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PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS
CAMPUS DE TRÊS LAGOAS
VALÉRIA APARECIDA RODRIGUES
QUASE DE VERDADE:
quatro fábulas de Clarice Lispector
(vida, crianças e bichos)
Três Lagoas-MS
2010
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1
VALÉRIA APARECIDA RODRIGUES
QUASE DE VERDADE:
quatro fábulas de Clarice Lispector
(vida, crianças e bichos)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Mestrado em Letras da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campus de Três Lagoas, como exigência
parcial à obtenção do título de Mestre em
Letras. Área de concentração: Estudos
Literários.
Linha de pesquisa: Literatura e Estudos
regionais, culturais e interculturais
Orientador: Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco.
Três Lagoas - MS
2010
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Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras: Estudos Literários
Dissertação intitulada Quase de verdade: quatro fábulas de Clarice Lispector (vida, crianças e
bichos), de autoria da mestranda Valéria Aparecida Rodrigues, aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
_______________________________________________
Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco - CCHS/UFMS
Orientador
_______________________________________________
Prof. Dr. Arnaldo Franco Júnior - IBILCE/UNESP
_______________________________________________
Profª. Drª. Vânia Maria Lescano Guerra - CPTL/UFMS
_______________________________________________
Profª. Drª. Kelcilene Grácia - Rodrigues
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
UFMS - CPTL
Três Lagoas, 18 de março de 2010
3
À minha família pelo amor incondicional.
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida e por trazer paz nos momentos difíceis.
Aos meus pais Valdair e Célia e meu irmão Diego pelo amor e incentivo.
Ao Fabrício, meu companheiro, conselheiro e amigo pelo apoio incondicional, por
compreender os momentos de ausência e por ter contribuído de forma efetiva na produção
deste trabalho, sempre disposto a me ouvir e dar sugestões.
De forma especial, ao meu Orientador Prof. Dr. Edgar Nolasco, pela confiança, paciência e
conselhos sempre pertinentes e, sobretudo, pela oportunidade de ampliar meus
conhecimentos.
Aos professores que fizeram parte dessa caminhada e àqueles que fizeram parte da comissão
examinadora da qualificação e defesa deste trabalho.
À UFMS pela oportunidade concedida.
A todos minha eterna gratidão.
5
Antes de aprender a ler e a escrever eu já fabulava.
Clarice Lispector
6
RODRIGUES, Valéria Aparecida. Quase de verdade: quatro fábulas de Clarice Lispector
(vida, crianças e bichos). Três Lagoas: Campus de Três Lagoas da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, 2009, 122 f. (Dissertação de Mestrado)
RESUMO
Sob a rubrica da crítica biográfica, este texto propõe estabelecer a intrínseca relação entre
autor e obra. A partir da leitura das quatro fábulas claricianas, O mistério do coelho pensante
(1967), A mulher que matou os peixes (1968), A vida íntima de Laura (1975) e Quase de
verdade (1978), e utilizando um aparato teórico-crítico que inclui Roland Barthes, Eneida
Maria de Souza, entre outros procuraremos detectar como ocorre a relação biográfico-cultural
na obra voltada para crianças de Clarice Lispector. Nessa relação que envolve vida e obra
inscreve-se o ―bio‖ que, por sua vez, desencadeia outras formas possíveis de serem
imaginadas e estabelecidas, ainda que metaforicamente, ampliando as possibilidades de
compreensão do texto literário como texto da cultura. Entre as formas possíveis de relação,
destacamos as ―influências metafóricas‖ ou ―amizades literárias‖, que aproxima escritores e
obras, mesmo quando tal relação não tenha acontecido de fato no percurso histórico. Nesse
sentido, é oportuno ressaltar que nossa leitura também privilegiará o conceito de amizade, que
é essencial para esta pesquisa, já que os amigos também se apresentam como marca autoral na
obra clariciana. Assim, a leitura das fábulas infantis de Clarice Lispector colabora com os
propósitos desta pesquisa, haja vista que elas apresentam-se como o fabulário da própria vida
da escritora, uma vez que as histórias da vida real servem de suplemento para a ficção e vice-
versa.
PALAVRAS-CHAVE: crítica biográfica; fábula; Clarice Lispector.
7
RODRIGUES, Valéria Aparecida. Quase de verdade: quatro fábulas de Clarice Lispector
(vida, crianças e bichos). Três Lagoas: Campus de Três Lagoas da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, 2010, 122 f. (Dissertação de Mestrado)
ABSTRACT
Under the rubric of the biographic criticism, this text intends to establish an intrinsic
relationship between author and composition. From the reading of the four Lispector‘s fables,
O mistério do coelho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1968), A vida íntima de
Laura (1975) e Quase de verdade (1978), and using a theoretical- critical display that includes
Roland Barthes, Eneida Maria de Souza, among others we will try to detect how the
biographic-cultural relationship happens in the composition conducted to Clarice Lispector´s
kids. In this relationship that involves life and composition inscribes the ―bio‖ that leads to
other possible ways to be imagined and established, metaphorically though, broadening the
possibilities of literal work comprehension as a composition of culture. Among the possible
forms of relationship, we highlight the ―metaphorical influences‖ or ―literal friendships‖, that
approximate writers and compositions, even when the relationship hasn‘t happened in the
historical way indeed. This way, it is suitable to highlight that our reading will also analyze
the notion of friendship, which is essential for this research, yet the friends also represent as
an authorial hint in Lispector‘s work. Thus, the reading of Clarice Lispector‘s child fables
copes with the aims of this research, in this way, they present as a tale of the writer‘s own life,
once her stories of real life serve as supplement for fiction and vice-versa.
Key-words: biographic criticism, fable, Clarice Lispector
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ERA UMA VEZ... ......................................................................... 09
CAPÍTULO I QUASE DE VERDADE: as fábulas de Clarice Lispector para
crianças ........................................................................................................................... 14
1.1. O fabulário clariciano ............................................................................................... 15
1.2. O bestiário infantil .................................................................................................... 31
1.3. Entre fábulas e bestiários .......................................................................................... 43
CAPÍTULO II AS FÁBULAS BIOGRÁFICAS DE CLARICE LISPECTOR .... 46
2.1. A mãe que escreve para os filhos ............................................................................. 65
CAPÍTULO III - AS QUATRO FÁBULAS CLARICIANAS .................................. 77
3.1. O mistério do coelho pensante: uma possível história policial? .............................. 78
3.2. A mulher que matou os peixes: culpada ou inocente? .............................................. 87
3.3. A vida íntima de Laura: o que quer dizer vida íntima? .......................................... 100
3.4. Quase de verdade: ou quase de mentira? ............................................................... 109
5 CONCLUSÃO FELIZES PARA SEMPRE? ................................................... 115
6 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 119
9
INTRODUÇÃO
ERA UMA VEZ...
[...] eu gostaria mesmo era de poder um dia escrever
uma história que começasse assim: ―era uma vez‖ [...]
Clarice Lispector. Para não esquecer, p. 21.
O desejo de Clarice Lispector em escrever uma história é o sentimento que nos une ao
iniciarmos esta dissertação, mesmo sabendo que um estudo sobre a literatura de Lispector
torna-se sempre um desafio, seja qual for a natureza da pesquisa. Essa dificuldade se mostra
no contexto deste trabalho, sobretudo pelos múltiplos caminhos que podemos tomar ao
escolhermos uma escritora com uma obra tão vasta.
Tratando-se de Clarice Lispector, é notório que sua produção literária tenha sido
exaustivamente estudada. No entanto, analisando a fortuna crítica da escritora, observamos
que pouco foi dito a respeito de sua literatura dirigida ao público infantil.
Constatamos, até o momento, a existência de quatro trabalhos acadêmicos que tratam
diretamente do assunto: o livro A literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector (1993), de
Francisco Aurélio Ribeiro, a Dissertação de Mestrado de Rosalia de Angelo Scorci intitulada
A criança e o fascínio do mundo: um diálogo com Clarice Lispector (1995), o artigo de Vilma
Arêas: ―Children‘s corner‖ (1997), e mais recentemente o livro Perto do coração criança:
imagens da infância em Clarice Lispector (2006), de Nilson Dinis.
Nossa pesquisa se volta para a literatura destinada ao público infantil de Clarice
Lispector; contudo, percorreremos outro caminho, diferente dos citados, uma vez que eles se
debruçaram sobre os conceitos de literatura infantil e/ou infanto-juvenil e não enfocam a
relação biográfica como marca recorrente na produção literária infantil de Clarice Lispector.
Assim, tencionamos lançar um novo olhar sobre os estudos da produção clariciana no que
tange ao universo infantil.
10
Este trabalho propõe alguns objetivos: primeiramente, verificar se a escritora em
estudo estabelece alguma relação com a tradição, em caso de resposta afirmativa, qual? Sob o
crivo da crítica biográfica, buscamos compreender se uma possível relação de Clarice
Lispector com a tradição fabular dar-se-ia por meio das amizades literárias, ou ainda, por
meio dos próprios filhos. São esses questionamentos que perpassam nossa leitura.
O corpus do trabalho constitui-se dos quatro livros ―infantis‖ de Clarice, O mistério do
coelho pensante (1967); A mulher que matou os peixes (1968); A vida íntima de Laura
(1975), e o póstumo Quase de verdade (1978); e nos embasaremos nos conceitos da crítica
biográfica por entendermos que o ―bio‖ é o leitmotiv da obra infantil clariciana.
Clarice Lispector fez de sua vida matéria para ser reelaborada em forma de ficção;
ainda que não o fizesse de maneira consciente, ela acaba por tornar-se seu próprio tema
ficcional. Faz parte desse processo de criação tudo que estava à sua volta, como as amizades,
as correspondências e os próprios filhos, isso porque viver e escrever possuía para Clarice o
mesmo significado.
Para essa direção apontam os estudos da crítica biográfica, que, orientam a ler a
vida na obra e vice-versa, como o melhor caminho para expandir os conhecimentos acerca de
um escritor. No caso específico de Clarice Lispector, vida e obra caminham juntas, ou melhor,
estão entrelaçadas e podem ser compreendidas se analisadas em conjunto. É por meio da
crítica biográfica que podemos estabelecer tal relação, entre o real e o ficcional, pois ela
trabalha com os dois elementos simultaneamente.
Partimos dos pressupostos teóricos de Roland Barthes (1975), que utiliza o termo
biografemas para estabelecer essa tênue relação entre o vivido e o ficcionalizado, ou seja,
aquilo que está à margem do texto: cartas, bilhetes, amizades, fatos do cotidiano, entre outros,
que ampliam as possibilidades de análise. Vale ressaltar que os biografemas devem ser
entendidos como uma quase-totalidade, que reunidos e amarrados colaboram com a
11
interpretação do objeto de estudo; é, por fim, compreender o ―significado da vida‖ na obra e o
seu contrário.
O crítico, por sua vez, ao revelar a vida de um escritor acaba por revelar a sua própria
vida. Como assinala Miguel Chaia, ―por trás do grande interesse das biografias está o ser
humano envolvido consigo mesmo e, permanentemente, com o outro‖.
1
O homem é culturalmente um ser social e necessita dessas relações sociais para se
conhecer e se identificar; por essa razão sua vida acaba passando de uma maneira ou de outra
pela vida do outro, pelas experiências do outro; enfim, pela escrita do outro. Assim, a
biografia, do ponto de vista cultural, supõe a espontaneidade das relações sociais.
Em vista do exposto, cumpre-nos esclarecer que nossa leitura privilegiará as relações
sociais (amizades concretas e literárias) que a escritora Clarice Lispector manteve ao longo de
sua vida. As relações de amizade concretas e também as imaginadas ajudam a definir a
intelectual Clarice Lispector, por serem essas amizades, de alguma forma, uma ponte que une
a vida pessoal e literária dessa escritora.
Vale ressaltar que apesar do corpus para a discussão se restringir à literatura infantil
clariciana, não nos deteremos somente nele; recorreremos a outros textos da própria autora,
aos paratextos (cartas, bilhetes, biografias) e também aos diálogos que Clarice estabelece com
escritores da literatura nacional e internacional.
Amizades literárias, como a de Monteiro Lobato, revelam a incursão de Clarice
Lispector no universo fabular. Essa relação é admitida pela autora, pois foi o livro Reinações
de narizinho, de Monteiro Lobato, que despertou a paixão pela leitura e consequentemente
pela escrita literária de Clarice Lispector. O aspecto relevante do nosso trabalho é a
intertextualidade que entre os textos da fábula tradicional e os textos claricianos que nem
sempre estão relacionados à literatura infantil da escritora.
1
CHAIA. Biografia: método de reescrita da vida, p. 75.
12
O trabalho se estrutura em três capítulos. No primeiro, abordamos os conceitos de
―Fábula‖ e ―Bestiário‖ e a maneira como são elaborados nos textos de Clarice Lispector. Para
tanto, foi necessário percorrer os caminhos traçados por esses neros, para então identificar
as principais características utilizadas nas obras claricianas. Destacamos os principais
escritores dessas formas literárias e, especialmente, a presença de Monteiro Lobato como o
grande fabulista na literatura brasileira. Por estar a obra de Lobato atravessada por leituras de
fábulas, Clarice Lispector, sua seguidora, acaba dialogando também com a tradição fabular.
Os gêneros ―fábula‖ e ―bestiário‖ foram conceituados por vários escritores, sobretudo
da literatura infanto-juvenil, uma vez que apesar dos gêneros terem sido, inicialmente,
destinados aos adultos, houve uma mudança significativa ao longo dos séculos relacionada ao
público alvo, tornando as fábulas e bestiários específicos para crianças. Fazem parte desse
referencial os escritores Jesualdo Sosa (1991), Nelly Novaes Coelho (1981), Marisa Lajolo
(1984), entre outros.
No capítulo seguinte, trataremos especificamente das fábulas biográficas claricianas,
subsidiado pela teoria da crítica biográfica, em particular, pelas proposições teórico-críticas de
Eneida Maria de Souza (2002) e Edgar Cézar Nolasco (2005). Objetivamos num segundo
momento estabelecer as relações de amizade de Clarice Lispector, que estas são
apresentadas pela escritora por meio de sua ficção.
O conceito de amizade passará pelos postulados de Francisco Ortega, em especial pelo
que se encontra discutido nos livros Amizade e estética da existência em Foucault (1999),
Para uma política da amizade (2000) e Genealogias da amizade (2002), entre outros, por
considerá-los condizentes com um estudo que se volta para a reflexão sobre as formas e as
condições de amizade na contemporaneidade.
O contato epistolar com os amigos concretiza as relações citadas, talvez por serem as
correspondências o meio mais concreto para estabelecer as amizades claricianas. As amizades
13
entre Clarice Lispector e Lúcio Cardoso, Andréa Azulay, Olga Borelli, entre outros, foram
mantidas por meio de cartas; por isso dedicamos particular atenção a essa forma de diálogo.
Analisamos também a relação entre Clarice Lispector e os filhos, por terem sido eles
os inspiradores e incentivadores da escritora no universo fabular das histórias infantis. O
mistério do coelho pensante surgiu de um pedido-ordem de Paulo, filho mais novo da
escritora. E A mulher que matou os peixes partiu de um sentimento de culpa da mãe, que
mergulhada no ofício de escritora, esqueceu de alimentar os peixes de seu filho Pedro.
É possível observar, especialmente nessas fábulas, que tanto Clarice quanto os filhos
acabam tornando-se personagens do fabulário clariciano. Nesse aspecto, a leitura se embasa
no livro de Nádia Batela Gotlib, Clarice: uma vida que se conta (1995), entre outros de fundo
biográfico.
O terceiro capítulo, intitulado As quatro fábulas claricianas, destina-se à análise dos
quatro livros infantis da escritora. Selecionamos as obras e os possíveis resultados embasados
pelas proposições do primeiro e segundo capítulo para constatar que postura a escritora
assume em relação à literatura infantil e/ou infanto-juvenil.
Assim, tencionamos com esta pesquisa a elaboração de um material significativo
acerca da obra para crianças de Clarice Lispector, contribuindo, desse modo, com o
desenvolvimento da fortuna crítica da autora, que o enfrentamento entre a escritora e suas
personagens-narradoras só é possibilitado por meio de uma leitura biográfico-cultural a qual
nos propomos realizar.
14
CAPÍTULO I
QUASE DE VERDADE:
as fábulas de Clarice Lispector para crianças
[...] este senso de aventura é o que me dá o que tenho de
aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de
cambulhada, a escrever.
Clarice Lispector. Para não esquecer, p. 21.
15
1.1 O fabulário clariciano
O que vou contar até parece coisa de gente, embora se
passe no reino em que bichos falam. Falam à moda
deles, é claro.
Clarice Lispector. Quase de verdade, s.n.p.
As fábulas estão presentes em todas as literaturas, e configuram-se como uma grande
metáfora. A palavra fábula provém do verbo latino fabulare, que significa conversar, narrar,
contar; daí a derivação de fábula. Trata-se de uma narrativa de extensão menor e, geralmente,
composta por personagens do reino animal que possuem características humanas: agem,
pensam, falam como seres humanos; no entanto, não perdem suas características animalescas.
É importante ressaltar que cada teórico valoriza certo aspecto da fábula, ou seja, a
moral, a presença de animais humanizados, o aspecto narrativo e até mesmo o caráter fictício.
Assim, as definições de fábula passam por teóricos como Aristóteles, Propp, Tyanianov,
Tomachevski e outros mais recentes, sobretudo da Literatura Infantil.
Segundo Reis e Lopes (1988), o conceito foi elaborado pelos formalistas russos para
referenciar o conjunto dos acontecimentos comunicados pelo texto narrativo, representados
nas suas relações cronológicas e causais. ―A fábula corresponde ao material pré-literário que
vai ser elaborado e transformado em intriga, estrutura compositiva especificamente
literária‖.
2
Conforme a acepção de Tyanianov, ―a fábula pode ser tão somente uma motivação do
estilo, ou um procedimento para expor um certo material‖.
3
Por outro lado, Tomachevski diz que:
Chama-se fábula o conjunto de acontecimentos ligados entre si que são
comunicados ao leitor por uma obra. A fábula poderia ser exposta de uma maneira
pragmática, de acordo com a ordem natural, a saber, a ordem cronológica e causal
dos acontecimentos, independentemente da maneira pela qual estão dispostos e
introduzidos na obra. A fábula opõe-se à trama, que, constituída pelos mesmos
2
REIS; LOPES. Dicionário de teoria da narrativa, p. 208.
3
TYANIANOV. Teoria da literatura: formalistas russos, p. 110.
16
acontecimentos, mas que respeita sua ordem de aparição na obra e a seqüência das
informações que se nos destinam.
4
Assim, o conceito de fábula elaborado pelos formalistas russos designa a matéria
narrada, a ação da narrativa, a sucessão dos acontecimentos, levando sempre em consideração
a cronologia dos fatos.
Na Literatura Infantil, Nely Novaes Coelho aponta que a bula pode ser considerada
uma forma simples de ficção, isto é, ―narrativas que, milênios, surgiram anonimamente e
passaram a circular entre os povos da Antiguidade, transformando-se com o tempo no que
hoje conhecemos como tradição popular‖.
5
A origem da fábula é remota e surge da necessidade natural que o homem sente de
expressar seus pensamentos. Dessa maneira, a fábula deve ser considerada ―uma das formas
simbólicas aparecidas naturalmente, ou seja, foi conseqüência do desenvolvimento histórico
da idéia da arte e teve como berço o Oriente‖.
6
Muitos estudiosos afirmam que a fábula tem sua origem no Oriente, da Índia para a
China, o Tibet, a Pérsia, chegando à Grécia com o fabulista Esopo. Todavia, sua origem é tão
incerta quanto a existência de seus primeiros fabulistas. Nesse sentido, Maria Dezotti afirma
que:
a fábula grega nem era autóctone, nem originária da Índia; ao contrário, essas
vertentes derivam de uma mesma fonte comum não ariana. Contudo, se deixarmos
de lado a tradição greco-latina e mesmo a tradição indiana, somos levados a crer que
a fábula é um modo universal de construção discursiva.
7
Ou seja, pode ocorrer uma variação no conteúdo da fábula, e isso dependerá da cultura
na qual estiver inserida, entretanto, ao longo dos séculos foram preservadas muitas de suas
características iniciais, como assinala Jesualdo Sosa:
O sentido de fábula, seja racional, parábolas, onde intervêm somente homens, seja
em apólogos, fábulas mistas, em que alternam homens, animais e seres inanimados,
tem a finalidade de transmitir ao leitor uma ―moral‖. Esta forma literária, indireta, de
caráter geralmente crítico, levou a pensar que a fábula nasceu da necessidade crítica
4
TOMACHEVSKY. Teoria da literatura: formalistas russos, p. 173.
5
COELHO. Literatura infantil, p. 164.
6
SOSA. A literatura infantil, p. 144.
7
DEZOTTI. A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine, p. 21.
17
do homem, contida pelo poder da força, ou das circunstâncias nas épocas bárbaras;
que a fábula nasceu sob o império do absolutismo e do medo e o poeta comentou a
tirania, combateu a força e atacou a injustiça por meio da ficção.
8
Assim, levou-se a acreditar que a fábula deve sua origem à escravidão, em que os
escravos utilizavam a simbologia para ditar lições de moral a seus superiores, bem como para
a sociedade, daí a fábula ter em seu cerne o caráter moralista.
Dentre os fabulistas destaca-se o grego Esopo, que nasceu e viveu entre os séculos VII
e VI a.C. Existem controvérsias sobre a existência de Esopo, uma vez que suas fábulas não
foram registradas, tendo em vista que inicialmente esse gênero era reproduzido oralmente. No
entanto, no século IV a.C, Demétrio de Falero recolheu e registrou quase seiscentas fábulas,
atribuindo-as a Esopo. Além disso, Heródoto que viveu no século V a.C. também escreveu
uma biografia sobre o fabulista, dado que oferece maior credibilidade à real existência de
Esopo.
No século I a.C., aproximadamente, Fedro, um escravo romano, aperfeiçoou o gênero
fábula iniciando os registros escritos das narrativas de Esopo, e também cria suas próprias
fábulas. Fedro satirizava a sociedade e os costumes da época. ―Suas fábulas o quase sempre
imitadas de Esopo, mas o seu espírito é antes de poeta satírico do que de moralista‖.
9
No século XVII surge na França o fabulista La Fontaine, considerado por Maria Lúcia
Amaral ―o mestre da fábula‖, com sua obra ―maliciosa e mordaz‖. Suas fábulas mais famosas
são O lobo e o cordeiro e A cigarra e a formiga.
Concomitantemente a La Fontaine, foram escritas várias fábulas italianas, que
posteriormente foram reunidas por Ítalo Calvino, que constata: ―[...] a propriedade mais
secreta (da fábula) sua infinita variedade e infinita repetição‖.
10
(grifo do autor). Essa
afirmação nos faz acreditar que por mais remota que seja a origem das fábulas elas continuam
8
Cf. SOSA. A literatura infantil, p.143 144.
9
AMARAL. Criança é criança, p. 31.
10
CALVINO. Fábulas italianas, p. 13.
18
a serem reescritas e reelaboradas por muitos escritores; ainda que haja alterações em seu
conteúdo, o gênero resiste e se renova com o passar dos séculos.
No Brasil, Monteiro Lobato participou da (re) produção desse gênero. Em 1921, o
escritor publica o livro Fábulas, no qual reescreve as fábulas de Esopo e La Fontaine, dando a
estas uma nova roupagem. No Sítio do picapau amarelo, por exemplo, os moradores
relacionam-se com personagens de outras histórias, o que representa o diálogo do texto
lobatiano com as fábulas.
Há na obra de Monteiro Lobato a recorrência às fábulas clássicas, uma vez que foi por
meio delas que o escritor construiu o projeto de uma literatura infantil nacional, o que
podemos constatar na correspondência do autor intitulada A barca de Gleyre, na qual Lobato
declara ao amigo Rangel:
Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La
Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Ora, um
fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se for feito com arte e
talento dará coisa preciosa. As fábulas em português que conheço em geral
traduções de La Fontaine são pequenas moitas de amora do mato espinhentas e
impenetráveis. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta.
11
Foi exatamente o que Lobato fez. Transportou personagens de sua autoria para o
universo das fábulas, em que estas interagem com La Fontaine e Esopo, bem como com os
mais importantes contos dos fabulistas. Isso torna Monteiro Lobato o maior representante
dessa forma literária no Brasil. No entanto, seu projeto de ―mexer com as moralidades‖
falhou, pois nas histórias que compõem o livro Fábulas há, ainda, a presença marcante do
caráter moralizador. Talvez seja por motivos como estes que o conceito ―atual‖ de fábula
continue a reafirmar que:
As fábulas são narrativas em prosa ou em verso que geralmente apresentam
animais como personagens. Animais que pensam, sentem, agem e falam como se
fossem pessoas. Mas as fábulas não apresentam animais como personagens.
fábulas sobre objetos, sobre plantas, sobre estações do ano, sobre morte, sobre
pessoas. As fábulas mostram pontos de vista sobre comportamentos humanos. Ou
seja, recomendam certos comportamentos e censuram outros, que devem ser
11
LOBATO. A barca de Gleyre, p. 104.
19
evitados. Esse ponto de vista ou opinião costuma ser explicitado no início ou no
fim das fábulas e é chamado lição ou moral.
12
Por se tratar de um conceito de fábula pensado e escrito recentemente, portanto,
contemporâneo, reforça os conceitos apresentados até o presente momento. Isto é, não houve
mudanças significativas no conceito tradicional debula, exceto no que diz respeito ao
público alvo, uma vez que no início era um gênero voltado para adultos, mas ao longo dos
tempos passou a ser destinado às crianças.
Nessa perspectiva, as fábulas direcionadas ao público infantil podem ser classificadas
em três tipos, como destaca Maria Augusta Ribeiro (2007):
[...] a clássica, nas quais os animais entram em cena para falar e agir como homens
em suas manifestações negativas. São consideradas recreativas, didáticas e
formadoras do caráter infantil; a nova, com aspecto psicopedagógico, animais
simpáticos e desempenho comprometido com uma crítica construtiva; e a moderna,
que resgata a maneira de narrar e a visão criadora da fábula clássica; tem como
representante Monteiro Lobato.
13
(grifo nosso).
Assim, podemos apreender, do que foi exposto, que essa forma expressiva, a fábula,
nasceu nos primórdios da humanidade pela necessidade humana de encontrar uma forma de
expressar um conhecimento, uma experiência, ou uma crítica em forma impessoal, utilizando
para tanto os animais como personagens, sem perder de vista o caráter moralizador.
Não muito diferente, a escritora brasileira Clarice Lispector também se enveredou por
esse gênero, embora esse não fizesse parte de seu projeto, pelo menos aparentemente. A
primeira fábula clariciana foi escrita em 1967, a pedido-ordem do filho Paulo, intitulada O
mistério do coelho pensante. Mais tarde, Clarice publicaria mais três fábulas: A mulher que
matou os peixes (1968), A vida íntima de Laura (1975), e a póstuma Quase de verdade
(1978).
14
12
http:// www.tvebrasil.com.br/salto/boletins 2005/nl/meio.htm.
13
RIBEIRO. Educação: teoria e prática, p. 85 - 86.
14
Os livros O mistério do coelho pensante, A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura, e Quase de
verdade, de Clarice Lispector foram reeditados pela editora Rocco, em 1999. Nosso estudo se baseia nos livros
dessa editora que, por não apresentarem as páginas numeradas quando citados as referências, virão com as siglas
(s.n.p sem número de página).
20
Como uma leitora declarada e fiel da obra de Monteiro Lobato e, como visto
anteriormente, a obra lobatiana é atravessada pela leitura de fábulas, logo a obra de Clarice
também tem ressonâncias das fábulas clássicas. Lucilene Arf, no texto intitulado Clarice
Lispector e Monteiro Lobato: uma relação clandestina? (2005), discute a relação literária
entre Lobato e Clarice e afirma que por meio destas [fábulas], ambos os escritores se
apropriam de obras clássicas estrangeiras, subvertendo suas histórias segundo critérios e
objetivos próprios.
15
É por meio da devoção encontrada em diversos momentos da obra clariciana e
mediante traços biográficos da leitora-escritora que se estabelece a relação de amizade entre
Clarice e Lobato. Na esteira de Lucilene Arf, ―são momentos de inusitadas demonstrações de
afeto e admiração, como se Clarice visse em Lobato um modelo de identificação, ponto de
referência [...]‖.
16
É sabido que tal amizade ―não‖ houve de fato, uma vez que Clarice inicia sua vida
literária pouco antes de Lobato morrer, mas a voz do autor continua, de certa maneira, a viver
nas leituras da leitora-escritora. No texto ―O primeiro livro de cada uma de minhas vidas‖,
Clarice nos dá pistas dessa devoção por Monteiro Lobato:
Tive várias vidas. Em outras de minhas vidas foi emprestado porque era muito caro:
Reinações de Narizinho. contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo
qual passei, pois pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma
menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda e muito sardenta se vingara
tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um
jogo de ―amanhã venha em casa que eu empresto.
17
O fato descrito ocorreu também na vida real de Clarice Lispector, até mesmo
confundem-se. A menina que enfrentou esta história, ou esse episódio, corresponde de fato à
Clarice ainda menina, de origem humilde e estrangeira, que foi ―torturada‖ pela dona do livro
uma menina gorda e sardenta que por maldade dizia que o livro estava com alguém que não
15
Cf. ARF. Clarice Lispector e Monteiro Lobato: uma relação clandestina?, p. 90.
16
ARF. Clarice Lispector e Monteiro Lobato: uma relação clandestina?, p. 30.
17
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 721 - 723.
21
o devolvera. Essa tortura foi interrompida pela mulher do livreiro, que obrigou a filha a
emprestar o livro à Clarice.
Nesse sentido, Edgar Nolasco afirma que ―o acontecimento da ‗vida real‘ é a mola
propulsora das vidas/obras e, mais, de todas e cada uma delas‖.
18
Ou seja, os fatos
biográficos ajudam a compor a obra de Clarice Lispector, uma vez que a criação literária está
atravessada pela união de vida e obra dessa escritora.
A autora declarou ainda em outra crônica intitulada ―Felicidade‖, escrita em 12 de
outubro de 1962, sua dívida literária não quitada com o escritor Monteiro Lobato: ―Quanto a
mim, continuo a ler Monteiro Lobato. Ele deu iluminação de alegria a muita infância infeliz.
Nos momentos difíceis de agora, sinto um desamparo infantil, e Monteiro Lobato me traz
luz‖.
19
Esse desamparo ―infantil‖ mencionado pela escritora adulta reflete o desamparo dela
quando pequena. Constata-se, portanto, que por meio das dificuldades para ler Reinações de
Narizinho, Clarice confessa seu encantamento por Monteiro Lobato tanto na vida quanto na
ficção, o que desembocaria no conto ―Felicidade Clandestina‖.
No entanto, a escritora não se encantaria apenas pelas histórias lobatianas, mas
também por outras fábulas da literatura universal, entre as quais destacamos: Chapeuzinho
vermelho, de Charles Perrault, A bela e a fera, de Madame Leprince de Beaumont, O patinho
feio, de Hans Christian Andersen e Barba azul, também de Charles Perrault.
Clarice Lispector faz uma releitura das fábulas clássicas em sua obra, permitindo o
resgate imaginário, porém com uma nova focalização. Na medida do possível, procuraremos
mostrar a presença ou diálogo entre algumas fábulas e o contexto no qual elas aparecem
dentro da literatura de Clarice Lispector. O que causa curiosidade é que tais alusões ou
referências explícitas aparecem dentro dos próprios romances e contos, e não apenas nos
livros aqui em estudo.
18
NOLASCO. Restos de ficção: a escrita biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 89.
19
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 142.
22
Para validar as acepções discutidas, faremos algumas aproximações das narrativas de
Clarice Lispector com as fábulas clássicas. A primeira comparação é entre Chapeuzinho
vermelho e ―Os desastres de Sofia‖. Vale ressaltar que esta narrativa faz referência à obra
homônima de Madame de Ségur, em que a protagonista é uma garota sádica, desobediente,
que seduz todos que dela se aproximam.
É necessário lembrar, ainda, que estamos comparando o texto clariciano com a versão
da fábula Chapeuzinho vermelho, de Perrault, que traz ao final versos que evidenciam a
questão sexual, em que o lobo representa o ―macho‖ que tenta devorar a menina:
Vimos que os jovens,
Principalmente as moças,
Lindas, elegantes e educadas,
Fazem muito mal em escutar
Qualquer tipo de gente,
Assim, não será de estranhar
Que, por isso, o lobo as devore.
Eu digo o lobo porque todos os lobos
Não são do mesmo tipo.
Existe um que é manhoso
Macio, sem fel, sem furor.
Fazendo-se de íntimo, gentil e adulador,
Persegue as jovens moças
Até em suas casas e seus aposentos.
Atenção, porém!
As que não sabem
Que esses lobos melosos
De todos eles são os mais perigosos.
20
Mariza Mendes, no livro Em busca dos contos perdidos: o significado das funções
femininas nos contos de Perrault (1989), observa que quando um conto em prosa traz ao seu
final versos de caráter moralistas evidencia:
em primeiro lugar, a intenção de mostrar que contar uma história e acrescentar-lhe
uma lição de moral são coisas distintas. Separada estruturalmente do conto, a moral
não o contamina e pode mesmo ser suprimida, sem que se altere o texto da narrativa.
Outra evidência é o desejo de atualizar as histórias, dando-lhes um contexto social
contemporâneo.
21
Ou seja, muitas fábulas ao serem reescritas são alteradas, rasuradas e suprimidas. Na
versão de Chapeuzinho vermelho de Perrault, foram introduzidos versos moralizantes que
alteram o sentido original da fábula, isso ocorre precisamente para mostrar o contexto no qual
20
PERRAULT. Contos de Perrault, p. 256.
21
MENDES. Em busca dos contos perdidos: o significado das funções femininas nos contos de Perrault, p. 119.
23
está inserida a versão. Mendes revela que a maior sutileza está nas conotações sexuais
atribuídas a certos comportamentos das personagens, relacionando-os com os costumes da
sociedade francesa do Antigo Regime.
Nesse mesmo sentido, Bruno Bettelheim afirma que Chapeuzinho vermelho projeta, de
forma simbólica, a menina nos perigos da puberdade. ―O macho é de extrema importância e
divide-se em duas figuras opostas, a de sedutor perigoso que, se cedermos a ele, se transforma
no destruidor da avó e da menina; e a do caçador, a figura forte e salvadora‖.
22
Na narrativa clariciana, Sofia é uma menina na puberdade com consciência mais
adulta que infantil ―de noite antes de dormir, ele me irritava. Eu tinha nove anos e pouco, dura
idade como o talo não quebrado de uma begônia‖.
23
Em ambas as narrativas, o perigo que circunda os enredos é a sexualidade. Na fábula
de Perrault, a figura do lobo ameaça garotas indefesas como Chapeuzinho vermelho; por
outro lado, em ―Os desastres de Sofia‖ é a própria garota quem propõe o jogo da sedução: ―Eu
me tornara a sua sedutora, dever que ninguém me impusera‖.
24
Apaixonada pelo professor, a
garota age de maneira inoportuna, desafiando-o a todo o momento. ―Ouvi com ar de desprezo,
ostensivamente brincando com o lápis, como se quisesse deixar claro que suas histórias não
me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era‖.
25
A equivalência entre o lobo e o homem, assim como em Perrault, ocorre no conto
clariciano quando o professor por quem a menina se apaixona é descrito como um ser feio: ―E
bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e
feio, e que ele era o homem da minha vida‖.
26
As famosas perguntas que Chapeuzinho
vermelho faz ao lobo também se repetem, de maneira alegórica, no conto clariciano:
22
Cf. BETTELHEIN. A psicanálise dos contos de fadas, p. 208.
23
LISPECTOR. A legião estrangeira, p. 11.
24
LISPECTOR. A legião estrangeira, p. 12 - 13.
25
LISPECTOR. A legião estrangeira, p. 15 - 16.
26
LISPECTOR. A legião estrangeira, p. 19.
24
Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os
teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa boca de
fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já
que tenho que te doer, eu sou lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te
servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mão dadas, pois preciso
tanto, tanto, tanto uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes
de se aconchegarem um ao outro para amar e dormir.
27
A principal diferença entre os textos é a inversão que o conto clariciano propõe com
relação à criança. Se, no texto de Perrault, o lobo é o adulto que tenta desviar a menina dos
caminhos da virtude, em Clarice ocorre o oposto, pois é a pequena Sofia que tenta reconduzir
o Professor para os caminhos do prazer, demonstrando que não é, pelo menos aparentemente,
a educação moralizante o objetivo do conto.
Clarice Lispector resgata a fábula de Perrault deixando claro que ela também faz parte
do processo de reatualização das fábulas clássicas; entretanto, a autora atualiza o texto
conforme sua necessidade/vontade, sem deixar evidente a ―moralidade‖ em sua narrativa,
como a imposta no conto de Perrault.
Ainda no campo das comparações dos textos claricianos com outras obras, a escritora
propõe um diálogo entre o conto de sua autoria ―A bela e a fera ou a ferida grande demais‖ e a
fábula A bela e a fera, em que o foco é vencer os oponentes; no entanto, estes são diferentes
nas duas fábulas. Na fábula original, de Madame Leprince de Beaumont, a personagem tem
de enfrentar suas duas irmãs a fim de voltar para a Fera; enquanto no conto clariciano, a
protagonista precisa vencer o marido e o status social. Guardadas as proporções, os textos se
aproximam, pois se sustentam em bases comuns: beleza versus feiúra, pobreza versus riqueza
e o próprio conceito de felicidade. Claro que não se pode esquecer que os títulos idênticos por
si só já desencadeariam uma leitura comparada.
O contraste entre beleza e feiúra está fortemente marcado nas duas obras, como os
próprios títulos sugerem. Na fábula de Beaumont trata-se da oposição entre o homem e a
27
LISPECTOR. A legião estrangeira, p. 26.
25
mulher, em que o primeiro se transforma pela força do amor. De maneira diversa, essa
questão é elaborada no conto clariciano, neste o feio fica mais evidenciado.
O grotesco criva-se nas condições econômica e social do mendigo com sua ferida
exposta; e a beleza de Carla, protagonista da narrativa, parece ficar em segundo plano, que
como diz a própria protagonista ―a beleza pode ser uma grande ameaça‖.
28
Ricardo Iannace
ressalta que ―o feio liga-se, sobretudo à miserável condição física e econômica das
personagens‖.
29
Na fábula francesa também está imposta a condição econômica, em que a
riqueza é soberana frente à feiúra de seu proprietário, que mesmo em tal condição é capaz de
convencer uma moça pobre a aceitá-lo como marido.
Por tratar-se de um conto de fadas, Fera recupera sua fisionomia de príncipe e Bela é a
responsável por essa transformação, e o faz movida pelo amor. Nesse sentido, Geruza Zelnys
de Almeida comenta: ela é o elemento feminino modificador, enquanto que Fera é o
elemento formador: príncipe que virou monstro e que volta a ser príncipe, porém não o
mesmo, agora outro (trans) formado por Bela‖.
30
O texto de Clarice também propõe uma transformação; entretanto, ocorre uma
inversão de papéis. A protagonista, uma bela dama da alta sociedade, sofre por meio da figura
de um mendigo com uma ferida exposta, uma transformação profunda.
Teve vontade de dizer: olhe homem, eu também sou uma pobre coitada, a única
diferença é que sou rica. Eu... pensou com ferocidade, eu estou perto de
desmoralizar o dinheiro ameaçando o crédito do meu marido na praça. Estou prestes
a, de um momento para outro, me sentar no fio da calçada. Nascer foi minha pior
desgraça. [...] Tinha medo. Mas de repente deu o grande pulo de sua vida:
corajosamente sentou-se no chão.
31
Em 1971, Clarice Lispector apropria-se da fábula O patinho feio, de Hans Christian
Andersen, e escreve ―Cisne‖, ou ainda sob o título de ―Um pato feio‖, que compõe o livro de
28
LISPECTOR. A bela e a fera, p. 94.
29
IANNACE. A leitora Clarice Lispector, p. 109.
30
ALMEIDA. A bela e a fera: conto de fadas ou fado?, p. 65.
31
LISPECTOR. A bela e a fera, p. 103.
26
crônicas Para não esquecer. Na fábula original a utilização dos animais na construção da
história, e apresenta-se uma ―moral da história‖.
A trama envolve uma situação vivida por muitas crianças, a sensação de se sentirem
diferentes. Clarice faz uma reflexão a esse respeito no texto ―O primeiro livro de cada uma de
minhas vidas: ―essa história me fez meditar muito e identifiquei-me com o sofrimento do
patinho feio quem sabe se eu era um cisne?‖
32
Nestes textos, assim como analisado em A bela e a fera e ―A bela e a fera ou a ferida
grande demais‖, o tema é a beleza versus feiúra e a consequente transformação por que passa
a personagem principal. Na fábula de Andersen, o protagonista que no início não é belo passa
por uma transformação (metamorfose) de um patinho feio a um belo cisne. Na crônica de
Clarice vemos configurados traços nítidos da fábula de Andersen:
Mas foi o vôo que se explicaram seus braços compridos e desajeitados: eram asas. E
o olho um pouco estúpido, aquele olhar estúpido combinava com as larguras do
pensamento pleno. Andava mal no diário, mas voava. Voava tão bem que até parecia
arriscar a vida, o que era um luxo. Andava ridículo, cuidadoso, o pato feio. No chão
ele era um paciente.
33
Clarice Lispector revela em A descoberta do mundo o seu encontro com o livro de
Andersen, o que sustenta a comparação entre os textos: ―Busco na memória e tenho a
sensação quase física nas mãos de segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava
a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim‖.
34
Dessa maneira, Clarice revela sua
construção como leitora e passa de leitora de Andersen para escritora, mais do que resgatar o
autor em sua obra ela propõe um diálogo com as fábulas, o que comprova que Clarice tem
também como base de sua escrita as fábulas clássicas.
A escritora retoma ainda o conto Barba azul, de Charles Perrault, no livro A maçã no
escuro, quando a personagem Vitória rememora, no escuro da noite, os feitos do cruel
personagem Barba azul e o compara a Martim:
32
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 721.
33
LISPECTOR. Para não esquecer, p. 18.
34
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 721.
27
Fora erro involuntário o seu de acordar durante a noite que é feita para dormir, como
se tivesse aberto sem querer a porta proibida do segredo e visse as lívidas esposas do
Barba Azul. Mas já era mais que simples erro não ter fechado a porta, e ter
concedido à tentação de ganhar poder naquele silêncio onde, porque ela não quisera
se limitar a usar apenas as suas palavras compreensíveis, Deus a deixara só.
35
A fábula de Perrault narra a história de um casamento mal sucedido, ocasionado pela
prática bárbara do marido que matava as esposas e guardava os cadáveres no gabinete. Barba
azul é a imagem e o modelo perfeito do marido dico: entregou à mulher todas as chaves da
casa, mostrando uma que não deveria ser usada, pois em um dos quartos ela não deveria
entrar jamais.
um diálogo evocando Bakhtin -, ou uma intertextualidade lembrando Kristeva
, com a história bíblica do pecado representado pela maçã (um símbolo tal qual a chave), o
único fruto que fora proibido a Adão e Eva o da árvore do conhecimento, que não poderia
ser consumido; o final é o mesmo também: o castigo pela desobediência desencadeada pela
mulher.
No conto de Perrault, o motivo desencadeador é a curiosidade feminina, pois a esposa
é castigada precisamente por entrar no local que o marido proibira. Entretanto, apesar de ser
considerada uma história não apropriada para crianças, que possui traços de violência, o
conto tem um desfecho típico dos contos de fadas, pois a heroína é salva da morte pelos
irmãos e torna-se herdeira de uma grande fortuna.
Na narrativa A maça no escuro, Clarice Lispector apresenta Martim, um forasteiro
acusado de matar a esposa, e como um fugitivo se instala na fazenda de Vitória, local em que
é submetido ao trabalho pesado. Vitória, a dona da fazenda, é uma mulher de cinquenta anos
que se sente atraída pelo empregado, e ao mesmo tempo em que renuncia ao desejo, prolonga
a entrega de Martim à polícia.
As narrativas envolvem a figura de homens calculistas, que utilizam o tempo como
aliado para atrair as mulheres; no conto, Barba azul convida a futura esposa e as amigas para
35
LISPECTOR. A maça no escuro, p. 180.
28
passarem alguns dias em sua casa no campo, e aproveita a oportunidade para mostrar suas
riquezas, prazo suficiente para desposar a candidata à esposa. A mesma artimanha temporal é
utilizada pela esposa de Barba azul, pois ela pede um tempo ao marido para poder salvar-se e
entregar esse sinistro personagem à justiça.
Na narrativa clariciana, Martim e Vitória também utilizam o tempo como aliado, uma
vez que Martim ao mesmo tempo em que se aproxima de Vitória, se afasta, talvez
pretendendo que com esse tempo a patroa se rendesse aos desejos e o livrasse da consequente
prisão. Vitória também participa desse jogo temporal, que protelou a estada de Martim em
sua fazenda pelo tempo que julgou necessário, e o manteria ali por mais tempo caso tivesse a
certeza de que não se perderia como a esposa de Barba azul.
De acordo com Ricardo Iannace, a figura lendária e cruel de Barba azul invade o
imaginário de Vitória, personagem da narrativa clariciana, ―esse arquétipo personagem,
assassino das próprias esposas, transforma-se no paradigma de Martim‖.
36
O autor revela
ainda que há nessa narrativa o retorno do mito.
Abrimos um parêntese para assinalar que o Mito, do grego mythos, refere-se às
narrativas heróicas, de significação simbólica. Clarice Lispector colaborou com o gênero
empregando seu realismo mágico. De acordo com Joseph Campbell:
As civilizações se baseiam em mitos [...] O campo simbólico se baseia nas
experiências das pessoas de uma dada comunidade, num dado tempo e espaço. Os
mitos estão tão intimamente ligados a cultura, a tempo e espaço que, a menos que
suas metáforas se mantenham vivas, por uma constante recriação através das artes, a
vida simplesmente os abandona.
37
Ou seja, de alguma maneira a história do mito Barba azul é recuperada por Clarice e
complementa o percurso de Martim. Dois homens marcados pela morte de suas esposas, mas
que revelam em seu último relacionamento arrependimento. Talvez, por esse motivo Barba
azul concedeu o tempo solicitado pela esposa para que essa pudesse se salvar; no entanto, a
36
IANNACE. A leitora Clarice Lispector, p. 82.
37
CAMPBELL. O poder do mito, p. 72.
29
fábula não oferece elementos que nos façam acreditar no perdão da esposa ao marido. Por
outro lado, Vitória apesar de um gesto mudo concede o perdão a Martim quando este se
ajoelha a seus pés.
Podemos considerar, portanto, que Clarice tece um diálogo com a tradição para tratar
de assuntos atuais, e é por meio desse diálogo que a escritora revisita a tradição das fábulas,
ainda que ela se distancie um pouco do texto original, uma vez que ao se apropriar dessas
fábulas altera as histórias, o que é uma prática recorrente da escritora.
Consideramos também que por meio de Monteiro Lobato, Clarice Lispector se
aventura pelo mundo das fábulas. Nesse sentido, Lucilene Arf comenta: ―em um primeiro
momento, a escritora (re)conta as tramas que leu e que imaginou, revelando parte de suas
fontes inspiradoras, depois, possuída por uma sensibilidade única, recria e aproveita suas
próprias criações e episódios de sua vida‖.
38
Assim, ler Clarice Lispector é reler outros autores da literatura nacional e universal, e
ainda outros livros da própria escritora, pois, como leitora-escritora, deixa marcas e alusões
significativas em suas narrativas. Algumas aproximações são claras como quando apresenta
títulos idênticos como é o caso de ―A bela e a fera‖, ou ainda ―Os desastres de Sofia‖, entre
outros inúmeros casos.
A propósito, Ricardo Iannace, no livro A leitora Clarice Lispector (2001), tece
algumas considerações sobre essas leituras e releituras claricianas, mapeando essas citações a
partir de um estudo intertextual. Nesse livro é possível observar e entender que a leitora
Clarice Lispector esses textos originais, transformando-os em fontes inspiradoras; reconta-
os agora como Clarice Lispector escritora, e extrai de maneira ímpar a essência de cada um
desses textos, criando a partir dessas releituras o fabulário clariciano.
38
ARF. Clarice Lispector e Monteiro Lobato: uma relação clandestina?, p. 125.
30
1.2 O bestiário infantil
E o destino dos bichos ali se fazia e refazia: o de amar
sem saber que amavam.
Clarice Lispector. Como nasceram as estrelas, p. 53.
Como visto no tópico anterior, Clarice Lispector tece um diálogo com a tradição
fabular, ainda que este diálogo não seja especificamente com a literatura voltada ao público
infantil da escritora. Todavia, nos textos infantis, objeto de nossa análise, a escritora se vale
de recursos da fábula tradicional na construção de sua escrita, sobretudo dos animais como
personagens, o que nos remete ao termo bestiário. Para compreendermos a obra clariciana
como uma possível reescritura de bestiários, apresentaremos algumas definições acerca do
gênero.
De acordo com o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés:
Os bestiários eram, durante a Idade Média, sobretudo nos séculos XIII e XIV, livros
em prosa ou verso, muitas vezes com ilustrações, que tratavam de animais,
verdadeiros ou fantásticos, considerados simbolicamente portadores de qualidades
sobrenaturais, via de regra ligadas ao Cristianismo.
39
Assim como nas fábulas, os bestiários apresentam os animais como personagens
centrais, todavia este último abrange também animais fantásticos como o unicórnio, a fênix e
a sereia. É importante destacar que as descrições destes animais não são fruto de uma
observação direta, mas de informações retiradas de outras obras.
Nessa perspectiva, Carlos Ceia define:
O bestiário é referente a manuscritos medievais compostos por descrições detalhadas
do mundo natural e animal. Assim como os herbários, que consistiam em listas de
ervas, flores e plantas, e os lapidários, que eram compilações de pedras e de fósseis,
os bestiários retratavam os animais, ssaros e peixes, desde os mais comuns e
facilmente reconhecíveis até aos imaginários e fantásticos.
40
O bestiário tem suas raízes na tradição oral asiática, helênica e egípcia, passando por
Heródoto, Aristóteles e Plínio, até chegar ao Physiologus (séc. II e III) e a Isidoro de Sevilha
39
MOISÉS. Dicionário de termos literários, p. 54 - 55.
40
CEIA. Dicionário de termos literários, s.n.p.
31
(séc. VI), que são os antepassados diretos dos bestiários medievais dos séculos XII e XIII.
Segundo Ceia:
O Physiologus era um texto latino traduzido do grego, muito popular por toda a
Europa, e que representava a versão cristã do conhecimento acumulado de
historiadores naturalistas do mundo antigo, sendo uma tentativa de redefinir o
mundo natural em termos cristãos.
41
Por estar ligado ao Cristianismo, o objetivo fundamental dos bestiários era expor o
mundo natural, e não simplesmente documentá-lo ou explicar o seu funcionamento. ―Os seus
autores sabiam que tudo na Criação tinha uma função e o seu Criador tinha uma intenção, que
consistia na edificação do homem pecador‖.
42
Tal edificação era possível por meio da
natureza e dos hábitos dos animais, uma vez que o homem poderia ver a humanidade refletida
neles e assim aprender o caminho para a redenção.
Mais tarde, com o desenvolvimento científico, esses tratados perderam a sua
importância e passaram a dar um maior relevo à observação e à experiência. Contudo, os
bestiários tiveram uma grande influência na Literatura, permitida, sobretudo por meio das
fábulas.
Os textos claricianos escritos para crianças são notoriamente marcados pela presença
de animais, que, até mesmo, são nomeados como o coelho Joãozinho, de O mistério do coelho
pensante, a miquinha Lisete, de A mulher que matou os peixes, a galinha Laura, de A vida
íntima de Laura, e o cachorro Ulisses, de Quase de verdade.
A questão dos nomes, assim como das atitudes comportamentais dos animais nas
histórias contadas pelas narradoras claricianas, é um dado que afirma a equivalência de
animais às crianças. Contar histórias de bichos para as crianças é a maneira de Clarice
Lispector falar da vida e das relações humanas para seus pequenos leitores.
ainda nos textos de Clarice os animais não identificados pelo nome, tornando
maior o repertório de seu bestiário - peixes, gatos, (animais convidados); periquitos, cavalo-
41
Cf. CEIA. Dicionário de termos literários, s.n.p.
42
CEIA. Dicionário de termos literários, s.n.p.
32
marinho, borboletas, pássaros, cobra, lagarto, antas (animais da ilha); baratas, lagartixa, rato,
mosquito (animais naturais).
A relação de fascínio de Clarice pelos animais é algo que merece destaque, pois a
escritora passa sua vida tentando justificar tal paixão: ―Não ter nascido bicho é minha secreta
nostalgia. Eles às vezes chamam de longe muitas gerações e eu não posso responder senão
ficando inquieta. É o chamado‖.
43
A escritora reitera a todo o momento seu amor pelos bichos: ―Somente quem teme a
própria animalidade não gosta de bichos. Eu adoro‖. E o motivo por tal admiração é a própria
Clarice quem nos apresenta: ―Talvez seja porque sou de sagitário, metade bicho‖.
44
Alguns críticos analisaram a presença animalesca na obra clariciana e concordam,
grosso modo, que ―tornar-se bicho‖ é um artifício utilizado por Clarice Lispector para afastar-
se da hegemonia do mundo racional humano e aproximar-se da vida de forma mais direta e
instintiva.
Para Benedito Nunes ―os animais gozam, no mundo de Clarice Lispector, de uma
liberdade incondicionada, espontânea, originária, que nada nem a domestificação
degradante de uns, nem a aparência frágil e indefesa de outros - seria capaz de anular‖.
45
Ou
seja, Clarice se metamorfoseia para também usufruir dessa liberdade incondicional dos
animais, essa busca é tão intensa que em vários momentos de sua obra a escritora estabelece a
relação entre o homem e o animal. Em A mulher que matou os peixes, por exemplo, Clarice
faz a comparação entre os dois e diz:
Vocês também têm faro? Aposto que sim, porque, além de sermos gente, somos
também animais. O homem é o animal mais importante do mundo, porque, além de
sentir, o homem pensa, resolve e fala. Os bichos falam sem palavras.
46
43
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 57.
44
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 73 - 74.
45
NUNES. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector, p. 132.
46
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
33
A relação de Clarice com os animais também foi estudada por Silviano Santiago no
artigo intitulado ―Bestiário‖, em que o crítico faz considerações sobre a presença dos animais
em alguns textos da escritora e comenta que: ―a dupla metamorfose por que passa o ser
humano vai se tornar uma constante nos textos ficcionais de Clarice Lispector‖.
47
É precisamente por meio dessa metamorfose que Clarice estabelece em sua obra os
processos que Silviano Santiago denomina ―automodelagem‖ e ―modelagem‖
48
, em que o
primeiro designa o ser humano como um animal doméstico, isto é, um ser harmonizado com o
mundo; e o segundo, o homem visto pelo olhar alheio e também pelo próprio olhar como um
animal selvagem. É importante ressaltar que a metamorfose humano-animal é um processo
que perpassa várias narrativas de Clarice Lispector, mesmo aquelas que não possuem
propriamente animais como personagens.
Portanto, poderíamos postular que os pilares que sustentam o pensamento de Clarice
Lispector são expressos por duas condições, o homem animalizado e o seu contrário, o animal
humanizado, em que este segundo se destaca na literatura voltada para as crianças. Nessas
histórias encontramos muitos exemplos de ―personificação‖, dado que reforça a tese de que
essas obras têm ressonâncias das fábulas clássicas. - Puxa, eu não passo de um coelho
branco, mas acabo de cheirar uma idéia tão boa que até parece idéia de menino!‖
49
Ou ainda,
―Ulisses tem olhar de gente‖.
50
Contudo, nas fábulas infantis claricianas, objeto de nossa análise, não ocorre
simplesmente a metamorfose do humano em animal e vice-versa, mas indagamos se há
especificamente a equivalência entre as personagens das fábulas (os animais) e as crianças, ou
não. Mas essa é uma questão à qual só chegaremos depois, com o decorrer deste estudo.
47
SANTIAGO. Bestiário, p. 193.
48
Cf. SANTIAGO. Bestiário, p. 195.
49
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
50
LISPECTOR. Quase de verdade, s.n.p.
34
Nas fábulas claricianas as personagens são construídas com base em animais que a
escritora de fato teve em sua vida, e isso é um fato relevante para nossa leitura, porque nele
inscreve-se o ―bio‖. Por ser o traço biográfico a marca recorrente na escrita das fábulas de
Clarice Lispector, nossa leitura está atravessada pela concepção da crítica biográfica.
Contudo, nesse momento faremos uma breve apresentação do conceito, uma vez que ele será
ampliado no segundo capítulo deste trabalho.
Recorremos ao termo elaborado por Roland Barthes, biografemas, conceito
desenvolvido pelo autor no livro Roland Barthes por Roland Barthes. Longe de revelar uma
visão total, este conceito responde pela construção de uma imagem fragmentada do sujeito,
em que são consideradas não somente a produção ficcional de um escritor, mas também sua
produção pessoal (cartas, bilhetes, depoimentos entre outros). Assim, a crítica biográfica
equivale a um ―saber narrativo‖ adquirido por meio da conjunção entre teoria e ficção, em que
as fronteiras entre o vivido e o ficcionalizado são diluídas.
Nesse sentido, encontramos na produção infantil de Clarice Lispector a ocorrência do
fabular da própria vida, tornando essas fábulas biográficas, pois como veremos adiante a
escritora é motivada pelos filhos a escrever os primeiros livros destinados ao público mirim.
O mistério do coelho pensante foi inspirado em dois coelhos que pertenceram aos
filhos da escritora, como indica Clarice no prefácio do livro: ―O mistério do coelho pensante é
também minha discreta homenagem a dois coelhos que pertenceram a Pedro e Paulo, meus
filhos. Coelhos aqueles que nos deram muita dor de cabeça e muita surpresa e
encantamento‖.
51
Em sua segunda narrativa, também voltada para o público infantil, A mulher que
matou os peixes, Clarice nos apresenta uma ―arca de animais‖ que teve durante sua vida. Esta
narrativa, inspirada em um fato real, uma vez que a mãe-escritora Clarice Lispector se
51
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
35
esqueceu de alimentar os peixes do filho Pedro e estes acabaram morrendo, é relatada em tom
confessional. Mas para redimir-se desse crime são narradas várias histórias com os bichos que
ela teve ou surgiram em sua vida ―[...] no começo e no meio vou contar algumas histórias de
bicho que tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer‖.
52
Clarice nos apresenta por meio dessa fábula um mosaico de histórias com animais que
teve ao longo de sua vida, incluindo os ―bichos naturais‖. Esse processo de criação da
escritora empregado no livro, de juntar animais, equivale ao processo do conto ―Seco estudo
de cavalos‖. Esse conto, composto de quinze fragmentos em que cada um recebe um
subtítulo, foi escrito sob o vocábulo cavalo, em que, como sugere o tulo, compila
comentários sobre os cavalos espalhados por várias narrativas de Clarice Lispector.
A obra de Clarice Lispector gira em torno de temas e conteúdos comuns, por isso a
escritora vai colando uma história seguida de outra e, dessa colagem, aparecem algumas
histórias publicadas em sua ficção, como a da miquinha Lisete, de A mulher que matou os
peixes, que também é personagem do conto ―Macacos‖ de A legião estrangeira.
No conto ―Macacos‖, e em A mulher que matou os peixes, as narrativas são elaboradas
a partir da figura de um macaco; no primeiro um mico enorme e a macaca Liset(t)e; no
segundo, uma pequena miquinha também chamada Lisete. As histórias se aproximam, pois
apresentam algumas coincidências, inclusive os nomes das macaquinhas; no entanto, o que as
difere é a quantidade de páginas.
No livro A mulher que matou os peixes, a história de Lisete por ser destinada ao
público infantil é mais extensa que o conto ―Macacos‖, demonstrando uma preocupação
analítica da escritora, uma necessidade de explicar e oferecer mais detalhes para o público
infantil. Vejamos uma passagem, sobre a temática morte, em que fica nítida tal preocupação.
No dia seguinte o veterinário telefonou avisando que Lisete tinha morrido durante a
noite. Compreendi então que Deus queria levá-la. Fiquei com os olhos cheios de
lágrimas e não tinha coragem de dar esta notícia ao pessoal de casa. Afinal avisei, e
52
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
36
todos ficaram muito, muito tristes. De pura saudade, um dos meus filhos perguntou:
- Você acha que ela morreu de brincos e colar? Eu disse que tinha certeza que sim, e
que, mesmo morta, ela continuava linda. Também de pura saudade, o outro filho
olhou para mim e disse com muito carinho: - Você sabe, mamãe, que você se parece
muito com Lisete? Se vocês pensam que eu me ofendi porque me parecia com Lisete
estão enganados. Primeiro, porque a gente se parece mesmo com um macaquinho;
depois, porque Lisete era cheia de graça e muito bonita. Obrigada, meu filho foi
isso que eu disse a ele e dei-lhe um beijo no rosto. Um dia desses vou comprar um
miquinho com saúde. Mas esquecer Lisete? Nunca.
53
Em A mulher que matou os peixes, Clarice apresenta a morte de Lisete de maneira
sensível. Por ser escrita para crianças a narrativa é repleta de detalhes e adjetivos, o que
demonstra certa preocupação ao tratar de um tema tão delicado como a morte para esse
público mirim. Todavia, o mesmo não ocorre no conto ―Macacos‖.
Nesse conto, temos a seguinte passagem sobre a mesma cena descrita:
No dia seguinte telefonaram e eu avisei aos meninos que Lisette morrera. O menor
me perguntou: Você acha que ela morreu de brincos? Eu disse que sim. Uma
semana depois o mais velho me disse: Você parece tanto com Lisette! Eu também
gosto de você, respondi.
54
É possível observar que o texto é sintético e objetivo; a apresentação do fato doloroso
- a morte de Lisette - é feita diretamente; e o fato traumatizante, a morte do ser que se ama, é
apresentado como algo irreversível. ―Não há intenção, por parte do narrador, em suavizá-la ou
sentimentalizá-la‖.
55
Portanto, nota-se que no primeiro, a ideia da morte é apresentada para a
criança como um desejo divino; no segundo, por sua vez, a morte é narrada como algo natural
e inevitável.
O processo de bricolagem se repete em muitas outras histórias de Clarice Lispector,
trata-se, pois, de uma reunião de bichos que lhe são familiares e que se assemelham a outros
personagens de sua ficção. Edgar Nolasco, no livro intitulado Clarice Lispector: nas
entrelinhas da escritura (2003), analisa esse processo escritural na obra clariciana e comenta:
[...] constata-se o processo de apropriação que a autora faz de si mesma, por toda a
sua obra, quer seja reescrevendo, quer seja recopiando tal qual [...] Assim, no
processo de apropriação do que é seu mesmo, Clarice se vale da paráfrase, da
paródia e, sobretudo do plágio e, confundindo a voz do autor com a voz das
53
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
54
LISPECTOR. A legião estrangeira, p. 45.
55
RIBEIRO. A literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector, p. 97.
37
personagens, enfim dispersando os papéis de ambos na escritura, modifica [os
textos] completamente.
56
Inspirada nas galinhas, Clarice Lispector escreve A vida íntima de Laura, além de
contos e crônicas em que a escritora apresenta-nos uma fixação por esse animal. Sobre tal
fixação Clarice declara em depoimento dos anos 70: ―Quando era pequena, eu olhava muito a
galinha, muito tempo. E sabia imitar bicar o milho e sabia imitar quando ela estava com
doença. E me impressionou tremendamente! Aliás sou muito ligada a bicho‖.
57
A história de Laura se inicia com a explicação do que quer dizer "vida íntima"; a
narradora nos fala que para contar a vida íntima de alguém é necessário ser capaz de
compreender detalhes simples que geralmente não percebemos, ela ensina, aqui, a fazer
biografia. Depois dessa explicação, descobrimos que Laura é uma galinha quase comum, não
fosse a posição que o texto assume frente ao mundo. ―[...] Laura é uma galinha. E uma
galinha muito da simples. [...] É casada com um galo chamado Luís. Luís gosta muito de
Laura, embora às vezes brigue com ela. Mas briguinha à toa‖.
58
Nessa narrativa, Clarice elabora o processo de ―automodelagem‖ em que a vida
humana e a vida animal não estão dissociadas, pois uma equivalência entre a vida de uma
galinha e a de uma mulher.
No quarto livro destinado ao público infantil, o póstomo Quase de verdade, o
motivador da história foi o fiel companheiro de Clarice, o cão Ulisses. Olga Borelli comenta
sobre esse encontro:
Ulisses foi a outra companhia fiel de Clarice. Comprou-o numa casa de animais. Eu
lhe mostrava um belíssimo filhote de raça, quando a vi com um cãozinho
timidamente aconchegado nas mãos. Era uma mistura de bassê, de pelo curto,
marrom-claro com manchas mais escuras, e vira-lata. Ela o acariciava, já chamando-
o de Ulisses.
59
Gotlib traduz a amizade de Clarice com Ulisses da seguinte maneira:
56
NOLASCO. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura, p. 89 - 90.
57
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 73.
58
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
59
BORELLI. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato, p. 95.
38
Embora esse cão de estimação agrida sua dona por duas vezes, numa delas
mordendo-lhe o lábio superior, ela (Clarice) constata, entre os dois, um
entendimento mútuo, mágico, ―incompreensível pela minha consciência e pela
consciência dele: há um entendimento que é nosso, mas que nos ultrapassa e que não
captamos. Mas existe‖.
60
Em Quase de verdade, o pretexto para a história são as aventuras de Ulisses, o
cachorro de Clarice, que desde o início assume a posição de narrador. No entanto, o estilo
―era uma vez‖ é quebrado pelo próprio narrador, pois ao se apresentar como o cachorro de
Clarice desnuda o autor do texto, Clarice Lispector - ―guardiã das metamorfoses‖, e, portanto,
a única conhecedora da linguagem dos animais por isso escolhida como a tradutora da
história latida de Ulisses para seus leitores.
Era uma vez... Era uma vez: eu! Mas aposto que você não sabe quem eu sou.
Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha. Sabe quem eu sou? Sou um
cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice. Eu fico latindo para Clarice e ela
- que entende o significado de meus latidos escreve o que eu lhe conto.
61
A personagem é Ulisses, o cachorro de dona Clarice. O nome Ulisses nos remete à
personagem central de A Odisséia e A Ilíada, epopéias clássicas de Homero. É também o
nome do professor apaixonado por Lóri, em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres,
outra obra de Clarice Lispector. Sobressai, contudo, a aproximação de caráter biográfico, uma
vez que a escritora teve em sua vida real um cão chamado Ulisses e, como se não bastasse, o
cachorro Ulisses da fábula tem uma dona chamada Clarice.
Não se trata simplesmente de coincidências. É importante lembrar que o projeto
literário clariciano está atravessado pelo fator biográfico. Ou seja, os fatos reais ajudam a
compor a obra de Clarice Lispector, pois esta é uma junção de real e ficcional e por esse
motivo ambos devem ser tomados na mesma proporção para uma melhor compreensão de sua
obra.
A edição do livro utilizado em nossa análise traz, na capa, a ilustração de uma mulher
com uma máquina de escrever sobre o colo e um cachorro aos seus pés. Tal figura nos remete
60
GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 445 - 446.
61
LISPECTOR. Quase de verdade, s.n.p.
39
às imagens que temos ao lermos biografias de Clarice Lispector, sobretudo a de Nádia Batella
Gotlib. Num primeiro momento, quando os filhos eram crianças, a mãe com uma máquina de
escrever e eles a sua volta brincando; e, num segundo momento, Clarice mais velha com a
mesma máquina de escrever no colo, já sozinha com Ulisses.
Clarice Lispector e seu cachorro Ulisses
As narrativas de Clarice Lispector abordam temas importantes e delicados para seus
destinatários, tais como: a liberdade, em O mistério do coelho pensante; a morte, em A
mulher que matou os peixes; o papel da mulher, em A vida íntima de Laura, e, diferentemente
dos anteriores, Quase de verdade privilegia o enfoque social. Talvez, por esse motivo como
assinala Ribeiro ―tenha sido o livro menos apreciado pelas crianças‖.
62
Vale ressaltar que a
questão social se impôs em toda a produção dessa época da autora.
62
RIBEIRO. A literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector, p. 110.
40
Quase de verdade é uma obra externa que foge do mundo intimista e discute questões
relacionadas ao mundo exterior. Nas palavras de Francisco Aurélio Ribeiro, ―Clarice ousa,
mais claramente, sair do ‗eu‘, do sufocante mundo interior e percorrer outros ‗quintais‘‖.
63
Diferentemente das fábulas apresentadas, Clarice publicou em 1977, patrocinado
pela fábrica de brinquedos Estrela, o livro Como nasceram as estrelas. Trata-se de um
calendário que narra doze lendas brasileiras, uma para cada mês do ano. Oriundas do folclore
aborígene e africano, ou da tradição peninsular, e com traços da literatura de Monteiro
Lobato.
As lendas reúnem animais da fauna brasileira; entre eles estão o sapo, a onça, o jabuti,
o macaco, o jacaré, o quati, a anta; em situações que exigem alguma habilidade: a esperteza, a
ferocidade, o poder. também a presença de mitos folclóricos brasileiros, como o Saci-
Pererê, o Curupira, a sereia Iara, o Negrinho do Pastoreio, que vivem nas florestas em contato
com os curumins que se tornam estrelas.
Como nasceram as estrelas (1977) foi escrito em uma fase na qual Clarice Lispector
encontrava-se com dificuldades financeiras; a separação e seu regresso ao Brasil fizeram com
que a escritora começasse a escrever com fins lucrativos, talvez por esse motivo Nádia Gotlib
aponte que esse livro:
não apresenta grande valor estético comum às suas obras, embora haja um bom
repertório de personagens e situações. A surpresa final, comum a quase todas as
histórias, não chega a ter função importante, de modo a causar o espanto típico das
boas histórias contadas por Clarice. Nem a moral final, quando há, causa impacto
digno de admiração. Apenas uma frase ou outra traz marcas da grande escritora.
64
Nesse sentido, a crítica Vilma Arêas comenta que isso ocorreu em decorrência do fato
de a obra ter sido encomendada, o que contradizia visceralmente o processo criativo da
escritora‖.
65
Como é sabido, Clarice Lispector não se considerava uma profissional, na
crônica ―As três experiências‖, afirma que ―apesar de escrever ser uma coisa extremamente
63
RIBEIRO. A literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector, p. 80.
64
GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 445.
65
ARÊAS. Bichos e flores da adversidade, p. 225.
41
forte, pode traí-la e abandoná-la a qualquer momento‖
66
; no entanto, a escritora não abandona
a literatura; ao contrário, escreve incansavelmente até o fim de sua vida. Entendendo essa
compulsão por escrever livremente, é possível compreender porque o livro encomendado,
Como nasceram as estrelas, apresenta certa desvalorização estética.
Um fato relevante apresentado nas pequenas histórias do livro Como nasceram as
estrelas é que a fábula ocupa um espaço muito importante, posto que a escritora recupera os
moldes da fábula clássica na construção dos enredos, tais como: a personificação, a moral da
história ainda que esta não tenha função educativa, o diálogo direto entre os animais. Clarice
vale-se também do bestiário, e assim como Monteiro Lobato recria as histórias dentro da
fauna, da flora e do folclore brasileiro.
66
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 136.
42
1.3 Entre fábulas e bestiários
Gosto muito de escrever histórias para crianças e gente
grande. Fico muito contente quando os grandes e os
pequenos gostam do que escrevi.
Clarice Lispector. A mulher que matou os peixes,s.n.p.
Após apresentarmos as obras infantis de Clarice Lispector, bem como aquelas que
dialogam com a tradição fabular e ainda as principais definições e características dos gêneros
Fábula e Bestiário, indagamos: Como poderiam ser consideradas as obras infantis da escritora
Clarice Lispector? São fábulas ou bestiários, ou a junção dos dois gêneros, que apesar de
distanciados temporalmente se aproximam no que diz respeito à forma de expressão literária?
Tratando-se de uma escritora que declarou fugir dos gêneros, a tarefa de enquadrá-la
em uma forma literária torna-se impossível. Contudo, como visto anteriormente, Clarice
dialoga com a tradição fabular, assim como se vale dos bestiários para compor sua obra. Ela
constroi, sem dúvida, uma obra que mistura os dois gêneros.
Cabe aqui um segundo questionamento: Poderia considerar-se fábula uma narrativa
que não tem como prioridade ditar lições moralizantes? Como sabemos o caráter pedagógico
das fábulas, podendo ser também definida como o discurso da sabedoria, tem a presença da
―moral da história‖ que, aliás, causa muita polêmica e controvérsia em razão dos perigos que
ela impõe sobre as crianças.
Nas fábulas dirigidas ao público infantil clariciano é possível notar que quando o
caráter moralizador a escritora o faz de maneira sutil; na verdade, ela apenas sugere, não
impondo qualquer tipo de verdade à criança. A esse respeito, Rosa Maria Riche observa:
[...] reflexiva, introspectiva, lúcida, lidando com as artimanhas do Ser na literatura
adulta, soube despojar-se do tom sério e introspectivo para assumir a voz da velha
contadeira de histórias e como uma mãe preta, falar às crianças, fazendo-as pensar,
analisar, refletir, sem pretensão alguma de ensinar o que quer que seja.
67
67
RICHE. Mme. de Ségur e Clarice Lispector o olhar da e para a criança: um contraponto, p. 72.
43
Clarice Lispector utiliza uma linguagem simples; no entanto, seduz a criança para a
leitura de seu relato, ou seja, a escritora fala aos pequenos sobre questões importantes, mas o
faz por meio da fantasia, e assim envolve o narratário em seu universo fabular.
Nesse sentido, Nilson Dinis atesta que
a literatura infantil de Clarice Lispector não quer dar lições de moral ou mesmo
socializar a criança, ela parece querer propor-lhe uma aventura: a experimentação de
um novo mundo que pode ser constantemente recriado pela imaginação.
68
E tal experimentação é concedida por meio dos sentimentos e comportamentos de
Joãozinho, Laura, Zeferina, Ulisses, Lisete, Max, Dilermano, dentre outros animais presentes
nas narrativas claricianas.
A fortuna crítica que envolve as obras infantis de Clarice Lispector volta-se para o
lugar que essa literatura ocupa dentro do gênero ―Literatura Infantil‖. Estudiosos como
Francisco Aurélio Ribeiro, Nilson Dinis, Rosalia de Angelo Scorci, entre outros, dedicaram-
se a comprovar o valor literário que obra clariciana escrita para crianças possui.
Francisco Aurélio Ribeiro, no livro A literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector,
destaca que Clarice seria uma das primeiras escritoras brasileiras a trabalhar em forma de
paródia seus textos para crianças; criando, assim, uma nova linguagem, o que a torna uma voz
inovadora no gênero a partir do final da década de sessenta.
Entendemos que a inovação de Clarice Lispector encontra-se precisamente no trabalho
com a linguagem, no jogo entre fantasia e verdade, na forma de apresentar a realidade à
criança, e, especialmente, no diálogo entre seus textos e sua vida, pois
[...] os recursos estilísticos apresentados pela autora nos textos [adultos e infantis]
não os tornam diferentes ou menores em relação à qualidade estético-literária. Pelo
contrário, eles os enriquecem, possibilitando sua leitura a um número maior de
pessoas, inclusive as crianças. Com isso, a autora nos revela ser a artífice da palavra
que é capaz de falar a diferentes públicos, adultos ou crianças, das verdades
universais.
69
68
DINIS. Perto do coração criança: imagens da infância em Clarice Lispector, p. 156.
69
RIBEIRO. A literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector, p. 98.
44
Ainda sobre a inovação clariciana na literatura voltada ao público infantil Lia
Vasconcelos de Carvalho considera que
os textos de Clarice Lispector direcionados ao público infantil possuem uma
natureza intuitiva, relacional, que possibilita à criança atuar como interprete de seu
mundo e ao mesmo tempo alargar estratégias de leitura a serem utilizados quando
adulto. Lispector escreve de maneira a instigar o leitor, pois ela própria instiga a si
mesma, por intermédio de questionamentos nos mais diversos aspectos que
compõem a natureza do homem e de tudo que o cerca.
70
Nesse sentido, é possível considerar que Clarice Lispector torna-se inovadora por
incorporar mesmo na literatura infantil os dilemas do narrador, bem como por criar uma nova
conduta de leitura, que suas obras para crianças são permeadas de metalinguagens, cortes
discursivos, psicologismos entre outras características tão exploradas na literatura adulta.
Assim, constatamos que desde O mistério do coelho pensante e estendendo aos outros
livros, Clarice adverte que suas histórias foram feitas para serem contadas e as entrelinhas
deverão ser preenchidas por quem as conta, já que a parte oral é a melhor da história.
Vale ainda ressaltarmos que tal inovação também se deve ao fato de Clarice Lispector
escrever fábulas biográficas, nas quais o cotidiano com seus filhos serve como pano de fundo
para as histórias infantis. Esse cotidiano é recuperado pela escritora por meio das memórias.
Na esteira de Eneida Maria de Souza (2004),
o narrador tem o cuidado de sempre refletir sobre o trabalho da escrita da memória,
através de associações que remetem a um processo de metalinguagem e à teorização
contínua do método do trabalho. Escrita frankenstein, elaborada à maneira de um
puzzle, de um caleidoscópio, de um texto-palimpsesto e de uma bricolagem, em que
são colados os fragmentos e restos de textos, lembranças e objetos guardados no baú
de memórias.
71
É exatamente na elaboração desse vasto material biográfico armazenado na memória,
que Clarice constroi suas fábulas. Utiliza os fatos biográficos que ocorreram na infância dos
filhos, ou ainda os reinventa, demonstrando seu processo criativo. Veremos como esse
processo ocorre no próximo capítulo deste trabalho.
CARVALHO. O enredamento narrativo de Clarice Lispector: a construção do referente de um novo
maravilhoso nos contos para criança, p. 82.
71
SOUZA. Pedro Nava, o risco da memória, p. 20 - 21.
45
CAPÍTULO II
AS FÁBULAS BIOGRÁFICAS DE CLARICE LISPECTOR
As coisas acontecem porque devem acontecer. Nunca
pensei escrever livros para crianças. O primeiro surgiu
de um pedido de meu filho ―Pauluca‖ muitos anos, e
o outro, de uma sensação de culpa da qual queria me
redimir.
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se
conta, p. 383.
46
Não vou ser autobiográfica. Quero ser Bio.
Clarice Lispector. Água viva, p. 40.
Clarice Lispector queria ser vida e assim o foi, pois é precisamente o traço biográfico
que marcará a construção literária dessa escritora. A personalidade nada comum e, ao mesmo
tempo, o discurso simplificador acerca de si mesma tendem à hipótese da presença biográfica
em sua obra.
Apesar de não pretendermos realizar uma biografia de Clarice Lispector,
apresentaremos algumas considerações teóricas acerca da biografia e crítica biográfica, para
num segundo momento, verificarmos como esses gêneros se apresentam na produção infantil
da escritora brasileira.
O processo de mudança pelo qual a sociedade passou e ainda passa colabora para que
o indivíduo, antes imerso numa rede de solidariedades coletivas, agora se prenda aos
processos de individualização. Os fatores importantes para tal fenômeno foram o
desenvolvimento da alfabetização e a difusão da leitura, que permitiram uma reflexão
solitária. Um exemplo dessa mudança foi o surgimento de novos gêneros literários, como a
literatura autógrafa nas mais variadas expressões: diários, cartas, confissões e memórias.
As biografias seriam uma dessas formas de individualização, pois tratam da escrita de
si. Diana Klinger (2007), apoiada em Foucault, observa que ―na Antiguidade greco-romana o
‗eu‘ não é apenas um assunto sobre o qual escrever pelo contrário, a escrita de si contribui
especificamente para a formação de si”.
72
Na escrita de si, há um desejo de falar de si, mas também há a impossibilidade de falar
a verdade. Especialmente porque a ficção está mais próxima da verdade do que as biografias e
autobiografias. Nesse sentido, Barthes reflete que ―não é que a verdade sobre si mesmo
pode ser dita na ficção, mas quando se diz uma verdade sobre si mesmo deve ser considerada
72
KLINGER. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica, p. 27.
47
ficção‖.
73
Ou seja, a partir do momento que colocamos no papel nossas memórias, a escrita
de si passa a ser considerada ficção.
De acordo com Klinger (2007), ―a escrita de si, termo elaborado por Foucault, não é
apenas um registro do eu, mas constitui o próprio sujeito, performa a noção de indivíduo‖.
74
Contudo, o caminho para esse autoconhecimento não é o da história, pois como afirma
Michael Foucault, ―a história nos cerca e delimita; não diz o que somos, mas aquilo de que
estamos em vias de diferir; não estabelece nossa identidade, mas a dissipa em proveito do
outro que somos‖.
75
Vale também atentar para o fato de que toda contemplação da vida está ligada a uma
rede de relações sociais, por essa razão a escrita de si passa, necessariamente, pela escrita do
outro. Devemos entender, portanto, que apesar de um relato expressar uma época e uma
sociedade, ele não é capaz de compor uma identidade; por outro lado, não é possível se pensar
um eu solitário, fora de sua rede de comunicação.
Nesse sentido, a biografia deve ser entendida como um permanente envolvimento do ser
humano não somente com o outro, mas também consigo mesmo. Pois, ao acompanhar a
trajetória do outro, o biógrafo acaba refletindo sobre si próprio, sobre sua própria trajetória de
vida.
A propósito, no artigo ―Biografia: método de reescrita da vida‖, Miguel Chaia comenta
que ―a expressão artística, na qual o sujeito tenciona ao máximo a individualidade para
compreender a realidade, a si mesmo e ao outro, configura-se como a mais contundente
possibilidade biográfica‖.
76
Portanto, a realização de biografias, do ponto de vista cultural,
pressupõe uma rede de relações sociais.
73
BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 29.
74
KLINGER. Escritas de si, escritas do outro, p. 26
75
DELEUZE. Conversações, p. 119.
76
CHAIA. Biografia: método de reescrita da vida, p. 80.
48
Além da rede de relações sociais, as biografias também apresentam o trabalho
intelectual do biógrafo - leituras, seleção e recortes - que ajudam na recomposição do escritor
escolhido para ser biografado. Ou seja, a biografia revela ou propõe revelar a vida do outro,
vivificando-o por meio da linguagem e tornando-se não mais simplesmente uma homenagem
a uma pessoa morta.
Pois, como nos fala Dante Moreira Leite:
Toda biografia é trabalho de interpretação e, portanto, de imaginação criadora. Por
isso, nenhuma biografia é definitiva, e sempre será possível refazê-la, a partir de
dados basicamente iguais, pois todo biógrafo faz viver o biografado, mais ou menos
como o ficcionista faz viver as personagens de sua imaginação.
77
É exatamente nesse trabalho delicado de se estabelecer a relação entre obra e autor, e
também como resposta aos ―procedimentos analíticos anteriormente pautados pela
objetividade e pelo distanciamento excessivo do sujeito da enunciação‖
78
que surge a crítica
biográfica. E é nessa relação que se inscreve o ―bio‖ que, por sua vez, pode desencadear
outras formas possíveis de serem estabelecidas, mesmo que metaforicamente, aumentando as
possibilidades de compreensão do texto literário como texto da cultura.
Eneida Maria de Souza, no artigo intitulado ―Notas sobre a crítica biográfica‖ (2002),
tece algumas considerações a respeito dessa área ―complexa‖ da literatura:
a crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação complexa
entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites
intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e
a ficção.
79
Ou seja, a crítica biográfica procura apontar detalhes biográficos até então vistos como
insignificantes, com o objetivo de aproximar e depois remodelar o perfil do escritor escolhido
como objeto de análise. Assim, quando optamos por considerar tanto a produção ficcional
quanto a documental ou pessoal de um autor, que inclui - correspondências, experiências
pessoais, amizades ou ainda utilizando o termo de Roland Barthes, biografemas, ―a crítica
77
LEITE, apud NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 78.
78
Cf. SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 117.
79
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 111.
49
biográfica desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande os limites
das relações culturais‖.
80
Isso quer dizer que é possível com as ferramentas oferecidas pela crítica biográfica
ampliar a compreensão sobre um autor, no caso Clarice Lispector, além das fronteiras pré-
estabelecidas pela teoria literária. Portanto, a relação entre vida e obra de um escritor pode
possibilitar, ao crítico biográfico, outras formas de compreender um texto literário.
Nesse sentido, é possível estabelecer outras relações, dentre as quais destacamos: vida
e ficção, ficção e documento, amizades literárias, entre outros. Ainda no campo das relações
biográficas, podemos considerar a ―influência metafórica‖, ou seja, relações imaginadas entre
autores e obras, possibilitadas por meio de um círculo imaginário de amigos com interesses
literários comuns.
Nossa leitura caminha nessa direção: aproximar metaforicamente vida e obra, pois,
como veremos no decorrer deste trabalho, a literatura infantil de Clarice Lispector é repleta de
alusões biográficas. Contudo, devemos considerar que o processo criativo vivenciado pela
escritora não é o único caminho para desvendar o mistério de sua escrita, uma vez que as
afirmações autorais nem sempre são verdadeiras. Trata-se, dessa forma, de um confronto
delicado entre o escrito e o vivido.
De acordo com Souza, ―a dificuldade se impõe em virtude da instabilidade entre as
margens do texto e da experiência autoral, dos modos de inscrição através dos quais o sujeito
se inscreve na obra‖.
81
Embora saibamos que quando vida e obra de um determinado autor parecem se
implicar intimamente, e este é o caso de Clarice Lispector, tornam-se um campo minado para
o leitor; no entanto, separá-las nos parece uma mutilação ainda maior. Desde seu livro de
estreia Perto do coração selvagem (1944), passando pela literatura voltada ao público infantil,
80
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 111.
81
SOUZA. Pedro Nava, o risco da memória, p. 97.
50
até o póstumo Um sopro de vida (1978) vemos configurada a inscrição do biográfico e como
este se torna o traço caracterizador de seu processo de criação.
Se em um primeiro momento, Clarice tenta esconder o traço biográfico, e isso ocorre
em Perto do coração selvagem, ao longo de sua obra acontece o oposto, ―agora é o ficcional
que vai ficar colado ao vivido‖, até mesmo confundindo-se com ele. Edgar Nolasco é
esclarecedor:
A autora não fez de sua vida matéria para a ficção, como tornou-se, de forma
singularíssima, seu próprio tema ficcional. Muitos de seus textos, por exemplo, vão
ter como pano a memória da infância vivida, e de suas reminiscências para a
construção de sua ficção. Nessa visita ao passado, tentativa de reconstituir fatos
que ficaram perdidos na sua história pessoal, ficcionaliza extrapolando, em muito, os
limites do acontecido.
82
É exatamente nesse sentido que a escrita de Clarice Lispector é biográfica, porque
mesmo quando a autora/narradora não dialoga com o fato vivido está atravessada pelo desejo
de um ―poderia ter acontecido‖. Isso quer dizer que viver e escrever possui para Clarice uma
capacidade de renovação, de um encontro consigo mesma.
No entanto, a obra clariciana não deve ser vista apenas como um traçado
autobiográfico‖
83
, pois não um desejo explícito da escritora em contar sua vida, esta é
contada à sua revelia. É importante salientar que a escritora apresenta em sua obra muitas
máscaras, e em meio a tantos ―restos‖ de textos e não-textos, que se desfazem e se
completam, mostra-se a imagem de um mundo simulado e repleto de representações de
Clarice Lispector, ou seja, a persona se insinua a todo tempo em seus textos.
Abrimos um parêntese para expor as ideias de Luiz da Costa Lima sobre a persona,
que embasado em Foucault e Derrida, afirma que ao contrário do animal ―o homem é
biologicamente imaturo; necessita por isso compensar sua deficiência com armas de que não
veio geneticamente provido‖.
84
Para tanto, o homem protege-se criando a persona, que ―não
82
NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 78 - 79.
83
NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 71.
84
LIMA. Pensando nos trópicos, p. 43.
51
nasce do útero senão que da sociedade‖. É importante destacar que a persona se concretiza
na atuação de papéis.
Nesse sentido, Francisco Ortega, no livro Para uma política da amizade (2000),
comenta que
a ação e discurso são as únicas formas de que os homens dispõem para ―mostrar
quem são‖, para ―revelar ativamente suas identidades pessoais e singulares‖, para
revelar o ―quem‖, em contraposição ao ―o que‖ alguém é [...] Indica uma identidade
que se constitui publicamente como aparência, máscara, um papel a ser
representado.
85
Logo, podemos observar que os instrumentos utilizados pelo escritor reunião de
fragmentos pessoais, reminiscências, referências às obras, aos amigos eleitos e também aos
denegados - acabam também por revelar a pessoa, ou melhor, a persona, que se inscreve pela
soma de pedaços de uma identidade multifacetada, incorporada e alterada pelo caminho da
vida, traços estes que constituem o ―bio‖, ―tudo formando uma ficção que se chama o eu‖.
86
Clarice Lispector, apesar de negar a presença autoral, deixa escapar ao longo de sua
obra algumas marcas em que é possível notar um ―eu‖ prisioneiro, ―um sujeito totalmente
descentrado, multifacetado; e, se por um lado, ela nos conta sua vida em sua ficção; por outro,
ela mesma se encarrega de desfazer tal imagem‖.
87
Diante disso, indagamos: ocorreria em Clarice Lispector uma preocupação em
―desprender-se de si‖? Ou seja, ―uma elaboração de si através de si, uma apaixonada
transformação, uma modificação lenta e difícil mediante o cuidado contínuo da verdade?‖
88
.
As últimas lições de Michael Foucault no Collège de France constituem tentativas de
respostas às perguntas como: Por que dizer a verdade? Por que dizer a verdade especialmente
sobre si?
89
85
ORTEGA. Para uma política da amizade, p. 26.
86
SOUZA. Tempo de pós-crítica, p. 34.
87
NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 71.
88
ORTEGA. Amizade e estética da existência em Foucault, p. 59.
89
ORTEGA. Amizade e estética da existência em Foucault, p. 59.
52
Essa questão levantada por Francisco Ortega faz refletirmos sobre a obra de Clarice
Lispector, sobretudo quando tentamos retratar uma imagem da escritora, que nunca se mostra
por inteiro, ao contrário, se mostra aos poucos, sempre fragmentada. Por outro lado,
entendemos que apesar de Clarice estabelecer esse jogo de mostrar-se e esconder-se, sem
dúvida em sua obra uma busca incessante pela ―descoberta de si‖.
Talvez o caminho, no qual encontraremos respostas mais frutíferas para tal descoberta,
seja aquele em que as relações de amizade são imprescindíveis para nossa constituição como
sujeitos, pois por meio do amigo há um fortalecimento de nossa identidade. Todavia, a
amizade significa mais que fortalecer a identidade; antes, ela constitui a possibilidade de
transformação.
As relações de amizade em Clarice Lispector colaboram, sobremaneira, para articular
e colocar em movimento a vida e a obra da escritora, pois como atesta Ortega (2002), ―a
amizade é, no fundo, uma ascese, isto é, uma atividade de autotransformação e
aperfeiçoamento‖.
90
Clarice Lispector, na maioria das vezes, confessa suas relações de amizade de forma
pública, por meio de cartas, cartões postais, crônicas, bilhetes. Mas, em muitos outros casos,
essa amizade se apresenta por meio da ficção. É válido ressaltar ainda que, durante sua
trajetória, ela também faz questão de negar, ou melhor, apagar suas amizades ―influências‖
literárias, como Katherine Mansfield, Virgínia Woolf, James Joyce, entre tantos outros que
vão surgindo em sua obra e acabam revelando a leitora Clarice Lispector.
Ricardo Iannace, no livro A leitora Clarice Lispector (2001), apresenta algumas
leituras realizadas por Clarice, que provavelmente influenciaram a escritora na composição de
sua obra. Mesmo sabendo que a escritora se considerava ―má leitora‖ e que ―não lera as obras
importantes da humanidade‖, evidencia-se que ela apresenta em sua obra fragmentos de textos
90
ORTEGA. Para uma política da amizade, p. 80 - 81.
53
importantes da literatura universal e nacional, tais como: Dostoiévski, Herman Hesse, Eça de
Queirós, Monteiro Lobato, entre outros, que vão compondo essas relações de amizades
literárias que se unem pela fórmula consagrada de Jorge Luis Borges: ―recriação de
genealogias familiares‖.
91
Ou seja, os retratos esgarçados dos amigos que povoam a ficção da escritora acabam
esboçando seu perfil, especialmente porque ela não cita, não dialoga com quem não admira
literariamente. Daí podermos dizer que a presença dos amigos não deixa de ser também marca
de sua presença autoral, apesar de Clarice trabalhar contra a presença dos amigos em sua
ficção.
A propósito, a amizade é campo de estudos de vários escritores desde a Antiguidade
até a Modernidade, e é unânime que diz respeito a uma relação afetiva e voluntária que
envolve práticas de sociabilidade. Entretanto, em alguns momentos da história a amizade
sofreu mudanças e deslocamentos, sobretudo no Cristianismo, em que esta foi substituída pelo
amor, tornando a amizade fraternal demais.
Nessa perspectiva, Francisco Ortega demonstra que uma necessidade de se criar
uma forma de arte na amizade que ofereça alternativas para as fórmulas tão desgastadas de
relacionamento:
A amizade foi sempre vista com receio em nossa cultura ocidental. Dois
testemunhos históricos dão prova disto: de um lado a ―desafetivação‖ da amizade no
cristianismo, no qual a substituição da philia pelo ágape supõe a supressão do
vínculo afetivo e intersubjetivo representado pela amizade na Antiguidade greco-
latina; de outro a noção de amizade como ampliação da família na literatura
filosófico-moral do começo do século, em que os sentimentos de simpatia são
normalizados e civilizados mediante o emprego das relações familiares como
modelo da emocionalidade e interação íntima.
92
Ou seja, a sociedade contemporânea não pode apoiar-se somente na família; ao
contrário, necessita de outras relações de sociabilidade. Por esse motivo, a amizade passa a ter
91
SOUZA. O século de Borges, p. 86.
92
ORTEGA. Amizade e estética da existência em Foucault, p. 27 - 28.
54
a função de exprimir a humanidade, de ―re-traçar e re-inventar o político‖
93
, assumindo dessa
forma um significado de pluralidade, experimentação, liberdade, enfim. Para alcançar essa
liberdade, deve-se cultivar o ethos
94
da distância, o que não significa renunciar à
sociabilidade, mas compreender o outro como responsável por um processo de transformação
e invenção de nós mesmos.
Os estudos sobre a amizade têm sido de grande interesse à filosofia, especialmente
para a francesa. Dentre os pensadores, destacamos Michel Foucault, Jacques Derrida e a
filósofa alemã Hanna Arendt, que colocaram a amizade no centro do pensamento filosófico e
a deslocaram da esfera privada para a pública, o que provoca novas possibilidades de
sociabilidade. É exatamente nessa direção que se dirige toda a crítica biográfico-cultural na
virada desse século.
Na esteira de Ortega, a amizade é um fenômeno público, que precisa do mundo e da
visibilidade dos assuntos humanos para florescer‖.
95
Isto é, na busca exagerada pela
interioridade, necessariamente um distanciamento da amizade, uma vez que o habitat
ocupado pela amizade é o espaço entre os indivíduos no mundo compartilhado. Portanto,
somente quando houver novamente a inversão da amizade do espaço privado, ideologia
familialista, para o espaço público, a amizade ganhará outra vez o status de experimento
social e cultural.
Na literatura, as relações de amizade muitas vezes ultrapassam os limites do factual
porque os amigos, em sua maioria, são vínculos imaginários que se aproximam por interesses
comuns, ou seja, ―são parceiros que se unem pela produção de um vínculo nascido na região
93
ORTEGA. Para uma política da amizade, p. 13.
94
A palavra ethos é definida por alguns dicionários como: a. ―característica comum de um grupo de indivíduos
pertencentes a uma mesma sociedade‖ (Koogan/Houaiss, 1998); b. características de espírito, moral, valores,
idéias, crenças e cultura de um grupo ou de uma comunidade. Ethos revolucionário; o livro captura exatamente o
ethos inglês elizabetano‖. (Oxford Advanced Learner´s Dictionary, 1989)
95
ORTEGA. Genealogias da amizade, p. 161.
55
fantasmática da literatura‖
96
Assim, mesmo que distanciados pelo tempo e que nunca tenham
se visto de fato, as relações de amizade estão amarradas pelo feixe que une vidas e obras
semelhantes.
Em Clarice Lispector, o silêncio e a distância foram estratégias utilizadas para cultivar
a amizade. Valemos-nos das palavras de Ortega para compreendermos a importância dessa
política da amizade adotada por Clarice, ou seja, pautada pelo silêncio. ―O silêncio faz parte
de uma nova política da amizade, silêncio do talvez de uma amizade que não precisa dizer
nada, pois às vezes a palavra corrompe a amizade, e o silêncio a preserva‖.
97
(Grifo do autor)
As amizades ajudam a compor a identidade de Clarice Lispector, tanto aquelas às
quais a escritora mostrou indiferença, como no caso de Virgínia Woolf, quanto aquelas em
que ela demonstrou e dedicou amor, como Monteiro Lobato, conforme visto no capítulo
anterior. A esse respeito, Lucilene Arf comenta: ―ela [Clarice] afasta seus pares literários com
quem tem maior afinidade e aproxima-se de Lobato, com quem teria menos
compatibilidade‖.
98
O jogo de esconder-se e mostrar-se se instala novamente: ela denega as amizades e
estabelece uma nova maneira de relacionar-se com a tradição literária, e ao fazer isso Clarice
transforma a escrita do outro em sua própria escrita, fazendo uso da ―lei do usucapião‖.
99
No entanto, embora a escritora não confirmasse suas amizades literárias, estas se
mostraram ao longo de sua obra. Por isso, ler Clarice corresponde a ler outros escritores,
que sua obra apresenta uma série de associações literais e/ou metafóricas, além dos
desdobramentos referentes à formação dessa escritora, obtida por meio de suas preferências
literárias. E é assim, ―escondendo‖ essas relações de amizades, que Clarice dialoga com a
tradição literária.
96
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 118.
97
ORTEGA. Para uma política da amizade, p. 112.
98
ARF. Clarice Lispector e Monteiro Lobato: uma relação clandestina?, p. 29.
99
Cf. SANTIAGO. Ora (direis) puxar conversa!, p. 60.
56
Contudo, não podemos esquecer-nos dos laços de ―afetividade‖ concretos que a
escritora manteve durante toda a vida, a exemplo de: Lúcio Cardoso, Jocob e Andréa Azulay e
Olga Borelli, embora saibamos que existiram outros elos de amizade que de alguma forma
corroboraram a composição da personalidade humana e literária de Clarice Lispector.
Destacamos essas relações por as julgarmos essenciais, uma vez que marcam a trajetória não
só pessoal como também literária da escritora Clarice Lispector.
Lúcio Cardoso é uma figura expressiva e primordial no início da vida literária de
Clarice por colaborar com a amiga, primeiro em Perto do coração selvagem, e depois nas
obras que se seguiram. Andréa Azulay, por sua vez, colabora com a abertura de uma nova
direção na literatura clariciana, pois permite o diálogo com o público infantil; e finalmente
Olga Borelli - apesar de não estar ligada literariamente à vida de Clarice -, é ao lado de quem
a escritora vive os últimos momentos de sua vida; vale lembrar também que foi Borelli quem
incentivou Lispector a estruturar e publicar em forma de romance a obra Água viva.
Passamos, portanto, a analisar essas relações de maneira mais minuciosa.
A amizade de Lúcio Cardoso e Clarice Lispector foi movida pela literatura. Para eles
viver e criar correspondia à mesma coisa. Clarice tinha na figura de Lúcio o mestre, o amigo
conselheiro; afinal foi por meio dele que ela adentrou o universo da literatura. Foi, além disso,
o amigo que sugeriu o título Perto do coração selvagem para o primeiro romance da escritora,
e escreveu boas críticas sobre o trabalho de Clarice. A relação entre os amigos aponta sempre
para os desafios literários em que um pede a participação do outro na elaboração de seus
projetos.
Mesmo após o casamento e saída do país, a escritora manteve contato com o amigo
por correspondências. A amizade entre eles foi estabelecida pelo ethos da distância, em que
alternavam momentos de profunda tristeza, quando ausentes, mas também de muita alegria,
proporcionados pela troca de cartas, em que o conteúdo evoca o aperfeiçoamento da escrita e
57
a ajuda do mestre (Lúcio Cardoso) à sua discípula (Clarice Lispector) em seu trabalho. A
correspondência entre Clarice Lispector e Lúcio Cardoso colabora para delinear o perfil
intelectual da escritora e propõe uma reflexão sobre a relação entre vida e obra. Nessa direção,
Eneida Maria de Souza afirma que:
As cartas representam a imagem das migalhas do eu que se manifesta de forma
esquiva ou confidencial, conforme o grau de receptividade do leitor. Necessidade de
participar com o outro, de atuar no outro e de ter parcela de responsabilidade na
construção do texto alheio. Escrita interminável, cujo ponto final, dado pela morte
do escritor, continua, no entanto, sendo reescrito infinitamente.
100
Ainda sobre as correspondências de Clarice Lispector, foi publicado em 2001 o livro
Cartas perto do coração, que abre a intimidade de Clarice Lispector e Fernando Sabino; o
livro foi considerado por Evandro Nascimento como ―uma oportunidade de percorrer o
universo epistolar de Clarice Lispector‖
101
, uma vez que a escritora apresentou ao longo de
sua obra apenas fragmentos dessas correspondências por meio de crônicas. Nesse sentido, o
artigo intitulado ―Encontros marcados e movimentos simulados nas cartas de Clarice
Lispector‖, de Fátima Cristina Dias Rocha, analisa essa relação entre Clarice Lispector e suas
correspondências:
Nesse veículo primordial de subjetivação que é a carta, Clarice Lispector exercitará
formas de se posicionar em relação a si mesma e de se manifestar em relação aos
outros. Além de proporcionar o contato com a intimidade da missivista __ e com a
sua ―grafia de vida‖ __, o exame das cartas escritas por Clarice Lispector a
companheiros de letras e familiares pode enriquecer, pelo estabelecimento de jogos
intertextuais, a compreensão de sua obra artística, ajudando a melhor decodificar
certos temas que ali estão dramatizados.
102
É escusado dizer que o direito à correspondência é inviolável, posto que, na verdade,
presta-se a resguardar o direito à intimidade; no entanto, como ressalta Silviano Santiago
(2006), as cartas de grandes escritores devem tornar-se públicas, em especial para permitir aos
teóricos literários a desconstrução dos métodos analíticos do século 20. Haja vista que fora
desconsiderado qualquer tipo de informação que não fosse estritamente literária. Assim, os
estudos da nova teoria literária se valem dos paratextos (e incluímos, sobretudo, as
100
SOUZA. A pedra mágica do discurso, p. 197.
101
NASCIMENTO. Encontro marcado nas cartas. Jornal do Brasil, p. 8.
102
ROCHA. Encontros marcados e movimentos simulados nas cartas de Clarice Lispector, p. 56.
58
correspondências) para enriquecer a compreensão de uma obra artística, obtida pelos jogos
intertextuais.
103
Nesse sentido, Eneida Maria de Souza constata que:
Ao se considerar a vida como texto e suas personagens como figurantes deste
cenário de representação, o exercício da crítica biográfica irá certamente responder
pela necessidade de diálogo entre a teoria literária, a crítica cultural e a literatura
comparada, ressaltando o poder ficcional da teoria e a força teórica inserida em toda
ficção.
104
A carta, portanto, seria o próprio escritor inscrevendo-se na folha de papel e dirigindo-
se ao outro, e tal processo é possibilitado pela amizade, pois ao se abrir para o outro o escritor
acaba conhecendo melhor a si próprio. Por isso, a carta parece apresentar duas funções
distintas: primeiro como um diário em que o remetente se abre para o destinatário; a segunda
como uma possível ficção.
Vale ressaltar que, apesar de a carta representar um meio de comunicação entre as
pessoas, ela está relacionada à solidão e à saudade. As correspondências claricianas dão prova
desse sentimento de ―exílio‖, que a escritora viveu fora do país por alguns anos, em razão
da profissão de diplomata de seu marido, e manteve suas relações de amizades por meio de
cartas.
Edgar Nolasco, em artigo recente, observa que a política da amizade em Clarice
Lispector é pautada pela saudade:
Independentemente de onde a escritora Clarice Lispector estivesse, o sentimento da
saudade sempre fora recorrente em sua vida. Quando se encontrava fora do país
(aliás viveu por dezesseis anos fora), sempre que escrevia uma carta, um bilhete que
fosse, ou até mesmo um simples cartão, ambos eram pretextos para externalizar sua
amizade e saudade, quer fosse a amigos, familiares ou ao país.
105
A escritora vale-se desse sentimento, levado com ela por toda a vida, como mais um
instrumento para a construção de sua produção intelectual. Ou seja, assim como as amizades
literárias, as memórias e os textos ficcionais, as cartas também possuem um papel importante
103
Cf. SANTIAGO. Ora (direis) puxar conversa!, p. 62 - 63.
104
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 119 - 120.
105
NOLASCO. Clarice entre dois amores: Machado de Assis e Guimarães Rosa, p. 78.
59
na obra de Clarice Lispector, pois a carta é uma forma desinibida e sublime da escrita de si.
Contudo, as cartas de Clarice para os amigos e familiares são muito mais uma introspecção do
que uma abertura de si para o outro.
Seu encontro com Jacob Azulay, e posteriormente Andrea Azulay, deve-se ao trágico
incêndio ocorrido em 1966 que a deixou com marcas profundas. O psicanalista Jacob Azulay
tratou de Clarice durante um bom período; entretanto, a ansiedade da escritora tornou-se
ilimitada. Mesmo com a insistência de Clarice, o médico chama a atenção para a
impossibilidade de continuar o trabalho; todavia, tornam-se amigos e ele comenta que
Lispector precisava mais de um amigo do que de um psicanalista.
Quando começou a frequentar a casa de Jacob, Clarice conheceu a filha do amigo,
Andréa Azulay, de nove anos, e se encantou pela menina. Elas trocaram cartas e confidências;
Andréa enviava, até mesmo, alguns escritos à Clarice, eram poemas e histórias curtas que
expressavam sentimentos importantes para a escritora, pois nesses escritos eram
desconsideradas as discussões estéticas, discussões estas que Clarice sempre evitou. Em 1975,
Clarice contrata um ilustrador e solicita a fabricação de cinco exemplares artesanais,
intitulados ―Meus primeiros contos‖, cuja autora é Andréa Azulay. A menina, por sua vez,
dedica o livro a seus pais, irmã e à amiga e estimuladora Clarice Lispector.
A amizade com uma criança refletiu-se na literatura clariciana, pois a infância povoou
as produções da escritora nessa fase, e, sem dúvida, Andréa abre para Clarice um novo
contato com o público infantil. Nessa fase, a escritora publica sua terceira fábula infantil, A
vida íntima de Laura, e a dedica à menina. Escreve ainda o último livro dedicado às crianças,
Quase de verdade, publicado postumamente.
Assim, as amizades concretas - Andréa Azulay e incluímos os filhos da escritora - e
também as imaginadas, Monteiro Lobato, são responsáveis por essa fase literária de Clarice
60
Lispector, que seu projeto de vida e intelectual, nos últimos anos, estava ligado às crianças
e animais e não mais aos problemas da vida adulta.
No entanto, a amizade mais singular e próxima de Clarice foi, sem dúvida, Olga
Borelli. Embora esta amizade não esteja diretamente envolvida com a literatura, as duas
amigas criaram formas de relacionamentos voltados ao espaço público social e cultural. Elas
respeitavam suas singularidades e sabiam conviver com as diferenças, aceitando-as como
condição de sociabilidade.
Olga Borelli foi, provavelmente, a melhor amiga de Clarice nos últimos dez anos de
sua vida. Essa amizade foi adquirida em um momento no qual Clarice encontrava-se afastada
do mundo e solitária. Entretanto, com o início dessa relação, Clarice tem a possibilidade de
mais uma vez experimentar a amizade.
Mesmo não havendo nessa amizade o aparente envolvimento com a literatura, ainda
assim Clarice não deixava de pedir opinião de Olga a respeito de sua escrita, como é possível
observar no seguinte trecho: ―Tenho, Olga, que arranjar de escrever. Bem perto da verdade
(qual?), mas não pessoal‖.
106
Essa relação apesar de próxima também é marcada pelo
exercício epistolar, que Clarice solicita a amizade de Olga por meio de uma carta, e pede
ainda que a amiga permaneça ao seu lado até o momento de sua morte.
Olga, datilografo esta carta porque minha letra anda péssima. Eu achei, sim, uma
nova amiga. Mas você sai perdendo. Sou uma pessoa insegura, indecisa, sem rumo
na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer comigo. Sou uma
pessoa muito medrosa. Tenho problemas reais gravíssimos que depois te contarei. E
outros problemas esse de personalidade. Você me quer como amiga mesmo assim?
Se quer, não me diga que não lhe avisei. Não tenho qualidades, tenho
fragilidades. Mas às vezes (não repare na acentuação, quem acentua para mim é
tipógrafo) mas às vezes tenho esperança. A passagem da vida para a morte me
assusta: é igual como passar do ódio que tem um objetivo e é limitado, para o amor
que é ilimitado. Quando eu morrer (modo de dizer) espero que você esteja perto.
Você me parece uma pessoa de enorme sensibilidade, mas forte.
Você foi meu melhor presente de aniversário. Porque no dia10 Quinta-feira era meu
aniversário e ganhei de você o Menino Jesus que parece uma criança brincando no
seu berço tosco. Apesar de, sem saber, ter me dado um presente de aniversário,
continuo achando que meu presente de aniversário foi você mesma aparecer, numa
hora difícil de grande solidão.
106
LISPECTOR, apud MANZO. Era uma vez: eu a não ficção na obra de Clarice Lispector, p. 143.
61
Precisamos conversar. Acontece que nada mais tinha jeito. Então vi um anúncio de
uma água de colônia da Coty, chamada Imprevisto. O perfume é barato. Mas serviu
para me lembrar que o inesperado bom também acontece. E sempre que estou
desanimada, ponho em mim o Imprevisto. Me sorte. Você, por exemplo, não era
prevista. E eu imprevistamente aceitei a tarde de autógrafos.
Sua Clarice.
107
O acaso - uma sessão de autógrafos organizada por Olga na fundação em que
trabalhava como voluntária - proporcionou o encontro entre as duas, e mais uma vez a política
da amizade invade a vida de Clarice Lispector. Na carta reproduzida, Clarice revela a alegria
do encontro, e que esse ―imprevisto‖ concretiza-se em amizade. Ainda que a carta tenha sido
entregue em mãos, age como um instrumento de escuta no encontro com o outro, revelando
mais uma vez que ―a existência clariciana se cumpre na escrita‖.
108
O pedido de Clarice Lispector à amiga Olga Borelli - quando eu morrer (modo de
dizer) espero que você esteja perto - é atendido, pois nos últimos momentos, Olga ficou ao
lado da amiga. Em entrevista concedida à Nadia Gotlib, Olga Borelli comentou que a morte
de Clarice foi tão intensa como toda sua vida e que, como sempre fez, a vida se inscreveu pela
última vez em sua obra, em uma espécie de alucinação misturada com ficção.
Na véspera da morte, Clarice estava no hospital e teve uma hemorragia muito forte.
Ficou muito branca e esvaída de sangue. Desesperada levantou-se da cama e
caminhou em direção à porta, querendo sair do quarto. Nisso a enfermeira impediu
que ela saísse. Clarice olhou com raiva para a enfermeira e, transtornada disse: -
Você matou meu personagem!
109
Em 1981, Olga Borelli escreveu o livro Clarice Lispector: esboço para um possível
retrato, que além de ser uma homenagem da amiga à escritora é fundamental para
compreendermos melhor a literatura de Clarice Lispector. Esse livro apresenta fragmentos
inéditos de Clarice Lispector, atrelados a isso estão alguns impasses vividos pela escritora,
sobretudo aqueles relacionados à escrita, sua relação com a crítica e com os amigos.
Constata-se, portanto, que são muitas as formas de relações de amizade de Clarice
Lispector; que na maioria dos casos, ela se distancia e demonstra certa impessoalidade, mas o
107
LISPECTOR, apud MANZO. Era uma vez: eu a não ficção na obra de Clarice Lispector, p. 118 - 119.
108
ARF. Clarice Lispector e Monteiro Lobato: uma relação clandestina?, p. 66.
109
BORELLI, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 484.
62
faz para manter a socialização, exceto no caso de Olga Borelli. Isso porque Clarice não
utilizava seus amigos para fortalecer sua identidade, ao contrário, concebia a amizade como
um processo no qual os indivíduos envolvidos trabalham na sua transformação. ―Esse cultivo
da distância na amizade levaria a substituir a descoberta de si pela invenção de si, pela criação
de infinitas formas de existência‖.
110
As reminiscências postas no papel em forma de textos ajudam a mais que reconstruir
uma história, ajudam na construção de uma outra história para Clarice e para seus
interlocutores. Enfim, uma história ―verdadeira‖, reinventada, que é possível na relação
com o outro, seja na aproximação ou distanciamento que este outro permite.
Eu antes queria ter sido os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que
eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro
dos outros: e o outro dos outro era eu.
111
O que seria Clarice Lispector então? Uma reunião de personagens como Joana e
Macabéa? Textos, memórias e cartas? Amizades clandestinas, mas também amizades
declaradas? Clarice é na verdade tudo isso, uma conjunção de real e ficcional, em que
histórias imaginadas para sua ficção acabam constituindo o discurso fundador de sua vida
passada. Tal perspectiva justifica o fato de a escritora ter tido tão poucos manuscritos, é como
se todos os restos textuais e pessoais estivessem disseminados dentro de sua produção
ficcional.
Portanto, ler Clarice Lispector não é simplesmente ler sua ficção ou, ao contrário, ficar
preso à sua biografia; é ler as duas concomitantemente, uma vez que separá-las é deixar de
compreender o cerne dessa criação literária. Assim, a biografia literária aplicada em Clarice
Lispector, isto é, ler vida e obra simultaneamente, parece ser o melhor caminho para
compreender a escritora além dos limites da crítica literária. Não é por acaso que Edgar
110
ARF. Clarice Lispector e Monteiro Lobato: uma relação clandestina?, p. 71.
111
LISPECTOR. Para não esquecer, p. 23.
63
Nolasco (2005) afirmava que o último livro publicado em vida, A hora da estrela, é a
biografia ficcional da escritora.
Recorremos a mais uma afirmação de Souza (2007), que aponta uma das possíveis
estratégias que embasam o trabalho efetuado pela crítica biográfica, uma vez que nossa
análise passa pela crítica biográfica e tem como pano de fundo a relação entre vida e obra da
escritora Clarice Lispector: ―penso estar aproximando o texto da literatura de seu autor, a vida
da ficção, a fantasia do real, uma das possíveis estratégias com vistas a tornar a crítica literária
uma prática vinculada à experiência, à medida que a grafia se vê contaminada pela bio‖.
112
O papel da crítica biográfica, portanto, é justamente se apropriar da vida e da ficção de
um escritor, cabendo ao crítico biográfico apresentar-se como um leitor apaixonado pelo
sujeito-escritor e pelo objeto, este último em sua realidade textual, bem como tudo aquilo que
está à sua margem. Isto é, além de desvendar o texto e o autor, o trabalho do crítico biográfico
reside em articular o texto com o paratexto, a ficção com a não-ficção, para, enfim, expandir e
enriquecer nossa leitura.
Assim, como assinalamos anteriormente, as grafias de vida da escritora Clarice
Lispector estão espalhadas por toda sua obra, ―[...] na derrapagem da pena no percurso do
parágrafo ou no descontrole dos dedos no teclado da máquina de escrever‖
113
, evidenciando a
difícil tarefa de ler a vida e a obra da escritora separadamente.
112
SOUZA. Tempo de pós-crítica, p. 129.
113
SANTIAGO. Ora (direis) puxar conversa!, p. 64.
64
2.1 A mãe que escreve para os filhos
Você é o melhor livro que eu jamais escrevi.
Clarice Lispector, Carta ao filho Paulo. Rio de Janeiro,
23/02/1969, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se
conta, p. 385.
Os primeiros livros dedicados ao público infantil de Clarice Lispector, O mistério do
coelho pensante e A mulher que matou os peixes, possuem bases comuns; foram escritos ou
motivados pelos filhos da escritora, Pedro e Paulo, o que demonstra que essas fábulas estão
claramente atravessadas pelo biográfico. Contudo, como dito anteriormente, não pretendemos
realizar uma biografia de Clarice Lispector, mas compreender como o traço biográfico
influenciou as primeiras histórias infantis da escritora. Como afirma Nilson Dinis:
Os textos infantis de Clarice possuem influências biográficas da autora, pois como
mãe de dois filhos, Pedro e Paulo, Clarice Lispector registrou muitos dos diálogos
que teve com eles quando crianças. Alguns destes diálogos foram reproduzidos em
algumas crônicas que escreveu para o Jornal do Brasil, ou na coletânea de
fragmentos intitulada Fundo de Gaveta, também publicada com o nome de Para não
Esquecer.
114
114
DINIS. Perto do coração criança: imagens da infância em Clarice Lispector, p. 154.
65
De acordo com a biógrafa da escritora, Nádia Batella Gotlib, as duas primeiras
fábulas, O mistério do coelho pensante (1967) e A mulher que matou os peixes (1968), teriam
sido motivadas por fatos reais vivenciados pela escritora.
Sobre o primeiro livro, Gotlib diz:
Na história do coelho, um texto inicial, assinado por C.L., reporta à ―história real‖
das circunstâncias em que o livro foi escrito, a pedido, ou melhor, por um pedido-
ordem, dirigido à mãe e escritora Clarice Lispector, que aí se situa como tal,
assinando C.L. De fato, parece que Paulo não pediu, mas insistiu para que a mãe
lhe escrevesse a história.
115
E a respeito do segundo livro, a biógrafa comenta:
Nasceu também de uma história real o segundo livro que escreveu para crianças,
intitulado A mulher que matou os peixes, publicado em 1968. Em ambiente familiar,
cercada pelos filhos, esse livro repete, pois as circunstâncias de criação do primeiro,
O mistério do coelho pensante, publicado em 1967. Agora é Pedro quem motiva a
história.
116
Constata-se dessa maneira que é na posição de mãe, uma vez que os livros foram
motivados pelos filhos, que Clarice torna-se também escritora infantil, revelando que vida e
ficção muitas vezes se confundem. Nas fábulas apresentadas, Clarice vale-se não somente da
ficção, mas toma também o não-ficcional, bem como os acontecimentos pessoais em sua
escrita literária.
O primeiro livro de Clarice Lispector para crianças, intitulado O mistério do coelho
pensante (1967), escrito primeiro em inglês após o filho Paulo pedir à mãe e escritora que
escrevesse uma história - ainda quando moravam nos Estados Unidos -, foi feito, como relata
a própria Clarice no Prefácio do livro, para exclusivo uso doméstico, pois não havia nenhuma
intenção por parte da escritora em publicar a fábula. A história foi inspirada em um fato real,
pois diante da insistência do filho, ela se lembrou de um casal de coelhos que tinha no fundo
de sua casa e que em uma manhã fugiram misteriosamente sem que ninguém soubesse
explicar como tinha acontecido.
115
GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 286.
116
GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 383.
66
Em O mistério do coelho pensante inscreve-se o fator biográfico, desde o prefácio
assinado por C.L, o que nos remete às iniciais do nome da escritora Clarice Lispector. Um
segundo indício de que ―C.L‖ seria Clarice Lispector é a homenagem que faz no mesmo
prefácio aos coelhos dos filhos Pedro e Paulo, os mesmos nomes dos filhos de Clarice.
Esta história serve para crianças que simpatiza com coelho. Foi escrita a pedido-
ordem de Paulo, quando ele era menor e ainda não tinha descoberto simpatias mais
fortes. O mistério do coelho pensante é também minha discreta homenagem a dois
coelhos que pertenceram a Pedro e Paulo, meus filhos. Coelhos aqueles que nos
deram muita dor de cabeça e muita surpresa e encantamento. Como a história foi
escrita para exclusivo uso doméstico, deixei todas as entrelinhas para as explicações
orais. Peço desculpas a pais e mães, tios e tias, e avós pela contribuição forçada que
serão obrigados a dar. Mas pelo menos posso garantir, por experiência própria, que a
parte oral desta história é o melhor dela. Conversar sobre coelho é muito bom. Aliás,
esse ―mistério‖ é mais uma conversa íntima do que uma história. Daí ser muito mais
extensa que o seu aparente número de páginas. Na verdade só acaba quando a
criança descobre outros mistérios.
C.L.
117
As pessoas reais que motivaram a escrita do livro estão presentes na própria história,
ou seja, Paulo é o interlocutor a quem a narradora se dirige, que se presume ser C.L., a mesma
que apareceu no prefácio citado, a mãe de Paulo, Clarice Lispector. Pois olhe, Paulo, você
não pode imaginar o que aconteceu com aquele coelho‖.
118
Como visto no Prefácio, o livro sugere um diálogo em que a presença do outro é
fundamental, uma vez que o interlocutor-personagem, no caso Paulo, ajuda na construção da
narrativa tentando desvendar os mistérios do coelho pensante: ―Você talvez esteja
decepcionado, Paulinho. Você talvez esperasse outro tipo de idéia, você que tem tantas.‖
119
Percebe-se, por meio do diminutivo do nome, que se trata realmente de uma conversa íntima,
maternal, da narradora com o interlocutor Paulo.
A fábula apresenta-se em tom de conversa, predominando portanto a oralidade, como
a escritora nos revela no seguinte trecho: ―Como a história foi feita para exclusivo uso
doméstico, deixei todas as entrelinhas para as explicações orais‖.
120
E tal explicação caberá
117
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
118
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
119
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
120
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
67
aos pais e familiares, o que representa a aproximação do adulto com a criança, e no caso da
escritora com os próprios filhos.
Clarice, ao criar a personagem principal da narrativa, o coelho Joãozinho, mostra a
preocupação em descrever a natureza do ser bicho, isto é, o modo como é feito o coelho.
Se você pensa que ele falava, está enganado. Nunca disse uma só palavra na vida. Se
pensa que era diferente dos outros coelhos, está enganado. Para dizer a verdade, não
passava de um coelho. O ximo que se pode dizer é que se tratava de um coelho
muito branco.
121
Joãozinho, o protagonista da fábula, tinha muitas ideias, ele as cheirava ou farejava e
as percebia mexendo o nariz várias vezes. Quando faltava comida, Joãozinho fugia da
casinhola, o mesmo acontecia quando o coelho queria namorar. Contudo, não se sabe ao certo
como ele fazia isso, o fato é que ele fugia. Fica então o mistério: como o coelho conseguia
fugir? A narradora não consegue resolver, convida então os leitores a tentar desvendar o
mistério. No desfecho da narrativa, a narradora sugere ao interlocutor Paulo: ―Se você quiser
adivinhar o mistério Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se
certo‖.
122
Desta forma, observa-se que foi assim, ―sem querer‖, sob pressão do filho que Clarice
Lispector escreveu a história do coelho pensante. Mais tarde, um editor que estava reeditando
os livros da escritora pediu a ela que escrevesse uma história infantil. Clarice se lembrou da
história do coelho que escrevera ao filho em inglês e que esquecera em uma gaveta, e
traduziu-a para o português. O livro obteve tanto sucesso que, em 1968, O mistério do coelho
pensante recebeu o troféu de melhor livro Infantil de 1967, conferido pela Campanha
Nacional da Criança.
121
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
122
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
68
O segundo livro intitulado A mulher que matou os peixes (1968) também surgiu a
partir de uma história real; no entanto foi Pedro, filho mais velho da escritora, quem motivou
a história. Segundo a biógrafa Nadia Gotlib:
Pedro tinha uns peixinhos vermelhos dos quais gostava muito e ao viajar deixou-os
com Clarice, mas a escritora estava concentrada por demais na história que estava
escrevendo e se esqueceu de alimentá-los, e os peixes acabaram morrendo.
123
Relatada em certo tom confessional e inspirada em um fato real, A mulher que matou
os peixes constroi-se a partir da morte dos dois peixinhos vermelhos que pertenciam ao filho
mais velho de Clarice, e a morte foi consequência do descuido da mãe-escritora. Mesmo o
título estando na pessoa - A mulher que matou os peixes‖ -, o mistério se desfaz logo na
primeira linha: ―Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu‖.
124
Nessa fábula, Clarice é uma narradora-protagonista que narra necessariamente em
pessoa, de um ponto fixo, vinculado à sua própria experiência, e registra seus pensamentos,
sentimentos e percepções, revelando, por fim, seu nome. ―Antes de começar, quero que vocês
saibam que meu nome é Clarice [...] Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança
e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança nem bicho sofrer‖.
125
A narradora-protagonista relata o fato do seu ponto de vista, justificando que gosta de
animais e, portanto, não cometeu o crime propositalmente. Para tanto, antes de confessar o
crime, a narradora descreve o que parece ser o objetivo principal do livro: uma mulher
―quase-bicho‖ narrando sua incursão pelo mundo dos bichos que teve: ―[...] no começo e no
meio vou contar algumas histórias de bichos que tive para vocês verem que eu poderia
ter matado os peixinhos sem querer‖.
126
Passadas as primeiras páginas do livro em que o assunto custa a começar - interrompe-
se, avanços e recuos -, a narrativa ganha velocidade e a narradora salta entre episódios
123
Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 383.
124
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
125
LISPECTOR, A mulher que matou os peixes, s.n.p.
126
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
69
velhos e episódios novos, contando ou recontando algumas histórias publicadas em outros
livros, todas amarradas pelo fio do assassinato dos peixes confiados à escritora, construindo
dessa forma, uma ―colcha de retalhos‖.
Vilma Arêas no artigo intitulado ―Bichos e flores da adversidade‖ afirma que ao
proceder dessa forma Clarice nos oferece a própria gestação da escrita e uma espécie de
arqueologia de temas e personagens, em que entram páginas de extração variada‖.
127
Como apresentado no primeiro capítulo deste trabalho, é possível observar na
literatura infantil, sobretudo em A mulher que matou os peixes, traços nítidos de algumas
histórias que foram contadas na literatura adulta da escritora. Recorremos mais uma vez a
Arêas para entendermos que ―os textos mais significativos de Clarice vieram de lenta gestação
por narrativas variadas e de pesos diferentes através do tempo [...]‖.
128
É escusado lembrar
que apesar das repetições, os textos não se equivalem esteticamente, até mesmo em razão de
os textos destinados ao público adulto serem mais densos.
É importante atentar para o fato de que a repetição do que é da própria escritora, em
alguns casos, está relacionada aos dados biográficos. A fábula em questão apresenta uma
narradora-protagonista que relata um fato ―real‖, a morte dos peixes; no entanto, a narrativa
ganha validade a partir do momento em que o discurso ―não verídico‖ passa a ter status de
veracidade, o que ocorre pela maneira como a narradora mostra o seu contar. Isto quer dizer
que não é propriamente o que a narradora conta, mas como ela conta; a forma como é feito o
enredamento é que possibilita a fusão entre o referente e o imaginário.
Ao final da história, a narradora que é sua advogada de defesa conta como tudo
aconteceu:
Meu filho foi viajar por um mês e mandou-me tomar conta de dois peixinhos
vermelhos dentro do aquário. Mas era tempo demais para deixarem comigo [...]
127
ARÊAS. Bichos e flores da adversidade, p. 231.
128
ARÊAS. Bichos e flores da adversidade, p. 232.
70
esqueci três dias de dar comida aos peixes! [...] e quando fui ver, estavam parados,
magros, vermelhinhos e infelizmente já mortos de fome.
129
Tal explicação se assemelha ao fato real em que a história foi baseada, demonstrando,
dessa forma, que assim como ocorreu no primeiro livro O mistério do coelho pensante, apesar
de não tão evidente, neste segundo livro o traço biográfico ajuda a compor a história infantil
contada por Clarice.
As narrativas claricianas voltadas ao público infantil apresentam uma narradora que se
auto-elege como a autora de tal história. No mistério do coelho pensante temos uma narradora
que assina C.L no Prefácio do livro; e em A mulher que matou os peixes temos uma mulher
que revela seu nome: ―Antes de começar quero que vocês saibam que meu nome é
Clarice‖.
130
Nesse sentido, recorremos a Regina Pontieri: ―O eu narrador está presente e deixa de
lado com freqüência todo álibi e todo intermediário para afirmar na primeira pessoa que ele é
o escritor, o depositário e o artesão de seus relatos‖.
131
Assim, verifica-se que a presença da
subjetividade da enunciação da narradora, de certa maneira, embaralha as fronteiras existentes
entre a ficção e a realidade. Isso ocorre propositalmente, pois como visto anteriormente,
Clarice vale-se não somente dos textos, mas também dos paratextos para compor sua obra, e
isso inclui a própria Clarice Lispector e seus filhos Pedro e Paulo figurando como
personagens dessas narrativas.
Além do ofício de escritora, Clarice também é mãe; por esse motivo, a questão da
maternidade ser uma constante nessas fábulas. Desde o início das narrativas, quando a
narradora identifica-se como mulher e mãe, fica nítido o questionamento, talvez involuntário,
da maternidade. No primeiro, a mãe escreve porque o filho lhe pede, ou melhor, ordena a
criação de uma história. O segundo é um pedido de desculpas pelo esquecimento e
129
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
130
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
131
PONTIERI. Duas histórias à moda de Marcel Aymé e Clarice Lispector, p. 159.
71
consequente morte dos peixes do outro filho, o que demonstra uma ausência constante da mãe
em sua relação com os filhos; Clarice tem consciência de tal falta e por isso escreve as
histórias.
No Caderno de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, Paulo - o filho mais
novo de Clarice Lispector - comenta sobre essa relação (mãe-escritora e filhos) e afirma se
lembrar de que toda manhã ouvia um ruído que vinha sempre do mesmo ponto do
apartamento em que moravam; primeiro no Rio de Janeiro e depois na casa de Washington, e
ainda deitado na cama sabia que lá estava sua mãe trabalhando.
Lembra-se também de um sofá e de uma mesa no canto da sala, local onde a e
trabalhava sempre com a máquina de escrever apoiada ao colo. Entretanto, comenta que
mesmo muito ocupada com seu ofício de escritora e com o movimento da casa, Clarice não se
incomodava com as interrupções feitas pelos filhos. Talvez a escritora não se importasse
mesmo, todavia, a lembrança mais forte que Paulo tem de sua mãe é sempre ligada à de
escritora, ―ao som de uma certa máquina de escrever‖.
132
Essa relação entre literatura e família foi mencionada pela escritora que declarou
preferência pelos laços afetivos: ―a vida é mais importante que a literatura. Meus filhos são
mais importantes que a minha literatura. A vida antes; a literatura, concomitantemente ou
depois‖.
133
Clarice Lispector mostrou-se sempre afetuosa com seus filhos, em suas
correspondências com Paulo assina sempre de forma carinhosa ―mãe‖ ou ainda ―mamãe‖. E
comenta:
Nasci para escrever. [...] Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa
capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de
viver e escrever. [...] Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu
quis ser mãe. [...] Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu
me renovo neles, eu acompanho seus sentimentos e angustias.
134
132
Cf. Cadernos de literatura brasileira, p. 44 - 46.
133
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 387.
134
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 34.
72
Assim, a escritora passa a ser expectadora atenta de seus filhos, Pedro e Paulo. Além
dos livros mencionados, Clarice coleciona, em um caderno intitulado ―Conversas com P.‖,
frases e diálogos inteiros extraídos da relação com os dois. A partir da leitura deste caderno,
cujas anotações estão reunidas no livro Clarice Lispector outros escritos, organizado por
Tereza Monteiro e Lícia Manzo, fica claro o convívio diário com as duas crianças.
Dia 31 setembro 1955 Eu estava lendo alto (mas em tom baixo) uma página
escrita para ‗ouvir‘ os defeitos, Pedro se aproximou, olhou e disse: Você está
lendo alto para ver se faz sentido? Eu, abobalhada: É, exatamente isso. O que
quer dizer ‗fazer sentido?‘ O que é ‗sentido‘?
135
Em muitos outros momentos de sua literatura, Clarice evoca a presença dos filhos. Na
crônica Lição de Filho‖, Clarice revela o quanto aprende com seu próprio filho, então uma
criança. Diante da emoção de ter se surpreendido com uma insuspeitada força de uma pianista
conhecida em apresentação transmitida pela televisão, a escritora decide tomar um calmante e
é advertida pelo pequeno.
Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou
tomar um calmante. E ele: Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo?
você está tendo uma emoção. Entendi, aceitei, e disse-lhe: Não vou tomar
nenhum calmante. E vivi o que era pra ser vivido.
136
E revela em outro conto que está com saudade: ―saudade de meus filhos, sim, carne de
minha carne‖.
137
De saudade em saudade, a escritora volta-se para a amizade familiar,
literalmente carnal, e convoca a presença na ausência dos filhos.
No entanto, a fábula A mulher que matou os peixes apresenta uma mãe que se esquece
de alimentar os peixes do filho. Entendemos que essa narrativa funciona como um pedido de
desculpas ao filho pelo esquecimento não dos peixes, mas, especialmente, pela ―omissão‖
em relação aos próprios filhos, motivada pelo envolvimento com sua tarefa de escritora.
135
MANZO; MONTERO. Clarice Lispector outros escritos, p. 84.
136
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 138.
137
LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 62.
73
Portanto, essas duas fábulas voltadas ao público infantil parecem estar permeadas por
uma espécie de culpa, pois como visto, Clarice sente dificuldades em conciliar as afeições
familiares e a atividade de escritora. Mesmo quando afirma preferência, pelo menos em nível
de qualidade, pelos laços de família, a escritora utiliza a figura metafórica de um livro para
demonstrar seu afeto pelos filhos. Escreveu Clarice para o filho: ―você é o melhor livro que eu
jamais escrevi‖.
138
A questão da maternidade será ainda elaborada em A vida íntima de Laura, terceira
fábula de Clarice Lispector; entretanto, a marca preponderante dessa narrativa é o
questionamento sobre o papel da mulher, do cotidiano feminino, como mãe, esposa e dona de
casa, aliás, esses questionamentos são feitos em outras obras da escritora.
Considerada por Francisco Aurélio Ribeiro a obra mais bem realizada de Clarice
Lispector para o público infanto-juvenil, A vida íntima de Laura narra o cotidiano de Laura,
uma galinha nascida para a maternidade; assim como no conto ―Uma galinha‖, de Laços de
família, a escritora vale-se da figura de uma ave para examinar os conceitos de maternidade.
A história de Laura equivale à história estereotipada do universo feminino:
Laura é burra, mas tem seus pensamentos e sentimentos. [...] É útil porque bota
muitos ovos. [...] Ser mãe é sua grande atividade e prazer: preparar-se
cuidadosamente para a maternidade, aguardar a chegada do filho, receber a visita
das amigas e a dieta especial ―pós-parto‖, vinda de sua dona, cuidar do filho recém-
nascido, alimentando-o, sentir-se uma rainha, por ser mãe, é o universo feminino de
Laura destilado pela ironia sutil da narradora.
139
Laura ainda é a personagem do conto ―A imitação da rosa‖, também de Laços de
família, mas diferentemente das anteriores ela falha no projeto de mulher perfeita pela
impossibilidade de gerar filhos, pois a maternidade é vista como fundamental para se cumprir
um destino feminino.
E as rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se de
uma mesa limpa um objeto e pela marca mais limpa que ficou então se que ao
138
GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 385.
139
RIBEIRO. A literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector, p.78.
74
redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro
dela.
140
Assim, a condição da mulher em Clarice Lispector se propõe à representação dos
indivíduos escravizados por normas sociais e padrões de comportamento, casamento,
maternidade, dos quais tentam libertar-se mediante um questionamento interior acerca de suas
identidades e dos papéis que desempenham.
Talvez, precisamente por questionar-se sobre a identidade, não da mulher, mas dos
indivíduos em geral, é que Clarice ―resiste‖ ao impulso biográfico. Entretanto, mesmo
negando ela não consegue escapar das memórias.
Clarice sempre se mostrou incomodada ao falar de sua vida pessoal, mas como aponta
Nadia Gotlib, com base na crônica intitulada ―Esclarecimentos. Explicações de uma vez por
todas‖, Clarice faz um resumo de seus dados biográficos para esclarecer alguns mitos sobre
sua personalidade; contudo, há algo que ultrapassa os meros dados ficcionais.
A escritora se pergunta na mesma crônica: ―quem é aquela que não foi, mas poderia
ter sido?‖ Vida e ficção novamente se entrelaçam, pois Clarice ao falar sobre si dilui as
fronteiras entre realidade e ficção, criando dessa forma uma imagem falseada; e ao querer
desmitificar, mitifica-se novamente.
A propósito, Edgar Nolasco afirma que a vida se apropria da ficção, e esta daquela, e
a crítica bigráfico-literária se apropria das duas‖.
141
Ou seja, por meio da escrita biográfica a
ficção produz a vida de um escritor ou permite que esta seja relida na ficção. E os traços
biográficos que constituem a vida do escritor são de extrema importância, e devem ser
tomados como parte desse conjunto que redesenha vida e obra. É nesse sentido que devemos
ler as fábulas infantis claricianas, ou seja, ler o texto ficcional sem perder de vista os traços
biográficos que o circundam, incluindo a própria Clarice Lispector e seus filhos Pedro e
Paulo.
140
LISPECTOR. Laços de família, p. 50.
141
NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 83.
75
O percurso apresentado até o momento possui objetivos definidos: inicialmente situar
a literatura voltada ao público infantil de Clarice Lispector e compreendê-la como uma
reescritura de fábulas; e depois identificar tais histórias como fábulas biográficas, utilizando
para tanto pressuposições teóricas que levam essa pesquisa para além das páginas das obras.
Na próxima etapa desta pesquisa, a discussão volta-se enfim para a análise dos textos
claricianos: O mistério do coelho pensante, A mulher que matou os peixes, A vida íntima de
Laura e Quase de verdade, posto que configuram o objeto de pesquisa. Vamos à análise...
76
CAPÍTULO III
AS QUATRO FÁBULAS CLARICIANAS
Ganhei o troféu da criança 1967, com meu livro
infantil ―O mistério do coelho pensante‖. Fiquei
contente, é claro. Mas muito mais contente ainda ao me
ocorrer que me chamam de escritora hermética. Como
é? Quando escrevo para adultos fico ―difícil‖? Deveria
eu escrever para os adultos com as palavras e os
sentimentos adequados a uma criança? Não posso falar
de igual para igual? Mas, oh Deus, como tudo isso tem
pouca importância.
Clarice Lispector, A descoberta do mundo, p. 98.
77
3.1 O mistério do coelho pensante: uma possível história policial?
Esta história serve para criança que simpatiza com
coelho.
Clarice Lispector, O mistério do coelho pensante, s.n.p.
Publicado em 1967 e escrito, segundo a autora-narradora, após um ―pedido-ordem‖ de
Paulo, seu filho, O mistério do coelho pensante relata um fato a ser desvendado: o sumiço do
coelho Joãozinho.
Teresa Cristina Montero Ferreira, em Eu sou uma pergunta uma biografia de Clarice
Lispector (1990), constata que, dos cinco livros infantis, dois foram publicados e traduzidos
fora do país: O mistério do coelho pensante, na Argentina, e A mulher que matou os peixes,
nos Estados Unidos e na França. Vale destacar que O mistério do coelho pensante foi escrito
em inglês e, posteriormente, traduzido para o português pela autora.
78
Em 1985, O mistério do coelho pensante foi traduzido para o espanhol com o título de
El misterio del conejo que sabía pensar, por Mario Trejo e ilustrado por Juan Marchesi,
publicado pela editora La Flor. Os Cadernos de Literatura Brasileira (2004) acrescentam
ainda a tradução italiana Il misterio del coniglio chesapeva pensare, traduzido por Francesca
Lazarrato, pela editora Mondadori, em 1991.
142
A partir de 1997 as obras claricianas começaram a ser reeditadas no Brasil pela editora
Rocco, inclusive os títulos infantis, estes últimos, com ilustrações de Mariana Massarani e
Flor Opazo, não possuem paginação e apresentam um formato próprio ao público infantil.
Ao escolher um coelho como personagem central da história, a escritora nos remete ao
texto Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, que o coelho branco, elemento
lúdico, é quem inicia a aventura, quando Alice o segue até a toca. No texto clariciano, as
crianças também perseguem o coelho Joãozinho em suas fugas e a partir desse momento
inicia-se a grande aventura, possibilitada pelos questionamentos da narradora para o seu
leitor.
As fábulas claricianas possuem uma forte relação com as narrativas orais, pois
Lispector nos apresenta histórias artesanais, que são tecidas a partir de suas experiências,
portanto nossa leitura, nesse momento do trabalho, criva-se na figura do narrador.
A escolha do narrador, bem como da focalização em relação à diegese, é sem dúvida,
um dos mais importantes recursos do autor para elaborar sua obra. De acordo com Ismael
Ângelo Cintra ―a escolha do foco narrativo, da técnica narrativa, enfim da maneira de compor
os elementos na estrutura ficcional, não é uma escolha arbitrária, nem inocente do autor‖.
143
Em Clarice Lispector, observa-se, entre as características de sua escrita literária, a
forma intimista com que seus narradores constroem o universo diegético do qual fazem parte.
142
Cf. Cadernos de literatura brasileira, p. 307.
143
CINTRA. Dois aspectos do foco narrativo, p. 10.
79
Como é comum às fábulas, a arte de narrar é passada de geração em geração e é essa
experiência, como revela Walter Benjamin ―a fonte a que recorrem todos os narradores‖
144
. A
essa fonte recorre também a narradora clariciana, como visto no primeiro capítulo deste
trabalho, Lispector retoma histórias da tradição popular, ainda que seja para transformá-las e
atualizá-las conforme lhe convém.
Contudo, Marisa Lajolo e Regina Zilberman revelam que ―os livros de Clarice
Lispector trazem para a literatura infantil a perplexidade e a insegurança do narrador
moderno‖
145
. Embora imaginasse anônima na obra ficcional, Clarice delatava-se, tanto que
sua assinatura encontra-se em várias obras, inclusive nas duas primeiras fábulas. Ou seja, a
narradora clariciana transita entre as formas artesanais e modernas da arte de narrar.
No prefácio do livro O mistério do coelho pensante, a narradora antecipa que o
mistério, na verdade, serve como uma ponte para que as crianças, a partir desta história,
consigam descobrir outros mistérios, por esse motivo trata-se de mais uma conversa íntima do
que uma história.
A conversa íntima entre a narradora clariciana e seus leitores mirins percorre todas as
fábulas da escritora. Em O mistério do coelho pensante temos uma narradora feminina e
materna, uma vez que a narrativa estrutura-se no diálogo entre Clarice - lembrando que a
escritora assume sua identidade no Prefácio do livro ao assinar ―C.L‖ - com o filho Paulo, que
possui o papel de narratário da história contada pela e. ―Pois olhe, Paulo, você não pode
imaginar o que aconteceu com aquele coelho‖.
146
Como visto no segundo capítulo deste trabalho, o biográfico está espalhado por toda a
obra de Clarice Lispector; nas fábulas em estudo, o ar maternal torna-se um recurso estilístico
da autora. Nessa direção, Souza afirma que ―cenas domésticas dos fatos aparentemente
144
BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, p. 198.
145
LAJOLO; ZILBERMAN. Literatura infantil brasileira: histórias e histórias, p. 128.
146
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
80
inexpressivas para a elucidação dos fatos históricos passam a compor o quadro das pequenas
narrativas, igualmente responsáveis pela construção do sentido subliminar da história‖
147
.
Ou seja, na história do coelho pensante constata-se que os laços afetivos entre
narradora e narratário e o ambiente doméstico em torno do qual a fábula se desenrola
colaboram para que haja a aproximação do leitor com a obra.
Evidencia-se que a autora ao compor fábulas para crianças vale-se de estratégias que
se apóiam nas figuras do narrador e do leitor. Vale ressaltarmos que o tom dialogal entre a
narradora e os leitores perpassa todas as fábulas infantis de Clarice Lispector. Contudo, este
diálogo não subestima a capacidade e inteligência de seu leitor, pois como revela Barthes:
um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram
umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas um lugar onde
essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente,
é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca,
todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua
origem, mas no seu destino.
148
Em suas fábulas, a escritora delega voz aos leitores e eles tornam-se participativos do
enredo, e, por meio deste diálogo, Clarice instaura na história argumentações e
questionamentos sobre a vida. Todavia, ela o faz com um toque lúdico, como o estranho
sumiço de um coelho, pois ―a casinhola tinha grades muito estreitas, e Joãozinho, além de
branco, era gordo. É claro que não podia passar pelas grades‖.
149
Desta maneira, faz com que
os limites entre o imaginado e o vivido confundam-se.
Nessa fabulação ―personificada‖ a narradora apresenta-nos um coelho, que inclusive
tem nome (Joãozinho), que inicia uma fuga diária e misteriosa: inicialmente nos diz a
narradora: ―[...] as crianças, que não têm natureza boba, foram notando que o coelho branco
fugia quando não havia comida na casinhola [...]‖
150
·; depois o coelho começou a fugir
147
SOUZA. Crítica cult, p. 115.
148
BARTHES. O rumor da língua, p. 70.
149
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
150
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
81
sem motivo algum: ―Mas acontece que Joãozinho, tendo fugido algumas vezes, tomou gosto.
[...] Comida até sobrava. Mas ele sentia uma saudade muito grande de fugir‖.
151
Clarice Lispector apresenta fatos do cotidiano que são reforçados pela linguagem
coloquial, nesse momento, nota-se a narradora artesã que, por meio da linguagem simples,
aproxima-se de seu leitor: ―Você compreende, criança não precisa fugir porque não vive entre
grades‖.
152
Mais do que contar uma história, a narradora ficcionaliza o próprio ato de escrever,
como revela Telma Maria Vieira, no livro Clarice Lispector: uma leitura instigante (1998),
―ao ‗ficcionalizar‘ o ato de escrever, todos os elementos envolvidos na obra, como autor,
narrador, leitor, são ‗ficcionalizados‘ e tornam-se ‗personagens‘‖.
153
A escritora dialoga com o leitor, e este tem papel fundamental na construção da
narrativa, pois a sua interação é solicitada a todo instante pela narradora, o que demonstra o
processo escritural clariciano: ―que é que você acha que Joãozinho fazia quando fugia?‖
154
Não uma preocupação didática e pedagógica nas histórias de Lispector, portanto, a
escritora constroi uma narrativa que visa tornar o leitor seu cúmplice, pois necessita de um
leitor que saiba ler os vazios nas entrelinhas. No livro A mulher que matou os peixes, Clarice
faz um comentário sobre O mistério do coelho pensante e demonstra não estar convencida
sobre a distribuição de textos por faixa etária.
Eu até já contei a história de um coelho num livro para gente pequena e para gente
grande. Meu livro sobre coelhos se chama assim: ―O mistério do coelho pensante‖.
Gosto muito de escrever histórias para crianças e gente grande. Fico muito contente
quando os grandes e os pequenos gostam do que escrevi.
155
As histórias claricianas rompem com o elemento da fábula tradicional: animais
falantes em situações maravilhosas, pois a narradora inicia a história do coelho, atribuindo-lhe
151
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
152
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
153
VIEIRA. Clarice Lispector: uma leitura instigante, p.18.
154
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
155
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
82
simplesmente sua natureza de coelho e rompendo, de certa forma, com o elemento lúdico: ―Se
você pensa que ele falava, está enganado. Nunca disse uma palavra na vida. Se pensa que
era diferente dos outros coelhos, está enganado. Para dizer a verdade, não passava de um
coelho branco‖.
156
A única coisa especial que havia em Joãozinho, e que, aliás, era comum a
todos os outros coelhos, ―é que ele pensava algumas ideias com o nariz‖.
157
Ao retirar o elemento lúdico, questionamo-nos se os animais equivaleriam às crianças,
que a própria narradora estabelece essa relação: ―– Puxa, eu não passo de um coelho
branco, mas acabo de cheirar uma ideia tão boa que até parece ideia de menino!‖ Talvez caiba
aqui uma crítica da escritora, sobre a literatura dita infantil:
Coelho tem muita dificuldade de pensar, porque ninguém acredita que ele pense. E
ninguém espera que ele pense. Tanto que a natureza do coelho até se habituou a
não pensar. E hoje em dia eles todos estão conformados e felizes.
158
A ideia do coelho Joãozinho era a seguinte: ―fugir da casinhola todas as vezes que não
houvesse comida‖. Parece uma ideia boba, mas a natureza do coelho só busca coisas das quais
necessita, e por esse motivo a ideia parecia ser tão boa. A partir desse momento, a narradora
instaura o grande mistério da narrativa: como o coelho conseguia fugir, que a casinhola
possuía grades estreitas e ressalta: ―Joãozinho, além de branco, era gordo?‖
159
A narradora não oferece pistas para que o leitor desvende tal mistério, pelo contrário,
quando questionada, oferece como resposta: ―Mas aí é que está o mistério: não sei!‖
160
As marcas de subjetividade estão espalhadas por toda a história, textos fragmentados,
cortes discursivos, dilemas existenciais sem respostas, o que demonstra um resultado
diferente do que se espera nos contos infantis tradicionais.
Vilma Arêas, no texto Bichos e flores da adversidade‖, observa que ―essa espécie de
construção oscilante e não educadora, que pode desiludir, não deixa de contrariar os
156
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
157
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
158
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
159
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
160
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
83
procedimentos consensuais de livros supostamente infantis‖.
161
E acrescenta que ―tal
desobediência às convenções e bons modos literários faz-se imbatível principalmente nos dois
primeiros livros infantis‖.
162
Arêas faz tal afirmação, uma vez que, como assinalamos na história do coelho
pensante, a narradora o desvenda o mistério e pergunta: ―Bem, Paulo mas eu continuo a
lhe perguntar o seguinte: como é que o coelho branco saía de dentro das grades? Paulinho,
essa é uma verdadeira história de mistério‖.
163
A narradora sugere ao narratário que se coloque na posição do coelho, para que possa
tentar descobrir o mistério do coelho pensante: ―Se você quiser adivinhar o mistério,
Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se certo. É capaz de você
descobrir a solução, porque menino e menina entendem mais de coelho do que pai e mãe‖.
164
Ao filosofar sobre os mistérios, mesmo isenta de respostas, a narradora, como
inicialmente era a ―dona da história‖ e possuidora da chave para desvendar o mistério, mostra-
se tão humana e sensível quanto ao narratário, o que demonstra que a narradora (adulta e
mãe), que, em tese, deveria ter as respostas sobre os mistérios da vida, o narratário (o filho
Paulo) e os leitores estão no mesmo plano: ―É uma história tão misteriosa que até hoje não
encontrei uma criança que me desse uma resposta boa. É verdade que nem eu, que estou
contando a história, conheço a resposta‖.
165
A solução para o mistério não é apresentada, no entanto, Clarice Lispector ao se
nivelar com a criança mostra que somente juntos conseguirão desvendar o mistério. Como?
Lançando-se no mundo da fantasia e da imaginação, agindo como um coelho, por exemplo.
O coelho Joãozinho não falava, mas pensava; ou seria mais adequado dizer que o
coelho não falava porque pensava. Pensar seria a maneira de escapar das grades da casinhola,
161
ARÊAS. Bichos e flores da adversidade, p. 230.
162
ARÊAS. Bichos e flores da adversidade, p. 229.
163
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
164
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
165
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
84
e acrescentamos que Clarice Lispector, implicitamente, nos diz que pensar e não possuir todas
as respostas seria a maneira de fugir das verdades universais.
A narradora, ao apresentar muitas interrogações diretas e indiretas na história, leva a
refletir, bem como a estimular, o imaginário infantil. Por não ter a chave dos mistérios, uma
vez que estes extrapolam os limites da realidade e passam para a esfera do imaginário, a
narradora clariciana se rende ao fascinante universo da fantasia.
Como pontuamos anteriormente, Clarice Lispector instaura na literatura infantil
e/ou infanto-juvenil uma nova maneira de olhar e falar com a criança, pois ela não se
posiciona como a mantenedora dos saberes e deveres; mas, não podemos nos esquecer que ela
é mãe e escreve para o filho, por isso, verifica-se uma preocupação - e não haveria de ser
diferente - com a verdade.
A tônica da verdade perpassa as quatro fábulas infantis: em O mistério do coelho
pensante, a narradora não atribui características sobrenaturais ao animal, ―Para dizer a
verdade, não passava de um coelho‖
166
, pelo contrário, explica a natureza do coelho:
―Natureza de coelho é o modo como o coelho é feito. Por exemplo: a natureza dele mais
filhinhos do que a natureza das pessoas‖.
167
Verdade e mentira não são conceitos opostos em literatura, visto que a literatura é um
processo de transformação da realidade, isto é, por meio das palavras tornamos realidade em
ficção. Portanto, a invenção, que é própria da literatura, não deve ser considerada mentira.
O que observamos no texto de Clarice Lispector é que a mãe-escritora busca revelar a
verdade para a criança, sem deixar de proporcionar a esta o exercício da imaginação; significa
dizer que a narradora não mente, mas inventa verdades nascidas a partir da realidade factual.
O desfecho da história é a culminância da inversão de papéis que a narradora propõe
desde o início da fábula. Isto é, a narradora adulta e mãe, se equivale à criança, uma vez que
166
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
167
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
85
ambas desconhecem os mistérios da vida. Portanto, a forma de desvendar o mistério é entrar
em sua natureza, tornar-se semelhante a ele.
Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o
nariz para ver se certo. É capaz de você descobrir a solução, porque menino e
menina entendem mais de coelho do que pai e mãe. Quando você descobrir, você me
conta. Eu é que não vou mais franzir meu nariz, porque estou cansada, meu bem
de tanto comer cenoura.
168
O narratário é convidado a tornar-se coelho para desvendar o mistério, pois, como
ressalta a narradora, as crianças entendem mais de coelho que os adultos. Todavia, a
narradora, ao se colocar no mesmo nível que a criança, também consegue abstrair a natureza
animal, porque já está cansada de comer cenoura.
Além do que, como analisamos no primeiro capítulo deste trabalho, a escritora possui
uma forte relação com os bichos. O que demonstra uma escritora que se despe de todo
adultismo para falar com a criança de igual para igual, fazendo-a pensar e se libertar, assim
como o coelho pensante.
168
LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, s.n.p.
86
3.2 A mulher que matou os peixes: culpada ou inocente?
Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu.
Clarice Lispector, A mulher que matou os peixes, s.n.p.
A segunda fábula infantil de Clarice Lispector foi escrita em 1968, e também teve
motivação biográfica. A mãe-escritora se esqueceu de alimentar dois peixes vermelhos por
três dias, e eles acabaram morrendo. O problema é que os peixes pertenciam a Pedro, filho
mais velho de Clarice Lispector.
O crime serve como fio condutor para que a escritora - que afirmou uma forte
atração por animais: ―Somente quem teme a própria animalidade não gosta de bichos. Eu
adoro‖
169
- narre várias aventuras com os animais que teve ou passaram por sua vida, tanto os
domésticos quanto os selvagens.
169
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 73 - 74.
87
O título, por estar na terceira pessoa, traz embutido certo mistério, mais surpreendente
que a primeira fábula, que se trata de um assassinato. No entanto, a narradora desvenda o
mistério logo na primeira linha: ―Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu.‖
170
Após o mistério desvendado, a narradora inicia uma espécie de representação
(encenação) com a finalidade de convencer o leitor de sua inocência, uma vez que matou os
peixinhos sem querer.
A narrativa constitui-se in ultimas res, o que permite à narradora contar o que viveu,
selecionando e fazendo cortes. Essa instância narrativa permite a manipulação do discurso por
meio da figura da narradora, ou seja, ela escolhe o que vai dizer. ―Não tenho coragem ainda
de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro contarei e vocês,
que vão ler esta história triste, me perdoarão ou não.‖
171
Conforme visto em O mistério do coelho pensante, a preocupação com a verdade, ou a
representação da verdade é a tônica do discurso da narradora, pois, como uma mãe pode matar
os peixes do próprio filho? Claro que só poderia ter sido sem intenção. A narradora que revela
seu nome, ―antes de começar, quero que vocês saibam que meu nome é Clarice‖
172
tem como
objetivo convencer os leitores que não cometeu o crime propositalmente e que está sendo
verdadeira, já que ―se eu tivesse culpa, eu confessava a vocês, porque não minto para menino
e menina‖.
173
Por meio da linguagem da sedução, a narradora alicia o leitor para sua absolvição, o
que nos leva a postular que a narradora têm ―consciência‖ da posição privilegiada que ocupa
na instância narrativa, posto que escolhe os fatos que irá apresentar aos leitores.
Nesse sentido, recorremos ao conceito de Focalização que corresponde à posição
adotada pelo narrador para contar a história, sob seu ponto de vista, e o Foco narrativo, que é
170
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
171
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
172
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
173
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
88
um recurso utilizado pelo narrador para enquadrar a história de um determinado ângulo ou
ponto de vista.
O foco narrativo evidencia o propósito do narrador de veicular idéias e valores a fim
de mobilizar o leitor/receptor, isto quer dizer que tudo passa pelo filtro do narrador. Sob esse
aspecto Norman Friedman é referência.
No texto intitulado O ponto de vista na ficção: desenvolvimento de um conceito
crítico (2002), Friedman levanta as principais questões acerca da figura do narrador, dentre
elas: Quem conta a história? De que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta?
Que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor? A que distância
o narrador coloca o leitor da história?
174
Em A mulher que matou os peixes Clarice é uma narradora-protagonista que narra
necessariamente em 1ª pessoa, de um ponto fixo, vinculado à sua própria experiência e
registra seus pensamentos, sentimentos e percepções. ―Antes de começar, quero que vocês
saibam que meu nome é Clarice [...] Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança
e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança nem bicho sofrer‖.
175
A narradora-protagonista relata o fato sob o seu ponto de vista, justificando que gosta
de animais e, portanto não cometeu o crime propositalmente. Entretanto, temos somente o
ponto de vista da narradora, os peixes (animais irracionais e mortos) não apresentam outra
versão para os fatos. Então, cabe aos leitores acreditarem ou não na justificativa apresentada
pela narradora.
Por esse motivo, o tom dialogal com o leitor ser tão importante na construção desta
narrativa, visto que a narradora se aproxima do leitor para convencê-lo de sua inocência.
minto às vezes para certo tipo de gente grande porque é o único jeito. Tem gente
grande que é tão chata! Vocês não acham? Elas nem compreendem a alma de uma
criança. Criança nunca é chata.
176
174
Cf. FRIEDMAN. O ponto de vista na ficção, p. 17.
175
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
176
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
89
Mais uma vez é notória a importância que Clarice Lispector atribui à criança, pois a
criança é sensível e tem a capacidade de julgar assim como o adulto. Todavia, para conquistar
o leitor, a escritora relata várias histórias com animais. A primeira inicia-se ainda na infância
da narradora-protagonista, portanto, em flash-back, com uma volta ao passado por meio da
memória é que ela nos conta sobre seu primeiro contato com os animais e afirma:
Eu sempre gostei de bichos. Tive uma infância rodeada de gatos. Eu tinha uma gata
que de vez em quando paria uma ninhada de gatos. E eu não deixava se desfazerem
de nenhum dos gatinhos. O resultado é que a casa ficou alegre para mim, mas
infernal para as pessoas grandes. Afinal, não aguentando mais meus gatos, deram
escondido de mim a gata com sua última ninhada. E eu fiquei tão infeliz que adoeci
com muita febre. Então me deram um gato de pano para eu brincar. Eu não liguei
para ele, pois estava habituada a gatos vivos. A febre passou muito tempo
depois.
177
Apesar de não ter sido tão boa a primeira experiência da narradora com os animais,
que, mesmo sentindo muito carinho pela gata, os adultos da casa incomodaram-se com a
natureza da gata, visto a semelhança com a natureza do coelho, por conter muitos ―filhinhos‖,
desfazendo-se do animal. Essa volta à infância é a maneira pela qual Clarice se identifica com
a criança. O problema de saúde mencionado serve para salientar o sentimento fraterno que a
narradora começou a sentir pelos animais em oposição à insensibilidade do adulto: ―Então me
deram uma gata de pano para eu brincar.‖
178
A narrativa prossegue com a distinção entre bichos naturais e bichos convidados, de
acordo com a narradora: ―Bichos naturais são aqueles que a gente não convidou nem
comprou. Por exemplo, nunca convidei uma barata para lanchar comigo.‖
179
Além da barata, Clarice nos apresenta outros animais naturais como: rato, lagartixa e
mosquito, e conta uma pequena história para cada um dos animais. No entanto, a narradora
demonstra certo repúdio e até mesmo sadismo por esses animais. Como, por exemplo, a
177
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
178
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
179
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
90
maneira como uma rata chamada Maria de Fátima morreu: ―Maria de Fátima morreu de um
modo horrivelzinho (eu digo horrivelzinho porque no fundo estou bem contente): um gato
comeu ela com a rapidez com que comemos um sanduíche.‖
180
Relata ainda como venceu a
batalha contra as baratas: ―Eu fiz o seguinte: paguei um dinheiro para um homem que faz
isso na vida: matar baratas.‖
181
Não é a primeira vez que encontramos na obra de Clarice Lispector sua relação com as
baratas. Em A paixão segundo G.H., romance de 1964, a escritora nos apresenta uma narrativa
inquietante e ao mesmo tempo surpreendente, pois indaga sobre o verdadeiro sentido da vida.
A personagem G.H. trava ao longo da narrativa uma busca incessante por se descobrir, e é em
um pequeno quarto, estimulada pela visão de uma desprezível barata que se desencadeia, em
G.H., um processo interno de reflexão e de busca de identidade. Ela experimenta, diante da
barata viva, aquilo que considera a sua pior descoberta: a de que o mundo não é humano. E
de que não somos humanos‖.
182
Guardadas as proporções, podemos notar alguns traços dessa relação instintiva com
esse inseto, pois como afirma a narradora de A mulher que matou os peixes: ―Tenho pena das
baratas porque ninguém tem vontade de ser bom com elas.‖
183
Esse sentimento de pena pela
barata é elaborado em A paixão segundo G.H. de maneira mais radical, pois sozinha em seu
apartamento a personagem procura algo para fazer, mas não nada. E eis que surge uma
barata, saindo de um armário. Nesse momento, deflagra-se na personagem a consciência da
solidão (tanto dela, quanto da barata). Em outras palavras, no romance ―adulto‖, a
personagem se coloca na mesma posição que o animal, haja vista que ela se torna um inseto
ao ingeri-lo; vale ressaltar que essa é uma prática recorrente de Clarice Lispector.
180
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
181
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
182
LISPECTOR. A paixão segundo G.H.,p.47.
183
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
91
Ela se torna, ou melhor, coloca-se na posição de muitos outros animais para tentar
explicar - ou seria melhor dizermos - entender o verdadeiro sentido de nossa existência e
afinal compreender quem somos?
Após definir o que são os bichos naturais, a narradora revela o que seriam os bichos
convidados:
Agora vou falar sobre bichos convidados, igual ao meu convite para vocês. Às vezes
não basta convidar: tem-se que comprar. Por exemplo, convidei dois coelhos para
morar com a gente e paguei um dinheiro ao dono deles. Coelho tem uma história
muito secreta, quero dizer, com muitos segredos.
184
Observa-se, nesse trecho, a retomada da fábula O mistério do coelho pensante,
especialmente, quando a narradora fala sobre os mistérios do coelho. O que também é prática
recorrente da escritora: retomar outras histórias de sua autoria, ou ainda dialogar com estas.
Além dos coelhos, a narradora relata que teve dois patos, pinto, cachorros, macacos e
apresenta uma micro-história para cada um deles. Sobre os patos relata: ―Também tivemos
dois patos comprados que andavam o dia inteiro atrás da gente, e pensando que a gente é mãe
deles.‖
185
As marcas de oralidade e ainda expressões como: ―Quando eu encontrar vocês, vou
imitar o modo de andar dos patos‖
186
, demonstram o ar de intimidade que a narradora tece,
para que, ao final da história, os leitores a perdoem pelo crime culposo, isto é, sem intenção
de matar. A respeito do pinto, a narradora observa a fragilidade do animal e como somos
parecidos com ele: ―Outro bicho que pensa que a gente é mãe dele é qualquer pinto. Nesse
ponto o pinto é igual a gente: fica com saudade do calor da galinha-mãe.‖
Para os cães, a narradora destina algumas páginas a mais, devido ao número maior de
animais que teve dessa espécie. Inclusive a escritora dedica um livro exclusivo ao cão Ulisses
na última fábula a ser analisada. É interessante a maneira como estão relacionados os cães
com os lugares em que a narradora-personagem viveu.
184
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
185
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
186
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
92
Quanto a cachorros, eu tive dois. O primeiro foi assim: eu estava morando numa
terra que se chama Itália. Um dia, andando pelas ruas da cidade, vi um cachorro
vira-lata. Os vira-latas são tão inteligentes que aquele que eu vi sentiu logo que eu
era boa para animais e ficou no mesmo minuto todo alvoroçado abanando o rabo.
Quanto a mim, foi olhar que logo me apaixonei pela cara dele. Apesar de ser
italiano, tinha cara de brasileiro e cara de quem se chama Dilermando.
187
Assim, nesse trecho, a narradora nos apresenta o cachorro Dilermando, e, mais uma
vez, nota-se uma dose de ―bondade‖ da narradora com os animais, uma vez que ela se julga
―boa para os animais‖. É interessante como ela retrata o cão, ―apesar de italiano, ter cara de
brasileiro‖, posto que ela está falando para crianças brasileiras, portanto ―ter cara de
brasileiro‖ seria a maneira das crianças se identificarem com o animal. Além de acrescentar
um elemento lúdico, pois, cachorros têm, afinal, cara de alguma nacionalidade?
A narradora continua a julgar-se boa para os animais, que afirma a felicidade de
Dilermando por tê-la como dona ―[...] ele parecia tão feliz por eu ser a dona dele que passou o
dia inteiro olhando para mim e abanando o rabo. Vai ver que a outra dona dele batia nele, de
modo que Dilermando estava feliz em mudar de casa.‖
188
Na verdade, a narradora se passa de
assassina à protetora dos animais, ao caracterizar a outra dona do cachorro, como uma mulher
má, que batia em animais. Nesse momento as crianças poderiam se questionar: Por que ela
protege os cães, mas deixou os peixes morrerem? Seria ela culpada ou inocente?
Para responder essas questões continua a narradora considerando ―mulher-mãe‖ de
Dilermando, dos patos e um pinto. E atribui aos outros papéis de vilões: ―como vocês vêem,
existe de tudo neste mundo: mulheres que batem em cachorros, outras que nunca batem,
homem que ganha dinheiro para matar baratas [...]‖
189
Contudo, mesmo dizendo isso para se
defender, ela se mostra preocupada com o caminho a ser seguido pelos leitores e acrescenta:
187
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
188
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
189
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
93
―Isto eu estou dizendo para que vocês se lembrem quando crescerem que há muito o que fazer
na vida.‖
190
Embora a narradora sempre se mostre afetuosa com os animais, que se separar
deles por algum motivo, seja porque criava muito, como no caso da gata, seja porque deveria
mudar-se para outro local. O traço biográfico torna-se fortemente delineado, pois as histórias
narradas aparecem em sua biografia, como por exemplo, os países em que viveu, Itália, Suíça,
Estados Unidos. O espaço e seus componentes colaboram sobremaneira na construção da
narrativa. Sobre este aspecto, atentamos para os conceitos de Osman Lins que se referem a
espaço e ambientação: o primeiro é conotativo, físico; e o segundo é denotativo, relaciona-se
diretamente com os recursos expressivos do autor na técnica narrativa e influi no caráter da
personagem.
[...] o espaço, no romance, tem sido - ou assim pode entender-se - tudo que,
intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que, inventariado, tanto pode
ser absorvido como acrescentado pela personagem, sucedendo, inclusive, ser
constituído por figuras humanas,então coisificadas ou com a sua individualidade
tendendo para zero. Difere, portanto, nossa compreensão do espaço, da de Massaud
Moisés, para quem no ‗romance linear (o romântico, o realista ou o moderno), o
cenário tende a funcionar como pano de fundo, ou seja, estático, fora das
personagens, descrito como um universo de seres inanimados e opacos.
191
O espaço em torno do qual a narrativa A mulher que matou os peixes se desenrola não
é fixo, pois a narradora transita ao longo da obra por diversos cenários: a casa na infância:
―Tive uma infância rodeada de gatos. Eu tinha uma gata que de vez em quando paria uma
ninhada de gatos [...] O resultado é que a casa ficou alegre para mim, mas infernal para as
pessoas grandes‖.
192
E países como Itália: ―Um dia eu estava morando numa terra que se
chama Itália. Um dia, andando pelas ruas da cidade, vi um cachorro vira-lata [...] Apesar de
ser italiano, tinha cara de brasileiro e cara de quem se chama Dilermando‖.
193
Suíça: ―É que
eu tinha de ir embora da Itália e ir para um país chamado Suíça. E nesse país os hotéis não
190
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
191
LINS. Lima Barreto e o espaço romanesco, p.72.
192
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
193
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
94
deixam entrar cachorros. Então escolhi uma moça muito boa para cuidar de Dilermando‖.
194
Estados Unidos: ―Muitos anos depois eu estava morando em outro país que se chama Estados
Unidos da América. E comprei um cachorro americano com o nome de Jack‖.
195
Mesmo não
sendo tão inteligente como o Dilermando, Jack era muito corajoso, um verdadeiro vigia de
casas. O problema é que ele não se conteve em vigiar somente a casa, e passou a vigiar a rua
inteira, o que começou a incomodar a vizinhança, diante de muitas reclamações, ―o vizinho
estava muito zangado, e eu vi que ele mataria mesmo. Para salvar a vida de Jack, demos ele a
uma família muito boa que morava num sítio e onde Jack podia latir à vontade.‖
196
Ainda nos Estados Unidos, a narradora após apresentar as histórias sobre seus dois
cachorros que, embora gostasse muito, teve que separar-se de ambos, inicia a história sobre
macacos que julga ―um pouco alegre um pouco triste‖. A primeira história aconteceu de
maneira surpreendente: ―Vocês acreditem que eu não esperava jamais o que encontrei: um
macaco. Na verdade era um mico tão grande e forte como se fosse um filhote de gorila‖
197
, o
macaco era tão agitado que sujava as roupas que estavam no varal e bagunçava muito a casa,
apesar de parecer com o homem ―vocês sabem muito bem que macaco é o bicho que mais se
parece com as pessoas. Esse macaco parecia ter vida humana.‖
198
O problema é que o
macaco parecia um homem maluco e a narradora teve de desfazer-se mais uma vez de um
animal e deu-o às crianças do morro.
Todavia sua história com macacos não terminou ali, pelo contrário, a narradora
apresenta a história mais comovente de todo o livro, a de Lisete, uma macaca comprada em
uma feira livre ―vestida com saia vermelha, e usava brincos e colares baianos.‖
199
Mas,
diferentemente do primeiro macaco que era muito agitado, Lisete era muito tranquila, quase
194
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
195
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
196
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
197
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
198
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
199
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
95
não comia e dormia o tempo todo. Diante de tal quadro, a narradora revela: ―No quinto dia
comecei a desconfiar que Lisete não estava bem de saúde [...] No sexto dia quase dei um grito
quando advinhei: ‗Lisete está morrendo! Vamos levá-la a um veterinário‘‖.
200
Clarice Lispector, que abordou essa história em A legião estrangeira, como
mencionamos no primeiro capítulo deste trabalho, reelabora a história com vistas a apresentá-
la a um público diversificado. De fato, a macaca estava doente e não resistiu. Ao tratar de um
tema delicado como a morte, a escritora tenta suavizar a narrativa utilizando uma linguagem
repleta de detalhes. ―No dia seguinte o veterinário telefonou avisando que Lisete tinha
morrido durante a noite. Compreendi então que Deus queria levá-la.‖
201
A vontade divina é
superior, portanto a morte é apresentada como algo superior.
As semelhanças entre homens e animais mais uma vez é ressaltada pela escritora,
Também de pura saudade, o outro filho olhou para mim e disse com carinho: ‗Você
sabe, mamãe, que você se parece muito com Lisete?Se vocês pensam que eu me
ofendi porque me parecia com Lisete, estão enganados. Primeiro, porque a gente se
parece mesmo com um macaquinho; segundo, porque Lisete era cheia de graça e
muito bonita.
202
Além de temas como a morte, a narradora também apresenta uma história de violência
travada entre dois cães: Bruno Barberini de Monteverdi e Max. Os animais que inicialmente
eram amigos tornam-se inimigos mortais, isso porque Bruno tinha paixão por seu dono,
Roberto, que era amigo da narradora.
O cachorro Bruno não deixava ninguém se aproximar de Roberto, era um verdadeiro
protetor. Bruno e Max eram muito amigos inclusive comiam juntos, mas em um desses
almoços em conjunto e não se sabe por que motivo, Max foi fazer festa para Roberto, e a
partir daquele momento iniciou-se a tragédia.
Bruno ficou espantado por um segundo: pensou que Max ia atacar Roberto e correu
em defesa do dono. Para defender o dono, atirou-se em cima de Max, que não tinha
200
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
201
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
202
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
96
culpa nenhuma. Mas Max vendo-se ferozmente atacado, reagiu. E o resultado foi
uma luta sangrenta.
203
Clarice Lispector revela nessa micro-narrativa um relato de amor e vingança e que no
mundo animal prevalece a lei do mais forte:
E agora me respondam: que é que vocês acham que Bruno fez? Acertaram. Bruno
foi vingar-se e atacar Max. Mas dessa vez ele estava com tanta, mas tanta raiva que
sua força aumentou e ficou diabólica. E ele, enfim, matou Max.
204
No entanto, esse não é o fim da historieta, pois os cães da rua que eram amigos de
Max, ao saberem o que havia acontecido, encarregaram-se de fazer justiça,
Eram cinco cachorrões contra Bruno. Bruno ainda tentou se defender mas não tinha
força contra eles. E aconteceu o que era de se esperar: o pior. Os cinco cachorros
castigaram Bruno até ele morrer. E é assim que Bruno Barberini de Monteverdi
morreu para todo o sempre.
205
Assim, a narradora vai tecendo histórias que trazem em seu bojo temas importantes, e
que na verdade são tabus para as crianças. Em busca de sua absolvição, a narradora apresenta
a morte das baratas, da rata Maria de Fátima, da macaquinha Lisete, dos cães Max e Bruno,
para por fim falar sobre a sua negligência com os peixes vermelhos.
E finalmente, a narradora nos apresenta a ilha e os vários animais que habitam:
―Falarei sobre uma coisa muito boa: sobre uma ilha [...] Uma amiga minha comprou uma ilha
só para ela e os amigos descansarem [...] Nessa ilha tem todas as espécies de árvores, plantas,
frutas e flores [...] os bichos da terra são os pássaros de todas as cores e tamanhos‖.
206
Tal transitoriedade possui um efeito de sentido, pois mesmo a narradora passando por
diversos espaços, os animais continuam a acompanhá-la. Os espaços mudam, mas os animais
permanecem.
A oralidade que é marca recorrente dessa obra colabora para delinear a narrativa
clariciana. Trata-se de uma comunicação endereçada à criança. Nesse contexto, Clarice
203
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
204
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
205
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
206
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
97
Lispector voz a um narrador ―contador de histórias‖, isto é, a escritora recupera e
redimensiona a narrativa oral por meio do contar: ―Peço que leiam essa história até o fim. Vou
contar uma coisa.‖
207
O que a narradora conta tem duas funções, conforme apontamos: a primeira seria
convencer os leitores de sua inocência; mas, uma vez se tratando de um texto de Clarice
Lispector, em que as entrelinhas dizem mais que o texto em si, é difícil acreditar que seja
somente esta a função de seu texto. Na verdade, a narradora ajuda, por meio dessas pequenas
histórias, as crianças a desvendarem alguns mistérios da vida e inclusive da morte. Mas ela o
faz sem empregar qualquer tipo de verdade ao leitor, pelo contrário, ela fala na condição de
uma ré confessa.
Assim chegamos ao desfecho da narrativa, momento em que a narradora faz seu
depoimento sobre a morte dos peixinhos:
Bem agora chegou a hora de falar sobre o meu crime: matei dois peixinhos. Juro que
não foi de propósito. Juro que não foi minha culpa. Se fosse eu dizia. Meu filho foi
viajar por um mês e mandou-me tomar conta de dois peixinhos vermelhos dentro do
aquário. Mas era tempo demais para deixarem os peixes comigo. Não é que eu não
seja de confiança. Mas é que sou muito ocupada, porque também escrevo histórias
para gente grande. [...] Esqueci três dias de dar comida aos peixes! [...] Devem ter
passado, igual a gente. Mas s reclamamos, o cachorro late, o gato mia, todos os
animais falam por sons. Mas o peixe é tão mudo como uma árvore e não tinha voz
para reclamar e me chamar. E, quando fui ver, estavam parados, magros,
vermelhinhos e infelizmente já mortos de fome.
208
Resta então a pergunta: Será que as crianças perdoaram a narradora? É possível que
sim, que no livro A descoberta do mundo (1984), Clarice Lispector faz o seguinte
comentário:
Fui absolvida. Recebi uma carta de seis páginas a respeito de meu livro infantil ―A
mulher que matou os peixes‖. E a missivista responde a uma frase do livro: ‗Não é
culpada não, pois os peixes morreram não por maldade mas por esquecimento. Você
não é culpada. A carta é assinada pela senhorita Inês Kopeschi Praxedes, que mora
na rua Maria Balbina Fontes, 87 Niterói. no fim da carta é que ela me diz que
tem... dez anos de idade.
209
207
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
208
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
209
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 501.
98
Perdoada ou não, o fato é que Clarice Lispector, mesmo ao escrever histórias para
crianças, foge ao convencional; não segue regras, e desta forma estabelece uma nova maneira
de falar com seus leitores. Portanto, se nos ativermos à lei dos homens, certamente a
condenaríamos, mas se formos levados pela emoção, possivelmente a perdoaremos.
99
3.3 A vida íntima de Laura: o que quer dizer vida íntima?
Vida íntima são coisas que não se dizem a qualquer
pessoa.
Clarice Lispector, A vida íntima de Laura, s.n.p.
A vida íntima de Laura se parece com a vida de muitas pessoas, exceto com a da
espécie da personagem, pois Laura é uma galinha ―e uma galinha muito da simples‖
210
.
Escrita em 1975, e diferentemente das duas fábulas anteriores, que tiveram motivação direta
dos filhos da escritora, A vida íntima de Laura foi elaborada com um cuidado especial, como
destaca a escritora no livro A descoberta do mundo:
E como pretendo escrever uma história infantil chamada A vida íntima de Laura é
o nome de uma galinha precisarei descansar um pouco e cortar qualquer brilho
excessivo aos olhos e qualquer aspereza. Porque é preciso mansidão e muita quando
se fala com crianças. Vou inclusive simplesmente repousar. E falar devagar. Sem
pressa contar a minha história da galinha. Nessa história alegrias e tristezas e
surpresas. Não vê que até estou mais mansa.
211
210
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
211
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 400.
100
No entanto, não podemos afirmar que a narrativa não apresente marcas biográficas,
posto que ao conhecermos o universo dessa personagem, nos depararemos com nossa própria
realidade. A narradora questiona, na verdade, o papel da mulher e o cotidiano no qual está
inserida, ou seja, mãe, dona de casa e esposa.
Utilizando novamente a figura de um animal, a escritora Clarice Lispector descreve o
dia-a-dia de um galinheiro. Laura é casada com o galo Luís, que por sinal gosta muito dela,
mas como qualquer casal às vezes acaba brigando, ―briginha à-toa.‖
212
As características da literatura infantil de Clarice Lispector, as quais já destacamos nos
tópicos anteriores deste capítulo, repetem-se na história da galinha. A narradora, que narra em
pessoa, desde o início da história faz um pacto com o leitor, ―agora adivinhe quem é Laura.
Dou-lhe um beijo na testa se você adivinhar.‖
213
O jogo das adivinhações surge novamente,
como em O mistério do coelho pensante, mas nessa história não mistérios e a narradora
revela que Laura é uma galinha.
O tom dialogal também se faz presente em A vida íntima de Laura. Eis que a
narradora continua a convidar seus leitores a participarem de suas histórias e pede: ―Peço a
você o favor de gostar logo de Laura porque ela é a galinha mais simpática que já vi.‖
214
Contudo, mesmo sendo simpática nota-se a não-idealização da personagem, o que,
aliás, é muito comum em Clarice Lispector. ―Acho que vou ter que contar uma verdade. A
verdade é que Laura tem o pescoço mais feio que vi no mundo. [...] Outra verdade: Laura é
bastante burra.‖
215
Verifica-se novamente a preocupação da escritora em não mentir para a criança, pois
mesmo se tratando de uma fábula em que os animais possuem características sobrenaturais, a
protagonista da história de Lispector é feia e burra, e a escritora faz questão de revelar tais
212
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
213
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
214
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
215
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
101
características ao leitor. Todavia, ao descrever a personagem dessa maneira, torna a narrativa
muito engraçada.
Tal comicidade é importante para o desenvolvimento da história, porque ao utilizar
esse recurso a narradora consegue falar de temas importantes aos pequenos sem deixar o texto
denso. As burrices de Laura suavizam a narrativa e causam simpatia ao público mirim ―Tem
gente que acha ela burríssima, mas isto também é exagero: quem conhece bem Laura é que
sabe que Laura tem seu pensamentozinhos e sentimentozinhos. Não muitos, mas que tem,
tem.‖
216
Embora a protagonista apresente pensamentos e sentimentos, estes estão no
diminutivo, o que demonstra a natureza dos bichos, sua irracionalidade. A exemplo da
personagem Macabéa de A hora da estrela, que era mais um nordestino em busca de
oportunidades na cidade grande, Laura, no galinheiro de dona Luísa, era mais uma simples
ave, como todas as outras ali aprisionadas. ―Eu sei que vonunca viu Laura. Mas se viu
uma galinha meio marrom, meio ruiva, e de pescoço muito feio, é como se você estivesse
vendo Laura.‖
217
Se analisarmos a importância das personagens por uma visão universal, é notória a
insignificância que representam, por outro lado, se nos ativermos ao local, as protagonistas
desempenham papéis importantes, pois representam mão-de-obra aos seus empregadores.
Laura, por exemplo, ―é a galinha que bota mais ovos em todo o galinheiro‖
218
, por isso se
sente segura, uma vez que ela é útil e ninguém tem intenção de matá-la.
No entanto, assim como os utensílios perdem sua utilidade, Laura começou a botar
menos e a envelhecer, o que levou a cozinheira de Dona Luísa escolher Laura para tornar-se
uma refeição: galinha ao molho pardo. E a narradora explica como é feito esse prato:
216
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
217
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
218
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
102
Existe um modo de comer galinha que se chama ―galinha ao molho pardo‖. Você
comeu? O molho é feito com o sangue da galinha. Mas não adianta mandar comprar
galinha morta: tem que ser viva e matada em casa para aproveitar o sangue. E isto eu
não faço. Nada de matar galinha. Mas que é comida gostosa é. A gente come com
arroz bem branco e bem solto. Também existe uma comida de galinha que se chama
supremo de frango. Até me deu fome. Eu sei onde se come esse tipo de galinha. Mas
não digo porque parece propaganda. Também, pelo mesmo motivo, não posso dizer
que refrigerante é bom de se beber com essa galinha. Adivinhe! Começa com a letra
C.
219
Nota-se no trecho transcrito que a narradora apesar de gostar dos pratos preocupa-se
em esclarecer que não mata galinha, até porque anteriormente escreveu um livro para explicar
a morte dos peixes de seu filho. Nesse caso, é cuidadosa ao falar sobre o sacrifício de uma
galinha.
Outra questão importante que aponta caminhos pelos quais a literatura clariciana
transita, sobretudo, na década de 70, está relacionada ao mercado cultural e ao consumismo.
No trecho, a narradora apesar de gostar de supremo de frango, não faz propagandas
publicitárias em sua história, ou melhor, na história de Laura. Também fala sobre o
refrigerante que começa com a letra C, supomos que seja coca-cola, a marca mais conhecida e
vendida em todo o mundo.
Para compreendermos esse momento da escrita clariciana, voltamos à obra A hora da
estrela, para lembrar que a personagem Macabéa: Quando acordava não sabia mais quem
era. depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola.‖
220
A alienação da personagem é clara: uma nordestina, migrante, que gosta da bebida
mais vendida no mundo. Talvez Macabéa nem gostasse tanto assim dessa bebida, mas, para
sentir-se como parte da sociedade e situar-se no mundo cultural, auto-define-se como uma
consumidora de coca-cola. Observa-se, nessa passagem, como Clarice Lispector apresenta o
219
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
220
LISPECTOR. A hora da estrela, p. 54.
103
sujeito situado à margem e exposto aos produtos que configuram o cenário cultural da década
de 70.
É obvio que esses aspectos não se apresentam tão delineados na literatura infantil,
mas como aconselhou Clarice não estragar as entrelinhas com palavras, os temas
importantes estão espalhados por todas as histórias infantis da escritora sem a necessidade de
escancará-los.
A escritora aborda de maneira sutil o preconceito no universo das galinhas:
As outras são muito parecidas com ela: também meio ruiva e meio marrom. uma
galinha é diferente delas: uma carijó toda de enfeites preto e branco. Mas elas não
desprezam a carijó por ser de outra raça. Elas até parecem saber que para Deus não
existem essas bobagens de raça melhor ou pior.
221
Mais uma vez a narradora atribui à entidade divina a responsabilidade sobre os
sentimentos humanos, como visto em A mulher que matou os peixes, a miquinha Lisete
morreu por vontade divina; e em A vida íntima de Laura, todos são iguais perante Deus,
portanto não haveria diferença entre as raças.
Você sabe que Deus gosta de galinha? E sabe como é que eu sei que Ele gosta? É o
seguinte: se Ele não gostasse de galinha, Ele simplesmente não fazia galinha no
mundo. Deus gosta de você também senão Ele não fazia você.
222
O cotidiano de A vida íntima de Laura começa a ganhar dimensões filosóficas e a
narradora passa a fazer uma série de questionamentos sobre a vida, numa espécie de
monólogo interior e por um instante rompe seu diálogo com o leitor: Quando eu era do
tamanho de você, ficava horas e horas olhando para as galinhas. Não sei por quê.
223
―O que
eu queria saber é quem ensinou o galo a cantar de madrugada.‖
224
Mas em seguida, volta-se para o leitor novamente,
Agora vou contar uma coisa um pouco triste. A cozinheira disse para Dona Luísa
apontando para Laura: - Essa galinha não está botando muito ovo e está ficando
221
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
222
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
223
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
224
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
104
velha. Antes que pegue alguma doença ou morra de velhice a gente bem que podia
fazer ela ao molho pardo.
225
Nesse momento da narrativa, a escritora modifica a personalidade de Laura, pois
diante da morte, tema abordado em A mulher que matou os peixes, a galinha mostra-se
muito inteligente, ―meteu o bico na lama, se lambuzou toda e se despenteou. Veja que ela não
era tão burra assim: ela sabia que os outros a reconheciam mesmo porque ela era a mais
limpa e a mais penteada do galinheiro.‖
226
Laura conseguiu salvar-se, no entanto, Zeferina, prima de quarto grau daquela, por
serem parecidas, acabou sendo sacrificada no lugar de Laura. ―Zeferina, apareceu numa
travessa grande de prata, já toda em pedaços, alguns bem dourados.‖
227
Vida e morte, temas tão recorrentes nas obras claricianas surgem novamente, e
acabam por revelar a contrariedade de Clarice Lispector em relação à literatura infantil
tradicional. O leitor que se aventurar pelas histórias claricianas não encontrará ao abrir o livro
o bordão ―Era uma vez‖, pois a escritora não fala de um mundo imaginário e ideal, mas da
realidade em que vive, isso porque assimila uma espécie de verismo do cotidiano e rejeita o
elemento maravilhoso de seus relatos.
Ora, a escritora retrata em suas histórias o cotidiano dos animais que vivem nos
quintais domésticos das famílias na década de 70. Com isso, é possível ter uma leve
impressão temporal e espacial das narrativas infantis.
A mesma galinha que era burra, também é qualificada como ―pra frente‖, pois pode
salvar-se de seu destino trágico com a ajuda sobrenatural de Xext, um habitante de Júpiter que
intervém na narrativa para conhecer e conceder a Laura um desejo:
Agora vou contar uma coisa muito bacana. Preciso antes dizer que Laura era uma
galinha pra frente. Tanto que um habitante de Júpiter um cara que tinha um
olho na testa e era do tamanho mesmo de uma galinha - , esse habitante de Júpiter
baixou de noite no quintal de Dona Luísa, enquanto todas as galinhas estavam
225
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
226
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
227
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
105
dormindo. [...] - Peça alguma coisa que eu faço acontecer, falou Xext. - Ah, disse
Laura, se meu destino for ser comida, eu queria ser comida por Pelé! Mas você
nunca vai ser comida e ninguém vai matar você. Porque eu não deixo.
228
Laura foi escolhida por Xext, entre todos os habitantes da terra, justamente por ela não
ser ―quadrada‖, bem diferente da descrição interna que ela fez dos homens quando solicitada
por Xext: ―Ah, cacarejou Laura, os humanos são muito complicados por dentro. Eles até se
sentem obrigados a mentir, imagine só.‖
229
Mais uma vez notamos uma narradora que busca um pacto de verdade com o leitor,
pois, ao distanciar-se do olhar hegemônico do adulto, cria a cumplicidade com a criança que a
lê. Aproveita-se dessa cumplicidade para desvelar a impotência do homem diante do mundo
racional, apresentando ao leitor seu mundo de incertezas.
A história de Laura parece terminar abruptamente, que após a visita de Xext, a
cozinheira observa que Laura está com ―cara de ontem‖, possivelmente afiando uma faca. De
acordo com Vilma Arêas, ―não é difícil perceber, com tantos sacolejos, a impaciência da
autora em terminar a história, colando em seu final solução de outra, escrita no mesmo ano e
por necessidade de publicação.‖
230
Como analisamos no primeiro capítulo deste trabalho, o cruzamento de textos na
obra de Lispector é uma prática comum. O que acontece entre o conto ―Uma galinha‖ de
Laços de família e A vida íntima de Laura.
As personagens das duas narrativas são as galinhas. O tema abordado nos textos é o
mesmo a questão do ser feminino e da maternidade o que os diferem é o trabalho com a
linguagem.
A narradora heterodiegética do conto ―Uma galinha‖ apresenta uma visão distanciada
dos fatos, o que mantém a impessoalidade do relato. Trata-se da tentativa de fuga de uma
galinha que iria ser morta, mas foi salva devido à maternidade. Tudo é narrado de maneira
228
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
229
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
230
ARÊAS. Bichos e flores da adversidade, p. 233 - 234.
106
irônica, distante e fria por uma narradora adulta que não participa da trama. ―Era apenas uma
galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.‖
231
Em A vida íntima de Laura, ao tratar dos mesmos fatos, Clarice o faz de maneira
diferente, com suavidade, e o principal recurso utilizado é o diálogo entre narrador, leitor e
personagens. Por meio da focalização homodiegética, é permitida a aproximação entre o
narrador-adulto e o leitor-criança. ―Agora adivinhe quem é Laura. Dou-lhe um beijo na testa
se você adivinhar. E duvido que você acerte! três palpites. Viu como é difícil? Pois Laura
é uma galinha. E uma galinha muito da simples.‖
232
Nota-se que até a apresentação da
personagem na segunda narrativa é feita de maneira mais suave.
O tema - morte das galinhas - permeia as duas narrativas, no entanto, de maneira
diversificada. Na primeira, a morte da galinha é colocada como algo irreversível.
Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho era uma cabeça de
galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. Até que um dia
mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
233
Na segunda narrativa, essa ideia é diluída, pois a morte de Laura é transferida para
uma personagem secundária, a sua prima Zeferina, e assim suaviza a realidade para as
crianças.
E na hora do jantar, quando todos estavam sentados ao redor da mesa, Zeferina,
prima de quarto grau de Laura, apareceu numa travessa grande de prata, já toda em
pedaços, alguns bem dourados. O filho e a filha de Dona Luísa, Lucinha e Carlinhos,
comeram, embora com pena, Zeferina com arroz branco e solto e regaram tudo com
molho pardo.
234
É importante observar que os recursos estilísticos e discursivos utilizados pela
narradora não tornam os textos diferentes ou menores literariamente. Pelo contrário, a
escritora consegue aquilo que almejou desde a primeira obra destinada ao público infantil:
Eu até já contei a história de um coelho num livro para gente pequena e para gente
grande. Meu livro sobre coelhos se chama assim: ―O mistério do coelho pensante‖.
231
LISPECTOR. Laços de família, p. 30.
232
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
233
LISPECTOR. Laços de família, p. 33.
234
LISPECTOR. A vida íntima de Laura, s.n.p.
107
Gosto muito de escrever histórias para crianças e gente grande. Fico muito contente
quando os grandes e os pequenos gostam do que escrevi.
235
Assim, em A vida íntima de Laura, cabe à narradora apresentar a protagonista da
história em sua intimidade: quem é Laura, onde mora, é casada, quantos filhos, etc. Tais fatos
amarrados constituem a história, no entanto, são relatos fragmentados sobre a vida das
personagens que se costuram aleatoriamente de acordo com a vontade da narradora.
Queremos dizer que Clarice Lispector não segue uma ordem cronológica, ela
simplesmente narra fatos e estes por serem compactos e coesos podem ser invertidos pelo
leitor, sem que a narrativa sofra mudanças na mensagem que se quer transmitir.
É, portanto, por meio do diálogo entre seus textos, e, especialmente, no trabalho com a
linguagem, no jogo entre fantasia e verdade ou na forma de apresentar a realidade à criança,
que se encontra o mérito de um autor de textos infantis, e nesse caso, de Clarice Lispector.
235
LISPECTOR. A mulher que matou os peixes, s.n.p.
108
3.4 Quase de verdade: ou quase de mentira?
Pois não é que vou latir uma história que até parece de
mentira e até parece de verdade?
Clarice Lispector, Quase de verdade, s.n.p.
A última obra de Clarice Lispector para crianças, intitulada Quase de verdade foi
publicada postumamente. Essa narrativa difere-se das outras três apresentadas, porque
uma personagem que narra a história. Trata-se de um cachorro chamado Ulisses, que descreve
a viagem que fez pelo quintal de Dona Oníria.
O título Quase de verdade abre caminhos para o mundo fantástico da criança, e, como
é comum nas fábulas claricianas, Ulisses inicia seus relatos apresentando-se: ―Era uma vez...
Era uma vez eu! Mas aposto que você não sabe quem sou. Prepare-se para uma surpresa que
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você nem adivinha. Sabe quem sou? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha dona é
Clarice.‖
236
Embora a narrativa seja introduzida com a canônica expressão ―era uma vez‖, esta é
ironicamente desestruturada quando Ulisses desnuda-se como narrador de tal história e
aproxima-se do leitor, haja vista não se tratar de uma história longínqua.
O narrador revela ainda que sua dona chama-se Clarice, e ela é a autora do que ele irá
latir, pois ―eu fico latindo para Clarice e ela que entende o significado de meus latidos
escreve o que eu lhe conto‖
237
, demonstrando que Lispector não faz questão de esconder sua
identidade, pelo contrário, mostra-se sempre presente nas histórias. A escritora deixa marcas
biográficas pelas obras, isso acontece porque Clarice Lispector não estabelece uma fronteira
entre o real e o ficcional, o que torna a obra dessa escritora tão singular.
Ulisses narra várias histórias, no entanto, o cerne da narrativa é a opressão sofrida
pelas aves Odissea e Ovídio, líderes do galinheiro. O aspecto social que aparecia implícito nas
fábulas anteriores, ganhará contornos mais nítidos em Quase de verdade, lembrando que a
questão social se impôs na maioria das obras claricianas dessa época.
O personagem-narrador, assim como os outros personagens apresentados pela
escritora em obras anteriores, constitui-se de defeitos e qualidades, portanto também não é
idealizado:
Antes de tudo quero me apresentar melhor. Dizem que sou muito bonito e sabido.
Bonito parece que sou. Tenho um pêlo castanho cor de guaraná. Mas sobretudo
tenho olhos que todos admiram: são dourados. Minha dona não quis cortar seria
contra a natureza. [...] Sou um pouco malcriado, não obedeço sempre, gosto de fazer
o que eu quero, faço xixi na sala de Clarice. Fora disso, sou um cachorro quase
normal.
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Ulisses se considera quase normal porque se considera mágico; ele adivinha tudo pelo
cheiro. A apreensão da realidade pelos sentidos é uma característica dominante na ficção
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clariciana. Assim como o coelho Joãozinho que pensava mexendo o nariz, Ulisses observa os
fatos do quintal onde esteve hospedado cheirando tudo e comenta ―cheirei tudo: figueira, galo,
galinha etc.‖
239
Na obra em análise, o elemento lúdico fica por conta de um passarinho de ouro, que
canta para dar o tom da história de Ulisses. O pássaro é o símbolo da fantasia e da
imaginação, e tem a função de lembrar a criança que se trata de fantasia.
Mas antes de começar, pergunto a você bem baixo para só você ouvir: - Está
ouvindo agora mesmo um passarinho cantando? Se não está, faz-de-conta que está.
É um passarinho que parece ouro, tem bico vermelho-vivo e está muito feliz da vida.
Para ajudar você a inventar a sua pequena cantiga, vou lhe dizer como ele canta.
Canta assim: pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim.
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As personagens da história dividem-se em: humanos - Oníria e Onofre que são os
donos do galinheiro e o empregado Oquequê, e não humanos - as galinhas, a figueira e as
nuvens Oxelia e Oxalá.
A história latida pelo cão Ulisses inicia-se em um enorme quintal onde havia uma
figueira e as galinhas. No galináceo havia duas personagens importantes: O galo Ovidio e a
galinha Odissea. É interessante notar que as personagens, excetuando Ulisses, possuem a
inicial ―O‖ no nome. O narrador-personagem explica esse fenômeno e observa:
o galo se chamava Ovidio. O ‗O‘ vinha de ovo, o ‗vidio‘ era por conta dele. A
galinha se chamava Odissea. O ‗O‘ era por causa do ovo e o ‗dissea‘ vinha por conta
dela. Aliás o mesmo acontecia com Oniria: o ‗O‘ do ovo e o ‗niria‘ porque assim
queria ela. Casada com o seu Onofre. Bem, você sabe que o ‗O‘ de Onofre era em
homenagem ao ovo você adivinhou certo: o ‗nofre‘ era malandragem dele.
241
O jogo lingüístico com o vocábulo ―o‖, além da musicalidade que expressa, teria a
função de uma brincadeira de perguntas e respostas, pois, quando o leitor espera uma resposta
diferente, ela oferece a mesma, e quando se espera a mesma, ela apresenta outra, mas o
importante é que todos os nomes têm origem no ovo.
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Outros elementos linguísticos como neologismos, onamatopéias estão espalhados por
todo o texto. As onomatopéias aparecem no canto do pássaro dourado: pirili-pim-pim, pirilim-
pim-pim, ou ainda no latido de Ulisses: au-aua-au que aparece cinco vezes no texto, formando
um diálogo entre os animais.
Em relação aos neologismos, constata-se sua finalidade humorística, que o narrador
cria uma expressão nova para iniciar a narrativa: ―a história vai historijar‖
242
, que remete a
ideia presente e futuro, além da criação de novos verbos que remetem a um tempo no
pretérito imperfeito e revelam como a vida seguia: ―os homens homenzavam, as mulheres
mulherizavam, os meninos e meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as
galinhas galinhavam, os galos galavam, a figueira figueirava, os ovos ovavam.‖
243
Tais elementos criam uma aproximação não com relação à linguagem, mas também
ao pensamento infantil, que apreende a realidade por analogias, criando uma identificação da
criança com a história narrada. Agindo dessa maneira, explicando a realidade, a escritora faz
uma subversão, ou seja, mais do que representar a sociedade, ela a denuncia.
O enredo constroi-se a partir de uma tensão, ―a figueira que não se sabe por que nunca
dera figos‖
244
, que, diante da produtividade do casal de galináceo, desenvolveu um
sentimento de inveja, visto sua esterilidade. Para vingar-se das aves, a figueira elaborou um
plano maquiavélico: ―Sabe o quê? Essa danada de figueira entrou em contato com uma nuvem
preta que era bruxa. E pediu: - Bruxa, bruxinha, faça com que os ovos sejam meus [...] quero
vender esses ovos e ganhar muito dinheiro!‖
245
No trecho transcrito, observa-se que a escritora aborda, ainda que metaforicamente, a
crueldade e a opressão dos seres. Com a ajuda da nuvem Oxelia, a figueira conseguiu que
suas folhas ficassem acesas durante a noite, e as galinhas, coitadas, imaginando que era dia,
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não dormiam e botavam ovos sem parar, assim, a figueira juntava os ovos para comercializá-
los. O problema é que as galinhas não recebiam nada pelo trabalho, ―nada pagava às galinhas,
nem com milho, nem com minhoca, nem água. Era só escravidão.‖
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No entanto, com o desenrolar da história, as galinhas demonstram insatisfação com
aquela situação repressora e decidem se rebelar. Os ecos da ditadura militar, contexto
histórico no qual a obra está inserida, saltam aos olhos.
Ovidio, assim como Odissea, era um galo que pensava muito. Conversaram no
fundo do quintal, [...]. Passaram dois dias se entendendo com palavras de aves.
Resultado? O resultado foi a esperteza daquelas. Não havia dúvida: eles iam contra a
figueira ditadora, iam exigir os seus direitos, [...].‖
247
Lideradas por Ovidio e Odissea, as aves se rebelaram empoleirando-se na figueira,
pois quando botavam os ovos, estes se espatifavam no chão e cacarejavam: - Queremos a
liberdade de cantar de dia! Queremos por ovo quando decidirmos e queremos os
ovos para nós! São nossos filhos!‖
248
Desta maneira, conseguiram reverter o feitiço de Oxelia
e, enfim, conseguiram a liberdade. ―As galinhas e os galos estavam livres, enfim! E foram
durmir, pois estavam precisando depois de tantas noites de insônia. [...] De madrugada,
Ovidio cantou tão lindo como nunca havia cantado. E as galinhas se espreguiçaram felizes.‖
249
Metaforicamente, tais atitudes representam o sono dos justos e o grito de liberdade.
Voltamos à figura do ovo para compreender que tal símbolo significa nascimento,
multiplicidade dos seres, renovação. É pertinente a utilização deste símbolo em uma literatura
voltada para a existência como a de Clarice Lispector. Importa enfatizar que as civilizações
mais antigas atribuíam a este elemento rios significados, prevalecendo que o ovo
representa o nascimento e o processo de significação da vida.
O desfecho da narrativa não é tranquilamente resolvido, pois, como é comum nas
fábulas, a escritora faz muitos questionamentos e nem sempre os resolve. Para festejarem a
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liberdade, as galinhas preparam uma festa para as demais aves e oferecem pirulitos.
Resultado? As aves perderam todos os dentes.
Todos estavam tão contentes que Ovidio e Odissea resolveram organizar uma festa.
E, para agradar as aves, compram mil pirulitos. Acontece, porém, que elas não
sabiam que pirulito é para ser chupado ou lambido e começaram a mordê-los. [...] O
que aconteceu? Aconteceu que os dentes se quebraram todos.
250
Sem os dentes as aves vão à busca de alimentos que não precisam ser mastigados.
Deparam-se com uma fruta redonda e preta que ―só existe no Brasil‖
251
, a jabuticaba,
começam a se alimentar dessa fruta e acham-na maravilhosa, no entanto, a escritora para fugir
aos finais tão criticados das histórias tradicionais, não tem a pretensão de deixar uma ―lição de
moral‖, para tanto oferece uma questão metafísica, como a elaborada por Hamlet: ―ser ou não
ser, eis a questão‖, ―engole-se ou não engole-se o caroço?‖
252
O que a escritora sugere com esse final? Que a vida é feita de muitos obstáculos? E
que, mesmo após a vitória contra a figueira (opressão militar), sempre uma nova luta?
Acreditamos que o final feliz não seria a gosto de Clarice Lispector, então a escritora faz mais
um questionamento sem resposta: ― – Até logo, criança! Engole-se ou não engole-se o caroço?
Eis a questão‖
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, certamente este final ilustraria melhor a obra infantil de Clarice Lispector.
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CONCLUSÃO
FELIZES PARA SEMPRE?
O que é que se consegue quando se fica feliz?
Clarice Lispector. Perto do coração selvagem, p. 25.
Clarice Lispector é sem dúvida uma figura emblemática que dificilmente oferece
respostas a leitores e pesquisadores sobre sua obra, menos ainda sobre si mesma, ao defenir-se
revela: ―eu sou uma pergunta‖
254
É com essa interrogação, com esse sentimento de incompletude que este trabalho se
encerra, ou melhor, fica em aberto para que outras possibilidades de leitura possam surgir,
pois é preciso continuar.
A dificuldade mencionada na introdução deste trabalho refere-se justamente ao grande
número de artigos, ensaios e especialmente à fortuna crítica envolvendo a escritora Clarice
Lispector. No entanto, a literatura clariciana não se esgota, há sempre algo a ser desvendado e
pesquisado.
Durante este percurso tínhamos uma questão a ser discutida: o projeto literário de
Clarice Lispector restringe-se à ficção ou o biográfico contribui para a construção literária
desta escritora? Diante de tal indagação, a leitura que moveu este trabalho foi a relação entre
vida e ficção de Clarice Lispector e a maneira como o biográfico se apresenta nas obras
destinadas ao público infantil.
O projeto literário de Lispector tem como suporte a própria vida da escritora, por isso
sua escrita parece estar sempre sobre uma linha tênue entre vida e ficção. A mulher que matou
254
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 367.
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os peixes, e que se chama Clarice, relata fatos memorialísticos, histórias marcadas de
subjetividade, pelos ―restos‖ ficcionais e biográficos.
O projeto inclui as amizades literárias, tais como Monteiro Lobato ou ainda os laços
de afetividade concretos que Clarice manteve ao longo de sua vida. Embora a escritora negue,
em muitos casos, essas amizades ou ―influências‖ são evidentes, excetuando-se Monteiro
Lobato, posto que com este escritor Clarice faz questão de devotar amizade.
Ao agir dessa maneira, denegando influências, a escritora que teve sua vida envolta de
mistério acaba delatando-se em sua escrita. Diante disso, questionamo-nos durante o percurso
deste trabalho: até que ponto podemos acreditar nas afirmações de Clarice? Quem é Clarice?
Na busca por essa identidade clariciana, deparamo-nos com textos biográficos da
escritora, cartas, crônicas, entrevistas e também fragmentos de romances que demonstram o
cuidado ao construir a própria imagem. No entanto, a garota humilde e estrangeira que
buscava incessantemente a felicidade clandestina, tornou-se estrangeira de si mesma e, a cada
personagem que criou, deixou apenas rastros de uma possível identidade.
Por esse motivo, o que observamos nos romances, contos, em cada personagem,
enfim, é um reflexo de Clarice Lispector, demonstrando a impossibilidade de ler a vida e a
obra da escritora separadamente. Diante dessa hipótese, encontramos na teoria da crítica
biográfica aparatos teóricos que sustentaram nossa leitura, sem a intenção de decifrar o
enigma do texto ou da escritora, mas de articular o texto com o paratexto, na tentativa de
alargar as possibilidades de leitura.
Como assinalamos, a crítica biográfica atua nessa difícil e delicada relação entre
autor e obra, vida e ficção, em que os biografemas possuem um papel importante, que tudo
aquilo que está à margem da obra, como notas de rodapé, bilhetes, cartas, colabora para uma
visão ampliada de determinado autor e/ou obra.
116
Dito isso, chegamos a algumas conclusões que ajudam a vislumbrar o projeto literário,
e porque não de vida, da escritora Clarice Lispector, embora saibamos que estes não bastam à
discussão do tema. Para obtermos os resultados, foi necessário percorrer um caminho
estabelecido a partir de três etapas: Capítulo I, Quase de verdade: as fábulas de Clarice
Lispector para crianças; Capítulo II, As fábulas biográficas de Clarice Lispector e Capítulo
III, As quatro fábulas claricianas.
No primeiro capítulo, fizemos um recorte sobre os conceitos de ―fábula‖ e ―bestiário‖
e analisamos os possíveis diálogos dos textos claricianos com os clássicos. Embora este
capítulo tenha norteado nossa discussão, foi necessário, para tanto, pesquisarmos as ―fontes
inspiradoras‖, as amizades literárias sobre as quais essa escrita se sustenta. Assim,
constatamos que a obra clariciana transita pela literatura clássica universal. Contudo,
Lispector atualiza os textos conforme sua necessidade/vontade, o que, aliás, é prática
recorrente da escritora.
O segundo capítulo constitui a base de nosso trabalho, já que nele apresentamos nossas
identificações teóricas e apontamos os mecanismos utilizados em nossa análise, o objetivo
deste capítulo foi ler a obra clariciana pela óptica da crítica biográfica e compreender que a
escritora, primeiro (re)conta as histórias que leu, revelando parte de suas fontes inspiradoras,
depois recria estas histórias aproveitando criações de sua autoria e especialmente os episódios
de sua vida. Clarice Lispector utiliza os restos biográficos para compor sua ficção e isso inclui
as amizades concretas e literárias, laços de afetividade que manteve ao longo de sua vida e os
filhos, visto se tratar de uma mãe-escritora que também fabula para os filhos.
O terceiro capítulo destinou-se à análise das obras, embasada pelas proposições
teóricas dos capítulos anteriores, e no qual constatamos que a postura assumida pela escritora
em relação à literatura é de rompimento de paradigmas. Seu intuito não é impor verdades
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universais, pelo contrário, sua escrita transita entre a razão e a falta desta, tirando proveito de
ambos os lados para a construção de seu projeto literário.
Tarefa difícil, pois até que ponto uma escritora enigmática como Clarice Lispector
poderia escrever fábulas biográficas sem tornar sua escrita hermética? Temos como resposta,
uma escrita que difere e muito da dita literatura infantil e/ou infanto juvenil. Posto que, em
meio a memórias, ficção, histórias ―quase de verdade‖ é que a literatura infantil clariciana
nasce e floresce.
A escritora oferece ao seu leitor um universo contraditório, uma vez que se vale de
elementos lúdicos e, ao mesmo tempo, elementos do cotidiano factual para apresentar-lhe os
mistérios da vida. Ainda que alguns críticos não tenham estudado sistematicamente essa
produção clariciana, atentamos para o fato de que Clarice inicia um novo projeto estético
infantil brasileiro.
Com esse novo olhar, revestido de lirismo e sensibilidade, a escritora consegue falar
aos pequenos leitores sem se prender às ideologias didáticas e pedagógicas, acepções que a
literatura infantil e/ou infanto-juvenil apóia-se. Demonstrando, mais uma vez, que o projeto
literário clariciano propõe uma ruptura com o convencional, pois Lispector provoca,
desestabiliza e foge do lugar-comum, até mesmo quando escreve para crianças.
118
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________. Pedro Nava, o risco da memória. Belo Horizonte: Editora Funalfa, 2004.
________. Tempo de pós-crítica. 1. ed. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007.
TYANIANOV, J. Da evolução literária. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org) Teoria da
literatura: formalistas russos. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipousk, Maria Aparecida Pereira,
Regina L. Zilberman, Antônio Carlos Hohlfedt. 2. ed. Porto Alegre: Ed. Globo, 1976.
TOMACHEVSKY, B. Temática. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org) Teoria da
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