitem
reconhecê-la em gravações diferentes, não devem contaminar a definição semiótica do
nosso objeto de análise. Letra e melodia são “nucleares” apenas para efeito de
identificação. Eles são tão portadores de sentido quanto qualquer outro elemento
musical da canção, pois carregam ou escondem valores para manifestação posterior
tanto quanto qualquer elemento musical. Da mesma maneira que uma canção executada
em andamento lento já traz em si a possibilidade de execução em andamento rápido, um
timbre de voz áspero também traz a possibilidade de uma execução suave. A definição
do que é “nuclear”, no que se refere à identidade, depende também do ponto de vista
definido pela pesquisa – afinal, o conceito de “núcleo de identidade” pertence ao
discurso da pesquisa. O que salientamos é que o rendimento deste conceito é de fato
duvidoso, especialmente na maneira em que é aplicado aqui.
Como Márcio Coelho bem afirma na introdução de sua tese, devemos analisar
fonogramas. Os atores compositor, arranjador e intérprete, bem como seus atos, não
aparecem no interior de um fonograma isolado. Também não é possível identificá-los
apenas confrontando os fonogramas de gravações diferentes de uma “mesma canção”.
Esses atores estão presentes apenas no discurso de produção de canções, discurso em
que estas aparecem como objetos de valor construídos. É nesse discurso e apenas
nesse – que podemos conhecer o “arranjo original”, o “re-arranjo”, a “versão do autor” e
outros atributos. O discurso de produção de canções constrói uma linha temporal entre
os diversos lançamentos das agora denominadas “versões”, e é nele que podemos
Discurso musical e discurso de produção musical 36
___________________________________________________________________________________
perceber a relação de pressuposição que constitui o “caminho de ida” para a realização,
tão bem detalhado por Coelho.
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 37
___________________________________________________________________________________
3. Semiótica musical: plano da expressão, plano do conteúdo
3.1 O sentido musical
A cultura ocidental tende a tratar a música, especialmente a música instrumental,
como um campo semântico potencialmente aberto. Essa linha de pensamento leva a crer
que não existe de fato um significado imanente ao discurso musical, e que seu
significado seria sempre determinado única e exclusivamente pelo contexto
extramusical. O exemplo mais comum pode ser encontrado em artigos que tomam como
exemplo o papel da música no cinema. Em seu “Linguistic semantics as a vehicle for a
semantic of music” (2004), Michailo Antovic comenta a construção do personagem
Darth Vader no filme “Guerra nas estrelas” (LUCAS, 2004). Já que toda a aparição do
vilão é acompanhada do tema musical característico, todas as atribuições do
personagem (tirania, crueldade, etc...) seriam deslocadas também para o tema musical:
“uma vez que o tema musical agora denota o personagem, as conotações que
associamos ao personagem passam a ser também conotações do tema” (ANTOVIC,
2004, p. 7, tradução nossa).
Se essa afirmação fosse verdadeira, seríamos forçados a acreditar que qualquer
que fosse o tema associado ao vilão, as características do personagem seriam
inevitavelmente transferidas ao musical. Poderíamos então imaginar Darth Vader
aparecendo na tela acompanhado sempre por um trio de forró (sanfona, zabumba e
triângulo), tocando uma animada melodia, e perceber que a partir de então o agitado
ritmo nordestino passaria a conotar os mesmos sentidos que hoje atribuímos à “Marcha
imperial” de John Williams (WILLIAMS, 1993b). Evidentemente, tal cena seria
simplesmente hilariante. E isso é possível porque o musical já traz consigo uma série
de elementos semânticos, convocados a cada vez que é colocado em discurso, seja em
situação isolada ou em textos sincréticos. O tema musical que acompanha não é
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 38
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determinado semanticamente pelo personagem ao qual é associado. Ao contrário, o
tema musical ajuda a construir o personagem e, no caso do cinema, é apenas mais um
elemento que o enunciador tem para construir sua estratégia de persuasão. No caso do
exemplo insólito que acabamos de criar, o efeito de sentido resultante seria o de ironia:
o próprio discurso, graças ao musical, nega o que está sendo dito pelo visual e o verbal.
A tarefa na qual devemos de fato nos empenhar em cumprir é tentar entender quais são
os efeitos de sentido resultantes de determinada configuração musical ou, em outras
palavras, como se dá a construção do sentido no discurso musical.
Partindo do pressuposto de que existe um processo de construção do sentido
musical, condição para que o mesmo se preste à análise semiótica, somos levados a crer
que esse deva ser válido para qualquer situação em que o discurso musical se manifeste:
como trilha de um filme, em uma canção ou na música instrumental. Isso não quer dizer
que uma frase musical deva produzir o mesmo sentido em contextos diferentes, fato
impossível em qualquer linguagem. Temos apenas que ter em mente que estamos
procurando um mecanismo geral de produção de sentido, autônomo e homogêneo.
O equívoco cometido por Antovic é sobretudo um erro de abordagem. Procurar
no discurso musical a especificidade semântica a que chega a linguagem verbal é uma
tarefa fadada ao fracasso. Mais errado é acreditar que, por causa deste fracasso, o
discurso musical seria incapaz de produzir significados. Talvez esse exemplo seja a
melhor prova de que a semântica formal é incapaz de tratar de uma semântica musical.
Como afirma o próprio Antovic, um pouco mais adiante: “a música certamente não
apresenta condições de verdade” (ANTOVIC, 2004. p. 10, tradução nossa). Para uma
ciência que exige a condição de verdade para que um sistema ganhe o estatuto de
“linguagem”, a música jamais poderia ser um objeto de estudo.
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 39
___________________________________________________________________________________
Antes de prosseguir, e ainda aproveitando o exemplo da célebre rie criada por
George Lucas, poderíamos apontar para uma abordagem possível - e desde delinear,
mesmo que superficialmente, alguns contornos. Para analisar o discurso musical,
dispomos a princípio de apenas quatro elementos, que são as propriedades do som:
altura, duração, intensidade e timbre (a semiótica da canção, desenvolvida no Brasil por
Luiz Tatit, é construída quase exclusivamente sobre aspectos de altura e duração).
Podemos ainda pensar em um outro elemento, resultado da projeção de cada uma das
quatro propriedades no tempo: a densidade. Um trecho composto por um instrumento
solo, em uma interpretação homogênea, seria um trecho de baixa densidade timbrística.
Uma orquestra no momento do tutti (todos os instrumentos tocando junto) apresentaria
grande densidade timbrística. Esse poderia ser um primeiro parâmetro para a análise da
trilha em questão. Ao longo dos três episódios dedicados à trajetória de Vader, temos
dois temas principais: a “Marcha Imperial”, associada ao vilão e seu império, e o tema
associado ao herói, Luke Skywalker, e o lado luminoso da força
1
. Um grande contraste
entre os temas pode ser observado na instrumentação (que é apenas uma outra maneira
de se referir ao timbre). Enquanto o tema imperial é executado com grande intensidade
pela orquestra inteira, o tema do herói é inicialmente apresentado por um instrumento
solo. Estamos diante de uma apresentação musical da oposição individual vs. coletivo.
Associado ao visual e ao verbal, e não por causa destes, os dois temas auxiliam na
construção do efeito de sentido de verdade: de um lado, o império, que tem em Vader
um general poderoso, no comando de um enorme exército; de outro, o herói solitário,
que conta com a ajuda de poucos, mas sobretudo do seu próprio desenvolvimento
1
Esse tema não é apresentado como faixa isolada em nenhuma das trilhas de “Guerra nas estrelas”. No
episódio IV, o primeiro filme a ser lançado, ele é inicialmente apresentado na cena do pôr do sol em
Tatooine, em que Luke Skywalker começa a pensar sobre seu destino. No álbum com a trilha sonora, o
tema é apresentado no movimento central da faixa “Inner city” (WILLIAMS, 1993a). A “Marcha
imperial” é introduzida apenas no episódio V (WILLIAMS, 1993b).
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 40
___________________________________________________________________________________
pessoal para seguir na trama. Não custa notar que os dois temas são desenvolvidos no
mesmo tom, menor, o que coloca os dois temas dentro de um mesmo espaço tonal.
Apesar de funcionarem como antítese, como acabamos de ver, entre eles também existe
um forte grau de continuidade. É também um efeito musical que recobre um dado
narrativo, que é a continuidade genética que existe entre esses dois personagens, que
Luke é filho de Vader.
3.2 Expressão e conteúdo
Como afirmamos anteriormente, o principal foco de estudo do modelo da
Semiótica da Canção, desde as suas origens, é o perfil da curva melódica (a “palavra
cantada”). Tatit prevê três modelos de integração entre melodia e letra, que não se
manifestam obrigatoriamente em regime de exclusividade. Vamos rever dois momentos
desta proposta: o primeiro extraído do livro do capítulo IX do Musicando a Semiótica,
artigo originalmente publicado na revista Cruzeiro Semiótico em 1992; a descrição
encontrada em Terra à Vista, artigo publicado em 2004 na revista “Gragoatá”.
Vejamos primeiro a exposição mais antiga:
Quando examinamos uma canção, encontramos basicamente três modelos
de construção melódica, que se manifestam como exploração tensiva dos
parâmetros musicais, quais sejam: a duração, a altura (ou freqüência) e o timbre
(não consideraremos aqui a intensidade).
O primeiro diz respeito a um processo geral de periodicidade rítmico-
melódica que favorece a produção de motivos reincidentes em forma de
encadeamento. [...] A esse processo geral de reiteração, aceleração e
regularização da pulsação rítmica, engendrando motivos bem definidos,
chamaremos de tematização de expressão. [...]
O segundo modelo caracteriza-se pelo investimento tensivo do próprio
contorno em termos de ampliação do campo de tessitura melódica, das durações
vocálicas e das próprias pausas entre as frases. [...] Uma tal tensividade, criada
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 41
___________________________________________________________________________________
pela ampliação das alturas e das durações, corresponde, pois, à passionalização
de expressão.
O terceiro modelo de construção equivale ao processo inverso de
distensão e, conseqüentemente, de desinvestimento do percurso melódico, como
se esse componente tendesse a atingir um grau zero de significação, por um
intermédio de um tratamento que esbarra no limiar da pura entoação lingüística.
(...) Uma melodia de canção jamais pode ser completamente entoativa; no
entanto, o simples fato de indicar essa tendência já revela um processo que
denominaremos figurativização enunciativa de expressão (TATIT, 1997, p. 118-
120).
Podemos agora comparar essa primeira exposição com a segunda, doze anos
mais nova:
Podemos distinguir, de modo sumário, três níveis de compatibilidade
entre melodia e letra que se manifestam, com graus variados de dominância, em
toda canção:
(1) Uma espécie de integração “natural” entre o que está sendo dito e o
modo de dizer, algo bem próximo de nossa prática cotidiana de emitir frases
entoadas. (...) consideramos que a canção reconstrói em seu interior uma
compatibilidade com a qual estamos acostumados a conviver: tudo que
enunciamos já vem com melodia. Trata-se, portanto, da produção de um efeito
figurativo de locução.
(2) Uma integração baseada num processo geral de celebração. Na letra,
exalta-se a mulher desejada, a terra natal, a dança preferida, o gênero musical,
uma data, um acontecimento, enquanto na melodia manifesta-se uma tendência
para a formação de motivos e temas a partir de decisões musicalmente
complementares: aceleração do andamento, valorização dos ataques consonantais
e acentos vocálicos (conseqüentemente, redução das durações) e procedimentos
de reiteração. (...) A esse processo musical chamamos tematização melódica. (...)
(3) Uma integração baseada no restabelecimento dos elos perdidos. (...)
Temos um desenvolvimento melódico sob o signo da disjunção temática, como se
neste caso a melodia de fato “evoluísse”, ou seja, se apoiasse na diferença e se
propagasse linearmente por toda a extensão de seu campo de tessitura. Assim,
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 42
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podemos falar de uma tendência à “verticalização” peculiar a toda canção
passional (TATIT e LOPES, 2004, p. 200-204).
Apesar dos mais de dez anos que separam as duas citações, podemos observar a
permanência dos conceitos. A maior parte das diferenças entre os três textos decorre do
fato de que seus objetivos assim como o suporte em que foram publicados eram
diversos. No entanto, uma evolução na maneira de apresentar os conceitos de
tematização e passionalização que particularmente nos interessa. Se em um primeiro
momento observamos a definição de “tematização de expressão” e “passionalização de
expressão”, que em outro ponto do mesmo trabalho seriam correlacionados aos
conceitos de “tematização de conteúdo” e passionalização de conteúdo”, no texto de
2004 verificamos o uso da expressão tematização melódica”. Comparando essa
definição com a que encontramos em 1992, poderíamos acreditar que “tematização
melódica” e “tematização de expressão” seriam conceitos equivalentes. No entanto,
logo no início do artigo encontramos uma afirmação que inviabiliza essa leitura:
O artigo distingue os conteúdos organizados pela melodia daqueles
organizados pela letra, além de caracterizar o sentido que decorre da
compatibilidade dos dois componentes no interior da referida canção (TATIT e
LOPES, 2004, p. 187).
A afirmação de que a melodia, assim como o verbal, organiza conteúdos, não é
um procedimento consensual entre os semioticistas que se dedicam hoje ao estudo da
canção. Em um outro artigo, publicado em 2003 na revista Tereza n. 4/5, também em
parceria com Lopes, Tatit propõe uma descrição que, neste aspecto, se alinha com o
artigo de 1992:
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 43
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É suficiente, para nossa finalidade, atribuirmos à organização melódica a
função de elemento estruturador do plano da expressão e à organização lingüística
a incumbência de conformar o plano do conteúdo. Os aspectos sonoros da letra
rimas, aliterações, assonâncias -, que pertencem certamente ao plano da
expressão, tendem a ocupar, na canção, uma posição secundária diante da
exuberância do componente melódico, a menos que o autor lhes dispense algum
tratamento especial (TATIT e LOPES, 2003, p. 88)
Na aparente simplicidade desta descrição não cabe nenhuma crítica: a economia
deste modelo é perfeita para descrever satisfatoriamente a maioria das canções, fato
comprovado em centenas de análises realizadas por inúmeros pesquisadores nestes
últimos dez anos. No entanto, à medida que o desenvolvimento das pesquisas apontam
para um aprofundamento da discussão sobre a geração do sentido musical, essa questão
pede uma solução mais estável.
A discussão sobre significação do discurso musical é longa e controversa. Ela é
agravada pelo fato de que há, em relação às outras linguagens, uma enorme deficiência -
para não dizer mesmo negligência – no que se refere ao ensino desta linguagem.
Qualquer aluno que completa o primeiro grau sabe (ou ao menos deveria saber) ler e
escrever em sua língua natural (linguagem verbal), identificar formas geométricas e
comparar tamanho, posição, cor, perceber simetrias e paralelismos (linguagem visual).
Quando o assunto é música, a imensa maioria das escolas está mergulhada em um
profundo analfabetismo. Poucas escolas vão além de ensinar a diferença entre o agudo e
o grave e, quando vão, acabam por passar a idéia errônea de que estudar música é
conhecer a sua escrita. Como se pudéssemos conceber alguém aprender a escrever antes
de aprender a falar. O resultado disso é que para a maioria das pessoas, a melodia de
uma canção acaba sendo mesmo apenas um suporte necessário para carregar uma letra.
O grifo foi usado para salientar o fato de que ela é também um suporte, mas não se
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 44
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limita a isso. No entanto, é importante salientar que a semiótica é uma teoria que prima
por não trazer para dentro de suas formulações as questões relativas à apreciação ou à
capacidade do seu destinatário final de decifrar e compreender os textos que lhe são
apresentados. Portanto, neste trabalho, não serão levados em consideração os
argumentos - infelizmente freqüentes - de que os ouvintes de canções ou de música
normalmente não têm capacidade de decodificar nada além do mais básico. Nossa
preocupação também não será tentar descobrir se o compositor, letrista ou melodista,
arranjador ou intérprete agiram com intenções conscientes. O que está em questão é tão-
somente a tentativa de desvendar a estrutura que está por trás do discurso musical, seja
ele instrumental ou parte de uma canção.
Outro problema de abordagem freqüente é esperar do discurso musical o mesmo
grau de objetividade do discurso verbal ou das artes pictóricas e, uma vez verificada a
evidente impossibilidade, atribuir à linguagem musical certa “ineficiência” em construir
significações. Em outro artigo da mesma edição da supracitada revista Teresa, do
semioticista José Roberto do Carmo Júnior, podemos ler as seguintes afirmações:
Uma teoria crítica da música e da canção teria que tentar dar conta do fato
de que identificamos milhares de melodias diferentes, não obstante a melodia não
ter nenhuma referência, nem nos remeter a algum conceito claramente
delimitável. A expressão de qualquer palavra tem como contraparte um conceito,
por mais abstrato que seja. A palavra sempre nos remete para algo fora dela
própria. Mas uma melodia carece desse “apontar”. A melodia é um signo vazio,
uma forma significante “grávida” de conteúdo (CARMO JR., 2003, p. 217).
É evidente que a linguagem verbal tem um poder descritivo como nenhuma
outra. É claro também que a música, comparada à linguagem gestual e pictórica, é a que
menos “descreve”, é a menos objetiva. Mas isso não é suficiente para dizer que ela não
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 45
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remete a nenhum conceito, ou que não aponta para nada fora dela. A idéia do “signo
vazio”, ou “casa semântica vazia” é no mínimo obscura. Em primeiro lugar, não
nenhuma definição precisa para esse conceito. Ele é utilizado apenas para transmitir a
idéia de que a música, por si só, não significa. Assim, fica insustentável a possibilidade
de atribuir à melodia (seja ela uma nota, um intervalo, uma frase ou um tema inteiro) o
status de “signo”, e muito menos o de “forma significante”, pois com Saussure
aprendemos que não signo que não tenha expressão e conteúdo, e a significação é
justamente uma relação entre esses dois planos. Mais à frente, encontramos a seguinte
afirmação:
Ao mesmo tempo, uma melodia guarda as características tensivas
típicas da prosódia. Não fosse por isso, uma melodia não poderia ser dotada de
sentido (CARMO JR., 2003, p. 223).
Se uma melodia é um “signo vazio”, como pode ser ela dotada de sentido? A
conclusão a que se chega infelizmente, por vias indiretas - é que expressão por si é
dotada de sentido, contrariando a própria definição de função semiótica de Hjelmslev:
Também solidariedade entre a função semiótica e seus dois funtivos:
expressão e conteúdo. Não poderá haver função semiótica sem a presença
simultânea desses dois funtivos, do mesmo modo como nem uma expressão e seu
conteúdo e nem um conteúdo e sua expressão poderão existir sem a função
semiótica que os une. A função semiótica é, em si mesma, uma solidariedade:
expressão e conteúdo são solidários e um pressupõe necessariamente o outro.
Uma expressão só é expressão porque é a expressão de um conteúdo, e um
conteúdo é conteúdo porque é conteúdo de uma expressão. (HJELMSLEV,
1975, p. 54).
Hjelmslev propõe uma ciência da linguagem obedecendo ao princípio do
empirismo, pautado pela não contradição, exaustividade e simplicidade. A partir de um
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 46
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repertório mínimo de conceitos indefiníveis, o lingüista dinamarquês estabelece uma
complexa rede de interdefinições. Hjelmslev afirma que as funções são anteriores às
grandezas relacionadas, e que todas as grandezas são percebidas pela interseção de um
feixe de relações. Admitir um plano de expressão sem conteúdo (“signo vazio”) implica
em admitir uma grandeza anterior à função que a define. Essa afirmação viola o
princípio de não contradição, tão caro para a obra do lingüista dinamarquês.
Percebemos com grande satisfação o progressivo desaparecimento deste
conceito nos artigos e demais trabalhos acadêmicos na área de semiótica musical. Em
sua tese de doutoramento, Carmo Jr. reformula sua teoria e apresenta uma descrição do
discurso musical que se aproxima àquela que nhamos defendendo em trabalhos
anteriores (DIETRICH, 2006a), em coerência com a tradição da semiótica Greimasiana:
[...] toda melodia é uma espécie de texto; [...]. Por definição, todo texto é
o produto da uma relação entre expressão e conteúdo estabelecida por um sujeito
da enunciação (CARMO JR., 2007, p. 13).
Nesse trabalho (que teremos a oportunidade de analisar mais detalhadamente)
não circula mais a noção de “signo vazio”, e os mecanismos descritos são sempre
relacionados aos planos da expressão ou do conteúdo. Desta maneira e somente desta
maneira podemos dizer que a música (ou outra linguagem qualquer) constitui de fato
uma semiótica.
Acreditamos que o ponto de partida necessário para um aprofundamento da
semiótica musical seja propor, mesmo que provisoriamente, soluções para estas
questões: como se estrutura o plano da expressão musical? Como se estrutura o plano do
conteúdo musical? Como se a relação entre estes dois planos? Embora ainda
estejamos longe de chegar a respostas definitivas (ou ao menos satisfatórias) a esses
Semiótica musical: plano de expressão, plano de conteúdo 47
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questionamentos, percebemos que considerar a música uma semiótica articulada em
dois planos diferentes e não vazios produz resultados muito mais condizentes com a
orientação geral da teoria.
Níveis de descrição no discurso musical 48
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4. Níveis de descrição no discurso musical
Neste capítulo trataremos da organização hierárquica do discurso musical.
Apresentaremos e discutiremos o conceito no âmbito da semiótica em duas vertentes
distintas: o desenvolvimento da primeira formulação dada por nós, apresentada no XV
Inpla (DIETRICH, 2005) e publicada na revista Estudos semióticos (DIETRICH,
2006b), ancorada principalmente no modelo original de semiótica da canção de Luiz
Tatit; a formulação proposta por Carmo Jr. em sua tese de doutorado (2007), a partir de
uma aproximação entre melodia e prosódia, de orientação glossemática.
4.1 Primeira formulação
O primeiro fato a ser levado em conta para a descrição da estruturação musical é
a possibilidade do estabelecimento de contrastes entre os seus elementos constituintes.
Altura, intensidade, duração e timbre são, em uma primeira análise, as propriedades
sonoras capazes de produzir estes contrastes. A partir dos contrastes estabelecidos por
estas propriedades sonoras (atuando individualmente ou em conjunto) podemos
perceber as transformações no decorrer do discurso musical e assim dividi-lo em partes
menores. Podemos pensar ainda que estas quatro propriedades, projetadas no tempo,
podem ainda estabelecer uma quinta: a densidade. Temos então a possibilidade de
contrastes entre densidades rarefeitas (poucos instrumentos ou poucas notas atuando em
um espaço de tempo) ou densidades concentradas.
É importante salientar desde que nossa intenção é a de construir um modelo
que possa ser utilizado para descrever o maior número possível de textos musicais. Esta
é a maior dificuldade da tarefa na elaboração de um modelo teórico. Se o modelo for
específico demais, ele poderá descrever com grande precisão um número muito pequeno
Níveis de descrição no discurso musical 49
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de textos, e conseqüentemente será inaplicável (ou se tornará impreciso) para descrever
um número grande de textos que não atendam às suas restrições. Por outro lado, um
modelo amplo demais poderá descrever um grande número de textos, mas
provavelmente não terá a precisão e a profundidade desejadas.
Acreditamos que a solução para esse impasse é a construção de um modelo que
tenha como princípio fundamental a flexibilidade. Esse é afinal o conceito que está por
trás do fazer musical, especialmente se confrontarmos a linguagem musical com a
linguagem verbal. Desta maneira, os níveis que apresentamos aqui não são níveis
obrigatórios, mas sim possíveis. Por outro lado, temos que aceitar a possibilidade de
alguma composição musical se estruturar em níveis que não havíamos previsto no
modelo.
A distribuição dos procedimentos analíticos em níveis hierarquizados não é
novidade na literatura da semiótica da canção. Na análise de “O que será” (BUARQUE,
1976a), Tatit propõe uma análise escalonada para descrever o desenvolvimento
melódico:
Temos, assim, um primeiro nível de elaboração: pequenas unidades
entoativas alinhavam todo o percurso da canção num estrato figurativo primário
(...). A cristalização do ritmo (duração) e do perfil melódico desses dois motivos,
ou seja, sua imutabilidade nesses níveis, transforma-os em unidades coesas
suscetíveis de serem manobradas e opostas entre si em outro estrato de
significação mais amplo (TATIT, 1996, p. 255).
Níveis de descrição no discurso musical 50
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Podemos visualizar as pequenas unidades entoativas no diagrama abaixo:
O QUE SERÁ QUE SERÁ
-
DAM
-
RANDO
AN SUS
QUE
-
PI
Como afirma Tatit, esses dois motivos praticamente não se alteram, formando
assim “unidades coesas”:
O QUE SERÁ QUE SERÁ -DAM -RANDO PELAS ALCOVAS -DAM -RANDO...
AN SUS AN SUS
QUE -SUR
QUE -PI
Um pouco mais adiante, o autor afirma:
Em resumo, combinando as unidades interrogativas que assinalavam
um primeiro estrato de significação em nível figurativo em seus diferentes
níveis de freqüência, Chico obteve um segundo estrato de significação em termos
de caracterização melódica de um núcleo passional disjuntivo. Em outras
palavras, seus motivos figurativos estavam a serviço de um programa passional
mais amplo (TATIT, 1996, p. 258).
Níveis de descrição no discurso musical 51
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Na tabela seguinte podemos observar o “segundo extrato de significação”, e
visualizar a dispersão dos motivos figurativos ao longo da tessitura, até a finalização
descendente:
A partir desta análise, podemos perceber a existência de pelo menos dois níveis
diferentes em que a melodia se desenvolve:
i) o nível das “pequenas unidades entoativas”;
ii) o “segundo estrato de significação”.
Mais adiante veremos que as pequenas unidades entoativas” são unidades do
nível da célula. O nível imediatamente superior é o nível da frase (neste exemplo,
formado pela junção dos dois motivos “figurativos”). É interessante notar que é no
nível da parte (formado pelas frases) é que podemos perceber a distribuição das frases
ao longo da tessitura, gerando o efeito de passionalização a que Tatit faz referência.
Assim como na linguagem verbal, podemos pensar em relações distributivas e
integrativas, e estabelecer no discurso musical as mesmas relações de forma e sentido
propostas por Benveniste, tomando como base os níveis aqui estabelecidos. Desta
maneira, um nível se define:
Níveis de descrição no discurso musical 52
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[...] pela sua forma, quando o encaramos na perspectiva que parte dele e
se orienta na direção do nível que lhe é imediatamente inferior”, e “por seu
sentido, quando o encaramos na perspectiva que parte dele mesmo e se orienta na
direção do nível que lhe é imediatamente superior (BENVENISTE, 1966, pp.
126-127).
Em sua obra Fundamentos da lingüística contemporânea, Edward Lopes afirma
que:
[...] nenhuma unidade lingüística se satura ou seja, se define como um
significado unívoco e perfeitamente acabado -, no interior do seu mesmo nível: a
significação é uma relação, uma estrutura elementar formada por dois elementos
que contraem ligação, pertencentes, ambos, a veis diferentes (LOPES, 2003, p.
51).
Relações entre dois níveis diferentes são relações integrativas. Dentro de um
mesmo nível, temos apenas relações distributivas. Ao comparar as duas “unidades
entoativas”, dentro do nível da célula, podemos apenas perceber seu contraste (assim o
faz Tatit). A percepção de um bloco autônomo, formado pelas duas unidades (as duas
células) é possível no nível da frase. Da frase para a célula, temos uma descrição da
forma. Da célula para a frase, o sentido. Passando para outro “estrato de significação”, é
somente a partir de uma nova relação integrativa, que vai da frase à parte, é que
podemos perceber o surgimento do efeito de sentido de passionalização.
4.1.1 Macroforma
A nossa abordagem seguirá caminho que vai da totalidade às partes. Se a nossa
intenção é a de realizar uma análise do discurso musical, nosso objeto de análise
considerado em sua totalidade é o fonograma. Nossa tarefa aqui é fracionar esse
Níveis de descrição no discurso musical 53
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fonograma em partes menores, até chegar a um ponto em que a divisão seja impossível:
estaremos então diante dos elementos mais primitivos do discurso musical.
O primeiro grande fracionamento possível de um texto musical diz respeito à
estrutura geral da peça, sua macroforma. Não nenhuma razão para desconsiderar as
repetições do tema de uma peça na construção do sentido global, mesmo que as
alterações sejam mínimas ou até mesmo nulas. Isso seria tão absurdo como dispensar
um dos quadrantes da famosa obra de Andy Warhol com dez repetições da imagem de
Marilyn Monroe (WARHOL, 1967) que cada um deles é uma variação de uma
mesma imagem. Além do mais, apesar de geralmente apresentarem melodias idênticas,
as repetições de um mesmo tema costumam ser marcadas pela introdução de novos
contrastes especialmente timbres, intensidades e densidades. Todas essas informações
contribuem para a construção do sentido de uma peça. Mesmo que as repetições sejam
absolutamente redundantes, isso por si é um fato que deve ser considerado, pois
certamente irá gerar um determinado efeito de sentido (procedimento largamente
utilizado pela música minimalista, apenas para citar um exemplo). Temos que ter
sempre em mente o fato de que não estamos analisando um objeto abstrato, como uma
composição ou um arranjo, localizado no discurso de produção musical. Estamos
analisando uma peça completa, um texto musical, que para ser devidamente
contemplado precisa ser considerado na sua totalidade.
Podemos dividir a peça em partes menores que chamaremos de seções. Neste
nível, o elemento central é o tema. É muito freqüente, especialmente no âmbito da
música popular, sucessivas re-exposições do tema. Tomaremos como exemplo a canção
“Olé, olá” (BUARQUE, 1966b), que consta do primeiro álbum gravado por Chico
Buarque. Nosso fonograma, que a partir de agora denominaremos simplesmente “peça
musical”, poderia ser então funcionalmente representado da seguinte maneira:
Níveis de descrição no discurso musical 54
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1ª exposição:
Não chore ainda não
Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui
Pode passar e ouvir
E se ela for de samba
Há de querer ficar
Seu padre, toca o sino
Que é pra todo mundo
saber
Que a noite é criança
Que o samba é menino
Que a dor é tão velha
Que pode morrer
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Quem sabe sambar
Que entre na roda
Que mostre o gingado
Mas muito cuidado
Não vale chorar
2ª exposição:
Não chore ainda não
Que eu tenho uma razão
Pra você não chorar
Amiga me perdoa
Se eu insisto à toa
Mas a vida é boa
Para quem cantar
Meu pinho, toca forte
Que é pra todo mundo
acordar
Não fale da vida
Nem fale da morte
Tem dó da menina
Não deixa chorar
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Quem sabe sambar
Que entre na roda
Que mostre o gingado
Mas muito cuidado
Não vale chorar
3ª exposição:
Não chore ainda não
Que eu tenho a impressão
Que o samba vem aí
E um samba tão imenso
Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar pra ouvir
Luar, espere um pouco
Que é pra meu samba
poder chegar
Eu sei que o violão
Está fraco, está rouco
Mas a minha voz
Não cansou de chamar
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Ninguém quer sambar
Não há mais quem cante
Nem há mais lugar
O sol chegou antes
Do samba chegar
Quem passa nem liga
Já vai trabalhar
E você, minha amiga
Já pode chorar
Neste caso, cada exposição recebe uma letra diferente. No entanto, a
identificação das exposições pode ser feita com muita facilidade, já que cada exposição
inicia com o mesmo verso. Essa não é uma regra geral: um tema pode ser reexposto
com a mesma letra ou outra completamente diferente. Mas como na realidade o que nos
1ª exposição 2ª exposição 3ª exposição
Olê, olá
Níveis de descrição no discurso musical 55
___________________________________________________________________________________
interessa aqui é construir um modelo de descrição do discurso musical
independentemente do objeto ser uma canção ou uma peça instrumental precisamos
buscar elementos musicais para estabelecer os conceitos. Neste caso, o que determina os
limites de uma exposição do tema e a diferencia de outra é por um lado a percepção de
perfectividade, e por outro a percepção de uma forte identidade melódica.
Podemos observar que a exposição do tema é um pouco maior que as duas
primeiras. Nesta seção o autor inseriu duas frases a mais, ocupando assim quatro novos
compassos que não existiam nas exposições anteriores. Esse procedimento gera um
efeito de surpresa e ruptura, pelo simples fato de apresentar um material sonoro novo,
mas provoca também um efeito de sentido de alongamento, pois a duração da última
exposição acaba ficando um pouco maior. Esta é a repercussão musical de um conteúdo
fortemente investido na letra: a vontade de durar (“Não chore ainda não”, “o próprio
tempo vai parar pra ouvir”, Luar, espere um pouco”). Um outro efeito de sentido,
muito bem apontado por TATIT e LOPES em “Olê, olá: sol contra samba”, da obra
Elos de melodia e letra, é o efeito de ruptura que a introdução deste trecho causa, na
medida em que quebra a expectativa já estabelecida pelas duas primeiras exposições
(Cf. TATIT e LOPES, 2008, pp. 79-97).
Níveis de descrição no discurso musical 56
___________________________________________________________________________________
Outros elementos podem figurar neste nível. É muito comum o aparecimento de
estruturas preparatórias antes da primeira exposição, que chamamos genericamente de
introdução. Da mesma maneira, a peça musical pode apresentar uma finalização
especial, que denominamos coda, e ainda estruturas de ligação entre as exposições: os
interlúdios.
Peça musical
introdução
1ª exposição coda
interlúdio 2ª exposição
Níveis de descrição no discurso musical 57
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O último elemento pertinente a esse nível é uma estrutura que denominamos
seção de improviso. Geralmente, a seção de improviso mantém com o tema uma relação
de total identidade harmônica, e provavelmente contrairá também relações rítmicas e
melódicas, a ponto de poder ser considerada uma variação do tema. Essa é apenas uma
das inúmeras possibilidades de realização do improviso. De fato, as relações entre tema
e improviso o tão complexas e variadas que mereceriam uma abordagem mais
profunda e detalhada, que fogem do alcance deste trabalho.
A estrutura da peça musical poderia ser representada da seguinte maneira:
Nível Constituído Componentes
Macroforma Peça musical Seções (tema, improviso, introdução, interlúdio, coda)
É importante notar que embora tenhamos chegado a esse modelo de maneira
empírica, as diversas seções são percebidas como efeitos de sentido, que por sua vez são
construídos a partir de elementos estruturais. Importa aqui tanto os sub-componentes de
cada seção (que analisaremos a seguir) quanto a posição da seção na cadeia. Para
produzir o efeito de sentido de introdução, por exemplo, a seção precisa
obrigatoriamente estar no início da cadeia.
Para construir o efeito de sentido de tema, uma determinada seção pode figurar
em qualquer parte da cadeia, mas precisa apresentar - como dissemos antes - uma
idéia musical acabada, além de figurar como elemento central em relação às outras
seções. Embora a reexposição seja o recurso mais freqüente para construir essa relação,
nada impede que uma canção apresente um tema apenas uma vez. Nesse caso, a
percepção de uma determinada seção como sendo o elemento central pode ser
Níveis de descrição no discurso musical 58
___________________________________________________________________________________
decorrente de sua estrutura interna. Isso é especialmente válido em situações em que a
introdução (ou outras seções periféricas) também apresentam idéias musicais acabadas.
Será percebido como tema a seção que tiver a estrutura mais complexa. Mas, de um
modo geral, a passagem de uma seção a outra é quase sempre marcada por contrastes de
toda ordem: melódicos, rítmicos, timbrísticos, harmônicos e de densidade. Mais adiante
retomaremos essa questão na análise da gravação instrumental de Garota de Ipanema.
No universo da canção, a diferenciação entre as diversas seções é quase sempre
unívoca. O tema é geralmente o suporte da letra da canção, e o contraste com as demais
seções fica marcado pela presença ou ausência do componente verbal. Podemos
perceber esse fato na gravação ao vivo da canção “João e Maria” (BUARQUE, 1999),
que apresenta a seguinte configuração:
Embora a introdução apresente uma idéia musical completa e acabada, ela não
se confunde com o tema, que carrega a letra. Mas ressaltamos o fato de que mesmo que
a apresentação deste tema fosse instrumental, ainda seria impossível confundir a
introdução com o tema, porque esse possui uma estrutura muito mais complexa (e por
isso mesmo ocupa uma posição central na hierarquia das seções).
João e Maria
introdução
Tema
coda
Níveis de descrição no discurso musical 59
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João e Maria
Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock
Para as matinês
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem era nascido
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim
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Níveis de descrição no discurso musical 61
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Os traços distintivos das diversas seções encontram-se resumidos na tabela 1. É
importante notar que a hierarquia e a posição na cadeia são traços sintagmáticos,
enquanto a perfectividade é um traço paradigmático.
Hierarquia Posição na cadeia Perfectividade
Tema
central livre sim
Introdução
periférico início sim ou não
Interlúdio
periférico meio sim ou não
Coda
periférico fim sim ou não
Improviso
periférico livre sim ou não
Tabela 1
É sempre importante frisar que a principal característica de um modelo que
pretende descrever os textos musicais é a flexibilidade. O fato de podermos prever, a
Níveis de descrição no discurso musical 62
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partir da análise empírica de diversos textos, a presença de um nível que chamamos de
macroforma, assim como seus cinco componentes, o implica na obrigatoriedade de
todos os textos musicais seguirem esse modelo. Se a maioria das peças opta por
demarcar claramente estas seções, nada impede que determinado texto seja construído
de modo a atenuar os limites e comprometer essa classificação. Essa será tão somente
uma estratégia capaz de criar um determinado efeito de sentido, uma espécie de
“borrão” musical. O fato de existir um modelo de previsibilidade não impõe aos textos
uma “camisa de força”, um modelo coercivo dentro dos quais eles precisam se encaixar
a qualquer custo. O modelo pode no entanto ajudar a perceber as diversas estratégias de
construção do sentido nos textos, inclusive nos textos em que os efeitos de sentido
criados sejam da ordem da incoerência, inconsistência ou até mesmo do nonsense. É
importante lembrar que a ausência de sentido também é um efeito de sentido, e que um
texto assim construído não deixa de ser um texto.
Uma peça pode apresentar um tema sem a ocorrência de nenhuma outra seção. É
um acontecimento raro especialmente na obra de Chico Buarque, que sempre primou
por acompanhamentos elaborados. As gravações de suas canções quase sempre são
realizadas com introduções e codas instrumentais. Uma das poucas exceções é a
gravação ao vivo da canção “Bom conselho” (BUARQUE e VELOSO, 1972a). Neste
fonograma, não nenhuma introdução, nem coda e tampouco interlúdio. A canção
começa com a voz do intérprete cantando o primeiro verso.
Bom conselho
Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
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Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
Vou pra rua e bebo a tempestade
Vou pra rua e bebo a tempestade
A estrutura desta peça poderia ser representada da seguinte maneira:
Mas além de descrever o fonograma, nos interessa particularmente compreender
quais os efeitos de sentido resultantes de cada combinação. Se o tema é a estrutura
principal de uma peça, qualquer introdução representa um atraso, uma desaceleração. O
grau de desaceleração depende da duração mas também da forma desta introdução: uma
melodia complexa, como em “Iracema voou” (BUARQUE, 1998a), retarda muito mais
que um acompanhamento harmônico estático, que podemos observar em “Injuriado”
Tema
Bom conselho
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(BUARQUE, 1998c). A não existência de uma introdução, por outro lado, representa
uma enorme aceleração: não é dado o tempo para o enunciatário se preparar para o tema
que será apresentado. Cria-se assim um efeito de surpresa, e também de inquietação e
urgência, pois fica patente a pressa do enunciador em transmitir sua mensagem (seja ela
verbal ou musical). No caso da “Bom conselho”, esse procedimento pode ser facilmente
associado ao conteúdo investido na letra: “aja duas vezes antes de pensar” e “quem
espera nunca alcança”.
Igualmente raro na obra de Chico Buarque é a ocorrência de dois temas
distintos. Parece haver mesmo um consenso no cancioneiro da música popular brasileira
de que um tema é o limite para garantir a coesão da peça e conseqüentemente sua
inteligibilidade. A exceção a essa regra acontece especialmente nas gravações ao vivo.
É comum em eventos como esse a justaposição de duas canções diferentes para
construir uma peça mais complexa. No entanto, a percepção de que se trata de duas
canções diferentes é possível apenas em decorrência de uma análise externa, ou seja,
recorrendo-se ao discurso de produção musical. A peça deve então ser analisada como
um todo, e fica claro que novos efeitos de sentido serão produzidos pela justaposição
dos temas. Um dos exemplos mais célebres no cancioneiro de Chico Buarque é a
justaposição da canção “Você não entende nada”, de Caetano Veloso, e “Cotidiano”, do
próprio Chico (BUARQUE e VELOSO, 1972b).
A macro-estrutura desta peça poderia ser representada da seguinte maneira:
Você não entende nada / Cotidiano
introdução
tema A
interlúdio tema B
coda
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Você não entende nada / Cotidiano
Quando eu chego em casa nada me consola
Você está sempre aflita
Lágrimas nos olhos de cortar cebola
Você é tão bonita
Você traz a coca-cola eu tomo
Você bota a mesa eu como, eu como,
Eu como, eu como, eu como,
Você não está entendendo quase nada do que eu digo
Eu quero ir-me embora
Eu quero dar o fora
E quero que você venha comigo
E quero que você venha comigo
Eu me sento, eu fumo, eu como, eu não agüento
Você está tão curtida
Eu quero tocar fogo neste apartamento
Você não acredita
Traz meu café com suíta eu tomo
Bota a sobremesa eu como, eu como,
Eu como,eu como,eu como
Você tem que saber que eu quero é correr mundo
Correr perigo
Eu quero é ir-me embora
Eu quero dar o fora
E quero que você venha comigo
E quero que você venha comigo... todo dia...
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
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Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia, todo dia,
Eu quero que você venha comigo... todo dia...
O primeiro efeito de sentido resultante desta justaposição é consolidação de um
único narrador para os dois temas. Automaticamente, realiza-se também uma
aproximação do sujeito “você”, do primeiro tema, com o sujeito “ela”, do segundo
São apresentados então dois pontos de vista sobre uma situação similar (a
aversão à rotina), e também sobre um mesmo sujeito. Se no primeiro tema ele é visto
como um objeto desejado (“quero que você venha comigo”), no segundo ele é visto
como anti-sujeito (“me abraça até quase sufocar”). É interessante notar que o primeiro
ponto de vista é construído em primeira pessoa, provocando um efeito de sentido de
aproximação. Já no segundo tema observamos o uso exclusivo da terceira pessoa,
afastando o sujeito de quem se fala da cena enunciativa. A apreensão destes dois temas
em conjunto - e essa é justamente a proposta de um fonograma que reúne dois temas
diferentes - nos leva a entender a rotina como um poderoso “antidestinador”, capaz de
transformar um objeto de desejo em um anti-sujeito.
É importante frisar que a identificação de um tema com o conceito de
“composição” não pode jamais ser resolvido por uma análise interna. Essa identificação
Níveis de descrição no discurso musical 67
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ocorre sempre em uma relação de intertextualidade entre o discurso musical e o discurso
de produção musical.
4.1.2 Forma
Forma é o termo que o músico popular geralmente utiliza para denominar as
várias partes de um tema. Ao contrário das seções, as partes que constituem a forma não
possuem o mesmo caráter funcional (que permite diferenciar introdução de tema, por
exemplo). Assim, as diversas partes de uma seção recebem a denominação apenas
segundo sua denominação na seqüência (parte A, parte B, e assim por diante). Não há
nenhum limite para a ocorrência de partes dentro de uma seção.
A distribuição de partes dentro de um tema pode contribuir para a identificação
de um gênero. O standart de jazz, por exemplo, é tradicionalmente estruturado em
AABA. Um chorinho típico costuma apresentar três partes, distribuídas em ABACA.
Mas é preciso ter em mente que a forma é apenas um dentre uma série de fatores que
permitem a identificação do gênero. A forma de uma peça pode, por exemplo, ser
evocada dentro do discurso de produção musical (sempre em relação intertextual) em
uma situação de sanção (positiva ou negativa), em relação à sua competência de
pertencer a um gênero musical determinado. Esse hipotético discurso poderia ser: “se
não tem parte C, não é um chorinho”.
O ouvido consegue distinguir as partes de uma forma, e ele o faz exclusivamente
pelo reconhecimento do contraste (ou identidade) entre estas partes. Ao ser exposto a
uma parte, além de perceber todas as tensões internas, o ouvido passa a estabelecer
relações entre esta primeira parte e as próximas. É justamente essa capacidade dos
elementos musicais de contrair relações que nos autoriza a falar em níveis de descrição,
e que nos permite em um primeiro momento recortar a totalidade de um tema em
Níveis de descrição no discurso musical 68
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partes menores. A primeira parte de uma peça é o peso e a medida para a apreensão do
restante.
A liberdade que o discurso musical tem para marcar a passagem de uma parte a
outra é enorme. Na imensa maioria das vezes, o principal contraste se entre alturas e
durações - o que genericamente chamamos de “melodia”. Quando nomeamos uma parte
de “A e outra de B”, estamos geralmente diante de uma mudança melódica
substancial. A re-exposição de uma mesma melodia (idêntica ou pouco alterada) é
musicalmente identificada como uma mesma parte. As pequenas variações são então
marcadas como A’, B’, e assim sucessivamente.
Até o momento, nossa descrição em níveis construiu o seguinte modelo:
Nível Constituído Componentes
Macroforma Peça musical Seções (tema, improviso, introdução, interlúdio, coda)
Forma Seção Partes (A, B, C, etc.)
A evolução de uma composição depende particularmente da disposição de
partes. O operador em jogo é aceleração vs. desaceleração. A repetição de uma mesma
parte desacelera o fluxo de informações; a introdução de uma parte nova, por sua vez, é
uma aceleração, por apresentar informações novas. No entanto, essa oposição não se
em termos absolutos: trata-se de uma categoria tensiva. A aceleração obtida com uma
parte nova pode ser modulada, a depender da quantidade e da profundidade das
alterações. O jogo de alturas é apenas uma das coisas que pode variar de uma parte para
outra. Como vimos, o discurso musical não é apenas o discurso de uma melodia
“virtual” de alturas e durações, mas é composto também por timbres, intensidades e
harmonias.
Níveis de descrição no discurso musical 69
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Uma rápida análise da canção “Paratodos” (BUARQUE, 1993a) é suficiente
para perceber como timbres, intensidades e densidades podem marcar a passagem de
uma parte à outra.
Paratodos
O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano A
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro
Foi Antonio Brasileiro
Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada B
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro C
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro
Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho C’
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho
Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo A
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto
Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas B
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethânia, Rita, Clara
Níveis de descrição no discurso musical 70
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Evoé, jovens à vista
O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro C
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro
A estrutura desta canção pode ser descrita da seguinte maneira:
Fizemos questão de destacar o emprego da forma nada usual na apresentação
desta peça (ABCC’ABC). De fato, o que temos aqui é uma seqüência de apresentações
das três partes (A, B e C) que compõem esse tema. Todas as partes são cantadas, e todas
terminam com alguns compassos de “sobra”, que são preenchidos com a intervenção
dos instrumentos. Na parte assinalada como C’, o compasso é alongado para uma
intervenção um pouco maior. No entanto, é difícil considerar esse evento com um
interlúdio que separa duas exposições do tema. Ficamos com a impressão de que trata-
se apenas de um alongamento da finalização que figurava no final de cada parte (o
que não deixa de produzir efeitos de sentido, como veremos mais adiante). Essa
estratégia de composição, que de certa maneira dilui os limites da macroforma, ajuda a
recobrir a imagem construída pela letra, de um narrador que viajou pelos lugares de
forma não programada, errática (“pra seguir minha jornada”, “nessas tortuosas trilhas”).
Isso não diminui a competência do narrador em contar suas aventuras. O forte teor de
Paratodos
introdução
ABCC’ABC
coda
Níveis de descrição no discurso musical 71
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verdade que essa canção provoca pode ser atribuído à presença quase que exclusiva de
frases descendentes. Além disso, há uma correspondência entre o que é dito (“que cobri
de redondilhas”) e a maneira de dizer, pois todos os versos são de fato redondilhas (7
sílabas).
Também não é usual o fato de percebermos pouquíssima variação melódica
entre as partes. A variação é tão pequena que até mesmo o critério adotado de chamar
estas partes de A, B e C poderia ser questionado. Se tomarmos a parte A como
referência, temos apenas uma modificação nos dois primeiros compassos de B e uma no
último compasso de C. E essa modificação nada mais é que a transposição da forte
célula rítmica que atravessa de maneira invariável toda a canção. Poderíamos descrever
sua estrutura como AA’A’’A’’’AA’A’’ não estaríamos longe da sensação auditiva
que ela provoca. Estamos diante de uma construção que investe em uma estratégia de
diluição dos limites, ao menos no terreno da melodia principal. Essa canção evolui
principalmente graças à instrumentação. Na transcrição que segue, apresentaremos a
indicação da parte, os primeiros versos (apenas para localização), além dos instrumentos
percebidos durante o canto (não colocamos aqui a instrumentação dos compassos de
“sobra”).
A “o meu pai era paulista”: violão, baixo (seguem por toda a canção)
B “foi Antônio Brasileiro”: flauta, piano (fraco)
C “nessas tortuosas trilhas”: percussão, piano (médio)
C’ “vi cidades, vi dinheiro”: percussão, piano (forte), flauta, sanfona
A “para um coração mesquinho”: percussão, piano e flauta mais ativos
B “viva Erasmo, Bem, Roberto”: flauta, piano, percussão, sanfona
C “o meu pai era paulista”: flauta, piano, percussão, sanfona, cordas
Níveis de descrição no discurso musical 72
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Como já dissemos anteriormente, o contraste melódico entre as partes é mínimo,
o que gera um considerável efeito de desaceleração. No entanto, podemos perceber
contrastes significativos de densidade timbrística (percebidas pelo acréscimo de
instrumentos), intensidade e densidade melódica (esta última percebida principalmente
graças a uma maior atuação de cada instrumento a cada nova exposição das partes).
Cria-se aqui um interessante efeito de sentido, que é o de diversidade dentro da
identidade. A diversidade está nas variações no acompanhamento, e a identidade na
melodia principal. A relação entre esse efeito construído musicalmente e a letra é
notável. Se o narrador clama para si o valor da diversidade regional na descrição de sua
linha hereditária (pai paulista, avô pernambucano e tataravô mineiro), ele logo sintetiza
isso em uma grande unidade, identificada primeiro com o reconhecimento da influência
de Tom Jobim (“Antônio brasileiro”), e finalmente com sua nacionalidade: “sou um
artista brasileiro”.
A partir de sua identificação com a música e os músicos brasileiros, o narrador
aponta o fazer musical como o sujeito capaz de aniquilar todos os anti-sujeitos que ele
encontra em sua jornada (“a viola me redime”). Estes anti-sujeitos estão figurativizados
como “fel”, “moléstia” e “crime”, na estrofe, coração mesquinho” e solidão
agreste” na estrofe. Do outro lado, dando ao sujeito condições para enfrentar seus
percalços, estão os destinadores: “Antonio Brasileiro”, “Dorival Caymmi”, “Jackson do
Pandeiro”, e todos os compositores e instrumentistas brasileiros. Igualmente importante
é a ascendência do narrador, que reúne o saber-fazer acumulado por várias gerações de
antepassados, cada qual proveniente de uma região do país.
Além de estar exatamente no centro do tema, a estrofe é a que tem o
alongamento final, e por isso mesmo ganha uma posição de destaque em relação às
Níveis de descrição no discurso musical 73
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demais. Aqui o narrador faz referência a “bandoleiros”, “hospícios”, e “moças feito
passarinho avoando de edifícios”. A explicação para a curiosa metáfora vem com a
sugestão do medicamento a ser aplicado: fume Ari, cheire Vinícius, beba Nelson
Cavaquinho. uma aproximação entre o uso de drogas e a marginalidade
(“bandoleiros”), a insanidade (“hospícios”) e o suicídio (“moças feito passarinho
avoando de edifícios”). Mais uma vez, a música surge como o sujeito capaz de suplantar
todos os desafios.
A perplexidade do narrador diante do narrado é percebida tanto pelo número
excedente de compassos que segue a estrofe, que ele precisa de um tempo maior para
retomar sua narrativa, quanto pela estrutura da intervenção instrumental. um jogo de
pergunta e resposta entre flauta e violão que, junto com o toque de percussão, cria um
clima de suspense que recobre bem o conteúdo de “perplexidade”. Passado o choque, a
narrativa – assim como a viagem do narrador – prossegue.
4.1.3 Uma análise: “Garota de Ipanema”
Vamos por um momento interromper a nossa linha de raciocínio e fazer uma
análise prática para observar o jogo de contrastes nesses dois níveis mais abrangentes do
discurso musical. Elegemos como objeto a versão instrumental de Garota de Ipanema,
de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, apresentada em 1963 no LP “Tom Jobim Plays”
(JOBIM, 1963). Esta peça foi escolhida por duas razões: por se tratar de uma peça
instrumental, e desta maneira poderemos estudar as questões musicais sem a
interferência do verbal; por ser uma canção muito conhecida, o que com certeza
facilitará a tanto a localização quanto a compreensão das estruturas analisadas.
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A macroforma desta versão de “Garota de Ipanema” pode ser esquematizada
desta maneira:
O primeiro ponto a destacar, e que pode ser imediatamente percebido neste
esquema, é o perfeito equilíbrio estrutural da peça. Temos o tema, o improviso e a re-
exposição do tema no centro, introdução e coda na periferia. Trata-se de uma obra “bem
comportada”, marca registrada deste primeiro período da produção jobiniana, e desta
primeira fase do estilo Bossa-Nova”. Essa estrutura é também tipicamente encontrada
em standarts de Jazz: introdução, apresentação do tema, seção de improviso,
reapresentação do tema, finalização.
Essa é também uma estratégia de produção de sentido. Uma forma equilibrada
pressupõe um sujeito que está em conjunção com um saber-fazer. Trata-se de um
enunciador que está “no controle da situação”, um enunciador que é ele também
equilibrado, capaz de um fazer programado, estruturado.
Esse equilíbrio que percebemos na macroforma é também manifestado de outras
maneiras. Uma delas é a escolha de um andamento em 76 Bpm, o limite inferior de um
andante, indicação musical para um andamento que se aproximaria do passo normal em
uma caminhada. Em outras palavras, nem rápido, nem devagar: equilibrado.
O segundo aspecto a ser considerado ainda sob um ponto de vista global é a
escolha de timbres. Os instrumentos escolhidos para essa execução foram: flauta, piano,
Garota de Ipanema
introdução
Tema
coda
Improviso / re-exposição
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violão, contrabaixo, cordas e bateria com vassoura e baqueta. Todos os instrumentos são
executados com extrema leveza, o que transmite um tom de delicadeza à peça. A bateria
utiliza a baqueta quase que exclusivamente para leves toques na borda da caixa,
compondo com a vassoura a base percussiva. um balanço entre contínuo e
descontínuo tanto na escolha como no modo de atuação dos instrumentos. Essa
oposição é percebida no contraste entre notas curtas (ataques) e notas longas (durações).
No violão, instrumento que nesta peça praticamente não vai além do acompanhamento,
são priorizados os ataques percussivos. O piano também é utilizado com essa função,
mas é convocado também para exposições melódicas que não são nem percussivas, mas
que também não chega a emitir notas longas. A flauta é utilizada também para melodias
como as do piano, mas também surge fazendo contracantos contínuos, com notas
longas. Já as cordas são empregadas o tempo todo para a produção de notas alongadas.
A bateria, se tomada como unidade, é o termo complexo desta relação: os toques de
baqueta são os que produzem os ataques mais nítidos, e a vassoura produz uma base
contínua que atravessa toda a peça.
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A introdução desta peça pode ser dividida em duas partes de quatro compassos
cada. Na primeira parte, podemos observar uma melodia executada pelas cordas,
composta por apenas duas notas longas que se alternam. O violão apresenta uma
harmonização em bloco dos dois acordes que acompanham as cordas, F6-9 e Cm7,
pulsando em uma célula rítmica sincopada, com ataques precisos. É o único momento
da peça em que o violão é destacado, pois em todo o restante ele irá compor a base,
junto com o contrabaixo e a bateria. Na segunda parte da introdução temos a
apresentação da flauta executando uma melodia sincopada que, a exemplo das cordas,
também circulam em torno de duas notas. O piano pontua a aparição dessas notas
centrais com um acorde.
Nestes primeiros oito compassos foram apresentados todos os personagens e
suas respectivas funções. A flauta responde pela melodia com ataques, tendendo à
tematização, e as cordas ficam responsáveis pelas notas longas, do lado da
passionalização. Piano, violão, contrabaixo e bateria são (pelo menos até este ponto)
atores coadjuvantes. No entanto, a atuação dos instrumentos de base deixa claro que a
tematização, com seu efeito de plenitude e celebração, foi escolhida desde o início como
a estratégia principal da peça.
O tema é construído na forma AABA’, estrutura típica dos standarts de jazz. É
uma forma que de certo modo enfatiza a repetição, pois uma mesma melodia será
apresentada três vezes. Esse procedimento tende também a valorizar a parte B, pois essa
será a única parte responsável pela apresentação de material novo. A oposição que se
aqui está entre a aceleração da surpresa, da novidade, e a desaceleração da redundância,
do conhecido.
A parte A desenvolve-se em oito compassos. A flauta apresenta a melodia
sincopada, calcada em uma pequena célula rítmica e melódica. O piano acompanha a
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flauta em uma harmonização em bloco nota a nota, o que faz com que ele suba a uma
posição de maior destaque. Isso não deixa de representar uma surpresa, já que na
introdução ele estava junto com violão, contrabaixo e bateria na composição da base.
Esse efeito será melhor estudado um pouco mais adiante.
Os ataques rápidos e a insistente repetição da célula produzem o efeito de
tematização desta melodia. A tensão criada vai se dissipando gradualmente na medida
em que a célula se desloca para patamares cada vez mais graves. Além da distensão
natural da curva melódica descendente, também uma distensão harmônica, que a
nota principal da melodia sai de um sol, maior da tonalidade fá, e cai para um dó,
justa deste mesmo acorde, formando um intervalo muito mais consoante
2
. Esse
movimento de resolução é ainda mais acentuado com a progressão dos acordes Gm7
Gb7 – F7M, uma variação da cadência II-V, de alto poder resolutivo.
Segundo o modelo de Tatit, curvas descendentes remetem figurativamente ao
procedimento de asseveração da fala cotidiana. A passagem do agudo ao grave é
geralmente associada a um procedimento de distensão, mas é importante frisar que esse
sentido também é construído culturalmente, e depende sempre das condições de
colocação em discurso. Agudo não é tenso por si só, assim como o grave sozinho não
representa obrigatoriamente distensão ou relaxamento. Caixinhas de música costumam
apresentar melodias extremamente agudas que são associadas ao conteúdo /delicadeza/.
O estilo drum’n’bass constrói todo seu efeito de “peso” (punch, cuja tradução literal -
“soco” - seria a palavra mais adequada) no extremo grave, quase no limite da percepção
humana. O fato de as ondas sonoras agudas vibrarem em maior freqüência, e portanto
terem comparativamente mais energia que uma onda grave de mesma amplitude, é um
assunto que interessa à física, e não à semiótica. O que importa para nós é a colocação
2
Cf. capítulo 6, pp 149-195.
Níveis de descrição no discurso musical 85
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em discurso e o processo de construção do sentido. O mesmo acontece com as ondas
luminosas: o azul, no alto do espectro, costuma ser associado ao frio e à mansidão,
enquanto o vermelho, onda de menor freqüência, é geralmente ligado ao calor e à
excitação.
Se o que está por trás do efeito de asseveração é a distensão, temos nesta parte A
um duplo processo: distensão melódica (curva descendente) e harmônica (passagem da
a e finalização em cadência). ainda uma terceira variável que completa esta
equação: o ritmo. Mais à frente teremos a oportunidade de analisar esse elemento com
mais atenção, mas podemos desde antecipar dois procedimentos básicos: a síncope,
que é essencialmente uma quebra de expectativa, e a duração das notas em cada ponto
da melodia. Os seis primeiros compassos (9 a 14) da parte A apresentam a célula
carregada de sincopas e com a predominância de notas curtas. Nos dois últimos
compassos (15 e 16) temos a presença de apenas uma nota alongada, desfazendo a
sensação de antecipação típica da síncope. aqui também uma inegável distensão
rítmica, fazendo com que todos os elementos desta parte contribuam para a sensação de
resolução. Estamos diante de uma enorme coesão musical.
A segunda exposição da parte A seria uma réplica quase perfeita da primeira se
não fosse pela introdução de um contracanto com notas alongadas executado pelas
cordas, nos compassos 19 a 24. Após essa intervenção, o naipe de cordas passa para o
primeiro plano na parte B. A melodia com notas longas marca uma parte passionalizada,
em que o sentimento de falta vem à tona. O uso das cordas nesta seção deixa clara a
associação deste timbre com o sentimento de falta, da mesma maneira que a flauta já
vinha sendo associada à tematização e o sentimento de plenitude. Como a intervenção
das cordas aparece na segunda parte A, o sentimento de falta que aflora em B é de
certa forma antecipado pelo contracanto. É como um ator que está em uma porção
Níveis de descrição no discurso musical 86
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menos iluminada do palco e que subitamente é lançado ao primeiro plano por um foco
de luz. O timbre, neste caso, representa esse ator que está aqui fortemente ligado ao
sujeito em disjunção. Paradoxalmente, a presença constante dos ataques da bateria e do
violão atenuam a falta que é manifestada em B. Ainda é um sentimento de falta, mas
sempre será uma falta-samba, uma falta que tem bossa. A impressão que é produzida – e
que nos interessa analisar é que o sujeito que sofre a disjunção está suficientemente
fortalecido e equilibrado para suportá-la, pois ele conta com a ajuda de seus adjuvantes
“tematizadores”, violão e bateria. Embora o sentimento de falta esteja de fato
manifestado, vem com ele a certeza de uma conjunção próxima, um /saber ser/ de fundo
que atravessa a peça toda.
Embora as cordas de fato apareçam apenas no final da parte A, elas não
conseguem uma frase sequer sem a intervenção dos outros instrumentos protagonistas,
piano e flauta. As cordas apresentam três frases em gradação ascendente, o que gera um
progressivo acúmulo de tensão. Logo após o ataque das cordas, o piano realiza um
contracanto em segundo plano alternando duas notas sincopadas (compassos 25 e 26).
No final da primeira frase, ele intervém com uma pequena melodia, ocupando o tempo
da última nota longa das cordas (compassos 27 e 28), chegando a emendar o início da
segunda frase (compasso 29). No final da segunda frase, o piano apresenta uma variação
da mesma melodia, um tom acima. Durante toda a terceira frase, a flauta apresenta um
contracanto “costurando” as notas longas das cordas (compassos 33 a 36). Estas são
apenas novas estratégias para atenuar o efeito de falta gerado pela passionalização. O
argumento das cordas é então definitivamente interrompido pelo piano, que finaliza a
parte B, apresentando as duas últimas frases, pela primeira vez sozinho em primeiro
plano (já que antes ele dividia o lugar com a flauta). de volta ao segundo plano, as
cordas despedem-se da primeira exposição do tema com duas pequenas frases
Níveis de descrição no discurso musical 87
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descendentes, belo contracanto que nada mais é que a perfeita representação musical de
um lamento, quase um choro (compassos 37 a 40).
O piano efetua seu corte em vários graus de profundidade. O primeiro é o
próprio ato de colocar as cordas de novo em segundo plano. Depois, por interromper a
gradação ascendente das cordas: as frases do piano estão em gradação descendente. Por
último, pela própria estrutura das frases que ele apresenta: o salto, movimento disjuntivo
que ainda persiste, é logo atenuado por uma seqüência de notas em graus imediatos, que
chegam até mesmo à cromática no final. Desta maneira, o piano instaura um /dever/ que
interrompe o devir. Nada mais poderia acontecer se não o retorno à parte A, situação em
que a “ordem das coisas” se restaura.
No entanto, a passagem por uma parte B deixa marcas, e se essa marca não é
sentida na escolha de timbres (flauta e piano voltam juntos à cena), ela recai sobre a
própria melodia, que ao invés de uma suave descida ao grave aponta para o extremo
agudo da tessitura. Essa quebra de expectativa confere à última parte a uma tonicidade
maior, um efeito de sentido de ênfase. O retorno ao grave, depois da subida, é feito com
um salto intervalar, e esta apresentação da parte A termina em um patamar um pouco
mais alto que as duas primeiras.
Não é nossa intenção aqui fazer uma análise aprofundada da seção de improviso,
mas teceremos apenas alguns comentários. A harmonia do improviso, como é de praxe,
segue a harmonia do tema. Isso nos permite dividi-lo também em uma forma AABA. O
principal aspecto a ser levado em conta é fato de que o piano improvisa. Nas duas
primeiras partes A, ele atua sozinho, tendo a base como fundo (compassos 49 a 64). Ou
seja, ele foi capaz de calar completamente os outros (até então) protagonistas por 16
compassos. No primeiro A, ele apresenta um improviso propriamente dito, enquanto no
segundo A ele reapresenta o tema. Depois, na parte B, ele continua em primeiro plano,
Níveis de descrição no discurso musical 88
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improvisando uma melodia que remete estruturalmente ao tema, tendo as cordas no
contracanto. No final da parte B, ele divide com a flauta uma frase ágil construída em
saltos de 3as. Em suma: ele transita por todas as estruturas e ocupa todas as funções. É
definitivamente o dono da peça. Se na introdução ele estava oculto com os instrumentos
de fundo, e depois passa a dividir um papel de protagonista com a flauta, o que temos
aqui é de fato uma revelação. É a encenação musical da narrativa do sujeito comum,
oculto na multidão, que aos poucos se revela e se consagra protagonista.
A última parte A é reservada para a reexposição do tema, mas desta vez temos
um súbito esvaziamento. O piano se retrai, limitando-se a pequenas e delicadas
intervenções, enquanto a flauta apresenta o tema. O protagonista se mistura de novo à
multidão, as cordas entram para a base na coda, a peça termina em fade out.
4.1.4 Frase
O nível da frase ocupa um lugar central na hierarquia que propomos aqui. Não é
por acaso que podemos dizer que a frase é a menor estrutura que ainda produz um efeito
de sentido de unidade. Abaixo da frase, poderemos perceber fragmentos de idéias.
Existem várias explicações possíveis para esse fenômeno, mas a principal parece ser
uma explicação harmônica. No nível da frase ainda é possível perceber uma
movimentação harmônica, o que confere à frase um perfil melódico que tem em si uma
direção. A frase pode ser suspensiva ou conclusiva, ela pode ser linear ou tortuosa. É
verdade que as células (componentes do nível imediatamente inferior) também têm
essas características, mas elas não possuem o poder de produzir o efeito de sentido de
unidade que a frase produz: as células são sempre ouvidas como fragmentos.
As frases podem então estabelecer jogos de perguntas e respostas, e são por isso
mesmo as grandes responsáveis pela evolução do discurso musical. Para gerar o efeito
Níveis de descrição no discurso musical 89
___________________________________________________________________________________
de sentido de “pergunta”, basta que a frase termine com alguma carga de tensão não
resolvida. Essa tensão pode ser produzida por dois mecanismos diferentes e
independentes: o perfil melódico e a harmonia.
O efeito de prossecução produzido pelo perfil melódico faz parte do mecanismo
que Tatit chama de figurativização. Esse é um uso corriqueiro da fala cotidiana: entoar
uma frase com uma curva melódica ascendente indica o diálogo não chegou ao fim, e
que esperamos uma resposta de nosso interlocutor. Da mesma maneira, produzimos
frases afirmativas com curvas melódicas descendentes. Esses mesmos efeitos de
sentidos são produzidos pela canção.
Apesar da configuração da frase melódica como um todo participar deste
processo, Tatit considera que esse efeito se concentra no último intervalo, que ele
denominou tonema. Assim, tonemas ascendentes indicam prossecução e tonemas
descendentes produzem o efeito de asseveração.
No entanto, percebemos que em algumas situações, mesmo que a terminação da
frase seja descendente, a configuração de uma curva acentuada para o agudo também
produz o efeito de prossecução.
O segundo processo pelo qual a tensão é modulada no final das frases é a
harmonia. Estudaremos esse mecanismo em maior profundidade no capítulo 6, mas
podemos adiantar a existência de acordes que produzem o efeito de (re-)tensão e
expectativa (dominantes) e outros que geram o efeito de distensão e resolução (tônica).
É importante notar que “pergunta” e “resposta”, ou ainda “prossecução” e
“resolução” são conteúdos associados a determinadas disposições musicais. Aqui
podemos ver claramente que o componente musical não é um acessório que apenas
complementa o conteúdo produzido pela letra. Muito pelo contrário, é o sentido da frase
musical que modula o sentido da frase verbal, compondo junto com esta o plano do
Níveis de descrição no discurso musical 90
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conteúdo da canção. Esse procedimento foi magistralmente utilizado por Chico Buarque
na composição de “Corrente” (BUARQUE, 1976b), canção do álbum Meus caros
amigos.
Primeira exposição
Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba tá tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba tá bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Segunda exposição
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba tá tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba tá bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Níveis de descrição no discurso musical 91
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Essa canção é quase didática para o assunto que estamos discutindo. Ela alterna
sempre frases suspensivas e frases resolutivas – designadas pela teoria musical de
“antecedentes” e “conseqüentes”. Esse conjunto (antecedente + conseqüente) recebe o
nome de período. O tema de “Corrente” é construído com 4 partes de dois períodos
cada. Na transcrição da letra esboçamos uma comparação entre a primeira e a segunda
exposição do tema.
A cada dois versos temos então o fechamento de um bloco de “pergunta e
resposta”. É fácil perceber que a letra da segunda exposição é uma repetição da
primeira, só que deslocada em um verso. Com esse procedimento, as posições de
“pergunta e resposta” produzidas pela melodia aparecem trocadas em relação à letra,
invertendo seu sentido, a despeito da quase identidade da letra em cada exposição. Isso
fica claro com a separação de cada período de dois versos, lembrando que esse é um
recorte produzido pelo discurso musical:
Níveis de descrição no discurso musical 92
___________________________________________________________________________________
Primeira exposição
Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
A
B
C
D
Segunda exposição
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
A melodia organiza as orações e altera o local do “ponto final” de cada frase,
fazendo com que as orações subordinadas se relacionem a outras orações principais.
Temos, por exemplo, o período “Só mesmo embriagado e muito louco pra contestar e
pra botar defeito” na primeira exposição, e “Pra contestar e pra botar defeito precisa ser
muito sincero e claro” na segunda.
Não há como compreender o sentido produzido pela letra sem o uso desta
“chave” musical. Com o deslocamento realizado entre letra e melodia, o compositor
consegue transformar o que seria uma defesa da qualidade do seu samba em uma
rigorosa sanção negativa do seu próprio samba. E faz isso sem prejuízo na profunda
Níveis de descrição no discurso musical 93
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continuidade que liga uma exposição à outra, que tanto letra quanto melodia são
idênticas nas duas exposições (o que recobre o sentido de “corrente”). Se nos limitarmos
a uma análise interna, poderíamos dizer que o enunciador parece afirmar que tem
consciência de que toda composição carrega consigo mesmo sua crítica positiva e
negativa, mostrando que estes dois procedimentos são no fundo dois lados de uma
mesma moeda.
Se fizermos uma análise intertextual, relacionando esse texto ao discurso de
produção musical e aos outros textos produzidos na mesma época, não haveria como
deixar de relacioná-lo à enorme repressão cultural em que o país estava mergulhado. A
própria palavra “corrente”, que até então analisamos como figura de continuidade e
coesão, traz consigo o sentido de repressão. A sanção positiva e a sanção negativa das
duas exposições poderiam ser atribuídas a sujeitos diferentes, que atuavam na época: o
público, que em 76 consagrava Chico Buarque como um dos maiores compositores
do país, e a censura, que o tinha como um alvo constante. O subtítulo da canção,
presente no encarte do álbum original, evidencia a relação com a voz de autoridade da
época: este é um samba que vai pra frente”. É uma referência direta ao bordão “este é
um país que vai pra frente”, um dos muitos que marcou o período da ditadura militar.
Não podemos terminar a análise deste exemplo sem comentar um outro
procedimento de produção de sentido pouco usual. na letra uma tensão entre dois
estados emocionais opostos, que se cristalizam em duas figuras: o “samba bem pra
frente” e o “triste e cabisbaixo”. Essa oposição entre dois estados emocionais pode ser
encontrada também em diversos elementos do componente musical.
Em seu Razão e poética do sentido, Zilberberg propõe uma reformulação do
percurso gerativo proposto por Greimas e introduz novas ferramentas descritivas
capazes de trabalhar, nos níveis mais profundos, em um grau de abstração que é
Níveis de descrição no discurso musical 94
___________________________________________________________________________________
compatível com os conteúdos produzidos pelo discurso musical (ZILBERBERG, 2006).
Em um discurso verbal, uma oposição como vida vs. morte pode ser suficientemente
abstrata para descrever a construção de sentido em um nível profundo. Mas para o
discurso musical, uma categoria como essa já é concreta demais.
Zilberberg propõe então que a primeira operação realizada pelo sujeito
epistemológico, que /faz ser/ o sentido, é um recorte que pode ser descrito pela oposição
parada vs. parada da parada. Estes dois termos estabelecem, no nível imediatamente
superior, dois regimes opostos de valores que o pesquisador francês denominou
remissivo e emissivo (cf. ZILBERBERG, 2006, pp. 129-147).
O regime remissivo é responsável pelo fechamento e pela desaceleração. Seus
subvalores são da ordem da inibição, da parada. O regime emissivo dissemina a abertura
e a aceleração. Seus subvalores são da ordem do ardor e do arroubo.
vimos, na análise das frases, a oscilação constante entre as frases suspensivas
e conclusivas. Esta é uma manifestação destes dois regimes: a expansão promovida
pelas frases suspensivas se opõe ao fechamento das frases conclusivas. Mas é no
desenvolvimento harmônico da canção que essa oposição fica mais patente. A harmonia
da parte A se desenvolve no tom de A maior. A parte B promove uma modulação para a
tonalidade de A menor, homônima de A maior. A parte C, por sua vez, se desenvolve no
tom de C#m, terceiro grau de Am. Finalmente, a parte D é construída com a
justaposição de um período de A e outro de B.
Duas coisas ficam patentes: o jogo entre tonalidades maiores e menores, por um
lado, e o investimento na contigüidade, percebido na relação de vizinhança destas
tonalidades. Na nossa cultura, as tonalidades maiores são geralmente associadas aos
conteúdos eufóricos, de realização dos programas, de conjunção entre sujeito e objeto.
Por outro lado, as tonalidades menores são associadas aos conteúdos de perda, de
Níveis de descrição no discurso musical 95
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disjunção, de introspecção. Aqui a terminologia da semiótica pode dar um contorno
melhor às descrições usualmente utilizadas: a tonalidade maior corresponde a uma
expansão, uma abertura, a um regime emissivo; a menor responde por uma
concentração, um fechamento, a um regime remissivo.
Assim como no verbal, que manifesta a continuidade com um mínimo
deslocamento dos versos de uma exposição a outra, o musical cria esse mesmo efeito de
sentido utilizando apenas tonalidades menores próximas ao tom de A maior. A surpresa
inerente ao processo de modulação é aqui reduzida a ponto de mal ser percebida como
uma ruptura. Além de próximas, as tonalidades menores apresentadas são passageiras.
O segundo elemento musical utilizado para construir a oposição entre emissivo e
remissivo é, para dizer o mínimo, inusitado. O andamento desta canção não é constante
do início ao fim. Ele sofre uma aceleração progressiva, entre 133 e 144 Bpm
(batimentos por minuto). Essa é uma representação musical de uma atuação cada vez
maior do fazer emissivo. E, conforme avisa o subtítulo, “este é [literalmente] um samba
que vai pra frente”, efeito decorrente da progressiva aceleração musical. É um efeito
gradual que, assim como as modulações, parece ter sido projetado para passar (quase)
despercebido. Para visualizar esse efeito, recortamos alguns períodos ao longo da
canção em um programa de edição de som e os colocamos sobrepostos:
1ª ex
posição, 1º verso
1ª exposição, 7º verso
1ª exposição, 13º verso
2ª exposição, 7º verso
2ª exposição, 15º verso
3ª exposição, 9º verso
3ª exposição, 16º verso
(verso final)
Níveis de descrição no discurso musical 96
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Podemos observar que o tamanho do período (que é uma representação visual da
sua duração) diminui progressivamente. No final da peça, há uma inversão desses
valores, com um dramático rallentando, promovendo a dominância efetiva do fazer
remissivo “fechando” a canção.
Na terceira exposição do tema, uma sobreposição dos versos das duas
primeiras: temos duas vozes cantando versos diferentes ao mesmo tempo. É uma
representação da presença simultânea dos dois diferentes pontos de vista da época, e
também uma evidência de sua incompatibilidade.
Para finalizar a discussão sobre esse nível, gostaríamos apenas de tecer alguns
comentários sobre o período musical. A rigor, o período é apenas mais um nível da
hierarquia musical, posicionado entre a frase e a parte. No entanto, optamos por o
colocá-lo na economia da descrição que fazemos aqui por dois motivos. O primeiro é
porque esse nível não parece ter uma pertinência tão grande no âmbito da canção
popular: nem todo antecedente encontra seu conseqüente, muito pelo contrário. É muito
freqüente a sucessão de rias frases suspensivas ou resolutivas, o que acaba
comprometendo a estruturação deste nível.
O segundo motivo é uma decorrência imediata do primeiro. A hierarquia que
propomos aqui é apenas uma reorganização dos procedimentos musicais ressaltados por
Tatit na construção de seu modelo. Justamente por não ver no período uma forma
constante de produção de sentido, não encontramos em sua teoria nenhuma alusão a
esse nível.
No entanto, salientamos que o discurso musical é pautado pela flexibilidade, e
essa tem que ser uma característica do modelo que o descreve. Assim sendo, a
pertinência de um nível do período depende não do modelo e sim do objeto analisado.
Níveis de descrição no discurso musical 97
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“Corrente” é uma canção em que o nível do período fica claro. “A banda” é outro
exemplo de canção que alterna frases suspensivas e resolutivas. Nada impede que
alguma canção crie outros níveis que, desta maneira, serão pertinentes à sua própria
análise.
Temos que aceitar também a possibilidade de uma peça sincretizar dois ou mais
níveis, simplificando assim sua estrutura hierárquica. No exemplo que usamos da
canção “Bom motivo”
3
, não é possível dividir a macroforma em estruturas menores, já
que a canção toda consiste em apenas um tema, sem introdução, coda ou interlúdio. Se a
macroforma é composta por apenas uma seção, ela poderá ser dividida em partes.
Podemos dizer que, neste caso, os níveis da macroforma e da forma foram sincretizados.
O mesmo procedimento poderia acontecer em outros níveis de análise, até o caso
extremo de um discurso musical construído com apenas uma nota, resultado da
sincretização de todos os níveis em um só. Por mais absurdo que possa parecer, um
discurso assim é possível e portanto deve poder ser descrito por um modelo que se
proponha a ser exaustivo.
Nível Constituído Componentes
Macroforma Peça musical Seções (tema, improviso, introdução, interlúdio, coda)
Forma Seção Partes (A, B, C, etc.)
Frases Partes Frases (suspensivas, conclusivas, lineares, etc.)
3
Cf p. XX
Níveis de descrição no discurso musical 98
___________________________________________________________________________________
4.1.5 Célula
Como dissemos anteriormente, a partir do nível da célula estamos lidando com
fragmentos de idéias musicais. O que encontramos aqui é uma arquitetura em nível
elementar. Se prosseguirmos nessa metáfora, poderemos afirmar que as células são os
tijolos do edifício musical.
Por isso mesmo podemos afirmar que as células concentram a significação
musical. É na célula que encontramos a pulsação e o andamento. Analisar a evolução
das células ao longo da peça é crucial para compreender seu sentido. Podemos observar
mais uma vez a atuação da categoria aceleração vs. desaceleração, em suas várias
gradações. Essa categoria pode ser diretamente associada à percepção de alteridade vs.
identidade, ou se preferirmos usar o termo geralmente empregado pela teoria musical,
informação vs. redundância, na comparação entre as células que compõem as frases de
uma peça. Quanto maior for o contraste (de alturas, durações, intensidades ou timbres),
maior a percepção da aceleração. Ao contrário, à medida que os contrastes se diluem, a
desaceleração passa a tornar-se dominante. Como sempre, a atuação desta categoria
acontece dentro de uma escala tensiva. Nada será completamente acelerado ou
totalmente desacelerado. No limite da aceleração, o discurso não acontece, pois o fluxo
de informações é tão veloz que nada consegue acompanhá-lo. Em um regime de
desaceleração total, o discurso também não acontece, pois não havendo nenhum
contraste entre seus componentes, nenhum sentido é produzido. É evidente que
discursos desta maneira não são concebíveis na prática. O que acontece é uma tendência
a aceleração ou desaceleração, sendo mais freqüente ainda uma combinação dos dois
fatores, recaindo sobre aspectos musicais diferentes.
Podemos então compreender a explicação, agora em um nível mais profundo, da
infinita possibilidade de combinações do discurso musical. A evolução das células pode
Níveis de descrição no discurso musical 99
___________________________________________________________________________________
ser melodicamente acelerada, mas ritmicamente desacelerada. Ou ainda desacelerada no
campo da intensidade, e acelerada no aspecto timbrístico. Ou qualquer outra
combinação em qualquer grau de aceleração ou desaceleração.
A célula participa ativamente na determinação dos grandes esquemas previstos
pela teoria de Luiz Tatit. O primeiro ponto a ser levado em conta é o andamento, que
a célula é a menor estrutura em que se manifesta a pulsação de uma peça musical.
Andamentos rápidos aproximam os elementos musicais, ativando a memória e
facilitando a percepção dos contrastes e identidades. A tessitura tende a se comprimir,
as durações se contraem, os ataques ficam nítidos. Surge daí a segmentação da peça e a
valorização dos limites: esse é o procedimento que Tatit chama de tematização.
Podemos observar esse efeito na canção “Flor da idade” (BUARQUE, 1977).
Esse é um bom exemplo para observar a dialética do discurso musical: depois de
apresentar três vezes e com mínima variação rítmica e melódica a mesma célula
acelerada, subdividida em sincopas ( ), o fluxo de informações é refreado com
uma nova célula desacelerada, que apenas marca os tempos do compasso, sem
subdivisões ( ).
Por outro lado, andamentos lentos tendem a afastar as estruturas musicais umas
das outras. A tessitura tende a se expandir, as durações se dilatam, os ataques se
apagam. Isso dificulta a percepção dos segmentos, e o que acontece é uma diluição dos
limites. Sem pontos de referência bem definidos, o que ocorre é a valorização do
Níveis de descrição no discurso musical 100
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percurso musical em si: esta é a passionalização, como podemos ver em “Romance”
(BUARQUE, 1993c):
Aqui ainda é possível observar a recorrência da célula, que mantém ainda as
mesmas figuras rítmicas ( ) e o mesmo perfil melódico (linha ascendente).
Se for possível observar uma forte contração da tessitura (a ponto de se ver
reduzida a alguns semitons), porém sem uma firme valorização dos ataques, o discurso
musical tende a se aproximar da fala cotidiana. Esta é a figurativização. É o que
podemos perceber em “Retrato em branco e preto” (BUARQUE e JOBIM, 1968). A
tessitura da primeira parte é reduzida a um intervalo de 3 semitons. Apesar da insistente
repetição da mesma célula, não temos aqui uma valorização da pulsação rítmica - o que
acabaria provocando o efeito de tematização. Ao contrário, temos uma diluição da
pulsação, já que as notas não têm uma duração homogênea e os ataques não são
marcados.
Níveis de descrição no discurso musical 101
___________________________________________________________________________________
Nunca é demais lembrar que estes processos não são mutuamente exclusivos, e
nem sequer chegam a ter uma expressão total. Uma música totalmente passionalizada
precisaria apresentar uma tessitura infinita. No entanto, por mais ampliada que seja a
tessitura de uma peça, ela sempre terá um limite. Esses três pontos que o modelo de
Tatit apresenta são apenas lugares teóricos, muito úteis para a compreensão e
classificação dos fenômenos observáveis, mas que jamais chegam a se manifestar em
intensidade máxima, a não ser em composições experimentais. O dia-a-dia das canções
trabalha sempre com os pontos intermediários e com combinações destas três
tendências. Esse fato pode ser facilmente observável na canção “Deus lhe pague”, na
versão original do álbum Construção (BUARQUE, 1971).
Deus lhe pague
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pelo prazer de chorar e pelo “estamos aí”
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Níveis de descrição no discurso musical 102
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Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Deus lhe pague
-
mir
-
rir
es pão comer es chão dor
cer dão nascer con
-
são sor
Por
-
se pra por
-
se pra A
-
ti pra e a
-
ces pra
-
tir
-
>
me
-
xar pirar
me
-
xar
-
xis Pague
-
>
Por dei res por dei e Deus
-
>
lhe
-
>
As notas das duas primeiras frases desta canção estão dispostas em uma tessitura
de apenas dois semitons. Trata-se de uma tessitura extremamente contraída, pra não
dizer achatada. Uma melodia como essa produz um forte efeito de figurativização, pois
é fácil perceber nela um gesto de fala cotidiana. Mas apesar de percebermos a
figurativização como um elemento dominante, é possível também identificar traços dos
outros dois esquemas. A tematização é percebida tanto pelo andamento rápido e a forte
Níveis de descrição no discurso musical 103
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marcação do pulso feita pelos instrumentos que acompanham a voz, como também pela
quase onipresença da célula rítmica ( ). Por sua vez, o efeito de
passionalização decorre do alongamento das notas no final das frases, especialmente na
última. É evidente aqui a relação entre esta configuração melódica e a forte opressão
descrita pelo narrador, fato que ficará ainda mais evidente no desfecho da peça.
As duas primeiras estrofes são praticamente idênticas: as variações começam a
ser introduzidas a partir da terceira estrofe. No início não nenhuma alteração na
melodia principal, mas podemos perceber uma maior atuação da orquestra que faz o
acompanhamento. Na entoação do “Deus lhe pague” desta estrofe ocorre uma alteração
na condução da voz principal. Se antes ouvíamos um único timbre de voz a cantar,
agora podemos perceber também um coro de vozes masculinas em uníssono. A inclusão
destes novos timbres produz um contraste que pode ser identificado na oposição entre
individual vs. coletivo. Se até o momento o narrado soava como uma dor particular e
solitária daquele que cantava, agora essa angústia passa a ser dividida por uma
coletividade. Não se trata mais de uma angústia pessoal, mas sim social.
A quarta estrofe segue com o coro mimetizando a voz principal até o verso-
refrão “Deus lhe pague”. Esse é agora apresentado uma oitava acima, expandindo
(explodindo?) subitamente a contraída tessitura, transformando a emoção até então
contida em um grito desesperado. A passionalização que era residual passa aqui para o
centro das atenções. Criam-se então efeitos de sentido de urgência, de uma dor que é
insuportável e que precisa de imediata reparação temos um sujeito que chegou ao
limite da capacidade de conter suas emoções.
Níveis de descrição no discurso musical 104
___________________________________________________________________________________
Pague
-
>
Deus
-
>
lhe
-
>
-
ir
-
>
-
los
-
dai pingentes gen tem
-
ca
Pe an
-
mes que a
-
te que
-
tir
-
mir
mais di
-
gonia su
-
t
ar
-
sis
-
lo
-
gi dos dentes
-
la
-
da
-
dor
Por um
-
a a pra
-
por e as Pe ran
-
do pe
-
ci
-
de a
-
gir
pe gri dement
e nos
-
ju fu Pague
-
>
E
-
lo
-
to que a
-
da a Deus
-
>
lhe
-
>
Níveis de descrição no discurso musical 105
___________________________________________________________________________________
Até agora realizamos uma análise distributiva das células, ou seja, apresentamos
exemplos de como a repetição ou alternância de células na construção das frases é capaz
de produzir sentidos. Passemos então para uma análise integrativa, ou seja, estudaremos
a composição interna das células. É evidente que para isso teremos que lançar mão dos
componentes do nível imediatamente inferior: os intervalos.
Algumas células são compostas com a utilização de graus imediatos. Com pouco
ou nenhum espaço entre suas notas, o que acontece é uma ativação do sentido de
conjunção. A primeira canção gravada por Chico Buarque - e até hoje uma de suas
composições mais conhecidas - apresenta essa característica: “A banda” (BUARQUE,
1966a).
Estas duas primeiras frases são compostas com células que mantém sua estrutura
rítmica, mas apresentam alterações de altura. Após a exposição de uma célula
descendente, temos a reapresentação quase exata da mesma estrutura em um patamar
um pouco mais grave, só que com a inversão da direção melódica na última nota, que
realiza um salto ascendente. Essa dupla disjunção – pela inovação e pelo salto – provoca
uma alteração que ressoa nas duas últimas células, construídas sobre uma curva
melódica sinuosa.
Mais constante é a estrutura de “A ostra e o vento” (BUARQUE, 1998b):
Níveis de descrição no discurso musical 106
___________________________________________________________________________________
Podemos notar a alternância de duas células idênticas porém espelhadas, até a
finalização com salto. As notas destas células são separadas por intervalos de semitom,
levando o efeito de conjunção a um grau máximo
4
.
Por outro lado, células que apresentam saltos melódicos ativam a percepção da
disjunção. Na citada canção “Bom conselho”, temos uma célula construída sobre
saltos melódicos:
Na canção “Samba e amor” podemos observar a presença simultânea de
graus imediatos e saltos intervalares na mesma célula.
Com esse procedimento, o compositor manifesta a oposição entre conjunção e
disjunção já no nível mais profundo da hierarquia musical. Desta maneira, o salto
intervalar passa a representar os valores que o sujeito evita (presentes nas figuras da
“correria da cidade”, da buzina da fábrica), e os graus imediatos manifestam os valores
desejados (que estão também no “eterno espreguiçar”, no “cobertor de lã”). Abaixo
destas figuras, sejam elas verbais ou musicais, temos por um lado o valor profundo
4
Cf análise mais profunda desta peça no capítulo 8.3, pp. 227-244.
Níveis de descrição no discurso musical 107
___________________________________________________________________________________
desejado pelo sujeito, que é a continuidade, o “desejo de durar”; e por outro lado, o
valor evitado, que é o limite, a interrupção, a parada.
Embora tenhamos dado destaque às oposições de alturas dentro das células, não
custa lembrar que as variações rítmicas são igualmente capazes de produzir sentidos. Se
pensarmos na expectativa de conclusão rítmica como um contrato, dois desfechos são
possíveis: podemos ter a efetivação deste contrato, com os ataques caindo no tempo
esperado, como em “Na ilha de Lia, no barco de Rosa” (BUARQUE e LOBO, 1989); ou
podemos observar a ruptura deste contrato, com a presença de síncopes, como podemos
observar no exemplo de “O futebol” (BUARQUE, 1989)
5
. Subjacente a esse
procedimento temos a presença da categoria integração vs. transgressão.
Nível Constituído Componentes
Macroforma Peça musical Seções (tema, improviso, introdução, interlúdio, coda)
Forma Seção Partes (A, B, C, etc.)
Frases Partes Frases (suspensivas, conclusivas, lineares, etc.)
Célula Frases Células
5
Esse tema será discutido com maior profundidade no capítulo 8.
Níveis de descrição no discurso musical 108
___________________________________________________________________________________
4.1.6 Intervalo
O intervalo é a menor relação que duas unidades musicais podem contrair. Ele
tem apenas três possibilidades melódicas e três possibilidades rítmicas: ascensão-
alongamento, suspensão-manutenção, descenso-encurtamento. Esse contraste também
se dá dentro de uma categoria tensiva: o intervalo entre duas notas pode ser de meio tom
(ou até menos, fora do contexto da música ocidental), como pode ser de uma ou mais
oitavas. Se intervalos pequenos produzem o efeito de sentido de continuidade,
intervalos maiores produzem o efeito de descontinuidade.
O intervalo parece ser em elemento central nas pesquisas de Ricardo Monteiro.
Em sua obra, o intervalo não é apenas apreendido como uma relação entre notas
adjacentes (como fizemos até agora), mas como delimitador de uma região dentro da
tessitura da peça. Nesta concepção, o intervalo é mais uma categoria que um nível
hierárquico, que ele pode dar conta tanto da relação direta entre duas notas como de
uma frase inteira. Um intervalo de justa poderia ser apresentado como um salto ou
como uma frase:
Intervalo
Salto Frase
Níveis de descrição no discurso musical 109
___________________________________________________________________________________
Em sua dissertação de mestrado, Monteiro lança a hipótese de que todo discurso
musical possa ser descrito pela alternância de dois intervalos:
A articulação e oposição de dois únicos intervalos costuma dar conta de
toda a estrutura de composições musicais extremamente complexas, num grau de
coerência espantoso para quem conhece o peso da intuição no processo de
criação, apontando como única explicação plausível responsabilizar um senso de
equilíbrio infinitas vezes mais rápido e preciso que a razão (e, até certo ponto,
independente dela) pela consistência lógica da construção do texto (MONTEIRO,
1997, p. 25)
Devido à imensa flexibilidade do discurso musical, é fácil conceber contra-
exemplos para essa hipótese. No entanto, embora saibamos que o discurso musical não
deva obrigatoriamente ser estruturado a partir da intervenção de apenas dois intervalos,
admitimos que esta possa ser uma possibilidade de realização do discurso, conforme
podemos conferir na brilhante análise que o autor faz da canção “Tristeza”
(MONTEIRO, 2005, pp. 179-197). Nesta análise, o pesquisador compara a disposição
dos intervalos ao longo das duas partes da música, e associa a inversão das operações
musicais à inversão dos valores no plano de conteúdo verbal. Estes resultados podem
ser visualizados nas seguintes tabelas (MONTEIRO, 2005, p184, 188):
[Parte A]
Tensionamento
Relaxamento Tensão
Termo
Intervalo associado
Signos lingüísticos em n=2
Signos lingüísticos em n=3
Parâmetros de variação
Orientação
Duração
Região
Escansão
Bn
5ª J
por favor, vá
minha alma que
P(I)
descendência
breves
grave
m. escalar
x
An
6ª m
embora
chora
P(II)
ascendência
longas
aguda
m. por saltos
Níveis de descrição no discurso musical 110
___________________________________________________________________________________
[Parte B]
Tensionamento
Tensão Relaxamento
Termo
Intervalo associado
Signos lingüísticos em n=5
Signos lingüísticos em n=6
Signos lingüísticos em n=7
Parâmetros de variação
Orientação
Região
Escansão
B’n
5ª J
fez do meu coração
já é demais o meu
quero voltar àquela
P(II)
ascendência
aguda
m. por saltos
x
A’n
6ª m
a sua moradia
penar
vida de alegria
P(I)
descendência
grave
m. escalar
É fácil perceber a inversão entre os parâmetros associados à justa e menor
entre as duas partes. Se na parte A a era associada à orientação descendente, região
grave e movimento escalar, na parte B ela está ligada à orientação ascendente, região
aguda e movimento por saltos.
O enfoque usual no campo das alturas é apenas uma escolha analítica. Por mais
que possamos fazer uma descrição abstrata de uma melodia apenas com alturas e
durações, ela jamais existirá sem intensidade e timbre. O fato de não existir ainda um
lugar para o timbre e a intensidade no modelo de semiótica da canção não é motivo
válido para supor que estas duas propriedades sejam menos participativas na construção
do sentido de uma peça musical (conforme mostrado na análise de “Paratodos”). O
modelo não extrai informações destas propriedades simplesmente porque não foi feito
para isso. No entanto, basta ouvir um pequeno trecho de qualquer sinfonia de Beethoven
para perceber a atuação da intensidade na construção de contrastes entre frases
compostas por notas com as mesmas alturas e durações. Ou então procurar qualquer
método de orquestração e arranjo para perceber a importância que a tradição musical
ocidental atribui à escolha e combinação de timbres.
Podemos pensar então que existe um intervalo de altura entre duas notas, mas
também existe um “intervalo” de durações, intensidades e timbres. A passagem de uma
Níveis de descrição no discurso musical 111
___________________________________________________________________________________
nota a outra, de um intervalo a outro, de um motivo, frase ou parte a outra pode ser de
continuidade (de alturas, durações, intensidades e timbres) ou de contraste. Em cada
nível, podemos convocar qualquer uma destas propriedades (além da densidade,
exceção feita ao nível do intervalo e da nota) para estabelecer relações de continuidade
ou descontinuidade (e estabelecer também relações integrativas entre os níveis). Não
podemos prosseguir sem dar a Ricardo Monteiro o devido crédito pelo pioneirismo na
tentativa de integrar ao modelo de análise semiótica todos os elementos musicais,
partindo da constatação de que todos eles podem contrair relações e produzir sentido.
Nível Constituído Componentes
Macroforma Peça musical Seções (tema, improviso, introdução, interlúdio, coda)
Forma Seção Partes (A, B, C, etc.)
Frases Partes Frases (suspensivas, conclusivas, lineares, etc.)
Célula Frases Células
Intervalo Células Intervalos (ascendente, suspensivo, descendente)
4.1.7 Nota
Cada nota é formada a partir das quatro propriedades do som: altura, duração,
intensidade e timbre. Podemos fazer uma analogia com os femas, traços distintivos que
definem os fonemas – e que não constituem um nível de análise. Assim como os
fonemas são constituídos por um feixe de femas, as notas são formadas por um feixe de
propriedades sonoras simultâneas. Assim como não um fonema que seja apenas
/sonoro/, não existe nota que tenha apenas altura ou duração. Não podemos então falar
Níveis de descrição no discurso musical 112
___________________________________________________________________________________
em um nível das propriedades do som: a nota é o limite da forma musical (cf. LOPES,
s/d, pp. 50-55).
As notas são as unidades constitutivas do segundo nível, o do intervalo. Os
intervalos formam as células ritmo-melódicas, ou motivos. A junção das células forma a
frase, e o conjunto de frases forma a parte. O conjunto das partes forma a seção (tendo
no tema uma das possibilidades de realização). O conjunto das seções compõe a peça
musical, considerada aqui não apenas pelo efeito de sentido de identidade que ela
constrói no discurso de produção musical, mas na sua totalidade. Podemos visualizar
essa hierarquia em uma tabela:
Nível Constituído Componentes
6 Macroforma Peça musical Seções (tema, improviso, introdução, interlúdio, coda)
5 Forma Seção Partes (A, B, C, etc.)
4 Frase Parte Frases (suspensivas, conclusivas, lineares, etc.)
3 Célula Frase Células (sincopadas, lineares, sinuosas, etc.)
2 Intervalo Célula Intervalos (ascendente, suspensivo, descendente)
1 Nota Intervalo Notas (altura, duração, intensidade, timbre)
Propriedades Nota Altura, duração, intensidade, timbre
Tabela 1
4.1.8 Semiótica da canção
Podemos agora encontrar o lugar reservado a cada um dos mecanismos e
movimentos utilizados por Tatit na construção de seu modelo (cf. TATIT, 1997, pp.95-
96). Tematização e passionalização são descritos como projetos entoativos de
concentração e extensão, respectivamente. No primeiro caso, surgem os mecanismos de
Níveis de descrição no discurso musical 113
___________________________________________________________________________________
involução (tematização e refrão) e evolução (desdobramento e segunda parte). No
segundo, os movimentos conjuntos (graus imediatos e gradação) e disjuntos (salto
intervalar e transposição).
Graus imediatos e saltos intervalares são fenômenos pertinentes ao segundo
nível, o do intervalo. Eles manifestam diretamente o estado tensivo da categoria juntiva:
quanto menor o intervalo, maior a percepção de conjunção. O ouvido percebe a
diferença entre as freqüências de cada uma das notas de um intervalo: intervalos
maiores exigem um maior esforço de transformação da onda sonora. Da mesma
maneira, direções descendentes sugerem repouso, assim como inflexões ascendentes
apontam para um aumento da tensão. A oposição se então na medida da velocidade
desta inflexão: lenta nos graus imediatos, acelerada nos saltos intervalares. No final da
parte B de Garota de Ipanema temos neste nível um elaborado jogo de tensões:
-
LE
Sib
BE
A
-
NHA
MI
Sol
É
Mi
NÃO
QUE
-
ZA
Sib
Sib
QUE
Sol
-
NHA
-
ZI
SO
Mi
-
SA
PAS
-
BÉM
Sib
TAM
Níveis de descrição no discurso musical 114
___________________________________________________________________________________
A perda abrupta de tensão melódica em a bele-za e que tam-bém” é
retomada gradualmente por uma frase em graus conjuntos, que chegam até a “se
espremer” em uma cromática no final “que não é só mi-nha que” e “pas-sa so-zi-nha”.
Tematização e desdobramento são fenômenos que ocorrem no terceiro nível:
eles dependem diretamente da organização das células. A repetição das células gera a
tematização, enquanto a alternância produz o desdobramento. No primeiro verso da
canção “Mano a mano” (BUARQUE E BOSCO, 1984) podemos ver como esse
processo se desenvolve:
A repetição exata das seis primeiras células é uma tematização. A variação
apresentada nas duas últimas é um desdobramento. Nas primeiras células, o vel do
intervalo (no campo das alturas) se dissolve, que as notas são todas iguais. Mas ainda
é possível verificar um intervalo rítmico, pois as notas que compõem as células não
apresentam a mesma duração. Nestas células temos uma tematização ao mesmo tempo
rítmica e melódica. Nas duas últimas, um desdobramento melódico mas a
tematização rítmica persiste.
Muitas canções apresentam uma tematização parcial, mantendo o ritmo mas
alterando a melodia ou vice-versa. Outras utilizam técnicas mais complexas de
espelhamento e movimentos retrógrados. Em todos os casos, o ponto em questão é o
tratamento de informação apresentada, com ou sem transformação. Isso afeta
Níveis de descrição no discurso musical 115
___________________________________________________________________________________
diretamente a percepção da categoria juntiva: de um modo geral, quanto maior for a
redundância, tanto maior será a percepção de conjunção.
Gradações e transposições são fenômenos do quarto nível. Neste caso, o
processo é muito semelhante ao de graus conjuntos e saltos intervalares, que as
grandezas têm agora um alcance maior. Gradações representam movimentos com
transição tensiva lenta; transposições são movimentos mais acelerados. Elas também
podem ser ascendentes e descendentes, e têm o poder de aumentar ou diminuir a curva
tensiva. Na segunda parte de “Garota de Ipanema” temos uma gradação ascendente
responsável pelo acúmulo de tensão nas três primeiras frases:
A
AH BE -ZA
POR
AH -QUE -DO É -LE QUE E -TE
POR TU TÃO -TE -XIS
AH -QUE ES TÃO
TRIS
-TOU SO -NHO
-ZI
Uma gradação descendente libera essa energia acumulada, ainda na parte B:
-
LE
BE QUE
A
-
NHA
MI
-
NHA
-
ZI
É SO
NÃO
-
SA
QUE
PAS
-
ZA
-
BÉM
TAM
Finalmente, segunda parte e refrão o fenômenos do quinto nível, e se
comportam de maneira semelhante aos do terceiro nível. O refrão é uma tematização de
Níveis de descrição no discurso musical 116
___________________________________________________________________________________
alcance global. Guardadas as proporções, a segunda parte age como um desdobramento.
No nosso exemplo, a repetição da parte A tem o efeito de um refrão. Todos estes
procedimentos podem ser observados já hierarquizados na tabela 2:
Nível 5 Parte Refrão
Segunda parte
Nível 4 Frase Gradações
Transposições
Nível 3 Célula Tematização
Desdobramento
Nível 2 Intervalo
Graus imediatos
Saltos intervalares
Tabela 2
A complexidade do discurso musical é notável. A análise que fizemos até agora
não é mais que uma descrição linear dos elementos constituintes. No entanto, todos
estes elementos contraem entre si relações mais complexas, relações que a teoria
musical designa genericamente pelo nome de “harmonia”. Além disso, temos que levar
em conta que uma música raramente é composta por apenas uma melodia. Na maioria
dos casos, ela é fruto de uma imensa polifonia de vozes interconectadas. Cada uma
delas pode ser analisada independentemente, em seus diversos níveis, com suas
harmonias internas, mas também se relacionam umas com as outras em uma complexa
rede.
Uma vez separados e hierarquizados os planos de produção de sentido do
discurso musical, podemos tentar construir um modelo geral de previsibilidade levando
Níveis de descrição no discurso musical 117
___________________________________________________________________________________
em conta cada um dos elementos. Aqui fazemos desde a distinção entre elementos
que são internamente modulados pela oposição entre ascendente e descendente e
aqueles cuja interferência é sempre relativa. Comparando um refrão a uma segunda
parte, podemos comparar as regiões da tessitura em que se desenvolvem e determinar os
efeitos de sentido resultantes. Mas internamente, a oposição não é pertinente. Já no caso
dos procedimentos de graus imediatos, gradações, salto intervalar e transposições, a
orientação da curva melódica e crucial para a determinação dos efeitos de sentidos
criados.
Salientamos mais uma vez que estamos ainda no esboço de uma teoria capaz de
dar conta de alguns dos principais mecanismos de construção de sentido em música.
Não é demais repetir que somente a análise continuada de temas e canções poderá dar o
devido contorno ao modelo. Por isso mesmo, os termos escolhidos são sabidamente
inadequados, ou por serem vagos demais, ou por serem precisos demais. No entanto, a
delimitação de um campo de atuação é imprescindível para o desenvolvimento da
pesquisa.
Redundância Informação
Regime de desaceleração
efeito global: conjunção
Regime de aceleração
efeito global: disjunção
Andamento: rápido lento rápido lento
Tematização Refrão Desdobramento Segunda parte
Graus imediatos:
Gradações: Salto intervalar: Transposições:
Ascendente acúmulo rápido de
tensão
acúmulo lento de
tensão
ganho abrupto de
tensão
“elevação de voz
Descendente distensão rápida:
“asseveração”
distensão lenta:
“explicação”
perda abrupta de
tensão
“baixar a voz”,
“retomada”
Níveis de descrição no discurso musical 118
___________________________________________________________________________________
É muito importante lembrar que todos os fenômenos em todos os níveis são
regidos por uma instância maior, que é a harmonia. Como veremos mais adiante na
análise de “Você, você”, no capítulo dedicado ao estudo da harmonia, a liberação de
tensão de uma gradação descendente pode ser compensada por um acréscimo de tensão
harmônica. Da mesma maneira, o efeito de sentido de distanciamento provocado por
uma segunda parte pode ser intensificado por uma modulação.
4.2 Música e glossemática
À luz da teoria glossemática, José Roberto do Carmo Jr. defendeu em 2007 sua
tese de doutorado apresentando um estudo comparado entre música e fala. Além da
abordagem absolutamente original, trata-se de um trabalho construído com um rigor
teórico raras vezes visto no meio da semiótica musical. Neste capítulo, apresentaremos
uma análise crítica tanto do procedimento quanto dos resultados obtidos. Antes de
iniciar essa empreitada, gostaríamos de enfatizar o fato de que nenhuma crítica que
possa ser feita aqui poderia diminuir a importância desta obra. Muito pelo contrário, é
justamente por perceber a enorme contribuição e as infinitas possibilidades de
expansão – que trazemos esse trabalho à discussão.
4.2.1 Restrições do modelo
Qualquer modelo que pretenda ser um modelo científico precisa definir
claramente quais os seus limites e quais são os objetos (ou classes de objetos) que ele
pretende descrever. O trabalho que analisamos agora não peca por deixar de definir seu
campo de aplicação. Ao contrário, acreditamos que as restrições impostas acabam por
restringir demasiadamente sua aplicabilidade. Isso é particularmente preocupante para a
Níveis de descrição no discurso musical 119
___________________________________________________________________________________
análise de um objeto que, como afirmamos anteriormente, é pautado pela
flexibilidade.
Logo na introdução do seu texto, o autor afirma:
Uma melodia não se confunde com uma cadeia qualquer de notas
musicais. Uma criança de dois anos que martela notas ao piano produz uma
cadeia qualquer de notas musicais, e certamente ninguém sustentará que temos aí
uma melodia. Falamos em melodia apenas quando reconhecemos essa cadeia
como o produto de um ato semiótico que faz ser o sentido, instaurando uma
relação entre uma expressão e um conteúdo [grifos do autor] (CARMO JR., 2007,
p. 16).
Encontramos aqui o primeiro indicativo das restrições do modelo apresentado.
Veremos adiante que essas restrições acabam por minimizar significativamente a gama
de textos passíveis de serem descritos pelo modelo proposto, criando condições a nosso
ver desnecessárias para que um objeto musical seja analisável. Se pensarmos nos efeitos
de sentido produzidos pelos textos, temos que admitir que a ausência de sentido também
é um efeito de sentido, e é um efeito de sentido permitido pelo sistema que o produz.
Ele pode ser previsto, e por isso mesmo deve poder ser descrito. O mesmo se aplica às
notas produzidas pela criança de dois anos ao piano. O que transparece aqui – e que será
disseminado em toda a obra é uma concepção pré-fixada do que vem a ser o sentido
musical, que culmina na própria definição de melodia. Mais adiante, encontramos a
seguinte afirmação:
Não por acaso, uma seqüência musical estocástica (como a da criança ao
piano) não produz esse efeito de melodia: ela é arrítmica, desordenada,
desconexa, incoerente, não-direcional e, conseqüentemente, não pode apresentar
transformações. (CARMO JR., 2007, p. 20).
Níveis de descrição no discurso musical 120
___________________________________________________________________________________
Se anteriormente foi sugerido que “certamente ninguém sustentará que temos
uma melodia”, neste outro parágrafo podemos encontrar uma melhor solução para o
problema. Uma criança ao piano produz sim uma melodia, que uma melodia
“arrítmica, desordenada, desconexa, incoerente e não direcional”. também um
efeito de sentido de infantilidade, incoerência ou ausência de coesão que, como
dissemos, pode e deve – ser previsto pelo modelo. Afinal, se essa “cadeia qualquer de
notas” não constitui uma melodia passível de análise, o que vem a ser ela então? A
resposta surge logo adiante:
Dado que numa melodia tonal simples estamos dentro de um único
campo (um paradigma de valores musicais), a linha melódica construída pela
projeção sintagmática desses valores pode criar efeitos de transição
[distensãotensão] e [tensãodistensão],tudo dependendo de como os valores
são selecionados pelo sujeito da enunciação.
Vale a pena insistir no fato de que esses efeitos podem ser criados, mas
que não necessariamente o são. Se voltarmos à nossa criança de dois anos que
martela notas ao piano, ela sem vida produz uma cadeia de notas, ou seja, um
sintagma musical. Seu paradigma é o próprio piano, que, como vimos, é uma
espécie de sistema concreto. Mas ela não produz uma melodia porque:
a)ela não seleciona cronemas e dinamemas de maneira a criar células;
b)ela não seleciona tonemas de modo a criar contrastes de
tensão/distensão (CARO JR., 2007, p. 90).
Temos aqui uma definição estrutural de melodia que não apela para um senso
comum - que neste caso definitivamente não existe. Para o autor, uma seqüência de
notas será uma melodia se e apenas se contiver células rítmicas (definidas também
dentro de um critério um pouco gido, como veremos a seguir) e construir tensões
harmônicas. No entanto, como vimos mais acima, a aceleração é um mecanismo capaz
justamente de atenuar os limites, podendo chegar ao ponto de desconstruir por completo
Níveis de descrição no discurso musical 121
___________________________________________________________________________________
o efeito de sentido de célula (assim como o de frase, de parte ou seção). Uma melodia
assim composta não poderia sequer ser considerada no modelo proposto. Como já
afirmamos anteriormente, essas restrições seriam desnecessárias se flexibilizássemos os
conceitos dentro do modelo ao invés de desconsiderar qualquer manifestação que não se
comporte conforme a previsão.
Além disso, a definição acima deixa de fora toda e qualquer composição atonal,
que desconstrói o jogo de tensão/distensão dos tonemas. Uma melodia atonal não
poderia mais ser chamada de “melodia”, o que contraria uma prática que está por
diversas e boas razões completamente incorporada ao fazer musical mais de cem
anos. Uma canção como “Doideca” (VELOSO, 1997), de Caetano Veloso, não teria
melodia. Acreditamos que o tonalismo – assim como o atonalismo – podem e devem ser
descritos como efeitos de sentido possíveis, por um modelo que olhe para o discurso
musical a partir de um ponto de vista mais amplo.
O que se prefigura aqui é um modelo rígido demais para poder dar conta da
flexibilidade do modelo musical. Fica claro que a opção metodológica é priorizar o rigor
teórico em detrimento da amplitude do modelo. Esse procedimento não é em si mesmo
problemático, muito pelo contrário: analisar é sempre reduzir e recortar. No entanto, é
preciso deixar claro que a restrição é antes uma opção do modelo que uma imposição do
objeto. Como veremos adiante, essa restrição imposta ao objeto acaba por produzir
resultados pouco confiáveis e em contradição com os fatos da linguagem musical. As
restrições – que existem e sempre existirão em qualquer modelo – devem aparecer como
conseqüência da análise, nunca como pressupostos:
Esse desafio toma proporções consideráveis em linguagens como a
música pura, na qual temos que limitar o escopo da análise às estruturas do plano
da expressão, e na qual as formas do plano do conteúdo são interpoladas apenas
por catálise [Grifos nossos] (CARMO JR., 2007, p. 27).
Níveis de descrição no discurso musical 122
___________________________________________________________________________________
E logo mais adiante:
A segunda hipótese parte do pressuposto de que a música é uma
semiótica ancorada no plano da expressão. [Grifo nosso] (CARMO JR., 2007, p.
28).
4.2.2 Aparelho fonador e instrumentos musicais
Tendo como principais justificativas o sucesso obtido pelos fonólogos na
descrição do plano da expressão verbal a partir do aparelho fonador humano e a
possibilidade da voz de atuar tanto no sistema verbal como no musical, o autor defende
uma abordagem semelhante para a música, e propõe uma descrição das categorias
musicais a partir das características comuns aos diversos instrumentos:
Essa hipótese equivale a reconstruir o sistema musical a partir de uma
base acústico-articulatória, seguindo, de certo modo, a trilha de foneticistas e
fonólogos que chegaram às grandezas primitivas da expressão verbal graças a um
estudo do aparelho fonador (CARMO JR., 2007, p.28).
Embora essa abordagem pareça não convincente como também promissora,
uma certa inconsistência na interpretação das funções dos instrumentos musicais,
fato que compromete os resultados obtidos, e que é o centro da crítica que fazemos ao
trabalho. Para poder explicar melhor o problema, vamos retomar resumidamente a
exposição que o autor faz da estrutura do aparelho fonador:
Essas partes [do aparelho fonador] podem ser agrupadas em três
conjuntos, que desempenham diferentes papéis no processo de fonação: o
conjunto respiratório, o conjunto energético e o conjunto ressoador.
Níveis de descrição no discurso musical 123
___________________________________________________________________________________
O conjunto respiratório, constituído pelos pulmões, responde pela
corrente de ar necessária ao processo de fonação.
O conjunto energético compreende as pregas vocais, e é o responsável
pela geração da voz, ou seja, de vibrações regulares que sofrem apenas três
determinações fonologicamente pertinentes: intensidade (forte vs fraco), duração
(longo vs breve) e altura (grave vs agudo). Essas determinações da voz são
denominadas prosodemas.
O conjunto ressoador – cavidade oral e nasal, língua, lábios, dentes,
palato duro, etc é o responsável pela segunda etapa do processo, quando a
corrente fonatória é submetida a uma série de interferências através de oclusões,
constrições, nasalizações, etc. Os sons que resultam dessas interferências são os
fonemas: as consoantes, determinadas pelo ponto de articulação e sonoridade; as
vogais, determinadas pela abertura da boca, altura da língua, e arredondamento
dos lábios [grifos do autor] (CARMO JR., 2007, p. 29).
Mais adiante, o autor inicia suas comparações entre o aparelho fonador e os
instrumentos musicais:
Um instrumento musical (...) é também dotado de um conjunto
energético, onde são produzidos sons com altura, duração e intensidade. Ele
dispõe igualmente de um conjunto ressoador que amplifica e modifica os sons
provenientes do conjunto energético. O que no aparelho fonador são as cordas
vocais, nos instrumentos musicais são cordas esticadas, placas de madeira,
palhetas de cana, metal, etc. a cavidade oral-nasal do aparelho fonador
corresponde, nos instrumentos melódicos, a câmaras, caixas e tubos ns mais
diversas dimensões e formatos, construídas com os mais diversos materiais.
Há, porém, uma diferença crucial entre o aparelho fonador e qualquer
instrumento musical: enquanto aquele possui um conjunto ressoador móvel,
responsável pelas articulações que originarão os fonemas, o conjunto ressoador
dos instrumentos de música é imóvel, inarticulável. [grifo do autor] (CARMO
JR., 2007, p. 30).
Níveis de descrição no discurso musical 124
___________________________________________________________________________________
Se por um lado a comparação entre o sistema verbal e o sistema musical parece
ser promissora, a comparação física e sobretudo as interpretações que se faz dessa
comparação – é especialmente delicada.
O principal equívoco é atribuir de antemão uma igualdade de funções aos
diversos conjuntos que, combinados, produzem o som. O autor focaliza a comparação
apenas no conjunto ressoador, e tira suas conclusões sem levar em conta que nos
instrumentos musicais, ao contrário do aparelho fonador, os outros conjuntos são
cruciais na determinação do timbre do som produzido.
Assim como no aparelho fonador, as vibrações produzidas no conjunto
energético do trompete podem ser determinadas pela altura, duração e
intensidade, mas, diferentemente daquele, não existem partes móveis no conjunto
ressoador que possam causar algum tipo de interferência nessas vibrações
(CARMO JR., 2007, p. 31).
No entanto, as interferências nas vibrações ocorrem antes da chegada ao
conjunto ressoador do trompete. Elas são produzidas pelos equivalentes dos conjuntos
respiratório e energético. O exemplo do trompete é particularmente infeliz, já que o
trompete possui um acessório capaz de produzir variações timbrísticas exatamente no
que seria seu conjunto ressoador: a surdina.
A comparação com instrumentos de corda é igualmente falha no mesmo ponto:
Assim como o trompete, o conjunto ressoador do violoncelo não dispõe
de partes móveis que possam de alguma maneira interferir sobre o som produzido
pela membrana de madeira, limitando-se a amplificá-lo (CARMO JR., 2007, p.
32).
O som do violoncelo é produzido pelo atrito de um arco em suas cordas.
Praticamente tudo o que envolve esse movimento produz variações timbrísticas no som
produzido. O ponto na corda de fricção do arco, o ângulo da fricção, a velocidade de
Níveis de descrição no discurso musical 125
___________________________________________________________________________________
fricção e o peso colocado ao arco são apenas alguns aspectos que, combinados,
produzem uma miríade de timbres diferentes. Não é por acaso que os instrumentistas
investem anos de treino para conseguir o controle sobre o timbre do instrumento. Mais
adiante, o autor afirma:
O trompete e o violoncelo são apenas dois exemplos, tomados entre
muitos outros possíveis, que servem para ilustrar o mecanismo fundamental de
qualquer instrumento melódico, sem exceção [grifo nosso] (CARMO JR.,
2007, p. 32).
O que de fato ocorre quase sem exceção é a possibilidade dos instrumentos
produzirem uma enorme diversidade de timbres, e de articulá-los produzindo contrastes
e gerando com isso efeitos de sentido diversos. A comparação estabelecida entre os
aparelhos de produção de som no sistema verbal e musical acaba por produzir
instabilidades que estão disseminados por todo o trabalho. Ela nos mostra e por isso
mesmo é importante – os limites da aproximação que se pode fazer entre os dois
sistemas.
4.2.3 Constituintes e caracterizantes
Neste capítulo, o autor aponta para uma diferença estrutural entre o timbre e as
demais propriedades do som.
De outro lado, porém, há uma categoria que se “encolhe” sobre si
mesma, que se atrofia: os instrumentos são cuidadosamente construídos de modo
que uma grandeza invariante mantenha-se absolutamente idêntica a si mesma ao
longo de toda a tessitura. Essa grandeza indiferenciada é o que se entende
normalmente por timbre de um instrumento musical. É a concentração timbrística
que identidade a um instrumento. Reconhecemos a identidade “saxofone” em
cada uma das diferentes notas que esse instrumento produz ao longo de sua
extensa tessitura. Se, de fato, como mostrou Saussure, na língua “somente
Níveis de descrição no discurso musical 126
___________________________________________________________________________________
existem diferenças”, na música, ao menos na categoria do timbre, não pode haver
diferenças [grifos nossos] (CARMO JR., 2007, p. 41).
Não considerar possibilidade de variação timbrísticas de todo instrumento
musical produz resultados questionáveis. Mais uma vez, salientamos que a descrição
física dos instrumentos nem sempre é pertinente sob o ponto de vista da semiótica.
Conforme veremos mais adiante no capítulo “O estatuto semiótico do timbre”, o
reconhecimento de um instrumento é fruto de uma estratégia de construção do sentido.
O enunciador tem o poder-fazer e não o dever-fazer criar o efeito de sentido que
leva ao reconhecimento de um instrumento. Pouco importa se esse instrumento tem
existência real ou foi emulado em um sintetizador. Se percebermos determinado som
como sendo o som de um violino, então a estratégia produziu seu efeito.
O mesmo se aplica ao efeito de sentido de homogeneidade timbrística. A
evolução dos instrumentos deu aos intérpretes a possibilidade e não obrigatoriedade
de manter um timbre homogêneo. Ou seja, o que aparece aqui como uma imposição,
deve ser visto como uma possibilidade. Criar uma melodia produzindo o efeito de
sentido de continuidade timbrística é uma opção do enunciador musical (que, como
vimos anteriormente, jamais se confunde com intérprete ou compositor, pois estes
pertencem a discursos diferentes). Esse fato está claramente descrito na citação de
Bitondi que o autor faz em seu próprio texto:
Outra característica recorrente nas linhas melódicas que raramente é
abordada pela bibliografia é a homogeneidade de timbre. Assim como um salto
discrepantemente amplo no registro, uma mudança de timbre pode vir a
prejudicar a integridade de uma linha melódica, fazendo com que ela seja ouvida
de maneira fragmentada. No repertório tradicional, contudo, são abundantes os
exemplos de linhas melódicas que se transmitem de um instrumento para outro.
Mas nestes casos, a mudança de timbre é, na grande parte das vezes, reservada
para pontos estratégicos como articulações entre frases, que em si implicam
Níveis de descrição no discurso musical 127
___________________________________________________________________________________
uma quebra na continuidade melódica. Em casos mais raros, nos quais esta
mudança de timbre se em meio a uma frase que se pretenderia uma, ela é
geralmente “maquiada” pela orquestração (BITONDI, 2006, p. 38).
Bitondi coloca o problema aqui com grande precisão. A questão não se em
termos de pode/não pode, mas gira em torno de estratégias de produção de sentido – no
caso, explicitamente, trata-se do efeito de sentido de continuidade. Bitondi compara o
salto timbrístico ao salto melódico, mas admitindo sempre que esses saltos são possíveis
ou realizáveis. São possíveis porque o sistema permite e a descrição desse sistema
precisa incorporar esse fato para ser coerente com o objeto que se propõe a descrever.
Os saltos timbrísticos produzem um efeito de sentido claramente identificável: o da
fragmentação. A música é um intrincado discurso de continuidades e descontinuidades
paralelas. Como bem afirma Bitondi, a descontinuidade timbrística pode ser (mas não é
obrigatoriamente) “maquiada pela orquestração”.
Além das possibilidades de variação timbrística dos instrumentos, temos que
levar em conta também que a simples substituição de um instrumento por outro na
condução de uma melodia já é uma mudança de timbre. O que está em jogo é a
estratégia utilizada pelo enunciador - e não pelo intérprete - na construção do sentido
musical, e a escolha de timbres faz parte desta estratégia.
Um exemplo cabal do efeito de sentido de heterogeneidade timbrística pode ser
observado na seção instrumental da canção “O pulsar” de Caetano Veloso, apresentada
no CD Fina estampa ao vivo (VELOSO, 1995). O enunciador optou aqui por não
maquiar as descontinuidades. Muito pelo contrário, elas são fortemente acentuadas. A
seqüência de alturas é extremamente descontínua, devido à presença constante de
grandes saltos intervalares. O timbre de cada uma dessas notas enfatiza esse contraste:
cada nota é produzida por um instrumento diferente. O que mais chama atenção aqui é o
Níveis de descrição no discurso musical 128
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fato indiscutível de que apesar de apresentar uma total descontinuidade timbrística, a
percepção do “efeito de melodia” em nada é prejudicada. Curiosamente, são os
cronemas que aparecem sincretizados (todas as notas têm a mesma duração), enquanto
os timbres são utilizados junto com as alturas na diferenciação das notas. Esse
exemplo mostra que não podemos fixar de antemão uma posição estrutural ao timbre.
Assim como tudo mais, a continuidade timbrística é antes uma opção do enunciador que
uma imposição do sistema.
Um outro conceito que começa a se delinear aqui (e que investigaremos em
profundidade no próximo capítulo) é que a identificação de um instrumento independe
da capacidade desse instrumento em produzir uma gama de variações timbrísticas. Um
bom exemplo pode ser construído a partir do modo de tocar o violão. A posição da mão
direita ao tocar as cordas do violão (mais perto ou mais longe do cavalete) produz uma
cadeia de variações timbrísticas que poderia ser articulada em áspero vs. macio. No
entanto, essa variação não compromete a identificação do instrumento. Veremos que
isso ocorre porque a identificação de um timbre com o instrumento que o produz é
decorrente de uma relação entre os planos da expressão e do conteúdo.
Podemos pensar no timbre como uma categoria de fronteira fluida (cf.
ZILBERBERG e FONTANILLE, 2001, p.28), o mesmo ocorrendo para a categoria de
intensidade. Estas duas grandezas estabelecem regimes participativos que, no caso do
timbre, permitem agrupar vários elementos em uma mesma família (contrabaixo,
violoncelo, viola e violino na família das cordas, por exemplo). Isso acontece mesmo
sabendo que os timbres de cada instrumento são diferentes. Esse fato pode ser
facilmente percebido nas regiões de transição, ou seja, nas notas que são compartilhados
por instrumentos de tessitura próxima (viola e violino, por exemplo). Durações e alturas
organizam-se em categorias de fronteira nítida, ou seja, estabelecem a princípio regimes
Níveis de descrição no discurso musical 129
___________________________________________________________________________________
exclusivos: uma nota tem a mesma altura ou não tem a mesma altura que outra (ou
ou ré, por exemplo). O mesmo acontece com a categoria das durações. Mas até isso
pode ser complexificado na colocação em discurso: o glissando estabelece uma ponte
contínua entre duas notas, assim como o rallentando promove um aumento progressivo
na duração das notas.
4.2.4 Hierarquia melódica
Os glossemas musicais, definidos até o momento em termos de
propriedades acústico-articulatórias são os elementos terminais não-segmentáveis,
de cuja combinatória resultam as diferentes notas dos sistemas musicais. Esses
glossemas musicais correspondem aos caracterizantes de duração, intensidade e
altura (CARMO JR., 2007, p. 51).
A nosso ver, é em torno deste procedimento que se encontra a mais importante
contribuição do trabalho de Carmo. Jr. O que vemos aqui é uma descrição da estrutura
do sistema musical sem qualquer interferência do discurso de produção musical, e com
a perspectiva de um rigor teórico até então inédito. São justamente esses valores que
fazem desta obra um divisor de águas na pesquisa em semiótica musical. A nossa
ressalva está em enfatizar a necessidade de incorporar a esse modelo a flexibilidade
necessária para dar conta da imensa gama de possibilidades próprias ao sistema musical,
mas sem perder de vista o objeto. De nada adianta construir uma álgebra que se sustente
na teoria, mas que seja contradita pela observação dos fenômenos musicais (como
vimos no caso de “O pulsar”). Construir esse modelo não contraditório e flexível sem
perder o rigor teórico passa a ser desde então o desafio da semiótica musical. O grande
mérito da obra que analisamos aqui é justamente colocar a pedra fundamental deste
empreendimento.
Níveis de descrição no discurso musical 130
___________________________________________________________________________________
Mais adiante, o autor discorre sobre a transcrição dos componentes musicais na
partitura:
O sistema de notação por partitura mostra que os músicos, há muito
tempo, intuíram que cronemas, tonemas e dinamemas constituem a forma da
expressão de uma melodia, pois uma partitura nada mais é que uma espécie de
“escrita alfabética” dotadas de signos específicos apenas para essas grandezas.
Nenhuma das outras grandezas que participam de uma melodia (andamento,
dinâmica, timbre etc) possui signos específicos (CARMO JR., 2007, p. 54).
Nesta afirmação podemos perceber novamente um problema que decorre de uma
interpretação do que vem a ser uma partitura musical. Precisamos antes corrigir um
equívoco evidente: existem signos específicos para todas as grandezas que participam
de uma melodia. O andamento pode ser precisamente determinado ( = 120) ou então
indicado dentro de um sistema de faixas (andante, presto, allegro, etc.). Parte do que se
chama “dinâmica” está descrita pelos dinamemas, mas existe uma série de signos
para anotar as variações de dinâmica em uma peça para além do acento métrico
(pianíssimo, piano, mezzopiano, <, >, sfz, etc.). Mas é a categoria do timbre que pode
melhor ser representada por signos específicos: o nome do instrumento que os produz.
A confusão que se faz aqui é mais uma vez entre a possibilidade e a obrigatoriedade.
Uma partitura pode não indicar detalhes da dinâmica, do andamento e até mesmo do
timbre mas isso não quer dizer que eles não possam ser indicados (e evidentemente
não “apaga” a existência dos signos usados para descrevê-los).
No caso de uma partitura não determinar o timbre, entramos de novo no mesmo
problema de efeito de sentido de homogeneidade. Se numa determinada melodia (e não
no sistema como um todo) as combinações e oposições timbrísticas não são
importantes, elas não precisam ser anotadas. Isso é especialmente válido para a
transcrição de uma melodia de uma canção, já que o timbre nesse caso está pressuposto:
Níveis de descrição no discurso musical 131
___________________________________________________________________________________
trata-se de um timbre de voz. Isso não elimina a imensa gama de detalhes que, assim
como na escrita verbal, também são omitidas na escrita musical.
Para completar essa discussão, queremos apenas lembrar que o sistema de
escrita verbal também pode omitir informações sobre o timbre de voz dos seus atores.
Não havendo a necessidade de determinar uma família de timbres (já que a voz é a
única família de timbres capaz de manifestar textos verbais), cada discurso escolhe o
grau de detalhamento sobre o timbre de quem fala. Podemos citar como exemplo o
capítulo XIX de “Dom Casmurro”, a famosa obra de Machado de Assis, em que
Bentinho se prepara para conversar com o agregado José Dias:
Quando voltei de casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não
pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabeça,
escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na
chácara, antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver se
eram adequadas e se obedeciam às recomendações de Capitu [...]. Repeti-as
ainda, e então achei-as secas demais, quase ríspidas, e, francamente, impróprias
de um criançola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras e parei.
Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-las em tom que
não ofendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, saíram-me quase
súplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meio-termo
[Grifos nossos] (ASSIS, 1981, p. 31).
A questão da partitura fica então circunscrita, como já dissemos no capítulo
sobre a discurso de produção musical, ao problema de marcado ou não marcado. Um
discurso musical não existe sem som, portanto não existe sem timbre, e o mesmo
acontece com o verbal. A opção de descrever ou não o timbre na sua representação
(partitura ou escrita) é um problema que não diz respeito diretamente ao discurso
musical, pois a partitura não se confunde com a música. Tudo depende da finalidade
para a qual a partitura foi produzida. Se é para representar uma canção, não é necessário
Níveis de descrição no discurso musical 132
___________________________________________________________________________________
anotar o timbre, que ele é evidente: trata-se de uma melodia para timbre de voz. Isso
não acontece, por exemplo, na transcrição de uma peça orquestral, onde cada timbre é
anotado. As necessidades da transcrição não são universais nem tampouco homogêneas,
e é por isso que a notação musical sempre evolui, como podemos ver neste exemplo da
obra ‘Williams mix”, de John Cage (1962, p. 41):
Níveis de descrição no discurso musical 133
___________________________________________________________________________________
4.2.5 Células e silabação
Neste capítulo, faremos uma análise da interessante homologação feita por
Carmo Jr. entre o nível da célula, no discurso musical, e o da sílaba, no discurso verbal.
A recorrência das células ao longo da linha melódica nos permite falar de
um paradigma rítmico de ‘Três cavaleiros’ (abaixo à esquerda). Se compararmos
o perfil dos tonemas correspondentes a cada uma das células (abaixo à direita),
não encontraremos nada que nos permita identificar algum tipo de recorrência
significante, o que mostra que os tonemas não são pertinentes para a geração de
uma célula.[grifo nosso] (CARMO JR., 2007, p. 57).
Essa afirmação é, no nimo, intrigante. Uma rápida observação da disposição
melódica associada às células rítmicas analisadas pelo autor, que transcrevemos abaixo
(CARMO JR., 2007, p. 58), mostra uma série de recorrências estruturais. A célula 2 é
uma repetição da célula 1, com a omissão da última nota. A célula 4 é uma inversão da
célula 2. As células 5 e 6 são desdobramentos da célula 1, com o acréscimo de uma nota
mais grave no início da célula 5, e mais aguda no início da célula 6. A estrutura da
célula 6 pode ser identificada também como uma sobreposição da célula 4 com a célula
2. A célula 7 é um espelhamento da célula 5. A célula 8 é uma repetição da célula 7,
com a omissão da primeira nota.
Níveis de descrição no discurso musical 134
___________________________________________________________________________________
Repetições, desdobramentos e espelhamentos são procedimentos elementares na
construção de motivos. Encontramos em Schoemberg a seguinte observação:
Um motivo é usado pela repetição. A repetição pode ser exata,
modificada ou desenvolvida. Repetições exatas preservam todos os elementos e
relações. Transposições para um outro grau, inversões, retrogradações,
diminuições e aumentos serão repetições exatas se preservarem estritamente os
elementos e relações entre notas [...]. Repetições modificadas são criadas pela
variação. Elas fornecem variedade e produzem novo material (formas-motivo)
para uso subseqüente [...]. Variações, é preciso lembrar, são repetições em que
alguns elementos são modificados enquanto os outros são mantidos
(SCHOEMBERG, 1967, p. 9, tradução nossa).
A única explicação possível para a interpretação de Carmo Jr. desses fatos
pode recair sobre a expressão “recorrência significante”. Se as recorrências estruturais
são cristalinas, o problema está na interpretação do que vem a ser “significante”. A
nosso ver, esse é o maior problema na construção dos níveis hierárquicos na formulação
do autor, problema que acaba sendo também disseminado ao longo de todo o trabalho.
O que temos aqui é uma pré-concepção do que vem a ser o sentido musical, concepção
que não decorre da estrutura do sistema musical, mas apenas de premissas empíricas. Os
tonemas não são significantes neste ponto da análise porque Carmo Jr. não está tratando
de células, mas de células rítmicas. É antes uma escolha analítica que uma imposição do
sistema. O mesmo ocorre com a interpretação dos dinamemas:
Tomemos agora apenas a cadeia de dinamemas da melodia, ou seja, a
seqüência de glossemas que se distinguem pelo contraste entre o forte (marcado)
e o fraco. Nesse caso, nenhuma informação sobre altura e duração é representada.
Teríamos então a seqüência abaixo:
Níveis de descrição no discurso musical 135
___________________________________________________________________________________
Observamos apenas que, a cada intervalo de duas ou três notas, uma delas
é acentuada. Destacamos esses intervalos com retângulos tracejados de modo a
tornar visível um padrão entre sons fortes e fracos, embora tenhamos que admitir
que esse incerto padrão não nos oferece ainda uma base sólida para tirarmos
qualquer conclusão [grifos nossos] (CARMO JR., 2007, pp. 55-56).
No próprio recorte proposto pelo autor fica clara a recorrência estrutural de
acentos. Eles não compõem duas células (de três ou quatro notas) como também
contraem uma relação entre esses blocos: 3-4, 3-4, 3-4, 4-4. Mais uma vez, ressaltamos
o fato de que não há nenhuma razão estrutural para afirmar que esse padrão seja
“incerto”, e que não nos ofereça uma “base sólida para tirarmos qualquer conclusão”.
Mais uma vez, a conclusão do autor é contaminada pelo objetivo de remover os tonemas
do nível da célula.
A conclusão que podemos tirar dessas observações – e é o centro do que
queremos dizer aqui - é que todas as propriedades do som podem contrair relações
quando colocadas no jogo musical, em todos os níveis da análise. Isso implica em
admitir que não existe uma hierarquia de glossemas imposta pelo sistema musical. E se
afirmamos que as propriedades podem contrair relações, isso não quer dizer que elas
devam sempre adquirir essas relações em todas as realizações do sistema. Uma célula
pode ser construída com contraste de timbres, durações, acentos ou alturas, assim como
também pode anular o contraste em qualquer uma destas propriedades.
Com a confusão praticada entre elemento estrutural e escolha analítica (já que o
segundo é colocado no lugar do primeiro), todas as conclusões que seguem são
Níveis de descrição no discurso musical 136
___________________________________________________________________________________
comprometidas. É instigante a possibilidade de considerar a célula como sendo a sílaba
da linguagem musical, como faz Carmo Jr., mas o fato é que essa é apenas uma
aproximação metafórica. Isso de maneira nenhuma inviabiliza uma descrição
glossemática da música acreditamos que esse caminho seja não apenas possível mas
até mesmo fortemente recomendável para o prosseguimento da pesquisa em semiótica
musical. O que temos que levar sempre em conta é que o sistema construído para
descrever um objeto não pode se descolar completamente deste. Ou seja, tanto as
premissas quanto as conclusões devem ser observáveis no objeto descrito. Essa é uma
imposição tão forte quanto o rigor e a coerência interna da análise. Como afirma
Zilberberg, ao falar sobre o desenvolvimento da semiótica poética:
A semiótica pode contribuir, não para fazer o poema falar, mas para
escutá-lo melhor. Ela não decreta nenhuma exclusividade; a abordagem semiótica
do poema deverá ser feita não contra ou, pior, sem os poetas, mas junto e de
acordo com eles (ZILBERBERG, 2006, p. 195).
Estatuto semiótico do timbre 137
___________________________________________________________________________________
5. Estatuto semiótico do timbre
6
Vamos fazer agora um outro desvio do nosso corpus, e analisar uma outra peça
instrumental. Na famosa composição “Duelo de banjos” (WEISSBERG, 1990) de Eric
Weissberg, trilha sonora do filme Amargo pesadelo (BOORMAN, 1972), temos - como
sugere o título - dois instrumentos “duelando” entre si. Nossa análise tentará em um
primeiro momento descartar por completo a informação verbal transmitida pelo título e
verificar quais sentidos poderiam ser depreendidos exclusivamente da análise musical.
Um primeiro fator a ser considerado é a apresentação das frases melódicas. As
frases ímpares são apresentadas com pulso regular e acentuação constante. As durações
são homogêneas. As expectativas das resoluções rítmicas são confirmadas. Nas frases
pares, acontece o oposto. Embora sejam tocadas as mesmas notas com as mesmas
alturas, as durações não são homogêneas e as resoluções rítmicas não são confirmadas.
Entre essas frases, podemos perceber a permanência de determinada informação
(alturas) mas a deterioração de outra (durações). É fácil perceber que as frases pares
estão tentando imitar as frases ímpares, sentido esse percebido tanto pela permanência
das alturas quanto pela hesitação rítmica. A impressão auditiva é muito clara: estamos
diante da transmissão de um /saber/.
Se essa tese se sustenta, temos também que admitir que estamos diante de dois
actantes. De fato, se a primeira frase melódica é ritmicamente perfeita, temos a
apresentação de um sujeito competente, em conjunção com o /saber-fazer/. A segunda
frase melódica, ritmicamente imperfeita, mostra um sujeito em disjunção (ao menos
parcial) com o /saber-fazer/. É interessante notar que o material sonoro é aqui
6
Este capítulo aprofunda os conceitos apresentados no artigo “O estatuto do timbre no modelo
semiótico”, publicado em 2006 nos anais do I encontro nacional de cognição e artes musicais (I
ENCAM).
Estatuto semiótico do timbre 138
___________________________________________________________________________________
antropomorfizado, construindo um vel narrativo – no caso, uma manipulação. No
decorrer da música, temos uma sanção positiva: as duas melodias se encontram,
desembaraçadas, sem entraves rítmicos.
Considerando apenas a linguagem musical, somos obrigados a estabelecer duas
possibilidades para essa cena narrada. A primeira possibilidade é a do ensino: o
primeiro actante seria aquele que doaria o /saber/ para o segundo actante, destinatário
desta manipulação. A segunda possibilidade seria entender a cena como uma prova, ou
como explicita o título, um duelo. Neste caso, estaríamos diante de uma sanção, e o
segundo actante teria a tarefa de convencer o destinador-julgador de sua conjunção com
o /saber/. Na segunda parte da música, os dois instrumentos param de se alternar e
passam a tocar juntos. Trata-se de uma sanção positiva: o segundo actante está agora em
conjunção inequívoca com o saber. Tudo se passa como se o destinador dissesse para o
destinatário o seguinte: “agora você está no meu nível, podemos tocar juntos”.
Um outro fator capaz de sustentar essa tese é o timbre. Como vimos, a peça
começa com a apresentação e repetição de frases simples. No entanto, o timbre das
frases pares é diferente do das frases ímpares. O primeiro instrumento é um violão de
aço, e o segundo um banjo. Esse procedimento é crucial para que possamos perceber,
agora no nível discursivo, a presença de dois atores do discurso, condição para entender
tanto a cena de ensino como a de prova. A variação timbrística percebida entre as frases
pares e ímpares ajuda a construir o tema do ensino/duelo, e o surgimento dos papéis
temáticos (“aquele que ensina” ou “aquele que desafia” e “aquele que aprende” ou
“aquele que é desafiado”).
Todo instrumento de corda tem um leque de variações timbrísticas possíveis,
reguladas pela maneira como as cordas são tocadas (com palheta ou com dedo, com ou
sem unha) e pelo ponto de ataque (mais perto do cavalete, mais perto do braço). Essas
Estatuto semiótico do timbre 139
___________________________________________________________________________________
variações podem ser usadas por um mesmo intérprete, para diversificar o toque e assim
construir uma narrativa timbrística, mas geralmente acabam por constituir uma
“assinatura pessoal”: é possível reconhecer um instrumentista apenas pelas
características do timbre do seu toque. No da “Duelo de banjos”, é possível perceber
que existem dois instrumentos distintos. Mais que isso: foi produzido o efeito de sentido
de dois instrumentos distintos.
Essa música pode ser o ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre
o conceito de timbre. O timbre, independentemente de suas características acústicas (e
independentemente das suas condições de produção, como veremos), é sempre
reconhecido como o som de algum instrumento. E um instrumento uma vez
reconhecido pelo seu timbre passa a ser não um som, mas uma figura do mundo. O
som de um banjo pressupõe um banjo tocando. E um banjo é um instrumento que tem
tamanho, cor e forma. Mais que isso: tem história, e por isso mesmo, tem contexto.
Um outro exemplo pode ilustrar a importância semiótica do timbre na
construção do sentido do discurso musical. Em 1995, a escola de samba carioca Beija-
Flor desfilou na avenida um samba dedicado à cantora lírica Bidu Sayão. A escolha do
tema não é em si nada de surpreendente: é uma tradição nos desfiles de carnaval a
presença de temas da cultura erudita nacional. A inovação aconteceu no tratamento
dado ao fato: a inclusão de uma ala de violinistas, junto à tradicional bateria e
cavaquinho. Nossa análise, mais uma vez, recairá apenas sobre o componente musical,
ou seja, seria resultante apenas da audição deste samba enredo. O fato é que nosso
ouvido é capaz de perceber cada instrumento dentro da massa sonora que chega até ele.
E isso é feito graças ao reconhecimento do timbre. Ao ouvir o samba enredo, podemos
nitidamente identificar os instrumentos percussivos ao lado do naipe de violinos.
Estatuto semiótico do timbre 140
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Uma vez reconhecido, o violino não é mais apenas um som, mas é também uma
figura do mundo que, como todas as outras, carrega conceitos. Neste ponto, o processo
de construção do sentido musical aproxima-se muito do verbal. Aprendemos a associar
o som da palavra “violino” com o conteúdo violino (instrumento de orquestra, tocado
com arco, feito de madeira, pequeno, etc...). A única diferença é que aqui não estamos
mais tratando do som da palavra violino, construída com vogais e consoantes, mas do
som do instrumento violino, construído a partir da fricção entre arco e cordas. Sabemos
que o violino é um instrumento que pertence a uma prática musical orquestral, que por
sua vez desenvolve-se dentro de uma tradição de música erudita. Da mesma maneira,
percebemos a presença de instrumentos percussivos, como o tamborim e o surdo, que
pertencem a uma tradição de música popular. Dentro de um samba-enredo, é fácil
perceber que a percussão está dentro de um regime de integração, e que o violino é um
intruso, ou seja, aparece como elemento de transgressão. Além disso, a oposição
assumida joga para dentro do discurso musical a oposição entre erudito e popular, e
propõe uma neutralização desta oposição. É interessante notar também que esse simples
procedimento coloca a música deste samba enredo em diálogo com todos os textos que
tratam da mesma questão.
Resumindo: o timbre é uma figura do mundo, é um marcador de presença, e
como vimos na “Duelo de banjos” – pode atuar na função de ator do discurso. Por todas
essas funções, fica claro que o nível discursivo é o lugar (ou pelo menos um dos lugares
possíveis) para o timbre.
Devemos ressaltar que estamos definitivamente falando de plano do conteúdo. A
presença do timbre no plano da expressão tem características essencialmente diferentes.
Na expressão, o timbre poderia opor a categoria de brilhante vs. opaco, por exemplo, e
contrair relações semi-simbólicas com a letra se for uma canção ou com outros
Estatuto semiótico do timbre 141
___________________________________________________________________________________
elementos no plano do conteúdo musical. No plano do conteúdo, os timbres são
reconhecidos e identificados com sua fonte. Além disso, eles podem ser sérios ou
descontraídos, frívolos ou austeros. Um timbre pode também ser dramático ou
simplesmente engraçado. Na nossa dissertação de mestrado (DIETRICH, 2003),
tivemos a oportunidade de analisar a canção “Julia/Moreno” (VELOSO, 1972), de
Caetano Veloso, que é muito elucidativa nesta questão. uma flauta doce (timbre
suave) acompanhando o trecho “Julia” e uma guitarra elétrica distorcida (timbre áspero)
acompanhando o trecho “Moreno”. Daí se extrai uma relação semi-simbólica entre
áspero vs. suave e masculino vs. feminino. Neste caso, ressaltamos uma característica
do timbre presente no plano da expressão. Poderíamos nos limitar ao discurso musical, e
verificar a relação entre áspero vs. suave e guitarra vs. flauta, estes últimos tomados
aqui como atores do discurso musical, e figuras do mundo. A guitarra é o instrumento
símbolo do Rock, que por sua vez carrega valores de rebeldia e agressividade. A flauta é
associada ao conceito de pureza e leveza. Estaríamos então relacionando uma
manifestação de expressão do timbre com uma manifestação do conteúdo do timbre.
No caso do samba enredo da Beija Flor, acontece algo semelhante. Além da
oposição entre erudito vs. popular, no nível de conteúdo, temos também a construção de
uma oposição no plano da expressão. Os instrumentos percurssivos são essencialmente
produtores de ataques. Até mesmo o cavaquinho, que pode produzir uma gama
considerável de notas, também tem uma enorme limitação na sustentação de notas
contínuas. Para criar o efeito de notas longas, o cavaco é obrigado a emitir uma série de
ataques sucessivos. Então, entre o violino e a percussão, esse samba enredo estabelece
uma relação entre notas longas e notas curtas ou, para simplificar, ataques vs. durações.
Essa gama de oposições pode ser visualizada na seguinte tabela:
Estatuto semiótico do timbre 142
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P. Expressão
durações ataques
Figuras
violino percussão
Temas
erudito popular
Um outro exemplo da relação entre o timbre e os atores do discurso pode ser
observado na canção “Malandro” do álbum Ópera do malandro (BUARQUE, 1979).
Essa é também uma composição atípica, pois a rigor apresenta apenas uma parte. Temos
aqui uma enorme aproximação entre o nível da parte e o nível do tema, já que quase não
meio de diferenciar um do outro. O único elemento capaz de produzir um efeito de
sentido de divisão hierárquica entre estes dois níveis é a harmonia: a cada três
exposições da mesma parte, temos uma mudança de tom. Graças a esse procedimento
podemos observar uma organização na macroforma, o que nos permite também
perceber ua pequena ruptura na quarta exposição, já que a modulação acontece na
terceira parte, além de uma pequena variação melódica de finalização (apontada como
A’’’’). A estrutura da peça poderia então ser descrita da seguinte maneira:
O malandro
O malandro / Na dureza
Senta à mesa / Do café A
O malandro
AAA
A`A`A` A``A``A`` A```A```A````
Estatuto semiótico do timbre 143
___________________________________________________________________________________
Bebe um gole / De cachaça
Acha graça / E dá no pé
O garçom no / Prejuízo
Sem sorriso / Sem freguês A
De passagem / Pela caixa
Dá uma baixa / No português
O galego / Acha estranho
Que o seu ganho / Tá um horror A
Pega o lápis / Soma os canos
Passa os danos / Pro distribuidor
Mas o frete / Vê que ao todo
Há engodo / Nos papéis A’
E pra cima / Do alambique
Dá um trambique / De cem mil réis
O usineiro / Nessa luta
Grita “ponte / Que o partiu” A’
Não é idiota / Trunca a nota
Lesa o Banco / Do Brasil
Nosso banco / Tá cotado
No mercado / Exterior A’
Então taxa / A cachaça
A um preço / Assustador
Mas os ianques / Com seus tanques
Têm bem mais / O que fazer A’’
E proíbem / Os soldados
Aliados / De beber
A cachaça / Tá parada
Rejeitada / No barril A’’
E o alambique / Tem chilique
Contra o Banco / Do Brasil
O usineiro / Faz barulho
Com orgulho / De produtor A’’
Mas a sua / Raiva cega
Descarrega / No carregador
Este chega / Pro galego
Nega arrego / Cobra mais A’’’
A cachaça / Tá de graça
Mas o frete / Como é que faz?
O galego / Tá apertado
Pro seu lado / Não tá bom A’’’
Estatuto semiótico do timbre 144
___________________________________________________________________________________
E então deixa / Congelada
A mesada / Do garçon
O garçon vê / Um malandro
Sai gritando / Pega ladrão A’’’’
E o malandro / Autuado
É julgado e condenado culpado pela situação
Grosso modo, a letra trata da transferência de um prejuízo. Esse objeto de valor
negativo é transferido de sujeito para sujeito, até retornar ao primeiro, identificado como
o produtor deste objeto disfórico: o “malandro”. Cada parte corresponde a uma estrofe,
e em cada estrofe um novo sujeito é apresentado. A variação musical mais significativa
acontece justamente na passagem de uma parte a outra, com um progressivo incremento
dos timbres acompanhantes. Aqui o acompanhamento vai seguindo de perto os atores
apresentados pela letra: a cada novo ator, um novo timbre é incluído. Em algumas
passagens, ao invés da inclusão de um novo timbre, temos a mudança no padrão de
execução de um timbre já existente, o que gera de qualquer maneira um efeito de
sentido de novidade. A tabela abaixo mostra a correlação direta entre o ator e o
instrumento acrescentado.
Ator Timbre
Malandro Caixa de fósforos
Garçom
Violão+baixo
(a caixa de fósforos é substituída pelo tamborim)
Português-Galego Cavaquinho
Distribuidor-Frete Bateria+teclado
Alambique-Usineiro
Teclado mais agudo
Banco do Brasil Sopros
Yankes Violão mais agudo
Estatuto semiótico do timbre 145
___________________________________________________________________________________
À medida que o verbal vai crescendo o número de atores envolvidos na
narrativa, cresce também a polifonia musical. A complicação progressiva da trama
narrativa é recoberta por uma “complicação musical” que poderíamos chamar de
densidade timbrística. Assim como no exemplo da “Marcha imperial” confrontada ao
“Tema da força”, que usamos no capítulo 4, temos aqui a oposição entre individual e
coletivo.
O ouvido tende a atribuir maior importância a sons mais altos. Em um arranjo
polifônico (com muitos atores, portanto) é muito comum variar ao longo da peça o
instrumento que toca mais alto. É como se o discurso “focalizasse” um ator diferente a
cada momento o correspondente desse efeito no teatro, por exemplo, é o foco de luz
que pode passar de um ator a outro
7
. Todos esses procedimentos dizem respeito a uma
semântica do discurso musical, da qual estamos aqui apenas dando o primeiro contorno.
Esse procedimento de análise poderia também ser utilizado para descrever o
timbre vocal, não atuando em uma canção, mas em qualquer situação em que um
discurso oral se manifeste. O reconhecimento do timbre vocal é um aspecto importante
da comunicação humana, e é um fato da linguagem que não pode ser desprezado. A
partir dos contrastes timbrísticos (e de registro e intensidade também) existentes entre
vozes diferentes podemos reconhecer os falantes. Dentro de uma perspectiva semiótica,
esse reconhecimento é, no fundo, a caracterização de um ator do discurso. Da mesma
maneira que reconhecemos, em um texto escrito, o ator “Elba Ramalho”, também
somos capazes de reconhecer esse mesmo ator a partir do seu timbre de voz
característico. E, evidentemente, somos capazes também de perceber, graças a uma série
de contrastes de timbres e intensidades, o estado emotivo dos atores do discurso oral.
7
Cf análise de “Garota de Ipanema”, pp. 73-87.
Estatuto semiótico do timbre 146
___________________________________________________________________________________
Na canção “O meu amor”, especialmente na versão que consta da trilha sonora
para o filme Ópera do malandro (BUARQUE, 1985b), o reconhecimento de dois atores
distintos ajuda a construir o sentido final da canção.
O meu amor
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz Refrão
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
Meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba malfeita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai
Estatuto semiótico do timbre 147
___________________________________________________________________________________
Eu sou sua menina, viu?
Ele é o meu rapaz Refrão
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
A letra apresenta apenas dois atores do discurso: o narrador, que é
posteriormente identificado como “sua menina”, e o “meu amor”. Além de toda a
descrição do objeto de valor em questão, temos aqui uma delimitação de um território,
marcado pela presença do pronome possessivo (“meu amor”), e mais explicitamente
pelo verso “eu sou sua menina, viu?”. Desta maneira, o narrador /faz saber/ o narratário
sobre seu estado conjuntivo com o objeto.
Mas ao apresentar esta letra com dois timbres de voz diferentes, o enunciador
apresenta dois atores afirmando a posse do mesmo objeto de valor. O que era uma
delimitação de território passa a ser uma disputa entre dois sujeitos. Esse sentido é
produzido unicamente pelo contraste entre os timbres de voz.
Se não incluíssemos o refrão na análise, teríamos que admitir a possibilidade de
uma outra interpretação. Nas duas primeiras estrofes, os timbres se alternam. Cada ator
poderia então estar defendendo as qualidades de seu próprio objeto de valor. Ainda seria
uma disputa, mas neste caso uma disputa para saber quem tem o melhor “amor”. No
entanto, os dois timbres atuam juntos no refrão, afirmando que “eu sou sua menina” e
“ele é o meu rapaz”. É apenas o fato dos timbres atuarem juntos no refrão que elimina a
possibilidade interpretativa a que nos referimos e coloca definitivamente os dois sujeitos
em uma disputa pelo mesmo objeto.
Esse efeito de sentido de disputa é fortemente realçado pela introdução de um
toque militar logo após o último refrão. Agora a disputa é figurativizada como uma
Estatuto semiótico do timbre 148
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verdadeira guerra, e as duas “meninas” são qualificadas como soldados em um campo
de batalha. Esta é uma metáfora produzida pela interação entre o musical e o verbal.
Um outro elemento que parece contribuir para a caracterização deste “ator
musical” que discutimos neste capítulo é a intensidade. A intensidade é antes de tudo
um marcador de presença. A oposição forte vs. fraco, no plano da expressão, pode
marcar a intensidade da presença desse ator no plano do conteúdo. Sons mais fortes
parecem estar mais perto (qualquer operador de mixagem sabe disso). A intensidade
pode também “deformar” o timbre do instrumento, podendo com ele compor uma
imagem de agressividade. São efeitos de sentido que parecem estar também atuando no
nível discursivo, e que merecem uma descrição mais aprofundada. Embora esse
procedimento não seja contemplado no âmbito deste trabalho, fica desde anotada a
possibilidade do desenvolvimento deste tópico em pesquisas posteriores.
Harmonia 149
___________________________________________________________________________________
6. Harmonia
6.1 Harmonia na teoria musical
Neste capítulo faremos uma breve exposição dos elementos da teoria musical
que nos interessam particularmente para o estudo da harmonia. O campo teórico que
utilizaremos será o da música popular, que tem como ferramenta de análise harmônica a
harmonia funcional, difundida no Brasil especialmente pelas obras de Almir Chediak
(CHEDIAK, 1984 e 1986). A descrição que faremos é sincrônica: os conceitos serão
apresentados da maneira como são usualmente tratados na atualidade
8
.
O fenômeno fundador da estruturação musical é um fenômeno físico, chamado
série harmônica. Todo corpo que é submetido a uma vibração qualquer, chamada de
som fundamental, produz outras vibrações secundárias, os harmônicos. Essas vibrações
secundárias originadas pelo som fundamental relacionam-se com ele segundo uma regra
simples: suas freqüências são múltiplos inteiros do primeiro. Se um corpo vibra a 100
Hertz (unidade de freqüência que indica vibrações por segundo), os harmônicos
vibrarão a 200Hz, 300Hz, 400Hz, e assim por diante. Esta é a série harmônica deste
som fundamental. O som que ouvimos é na realidade uma combinação do som
fundamental com seus harmônicos, ou seja, um “bolo de freqüências” que resultará em
uma onda complexa, que o cérebro é capaz de reconhecer e rotular: é o que chamamos
de timbre.
É fácil entender fisicamente o que significa consonância e dissonância. Ao
comparar o som fundamental (100Hz) com o segundo harmônico (200Hz) vemos que a
8
Para quem deseja um estudo mais aprofundado sobre a evolução da música ao longo do tempo (análise
diacrônica), recomendamos a leitura da obra O som e o sentido, de José Miguel Wisnik (WISNIK, 2002).
Para um estudo da evolução dos mais importantes tratados musicais produzidos, discutidos no âmbito
da semiótica, recomendamos o capítulo “Evolução da teoria musical”, que consta da dissertação de
mestrado Análise do discurso musical: uma abordagem semiótica, de Ricardo Monteiro (MONTEIRO,
1997).
Harmonia 150
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relação deles é de 2:1. Isso quer dizer que o segundo som completa dois ciclos enquanto
o primeiro completa um. Ou, dizendo de outro jeito, a cada dois ciclos do segundo as
ondas “se encontram”. Se compararmos o som fundamental com o terceiro harmônico
(300Hz), veremos que as ondas levarão três ciclos para se encontrar, e assim por diante.
Em outras palavras: harmônicos de número menor são mais consonantes que
harmônicos de número maior, porque estes são mais distantes do som fundamental. Esse
é o dado físico universal, mas observamos que as diversas culturas trataram dele de
maneiras bem diferentes. um consenso universal em apenas dois pontos: o
reconhecimento do segundo harmônico como uma repetição do som fundamental
(consonância total) e o do terceiro como uma nota estrutural importante. A cultura
ocidental chama o primeiro caso de oitava e o segundo de quinta justa.
É de suma importância entender que apesar de ser regulada por fenômenos
físicos, assim como qualquer outra manifestação perceptível, o fato que estrutura um
sistema musical (e qualquer outro sistema também) é a apropriação desses fenômenos
pela cultura. Cada cultura valoriza os fenômenos de maneira diferente, e os classifica.
Temos então procedimentos obrigatórios, desejáveis, aceitáveis, proibidos. a partir
desta apropriação podemos pensar na construção de surpresas e redundâncias, e os
textos musicais poderem ser taxados de originais, renovadores e revolucionários, ou
repetitivos e retrógrados. É a inserção dos fenômenos musicais na cultura de uma
comunidade que proporciona ao discurso musical a capacidade de transmitir
informações das mais diversas ordens, prontamente reconhecidas pelos membros desta
comunidade seja esta um continente, uma cidade ou uma “tribo”. Em outras palavras:
um membro competente desta comunidade sabe ler os textos (musicais) produzidos
dentro dela.
Harmonia 151
___________________________________________________________________________________
Vamos agora analisar a série harmônica do ponto de vista musical, ou melhor
dizendo, do ponto de vista criado pela cultura musical ocidental. Usaremos como
exemplo um corpo qualquer vibrando em uma nota Dó. Os seus primeiros harmônicos
serão os seguintes:
Sol Mi
Som
fundamental
2º harmônico 3º harmônico 4º harmônico 5º harmônico
Além das repetições do som fundamental (oitava), temos as notas Sol (5ª Justa) e
Mi (3ª Maior). Como vimos, quanto mais distante o harmônico, mais tensa é a relação
dele com o som fundamental. De fato, o núcleo da história da música ocidental é
justamente a aceitação de harmônicos cada vez mais distantes. O início do
desenvolvimento do canto gregoriano realizou-se com a sobreposição de uma oitava e,
posteriormente, uma quinta justa. É muito importante notar que estas duas notas, e
Sol, mantém uma relação que é o motor de toda a harmonia, desde o canto gregoriano
até o final da música tonal, passando por todas as manifestações do tonalismo a
canção popular inclusa. O movimento de Sol para é um movimento conclusivo e
esse é o mais fundamental elemento produtor de sentido do discurso musical. Isso
acontece porque em relação à Dó, a nota Sol é o próximo harmônico. O retorno ao
(podemos chamá-la simplesmente de fundamental) representa uma passagem física
de uma onda mais complexa para outra mais simples. Isso gera uma sensação de
resolução de uma tensão. Já aqui podemos ter uma pequena visão do dinamismo do
discurso musical: apreendidas juntas, Sol e são extremamente consonantes (Sol é
apenas o terceiro harmônico de Dó). Em seqüência, temos um movimento de tensão
Harmonia 152
___________________________________________________________________________________
resolução. Tudo depende sempre do contexto (temos que levar em conta o fato de que
ainda não abordamos aqui a questão das durações).
O intervalo de quarta justa aparece como conseqüência, pois ele resulta de uma
inversão da quinta: se temos quinta entre e Sol (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol 5 notas),
temos uma quarta entre Sol e (Sol, Lá, Si, 4 notas). Isso autoriza o
aparecimento da nota Fá, quarta de Dó:
Sol
Dó, Fá e Sol representam os três grandes focos de convergência de toda e
qualquer melodia tonal. A primeira nota define a função de tônica, centro de repouso
tonal. Sol é a dominante, e representa o pólo oposto: tensão e movimento. A nota
está em um meio-termo entre esses dois extremos: ela exerce a função de
subdominante, e provoca a sensação de afastamento.
Como vimos, ao longo da história da música, harmônicos cada vez mais
distantes foram sendo aceitos. Em outras palavras: o tempo se encarregou de
transformar progressivamente dissonância em consonância. Um intervalo não aceito por
uma comunidade é “dissonante”. Quando ele é aceito e passa a fazer parte do sistema
4ª Justa
5ª Justa
Harmonia 153
___________________________________________________________________________________
musical, não mais sentido em classificá-lo como “dissonante”. Ele passa a ser então
um intervalo consonante
9
- o sistema cresce e se transforma.
A aceitação do intervalo de Terça (nota Mi no nosso exemplo em Dó) provocou
uma enorme mudança na organização do sistema musical. A terça era a ponte que
faltava para unir a Fundamental (Dó) a sua quinta (Sol) e formar um bloco sonoro que
recebeu o nome de acorde. Aos poucos, a polifonia (diversas melodias paralelas)
transforma-se em melodia única acompanhada por acordes. É essa estrutura que
denominamos tonalismo, e é no tonalismo que toda a cultura musical popular do
ocidente repousa.
Transformados em acordes, os três focos principais (tônica, dominante e
subdominante) já apresentam toda a escala:
Sol
Dó Mi Sol Fá Lá Dó Sol Si Ré
Ou, em sua forma mais conhecida:
Mi Sol Si
A escala pode ser então entendida como um sistema coeso, mas que guarda
dentro de si o par tensão-resolução (exatamente a mesma dualidade que vimos entre
as notas Dó e Sol). A partir deste ponto, começa a aventura da harmonia tonal, com suas
9
O período da Bossa-Nova, no Brasil, foi um desses períodos de transição, em que novos intervalos
passaram a ser “aceitos” pelo sistema musical, transformando-o. Por isso mesmo, falava-se em “acordes
dissonantes”: eram acordes feitos com esses “novos” intervalos. Essa é uma expressão de fato paradoxal:
se o intervalo foi incorporado, ele faz parte do sistema e deveria ser chamado de “consonante”. Passado o
“choque”, o termo “dissonância” tornou-se obsoleto. Esses intervalos são hoje designados “tensões
harmônicas”.
Harmonia 154
___________________________________________________________________________________
miríades de nuances, tensões e resoluções. A música erudita levou esse sistema até o
limite, culminando na sua ruína e no surgimento do atonalismo. A evolução da música
popular se limitou ao estabelecimento da tétrade (acordes de quatro notas) e a aceitação
das tensões harmônicas. Estas são as tétrades principais da escala de Dó Maior:
Fá Sol
Dó Mi Sol Si Fá Lá Dó Mi Sol Si Ré Fá
Como vimos, a seqüência das notas Sol e formam um movimento
conclusivo. Na seqüência dos agora acordes Sol e Dó, essa sensação de conclusão é
realçada por dois fatores: a instabilidade entre as notas Si e (trítono), presentes no
acorde dominante (Sol), e o movimento dessas notas por intervalo de semitom na
passagem para o acorde de tônica (Dó). Vamos analisar de perto cada um dos casos.
Sabemos que todas as notas são calculadas por uma relação de freqüência com
um som fundamental. Foi assim que encontramos os harmônicos de Dó, e deles
destacamos as notas Sol e Mi. São relações de freqüências que nos fazem encontrar as
notas Si e (harmônicos de Sol). também foi encontrado em relação a (Dó é
harmônico de Fá). A nota que falta, Lá, foi encontrada a partir de Fá. Estamos o tempo
todo falando em relações de freqüências, porque é exatamente isso o que o ouvido
humano escuta. Nós não temos a capacidade de reconhecer uma nota isolada: apenas a
reconhecemos em comparação com outras. Nós conseguimos desvendar justamente
essa relação de freqüências, mas não podemos precisar qual a freqüência de uma nota
qualquer (em outras palavras: qual o nome dessa nota). Nós ouvimos intervalos, e por
Harmonia 155
___________________________________________________________________________________
isso mesmo dizemos que o ouvido musical é um ouvido relativo
10
. Nosso ouvido está
todo o tempo comparando notas. Dizer que Sol é uma quinta justa de Dó é o mesmo que
dizer que a nota Sol vibra 1,5 vezes mais rápido que a nota Dó. Quanto maior for essa
relação, maior será o intervalo entre as notas.
Para simplificar a comparação da freqüência de vibração entre as notas, a teoria
musical criou uma unidade para medir intervalos. Essa grandeza recebe o nome de Tom.
Para não precisarmos trabalhar com freqüências absolutas (e dizer que uma nota vibra
200Hz a mais que outra) e nem precisar expressar os intervalos em frações (e dizer que
uma nota vibra 52/36 vezes mais rápido que outra), dizemos que uma nota está “dois
tons acima” de outra, ou “meio-tom” abaixo de outra. Com isso, podemos comparar as
freqüências com um sistema de fácil manuseio e que nos diz precisamente a relação
entre as notas. Vamos aplicar essa idéia para “mapear” a escala de Dó Maior.
É importante notar que a escala é formada apenas por dois tipos de intervalos: 1
Tom e 1/2 Tom (ou Semitom). Isso quer dizer que o intervalo entre as notas Mi e é a
metade do que existe entre Ré e Mi, por exemplo. O intervalo de semitom é o menor
intervalo aceito pelo sistema musical ocidental. Essa afirmação leva a duas conclusões:
não espaço para outra nota entre Mi e Fá, nem entre Si e Dó; por outro lado, existe
espaço para uma nota entre e Ré, e Mi, e Sol, Sol e Lá, e Si. Em outras
10
Algumas pessoas são dotadas do ouvido absoluto”, que permite o reconhecimento de notas isoladas.
Esse é um dom físico, que o é adquirido com treinamento. No entanto, esse fato não é muito relevante:
o sistema musical continua sendo um sistema de relações de freqüências.
Do Re Mi Fa Sol La Si Do
1 Tom 1 Tom 1 Tom 1 Tom 1 Tom
1/2 Tom 1/2 Tom
Harmonia 156
___________________________________________________________________________________
palavras: a escala de maior tem 7 notas escolhidas dentre 12 notas, que formam a
chamada escala cromática. Para nomear essas notas que ainda não vimos, usamos o
símbolo # (que quer dizer mais meio tom) ou o b (menos meio tom). A escala cromática
pode então ser escrita de duas maneiras:
Dó# Ré# Mi Fá# Sol Sol# Lá# Si
Réb Mib Mi Solb Sol Láb Sib Si
Dó# e Réb são duas maneiras diferentes de representar a mesma nota: ela está meio tom
acima de (portanto Dó#) mas está também meio tom abaixo de (portanto Réb).
Esse fato (nomes diferentes para o mesmo som) recebe o nome de enarmonia, e não
terá maiores implicações neste trabalho.
Vejamos então por que a relação Si e é uma relação tensa. Vimos que a
quinta justa é o segundo harmônico, e por isso mesmo é a nota mais consoante quando
tocada com um som fundamental qualquer. Se tomarmos o par Sol como modelo
de quinta justa, veremos que ele tem 3,5 Tons. Si também é uma quinta (Si, Dó,
Ré, Mi, Fá – 5 notas), mas tem apenas 3 tons (trítono). A quinta justa de Si seria Fá#. Si
é uma quinta alterada, chamada quinta diminuta, e tem uma relação muito mais
complexa que a quinta justa. É um intervalo extremamente tenso, que pede resolução.
Isso faz da tétrade de Sol (Sol, Si, Ré, Fá) um acorde instável.
Por último, precisamos entender de que maneira a passagem da tétrade de Sol
para o acorde de resolve essa tensão presente no trítono. Dissemos que na passagem
de um acorde ao outro, as duas notas (Si e Fá) movimentam-se por intervalo de
semitom. Vejamos como:
Harmonia 157
___________________________________________________________________________________
Si
Mi
Sol
Temos então duas notas em intervalo tenso que se movimentam pelo menor
caminho possível, recaindo sobre duas notas estruturais do acorde da tônica. Isso,
somado ao movimento conclusivo que observamos entre Sol e Dó, forma um bloco
“tensão – resolução” extremamente forte e coeso.
6.2 Harmonia e harmonias
Para iniciar o nosso estudo sobre harmonia, faremos mais um desvio do nosso
corpus, para analisar “Samba de uma nota só”, conhecida canção de Tom Jobim e
Newton Mendonça. Escolhemos a célebre interpretação de João Gilberto, na gravação
original pela Odeon (GILBERTO, 1959). Na primeira parte de nossa análise, levaremos
em conta apenas a melodia principal, como se essa fosse executada a capella, sem
nenhum acompanhamento instrumental. Assim poderemos perceber melhor os efeitos
de sentido que introdução de uma harmonia de acompanhamento produz.
Como promete o título, a melodia dos dois primeiros versos é construída sobre
uma única nota, um mi3 :
Eis aqui este sambinha feito numa nota só
Outras notas vão entrar mas a base é uma só
Harmonia 158
___________________________________________________________________________________
neste ponto fica perfeitamente delineada toda a problemática que será
desenvolvida no decorrer da letra. Estamos diante de uma oposição entre a “nota só” e
as “outras notas”, ou seja, a letra projeta uma categoria do identidade vs. alteridade. No
terceiro verso, a “outra nota” anteriormente anunciada é apresentada (uma quarta justa
acima, lá4), e o quarto e último verso da estrofe retorna à nota inicial:
Esta outra é conseqüência do que acabo de dizer
Como sou a conseqüência inevitável de você
É importante notar que, na última sílaba, temos de novo a apresentação da
segunda nota: essa estrofe termina com o intervalo de quarta justa ascendente. Na
segunda parte, a melodia percorre (sem saltos) toda a escala:
Tanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada
Ou quase nada
Já me utilizei de toda a escala e no final não sobrou nada
Não deu em nada
A melodia da terceira (e última) estrofe inicia como uma repetição exata da
primeira. Só que na última frase, a melodia permanece na 2ª nota.
E voltei pra minha nota como volto pra você
Vou contar pra minha nota como gosto de você
E quem quer todas as notas, ré mi fá sol lá si dó
Fica sempre sem nenhuma fique numa nota só
Harmonia 159
___________________________________________________________________________________
Nesta canção a melodia funciona como um eco perfeito do que é dito pela letra,
termo a termo. O narrador traça um paralelo entre a diversidade das notas musicais e
suas relações amorosas - valorizando euforicamente a identidade. Do ponto de vista
melódico, esta identidade é a permanência na mesma nota. No plano do conteúdo
verbal, é o conceito da fidelidade que surge como objeto de valor.
Não é nossa intenção fazer uma análise minuciosa desta canção, mas apenas
apontar elementos que não encontrariam lugar em uma análise seguindo o modelo
tradicional. Um exemplo disso é o tratamento dado ao intervalo de quarta justa, que
separa os dois primeiros versos do terceiro, e que finaliza o quarto. No primeiro caso,
toda a frase melódica é transposta para um nível mais alto. Isso representa um aumento
de tensão, imediatamente dissolvido com a volta à primeira nota.
A segunda aparição do intervalo de quarta justa tem uma função completamente
diferente, por duas razões: ela é breve e “fecha” tanto a frase musical como toda a
primeira parte. Como a melodia apresentada tem apenas duas notas, o ouvido não tem
muita possibilidade de escolha, e acabará elegendo uma das duas notas como sendo o
centro tonal da canção. A ênfase na primeira nota e o acúmulo de tensão promovido
pela entrada da segunda são mecanismos que poderiam definir a primeira como tônica.
No entanto, a finalização em intervalo de quarta justa redefine a cena, polariza a
melodia e sustenta a tonalidade na segunda nota. Um arranjo de base engenhoso até
poderia reverter essa polarização, mas isso não vem ao caso agora: estamos lidando com
uma informação harmônica transmitida exclusivamente pela melodia. Temos então uma
situação paradoxal: apesar de o tonema ser ascendente, o sentido predominante é de
resolução, e não o de prossecução, como previa o modelo. O efeito de sentido
promovido pela harmonia anula – ou ao menos relativiza – aquele esperado pelo tonema
ascendente. Há aqui um jogo de forças que definitivamente não é acessório, resultado de
Harmonia 160
___________________________________________________________________________________
uma tensão entre a resolução harmônica e a prossecução entoativa. A combinação dos
percursos harmônicos e entoativos pode gerar duas situações de compatibilidade e duas
de incompatibilidade.
tonema descendente tonema ascendente
resolução harmônica
compatibilidade (resolução) incompatibilidade
tensão harmônica
incompatibilidade compatibilidade (prossecução)
É importante observar que estamos até agora considerando apenas a posição
extrema desses percursos (resolução e prossecução). Na realidade, as forças envolvidas
tanto na harmonia quanto na entoação são passíveis de gradações. Entre o grau máximo
de resolução harmônica e o grau máximo de tensão harmônica, existe um percurso que é
geralmente definido em cada colocação em discurso. A rigor, o sistema musical permite
que cada melodia defina o que é resolução e o que é tensão. A liberdade para essa
definição é tão grande que, em uma melodia atonal, o próprio conceito de tensão e
resolução (no âmbito das alturas) é colocado em questão. No campo da música popular,
terreno em que o tonalismo é indiscutivelmente predominante, o que parece suceder é
que além da definição dos limites da categoria, cada gênero propõe uma diferente
valorização de base para o par tensão vs. resolução importante lembrar que estamos
nos referindo apenas às questões harmônicas geradas pela melodia principal).
Poderíamos traçar o rascunho de uma linha genérica (e até certo ponto intuitiva) que vai
do máximo de compatibilidade harmônica para o máximo de tensão harmônica,
medindo sempre os intervalos que cada nota realiza em relação ao acorde de base, mas o
Harmonia 161
___________________________________________________________________________________
mais importante é notar que cada gênero faz seu próprio recorte e ajustes sobre essa
linha.
Fundamental - 5
a
Justa - 3
a
Maior - 6
a
Maior - 9
a
Maior - 7
a
Maior - 11
a
Aum. - outros
(exemplos para um acorde maior)
Em uma harmonização jazzística, o que parece acontecer é uma euforização da
tensão harmônica: os pontos privilegiados para o repouso melódico são as notas mais
tensas (7
a
M, 9
a
e #11
a
). As notas de menor tensão harmônicas (Fundamental e 5
a
Justa)
são valorizadas negativamente. Em um contexto não jazzístico, o contrário é mais
provável: o repouso sobre as notas tensas é fortemente disforizado. Em algumas
situações, qualquer nota de repouso acima da 9
a
ultrapassa o limite fixado e acaba sendo
percebida como uma nota intrusa.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao mecanismo entoativo. A intensidade
do efeito de sentido de prossecução será proporcional à amplitude da curva ascendente
da melodia. Inversamente, um pequeno intervalo descendente promove um efeito de
sentido de resolução de pouca intensidade, que cresce proporcionalmente à amplitude da
curva descendente. A manutenção de uma mesma nota pode ser considerada o ponto de
interseção entre o efeito de continuidade e o de resolução entoativa.
Poderíamos prosseguir a análise musical considerando agora as questões
harmônicas introduzidas pelo arranjo de base. Na primeira e última estrofes, cada
seqüência de notas idênticas é recoberta por uma seqüência de acordes organizadas pelo
baixo cromático. Em outras palavras: a nota mais grave de cada acorde se desloca em
intervalos de semitom. Esse procedimento ameniza a sensação de deslocamento
Harmonia 162
___________________________________________________________________________________
provocado pela alternância das funções harmônicas de uma seqüência de acordes.
Temos então duas relações juntivas atuando simultaneamente: a da seqüência de
funções e a do baixo cromático. A resultante deste processo é a idéia de mínimo
deslocamento.
Um terceiro efeito resulta da sobreposição desta seqüência de acordes à melodia
da canção. Apesar de a nota ser sempre a mesma, o deslocamento do baixo - e a
mudança da função do acorde faz com que essa nota soe diferente a cada compasso.
Isso porque o ouvido realiza sempre um cálculo relativo, ou seja, ele “lêa melodia a
partir da harmonia. E a cada compasso, a relação de freqüências muda: a nota “só”
passa de terça menor a terça maior, depois quarta justa e finalmente quarta aumentada.
Em outras palavras: identidade de freqüências absolutas e alteridade de freqüências
relativas. A oposição identidade vs. alteridade, presente no verbal e melódico da canção
tomada como um todo, reaparece então na primeira parte, na relação entre harmonia e
melodia. Como em um quadro de Pollock, como em uma equação da teoria do caos:
cada parte mimetiza o todo.
Ao introduzir essa variação de percepção sobre o contínuo da nota repetida, o
compositor/arranjador fornece um dado novo que interage com o plano do conteúdo
produzido pelo verbal. A repetição pura e simples poderia dar margem ao surgimento do
sema /monotonia/ - basta uma audição a capella desta melodia para perceber a verdade
contida nesta afirmação. O arranjo de base proposto na canção original inviabiliza essa
leitura: apesar de a nota se repetir, sua sensação auditiva muda. Além de euforizar a
fidelidade, o narrador sugere que ela não é monótona, pois as relações mudam com a
passagem do tempo.
Temos nesse ponto uma série de informações novas obtidas com a análise
musical da canção. Polarização, relações juntivas, mínimo deslocamento, identidade,
Harmonia 163
___________________________________________________________________________________
alteridade: todas essas sensações - que nos remetem a conceitos - poderiam ser
apreendidas na audição de um arranjo instrumental desta canção. Estes seriam
conteúdos produzidos pelo componente musical.
A partir dos dados obtidos com a análise da primeira parte de “Samba de uma
nota só” podemos delinear um campo no qual o estudo da harmonia poderia ser
estruturado. O primeiro passo é definir melhor o conceito de harmonia, e fazer a
distinção entre a harmonia instaurada pela melodia principal e a harmonia proveniente
do arranjo instrumental. Toda melodia, por mais simples que seja, mesmo
desacompanhada, apresenta relações harmônicas. Entende-se por relação harmônica
todos os fatos envolvidos na hierarquização de um conjunto de notas. Até mesmo o
processo de anulação do sentido de hierarquia, pilar da música erudita atonal, é um fato
harmônico. Flo Menezes inicia seu Apoteose de Schoemberg com a seguinte afirmação:
Todo fenômeno musical é harmônico. A despeito das opiniões
“acadêmicas” que, esforçando-se para veicular o ensino da teoria musical de
maneira mais acessível, desprezam a importância de se pontuar desde logo o
sentido mais exato dos conceitos, fazendo significar a palavra harmonia apenas
como existência de acordes, devemos reafirmar que já a então música monódica
(e foi assim que ela surgiu historicamente) contém harmonia (MENEZES, 2002,
p. 27)
A partir daqui, poderíamos redefinir também o conceito de hierarquização em
música. Hierarquizar significa simplesmente polarizar, ou em outras palavras, criar
direções. Ainda Menezes: “escutar é ouvir direções” (MENEZES, 2002, p. 31). No
âmbito da canção popular, em uma análise restrita à melodia principal, falamos quase
sempre de direções criadas pelas alturas. No entanto, estamos verificando um crescente
avanço da semiótica na área do arranjo e da música instrumental. Temos então que
Harmonia 164
___________________________________________________________________________________
estender o conceito de polarizações e direcionamentos também para a questão da
duração, intensidade e timbre, propriedades fundamentais do som, e também para a
percepção de densidades. Dentro de um panorama ideal, o estudo da harmonia deveria
dar conta de todos esses fenômenos.
Sem fazer previamente distinções entre uma harmonia de alturas, de durações,
de timbres, de intensidades ou densidades, podemos separar três linhas de investigação:
i) Harmonia estabelecida unicamente pela melodia
ii) Harmonia estabelecida pelo arranjo
iii) Relação entre estas duas harmonias
Em tempo: que falaremos de diversas harmonias, e para não contrariar um
hábito consagrado no meio musical, sempre que empregarmos o termo “harmonia”
sem maiores especificações, estaremos tratando de uma harmonia de alturas. As demais
“harmonias” (de durações, de timbres, etc.) serão designadas sempre que convocadas.
Podemos agora reorganizar a análise de “Samba de uma nota só” a partir destes
três patamares.
i) Harmonia estabelecida unicamente pela melodia
a) Estabelecimento de um primeiro patamar com notas iguais (nota Mi)
b) Apresentação de um segundo patamar com notas iguais, 4ª acima (nota Lá)
c) Retorno ao primeiro patamar (nota Mi)
d) Polarização Mi->definição da tonalidade (não definição de modo
maior ou menor)
Harmonia 165
___________________________________________________________________________________
ii) Harmonia (de alturas) estabelecida pelo arranjo
a1) Estabelecimento de uma primeira seqüência polarizando Lá maior, sem
resolução (cadência deceptiva)
a2) Alternância de funções harmônicas: IIIm7 (tônica), subV7/II (preparação do
segundo grau), IIm7 (subdominante), SubV7 (preparação do primeiro grau)
a3) Deslocamento de baixo cromático
b) Introdução da segunda sequência preparando o IV grau (D), passagem pelo
tom de Dm.
c) Retorno à primeira seqüência
d) Resolução da seqüência em Lá maior
iii) Relação entre as duas harmonias (de alturas)
a1) alternância da valorização da primeira nota fixa (3ª menor, 3ª maior, 4ª justa,
4ª aumentada)
a2) em relação à tonalidade estabelecida, a primeira nota é uma quinta justa.
b) alternância da valorização da segunda nota fixa (4ª justa, aumentada,
justa)
c) alternância da valorização da primeira nota fixa (3ª menor, maior, justa,
4ª aumentada)
d) Afirmação do modo maior.
Duas importantes conclusões podem ser antecipadas:
1) Melodia e arranjo são capazes de estruturar textos coesos e independentes.
2) A harmonia do arranjo aponta para uma releitura da melodia.
Harmonia 166
___________________________________________________________________________________
A segunda afirmação precisa ser investigada com mais profundidade. Ao que
tudo indica, a harmonia do arranjo está um patamar acima da harmonia da melodia.
Como em “Samba de uma nota só”, uma melodia pode deixar vários aspectos
harmônicos não definidos. Ela pode também ser harmonicamente bem detalhada,
apresentando com suas notas seqüências precisas de acordes. A harmonia do arranjo
pode interferir significativamente nas duas situações, preenchendo as lacunas de uma
melodia mais aberta, ou forçando uma nova interpretação de uma melodia mais
detalhada. No entanto, parece improvável a possibilidade de a melodia forçar uma
reinterpretação do arranjo. Isso nos leva a concluir que a harmonia do arranjo tem um
poder maior sobre o sentido harmônico da peça musical, ou ao menos uma atuação mais
extensa.
A delimitação de três patamares (melodia, arranjo e interação) e de cinco
parâmetros (altura, duração, timbre, intensidade e densidade) determina apenas um
modelo geral de previsibilidade para a análise musical. Esse nos fornece quinze
possíveis linhas de investigação. Entretanto, isso não quer dizer que todas as músicas e
canções irão se desenvolver nestas quinze linhas. Uma canção a capella, por exemplo,
apresenta um dos três patamares (reduzindo as linhas a apenas cinco). Para além
deste exemplo extremo, em que dois patamares são simplesmente extirpados, temos
uma miríade de canções que, apesar de apresentarem as quinze linhas, não investem em
todas. Caberá sempre ao analista decidir quais linhas são pertinentes à sua análise.
Como afirma Tatit:
[...] não há extrato exclusivo de significação. A depreensão de um
processo persuasivo mais abrangente não suprime a vigência plena dos demais.
Os níveis são sempre parte da análise, nunca da canção (TATIT, 1996, p. 263).
Harmonia 167
___________________________________________________________________________________
6.3 Narrativa harmônica
Um dos aspectos abordados pela harmonia das alturas é a sucessão de acordes,
estes entendidos como blocos de notas que formam uma estrutura autônoma. Vimos que
em “Samba de uma nota só”, a melodia apenas delimita dois patamares: os acordes são
efetivamente apresentados pelo arranjo. São eles:
PARTE A (1º patamar): C#m7 C7 Bm7 Bb7
PARTE B (2º patamar): Em7 A7 Db7 D7M Dm7 G7
FINALIZAÇÃO: C#m7 C7 Bm7 Bb7 A6
A estrutura das frases nesta primeira parte da canção pode ser representada em
aaba’ onde a’ é a repetição da frase “acom finalização diferente (salto). Vimos que
tanto a frase “a” quanto a frase “b” são seqüências sem resolução, ou seja, terminam em
cadências deceptivas. Em outras palavras: o último acorde destas seqüências prepara um
acorde que não vem, quebrando a expectativa harmônica.
Quando falamos de “expectativa”, entramos em um terreno em que a semiótica
pode contribuir muito para a compreensão do fenômeno. Se expectativa, existe a
espera. E, por sua vez, se espera, há também um sujeito que vivencia esse estado
passional, que pode ser provocado por um contrato fiduciário estabelecido entre dois
sujeitos.
Podemos observar facilmente que o estudo semiótico da harmonia implica em
aceitar uma proto-narrativa produzida pelo discurso musical. Com sua capacidade de
produzir uma orientação harmônica, a música consegue projetar um “lugar eufórico”,
um lugar em que as tensões se dissipam completamente, um lugar em que não existe
Harmonia 168
___________________________________________________________________________________
solução de continuidade entre sujeito e objeto. Esse lugar é definido pela harmonia
funcional como função tônica.
Da mesma maneira, existe um lugar em que sujeito e objeto encontram-se
separados, em situação de disjunção. Neste ponto, a tensão pode atingir o grau máximo,
assim como a expectativa de resolução. Esta é a função dominante que, justamente por
apontar para a tônica (o lugar de conjunção), é a responsável pelo estabelecimento da
tonalidade. É fácil perceber a aproximação desta função com o papel actancial de
destinador-manipulador na semiótica, que é a dominante que determina o devir de
todo o movimento harmônico, e é ela que aponta para o sujeito o seu lugar de conjunção
(instalando desta maneira um /querer ser/ conjunto).
É necessário dizer que os movimentos que descrevemos aqui acontecem em um
nível de abstração muito maior do que estamos acostumados a ver no discurso verbal.
Estes actantes, assim como as funções semióticas que eles desempenham, aparecem
aqui como “sombras” ou, se preferirmos, “cheiros”. Sabemos que eles existem, por que
sentimos sua atuação, mas devido à quase inexistência de recobrimentos figurativos, sua
“carga semântica” é tão baixa que é difícil defini-los com maior precisão apenas em um
contexto harmônico. Mas nada impede que esses recursos sejam aproveitados, por
exemplo, pela letra de uma canção, pelo enredo de um filme, ou até mesmo pelos
timbres de uma peça instrumental.
Um outro aspecto que pode ser examinado com maior profundidade é a
modulação deste estado de espera. Descrever a harmonia de uma peça supondo apenas
que existe um movimento de tensão e resolução é, para dizer o mínimo, óbvio. Uma
composição sem nenhum tipo de movimento harmônico acontece apenas em situações
experimentais. No campo da canção, é algo praticamente inconcebível. As funções
tônica e dominante aparecerão invariavelmente em qualquer peça analisada. Assim
Harmonia 169
___________________________________________________________________________________
sendo, um modelo que descreve um movimento comum a todos os textos simplesmente
não serviria para absolutamente nada. No entanto, se ele servir de base para outras
ferramentas descritivas, pode então constituir um horizonte teórico a partir do qual o
sistema se constrói. É o que parece acontecer neste caso, que a espera sentida pelo
sujeito pode sofrer modulações mensuráveis, a depender do contexto musical em que
ela se instaure. Em uma primeira abordagem, podemos perceber uma ressonância muito
grande com o conceito de tematização e passionalização. Se a tematização produz um
efeito de sentido de celebração, então a espera sentida pelo sujeito instaurado pela
função dominante pode ser uma espera com certeza de conjunção. O sujeito sente
que a disjunção que existe, pois caso contrário não teríamos sequer uma narrativa
será logo superada. Nesta configuração, paira um sentimento de “controle da situação”,
um /saber ser/ acima de qualquer suspeita. Em uma situação como essa, as demoras em
atingir a função tônica podem ganhar até mesmo um aspecto eufórico, como alguém que
se delicia com a espera de um objeto cuja posse sabe-se de antemão que é inevitável.
É exatamente essa a sensação que temos em “Samba de uma nota só”. Assim
como em “Garota de Ipanema”, trata-se de uma “falta-samba”, uma falta que tem bossa,
que pulsa, e a cada pulso o sujeito sente-se mais próximo de seu objeto. É por isso que a
cadência deceptiva, que atrasa a conjunção final com o objeto, pode ser sentida como
eufórica. Cada novo percurso estabelecido é uma rota em direção a um objeto
“garantido”. Não é a toa que em canções tematizadas a harmonia também tende a se
contrair e, de certa forma, se “organizar”. A ênfase dada aos limites no processo de
tematização recai também sobre a harmonia, que se regulariza. Essa regularidade auxilia
a percepção global de conjunção que a tematização provoca.
Por outro lado, podemos ter uma configuração em que a falta se configure sem a
certeza de conjunção. Nesta situação, cada vez que a harmonia se afasta da tônica, a
Harmonia 170
___________________________________________________________________________________
espera é vivida como uma verdadeira angústia. Isso acontece porque não mais a
certeza de conjunção com o objeto, e cada afastamento pode ser definitivo. Assim como
o percurso melódico, o percurso harmônico tende a se expandir: as repetições ficam
mais espaçadas, e até mesmo a forma pode perder seus contornos e regularidades. É o
que parece acontecer em determinadas canções passionalizadas, como podemos
perceber na análise de “Atrás da porta” (BUARQUE e REGINA, 1972).
Atrás da porta
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei A
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito
Teu pijama B+C
Nos teus pés ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço D+E
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Até provar que inda sou tua
A primeira grande questão que se coloca na análise desta canção é o critério
utilizado para a divisão do tema em cinco partes. O que percebemos desde já é a
intenção do enunciador em atenuar os limites entre as partes. De fato, a divisão que
propusemos pode ser questionada, por diversas razões. A parte A é a que recebe um
Harmonia 171
___________________________________________________________________________________
contorno um pouco mais definido: após o verso “Sobre teu corpo e duvidei”, temos uma
longa pausa. Mesmo assim, esse limite é questionado com a repetição da mesma frase
melódica um tom acima (“E me arrastei e te arranhei”). O verbal não ajuda na
imposição de limites, pois não nenhuma quebra lógica entre os versos. Muito pelo
contrário, o primeiro verso da parte B, introduzido com a conjunção “e”, indica a
continuação de um período, com uma oração coordenada.
As outras divisões são ainda mais tênues (e justamente por isso, mais
questionáveis). A passagem da parte B para a parte C acontece no meio de uma frase
(“Nos teus pés ao da cama”), e o mesmo ocorre na passagem da D para E (“Pra
mostrar que inda sou tua”). O critério utilizado aqui foi exclusivamente harmônico:
nestas duas passagens, temos a modulação para B e Bm, respectivamente, o que produz
um efeito de sentido de ruptura, apesar da continuidade melódica.
Em7(9)/D | / | C#m7(b5) | F#7(#11) | G7M(#11) | G7(#11) | F# (9) |
| F#7(b13) | B (9) | F7(#11) | Em7(9) | / | G#m7(11) | G7(#11) | F# (9) |
| F#7(b13) | G7M | / | C#m7(b5) | F#7(b13) | B7M(9) | E7M(9) | A#m7 |
| D#7(b9) | G#m7 | C#7( ) | G7(9) | F#7(13) | B (9) | F7(#11) | Em7(9) |
| / | G#m7(11) | G7(#11) | F# (9) | F#7(b13) | G7M | / | C#m7(b5) |
| F#7( ) | Bm7(9) | G7(#11) | C#m7(9) | F#7(13) F#7(b13) | Bm7(9) |
| G7(#11) | C#m7(9) | F#7(13) F#7(b13) | D#m7(9) | Em7(9) | C#m7(9) |
| F#7(13) F#7(b13) | Bm7(9)
7
4
7
4
7
4
7
4
b9
13
#11
b9
7
4
5
13 9
17 21
25 29
33 37
41 45
49
Parte A
Parte B
Parte D
Parte E
Parte C
Harmonia 172
___________________________________________________________________________________
Uma rápida olhada nesta transcrição harmônica é suficiente para perceber a
complexidade estrutural desta canção. As recorrências ainda acontecem, mas elas não
seguem a estruturação em partes. Nesta canção, tudo concorre para uma apreensão em
bloco, como se o tema inteiro fosse uma única idéia, divisível apenas em frases. Aceitar
essa possibilidade estrutural implica em dizer que o nível da parte não é pertinente para
a descrição desta peça – o que mostra mais uma vez a flexibilidade do sistema musical.
Interessa-nos particularmente o efeito de sentido que esse procedimento
constrói. Uma peça compartimentada em partes bem definidas pressupõe um sujeito
organizado, em conjunção com um /saber fazer/, capaz de disseminar esse valor ao
longo do discurso. Pelo contrário, a aparente desestruturação harmônica que verificamos
aqui constrói um sujeito desorganizado, “desorientado”, no sentido mais concreto desta
palavra. Se as recorrências harmônicas e melódicas não são suficientes para criar um
ponto de referência estrutural, a impressão que temos é de um desenvolvimento
contínuo, caótico. As várias modulações também contribuem para esse efeito de sentido.
O único fator de desaceleração, que segura o movimento desordenado da harmonia, é a
insistente recorrência da célula rítmica e melódica. Incapaz de organizar uma forma
mais complexa, o sujeito “se ampara” nas estruturas mais elementares.
A relação deste efeito de sentido construído pelo musical com a letra é - como já
estamos acostumados, em se tratando de Chico Buarque - visceral. A desorganização
estrutural da peça é imediatamente associada à desorganização psicológica sofrida pela
narradora, ao ver o contrato com o narratário transformar-se em polêmica. A negação do
limite imposto pelo rompimento é tão forte que ecoa em todas as estruturas, dissolvendo
os limites da forma musical.
Harmonia 173
___________________________________________________________________________________
6.4 Harmonia e aspectualização
Uma outra maneira de descrever os efeitos de sentido produzidos pela harmonia
pode ser realizada a partir das categorias aspectuais. Segundo Diana Barros:
A aspectualização transforma as funções narrativas, de tipo lógico, em
processo, graças ao observador colocado no discurso enunciado (BARROS, 2002,
p. 91).
Se trocássemos “funções narrativas” por “funções harmônicas”, a frase
descreveria perfeitamente a sucessão de acordes apresentados. De fato, a harmonia
funcional estabelece uma lógica de preparações e resoluções. No entanto, ela se
apresenta ao ouvido como um processo.
A possibilidade descritiva da aspectualização no discurso musical parece ser um
grande consenso entre os semioticistas. Em sua dissertação de mestrado, Ricardo
Monteiro utiliza esse aparato teórico para descrever a evolução melódica e rítmica:
No decorrer da análise, ficou patente que, enquanto as instâncias
melódica e rítmica do discurso apresentam com especial nitidez aspectualizações
modulatórias, as instâncias harmônica e dinâmica mostram a mesma vocação de
transparência com relação aos aspectos tensivos (MONTEIRO, 1997, p. 64).
Monteiro coloca a instância harmônica em um nível mais profundo. Essa
concepção é retomada, dez anos mais tarde, por CARMO JR., em sua tese de doutorado:
Reduzido a seus elementos essenciais, o efeito de sentido de uma
grandeza harmônica é o de “tensão”. É evidente que a harmonia tonal é capaz de
criar muitos outros efeitos de sentido, mas parece que existe uma oposição
profunda que subjaz a toda expressão harmônica. Posso iniciar uma meloida
Harmonia 174
___________________________________________________________________________________
sobre um acorde perfeito maior consonante, ou então, com vários outros acordes
dissonantes correlatos (com a sétima maior, a nona etc). Em todos os casos o
efeito profundo de “distensão” é o mesmo, embora figurativizado de maneiras
diversas. Conseqüentemente, a oposição harmônica básica (que também é um
contraste) é tensão vs distensão (CARMO JR., 2007, p. 88).
Enquanto Monteiro, em sua tese de doutorado, preocupa-se em homologar as
cadências harmônicas aos modos de existência (MONTEIRO, 2002, pp. 161-170),
Carmo Jr. realiza um percurso similar, construindo “uma homologação entre expressão
e conteúdo fundada na categoria aspectual da perfectividade(CARMO JR., 2007, P.
94):
Carmo Jr. identifica a oposição entre o aspecto terminativo, no lado da
perfectividade, e os aspectos incoativo, durativo e suspensivo, no lado da
imperfectividade. Já Monteiro inicia sua construção articulando a aspectualidade em um
PERFECTIVIDADE
CONTEÚDO EXPRESSÃO
IMPERFECTIVO
<< INCOATIVO >>
<< DURATIVO >>
<< SUSPENSIVO >>
PERFECTIVO
<< TERMINATIVO >>
CADÊNCIA
IMPERFEITA
[I (II, IV) V]
CADÊNCIA
DE ENGANO
[V VI]
CADÊNCIA
PERFEITA
[V I]
Harmonia 175
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quadrado semiótico, apontando desde o início para a homologação com as modalidades
(MONTEIRO, 2002, p. 161):
pontualidade/dever cursividade/poder
terminatividade/saber incoatividade/querer
Sua análise deságua na homologação das cadências harmônicas com os modos
de existência (MONTEIRO, 2002, p. 170):
Realização Atualização
Conjunção com a Tônica Disjunção com a Tônica
Cadência Perfeita Cadência de Engano
(T-S-D-T) (T-S-D-T1)
Potencialização Virtualização
Não-Disjunção com a Tônica Não-Conjunção com a Tônica
Cadência Errante Cadência Imperfeita
(T-S-D-?) (T-S-D)
Apesar de perceber que a construção deste quadrado não deixa de ser
problemática (poucos conceitos em semiótica flutuaram tanto como o de modos de
existência), é fácil notar que dentro deste modelo já está pressuposta a hipótese de que o
estabelecimento de uma tonalidade implica na instauração de um contrato. Isso decorre
diretamente da homologação do modo de existência de realização (Conjunção com a
Harmonia 176
___________________________________________________________________________________
Tônica) à modalidade do dever. De fato, a tonalidade é percebida como uma lei, um
dever que rege todo o desenvolvimento harmônico.
De volta ao “Samba de uma nota só”, podemos dizer que com a repetição da
cadência deceptiva e a apresentação sucessiva de seqüências com a mesma estrutura,
temos a manifestação da iteratividade. A finalização a’, por sua vez, manifesta o aspecto
terminativo. No início da análise, no ítem II.a2, apresentamos a alternância de funções
harmônicas no interior da frase “a”: IIIm7 (tônica), subV7/II (preparação do segundo
grau), IIm7 (subdominante), SubV7 (preparação do primeiro grau). Trata-se de uma
lógica de preparações, de encadeamento. Apreendida como um processo, essa seqüência
lógica promove um efeito de continuidade: aspecto cursivo. Em resumo:
• Internamente, cada frase manifesta o aspecto cursivo
• A sucessão de frases manifesta o aspecto iterativo
• A finalização em a’ manifesta o aspecto terminativo
Podemos generalizar afirmando que sempre que há a resolução de uma cadência
dominante (de preparação) manifesta-se o aspecto terminativo. No entanto, essa
afirmação não exclui a possibilidade da manifestação deste e de outros aspectos em
outras harmonias (de durações, por exemplo).
6.5 Harmonia da melodia
A canção “Você, você” (BUARQUE e GUINGA, 1998) é um bom exemplo de
como uma inteligente estruturação musical pode gerar efeitos de sentido. Faremos aqui
uma transcrição com a letra, invertendo um pouco o procedimento usual: aqui a letra é
um suporte necessário para que possamos visualizar a melodia, e assim localizar cada
Harmonia 177
___________________________________________________________________________________
nota identificada com as sílabas correspondentes. Nossa análise recairá principalmente
sobre a melodia principal.
Frase 1
Mi
-
Si QUE A QUEM VO SE
TRO
-
NÉIS
Sol
QUE ROUPA VO
-
CA
-
CÊ VES
Mi
-
TE
POR
Frase 2
Mi
BICHO
FE
SEUS
Si -ROZ SÃO CA
-
BELOS
NOITE
Sol
QUE À
VOCÊ SOL
-
TA
Mi
QUE
Harmonia 178
___________________________________________________________________________________
Frase 3
Mi
Si BRIN
QUE É QUE VO
-
-
CA
Sol
VOL
HORAS VO
-
TA
Mi
QUE
-
DE
Frase 4
Mi
ASSOM
-
BRA
-
ÇÃO
-
RE
Si QUEM É ES SEU CORPO -GA
-
SA
CAR
VOZ
Sol
QUE
Mi
Harmonia 179
___________________________________________________________________________________
Frase 5
Mi
-
RÁ O
LA
-
DRÃO
Si TERÁ UM
CA
CHE
-
PUZ
QUE HORAS VO
-
GA
Sol
SE
-
Mi
Frase 6
Mi
SONHO
DE
OS
-
LOS VO
Si -CÊ CA - -CÊ
VAI
NO
E
COM
-
BE
QUEM VO
QUE SOL
Sol
Mi
VEM
-
TA
Harmonia 180
___________________________________________________________________________________
Frase 7
Mi
-
TA
Si
Sol
QUE HORAS ME DIGA QUE HORAS ME DIGA QUE HORAS VO
Mi
-
VOL
Para facilitar a análise, fizemos a transposição da canção para o tom maior.
Essa escala é composta exclusivamente por notas naturais, sem acidentes (sustenidos ou
bemóis). Assim é muito fácil perceber se alguma nota está fora desta escala, pois elas
serão obrigatoriamente alteradas com # ou b.
Uma rápida olhada nos diagramas mostra que a quase totalidade das sílabas
repousa sobre as notas da escala. A tonalidade é apresentada no início da primeira
frase: “que roupa você veste”. Com apenas três notas, já sabemos que se trata de uma
escala de dó maior.
Vimos que a escala maior tem o poder de criar uma expectativa, uma direção;
ou, se preferirmos, um sentido. Uma vez que uma tonalidade é estabelecida, nosso
ouvido espera sua confirmação. Isso evidentemente não quer dizer que essa confirmação
precisa de fato acontecer: a evolução da música mostra que o caminho seguido pelos
compositores, ao longo dos séculos, foi exatamente o de não confirmar essa expectativa.
Mas essa expectativa pode ser contrariada graças ao fato - óbvio - de que ela existe.
Harmonia 181
___________________________________________________________________________________
Trata-se de um contrato, que gera expectativa, espera. Nossa tarefa é entender como ele
é criado, como é resolvido ou contrariado, e quais os efeitos de sentido resultantes.
As faixas em cinza claro recobrem as três notas que formam o acorde da tônica,
ou seja, são as três notas que definem o acorde de Maior. No entanto, como bem
vimos na análise anterior, cada nota deve ser ouvida dentro de um contexto. Se o acorde
da passagem for um Maior, estas serão as notas de maior estabilidade, ou seja,
aquelas que proporcionam o maior grau de repouso harmônico. Mas elas podem
representar tensão se o acorde for outro. Como dissemos anteriormente: a música é um
discurso extremamente complexo, não pela quantidade de elementos que nele atuam,
mas sobretudo pelo dinamismo existente na interação desses elementos.
As faixas escuras recobrem as notas que estão fora da escala maior e,
teoricamente, representam um grau maior de tensão. Mais uma vez, é o contexto que vai
definir o valor dessas notas em relação às outras. O simples fato de possuir notas fora da
escala não diz nada: esse é um fenômeno comum e até mesmo esperado na música
tonal: basta um dominante secundário para isto acontecer.
Logo no primeiro verso, “Que roupas você veste”, temos um exemplo de uma
melodia que parte da nota Sol, passa por (ambas no acorde da dominante) e resolve
em Mi, no acorde da tônica. Logo após resolver a tensão harmônica, a melodia salta
para o Si e recai em Sol#, fora da escala maior. Essa nota fora da escala é sentida como
uma nota estranha por estar ainda no âmbito do acorde da tônica, mas principalmente
por estar no final da frase. Se estivesse em uma posição interna, ou até mesmo se fosse a
penúltima nota, poderia estar apenas indicando um movimento para outro lugar, uma
nota de passagem. Aqui, tudo é construído para que essa nota se oponha às outras, que
estão dentro da escala. Esse procedimento é utilizado em quase todas as frases
melódicas da canção (podemos observar pela faixa vermelha na transcrição), o que
Harmonia 182
___________________________________________________________________________________
explica a sensação de estranhamento que essa melodia provoca. Temos então um efeito
de sentido de estranhamento provocado pela oposição entre pertinência vs. exclusão,
percebido graças à construção harmônica desta melodia. É importante notar que os
tonemas são todos descendentes, indicando resolução entoativa: estamos diante de um
regime de incompatibilidade entre o sistema entoativo e o sistema harmônico.
Essa oposição, que acontece inúmeras vezes no decorrer da canção, tem um
desfecho inusitado. A última frase, assim como a primeira, também começa na nota Sol.
No entanto, ao invés de repousar sobre uma nota fora da escala, ela passa justamente
pelas três notas que formam o acorde da tônica (Do, Mi, Sol), garantindo estabilidade
absoluta, apesar do tonema ascendente no final da frase. Dentro daquele contexto
extremamente tenso, essa passagem ganha um brilho sem igual, opondo-se à canção
como um todo. O grande salto ascendente, que seria interpretado apenas como um
acréscimo de tensão, ganha aqui o poder de confirmar a estabilidade da tonalidade.
Tudo ocorre como se o acúmulo de tensão estivesse à disposição da tonalidade, ou
melhor, para enfatizar o efeito de sentido de estabilidade gerado pelo acorde da tônica.
Vimos então que o estudo do perfil de uma melodia, com suas inflexões para o
grave e para o agudo, não é suficiente para descrever as nuances de sentido que o
discurso musical pode construir. A tensão da subida ao agudo, assim como a distensão
da descida ao grave, pode ser reconstruída e aproveitada pelo contexto harmônico da
melodia (assim como pelo contexto harmônico em que a melodia se insere), criando
assim novos efeitos de sentido. Por si só, esse fato já é suficiente para defender um lugar
teórico reservado à harmonia na semiótica do discurso musical.
Harmonia 183
___________________________________________________________________________________
6.6 Harmonia do arranjo
Vamos analisar agora a canção A volta do malandro” (BUARQUE, 1985a).
Fizemos aqui também a transcrição para dó maior.
Sol
Mi
Si
O MALANDRO NA
PRA
Sol
EIS
ÇA OU VEZ
Mi
-
TRA
Si
La
Sol
Mi
Si
CAMINHANDO NA
PON
Sol
TA
PÉS
COMO QUEM PISA NOS
Mi
DOS
-
ÇÕES
-
RA
CO
Si
La
Harmonia 184
___________________________________________________________________________________
Sol
Mi
Si
ENTRE DEUSAS
E
Sol
BO
-
TÕES
Mi
QUE ROLARAM
-
FE
DOS
CA
-
RÉS
Si
La
-
BA
Sol
Mi
Si
ENTRE DADOS
E
Sol
CO
-
NÉIS
PA
E
Mi
-
RO ENTRE PARANGOLÉS
-
TRÕE
S
Si
La
Harmonia 185
___________________________________________________________________________________
Sol
Mi
DEIXA BALAN
-
ÇAR
-
ÉS A
-
Si
VI
DE MA
-SIM
Sol
Mi
O MALANDRO ANDA AS
D
ó
Si
La
Sol
Mi
E A POEIRA AS
-
SEN
-
TAR
-
LÃO
Si
L
á
NO
Sol
CHÃO SA
UM
Mi
DEIXA A PRAÇA VIRAR
Si
La
Harmonia 186
___________________________________________________________________________________
-
RÃO
Sol
Mi
QUE O MALANDRO É O BA DA RA
-
É
Si
-
É
Sol
-
É
Mi
Si
La
Essa canção se coloca no meio termo entre tematização e passionalização.
Temos um pulso moderado e a repetição de um mesmo tema na melodia, e a descrição
de uma personagem na letra (tematização). No entanto, temos também o alongamento
de vogais e a expansão da tessitura. Na realidade, um trabalho contínuo de
ressemantização de uma mesma frase melódica. Na primeira parte, do início a
“cabarés”, estamos diante de uma típica gradação. Logo após, o mesmo tema é
apresentado duas vezes em registro mais agudo, mecanismo típico da tematização. Tudo
leva a crer que a melodia não quer “se comprometer” com uma estratégia fixa, mas
prefere transformar-se constantemente.
Essa transformação constante acontece também no âmbito da harmonia. A
ressemantização do tema acontece a partir da manipulação de dois fatores: a altura em
que o tema é exposto e o acorde que o acompanha. Em “Eis o malandro na praça outra
vez” e “que rolaram dos cabarés” a melodia é acompanhada pelo mesmo par de acordes
(C6/C7). No entanto, esse primeiro tema sustenta a 5a do acorde, enquanto que o último
Harmonia 187
___________________________________________________________________________________
repousa sobre a fundamental. Esse fato acentua a sensação de repouso do último tema,
promovido pela gradação descendente. O poder de relaxamento da curva melódica
para o grave, acentuado pelo repouso na tônica, desmonta a tentativa de sustentação dos
tonemas ascendentes. O que prevalece é a descendência Sol, Fá, Mi, Dó, observados em
“vez”, “pés”, “corações”, “cabarés” e o repouso harmônico (terminatividade). A
retomada do tema em “Entre deusas e bofetões” e “Entre dados e coronéis” é marcada
não só por uma mudança de registro (mais agudo) mas também pelo início de uma nova
seqüência de acordes (incoatividade).
Talvez o efeito mais surpreendente aconteça em “Deixa balançar a maré”. Esse
tema é uma repetição uma oitava acima de “Que rolaram dos cabarés”. No entanto,
apesar de terminar na fundamental, ele não tem o mesmo poder de resolução que o
primeiro. Isso acontece simplesmente porque o acorde que sustenta sua última nota não
é mais o acorde de tônica. Temos uma estrutura exatamente oposta, um verdadeiro
quiasma harmônico:
Acorde tenso Acorde de tônica
Que rolaram dos caba -rés
Acorde de tônica Acorde tenso
Deixa balançar a ma -ré
Se não houvesse mudança no acompanhamento de acordes, o efeito da repetição
do tema oitava acima teria o mesmo efeito que a finalização em “Você, você”: o
acúmulo de tensão para enfatizar a confirmação da tonalidade, ou seja, da estabilidade.
Aqui acontece exatamente o oposto: o acúmulo de tensão decorrente do registro agudo
Harmonia 188
___________________________________________________________________________________
enfatiza o efeito de tensão da curva melódica. Poderíamos também dizer que em “Você,
você” a subida final ao agudo enfatiza a terminatividade, e em “A volta do malandro”, a
cursividade. Se a curva melódica tem o poder de produzir sentidos e é nisso que se
baseia a teoria de Tatit – podemos dizer que a harmonia é capaz de realizar uma
ressemantização da melodia.
Vamos focalizar agora um efeito de sentido criado pelo arranjo de base,
especialmente pelo acompanhamento do violão. É muito comum a existência de
contracantos que se desenvolvem no arranjo de acompanhamento. O contracanto é uma
segunda melodia, que se desenvolve em segundo plano, “por trás” da melodia principal.
Como qualquer outra melodia, o contracanto também pode ser analisado em
profundidade, levando em consideração seu perfil, desenvolvimento harmônico, relação
com a seqüência de acordes e ainda todas as relações contraídas com a melodia
principal (paralelismo, pergunta-resposta, preenchimento de espaços vazios, etc...).
Em todos os acordes desta canção, o contracanto realiza uma melodia de duas
notas, sempre separadas por intervalo de semitom. Quando o acorde muda, muda
também a altura deste contracanto, mas não seu perfil. Trata-se de um caso extremo de
tematização, uma repetição exata que atravessa a canção do começo ao fim. A
tematização, como sabemos, é um recurso de coesão musical muito utilizado para
sustentar a criação de um personagem, no plano lingüístico. Se essa aproximação for
válida para o exemplo deste contracanto, podemos mesmo pensar nesta tematização
extrema como sendo uma verdadeira caricaturização. Vejamos uma transcrição do
contracanto nos três primeiros acordes da canção:
Harmonia 189
___________________________________________________________________________________
Sol
Mi
x x x x x x
x x x x x x x x
Si
x x x x x x
x x x x x x
x x
Sol
x x x x x x
x x x x x x x x
Mi
Si
La
Antes mesmo de pensar na possibilidade de um personagem criado apenas pelo
discurso musical hipótese que abordamos na análise de “Duelo de banjos” temos
que pensar nas informações novas apresentadas pelo contracanto. Observamos aqui uma
melodia que percorre a totalidade do discurso, sempre se movimentando pelo menor
caminho possível. Se o contexto harmônico muda, com a passagem dos acordes, a
melodia também muda, mas não de perfil, apenas de lugar. Temos um movimento sutil,
mas constante. Se aplicarmos essa nova informação na letra, completamos a imagem do
malandro por ela apresentada, que vence todas as suas dificuldades com elegância e
sutileza, com uma ginga constante, “caminhando na ponta dos pés”. Ao mesmo tempo
que apóia o que está sendo dito pela letra, esse contracanto ajuda a determinar o “ser”
deste sujeito, e é também um atestado da sua competência.
A análise da canção, ou seja, um texto com melodia e letra, poderia se
desenvolver a partir daqui sem maiores problemas. É importante salientar que essas
Harmonia 190
___________________________________________________________________________________
informações (mais precisamente: movimento sutil e constante) seriam claramente
percebidas em uma versão instrumental: elas não dependem da letra.
6.7 Modulações (deslocamento de centro tonal)
A música estabelece nitidamente três metáforas espaciais. São construções
arbitrárias, realizadas a partir de elementos sonoros, que nada tem em comum com
elementos espaciais. A primeira delas está tão enraizada pelo uso no nosso dia-a-dia que
raramente nos damos conta de que se trata de uma metáfora. Mas o fato é que a nossa
cultura associa o deslocamento melódico a um deslocamento espacial que se realiza
verticalmente. Falamos em melodias “ascendentes” e “descendentes”, e tecemos
comentários sobre o “sobe-e-desce” das notas de uma melodia. O sistema de escrita
musical ocidental é construído a partir desta metáfora: notas mais agudas são anotadas
acima das notas mais graves. Podemos encontrar o uso desta associação em algumas
canções eruditas: para falar sobre o céu, os compositores preferiam uma melodia
ascendente; ao contrário, para falar sobre coisas terrenas melodias descendentes seriam
mais apropriadas.
E, assim como em peças visuais, onde o que figura acima é destacado, posições
mais agudas tendem a produzir o efeito de sentido de destaque. É por isso que
geralmente a melodia principal de uma peça instrumental tende a ser a melodia mais
aguda. É claro que existem muitos recursos para destacar melodias mais graves como,
por exemplo, a intensidade. É o mesmo que colocar uma frase no meio de um jornal,
que com um tipo maior que o restante: apesar de não estar no topo, a frase ainda será
destacada. O que queremos dizer aqui é que se nenhum outro recurso for utilizado, a
melodia mais aguda tende a ser destacada e ouvida como sendo principal.
Harmonia 191
___________________________________________________________________________________
A segunda metáfora espacial pode ser descrita também como um plano, que
desta vez horizontal. Como acabamos de dizer, sons com maior intensidade parecem
estar mais próximos. Esse recurso pode ser obtido também com a aplicação de um efeito
de reverberação, que produz o efeito de sentido de afastamento. São estas algumas das
ferramentas utilizadas pelos técnicos de som na operação de mixagem. Falamos então
da “profundidade do som”, que é justamente uma metáfora espacial horizontal.
Ainda dentro da segunda metáfora, é preciso lembrar que nosso sistema auditivo
tem a capacidade de perceber a posição (esquerda ou direita) da fonte sonora. Em uma
audição “ao vivo” de uma peça musical, podemos identificar a posição de cada
instrumento da orquestra. Esse efeito é reproduzido em sistemas de gravação
estereofônico (a esmagadora maioria dos equipamentos tem essa capacidade). Na
mixagem, o técnico também manipula essa propriedade (que chamamos de pan), e
distribui os instrumentos à esquerda, ao centro ou à direita, dentro de uma escala
gradual. Com isso, ao ouvir a peça recebemos uma verdadeira “paisagem musical”, que
é reconstruída pela percepção também em formas espaciais. A tendência da evolução
dos equipamentos aponta para a difusão do sistema quadrofônico, em que os sons
podem vir também atrás do ouvinte, criando um efeito de sentido de imersão.
Por mais estranha que possa parecer essa discussão no âmbito da análise
musical, devemos ter em mente que todo e qualquer fato da linguagem musical é
pertinente. A possibilidade de construir essa “paisagem sonora” existe porque o sistema
sonoro-musical permite e a nossa cultura reserva um lugar para os signos assim criados.
Na introdução da canção “Acorda amor” (BUARQUE, 1974), podemos ouvir uma
sirene de polícia se aproximando gradualmente, da esquerda para o centro. Isso acontece
porque a intensidade do som aumenta progressivamente, mas é no início maior no canal
esquerdo que no direito. Ao reconhecermos o som de uma sirene, tanto pelas suas
Harmonia 192
___________________________________________________________________________________
qualidades timbrísticas quanto pela sua curva melódica característica, reconhecemos um
ator do discurso que será depois aproveitado pela letra. Graças à metáfora espacial,
somos informados de que “a polícia chegou”. Pouco importa se o som foi produzido por
uma sirene de fato, ou se é um som artificial gerado por um sintetizador, ou se é o som
de um violino manipulado eletronicamente. O que importa é que o signo sonoro possa
ser corretamente decodificado.
A terceira metáfora espacial produzida pelo discurso musical é uma propriedade
harmônica que discutimos anteriormente: o centro tonal. Ao tecermos um paralelo
entre a harmonia e a narrativa, afirmamos que o acorde dominante aponta para um
“lugar eufórico”, em que as tensões são dissipadas. Esse lugar pode ser associado a um
topos, uma posição. Esta associação não passou despercebida por Ricardo Monteiro:
Em verdade o conceito de tonalidade é representado com bastante
precisão pela noção de um lugar harmônico, um tópos, correspondendo
conseqüentemente a modulação harmônica à passagem de um tópos a outro
(MONTEIRO, 1997, p. 53).
Esse fenômeno pode ser então muito bem percebido quando a harmonia sofre
uma modulação, ou seja, uma mudança de centro tonal. Mais adiante, estudaremos esse
efeito na análise da canção “A história de Lily Braun” (BUARQUE e LOBO, 1983). No
entanto, podemos encontrar exemplos como esse em gêneros bem distantes daqueles
usualmente praticados por Chico Buarque. A associação entre modulação e
deslocamento espacial pode ser facilmente percebida em “Aonde quer que eu vá”
(VIANNA 2002), famosa canção do grupo Os Paralamas do Sucesso:
Harmonia 193
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Aonde quer que eu vá
Olhos fechados
Pra te encontrar
Não estou ao seu lado
Mas posso sonhar
Aonde quer que eu vá
Levo você no olhar
Aonde quer que eu vá
Aonde quer que eu vá
Não sei bem certo
Se é só ilusão
Se é você já perto
Se é intuição
Aonde quer que eu vá
Levo você no olhar
Aonde quer que eu vá
Aonde quer que eu vá
Longe daqui
Longe de tudo
Meus sonhos vão te buscar
Volta pra mim
Vem pro meu mundo
Eu sempre vou te esperar
A letra desta canção apresenta um forte investimento na sensibilização espacial.
Seu mote principal é a afirmativa de que a distância espacial não interfere na relação
juntiva que mantém com seu objeto de valor: “Aonde quer que eu levo você no
olhar”. A intensidade desta junção é tão grande que chega a confundir o sujeito, mesmo
em uma situação de separação espacial: “Não sei ao certo se é ilusão, se é você
perto, se é intuição”
As estrofes 1 e 3 apresentam uma construção harmônica peculiar. Desenvolvida
no tom de Am, ela apresenta apenas dois acordes: o próprio Am7 e um C, relativo de
Am. O acorde de Am7 é composto com as notas Lá, Dó, Mi e Sol. Por sua vez, o C é
construído com Dó, Mi e Sol. A proximidade harmônica entre estes dois acordes se
Harmonia 194
___________________________________________________________________________________
justamente pelas notas que mantém em comum: o acorde de C está inserido em Am7,
pois todas as notas do primeiro estão no segundo. É essa proximidade que confere a eles
o estatuto de “relativos”, e faz com que ambos apresentem a mesma função harmônica,
que no caso desta canção é função tônica.
No refrão (estrofes 2 e 4), a canção passeia por outros graus do seu campo
harmônico. A seqüência harmônica, exibida duas vezes, é F7M C G/B Am7. Cabe
aqui alguns comentários: F7M possui Fá, Lá, e Mi, tendo 3 notas em comum com o
acorde de tônica. Isso faz com que ele também apresente a mesma função harmônica
(trata-se de um bVI7M, sexto grau do campo harmônico de Am). F7M e C são variantes
de Am7. Apesar de introduzirem algum deslocamento e um mínimo de tensão (pois os
seus baixos estão em outras notas), eles são as alternativas mais próximas do centro
tonal. G/B, função subdominante, é o único acorde que escapa a essa descrição. No
entanto, salientamos que a tensão que ele apresenta é atenuada pela inversão, já que ele
tem a nota Si no baixo. Cria-se assim um caminho de baixo contínuo que liga C a Am.
Além disso, a entrada do Am é antecipada. Resumindo: aonde quer que a harmonia vá,
ela corre logo para a estabilidade. Depressa (antecipação do Am) e pelo menor caminho
possível (linha de baixo).
Se a tônica é a função do repouso e estabilidade, podemos concluir que esse é o
investimento harmônico primordial destas estrofes. Com a alternância dos acordes
relativos, o movimento harmônico é mínimo. Isso confere ao trecho um valor de
verdade absoluta, inquestionável, que nenhuma tensão harmônica sobressai. E isso
figurativiza musicalmente o conteúdo produzido pelo verbal. Por mais que a melodia
insista em um traçado sinuoso, a força dominante é de coesão.
Mas a canção vai um pouco além disso. Na quinta estrofe observamos uma
ruptura no componente verbal. Se até então o sujeito afirmava com convicção que a
Harmonia 195
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sensação de presença do seu par era tão forte que o confundia, aqui ele o convoca
explicitamente: “Volta pra mim, vem pro meu mundo”. Ao afirmar que “meus sonhos
vão te buscar”, o sujeito assume a distância que o separa de seu objeto.
Esta estrofe inicia com a afirmação: “longe daqui”. Isso coloca uma distinção
entre o primeiro espaço, o “aqui”, em que a presença se faz forte, e o “longe daqui”, em
que a distância se torna nítida. É também o espaço em que atua um outro actante, aquele
que atualiza a presença do objeto, a ponto de iludir o sujeito: os seus sonhos.
A harmonia da canção também sofre a mesma ruptura: nesta passagem temos a
modulação para o tom de D maior. Trata-se de uma mudança do centro tonal: a
harmonia vai para “outro lugar”, longe do Am inicial. A voz que fala na quinta estrofe
já não pisa mais o mesmo chão harmônico. No final da estrofe, observamos uma ponte
- termo que em música designa uma estrutura de ligação - estabelecida pelos acordes F
e E, preparando o retorno da tonalidade original. Podemos observar aqui mais uma vez a
recorrência da metáfora espacial: “ponte” é a estrutura que nos permite transpor
espaços.
Para finalizar, salientamos que todos os efeitos de sentido, produzidos em
qualquer discurso (verbal, musical, visual, etc.) são sempre produzidos dentro de uma
determinada cultura. Como vimos, a associação entre a maior energia física de uma nota
mais aguda com um sentido de tensionamento, não se sustenta por si só. Esta ligação é
feita pela cultura, e é essencialmente arbitrária. O mesmo acontece no caso das
modulações: a associação do centro tonal com um determinado espaço faz sentido
apenas em uma cultura que desenvolveu o sistema tonal. Essa aproximação não é
pertinente - pois sequer é possível - em um sistema musical modal ou atonal. A idéia de
que a música constituiria uma “linguagem universal” não se sustenta. Ela é, como todas
as outras linguagens, um sistema de significação construído pela cultura.
Ritmo 196
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7. Ritmo
A instância rítmica é uma das mais complexas organizações do discurso musical.
A complexidade já começa na polissemia da palavra “ritmo”, termo genérico que
subsume várias operações ocorrendo em níveis diferentes de profundidade. Vamos
iniciar nossa análise pela definição encontrada no dicionário:
ritmo
Do gr. rhytmós, 'movimento regrado e medido', pelo lat. rhytmu.
Substantivo masculino.
1.Movimento ou ruído que se repete, no tempo, a intervalos regulares, com
acentos fortes e fracos:
o ritmo das ondas, da respiração, da oscilação de um pêndulo, do galope de um
cavalo.
2.No curso de qualquer processo, variação que ocorre periodicamente de forma
regular:
o ritmo das marés, das fases da Lua, do ciclo menstrual.
3.Sucessão de movimentos ou situações que, embora não se processem com
regularidade absoluta, constituem um conjunto fluente e homogêneo no tempo:
o ritmo de um trabalho. [...] (FERREIRA, 2004)
Bastam as três primeiras definições do verbete para extrairmos as informações
que nos interessam. O primeiro elemento semântico associado ao conceito de ritmo, que
pode ser verificado nas duas primeiras repetições, é o da repetição. Não se trata de uma
repetição qualquer, mas uma repetição estruturada, que ocorre “a intervalos regulares”.
O ritmo surge então como um fenômeno capaz de regularizar e estruturar um contínuo
qualquer.
Na terceira definição, o ritmo figura não como elemento estruturante, que recorta
o fluxo, mas como o próprio fluxo (“conjunto fluente e homogêneo no tempo”). Se nas
Ritmo 197
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duas primeiras o ritmo é tratado como um elemento que atua intermitentemente,
produzindo rupturas igualmente espaçadas, aqui ele é responsável pela continuidade e
pela noção de conjunto.
Grosso modo, podemos dizer que o modelo desenvolvido por Luiz Tatit
incorpora elementos ligados ao ritmo respeitando essas duas abordagens distintas.
Atuando de maneira global, o andamento - entendido como pulsação básica construída
pela peça - é um elemento crucial para a determinação do efeito de sentido de
tematização e passionalização, já que ele vai interceder diretamente na duração de todas
as notas do texto musical, tomadas em conjunto. Embora ele possa ser percebido no
nível da célula, sua atuação é homogênea em todos os níveis de descrição. Uma vez
estabelecido, ele é a referência central para a compreensão do sentido rítmico de todos
os outros elementos, da nota até a macroforma. É o andamento que garante a coesão do
sistema rítmico, e que rege os componentes locais.
A segunda questão rítmica incorporada ao modelo original é a atuação local que
opõe notas longas e notas breves. Mesmo regido por um andamento homogêneo, o
discurso musical pode concatenar ou subdividir pulsos. No primeiro caso, temos um
efeito de atenuação do pulso, que não mais se manifesta em todas as notas: trata-se de
uma desaceleração. No segundo caso, o pulso é exacerbado, que é subdividido em
componentes menores: estamos diante de uma aceleração. É a possibilidade de
concatenar e subdividir pulsos que permite o surgimento do efeito de sentido de
passionalização e tematização dentro de uma mesma canção, em um mesmo andamento.
Em sua tese de doutorado, Ricardo Monteiro propõe um modelo de investigação
levando em conta as transformações rítmicas em um nível local. Após uma aproximação
histórica entre a métrica poética e a práxis musical, o autor utiliza os recursos e a
nomenclatura daquela para descrever a organização rítmica das células ao longo do
Ritmo 198
___________________________________________________________________________________
texto musical (cf. MONTEIRO, 1998, pp. 15-35). Acreditamos que esta seja uma
abordagem promissora, especialmente por proporcionar uma descrição simples de
procedimentos tão caros ao desenvolvimento melódico (inversões, retrogradações, etc.)
enfatizando apenas o aspecto rítmico.
Uma outra abordagem possível, até agora pouco explorada pelos semioticistas, é
a análise do estabelecimento de uma pulsação básica como um contrato rítmico.
Independentemente do andamento rápido ou lento, toda peça que estabelece um pulso
institui também uma expectativa rítmica. A ênfase em ataques sincronizados com o
pulso promove uma distensão rítmica. O “contrato rítmico” é cumprido, o que resolve a
expectativa. Por outro lado, a produção de notas não sincronizadas aumenta o nível de
tensão, evidenciando uma relação polêmica. Não é a toa que os termos musicais
utilizados para demarcar estes lugares polêmicos sejam “contratempo” (indicando a
atuação de um anti-sujeito, fruto de um contrato frustrado) e “síncope”.
Esse contrato rítmico age da mesma maneira que o contrato harmônico. De fato,
se a tonalidade instaura um centro tonal, o pulso instaura por sua vez um centro rítmico,
polarizando a cena e determinando regiões de estabilidade e instabilidade
11
. A
associação do samba com a marginalidade e a contravenção, assim como a resistência à
aceitação deste gênero, tem também uma explicação rítmica. A síncope do samba se
interpõe à lei do pulso, negando-a constantemente. Em uma marcha militar, ao
contrário, podemos perceber a ênfase em ataques sincronizados com o pulso.
Uma outra metáfora corrente é a associação entre a resolução ou ruptura do
contrato rítmico e a orientação espacial. A sensação de resolução promovida pela
confirmação do pulso é associada ao repouso físico de um objeto em um patamar
11
A homologação de consonância e dissonância, de um lado, e de fase e defasagem, de outro, foi
largamente explorada em O som e o sentido (WISNIK, 2002).
Ritmo 199
___________________________________________________________________________________
horizontal: dizemos que a melodia está “no chão”. Por outro lado, a recorrência de
síncopes e contratempos produz uma sensação de instabilidade que é associada a um
objeto suspenso, pronto para cair. Neste caso, a melodia está “no ar”. Essa é uma
maneira de traduzir verbalmente o conteúdo associado às configurações musicais:
instabilidade e expectativa no assincronismo, estabilidade e resolução na sincronia.
Três análises 200
___________________________________________________________________________________
8. Três análises
Podemos agora realizar algumas análises incorporando os resultados obtidos por
nossa pesquisa. A primeira será a canção “A história de Lily Braun”, de Chico Buarque
e Edu Lobo, que consta do álbum O grande circo místico. A segunda é a canção “Eu te
amo”
12
, parceria de Chico Buarque e Tom Jobim, apresentada no álbum Vida.
Finalmente, “A ostra e o vento”, canção principal da trilha sonora do filme homônimo,
de Walter Lima Jr. (LIMA JR., 1997). A versão utilizada aqui é a do álbum As cidades.
8.1. A história de Lily Braun: valores de absoluto e de universo
Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um A
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom
Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese A
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz
E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul B
Minha visão
Foi desde então ficando flou
Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema A
12
Esta análise retoma e desenvolve as idéias publicadas no artigo “‘Eu te amo’, de Tom Jobim e Chico
Buarque: uma análise semiótica” (DIETRICH, 2006).
Três análises 201
___________________________________________________________________________________
Foco de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilingüindo toda
Ao som do blues
Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please A
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris
E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus B
Já vou com os meus
Numa turnê
Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star A’
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar
Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese A’
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz
A letra desta canção apresenta duas narrativas que se cruzam. Estas podem ser
descritas pelos programas narrativos dos seus dois actantes principais: “Lily” e o
“homem”. Para Lily, o objeto de valor desejado é ser especial: uma star. O casamento
com o “homem” surge para ela como uma oportunidade de perpetuar esse objeto que
ele, durante a corte, oferece. Para o “homem”, o objeto é a posse da própria Lily, obtida
pelo casamento. A teoria semiótica tem um jeito próprio de descrever essa situação:
para Lily,o casamento é um programa de uso; para o “homem”, é o programa de base. A
Três análises 202
___________________________________________________________________________________
canção reserva um triste fim para a Lily: quando o programa narrativo do “homem”
chega ao fim, ela fica sem seu objeto de valor.
Em Tensão e significação, nos capítulos destinados ao estudo da valência e do
valor, temos a apresentação de um corpo teórico que se aplica diretamente à análise
desta canção. Fontanille e Zilberberg propõem que as oposições participativas (e...e) e
as oposições exclusivas (ou...ou), em um nível profundo de construção do sentido,
geram dois grandes regimes de circulação de valores. O regime participativo é
responsável pelo surgimento dos valores de universo. O regime exclusivo, por sua vez, é
responsável pelo surgimento dos valores de absoluto. O regime participativo opera no
eixo da extensidade; ele é responsável pela expansão, seu modo é o da apreensão O
regime exclusivo opera no eixo da intensidade; ele é responsável pela concentração, seu
modo é o foco.
Na maior parte dos casos, estes dois regimes de circulação de valores operam em
relação inversa. Em outras palavras: quanto mais de um, menos do outro. Isso pode ser
facilmente visualizado no famoso “gráfico tensivo” (p.47):
valores de
absoluto
valores de universo
+
+
-
-
Três análises 203
___________________________________________________________________________________
Por baixo destes valores (de absoluto e de universo) existem dois pares de
operadores – as valências – que modulam sua disseminação pelo texto. São as valências
de mistura/triagem e abertura/fechamento. Apesar de saber que em formulações
posteriores da teoria Zilberberg coloca ambas as oposições no eixo horizontal, optamos
por transcrever aqui a clara descrição que o autor faz dos operadores em Tensão e
Significação:
os valores de universo supõem a predominância da valência de abertura
sobre a do fechamento e a predominância da valência da mistura sobre a da
triagem; e relação à primeira, a abertura vale como livre e o fechamento como
restrito, ou até apertado; em relação à segunda, o misturado é avaliado como
completo e harmonioso e o puro é depreciado como incompleto ou mesmo
imperfeito ou desfalcado;
os valores de absoluto supõem a predominância da valência do
fechamento sobre a da abertura e a predominância da valência da triagem sobre a
da mistura; em relação à primeira, o fechado vale como distinto e o aberto como
comum; em relação à segunda, o misturado deprecia-se por ser disparatado (...), e
o puro aprecia-se justamente por ser absoluto, sem concessão.
Em “A história de Lily Braun”, podemos notar a forte presença de um sistema de
valores do absoluto, e a valência predominante é a da abertura/fechamento. Temos então
a oposição entre o que é distinto e único, e o que é comum e vulgar. A construção desta
letra é tão coesa que podemos verificar a atuação destes operadores praticamente verso
a verso, como podemos visualizar na tabela seguinte:
Fechamento: distinto Abertura: comum
Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom
Era mais um
Três análises 204
___________________________________________________________________________________
Fechamento: distinto Abertura: comum
Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese
E de close em close
E até sorri, feliz
E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Foco de luz
Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê
Fui perdendo a pose
Minha visão
Foi desde então ficando flou
Eu, feito uma gema
Me desmilingüindo toda
Ao som do blues
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris
Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar
Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz
Três análises 205
___________________________________________________________________________________
Já na primeira estrofe podemos ver que o mecanismo que valoriza o “homem” se
constrói sobre a oposição entre o comum (“era mais um”) e o que é distinto. Podemos
perceber o traço da distinção em rios aspectos, que serão reiterados por toda a letra.
Temos a seleção de um tempo único, que se destaca do tempo comum. Isso se manifesta
na expressão “num relance”. O fechamento também se manifesta na metáfora
cinematográfica: Os seus olhos me chuparam feito um zoom”. O zoom é um processo
que focaliza, aproxima e destaca um determinado elemento em relação aos demais.
A reação de Lily à sedução do “homem” também se no mesmo eixo, que
na direção oposta. Enquanto ele investe no fechamento, ela responde com abertura: “fui
perdendo a pose”. A pose é justamente o que diferencia, o que destaca. Perder a pose
faz com que o sujeito incline na direção do que é comum. Esse mesmo fenômeno é
observado no verso “Eu feito uma gema me desmilingüindo toda”. À medida que o
“homem” concentra, investindo na intensidade, Lily tende para o lado da extensidade,
da difusão. Isso pode ser percebido também no verso “minha visão foi desde então
ficando flou”, ou seja, fora de foco. Isso contrasta diretamente com a síntese que ela
mesma faz sobre a atuação do “homem”: “foco de luz”.
O desfecho da narrativa se a partir do “derradeiro show”. A resposta de Lily
aos “dez poemas e um buquê” é dizer “adeus, vou com os meus numa turnê”. Desta
maneira ela se despede da “vida comum” para o que imagina ser uma “turnê”, ou seja,
um ambiente onde prevalecem os valores de absoluto. No entanto, o casamento se
mostra exatamente como o extremo oposto das suas expectativas. Todos os valores de
absoluto são firmemente negados (“nunca mais”), e ela passa a um regime de
extensidade total, de valores de universo. A oposição que existe entre o que é comum e
o que é distinto é homologada à oposição entre “esposa” e “star”. O amor dedicado às
esposas fica assim definido como um amor genérico, ordinário, desprovido de glamour.
Três análises 206
___________________________________________________________________________________
As reiterações de traços semânticos produzem o que a semiótica chama de
isotopia. Nesta canção, podemos observar isotopias das artes, da relação amorosa e do
glamour. Estes elementos podem ser visualizados em uma tabela:
Artes Relação amorosa Glamour
Cinema: zoom, anjo azul,
de close em close, flou,
cinema, foco de luz, star
Literatura: romance, poema
Música: blues, show, turnê
Fotografia: fotografia,
fotos
romance
O homem dos meus sonhos
Os seus olhos me
chuparam
Ele me comia
E até sorri, feliz
E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Eu, feito uma gema
Me desmilingüindo toda
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris
E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um
buquê
Como amar esposa
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar
Como num romance
O homem dos meus sonhos
dancing
zoom
cheese
E de close em close
anjo azul
Foco de luz
blues
scotch
please
Xale no decote
show
turnê
No derradeiro show
Com dez poemas e um
buquê
Como amar esposa
Não como star
Nunca mais romance
Nunca mais drinque no
dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Três análises 207
___________________________________________________________________________________
O emprego de uma isotopia das artes dentro desse eixo de valores (de universo e
de absoluto) manifesta um ponto de vista importante sobre o estatuto das obras
artísticas. Alinhada aos valores de absoluto, a obra de arte recebe a qualificação de algo
que é único, destacado. A obra de arte interrompe o fluxo contínuo e constante da vida
comum, promovendo uma desigualdade que é percebida como uma saliência, um
marco. Esse procedimento delimita também dois espaços, em que se circunscrevem dois
campos de atuação dos sujeitos: o espaço onde circulam os artistas (cinema, show,
turnê) e o espaço onde circulam as pessoas comuns. Dentro desta axiologia, o
casamento surge como a transformação que promove a transposição do espaço do único
para o espaço do comum.
A isotopia do glamour trabalha em conjunto com a das artes. Assim como os
objetos artísticos, os objetos glamorosos destacam-se dos comuns, e portanto também
representam os valores de absolutos. Esta canção constrói um glamour do tipo
hollywoodiano, que pode ser percebido tanto na interseção com a isotopia
cinematográfica quanto no uso insistente de palavras estrangeiras (dancing, zoom,
cheese, flou, blues, scotch, please, show, star). As palavras em português ficam no
âmbito do comum, do ordinário; as palavras estrangeiras, ao contrário, destacam-se. O
glamour também qualifica duas situações distintas: o espaço do dancing é glamoroso, a
condição de esposa é destituída de glamour.
Podemos agora proceder à análise musical, tendo em mente a idéia de que a
música não é um complemento que recobre os conteúdos produzidos pelo verbal. Ao
contrário, ela constrói junto com o verbal o plano do conteúdo da peça. Como veremos,
“A história de Lily Braun” é uma canção que investe no efeito de sentido de coesão: os
conteúdos produzidos pelo componente musical se alinham com os do verbal. Esse
Três análises 208
___________________________________________________________________________________
efeito de sentido de coesão é antes o resultado de uma estratégia enunciativa que uma
imposição do gênero, e por isso mesmo refutamos veementemente a idéia de que o
musical apenas “recobre” ou “complementa” o verbal.
Essa canção apresenta uma forma bastante complexa. Após uma introdução com
solo de trompete, temos a apresentação - seguida da re-exposição - de um tema com a
forma AAB. A partir deste ponto podemos perceber uma ruptura: o tema não será mais
exposto da mesma maneira até o final da peça. Após uma pequena ponte, temos a
reapresentação apenas das partes A, com variação (designada por A’ - estudaremos esse
caso mais adiante). Depois de uma seção de improviso de guitarra, observamos um
interlúdio orquestrado e o retorno da parte A’. A coda é composta por um solo
orquestrado e vocalizes na região aguda. A forma da canção poderia ser representada
pelo seguinte esquema:
O primeiro efeito de sentido que a canção provoca, logo na introdução, é o do
reconhecimento de um gênero musical: o swing, uma das inúmeras variantes daquilo
que poderíamos chamar genericamente de Jazz. São muitos os componentes que atuam
na caracterização do gênero. Podemos destacar a atuação conjunta da escolha de timbres
(instrumentação) e do padrão rítmico de base. O contrabaixo acústico executa um
walking bass, configuração característica do gênero. Igualmente importante é o
A história de Lily Braun
intro
AAB
A’
AAB
ponte
improviso interlúdio
A’A’
coda
Três análises 209
___________________________________________________________________________________
acompanhamento da bateria, com a permanência da célula rítmica no prato. O piano
conduz os acordes, e a cena completa-se com o solo de trompete, usando surdina. O
reconhecimento deste gênero insere a canção no terreno da música norte-americana, e
ajuda a construir a cena de um típico pub de jazz. É glamour em sua forma musical.
A harmonia da introdução é a mesma das partes A. Trata-se de um turn-around,
um clichê harmônico também ele típico do nero em questão. Essa estrutura é
caracterizada por ser pequena e fechada em si: são apenas quatro acordes fortemente
encadeados: Dm7(9) - F#7(b13) - B7(9) - A7(b13). Depois da determinação de Dm
como centro tonal, os outros três acordes circulam em torno dele daí o nome
turnaround. É uma seqüência de acordes dominantes, cada qual preparando seu
sucessor, formando uma cadeia de elos fechados:
Dm7(9) F#7(b13) B7(9) A7(b13) Dm7(9)
Podemos notar a atuação da valência de fechamento nesta construção harmônica.
O centro tonal é estabelecido e reafirmado constantemente. A cada parte A, essa
seqüência é repetida oito vezes. Estamos diante de uma tematização harmônica. Resta
verificar se a melodia segue o mesmo procedimento.
Três análises 210
___________________________________________________________________________________
Três análises 211
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A melodia da parte A apresenta dois tipos de frases: curtas (“Como num
romance”, “Era mais um”, “ que num relance”) e longas (“O homem dos meus
sonhos me apareceu no dancing”, “Os seus olhos me chuparam feito um zoom”). No
diagrama de Tatit fica fácil perceber a ocorrência de duas células estruturais: uma em
forma triangular e outra linear.
Parte A
Sib
Co num pa- ceu um
-mo
Sol a- re-
ro meus no
Mi so me e mais
-ra
-mance dos -nhos dancing
-mem
Sib
La
O ho
Sib
Só num
que
Sol -lhos -ram
re me -pa fei
Mi
-lance o chu -to um zoom
seus
Sib
La
Os
Três análises 212
___________________________________________________________________________________
A célula triangular é construída com um pequeno deslocamento (grau imediato)
e faz com que a melodia retorne sempre ao ponto de partida. É uma célula que promove
o fechamento. A célula linear, por sua vez, atravessa a tessitura realizando saltos e faz
com que a melodia progrida. É uma célula de abertura. A alternância destas duas
estruturas promove um efeito similar ao da silabação da fala cotidiana: uma seqüência
de implosões e explosões, de aberturas e fechamentos. Apesar do andamento
relativamente rápido e da tematização harmônica, a presença de lulas expansivas não
permite que essa parte produza o efeito de tematização melódica. Por outro lado, a
recorrência das células de fechamento não permite também o efeito de passionalização.
O resultado desta conta (não-tematização e não-passionalização) faz com que esse
trecho se incline para o lado da figurativização, ou seja, se aproxime da fala comum.
Esse procedimento confere ao que é dito um forte efeito de aproximação, de
subjetividade, deixando na melodia um certo tom confessional, muito bem aproveitado
pela letra.
Basta uma rápida observação no diagrama da parte B para perceber que há uma
nítida mudança estrutural na composição das frases. Após um salto inicial, a melodia
atinge o ápice da tessitura, e desenvolve uma longa frase descendente por graus
imediatos. Em resposta à essa linha, temos uma outra agora ascendente, construída com
a superposição de pequenos saltos. O intervalo da tessitura em que se desenvolve a parte
B é o mesmo que na parte anterior. No entanto, aqui uma maior exploração dessa
tessitura, que as frases a atravessam quase de ponta a ponta. Os limites criados pelas
células triangulares na parte A desaparecem. Isso é percebido como um movimento de
expansão, responsável pelo surgimento do efeito de sentido de passionalização.
Uma outra maneira de perceber esse movimento de expansão é pelo número de
frases: a parte A é constituída por cinco frases, e na parte B temos apenas duas. Ao
Três análises 213
___________________________________________________________________________________
efeito de fragmentação da parte A contrapõe-se aqui o desenvolvimento contínuo. A
harmonia também contribui: a seqüência harmônica da parte B não apresenta repetições,
trata-se de uma linha contínua. O ritmo harmônico também desacelera. Se antes havia
dois acordes a cada compasso, a mudança agora é menos freqüente.
D (9) | D7(9) | G7(13 | / | Bm7(9) | B7(9) | E7(#9) Bb7(#11) | A7 Eb7(9)
Completando o quadro, a orquestra que vinha fazendo pequenas intervenções
fragmentadas na parte A, agora investe em notas longas. No entanto, é preciso salientar
que mesmo dentro de um regime de passionalização, a alternância das valências de
abertura e fechamento ainda pode ser notada. A primeira frase da parte B inicia com um
salto (abertura), depois temos a linha descendente em graus imediatos (fechamento) e a
linha ascendente em saltos (abertura). Esse procedimento é ainda mais evidente na
segunda frase da parte B. Esta inicia com uma seqüência de notas espremidas por
intervalos de meio tom, e termina com saltos cada vez maiores. A coesão com a letra
aqui é total: se no verbal temos a visão que vai ficando flou (fora de foco), na melodia
temos uma progressiva difusão das notas graças ao aumento do intervalo. Nos dois
casos, trata-se de um aumento da valência de abertura.
7
4
Parte B
Três análises 214
___________________________________________________________________________________
Parte B
-fe
me o -re -zul
Sib
voltou -ceu -jo a
Sol um
drin an
Mi -que e
E me de
cha
-mou
Sib
-can
Sib
-são des -tão
vi
Sol -nha
Mi foi -de en fi-
Mi -do flou
Sib
Depois da reexposição do tema, temos uma pequena ponte para a repetição da
parte A com variação. O que acontece aqui é uma modulação. A ponte nos leva de Dm
a Em, um tom acima. Essa mudança de centro tonal coincide com a mudança de estado
Três análises 215
___________________________________________________________________________________
de Lily: de solteira para casada, de única para comum. Assim como o sujeito
apresentado pelo verbal, a harmonia da canção também muda de lugar. Não mais
retorno para a situação anterior, nem sequer para a parte B. Após esse salto harmônico,
a canção involui definitivamente, apresentando apenas partes A’.
A seção de improviso e o interlúdio orquestrado são partes que confirmam o
gênero. Isso enfatiza o caráter de verdade ao que está sendo dito, tanto pela letra quanto
pelo musical. É uma mostra da competência do enunciador, que está em conjunção com
o /saber-fazer/.
Na última parte A, ocorre um súbito esvaziamento musical. A orquestra
desaparece, o contrabaixo abandona o walking bass, a intensidade de todos os
instrumentos diminui, promovendo uma grande perda de massa sonora. Manifesta-se
aqui a valência da triagem, cuja atuação promove a exclusão, criando assim esse
ambiente rarefeito. O narrador, que é identificado aqui como o sujeito que canta, vê-se
sozinho. O efeito de aproximação é maximizado. Finalmente, na coda, temos a
repetição dos versos “Uma rosa nunca” e “nunca mais feliz”. Podemos notar um
progressivo aumento na duração das notas, culminando com a última, que atravessa dois
compassos e meio. Nesta parte, talvez mais que em qualquer outra, percebemos o
sentimento de falta decorrente da perda do objeto.
8.2. Eu te amo: surpresa e espera
Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora A
Me conta agora como hei de partir
Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar fiz tantos desvarios
Três análises 216
___________________________________________________________________________________
Rompi com o mundo queimei meus navios B
Me diz pra onde é que ainda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas C
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração D
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça teu vestido C
E o meu sapato ainda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos D
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás te fazendo de tonta (só fazendo de conta)
Te dei meus olhos pra tomares conta C
Agora conta como hei de partir
O primeiro aspecto que podemos observar nesta letra é a exposição de um
sentimento único, em tudo especial. O amor relatado pelo narrador não é apenas intenso.
Ele é, literalmente, visceral. Podemos verificar esse fato principalmente nos versos: “Já
confundimos tanto as nossas pernas/ Diz com que pernas eu devo seguir”, “Se na
bagunça do teu coração/ Meu sangue errou de veia e se perdeu”, “Te dei meus olhos pra
tomares conta”. Sujeito que ama e objeto amado se entrelaçam e se confundem: “Meu
paletó enlaça teu vestido/ E o meu sapato ainda pisa no teu”. Nestes versos podemos
perceber que a proximidade entre os amantes é tanta que chega mesmo a superar o
conceito de proximidade: estamos diante de um amor que chamaremos de ‘fusional’. No
regime deste amor fusional a continuidade é absoluta: não se pode perceber os
contornos do sujeito e do objeto.
Essa continuidade plena repercute diretamente na percepção dos limites espácio-
temporais. O mundo em que esse amor acontece não faz fronteira com o mundo externo
Três análises 217
___________________________________________________________________________________
(“Rompi com o mundo queimei meus navios”), nem tampouco é limitado
temporalmente (“perdemos a noção da hora”, “noites eternas”). A conseqüência
inevitável desta configuração é a diluição da individualidade do narrador fato que
intensifica o teor passional do que está por vir.
No início da canção, essa relação de amor fusional está relatada em tempo
passado: “perdemos”, “jogamos”, “Rompi”, “queimei”, “confundimos”, etc... No
presente, temos um sujeito atônito, surpreendido por um acontecimento inesperado. Na
composição deste efeito de sentido, a noção de andamento é crucial. Em seu
“Musicando a Semiótica” (Tatit, 1998, p.54), Luiz Tatit elabora um pequeno modelo
para descrever esse fenômeno, a partir de uma passagem escrita pelo poeta Paul Valéry
nos seus famosos Cahiers:
Função objetal Função subjetal
surpresa o que já é não é ainda
espera o que não é ainda já é
O foco da nossa leitura recai sobre o que o semioticista chamou de “função
subjetal” (Tatit, 1998, p.54). A função subjetal pode ser entendida como a medida do
andamento do sujeito. A função objetal, por sua vez, reflete o andamento do objeto. É o
descompasso entre esses andamentos que gera os efeitos de sentido descritos: surpresa
ou espera. A surpresa acontece quando o objeto acelera demais, e se antecipa ao sujeito.
Em outras palavras: o sujeito não consegue acompanhar o andamento das coisas. O que
“já é”, pois de fato aconteceu, para o sujeito “não é ainda”. O objeto surpreende o
sujeito.
Três análises 218
___________________________________________________________________________________
A surpresa para o narrador de “Eu te amo” se manifesta como uma ruptura.
Ainda imerso naquele “amor fusional”, esse sujeito não consegue acompanhar o
andamento do objeto que acelera e “escapa”. Para ele, essa ruptura de fato não existe
(não é ainda): “Teus seios ainda estão nas minhas mãos”. Ela nos é apresentada sempre
como fato absurdo, impossível. O sujeito que restaria de uma cisão é um sujeito
incompleto, incapaz, sem pernas para andar e sem sangue nas veias (“Diz com que
pernas eu devo seguir”, “Meu sangue errou de veia e se perdeu”).
A teoria semiótica prevê que um sujeito pode realizar uma ação se for dotado
de determinadas competências. Essas competências são traduzidas pelos chamados
verbos modais: /querer-fazer/, /dever-fazer/, /poder-fazer/ e /saber-fazer/. Um sujeito
que possui estas competências está apto para a ação que é, invariavelmente, a conquista
do objeto almejado. No entanto, a ausência (ou o conflito) de competências coloca um
entrave à realização desta ação. A partir deste econômico modelo, a semiótica é capaz
de descrever um número consideravel de situações passionais. Temos então sujeitos que
querem mas não devem, devem mas não podem, podem mas não sabem, etc. Estas
configurações compõem o nível narrativo da análise.
Para obter as competências, o sujeito precisa de um doador - o destinador. O
destinador instaura o sujeito ao fornecer o /querer/ e o /dever/. Posteriormente,
qualifica-o para a ação doando o /poder/ e o /saber/. A figura do destinador é
imprescindível: sem ele não há sujeito nem narrativa.
Com isso podemos entender melhor a situação em que se encontra nosso
narrador. Logo no início ele afirma: “Se ao te conhecer/ Dei pra sonhar fiz tantos
desvarios/ Rompi com o mundo queimei meus navios”. Podemos ver que a relação
estabelecida entre o narrador e sua amada, aqui apenas designada como ‘tu’, vai muito
além de uma relação sujeito-objeto. É a partir dela que o sujeito passa a sonhar - uma
Três análises 219
___________________________________________________________________________________
das muitas manifestações da modalidade do /querer/. Ela se configura não como
objeto de desejo, mas também destinador deste sujeito que deseja.
O terceiro verso desta estrofe estabelece um outro parâmetro para essa relação.
Ao “romper com o mundo” e ao “queimar os navios”, o sujeito afirma que não aceita
mais outros possíveis destinadores. Essa configuração explica a inviabilidade do
narrador enquanto sujeito fora desta relação. Sem seu destinador, e sem a possibilidade
de eleger outros destinadores, sua condição de sujeito ficaria simplesmente
insustentável.
Contrapondo-se então à ruptura e descontinuidade, temos um sujeito que nega os
limites, que quer durar. Frente ao projeto de concentração apresentado pelo objeto (que
impõe limites, que concentra a individualidade, que marca o tempo) o sujeito reafirma
um projeto de expansão (que nega os limites, que promove a difusão, que dilui). Este é
o mecanismo central desta letra, que posteriormente se retomando na análise
melódica.
De um modo geral, as análises de letras de canções se voltam exclusivamente
para o plano de conteúdo. No entanto, existe em “Eu te amo” um aspecto importante
que pode ser observado no plano de expressão desta letra.
Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Não, acho que estás te fazendo de tonta (só fazendo de conta)
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir
Três análises 220
___________________________________________________________________________________
Uma das principais características da semiótica greimasiana é a possibilidade de
descrever fenômenos observáveis no plano do conteúdo e no plano de expressão
utilizando os mesmos procedimentos metodológicos. Essa capacidade permite a
descrição de efeitos poéticos sem a necessidade de abandonar o campo teórico, o que
confere à análise o rigor desejado.
No plano de expressão, a rima pode ser considerada como um mecanismo de
desaceleração. A recorrência de uma mesma sonoridade a intervalos regulares provoca a
percepção de um ritmo. Ao fluxo instável e irregular (acelerado) da fala se sobrepõe a
regularidade da rima (desaceleração). No trecho ressaltado, esse procedimento é
utilizado de uma maneira peculiar. A repetição regular da sonoridade em “hora” e
“fora” (estabilidade) aparece antecipada no terceiro verso (“agora”). A rima “acelera”, e
aparece antes do esperado (surpresa). O mesmo acontece nas duas outras estrofes. Se
no plano de conteúdo o sujeito é surpreendido por um objeto que se antecipa, temos no
plano de expressão uma rima que se antecipa – e surpreende.
Uma vez que delineamos os conteúdos construídos pelo verbal, podemos
passar à análise do componente musical. A macroforma desta canção é extremamente
regular. O tema e sua reexposição estão cercados por introdução e coda, cada qual com
8 compassos, e separados por um interlúdio de 16 compassos. A regularidade impera, as
estruturas são reiteradas, os limites são claros.
Eu te amo
intro
ABCDCDC interlúdio
coda
ABCDCDC
Três análises 221
___________________________________________________________________________________
Essa regularidade da macroforma contrasta com a irregularidade da estrutura
interna do tema que é, para dizer o mínimo, inusitada. A maioria dos temas é composta
por duas ou três partes, e geralmente termina com a repetição da primeira parte. O
esquema AABA é o mais freqüente, seguido pelo ABACA
13
. A reiteração é um dos
mecanismos musicais mais utilizados pelos compositores para dar estabilidade às
canções é parte de um mecanismo de desaceleração, cuja finalidade principal é a
fixação do tema melódico. No entanto, temos em “Eu te amo” uma estrutura
assimétrica. Um primeiro esquema (AB) é apresentado apenas uma vez, sem retorno. A
forma da canção sofre uma ruptura - um eco da ruptura sofrida pelo sujeito no plano de
conteúdo. Essa ruptura é atenuada apenas pelo fato de que as partes A e C (assim como
B e D), apesar de diferentes, são construídas a partir de procedimentos semelhantes.
Parte A
PER
AH
-
> JÁ
-
DE
-
MOS
-
TOS
SE A HORA JUN
NO
JO
-
TA A
-
ÇÃO SE
-
GA FORA CON
-
GO
DA
-
MOS
-
RA
TU ME CO TIR
DO
-
MO HEI
DE AH
PAR
13
Cf. Capítulo 4.1.2, dedicado ao estudo da forma musical (pp. 67-72).
Três análises 222
___________________________________________________________________________________
Parte B
NA PRA
MEUS
-
VIOS DIZ ON
-
DE É
-
MEI ME QUE IN IR
QUEI
-
DA
POS
-
DO
-
SO
SO MUN
-
CER PRA
-
NHAR
-
NHE DEI FIZ
-
TOS COM O
CO TAN
-
RIOS
-
PI
ROM
TE
-
VA
SE AO
DES
Parte C
SE VES
NÓS TRA
-
SU
-
RAS
-
FUN
NAS DAS
-
TERNAS CON
-
DI
NOI
-
MOS QUE
-
TES
TAN PERNAS COM PER
E
-
TO AS
-
NAS
NOS DIZ EU
-
GUIR
-
SAS DE
-
VO
SE
Parte D
Três análises 223
___________________________________________________________________________________
BA
CHÃO NA
-
GUN
SE
-
ÇA
-
RA
-
GUE ER
-
LO CO
-
ÇÃO SAN
-
ROU
TEU MEU DE
A E
PE DO
VEI
-
DEU
-
TE A
-
TE
SE EN
-
NAS
SOR PER
-
TOR
-
SA
SE
NOS
Uma rápida olhada na transcrição permite ver a diferença estrutural entre as
partes A,C e B,D. Em A e C temos uma pequena frase contraída, que se repete
igualmente três vezes, cada qual em um patamar um pouco mais grave. É uma parte que
concentra, que retém a passagem do tempo, que desacelera. Já em B e D temos o
oposto: uma melodia que expande, preenche os espaços, percorrendo toda a tessitura da
canção desorganizadamente, do mais grave ao mais agudo. Esse “conflito melódico” é o
mesmo conflito vivido pelo narrador, que percebe a limitação imposta, mas se contrapõe
a ela. Assim como o sujeito, a melodia da canção tenta resgatar aqui sem sucesso
sua configuração original. Esse mesmo “conflito” acontece entre a macroforma
(regular) e a forma (irregular).
Algumas considerações podem ser feitas sobre a construção das frases em A e C.
É fácil observar a presença de uma gradação descendente, que promove uma distensão
lenta e gradual. Esse é um procedimento bastante comum em canções passionalizadas.
No entanto, um outro fenômeno por trás deste que torna essa construção singular. A
progressão harmônica instituída pela frase e confirmada pelo arranjo de base segue
um esquema que recebe o nome de marcha harmônica modulante. Neste processo, o
centro tonal é deslocado periodicamente. A cada frase, um novo centro é criado, que
Três análises 224
___________________________________________________________________________________
tanto é percebido como ponto de chegada da modulação anterior como ponto de partida
para a próxima. É uma construção que não aponta para o retorno, mas insiste na
progressão. A marcha harmônica tem o poder de expandir indefinidamente, em uma
progressão infinita. Essa construção reflete o desejo de um sujeito que, acima de
qualquer coisa, “quer durar”.
Embora a progressão pudesse ser infinita, nesta canção ela é recortada pela
inserção das partes B e D. Observamos aqui uma ruptura harmônica, que agora força um
centro tonal único. A alternância entre as partes A e C, por um lado, e B e D, por outro,
é uma representação musical do embate entre duas situações: uma que reflete o desejo
do narrador, outra que manifesta uma situação que desde já se apresenta como
inevitável.
Vimos que a letra apresenta um sentimento único, identificado como um amor
fusional. A melodia da canção também apresenta um fato notável, que guarda estreita
relação com esse amor fusional. As frases das partes A e C são construídas a partir de
uma escala cromática, ou seja, uma escala que “anda” de meio em meio tom. Sabemos
que o semitom é o menor intervalo possível na música ocidental. Nesta canção, as notas
estão portanto absolutamente coladas: o espaço possível entre uma nota e outra.
Assim como no verbal, a continuidade aqui é plena, a união é total.
nas partes B e D, podemos observar a presença de diversos saltos
intervalares: é a manifestação da disjunção, da descontinuidade. O conflito que
mencionamos, entre a regularidade e a irregularidade, recobre dois estados passionais
distintos vividos pelo narrador. De um lado, o desespero de ver seu objeto de valor
escapando (ou melhor: tendo escapado) de suas mãos. Esse desespero responde pela
aceleração presente nos saltos e na diluição das células, e pela desestruturação no nível
da forma (ABCDCDC). De outro, o sujeito demonstra uma tentativa de se recompor
Três análises 225
___________________________________________________________________________________
para elaborar uma estratégia de argumentação, na tentativa de reverter a situação. Essa
tentativa de enquadrar de novo seu objeto, evocando um passado de conjunção,
desacelera o fluxo desenfreado e permite o surgimento de estruturas organizadas (tanto
no nível da frase, nas partes A e C, quanto no nível da macroforma). A profundidade e
extensão deste contraste faz deixar mais evidente a intensidade do sentimento de falta e
do esforço para readquirir seu objeto. Na tabela abaixo, podemos observar a atuação
destas duas forças em cada nível de análise:
Níveis Aceleração Desaceleração
Macroforma - Estrutura regular
Forma Não repetição das partes A e B Reiteração da estrutura em AC e BD
Parte Dispersão nas partes B e D Gradação descendente em A e C
Frase Diluição das células em B e D Concentração das células em A e C
Células Saltos intervalares em B e D Cromatismo em A e C
Um outro fator ainda pertinente à análise da melodia principal é a recorrência
quase exclusiva de tonemas ascendentes. Se as frases descendentes produzem o efeito
de sentido de finalização, esse procedimento surge como mais um aspecto que produz o
efeito de sentido de evolução, de continuidade. Como se a cada terminação ascendente o
narrador impedisse a chegada do limite final imposto pela situação disjuntiva.
Embora a centralidade da melodia principal no processo de construção de
sentido seja inegável, não podemos descartar os efeitos produzidos pelos demais
elementos do componente musical. A canção inicia com um solo de piano, que
permanece sozinho no acompanhamento até o final da parte A. Na primeira exposição
do tema, percebemos um timbre de voz masculino.
Três análises 226
___________________________________________________________________________________
A partir da parte B, entram o contrabaixo acústico e a bateria, utilizando
vassouras. O contrabaixo executa, na maior parte do tempo, apenas uma nota (longa)
por compasso, definindo as fundamentais dos acordes. O piano reage à entrada do
baixo, e reduz a densidade de notas. As intervenções da bateria são minimalistas. A
partir do final da parte B, surge um violino no contracanto que permanecerá quase que
ininterruptamente até o final da canção.
O interlúdio é dividido em duas partes iguais, com 8 compassos cada. A primeira
parte apresenta um solo de piano, a exemplo do que ocorre na introdução. A segunda
parte é composta por um naipe de flautas transversais. Na reexposição do tema, temos
uma voz feminina que percorre toda o trecho, exceto a última parte C. Em alguns
pontos, a voz masculina atua em conjunto com a voz feminina. Na última parte C, a voz
masculina volta a figurar em primeiro plano. Podemos perceber que o primeiro verso
desta parte se altera de Acho que estás te fazendo de tonta” para “Acho que estás
fazendo de conta”. A voz feminina aqui apenas repete algumas palavras cantadas pela
voz masculina. A coda é construída em um acorde estático, mas com um tenso ostinato
no piano.
Como uma teoria semiótica do arranjo consistente e integrada ao modelo geral
ainda está por fazer, podemos apenas nos limitar a descrever pequenos efeitos de
sentido que cada escolha instrumental produz. Estas escolhas serão sempre entendidas
como estratégias de um enunciador na produção de sentidos que tanto podem se alinhar
como destoar daqueles produzidos pelos demais elementos musicais ou verbais.
O fato de ter apenas um instrumento no acompanhamento da primeira parte A
ajuda na construção do sentido de subjetividade neste trecho. É uma estratégia
importante, especialmente neste início da canção, em que o conflito é apresentado. A
Três análises 227
___________________________________________________________________________________
densidade timbrística rarefeita e a fraca intensidade aplicada ao piano contribuem para a
percepção do sentimento de solidão e desamparo vivido pelo narrador.
O segundo aspecto do arranjo que podemos destacar é o emprego insistente de
notas longas, tanto no baixo quanto nos contracantos de violino e flautas. Até a bateria,
que seria responsável pelos ataques, é tocada com a vassoura, que produz um som com
maior duração e com um ataque diluído. um investimento quase total na
continuidade na atuação de todos esses instrumentos. Desta maneira, o arranjo
maximiza o efeito passional.
O piano e as flautas surgem como termos complexos da relação entre aceleração
e desaceleração, especialmente por conta de suas atuações na introdução e no interlúdio.
A estrutura da introdução, executada pelo piano, assemelha-se às que verificamos nas
partes A e C, com o uso da gradação descendente. Na primeira metade do interlúdio, a
situação se inverte: temos agora a exposição instrumental da parte D. um aumento
na intensidade do toque que se contrapõe à interpretação mais contida da introdução.
Finalizando o interlúdio, as flautas desenvolvem uma melodia semelhante às que
encontramos nas partes A e C.
Podemos notar que o arranjo investe no efeito de sentido de coesão. Os
conteúdos veiculados pelo verbal e pela melodia principal encontram total ressonância
tanto na escolha quanto na atuação dos demais instrumentos.
8.3. A ostra e o vento: a eficácia de um modelo
Uma das mais importantes contribuições de Claude Zilberberg à semiótica - e que
traz conseqüências diretas no estudo da semiótica musical em particular - é a
reformulação dos estratos mais profundos da significação. Para Greimas, o nível mais
profundo do percurso é construído a partir da articulação de categorias semânticas
Três análises 228
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abstratas tais como vida vs. morte ou natureza vs. cultura. Já tivemos a oportunidade de
comentar, ao longo deste trabalho, a impossibilidade de trabalhar musicalmente com
essas categorias. Em um determinado texto verbal, o conceito “vida” poderia muito bem
ser abstrato o bastante para dar conta da descrição da articulação do sentido em um
nível profundo. No entanto, para um texto musical, até mesmo termos como “vida” e
“morte” se mostram completamente inapropriados, por serem concretos demais. A
articulação do sentido musical atua em um nível muito maior de profundidade.
Em seu Razão e poética do sentido (ZILBERBERG, 2006), o semioticista francês
propõe uma nova organização do percurso gerativo em cinco patamares diferentes de
profundidade
14
. O nível mais profundo, agora denominado Nível Tensivo, articula as
operações de parada vs. parada da parada. Com um mínimo de carga semântica, essa
operação descreve o que seria o grau zero de articulação do sentido: o surgimento do
descontínuo. Em uma semiótica musical, a mudança de qualquer parâmetro (timbre,
intensidade, altura, duração) poderia ser descrita por esse dispositivo.
O segundo estrato de articulação proposto por Zilberberg é o Nível Missivo, função
que se articula em remissivo e emissivo. Os valores remissivos respondem pelas
saliências e interrupções, pela interrupção temporal e fechamento espacial. os valores
emissivos representam as passâncias e continuidades, o desenvolvimento temporal e a
abertura espacial. Os subvalores do fazer emissivo são de ardor e arroubo; no caso do
fazer remissivo, a inibição e “stase” (ZILBERBERG, 2006, p. 134).
O terceiro patamar é o Nível Modal que, controlado pelo nível missivo, se articula
em modalidades factivas e páticas, cognitivas e pragmáticas. Ziberberg chega a um
“cadastro modal” (ZILBERBERG, 2006, p.134), que transcrevemos a seguir:
14
Cf. a análise de “Corrente”, pp. 90-96.
Três análises 229
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Fazer remissivo
(cessar)
Fazer emissivo
(cessar de cessar)
modalidades factivas
cognitiva: ignorar
pragmática: dever
cognitiva: prever
pragmática: querer
modalidades páticas
cognitiva: espantar-se
pragmática: interromper-se
cognitiva: crer
pragmática: esperar
O fato mais surpreendente dessa organização é perceber o surgimento do modal
antes mesmo dos actantes e das estruturas narrativas. Essa é a segunda grande abertura
que a reformulação do modelo leva ao estudo da música. Se nos próximos níveis
(actancial e narrativo) percebemos um progressivo “esvaziamento” do discurso musical,
quase toda a “atividade semiótica” da música ocorre nos três primeiros (tensivo, missivo
e modal).
Na análise de “A ostra e o vento” poderemos observar que essa nova
categorização dos níveis no percurso gerativo permite um alinhamento muito mais
preciso na descrição dos componentes verbal e musical.
A ostra e o vento
Vai a onda
Vem a nuvem
Cai a folha
Quem sopra meu nome?
Raia o dia
Tem sereno
O pai ralha
Meu bem trouxe um perfume?
O meu amigo secreto
Põe meu coração a balançar
Pai, o tempo está virando
Pai, me deixa respirar o vento
Vento
Três análises 230
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Nem um barco
Nem um peixe
Cai a tarde
Quem sabe meu nome?
Paisagem
Ninguém se mexe
Paira o sol
Meu bem terá ciúme?
Meu namorado erradio
Sai de déu em déu a me buscar
Pai, olha que o tempo vira
Pai, me deixa caminhar ao vento
Vento
Se o mar tem o coral
A estrela, o caramujo
Um galeão no lodo
Jogada num quintal
Enxuta, a concha guarda o mar
No seu estojo
Ai, meu amor para sempre
Nunca me conceda descansar
Pai, o tempo vai virar
Meu pai, deixa me carregar o vento
Vento
Vento, vento
A disposição espacial da transcrição que efetuamos acima é a que encontramos
no encarte do CD. No entanto, a disposição dos versos ao longo da melodia sugere uma
organização bem menos fragmentada:
Parte A
Vai a onda vem a nuvem cai a folha quem sopra meu nome? A1
Raia o dia tem sereno o pai ralha meu bem trouxe um perfume? A2
O meu amigo secreto A3
Põe meu coração a balançar A4
Pai, o tempo está virando pai, me deixa respirar o vento A5
Vento A6
Três análises 231
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Parte A'
Nem um barco nem um peixe cai a tarde quem sabe meu nome? A'1
Paisagem ninguém se mexe paira o sol meu bem terá ciúme? A'2
Meu namorado erradio A'3
Sai de déu em déu a me buscar A'4
Pai, olha que o tempo vira pai, me deixa caminhar ao vento A'5
Vento A'6
Parte B
Se o mar tem o coral, a estrela, o caramujo um galeão no lodo B1
Jogada num quintal, enxuta, a concha guarda o mar no seu estojo B2
Ai, meu amor para sempre B3
Nunca me conceda descansar B4
Pai, o tempo vai virar, meu pai, deixa me carregar o vento B5
Vento B6
Vento, vento B7
Fica evidente a sobreposição dos diversos períodos que compõem cada frase
musical, e a dupla interpretação que se pode fazer deles:
vai a onda / a onda vem
vem a nuvem / a nuvem cai
cai a folha / a folha quem sopra meu nome
raia o dia / o dia tem sereno
tem sereno pai / o pai ralha
ralha meu bem / meu bem trouxe um perfume
Antes mesmo da análise dos conteúdos produzidos por cada uma dessas
interpretações, podemos desde já observar alguns procedimentos que serão reiterados ao
longo da canção. Destacamos aqui a possibilidade de leitura de cada período em ordem
direta e ordem inversa. Desta possibilidade surge o efeito de sentido de reversibilidade
da leitura, assim como o de segredo, que algumas informações ficam como que
“escondidas” nas entrelinhas das duas leituras.
O mesmo efeito é observado na comparação entre as frases A5, A'5 e B5: me
deixa respirar”, me deixa caminhar” e deixa me carregar”, em que a reversibilidade
da colocação pronominal se evidencia.
Três análises 232
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O efeito de sentido de reversibilidade é apresentado não apenas como
procedimento de construção frasal, mas também na construção semântica. Esse sentido
manifesta-se por vezes como movimento pendular, que pode ser de um corpo concreto
como em “vai a onda vem”, ou de um sentimento em “coração a balançar”, ou ainda em
expressões como o “tempo” que “vira”, indicando tanto a reversibilidade das condições
metereológicas como do estado afetivo da relação entre os personagens. O vai e vem
infinito do movimento pendular manifesta-se também na alternância sucessiva entre o
raiar do dia e o cair da tarde (“raia o dia” e “cai a tarde”).
Em “deixa me carregar o vento”, as duas possibilidades de interpretação
mostram a reversibilidade entre sujeito e objeto da ação “carregar”. Já personificado
como “meu namorado”, tanto pode o vento carregar a narradora como ser por ela
carregado.
Igualmente difundido pela letra da canção está o efeito de sentido de segredo. O
primeiro verso das partes A e A' termina com um questionamento: “quem sopra meu
nome?” e “quem sabe meu nome?”. Ainda assim, esse efeito de sentido é modulado pela
possibilidade de reversão. Temos aqui uma tensão entre o que poderia ser de fato um
questionamento, mantendo em segredo a identidade de quem sopra/sabe, e o que
poderia ser uma afirmação, revelando essa identidade (“a folha quem sopra”, a tarde
quem sabe”). Podemos ainda observar a construção do sentido de segredo na expressão
“a concha guarda o mar no seu estojo”, que fica ainda mais explícito em “meu amigo
secreto”.
A palavra “pai” também participa desse jogo entre o que é revelado e do que é
escondido. Observamos em toda a canção sete manifestações explícitas do vocábulo.
Mas “pai” aparece também “escondido” em duas outras palavras: “paira” e “paisagem”.
Três análises 233
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Apesar da recorrência de termos, expressões e procedimentos que indicam a
reversibilidade, temos também várias indicações de um movimento que é direcional e,
de certa forma, irreversível. A percepção desse movimento é quase sempre atenuada
pelo jogo de esconde produzido pela afirmação/negação do segredo: trata-se de um
efeito de sentido que é construído à distância, e pode ser observado sobretudo na
comparação de versos em estrofes diferentes, nas mesmas posições relativas.
Se em A3 temos “o meu amigo secreto”, encontramos em A'3 “meu namorado
erradio” e “ai meu amor para sempre” em B3. um aumento progressivo na
intensidade da relação (amigo/namorado/amor), e também uma modificação na
constância . O amigo que é “secreto”, que não se revela nunca, já torna-se um namorado
“erradio”, inconstante, e finalmente, um amor “para sempre”. A passividade do “põe
meu coração a balançar” (A4), se transforma na ação sai de déu em déu a me
buscar(A'4), e desaparece por completo em “nunca me conceda descansar” (B4). O
movimento pendular do balançar”, que tanto pode ir como voltar, lugar à
imutabilidade do “sempre” e do “nunca”.
Essa afirmação de conjunções irreversíveis também está presente em algumas
imagens construídas com a isotopia marinha: o mar tem o coral”, “o caramujo e a
estrela têm o galeão”. Mesmo em um regime de separação (“jogada no quintal”), a
conjunção permanece (“guarda o mar no seu estojo”). Fica evidente que essa conjunção
irreversível se opõe ao movimento pendular, que promoveria a alternância entre
conjunção e disjunção.
Observamos também um aumento contínuo de mobilidade na progressão das
expressões “me deixa respirar”, “me deixa caminhar” e “deixa me carregar” (A5, A15 e
B5). Mas a progressão que paira sobre todas as outras, e que alheia a tudo que balança
aponta para um desfecho, é a que se refere ao “tempo”. Se em A5 temos uma ação ainda
Três análises 234
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em curso (“o tempo está virando”), em A'5 essa ação já é pontual, ainda que em tom de
possibilidade futura (“olha que o tempo vira”). A possibilidade de reversão desaparece
por completo em B5, e o que era uma ameaça é agora a certeza do inevitável: “o tempo
vai virar”.
Sendo a reversibilidade um mecanismo constante nesta canção, não surpreende a
coexistência do movimento pendular com o movimento unidirecional. Este surge como
uma conseqüência da reversibilidade aplicada a ela mesma, uma “reversibilidade
reflexiva”. Se tudo pode inverter o sentido, o reversível também pode gerar o
irreversível.
A situação narrada remete ao mito da maturidade feminina. A personagem
encontra-se exatamente no momento em que, ainda sob o jugo de seu pai, “balança”
com a presença de uma nova imagem masculina, representada pelo
“amigo/namorado/amor”. É justamente por ainda estar na zona de influência paterna
que a apresentação do outro não pode ser feita explicitamente. Não se trata de um
rompimento, ao menos o ainda. Estamos no limiar dele, mas como tudo balança, o
movimento pode tanto pender para a ruptura quanto para o retorno. Assim sendo, a
progressão precisa ser progressiva, pois qualquer movimento mais brusco poderia
também provocar uma reação mais forte no sentido contrário. É por isso que o
namorado faz uso tanto do movimento errático (“erradio”) como do movimento
programado (“sai de déu em déu”).
Estando ainda ligada ao pai, a personagem depende da ação do outro para
realizar o movimento. É o namorado que “põe (...) a balançar” e “sai (...) a me buscar”.
Tudo parece levar à declaração final, quase uma súplica: “nunca me conceda
descansar”. Subsumindo todos os valores e justificando todos os procedimentos,
manifesta-se aqui o desejo central, que nada mais é que um desejo de transformação, um
Três análises 235
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repúdio à estagnação e à manutenção dos valores atuais. Fica claro o alinhamento entre
a imagem do “pai” à todos os valores de manutenção e de permanência (“ninguém se
mexe”), ainda que na forma dinâmica de movimentos pendulares, e a do “namorado”,
sincretizado com a figura do “vento”, que representa tudo o que se desloca e se
transforma.
A articulação entre os valores remissivos e emissivos fica então evidente.
Responsáveis pela inibição, pelo tempo que pára e espaço que se fecha, pela interrupção
do deslocamento e o eterno retorno ao mesmo lugar, os valores remissivos articulam o
fazer do pai. São esses valores que geram, já em outro nível, a modalidade do dever. Por
outro lado, os valores emissivos representam o “tempo que anda” e o espaço que abre, a
continuidade do movimento. Alinhados ao fazer do namorado/vento, geram a
modalidade do querer.
Uma rápida observação na organização das estrofes permite entrever uma
extrema regularidade na estrutura da canção. Isso pode ser facilmente confirmado nos
diagramas com a transcrição da melodia:
Parte A
Frase A1
Dó#
Si
La
Sol# Vai cai no
a -vem a meu
Fá# on nu fo -pra
-da a -lha so
Mi vem quem -me
Ré#
Dó#
Si
Três análises 236
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Frase A2
Dó#
Si
La Ra pai -fu
Sol# -ia o -no o ra per
di -re -lha -xe um
Fá# -a se meu trou
tem bem -me
Mi
Ré#
Dó#
Si
Frases A3 e A4
Dó#
Si o meu a
-migo se
La -cre Põe -ra
Sol# -ção -lan
Fá# co -çar
ba
Mi
Ré#
-to
Dó# meu a
Si
Frases A5 e A6
Dó#
Si
La
Sol# Pai pai ven Ven
o -do me o
Fá# tem -ran dei -rar
-po es vi -xa -pi -to
Mi res -to
Ré#
Dó#
Si
Três análises 237
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Parte A'
Frase A'1
Dó#
Si
La
Sol# Nem cai no
um -xe a meu
Fá# bar pei tar -be
-co um -de sa
Mi nem quem -me
Ré#
Dó#
Si
Frase A'2
Dó#
Si
La Pai pai
Sol# -sa -xe -raao ci
-gem me sol -rá
Fá# nin se meu te
-guém bem -me
Mi
Ré#
Dó#
Si
Frases A'3 e A'4
Dó#
Si Meu namo
-rado erra
La -di sai em
Sol# déu bus
Fá# u -car
me
Mi
Ré#
-o
Dó# de a
Si
Três análises 238
___________________________________________________________________________________
Frases A'5 e A'6
Dó#
Si
La
Sol# Pai pai ven Ven
o -ra me ao
Fá# -lha vi dei -nhar
que o -po -xa -mi -to
Mi tem ca -to
Ré#
Dó#
Si
Parte B
Frase B1
Dó#
Si mar ca lo
tem -la o -ra no
La o -tre -um -ão
Sol# co a es -jo um -le -do
-ral ga
Fá#
Mi
Ré#
Dó#
Si Se o
Frase B2
Dó# ga con
da -ta a -cha
Si num -xu guar -to
quin en -da o es
La -tal mar seu -jo
Sol# no
Fá#
Mi
Ré#
Dó# Jo
Si
Três análises 239
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Frases B3 e B4
Dó#
Si Ai meu a
-mor para
La -sem nun con
Sol# -ce -can
Fá# me -sar
des
Mi
Ré#
-pre
Dó# -ca -da
Si
Frases B5 e B6
Dó#
Si
La
Sol# Pai pai ven
o meu dei o
Fá# tem -rar -xa -gar
po vi me -re -to
Mi vai car
Ré#
Dó#
Si
Coda
Dó#
Si
La
Sol# Ven Ven Ven Ven
Fá#
-to
Mi -to -to
Ré#
-to
Dó#
Si
Três análises 240
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Essa canção tem uma fortíssima tendência à involução. A segunda parte é uma
exata repetição da primeira. Esse é um procedimento bastante comum: muitas canções
realizam a repetição da primeira parte. Mas geralmente trata-se de um processo que
realça a passagem à parte B, reservada para a introdução de informações novas. Aqui
porém o que vemos é a repetição da mesma melodia de A, que transposta um tom e
meio acima. Apesar da novidade inserida pela transposição, todo o perfil melódico é
redundante. Mais surpreendente é o desfecho da parte B: ao invés de desenvolver-se, ela
termina com a repetição exata da parte A, sem transposição.
O mesmo procedimento norteia a disposição das frases dentro das partes. A
passagem da frase 1 para a 2 é também um processo de transposição, um tom acima.
Assim como acontece na letra, as transformações são sempre apresentadas de maneira
sutil (secreta?). O maior contraste se com a apresentação das frases 3 e 4.
Completando o movimento pendular, a frase 5 é uma repetição da frase 1: tudo volta ao
ponto de partida. Na pequena frase 6, que carrega apenas a palavra “vento”, temos na
parte B uma sutil modificação: ela termina em uma nota meio tom acima.
A coda realiza explicitamente o movimento pendular observado no verbal:
temos aqui a alternância das duas variações da melodia (c): um intervalo de um tom e
1/2 (c) alternado com um intervalo de dois tons (c'). Duas coisas são notáveis nessa
construção. Por um lado, a mudança entre as variações se exatamente na forma de
uma abertura maior ou menor do intervalo (3 ou 4 semitons). É uma luta entre a
expansão-transformação e o fechamento-permanência. O desfecho é, assim como na
letra, inevitável: na última exposição, o intervalo rompe o movimento pendular e se abre
em 3 tons (6 semitons).
O segundo fator notável é a função desempenhada pelos intervalos escolhidos na
harmonia da canção. Sendo a passagem harmonizada por acordes em C#, a nota grave
Três análises 241
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do intervalo que repousa hora sobre Mi# e Mi define a qualidade tonal maior ou menor
deste acorde. É a oposição entre o brilho (arroubo?) do acorde maior com o fechamento
(inibição?) do acorde menor. É a expressão harmônica do embate entre os valores
emissivos e remissivos. O último intervalo, de 6 semitons, produz algo ainda mais
notável: nesse ponto a canção modula para E, produzindo o efeito de sentido de
mobilidade, de transformação.
Toda a canção é construída com apenas 3 estruturas melódicas (a, b e c),
apresentadas com pouquíssima variação. A estrutura de partes e frases poderia ser
representada da seguinte maneira:
Estrutura da Parte A
Frase 1 (a)
Frase 2 (transposição da frase 1) (a')
Frase 3 + 4 (b)
Frase 5 (repetição da frase 1, com terminação ½ tom acima) (a'')
Frase 6 (c)
Estrutura da Parte A'
Frase 1 (a)
Frase 2 (transposição da frase 1) (a')
Frase 3 + 4 (b)
Frase 5 (repetição da frase 1, com terminação ½ tom acima) (a'')
Frase 6 (c)
Estrutura da Parte B
Frase 1 (a''') (transposição da frase A1)
Frase 2 (transposição da frase 5) (a'''') (transposição da frase A1)
Frase 3 + 4 (b)
Três análises 242
___________________________________________________________________________________
Frase 5 (repetição da frase A1, com terminação ½ tom acima) (a'')
Frase 6 (repetição de A6, com terminação ½ tom acima) (c')
Estrutura da Coda
Frase 1 (c)
Frase 2 (c')
Frase 3 (c)
Frase 4 (abertura do intervalo) (c'')
A estrutura interna das frases também apresenta características notáveis. A
estrutura (a) apresenta uma sinuosidade que se desenvolve no espaço de dois tons:
Vai cai no
a -vem a meu
on nu fo -pra
-da a -lha so
vem quem -me
Até o penúltimo intervalo final, ela se desenvolve em movimentos de semitom.
Assim como em “Eu te amo”
15
, esse procedimento produz o efeito de sentido de forte
união, já que não há espaços vazios entre cada nota. A ondulação da melodia, que oscila
entre os pólos, é uma apresentação musical do movimento pendular. Mas, assim como
na letra, o movimento pendular justapõe-se a um movimento de ruptura: o final da frase
é composto por um salto que atravessa toda a sua tessitura. A melodia se comporta
como uma onda no mar que, por mais que ondule, termina inevitavelmente por quebrar
na praia. Segundo a metáfora topológica, o que temos aqui é uma perfeita
figurativização musical desse procedimento.
15
Cf. análise de “Eu te amo”, pp. 215-226.
Três análises 243
___________________________________________________________________________________
Parte do material melódico presente em (b) contrapõe-se nitidamente ao que
encontramos em (a). Na primeira metade de (b) temos uma pequena frase linear, que
atravessa quase toda a tessitura da canção e transporta a melodia para um outro patamar
(“meu namorado erradio”). No entanto, sua estrutura interna ainda é a mesma: uma
seqüência de semitons terminando em salto. Na segunda metade (“sai de déu em déu a
me buscar”), o movimento que era direto e linear é realizado agora aos poucos, por
etapas. Atenuando um movimento brusco demais (remissivo) que poderia “assustar” e
promover reações, segue imediatamente um movimento mais sutil, programado,
fazendo com que o deslocamento da melodia ocorra de maneira desacelerada, às
arrecuas (emissivo).
Nota-se que toda a canção é construída exclusivamente com terminações
descendentes. Esse procedimento ajuda a colocar a melodia “no chão”. Aliado ao efeito
passionalizante produzido pelo andamento lento, constrói-se a imagem de um sujeito
que está no controle da situação. Não aqui uma espera desesperada como em “Eu te
amo”, em que quase todos os tonemas são ascendentes. Ao contrário desta, em “A ostra
e o vento” o desejo não é o de durar, mas sim o de terminar.
A canção é o resultado da ação de todos esses mecanismos verbais e musicais de
produção de sentido. Temos aqui um sujeito que se encontra na encruzilhada de dois
contratos estruturalmente diferentes. Se a menina ainda está ligada ao pai, existe um
laço de continuidade que os une. No entanto, a natureza desse contrato é modulada por
rupturas: associada à figura do pêndulo, sua manutenção depende da interrupção
incessante do movimento contínuo para a manutenção do movimento. De fato, o
pêndulo pode se movimentar indefinidamente (contínuo), mas sempre restrito à sua
amplitude, pois ele precisa parar e reiniciar o movimento no lado oposto. Isso está
perfeitamente figurativizado no perfil melódico em formato de onda: a curva ascendente
Três análises 244
___________________________________________________________________________________
é interrompida (remissivo) e inicia sua queda. O movimento descendente é então
interrompido, e a melodia reinicia a subida. Da reiteração do remissivo, nasce o
contínuo, emissivo.
O contrato com o namorado é diferente: ele é um contínuo puro, sem a atuação
do remissivo. Ele responde plenamente pelos valores do “sempre” e do “nunca”. É a
força capaz de quebrar o eterno retorno do movimento pendular e assim produzir a
transformação tão bem figurativizada pela modulação final.
Considerações finais 245
___________________________________________________________________________________
9. Considerações finais
A análise segundo o modelo de Tatit prioriza aquilo que chamamos de perfil
melódico. Perfil melódico não é exatamente o mesmo que melodia. Uma melodia tem
um andamento definido, notas definidas dentro do sistema em que se inserem, durações
definidas como subdivisões do andamento. Cada uma de suas notas tem timbre e
intensidade. O perfil melódico é construído tendo em mente apenas o andamento, as
durações relativas entre suas notas, e os intervalos que são também posições relativas
de suas notas. É por isso que Tatit optou por não colocar o nome das notas nos
diagramas que ele utiliza para fazer as transcrições, nem as figuras rítmicas que cada
nota ocupa. Em seu modelo, não diferença pertinente entre um perfil começando em
2 ou 5. O modelo se preocupa em saber se a segunda nota da seqüência é mais
aguda ou mais grave, e qual é a amplitude relativa desta distância (o que permite
diferenciar um salto intervalar de um grau imediato). Da mesma maneira, não importa
se uma nota dura o dobro ou o triplo da anterior. Interessa se houve ou não um
alongamento vocálico, contrastando com os ataques consonantais. Em suas análises, não
existe uma ênfase específica na questão harmônica, pois ela também não está
incorporada ao modelo. Surgem apenas referências esporádicas, que mais servem para
confirmar ou realçar algum dado que já havia sido obtido pela análise do perfil.
Estes comentários não representam de forma alguma qualquer tipo de crítica ao
modelo. A não inclusão desta ou aquela informação musical, como as que elencamos
aqui, deve-se seguramente a uma opção analítica. Em um modelo da canção que tem na
fala ao mesmo tempo o seu ponto de partida e a sua contrapartida, estas informações
não seriam pertinentes. O fato de trabalhar com elementos musicais simples não faz
com que o modelo se torne igualmente simples. Muito pelo contrário: a partir dos
Considerações finais 246
___________________________________________________________________________________
elementos musicais mais simples Tatit consegue criar uma teoria mais coesa, mais
profunda e certamente mais científica que a maioria dos estudos e ensaios sobre
significação musical que o antecedem. Em outras palavras: ele consegue falar mais e
melhor a partir de menos.
No entanto, a partir do momento que tentamos aprofundar o modelo para que
ganhe mais profundidade e maior capacidade descritiva, especialmente no campo da
música como é o caso desta tese - encontramos (evidentemente) novas dificuldades.
Estes obstáculos podem ser sintetizados em dois grandes grupos. O primeiro diz
respeito à virtualidade do objeto de análise quando reduzido a um perfil melódico.
Quando o modelo analisa, por exemplo, a canção “Garota de Ipanema”, fazendo o
recorte do seu perfil, ela passa a ser uma “Garota de Ipanema” virtual, poderíamos até
mesmo dizer “genérica”. Ela não começa mais na nota sol3, dó5 ou lá4. Suas notas não
tem mais o timbre cristalino de Gal Costa ou o grave cavernoso de Tom Jobim. Ela não
é nem sussurada como em João Gilberto, nem tem a impostação dada na versão de
Pavarotti. Ela é a “Garota de Ipanema” que cantaríamos distraidamente, a capella, ou
até menos que isso, por que “distraidamente” já é uma maneira específica e não
genérica – de cantar, e a nossa voz já colocaria um timbre.
Para fazer com que o modelo consiga descrever a “Garota de Ipanema” cantada
por João Gilberto, e acompanhada por seu violão, não podemos mais lançar mão apenas
do perfil melódico. Em primeiro lugar, observamos que aquela célula rítmica
estabilizada da “Garota de Ipanema” genérica não existe mais, e que essa nova linha
melódica agora flutua sobre uma base rítmica e harmônica extremamente complexa. Se
a nossa intenção for comparar a versão de João Giberto com a de Gal Costa e sua banda,
para continuar no mesmo exemplo, chegaríamos à conclusão de que se trata de outra
canção. E, na realidade, é mesmo outra canção, pois o tom não é o mesmo, as notas
Considerações finais 247
___________________________________________________________________________________
portanto já não são as mesmas, as durações relativas – e as células rítmicas – não são as
mesmas, os timbres são outros, as intensidades e os pontos de acento são outros, a forma
é outra. Resta em comum apenas o perfil melódico.
O segundo outro grande entrave que encontramos está justamente na relação
entre a fala e o perfil melódico. Para um modelo que toma a canção como sendo uma
“palavra cantada”, e que se opõe portanto à “palavra falada” da linguagem cotidiana, é
evidente que encontraremos muitas interseções entre esse modelo e as teorias todas
elas criadas por lingüistas que fundaram a semiótica. Essa aproximação será
certamente rica, tanto em identidades como em contrastes. Mas como esse modelo
poderá dar conta da batida de violão de João Gilberto? Como ele poderá interpretar a
relação entre a nota cantada e o acorde de base?
Se a canção é uma interseção entre uma arte musical e uma arte verbal, o modelo
que se disponha a descrevê-la deve estar em concordância com os dois campos em que
se apóia. Isso é uma realidade para o componente verbal, pois como já dissemos, o
berço da semiótica é a lingüística. Mas e quanto ao componente musical? O que teria
esse modelo a dizer sobre, por exemplo, uma versão instrumental de “Garota de
Ipanema”? Se tomarmos como exemplo a gravação original de Tom Jobim que
analisamos no capítulo 4, podemos observar nada mais nada menos que seis linhas
melódicas perfeitamente identificáveis, mas que no entanto dialogam entre si o tempo
todo e em diversos graus de profundidade. Em que situação lingüística poderia ocorrer
um fenômeno sequer parecido com esse? Basta presenciar uma cena em que três
pessoas falem ao mesmo tempo para perceber que não é possível sequer reconhecer os
timbres de voz dos falantes. O que dizer de suas falas propriamente ditas?
Acreditamos que não é viável tentar desenvolver a semiótica da canção no
campo da música observando apenas o rigor às teorias lingüísticas. É uma prerrogativa
Considerações finais 248
___________________________________________________________________________________
para o semioticista desenvolver sua teoria em conformidade com os fatos da linguagem
musical, fazendo com que seu modelo possa descrever os fenômenos próprios da
linguagem musical. É nesta linha de raciocínio que acreditamos e, sem dúvida nenhuma,
é nela que esse trabalho poderá encontrar o seu lugar.
Esse trabalho reflete os questionamentos e indagações que surgiram em uma
trajetória que parte do cancional e vai em direção ao musical. Se um poema geralmente
não coloca problemas específicos para uma análise semiótica, o mesmo não pode ser
dito em relação a uma peça instrumental. Podemos colocar a questão dessa maneira:
sem o apoio do verbal, o componente musical de uma canção ainda se estrutura como
uma semiótica? Em outras palavras: a música instrumental constrói sentidos? Em caso
afirmativo, esse sentido pode ser descrito com as ferramentas propostas pela semiótica?
Quais são as especificidades do texto musical, e de que maneira a teoria pode se adaptar
a elas?
Se no início da trajetória essas indagações pareciam obstáculos intransponíveis,
chegamos ao final com a sensação de que o texto musical e seus mecanismos de
produção de sentido - especialmente nos níveis mais profundos - não são tão diferentes
de outras formas de manifestação textual. Dessa maneira, acreditamos que é possível
analisar discursos musicais com as ferramentas já disponíveis, desde que a abordagem
não procure apenas o que a linguagem musical tem de específico, mas que tenha como
ponto de partida justamente aquilo que a música tem em comum com as outras
linguagens.
Embora certamente não exista um único caminho correto, nossos esforços
atuaram no sentido de procurar um caminho possível, mantendo o máximo de
proximidade e coerência com o arcabouço teórico disponível. Ao diferenciar os limites
entre o discurso musical e o discurso de produção musical, evitamos a especulação
Considerações finais 249
___________________________________________________________________________________
sobre as condições de produção do texto musical. E, assim como a música, verificamos
que toda produção textual também tem seu próprio discurso de produção.
Ao enfatizar a necessidade de considerar a relação entre expressão e conteúdo na
análise musical, trouxemos o texto musical para dentro de uma prática semiótica
condizente com os alicerces da teoria. Uma vez que a aproximação se mostrou possível,
verificamos o enorme grau de pertinência dos modelos propostos por Zilberberg, e
pudemos atestar o seu rendimento em análises práticas.
Com a análise da atuação do timbre tanto no plano da expressão quanto no plano
do conteúdo mostramos que a música, assim como qualquer manifestação textual,
também é capaz de convocar figuras do mundo e com isso colocar valores em
circulação. A partir daí foi possível verificar a narrativização das estruturas musicais, e
a atuação de elementos rítmicos e harmônicos na construção – e dissolução – de
contratos fiduciários.
Queremos ressaltar por fim que, ao longo do exame de tantos exemplos,
pudemos acima de tudo atestar a grandiosidade e riqueza da obra de Chico Buarque,
assim como sua habilidade em articular todos os elementos musicais e verbais na
produção de canções complexas e eficazes.
Referências Bibliográficas 250
___________________________________________________________________________________
10. Referências Bibliográficas
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