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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
ELIZIO JORGE ELUAN JUNIOR
DRÁCULA TRANSMUTADO:
ESTUDOS SOBRE TRADUÇÃO E INVENTIVIDADE ESTÉTICA
Florianópolis
2009
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ELIZIO JORGE ELUAN JUNIOR
DRÁCULA TRANSMUTADO:
ESTUDOS SOBRE TRADUÇÃO E INVENTIVIDADE ESTÉTICA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências
da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina,
como requisito para obtenção do título de Mestre em
Ciências da Linguagem.
Orientador: Prof. Dr. Fernando Simão Vugman
Co-Orientador: Prof. Dr. Aldo Litaiff
Florianópolis
2009
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Com a Stela divido a vida, o prato, o copo, a casa,
o carro, dois empregos, este mestrado e o meu
mundo. Esta dissertação é para ela.
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AGRADECIMENTOS
Muitos ajudaram neste trabalho, às vezes sem saber.
Agradeço primeiro a meus pais, Elizio Eluan e Adelaide Eluan, que estão
presentes em meus pensamentos a cada movimento.
À Stela, a melhor parte de mim, sem a qual não teria o equilíbrio para chegar a um
mestrado.
À Maitê Honda Eluan, que ainda nem tinha chegado quando concluí este
mestrado, mas, quando puder entender o mundo, vai saber que já tinha iluminado nossas vidas
antes mesmo de nascer.
Aos irmãos, primos, primas, tios, tias, cunhadas, sogro, sogra, toda a família e
amigos de Belém. A distância às vezes acaba aproximando.
Às pessoas que considero minha família em Florianópolis: Kiko Silva, Carla
Lourenço, Nelson Baibichi e Elóy Simões. Me abriram portas e amizades em Santa Catarina!
Deram bases a mim e Stela.
A todos da Unisul, colegas, professores, Fernando e Aldo. Em especial ao imortal
Solange Rech, que já era mestre há muito tempo.
Um bocado de todos está aqui.
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RESUMO
O termo tradução intersemiótica foi cunhado por Roman Jacobson para classificar aquele tipo
de tradução que se faz de um meio para outro. Encaixa-se neste conceito, por exemplo, a
adaptação de uma obra literária para o cinema. No desenvolvimento de obra homônima, Julio
Plaza chega a afirmar que o processo de tradução intersemiótica, aplicada à produção estética,
é um processo de transmutação sígnica, de recriação. Este tipo de tradução, portanto, admite a
possibilidade de uma determinada inventividade estar declaradamente ligada a outra anterior.
Tal admissão é recorrente no atual momento da produção estética, muitas vezes chamado de
pós-modernismo, que se contrapõe ao período modernista anterior, que buscava desligar-se de
toda a produção do passado. Com a motivação de entender melhor o processo criativo
humano e o que se chama de pós-modernidade, a presente dissertação estuda a ressonância de
vozes de outros autores em uma produção estética, seja esta produção uma adaptação fílmica
de uma obra literária, seja ela uma produção não intencionalmente ligada a outra, comparando
ambos os casos. Como antigos textos são reinscritos em uma “nova” textualidade? Como os
signos de uma determinada cultura se cruzam? Para atingir tais objetivos usaremos como
corpus o livro Drácula e o filme Drácula de Bram Stoker, fazendo uma análise de conteúdo
de ambos. Serão estudados os conceitos sobre pós-modernismo, linguagem, estética, escritura,
inventividade, além da própria tradução intersemiótica. Para isso, utilizaremos fortemente a
semiótica e teorias pós-estruturalistas da linguagem encontradas em autores como Plaza,
Peirce, Barthes, Derrida, Foucault, dentre outros.
Palavras-chave: Adaptação. Criatividade. Drácula. Pós-Modernismo. Semiótica.
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ABSTRACT
The phrase intersemiotic translation was coined by Roman Jacobson in order to
classify that kind of translation, which is made from one medium to another. Such a concept
includes, for instance, the adaptation of a literary work to film. In his book Tradução
intersemiótica, Julio Plaza claims that the process o intersemiotic translation, when applied to
aesthetic production, is a process of signic transmutation, of recreation. Thus, such a type or
translation admits the possibility of a certain inventivity to be openly connected to a previous
work. Such an admission is recurrent in the contemporary aesthetic production, many times
called postmodernism, and which opposes the modernist period, in which the move was to
leave behind all of the past aesthetic production. To better understand the creative process, as
well as what has come to be known as postmodernity, the present thesis studies the resonance
of voices from other authors in an aesthetic production, be it a filmic adaptation from a
literary work, be it a production with no declared intention to adapt a previous work, and
compares both situations. An attempt is made to understand how old texts are reinscribed in a
“new” text, and how signs from a certain culture cross with each other. In order to achieve
those goals, an analysis is made of the novel Dracula and of the film Bram Stoker’s Dracula.
The theoretical frame employed here is constituted by the notions of modernism, language,
aesthetics, writing, inventivity and our main concept, intersemiotic translation. Strong support
comes from semiotics and the poststructuralist theories on language, as those advanced by
authors like Julio Plaza, Pierce, Ronda Barthes, Jacques Derrida, Foucault, among others.
Key words: Adaptation. Creativity. Dracula. Postmodernism. Semiotics.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO: NASCIMENTO .............................................................8
2 TRANSMUTAÇÃO ....................................................................................14
2.1 REESCRITURA E PÓS-MODERNIDADE.................................................14
2.2 SIGNO ESTÉTICO .......................................................................................22
2.2.1 Poder da Linguagem ...............................................................................22
2.2.2 Característica do Signo Estético.............................................................27
2.3 LITERATURA E CINEMA..........................................................................32
2.4 CRIAÇÃO E TRANSMUTAÇÃO ...............................................................40
2.4.1 Inventividade Estética.............................................................................41
2.4.2 Tradução e Transformação....................................................................46
3 DRÁCULA...................................................................................................60
3.1 UM MITO TRANSFORMADO ...................................................................60
3.2 O AMOR DE COPPOLA E O MONSTRO DE STOKER...........................71
4 CONCLUSÃO: IMORTALIDADE...........................................................82
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................87
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1 INTRODUÇÃO - NASCIMENTO
Naquela chuvosa noite de verão de1816, nas proximidades de Genebra, o Dr. John
Polidori encontrava-se numa situação não muito confortável. Depois de ouvir diversos contos
de terror na presença de três amigos, deveria participar de um desafio com propósito peculiar:
criar uma história de fantasmas. Dentre os participantes, o poeta britânico Lord Byron, o
escritor Percy Bysshe Shelley e sua jovem esposa, Mary Shelley. Polidori era um médico.
Portanto, não se tratava de tarefa fácil para alguém que passara a vida mergulhado em
cientificismos e curiosidades da literatura farmacológica e medicinal. Ainda mais se soubesse
que, naquele verão, Mary Shelley criaria o conto que seria o embrião para o seu famoso
Frankenstein. Segundo os relatos da própria autora, no prefácio de sua obra prima, John
Polidori não se saiu bem daquele desafio na Suíça: “Pobre Polidori! Ele concebeu qualquer
coisa sobre uma mulher que tinha por cabeça uma caveira, e que fora assim castigada por
haver espiado por um buraco na fechadura – esqueci-me para ver o quê.” (SHELLEY, 2007,
p. 15)
Mas Polidori tinha suas cartas. Era amigo íntimo de Lord Byron e conhecia um
conto não publicado do poeta (MELTON, 2008). Além disso, a literatura médica daquela
época tinha incursões pelo sobrenatural, o que particularmente enchia Polidori de interesse.
Depois daquele fatídico verão, o doutor resolveu remodelar uma antiga criação de Lord
Byron. Nela, acrescentou saberes que circulavam no meio científico europeu. Escritos sobre
um mal que, à época, vagava entre a lenda e o real. Um mal chamado vampirismo.
John Polidori, talvez tardiamente, conseguira cumprir de forma competente o
desafio daquele verão de 1816. Com estas referências, criou um conto chamado O Vampiro,
que passou a ser considerado o primeiro conto moderno sobre vampirismo escrito na língua
inglesa. O Vampiro ainda serviu de inspiração para a criação do mais famoso romance sobre
vampiros até hoje escrito: Drácula, do irlandês Bram Stoker. O romance, por sua vez, já
rendeu diversas adaptações para o cinema. Uma delas, Drácula de Bram Stoker, de Francis
Ford Coppola, é considerada a versão fílmica mais próxima do livro.
Tal curioso acontecimento, descrito nas rápidas linhas acima e que será
aprofundado no decorrer deste trabalho, ilustra de forma extremamente resumida uma rede de
signos à qual está ligada uma obra estética: o conto O Vampiro foi montado a partir de
influências byronianas e referenciado por lendas e relatos sobre vampirismo que circulavam
no meio médico; anos depois, O Vampiro, assim como Frankenstein de Mary Shelley, serviu
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como inspiração para Bram Stoker criar seu Drácula. Drácula, por sua vez, foi traduzido para
a forma filmica por diversos diretores ao longo de mais de um século, além de ser referência
para diversas outras obras sobre vampiros, inscritas em diferentes meios. Não há dúvidas de
que a linha de referências descritas aqui não condiz com a riqueza do processo criativo de
cada obra citada. No entanto, propõe-se aqui delimitar o estudo da criatividade estética dentro
dos aspectos reverenciados pelos estudos da linguagem e no que diz respeito ao
entrecruzamento de textos no processo de produção de um novo texto. Este entrecruzar de
falas é rico, e muitas vezes deixa marcas, permitindo-nos identificar, de forma mais ou menos
explícita, as vozes de outros autores dentro de uma determinada autoria. E quando estas
marcas se deixam perceber de forma mais explícita, é possível vislumbrar o que Julio Plaza e
Roman Jacobson chamam de tradução intersemiótica. Descrevendo de forma resumida, trata-
se do processo de transformar, de um meio para outro, um determinado conteúdo - uma
estratégia criativa muito percebida nos casos de adaptação de um livro para o cinema, por
exemplo. No entanto, é possível perceber que o próprio entrecruzamento de textos, a que toda
obra estética é submetida no momento de sua produção, traz em si uma certa transformação
signica processada pelo autor. Se pensarmos assim, não só Francis Ford Coppola transmutou
para o cinema americano do final do século XX o livro Drácula, como Bram Stoker
transmutou para a literatura britânica do século XIX uma série de saberes sobre vampirismo,
espalhados em outros meios e também presente na própria literatura.
Usa-se aqui o termo transmutar como sinônimo de tradução intersemiótica.
Porém, se respeitarmos a acepção do termo tradução intersemiótica, forjado por Jacobson e
desenvolvida em obra homônima de Julio Plaza, ela se aplica com maior precisão ao caso da
adaptação do livro para o cinema, em que se tem uma tradução clara e intencional intermeios,
intersemiótica. No entanto, o termo tradução nos remete, pelo hábito de uso deste termo
vinculado à lógica da fidelidade da tradução interlingual, a uma “transferência de conteúdo”,
“substituição”, num processo que pré-entende uma ligação forte entre tradução e traduzido.
Mais que isso, propõe-se nesta dissertação estudar a infinidade de textos transformados pelo
autor para construir sua obra, seja em uma adaptação fílmica ou não. Inclusive textos do
mesmo meio. O próprio Julio Plaza usou o termo transmutação para explicar o processo da
tradução intersemiótica. Portanto, o transmutar nos parece mais abrangente por trazer em si
um aspecto de transformar criativamente, livremente, ao ponto de podermos obter, em um
processo de transmutação, um objeto resultado completamente distinto dos objetos de origem.
Assim como uma certa quantidade de barro natural transformado em vaso de cerâmica, ou um
vampiro transformado em morcego. Mas também esta transmutação pode manter
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semelhanças, como a água transformada em gelo. O transmutar, portanto, nos parece que
abrange tanto o traduzir quanto o inventar, daí o título desta dissertação.
Quem trabalha seriamente com qualquer tipo de criação estética tem certamente a
preocupação de produzir algo de fato “inédito”. Mas sabe também que todo processo de
criação requer o uso de algo já preexistente: não há como criar do nada, diz o senso comum.
“Parodiando Sancho Pança, tudo deve ter um início; e esse início deve estar ligado a algo que
já existiu” (SHELLEY, 2007, p. 16), diz Mary Shelley. Ficamos hoje mais confortáveis em
confirmar este tipo de afirmação do que ficaríamos, talvez, se vivêssemos no auge do
movimento modernista, em que havia um compromisso sagaz em buscar o novo, em achar o
inusitado, romper o figurativo, desatar as linguagens dos hábitos até então praticados na
história das artes. Hoje, dentro do que alguns chamam de pós-modernismo, é possível falar-se
à vontade do uso de outras criações em proveito de uma criação nova. Às vezes até de forma
muito explícita, pois a atual produção estética admite, sem prejuízos ou constrangimentos por
parte do criador, a citação e o uso intencional, dentro dos parâmetros legais de direitos
autorais, de obras de outros autores: daí as adaptações de livros para o cinema, remakes de
antigas filmagens, novos arranjos para antigas músicas, trechos de canções usadas em novas
composições, etc.
A presente dissertação é motivada pelas perguntas e reflexões acumuladas durante
16 anos de trabalho dentro da criação publicitária. Este tipo de criação estética tem a peculiar
prática de se alimentar de outros discursos considerados mais nobres, como cinema, literatura,
artes plásticas, escultura, música, etc. Muitas vezes percebe-se que, dentro do dia-a-dia de um
departamento de criação, busca-se criatividade através da tradução, para uma linguagem
mercadológica, de diversos saberes acumulados dentro de uma cultura. O tempo todo se está,
na linguagem publicitária, transformando coisas de um meio para outro: traduzem-se as
necessidades do anunciante para um determinado público consumidor; transforma-se um
estilo de pintura para um anúncio de sandálias; adapta-se o discurso do cinema de terror para
um comercial de carro; inspira-se num poema para construir o texto de um anúncio; transpõe-
se um determinado conteúdo para diferentes mídias como outdoor, TV, rádio e revista, enfim:
a publicidade é, devido às necessidades de seu ritmo de trabalho e sua própria função na
lógica social, um espaço onde se lida bastante com transformação de conteúdo, muitas vezes
com citações explícitas de outras criações produzidas em outras linguagens, em favor de
novas criações.
É possível afirmar que outros campos estéticos, mais artisticamente consagrados,
também fazem uso, em seu processo criativo, de signos anteriores. E este é ponto central da
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presente dissertação. Um ponto que é um aprofundamento das questões levantadas na
monografia de especialização escrita em 2005, intitulada Drácula: o espírito do livro num
corpo de cinema. Estudos sobre tradução intersemiótica. Na ocasião, foi estudado o processo
de adaptação do livro Drácula para o cinema. Ali se percebeu que a tradução intersemiótica,
que se faz de um livro para o cinema, não é uma simples transferência de conteúdo de um
meio para outro, mas uma recriação, uma transmutação sígnica. Portanto, por mais ligada que
esteja a uma obra anterior, a adaptação fílmica pode ser considerada, em certa medida, como
uma nova criação. Nova, apesar de recíproca ao livro. O filme adaptado trava diálogo com a
sua própria época; tem compromissos com o meio onde é inscrito e não com uma fidelidade
irrestrita ao livro. Os signos literários são transmutados para signos fílmicos, de acordo com a
liberdade interpretativa dos autores do filme. Retomaremos este mesmo estudo aqui, nesta
dissertação. Porém, o presente trabalho procura respostas para uma pergunta que é
conseqüência das conclusões daquela monografia: consideremos que uma tradução
cinematográfica de um livro, fora das utopias da fidelidade literária, possa ser considerada
como uma recriação. Com base nisso, uma criação “livre”, que não seja uma adaptação
declarada de outra obra, a partir do momento que usa necessariamente signos anteriores, pode
ser vista como tradução destes signos para uma nova materialidade estética? Em que difere
uma criação ligada intencionalmente a outro texto de uma criação “livre”?
Não se pretende aqui discutir a legislação sobre os direitos de uso de um conteúdo
de um autor por outro. Quando se considera aqui o uso declarado de citação de outros autores,
como no caso de Coppola em relação a Stoker, supõe-se apenas os casos ética e legalmente
resolvidos pelas entidades jurídicas competentes. A discussão travada aqui é puramente no
âmbito da linguagem, levando em consideração a hipótese de que toda criação estética
mantém, em certa medida, uma ligação com estruturas de linguagem anteriormente já
produzidas e presentes de alguma forma na capacidade criativa do autor.
É possível afirmar que um signo, criado pelo homem, tem forte ligação com as
coisas, com o mundo real que rodeia o indivíduo autor da invenção. Mas sabemos também
que este indivíduo é formado por leituras de outros signos já criados por outros que vieram
anteriormente. O interesse desta dissertação é entender como antigos textos sobrevivem
dentro de um novo texto, como dialogam entre si. Como signos já produzidos anteriormente
pela cultura são transformados por um indivíduo autor para criar uma “nova” obra? Como
textos inscritos em um passado sobrevivem no presente dentro de um novo texto? A
importância desta problemática está na inevitável contradição que as perguntas trazem: se
uma inventividade estética dialoga necessariamente com a produção do passado, muitas vezes
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explicitamente e intencionalmente, como pode esta inventividade ser “inédita”, “nova” e não
ser uma cópia, um plágio? Nesse sentido, considerando o “novo” e o “inédito” como uma
utopia, trataremos estes termos sempre entre aspas, já que o pensamento aqui delineado
considera este “novo” como sendo ligado necessariamente, e em alguma medida, ao já
existente. Porém, para nos referirmos a efeitos de renovação que a produção de um autor
possa a vir inferir sobre uma leitura, usaremos o termo “efeito de novidade”. Este termo é
usado relativizando a necessária menção ao que possa ser considerado como inovação, já que
esta novidade depende de infinitos fatores dentro da atividade de leitura de um signo estético.
Daí o termo efeito, pois a novidade aqui não é tratada como uma verdade, mas como uma
possibilidade.
É importante também esclarecer sobre a escolha do corpus para este trabalho.
Drácula está sendo usado para esta dissertação não por um juízo de valor da obra, nem tão
pouco por um apego à cultura européia ou mesmo por uma defesa ao gênero terror na
literatura e cinema. Além de se tratar de um escrito clássico e de referência universal para a
produção estética, a história da sobrevivência da fábula de Drácula na cultura ocidental nos dá
um caso exemplar para os propósitos deste trabalho. Em primeiro lugar, Drácula é uma obra
literária, a princípio, não ligada intencionalmente a nenhuma outra obra anterior. Pode ser
considerado, então, um livro inédito no momento de sua publicação, mas no qual podemos
trilhar possibilidades de referências a textos anteriores presentes em sua produção, como o
conto de John Polidori, já citado aqui. Em segundo, Drácula foi uma das obras mais
adaptadas para outros meios na história da cultura ocidental. Portanto, é possível, através de
Drácula, comparar um signo estético não intencionalmente ligado a outro anterior e um signo
adaptado intencionalmente de um segundo. Em se tratando de adaptação, teremos a
oportunidade de perceber como a história do Conde foi traduzida pelo cinema para diferentes
épocas, desde os anos vinte até os anos noventa. Mas nos deteremos com mais atenção na
adaptação de Francis Ford Coppola – Drácula de Bram Stoker, por ser ela a versão
cinematográfica considerada a mais próxima do livro. O que ela pode ter trazido como efeito
de novidade para os anos noventa já que ela se mostra tão “fiel” a uma fábula escrita dentro
de um contexto tão distante, a saber, 1897?
No intuito de encontrar caminhos para atingir os objetivos deste estudo, usaremos
como ferramenta principal as escolas estruturalista e pós-estruturalista do estudo da
linguagem. Para compreender o signo estético e sua transformação no processo de criação e
adaptação de um meio para outro, faremos uso das ferramentas da semiótica de Charles
Sanders Peirce e da semiologia de Roland Barthes em pontos em que as duas escolas se
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tocam, além das idéias sobre tradução intersemiótica de Julio Plaza. Também usaremos Peirce
para o entendimento de como a linguagem acontece no ser humano. Para isso, ainda
contaremos com autores como Steven Pinker, representando de forma mais acentuada a escola
gerativista, e Rudolf Arnheim, da gestalt. Para noções de ressignificação de uma escrita
dentro de um hiato de tempo, filosofia da linguagem e relações entre tradutor e traduzido,
teremos o forte apoio de Jacques Derrida. E para ambientar a prática da reescritura de antigos
textos em um novo texto dentro do que se entende como pós-modernidade, traremos os
pensamentos de Jacques Rancière, Michel Foucault e Frederic Jameson. Além destes já
citados, muitos outros autores estão presentes nesta dissertação.
O Estudo se divide em dois grandes capítulos. O primeiro, intitulado
Transmutação, busca montar o ambiente histórico e teórico do trabalho. Primeiramente, faz-
se quase que uma segunda introdução, com a preocupação de inserir a prática da adaptação
fílmica e do uso do antigo em favor da produção cultural atual dentro do que se chama de pós-
modernismo. Depois se faz um estudo do signo estético, tanto em termos de leitura como de
produção. Posteriormente, estudam-se de forma específica as linguagens da literatura e do
cinema, para depois traçarmos as características da criação “livre” e da criação adaptada,
comparando o que há em comum entre elas e suas diferenças.
O segundo capítulo se detém mais aprofundadamente no corpus proposto. Chama-
se Drácula. No princípio, aborda-se a forma como a idéia do vampiro vem se transformando
desde a cultura oral até suas formas fílmicas, passando pelo livro de Stoker e suas diversas
adaptações para o cinema. Depois se atém ao caso específico de Drácula de Bram Stoker, de
Francis Ford Coppola, procurando responder como a fábula do vampiro da Transilvânia foi
reescrita e ressignificada para o contexto dos anos noventa.
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2 TRANSMUTAÇÃO
2.1 REESCRITURA E PÓS-MODERNIDADE
Uma das grandes questões teórico-filosóficas da contemporaneidade diz respeito à
busca de uma identidade e delimitação classificatória para a própria atualidade. Alguns
teóricos percebem diferenças da atual produção filosófica, estética, política e social em
relação ao que se fazia até aproximadamente a Segunda Guerra Mundial, o que se pode
identificar como uma certa ruptura “muito freqüentemente relacionada com o atenuamento ou
extinção (ou repúdio ideológico ou estético) do centenário movimento moderno”(JAMESON,
2000, p. 27). Mas o próprio marco histórico é incerto e frágil, assim como as marcas dessas
diferenças, pois ainda nos parecem tão próximas no tempo que não ganharam a distância e o
conseqüente foco no olhar crítico necessários para identificar suas nuanças.
Muitos chamam este atual momento de pós-modernidade, diferenciando-o do que
antes era declarado como modernidade. As bases das diferenças destes dois momentos
residem, segundo Frederic Jameson, nas relações atuais de domínio das estruturas capitalistas
por parte das grandes nações dentro das sociedades. Uma fase que, baseado nas formulações
de Ernest Mendel, economista belga de linha marxista, chama de “capitalismo tardio”. Para
Jameson (2000), as relações mercadológicas, que podem ser verificadas desde o âmbito entre
nações até as leis de mercado que regem uma pequena cidade brasileira, ultrapassaram o nível
do colonialismo mercantil e industrial. O capitalismo tardio se caracteriza pela invasão das
idéias, da forma de pensar, se caracteriza pela persuasão, pela “imposição” ideológica de um
estilo de vida; este “domínio” capitalista trabalha muito mais na escala mental do que na
meramente mercadológica.
Segundo Jameson, este modelo político-econômico-cultural - que vivemos mais
ou menos desde os anos 60 – seria o ápice do capitalismo, sua forma mais evoluída. Seu
expansionismo mundializa não só as relações de trabalho e produção, mas também a
consciência. Nesse sentido, certa produção cultural de nossa época (grande parte dos livros,
filmes, revistas, programas de televisão, arquitetura, propaganda, etc.) traz uma carga
ideológica em suas mensagens que reflete o domínio de uma lógica de mercado, de consumo,
fortemente atrelada às grandes potências ocidentais, mais notadamente aos EUA. Tal ótica
encontra vários desdobramentos na cultura, refletidos na estética contemporânea.
15
A produção artística deste período chamado de pós-moderno concentra
características próprias identificáveis, mesmo que não seja possível alcançar uma definição do
pós-moderno listando-as. É possível percebê-las mais nitidamente se comparadas a
características do período anterior, que valorizava o novo, o inusitado, o algo antes nunca
produzido, pertencentes ao que se entende como modernidade, que atingiu seu ápice
experimentalista no pós-guerra. Como nos fala Jameson,
o expressionismo abstrato em pintura, o existencialismo em filosofia, as formas
derradeiras da representação no romance, os filmes dos grandes auteurs ou a escola
modernista na poesia (...) são agora vistos como a extraordinária floração final do
impulso do alto modernismo que se desgasta e se exaure com essas obras
(JAMESON, 2000, p. 27).
O que era antes quebra de código na modernidade, entende-se que na pós-
modernidade virou o próprio código. O que se percebe na produção atual, ao invés da busca
pelo novo, é a reescritura de antigos textos, o respeito pela produção passada, a
reconfiguração de velhos códigos, a citação de conteúdos anteriores para formar novos textos,
a mistura de estilos e linguagens. Tais características, por mais experimentais que ainda
sejam, levam alguns teóricos a perceberem tal tipo de produção como rasa, sem o conteúdo e
sem o engajamento político e social que tinha a modernidade.
O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção das
mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries
de produtos que cada vez mais pareçam novidades (...), com um ritmo turn over
cada vez maior, atribui uma posição e uma função estrutural cada vez mais
essenciais à inovação estética e ao experimentalismo (JAMESON, 2000, p. 30).
Jameson identifica, em certas idéias do pós-estruturalismo francês – que teve
grande influência na cena intelectual nos anos 60 e 70, ápice da vanguarda modernista –, um
reflexo do que mais tarde se identificaria como produção pós-moderna. Uma dessas idéias é a
de que não deveríamos fazer uma leitura hermenêutica dos textos. Ou seja, não devemos
buscar uma relação entre motivações pessoais do autor e os textos produzidos por ele;
segundo esta forma de perceber a leitura, não haveria um significado por trás do texto, mas na
sua própria configuração, em sua superfície, em seu modo de se apresentar ao leitor. Jameson
vê então de forma um tanto negativa esta “superficialidade” no discurso pós-moderno,
expressa assim por teóricos como Michael Foucault:
Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão:
ela se basta a si mesma, e, por conseqüência, não está obrigada à forma da
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interioridade; ela se identifica com sua própria exterioridade desdobrada. O que quer
dizer que ela é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado
do que pela própria natureza do significante. (FOUCAULT, 2001, p. 268)
Segundo estes teóricos chamados de pós-estruturalistas, tudo o que tivermos que
ler no texto está em sua superfície. Não deve haver um sentido oculto por trás, que o crítico
ou leitor deva descobrir. Mas, na visão de Jameson, a cultura pós-moderna suprimiu
completamente o sujeito do texto, nos levando a uma superficialidade não por opção teórica,
mas por realmente não ter em si uma profundidade, uma significação a se buscar.
Comparando a pintura modernista Um Par de Botas de Van Gogh e a dita pós-modernista
Diamond Dust Shoes de Andy Warhol, comenta que os sapatos de Warhol, “evidentemente,
não nos falam com a mesma imediatidade dos sapatos de Van Gogh; de fato, sinto-me tentado
a afirmar que não nos dizem absolutamente nada.” (JAMESON, 2000, p. 35). Em Van Gogh
seria possível identificar, nos traços da pintura, na forma como foram retratados os sapatos, a
própria origem humilde e camponesa do autor, um certo significado de luta e superação. Para
Jameson, essa profundidade de leitura é impossível em Warhol.
Este “vazio” da pós-modernidade identificado por Jameson é analisado por
Foucault como um fenômeno da própria alta modernidade. Em As Palavras e as Coisas,
publicado em 1966, o filósofo francês identifica que a produção moderna descola o signo das
coisas. A similitude, antes valorizada pela Renascença, é quebrada pela modernidade. Se no
século XVI o signo buscava dar conta da natureza, representá-la, assemelhar-se a ela, na
modernidade o signo rompe seu tratado de semelhança com as coisas e passa a jogar com
outros signos. Porém, apesar de Foucault apontar esta característica como um sinal da
modernidade, identifica que, já no século XVII, Miguel de Cervantes adiantara esta quebra:
Dom Quixote teria sido a primeira grande obra moderna. “Dom Quixote desenha o negativo
do mundo do Renascimento; a escrita cessou de ser a prosa do mundo; as semelhanças e os
signos romperam sua antiga aliança; (...) as palavras erram ao acaso, sem conteúdo, sem
semelhança para preenchê-las” (FOUCAULT, 1999, p. 65) – daí, talvez, a sensação de vazio
de Jameson.
Mas Dom Quixote era o resultado do cansaço de um certo estilo de literatura: a de
cavalaria. O livro Dom Quixote era uma referência irônica a tal literatura e, depois, uma
referência irônica ao próprio romance Dom Quixote - o livro se dobra sobre o próprio livro. A
primeira parte é narrada como se Cervantes houvesse recebido esta história de outra pessoa
que “conhecera de fato” Dom Quixote, um fidalgo “louco” que achava que era cavaleiro.
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Vale-se, portanto, da realidade – do suposto fato de alguém ter realmente relatado os
acontecimentos – para fazer um falso romance de cavalaria, satirizando tal estilo.
“Na segunda parte do romance, Dom Quixote reencontra personagens que leram a
primeira parte do texto e que o reconhecem, a ele, homem real, como o herói do
livro. (...) A primeira parte das aventuras desempenha na segunda o papel que
assumiam no início os romances de cavalaria”. (FOUCAULT, 1999, p. 66)
Mais adiante, Foucault complementa que “a verdade de Dom Quixote não está na
relação das palavras com o mundo, mas nessa tênue e constante relação que as marcas verbais
tecem de si para si mesmas” (FOUCAULT, 1999, p. 66/67). Portanto, se em Cervantes
aconteceu esta quebra da ligação de similitude das palavras com as coisas, levando os signos a
se ligarem com outros signos do passado devido a um “cansaço” de um estilo estético
específico (a literatura de cavalaria), o que aconteceria se o avanço tecnológico e de
distribuição de informação cansasse grande parte do fazer estético, dos estilos, dos signos?
Talvez esta seja a resposta que Foucault dá, em As Palavras e as Coisas, para explicar as
características do que considera modernidade, e que Jameson chama, num primeiro momento
de “alta-modernidade”, que se transformou em “pós-modernidade”.
Esses estilos, textos, linguagens modernos, que em outros momentos eram usados
como inovação por autores de vanguarda – somados a outros elementos estilísticos
pertencentes a diversos outros movimentos artísticos de outras épocas - formam uma cadeia
de referências que podem ser relidos, reciclando para o tempo atual a forma como líamos o
mundo em outros momentos. Uma bricolagem de discursos, imagens e representações já
produzidas anteriormente que voltam na pós-modernidade. Se antes os signos eram ligados à
natureza, na pós-modernidade são ligados a outros signos, muitas vezes sem a preocupação
com os significados de origem deles. Jameson (2000) chamou esta característica de lógica do
simulacro, lembrando a teoria de Platão: a pós-modernidade, dentro de sua caverna de
mercado, enxerga muito mais as imagens do que exatamente uma realidade. Seguindo esta
visão de Jameson, podemos citar o termo “Big Brother” como um exemplo atual. Se nos anos
quarenta George Orwell, em seu romance 1984, previa uma sociedade governada por um
poder regulador extremo - onde todos os movimentos dos cidadãos seriam vigiados por
câmeras e outros aparatos tecnológicos -, se naquela época ele já denunciava o perigo de tal
poder denominando-o de Big Brother, hoje a expressão é usada para batizar um programa de
entretenimento distribuído para dezenas de países no mundo. O termo Big Brother perdeu sua
razão primeira de denúncia, sua “origem”, seu conteúdo primeiro, ficando apenas uma
18
imagem “superficial”, não mais de perigo de uma vigilância extrema e perda de liberdades
individuais, mas de um certo voyeurismo. Da mesma forma, se a imagem de Che Guevara
representava antes uma possibilidade de independência real da América Latina, de revolução,
de luta contra domínios políticos e econômicos norte-americanos, hoje é estampado em
camisetas de diversas grifes vendidas em centenas de redes de varejo pelo mundo e usado por
milhões de pessoas que muitas vezes não conhecem o que foi a revolução cubana. Ou seja,
apenas se aproveitam da imagem da revolução, sem saber o que foi de fato a revolução.
A negação e crítica a esta lógica do simulacro talvez tenha em sua base a busca de
um sentido original de “Big Brother” e de “Che Guevara”, sentido este perdido nas
reutilizações destes termos na pós-modernidade. É uma forma de análise que sente falta de um
sentido central, sente falta de um respeito à origem dos termos e das coisas. Porém, o próprio
movimento moderno já havia rompido esta relação do signo com um significado único no
auge de suas movimentações de vanguarda, em meados do século XX. Jacques Derrida, em A
Estrutura e a Diferença, escrito nos anos sessenta, anunciava que mesmo as ciências humanas
há muito já haviam rompido com este tipo de busca pelo centro estrutural das coisas.
“Na ausência de centro ou de origem, tudo se torna discurso (...), isto é, sistema no
qual o significado central, originário ou transcendental, nunca está absolutamente
presente fora de um sistema de diferenças. A ausência de um significado central
aumenta indefinidamente o jogo da significação” (DERRIDA, 1995, p. 232).
Este apego a uma origem “pura” lembra também as formas de estudo da
linguística anteriores a Ferdinand de Saussure. Neste período, acontecia o que foi classificado
como “erro clássico” por John Lyons.
"Essa abordagem do estudo da língua cultivada pelo classicismo alexandrino
envolvia dois erros fatais de concepção. O primeiro diz respeito à relação entre
língua escrita e falada, e o segundo, à maneira como a língua evolui. Podemos
colocá-los, ambos, dentro do que chamarei o ‘erro clássico’ no estudo da língua."
(LYONS, 1979, p. 9)
Tal abordagem não só dava mais importância à língua escrita e desqualificava
totalmente a falada, como também entendia que as mudanças ocorridas na língua, devido ao
uso cotidiano, eram maléficas. Havia a busca de uma “pureza” lingüística que se acreditava
estar nos antigos textos. O trabalho de uma “arqueologia” lingüística então era bastante
valorizado. Tal abordagem influenciou os estudos da lingüística durante séculos, mas
começou a mudar substancialmente a partir do Curso de Lingüística Geral de Ferdinand de
Saussure, que passa a entender a língua como um organismo que muda através dos hábitos de
fala. A partir de Saussure, portanto, passou-se a estudar a língua muito mais em seus aspectos
sincrônicos - através das relações que os elementos da estrutura mantinham entre si no
19
presente. Além disso, passou a admitir-se como legítimas as mudanças ocorridas na língua
durante o tempo. “A língua é um mecanismo que continua a funcionar, não obstante as
deteriorações que lhe são causadas.” (SAUSSURE, 1977, p. 102). Neste sentido, podemos
sim admitir um novo uso das idéias Big Brother e da imagem de Che Guevara conforme as
necessidades dos usuários dentro de novos hábitos ocorridos em uma nova época.
Apesar dos exemplos acima refletirem uma possibilidade de “vazio” e pouca
qualidade desta produção identificada como pós-moderna, este pessimismo jamesoniano deve
ser levado como generalização de valor das práticas estéticas atuais? A própria característica
de uso de imagens já utilizadas antes, de uso de códigos e estratégias anteriores, signos
ligados a signos, citações, pastiches, reconfigurações de estilos, enfim – releituras do passado
– pode, por si, ser considerada como medida de (falta de) qualidade para a produção pós-
moderna? Talvez isto só aconteça quando usamos nostalgicamente as ferramentas anteriores à
modernidade para julgar produções da modernidade e pós-modernidade, o que não é
apropriado já que a própria natureza estética mudou. Citando Walter Benjamim em seu
consagrado ensaio A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, ao pensar o que
se havia escrito até então sobre se a fotografia era ou não arte: “Muito se escreveu, no
passado, de modo tão sutil como estéril, sobre a questão de saber se a fotografia era ou não
uma arte, sem que se colocasse sequer a questão prévia de saber se a invenção da fotografia
não havia alterado a própria natureza da arte.” (BENJAMIM, 1996, p. 176)
Se a própria natureza do fazer estético mudou, as ferramentas de análise tamm
devem se adaptar ao atual momento. Afinal, se a regra da modernidade era o “novo”,
certamente nem toda a novidade era julgada como boa. Da mesma forma, se a regra da pós-
modernidade é uma certa retomada, não podemos previamente julgar a própria prática da
retomada como sendo, por si mesma, ruim. Regravações de antigas músicas em novos
arranjos, antigos filmes sendo re-produzidos, estilos arquitetônicos misturados, retomada de
velhas linguagens, reuso de padrões estéticos anteriores, tudo isso não pode ser julgado
negativamente pelo fato de ter um processo de significação diferente das obras feitas até o
modernismo, sem a ligação com um centro identificável, uma origem imaculada, abrindo o
sentido para um jogo entre signos, e não mais apenas uma relação de significado entre signo e
natureza. Não queremos aqui entrar em méritos sobre o que é bom ou ruim, ou o que é arte ou
não é. Mas poderíamos dizer que o uso de textos anteriores para produzir um novo texto – e
isto estudaremos no decorrer deste trabalho - é uma prática recorrente da própria produção
inventiva estética, porém colocada em relevo na pós-modernidade progressivamente
acompanhando a evolução dos suportes técnicos. Podemos nos arriscar a dizer ainda que é
20
uma característica decorrente da ampla difusão do passado na crescente evolução das mídias
de massa e por razão do estouro de possibilidades tecnológicas e fluxo de informação dos
tempos atuais. Pode-se talvez afirmar que esta característica entra em relevo na
contemporaneidade porque os atuais processos de divulgação de informação nos deixam mais
próximos do que nunca das imagens do passado, dos estilos e das diversas culturas distantes
de nós no tempo e espaço. São repertórios semânticos à disposição do ato criativo. Talvez este
fato esteja em consonância com a pergunta do antropólogo Clifford Geertz: “como é que as
criações de outros povos podem ser tão próximas a seus criadores e, ao mesmo tempo, tão
profundamente, uma parte de nós?” (GEERTZ, 1999, p. 76) Afinal, ainda segundo Geertz,
nossa própria consciência “é moldada pela impressão que outros têm das coisas e pela
maneira como essas coisas se nos apresentam aqui e agora.” (GEERTZ, 1999, p. 18) Ou seja,
nosso próprio pensamento (e inconsciência) acaba sendo formado por aquilo que lemos de
outros que escreveram antes de nós, sendo que sempre (ou quase sempre) há algo de novo em
cada reescritura do antigo. Estamos obrigatoriamente ligados a esta cadeia de signos do
passado, sendo que por vezes são declaradamente expostos numa nova criação e às vezes eles
não são identificáveis. Parece-nos que esta prática, portanto, é inerente ao poder criativo do
homem.
O uso declarado de discursos anteriores por uma nova criação pode ser entendido como
uma forma de deslocamento de signos que gera uma ressignificação. Um exemplo marcante
desta prática, notadamente considerada como pós-moderna, pode ser encontrado nas obras
pop-artísticas de Andy Warhol. A Pop Arte usava o deslocamento de signos, que tinham uma
funcionalidade em um determinado ambiente, para um contexto artístico. Um estilo
desdobrado do que se chamou de readymade, do qual Marcel Duchamp, com seu mictório, foi
considerado inaugurador. Mas em vez de trazer objetos do cotidiano – um mictório ou um
banquinho com roda de bicicleta – para os salões de arte, como Duchamp fazia, Warhol trazia
signos da indústria de massa: suas telas e instalações levavam às galerias embalagens de
sabão em pó e sopas, imagens de mitos do cinema (personagens interpretados por Elvis
Presley e Marylin Monroe), personagens públicos (como o presidente Kennedy) e diversas
outras referências da indústria de massa deslocados de seus contextos “originais” e
transformados em arte. Os diversos remakes de filmes são outro sinal desta reutilização de
signos – Planeta dos Macacos, O Último dos Moicanos, 11 Homens e um Segredo, etc -, além
das novas versões de músicas antigas executadas por novos interpretes (ou os mesmos até).
Enfim, ao contrário da sede pelo novo - marca da estética modernista - o que se pode entender
21
como pós-modernismo tem a característica de reescrever signos já reconhecidos em outro
contexto ou tempo.
Porém, a crítica de Jameson sobre a pós-modernidade centra-se no fato de que, na
atualidade, estas novas escrituras são feitas de forma superficial e em favor de uma lógica de
domínio de mercado. No entanto, é possível lançar um olhar sobre esta nova produção
levando sim em consideração a própria lógica de mercado, as diversas esferas de poder e a
heterogeneidade das relações coletivas, sem as utopias modernistas de ruptura das artes com o
resto do mundo. Jacques Rancière chega a declarar que esta noção de modernidade foi criada
para “confundir a inteligência das transformações da arte e de suas relações com as outras
esferas da experiência coletiva” (RANCIÈRE, 2005, p. 37).
O modernismo foi uma tentativa de se identificar a arte pura, livre de qualquer
similitude, colocada sobre seus suportes na mais alta independência de seus signos, sem a
obrigação da expressão comunicativa, a arte voltada para si mesma, e para a liberdade de seus
autores, livre de qualquer influência política ou de mercado: a forma estética da revolução
político-social que se pretendia.
O pós-modernismo, num certo sentido, foi apenas o nome com o qual certos artistas
e pensadores tomaram consciência do que tinha sido o modernismo: uma tentativa
desesperada de fundar um ‘próprio da arte’ atando-o a uma teleologia simples da
evolução e da ruptura históricas. (RANCIÈRE, 2005, p. 40)
Para Rancière, a modernidade criou uma “tradição do novo”, uma busca
desenfreada de rompimento com o passado que “reduziria a modernidade artística ao vazio de
sua auto-proclamação” (RANCIÈRE, 2005, p. 35). Porém, a modernidade não seria de fato
uma ruptura com o passado, mas uma nova relação da arte com o antigo. A modernidade, a
qual Rancière chama de “regime estético das artes”, “começou com decisões de
reinterpretação daquilo que a arte faz ou daquilo que a faz ser arte (...). O regime estético das
artes é antes de tudo um novo regime da relação com o antigo.” (RANCIÈRE, 2005, p. 36)
É possível, portanto, sem as utopias modernistas, lançar um olhar para esta
estética contemporânea entendendo que vivemos dentro de um círculo político e de capital
onde todos (inclusive a arte) dependem de pêndulos de poder ditados por diversos e variáveis
fatores. A pós-modernidade pode ser analisada com ferramentas da própria pós-modernidade,
que considera a reescritura do passado como forma legítima de produção no aqui e agora; que
considera a relatividade do poder do autor, influenciado necessariamente por uma rede de
outras autorias que o impulsionam; que não reconhece mais que deve haver um significado
central a ser buscado pelo o signo estético, mas um jogo de significações em que o principal
22
agente é o leitor. “O período da pós-modernidade, caracterizado por uma rejeição às utopias
da vanguarda (...), caracteriza-se também por uma re-corrência da história, pela crítica do
‘novo’, pela recuperação da categoria do público, isto é, por uma ênfase na recepção”
(PLAZA, 2003, p. 206).
A presente dissertação nos dá a oportunidade de estudar uma determinada obra,
típica da pós-modernidade – uma adaptação fílmica de um romance do século XIX, mas
também um “remake” do filme Drácula –, estudando justamente o jogo de signos anteriores
presentes na obra atual, o jogo do passado presentificado numa produção estética, a
transmutação de uma obra literária para um texto fílmico, a reescritura de uma fábula tantas
vezes já escrita anteriormente no cinema e o seu novo impacto no momento de sua exibição
nos anos de 1990. Dentro do que se pensa sobre modernidade e pós-modernidade, nosso foco
para este trabalho reside nas características de retorno do passado e entrecruzamento de
linguagens, típicos deste período e muito presentes na prática da adaptação de livros para o
cinema.
2.2 SIGNO ESTÉTICO
1
2.2.1 Poder da linguagem
Na seção anterior, procurou-se ambientar a prática da adaptação literária para o
cinema, a prática do entrecruzamento de linguagens estéticas e o uso do passado como
possibilidade produtiva no presente dentro de uma lógica estética contemporânea, ao que se
convencionou chamar de pós-modernidade, contrapondo-se ao movimento anterior do
modernismo. Mas também pudemos compreender que a característica da reescritura do
passado e cruzamento de textos não é uma exclusividade de uma época pós-moderna, mas
uma prática identificável na produção estética em geral. Para avançarmos este estudo, faz-se
necessário, portanto, estudar as características do próprio signo estético. Tal estudo está
1
Usamos aqui o termo signo estético para designar a categoria de signos que extrapolam o sentido meramente
informativo de um discurso. Não usamos o termo “signo artístico” por entender que o termo “arte” abrange
questões políticas, econômicas, sociais e históricas que ultrapassam as intenções deste trabalho. Nosso interesse
é estudar a linguagem estética, independentemente de ser classificada como arte ou não.
23
ligado, inicialmente, à qualidade humana de produzir linguagem, comunicar-se, compreender
o mundo e compreender uns aos outros.
A linguagem humana pode ser entendida, grosso modo, como uma capacidade
inter-relacionada de ler os signos do mundo e processar ao mundo outros signos, sejam estes
verbais, pictóricos, gestuais, sonoros, etc. Para isso, o ser humano tem à disposição um
repertório finito de elementos: palavras, cores, sons, formas, dependendo do suporte de que
faz uso. No caso da linguagem verbal, todo idioma, por mais rico que seja, possui uma
quantidade limitada de palavras compartilhada pela comunidade. Se considerarmos ainda a
capacidade de armazenamento da memória de um indivíduo, essa quantidade diminui mais
ainda de pessoa para pessoa. Porém, o que difere o ser humano de um artefato
computadorizado ou robótico é que o cérebro tem a capacidade de produzir sentenças infinitas
a partir deste repertório finito.
O uso infinito de meios finitos distingue o cérebro humano de praticamente todos os
outros mecanismos conhecidos que empregam linguagem artificial – como bonecas
de corda, carros que aporrinham você para que feche a porta e instruções cordiais do
correio de voz (“Aperte a tecla sustenido para mais opções”)-, que usam uma lista
fixa de frases pré-fabricadas. (PINKER, 2002, p. 100)
Esta capacidade humana não é meramente robótica. Não se trata de uma relação
de reprodução entre o que se ouve e o que se diz, uma relação de causa e efeito. Há um poder
de reprocessamento criativo entre o que uma pessoa lê e o que ela produz enquanto
linguagem.
Uma parte do estruturalismo norte-americano, profundamente influenciada pelo
behaviorismo, entendia que um ser humano adquiria a linguagem verbal por meio de
repetição daquilo que seus pais ensinavam - uma mera imitação daquilo que lhe era
estimulado a dizer, uma simples relação de causa e efeito entre o que se ouve e o que se
produz como linguagem. A linguagem, portanto, seria um reflexo mecânico dos estímulos do
ambiente.
Steven Pinker, cognitivista americano discípulo de Chomsky, mostra-nos que os
atuais estudos sobre a linguagem sinalizam que o processo de aprendizagem é muito mais
complexo. É possível entender hoje que as crianças já nascem com uma certa capacidade
criativa de produzir linguagem. O que elas fazem com os pais, mais que imitá-los, é apreender
os hábitos de uma língua, as formas significativas de se expressar, que preenchem
criativamente a sua capacidade biológica inata de produzir linguagem, ininterruptamente,
conforme envelhece.
24
A linguagem é uma habilidade complexa e especializada, que se desenvolve
espontaneamente na criança, sem qualquer esforço consciente ou instrução formal,
que se manifesta sem que se perceba sua lógica subjacente, que é qualitativamente a
mesma em todo o indivíduo, e que difere de capacidades mais gerais de
processamento de informação ou de comportamento inteligente. (PINKER, 2002, p.
9)
Esses estudos trabalham com a constatação de que as diferentes línguas
funcionam sobre o que Chomsky chamou de gramática gerativa. “Segundo Chomsky, existem
várias propriedades formais complexas que são encontradas em todas as línguas” (LYONS,
1979, p. 214). Uma estrutura composta por elementos que se repetem na capacidade produtiva
de diferentes idiomas, como um sujeito e um predicado ligados por um elemento de ação
(verbo), por exemplo. Estes estudos chegam à conclusão de que, desde crianças, temos uma
capacidade criativa de nos comunicar. É como se a linguagem fosse uma espécie de
instrumento biológico próprio do ser humano, instintivo, assim como os movimentos de vôo
indicando onde há mel são uma capacidade comunicativa peculiar a abelha; a plumagem do
pavão, um sinal sexual inerente à espécie; ou a juba do leão, um sinal próprio e natural de
poder e respeito perante sua comunidade. Ou seja, para Pinker e Chomsky, linguagem é mais
que uma atividade intelectual. É um poder instintivo inerente ao homem.
Vemos esta idéia de forma parecida no cognitivista, formado na psicologia da
gestalt, Rudolf Arnheim. Ele procura desmistificar a intuição como um poder divino,
exclusivo a privilegiados artistas que a têm enquanto dom misterioso passado pela
hereditariedade ou por algum deus, sendo, portanto, inacessível pela maioria. Os esforços de
Arnheim (1989) são em direção à possibilidade de a educação considerar a capacidade
intuitiva das pessoas de usá-la em benefício de um melhor aprendizado. Porém, é mais difícil
identificar os mecanismos da intuição em comparação aos do raciocínio lógico, pois a
intuição trabalha em níveis inconscientes. Entendendo a linguagem como um jogo entre o que
se percebe do mundo e o que se produz, é importante, para Arnnheim, entender este processo
de percepção.
O mundo como nos é dado, o mundo que temos como certo não é simplesmente uma
dádiva banal que recebemos por cortesia do meio físico. É o produto de operações
complexas ocorridas no sistema nervoso do observador, abaixo do limiar da
consciência. (ARNHEIM, 1989, p. 18)
Acrescenta ainda que “o conhecimento do meio ambiente e a orientação dentro do
mesmo começam com a exploração intuitiva do que nos é dado perceptivamente.” Mas a
25
atividade mental não é um mero reflexo de estímulos que vêm de fora. A atividade de
percepção humana é algo muito mais complexo que meras relações de estímulo e resposta. “A
cognição ocorre biologicamente, como o meio pelo qual o organismo persegue seus
objetivos” (ARNHEIM, 1989, p. 18). Dentro destes objetivos, o indivíduo distingue
intuitivamente o que é relevante e descarta o que não interessa, de maneira a estruturar o
mundo que lê. No entanto, a intuição, ainda segundo Arnheim, precisa de elementos do
intelecto para que a mente atue de forma satisfatória. Com base nisso, afirma que a
capacidade de generalização é fundamental para a construção do pensamento e,
conseqüentemente, da linguagem.
Ela [a generalização] nos permite reconhecer o que percebemos no passado,
tornando-nos, assim, capazes de aplicar ao presente o que aprendemos antes. Ela
favorece a atividade de classificação, isto é, do agrupamento das variações sob uma
designação comum. Cria conceitos genéricos, sem os quais a cognição não será
proveitosa. (ARNHEIM, 1989, p. 18)
Este mundo lido intuitivamente e intelectualmente, de acordo com interesses
específicos de cada situação e inerentes a cada indivíduo, seria, portanto, a base estrutural da
linguagem. Um jogo criativamente engendrado pela mente em cima de signos percebidos no
passado.
A semiótica de Charles Sanders Peirce do final do século XIX, baseada na linha
de pensamento kantiana, distinguia ali três modos de interação cognitiva do homem com o
mundo. A primeira forma foi classificada por Peirce como “primeiridade”. Um mero sopro
qualitativo contínuo, não divisível, um instante não pensado de algo ainda não identificado, o
puro presente, difícil de ser explicado em palavras, mas sentido por cada um de nós cada vez
que podemos identificar prazer ou emoção em algo, como se fosse possível isolar este
primeiro sentimento antes que pudéssemos identificar o objeto singular que é sua causa. A
“secundidade” é exatamente a identificação desta singularidade. O objeto captado em sua
presença, o instante de uma relação dual entre um algo singular no mundo e eu. Já a
terceiridade é a nossa capacidade de catalogar, generalizar este algo singular em um certo
grupo classificatório de signos. É o entendimento total deste algo como um fato recorrente
que estava no mundo antes de mim e estará depois. A terceiridade liga os fatos a uma certa lei
compartilhada por uma comunidade (PEIRCE, 2000).
São, de fato, três capacidades humanas: capacidade de sentir qualidades, de
identificar singularidades, de classificar estas singularidades dentro de códigos, hábitos,
linguagens, palavras, generalidades etc. O esforço de Peirce de entender estas três esferas da
26
cognição é, em verdade, a base de uma complexa estrutura teórica usada para entender a
lógica do raciocínio humano. Um esforço epistemológico de compreender o funcionamento
do que se entende como mente humana em favor das ciências, no auge do cientificismo
novecentista. Tal lógica, por sua vez, é a base para entender a linguagem, a capacidade do
homem de ler e gerar signos, o poder de comunicar-se e o poder de sentir e emocionar-se ao
ler os signos ao seu redor.
Daí entende-se que, antes da materialização da linguagem, há algo anterior, a que
Peirce chama de signo pensamento ou a parte interpretante do signo: um caldeirão sígnico
armazenado em cada ser humano desde seus primeiros dias de existência, alimentado por cada
leitura que faz das coisas a sua volta, cada objeto, cada letra, manifestação artística, sons e
cenas percebidos em sua vida. Este armazenamento atinge níveis cognitivos muito além de
onde sua memória ou consciência podem alcançar (PEIRCE, 2000). Mas diferentemente de
Arnheim, Peirce não distingue uma divisão entre intuição e intelecto. Toda a atividade mental
faz parte de uma espécie de estrutura lógica que opera por atividades de substituição de
signos, continuamente, o que ele chama de semiose. Peirce chega a reconhecer a intuição
como um poder reinvidicado pelo homem. No entanto, o que se chama de intuição são signos
do passado armazenados em nós de forma contínua, que moldam nossa forma de interpretar
outros signos e moldam nossa capacidade de criar significação e produzir conhecimento
(PEIRCE, 2000). Como diria ainda Pinker, “raciocinar é, essencialmente, deduzir novos
conhecimentos a partir de conhecimentos antigos” (PINKER, 2003, p. 83). Para Peirce, todo o
conhecimento humano vem do raciocínio hipotético de fatos externos e toda cognição vem de
maneira lógica, formada por cognições anteriores. Portanto, há uma espécie de configuração
mental anterior que leva o homem a raciocinar e, portanto, produzir linguagem. O histórico de
apreensões de signos, que começa desde a infância, preenche criativamente esta pré-
configuração, fazendo girar o processo de significação, base para acontecer a linguagem. É
como se nós tivéssemos uma propensão natural de nos infectar de linguagem a partir do
contato com outros seres humanos e sua produção cultural. Uma espécie de simbiose
linguística, onde nos misturamos ao poder criador de linguagem de outros que estão no
mundo antes de nós e junto de nós.
Esta capacidade de reprocessamento do homem, que derruba a idéia do robótico
processo de causa e efeito que daria à linguagem a falsa idéia de ser um processo de repetição
daquilo que se lê, será importante para nós no decorrer deste trabalho. O que Pinker chama de
instinto de linguagem, o que Arnheim distingue como intuição que trabalha junto ao intelecto,
ou o que Peirce chama de interpretante, signo pensamento e processo de semiose sígnica,
27
podemos traduzir como capacidade criativa do homem de usar elementos finitos para produzir
linguagem de forma infinita através de jogos de significação. Mas como esta forma de pensar
a linguagem se aplica ao signo estético? Parodiando a afirmativa de Pinker, poderíamos dizer
que criatividade estética é, essencialmente, deduzir novos signos a partir de obras anteriores?
Para tal, é preciso primeiro estudar as características que distinguem um signo estético.
2.2.2 Características do Signo Estético
Existe algo em toda a obra artística que nos atinge diretamente o espírito. Um
filme é capaz de nos fazer rir ou chorar, um livro pode nos trazer profundo medo, uma música
nos traz à mente lembranças e emoções às vezes não descritíveis em termos verbais. Quando
se trata de uma obra de suspense e terror, como Drácula, essas sensações que nos tocam o
espírito são facilmente perceptíveis.
O livro Drácula, do irlandês Bram Stoker, escrito em 1897, assim como qualquer
obra estética, está mergulhado num caldeirão de mensagens sensíveis, efeitos psíquicos e
percepções que se chegam ao leitor. Essa, pois, é a grande característica de qualquer obra que
se utiliza da linguagem estética: ir muito além da mera informação, da função comunicativa; o
signo estético tende a causar, através de seu corpo físico, de seu suporte – no caso do livro, a
escrita –, sentimentos. “A palavra estética ainda tem uma significação ligada à de sua matriz
grega: conhecimento pelo sensível, conhecimento intuitivo, primeiro” (COELHO NETTO,
2003, p. 165).
Partindo desse pressuposto, Roland Barthes identificou três níveis de sentido que
podem ser encontrados na comunicação: o primeiro nível é o informativo, comunicacional; o
segundo é o simbólico, da significação; o terceiro é o da significância. Nos dois primeiros
níveis de leitura, Barthes nos diz que a mensagem nos chega por um sentido óbvio. “Óbvio
quer dizer: que vem à frente, e é exatamente o caso deste sentido, que vem ao meu encontro”
(BARTHES, 1990, p. 47). Já o terceiro nível da comunicação é um sentido que chega de
forma particular a cada leitor, uma significação não identificável de forma palpável,
perceptível. Chama este terceiro nível de sentido obtuso, que difere do sentido óbvio, contido
nos primeiro e segundo níveis.
28
Um ângulo obtuso é maior do que um ângulo reto: ângulo obtuso de 100º, diz o
dicionário: também o terceiro sentido parece-me maior do que a perpendicular pura,
reta, cortante, legal, da narrativa: parece-me que o terceiro sentido abre o campo do
sentido totalmente, isto é, infinitamente; admito até que este terceiro sentido tenha
uma conotação pejorativa: o sentido obtuso parece desdobrar suas asas fora da
cultura, do saber, da informação. (BARTHES, 1990, p. 47/48)
A idéia de um indivíduo ter uma forma pessoal de ler a obra estética, de um nível
mais visceral de leitura, está presente em vários momentos da bibliografia de Roland Barthes.
Em a Câmara Clara, ele o denomina de “punctum”. Em O Prazer do Texto, chama de “a
segunda margem do texto”. O sentido obtuso está no ápice da conotação da mensagem. É o
que nos inscreve no campo do sentimento, da emoção, nos atinge o espírito e tem qualidades
que buscamos expressar em palavras que indicam medo, angústia, liberdade, paixão,
comicidade... Quando uma obra nos leva a tal nível de leitura, é porque ela entra em
consonância com nosso próprio repertório de experiências sígnicas, despertando-nos
associações não com algo material, existente no mundo do não-eu, mas com um conjunto de
percepções nossas, em caráter qualitativo.
No filme Drácula de Bram Stoker, de Francis Ford Coppola, no instante em que
Drácula invade o quarto de Mina para dar-lhe o beijo do vampiro, a mordida no pescoço,
identificamos o sentido óbvio barthesiano no nível simbólico de alguns elementos da cena –
os caninos avantajados do monstro, que simbolizam sua natureza vampírica; a camisola
branca de Mina, sugerindo sua pureza; o sangue, que normalmente nos leva à leitura de vida,
poder, força, no momento em que é sugado de Mina por Drácula, nos remete a “tirar a vida”.
Aí se encontra, então, o forte simbolismo do vampiro, o morto-vivo que perambula pela
escuridão em busca de indefesos indivíduos para sugar-lhes a energia vital e, assim, manter-se
jovem, poderoso e eterno. Mas há também na cena elementos que vão além do simbólico,
capazes de nos fazer vislumbrar um sentido obtuso de Barthes, existente no próprio
movimento corporal do casal na cama, propondo-nos que ali, muito além da mordida do
vampiro, há um que de sexual misturado ao terror, algo de erótico, de desejo pelo proibido. O
traje de Drácula, camisão de seda azul escuro, é uma vestimenta condizente com um amante
numa situação íntima, aconchegante, e não com um monstro invasor. Toda a atmosfera da
cena, com todos os simbolismos presentes, somados a um conjunto de elementos contidos na
linguagem cinematográfica através da música, da ambientação, do figurino, dos atores e do
próprio andamento da trama – leva-nos a um emaranhado de leituras pessoais, particulares,
29
em escala sensível, muito mais acentuada pela forma como eles se apresentam a nós do que
propriamente pelo conteúdo da cena.
A história de Drácula possui uma forte carga simbólica, acumulada por mais de
um século de existência, reforçada por inúmeras adaptações para diversos outros meios
diferentes da literatura. São signos que a própria fábula ajudou a consolidar na cultura
ocidental – o sangue, o vampiro, o morcego, os dentes caninos, a mordida na jugular, a cruz,
cujos significados se encontram presentes inclusive em alguns dicionários especializados,
como o Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alan Gheerbrant, que nos esclarece que
“o vampiro representa o apetite de viver, que renasce tão logo é saciado e que se esgota em se
satisfazer em vão, enquanto não for dominado.” (CHEVALIER, 2003, p. 30) São, pois,
sentidos suscitados através de uma convenção formada a partir de experiências partilhadas
socialmente. A pura simbologia de Drácula ainda se encontra, portanto, dentro do campo do
óbvio de Barthes. No entanto, quando passamos a analisar os sentimentos e reações psíquicas
que a escrita da obra particularmente nos apresenta, aí então entramos na esfera do obtuso, do
sentido não linear, ambíguo.
Esses aspectos inerentes à informação estética estão intimamente ligados a
sentimentos que ela nos suscita. A categoria de signos da semiótica peirceana que melhor
reflete esta característica é o ícone. Ele faz parte da classificação que distingue diferentes
tipos de signos de acordo com a sua relação com o objeto
2
a que se refere, da qual fazem parte
ainda os símbolos e os índices. Como exemplo de uma relação entre signo e objeto em campo
simbólico, podemos citar uma luz vermelha acesa num semáforo de trânsito. Ela não nos
deixa dúvidas de que aquilo tem o significado de “não prosseguir”. Ou seja, o signo luz
vermelha tem uma relação direta e clara com o objeto não prossiga, de acordo com uma
convenção, uma lei socialmente partilhada. Esta é, portanto, uma relação simbólica entre
signo e objeto. Da mesma forma, os índices têm uma relação relativamente clara com seus
objetos, porém são mais voltados a uma concepção diádica de causa e efeito: a fumaça é um
indício de fogo; as pegadas no chão são indícios de que alguém passou ali; um bolo cortado é
um indício de que alguém comeu uma fatia...
Já no ícone – que mantém, de alguma forma, uma semelhança com o objeto que
representa – a relação signo/objeto é mais ambígua; afinal, a própria materialidade do signo
confunde-se com o objeto para o qual remete. Um bom exemplo de iconicidade está na
2
Todo signo é uma representação de um objeto, que, por sua vez, é o termo usado por Charles S. Peirce para
designar aquilo que está na realidade. Como exemplo, a palavra “casa” é um signo que representa o objeto casa
(construção feita para moradia). SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 58.
30
fotografia. Um signo fotográfico representa a realidade que retrata (a paisagem de uma praça,
por exemplo), que, por sua vez, em princípio, é seu objeto. Mas, dependendo do ângulo, da
textura, das cores ou ausência delas, dos contrastes de luz e sombra, das coisas e situações
“congeladas” naquele momento captado pelo fotógrafo, ela nos propõe mensagens que não
estavam necessariamente contidas na leitura da realidade fora da fotografia, seu objeto
dinâmico a paisagem pura e simples como se apresenta ao mundo. A fotografia, então, pode
suscitar outros diferentes objetos imediatos
3
– verdades geradas pelo signo – ambíguos e que
entram em conflito com o mundo interior do receptor.
Quando falamos na simbologia do vampiro, estamos cientes de que ele representa
o lendário do “morto que supostamente sai do seu túmulo para vir sugar o sangue dos vivos”
(CHEVALIER, 2003, p. 30). Há, portanto, uma clara diferença entre a palavra “vampiro” e a
idéia de vampiro, ou mesmo entre a imagem do vampiro e essa mesma idéia. No entanto, as
leituras subjetivas a que este vampiro pode vir a nos remeter, a carga emotiva que ele é capaz
de nos despertar – seja, no caso do filme, pela plasticidade da cena em que está inserido; seja,
no exemplo do livro, por uma descrição detalhada de sua medonha aparência física – nos
colocam o mesmo signo numa relação icônica de leitura, que pode nos suscitar diversos
objetos, sugeridos por relação analógica com signos que remetem a medo, angústia, nojo,
sensualidade, etc., de acordo com a forma pela qual este signo se apresenta a nós.
Julio Plaza serve-se de uma metáfora usada por Jacques Derrida que nos será
muito útil para compreender as peculiaridades do ícone. Segundo Derrida, todo signo mantém
com seu objeto um movimento centrífugo e um movimento centrípeto, “isto é, que tende à
comunicação no primeiro caso, e à autopreservação concretiva no segundo” (PLAZA, 2003,
p. 22). O símbolo, considerado o signo mais completo da semiótica de Peirce no sentido de
ter suas três partes (signo, objeto e interpretante
4
) muito claras e definidas mantém com o
seu objeto um movimento fortemente centrífugo. Ou seja, imaginando o signo como o centro
desse movimento e o objeto a extremidade, a mensagem se desloca fortemente no sentido
signo/objeto. Diferentemente, o ícone tem uma grande força em si mesmo, deslocando o
movimento da mensagem de seu objeto para o próprio signo, para o centro.
3
De acordo com Peirce, objeto dinâmico designa as coisas como elas se encontram na realidade, enquanto que
objeto imediato é a representação desta realidade pelos signos. SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São
Paulo: Brasiliense, 2004. p.59.
4
O interpretante é considerado a terceira parte do signo peirceano, em que a primeira é o próprio signo e a
segunda é o objeto. Interpretante é a referência sígnica que temos em nossa mente para entendermos outros
signos, disparando assim o processo de semiose, em que um signo remete a outro de forma infinita. COELHO
NETTO, J. Teixeira. Semiótica, Informação e Comunicação. São Paulo: Perspectiva, 2003. p.56
31
Já que o ícone tem um poder comunicativo em si mesmo, ele próprio gera seus
objetos imediatos segundo as leituras para as quais ele remete, de acordo com o repertório
mental de cada leitor. Aqui, então, chegamos a um importante aspecto do conceito de
iconicidade de Charles Peirce: toda leitura que fazemos de signos que nos rodeiam passa por
um intenso processo lógico de substituição por semelhanças, por analogias, com outros signos
armazenados em nós. Tal processo é responsável pelos nossos mecanismos de entendimento
da realidade, de aprendizado, raciocínio e de criação. Quando essa leitura tem em sua
linguagem uma carga informativa, comunicacional, para não dizer óbvia, a tendência dos
signos é de fechar ao máximo esta seqüência analógica, procurando remeter-se a um
significado mais restrito. Quando a mensagem é estética, icônica (ou mesmo obtusa), esse
processo de analogia se faz de maneira mais ambígua e aberta, disparando uma série de
significados possíveis para o mesmo signo, contidos no repertório particular de cada pessoa.
Isso acontece porque nenhuma leitura é totalmente isolada e única. Ela sofre
influência de diversas outras leituras antecessoras formadoras de uma rede de textos e
conhecimentos que interferem e sub-existem no momento da fruição de qualquer outra nova
obra, levando o leitor a associações e analogias com outros signos acumulados em sua
memória, os quais o fazem entender, por semelhança, as leituras no aqui-agora. A este
processo Barthes chama de texto plural, referindo-se não apenas ao ponto de vista do
receptor, mas também ao do criador. Ou seja, nenhuma criação vem do nada, do vazio. Ela
surge no autor como um produto ativo de suas leituras anteriores, criadas por diversos outros
autores, inúmeros outros textos residentes no seu repertório mental, que convivem com todas
as suas experiências pessoais, imprimindo-lhe motivações que moldam seu processo criativo.
(...) nesse texto ideal as redes são múltiplas e se entrelaçam sem que nenhuma possa
dominar as outras, este texto é uma galáxia de significantes e não uma estrutura de
significados; não tem início; é reversível e nela penetramos por diversas entradas,
sem que nenhuma delas possa qualificar-se como principal; os códigos que mobiliza
perfilam-se a perder de vista, eles não são dedutíveis (o sentido nesse texto nunca é
submetido a um princípio de decisão e sim por um processo aleatório); os sistemas
de significados podem apoderar-se desse texto absolutamente plural, mas seu
número nunca é limitado, sua medida é o infinito da linguagem. (BARTHES, 1990,
p. 39)
32
2.3 LITERATURA E CINEMA
Depois de compreendermos o signo estético dentro de suas peculiaridades, e
entendendo que ele está contido em um complexo sistema de linguagem que compõe
essencialmente o ser humano, é preciso avançarmos no estudo da transmutação sígnica dentro
dos meios propostos como foco para este estudo: a literatura e o cinema. Para isso, faz-se
necessário entendermos como o signo estético literário e o signo estético cinematográfico
comportam-se dentro dos hábitos de linguagem consagrados nos respectivos suportes.
O corpo literário de Drácula apresenta uma estratégia muito peculiar de
narratividade. Stoker, objetivando transformar sua história em algo realista, crível e, portanto,
reforçando o sentimento de medo no leitor por conta da alusão de que os fantásticos fatos
descritos realmente aconteceram, montou seu livro através de relatos dispostos em vários
tipos de documentos fictícios, como diários pessoais, diários de bordo, matérias de jornal,
cartas, telegramas, etc. Tal estratégia de fazer parecer verossímeis os fatos narrados, porém,
não era novidade naquela altura. Cervantes, no Prólogo de seu Dom Quixote de la Mancha, já
no século XVII, nos fez crer, ficticiamente, que as histórias vividas pelo velho e insano
fidalgo tinham um fundo de verdade: o autor dizia não ser o “pai”, mas o “padrasto” da
referida obra (cujos manuscritos teriam sido por ele adquiridos acidentalmente), supostamente
escrita por um historiador árabe, caracterizando, dessa forma, o caráter documental do que
seria ali relatado.
Em Drácula, a narração dos fatos permanentemente troca de um ponto de vista
para outro, na grande maioria das vezes em primeira pessoa, contada através da visão de
diferentes personagens da trama, que buscavam “materializar”, sob forma de diários, suas
lembranças e impressões sobre os eventos. Este aspecto fica bastante claro no início do
capítulo vinte e um, no diário do Dr. Seward:
3 de outubro.
Procurarei relatar os acontecimentos com a maior exatidão possível e com todos os
pormenores que eu conseguir recordar, desde minha última anotação. Nenhum
detalhe do que ainda guardo na lembrança deve ser deixado de lado. Preciso
prosseguir com toda calma para atingir este objetivo. (STOKER, 2002, p. 366)
33
Esta estratégia de Stoker, através do uso da memória de seus personagens, expõe-
nos de forma muito clara uma característica inerente à linguagem literária: o seu foco interno
e psicológico. Aliás, um texto narrativo não é senão a memória de um alguém materializada
em forma de escrita, seja este alguém o grande narrador onipresente e onisciente, ou mesmo
um personagem que rememora os fatos ocorridos com ele e os narra para o leitor. Narrar é
colocar em forma verbal (no caso do livro) aquilo que foi retido de um determinado
acontecimento, seja ele fictício ou não.
Há um momento (...) em que a possibilidade ou impossibilidade da memória – de
sua figuração ou fabulação através da escrita – corresponde ou à própria
possibilidade ou à impossibilidade da narrativa. Estas imagens importam não apenas
para os personagens e/ou os narradores, mas principalmente para a própria narrativa.
(GUIMARÃES, 1997, p. 31)
Este papel mnemônico da narração, tão entranhado na própria tradição da
literatura, ganha, portanto, importância estratégica em Stoker: a história de Drácula é
declaradamente contada a partir da lembrança de seus personagens principais, diga-se, dos
algozes do monstro, através de seus diários pessoais. Além deste aspecto inerente à
narratividade do texto, a memória tem uma importância estratégica nessa análise do corpo
literário e do corpo fílmico enquanto imagem do pensamento, enquanto relação do mundo
interior do autor com o mundo real, elemento anterior à materialização do signo e, ao mesmo
tempo, efeito da internalização dos signos. Aqui, “os traços da memória permaneceriam então
gravados na alma, graças a uma linguagem sem suporte, desmaterializada, à qual a escrita
estaria subordinada” (GUIMARÃES, 1997, p. 35).
Essas associações presentes na mente antes de se adequarem a um suporte,
remetem-nos a dois conceitos que nos ajudarão a entender o processo da formação do
repertório pessoal de imagens-pensamento até a sua materialização em um suporte físico que
permita a comunicação: o “conceito perceptivo” e o “conceito representativo”, elaborados por
Rudolf Arnheim que correspondem, respectivamente, ao “juízo perceptivo” e “signo de
representação” de Peirce. Tais conceitos dizem que perceber (conceito perceptivo) não é
apenas receber passivamente estímulos sensoriais externos. É um conflito criativo entre o
estímulo externo e o mundo interno do receptor. O indivíduo produz internamente um
conceito, uma imagem, uma memória pessoal a partir de um objeto dinâmico. Já representar
(conceito representativo) é transformar essa percepção em comunicação, gerando um objeto
34
imediato “dentro dos limites e potencialidades de um determinado meio e uma determinada
linguagem”. (PLAZA, 2003, p. 43)
Para Arnheim, perceber não é simples recepção passiva do material estimulador,
mas “criação de padrões de categorias perceptivas adequados à configuração do
estímulo”. Perceber uma coisa, contudo não é ainda representá-la numa forma
tangível. Nessa medida, a representação pressupõe mais do que a formação de um
conceito perceptivo. Ela requer o que Arnheim chama de “conceito representativo”,
ou seja, a tradução de “conceitos perceptivos” em padrões que podem ser obtidos de
um estoque de formas disponíveis num medium particular, de modo que os
“conceitos representativos” se tornam dependentes do meio através do qual eles
exploram a realidade. (PLAZA, 2003, p. 48)
Essa passagem de percepção
5
para representação, da memória para um corpo
comunicante logo, esse ato inventivo encontra grandes diferenças na literatura e no
cinema, de acordo com suas respectivas características de linguagem. Na literatura, o
principal suporte que irá materializar as imagens-pensamento será o signo verbal, através de
um idioma e, conseqüentemente, de uma série de leis e convenções lingüísticas. Segundo
Peirce, todo signo, por sua própria natureza, apenas indica a coisa real leva a um objeto,
mas não é o próprio objeto. No signo verbal, esse caráter alcança seu momento mais
completo. A palavra, grosso modo, nos conduz a algo do mundo real, em que as diferenças
entre o signo e objeto tendem a ser claras: a frase “morder o pescoço” forma na mente uma
imagem-pensamento que não é propriamente a imagem de alguém mordendo um pescoço,
mas remete a ela. E irá remeter tanto mais quanto melhor for a descrição verbal da cena.
Então, para que a linguagem literária chegue a suscitar associações qualitativas no campo do
sensível, ela precisa de um esforço maior do que, por exemplo, uma fotografia, que
conseguiria fazer isso com rapidez, ao mostrar uma imagem de alguém mordendo um
pescoço, enquanto que a linguagem verbal antes deve passar por um emaranhado de códigos
lingüísticos.
À primeira vista, a imagem literária parece realizar-se plenamente através da
descrição, graças ao que esta tem de icônico (...). Porém, nesse caso, trata-se apenas
de uma analogia que nos indica o modo (ou modos) como um signo de natureza
convencional (do domínio da terceiridade do simbólico) busca transcrever, sob a
forma de um efeito, aquilo que é propriedade do icônico: o fato de este assemelhar-
se ao objeto representado, sendo capaz de excitar sensações analógicas na mente
para a qual é uma semelhança. (GUIMARÃES, 1997, p. 76)
5
A palavra percepção é empregada neste trabalho não como uma simples captação de estímulos externos, mas
como um conflito criativo entre o eu e o não-eu, de acordo, portanto, com o “conceito perceptivo” de Rudolf
Arnheim.
35
Há, desse modo, se comparada ao cinema, certa “lentidão” para que a literatura
chegue ao nível do sensível, pois, para chegarmos a uma associação qualitativa através da
linguagem verbal, precisamos passar por signos pertencentes, em princípio, ao território do
simbólico.
Enquanto no cinema o elemento sensível está por demais “colado” ao significante –
ao ponto que se vai quase que instantaneamente da percepção à significação – na
literatura os fenômenos de ordem sensível são alcançados com um certo atraso, já
que precisam passar pela representação dos signos lingüísticos. (GUIMARÃES,
1997, p. 121)
Essa é uma das grandes diferenças, portanto, da imagem literária para a imagem
fílmica. Enquanto o signo verbal trabalha de forma a nos indicar imagens que estão em nossa
memória, a apontar para elas para poder assim conseguir alcançar uma visualidade, a imagem
fílmica já é icônica por si mesma. Por ser icônica, a diferença entre signo e objeto quase
inexiste, confundindo, portanto, significante e significado, corpo e espírito. É exatamente essa
característica do signo icônico – categoria à qual a imagem fílmica pertence – que é capaz de
nos levar a associações por analogia. A cena de Mina irrequieta nos braços de seu marido
Jonathan Hacker, com os lábios sujos de sangue, chorando, cobrindo o rosto com as mãos e se
maldizendo: “impura, impura!”, entremeada por inserts
6
de ratos pelo chão passando por cima
de seus pés, sob uma sonoplastia caótica que se assemelha a barulho de insetos, compassada
pelo som de instrumentos de sopro que repetidas vezes emitem a mesma nota (COPPOLA,
1992.), nos remete rapidamente a sentimentos a que podemos nos arriscar denominar
“angústia”, “medo”, “nojo”, “vergonha”... Apesar de por vezes conseguirmos adequar essas
percepções a palavras, tais signos fílmicos nos levam a objetos qualitativos, indizíveis,
pertencentes ao campo do sensível, pois “enquanto o signo verbal é passível de ser dividido
em unidades discretas (monemas e fonemas), a imagem apresenta uma aderência do
significante ao significado” (GUIMARÃES, 1997, p. 133) impossível, então, de ser dividida
sem que se altere seu sentido. “À descontinuidade do signo verbal opõe-se a continuidade da
imagem” (GUIMARÃES, 1997, p. 133).
No livro – no trecho equivalente a essa mesma seqüência do filme – para chegar a
semelhantes associações de medo, angústia, nojo e vergonha, Stoker nos faz penetrar de
maneira paciente e profunda nos pensamentos e percepções descritos por Dr. Seward,
6
Termo técnico usado na linguagem cinematográfica, quando uma cena é inserida no andamento de uma outra
cena, dividindo esta última em duas partes. Videoquatro – Vocabulário Básico de Cinema. Disponível em <
http://www.geocities.com/Hollywood/1110/voc_cinema.html > Acesso em 05 jun. 2005.
36
personagem que presenciou a cena em questão, depois que Drácula morde Mina e é
surpreendido e colocado para fora do quarto por Van Helsing, Arthur, Quincey Morris e pelo
próprio Seward, os principais perseguidores do monstro.
Ela tremia sem nada dizer, enquanto conservava a cabeça baixa e apoiada no peito
do marido. Quando a reergueu, a camisa dele estava manchada com o sangue que
restara em seus lábios e das pequenas incisões de sua garganta. Mina recuou
instintivamente, recomeçando a chorar e a soluçar.
- Impura, impura! Já não posso mais tocá-lo ou beijá-lo! Oh, por que tinha de ser eu?
Por que tinha de me transformar no pior dos inimigos e a quem só se pode temer?
(STOKER, 2002, p. 277)
Percebem-se, portanto, as diferentes formas de como cinema e literatura
trabalham os fenômenos sensíveis. Se a literatura é capaz de ir fundo na consciência do
homem e expor com detalhes o caráter inteligível das coisas,
(...) no que diz respeito ao caráter sensível dos fenômenos, ela pode apenas indicá-
los, apontando-os exteriormente através da palavra. Ao contrário do texto, ali onde é
preciso que a mente imagine o visível, o cinema materializa a imagem diretamente,
através das percepções audiovisuais.” (GUIMARÃES, 1997, p. 137)
Se a literatura tem como principal suporte o signo verbal com todas as suas
convenções lingüísticas inerentes a uma terceiridade simbólica, o cinema se inscreve num
complexo jogo de signos icônicos imagéticos e (hoje) auditivos. Muito mais do que nos
propor uma narração com imagens em movimento, num sentido contrastado à imagem
estática da fotografia, pintura, escultura e outras expressões artísticas, o cinema, com sua
linguagem, nos proporciona uma imagem-movimento, ou seja, uma linguagem própria, com
modos próprios de fruição, comparativamente desvinculada da fotografia, do teatro, da antiga
lanterna-mágica e da literatura. O discurso cinematográfico incorpora elementos técnicos
únicos, como o movimento de câmera, a angulação de câmera e a montagem fílmica, que se
juntam à atuação dos atores, à cenografia, à iluminação, trilha sonora e sonoplastia, para
formarem um sistema de códigos que nos permite vislumbrar as mensagens pretendidas pelos
seus autores. Mas nem sempre o cinema foi assim.
Drácula de Bram Stoker, como já adiantamos, não se limita ao livro de Stoker
para construir sua poética. O filme chega a ser também, de certa forma, uma homenagem à
linguagem cinematográfica, feita através de algumas citações a diferentes texturas de imagens
que lembram as diversas formas fílmicas que fizeram parte da história do cinema, na qual a
fábula de Drácula esteve presente assiduamente. Chama a atenção, por exemplo, a cena em
que Jonathan Hacker, no castelo do conde, está se barbeando frente ao espelho, antes de
37
Drácula chegar ao seu quarto (COPPOLA, 1992). A luz da vela, incidindo irregularmente no
ambiente, somando-se a uma imagem com cores pálidas e amareladas, reproduz o modo de
captação das antigas câmeras dos anos vinte e sua própria textura envelhecida, rememorando
uma cena semelhante dirigida pelo alemão F. W. Murnau em 1922, para Nosferatu. Várias
outras citações à própria história do cinema acontecem durante o filme, como a constante
projeção de imagens em forma de silhuetas, que lembram as produzidas pelas lanternas
mágicas exibições extremamente populares na Europa que mostravam narrativas com
imagens artesanais em movimento projetadas através de um feixe de luz, criando assim
sombras nas paredes –, que foram precursoras do cinematógrafo, ao exibirem figuras
animadas em forma de projeção.
Mas a mais explícita homenagem e importante, para percebermos as
características dos primeiros tempos do cinema e do processo de consolidação de sua
linguagem é quando Drácula procura a “grande maravilha da civilização”, o cinematógrafo.
O conde e Mina vão então a um vaudeville londrino, onde encontram em meio a números
circenses, exibição de lanterna mágica e outras atrações projeções de imagens em película,
mostrando assim o cinema tal como começou no final do século XIX. Ali, as pessoas
reuniam-se para viver a maravilhosa experiência de assistirem a figuras movimentando-se
quase tal como as viam no mundo real, um verdadeiro milagre para a época. Portanto, a
própria característica cinética daquelas imagens era a grande atração: não havia uma
linguagem cinematográfica como a conhecemos hoje, uma narratividade, e sim um culto
àquela forma tão verossímil de animação projetada, um culto à imagem em movimento. Com
o passar dos anos, a linguagem fílmica foi se aprimorando e consolidando, mais precisamente
entre 1915 e 1918, quando o americano David Wark Griffith contribuiu decisivamente para a
incorporação de algumas inovações que revolucionaram o cinema, as quais são consideradas
inauguradoras do chamado cinema narrativo, em cujo processo a montagem fílmica teve um
papel decisivo.
Curiosamente, o livro de Bram Stoker, dividido em diferentes pontos de vista
expressos em diversos diários, matérias de jornal, bilhetes, telegramas e outros documentos ,
adianta-nos, na linguagem literária, este importante elemento da arte cinematográfica
chamado montagem. Tal aspecto do texto de Stoker dá-nos a idéia de quão rica e complexa foi
a relação histórica entre cinema e literatura. É comum percebermos a montagem como uma
característica da linguagem fílmica que influencia a narratividade literária contemporânea, na
qual percebemos, em inúmeras obras, um encadeamento de fatos que lembra essa estratégia
discursiva cinematográfica. No entanto, o caminho inverso, principalmente se considerarmos
38
o início do cinema narrativo, também é verdadeiro: a montagem cinematográfica foi
inegavelmente influenciada por estratégias da diegese literária. César Guimarães percebe que
o modelo de montagem de Griffith, que já alternava diferentes eventos, situações e focos
narrativos num mesmo relato, tinha forte influência de romances do final do século XIX e
início do século XX, os quais, por sua vez, buscavam novos artifícios para contarem uma
história.
Enquanto Griffith, inspirado no romance do século XIX, além da montagem
alternada, desenvolvia outros procedimentos próprios do cinema (...) consolidando a
Grande Forma Narrativa (na qual a descontinuidade entre uma imagem e outra é
suturada pelo encadeamento narrativo), o romance moderno, ao explorar novas
modalidades de experiência temporal, fazia-o modificando, de diferentes modos e
intensidades – dentre outros aspectos – a estrutura tradicional do relato.
(GUIMARÃES, 1997, p. 124)
Esta montagem alternada, percebida na literatura que inspirou Griffith e à qual
César Guimarães se refere, está de alguma forma presente na narrativa de Stoker a partir do
momento, como já mencionado, em que se alternam, por muitas vezes no mesmo capítulo,
diários de diferentes personagens, cartas, matérias de jornal e outros pontos de vista “colados”
propositalmente numa seqüência lógica para formar o fio da trama romanesca, sendo um
significativo exemplo da interação entre as linguagens cinematográfica e literária.
A contribuição que o desenvolvimento da montagem fílmica deu à evolução do
cinema narrativo permitiu a passagem de um mero encadeamento de diferentes cenas para um
discurso dinâmico: a montagem imprime ritmo ao relato fílmico, expressa ou tira importância
de determinada cena, molda significados ao utilizar diferentes objetos, transforma o tempo em
benefício da narrativa.
Mais importante que a metamorfose dos mecanismos, todavia, é a metamorfose a
que o cinema submete o tempo, o espaço e os objetos (...). Com esta transformação,
o filme deixa de ser uma fotografia animada para tornar-se uma série heterogênea de
fotografias animadas regidas por um sistema (eis então a narratividade!). Mais
relevante do que o ordenamento narrativo, contudo, são as novas qualidades
(percebidas mais diretamente nos novos traços espaciais e temporais) que as
imagens adquirem ao se tornarem imagens-movimento. (GUIMARÃES, 1997, p.
131)
Sierguéi Eisenstein nos mostra ainda, em sua montagem intelectual, que esse
recurso cinematográfico, ao juntar duas imagens com dois significados específicos, pode
gerar, na verdade, não uma soma de significados, mas um produto conceitual deles, que não
estava presente em nenhuma das duas cenas. Em Eisenstein, mais uma vez, a montagem
cinematográfica foi traduzida da escrita. Mas diferente de Griffith, o russo se inspirou na
39
escrita chinesa: os hieróglifos chamados “copulativos”, quando se juntam lado a lado,
produzem um conceito não presente individualmente em seus significantes. “A combinação
de dois elementos suscetíveis de serem ‘pintados’ permite a representação de algo que não
pode ser graficamente retratado” (EISENSTEIN, 1977, p. 167). No ideograma chinês, “o
desenho da água e o desenho de um olho significam ‘chorar’; o desenho de uma orelha perto
do desenho de uma porta é igual a ‘ouvir’” (EISENSTEIN, 1977, p. 167). Assim acontece
com a montagem intelectual de Eisenstein, incorporada pela linguagem do cinema narrativo.
A exemplo disso, em Coppola percebemos a cena em que Van Helsing explicitamente degola
a vampira Lucy seguida de uma suculenta e mal passada carne sendo fatiada pelo próprio Van
Helsing, produzindo assim um terceiro sentido, produto da junção das duas cenas: frieza, que
ajuda a fortalecer a personalidade da personagem um médico-cientista estudioso dos
fenômenos ainda não desbravados pela ciência, um ser capaz de conviver, em sua memória,
ao mesmo tempo com uma degolação e com o apetite de comer uma carne mal passada.
A montagem fílmica, portanto, assim como outros elementos narrativos inerentes
ao cinema (os diferentes enquadramentos, o movimento e o ângulo de câmera), conferem a
este uma linguagem própria, que podemos chamar de imagem-movimento, diferentemente da
pura imagem em movimento dos seus primeiros tempos, que suscita em seu sintagma sentidos
muito além dos informativos, muito além dos comunicativos e também dos simbólicos:
impõem-nos associações sensíveis, contínuas, icônicas. Essa linguagem fílmica é única e
assemelha-se a mecanismos mentais do homem, como os sonhos e a memória.
Este é, essencialmente, o modo do sonho. Não quero dizer que ela [a arte do cinema]
copia o sonho ou nos imerge em devaneios. De maneira alguma; não mais do que a
literatura invoca a memória, ou nos faz crer que nós estamos relembrando. (...) O
cinema é “como” o sonho no seu modo de apresentação: cria um presente virtual,
uma ordem de aparição direta. Este é o modo do sonho. (LANGER
, 2003, p. 429)
Nós não temos a memória dos fatos como os vemos na realidade, continuamente
organizados, encadeados no tempo como de fato aconteceram. Nossa memória seleciona
eventos, ordena-os de acordo com o que mais nos marcou, dá importância maior a um ou a
outro fato e organiza-os nem sempre linearmente. Assim também são os sonhos, porém mais
irregulares ainda, descontínuos, montados, por vezes, desordenadamente. A linguagem
fílmica segue essa mesma lógica descontínua, se comparada com a realidade. O diretor nos
leva, através da câmera, a acompanhar a história que conta, como se estivéssemos presentes
em espírito, indo de um lugar ao outro instantaneamente, voltando ou acelerando o tempo,
seguindo o olhar de um personagem e as diversas sensações psicológicas de diversas situações
40
vividas. O autor do livro também nos leva a viver vários acontecimentos e efeitos psíquicos
contidos em sua narratividade. Para isso, ela utiliza os signos verbais e toda a sua penetração
inteligível na descrição dos fatos, das personagens, dos lugares, para nos fazer vislumbrar
mentalmente as imagens que nos farão chegar ao espírito da obra. Ao contrário, o cinema nos
mostra essas imagens, e, com todo o aparato técnico, que inclui iluminação, cenografia,
figurino, trilha sonora, sonoplastia, faz-nos ver, não o mundo real, mas um mundo possível,
um sonho...
2.4 CRIAÇÃO E TRANSMUTAÇÃO
As características do signo estético e da capacidade humana da linguagem,
estudadas na parte 2.2 deste capítulo, revelam que o uso de signos anteriores para a produção
de novos signos é uma prática inerente à própria inventividade estética. Pudemos perceber
este fenômeno acontecer intersemioticamente ao estudar o suporte cinematográfico, nas
experimentações dos cineastas Griffith e Eisenstein, que se inspiraram na narrativa literária
para revolucionarem o modo de edição de seus filmes e a própria linguagem cinematográfica.
Esta relação com o antigo ocorre mesmo considerando a produção do período moderno – que
procurava desprender-se de tudo o que se havia produzido no passado – pois, mesmo
buscando o “novo”, não deixava de dialogar com a produção estética anterior.
Na intenção de comparar uma criação “livre” e a produção de um discurso estético
declaradamente adaptado de outro meio, é fundamental entendermos o processo criativo de
ambos. O corpus proposto para este trabalho traz consigo muito claramente estes dois modos
de produção estética. Por um lado, temos a obra de Bram Stoker, não propositalmente ligada a
nenhuma outra, escrita no final do século XIX. Por outro lado, temos o filme de Francis Ford
Coppola, intencionalmente uma adaptação do livro de Bram Stoker, uma tradução para
linguagem cinematográfica do livro Drácula, uma obra ligada intensamente a uma outra
anterior, produzida no começo dos anos noventa do século XX. Teria sido o livro de Stoker
composto isoladamente do restante de toda a produção literária anterior? O termo “livre”
sugere uma inteira independência da obra em relação a qualquer outra? Por outro extremo,
seria o filme de Coppola uma reprodução cinematográfica fiel à letra de Stoker e, portanto,
sem nenhuma “novidade” a ser dita, a não ser o fato de podermos assistir na tela aquilo que
41
apenas se lia nas páginas do livro? Nesse sentido, podemos rapidamente chegar à ponderação
de que tanto Bram Stoker estava munido de diversas referências, apesar de ser uma criação
“nova”, quanto Francis Ford Coppola tinha diversas ferramentas de discurso a seu favor para
trazer um efeito de novidade para a fábula de Drácula, apesar de ter uma ligação forte e clara
com esta.
Podemos mostrar aqui que a linha que separa as estratégias de produção de uma
criação nova das usadas por uma adaptação não é tão clara assim. Primeiramente vamos
estudar a inventividade estética não intencionalmente ligada a outro signo.
2.4.1 Inventividade Estética
Queremos aqui estudar a inventividade estética enquanto transformação de textos
anteriores. A intenção é, portanto, trabalhar embasado na hipótese de que, por mais inovadora
que seja uma determinada obra, ela tem em certa medida um diálogo criativo com produções
precedentes materializadas em diferentes meios.
Diversos autores explicam a criatividade humana através da ligação com outros
textos do passado. Max Bense fala-nos sobre repertórios semantemas (semânticos) e
repertórios materiais que temos à disposição do ato de criar. Ao reordenar nosso repertório,
criamos. Bense sugere-nos que o mundo físico é um caos de sinais em desordem. A partir do
momento em que esses sinais atingem nossa percepção, eles tornam-se signos e passam a
fazer parte de um repertório, que acessamos para reordená-los em um novo estado estético.
Para Bense, portanto, criatividade é seleção de signos preexistentes.
Em todo processo de produção de arte é dado previamente um repertório fisicamente
determinado de elementos materiais (...), o qual é seletivamente trans-realizado
através de um código de determinação semântica, apto à comunicação, em um
portador de estados estéticos. “Criativo” significa aqui tanto quanto “novo”,
“inovador”, “original”, e este conceito corresponde ao conceito de “seletivo”.
(BENSE, 1975, p. 92)
Portanto, para Bense, criatividade é uma habilidade de seleção de materiais e
signos pré-existentes. Mas, além disso, Bense sugere-nos que criatividade é também uma
relação entre o repertório do criador e o repertório do leitor. Nesse sentido, faz exaustiva
engenharia semiótica e matemática para mostrar que, em certos casos, os repertórios têm uma
42
interseção que compartilha elementos em comum (grau alto de ordem, mas baixo de novidade
na criação); em outros, repertórios de emissor e receptor complementam-se (grau mais alto de
novidade) e em outros não se tocam, não coincidem um com o outro (grau extremo de
desordem e de novidade). As equações de Bense chegam à conclusão de que, quanto mais
diferentes forem os repertórios de quem cria e de quem lê, mais desordem haverá na
informação estética e mais novidade será levada ao leitor. Bense inclusive identifica que em
certos casos os repertórios são tão díspares que até mesmo os elementos semânticos de
linguagem, ou seja, os hábitos e regras compartilhados em um determinado meio, não são
compartilhados por criador e leitor.
O que este pensamento revela é um profundo desejo de captar metodologicamente
a produção estética humana com ferramentas das ciências exatas, como a matemática, com
intuito de estudar a obra de arte cientificamente, e não com juízo de valor. Apesar de muitos
concordarem que a criatividade humana se utiliza de reordenamento e seleção de signos
anteriores, será que ela se limita a isto? Certamente a criatividade humana não é apenas uma
máquina de desordenar e reordenar peças semânticas contidas em sua memória para formar
uma nova figura com as mesmas peças do quebra-cabeças. Além disso, podemos ver mais
adiante que a diferença de repertórios entre emissor e receptor não explica satisfatoriamente o
que seria um alto grau de informação estética. Do que vale o repertório semântico, que levou
o autor a criar aquela obra, se pensarmos que o autor está totalmente ausente no momento da
leitura?
Para uma outra linha de pensamento da linguagem, a linha francesa conhecida
como pós-estruturalista, esta relação do que o autor quer e do que o leitor lê de fato não
interessa. O que realmente é interessante de se levar em conta são os elementos semiológicos
de leitura no momento da leitura e os elementos semiológicos de produção no momento da
produção, separadamente, pois tanto criador quanto leitor estão espacialmente e
cronologicamente separados. Ao ler uma obra, como vimos no capítulo que trata sobre signos
estéticos, o leitor coloca em choque criativo o signo da obra com os seus próprios signos
historicamente armazenados em níveis que ultrapassam sua consciência, e não com os signos
do repertório do autor. Por outro lado, a produção estética do autor é o resultado das suas
leituras de outros textos anteriores que deixam traços em sua própria capacidade de ler o
mundo e criar.
A pergunta corriqueira “o que o autor quer dizer com isso”, no momento da
leitura da obra, cai em desuso. Para este grupo de pensadores, onde se incluem Derrida,
Foucault, Barthes, Deleuze, Lacan e outros, o que tiver que ser lido está na superfície do texto
43
e não em algum lugar oculto, onde se encontram as intenções escondidas. O leitor é senhor de
sua leitura e constrói o texto lido com sua própria visão de mundo.
Jacques Derrida contribuiu fortemente com toda esta geração de pensadores
através de suas formulações sobre escritura. Nossas criações estão mergulhadas numa cadeia
de textos interligados. Entende-se como texto todo tipo de signo captado pelo homem:
fotografias, pinturas, cinema, poesia, literatura, e tudo o mais que seja possível ler latu sensu.
Tudo o que o homem vê é construído pela sua mente; é, então, lido. Portanto, tudo é texto,
tudo é signo, tudo é escrita. Tudo o que o homem produz está em íntima ligação com essa
cadeia de textos lidos e já produzidos anteriormente. Mas tais textos são entendidos não pela
lógica da presença, mas da ausência de todos os elementos da comunicação. Ausência do
autor, ausência do referente, ausência do leitor no momento da produção. Isso nos abre
profundamente o campo de entendimento sobre a produção de textos no sentido de que, cada
leitura de um texto, dentro desta lógica da ausência, é uma reescritura deste mesmo texto
dentro de um novo momento. A significação é um processo aberto. O texto deixa-nos traços,
trilhas, pistas de entendimento, de forma que não há uma determinação definitiva entre
significante e significado, mas possibilidades de significação dentro do jogo dos signos. É um
jogo distinto no momento em que o escritor produz para um público ausente e diferente para
cada vez que o leitor lê na ausência do escritor e na ausência daquilo a que o texto se refere.
Portanto, os elementos textuais, o repertório, que no passado ajudaram o autor a montar seu
novo texto, pouco interessam para o leitor, pois são total ausência, assim como o próprio autor
o é. A cadeia de textos é viva e joga conosco a cada momento de leitura (LUCY, 2004).
Retomaremos esta idéia quando falarmos da adaptação para o cinema de Drácula um século
depois de o livro ser publicado pela primeira vez.
Roland Barthes (1986) segue o mesmo pensamento, sendo que radicaliza a
importância dessa cadeia de textos. Recorre à etimologia da palavra “texto” para dizer que se
trata de uma tecelagem. O texto é plural. É um tecido composto de vários outros textos. Com
isso, chega a anunciar a morte do autor. O criador não importa mais. O que interessa é o texto
e sua relação com o leitor. Com este movimento, Barthes se contrapõe à crítica literária
anterior, que buscava explicar a obra a partir da vida e intenções do autor. Já Foucault
relativiza esta anunciada morte do autor feita por Barthes. Para Foucault, apesar de a
importância da leitura ser mais efetiva do que as intenções do autor, ele lembra que não
podemos deixar de reconhecer que existe uma “função autor”, que não pode ser descartada.
44
Uma carta particular pode ter um signatário, ela não tem autor; um contrato pode ter
um fiador, ele não tem um autor. Um texto anônimo que se lê na rua em uma parede
terá um redator, não terá um autor. A função autor é, portanto, característica do
modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior
de uma sociedade. (FOUCAULT, 2001, p. 274)
A identificação do sujeito autor tem, portanto, uma reconhecida importância, na
produção de certos textos – como na literatura e no cinema. Esta pessoa, ao cumprir sua
função autor, coloca algo de si em sua produção. Mas o que seria então isto que chamamos
“toque pessoal” numa criação? O que é então “criatividade”? Esta coisa que aprendemos
desde cedo ser algo tão ligado à personalidade de um autor, de uma pessoa? Uma mera forma
inusitada de reconfigurar textos anteriores? A teoria do autor do cinema, cujo principal pivô
foi André Bazin, chega-nos a sugerir um ponto de avaliação, sobre a qualidade ou não-
qualidade de um filme, baseado no quanto um diretor coloca de pessoal em sua produção;
quanto mais a personalidade do diretor transparecer em sua obra, melhores serão seus filmes.
E quanto mais submisso um diretor é a um roteiro, pior é seu filme. Mesmo que
desconsideremos este pensamento como critério de valor, podemos identificar aqui um tipo de
pensamento que sinaliza algo diferente da mera reconfiguração de outros signos preexistentes:
um transparecer de personalidade na obra. François Truffaut criticava, por exemplo, filmes
que eram adaptações de livros. Eles eram demasiadamente fiéis à obra literária e pouco
mostravam a “criatividade” do diretor. Porém, como poderemos ver mais adiante, mesmo as
adaptações literárias para o cinema se revelam criativamente ricas a partir do momento em
que as diferenças de meio e de época levam o diretor do filme adaptado a recriar a obra para o
cinema, transmutá-la.
Ainda pensando sobre a inventividade de um “novo” texto não ligado
intencionalmente a outro, como poderíamos, portanto, pensar que toda obra inédita se utiliza
de textos anteriores sem pensar na possibilidade do plágio, da cópia? O que torna uma obra
nova mesmo ligada de alguma forma a outros textos? A resposta talvez se faça nos mesmos
termos em que pensamos a produção da linguagem no capítulo anterior: não criamos signos
estéticos a partir de repetição, reordenação robótica, imitação de outros ou qualquer sistema
baseado em mera causa e efeito em relação aos signos do passado (salvo aqueles “criadores”
de má fé que de fato se utilizam destes artifícios). Produzimos signos estéticos através de uma
espécie de simbiose
7
lingüístico-social, na qual nossa personalidade e capacidade de
expressão se “infectam” e se misturam com a produção de linguagem a nosso redor, através
7
Termo emprestado da biologia. Segundo o UOL Houaiss: “associação entre seres vivos na qual ambos são
beneficiados”: < http://houaiss.uol.com.br>. Acessado em 06 de Outubro de 08.
45
de uma inter-relação com a cultura na qual entramos desde o nascimento até a morte. O termo
simbiose, emprestado da biologia, é aqui usado no sentido de um ganho mútuo através da
mistura ativa de dois elementos ou mais: o indivíduo criador e a cultura ao seu redor
misturam-se, interpenetram-se. Tanto o indivíduo contribui para a cultura com sua própria
produção de signos quanto a cultura contribui com o indivíduo para munir esta mesma
produção com os textos do passado à disposição do autor. Aqui é usada a idéia semiótica de
cultura, sugerida por Clifford Geertz: “o homem é amarrado a teias de significados que ele
mesmo tece (GEERTZ, 1989, p. 15)”. A cultura é essa teia, ela é “pública porque o
significado o é (GEERTZ, 1989, p. 22)”. Ainda segundo Geertz, “nossa consciência é
moldada pela impressão que outros têm das coisas e pela maneira como essas coisas se nos
apresentam aqui e agora” (GEERTZ, 1999, p. 18). Portanto, a relação que nossa própria
produção textual tem com a produção de outros não é conscientemente ordenada,
racionalmente apreendida para Geertz. Ela nos invade e molda nossa maneira de pensar de
forma que passa a fazer parte de nós mesmos. Os textos dos outros são transformados,
“socialmente transformados, deixando de ser algo que sabemos simplesmente que existe para
ser algo propriamente nosso, uma força que funciona em nossa consciência comum”
(GEERTZ, 1999, p. 74/75). É o que Peirce chama de parte “interpretante” do signo. A parte
do signo que vem de nós, a partir de um repertório armazenado na mente. Mas diferentemente
do que sugere o repertório de Bense, a parte interpretante do signo de Peirce é um repertório
que atinge níveis não acessíveis à memória. É tão entranhado a nossa produção de
significação que se pode dizer que é uma parte de nós mesmos
8
.
Idéia parecida encontra-se em Paul Ricoeur, no que ele chama de mimesis III: “o
texto nasce de um mundo da ação ou da vida prefigurado (mimesis I), configura um mundo
próprio enquanto composição lingüística (mimesis II), e retorna ao mundo da ação ou da vida
do leitor, através da interpretação que este faz do texto (mimesis III)” (MENTE,
CÉREBRO..., 2008, p. 24). Tudo o que lemos, portanto, passa a ser parte de nós, moldando
nossa forma de perceber e representar o mundo. Se é assim na produção de linguagem, não
deixaria de ser na produção de linguagem estética.
Portanto, podemos dizer que Bram Stoker, ao escrever seu Drácula, apesar de ser
uma obra “nova”, “original” no sentido de não ter ligação declarada com outra, utilizou-se
provavelmente de suas leituras de O Vampiro, de John Polidore, de suas leituras da história de
Vlad Tepes, príncipe romeno da Ordem do Dragão – a qual lhe dava o nome de Vlad Drácula
8
Para Peirce, o signo ainda possui duas partes além do interpretante: o objeto, que diz respeito a um referente, e
um veículo (representamen), que é a materialidade do próprio signo.
46
–, das lendas sobre vampiro, tão freqüentes na cultura do leste europeu e que chegaram à Grã-
Bretanha através de diversas formas de relatos, como poderemos ver no capítulo três desta
dissertação. Drácula é ainda uma história de perseguição, de caça ao monstro, de mistério, de
decifração de enigmas, estilos de escrita muito presentes na cultura britânica, vide as
aventuras de Sherlock Holmes, de
Arthur Conan Doyle, publicadas pela primeira vez em
1887; ou mesmo Frankenstein, de Mary Shelley. Enfim, é possível identificar traços de
diversos outros textos ecoarem na escrita de Drácula. Mas não podemos dizer que Drácula
seja uma cópia, ou plágio, ou imitação destas leituras que precedem a produção do livro de
Stoker. São textos que fazem parte da consciência do autor, de sua capacidade interpretativa,
de sua natureza que, por mais identificáveis que possam ser dentro da escrita de Stoker, são
em alguma medida ressignificados para uma nova leitura. São referências tão presentes em
sua consciência quanto a realidade que de fato ele vivenciou em sua época: lugares, pessoas,
situações reais que presenciou e formou sua personalidade. Podemos afirmar que estes textos
anteriores estão tão entranhados em Stoker quanto difícil é identificá-los com clareza dentro
da obra. Ou seja, pode-se afirmar que a obra Drácula é nova, não imitada de nenhuma outra,
não ligada a nenhuma obra anterior, apesar de ser possível apontar traços de algumas de suas
referências. Mas será que este “efeito de novidade” só acontece na medida em que o autor
consegue “esconder” ao máximo suas referências, suas ligações com outros textos? O que
aconteceria se uma obra fosse declaradamente ligada a outra? Não haveria, portanto, este
“efeito de novidade” numa adaptação para cinema do livro de Stoker?
2.4.2 Tradução e Transformação
Quando se fala em uma adaptação cinematográfica de um livro, está-se falando
numa certa estratégia declarada do diretor em ligar seu filme a uma obra literária. Tal fato
gera, no senso comum, uma relação dual entre livro e filme – um diálogo unilateral, uma
profunda ligação entre algo que é uma cópia de uma outra coisa que é original. Daí uma
tendência generalizada de se buscar, na leitura de um filme adaptado, uma “fidelidade” ao
livro fonte. Tal tendência pode ser filosoficamente compreendida dentro de uma tradição
platônica de pensamento: há uma verdade de um lado e há uma cópia de outro – um modelo a
ser preservado (o livro) e uma mímesis, um efeito, ou mesmo um simulacro deste modelo.
47
Esta tradição platônica levou ao pensamento ocidental uma divisão caracterizada a partir de
um corte epistemológico, colocando de um lado o inteligível (puro, bom, original) e de outro
o sensível (impuro, menor, material). “O objetivo da divisão não é, pois, em absoluto, dividir
um gênero em espécies, mas, mais profundamente, selecionar linhagens: distinguir os
pretendentes, distinguir o puro e o impuro, o autêntico e o inautêntico.” (DELEUZE, 2000, p.
260)
Platão acreditava que existia um mundo das idéias inteligível, melhor que o
mundo material sensível, mas inalcançável por nós. Tudo a que tínhamos acesso no mundo
material eram meras cópias sensíveis de algo original e melhor. Existiria, portanto, uma
cadeira original no mundo das idéias, da qual as cadeiras fabricadas pelo homem seriam
cópias desta ideal. Os desenhos de cadeiras seriam coisas menores ainda. Seriam cópia da
cópia, a que ele chamara de simulacro. Portanto, os signos, palavras, desenhos, estátuas,
representações em geral, eram coisas menores, cópias de cópias de modelos ideais,
inalcançáveis (PLATÃO, 2002).
O pensamento platônico ganhou força primeiramente na própria Grécia de sua
época, pois confortava uma cultura helênica destruída pela guerra do Peloponeso. Acima de
toda aquela penúria e sentimento de derrota gerados pela guerra, existiria um mundo melhor,
o qual os gregos alcançariam depois da morte (GLEISER, 1997). Posteriormente ganhou
força através da Igreja Católica, que usou o pensamento platônico como base das suas
doutrinas, entranhando-a na cultura ocidental durante séculos. Assim, o platonismo gerou toda
uma tradição ocidental da necessidade de buscarmos uma relação com algo central: busca da
Verdade, busca de Deus, busca de um Significado único, a Justiça, o Belo, etc. Um centro
que, segundo Derrida, levava a limitar o que poderíamos denominar “jogo da estrutura”.
No centro, é proibida a permuta e transformação dos elementos. (...) O conceito de
estrutura centrada é com efeito o conceito de um jogo ‘fundado’, constituído a partir
de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranqüilizadora, ela própria
subtraída ao jogo. (DERRIDA, 1995, p. 230 - 231)
Poderíamos pensar, de acordo com certo senso comum, que a relação entre
adaptação fílmica e adaptado literário fosse uma relação assim, um jogo engessado pela
presença marcante e centralizadora do livro na estrutura do filme. No entanto, Derrida
identifica um momento de ruptura do pensamento filosófico ocidental que se caracteriza por
uma tentativa de derrubada deste centro. Se nos colocarmos na posição dos esforços do que
Deleuze chama de “reversão do platonismo”, poderemos perceber que esta relação fechada e
48
dura entre livro e filme não deve ser uma regra. Dentro desta tradição de ruptura, melhor
identificada pela influência de Nietzsche, podemos relativizar a idéia de que o livro seja o
significado firme e inescapável do filme. De que a natureza central do livro deva ser
preservada no filme. Ou mesmo de que o livro seja, em medida de valor, maior que o filme,
mais importante, um modelo a ser respeitado. Para a tradição filosófica que se esforça pela
reversão do platonismo, o “simulacro” é tão importante quanto o original. Ou melhor: não há
simulacro nem original. Há uma nova obra que dialoga intencionalmente com outra anterior.
Ambas com valores próprios.
Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus
direitos entre os ícones ou as cópias. (...) O simulacro não é uma cópia degradada,
ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o
modelo quanto a reprodução. (DELEUZE, 2000, p. 267)
Um filme adaptado, portanto, não é uma prisão à letra do autor do livro. Assim
como na criação “livre”, existem também, nas adaptações, outros diálogos com outros signos
em jogo, presentes na alma do diretor e roteirista do filme. A nova tradição de ruptura com o
platonismo vem trazendo, à nossa forma de pensar, a idéia de que não há uma obrigatória
ligação dicotômica com um centro. “A ausência de um significado central amplia
indefinidamente o campo e o jogo da significação” (DERRIDA, 1995, p. 232). Os esforços
filosóficos de descentralização são na verdade os esforços que “descrevem a forma da relação
entre a história da metafísica e a história da destruição da metafísica” com todas as suas
versões deste centro: essência, existência, substância, transcendência, Deus, homem, etc.
Trazendo este pensamento para o nosso caso, esta ausência total de centro seria uma criação
totalmente livre, e não uma adaptação ligada a outro texto. Porém, podemos aproveitar daí
que a presença de um livro como ponto de partida para a criação de um filme não é um poder
absoluto sobre o filme, mas relativizado pela nova época em que se insere a adaptação, pelo
novo meio cinematográfico, que encerra diferenças com o meio literário, e pela liberdade de
leitura e criação do diretor/autor do filme. Derrida adverte que descartar completamente a
metafísica não é possível para o pensamento ocidental, pois inevitavelmente recaímos nela.
“Mas se ninguém pode escapar, isto não quer dizer que todas as maneiras de o fazer sejam de
igual pertinência. (...) A qualidade e a fecundidade de um discurso medem-se talvez pelo rigor
crítico com que é pensada essa relação com a história da metafísica” (DERRIDA, 1995, p.
235), diga-se, com o platonismo. Portanto, se a estratégia do diretor é a de estar ligado
intencionalmente a uma obra anterior, seu jogo e diálogo com esta obra podem ser
49
enriquecidos na medida em que ela não seja considerada uma imaculada origem à qual se
deve rigorosa fidelidade.
Tendo traçado a base que irá delinear nossa forma de pensar a adaptação fílmica,
vamos agora nos deter mais propriamente no processo de adaptação por que passa um filme
em relação a uma obra literária.
Ao se adaptar um livro para uma linguagem cinematográfica, pode-se dizer,
provisoriamente, que se transpõe determinado sentido de um meio para outro. Seguindo este
raciocínio, é possível considerarmos este processo como um processo de tradução. E traduzir
nada mais é do que colocar em prática uma atividade de substituição de uma materialidade
por outra. “Toda a operação de substituição é, por natureza, uma operação de tradução – um
signo se traduz em outro – condição, aliás, inalienável a toda interpretação: o sentido de um
signo só pode se dar em outro signo” (PLAZA, 2003, p. 27). Aqui então percebemos que a
atividade tradutora está presente em vários níveis da comunicação, desde a troca de um meio
material por outro, passando pela atividade interpretativa, até a transformação em palavras de
nossos pensamentos e memórias.
Ao interpretarmos um texto, por exemplo, estamos mentalmente associando
outros signos àqueles propostos, substituindo-os por outros, de maneira a que possamos
entendê-los. Esse é, pois, um processo recorrente em toda leitura: o da semiose. Por si só, esse
processo já pode ser considerado uma tradução. E quando se trata de signos estéticos, a
semiose é mais rica e complexa, pois a substituição dos signos é muito mais ambígua e
pertencente ao campo das possibilidades do que o que acontece com os signos em caráter
meramente informativo: um signo estético, dentro da atividade de leitura, é substituído
continuamente por vários outros signos possíveis. Mas se assim ocorre internamente no
momento da leitura, como ocorreria então o processo de substituição da sua materialidade, na
tradução de um sistema de códigos para outro, já que temos o conhecimento de que esta
abertura interpretativa é decorrente do fato de que a carga de informação estética está
intimamente atrelada justamente a sua materialidade?
Recaímos, desse modo, num impasse da tradução entre obras com marcante
iconicidade: se os possíveis significados de um signo estético estão tão enlaçados a sua
materialidade; se a operação de tradução se faz numa substituição de um suporte por outro,
então, pelo menos a princípio, o signo estético tornar-se-ia intraduzível. Afinal, “o grau
máximo da fragilidade da informação estética não permite qualquer alteração, por menor que
seja, de uma simples partícula, sem que se perturbe a realização estética” (PLAZA, 2003, p.
28). Todas as informações que se sustentam na carga sensível de uma obra têm seu sentido
50
completo exatamente na forma desta obra, nas estratégias usadas dentro de sua materialidade.
Ao mudar-se um detalhe desta materialidade – uma palavra, um cenário, uma cor, uma nota
musical –, corre-se o risco de perder-se a carga estética pretendida. Como então realizar uma
atividade tradutora, que consiste em substituição de matéria? A saída deste impasse é
entendermos a tradução icônica não como uma transferência de significados de um meio para
outro, mas uma transposição interlinguagens, intersemiótica, pois a tradução entre signos
estéticos busca sintetizar, em um meio diferente, um efeito análogo ao produzido pelo meio
original. Em outras palavras, busca transmutar, num outro corpo, o mesmo espírito.
A operação de substituição material da informação estética entre diferentes
sistemas de signos – caso no qual incluímos a adaptação fílmica de uma obra literária – é,
logo, tão complexa quanto o processo de interpretação do signo estético, da qual falamos há
pouco. O autor da obra tradutora pode ver a obra a ser traduzida sob diferentes ângulos, com
várias possibilidades interpretativas, dentre as quais ele deve fazer escolhas, segundo a sua
percepção da obra inspiradora. Este jogo de interpretação se revela ainda mais rico se
aplicarmos o pensamento da ausência de Derrida: todos os elementos da comunicação – autor,
referente, contexto original – estão ausentes no momento da leitura do autor da adaptação. A
nova época, quando é feita a nova leitura de Coppola sobre a letra de Bram Stoker, pode abrir
interpretações ausentes em seu momento original de publicação, o século XIX. Além disso,
estamos tratando de diferentes meios e formas de expressão, o que caracterizaria uma
tradução intersemiótica.
A Tradução Intersemiótica ou “transmutação” foi por ele (Roman Jakobson)
definida como sendo aquele tipo de tradução que “consiste na interpretação dos
signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais”, ou “de um sistema de
signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a
pintura”, ou vice-versa, poderíamos acrescentar. (PLAZA, 2003, p. 12)
O que nos interessa aqui é o estudo da transmutação da fábula Drácula de um
corpo literário para um corpo cinematográfico. E se Haroldo de Campos nos revela que toda
tradução é por si uma atividade que tem algo de recriação, na tradução intersemiótica esse
aspecto tem uma grande importância, pois “numa tradução dessa natureza não se traduz
apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade”
(CAMPOS, 2004, p. 35).
Devido a esta dependência do signo icônico à sua materialidade, a tradução
intersemiótica tende a criar novos objetos imediatos, novos sentidos, que antes não foram
expressos pela materialidade de referência. Isto acontece, além das diferenças de épocas, por
51
causa das diferenças físicas entre “original”
9
e tradução, levando esta última a se distanciar do
primeiro. “A eleição de um sistema de signos, portanto, induz a linguagem a tomar caminhos
e encaminhamentos inerentes a sua estrutura” (PLAZA, 2003, p. 30). Daí a afirmação de que
a tradução intersemiótica tem efetivamente um marcante aspecto de recriação da obra.
A criação nesse tipo de tradução determina escolhas nesse sistema de signos que é
estranho ao sistema do original. Essas escolhas determinam uma dinâmica na
construção da tradução, dinâmica esta que faz fugir a tradução do traduzido,
intensificando diferenças entre objetos imediatos. A tradução intersemiótica é,
portanto, estruturalmente avessa à ideologia da fidelidade. (PLAZA, 2003, p. 30)
Na tradução intersemiótica, então, a fidelidade absoluta é uma utopia, se
considerarmos as respectivas estruturas de linguagem entre meios tão diferentes, as diferenças
de época e a capacidade interpretativa e criativa do novo autor. Se considerarmos apenas as
diferenças de meio, Coppola não poderia, por exemplo, seguir a mesma profundidade
descritiva feita por Stoker, através da personagem Jonathan Hacker, sobre sua viagem pelos
Cárpatos, para se encontrar com Drácula, logo no início do livro. A linguagem literária
permite a riqueza de detalhes quanto ao sabor da comida recoberta de páprica picante;
permite-nos penetrar nas impressões psicológicas de Hacker, ansioso por chegar ao castelo e
curioso a respeito do misterioso conde e das reações temerosas dos nativos daquelas
localidades, ao saberem para onde ele estava se encaminhando. No livro, portanto, cada
detalhe da viagem é descrito de forma a ambientar o leitor na atmosfera de mistério da
história. O filme de Coppola, no entanto, consegue transmutar essa atmosfera, sem se prender
ao mesmo detalhamento descritivo utilizado no romance. Muito embora Coppola tenha
transcrito algumas falas e cartas com praticamente as mesmas palavras empregadas no livro –
como a carta do Conde, que Hacker levava consigo na viagem –, Coppola traduz
resumidamente a viagem de Hacker em apenas algumas cenas ambientadas no trem, em que a
personagem, numa locução em off
10
, narra o que supostamente havia escrito em seu diário.
Coppola não poderia colocar exatamente todas as nuanças deste momento da história,
primeiro por um limite de tempo que a linguagem fílmica impõe à narrativa e, segundo, pela
característica de exposição do filme, que dá valor a seu suporte de imagem-movimento, de
ação, que poderia tornar a mostra dos detalhes da viagem numa seqüência extremamente
maçante. No entanto, Coppola tem recursos de imagem que permitem expor a mesma
9
O termo “original”, aqui, tem o sentido de obra a partir da qual é realizada a operação tradutória, e não a
acepção de “obra primeira, fundadora”.
10
Termo técnico utilizado no cinema para descrever uma narração feita a partir de uma voz que não está
vinculada à interpretação visual de nenhuma personagem. VIDEOQUATRO – Vocabulário Básico de Cinema.
Disponível em: < http://www.geocities.com/Hollywood/1110/voc_cinema.html > Acesso em 05 jun. 2005.
52
atmosfera descrita por Stoker, através da iluminação, da trilha sonora, da interpretação do
ator, da seqüência de imagens, dos efeitos de sobreposição de cenas, etc. Devido às
características pelas quais a iconicidade se manifesta nos diferentes meios, a tradução
intersemiótica é, segundo Julio Plaza, uma “transcodificação criativa”. Ou seja, Coppola não
só transpôs o livro de Stoker para uma tela de cinema. Ele impôs um processo de
transformação, transmutação. Converteu os códigos literários para códigos fílmicos segundo a
sua leitura da obra de Stoker, recriando a fábula de Drácula em outro suporte, buscando
remodelar, cinematograficamente, efeitos sensíveis semelhantes aos presentes nas imagens
literárias.
Apesar de ser uma recriação, a atividade tradutora traça um caminho inverso ao da
invenção, em seu processo de produção. Enquanto a criação parte de sentidos móveis –
linguagens em movimento, presentes apenas na mobilidade da consciência do autor, de sua
cultura, para só depois se fixarem dentro de um sistema, de uma estrutura –, a atividade
tradutora parte de uma representação preexistente, de uma imobilidade sígnica, dilui-a em
sentidos móveis e percepções, segundo uma interpretação do tradutor, para só depois a fixar
em um outro meio, com uma linguagem diferente da obra traduzida (PLAZA, 2003, p. 39 -
40). Haroldo de Campos afirma que a tradução é uma recriação autônoma, porém recíproca
em relação ao original (CAMPOS , 2004, p. 35).
Esta relativa liberdade da obra tradutora em relação ao seu original nos alerta para
o compromisso que a tradução tem com a sua época.
Afinal, livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm
exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar que a
adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com o seu próprio contexto,
inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação
com os valores nele expressos (XAVIER, 2003, p. 62)
.
Toda obra de arte é, por si só, um produto sincrônico das diversas outras obras
produzidas pelo homem durante a história. Sendo assim, em qualquer obra de arte e, diga-se,
qualquer aspecto da vida humana, “o passado não é apenas lembrança, mas sobrevivência
como realidade inscrita no presente” (PLAZA, 2003, p. 2). Nesse sentido, a tradução
declarada de uma obra produzida num pretérito pressupõe a sobrevivência desta última de
uma forma mais produtiva, numa releitura de seus elementos sígnicos adaptados para uma
nova época. O olhar do tradutor sobre o passado está a serviço do seu interesse no presente.
São os olhos no presente que determinam grande parte das escolhas tradutoras do autor,
dentro da ambigüidade artística da obra transformada.
53
No texto de Bram Stoker, existem diferenças bastante explicitas no que diz
respeito ao triângulo entre Drácula, Mina e Hacker, com relação a várias adaptações
cinematográficas durante os tempos. No livro, escrito em 1897, Mina e Hacker têm um
relacionamento cúmplice, elegante e até moderno para os padrões da época. Mina tem uma
profunda inteligência, é provida de personalidade forte e independente, capaz de tomar
atitudes extremamente nobres e corajosas, como a de implorar para que seus companheiros
masculinos não tenham pena de eliminá-la, caso o vampirismo tome conta de sua alma. Tal
personalidade de Mina gerou diversos comentários do cientista Van Helsing, como o de que
ela era uma mulher com um “espírito masculino”. Mina era um reflexo do comportamento
feminino do final do século XIX, com uma maior emancipação em relação à família e um
papel mais ativo na sociedade. A mulher que começava a aparecer ali era “denominada pelos
intelectuais da época como Nova Mulher, que se pretendia mais independente não só
financeiramente, mas, também, o que era ainda mais assustador, sexualmente” (ROQUE;
TEIXEIRA, 2001, p. 27). Interessante lembrar que a mãe de Bram Stoker tinha forte
engajamento nas causas feministas da época (ROQUE; TEIXEIRA, 2001, p. 29). Jonathan
Hacker apóia a personalidade da esposa e se coloca como companheiro para todas as
situações. Por sua vez, o interesse de Drácula em Mina é simplesmente o de manter um
contato mental com um membro do grupo que o quer eliminar – na avaliação de Drácula, ela
seria supostamente o membro mais frágil, o que não se confirma na conclusão da trama – para
poder seguir seus passos e até fazê-la aliada para destruir seus algozes.
Na tradução cinematográfica de 1958, estrelada pelo ator Christopher Lee e
dirigida por Terence Fisher, Drácula busca uma noiva, e não a infiltração no grupo que o
persegue. Um caça-vampiros havia eliminado a sua esposa anterior em seu castelo e agora
Drácula procura vingar-se desse caçador, tentando trazer Mina para seu castelo e fazer dela
sua nova esposa. É, por conseguinte, uma leitura romântica, feita no auge da idéia de família
do “american way of life”, uma busca pelo casamento. Interessante observar que esta versão
muda completamente as personagens da trama de Stoker e as configura em uma relação
claramente familiar: o caça-vampiros é Jonathan Hacker, cuja irmã, Mina Murray, casa-se
com Arthur Holmwood. Drácula quer ter Mina como noiva porque vê sua foto no quarto do
“irmão”.
Na versão de Coppola, o relacionamento entre Hacker e Mina é frio, formal e
descompromissado, apesar de ela sutilmente ter revelado certo desejo carnal pelo então noivo
no início da trama, antes de ele viajar para encontrar-se com o Conde. No entanto, o
relacionamento dela com Drácula é intenso, apaixonado, comprometido, erótico... Mostra-se,
54
portanto, um comportamento contrário à tradução de 1958, com um desprendimento de Mina
e de Hacker para com a instituição do casamento e um crescente apego dela àquele que
realmente ama e deseja: Drácula, despreocupando-se cada vez mais, durante a trama, das
convenções sociais e entregando-se aos seus desejos mais íntimos. Hacker, ao perceber a
ligação de Mina com o “outro”, não toma nenhum posicionamento claro e não demonstra
sentimentos de perda. Drácula, por sua vez, enfrenta inúmeras barreiras para ter Mina, a
reencarnação de sua esposa amada, ignorando totalmente o fato de ela ser casada com Hacker.
Parece tratar-se do reflexo da decadência da instituição “casamento” do início dos anos
noventa. Tal declínio daria margens para relacionamentos extraconjugais, valorização do
erotismo e, conseqüentemente, abertura a um risco de contágio por doenças venéreas. Nesse
último aspecto, no caso da adaptação de 1992, sugere-se a relação entre vampirismo e AIDS,
enquanto que, à época do livro de Bram Stoker, a relação era com a sífilis, a doença do sangue
que amedrontava a Europa do final do século XIX.
Percebe-se, dessa forma, o quanto a fábula foi adaptada ao contexto de cada época no
qual se inscreviam suas diversas versões. Veremos isto mais detidamente, e usando outras
adaptações, no capítulo três desta dissertação. São associações metafóricas diferentes, mas
que usam a mesma história. Metáforas que ganham força ao deslocar a história de Drácula
para diferentes épocas. Daí a força renovadora que existe na prática da tradução. É uma
prática de transformação, mas também uma prática de deslocamento de algo que está inserido
em um contexto para o outro. Voltando ao exemplo dos readymade, Marcel Duchamp desloca
um mictório para dentro de um salão de artes. Com este simples gesto, transforma o seu
significado usual – um artefato para urinar em banheiros masculinos – para um sentido
ampliado a partir do momento em que ele associa o mictório a um contexto de arte. As
possibilidades interpretativas explodem, o sentido se abre, a significação fica maleável, a
conotação chega a graus absurdos, criam-se novas metáforas sem mudar praticamente nada de
sua materialidade – apenas acrescentando a assinatura de Duchamp –, mudando apenas o
contexto de sua exposição.
Aqui podemos arriscar alguns raciocínios inerentes a uma obra adaptada. É possível
perceber que, diferentemente de outros diretores que adaptaram Drácula para o cinema,
Coppola optou por uma estratégia de criação que liga fortemente seu filme ao livro de Bram
Stoker. Vamos estudar mais detidamente esta estratégia no capítulo três desta dissertação.
Porém, é importante nos adiantarmos para ressaltar que, mesmo seguindo praticamente o
mesmo fio narrativo de Stoker, mesmo mantendo os mesmos personagens com suas principais
características e obedecendo seqüências de acontecimentos muito próximas às do livro, o
55
filme Drácula de Bram Stoker é capaz de suscitar leituras não presentes no livro Drácula.
Primeiro pela própria materialidade fílmica, que por si só nos mostra uma nova forma de a
história se apresentar. E segundo, por ter o poder de levar ao público de 1992 leituras que a
pessoa de Francis Ford Coppola teve da obra Drácula. Lembrando o esquema de Paul
Ricoeur, a “mimesis I”, que corresponde ao “objeto” de Peirce, ou seja, o referente,
permanece tendo sua principal força no livro Drácula. Porém, a “mimesis II” (representamen
de Peirce) muda completamente – a materialidade do signo é outra, tem a forma fílmica ao
invés da forma literária. E a materialidade icônica por si só nos leva novas mensagens
estéticas. As escolhas feitas pelo autor dentro desta materialidade são responsáveis por
diversos efeitos sensíveis que nos chegam aos sentidos. Apesar de por diversas vezes esses
efeitos buscarem semelhança com os proporcionados pelo livro, nunca serão exatamente
iguais. Em relação à “mimesis III”, que corresponde ao interpretante de Peirce, há mudanças
importantes. Em relação ao autor, o interpretante revela a leitura que Coppola teve de Bram
Stoker, a contribuição, a personalidade do diretor norte-americano para devolver ao mundo a
fábula de Drácula renovada para uma nova época. É mais ou menos como tirar um mictório
de um banheiro e levar para um salão de artes. Coppola, mantendo muitos aspectos da trama
de Stoker, deslocou Drácula para um outro contexto e renovou suas leituras. De maneira
generalizada, podemos dizer que esta contribuição pode ser percebida nas novas metáforas
possíveis de serem lidas no filme Drácula de Bram Stoker. A saber, a metáfora do
vampirismo como AIDS.
Importante ressaltar que aqui não se fala de metáfora como um simples ornamento
de linguagem. Para Paul Ricoeur, este é um erro originário da diminuição histórica do campo
da retórica através do primado do significado da palavra. Por muito tempo atribuiu-se à
palavra um poder que, para Ricoeur, na verdade deveria ser da sentença, do contexto geral. O
poder de significação não está individualmente na palavra, mas no texto. A conseqüência
deste erro é outra: considerar a metáfora como um desvio da significação “correta” de uma
palavra – na metáfora, dá-se a um termo um significado “diferente” do seu significado
“correto”, o que reduziu o real poder da metáfora. “Esse erro inicial conserva a ditadura da
palavra na teoria da significação. Percebe-se apenas o efeito mais distante desse erro: a
redução da metáfora a um simples ornamento” (RICOEUR, 2000, p. 79).
O real poder da metáfora é o poder de associação de diferenças, associação de
idéias, que pode proporcionar um processo de significação inaugural sujeito a passar a ser
hábito. A metáfora torna-se, assim, um motor da linguagem, abrindo e inaugurando
possibilidades significativas diferentes das verdades já consolidadas pelo hábito. Ela é,
56
portanto, uma ferramenta que torna viva a linguagem e seu processo de significação. O que
hoje entendemos como significado das palavras, são metáforas mortas, cristalizadas, que
perderam sua histórica associação criadora e se reificaram. Como o são as catacreses. Um dia
alguém chamou a parte que sustenta a cadeira de “pé” de forma metafórica, já que “pé” tinha
sua significação consolidada à parte do corpo que nos sustenta e ajuda a andar. Neste suposto
momento fundador, fez-se a metáfora “pé de cadeira”, que hoje entendemos como uma
catacrese. Para Nietzsche, o que entendemos como significado das palavras são, na origem,
metáforas, mas que as esquecemos como tal com o tempo. Nietzsche percebeu que somos
constantemente enganados pelo nosso intelecto ao tentar ligar a verdade das coisas a
significados sólidos das palavras. Lembra que estas verdades foram construídas pelo próprio
homem, as coisas só podem ser alcançadas por nós através da linguagem e esta linguagem é
feita fundadoramente de metáforas, as quais a mantêm sempre viva.
A “coisa em si” (tal seria justamente a verdade pura sem conseqüências) é, também
para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a
pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxílio para
exprimi-las as mais audaciosas metáforas. Um estímulo nervoso, primeiramente
transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada
em um som! Segunda metáfora. E cada vez completa mudança de esfera, passagem
de uma esfera inteiramente outra e nova. (NIETZSCHE, 1983, p. 47)
Passagens de esferas, transformações, novas associações, ressignificações, são as
metáforas vivas, novas, ainda não reificadas, que nos surpreendem e são percebidas com
clareza no signo estético. Tanto o signo que é uma tradução intencional de um outro quanto
um signo “livre” têm este poder – surpreender-nos com novas associações metafóricas, com
seu poder de metaforização, independente do quanto este signo seja ligado a outro anterior. A
verdade é que qualquer signo estético ecoa outros signos anteriores e tem o poder de renovar
associações de idéias, ou seja, produzir metáfora, produzir o que chamamos aqui de “efeito de
novidade”. O conceito de “ecoar” vem de José Medina:
Eu descrevo as complexas relações que existem entre múltiplas vozes e perspectivas
em e através de contextos por meio da noção de ecoar (...): vozes que ecoam, falam
para outras mediante o uso repetido de signos numa variedade de modos (algumas
vezes muito similares, outras terrivelmente diferentes), havendo uma ampla gama de
efeitos, dependendo do tipo de interação envolvido no ecoar (MEDINA, 2007, p.
174).
Ecoam no livro de Bram Stoker diversas vozes como vimos anteriormente – Mary
Shelley, Conan Doyle, as histórias de vampirismo, o feminismo de sua mãe, O Vampiro de
57
John Polidori, as histórias de Vlad Drácula Tepes, etc. Assim como várias vozes ecoam no
filme de Francis Coppola – contidas em sua formação de diretor e formação humana –, como
a história do cinema, as várias adaptações anteriores de Drácula, também a história de Vlad
Tepes, matérias jornalísticas sobre vítimas da AIDS, a cultura cinematográfica norte-
americana, inclusive a voz de Bram Stoker ecoa fortemente. Neste ponto de vista, percebe-se
que o processo criativo de Bram Stoker não difere muito do processo criativo de Coppola.
Ambos usaram signos do passado entranhados em suas personalidades, ambos respeitaram os
códigos dos meios nos quais estavam inseridas suas obras e ambos abriram a possibilidade de
percebermos fortes metáforas em seus respectivos contextos – em Drácula, a metáfora do
vampirismo com a sífilis; em Drácula de Bram Stoker, a metáfora do vampirismo com a
AIDS, sendo que Coppola trouxe criativamente o contexto do século XIX de Stoker para o
contexto dos anos noventa, renovando as significações de uma fábula “repetida”. “O
fenômeno de ecoar é uma forma de repetição semiótica que injeta dinamismo constante na
vida temporal do significado. As conexões semânticas são forjadas pelo eco de um contexto
em outros contextos” (MEDINA, 2007, p. 175). A grande diferença é o fato de que, em Bram
Stoker, as vozes ecoam numa variante apenas sutilmente percebida, enquanto que em
Coppola, a voz de Stoker aparece em alguns aspectos de forma bastante similar ao seu
formato literário.
O que se percebe em ambos é a riqueza criativa possível quando acontecem
diálogos intersemióticos, intermeios, para a construção de um texto e seus decorrentes e
possíveis efeitos de novidade. E este diálogo não precisa necessariamente ser consciente,
como o fez Coppola com relação ao livro de Stoker. A riqueza da interação, entre diferentes
vozes inscritas em diversos suportes, está muito além da memória do autor. Está em sua
capacidade de ler o mundo unido ao domínio da linguagem que sustenta o meio onde produz
sua poética. Tal estudo comprova o dialogismo de Bakhtin, que pode ser resumido na
afirmativa de que a linguagem é um fato social. A consciência de cada indivíduo está
necessariamente vinculada a seu contexto social.
Assim, a personalidade que se exprime, apreendida, por assim dizer, do interior,
revela-se um produto total da inter-relação social. A atividade mental do sujeito
constitui, da mesma forma que a expressão exterior, um território social. Em
conseqüência, todo o itinerário que leva da atividade mental (o “contexto a
exprimir”) à sua objetivação externa (a “enunciação”) situa-se completamente em
território social (BAKHTIN, 1997, p. 117)
58
E a força da produção de um autor talvez esteja na sua capacidade de produzir
obras socialmente relevantes, que levem uma mensagem a sua época, que gere associações
novas e tenha relevância enquanto linguagem em seu espaço e tempo. Mas que também não
fique presa à época de sua autoria. Que possa ser lida em outros momentos, sendo assim
recontextualizada, renovando suas mensagens para outros tempos através de seu poder
metafórico para cada nova leitura.
Se então sairmos da esfera da autoria, desconsiderarmos aquilo que Foucault
chama de função autor, e avançarmos para o campo social, é possível ver o processo de
transmutação dos signos como um fenômeno antropológico. O conceito de transformação
neste estudo usado como sinônimo de transmutação e tradução intersemiótica – é parte
importante dos estudos etnográficos sobre mitologias de Claude Lévi-Strauss. Aqui, então,
não interessa a autoria do mito, mas o seu papel na sociedade de origem. “Os mitos não têm
autor; a partir do momento que são vistos como mitos, e qualquer que tenha sido sua origem
real, só existe encarnados em uma tradição” (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 37).
Ao estudar a presença de diversos mitos em diferentes sociedades indígenas, Lévi-
Strauss busca demonstrar a “existência de uma lógica das qualidades sensíveis, que elucide
seus procedimentos e que manifeste suas leis” (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 19). A partir daí
percebe que existem estruturas semióticas nos mitos que servem como eixo e sofrem
transformações, dando origem a outros mitos, independentemente do seu grau de afastamento
geográfico de uma sociedade indígena com relação à outra. O mito bororó (usado
aleatoriamente como ponto de partida de seu estudo) “não é senão uma transformação mais ou
menos elaborada de outros mitos, provenientes da mesma sociedade ou de sociedades
próximas ou afastadas” (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 20). Os mitos, portanto, se entrecruzam e
se ressignificam de acordo com os propósitos de cada grupo social. Cada narrador conta um
mito a sua maneira, alterando livremente inclusive elementos importantes. No entanto, na
necessidade que teve de formar uma sintaxe da mitologia, Lévi-Strauss identificou estruturas
que se repetem e as chamou de “esquemas-condutores”, que se “simplificam, se enriquecem
ou se transformam. Cada um deles se torna origem de novos eixos” (LÉVI-STRAUSS, 2004,
p. 21).
Ao estudar tais fenômenos, Lévi-Strauss inclui o seu próprio trabalho etnográfico
como parte do processo de tradutibilidade do mito, anunciando que “neste livro [Mitológicas I
– O cru e o cuzido] o pensamento dos indígenas sul-americanos tome forma sob a operação
do meu pensamento, ou o contrário” (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 32). Ele considera o
processo da tradução algo vital para o mito, pois é assim que ele sobrevive em diferentes
59
ambientes onde é narrado e consumido. O trabalho de Lévi-Strauss dá continuidade a este
processo através da tradução que o etnólogo francês faz da sintaxe mitológica para um
ambiente científico.
Essas idéias de tradutibilidade dos mitos, de transformação constante, nos
mostram que, de certa forma, algo semelhante acontece em nossa cultura ocidental. Histórias,
mitologias modernas ou antigas, obras de arte, filmes, livros, enfim, discursos se cruzam e se
ressignificam constantemente de acordo com diferentes contextos. Perceberemos de forma
mais emblemática estas transformações no capitulo seguinte, em que buscaremos traçar um
caminho que mostra diversos entrecruzamentos entre estruturas semióticas sobre vampiros,
desde a antiguidade, que se transformam e são intersemioticamente traduzidas para outros
meios, outras épocas, outras estruturas sociais, chegando até o filme Drácula de Bram Stoker,
de Coppola.
60
3 DRÁCULA
É possível entender a criação de uma obra estética como um filho. Nele, podemos
identificar em suas feições traços do pai, da mãe, dos avós, tios, ou mesmo admitir uma
mistura tão própria que se torna difícil perceber com clareza suas características descendentes.
De forma semelhante acontece com uma criação estética. Dentro de um texto, é possível
identificar traços, no sentido de Derrida, de outros textos em sua estrutura. No entanto, jamais
chegaremos aos verdadeiros códigos de DNA que identificam claramente as referências do
autor. O máximo que conseguimos é mapear, dentro do fenótipo, dentro do que se expõe a
nossa leitura, o que sejam possíveis textos contidos em um texto como Drácula ou Drácula
de Bram Stoker.
O que se procura fazer neste capítulo, dentro do que nos foi possível estudar na
obra de Bram Stoker e Francis Ford Coppola, é mapear o entrecruzamento de alguns signos
do passado possíveis de serem percebidos, tanto no livro quanto no filme, bem como analisar
o uso do livro de Stoker em outras adaptações para o cinema.
Longe de procurar visualizar os cromossomos dos filhos para identificar a
contribuição de cada parente para a formação deles, tentamos olhar para as suas aparências e
especular a quem pertencem os olhos, a boca, o nariz, etc. O intuito é tentar aplicar a hipótese
que se apresenta neste trabalho – tanto adaptações quanto novas criações utilizam
transformações de signos antecedentes. Independentemente se em um caso os ecos destes
signos são mais aparentes ou mais discretos, estas criações sempre têm o compromisso de
dialogar e levar algo de novo à época em que são produzidos.
3.1 UM MITO TRANSFORMADO
Muito antes do surgimento de Drácula em forma de romance literário ou mesmo
filme, a idéia do vampiro vagava pelo mundo sob diversos nomes e formas. Esse mito surgiu
nas mais diferentes civilizações, proveniente de certos simbolismos decorrentes da percepção
do homem em relação à sua própria natureza e ao mundo que o cercava, como o poder vital
do sangue, os mistérios da morte, a magia da noite e de suas criaturas. Esses signos presentes
61
em nosso imaginário, unidos a outros fenômenos, e ligados às características e história de
cada região, fizeram nascer ricas lendas sobre sugadores de vida, adoradores de sangue, seres
bestiais e outras crendices que sobreviveram durante séculos, dispersos na memória de
algumas sociedades e sob a forma oral. Com o passar do tempo, essas memórias foram
ganhando materialidade, fixando-se em forma documental, seja através da escrita, da pintura,
do desenho, da escultura, seja, posteriormente, por meio da fotografia e cinema, fortalecendo
assim suas representações e, conseqüentemente, suas percepções.
Desde 125 AC tem-se conhecimento, na mitologia grega, de Lâmia (FARIA,
acesso em 20 jul. 2005), criatura metade cobra, metade mulher, que comia a carne e bebia o
sangue de suas vítimas para viver. Provavelmente este seja o primeiro registro de um ser com
características vampíricas de que se tem conhecimento. Segundo a lenda, Lâmia era rainha da
região onde hoje é situada a Líbia e teve um filho com Zeus, que foi tirado dela por Hera,
esposa do deus grego. Enlouquecida, Lâmia vagou pela terra alimentando-se de crianças.
Tal como a mulher-cobra da Grécia, a lenda judaica de Lilith (MELTON, 2008)
também está ligada ao divino e à origem do mundo, remontando, assim como a lenda grega, à
antiguidade. Lilith foi a primeira mulher de Adão, criada por Deus a partir do mesmo barro.
Por ter sido obra feita da mesma matéria-prima de seu esposo, com ele entrava em conflitos
constantes, exigindo-lhe o direito de igualdade. Lilith fugiu do Éden, depois de tentar fazer
valer o seu desejo de posicionar-se por cima durante o sexo, prática negada várias vezes pelo
cônjuge. Deus então criou Eva, não do mesmo barro, mas da costela de Adão. Enciumada,
Lilith passou a perseguir os filhos de Eva, sugando-lhes o sangue e a vida.
O vampirismo é, portanto, uma lenda presente no imaginário de várias sociedades,
desde tempos remotos. Na Idade Média, existiu na Europa o mito dos súcubos (DE FARIA,
Acesso em outubro de 2008), demônios que assumiam a forma feminina, com capacidade de
tomar a aparência de quem desejassem. Apareciam à noite para seduzir os homens e sugar-
lhes a energia, vampirizando-os depois da exaustão do ato sexual. Sua versão masculina são
os íncubos.
Uma região teve particularmente maior profusão de lendas sobre vampirismo: o
leste europeu. Lá, vários termos disseminaram-se para denominar essa criatura que
conhecemos como vampiro: vulkodlak, vampir, upyr, nosferatu, krvopijac, etc. Nos Cárpatos,
essas lendas ganharam verossimilhança devido a fortes relatos vampíricos envolvendo
personagens históricas locais, conhecidas por sua crueldade e práticas de culto sanguinário.
Uma delas foi a Condessa Elizabeth Bathory (MELTON, 2008), conhecida como a Condessa
do Sangue. Nascida em 1560, na Hungria, Elizabeth viveu por muito tempo em seu castelo, à
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espera de seu marido, o Conde Ferencz Nadasdy, que era soldado e estava constantemente em
batalhas. A ocupação preferida da jovem condessa era torturar seus criados e camponeses. Seu
maior desejo era manter-se eternamente jovem e achou que houvesse descoberto a fórmula
acidentalmente, quando torturou uma criada e notou que o sangue espirrado sobre as mãos
rejuvenescera sua pele. Passou então a banhar-se em sangue de jovens mulheres e bebê-lo,
fazendo cada vez mais e mais vítimas, cujos corpos eram abandonados nas redondezas
praticamente exangues. Tais medonhos cadáveres foram identificados pelos camponeses
como sendo obra de vampiros, reforçando a lenda. Elizabeth Bathory foi descoberta e punida
posteriormente pelo rei Mathias da Hungria, por motivos políticos. Afinal, ela lhe devia
grandes quantias e o monarca conseguiu, na condenação da condessa, que as terras de
Elizabeth fossem confiscadas, sanando assim suas dívidas.
Outra personagem marcante para a força do lendário vampírico da Europa
Oriental, anterior e mais famosa que a Condessa do Sangue, foi Vlad Drácula Tepes
(MELTON, 2008), cruel príncipe e herói romeno na guerra contra a invasão dos turcos. Vlad
nasceu em 1428, filho de Vlad Dracul, pertencente à Ordem do Dragão. Aprendeu com os
turcos a técnica de empalamento, que passou a aplicar em seus inimigos. Essa terrível forma
de execução consistia em prender cada perna do inimigo em um cavalo e puxá-lo em direção
a uma estaca untada em óleo, de forma a penetrá-lo pelo reto ou vagina, atravessando-lhe
internamente o corpo. Suas vítimas morriam lentamente, erguidas nas cercanias de seu castelo
sobre as estacas. Costumava servir banquetes em volta delas, nos quais por vezes forçava seus
convidados a beber o sangue de suas vítimas moribundas. Também tirava a pele de seus
inimigos ou subalternos e a exibia ao lado do corpo escalpelado e ainda vivo. Tepes morreu
em batalha, confundido com um turco, no ano de 1476. Decapitado, sua cabeça foi exposta
numa estaca em seu castelo.
Acredita-se numa relação entre as famílias de Vlad Drácula e Elizabeth Bathory.
Alguns dizem que são primos, outros identificaram que Elizabeth fazia parte da Ordem da
Ave Negra, que tinha estreita ligação com a Ordem do Dragão. Outro fato que leva a essa
teoria é que um feudo de Drácula passou para a mão dos Bathory durante o tempo de
Elizabeth. Essa provável ligação inspirou Coppola a batizar de Elizabeth a amada esposa de
Drácula, na época em que este ainda era humano. No filme, assim como a Elizabeth histórica,
ela cuidava das propriedades do marido enquanto ele travava batalhas contra os turcos. A
própria personagem Drácula de Coppola, antes de tornar-se vampiro, no prólogo do filme,
tinha características comuns ao Vlad Tepes Drácula histórico: lutou contra os turcos, era um
63
príncipe romeno e empalava seus inimigos. Afinal, Tepes serviu de inspiração para Bram
Stoker montar seu personagem vampírico, no livro Drácula.
Essas histórias, que remontam aos séculos XV e XVI, espalharam-se no leste
europeu, através da oralidade, dando assim força ao mito do vampiro. No século XVIII, o
fenômeno chamou a atenção da ciência, espalhando pelo continente a fama da região. Um
certo sérvio chamado Arnold Paole intrigou o meio intelectual de grande parte da Europa
Ocidental. Um relatório oficial de um cirurgião chamado Johannes Fluckinger, que
investigava relatos de vampirismo na Sérvia, em 1732, culpou Paole pelos estranhos casos de
óbitos, supostamente provocadas por mortos-vivos, relatados na vila Meduegna. O próprio
Arnold, quando vivo, dizia ter recebido a visita de um vampiro que lhe havia sugado o
sangue. Quando seu corpo foi exumado pelo cirurgião, sua aparência era impressionantemente
conservada, possuindo manchas de sangue na boca, o que denunciava que ele era o vampiro
responsável pelas estranhas mortes em Meduegna (MELTON, 2008). Tal relatório, que
descrevia outros cadáveres com as mesmas características das de Paole, viajou pelo meio
intelectual da Europa e chegou às mãos de um abade beneditino chamado Dom Augustin
Calmet, estudioso da bíblia e de fenômenos considerados estranhos (MELTON, 2008). Dom
Augustin teve um leitor assíduo no século XIX, um médico imigrante italiano residente em
Londres chamado John William Polidori, autor do conto O Vampiro, que também inspirou
Bram Stoker, em Drácula.
O Vampiro, publicado em 1819 e escrito por John Polidori, é considerado o
primeiro conto sobre o gênero da língua inglesa. Polidori era estudioso de relatos associados
ao vampirismo e apaixonado por literatura fantástica. Médico, amigo particular de Lord
Byron, participava com o poeta inglês de constantes reuniões e eventos que contavam com a
presença de outros ilustres autores ingleses. Em certa ocasião, inspirou-se em um conto de
Byron inacabado, introduziu seus conhecimentos sobre vampirismo – modificando, assim, os
personagens e a trama – e escreveu o seu O Vampiro. Mas, apesar de ter transformado a
criação original, importantes pontos da personalidade do protagonista do conto byroniano se
tornaram a base da de Lord Ruthwen (o vampiro de Polidori): o ar aristocrático, conquistador
e eloqüente, que inspirou Stoker e muitas outras produções artísticas na representação do
vampiro. Lord Ruthwen, que originalmente vivia com seus pares vampiros em cavernas nas
florestas gregas, passou a viver viajando pelas grandes cidades européias, infiltrando-se na
alta sociedade com a facilidade que seu estilo empático lhe permitia. Chegava às suas vítimas,
jovens filhas de ricos aristocratas, através da sedução, propondo casamento e, finalmente,
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sugando-lhes o sangue e a vida, mantendo-se eternamente jovem e galante. Este era seu ciclo
de sedução erótica e vampirismo.
Drácula, no entanto, apesar de a letra de Bram Stoker sugerir o erotismo, dá mais
margem ao lado racional da personagem, de sua inteligência unida à bestialidade, capaz de
calcular durante anos um plano para fazer proliferar o vampirismo em Londres, no epicentro
da civilização moderna, como podemos perceber nas palavras da personagem Van Helsing,
sobre Drácula:
Esse vampiro, ao qual me refiro e está vivendo entre nós, é tão forte quanto vinte
homens reunidos. Sua esperteza excede à dos seres mortais, porque vem se
desenvolvendo há séculos. Também dispõe da ajuda da necromancia, a qual
significa, segundo sua própria etimologia, a adivinhação através da invocação dos
espíritos.(...) Ele é mais do que bestial, é um verdadeiro demônio, porque seu
coração deixou de existir. (STOKER, 2002, p. 233)
O vampiro de Polidori também possui esse lado, mas encontra na sensualidade
uma força maior para chegar a seus objetivos, característica que muito interessou ao cinema
em suas versões para a obra de Stoker.
O seu rosto era regularmente talhado, apesar do tom sepulcral dos traços jamais
animados por aquele amável rubor que é fruto da modéstia ou de fortes emoções
provocadas pelas paixões. As mulheres mundanas, ávidas de uma celebridade
aviltante, disputavam-no acerbamente, sem que nenhuma obtivesse dele o mínimo
sinal de preferência. Lady Mercer, que desde o casamento tivera a vergonhosa glória
de ofuscar, nestes meios, a conduta tumultuosa de todas as suas rivais, lançou-se ao
ataque e fez tudo o que pôde para atrair as suas atenções. Mas a impudência de Lady
Mercer fracassou, e ela viu-se obrigada a renunciar. Contudo, se ele não concedia
sequer um olhar às mulheres mundanas que encontrava diariamente, a beleza não lhe
era porém indiferente. Apesar disso, interessado como parecia estar tão-somente
pelas mulheres virtuosas ou pelas raparigas inocentes, fazia-o com tanto recato que
poucas pessoas estavam a par das suas relações com o belo sexo. A sua conversação
tinha um encanto irresistível e, ou porque conseguisse desfazer a má impressão que
inspirava à primeira vista, ou devido ao seu desprezo aparente pelo vício, era tão
solicitado pelas mulheres cujas virtudes domésticas são o ornamento do seu sexo,
como pelas outras que o desonram. (POLIDORE, Acesso em julho de 2008)
O Vampiro de John Polidori, pela própria influência que teve sobre o romance de
Stoker, deu então uma forte contribuição para associarmos o vampirismo à sensualidade, a
ponto de percebermos a mordida vampiresca como um verdadeiro ato sexual. Esta percepção
fica muito clara nos livros da escritora contemporânea Anne Rice, onde seus personagens
vampíricos têm forte apelo sensual, evidenciando que o “beijo do vampiro” é, ao mesmo
tempo, uma forma de alimento e de prazer carnal.
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Ursula (...) segurava-me gentilmente com seus dedos longos. Eu me fixei nos seus
olhos.
- Estou bêbado, embriagado apenas com a fragrância.
- Agora meu sangue é somente para você – ela murmurou.
- Então me dê logo, desejo-o ardentemente. Estou fraco, estou me sentindo morrer –
disse. (...)
- Acalme-se, meu amor, meu querido – ela disse.
Seu braço enroscou-se na minha cintura e de repente senti seus lábios macios, logo
abaixo de minha orelha, sugando a carne, como se ela quisesse fazer uma dobra no
meu pescoço, aquecê-la com a língua, e depois cravar os dentes.
(...)
Então uma sensação de fogo penetrou-me pelo orifício no pescoço, dando-me a
impressão de que era um parasita de longos tentáculos que uma vez dentro do meu
corpo atingiu minhas mais remotas entranhas. (RICE, 2000, p. 106)
A ação ativa da penetração sugere-nos naturalmente uma associação com o sexo.
E esse sexo é carnal, voluptuoso, luxuriante, promíscuo. Afinal, devido a ser também uma
necessidade fisiológica determinante para a sobrevivência do vampiro, ele necessita utilizar-se
da mordida diversas vezes e em diferentes vítimas, para alimentar-se. Não é surpresa
nenhuma então percebermos a ligação do vampirismo com a sífilis, na época da publicação de
Drácula, de Bram Stoker, já que é um mal que prolifera a partir da “relação sexual” do
vampiro com sua vítima, ao infectá-la com o mesmo mal dele. Afinal, essa aproximação entre
sexo e mordida já se fazia fortemente presente na letra de Bram Stoker, notadamente no
momento em que Jonathan Hacker está preso no castelo de Drácula e é seduzido pelas três
vampiras que lá vivem.
Tive receio de abrir mais as pálpebras, mas arrisquei um rápido olhar por entre
minhas pestanas. A jovem loira estava ajoelhada a meu lado e se mantinha sempre
inclinada sobre mim, apenas me olhando fixamente, como em um êxtase de
enternecimento. Em seus olhos brilhava uma desvairada voluptuosidade, ao mesmo
tempo repulsiva e arrebatadora. Quando voltou a curvar o pescoço, passava a língua
sobre os lábios trêmulos em um instinto animal. Sob a claridade do luar, pude ainda
observar as gotas de saliva que brilhavam, pousadas sobre o contorno escarlate de
seus provocantes lábios, e a língua ao deslizar sobre a ponta de seus dentes
aguçados.
E ela foi abaixando sua cabeça com lentidão. Seus lábios pouco demoraram ao
passar sobre minha boca. Deslizando ainda um pouco mais, acompanharam a curva
do meu queixo e, finalmente, pareceram deter-se ao atingir minha garganta.
(STOKER, 2002, p. 46)
O livro Drácula conta a história de um certo conde norueguês que traça uma
estratégia para disseminar sua natureza vampírica no centro da civilização ocidental, no final
dos anos de 1800. Com este objetivo, o conde Drácula então contata uma respeitada
imobiliária para vender-lhe terrenos em pontos diferentes de Londres, para onde ele possa
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levar a sagrada terra de seu castelo, importante elemento de manutenção de suas forças, longe
da Transilvânia. Para fechar o negócio, a corretora envia o advogado Jonathan Hacker até o
conde. O livro tem início exatamente neste ponto, na viagem de Hacker para o castelo de
Drácula. A história é narrada inicialmente através de seu diário, mas depois, como já
mencionado, passa a contar com diários de diferentes personagens e outros documentos.
Depois de fechar a compra dos terrenos em Londres, Drácula passa a aterrorizar o advogado e
o prende em seu castelo sob a tutela de três vampiras que também residem lá.
O vampiro parte então para Londres, onde passa a sugar vidas, rejuvenescendo
sua aparência, conforme se alimenta. Uma das vítimas, coincidentemente, foi Lucy, melhor
amiga de Mina, que, por sua vez, era noiva do corretor Jonathan Hacker. A partir daí trava-se
uma caçada ao vampiro, liderada pelo cientista Van Helsing, Mina Hacker e o próprio
Jonathan Hacker, que volta a Londres depois de fugir de seu confinamento. Ao aproximar-se
o clímax do livro, Drácula morde Mina e a faz beber o sangue vampírico através de um corte
que abre em seu próprio peito. Desse modo, passa então a manter uma ligação mental com
ela, sob pena de torná-la também uma vampira.
Drácula inicia sua fuga de volta à Transilvânia, sabendo onde seus algozes se
encontram devido à ligação telepática com Mina, que tem cada vez mais sua mente dominada
pelos poderes do vampiro. Mas a inteligência e força de Mina Hacker, constantemente
cantados por diferentes personagens do livro, viram o jogo contra Drácula, já que ela
consegue evitar o domínio mental que o vampiro lhe impõe e ainda ajuda seus companheiros
a localizar o monstro fugitivo. Ao final, antes de a Sra. Hacker ser totalmente dominada, os
caçadores de Drácula conseguem montar uma emboscada e eliminar o vampiro às portas do
seu castelo.
O livro Drácula é um clássico da literatura gótica cuja força atravessou os séculos
e ganhou imortalidade, tornando não só mundialmente famosa a personagem principal, como
ajudando a entranhar a figura do vampiro de forma massificada e decisiva no imaginário
ocidental contemporâneo. Stoker concentrou em uma só personagem toda uma carga sígnica
acumulada durante séculos, em forma de lendas européias. Drácula carrega em si algo de
bestial, decrépito e perverso, mas ao mesmo tempo aristocrático, inteligente e perspicaz. Tais
sentimentos são reforçados por uma intensa força simbólica, numa convincente personificação
do morto-vivo que perambula pela noite em busca de sangue, que não se reflete no espelho,
que se transmuta em névoa, lobo, ratos e morcego. Tais simbolismos vão ao encontro não
apenas do imaginário europeu oriental, mas de toda a cultura ocidental. Afinal, assim como
Lord Ruthwen, Drácula saiu de sua condição de isolamento, ou melhor, de seu castelo, para
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proliferar sua espécie na civilização moderna, levando terror ao cotidiano das metrópoles.
Podemos usar esse fato como metáfora para a própria obra de Stoker: o autor ajudou a trazer
para as grandes civilizações um mito que se encontrava restrito a comunidades camponesas. E
a energia vital que proporcionou essa incrível longevidade à história de Bram Stoker se deve,
certamente, além de ao impacto da própria obra, às inúmeras adaptações feitas para o cinema.
Desde 1920, quando foi produzido na Rússia o filme Drácula, baseado no livro de
Stoker (não há notícias atualmente de cópias deste filme), o Conde vem protagonizando várias
produções da sétima arte. São cerca de 363 títulos com referência a vampiros. 170 se referem
a Drácula. (INTERNET MOVIE DATABASE, Acesso em outubro de 2008). Toda essa
produção visual ajudou a mundializar o vampiro, em todos os ângulos sígnicos presentes na
obra de Bram Stoker: a figura sugadora de sangue e de vida, o monstro da noite, a
bestialidade, a personificação da morte e do mal, a figura sedutora, o ser que não se reflete no
espelho, sem sombra e que se transforma em criaturas da noite.
Depois da versão russa para o livro de Bram Stoker, ainda houve uma adaptação
de cineastas húngaros, em 1921. Em 22, o alemão Friedrich Wilhelm Murnau dirige o clássico
expressionista Nosferatu, uma tradução não autorizada do romance de Bram Stoker. Por esse
motivo, Murnau alterou todos os nomes das personagens e dos lugares, inclusive do próprio
protagonista, a quem batizou de Conde Orlok.
Em Nosferatu, Drácula encontra uma de suas versões mais sombrias, reforçada
pela atmosfera pesada do expressionismo, com seus intensos contrastes de preto e branco.
Além disso, a personagem principal aqui tem seu lado decrépito intensificado, pela aparência
e pela atuação do ator, com gestos de grandes mãos suspensas em forma de garra e um olhar
cerrado emoldurado por uma cabeça careca e disforme, com orelhas pontudas. Portanto,
pouco de sedutor há nesta versão. No entanto, por não haver registros da existência de cópias
das duas primeiras adaptações, russa e húngara, podemos dizer que é neste filme que o
cinema, pela primeira vez, mostra Drácula apaixonando-se por Mina, a partir de uma foto que
Hacker leva consigo para o castelo do monstro. Esta é uma cena inexistente do livro, mas
constantemente presente na película. No filme de Murnau, pode ter-se configurado a idéia,
que tanto seduziu o cinema, de um relacionamento mais que vitimário entre Drácula e Mina.
No entanto, esta hipótese é bastante incerta, pois diversas peças teatrais aconteceram,
traduzindo o livro antes da adaptação de Murnau, podendo elas terem feito alguma referência
a este fato, além das versões cinematográficas realizadas na Rússia e Hungria.
O Conde Orlok apaixona-se por Ellen (personagem que corresponde à Mina do
livro) e vai ao seu encontro. Porém, sua técnica não é de sedução, de conquista, galanteadora,
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como nos acostumamos a ver em grande parte dos filmes sobre Drácula e presente no conto
de John Polidori. Ele utiliza poderes hipnóticos. É um mal que invade a metrópole, forçando-a
em busca de seus objetivos, causando depressão e desespero nas pessoas. Então, o lado
sedutor aqui dá lugar aos poderes sobrenaturais do Conde, mesmo sentimento que temos na
versão literária de Bram Stoker. Muito mais que seduzir, Drácula hipnotiza, lança seus
poderes psicológicos sobre sua vítima, não lhe dando escolha, impondo a vontade do monstro
sobre os indefesos humanos.
Vale destacar, a propósito deste conceito de subjugação, que a versão alemã de 22
de Drácula condiz com a atmosfera vivida pela Alemanha, no período entre guerras. É a idéia
de um mal que invade a cidade causando grande depressão, a idéia de um período sombrio,
sem esperanças, personificado na figura do Nosferatu.
Murnau foi um dos primeiros cineastas alemães reconhecidos mundialmente, e
um dos últimos a viver numa Alemanha antes do Nazismo. Em Nosferatu, considerado o
ponto máximo do expressionismo no cinema, usou como ninguém a linguagem
cinematográfica e a fábula de Drácula para expressar emoções presentes naquele momento da
história alemã.
Friederich W. Murnau foi combatente da Primeira Guerra Mundial, da qual a
Alemanha não saiu apenas derrotada, mas humilhada. Drácula era, talvez, a personagem
perfeita para metaforizar as ameaças que rondavam os corações da pequena burguesia alemã
dos anos vinte: inumano, frio, disforme, ameaçador, ladrão de almas, personificação do mal,
do medo, da desesperança e de um passado aristocrata do qual, ao contrário do romântico
saudosismo de Byron e Polidori, a Alemanha queria distância. O Conde Orlok representa a
volta de uma época aristocrático-feudal prussiana, anterior a Bismark, de um amontoado de
estados sem unidade, anti-nacional, que se acreditava morto, mas que ameaçava reviver na
Alemanha pós guerra: morto-vivo. O nosferatu é a fantasia entrando em cena num ambiente e
num estilo de cinema que incorpora o real, seja na reação dos atores, no realismo das
filmagens externas, ou mesmo num castelo verdadeiro preparado como locação, com poucos
cenários em estúdio, textura sombria de imagem, nuances de luz e sombra arrebatadoras,
ângulos de câmera aterrorizantes, efeitos visuais e outros recursos que confundiam realidade e
fantasia, no mais típico dos recursos retóricos e sedutores da linguagem cinematográfica. E o
mais importante dos efeitos de realidade do expressionismo de Murnau é exatamente levar
sensações, emoções, realidade subjetiva a quem assiste. É o que Herzog retoma com maestria
57 anos depois, em sua homenagem ao que ele considera o maior filme alemão já feito. Uma
retomada, em 1979, da cultura alemã pré-Hitler.
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Ao contrário de Murnau, que buscava um realismo num cinema impregnado de
estilo teatral, Herzog buscava impor uma estilização a um cinema impregnado de realismo.
Buscava uma realidade paralela. Esta não-realidade de Herzog torna-se um choque
psicológico traduzido em imagens surreais acrescentadas à carga estilística do filme: um vôo
em câmera lenta de um morcego, inserido várias vezes durante o filme, sem nenhum papel
aparente na narrativa; uma festa surreal em meio à praça, com banquetes, ratos, caixões,
aristocratas, bêbados, cavalos mortos e ovelhas em comunhão; na abertura do filme, imagens
de múmias reais decrépitas, perturbadoras... São imagens que não têm ligação com o que
poderíamos considerar realidade, ou mesmo qualquer ligação com o fio narrativo da trama,
mas que servem para nos propor algum sentimento, alguma emoção pretendida pelo diretor,
algo que nossa razão não explica, mas que nossos olhos sentem. Algo que Roland Barthes
chama de sentido obtuso. Um não-explicado, não-racional da mensagem... um algo que
apenas se sente, e que as palavras apenas tentam traduzir.
Em Herzog, a personagem Drácula é a encarnação de um sentimento que está
presente em todo o filme: o tédio, a melancolia. No início da película, Harker comenta com
Renfield, personagem que o envia ao encontro de Drácula: “Será bom para mim sair desta
cidade. Fugir desses canais que não vão a parte alguma” (HERZOG, 1979). O vampiro
interpretado por Klaus Kinski é melancólico, entediado da eternidade de sua vida-morte,
sedento, não apenas por sangue, mas por humanidade. E inveja a humanidade em suas
idiossincrasias mais elementares, como o amor e a morte. Enquanto o Conde Orlok de
Murnau era frio, puro monstro, Drácula de Kinski é humanizado, tristonho, chegando a ser
infantil... Herzog, em entrevista (HERZOG, 1979), afirma que fez questão de estilizar seu
Drácula, poetizá-lo e levá-lo a uma existência surreal. Fez isso em consonância com a
estrutura dada por Murnau, em 22. Herzog tentava com isso ajudar a limpar a imagem da
Alemanha Nazista que ficara para o mundo. Levou aos cinemas uma obra do mestre pré-
Hitler, expressando o melancólico, envergonhado e fragilizado sentimento nacional alemão
daqueles anos 70 e resgatando o que seria uma cultura genuinamente alemã.
Percebemos aqui, em Murnau e Herzog, duas recontextualizações de Drácula.
Apesar de um filme estar ligado ao outro, apesar da intenção de Herzog retomar o filme de
Murnau, cada um reinscreve Drácula dentro de seus respectivos contextos sociais de cada
momento da Alemanha.
O Drácula sedutor, galante, e a princípio aceito na sociedade aristocrática
podemos dizer, um Drácula “polidoriano” – aparece fortemente na versão teatral da
Broadway, estrelada pelo húngaro Bela Lugosi e adaptada para o cinema em 1931, com o
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mesmo ator no papel título. Usando seus poderes hipnóticos, o conde da Transilvânia, vivido
por Lugosi, infiltra-se na alta sociedade londrina e vem a seduzir as personagens Lucy e Mina.
Só depois de descoberto por Van Helsing, Drácula passa a ser perseguido. Mesmo assim, o
cientista enfrentou grande resistência de Hacker, que não acreditava que aquele bem
apessoado homem, o qual chegava a incitar-lhe ciúmes devido aos galanteios dirigidos a
Mina, seria um vampiro.
A versão de 31 chama a atenção por utilizar uma técnica até então pouco
explorada no cinema: o movimento frontal de câmera, que ajudou grandemente a suscitar um
sentimento de suspense e medo, percebidos no filme. Além disso, marcou o ator Bela Lugosi
como o Drácula definitivo. Sua caracterização, sua atuação e expressões tornaram-se a própria
imagem da personagem, reproduzida em inúmeras outras formas de expressões artísticas até
hoje. O ator chegou, inclusive, a ser enterrado com as roupas de Drácula, tal era sua ligação
com a personagem. Depois dele, só em 1958 surgiria um Drácula tão marcante para o cinema:
Christopher Lee, que interpretou o vampiro nada mais, nada menos que em sete produções,
sendo que apenas a de 1958 pode ser considerada uma adaptação do romance de Stoker.
Tanto a versão de 1931 como a de 1958 são exemplos de como o cinema pode
mudar importantes aspectos da trama original de um livro, dando vazão à afirmão de que
uma adaptação é a recriação, em outro meio, de uma história contada anteriormente. Dois
aspectos sobressaem nas duas versões: as mudanças nas características e papéis das
personagens e a relação de Drácula com Mina. Em 1931, por exemplo, quem vai ao encontro
de Drácula fazer as transações imobiliárias do conde não é Jonathan Hacker, mas Renfield,
que acaba sendo seduzido pelos poderes de Drácula e pela idéia da vida eterna. Vai a Londres
junto com o vampiro e é detido como louco no asilo de Seward. No original literário, quem
vai ao castelo é Jonathan Hacker, que fica preso lá, sob o domínio das “noivas” vampiras de
Drácula, enquanto este vai a Londres espalhar seu terror. Quanto a Renfield, o livro já o
mostra no asilo, levando-nos a crer que sua loucura é proveniente de um contato com Drácula,
a quem chama de mestre, sem explicar, no entanto, como e onde aconteceu este contato.
Em O Vampiro da Noite, de 1958, de fato é Hacker quem vai ao encontro de
Drácula em seu castelo. Porém, enquanto que no original literário aquele é um advogado
corretor imobiliário, no filme ele é um caça-vampiros, discípulo de Van Helsing. Chega ao
castelo do conde argumentando que está perdido e precisa de abrigo. Lá é recepcionado pela
noiva do vampiro e pelo próprio Drácula. Hacker então consegue eliminar a noiva de Drácula,
porém é transformado em vampiro pelo Conde, que, por sua vez, se apaixona pela foto de
Mina (nessa versão, irmã de Hacker) e vai a Londres buscá-la para ser sua nova noiva. Neste
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ponto, acontece outra grande diferença entre filme e livro: a motivação de Drácula ir a
Londres é puramente matrimonial, correspondendo às suas intenções para com Mina. Drácula
infiltra-se na sociedade londrina e leva Mina para seu castelo, sendo depois eliminado por
Van Helsing e Arthur. Assim como em 1958, em 1931, Drácula também busca uma relação
conjugal com Mina, diferenciando-se ambas as versões do original literário, no que tange ao
relacionamento dela com o vampiro.
É possível perceber então, através das poucas adaptações aqui citadas, que a
história de Drácula é interpretada e recriada em cada filme, dialogando com suas respectivas
épocas e renovando associações através da ressignificação da metáfora do vampiro. Em
Drácula de Bram Stoker, de 1992, dirigido por Francis Ford Coppola, apesar de ser resultado
de uma tradução intersemiótica assim como as outras adaptações cinematográficas do livro
Drácula anteriores e, portanto, ter em si sua própria identidade como obra de criação
artística, livre para colocar em prática uma inventividade segundo a interpretação do diretor e
condizente com o suporte técnico do cinema, percebemos a manutenção de importantes
aspectos da trama original, no desenrolar da história. Todos os personagens criados por Bram
Stoker para Drácula, por exemplo, estão no filme de Coppola, inclusive o texano Quincey
Morris, ignorado nas demais adaptações citadas aqui. A película manteve ainda a atmosfera
gótica e sinistra do livro, com suas leituras de medo, angústia e nojo; o papel e a
personalidade de cada personagem dentro da história; a essência psicológica da trama
original, que percorre desde o pavor ao monstro desconhecido até a sua caçada impiedosa. A
esta “fidelidade”, Coppola acrescentou uma história mais definida para o Conde, inspirada na
história de Vlad Tepes, que deu margem a um relacionamento amoroso entre Drácula e Mina,
a qual, no filme, é reencarnação de sua esposa falecida, Elizabeth. Tais semelhanças e
mudanças serão estudadas mais adiante, vendo como Coppola levou o espírito de Drácula a se
adaptar ao contexto dos anos 90.
3.2 O AMOR DE COPPOLA E O MONSTRO DE STOKER
Ao fazer a sua versão para o cinema da história do Conde Drácula, parece-nos
claro que Francis Ford Coppola e o roteirista James Hart tiveram a intenção de fazer uma obra
fílmica de estreita ligação com o original literário de Bram Stoker. Drácula de Bram Stoker
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mantém importantes elementos do livro Drácula, sem trair seu compromisso primeiro para
com a linguagem fílmica e atualiza a fábula para os anos noventa.
É importante perceber que, apesar de manter um evidente diálogo com o livro
original, o filme de 1992 tem a sua própria identidade e liberdade de criação, segundo a
interpretação do diretor para com a letra do escritor e segundo o próprio repertório criativo de
Coppola, que lhe permite outras possibilidades inventivas. Por isso, podemos afirmar que esta
seja uma tradução intersemiótica, na qual as características e estratégias de cada linguagem
são respeitadas e a recriação adequada para o novo meio. Trata-se de uma transmutação, cujo
espírito da obra, fortemente relacionado ao suporte literário, foi levado às telas de cinema,
onde, ao mesmo tempo em que mantinha a essência da trama original, teve liberdade de ser
“contaminado” por outras fontes, inclusive outros filmes adaptados da obra de Stoker,
segundo a interpretação do roteirista James Hart
11
e de Coppola.
Como exemplo claro dessa liberdade de fontes contidas na memória do autor,
Coppola não dialoga em sua película apenas com as páginas de Stoker, mas também com
fatos contidos em outras adaptações fílmicas anteriores e ausentes no livro. Podemos citar o
fato de, no filme de 1992, Hacker ter sido mandado ao castelo do Conde em substituição a um
corretor antecessor, que teve “problemas” com Drácula e que voltou louco para a Inglaterra.
Este antecessor de Hacker é Renfield, uma referência ao filme de 1931, já que, nesta versão,
foi este último quem visitou Drácula pela corretora de imóveis. Assim, além de citar uma das
mais importantes adaptações de Drácula para o cinema, Coppola fecha uma lacuna em aberto
no livro: como Renfield teve contato com o conde antes de o vampiro ter estado em Londres?
Outro exemplo desse diálogo com filmes anteriores é o fascínio de Drácula pela foto de Mina
levada por Hacker para o castelo. É um fato inexistente no livro, mas presente em outras
adaptações, como na de 1922, de 1958 e a de Herzog de 1979. Outros diálogos são também
travados, pelo filme, com fatos históricos referentes a vampirismo, como no prólogo, em que
Coppola faz uma ligação clara entre o Vlad Drácula histórico e a personagem vampírica de
Bram Stoker. Além disso, acrescenta à história a existência da princesa Elizabeth, amada
esposa de Drácula, cujo nome e certos traços da sua história coincidem com os da Condessa
Elisabeth Bathory da Hungria, a qual, conforme vimos anteriormente, tem a possibilidade de
11
Quando o roteiro de James Hart é transformado em filme por Coppola, aí também podemos considerar uma
tradução intersemiótica. Porém, este processo não será estudado aqui. O primeiro motivo é o fato de não termos
a certeza de que o roteiro levado a público seja de fato o roteiro original do filme Drácula de Bram Stoker,
podendo ter sido alterado depois de filmado. Em segundo lugar, torna-se irrelevante a relação entre roteiro e
realização cinematográfica para os propósitos deste trabalho, já que o interesse expresso aqui, dentro da relação
entre escrita e filme, é focado do âmbito das linguagens literária e cinematográfica. Trataremos aqui, portanto,
roteiro e filme como um objeto uno, próprio do processo de autoria do cinema.
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haver mantido uma ligação com o Vlad Drácula verdadeiro. O acréscimo da princesa de
Drácula tem função estratégica para a atualização da história de Bram Stoker para os anos
1990, assunto de que trataremos mais adiante.
Nota-se, então, que a adaptação fílmica de uma obra literária, considerando que
seja uma tradução intersemiótica, não precisa ter o livro como referência única. Ela é livre
para recriar a partir de outras fontes inspiradoras, assim como o próprio exemplo da adaptação
de 1931, quando dialogou mais com a peça teatral do que com o próprio livro, para fazer sua
versão de Drácula. Porém, sob pena de nossa análise tornar-se demasiadamente longa e pouco
objetiva, daremos especial atenção, como amostragem, a apenas alguns signos que se
mantiveram na adaptação cinematográfica, e às modificações estratégicas impostas pelo
diretor, para que a fábula de Drácula se contextualizasse no final no século XX.
O roteiro de James Hart e a direção de Francis Ford Coppola para Drácula de
Bram Stoker seguem basicamente a mesma seqüência de fatos do livro, acrescidos de alguns
outros de criação dos autores do filme, que se referem a um passado mais definido para
Drácula e a um romance entre Drácula e Mina. Atendo-se primeiramente aos signos em
comum entre livro e filme, percebemos alguns pequenos detalhes do texto de Bram Stoker
que se encontram nesta versão cinematográfica de Drácula. Apesar de não estarem
literalmente transcritos, são bons exemplos do forte diálogo que Coppola travou com Stoker,
como no momento em que Arthur chega para ver sua noiva Lucy, delirante sob o efeito da
misteriosa doença que lhe drenava o sangue. No livro, ao perceber sua chegada, Van Helsing,
que já havia iniciado os procedimentos de transfusão do sangue cujo doador inicialmente
seria o Dr. Seward dialoga com o noivo de Lucy:
- Meu caro, sua chegada foi providencial – disse Van Helsing, sem rodeios, - você é
o amado de nossa querida senhorita. Ela está mal, muito mal.
Arthur empalideceu muito e precisou sentar-se em uma cadeira, pois estava quase
desmaiado.
(...) – Que posso fazer? – perguntou Arthur, com a voz embargada pela emoção –
Diga-me e o farei. Minha vida pertence à Lucy e eu lhe daria até a última gota do
meu sangue!
O professor sempre fora dotado de um marcante senso de humor e eu percebi uma
leve nuance dessa característica em sua resposta.
- Meu jovem cavalheiro... não vou realmente lhe pedir tanto assim! Não quero sua
última gota de sangue, só as outras. (STOKER, 2002, p. 128)
O detalhe da “última gota de sangue” foi também usado no filme de Francis Ford
Coppola no mesmo momento da trama. Arthur chega ao quarto de Lucy quando ela está sendo
atendida por Van Helsing e Seward, prestes a receber a transfusão. Depois de assustar-se com
a situação, acalmar-se, sentar-se atordoado e aceitar ser o doador, Arthur comenta: “darei até a
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minha última gota de sangue para salvá-la”. Van Helsing, numa interpretação de Anthony
Hopkins, pela qual perpassa um senso de humor irônico e sarcástico, fala: “Até a última gota?
Obrigado, é bem vindo aqui. Mas não peço tanto. Ainda não” (COPPOLA, 1992.). Percebe-
se, então, que a atuação de Hopkins, os cortes alternando os rostos dos dois personagens,
mostrando as expressões de desolação de Arthur e de ironia de Helsing tiram a obrigação de
Coppola de transcrever exatamente o mesmo texto, com as mesmas palavras usadas por Bram
Stoker. Porém, o espírito da cena está lá, com o “humor marcante” de Van Helsing, o espanto
e a imediata prestimosidade de Arthur, a preocupação dos três personagens com a saúde de
Lucy, etc.
Este ponto da trama revela-nos uma outra estreita ligação entre o livro de Stoker e
o filme de Coppola: alguns traços psicológicos das personagens. Van Helsing é o cientista
excêntrico, eloqüente, com senso de humor marcante e mente aberta a possibilidades
fenomenológicas ainda não comprovadas pela ciência. A cena que vimos anteriormente
condiz com a personalidade da personagem, descrita exatamente na situação correspondente à
do livro, apesar de que, em Stoker, Van Helsing se mostra mais cavalheiresco e formal que
em Coppola. Outro exemplo da ligação dos traços psicológicos dos personagens no filme e no
livro é o Dr. John Seward um médico, dono de um asilo para doentes mentais, com jeito um
tanto desastrado e inseguro, sem contudo chegar a ser patético. Estas características ficam
bastante claras quando a personagem é apresentada tanto no livro quanto no filme. Em Bram
Stoker, numa carta confidencial de Lucy a Mina, que conta a respeito de seus três
pretendentes a casamento, Lucy descreve Seward numa visita que ele lhe fez num dia em que
ela receberia as três propostas de noivado, sendo uma delas a do próprio médico.
Ele queria transmitir uma impressão de calma e tranqüilidade, mas nem assim
deixou de mostrar um certo nervosismo. Certamente, tinha se disciplinado, levando
em conta todo o tipo de detalhes, os quais procurou não esquecer. Mas acabou quase
sentando sobre o próprio chapéu de veludo de seda, algo que, de modo geral,
nenhum homem faz quando se encontra em pleno domínio de seus nervos. E, logo
depois, quando procurou recompor-se, começou a brincar com um bisturi de
maneira tão desastrada que quase não contive um grito de aflição. (STOKER, 2002,
p. 64)
No filme, durante o mesmo evento, Seward chega desastradamente, tropeçando
num tapete de pele de urso, e acaba sentando em cima de um chapéu de veludo. Mas não era o
seu chapéu, e sim o do texano Quincey Morris, que, por sua vez, tal qual no livro, se mostra
sempre seguro e másculo.
75
Tais semelhanças entre os personagens de Bram Stoker e os da adaptação de
Coppola tornam-se mais relevantes se colocados em contraste com os mesmos personagens de
outras versões fílmicas de Drácula. Seward, por exemplo, costumava ser mostrado como um
respeitável doutor sexagenário. Van Helsing, se não era um caça-vampiros no mais alto estilo
detetive londrino, era um cientista pensativo e sério. O texano Quincey Morris, por sua vez,
sequer existiu na grande maioria das adaptações. Mas a mais relevante personagem a se
analisar dentro da história de Bram Stoker, na adaptação feita por Coppola e no contraste
desta com as demais versões fílmicas para Drácula, é Mina Hacker. E o principal ponto de
conflito da personagem está na sua relação com Drácula, a qual diversos filmes apresentam
como uma relação de paixão ou amor, diferente, portanto, do livro. Aqui, começamos a
perceber fortes diferenças entre Coppola e Stoker.
Em Stoker, Mina pertence a uma família desprovida de grande riqueza, noiva do
advogado Jonathan Hacker, dotada de grande inteligência e personalidade forte. Enquanto o
noivo está no castelo de Drácula, Mina cultiva, entre cartas e diários datilografados com uma
rara habilidade de lidar com a “moderna” máquina de escrever, sua forte amizade com a rica
amiga Lucy Westenra e a preocupação com Jonathan, que demora a dar notícias sobre sua
viagem. Durante sua espera pela volta do noivo, Mina convive de perto com o drama da
amiga, que sofre de uma misteriosa doença que lhe drena o sangue e a faz sofrer de forte
sonambulismo. Finalmente, depois de longa espera, Mina recebe uma carta de freiras
residentes em Budapeste, dizendo que Jonathan está muito doente e sob seus cuidados. Ele, na
verdade, estava preso no castelo de Drácula enquanto o conde espalhava terror em Londres
e atacava Lucy – e conseguira fugir para Budapeste, onde encontrou os cuidados da Irmã
Agatha no Hospital São José e Santa Maria. Mina vai ao encontro do noivo a fim de casar-se
com ele, cuidar de sua doença e trazê-lo de volta a Londres. Exatamente aqui, depois da
viagem de Mina, Drácula ataca definitivamente Lucy, transformando-a, também, em vampiro.
Mina volta com Hacker para a Inglaterra. Eles juntam-se a Van Helsing, Arthur,
Seward e Quincey para caçar Drácula, vingar Lucy e livrar o mundo dessa terrível ameaça.
Em meio a algumas ofensivas contra pontos em Londres comprados por Drácula e usados
como residências do vampiro, os cinco homens procuram poupar Mina dos perigos da caçada
e a deixam descansando no quarto do Dr. Seward, no seu asilo para loucos. Lá, Drácula
astuciosamente a ataca durante várias noites, entrando no aposento em forma de névoa e
sugando-lhe o sangue. Em seu ataque derradeiro a Mina, depois que praticamente todos os
seus abrigos em Londres haviam sido destruídos por seus inimigos, Drácula a morde e a faz
beber o sangue que sai de um corte aberto no peito do vampiro. É o batismo definitivo da
76
vítima, que torna sua mente refém da mente de Drácula e a transforma progressivamente
numa criatura igual a ele. Na forma como os fatos são narrados, especificamente através do
relato de Seward, que presenciou o ataque de Drácula, Mina não consentiu a investida do
vampiro, não a queria. Estava em estado de hipnose, assim como seu marido, que, pelos
poderes de Drácula, se encontrava em estado de torpor sobre a cama. Parece, portanto, ter sido
um ato forçado, agressivo, de uma relação vitimária entre Drácula e Mina.
Com a sua mão esquerda ele segurava as duas mãos da sra. Hacker, mantendo-lhe os
braços esticados sob forte tensão e, com a direita apoiada sobre a nuca, pressionava
o rosto dela de encontro a seu próprio peito. A camisola branca de Mina estava
salpicada de sangue e um tênue filete rubro deslizava pelo peito nu de Drácula. A
postura dos dois apresentava uma grotesca semelhança com a de um menino
querendo forçar um gatinho a beber leite, empurrando seu focinho para dentro de um
pires. (STOKER, 2002, p. 275)
Conforme vimos, nas versões de 1922, 1958 e 1979, Drácula fica fascinado pela
foto de Mina que Hacker leva para a Transilvânia, indo ao encontro de Mina para colocar em
prática sua “paixão”. Coppola surpreendentemente, ao fazer um filme cujo título já pressupõe
um diálogo intenso com o livro de Bram Stoker, mantém a mesma distorção no
relacionamento entre Mina e Drácula, presente em outras adaptações. Porém, é justamente
esta distorção que contribuirá grandemente para a atualização da fábula do vampiro para os
anos 90.
No filme de Coppola, Drácula tem um passado mais definido. Antes de tornar-se
vampiro, a personagem confunde-se com o Drácula histórico, Vlad Tepes. Era um príncipe
norueguês que lutou contra a invasão turca e tratava com crueldade extrema seus inimigos,
casado com Elisabeth, pela qual cultivava um profundo amor. Enquanto Drácula estava em
batalhas, ela cuidava do castelo. Em certo dia, recebeu a falsa mensagem de que seu amado
príncipe havia morrido em combate, o que a fez se suicidar. A revolta de Drácula foi tamanha
que, ao saber do fato, fez um pacto com o demônio e renunciou ao Deus por Quem lutara
contra os turcos. Tornou-se aí o vampiro que todos nós conhecemos.
Ao receber a visita de Jonathan Hacker para fechar negócios imobiliários em
Londres, depara-se, assim como nas versões de 1922, 1958 e 1979, com a foto da noiva do
advogado, Mina Hacker. Drácula fica extremamente fascinado por ela, mas em Coppola, esse
fascínio está ligado ao reconhecimento, por parte do vampiro, de que aquela mulher é a
reencarnação de sua amada princesa Elisabeth. No meio de um forte clima de erotismo e
sensualidade que exala por todo o filme, Drácula vai a Londres em busca de vítimas para
alimentar sua eterna ânsia e prazer pelo sangue, e também em busca de sua amada Elisabeth,
77
reencarnada em Mina. Antes de chegar a Mina, porém, Drácula chega a Lucy, que no filme é
notadamente uma jovem com fortes tendências sensuais, pretendida por três homens, para os
quais se insinuava abertamente de maneira provocativa e, até certo ponto, libertina. Seria
então uma aliada perfeita para Drácula, que certamente atrairia a atenção dos homens que
estavam em sua volta e, conseqüentemente, em volta de Mina. Drácula aborda Lucy de forma
agressiva, invadindo sua casa, hipnotizando-a e levando-a para um cemitério próximo, através
de um suposto sonambulismo. Dessa forma ele vai dominando Lucy aos poucos, atraindo a
atenção de Quincey, Seward, Arthur (posteriormente Helsing se junta a eles) para ela e
deixando Mina livre, já que mantinha também Hacker fora de alcance, preso em seu castelo.
Mas Drácula não aborda Mina da mesma forma agressiva e bestial como fez com
Lucy. Com Mina ele é galanteador, romântico, sedutor... Ele não pretende, com a pessoa que
é reencarnação de Elisabeth, saciar seus prazeres carnais e fisiológicos, como fez com Lucy.
Aqui ele busca uma relação de amor. Dessa forma, diversas situações envolvendo Drácula e
Mina, que não estão presentes no livro, são acrescentadas à trama do filme. O próprio
prólogo, apresentando o personagem Vlad Drácula e sua esposa Elizabeth, como já foi citado,
é uma situação ausente no livro de Stoker. Mais adiante na trama, quando Drácula chega a
Londres e depois de já haver começado suas investidas vampirescas contra Lucy, ele encontra
Mina nas ruas da cidade, alegando que procurava conhecer o cinematógrafo e perguntando se
ela saberia dizer onde encontrar esta “maravilha do mundo civilizado”. Depois de um jogo de
sedução típico de uma primeira abordagem de alguém pelo qual se tem um interesse de
relacionamento, os dois vão a um vaudeville londrino. Lá, Drácula a seduz com maior vigor e
chega a ter a oportunidade de morder o pescoço de Mina. O filme destaca nesta cena a
expressão de extremo êxtase e excitação no rosto da personagem vampírica, representada pelo
ator Gary Oldman, ao perceber o momento propício para a mordida, reforçando a relação do
ato de morder o pescoço com o sexo. No entanto, ele segura seus impulsos e não se permite
morder a mulher amada e “infectá-la” com o mal do vampirismo. A partir desta seqüência,
que não consta no livro em nenhum dos diários e documentos fictícios compilados, Mina já
demonstra um interesse pelo príncipe norueguês, sem saber ainda que ele é um vampiro.
Outro momento que configura o relacionamento entre Mina e Drácula é durante
um jantar a dois, em que consomem absinto e Mina, misteriosamente, passa a ter lembranças
da terra natal de Drácula e de sensações antes só pertencentes a Elizabeth, a princesa suicida
do conde, reforçando a idéia de que Mina é a reencarnação desta. Mais uma vez esta
seqüência não está descrita em nenhum dos documentos que montam o livro de Stoker.
Igualmente, durante todo o filme, algumas narrações em off e cenas de manuscritos ou diários
78
reiteram que tudo aquilo teria sido documentado, inclusive os encontros de Mina com
Drácula, a quem ela se refere como “meu doce príncipe”, em seu diário.
Ainda há um terceiro momento acrescentado no filme e sem referência no livro. É
quando Mina não comparece a um encontro com Drácula e manda-lhe um recado, em forma
de bilhete, dizendo que recebera notícias de seu noivo na Romênia e que iria se encontrar com
ele, para casarem. Finaliza dizendo: “Nunca mais verei você”. Drácula expõe toda a sua ira e
consuma definitivamente seu ataque a Lucy, transformando-a em vampiro. Assim como no
filme, no livro, Drácula também ataca Lucy logo depois que Mina viaja para a Romênia para
casar-se com Hacker. A diferença é que não há, no livro, nenhum diário que relate qualquer
referência a algum encontro secreto entre Mina e um príncipe romeno. Curiosamente, no
filme, durante sua viagem de navio até Budapeste, Mina joga ao mar páginas de seu diário,
dizendo-se confusa, mostrando que se sentia mais viva ao lado de seu “príncipe”, mas que não
o veria mais (COPPOLA, 1992). Dá a entender, então, que naquelas páginas eliminadas por
ela estão referências ao amado, a seus encontros secretos e suas impressões mais íntimas a
respeito de sua “traição” a Jonathan. Dando prosseguimento à idéia de Stoker de aqueles fatos
narrados em Drácula haverem, com efeito, acontecido, dando verossimilhança a tudo o que
está no livro, Coppola sugere-nos que houve, sim, um relacionamento entre Mina e Drácula.
Ele só não foi relatado no livro de Stoker porque o diário que conteria estas informações fora
destruído por Mina. É, portanto, um valioso exemplo de quão rica pode ser a ligação entre
traduzido e tradução, numa adaptação fílmica. Melhor dizendo, numa tradução intersemiótica.
O mais importante para a nossa análise, no entanto, é percebermos a relação de
amor existente entre Mina e Drácula, tão intensa que Mina chega, em diversos momentos, a
defender o conde, mais notadamente no final da película, quando ela tenta impedir que
Helsing, Arthur, Quincey e o próprio marido Hacker o eliminem. O ápice da relação entre os
dois, no entanto, acontece quando o conde, caçado em suas moradias por Helsing, Seward,
Arthur, Quincey e Hacker, ataca sorrateiramente Mina Hacker enquanto ela dorme nos
aposentos de Seward, no asilo. Neste ataque definitivo de Drácula a Mina, diferentemente do
que é relatado no diário de Seward, no livro de Stoker, Mina não resiste ao vampiro e se
entrega a Drácula, não em razão dos poderes do monstro, mas pelo próprio amor que sente
por ele e que agora se revela de forma clara em seus pensamentos. Mas, até então, Mina não
sabia que seu príncipe era o tão terrível monstro que havia matado sua amiga. Ao tomar
conhecimento de que ele era o vampiro contra quem luta com seus amigos e marido – que,
aliás, diferentemente do livro, não se encontra no quarto nesse momento da trama – ela reluta,
79
demonstra decepção, chora, mas mesmo assim não resiste ao amor que sente e a ele se
entrega.
Os signos fílmicos usados por Coppola nesta seqüência (os movimentos de
câmera, a iluminação, figurino, cenografia, atuação dos atores, maquiagem e trilha sonora)
remetem-nos não ao ataque de um monstro a uma vítima indefesa, mas sim a uma intensa
cena de amor, carregada de sensualidade e conflitos psicológicos. A letra de Stoker apenas
chega a nos sugerir essa percepção – ela se atém mais ao terror, ao medo, à iminente morte e
sensação de impotência ao visualizarmos uma indefesa mulher com suas mãos presas às
garras de um monstro e sendo obrigada a sugar-lhe o sangue que sai do peito morto. Em
Coppola, a cena intensifica profundamente a idéia de sexo, e mais: de sexo consentido,
desejado.
Em Drácula de Bram Stoker, o vampiro chega ao quarto em forma de uma névoa
verde. Enquanto Mina dorme e nos dá a impressão de estar tendo um sonho inquietantemente
sensual, a névoa avança envolvendo a cama onde a protagonista está deitada. Na cena
seguinte, Drácula já aparece sobre Mina, entre suas pernas, por baixo das cobertas.
Acontecem durante a cena beijos, carícias e declarações de amor de ambas as partes, até o
momento em que Drácula revela não haver vida em seu corpo. Ela passa a ficar inquieta e
procura saber mais. Ele revela: “Eu sou um nada, sem vida, sem alma. Odiado e temido. (...)
Sou o monstro que os homens querem matar. Sou Drácula” (COPPOLA, 1992). Mina então
mostra indignação, debate-se com Drácula na cama, chora e demonstra repúdio ao monstro.
Ao mesmo tempo, revela que o ama e pede perdão a Deus por isso. Há, então, um insert dos
inimigos de Drácula queimando seu refúgio. Na volta para a cena do quarto, Mina já se revela
mais calma e desejosa de tornar-se o que ele é, ver o que ele vê, amar o que ele ama,
demonstrando, portanto, que está disposta, a qualquer preço, a viver o seu amor com Drácula.
A plasticidade da seqüência vai intensificando a carga erótica a partir daí. O
vampiro, depois de perceber a disposição de Mina em transformar-se em um ser da sua
espécie e enfrentar todas as penas que essa natureza lhe reserva, morde sua vítima, numa
demonstração clara de profundo prazer carnal e emocional. Na seqüência, abre um corte em
seu peito, para onde Mina, por espontânea vontade, leva a boca. Os ângulos pelos quais a cena
é mostrada, por vezes com a câmera atrás de Drácula, ou atrás de Mina, ou mesmo num close
na expressão de Mina sugando o sangue que sai do peito de Drácula, sugerem-nos um ato de
felação, reforçado pelas expressões de profundo êxtase demonstradas por Drácula. Em certo
momento, ele não a deixa prosseguir, dizendo “eu não posso permitir isso. Será condenada a
andar pelas trevas como eu por toda a eternidade. Eu a amo demais para condená-la”
80
(COPPOLA, 1992.). Mas Mina entrega-se totalmente e volta a levar a boca ao ferimento,
conduzindo o parceiro a uma sensação clara de gozo. Tal ato a transformará progressivamente
em vampiro, como ele o é.
Todo o erotismo da cena nos leva a uma relação direta entre o ato sexual e a
mordida do vampiro, já analisados anteriormente. Aliás, este erotismo está presente
fortemente em toda película, sobretudo nos ataques de Drácula a Lucy, em algumas cenas que
mostram um relacionamento mais íntimo de amizade entre Mina e Lucy, nas cenas em que
Hacker é atacado pelas três noivas de Drácula e em outros momentos. No meio de todo esse
erotismo, está o vampirismo, personificado em Drácula. Tal mal, em 1889, à época da
publicação do livro de Bram Stoker, fazia uma relação na memória dos leitores com a sífilis,
uma doença transmitida pelo sangue e através de relações sexuais, que tinha como
característica principal de contágio a promiscuidade. Como já vimos, a junção da idéia da
mordida do vampiro com o ato copulativo – e, portanto, pela própria natureza do vampiro,
uma prática promíscua – com a do contágio (da transmissão do vampirismo através desse
mesmo ato sexual) levava a uma relação objetiva entre os signos vampíricos e os signos
relacionados à sífilis.
Quando Coppola intensifica o lado erótico na mesma fábula, ele reforça para os
anos 1990 essa mesma articulação entre vampirismo e doenças sexualmente transmissíveis.
Desta vez, a doença em questão não é a sífilis, e sim a AIDS. Em 1992, a doença havia
alcançado grande exposição na mídia e já se fazia presente no imaginário do final do século
XX como o grande mal da civilização contemporânea, assim como o foi em outras épocas a
sífilis e a tuberculose, por exemplo. Na memória das pessoas, a AIDS estava fortemente
associada a signos relacionados à promiscuidade sexual e ao sangue (seringas e transfusões),
signos estes marcadamente presentes em Coppola e na própria história de Bram Stoker. No
filme, a personagem Lucy, segundo o que nos sugere um comentário de Van Helsing, foi
atacada pelo vampirismo em razão de uma certa escolha pessoal, por seu estilo de vida, que é
claramente promíscuo e lascivo. “Lucy não foi uma vítima que foi atacada ao acaso,
entendeu? É uma voluntária, uma seguidora, uma seguidora devassa! Uma devota discípula.
Ela é a concubina do Demônio!” (COPPOLA, 1992.), diz o cientista para Quincey Morris,
logo depois de estudar mais a fundo o vampirismo e o próprio conde Drácula. É bastante
significativa a ligação desse comportamento com um pensamento comum que se tinha acerca
do chamado “grupo de risco” da AIDS. As escolhas relacionadas ao estilo de vida do
indivíduo, como o relacionamento sexual com vários parceiros e o uso de drogas injetáveis,
atraem a doença, assim como o vampirismo foi atraído pelo comportamento de Lucy.
81
Coppola, no entanto, através do acréscimo da princesa Elizabeth na trama, mostra-
nos outro elemento importante para a idéia da AIDS: o amor. O vampiro Drácula vive o
mesmo drama que muitos soropositivos vivem – devido a sua doença, são privados de exercer
plenamente a sua atividade sexual com as pessoas que amam, sob pena de transmitirem a elas
o mesmo mal, drama este resumido na frase “eu a amo demais para condená-la”. Mina, por
sua vez, mesmo sabendo da “doença” pela qual Drácula é infectado, não desiste dele e o
acompanha até o fim da trama, enquanto todos os outros, inimigos de Drácula e
representantes da sociedade inglesa, o repudiam e o perseguem. Mesmo agonizando e
transfigurado, Mina ama-o, beija-o e o aceita, mostrando que, por mais terríveis que sejam os
efeitos da moléstia, o amor tem uma fundamental importância para o enfrentamento da
doença e amenização do sofrimento do doente. No filme, o espírito de Drácula é salvo pelo
amor de Mina.
Desse modo, sem em nenhum momento referir-se explicitamente à AIDS, mas
apenas através de signos que se relacionam à doença, Coppola atualiza, para os anos 90, a
história de um homem tomado por um grande mal, transmissível para outros homens. Utiliza-
se não apenas da lenda do vampiro, da natureza e características vampíricas expressas na
fábula de Drácula, mas, principalmente, de um viés da história que toca notavelmente o modo
de vida do final do século XX: a sexualidade. Sexualidade esta que foi revista em
profundidade em razão da AIDS e que estava em plena pauta de discussão nos vários meios
de comunicação, meios acadêmicos, científicos e dentro das famílias, à época da exibição de
Drácula de Bram Stoker nos cinemas. É, portanto, um belo exemplo de como uma tradução,
mais que estabelecer uma mera relação de polaridade com o seu original, tem como missão
primeira comunicar-se com o seu tempo, trazer uma mensagem nova para a sua época,
atualizando o texto da obra inspiradora, recriando-a sob a visão de seu tradutor.
82
4 CONCLUSÃO - IMORTALIDADE
O conto O Homem Bicentenário, de Isaac Asimov, também adaptado para o
cinema pelo diretor Chris Columbus, conta a história de Andrew – um robô que queria ser
homem. Não por uma vontade própria aleatória, mas por ele e outros a sua volta
reconhecerem em Andrew características tipicamente humanas, diferentes das de um robô.
Uma delas, a capacidade de esculpir figuras em madeira por um impulso criativo próprio. Não
era um ato de repetição ou imitação, mas um misterioso dom contido em seu cérebro
positrônico
12
que nem mesmo os executivos da companhia que lhe fabricara conseguiam
explicar. Mesmo que Andrew fosse de fato humano, esta capacidade não seria menos
intrigante. E por enquanto, o que chamamos de criatividade estética continuará uma
característica tão abrangente e complexa ao ponto de podermos afirmar que não temos à
disposição, hoje, instrumentais científicos suficientes para compreendê-la em toda a sua
riqueza.
O estudo do caso Drácula nos deu a oportunidade de mostrar os vários processos
de transformação aplicáveis para se produzir uma obra estética. Existiam lendas sobre
vampiros, espalhadas em forma oral, em recantos da Europa. Lendas que inspiraram estudos
científicos, que inspiraram O Vampiro de John Polidori. Por sua vez, junto com relatos sobre
personagens históricos, foram referência para Bram Stoker escrever seu Drácula, que inspirou
várias adaptações para o cinema, condizentes com suas respectivas épocas. E tanto o livro
Drácula quanto os signos que inspiraram Bram Stoker, além de outros filmes adaptados,
formaram referência para Coppola e James Hart produzirem Drácula de Bram Stoker. Mas
esta linha traçada aqui não é uma trilha de mão única. Vimos que ela tem várias ramificações
com outros e outros signos presentes no espírito de cada autor. É uma rede de significações
que sobrevive como um grande jogo em cada materialização da fábula de Drácula, alimentado
por diversos outros discursos materializados em outros meios. Jogos comandados
inicialmente por seus autores, mas colocados adiante por cada leitor, que acrescentam outras
peças de significação para estes mesmos jogos em suas leituras.
Mesmo sabendo da complexidade da criatividade estética, nesta dissertação
tivemos a oportunidade de estudar uma pequena dimensão que faz parte desta característica
tão inerente a espécie humana. Esta dimensão diz respeito ao uso de signos anteriores. Para
12
Sistema cerebral artificial criado ficticiamente por Isaac Asimov para explicar a inteligência dos robôs.
83
tanto, usamos como ponto de partida a adaptação cinematográfica de obra literária, já que se
trata de uma categoria de criação estética declaradamente ligada a uma anterior, mas não
totalmente presa a ela.
Pudemos perceber assim, através do corpus usado no trabalho, que a adaptação é
um ato inventivo estético como qualquer outro. É um processo de transformação ao qual o
diretor do filme aplica a uma determinada obra, anteriormente materializada em um outro
meio, sua interpretação. Como ato inventivo, é possível perceber que o filme é uma expressão
estética que se utiliza de diversas outras referências, inerentes à sociedade de onde emerge,
para a sua materialização: dialoga com outros filmes, outros livros, com o mundo do diretor,
com sua época de produção, faz-se valer das estratégias de linguagem de seu próprio meio e
mantém uma reciprocidade com a obra de partida. Enfim, transmutam-se os signos de um
meio para o outro de acordo com o poder interpretativo do adaptador e sua época. A
fidelidade, portanto, no que chamamos de tradução intersemiótica para classificar a adaptação
cinematográfica, não é regra. A diferença entre meios, a história de leituras e vida do
autor/diretor e a nova época em que será inscrita invocam a possibilidade de liberdade para a
nova obra.
Mas neste trabalho, muito mais que defender a liberdade criativa da adaptação de
um livro para o cinema; mais que defender a tradução intersemiótica como um ato de criação
apesar de recíproco, tivemos a oportunidade de perceber que algo semelhante acontece com a
inventividade “livre”, sem uma ligação intencional com outra obra: a criação estética humana
usa, a seu favor, a transformação, a transmutação, a ressignificação de textos presentes na
consciência do autor. Percebe-se, sem entrar em méritos de juízo sobre o que é arte e o que
não é arte, que a criação estética humana é um jogo dos diversos signos compartilhados
socialmente em favor de uma nova obra: mais expressos ou menos expressos, mais aparentes
ou menos, mais explícitos ou menos, mais intencionais ou mesmo quase que inconscientes,
afirmando-os ou negando-os – estas obras anteriores fazem parte, de alguma forma, da
produção estética, seja ela considerada artística ou não. Um jogo tão delicado e arriscado, que
uma produção pode ser criticamente avaliada como obra de arte ou, em outro extremo, como
plágio.
No entanto, percebemos também que nem sempre este jogo se faz de maneira
conscientemente determinada. Com a ajuda de ferramentas teóricas do pós-estruturalismo, da
cognição e da semiótica, pudemos vislumbrar uma certa habilidade do ser humano, ligada a
sua capacidade de produzir linguagem, de reprocessar signos guardados profundamente em
sua consciência, compartilhados socialmente, mas nem sempre identificáveis pela memória.
84
Uma capacidade de tornar seus os signos que anteriormente percebera no mundo, na vida, em
outros textos.
Com base nos resultados que estas ferramentas teóricas nos deram, podemos
concluir não só que há de fato um diálogo intenso de uma produção estética com outras
anteriores, mas, principalmente, que este diálogo não se faz, a priori, de forma mecânica,
conscientemente seletiva, repetitiva, robótica. É possível ser feita de forma tão própria, tão
visceralmente pessoal, que se torna difícil identificar os elementos de referência. Muitas
vezes, estes elementos vêm de outros meios e são criativamente reprocessados pelo autor,
transformados. Daí a idéia da tradução intersemiótica se verificar também em produções onde
nem é possível perceber o próprio ato de tradução. Ao criar, acabamos fazendo traduções
intersemióticas diversas, mesmo que não conscientes disto.
Portanto, as utopias modernistas do “novo”, e até de uma ruptura da arte com o
mundo, caem por terra com este pensamento. Se podemos identificar um pós-modernismo, é
porque conseguimos vislumbrar pensamentos diferentes dos ideais modernos. E um deles diz
respeito à admissão de que a produção estética está intimamente ligada à cultura a seu redor e
pode dialogar, sem constrangimentos, com produções anteriores. O talento do autor é o
talento de jogar com os signos e ter a capacidade de levar um efeito de novidade ao ato de
leitura, independentemente de que este leitor identifique ou não traços de outras obras. O
talento do autor é a habilidade de usar referências sem que sua criação se pareça com um
plágio. Podemos afirmar que o efeito de novidade tem muitas estratégias possíveis, passíveis
de serem estudadas a fundo em uma nova oportunidade. Mas certamente, como vimos no caso
de Drácula, uma delas é a renovação das significações através de novas metáforas propostas,
que pode fazer, de uma antiga história, algo totalmente novo, para um novo tempo, novos
leitores, novas associações.
Procuramos neste trabalho evitar a todo custo a discussão sobre o que é e o que
não é arte. Justifica-se, assim, o uso de termos como “obra estética” ao invés de “obra
artística”. Entende-se que a classificação “arte” passa por diversas outras esferas – políticas,
econômicas, sociais – que a torna uma parte do que podemos chamar de produção estética
como um todo. Aqui, estético, como Barthes nos coloca, é algo que extrapola o simples
sentido informacional de uma expressão. Assim podemos ficar à vontade em aplicar os
pensamentos aqui expostos tanto a um pingente de madeira esculpido por um artesão de
Florianópolis quanto à Pietà de Michel Ângelo; tanto ao prosaico anúncio das sandálias
Havaianas da Almap BBDO quanto às pinturas caóticas de Pollack; da cerâmica marajoara à
estátua de Zeus. Independente do espaço, época, meio, classificação artística, ou objetivos por
85
que é produzida, a linguagem estética coloca em movimento a cultura onde está inserida,
usando muitas vezes o passado como possibilidade no presente, e expõe uma das
características mais belas e intrigantes da raça humana: a criatividade. É ela que nos torna o
que somos, e não robôs ou artefatos de inteligência artificial – que apenas reordenam e
repetem situações pré-programadas.
Ainda como conseqüência dos estudos aqui expostos, podemos desmistificar um
pensamento comum quando se fala em criatividade estética: o pensamento de que a criação é
um ato individualista, proveniente de algum poder que encarna no autor no seu isolamento do
resto do mundo. Ao contrário, podemos dizer que a inventividade estética é uma prova de que
os limites entre indivíduo e sociedade são frágeis e pueris. Quando percebemos que nossos
textos fazem parte de uma rede de outros textos que outros produziram, pudemos aprender
que o grau de individualismo mede-se, talvez, através da qualidade e quantidade de vozes que
formam a consciência de uma pessoa e seu modo próprio de ressignificá-las. Ninguém carrega
em si os mesmos textos que outro, daí a identidade de cada um. E esses textos só sobrevivem
em nós porque fazemos parte de uma coletividade, dentro de uma cultura, dentro de um corpo
social. Qualquer tipo de linguagem só existe por causa desta característica biológica do
homem de se socializar.
Talvez a ciência ainda avance nos estudos sobre a criatividade. Quem sabe, para
isso ainda faltem ferramentas que nos abram possibilidade de considerar alguns aspectos
químico-físico-energéticos do funcionamento da espécie humana, ainda só considerados em
ambientes religiosos e espiritualistas. Aí talvez se tenha um vislumbre mais completo da
genética da criatividade. Mas por enquanto, um dos aspectos que hoje podemos ainda ter em
mãos é o que ela nos apresenta em termos fenotípicos – as criações, os signos expressos,
expostos por seus autores. Os signos são as marcas indeléveis de cada pessoa que as produziu.
Podem revelar o que há de mais intrínseco de cada personalidade, de cada indivíduo, afinal,
(...) estaremos encerrados numa caixa de carne e sangue? Quando comunico meu
pensamento e meus sentimentos a um amigo que me inspira muita simpatia, de
modo que meus sentimentos passem para ele e que eu tenha consciência daquilo que
ele está sentindo, será que não estou vivendo tanto em seu cérebro quanto no meu –
quase que literalmente. É verdade que minha vida animal não está ali, porém minha
alma, meu sentimento, pensamento, atenção, estão (PEIRCE, 2005, p. 309).
Parafraseando estas idéias de Peirce, contidas na edição de seus escritos, no final
dos pensamentos sobre pragmatismo, talvez não consigamos hoje entender questões
metafísicas como a possibilidade da imortalidade. Mas podemos afirmar que somos imortais à
86
medida que produzimos para o mundo signos memoráveis, que sobrevivam na mente das
pessoas. Nesse sentido, podemos dizer que somos tal qual uma palavra, que por mais que seja
escrita e depois apagada de um quadro, sobreviverá enquanto idéia em outras pessoas e irão
inspirar outras criações sucessivamente. Poderíamos afirmar, com isso, que somos imortais
através das obras que criamos e lançamos ao mundo.
87
BIBLIOGRAFIA
ALGRAVE, Beatriz. Página da Beatrix. Vampiros. Disponível em .
<http://www.beatrix.pro.br/cultobsc/vampiros.htm>. Acesso em 18 jun. 2005.
AMORIM, Lauro Maia. Tradução e adaptação: encruzilhadas da textualidade em Alice no
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