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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE
CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS
NÍVEL DE MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE
DE MENINOS A “HOMENS”: POSSIBILIDADES DE LEITURAS DA INFÂNCIA EM
CONVERSA DE BOIS, CAMPO GERAL E MUTUM.
CASCAVEL – PR
2010
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SALETE PAULINA MACHADO SIRINO
DE MENINOS A “HOMENS”: POSSIBILIDADES DE LEITURAS DA INFÂNCIA EM
CONVERSA DE BOIS, CAMPO GERAL E MUTUM.
Dissertação apresentada à Universidade Estadual do
Oeste do Paraná UNIOESTE, para obtenção do
título de Mestre em Letras, junto ao Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de
concentração em Linguagem e Sociedade. Linha de
pesquisa Linguagem e Cultura.
Orientadora: Profª. Dra. Rita Felix Fortes.
CASCAVEL – PR
2010
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FICHA CATALOGRÁFICA
SIRINO, Salete Paulina Machado
De meninos a “homens”: possibilidades de leituras da infância em Conversa de
Bois, Campo Geral e Mutum. – Cascavel, 2010.
185 f.
Dissertação (mestrado). Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2010.
Orientadora: Professora Dra. Rita Felix Fortes
1. Infância. 2. Leitura Literária. 3. Literatura e Cinema
3
DE MENINOS A “HOMENS”: POSSIBILIDADES DE LEITURAS DA INFÂNCIA EM
CONVERSA DE BOIS, CAMPO GERAL E MUTUM.
Esta dissertação foi julgada adequada a obtenção do Título de Mestre em Letras e
aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível
de mestrado da Universidade Estadual do Paraná – UNIOESTE, em 08/03/2010.
____________________________________________
Professora Dra. Aparecida Feola Sella (UNIOESTE)
Coordenadora
Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos Professores:
_________________________________________________
Professora Dra. Adelaide Caramuru Cezar (UEL)
Membro Efetivo
_________________________________________________
Professor Dr. Acir Dias da Silva (UNIOESTE)
Membro Efetivo
__________________________________________________
Professora Orientadora Dra. Rita Felix Fortes (UNIOESTE)
Membro
Cascavel, 08 de março de 2010.
4
DEDICATÓRIA
Dedico aos meus três filhos, Tallyssa
Izabella, Taylla Maria e Pedro Tayllison,
ao meu marido, Talicio, à minha mãe,
Vitória, à minha sogra, Aparecida, e à tia
Terezinha.
Dedico à memória de meu pai, Anau
Machado, e a memória de meu sogro,
Pedro Inácio Sirino.
Dedico a todos que direta ou indiretamente
contribuíram para a realização deste estudo.
5
AGRADECIMENTO
Agradeço, primeiro, a DEUS, nosso pai eterno.
Agradeço à Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE e ao Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Letras.
Agradeço aos meus professores, todos, em especial, à Professora Dra. Rita Felix
Fortes.
Agradeço aos professores que participaram da banca de qualificação e de defesa desta
dissertação: Prof. Dr. Acir Dias da Silva, Profª. Dra. Adelaide Caramuru Cezar, Profª.
Dra. Regina Coeli Machado e Silva, e a minha orientadora Profª. Dra. Rita Felix
Fortes.
6
EPÍGRAFE
“De um modo geral, admite-se hoje que nenhuma leitura é
inocente, ou feita sem pressupostos. Poucas pessoas porém, levarão às
últimas consequências as implicações dessa culpa do leitor. Uma das teses
deste livro é o de que inexiste uma reação puramente “literária”; todas as
reações, sem exclusão das reações à forma literária, aos aspectos de uma
obra que são por vezes ciosamente reservadas ao “estético”, estão
profundamente arraigadas no indivíduo social que somos.”
Terry Eagleton (2001)
7
RESUMO
SIRINO, Salete Paulina Machado. De meninos a “homens”: possibilidades de leituras da
infância em Conversa de Bois, Campo Geral e Mutum. 2010. 185 f.
Dissertação (Mestrado em Letras) Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, 2010.
Orientadora: Professora Dra. Rita Felix Fortes.
Defesa: 08/03/2010.
Esta pesquisa, de caráter analítico e bibliográfico, tem como foco a temática da infância e
objetiva apontar algumas possibilidades de leitura do conto Conversa de bois, que integra o
livro Sagarana, e da novela Campo geral/Miguilim, que integra a obra Corpo de baile, de
João Guimarães Rosa, bem como da transposição fílmica de Campo Geral para o filme
Mutum (2007), de Sandra Kogut. Portanto, a presente dissertação atém-se à práxis da leitura
literária, articulada às teorias sobre a recepção de textos literários de Hans Robert Jauss,
Wolfgang Iser, Vincent Jouve, Umberto Eco e Mikhail Bakhtin, à leitura analítica-
interpretativa dos referidos textos rosianos. E, ainda, a pesquisa visa o estudo do conceito
sociológico de infância, advindo da tradição europeia, respaldada nos autores Elizabeth
Badinter e Philippe Ariès, e no contexto cultural brasileiro em Gilberto Freyre, e ainda,
analisa-se o rito precoce de passagem de menino a “homem” de Tiãozinho e Miguilim
personagens de Guimarães Rosa –, tendo por base os pressupostos teóricos de Mircea Eliade.
Finalmente, respaldando-se nas teorias de leitura/recepção do primeiro capítulo, nas
concepções sociológicas sobre o tema infância do segundo capítulo, bem como na técnica
narrativa do cinema de David Wark Griffith, analisa-se como os temas abordados por
Guimarães Rosa em Campo Geral, são retomados pela perspectiva da linguagem
cinematográfica por Sandra Kogut, no filme Mutum, ou seja, no último capítulo deste estudo,
analisa-se como é captada a configuração da infância no referido filme. Em síntese, objetiva-
se analisar a temática infância no conto Conversa de bois e na novela Campo Geral/Miguilim
a partir da perspectiva da teoria da recepção, da perspectiva sociológica do conceito de
infância, bem como a forma como esta temática é retomada pela cineasta Sandra Kogut no
filme Mutum.
Palavras-chave: Infância. Leitura Literária. Literatura e Cinema.
8
ABSTRACT
SIRINO, Salete Paulina Machado. From boys to men: possible lectures from the childhood
inside Conversa de Bois, Campo Geral and Mutum. 2010. 185 f.
Dissertation (Master's degree in Letras) Post Graduation Program in Letras, Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, 2010.
Orientalist: Professor Dr. Rita Felix Fortes.
Defense: 08/03/2010.
This research of analytic and bibliographic character is focused on the childhood subjects and
intends to point out some possible readings of Conversa de bois, a tale that integrates the
book Sagarana, and Campo geral/Miguilim, part of Corpo de baile, by João Guimarães Rosa,
as well as the cinematographic transposition of Campo Geral to the movie Mutum (2007), by
Sandra Kogut. Therefore, this dissetation attempts to the premiss of literary reading,
articulated to the theories of reception of literary texts by Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser,
Vincent Jouve, Umberto Eco and Mikhail Bakhtin, to the analytic-interpretative reading of
these texts by Guimarães Rosa. And still, the research studies the sociological concept of
childhood from the European tradition, based on the authors Elizabeth Badinter and Philippe
Ariès, and on the Brazilian cultural context with Gilberto Freyre, and yet analyses Tiãozinho
and Miguilim's – characters created by Guimarães Rosa – precocious passageway from boy to
men, based on the theoretic purposes of Mircea Eliade. Finally, supported by the first
chapter's theories of reception/reading, and the sociological conceptions about the childhood
subject of the second chapter, as well as David Wark Griffith's cinema narrative technique, the
subjects approached by Guimarães Rosa in Campo Geral are analyzed, and retaken by the
cinematographic language perspective by Sandra Kogut, on the movie Mutum, in resume, on
the last chapter of this research, it is analyzed how the childhood configuration is captured by
this movie. In synthesis, it intends to analyze the childhood subject inside the tale Conversa
de bois and Campo Geral/Miguilim, from the perspective of Theory of Reception, the
sociological perspective of childhood concept, as well as the way that this subject is retaken
by the movie maker Sandra Kogut on the movie Mutum.
Key-words: Childhood. Literary Reading. Literature and Cinema.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................
CAPÍTULO I – LEITURA LITERÁRIA ..........................................................................
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................
1.2 CONVERSA DE BOIS E CAMPO GERAL: POSSIBILIDADES DE RECEPÇÃO
RESPALDADAS EM JAUSS E ISER ........................................................................
1.3 LENDO TIÃOZINHO E MIGUILIM À LUZ DAS TEORIAS DE LEITOR DE
JOUVE E ECO ...........................................................................................................
1.4 UMA LEITURA BAKHTINIANA DA INFÂNCIA EM CAMPO GERAL E EM
CONVERSA DE BOIS .................................................................................................
CAPÍTULO II – INFÂNCIA: UM CONSTRUCTO SOCIAL..........................................
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................
2.2 ELIZABETH BADINTER: A ORIGEM DO CONCEITO INFÂNCIA ....................
2.3 TIÃOZINHO E MIGUILIM: A CONDIÇÃO DA CRIANÇA NO SISTEMA
PATRIARCAL .............................................................................................................
2.4 A DOLOROSA PASSAGEM DE MENINO A “HOMEM” .......................................
CAPÍTULO III - LITERATURA E CINEMA: A TRANSPOSIÇÃO FÍLMICA DE
CAMPO GERAL, DE GUIMARÃES ROSA, EM MUTUM, DE SANDRA KOGUT .....
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................
3.2 CAMPO GERAL VERSUS MUTUM: ALGUMAS LEITURAS ................................
3.2.1 Na novela: o leitor chega ao Mutum ...........................................................................
3.2.2 No filme: o espectador chega ao Mutum ....................................................................
3.2.3 Na novela: Miguilim dá a boa notícia à mãe – o Mutum é um lugar bonito ...............
3.2.4 No filme: Miguilim dá a boa notícia à mãe – o Mutum é um lugar bonito .................
3.2.5 Na novela: a surra que Bero dá em Miguilim .............................................................
3.2.6 No filme: a surra que Bero dá em Miguilim ...............................................................
3.2.7 Na novela: a chuva ......................................................................................................
3.2.8 No filme: a chuva ........................................................................................................
3.2.9 Na novela: Miguilim vai embora do Mutum ..............................................................
3.2.10 No filme: Miguilim vai embora do Mutum ................................................................
3.3 LENDO MUTUM, DE SANDRA KOGUT ................................................................
CONCLUSÃO .......................................................................................................................
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................
ANEXO A: GLOSSÁRIO DE TERMOS CINEMATOGRÁFICOS .....................................
ANEXO B: FILMES NACIONAIS INSPIRADOS NA LITERATURA BRASILEIRA.......
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182
10
INTRODUÇÃO
Este estudo tem por objetivo tendo a infância como tema apontar para algumas
possibilidades de análise do conto Conversa de bois, que integra o livro Sagarana, e da
novela Campo geral, que integra a obra Corpo de baile, de João Guimarães Rosa, bem como
da transposição fílmica de Campo Geral para o filme Mutum (2007), de Sandra Kogut.
Considerando que o texto literário é construído pela palavra e, ainda, a visão
bakhtiniana de que o homem é construído socialmente, sendo essa construção resultado da
relação intersubjetiva entre os sujeitos sociais a qual ocorre especificamente por meio da
linguagem –, objetiva-se analisar os referidos textos rosianos, que a literatura, por meio da
leitura de seu texto e contexto, é um elemento relevante para a compreensão do homem e da
sua interação com o mundo, mas também uma forma de compreender, no sentido aristotélico,
a arte como “a imitação da vida interior dos homens, suas paixões, seu caráter, seu
comportamento etc.” (HOUAISS, 2001, p. 1924).
No decorrer do século XX, a crítica literária, em relação à interpretação dos textos,
evoluiu de teorias que primam pela compreensão do texto a partir das intenções do autor,
passando pelos que privilegiam a análise do texto pelo próprio texto, chegando a teorias da
recepção. Como afirma Eagleton (2001, p. 102): “De forma muito sumária, poderíamos
periodizar a história moderna da teoria literária em três fases: uma preocupação com o autor
(romantismo do séc. XIX), uma preocupação exclusiva com o texto (Nova Crítica) e uma
acentuada transferência da atenção para o leitor nos últimos anos.” Na tríade autor-texto-
leitor, o leitor foi o menos privilegiado, fato que o próprio autor considera estranho, tendo em
vista que sem o leitor não haveria textos literários.
Partindo desta tríade, estabelece-se, a priori, que na presente dissertação não se seguiu
uma estrutura convencional recorrente nos estudos desta natureza, mas que se organizou o
11
presente estudo da seguinte forma: o primeiro capítulo se atém à Teoria da Recepção e
respalda-se nos estudos da Estética da Recepção, tendo por base os alemães Hans Robert
Jauss e Wolfgang Iser, nos estudos do Linguista francês Vincent Jouve, do Romancista e
Semiótico italiano, Umberto Eco e do Pós-estruturalista russo, Mikhail Bakhtin. Salienta-se
que a motivação de unir diferentes teóricos sobre leitura literária Teoria da Recepção em
um mesmo estudo deve-se ao fato de eles considerarem relevante, na tríade autor-texto-leitor,
o ato receptivo e, consequentemente, a figura do leitor.
Dessa forma, o primeiro capítulo se aterá à práxis da leitura literária, por meio da
articulação entre teorias de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, Vincent Jouve, Umberto Eco e
Mikhail Bakhtin e análise dos textos rosianos, Conversa de Bois e Campo Geral. O segundo
capítulo abordará a leitura sociológica da infância, baseada nos estudos de Elizabeth Badinter,
Gilberto Freyre e Philippe Ariès. Para concluir, o terceiro capítulo apontará como as teorias do
primeiro e do segundo capítulo se fazem presentes no filme. Entretanto, vale destacar que,
como a linguagem cinematográfica se respalda em outros códigos de linguagem, neste último
capítulo foram abordadas, ainda, as especificidades do discurso fílmico, respaldando-se na
narrativa técnica do cinema do cineasta e teórico de cinema David Wark Griffith
1
.
Com relação ao primeiro capítulo, há, aqui, a necessidade de fazer uma distinção,
entre Teoria da Recepção e a Estética
2
da Recepção: esta pode ser considerada sinônimo
daquela, contudo, é uma vertente vinculada à Escola de Constança, da Alemanha, surgida no
1
As análises fílmicas do filme Mutum, no capítulo III, a partir da narrativa técnica do cinema de
David Wark Griffith, baseiam-se nos pressupostos teóricos de Ismail Xavier e Jean-Claude
Bernadet, conforme bibliografia anexa, bem como nos pressupostos teóricos resultantes de um
curso de especialização em Cinema e Vídeo, na FAP Faculdade de Artes do Paraná, como
também, de conhecimentos advindos de minha experiência profissional em direção
cinematográfica.
2
Hans Robert Jauss retoma os conceitos aristotélicos sobre estética recepção. Para Aristóteles a
função estética da obra de arte era de ordem moral, que tinha como finalidade o efeito catártico
no espectador, cuja catarse deveria apaziguar e aprimorar seu coração. Contudo, Jauss pretende
avançar em relação a esse aspecto, já que não o efeito catártico, apenas, como algo determinado
e afirma que é necessário estudar o que realmente acontece com esse espectador no momento da
recepção de obras artísticas.
12
final da década de 60, do século passado, tendo entre seus principais fundadores Hans Robert
Jauss e Wolfgang Iser. Entretanto, embora seus estudos sejam relevantes para a compreensão
do sentido e do efeito que o texto provoca no leitor no ato da recepção, existem outras
vertentes voltadas ao estudo da leitura/recepção de textos literários.
Assim, dentro da Teoria da Recepção vários críticos, dentre os quais Roland
Barthes, que postula: “podemos contrastá-lo rapidamente com outro teórico da recepção, o
crítico francês Rolando Barthes.” (EAGLETON, 2001, p.113); Jean-Paul Sartre “um estudo
histórico mais detalhado da recepção literária é Qu'est-ce que la littérature? Escrita por Jean-
Paul Sartre, em 1948.” (EAGLETON, 2001, p.113); Stanley Fish – “Nem todos os teóricos da
recepção consideram isso um problema. [...] Para Fish, a leitura não é a descoberta do que
significa o texto, mas um processo de sentir aquilo que ele nos faz.” (EAGLETON, 2001, p.
117).
Considerando o número expressivo de teorias de leitura literária que normatizam a
crítica literária, especificamente, a análise do ato receptivo do texto literário, no primeiro
capítulo optou-se pela: Estética da Recepção de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser; Teoria de
Leitura e de Narratário de Vincent Jouve; Teoria de Leitor-Modelo e Leitor-Empírico de
Umberto Eco. Nesse contexto da estética como sinônimo de recepção, optou-se, também, pela
Teoria da Linguagem e da Dialogicidade de Mikhail Bakhtin, cujos postulados continuam
relevantes e atuais para que se compreenda a dialogicidade implícita à relação autor-texto-
leitor, tendo em vista que tal autor afirma que, através da relação intersubjetiva entre “eu” e o
“outro”, e esse “outro”, também pode ser o “outro” presente no texto literário, é que se forma
a consciência do homem.
Portanto, o capítulo I Leitura Literária se ateve à práxis da leitura literária,
articulada às concepções sobre a recepção de textos literários de Hans Robert Jauss (1979),
13
Wolfgang Iser (1996), Vincent Jouve (2002), Umberto Eco (2002) e Mikhail Bakhtin (1997),
à leitura analítica-interpretativa do conto Conversa de Bois e da novela Campo Geral, de
Guimarães Rosa.
Para Jauss, no livro A história da literatura como provocação à teoria literária (1979),
o ato de ler requer um processo lento e gradativo, essa noção está expressa em suas reflexões
sobre a Teoria da Recepção, na qual o autor afirma que a experiência estética é uma
reconstrução feita pelo leitor das ideias do autor da obra. Segundo a teoria do efeito estético,
de Iser, presente no livro O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético (1996), no processo
da leitura, o potencial de sentido nunca pode ser plenamente elucidado e é dessa
impossibilidade que advém a necessidade da análise do sentido. No livro A Leitura (2002),
Jouve conceitua a leitura a partir dos processos neurofisiológico, cognitivo, afetivo,
argumentativo e simbólico. Em Seis passeios pelos bosques da ficção (2002) Umberto Eco
constrói o leitor-modelo o qual, assim como o leitor implícito de Iser, é uma construção
textual o leitor idealizado pelo autor. Contudo, para Eco esse leitor pode ser um caminho
para o conhecimento do leitor-empírico.
É notória na linguagem romanesca de João Guimarães Rosa a inserção de aspectos
regionais e universais na construção de suas obras. Sendo, portanto, evidente que esse autor,
entre as décadas de 1930 a 1950, tinha consciência de que a linguagem seria um elemento
fundamental para captar o arcaico contexto social ao qual ele se reportou em sua obra como
um todo. Tal construção torna possível a percepção de que a subjetividade de suas
personagens é construída através da linguagem. É nesse sentido que se pretende aproximar os
textos rosianos da teoria de linguagem de Mikhail Bakhtin, para quem a compreensão do
signo linguístico considera o contexto social no qual os sujeitos falantes estão inseridos.
Dessa forma, promove-se o estudo sobre a concepção de Mikhail Bakhtin a respeito da
14
língua e da interação social na construção da linguagem romanesca, por meio de análises dos
textos de Guimarães Rosa, Campo Geral e Conversa de Bois, utilizando-se como
fundamentação teórica, especialmente, o livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (1997), de
Mikhail Bakhtin (Volochinov), no qual o autor expõe a sua teoria da linguagem e do
dialogismo diálogo entre o "eu" e o "outro". É esse caráter interativo da linguagem a
relação intersubjetiva entre os sujeitos sociais que permeia a concepção de linguagem desse
autor e que possibilita a análise proposta, tendo em vista que a linguagem na obra de
Guimarães Rosa também remete a essa interação.
Objetivando articular teoria e prática de leitura literária, analisam-se as obras
Conversa de Bois e Campo Geral, tendo em vista que nesses textos Guimarães Rosa envolve
o leitor de forma cognitiva, afetiva e simbólica, pois organiza suas narrativas relacionando
texto e contexto romance e realidade social de tal forma que a interpretação dessas
narrativas recorre à dimensão simbólica da leitura e agem nos modelos do imaginário
coletivo.
Em Conversa de Bois, a personagem protagonista Tiãozinho, descrito como “um
pedaço de gente” (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 327), revela-se, no final do conto, detentor
de uma coragem surpreendente. Nesse conto, analisar-se-á a construção da subjetividade de
Tiãozinho, seu amor e compaixão pelo pai e seu ódio e desejo de vingança em relação ao
patrão – amante de sua mãe.
na novela Campo Geral pretende-se observar a construção da subjetividade de
Miguilim, a qual resulta da interação com seu espaço social – o Mutum. Assim, analisar-se-á a
influência do regional e universal que o Mutum exerce sobre a formação da identidade de
Miguilim, tendo em vista que Guimarães Rosa constrói o espaço como um elemento
configurador da identidade de suas personagens.
15
No Capítulo II, intitulado Infância: um constructo social, a pesquisa se ateve ao estudo
do conceito sociológico de infância advindo da tradição europeia, respaldada nos autores
Elizabeth Badinter e Philippe Ariès. Tais conceitos se entranharam à cultura brasileira e foi
renitente e tardia a modernização, conforme analisa Gilberto Freyre, cujo autor aborda com
muita propriedade a condição da criança brasileira ao longo do período colonial e imperial.
Condição esta que, nas regiões mais isoladas como é o caso do planalto central brasileiro
perdurou quase imutável até as primeiras décadas do século XX. Ainda no capítulo II, para
estudar essa visão arcaica em relação à infância abordada ficcionalmente por Guimarães Rosa
e discutida sociologicamente por Gilberto Freyre, analisa-se o rito precoce de passagem de
menino a homem de Tiãozinho e Miguilim, tendo por base o livro O sagrado e o profano, de
Mircea Eliade.
No segundo capítulo, objetivou-se discutir teoricamente sobre o conceito sociológico
de infância, bem como sobre o sistema patriarcal. Para tal, esse estudo se atém, especialmente,
às obras: Um amor conquistado: o mito do amor materno (1990), de Elizabeth Badinter,
Sobrados e Mucambos (1985), de Gilberto Freyre, História Social da Criança e da Família
(1981), de Philippe Ariès.
A perspectiva de Badinter (1985) é fundamental no presente estudo porque a autora
fez uma vasta pesquisa sobre a origem do conceito infância e sobre a condição da criança da
antiguidade clássica à contemporaneidade, dando especial destaque à condição da criança no
sistema patriarcal. Considerando que traços desse sistema, apesar de decadente, ainda
imperavam no contexto social no momento de produção dos referidos textos rosianos, os
estudos de Freyre (1985), são relevantes, pois especificam a relação entre pai e filho na
Sociedade Patriarcal.
Assim, olhar a infância em Campo Geral e em Conversa de Bois requer certo
16
conhecimento sobre o contexto sócio-histórico e cultural no qual as personagens Miguilim e
Tiãozinho estariam inseridas ficcionalmente. É relevante, ainda, destacar as distinções entre
aquela concepção de infância e a que atualmente está em vigor. Na atualidade, os pais vivem
em função dos filhos e há, inclusive, um código legal que garante uma série de direitos e
proteções à criança e ao adolescente.
Nesse aspecto, se estabeleceu uma correlação entre a infância representada nos
mundos ficcionais em Conversa de Bois e Campo Geral com o conceito de infância
resgatado por Ariès, visando destacar que a passagem precoce de menino a “homem” de
Tiãozinho e Miguilim pautou-se no valor simbólico do rito de passagem, analisado por Mircea
Eliade. Tanto no conto quanto na novela uma estreita relação entre a viagem e essa
passagem. No caso de Tiãozinho, esta parece usual, já que seu trabalho cotidiano é candiar os
bois do carreiro Soronho. Mas a viagem em torno da qual se organiza o conto não é
corriqueira, que, junto com a carga do carro, vai o corpo de seu pai para ser enterrado na
vila. É neste episódio que está a força motriz do seu rito de passagem. o rito de passagem
na novela Miguilim se dá no lapso de tempo de mais ou menos um ano entre a viagem que ele
fizera para ser crismado e sua partida definitiva da casa da família.
No Capítulo III, respaldando-se nas teorias de leitura/recepção do primeiro capítulo,
nas concepções sociológicas sobre o tema infância do segundo capítulo, bem como em alguns
textos teóricos sobre a construção do discurso cinematográfico, analisou-se como os temas
abordados por Guimarães Rosa, pontuados no primeiro e no segundo capítulo da presente
dissertação, são retomados pela perspectiva da linguagem cinematográfica por Sandra Kogut,
no filme Mutum (2007). Portanto, no último capítulo deste estudo, pretende-se analisar como
é captada a configuração da infância no referido filme.
Salienta-se que tal capítulo visa a uma leitura da forma e conteúdo fílmicos,
17
especificamente de como a referida diretora construiu os enquadramentos
3
das personagens e
cenários, fotografia, angulação e movimentação de câmera, espaço, campo e fora de campo e
efeito sonoro. Tal leitura foi feita a partir da decupagem clássica do cinema de David Wark
Griffith, utilizada décadas, tanto pelo cinema-arte quanto pelo cinema-entretenimento.
Dessa forma, objetiva-se, uma leitura da temática infância representada pela construção do
discurso fílmico a análise sociológica sobre infância no contexto patriarcal respalda-se em
Badinter, Ariès e Freyre, e a análise da forma fílmica fundamenta-se na técnica narrativa do
cinema de Griffith.
O estadunidense David Wark Griffith, assim como o russo Eisenstein, inovou a
linguagem cinematográfica, diferenciando-a dos padrões estáticos emprestados do teatro,
dando versatilidade à linguagem cinematográfica pelo movimento da câmera, flashback, das
ações paralelas, grandes planos e tomadas em primeiro plano, sendo um dos criadores da
decupagem clássica do cinema.
Partindo da premissa de Mikhail Bakhtin de que um texto que fala com outro texto é
uma encenação de vozes, e que cabe ao estudioso identificar essas vozes, esta pesquisa
objetivou, especialmente, a práxis da leitura literária. Considerando-se a multiplicidade de
vozes dos textos de Guimarães Rosa, pretendeu-se articular teorias da recepção de textos
literários de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, Vincent Jouve, Umberto Eco e Mikhail
Bakhtin – à análise da temática infância presente em Conversa de Bois e Campo Geral, tendo
como suporte sociológico para a leitura desta temática os estudos de Elizabeth Badinter,
Philippe Ariès e Gilberto Freyre. Para concluir este estudo, promove-se uma leitura
comparativa entre o texto literário Campo Geral e o texto fílmico Mutum, por meio da análise
da representação da infância e da relação autor-texto-leitor na construção dos referidos
3
A função dos enquadramentos: CPG - Grande Plano Geral; PG - Plano Geral; PM - Plano Médio;
PA - Plano Americano; PP - Primeiro Plano; PPP - Primeiríssimo Plano; PD - Plano Detalhe.
18
discursos literário e fílmico.
Em síntese, objetivou-se na presente dissertação discutir a temática infância no conto
Conversa de bois e na novela Campo Geral/Miguilim a partir da perspectiva da teoria da
recepção, da perspectiva sociológica do conceito de infância, bem como a forma como esta
temática é retomada pela cineasta Sandra Kogut, no filme Mutum.
19
I. LEITURA LITERÁRIA
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Qual é a relevância para um educador ou para um estudante da área de Letras da
reflexão sobre a articulação entre teoria e prática de leitura literária
4
? Pode-se chegar à
resposta de que essa questão está amplamente discutida através das pesquisas realizadas e
pela prática acadêmica, como também concluir que assim como outras questões voltadas ao
estudo da Literatura, seja no campo da história, da teoria ou da crítica a práxis da leitura
literária é uma inesgotável fonte de pesquisa. Partindo dessa premissa, este estudo tem como
fator norteador o exercício de leitura. Tem-se, portanto, como objeto de análise o conto
Conversa de Bois e a novela Campo Geral/Miguilim, de João Guimarães Rosa, e a
transposição fílmica de Campo Geral para o filme Mutum, de Sandra Kogut.
Salienta-se que, em se tratando da realização de uma práxis de leitura literária teoria
e prática –, é preciso ressaltar que as teorias sustentam a análise das obras e vice-versa, que
ambas são partes integrantes deste estudo. Assim, neste capítulo, aplicam-se as teorias de
Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, Vincent Jouve e Mikhail Bakhtin à atividade analítica-
interpretativa de Conversa de Bois e Campo Geral. Respaldando-se, ainda, nos referidos
teóricos, no terceiro capítulo, demonstra-se a análise fílmica do Mutum. Salienta-se, contudo,
que tal articulação teoria e prática de leitura literária também ocorre no segundo capítulo,
neste sob uma perspectiva diferente, a da análise da temática infância, que se por meio do
4
Em relação à práxis da leitura literária, conforme o argumento de Terry Eagleton abordado na
introdução desta pesquisa, a Teoria da Recepção comporta concepções sobre o receptor a partir dos
pressupostos de vários teóricos, dentre os quais também destaca-se: Gérard Genette que no livro
Discurso da Narrativa (1972), distingue dois tipos de narratário: o intradiegético e o
extradiegético. Contudo, embora considerando a relevância de todos que voltaram seus estudos
para o ato receptivo, como toda pesquisa parte de um recorte teórico, nesta opta-se pelos estudos de
Hans Robert Jauss, Wolgang Iser, Vincent Jouve, Umberto Eco e Mikhail Bakhtin.
20
estudo da construção teórica – à luz da sociologiada infância e desta no contexto patriarcal,
cujo estudo é fundamental para a compreensão da infância e do sistema patriarcal
mimetizados nos referidos textos rosianos.
Ou seja, embora teoricamente o primeiro capítulo pareça desvinculado do segundo,
que aquele, no contexto da crítica literária, pretenda análises voltadas à questão da
interpretação/ato receptivo e este objetive o estudo do conceito sociológico de infância,
salienta-se que a práxis da leitura permeia todos os capítulos desta pesquisa, quer seja pela
reflexão sobre teoria e prática de leitura literária e fílmica capítulos I e III –, quer seja pela
leitura sociológica da temática infância e respectiva análise dessa temática presente nos textos
de Guimarães Rosa.
Considerando que a Literatura é construída essencialmente pela palavra
5
e que o texto
e o contexto presentes nela são apropriados e atualizados pelo leitor, neste capítulo objetiva-se
refletir sobre teoria e prática de leitura literária a partir dos teóricos Hans Robert Jauss (1979),
Wolfgang Iser (1996), Vincent Jouve (2002), Umberto Eco (2002) e Mikhail Bakhtin (1997).
Partindo dessas perspectivas teóricas, pretende-se discutir a questão analítica interpretativa em
Conversa de bois e Campo geral.
Quais aspectos propiciam que se proponha uma reflexão sobre a práxis da leitura
literária envolvendo, em um mesmo estudo, teorias de Jauss, Iser, Jouve, Eco e Bakhtin? Tal
motivação decorre do fato de esses estudiosos propiciarem subsídios teóricos acerca do leitor
literário. Salienta-se, contudo, que entre os mesmos não apenas convergências, mas
também divergências em relação à construção desse leitor. Entretanto, no ato interpretativo,
todos valorizam os três membros da tríade autor-texto-leitor, diferentemente da vertente
5
A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua
função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não
tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (BAKHTIN,
1997, p. 36).
21
interacionista que prima pelo autor, e da hermenêutica que vincula à interpretação do texto ao
próprio texto.
Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser no final da década de 1960, na Escola de
Constança promovem a revisão sobre a tríade autor-texto-leitor e constatam que, no
contexto da história, da teoria e da crítica literária, ora a interpretação de um texto era
diretamente relacionada ao conhecimento de seu autor, ora à compreensão do texto. Não se
considerava o leitor – não era relevante perceber o que acontecia com o leitor no momento da
recepção de textos literários. Daí o surgimento da Estética da Recepção a qual prima pelo
efeito de sentidos que uma obra provoca em seu receptor.
A Estética da Recepção será difundida no Brasil, especialmente, por Luiz Costa Lima,
autor do livro A Literatura e o Leitor: textos de Estética da Recepção (1979) e por Maria da
Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar, autoras do livro Literatura: a formação do leitor
(1993). Nesse livro, as autoras, dentre outros métodos, constroem o Método Recepcional, o
qual comporta cinco etapas: determinação do horizonte de expectativas, atendimento do
horizonte de expectativas, ruptura do horizonte de expectativas, questionamento do horizonte
de expectativas e ampliação do horizonte de expectativas.
Jauss se dedica, em especial, ao estudo da recepção que ocorre por meio do diálogo
entre o contexto do leitor e o contexto do autor ou da obra em si, enquanto que Iser constrói
uma teoria do efeito estético e sua consequente teorização do leitor implícito o qual é uma
estrutura textual, estando, portanto, presente no momento da criação da obra.
Num primeiro momento, a figura desse leitor implícito parece um tanto determinista,
pois, embora se enfatize a existência da liberdade de interpretação e se evidencie que a
compreensão de cada leitor dependerá das inferências culturais que são acionadas no
momento da leitura, partir do pressuposto que o leitor é uma estrutura textual consiste em
22
admitir uma concepção de interpretação que é prevista pelo próprio texto.
Jouve constrói a teoria de leitor real tomando como base diferentes abordagens do leitor, as
quais evidenciam a existência de uma barreira entre o “o mundo do texto” e “o mundo fora do texto”.
O autor clarifica a existência de um leitor intra-diegético leitor dentro do texto –, como diria Iser,
estruturado pelo texto, e de um leitor extra-diegético leitor fora do texto. Para ele, assim como para
Jauss e Iser, é relevante estudar o que acontece com o leitor no momento da recepção dos textos, mas
Jouve avança no sentido de que constrói uma relação entre o leitor abstrato estruturado pelo texto –,
e o leitor real por meio da necessária releitura –, aquele que pode antecipar o conteúdo narrativo,
formular hipóteses e previsões, tornando o entendimento possível, mas também, aquele que pode
questionar novamente suas previsões e redescobrir a si próprio por meio da leitura.
Enquanto Iser teoriza sobre o leitor implícito, Jouve sobre o leitor real, Eco apresenta
o leitor-modelo, o qual é construído pela sua própria experiência de leitura, em especial, do
romance Sylvie, de Gérard de Nerval. Essa experiência, segundo Eco, abordada no livro Seis
passeios pelos boques da ficção (2002), é adquirida através de décadas de leitura, inclusive
como resultado de programas de pós-graduação voltados ao estudo do referido romance.
Assim, Eco faz um diálogo entre autor-empírico autor real –, autor-modelo narrador –,
leitor-modelo – idealizado – e leitor-empírico – leitor real.
Ou seja, o leitor-modelo de primeiro nível de Eco, parece ser o mesmo de Iser,
que é previsto no ato da criação da obra. o leitor-modelo de segundo nível aquele que
volta ao texto inúmeras vezes, que busca preencher os vazios do mesmo por meio do estudo e
da compreensão das pistas do autor e/ou do texto –, é o leitor-empírico. Assim, percebe-se
uma similaridade entre o leitor real de Jouve e o leitor-empírico de Eco,que ambos têm em
sua constituição a necessidade da releitura que visa à compreensão do texto e do contexto
presentes na obra literária fato que também pode ser visualizado na concepção de leitura de
Jauss.
23
Mikhail Bakhtin (1988) afirma que o dialogismo ocorre, inclusive, em textos literários.
Em relação à metodologia de análise literária, ele levanta a questão da forma estrutura
textual como uma excessiva preocupação teórica em definir a obra de arte a partir de um
formalismo extremo, ao qual o autor chamou de supervalorização do aspecto material. Para
ele, a estética material forma –, com a visão da literatura como algo puramente "estético", a
partir de sua estrutura formal, não conta de explicar a complexidade do trabalho artístico
conteúdo. Bakhtin salienta que a obra de arte como algo materiale parte de sua constituição
e de sua relação estética com o espectador passa, necessariamente, pela materialidade – não se
restringe à obra em si, que seus aspectos cognitivos, emotivos, históricos, ideológicos,
extrapolam sua materialidade em si.
Há uma congruência entre as teorias de Jauss, Iser, Jouve, Eco e Bakhtin no sentido de
que nem toda leitura interpretação é válida. Embora cada leitor, dependendo de suas
inferências culturais, reaja de forma distinta frente a um mesmo texto, a interpretação partirá
do que é dado por esse texto e da capacidade dialógica desse leitor com as vozes presentes no
texto.
Diante dessas perspectivas, como ler a temática infância presente em Conversa de
Bois e Campo Geral? Essas obras foram publicadas respectivamente em 1946 e 1956, sendo
de conhecimento público que Guimarães Rosa extraía do meio social o conteúdo presente em
seus textos. O leitor, de posse dessa informação, ao ler tais obras poderia indagar: é possível
perceber a infância de Tiãozinho e a de Miguilim com seus ritos de passagem de criança a
“homem” sem o exercício da releitura e sem buscar a compreensão dos conceitos acerca da
infância e do sistema socioeconômico/político vigentes à época das referidas criações
literárias?
A conclusão a que se chega é a de não ser possível compreender essas obras sem o
24
exercício da releitura e sem as devidas leituras paralelas relacionadas à sociologia. Isso se
porque o conceito de infância que se tem na atualidade a criança como centro da família, a
legislação dos direitos e deveres presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente –, é
dissonante do conceito vigente no momento histórico que serve de base para a criação das
referidas obras de Guimarães Rosa. Sem essa práxis não deixaríamos de ser o leitor implícito
– uma estrutura textual –, contudo será que haveria o preenchimento das lacunas do texto ou o
entendimento de como a criança era vista e tratada naquele contexto? Ou, será que haveria o
diálogo entre a realidade vivenciada pelo leitor e a representada pelo autor?
Assim, atuando como um leitor-empírico de Eco o leitor-modelo de segundo nível
é que se busca, no segundo capítulo, as bases sociológicas sobre a temática da infância e do
patriarcalismo, cujas teorias são imprescindíveis, inclusive, para a leitura comparativa da
infância e sua travessia representada em Conversa de Bois e em Campo Geral e de sua
transposição fílmica, Mutum.
1.2 CONVERSA DE BOIS E CAMPO GERAL: POSSIBILIDADES DE RECEPÇÃO
RESPALDADAS EM JAUSS E ISER
Como a experiência estética ainda não tem uma história canonizada e, por
isso, não dispõe do acervo correspondente de fontes impõe-se, e não é
algumas vezes necessária, uma aproximação maior, como a aqui iniciada,
com as disciplinas vizinhas, para que se aceitem ou retifiquem seus
diagnósticos e interpretações. [...] Esforcei-me, por conseguinte, em tornar
identificável o que anexei, onde, por falta de competência própria, acreditei
estar autorizado a me apoiar nas pesquisas de outros. Se, nesse ponto, sempre
me referi e citei os resultados doutros pesquisadores, sem considerar
suficientemente seus objetivos próprios, devo-lhes pedir uma desculpa geral
por terem sido, querendo ou não, deste modo “ocupados”. (JAUSS, 1979, p.
52).
A Estética da Recepção – surgida no final da década de 1960 – envolve a recepção e o
efeito. Segundo Jauss (1979), para se chegar às atuais teorias em relação ao leitor, houve um
25
caminho precedente, pautado no estudo das relações entre o autor e a obra. No início do
século XIX, a estética concentrava-se em apresentar a arte e sua história compreendidas,
também, como a história de seus autores. Ou seja, dava-se grande ênfase ao processo
produtivo e raramente ao lado receptivo das obras.
O ato de ler requer um processo lento e gradativo. Essa necessidade está expressa nas
reflexões de Hans Robert Jauss (1979) sobre a estética da recepção, onde se postulava que a
experiência estética é uma reconstrução elaborada pelo leitor, a partir das ideias do autor da
obra, sendo, portanto, vinculada às experiências prévias desse leitor. A partir do século XIX,
passaram-se a ressaltar alguns pontos da experiência receptiva. O historicismo literário, por
exemplo, era dividido em estética, servindo como uma mera apresentação da arte e história
da arte – que se ocupava basicamente da história dos autores:
A estética da recepção tem uma primeira vertente, ligada à fenomenologia,
interessada no leitor individual, e representada por Iser, mas também uma
segunda vertente, onde a tônica recai sobretudo na dimensão coletiva da
leitura. Seu fundador e porta-voz mais eminente foi Hans Robert Jauss, que
pretendia renovar, graças ao estudo da leitura, a história literária tradicional,
condenada por sua preocupação excessiva, senão exclusiva, com os autores.
(COMAPGNON, 2006, p. 156).
Segundo Compagnon, a Estética da Recepção se opunha à academia que, até então,
considerava o lado produtivo das obras, sem se ater ao seu processo receptivo, cuja produção
era medida por sua influência em outras obras. A questão da recepção era vista, apenas,
enquanto referência para outra produção literária, e não pelo prazer de uma leitura pessoal.
Compagnon, contudo, afirma que a mesma crítica dirigida a Iser pode também ser estendida a
Jauss, ou seja, também este a estética da recepção como conciliadora, equilibrada,
demasiado abrangente, que legitima velhos estudos sem modificá-los como o pretendido
inicialmente:
Foi a estética da recepção, na versão proposta por Jauss, que formulou o
26
projeto mais ambicioso de renovação da história literária reconciliada com o
formalismo. [...] Jauss começava por lembrar quem eram seus adversários:
de um lado, o essencialismo, erigindo em modelos intemporais as obras-
primas, de outro o positivismo, reduzindo-as a pequenas histórias genéticas.
A seguir ele descrevia, com uma benevolência severa, as abordagens
meritórias cuja incompatibilidade pretendia resolver: de um lado, o
marxismo, que faz do texto um puro produto histórico, animado por um
interesse judicioso pelo contexto, mas limitado por reconhecer à teoria do
reflexo; de outro, o formalismo, carente de dimensão histórica, preocupado,
num esforço louvável, com a dinâmica do procedimento, mas não levando
em conta o contexto. (COMPAGNON, 2006, p. 209-210).
Assim, a Estética da Recepção, visando renovar a história literária, propunha uma
união entre aspectos marxistas, que privilegia em seus estudos a análise do contexto, e
formalistas, que prima pela forma. Nesse sentido, pode-se aproximar a teoria de Hans Robert
Jauss à de Mikhail Bakhtin, para quem forma e conteúdo estão imbricados na compreensão de
determinada obra de arte/literária. Tal teoria também é abordada por Antonio Candido (1967),
ao afirmar que, na análise literária, deve-se considerar tanto o texto quanto o contexto, que
o texto está presente no contexto assim como o contexto – conteúdo – está presente no texto
forma.
Em 1993, Vincent Jouve publicou o livro A Leitura, o qual é resultado de um amplo
estudo interdisciplinar sobre a leitura, que considera os principais teóricos sobre o assunto,
dentre eles, Hans Robert Jauss:
A Escola de Constância é a primeira grande tentativa para renovar o estudo
dos textos a partir da leitura. Ao passo que, até então, o interesse era
essencialmente pela relação texto-autor, a “abordagem alemã” propõe
deslocar a análise para a relação texto-leitor. A Escola de Constância,
contudo, divide-se em dois ramos muito distintos: “a estética da recepção” de
Hans Robert Jauss e a teoria do “leitor implícito” de W. Iser. (JOUVE, 2002,
p. 14).
Segundo Jouve (2002), a estética da recepção tinha a intenção de repensar a história
literária, sendo que para Jauss tanto a obra literária quanto a obra de arte existem em
função do seu público. Assim, dentro da estética da recepção têm-se as interpretações,
27
segundo as quais, uma obra pode ser comparada com diferentes leitores, de diferentes tempos
históricos, analisando os efeitos dessa obra em períodos distintos:
A teoria do “leitor implícito” de Iser, por sua vez, data de 1976. Enquanto
Jauss se interessa pela dimensão histórica da recepção, Iser se volta para o
efeito do texto sobre o leitor particular. O princípio de Iser é que o leitor é o
pressuposto do texto. Portanto, trata-se de mostrar, por um lado, como uma
obra organiza e dirige a leitura, e, por outro, o modo como o individuo reage
no plano cognitivo aos percursos impostos pelo texto. (JOUVE, 2002, p. 14).
Jouve (2002) esclarece que Iser pressupõe que o leitor é uma construção textual,
sendo, portanto, relevante estudá-lo a partir de sua reação frente à leitura de determinado
texto; para Jauss (1979) o que interessa é verificar no leitor a influência do fator histórico no
momento da recepção – o chamado “horizonte de expectativa” –, conjunto de convenções que
constituem a competência de um leitor num determinado momento histórico.
Segundo Jauss, a estética da recepção comporta dois momentos: o da recepção e o do
efeito. O primeiro é condicionado pelo texto, pelo tempo histórico determinado pelas
ideologias da sociedade na qual ele está inserido. O segundo estaria condicionado pelo
próprio destinatário, de acordo com seu potencial de sentido:
O processo atual em que se concretizam o efeito e o significado do texto
para o leitor contemporâneo, e de outro reconstruir o processo histórico pelo
qual o texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de
tempos diversos. (JAUSS, 1979 p.46).
Jauss (1979) questiona o significado da experiência estética, como ela tem se
manifestado na história da arte e sua importância para a teoria contemporânea da arte. Para
ele, a práxis estética decisiva em toda arte manifestada como atividade produtora, receptiva
e comunicativa –, em grande parte, permanece não esclarecida, portanto precisa ser
recolocada. A poética de Aristóteles no que se refere à antiguidade – seria a grande exceção;
na atualidade, a exceção seria a Crítica da faculdade de julgar, de Kant. Contudo, nem da
28
catarse da doutrina aristotélica nem da explicação transcendental de Kant, surge uma teoria
capaz de formar uma tradição acerca da Experiência Estética:
A experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com
(Einstellung auf) seu efeito estético, i.e., na compreensão fruidora e na
fruição compreensiva. Uma interpretação que ignorasse esta experiência
estética primeira seria própria da presunção do filólogo que cultivasse o
engano de supor que o texto fora feito não para o leitor, mas sim,
especialmente, para ser interpretado. (JAUSS, 1979, p.45).
A experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com seu efeito
estético, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva. Para Jauss, a experiência
estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra, ou pela
reconstrução da intenção do seu autor, e sim pela interação das experiências compartilhadas
entre leitor e autor.
Comparar o efeito de uma obra de arte com o desenvolvimento histórico de sua
experiência e formar o juízo estético, com base nas duas instâncias de efeito e recepção, foi o
primeiro conceito de recepção elaborado por Jauss, em 1967. Ele retoma os conceitos
aristotélicos sobre a poiesis, aisthesis e katharsis e postula que o prazer estético seria a
liberação de e liberação para que ocorrem por meio da criação artística, da recepção e do
efeito catártico.
Assim, a poiesis a criação artística libera a consciência produtora do autor para a
criação do mundo em sua poética. Através da aisthesis a recepção –, pela recepção da
poiesis, a consciência do leitor é liberada para confirmar ou renovar a sua percepção de
realidade tanto interna ao texto lido quanto externa a ele. A katharsis efeito catártico
provocado no leitor – é a liberação da experiência subjetiva em intersubjetiva:
A determinação do prazer estético como prazer de si no outro pressupõe, por
conseguinte, a unidade primária do prazer cognoscente e da compreensão
prazerosa, restituindo o significado, originalmente próprio ao uso alemão, de
29
participação e apropriação. Na conduta estética, o sujeito sempre goza mais
do que si mesmo: experimenta-se na apropriação de uma experiência do
sentido do mundo, ao qual explora tanto por sua atividade produtora, quanto
pela integração da experiência alheia e que, ademais, é passível de ser
confirmado pela anuência de terceiros. (JAUSS, 1979, p. 77).
Jauss concebe o prazer estético como algo que é realizado por meio da oscilação entre
a contemplação desinteressada e a participação experimentadora. Assim, a Estética da
Recepção é, sobretudo, a experiência individual transformada na capacidade de ser o outro.
Essa experiência, portanto, se de forma diferenciada de indivíduo para indivíduo face à
recepção da mesma obra, que cada um traz no momento da leitura recepção –, as
inferências culturais que formam a sua subjetividade.
Na Estética da Recepção, de acordo com Jauss (1979), o prazer estético é o prazer de
si no outro, ou prazer cognoscente o saber que é construído na consciência do leitor por
meio da leitura e como compreensão prazerosa o prazer provocado pelo texto no leitor.
Tal emoção é percebida no conto rosiano: "Só Tiãozinho era quem ia triste. Puxando a
vanguarda, fungando o fio duplo que lhe escorria das narinas, e dando a direção e tenteando
os bois." (Conversa de Bois
6
, 2001, p. 329).
Assim, o prazer cognoscente a consciência promove no leitor o saber da situação
objetiva e subjetiva na qual a personagem está inserida: vai à frente do carro de bois, triste. A
compreensão prazerosa do receptor vem desse saber que cria em seu imaginário, ou seja,
conseguir visualizar um menino que, além de triste, pequeno e frágil, está, de certa maneira,
adoecido "fungando o fio duplo que lhe escorria das narinas.”
Os conceitos aristotélicos sobre poiesis, aisthesis e katharsis, retomados por Jauss
(1979), podem ser visualizados em Conversa de Bois:
Chora-não-chora, Tiãozinho retoma seu posto. 'O pai não é meu, não... O pai
é seu mesmo...' Decerto. Ele bem que sabe, não precisa dizer. É o seu pai
6
Todas as citações do conto Conversa de Bois, referem-se a: ROSA, João Guimarães.
30
quem está ali, morto, jogado para cima das rapaduras... Deixou de sofrer...
Cego e entrevado, já anos, no jirau. (C.B., p. 338).
A poiesis, a criação artística de Guimarães Rosa, mostra um mundo sertanejo no qual,
mais do que as agruras desse ambiente, vislumbra-se um mundo infantil vinculado ao sistema
patriarcal, onde o fato de a criança trabalhar era normal. Se comparado à atualidade, quando o
estatuto da criança e do adolescente proíbe o trabalho infantil, pode-se ter a aisthesis a
recepção desse fato, como algo inconcebível. Assim, a consciência do leitor é levada a essa
analogia reflexiva da realidade infantil colocada pelo texto e, automaticamente, pode
provocar nele o efeito catártico de sentimento de compaixão em relação a Tiãozinho, como
também, pode abri-lo para uma leitura de situações similares, vivenciadas por crianças tanto
no Brasil quanto em outras partes do mundo. Ou seja, a liberação da experiência subjetiva do
leitor torna-se intersubjetiva. Entretanto, o que mais se destaca é a comoção provocada pela
condição daquela frágil e triste criança, a servir de candeeiro para os bois de carro, ao mesmo
tempo em que é humilhada pelo patrão/padrasto.
A poiesis de Guimarães Rosa pode provocar a aisthesis (Jauss, 1979), como uma
recepção confirmadora ou renovadora da percepção do leitor em relação ao desfecho proposto
pelo autor. Já em relação à questão da aisthesis (Jauss, 1979), conforme o fragmento a seguir:
Mas, não foi meu querer... juro, meu Nosso Senhor!...' - Com jeito seu
Quirino! Credo, Nhô Alcides, tinha outro defunto aqui dentro!... Meu pai.
Não tem culpa. Tristeza. Frio. O sol foi-s'embora. Mas é preciso ajudar.
Estou bem, não tive nada. Negócio urgente de Nhô Alcides. Seu Quirino
carreia. A cavalo mesmo. Os bois querem caminhar. - 'Vamos, Buscapé!
Namorado, va-âmos!..." (C.B., p. 362).
A escrita concisa de Guimarães Rosa: "Meu pai. Não tem culpa", expressa o sentido
implícito de um diálogo no qual Tiãozinho que, momentos antes planejara vingar-se das
humilhações sofridas pelo pai assusta-se com a própria coragem de ter provocado o
31
solavanco que matou o carreiro e amante de sua mãe, perpetrando, no presente, a vingança
sonhada para o futuro. Os sinais de pontuação significam as palavras não ditas: "Tristeza." O
leitor pode entender que essa tristeza é a de Tiãozinho pela morte de seu pai, como pelo medo
que sente de ser culpado pelo acidente ou, ainda, a tristeza advinda da fatalidade de o carreiro
que conduzia o cadáver para o cemitério ter, também, se tornado um cadáver. "Frio. O sol foi-
s'embora. Mas é preciso ajudar.” Guimarães Rosa narra a conversa entre Tiãozinho, Nhô
Alcides e Seu Quirino, alguém diz que, embora o sol tenha se posto, é preciso ajudar a colocar
o carro-de-bois em condições de seguir viagem, situação que deve ser difícil pela carga de
rapadura, pelo corpo do pai de Tiãozinho e pelo corpo de seu Agenor Soronho, esmagado pelo
carro-de-bois. "Estou bem, não tive nada." Tiãozinho está falando para quem o socorreu
que está bem, que não sofreu nada com o “acidente”.
Da mesma forma que em Conversa de Bois, os conceitos aristotélicos sobre poiesis,
aisthesis e katharsis, retomados por Jauss (1979), também podem ser visualizados em Campo
Geral (2001), de Guimarães Rosa:
Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe
daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d'Água e de outras veredas sem
nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutum. No meio dos
Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, de
serra. (Campo Geral
7
, 2001, p.27).
Em Campo Geral pode-se constatar que o Mutum condiciona socialmente a família
de Miguilim. Mutum era o lugar que alguém havia descrito como bonito a Miguilim, com
contínuas chuvas, mas do qual Nhanina, mãe de Miguilim, não gostava, e não escondia a sua
tristeza por ali ter que viver. É esse espaço que será o revelador de um interior não
geográfico, como também humano subjetivo –, onde são desveladas as peculiaridades da
infância, com suas descobertas, muitos sofrimentos e temores, mas também alguma
7
Todas as citações da novela Campo Geral, referem-se a: ROSA, João Guimarães.
32
esperança, a despeito das incertezas futuras. É também no Mutum que Miguilim faz sua
precoce e traumática passagem de criança a adulto:
Mas sua mãe, que era linda e com cabelos pretos e compridos, se doía de
tristeza de ter de viver ali. Queixava-se, principalmente nos demorados
meses chuvosos, quando carregava o tempo, tudo tão sozinho, tão escuro, o
ar ali era mais escuro; ou, mesmo na estiagem, qualquer dia, de tardinha, na
hora do sol entrar - " Oe, ah, o triste recanto..." - ela exclamava. (C.G., p. 28).
A poiesis de Guimarães Rosa provoca a aisthesis (Jauss, 1979) de que o espaço
Mutum expressa um "estado de alma" que evidencia os sentimentos, por vezes dicotômicos
entre o bem e o mal, aos quais os seres humanos estão sujeitos. A partir da perspectiva do
olhar de uma criança, conhece-se o comportamento infantilizado e infiel da mãe de Miguilim.
É nesse espaço que acontece a travessia de Miguilim de criança a “adulto”. Travessia
compreendia pelas adversidades da vida, que fazem com que ele, apesar de criança, no lapso
de tempo de mais ou menos um ano entre o crisma, quando faz a primeira viagem, e a ida
embora do Mutum tenha um precoce amadurecimento. Miguilim tornou-se um “adulto”,
fato evidenciado por seu desejo de fazer tudo certo, por sua decisão de trabalhar na roça com
o pai sem reclamar e de “preferir” o trabalho às brincadeira de sua infância finda. O fim da
sua infância é confirmado quando atendendo o desejo de sua mãe, que lhe deseja um futuro
melhor no qual encontre a luz dos seus olhos – ele decide ir embora com o doutor.
em Campo Geral uma estreita relação entre o espaço físico e social e a forma de
ser das personagens. Esse lugar, em determinados momentos, representa o aconchego de um
ninho e em outros “o triste recanto” sentido pela mãe de Miguilim. "A mãe não lhe deu valor
nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; dizia: - Estou sempre pensando que lá por detrás
dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder
ver..." (C.G., p. 28-29). Quando Nhanina está infeliz, sentindo-se aprisionada ao espaço e,
consequentemente, ao casamento, Miguilim também acaba absorvendo os sentimentos de
33
infelicidade. Vê-se, então, que o espaço regional atua como revelador do universal o pensar,
o sentir, o agir humano.
Entre os principais aspectos da obra rosiana está o fato de que a língua é a principal
forma de expressão dos sentimentos humanos e é através dela que o sertão converte-se em
representação do mundo do universal. O que seria esse universal para Guimarães Rosa?
Este é, com certeza, os sentimentos e conflitos inerentes à condição humana. O efeito
catártico leva o receptor ao sentimento de que o espaço Mutum atua como o local que lhe
permite conhecer o homem, em especial, a infância de Miguilim e a de seus irmãos.
O receptor pode aceitar ou recriar essa poiesis de Guimarães Rosa de que o ambiente
familiar de Miguilim é composto tanto pelo aspecto geográfico quanto pelo sentimento de lar.
Um lar capaz de lhe dar aconchego e a sensação de pertencimento a um lugar. Durante curtos
lapsos de tempo, quando o pai e a mãe de Miguilim estão em harmonia, o Mutum revela-se
como um espaço de aconchego. Mas, na maior parte do tempo é um espaço ameaçador em
função dos conflitos entre Bero e Nhanina, da violência, da morte e da dor que rondam a
infância de Miguilim e fazem com que ele, ainda uma criança de oito anos, perceba o absurdo
do comportamento humano. Há, portanto, apenas, pequenas pausas de paz e harmonia, mas na
maioria do tempo prevalecem os trágicos conflitos, a doença de Dito e Miguilim e a morte de
Dito, de Patori, de Bero e de Luisaltino.
Em O Ato da Leitura (1996), Wolfgang Iser afirma que no processo da leitura se
realiza a interação central entre a estrutura da obra e seu receptor. A literatura se realiza na
convergência do texto com o leitor – a obra tem, forçosamente, um caráter virtual –, não pode
ser reduzida à realidade do texto, nem às disposições caracterizadoras do leitor.
Para Iser (1996), a obra literária tem dois polos: o artístico que designa o texto
criado pelo autor e o estético que é a concretização produzida pelo leitor. O estético é
34
caracterizado pelo fato de que ele não se cristaliza, que é sempre atualizado pelo efeito que
o texto provoca no leitor. Este efeito implica substituir a velha pergunta o que significa esse
poema, esse drama, esse romance?” pela “o que sucede com o leitor quando, com sua leitura,
ele dá vida aos textos ficcionais?”
A interpretação tende a mostrar-se objetivista; em consequência, seus atos de
apreensão eliminam a multiplicidade de significações da obra de arte. Se
afirmarmos, como sucede muitas vezes, que uma obra literária é boa ou má,
então formamos um juízo de valor. Mas quando necessitamos fundar esses
juízos, utilizamos critérios que, na verdade, não são de natureza valorativa,
mas que descrevem características da obra em causa. Se compararmos essas
com as de outras obras, não conseguimos ampliar os nossos critérios, pois as
diferenças entre esses critérios não representam o valor próprio. (ISER,
1996, p.59).
Dessa forma, a interpretação ganha uma nova função, em vez de apenas se ater ao
sentido do texto, ela evidencia seu potencial de produzir sentido. Para o autor, no processo da
leitura, o potencial de sentido não pode ser plenamente elucidado, é justamente por isso que a
análise do sentido enquanto evento se torna necessária.
De acordo com Iser, o “leitor ideal”, um leitor perfeito, o príncipe encantado desejado
é aquele que:
representa uma impossibilidade estrutural da comunicação. Pois um leitor
ideal deveria ter o mesmo código que o autor. Mas como o autor
transcodifica normalmente os códigos dominantes nos seus textos, o leitor
ideal deveria ter as mesmas intenções que se manifestam nesse processo.
(ISER, 1996, p.65).
Esse acontecimento pretende fazer com que o leitor conclua a maior dimensão
possível do sentido do texto. Entretanto, é impossível ao leitor se inteirar por completo das
intenções do autor, isso é viável se estivermos falando em uma literatura dita de consumo,
cujas visões interpretativas são bitoladas e efêmeras. em textos literários de maior
complexidade esse pressuposto é inalcançável.
35
Na experiência da leitura os valores do leitor são transformados, a sua expectativa
frente à leitura é reformulada e, automaticamente, ele é levado a reinterpretar o que leu. A
leitura atua em duas direções: para frente e para trás. O que Iser postula como “efeitos e
respostas”, não são propriedades nem do texto nem do leitor, mas sim:
a noção principal decorrente dessas premissas é a de leitor implícito, calcada
na de autor implícito, que fora introduzida pelo crítico americano Wayne
Booth em The Rhetoric of Fiction [A Retórica da Ficção] (1961).
Posicionando-se na época contra o New Criticism, na querela sobre a
intenção do autor (evidentemente ligada à reflexão sobre o leitor), Booth
defendia a tese segundo a qual um autor nunca se retirava totalmente de sua
obra, mas deixava nela sempre um substituto que a controlava em sua
ausência: o autor implícito. (COMPAGNON, 2006, p. 150).
Compagnon (2006) estabelece uma analogia entre o leitor implícito de Iser e o autor
implícito de Booth, o qual defendia a ideia de que o autor constrói o seu leitor como se este
fosse o seu segundo eu, de forma que o momento da leitura uniria o autor e o leitor. Tal ideia
aproxima-se da de Iser que defende que: “O leitor implícito propõe um modelo ao leitor real;
define um ponto de vista que permite ao leitor real compor o sentido do texto.”
(COMPAGNON, 2006, p. 151). De acordo com Compagnon, tem-se a definição de Iser para
o leitor implícito – uma estrutura textual criada pelo autor – que se torna estruturado no ato da
leitura:
Os partidários de uma maior liberdade do leitor criticaram, pois, a estética da
recepção por voltar sub-repticamente ao autor como norma, ou como
instância que define as áreas de jogo no texto, e assim sacrificar a teoria pela
opinião corrente. Nesse aspecto Iser foi atacado em particular por Stanley
Fish, que lamentou que a pluralidade de sentido reconhecida no texto não
seja infinita ou ainda que a obra não esteja realmente aberta, mas
simplesmente entreaberta. (COMPAGNON, 2006, p. 156).
Compagnon (2006) pontua que a estética da recepção foi criticada pelos defensores da
obra aberta, como Stanley Fish, contestador da teoria de Iser, que embora defendesse que
36
leituras pudessem ser diversas de acordo com as inferências culturais de cada leitor, a
interpretação deste estaria diretamente ligada às pistas oferecidas por determinado texto.
Nesse aspecto, Compagnon diferencia Iser de Eco, que para este toda obra de arte é
aberta a inúmeras possibilidades de leituras. Vincent Jouve (2002) aproxima a teoria de
“leitor implícito” de Wolfgang Iser da de “leitor modelo”, de Umberto Eco, tendo em vista
que ambos consideram a presença do leitor no ato da criação do texto o leitor faz parte da
estrutura textual. Embora tais teorias, na relação autor-texto-leitor, postulem que o leitor deva
ser estudado e que este vai reagir frente a determinado texto de acordo com o seu
conhecimento de mundo, também postulam que, por mais interpretações que o leitor possa ter,
estas estão imbricadas às possibilidades oferecidas pelo texto.
Iser, em O Ato da Leitura (1996), ao se ater à teoria do leitor implícito, cita o
arquileitor de Michael Riffaterre – o qual defende a ideia de um “grupo de informantes” [que
se encontram] “em pontos cruciais do texto”, [e por conseguinte, visam objetivar o estilo ou
o] “fato estilístico”. Mas o arquileitor, enquanto termo de um grupo de informantes, não é
imune a erros.” (ISER, 1996, p. 68). Iser conclui que o modelo de Riffaterre demonstra que as
qualidades estilísticas não são captadas unicamente pelo instrumentário linguístico, ou seja,
não basta captar o “fato estilístico” o leitor precisa se atualizar. Ele considera que a concepção
de um “leitor informado”, elaborada por Stanley Fish, se aproxima do “arquileitor”, de
Riffaterre, que aquele pretende descrever processos em que os textos são atualizados pelo
leitor:
Tal tipo de leitor precisa então não das competências citadas como
também deve observar suas reações no processo de atualização para que
sejam elas controláveis. A necessidade dessa auto-observação se funda, em
primeiro lugar, no fato de que Fish desenvolve sua concepção do leitor
informado em conexão à gramática transformacional, e, em segundo lugar,
em que algumas das consequências desse modelo gramatical não podem ser
integradas. (ISER, 1996, p. 69).
37
Tanto a concepção do “arquileitor”, de Riffaterre, quanto do “leitor informado”, de
Fish, evidenciam que para a interpretação de texto não é suficiente a análise de fatores
linguísticos. Nesse sentido, Iser traz o conceito de Erwin Wolff sobre o “leitor intencionado”,
o qual faz referência à reconstrução da “ideia do leitor” formada, primeiramente, “na mente
do autor”:
Nessas concepções do leitor se evidenciam interesses cognitivos diferentes.
O arquileitor apresenta um meio de verificação e serve para captar o fato
estilístico pela densidade de codificação do texto. O leitor informado é uma
concepção didática que se baseia na auto-observação da sequência de
reações, estimulada pelo texto, e visa aumentar o caráter de informação e
assim a competência do leitor. Por fim, o leitor intencionado é um tipo de
reconstrução que permite revelar as disposições históricas do público,
visadas pelo autor. (ISER, 1996, p. 72).
Iser (1996) conclui que diferenças intencionais entre as concepções de Riffaterre,
Fish e Wolff, mas que elas são relevantes pelo fato de introduzirem a figura do leitor e porque
possibilitam que seja ultrapassado “o alcance limitado da estilística estrutural, da gramática
transformacional e da sociologia da literatura.” (ISER, 1996. p.73). Ou seja, não é possível
uma teoria do texto literário sem o leitor.
"Se o leitor implícito é descrito como estrutura do efeito de textos, cabe perguntar se
uma análise do processo de leitura ainda pode ser feita sem uma referência e considerações de
ordem psicológica.” (ISER 1996, p. 80). Ou seja, a teoria da experiência estética só é válida se
respaldada pela psicanálise descrição de um leitor que realmente vive e não uma mera
construção textual que, através da teoria freudiana, podemos teorizar o impacto global de
uma obra:
Enfim, Iser insiste naquilo que ele chama de repertório, isto é, o conjunto de
normas sociais, históricas, culturais trazidas pelo leitor como bagagem
necessária à leitura. Mas também o texto apela para um repertório, põe em
jogo um conjunto de normas. Para que a leitura se realize, um mínimo de
interseção entre o repertório do leitor real e o repertório do texto, isto é, o
leitor implícito, é indispensável. As convenções que constituem o repertório
são reorganizadas pelo texto, que desfamiliariza e reforma os pressupostos
do leitor sobre a realidade. (COMPAGNON, 2006, p. 152-153).
38
Compagnon (2006), embora questione se o leitor aceita as instruções do texto, afirma
que, para Iser, a compreensão do efeito estético provocado no leitor privilegia o conhecimento
do repertório, ou seja, toda a condição extratextual de ordem social, histórica, cultural
presente na vida do receptor e também as leituras precedentes, as quais podem modificar a
compreensão do texto, tendo em vista que cada indivíduo reage distintivamente, ainda que a
recepção da obra tenha sido a mesma.
Segundo Iser (1996), o leitor implícito é uma estrutura textual que antecipa a
presença do leitor real. Ou seja, todo texto literário oferece determinados papéis aos leitores
que são previstos já momento de sua escritura.
Esses papéis mostram dois aspectos centrais que, apesar da separação
exigida pela análise, são muito ligados entre si: o papel de leitor se define
como estrutura do texto e como estrutura do ato. Quanto à estrutura do texto,
é de supor que cada texto literário representa uma perspectiva do mundo
criada por seu autor. O texto, enquanto tal, não apresenta uma mera cópia do
mundo dado, mas constitui um mundo do material que lhe é dado. (ISER,
1996, p. 73).
Iser (1996) enfatiza a complexidade da leitura do texto literário, o qual é composto
pelo(s) narrador(es), pelo(s) personagem(ens), enredo e espaço. Assim, o ponto de vista do
leitor não é livre, ele é construído pela perspectiva interna do texto. Ou seja, a interpretação
literária é resultante daquilo que é dado ao leitor, este não tem como interpretar determinado
personagem como trágico se ele é cômico ou vice-versa.
A Teoria do Efeito Estético privilegia o ato da recepção, especificamente, o receptor e
considera que a leitura é resultado de um diálogo entre o texto e a bagagem cultural do leitor.
Contudo, o autor evidencia que, embora a obra literária se concretize na interação com o
leitor, nem toda leitura é válida, nem o livre arbítrio do leitor, que sua interpretação está
prevista pelo texto.
39
Partindo-se da teoria do Efeito Estético de Iser, para quem o leitor é uma estrutura
textual prevista pelo autor ao construir o texto, pode-se afirmar que, em Conversa de Bois,
bem como em sua obra como um todo Guimarães Rosa visa estabelecer parceria com o
leitor
8
, pois ele utiliza a linguagem romanesca não apenas para representar determinada
realidade regional e universal, mas também, como uma linguagem de denúncia que parece
querer a promoção da consciência humana sobre seus atos e omissões.
Assim, a teoria de Iser de que o ato da recepção considera que a leitura é resultado de
um diálogo entre o texto e a bagagem cultural do leitor e de que sendo este uma construção
textual, a sua interpretação está prevista pelo texto, pode ser constatada, pois a minha
interpretação de Conversa de Bois está carregada das inferências culturais que tenho sobre
infância, lógico que, em um outro leitor com outro olhar sobre a infância a reação será
diferente. Essa interpretação, contudo, é resultado do que é dado por Guimarães Rosa, por
isso não como não concluir que Tiãozinho era uma criança trabalhadora, oprimida por seu
patrão e pelo desdém de sua mãe em relação ao seu pai, uma vez que ela trai o marido doente
e indefeso. Assim, o leitor implícito proposto por Iser, nesse conto, certamente teria essas
leituras, o leitor modelo de segundo nível de Eco, iria além e entenderia que tais situações
são uma clássica representação do sistema patriarcal vigente à época da produção do conto.
Assim, Guimarães Rosa, por meio do texto literário, promove a reflexão da interação social
que se a partir do discurso interior e exterior da personagem Tiãozinho com o patrão e
8
Se o criador [autor] passa, a criatura [palavra/obra] fica para muitíssimo além do criador. Hoje a
frase Viver é muito perigoso, cunhada em Grande sertão: veredas, é recorrente em muitas situações
nas quais nem todos os que a dizem sabem de sua origem. Ou seja, ela desprendeu-se do livro e do
seu criador e ganhou independência. [...] Se os prefácios de Tutaméia apontam para o processo de
composição da narrativa, em suas várias nuanças, a epígrafe de Schopenhauer, que precede o
índice, “ensina” ao leitor sobre o processo de aprendizagem da leitura. Dai, pois, como se disse,
exigir a primeira leitura paciência fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo se
entenderá sob luz inteiramente outra. O autor deve ser aquele que renova, que capta a linguagem
cotidiana, mas também busca, através da linguagem literária, dizer coisas às vezes quase indizíveis,
mas é fundamental que o leitor penetre na profundidade do texto, desta forma ele se completa.
(FORTES, 2007, p. 161-162).
40
amante de sua mãe, interação essa, que provoca em Tiãozinho sentimentos de "ojeriza daquele
capeta!”. Esta fala de Tiãozinho evidencia as tensões e os conflitos familiares, bem como o
código de valores do contexto. A tristeza e a revolta de Tiãozinho advêm da traição de sua
mãe em relação ao seu pai, ainda vivo, mas relegado socialmente e, enquanto chefe da
família, à condição de morto. Esta condição fere os brios do menino sendo algo que lhe tira a
alegria de viver, fazendo com que imagine vinganças futuras. Ao ler esse texto, o leitor se
identifica com a história e tem um sentimento catártico de compaixão em relação a Tiãozinho,
o qual é construído na consciência do receptor pelo sentido metafórico de "pedaço de gente":
uma criança indefesa e pobre, largada à própria sorte, que, no entanto, “acidentalmente”,
vinga-se da honra ultrajada e da morte do pai antes mesmo de este ser enterrado.
A Teoria do Efeito Estético de Iser (1996), que define o leitor como estrutura do texto
construída pelo autor no momento da criação da obra literária –, se aplicada à análise de Campo Geral
(2001), de Guimarães Rosa, implicaria a afirmação de que o leitor dessa novela interpretaria que os
aspectos regionais e universais estariam imbricados, o que levaria à leitura da figura do protagonista
Miguilim como um ser construído subjetivamente, por meio da sua relação com o “outro” e com o
meio social em que está inserido. Ou seja, a narrativa dessa novela enfatiza que o ambiente onde o
menino está situado o Mutum, espaço ficcional e, ao mesmo tempo, espaço real interfere na sua
constituição como um ser social.
Da viagem, que durou dias, ele guardara aturdidas lembranças, embaraçadas
em sua cabecinha. De uma nunca pôde se esquecer: alguém tinha dito: - É
um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato,
distante de qualquer parte; e lá chove sempre... (C.G., p.27).
que até uma pessoa/personagem que não pertence ao mundo familiar de Miguilim,
um outro
9
, o Mutum como um bom lugar, Miguilim espera que sua mãe também receba
como um presente a informação de que eles moram em um lugar bonito e bom de viver, pois
9
Bakhtin afirma que o homem é construído socialmente, sendo essa construção resultado da relação
entre “eu” e o “outro”, a qual acontece por meio da linguagem.
41
se ela vir nesse espaço tal beleza, a imagem arquetípica da casa como um espaço protetor e
familiar poderá se fixar em seu imaginário, mas não é isso que ocorre de fato. A descoberta de
Miguilim não altera a visão da mãe, nem afasta os perigos que rondam a família. Somente no
final da novela, ao se despedir do Mutum, Miguilim pode concluir por si mesmo que, de fato,
aquele é um belo lugar.
O leitor implícito de Iser (1996) deveria perceber que Guimarães Rosa utiliza de uma
moldura regional denominada Mutum um espaço real, situado no centro de Minas Gerais –,
por meio da qual constrói uma narrativa literária que evidencia a forma de viver da família
ficcional de Miguilim. Sendo esse menino o foco central da narrativa como uma
representação da infância daquele contexto histórico-social.
Mas, então, de repente Miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia,
quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O
doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim. [...]
O Mutum era bonito! Agora ele sabia. (C.G., p. 152).
Nesse desfecho, as imagens poéticas de Guimarães Rosa clarificam ao leitor que
Miguilim passou a enxergar o mundo por si mesmo, e não mais através dos olhos do Dito que,
enquanto vivera, fora quem desvelara os enigmas do mundo para o irmão. Os óculos do
doutor, simbolicamente, representam o início da compreensão de Miguilim em relação ao
mundo que, até então lhe era tão ininteligível quanto sua miopia. Ele, através dos óculos do
doutor, olha não para Mutum, concluindo por si mesmo que, de fato, é um lugar bonito,
como também para as pessoas de sua família que estão a sua volta, sua mãe, tio Terêz,
Mãitina, Drelina, Chica, Tomezinho. Mas, ao devolver os óculos para o doutor, deixa de ver o
exterior e olha para dentro de si e, então, ele sente vontade de chorar ao lembrar os quenão
estão em sua vida, o Pai, a Cuca Pingo-de-ouro, em especial, de Dito e de suas palavras:
Sempre alegre, Miguilim... Sempre alegre, Miguilim.
42
Em Campo Geral (2001) o espaço físico está imbricado aos sentimentos humanos,
assim, essa moldura regional proporciona o conhecimento do universal. Ao conhecer o
Mutum de Guimarães Rosa, é possível refletir sobre alguns aspectos inerentes à condição
humana como a passagem da infância para a vida adulta, a dor das perdas, o sentimento de
abandono, o temor em relação à morte, a luta pela vida face o rigor de uma doença, dentre
outros sentimentos.
A análise dos personagens Tiãozinho, do conto Conversa de Bois, e Miguilim da
novela Campo Geral, propiciam a compreensão da crença de Jauss em relação à
reformulação da história literária pela união de ideais marxistas e formalistas, que, para
esse autor, uma leitura precisa considerar o texto e o contexto, fato que o aproxima da teoria
bakhtiniana, segundo a qual, em uma análise romanesca, forma e conteúdo estão interligados.
Assim, conclui-se que não como separar a leitura dessas obras literárias do contexto social
que serviu de base para tais textos, que a forma romanesca do conto e da novela têm, em
suas construções, aspectos da base social que as criou.
Tal fato é percebido claramente pela linguagem de Guimarães Rosa, a qual representa
a forma de expressão de determinado tempo e lugar. Conversa de Bois foi publicado em 1946
mas foi escrito em 1936 –, e Campo Geral ou “Miguilim” publicado em 1956. Ou seja,
subjacente às obras estão as marcas temporais, culturais e sociais do isolado sertão de Minas
Gerais em um período indeterminado do início do século XX. Naquela cultura, naquele tempo
e naquele espaço eram comuns os castigos físicos às crianças e o trabalho infantil.
Guimarães Rosa, entretanto, não se limita a esses aspectos. Em Conversa de Bois, a
viagem de Tiãozinho, narrada fantasiosamente por uma irara e por uma junta de oito bois é,
também, a dolorosa travessia de um menino pela tragédia de sua infância, bem como por sua
subliminar vingança. Em Campo Geral, quando Miguilim volta do castigo imposto por seu
43
pai e percebe que este soltara seus passarinhos, num ímpeto quebra todos os seus brinquedos e
começa a trabalhar de forma estoica, magoada e raivosa; não mais a inocência da
criança, mas não há, ainda, a compreensão do mundo. O final desse rito de passagem é
quando ele coloca os óculos do doutor: de forma simbólica, ele está aprendendo finalmente a
enxergar o mundo uma criança com cerca de oito anos que vai embora sozinha com
estranhos trabalhar, estudar e viver por conta própria não é mais criança. Nesse sentido, tanto
a viagem de Tiãozinho com Agenor Soronho e de Miguilim com o doutor representam a
travessia humana pelas adversidades da vida.
1.3 LENDO TIÃOZINHO E MIGUILIM À LUZ DAS TEORIAS DE LEITOR DE
JOUVE E ECO
Vincent Jouve, no livro A Leitura, publicado em 1993, revê os conceitos sobre os
processos de leitura e busca soluções para perguntas como: O que é a leitura? Como se lê? O
que se lê? Sendo influenciado por pensadores como Barthes, Iser, Jauss, Genette e outros
teóricos das áreas da linguística e da literatura. Jouve afirma que o fenômeno literário é
demasiadamente complexo para ser reduzido a uma “série de formas”, se opondo, dessa
maneira, ao estruturalismo. O autor afirma que a leitura é uma atividade complexa tudo
deve estar contextualizado de maneira a se relacionar, quanto mais dificuldades tivermos para
ordenar nossas ideias, mais complexo isso nos parecerá.
A sequência de ações é outro fator que constitui sentido permite a compreensão da
estrutura interna da obra. Mas, na maioria das vezes, a sequência é de lógica simples e a ajuda
inferencial do leitor faz com que o texto não fique confuso, a não ser quando a “confusão” faz
parte da obra.
44
Uma obra, contudo, frequentemente diz outra coisa que parece dizer: o
destinatário deve decifrar sua linguagem simbólica. É preciso, para isso, que
leve em consideração os processos de deslocamento metafóricos e
metonímicos. Roland Barthes, leitor de Balzac, repara assim que em
Sarrasine o fim da economia tradicional sob os assaltos de uma nova classe
especuladora está expresso, metonimicamente, pela ruína generalizada de
todos os grandes modelos de troca. (JOUVE, 2002, p. 64).
Para o autor, a significação geral da obra, a união dos fatores determinantes de sentido
que acontecem através da relação obra e leitor, evidenciam a relevância do leitor saber
decifrar a linguagem simbólica dos textos lidos.
Jouve (2002, p. 53), no texto Os sinais do narratário, mostra que o diálogo entre
narrador e narratário interpelado se em duas instâncias: na primeira, enunciações diretas,
há o diálogo retilíneo entre o narrador e o leitor virtual como, por exemplo, Machado de Assis
em Dom Casmurro, quando Bentinho diz que nós, leitores, não precisamos procurar no
dicionário o sentido da palavra “casmurro”, pois ele irá explaná-la dentro do seu contexto. Na
segunda temos as sobre-justificações, que seriam mais implícitas dentro do texto, quando,
sutilmente, o narrador se desculpa, se explica ou, ainda, inclui o leitor dentro de uma frase,
como se o mesmo compartilhasse de suas ideias.
Em A Leitura (2002), Vincent Jouve afirma que todo texto prevê um leitor, seja este
virtual ou real, podendo ser: narratário intra-diegético leitor dentro do texto; narratário
extra-diegético leitor virtual, idealizado pelo texto; e, narratário interpelado aquele que
existe dentro do texto através do diálogo entre o narrador e o suposto leitor.
Simetricamente, o receptor é ao mesmo tempo o leitor real, cujos traços
psicológicos, sociológicos e culturais podem variar infinitamente, e uma
figura abstrata postulada pelo narrador pelo simples fato de que todo texto
dirige-se necessariamente a alguém. Mediante o que diz e do modo como
diz, um texto supõe sempre um tipo de leitor um “narratário”
relativamente definido. (JOUVE, 1993 p.36).
O narratário é tanto o leitor virtual quanto o leitor real. Sendo que este, para Jouve,
45
pode ser identificado através dos cinco processos que constituem a leitura: neurofisiológico,
cognitivo, afetivo, argumentativo e simbólico, cujos processos, embora possuam significações
próprias, durante o ato da leitura, agem simultaneamente.
O processo neurofisiológico envolve a percepção, a identificação e a memorização dos
signos linguísticos. Nessa etapa "a leitura apresenta-se, pois, como uma atividade de
antecipação, de estruturação e de interpretação”. (JOUVE, 2002, p. 19). O processo cognitivo
é sequencial ao neurofisiológico, depois de antecipar, estruturar e interpretar, o leitor converte
os grupos de palavras em elementos de significação. "O texto coloca em jogo um saber
mínimo que o leitor deve possuir se quiser prosseguir a leitura”. (JOUVE, 2002, p. 19).
Diferentemente de textos de simples compreensão, a exemplo de muitos dos romances
policiais e de aventura cujas narrativas recorrem a uma linguagem coloquial em textos
complexos, se não houver um processo cognitivo que sentido à leitura, o entendimento
pode ser nulo. Neste caso, cabe ao leitor sacrificar a progressão da leitura em favor da
interpretação, para isso, é necessário que ele tenha um mínimo de conhecimento sobre o
assunto abordado no texto.
O processo afetivo depende da identificação e da emoção do leitor frente a
determinado texto. "O papel das emoções no ato da leitura é fácil de se entender: prender-se a
uma personagem é interessar-se pelo que lhe acontece, isto é, pela narrativa que a coloca em
cena”. (JOUVE, 2002, p. 20). Se não fosse o envolvimento afetivo do leitor com as obras,
especialmente as de ficção, a poética de algumas leituras não existiria. Não haveria o efeito
catártico, sentimentos de compaixão e piedade, nem o riso provocado pela leitura.
No processo argumentativo, o leitor pode ser levado a assumir o argumento do texto
ou a desviar-se deste. A dimensão simbólica da leitura age nos modelos do imaginário
coletivo e o sentido advindo da leitura está vinculado ao contexto cultural do leitor.
46
"Qualquer que seja o tipo de texto, o leitor, de forma mais ou menos nítida, é sempre
interpelado. Trata-se para ele de assumir ou não para si a argumentação desenvolvida”.
(JOUVE, 2002, p. 22). Percebe-se que o processo argumentativo não se sem o processo
afetivo, pois a plena compreensão do texto depende do envolvimento afetivo do leitor.
O processo simbólico para Jouve são as inferências culturais dos indivíduos frente à
compreensão de uma obra: "O sentido que se tira (reagindo em face da história, dos
argumentos propostos, do jogo entre os pontos de vista) vai se instalar imediatamente no
contexto cultural onde cada leitor evolui”. (JOUVE, 2002, p. 22). Cada texto oferece uma
pluralidade de leituras, quanto mais distante do contexto sociocultural da origem do texto,
maiores possibilidades de interpretações se abrem ao leitor.
Considerando a visão de Vincent Jouve (2002) de que a leitura é uma faceta com cinco
dimensões neurofisiológica, cognitiva, afetiva, argumentativa e simbólica. A questão
neurofisiológica pode ser verificada no conto Conversa de bois (2001).
Mal se amoitara, [a Irara] porém, e via surgir, na curva de trás da
restinga, o menino guia, o Tiãozinho - um pedaço de gente, com a
comprida vara no ombro, com o chapéu de palha furado, as calças
arregaçadas, e a camisa grossa de riscado, aberta no peito e excedendo
atrás em fraldas esvoaçantes. (C.B., p. 327).
Assim, o aspecto neurofisiológico que leva a antecipação, estruturação e interpretação,
promove no leitor a clareza de que Tiãozinho é uma criança pobre. A interpretação em si
perpassa a ideia da ambiguidade da pobreza dessa criança: "um pedaço de gente, com a
comprida vara no ombro", tão criança e já tem que trabalhar como guia de carro-de-bois.
Em relação à questão cognitiva, em textos complexos, Jouve afirma que o leitor deve
abrir mão da leitura rápida em favor da interpretação, o que se entende como uma postura
necessária para a leitura da obra de Guimarães Rosa como um todo. “Mas com isso,
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Tiãozinho não se importava... O que doía era o choro engasgado do pai, que não falava quase
nunca... Mas Deus havia de castigar aquilo tudo. Não era direito, não estava não!". (C.B., p.
339). No processo cognitivoo leitor é levado a interpretar até as reticências e, na dimensão
afetiva, ele se prende de forma emocional ao texto. É pela emoção que o leitor se identifica
com essa personagem. O choro engasgado do pai não era, apenas, provocado pela
enfermidade, mas, principalmente, pela condição humilhante de ser traído pela mulher com
Agenor Soronho que, com ele ainda vivo, mudara-se para sua casa, desfrutando da intimidade
da mulher e dando ordens ao seu filho. Ou seja, o amante/patrão se comportava como se o pai
de Tiãozinho estivesse morto, o que ofende os brios do pai e, consequentemente, do
"menino homem". Essa dor envolve emocionalmente o leitor, o qual tende a compadecer-se
da personagem.
Percebe-se que o argumento de Guimarães Rosa envolve o leitor de forma cognitiva,
afetiva e simbólica, tendo em vista que o autor, através do olhar de Irara, organiza a narrativa,
destacando a irritabilidade do carreiro – Agenor Soronho em relação ao menino e a tudo à
sua volta. “Vigia aí, Tiãozinho! Vi um bicho raboso mexer no matinho!... Alguma bisca de
lobo, ou um jaguapé. Isso são criaturas p'ra vagarem de-noite, não sei o-quê que andam
querendo a esta hora em beira da estrada, p'ra assustar os bois!” (C.B., p. 331). Este fragmento
do conto evidencia o processo simbólico descrito no ato da leitura, conforme postula Jouve
(2002) sobre esse tema. Embora o narrador não enfatize a ferocidade dos animais, a dimensão
simbólica dessa leitura age nos modelos do imaginário coletivo, assim, o sentido desse "bicho
raboso", "bisca de lobo", é compreendido pelas inferências culturais do leitor sobre animais
ferozes, capazes de atacar pessoas para se alimentar.
A questão da necessidade da releitura também é defendida por Vincent Jouve, que
constrói sua teoria sobre o leitor real, refletindo teorias sobre leitores, entre eles o leitor
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implícito e modelo, de Iser e Eco, que têm diferenças, mas comprovam o mesmo princípio a
inscrição objetiva do destinatário no próprio corpo do texto, ideia de que todo texto tem um
papel proposto para o leitor. Jouve afirma que Iser e Eco vão além do texto, analisando a
narrativa em relação ao leitor, não basta descrevê-lo, mas sim se perguntar como ele reage ao
papel proposto pelo texto a concretização deste pelo leitor.
Coloquei-me como exemplo do leitor real de Jouve, para quem a leitura é constituída
por cinco processos neurofisiológico, cognitivo, afetivo, argumentativo e simbólico na
análise do conto Conversa de Bois, e constatei que a prática da releitura ocorre de forma
prazerosa, e que os cinco processos de leitura ocorrem, simultaneamente, no ato da leitura.
É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros... - Pior, pior...
Começamos a olhar o medo... o medo grande... e a pressa... O medo é uma
pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho... É ruim ser boi-
de-carro. É ruim viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem:
tristeza, fome, calor tudo, pensado, é pior... [...] É bonito poder pensar, mas
só nas coisas bonitas... (C.B., p.334).
O processo neurofisiológico ocorre por meio da interpretação de que os bois observam
as atitudes dos seus quanto dos humanos. O cognitivo propicia a leitura de que os bois podem
enxergar os sentimentos humanos, dentre os quais o medo. O afetivo permite-nos envolver
emocionalmente e enxergar que os bois refletem sobre o grande medo que é a pressa humana,
uma pressa sem caminho, como uma metáfora de que a pressa não leva a lugar nenhum, mas,
ao ser tão apressado o homem se esquece do momento presente, preso entre as memórias
passadas e à expectativa futura. O argumentativo leva-nos a assumir o texto de Guimarães
Rosa que, por meio da reflexão dos bois, faz uma crítica à atitude do homem em relação ao
medo e a pressa. Na atualidade, tudo parece ter um caráter efêmero – seria essa mesma pressa
que Guimarães Rosa estaria questionando?. No aspecto simbólico, nossas inferências culturais
contribuem para a compreensão do que é afirmado pelos bois: que é ruim viver perto dos
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homens, como uma metáfora de que é ruim o homem viver perto do próprio homem que
torna difícil a convivência humana –, que age, muitas vezes, de forma irracional, e que ele
mesmo promove as coisas ruins: tristeza, fome, calor, mas, segundo os bois, o que é pior é o
pensamento humano, ou seja, o pensar, o refletir, o raciocinar deveria ser direcionado para
coisas bonitas uma crítica ao homem que não utiliza o seu potencial em prol do que é
edificante. É preciso que um ser irracional, o boi, lhe fale, metaforicamente, que no lugar da
tristeza, deveria haver alegria, no lugar da fome deveria haver solidariedade, no lugar do calor
que queima deveria ter o calor que aquece e que torna o animal homem em gente.
O leitor real de Jouve (2002), no ato da leitura de Campo Geral (2001), seria
envolvido, simultaneamente, pelos processos neurofisiológico, cognitivo, afetivo,
argumentativo e simbólico e perceberia que Miguilim se apropria de significados sociais que
resultam num aprendizado que está envolto de carga emocional. Ele aprendeu a amar, a
respeitar e a temer seus pais. A rememoração da primeira fase de sua infância lhe traz
lembranças do “meninão” que lhe batera, da vovó Izidra, sempre envolvida com suas crenças
e rezas, da cachorra doentinha e quase cega, que era sua companheira, da presença de Dito,
seu irmão mais novo – percebido por Miguilim como alguém com maior capacidade de
raciocínio do que ele –, de Mãitina, com quem ele aprende as primeiras lições sobre o medo e
sobre a ternura, dos medos que sentia pelas desavenças entre seu pai e sua mãe: “- Pai está
brigando com Mãe. Está xingando ofensa, muito, muito. Estou com medo, ele queria dar em
Mamãe...” (C.G., p. 35). Essas situações contribuem para a formação subjetiva de Miguilim,
sendo que a forma como e sente a vida é modulada em sua infância na relação com o seu
mundo social.
Aquele lugar do Mutum era triste, era feio. O morro, mato escuro, com todos
os maus bichos esperando, para essas urubuguáias. A ver, e de repente, no
céu, por cima dos matos, uma coisa preta desforme se estendendo, batia para
ele os braços: ia ecar, para ele, Miguilim, algum recado desigual? 'Depois,
depois, tinha de entrar p'ra dentro, beber leite, ir para o quarto. Não dormia
50
dado. Queria uma coragem de abrir a janela, espiar no mais alto, agarrado
com os olhos, elas todas, as Sete-Estrelas. Queria não dormir, nunca. Queria
abraçar o Ditinho, conversar, mas não tinha diligência, não tinha ânimo.
(C.G., p. 74).
Esse argumento de Guimarães Rosa poderia promover a compreensão de que quando o
leitor Mutum era triste, era feio. O morro, mato escuro, com todos os maus bichos
esperando..., cria imagens correlacionadas a outros lugares feios que conheceu e que lhe
causavam tristeza, bem como a outras imagens de bichos que lhe provocam medo, a exemplo
dos morcegos, dentre outros. Depois, tinha de entrar p'ra dentro, beber leite, ir para o
quarto... que sensações a imagem do quarto desperta no coração do leitor? Seria um lugar
tranquilo, protegido, um refúgio ou uma prisão? Miguilim queria abrir a janela e agarrar as
Sete-Estrelas, não queria dormir nunca, o leitor poderia criar em seu imaginário a figura da
janela como uma brecha que permite ver o horizonte, com o poder dos olhos agarrar as
estrelas do céu, aliado ao desejo de não dormir nunca, como metáfora ao desejo de não
morrer. Mas Guimarães avisa a esse leitor que Miguilim não tem essa coragem, que o motivo
de seu desânimo advém da sua doença; o que provoca essa informação ao leitor? Que
sensação lhe vem com a imagem da doença?
Guimarães Rosa, também representa certos terrores inerentes à infância: “Entrava no
mato. Era aquele um mato calado. Miguilim rezava, sem falar alto. Deus vigiava tudo, com
traição maior, Deus vaquejava os pequenos e os grandes! E era na volta que o Tio Terêz ia
aparecer? Mas não era.” (C.G., p. 94). Esse entrar no mato promove a imagem poética de um
espaço que requer cautela, o mato não é um lugar por onde se pode andar tranquilamente e,
ainda, era um mato calado, que provocava medo em Miguilim, por isso ele rezava baixo, tanto
pelo medo do inesperado que o mato pode provocar quanto pelo desejo de não encontrar com
Tio Terêz, pois não entregara o bilhete deste à sua mãe. Por mais que gostasse de seu tio, não
aceitava e não poderia ser cúmplice de tal traição, não por medo, mas por amor/respeito a seu
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pai um pai de atitudes rudes que, às vezes, não o compreende; todavia é seu pai, e num
sistema patriarcal a figura paterna tem que ser respeitada, até porque, nesse sistema, também o
pai simboliza a preservação da família.
O ponto alto dessa novela vem das emoções oriundas da doença e dos prenúncios da
morte de Dito, a imagem do Céu e do quarto de Dito intensificam tal situação.
- No Céu, Dito? No Céu?! - e Miguilim desengolia da garganta um
desespero. - Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com Mãe,
é de você... E o Dito também não conseguiu falar direito, os dentes dele
teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele
forcejou e disse tudo: - Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu
sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda
coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais
alegre, por dentro!... E o Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chorava
aos gritos, sufocava, os outros vieram, puxaram Miguilim de lá. (C.G., p.
118).
Nesse trecho o espaço Céu prenuncia a morte de Dito e elucida o amor de Miguilim
por seu irmão mais novo que, até então, enxergou a vida por si e por Miguilim e que, mesmo
em seus últimos momentos, ainda quer que o irmão veja que é possível ser alegre diante de
acontecimentos ruins a exemplo de sua eminente morte. O outro espaço neste fragmento
de puxaram Miguilim de significa que tiraram Miguilim da beira da cama de Dito,
que insiste em querer rir para seu amado irmão, para tentar acalmá-lo, mas a dor de Miguilim
era demasiadamente forte que não podia se conformar.
Partindo da perspectiva de Jouve pode-se perceber que as personagens Tiãozinho e
Miguilim, respectivamente, de Conversa de Bois e Campo Geral, podem ser modificadas em
outras leituras, em outros contextos, mas, para mim, a leitura da infância dessas obras, permite
a crença que, talvez, o leitor real – Jouve – esperado por Guimarães Rosa tenha a incumbência
de, ao ler esses textos, refletir sobre o que é ser humano.
Em Seis passeios pelos bosques da ficção (2002) Umberto Eco define o bosque como
52
o texto literário, caracteriza o autor-modelo e o leitor-modelo, sendo que este é por ele
diferenciado do leitor-empírico, o qual ele define como aquele que realiza uma leitura. Assim,
não existiria uma lei que defina como um texto deva ser lido, que um mesmo texto tende a
provocar sentidos distintos em seus receptores, tendo em vista as reações de cada um em
relação a esse mesmo texto. Eco exemplifica o caso de uma pessoa que assiste a um filme
cômico em um momento de profunda tristeza. Esta, certamente, teria dificuldades em sorrir
ou se entreter e, se essa mesma pessoa, tempos depois, assistisse novamente ao filme, ainda
assim não conseguira rir, porque em sua mente estariam as memórias daquele momento
infeliz, o qual será associado àquele em que viu o filme pela primeira vez. Assim, não se pode
dizer que a leitura que tal espectador teve desse filme foi errônea, que ele não reagiu de
acordo com o que um gênero cômico prevê diversão e risos –, que o que prevaleceu foi o
seu estado de espírito naquele momento.
Eco utiliza esse exemplo para diferenciar o leitor-empírico do leitor-modelo, sendo
que aquele reage ao filme ou ao livro de acordo com as suas emoções e este é uma espécie de
tipo ideal, previsto e criado pelo texto como colaborador, como no caso de um texto que
começa com a frase "Era uma vez", que prevê um leitor-modelo, no caso uma criança ou uma
pessoa disposta a entrar no bosque da ficção lúdica.
Todo texto desse tipo se dirige sobretudo a um leitor-modelo do primeiro
nível, que quer saber muito bem como a história termina (se Ahab conseguira
capturar a baleia e se Leopold Blomm encontrará Stephen Dedalus depois de
cruzar com ele algumas vezes no dia 16 de julho de 1904). Mas também todo
texto se dirige a um leitor-modelo de segundo nível, que se pergunta que tipo
de leitor a história deseja que ele se torne e que quer descobrir precisamente
como o autor-modelo faz para guiar o leitor. Para saber como uma história
termina, basta em geral lê-la uma vez. Em contrapartida para identificar o
autor-modelo é preciso ler o texto muitas vezes e algumas histórias
incessantemente. quando tiverem descoberto o autor-modelo e tiverem
compreendido (ou começado a compreender) o que o autor queria deles é que
os leitores empíricos se tornarão leitores-modelo maduros. (ECO, 2002,
p.33).
53
O leitor-modelo de primeiro nível se interessa, apenas, por como o texto termina, para
o qual uma única leitura seria suficiente. no segundo nível dependeria das condições de
sucesso que o texto dispõe, a fim de que o potencial de sentido seja alcançado. Esse
destinatário seria capaz de ir um nível além do proposto por Iser, pois ele não apenas
compreenderia a superfície comum a todos, mas também dialogaria com as ideologias do
autor, alcançando as inferências mais intrínsecas.
A abordagem semiótica de Umberto Eco tal qual está exposta em Lector in
fabula, está muito próxima da de Iser. O leitor modelo de Eco data de 1979 e
propõe uma análise da leitura “cooperante”. O objetivo é examinar como o
texto programa sua recepção e o que deve fazer o leitor (ou melhor, o que
“deveria” fazer um leitor modelo) para corresponder da melhor maneira às
solicitações das estruturas textuais. (JOUVE, 2002, p. 14).
Jouve (2002) aproxima as concepções de leitor implícito de Iser e de leitor modelo de
Eco. Tais concepções, inclusive, surgiram muito próximas uma da outra, que a de Iser data
de 1976 e a de Eco de 1979. Ambas postulam que o leitor é uma construção textual e que,
portanto, o estudo sobre o leitor deve considerar a sua reação frente às pistas, aos vazios do
texto.
Pode-se afirmar que o leitor modelo de primeiro nível de Eco se aproxima do leitor
implícito de Iser, e que ambos os leitores são um caminho para o leitor real teorizado na
década de 1990 por Vincent Jouve (2002); Eco, em sua teoria, avança em relação a Iser, tanto
pelo fato de que se coloca como exemplo de leitor-empírico quanto por descrever a relação do
leitor-modelo de segundo nível com o autor-modelo.
No pós-escrito de O nome da rosa, eu disse que gostamos de histórias
policiais porque fazem a mesma pergunta formulada pela filosofia e pela
religião: “Quem fez isso?”. Mas isso é metafísica para um leitor do primeiro
nível. O leitor do segundo nível tem perguntas de uma ordem maior: como
devo identificar (conjecturalmente) ou até mesmo como devo construir o
Autor-Modelo para que minha leitura faça sentido? Sthephen Dedalus se
questionava: se um homem que martela ao acaso um bloco de madeira
54
elabora a imagem de uma vaca, essa imagem é obra de arte? E, se não o é,
porque não o é? Hoje, tendo formulado uma poética do ready-made,
sabemos a resposta: aquele objeto informal é uma obra de arte se
conseguirmos imaginar por trás dele a estratégia de um autor. (ECO, 2002, p.
121-122).
Eco (2002) utiliza desse exemplo extremo segundo o qual um bom leitor implica,
necessariamente, tornar-se um bom autor para evidenciar a dialética presente na relação
indissociável entre autor e leitor modelo. Tal dialética leva o leitor a uma busca inesgotável de
questionamentos – dada a distância física e, muitas vezes, temporal entre o leitor e o autor.
Em relação a obras literárias, as obras abertas seriam, as que se esforçam para ser tão
ambíguas quanto a vida propriamente dita. O autor afirma que, embora a vida esteja mais
próxima a Ulisses, prefere-se lê-la nos moldes de Os três mosqueteiros, porque é melhor ver a
vida como um texto ficcional, que no mundo real momentos em que o ser humano
prefere ler ficção como se fosse vida e vice-versa, fato que coloca em questão a reflexão sobre
a narrativa natural e artificial. Quando o leitor se depara com a narrativa natural aquela que
representa fatos extraídos da realidade, ou em que o narrador afirma, mesmo que através da
mentira, que determinada situação aconteceu no mundo real conforme o teor dessa
narrativa, o leitor tende a não assumi-la, daí entende-se porque muitos romances que retratam
a realidade social, que abordam temas vinculados à violência, às mazelas sociais são negados
por este leitor que e não quer enxergar. a narrativa artificial que através da ficção finge
dizer a verdade sobre mundo real ou na qual o narrador afirma falar a verdade sobre um
universo ficcional, dependendo do conteúdo que ela apresente ao leitor romance, aventura,
suspense –, este tenderá a assumi-la, pois permite-se envolver emocionalmente com a ficção.
Tampouco podemos dizer que as decisões com que deparam as personagens
de Ulisses são mais dramáticas que as que tomamos em nossa vida cotidiana.
Nem mesmo os preceitos aristotélicos (segundo os quais o herói de uma
história não deve ser nem melhor nem pior que nós, deve passar por
reconhecimentos inesperados e deve estar sujeito a rápidas mudanças de
55
sorte até o ponto em que a ação alcança um clímax catastrófico, seguido pela
catarse) bastam para definir uma obra de ficção: muitas das Vidas de
plutarco também preenchem esses requisitos. (ECO, 2002, p. 128).
As situações do homem contemporâneo são colocadas por Eco como sendo da mesma
intensidade “vivida” pelos personagens de Ulisses. O autor descreve o tipo de herói
construído por Aristóteles, modelo guardadas as devidas proporções seguido por
narrativas de aventura que têm empatia com o leitor, tanto pela identificação deste com o
herói quanto pela possibilidade do efeito catártico. Tal efeito em Aristóteles está diretamente
ligado a situações trágicas, contudo, segundo teorias sobre o leitor de Jauss, Iser, Eco e Jouve,
pode-se deduzir que o efeito catártico não é exclusivo das situações trágicas. Para Eco existe
uma relação muito estreita entre o leitor e a obra de ficção, a qual é realizada por meio de um
acordo ficcional entre o leitor e o autor aquele está disposto a aceitar o mundo criado por
este e, muitas vezes, prefere uma viagem pelo mundo do fantástico do que pelo real:
Nas conferências seguintes, retorna com frequência a um dos maiores livros
escritos, Sylvie, de Gérard de Nerval. Eu o li pela primeira vez quando
tinha vinte anos e ainda continuo a relê-lo. Quando jovem, escrevi um
trabalho lamentável sobre ele e, a partir de 1976, conduzi na Universidade de
Bolonha uma série de seminários sobre o assunto, dos quais resultaram três
teses de doutorado e uma edição especial do Jornal VS em 1982. Em 1984,
na Universidade Columbia, dediquei um curso de pós-graduação a Sylvie,
que suscitou alguns trabalhos bem interessantes. Hoje conheço cada vírgula e
cada mecanismo secreto dessa novela. A experiência de reler um texto ao
longo de quarenta anos me mostrou como são bobas as pessoas que dizem
dissecar um texto e dedicar-se a uma leitura meticulosa equivale a matar sua
magia. (ECO, 2002, p. 18).
Esta experiência de Eco evidencia a ineficácia de uma única leitura. Em se tratando de
uma análise literária, a necessidade de inúmeras leituras, que o texto não perde a sua
magia pelo fato deste ser lido inúmeras vezes. Eco afirma que elaborou um trabalho
lamentável, feito a partir da primeira leitura de Sylvie, de Gérard de Nerval, mas que teve um
grande avanço em relação à compreensão deste, ao reler Sylvie ao longo de quarenta anos.
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Fato que destoa da leitura fragmentada e efêmera que parece ser a prática nos tempos atuais.
Parece que é preciso que se chegue à compreensão de determinados textos na primeira
leitura, que o hábito da releitura é algo em desuso, principalmente em uma sociedade na qual,
muitas vezes, não se chega nem a uma primeira leitura completa de determinado texto.
A recepção do conto Conversa de Bois (2001), de Guimarães Rosa, leva o leitor a
confirmar ou renovar a poiesis de Guimarães, até mesmo a recriá-la, que fica por conta da
imaginação do receptor o que teria acontecido com Tiãozinho.
E logo agora, que a irara Risoleta se lembrou de que tem um sério encontro
marcado, duas horas e duas léguas para trás Tiãozinho - nunca houve melhor
menino candieiro - vai em corridinha, maneiro, porque os bois, com a fresca
aceleram. E talvez dois defuntos deem mais para a viagem, pois a o carro
está contente - renhein... nhein... - e abre a goela do chumaço, numa toada
triunfal. (C.B., p. 362).
O leitor-modelo de primeiro nível de Eco, certamente, questionaria se os sentimentos
de ódio e desejo de vingança de Tiãozinho teriam sido aplacados com a morte de seu Agenor
Soronho: “[se esse] abre a goela do chumaço, numa toada triunfal", seria um grito de
liberdade e vitória com a derrota de seu opressor. Já o leitor-modelo de segundo nível descrito
por Eco, através da releitura, perceberia que, por trás do autor-modelo, a voz da Irara
testemunha ocular criada pela família Timborna, que centra a narrativa do texto na conversa
dos bois tem Guimarães Rosa, um autor empírico, que pistas ao leitor do que está para
acontecer .
Dessa forma, com a prática da releitura, haverá uma maior clareza de que esse autor-
empírico utiliza-se do autor-modelo para prenunciar a morte do carreiro, pelo fato de este ter
bebido da cachaça que sobrara do carro-de-bois que tombara, pelas inúmeras vezes em que
humilha Tiãozinho, como também, pela atitude irônica frente a um acidente ocorrido com
outro carreiro: "Tião, esperta, que eu quero mostrar p'ra esse João Bala como é que a gente
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sobe o Morro-do-Sabão... Eu vou em no cabeçalho, que é p'ra ele ver como é que
carreiro de verdade não conhece medo, não!... (C.B., p. 356). Mas é, principalmente, a
conversa dos bois que antecipa a morte de Agenor Soronho.
Mas, no caminho escabroso, com brocotós e buracos por todos os lados,
Tiãozinho não cai nem escorrega, porque não está de-todo adormecido nem
de-todo vigilante. Dormir é com o Seu Soronho, escanchado beato, logo atrás
do pigarro.
De lá do coice, voz nasal, cavernosa, rosna Realejo. E todos falam.
- Se o carro desse um abalo maior...
- Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo...
- O homem-do-pau-comprido rolaria para o chão.
- Ele está na beirada...
- Está cai-não-cai, na beiradinha...
- Se o bezerro, na frente, de repente gritasse, nós teríamos de correr, sem
pensar, de supetão...
- E o homem cairia...
- Daqui a pouco... Daqui a pouco...
- Cairia... Cairia...
- Agora! Agora!
- Mûung! Mûung!
- ... rolaria para o chão.
- Namorado, vamos!!!... - Tiãozinho deu um grito e um salto para o lado, e a
vara assobiou no ar... E os oito bois das quatro juntas se jogaram para diante,
de uma vez... E o carro pulou forte, e craquejou, estrambelhado, com um
guincho do cocão.
- Virgem, minha Nossa Senhora!... Ôa, ôa, boi!... Ôa, meu Deus do céu!...
(C.B., p. 360-361).
Nesse momento o clímax da história, Tiãozinho chamado pelos bois como
bezerro do homem – acaba vingando a morte do pai antes mesmo de este ser enterrado. Neste
ponto, a presença de um autor-empírico, que quer levar o leitor-empírico a refletir a partir
da ambiguidade da infância um menino frágil, triste, humilhado e doentinho é quem
provoca a morte do seu opressor, que, além de humilhá-lo, também prevalecera sobre seu pai.
Em seguida, esse mesmo autor constrói subjetivamente o terror que se abate sobre esse
menino quando ele toma plena consciência de que, ao gritar com os bois, provocara a morte
de seu Soronho, ou seja, fica apavorado, pois aquele desejo futuro de vingar o sofrimento que
o carreiro provocou para sua família, especialmente para ele e seu pai, aconteceu. "Se
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pudesse matar o carreiro... Deixa eu crescer!... Deixa eu ficar grande!... Hei de dar conta deste
danisco... (C.B., p.348).
Exemplifica-se ainda, a definição de Umberto Eco (2002), sobre autor-modelo, leitor-
modelo e leitor-empírico, a partir do texto de Guimarães:
Tinha dez anos o Didico, menor do que Tiãozinho. Mas trabalhava muito,
também. Foi num dia assim quente, de tanta poeira assim... Ele teve de ir
carrear sozinho, porque era o carro pequeno, com duas juntas e carga
pouca, de balaios de algodão. Na hora de sair, se queixou: - 'Estou com uma
coisa me sufocando... Não posso tomar fôlego direito, nem engolir... E tenho
uma dor aqui...' (Lá nele, Didico)...
Ninguém se importou; falaram até de ser manha, porque o Didico era
gordinho e corado, parecendo um anjo de estampa, de olhinhos gaiteiros e
azuis.
Mas estava custando muito a voltar. Nunca mais aparecia com o carro. E
foram encontrá-lo, longe, na covanca da Abóbora-d'Água, já frio. Os bois
haviam parado, para não pisar em cima, e estavam muito quietos, pois às
vezes eles gostam de ficar assim. Menos os da guia, que tinham mascado e
comido quase toda a roupinha do pobre do Didico... - São Brás!... (C.B., p.
342).
Segundo Eco (2002) o autor-modelo não é o autor da obra. No contexto de Conversa
de bois é a voz criada por Guimarães Rosa como o narrador do texto, a qual faz parte da
estrutura textual diretamente ligada ao leitor-modelo, que tanto pode ser o de primeiro nível
aquele leitor interessado em saber como termina o conto de Guimarães Rosa, especificamente
que fim terá Agenor Soronho e Tiãozinho – quanto pode ser o leitor-modelo de segundo nível
aquele que inúmeras vezes o texto em busca de sua real interpretação. Esse leitor,
certamente, recorrerá a questões do contexto social no qual Tiãozinho e Didico estão
inseridos, para compreender que naquele espaço social, cultural e econômico o trabalho
infantil fazia parte da cultura. Também as reclamações de Didico eram vistas como manhas, já
que era um menino gordinho, corado e de olhos claros, ou seja, naquela época excesso de
peso poderia ser sinônimo de saúde, e ainda, uma criança que reclamava de cansaço ou de
dores era vista como preguiçosa ou manhosa.
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O leitor-modelo de segundo nível de Eco (2002), na leitura de Campo Geral (2001),
de Guimarães Rosa, após a necessária releitura, certamente perceberia que o autor construiu a
subjetividade do protagonista Miguilim – que, no início da novela é descrito como um menino
de sete anos –, como resultado de sua relação com o meio social onde vive, ou seja, tanto a
sua relação com o “outro”
10
quanto com o espaço onde está inserido interferem em sua forma
de ver e sentir o mundo.
Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia
para dar à mãe: o que o homem tinha falado que o Mutum era lugar
bonito... A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava
consolada. Era um presente; e a idéia de poder trazê-lo desse jeito de cór,
como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas. Tão grave, grande, que
nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de
esperar; e, assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e
contou-lhe, estremecido, aquela revelação. (C.G., p. 28).
Quanto desprendimento de si nesse menino. Uma demonstração de amor
incondicional pela mãe. Em análises sociais não é possível conjecturar, contudo, como seres
humanos, todos tivemos infância, daí vem a possibilidade da reflexão da grandiosidade de
Guimarães Rosa que tinha a sensibilidade de olhar para a infância, quem sabe, com a intenção
de que também a sociedade olhasse para estes seres que cresciam de forma invisível.
Miguilim é uma criança que quer agradar sua mãe e também seu pai, o fluxo de sua
consciência clarifica que, quando da volta da viagem que fez com tio Terêz para ser crismado,
pensou em ficar a sós com sua mãe para lhe contar a boa notícia de que outra pessoa via
Mutum como um belo lugar, esqueceu até de dar atenção a seu pai, motivo pelo qual no dia
seguinte domingo ficou de castigo, que o pai zangado com a atitude do filho saiu para
pescar no córrego levando apenas seus irmãozinhos.
Miguilim não sabia ao certo distinguir o feio do bonito, para ele, o bonito poderia
representar uma sensação de felicidade para sua mãe que via com tristeza aquele lugar. Apesar
10
De acordo com Bakhtin conheço o meu “eu” na relação intersubjetiva com o “outro”.
60
de não ter nascido no Mutum ele se sentia integrado àquele espaço. “Tinha nascido ainda
mais longe, também em buraco de mato, lugar chamado Pau-Rôxo, na beira do Saririnhém.”
(C.G., p.30). De sua terra natal Miguilim tinha poucas recordações, dentre as quais situações
que ainda o assombravam, como quando fora curado por vovó Izidra com o sangue de um
tatu.
Mas a lembrança se misturava com outra, de uma vez em que ele estava nú,
dentro da bacia, e seu pai, sua mãe, Vovó Izidra e Benvinda em volta; o
pai mandava: 'Traz o trém...' Traziam o tatú, que guinchava, e com a faca
matavam o tatú, para o sangue escorrer por cima do corpo dele para dentro
da bacia. - 'Foi de verdade mãe?' ele indagava, muito tempo depois; e a
mãe confirmava: dizia que ele tinha estado muito fraco, saído de doença, e
que o banho no sangue vivo do tatú fora para ele poder vingar. (C.G., 2001,
p. 30-31).
Na rememoração sobre o Pau-Rôxo, além dessas lembras pavorosas, Miguilim tinha,
também, outras recordações fugidias e afastadas, as quais pareciam oníricas, de umas moças
cheirosas e de sorrisos bonitos que à mesa o ajudavam a beber algo quente, que no jardim o
deixavam engatinhar e sentir o cheiro da terra e do frescor das folhas. Sua mãe, contudo, lhe
avisa que esse lugar não se refere a Pau Rôxo e sim a um passeio que fizeram a uma fazenda.
Esse flashback externiza o carinho e a saudade do cheiro da terra e das folhas nela caídas,
sentidos por Miguilim de sua terra natal. Essas lembranças do primeiro lar servem de
referência para o conceito de pertencimento a um lugar que Miguilim, agora, com sete anos,
tem em relação a Mutum.
Especificamente sob a perspectiva de Eco, pode-se considerar que o Mutum de
Guimarães Rosa é uma imaginação poética tanto em sua origem autor-empírico quanto
em seu destino leitor-empírico. Guimarães o Mutum de forma regional espaço e
universal sentimentos humanos –, sendo que as imagens poéticas desse regional e universal
que lhe tocaram o coração são transformadas em texto literário sendo capazes igualmente de
61
tocar o coração de seu leitor que re-escreve o Mutum no momento da leitura.
Levando em consideração que o leitor-empírico para Eco sou eu, você, todos nós, e
que cada leitor produz sentidos em relação a um mesmo texto, coloco-me como exemplo
desse leitor, expressando, assim, os sentidos que esse fragmento provoca em mim. Não vejo
com estranhamento a situação do trabalho infantil narrada por Guimarães Rosa em Conversa
de Bois e em Campo Geral, tendo em vista que, à época de minha infância, era comum as
crianças pobres trabalharem não nos afazeres domésticos como fora de casa, para ajudar
economicamente. Comparando-se, contudo, o contexto socioeconômico de Tiãozinho e
Miguilim que em si também é diferente com o contexto atual, no qual o estatuto da
criança e do adolescente proíbe o trabalho infantil e “garante” à criança o direito à educação e
ao bem estar social – parece uma situação paradoxal, já que a realidade tanto da periferia dos
grandes centros urbanos quanto do sertão brasileiro, ainda hoje, evidencia inúmeras crianças
expostas à necessidade de trabalho. Guimarães Rosa se reportaa exemplo de Conversa de
Bois a um contexto da primeira metade do século XX, o que, num primeiro momento,
poderá provocar estranhamento no leitor-empírico, tendo em mente as atuais leis brasileiras;
num segundo momento, entretanto, ele tenderá a perceber que a realidade na qual o escritor se
inspirou, além de não ser distante no espaço, continua a existir mais de setenta anos após.
Eco cria a teoria do leitor-modelo diretamente ligada ao autor-modelo, ou seja, quanto
melhor for o autor melhor será o leitor, este fará tantas leituras quantas forem necessárias para
compreender o que o autor quis expressar. Nesse sentido, Eco avançou para a questão do
leitor-empírico, colocando-se como exemplo através da exposição de um exercício pessoal de
leitura, modelo interessante de ser seguido, principalmente, em se tendo a intenção de ler a
infância em Guimarães Rosa: autor, complexo, que exige que seu leitor dê um passo a mais na
compreensão de suas obras, que não há, o meu caso, como entender os significados dos
62
textos rosianos em uma primeira ou única leitura. É preciso, assim como Eco fez com a leitura
de Sylvie, de Gérard de Nerval guardadas as devidas proporções, principalmente, por estar
longe dessa experiência de Eco de quarenta anos de leitura de Sylvie , uma experiência de
inúmeras leituras de Conversa de Bois e Campo Geral, para se chegar à compreensão eficaz
de tais textos.
1.4 UMA LEITURA BAKHTINIANA DA INFÂNCIA EM CAMPO GERAL E EM
CONVERSA DE BOIS.
Para Bakhtin, o signo linguístico é um signo social e ideológico que promove a
interação social. O autor define a língua “como expressão das relações e das lutas sociais,
veiculando e sofrendo os efeitos desta luta, servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e de
material”. (BAKHTIN, 1997, p. 17). Ou seja, língua e interação social estão interligadas,
que tal interação ocorre por meio da linguagem e esta é carregada de conotações ideológicas,
uma vez que é a partir da palavra que as tensões e os conflitos sociais são gerados.
Bakhtin (1997) evidencia que a linguagem é a matriz para a compreensão da
consciência individual e que a consciência do homem é construída pela comunicação
semiótica e pela interação com o seu grupo social, portanto, o universo verbal não pertence ao
indivíduo, mas ao grupo local e ao ambiente social no qual ele está inserido. Bakhtin resgata
Aristóteles ao propor que o homem nasceria duas vezes: a primeira como animal e a segunda
como um ser social. Ou seja, o homem não nasce, apenas, como um organismo biológico
abstrato, mas também como burguês ou proletário, como russo ou francês, etc., nasce,
portanto, dentro de uma classe social, em um grupo e em uma pátria.
O individualismo é uma forma ideológica particular da atividade mental do
nós da classe burguesa (encontra-se um tipo análogo na classe feudal
63
aristocrática). A atividade mental de tipo individualista caracteriza-se por
uma orientação social sólida e afirmada. Não é do interior, do mais profundo
da personalidade que se tira a confiança individualista em si, a consciência
do próprio valor, mas do exterior; trata-se da explicitação do meu status
social. (BAKHTIN, 1997, p. 117).
Para Bakhtin, não se pode acreditar na sinceridade subjetiva das concepções humanas,
pois é nas interpelações de classe que se respalda toda a sua teoria. Assim, as respostas
verbalizadas são uma formação, essencialmente social, o que o leva a crer que todas as falas
humanas são produto de uma consciência de classe e não de indivíduos. O consciente e o
inconsciente estão em constante interação, em estado de luta permanente entre si. “Assim, a
personalidade que se exprime, apreendida, por assim dizer, do interior, revela-se um produto
total da inter-relação social.” (BAKHTIN, 1997, p. 117).
De acordo com Bakhtin (1997) a vida psíquica se apresenta ao homem de duas
maneiras: a primeira adviria da experiência interior vivências emocionais, concepções,
sentimentos, desejos; a segunda adviria das experiências objetivas externas causa-efeito
fundamentadas na materialidade do que é externo, do que tem sentido na vida e na prática.
Nas experiências externas o que corresponde às vivências interiores são “as palavras”. Terry
Eagleton (2001) argumenta que a linguagem para Bakhtin é resultado de uma prática social,
portanto a interação social é a materialização da língua:
Além disso, como todos os signos eram materiais - tão materiais quanto os
corpos ou os automóveis - e como não podia haver consciência humana sem
eles, a teoria da linguagem de Bakhtin lançava as bases de uma teoria
materialista da própria consciência. A consciência humana era o intercâmbio
ativo, material, semiótico, do sujeito com outros sujeitos, e não um reino
fechado, divorciado dessas relações; a consciência, como a linguagem, era,
simultaneamente, "interior" e "exterior" ao sujeito. (EAGLETON, 2001, p.
161).
Sendo a linguagem organizada pelo meio social no qual o indivíduo está inserido,
logo, a autoconsciência é um complexo verbal: vejo a mim a partir dos outros. O social dá ao
64
homem as palavras e ele as une aos valores constituídos em sociedade. A subjetividade
humana é construída socialmente. Eagleton conclui afirmando que para Bakhtin a interação
social se por meio da interação verbal, ou seja, pelo diálogo ocorrido entre os sujeitos
sociais. Se a dialogicidade é carregada de conotação social, a compreensão do enunciado,
portanto, precisa considerar o contexto social dos falantes:
Assim, a teoria da expressão subjacente ao subjetivismo individualista deve
ser completamente rejeitada. O centro organizador de toda enunciação, de
toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que
envolve o indivíduo. (BAKHTIN, 1997, p. 121).
Verifica-se que para Bakhtin a enunciação individual é um fenômeno essencialmente
sociológico, por isso a estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social, que a
enunciação acontece entre os sujeitos falantes. O autor afirma que a filosofia marxista da
linguagem deve ter como base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e
como estrutura sócio-ideológica. Nas palavras de Terry Eagleton tem-se a representação da
função de signo linguístico para Bakhtin:
Como tais avaliações e conotações modificam-se constantemente, que a
"comunidade linguística" era na verdade uma sociedade heterogênea
composta de muitos interesses conflitantes, o signo para Bakhtin era menos
um elemento neutro de uma estrutura qualquer do que um foco de luta e
contradição. Não se tratava simplesmente de perguntar "o que significa o
signo", mas de investigar sua diversidade histórica, na medida em que
grupos sociais, classes, indivíduos e discursos conflitantes tentavam
apropriar-se dele e impregná-lo de seus próprios significados. Em suma, a
linguagem era um campo de luta ideológica, não um sistema monolítico.
(EAGLETON, 2001, p. 160-161).
Terry Eagleton (2001) conclui que Bakhtin concebe o signo linguístico como um signo
social e ideológico, resultado da relação intersubjetiva entre os sujeitos sociais, sendo a
consciência individual constituída por meio da linguagem da dialogicidade, o diálogo entre
o “eu” e o “outro”. Ou seja, a interação social que ocorre por meio da interação verbal reflete
65
as ideologias de determinado indivíduo ou de determinada classe social.
Nesse aspecto, em Campo Geral (2001), de Guimarães Rosa, pela perspectiva de
Miguilim, pode-se conhecer os conflitos existenciais das personagens que estão inseridas no
espaço do sertão mineiro, em um lugarejo chamado Mutum. O foco narrativo dessa novela,
por meio de sua estrutura sócio-ideológica, apresenta a infância de Miguilim, construída pelo
autor através da interação social entre as personagens em geral, com destaque para Miguilim e
Dito – seu irmão mais novo.
- 'Mas eu sei, que é mesmo. Aquilo que você perguntou." "- Então, quando
você está com medo você também reza, Dito?' '- Rezo baixo, e aperto a mão
fechada, aperto o no chão, até doer...' ' - Por que será Dito?' ' - Eu rezo
assim. Eu acho que é por causa que Deus é corajoso.' (C.G., p. 98).
Percebe-se que os sentimentos de medo de Miguilim e Dito são superados pela crença
na oração, no contato com Deus, um ser corajoso, capaz de protegê-los. Entende-se que o
medo de Miguilim e Dito não é exclusivo a eles ou ao ambiente em que vivem. Guimarães
Rosa, por meio da construção desse discurso literário, traz à tona um sentimento universal, já
que o medo sentido por essas personagens pode provocar um efeito catártico
11
no leitor,
independente de ele ser criança ou adulto.
O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas
artisticamente, às vezes de línguas e vozes individuais. [...] enfim, toda
estratificação interna de cada língua em cada momento dado de sua
existência histórica constitui premissa indispensável do gênero romanesco. E
é graças ao plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de vozes
diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo o seu mundo
objetal, semântico, figurativo e expressivo. (BAKHTIN, 1988, p. 74).
Para Bakhtin, o gênero romanesco possibilita a leitura de diversas vozes sociais.
Nesse sentido, os textos de Guimarães Rosa propiciam a leitura de vozes de outros textos, por
exemplo, em Campo Geral uma intertextualidade bíblica: "Vovó Izidra xingava tio Terêz
11
Identificação emocional do leitor frente ao drama vivenciado pelo personagem.
66
de "Caim" que matou Abel." (C.G., p. 42).
Mas Vovó Izidra vinha saindo de seu quarto escuro, carregava a almofada de
crivo na mão, caçando tio Terêz. - "Menino, você ainda está aí?!" -; ela
queria que Miguilim fosse para longe, não ouvir o que ela ia dizer a tio
Terêz. Miguilim parava perto da porta, escutava. O que ela estava dizendo:
estava mandando tio Terêz fosse embora. Mais falava, com uma certa curta
brabeza diferente, palavras raspadas. Forcejava que o tio Terêz fosse embora,
por nunca mais, na mesma hora. Falava que por umas coisas assim é que
questão de brigas e mortes, desmanchando famílias. ( C.G., p. 41).
Guimarães Rosa lança o conflito Miguilim escuta Vovó Izidra mandar tio Terêz
embora. Então ele sente remorso por gostar do Tio Terêz e conclui que realmente o tio
deveria ir embora. Do contrário, com o retorno do pai poderia haver uma desgraça na família.
Os conflitos familiares aos quais Miguilim está exposto, em relação aos aspectos regionais do
sertão de Minas Gerais, de certa forma desvelam as angústias e o doloroso processo de
aprendizagem de Miguilim e este sentimento extrapola as bitolas do sertão. Percebe-se que o
autor prenuncia a traição de Nhanina
12
mãe de Miguilim, com Tio Terêz, seu cunhado e tio
de Miguilim e utiliza de sentimentos e atitudes humanas, de forma que o individual das
personagens torna-se universal e, assim, possibilita a reflexão de famílias desestruturadas
devido à traição.
Em Campo Geral (2001), Guimarães Rosa promove a dialética entre o discurso
interior e exterior das personagens, evidenciando como os comportamentos são modelados
pelos valores sociais. Dessa forma, os comportamentos que escapam à ordem social
estabelecida, como, por exemplo, o desregramento e a tendência ao adultério de Nhanina
diverge do discurso oficial e, em função do seu poder desagregador, não pode ser
12
Também a origem da família materna de Miguilim revela a fragilidade da sua institucionalização,
uma vez que sua avó materna fora prostituta. “Um vaqueiro contou ao Dito, de segredo,
Benvinda quando moça tinha sido mulher-à-toa. Mulher-à-toa é que os homens vão em casa dela e
ela quando morre vai para o inferno” (C.G., p. 478). Portanto, Guimarães Rosa, ao criar a
personagem Nhanina, faz remissão àquela massa amorfa e caótica, sem eira nem beira, que vivia
e parte ainda vive de déu em déu pelas áreas rurais ou pelas periferias urbanas brasileiras.
(FORTES, 2009, p. 03).
67
exteriorizado e deve ser coibido. Miguilim, contudo, percebe esse desregramento e se
decepciona com a atitude da mãe.
A situação de traição por parte da mãe a atitude adúltera da mãe ameaça o universo
da criança que aparece na história de Miguilim em Campo Geral (2001), pode ser
constatada, também, no conto Conversa de Bois. Nesse conto Guimarães Rosa narra a história
da personagem Tiãozinho que vivencia sentimentos de medo e ódio por Agenor Soronho
amante de sua mãe:
Tiãozinho veio no grito, mas se mexendo encolhido, com medo de que o
homem desse nele com a vara de ferrão. Falta de justiça, ruindade só. Foi o
carreiro mesmo quem apertou a chaveta da cantadeira, hoje cedo; e até
estava enjerizado, na hora, falando que Tiãozinho era um preguiçoso, que
não prestava nem para ajeitar o carro nem para encangar os bois. (C.B., p.
337).
Guimarães Rosa evidencia o meio social em que esta personagem está inserida, a qual
ainda criança de sete anos assume o trabalho de guia de carro-de-bois. Verifica-se, então, uma
situação opressora de trabalho infantil, que chega ao extremo do patrão sentir-se no direito de
agredir verbal e fisicamente o empregado criança –, caso este não cumpra o trabalho a seu
contento.
Constata-se que a forma de agir de Agenor Soronho provoca em Tiãozinho medo – um
medo duplo. Nessa relação, o poder
13
está duplamente ao lado de Soronho, tanto porque em
certa medida por ser amante da mãe sustenta a casa do menino, quanto pela força física
que exerce sobre Tiãozinho, além, é claro, das relações de adulto opressor e criança oprimida,
como era característico no contexto ao qual se reporta o autor. O patrão, sendo adulto, inibe
qualquer possibilidade de reação, não restando a Tiãozinho outra alternativa do que temê-lo:
13
Para Michel Foucault (1979) o poder não existe apenas na relaçãodominante versus dominado” -
existe uma circularidade, o poder funciona em rede, ou seja, os indivíduos estão sempre em posição
de exercer o poder ou de submeter-se a ele.
68
Ah, da mãe não gostava!... Era nova e bonita, mas antes não fosse... Mãe da
gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito... Que não
tivesse mexida com outro homem nenhum... Como é que ele ia poder gostar
direito da mãe?... Ela deixava a que o Agenor carreiro mandasse nele,
xingasse, tomasse conta, batesse... Mandava que ele obedecesse ao Soronho,
porque o homem era quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro
não gostava de Tiãozinho... E era melhor, mesmo, porque ele também tinha
ojeriza daquele capeta!...Ruço!... Entrão!... Malvado! (C.B., p. 339).
Esse fato social
14
o adultério feminino –, embora de perspectiva diferente, é
retomado por Guimarães Rosa na novela Campo Geral, e também nesta, este tema é
percebido pelo olhar de Miguilim, assim como o fora por Tiãozinho em Conversa de Bois.
Assim, este autor, por meio do texto literário, promove a reflexão da interação social que se
a partir do discurso interior e exterior das personagens Tiãozinho e Miguilim, que sofrem
com a atitude de suas mães.
Tiãozinho chamado pelos bois como bezerro do homem parte da narrativa é
percebida da perspectiva dos bois acaba vingando a morte do pai antes mesmo de este ser
enterrado. Em seguida, quando toma plena consciência de que, ao gritar com os bois,
provocara a morte de seu Soronho, fica apavorado, pois seu desejo de vingar o sofrimento
que o carreiro provocou para sua família, especialmente para ele e seu pai, projetado para o
futuro já se confirmou no tempo presente, antes mesmo de seu pai ter sido sepultado.
Em Conversa de Bois uma mescla do mundo fantástico com o mundo real, este é
construído por meio de elementos daquele, pois o leitor é levado a fazer um pacto ficcional
com o autor e acreditar que bois falam, pensam e, ainda, refletem sobre as ações humanas.
Guimarães Rosa constrói seu conto dando vida e inteligência aos animais, inclusive, no
próprio texto insere um personagem humano, Manuel Timborna, que não acredita que
animais falam, como pede licença para recontar um fato vivenciado pela Irara, a quem chama
14
Em As Regras do Método Sociológico (1978), Émile Durkheim afirma que todo modo de ser e de
agir do indivíduo em sociedade é considerado como um fato social, o qual é conhecido pelo poder
de coerção externa que exerce ou é passível de exercer sobre o outro.
69
de Risoleta. Esta é descrita como uma moça séria e graciosa, se fosse mulher. A irara é,
também, comparada a uma mulherzinha teimosa e que gosta de espiar, alusão à curiosidade
feminina.
O sentido de palavra para Bakhtin (1997) todas as tensões e todos os conflitos
sociais são gerados por meio da palavra, é confirmado por Guimarães Rosa, tanto na história
de Miguilim em Campo Geral (2001) quanto pela história de Tiãozinho em Conversa de Bois
(2001). A palavra contida nesses textos é capaz de evidenciar as tensões, os conflitos
familiares, especialmente, a tristeza de Miguilim e Tiãozinho pelas atitudes adúlteras e fracas
de suas mães, algo que lhes tira a alegria de viver, lhes provoca um sentimento de insegurança
perante o futuro:
“Batia. Batia, mas Miguilim não chorava. Não chorava, porque estava com
um pensamento: quando ele crescesse, matava Pai. Estava pensando de que
jeito era que ia matar Pai, e então começou a rir. Aí, Pai esbarrou de bater,
espantado: como tinha batido na cabeça também, pensou que Miguilim podia
estar ficando dôido. [...] E Miguilim chorou foi dentro de casa, quando
Mãe estava lavando com água-com-sal os lugares machucados em seu corpo.
Mas, meu filhinho, Miguilim, você, por causa de um estranho, você
agride um irmão seu, um parente?” Bato! Bato é no que é pior, no
maldoso!” Bufava. Agora ele sabia, de toda certeza: Pai tinha raiva com ele,
mas Pai não prestava. (C.G., p. 135).
Miguilim não gostava do pai e estava decepcionado com sua mãe, esta para ele, amava
Luisaltino, e o pior, embora sofresse com ele, era fraca, não fora capaz de impedir que o pai
batesse com tamanha crueldade no filho. Num rompante, porém, Miguilim limpa as lágrimas
e decide nunca mais chorar e nem sentir medo de ninguém. Nota-se que a vivência concreta
constrói a subjetividade desse menino, o ódio que Miguilim sente, especificamente, por seu
pai, é resultado da forma como este o tratou.
Na análise dos textos de Guimarães Rosa, nota-se que a interação social das
personagens não é apenas construída por meio da linguagem, mas também de que esta
70
linguagem é uma representação social e histórica das mesmas. Dessa forma, esses textos
proporcionam a leitura de um sertão mineiro onde estava estabelecida a ideologia do sistema
patriarcal, em cujo estofo era permitido o trabalho infantil e a violência contra as crianças.
Contudo, tal sistema estava em decadência, fato evidenciado em ambas as histórias pela
traição aos maridos tanto pela mãe de Tiãozinho quanto pela mãe de Miguilim.
Em Campo Geral, a forma adúltera de agir de Nhanina, prenunciada pelo fato do
bilhete do tio Terêz, é retomada, por Dito, que em seu leito de morte quer alertar o irmão mais
velho, em segredo, dizendo que quando estavam sós, vovó Izidra a todo momento xingava a
mãe, mas, o delírio febril não o deixa completar o segredo, e em seguida confessa ao irmão
que sentia inveja por Papaco-o-Paco falar Miguilim me um beijim” e não saber falar
“Dito”. Esse motivo leva Miguilim a ensinar sem sucesso o papagaio a pronunciar o nome de
seu amado irmão Dito, nessa empreitada, pede ajuda a Rosa, que também fracassa, pois o
papagaio só vai falar o nome do Dito depois que este já morreu.
Dito confessa ao irmão que queria ser um fazendeiro, ter grande quantidade de terra,
com muito pasto e muitos bois. O vencedor naquele contexto é o dono da terra, o dono dos
bois, e Miguilim diz ao irmão “você vai ter tudo o que quer”; talvez Miguilim seja tão
ingênuo como as crianças costumam ser que acredite nisso ou, quem sabe, nesse momento,
era preciso consolar o irmãozinho. “O Dito olhava triste, sem desprezo, do jeito que a gente
olha triste num espelho. 'Mas depois tudo quanto cansa, no fim tudo cansa...” (C.G., p.
117).
A questão da consciência individual que Eagleton afirma, que para Bakhtin é uma
construção social, pode ser constatada nos discursos interiores a voz do pensamento e
exteriores a palavra verbalizada dos personagens Tiãozinho e Miguilim, respectivamente,
em Conversa de Bois (2001) e em Campo Geral (2001). "Faz um feitiço para ele não morrer,
71
Mãitina! Faz todos os feitiços, depressa, que você sabe... Mas aí, no vôo do instante, ele
sentiu uma coisinha caindo em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais
adiantava”. (C.G., p. 119).
Nesse exemplo uma mescla de discursos interior e exterior. Miguilim pede para
Mãitina fazer feitiços para evitar a morte de seu amado irmão, essa situação objetiva
evidencia a subjetiva a extrema dor de Miguilim. A construção da consciência individual é
clarificada pela representação da crença do povo em feitiços, bem como pela evidência da dor
que a morte de um ente querido provoca.
Esse sofrimento também é vivenciado por Tiãozinho: "- Pobrezinho do menino!... -
exclama a moça do silhão”. A tais palavras, Tiãozinho, que estava meio quase consolado,
recebe inteira, de volta, sua grande tristeza outra vez." (C.B., p.332). Em Conversa de Bois,
Guimarães Rosa coloca em cena a situação de extrema tristeza em que uma criança é exposta,
ela mesma tem que guiar o carro-de-boi que leva seu pai morto sobre as rapaduras e, o pior, o
carro que leva o corpo de seu pai é do homem que em vida lhe provocou tristezas por sua
condição de patrão que se sentia no direito, inclusive, de deitar-se com a sua mulher.
Toda essa situação conflitante é construída no imaginário do leitor por meio da palavra
romanesca de Guimarães Rosa. É pela leitura desses textos que o leitor se identifica com a
história e tem um sentimento catártico de compaixão em relação a Miguilim e a Tiãozinho,
que o autor mostra uma realidade em que as crianças acabavam sendo envolvidas no mundo
dos adultos, sofriam com as dores de seus pais e com os erros de suas mães. Contudo,
sofriam sozinhas, não havia o diálogo entre pai e filho, até porque em um sistema arcaico e
patriarcal as crianças tinham responsabilidades de adultos, sem que seus sentimentos fossem
considerados. A relação desses meninos com suas mães é construída de forma a evidenciar o
amor deles por elas, mas estas, para eles, não são capazes de amá-los como eles as amam, pois
72
não são capazes de defendê-los, como esperam, uma do próprio pai Seo Bero e a outra do
amante – Seo Soronho.
Bakhtin (1997) clarifica que o homem não nasce como um organismo biológico
abstrato, mas sim nasce dentro de uma classe social, em um tempo, em um lugar, em uma
pátria, e essa localização social e histórica do homem o torna real e lhe determina o
conteúdo da criação da vida e da cultura.
Ao se analisar Campo Geral e Conversa de Bois, constata-se que Guimarães Rosa
representa nestes textos literários essa localização social e histórica, possibilitando tanto a
compreensão de um espaço regional estruturado pelas características do sertão mineiro –,
quanto por um espaço universal caracterizado pelos sentimentos inerentes à condição
humana das personagens.
73
II. INFÂNCIA: UM CONSTRUCTO SOCIAL
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Neste capítulo será abordado o conceito sociológico de infância a partir, especialmente, dos
textos Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno (1990), de Elizabeth Badinter,
Sobrados e Mucambos (1985), de Gilberto Freyre, e a História Social da Criança e da
Família (1981), de Philippe Ariès.
Elizabeth Badinter analisa com um olhar distanciado a concepção de infância da
antiguidade clássica à contemporaneidade, passando pela Idade Média até chegar à Idade
Moderna. Gilberto Freyre a analisa a partir da prática cotidiana no Brasil colonial e imperial.
O historiador francês Philippe Ariès teoriza sobre a condição da infância, enfatizando que o
amor pelas crianças, por vários séculos, ou foi despercebido, sufocado ou, em muitos casos,
nunca existiu. Embora Badinter e Ariès se atenham ao contexto europeu e Freyre ao
brasileiro, houve no Brasil, guardadas as proporções, uma grande influência do modelo
patriarcal vindo da Europa. Salienta-se, contudo apesar do comprometimento e do olhar
elitista de Freyre que sua obra é relevante para a compreensão da formação da sociedade e
do imaginário brasileiro.
Na configuração espacial e social de Campo Geral, de Guimarães Rosa, impera um
arremedo da estrutura patriarcal composta por pai, mãe, filhos, parentes e agregados vovó
Izidra, tio Terêz. Entretanto, esta estrutura, de fato, é apenas um arremedo, visto que Bero, o
chefe da casa, está tentando fazer uma passagem da condição de miserável, vindo de uma
estrutura caótica, à de remediado, com uma família estruturada, nos moldes da decadente
família patriarcal
15
.
15
A família patriarcal compunha-se não somente de casais subordinados ao chefe, mas incluíam a
74
Nessa tentativa de passar da condição de pobre para remediado, Bero trabalha de
forma desesperada e impõe o rigor patriarcal na educação dos filhos. Contudo, o agravante
do comportamento infantil e erotizado de adolescente de Nhanina, mulher de Bero e mãe de
Miguilim, que desestabiliza a família e expõe as crianças a um profundo desconforto e
instabilidade, tanto é assim, que o seu comportamento imaturo será a fonte da tragédia que se
abate sobre a família.
A estrutura da infância, inspirada no modelo patriarcal é percebida pela condição de
opressão das crianças, pela imaturidade da mãe, que desestrutura emocionalmente o pai que,
quando ameaçado, se torna violento com os filhos. Assim, é na origem dessa família sem eira
nem beira – Nhanina é filha de uma prostituta – que está a raiz da tragédia familiar. Seguindo,
ainda, o modelo de família patriarcal, o filho mais velho, Liovaldo, está sendo criado pelos
tios, longe de casa. Naquele período ao qual se reporta Guimarães Rosa era comum que
alguns filhos fossem criados pelos avós, tios ou padrinhos.
No conto Conversa de Bois (2001), também de Guimarães Rosa, o personagem
protagonista Tiãozinho integra social e economicamente aquela massa de miseráveis
16
socialmente invisível, como atesta o fato de, apesar de ser, apenas, um menino de sete anos
“idade da razão” –, trabalhar como candieiro e estar sujeito à tirania e à crueldade do
carreiro e amante de sua mãe. Entretanto, naquela estrutura, cada um a seu modo, Miguilim e
Tiãozinho são crianças tão determinadas e com tamanha opinião quanto os adultos. Miguilim
demonstra isso ao enfrentar o pai em defesa da mãe, ao destruir todos os seus brinquedos,
pondo fim à sua infância; ao ir embora apenas com oito anos em busca dos óculos e,
família os servos ou agregados, os escravos, as crianças de todos, das quais eram recrutadas as
amantes ocasionais e as concubinas dos homens brancos e, entre os quais viviam as crianças
nascidas de tais união. (CANDIDO, Antonio, 1951, p. 07).
16
Com a cessação das bandeiras e a corrida do ouro, a massa de dependente de homens livres
desempregados, a maioria deles mestiços, ficaram gradualmente separados dos grupos que
mantinham, isto é, das famílias patriarcais às quais serviam como agregados e tornaram-se um
estrato social amorfo e anônimo. (CANDIDO, Antonio, 1951, p. 09).
75
simbolicamente, ao aprender a ver o mundo sem a mediação dos olhos do dito. Tiãozinho, ao
vingar a humilhação e a morte do pai antes mesmo de este ser enterrado.
Com o intuito de analisar como Guimarães Rosa se ateve à questão da infância em
Campo Geral e em Conversa de Bois, buscou-se rastrear as origens do conceito de infância
que imperou no Brasil ao longo do período patriarcal, tendo como suporte teórico os franceses
Elizabeth Badinter e Philippe Ariès e o brasileiro Gilberto Freyre. Enquanto, atualmente, a
criança é o centro da família e é protegida legalmente pelo Estado, naquele sistema, ela,
muitas vezes, nem era percebida como gente e, por isso, estava totalmente sujeita à opressão e
à violência dos adultos.
Neste capítulo, respaldando-se nos conceitos de infância dos autores supracitados e
nos de ritos de passagem analisados por Mircea Eliade, analisa-se o rito de passagem da
condição de criança a adulto sem a vivência da adolescência, das personagens Tiãozinho e
Miguilim. Tiãozinho segue o modelo de homem daquele universo ele deseja crescer e
mandar na mãe, ser dono de si e ter condições econômicas para manter-se e garantir a
sobrevivência de sua família. Com o pai morto socialmente – mesmo antes de este ter morrido
de fato é Tiãozinho que, na estrutura social da família, irá assumir o papel de chefe, que
durante a narrativa, é assumido pelo patrão, Agenor Soronho. Portanto, cabe a este menino de
sete anos vingar a morte do pai e manter a família. Durante a viagem de Tiãozinho, seu fluxo
de consciência revela a sua intenção de, quando crescer, poder mandar na casa, na mãe,
assumir o lugar do pai que em vida fora destituído do seu papel de chefe da família por Seo
Agenor Soronho e, principalmente, o maior de todos seus desejos: vingar-se do patrão não
pelos maus-tratos deste para com ele, mas, principalmente, pelas humilhações que causou
ao seu pai.
Ainda respaldando-se nos conceitos de ritos de passagem de Mircea Eliade, pretende-
76
se estudar a transição da condição de criança à de adulto de Miguilim, que assim como em
Conversa de bois, cujo rito de passagem se durante algumas horas e ao longo de uma
viagem de carro-de-bois, a estória de Miguilim também abarca o lapso de tempo entre duas
viagens: a primeira quando ele, com sete anos idade da razão volta da viagem que fizera
com seu tio Terêz para ser crismado e ao longo da qual ele aprende o valor do Mutum o
lugar onde ele mora – e sobre o que é saudade por estar longe da família e fora do seu espaço;
a segunda a que encerra o texto rosiano Campo Geral a partida de Miguilim do Mutum
em companhia do doutor.
2.2 ELIZABETH BADINTER: A ORIGEM DO CONCEITO INFÂNCIA
Elizabeth Badinter, no livro Um amor conquistado: o mito do amor materno (1990),
entre outros aspectos, rastreia a origem do conceito infância, bem como a condição da criança
da antiguidade clássica à contemporaneidade. Para a autora, a mudança de mentalidade em
relação ao papel da criança na família e na sociedade sofreu uma transformação longa e
gradativa, que foi de semi-escrava à criatura divina. Neste sentido, a autora cita o estudo
meticuloso de Philippe Ariès sobre a evolução da condição infantil através da iconografia da
pedagogia e dos jogos infantis, concluindo que, a partir do século XVII, a infância passou a
ter uma concepção nova para os adultos. Mas essa concepção ainda não colocava a criança no
centro da família, nem se baseava na ternura entre pais e filhos.
Por que 1760? Pode surpreender a indicação de uma data tão precisa para a
modificação das mentalidades. Como se de um ano para outro tudo tivesse
modificado, Não foi esse o caso, e Philippe Ariès mostrou que foi necessária
uma longa evolução para que o sentimento da infância realmente se
arraigasse nas mentalidades. Estudando muito cuidadosamente a iconografia
relacionada com o assunto, a pedagogia e os jogo infantis, Ariès concluiu
que, a partir do início do século XVII, os adultos modificam sua concepção
da infância e lhe concedem um atenção nova, que não lhe manifestavam
77
antes. Essa atenção dada à criança, porém, não significa ainda que se lhe
reconheça um lugar tão privilegiado na família que faça dela o seu centro.
(BADINTER, 1990, p. 53).
Para a autora, o ano de 1760 tem papel fundamental na origem do conceito de
infância, naquele período as famílias ainda baseavam suas relações nos modelos do século
XVI. Embora decadente nas classes dominantes, este modelo ainda vigorava nas classes
menos abastadas. A criança ainda era vista como transtorno, ou como algo inútil, ou seja, a
sociedade não reconhecia a criança como sendo o centro do universo familiar. Essa concepção
começa a se arraigar nas classes ascendentes na segunda metade do século XVIII.
Também é na segunda metade do século XVIII que os escritores começam a apontar o
amor materno como importante e a sociedade passa a assimilar esse conceito. É importante
destacar que não se está, aqui, duvidando da capacidade de os pais amarem os filhos, nem que
todos os pais, antes da criação de tal conceito, não amassem seus filhos e, menos ainda, que,
com esta mudança de mentalidade todos os pais passaram a amar os filhos. O que se destaca é
que o conceito de infância, que hoje parece inato, é, de fato, um constructo social e cultural.
Jean-Jacques Rousseau publica Émile em 1762, cristalizando a nova concepção de
infância que terá grande influência sobre a sociedade e família moderna. Badinter afirma que
Ariès baseia as relações entre pais e filhos na ternura mútua, e não mais na autoridade paterna.
Durante longos séculos, a teologia cristã, na pessoa de Santo Agostinho,
elaborou uma imagem dramática da infância. Logo que nasce, a criança é
símbolo da força do mal, um ser imperfeito esmagado pelo peso do pecado
original. Em A cidade de Deus, Santo Agostinho explicita longamente o que
entende por 'pecado da infância'. Descreve o filho do homem, ignorante,
apaixonado e caprichoso: 'Se o deixássemos fazer o que lhe agrada, não
crime em que não se precipitaria'. (BADINTER, 1990, p. 55).
Segundo Badinter (1990), os postulados agostinianos que afirmavam ter a criança
até os sete anos de idade uma tendência inata para o mal vigoraram por vários séculos,
78
consolidando a visão de que a criança estava, sempre, sujeita aos pecados. Dessa tendência
inata adviria o pecado original, isto é, a malignidade, a ignorância, a precipitação para o mal.
Como tal, originalmente, a criança seria, de acordo com Santo Agostinho, um castigo divino
contra a humanidade.
Até o final do século XVII, o pensamento agostiniano ainda era fortemente retomado,
mantendo uma atmosfera de rudeza e frieza no tratamento familiar e educacional. Como a
pedagogia era essencialmente baseada nas ideias de Santo Agostinho, os pedagogos
incentivavam os pais a tratarem duramente seus filhos, visto que estes eram sementes do mal
nas famílias.
A ternura das mães para com os filhos era combatida e condenada, e os filósofos, em
sintonia com a mentalidade de época, durante séculos, colocavam a culpa da maldade, vícios e
desvios de comportamento dos filhos no excesso de amor materno na infância, inclusive, pelo
ato da amamentação. Badinter, contudo, salienta que o ato da amamentação não era
condenado por Vivès, desde que este ato não fosse voltado para a satisfação pessoal da mãe
ou da criança.
À primeira vista, seríamos tentados a crer que Vivès se declara contra a
amamentação materna. Mas nada seria mais falso, pois sabe-se que Vivès,
como Erasmo ou Scévole de Sainte-Marthe, militavam vigorosamente em
prol do aleitamento materno,em desuso na alta aristocracia. (BADINTER,
1990, p. 58).
De acordo com Badinter (1990), o aleitamento materno era defendido por militantes,
como o pregador espanhol J.L. Vivès, autor da obra A instituição da mulher cristã, na qual
criticava mulheres que faziam o ato de aleitamento materno de forma voluptuosa, ou seja, a
mãe não devia amamentar o filho para seu próprio prazer físico, pois, assim, perderia
moralmente o filho. O carinho materno era visto por Vivès como demonstração de frouxidão e
pecado, que corrompia moralmente a criança, tornando-a viciosa e acentuando seus pecados e
79
vícios naturais.
Ainda em relação à questão da amamentação, Badinter salienta que, mais tarde, a
psicanálise irá defender que o equilíbrio físico e moral da criança depende da relação bem-
sucedida durante o aleitamento materno, devendo este ser prazeroso tanto para a mãe quanto
para o filho.
Em nome dos postulados agostinianos, a boa amizade pelo filho não pode ser
tolerante. Deve ser uma atitude rigorosa que jamais perde de vista que a
finalidade da educação é salvar a alma do Pecado. Semelhante à ideologia
platônica, a pedagogia do século XVII pretende atribuir um papel importante
ao castigo redentor: para salvar uma alma, não hesitemos em castigar o
corpo. (BADINTER, 1990, p. 59).
Segundo a pedagogia agostiniana, a finalidade da educação seria salvar a alma do
pecado e, se para salvar essa alma infantil do pecado fosse preciso castigar o corpo, não
deveria haver hesitação, visto que o divino se sobreporia à existência humana. O amor
pregado era o amor punitivo, tanto que as mães deviam amar seus filhos de modo que seu
amor não corrompesse os mesmos, levando-os à maldade e aos vícios. Esse “amor” devia
fazer os filhos sofrerem para que, através dos castigos, eles aprendessem a ser bons.
Badinter (1990) conclui que as teorias propostas no século XVII eram apenas a
continuação e repetição das concepções antigas de infância, reproduzindo um sistema de
valores quase ultrapassado, ainda baseado em Aristóteles e Santo Agostinho. Mas Descartes
pôs fim à hegemonia da escola aristotélica, banindo o pensamento escolástico com a nova
Filosofia. “E se Bérulle é o continuador de Santo Agostinho, Descartes foi sem dúvida aquele
que baniu o pensamento escolástico.” (BADINTER, 1990, p. 61).
Entretanto, apesar de não ver a infância como símbolo do pecado, a filosofia
cartesiana a como um tempo de erro, visto que todas as sensações da criança estão ligadas
ao corpo, ao prazer e à dor. Ou seja, Descartes a infância como uma fraqueza de espírito,
80
condenável e constantemente sujeita aos erros. Para ele, os erros da infância se perpetuam ao
longo da vida, distanciando humano do divino, pois se tivesse plena razão desde o
nascimento, o homem teria total conhecimento das coisas materiais, assim como Deus o tem
do divino.
Badinter (1990) acredita que Descartes se aproxima da filosofia agostiniana, pois
apenas a nomenclatura muda no pensamento cartesiano, que, para a autora, erro e pecado
são quase sinônimos entre os dois filósofos. “Ela [a infância] desempenha portanto um papel
semelhante em Descartes e em Santo Agostinho, ao nos distanciar de Deus e de sua perfeição.
Erro ou pecado, a infância é um mal.” (BADINTER, 1990, p. 63).
Badinter (1990) afirma que após 1760, com a mudança dos hábitos maternos,
gradativamente o amor de mãe passou a ser visto como um valor natural e social, sendo
favorável tanto à espécie quanto à sociedade. Mas, para que o amor materno e a amamentação
fossem mais “praticados” pelas mães e seus filhos tivessem maiores chances de
sobrevivência foi necessário que três discursos diferentes tomassem parte dessa questão: o
discurso econômico, dirigido aos homens esclarecidos; o filosófico, dirigido a homens e
mulheres e um terceiro discurso, dirigido apenas às mulheres.
A verdade é que a criança, especialmente em fins do século XVIII, adquire
um valor mercantil. Percebe-se que ela é, potencialmente, uma riqueza
econômica. Ouçamos Moheau falar, pois não se poderia ser mais claro: 'Se
príncipes cujo coração esteja fechado ao grito da natureza, se vãs
homenagens lhes puderam fazer esquecer seus súditos lhes são
semelhantes... eles deveriam pelo menos observar que o homem é ao mesmo
tempo o último termo e o instrumento de toda espécie de produto; e mesmo
considerado apenas como um ser que tem um preço, é o mais precioso
tesouro de um soberano. (BADINTER, 1990, p.153-154).
Badinter (1990) evidencia que o homem passou, então, a ser visto a partir da ideologia
capitalista, na qual o princípio de todas as riquezas, bem como da sua perda, advém da
capacidade humana de transformar todas as matérias-primas existentes nas riquezas que serão
81
geradas e, posteriormente, compradas. Para a autora, a partir da mentalidade e do discurso
econômico, a criança passou a ser vista como uma riqueza, adquirindo um valor mercantil. No
final do século XVIII, a quantidade de homens foi o que passou a importar para as sociedades,
assim, esse discurso capitalista se contrapõe à visão da ideologia cristã, segundo a qual o valor
da alma humana era avaliado não pela quantidade, e sim, pela qualidade moral dos que
existiam.
É preciso esperar meados do século XVIII para que reapareça, depois do
eclipse, a ideologia de produção, na palavra dos fisiocratas. Nessa nova
óptica quantitativa, todos os braços humanos m valor, mesmo os que
outrora eram vistos com certo desprezo. Os pobres, os mendigos, as
prostitutas e, certamente, as crianças abandonadas tornaram-se interessantes
enquanto forças de produção em potencial. Por exemplo, podiam ser
enviados para povoar as colônias francesas, grandes reservatórios de riquezas
que esperavam apenas braços sólidos para dar seus melhores frutos.
(BADINTER, 1990, p. 155-156).
Na França, a mentalidade em vigor no século XVIII implicou, também, a percepção da
existência dos excluídos sociais, como pobres, mendigos, prostitutas e crianças abandonadas,
que passavam a representar força de produção em potencial para as colônias francesas. A
sobrevivência humana passou, então, a representar a força de trabalho que impulsionaria o
capital. Neste sentido, a mortalidade infantil passou a ser preocupante, devendo ser
combatida. Além de ser importante como fonte de produção de riquezas, a população
principalmente a masculina tornou-se imprescindível no setor militar, pois precisava-se de
braços para defender o Estado.
Assim, para que a mortalidade infantil se atenuasse, era necessário que as mães
amamentassem seus filhos. Como para algumas mulheres, graças à mentalidade em vigor, isso
significava verdadeiro sacrifício, surgem dois discursos a fim de que cumprissem seu papel
natural. Tais discursos eram provenientes da filosofia iluminista e pregavam as ideias de
igualdade e felicidade individual. “A filosofia das luzes propagou duas grandes ideias
82
complementares, que favoreceram, em maior ou menor grau, o desenvolvimento do amor e de
sua expressão: as ideias de igualdade e de felicidade individual.” (BADINTER, 1990, p. 161).
Percebe-se, então, que a função paterna e a autoridade patriarcal se transformam. A
função da e, tanto na sobrevivência dos filhos quanto na sua educação, se torna cada vez
mais importante. A partir de então, a educação não se baseou mais apenas em castigos e
punições, a criança deixou de ser vista como um estorvo ou cruz a carregar e foi
gradativamente se transformado uma riqueza em potencial. Tal mudança de mentalidade
visava diminuir a mortalidade infantil e a fragilidade da criança passou a ser respeitada e
protegida. Os pais, portanto, deviam proteger e cuidar para que a vida de seus filhos fosse
preservada.
Segundo Badinter (1990) a Encyclopédie
17
postulava que a autoridade dos pais deveria
ser adequada a cada idade e ir evoluindo com a criança. Na primeira infância, acreditava-se
que a criança era incapaz de discernir, devendo a autoridade dos pais sobre esta ser total, pois
caberia aos pais assegurar a proteção e a defesa da mesma. Na puberdade, ela era capaz de
refletir, mas ainda precisava da direção dos pais. na terceira idade, ou fase adulta, a
autoridade dos pais era bastante limitada e poderia chegar a ser nula. A Encyclopédie afirmava
que cabia ao pai e à e o nascimento e a educação e que os filhos deveriam ser gratos aos
pais por toda sua vida.
Badinter (1990) argumenta que os valores enciclopedistas que se aproximam
bastante das atuais concepções consideram que os pais têm o direito de exigir afeição e
respeito dos filhos até a morte. Rousseau, um dos enciclopedistas, contradisse essa ideia
afirmando que a única forma natural de sociedade é a família, mas que esta se mantém
17
Livro que primava pelo conhecimento humano, publicado na França, no século XVIII, composto
por 28 volumes, 71.818 artigos, e 2.885 ilustrações, editada por Jean le Rond d’Alembert e Denis
Diderot, com participação de escritores ligados ao Iluminismo francês, entre eles, Voltaire,
Rousseau e Montesquieu.
83
enquanto os filhos ainda dependem dos pais. Ao se tornarem independentes, esses laços se
dissolvem e os filhos se libertam da obediência que devem aos pais, os quais se veem livres
dos deveres que têm para com os filhos; ambos conquistam então a independência e se
permanecerem unidos após essa independência não é natural, mas sim voluntário e por
convenção.
2.3 TIÃOZINHO E MIGUILIM: A CONDIÇÃO DA CRIANÇA NO SISTEMA
PATRIARCAL
Respaldando-se em Badinter e em Freyre, analisa-se em que medida as personagens
Tiãozinho e Miguilim podem ser percebidas dentro do contexto patriarcal brasileiro. Para
Elizabeth Badinter (1990), na antiguidade clássica a condição das mulheres e das crianças não
era diferente da condição dos mesmos nas sociedades da Alta Idade Média. Maridos decidiam
sobre a vida da esposa e dos filhos, mesmo que essa condição de inferioridade fosse mais
suave na Europa moderna e mais severa nas sociedades antigas. “O princípio que sustentava
toda a sua filosofia política era assim enunciado: a autoridade do homem é legítima porque
repousa sobre a desigualdade natural que existe entre os seres humanos.” (BADINTER, 1990,
p. 32). Toda a filosofia de Aristóteles estava fundamentada no princípio da desigualdade
natural. Para ele, os escravos não tinham alma, podendo sofrer qualquer tipo de abuso por
parte de qualquer outra pessoa; do escravo até o senhor da domus, cada indivíduo tinha uma
posição específica, que determinava suas inter-relações, como em uma sociedade de castas.
Numa sociedade dividida em camadas que definiam as relações pessoais, o filho do
cidadão era considerado um ser potencialmente humano, mas ainda inacabado e imperfeito,
por isso o filho deveria ser submisso e fazer da submissão sua virtude; essa submissão deveria
84
ser direcionada ao homem maduro a quem seria confiado, para que este lhe ensinasse a ser
melhor.
Dando um longo salto histórico da Idade Antiga para a sociedade moderna europeia
considerando-se aqui como moderna a sociedade pós Renascimento esta ainda estava
baseada no patriarcalismo: princípio da autoridade do pai.
A condição do Pai-Marido-Senhor todo-poderoso não pode ser explicada
senão pela sua essência. Criatura que mais ativamente participa do divino,
seus privilégios devem-se apenas à sua qualidade ontológica. É 'natural' que
a mais acabada das criaturas comande os demais membros da família, e isso
de duas maneiras: em virtude de sua semelhança com o divino, como 'deus
comanda suas criaturas', e em virtude de suas responsabilidades políticas,
econômicas e jurídicas, como um 'Rei comanda seus súditos'. Esses dois
temas aristotélicos serão profundamente retomados pela teologia cristã e
pelos teóricos da monarquia absoluta. (BADINTER, 1990, p. 33).
A condição de submissão total ao homem, tanto da mulher quanto dos filhos, baseia-se
na concepção clássica de que o homem maduro seria mais semelhante à imagem divina que
todas as demais criaturas, inclusive que a mulher. Assim como Deus comanda suas criaturas,
o homem comanda as outras criaturas a ele designadas. Esses dois conceitos são retomados
tanto pela teologia cristã quanto pelos defensores da monarquia absolutista.
Assim, o poder do homem sobre a mulher e a família, na Idade Moderna
18
, tem
influência de Aristóteles, um dos principais filósofos da Idade Antiga, bem como de valores
do Cristianismo e, ainda, de sistemas políticos monárquicos. Tais influências contribuem para
que Napoleão institua a autoridade marital como parte do Código Civil, no século XVIII.
Finalmente mais próximo de nós, eis a justificativa da autoridade marital do
Código Civil. Sabemos que Napoleão interveio em pessoa para restabelecer
plenamente a autoridade marital, ligeiramente abalada nos fins do século
XVIII. Ele insistiu que no dia do casamento a esposa reconhecesse
explicitamente dever obediência ao marido. Como os redatores do Código se
admirassem dessa insistência. Napoleão teria respondido, fazendo alusão ao
18
Período específico que ocorre na história do ocidente, que tem início em 1453 com a tomada da
Constantinopla pelos turcos otomanos e que se estende até a Revolução Francesa em 1789.
85
versículo do Gênesis: 'O Anjo disse a Adão e Eva.' No artigo 212 do Código
os legisladores deram forma aos preconceitos napoleônicos. Basearam o
poderio marital no duplo fundamento da invalidez feminina e da necessidade
de uma direção única da família.” (BADINTER, 1990, p. 39).
A autoridade do marido sobre a mulher no Código Civil deve-se a Napoleão, que
insistiu que a esposa reconhecesse no dia do casamento a autoridade do marido e a obediência
a ele devida. Como se prenunciavam abalos em relação à autoridade marital, no final do
século XVIII, Napoleão compareceu pessoalmente no Parlamento para que essa exigência
fosse cumprida, recorrendo ao Gênesis para reforçar sua teoria da inferioridade feminina.
A teologia diferentemente do que pregara o próprio Cristo perpetrou muitos dos
princípios judaicos pautados na organização patriarcal da sociedade.
Os direitos dos pais foram limitados pela doutrina católica em nome de duas
idéias novas: a dos deveres do pai para com os filhos, que já mencionamos, e
a idéia de que o filho é um 'repositório divino'. Criatura de Deus, é preciso
fazer dele, a todo preço, um bom cristão. Os pais não podem dispor dos
filhos à sua vontade, nem desembaraçar-se deles. Presente de Deus ou cruz a
carregar, não podem usar e abusar deles segundo a definição clássica de
propriedade. (BADINTER , 1990, p. 42).
Os abusos cometidos contra as crianças foram, em parte, deixados de ser praticados
graças à intermediação da Igreja Católica, que passou a postular a divindade da criança que,
como tal, não poderia ser morta, abandonada ou maltratada em demasia pelos pais. Estes
teriam o dever de tornar a criança cristã. Com vistas a coibir a violência, inclusive o abandono
e a morte dos filhos, a Igreja alegava que não se pode matar o que foi criado por Deus. Em
vista disso, desde os séculos XII e XIII, o abandono dos filhos, o aborto e o infanticídio vêm
sendo condenados pela Igreja Católica. Também o Estado tomou algumas medidas em relação
a esses aspectos.
Deslocando-se do contexto clássico e europeu teorizado por Badinter para o
brasileiro, Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos (1985), analisa a relação entre pai e
86
filho na sociedade patriarcal brasileira e, ao fazê-lo, destaca o abismo entre o menino e o
homem, um abismo social: um é grande, poderoso um exemplo a ser espelhado enquanto
o outro é fraco, pequeno. Esse texto contribui, consideravelmente, para a compreensão da
leitura da infância presente nas obras Campo Geral (2001) e Conversa de Bois (2001), de
Guimarães Rosa. Obras que se atém com justeza ao sistema patriarcal rural brasileiro que
embora decadente no contexto da narrativa rosiana no isolado espaço do sertão ainda
perdurou pelo menos até a metade do século XX.
Para Freyre (1985) nos séculos XVI, XVII e XVIII, o poder do pai sobre a família era
a reprodução do poder político vigente desses períodos. Contudo, na primeira metade do
século XIX, vindo contra essa tradição de respeito, obediência e submissão aos patriarcas, os
jovens passaram a ocupar lugares importantes de administração e poder, que antes pertenciam
somente aos mais idosos. O país, que havia se acostumado a figuras poderosas mais velhas,
vê, então, Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, com pouco mais de vinte anos tornar-
se bispo de Olinda.
Segundo Freyre (1985), as crianças até os seis ou sete anos de idade eram
consideradas anjinhos de Deus. na segunda fase da infância, a partir dos seis ou sete anos
de idade, passavam a ser consideradas meninos-diabo, pois até os dez anos comportavam-se
de forma estranha: não comiam junto com os outros, não podiam participar de conversas de
adultos e eram movidos pelas travessuras da infância, sendo maltratados e castigados por suas
ações.
Essa distância de inferior, de subordinado de subserviente – distância quando
não conservada pelo próprio menino, lhe era imposta por todos os jeitos,
mesmo os mais cruéis. Através de castigos e humilhações de que o folclore
guarda reminiscências dramáticas, ao lado da documentação oferecida por
autobiografias e memórias: homens que na meninice sofreram horrores dos
pais, dos tios-padres, do padrasto e das madrastas; e nos colégios, de mestres
terríveis. (FREYRE, 1985, p. 71).
87
O sadismo se escondia atrás da autoridade patriarcal dos casarões e imperava, também,
nos colégios de padres jesuítas da época. Ou seja, apesar das mudanças em relação ao
conceito de infância que, na Europa, estavam em pauta trezentos anos, nas regiões mais
isoladas do Brasil ainda imperavam traços da mentalidade medieval, respaldada nas
concepções de Santo Agostinho. Assim, as crianças eram consideradas vazias e desprovidas
das qualidades de adulto, sendo apenas toleradas pelos mais velhos até que crescessem. Ao
longo de toda a infância estavam sujeitas à violência física e emocional. Houve casos em que
meninos de formação patriarcal ficaram gagos, devido aos traumas da infância relacionados
ao rigor educacional tanto em casa quando nos colégios. Os castigos físicos, como a
palmatória e as humilhações faziam parte da pedagogia educacional daquela época.
Com o declínio do patriarcalismo, ocorre uma mudança de mentalidade e muitos filhos
passam a querer independência em relação aos pais, não se curvam diante destes, e mais
ainda: houve casos de filhos e pais que passaram a ser inimigos e/ou rivais. Em certas
famílias, existia, então, o patriarca velho, desrespeitado e desprestigiado e o senhor-moço,
estudado, urbano, que tomava decisões por conta própria.
Era o declínio do patriarcalismo. O desprestígio dos avós terríveis,
suavizados agora em vovós. O desprestígio dos “senhores pais” que
começavam a ser simplesmente “pais” e até “papais”. Era o menino
começando a se libertar da tirania do homem. O aluno começando a se
libertar da tirania do mestre. O filho revoltando-se contra o pai. O neto
contra o avô. Os moços assumindo lugares que se julgavam dos velhos.
Era o começo daquilo que Joaquim Nabuco chamou de neocracia: 'a
abdicação dos pais nos filhos, da idade madura na adolescência...' Fenômeno
que lhe pareceu 'exclusivamente nosso' quando parece caracterizar, com seus
excessos, toda transição do patriarcalismo para o individualismo.”
(FREYRE, 1985, p. 87-88).
Essas mudanças transformam radicalmente os costumes. Os jovens não queriam
parecer com os velhos não pintavam mais suas barbas de branco, resultado da ascensão
política e social de homens jovens, mudando tal cenário de um extremo a outro: além do
88
jovem não mais se espelhar nos idosos, declina o profundo respeito dos jovens para com os
velhos. Os avós não eram mais temidos, passaram de patriarcas a figuras doces, que não
podiam com a mocidade. Também a ascendência e o poder clerical declinam, conforme
atestam os depoimentos de padres educadores de que os meninos de antes eram mais
travessos, mas também eram mais respeitadores.
De acordo com a análise de Elizabeth Badinter em relação ao contexto europeu e o de
Gilberto Freyre em relação ao brasileiro, muitas similaridades entre as crianças patriarcais
nos dois contextos. Entretanto, uma indiscutível defasagem na realidade brasileira, no que
se refere às transformações no contexto de infância que aportaram tardiamente no Brasil.
No conto Conversa de Bois (2001) a representação do sistema patriarcal, ainda
fortemente vigente no final da década de 1930. Esse sistema é reproduzido nesse conto tanto
pela figura de Agenor Soronho, descrito pelo narrador como homenzão ruivo, de mãos
sardentas e mal-encarado, que detém o capital – a terra, o carro-de-bois, os bois, e que explora
o trabalho de seus subalternos – dando-lhes o mínimo do necessário para a subsistência e para
a sua perpetuação nessa condição opressora. No contexto social do conto, era comum as
crianças não serem percebidas como gente que pensa e sente, e por isso deveriam ser
corrigidas e castigadas moral e fisicamente. Tal fato é evidenciado pela forma com que
Soronho trata Tiãozinho durante a viagem para levar a carga de rapaduras e o corpo do pai de
Tiãozinho para ser enterrado no cemitério da vila. É pelos flashbacks das memórias desse
menino que o leitor entende que o opressor patrão usufruía dos carinhos de sua mãe, mesmo
com a sua presença e a de seu pai doente e entrevado. “Pobre do pai!... Tiãozinho tinha de
levar a cuia com feijão, para comer junto com ele, porque nem a mãe não tinha paciência de
pôr comida na boca do paralítico... E ela, com seu Soronho, tinham, para comer, outras coisas,
melhores...” (C.B., p. 339).
89
Estacam todos, bois e carro, no meio do chapadão. Foi o guia Tiãozinho, que
teve de parar para segurar as calças, que lhe tinham caído de repente até aos
pés. Depôs a vara no chão, depressa, porque estava até vermelho, em
camisão e perinhas magrelas, que vergonha. E agora está-lhe custando para
amarrar a tira de pano na cintura e ficar composto outra vez. (C.B., p. 343).
Em Conversa de Bois (2001), a questão do trabalho infantil
19
se faz presente como
uma prática comum naquele contexto social, tendo em vista que, durante a narração do trajeto
em que Tiãozinho guia um carro-de-bois, o narrador aproveita o fato do cansaço deste menino
para contar que, num dia quente como aquele, um outro menino-guia, Didico, de dez anos,
não suportou a lida e morreu: “Que calor!... E a poeira seca a goela da gente. Estará sentindo
dor-por-dentro no pescoço? São Brás! São Brás!... Não quer penar como o Didico da Extrema,
que caiu morto, na frente de seus bois...” (C.B., p. 342). Percebe-se que as crianças não
tinham que trabalhar como eram expostas a situações tão árduas, que chegam ao cúmulo de
lhes tirarem a vida Didico era exposto ao trabalho de adultos mesmo com seu problema
cardíaco, para o qual ninguém deu importância, achando que era preguiça.
Tiãozinho carrega dentro de si um grande sentimento de amor e compaixão pelo pai,
sentimento que o faz desejar tornar-se adulto, forte e rico para vingar-se das humilhações e
malvadezas de seu patrão, especialmente das praticadas contra seu pai, pois, para este menino,
a figura paterna representa a sua raiz, o seu alicerce, o seu cadinho.
Na véspera de morrer, de-noite, ele ainda pedira para Tiãozinho tirar reza
junto... E Tiãozinho puxara o terço, cochilando... Estava com muito sono,
porque tinha ido, a pé, ao Marçal Velho, levar um recado... Depois da salve-
19
Recorre-se ao termo trabalho infantil referindo-se à noção que se tem na atualidade sobre trabalho
infantil trabalho realizado por crianças. Tal prática, embora proibida no atual contexto pelo
código da criança e do adolescente, continua em vigor nas regiões mais isoladas e pobres do país.
Embora, no contexto do conto em análise, esta noção não fosse assim concebida, em se tratando de
uma mimese, que possibilita a dialogicidade entre o contexto atual e o contexto mimetizado por
Guimarães Rosa, considera-se coerente, partir da noção de trabalho infantil que se tem hoje,
inclusive, para evidenciar que naquele espaço social, era natural não o fato das crianças não
terem direito à educação como o fato de terem que trabalhar nas atividades dos adultos, e,
automaticamente, contribuir para o sustento de suas famílias.
90
rainha, o pai pôs nele a benção, e ele deitou no enxergão, para dormir logo,
esquentando os molambos... Também não adiantou nada estar dormindo no
mesmo canto; deu daquela tristeza toda foi quando viu a mãe,
chorando, sacudindo-o para levantar. Aí, Tiãozinho tinha chorado também...
(C.B., p. 344).
Tiãozinho não entende porque sua mãe chora a morte de seu pai, que, no final da
vida, ela o maltratou, traiu e humilhou. Tal situação parece para esse menino, como se seu pai
estivesse morto em vida, visto que, por estar doente e paralítico, não é mais o provedor,
nem o homem da casa, sendo substituído, ainda em vida, pelo amante da mãe, que se muda
para a casa. Resta ao pai a degradante reclusão ao espaço do quarto, enquanto seu Soronho
manda no resto da casa, inclusive no seu filho na sua mulher. Esse espaço – o quarto da casa –
traz sentimentos de tristeza para o menino, tanto pelo fato de ele ver o pai naquelas condições
quanto por, em algumas noites, saber que sua mãe se deita com o amante. Mas,
paradoxalmente, é nesse sóbrio ambiente que Tiãozinho vivencia momentos de amor mútuo
com seu pai. A degradante condição na qual morrera o pai causa, no entanto, remorsos em
Tiãozinho visto que, às vezes, quando ele ouvia o pai chorar, fingia estar dormindo por não
saber como agir. Ou seja, percebe-se aqui a dureza da infância o senso de dever e de
remorso de uma criança de apenas, sete anos.
Tiãozinho atrasa o passo, para aproveitar. Mas ainda está triste. Não quer
pensar no pai depois – tem medo de pôr a idéia no corpo que vem em-riba da
palha das rapaduras. Só aguenta pensar nele de-em-antes, na cafua... [...]
Mas, o chapéu na cabeça? Não pode... Tira o chapeuzinho de palha, que
também não tapa o sol e nem nada. Vai levar na mão. Também... Não quer
pensar mais no pai em-antes. Mas não tem idéia para poder deixar de
pensar... O pai gemendo... Rezando com ele... E se rezasse também agora?...
Devia... (C.B., p. 345).
Tiãozinho, entristecido, prefere pensar no pai vivo, talvez pelo medo que sente de vê-
lo morto. Encontra, então, forças para seguir sua sina nas orações que o pai lhe ensinou. Tal
fragmento evidencia que, por mais difícil que possa ser a situação objetiva que esse menino
91
vivencia trabalhar de guia de carro-de-bois, especificamente, guiando bois que carregam o
corpo de seu pai morto sobre uma carga de rapaduras, embaixo de um sol forte –, a situação
subjetiva o sofrimento pela perda de seu pai e pela humilhação de ter que trabalhar para o
opressor do mesmo –, é ainda mais dolorosa.
Em Conversa de Bois a representação da infância no sistema patriarcal e de forma
lúdica, pela fala dos bois, uma crítica tanto à postura pouco reflexiva do homem em
relação a si e ao próximo, quanto ao sistema capitalista.
O narrador na citação abaixo delega voz aos bois, que também emitem opinião sobre
os homens. O menino, assim como os bois, é levado de um lado para outro, ao bel-prazer de
quem detém o poder. Esses bois têm que ir para pastos diferentes e desiguais e, sem capim, se
veem obrigados a comer o que aparece, de cabeça baixa. Tais reflexões bovinas têm uma clara
analogia com Tiãozinho, que, assim como os bois se submete a situações de trabalho
desumanas e desiguais que o levariam à alienação e à crença de que são inferiores. Contudo,
Guimarães Rosa evidencia sua crença no poder do pensamento:
Então, os homens vieram, e chamaram todos os bois p'ra fora do pasto
rapado, e foram levando a gente p'ra longe. Muitos dias, muito longe. Depois,
chegamos... E puseram os bois nós todos num pasto diferente, desigual de
todos os pastos, e que era todo num morro frio, serra a-pique, sem capim
conhecido de nenhum de nós... a gente pegou a comer, quase sem levantar
as cabeças... (C.B., p. 350).
Na citação abaixo, a palavra do boi expressa a sua confiança na grandeza e na quietude
do seu pensamento. O que pode ser uma metáfora da força que tem o pensamento do homem,
mas que este, por agir como o dia barulhento, isto é, apressado, não reflete, não exercita essa
força:
O bezerro-de-homem não sabe... O nosso pensamento de bois é grande e
quieto... Tem o céu e o canto do carro... O homem caminha por fora. No
nosso mato-escuro não dentro e nem fora... – É como o dia e a noite... O
dia é barulhento, apressado.... A noite é enorme... (C.B., p. 358).
92
Tiãozinho, ainda muito criança, tinha que assumir o lugar do pai Jenuário
tempos entrevado e cego em cima de um jirau –, como guia de carro-de-bois, e assim, sofrer
todas as situações opressoras da relação de trabalho de um sistema que permite, inclusive, que
o dono do capital terra possa sentir-se no direito de usufruir sexualmente de sua mãe e
ainda, explore o filho, mesmo que para isso, utilize de violência o patrão podia bater em
Tiãozinho de cabresto, de vara de marmelo, de pau, como também utilizar violência
verbalizada – xingamentos, humilhações.
Também em Campo Geral (2001), Guimarães Rosa evidencia a prática comum do
trabalho infantil. O protagonista Miguilim, mesmo mais novo que seu irmão Liovaldo que
vivia na casa de tios e podia estudar –, tinha que trabalhar na roça com o pai, este sempre
cobrava uma postura adulta do filho, tanto nos afazeres da roça quanto em relação ao medo de
bicho que o mato lhe provocava. Mas, o ápice do conflito entre estes, ocorre quando da visita
de Liovaldo que humilha Grivo amigo de Miguilim e este, em defesa do amigo, bate no
irmão mais velho, e o pai, em defesa de Liovaldo, uma surra em Miguilim, situação que
desencadeou um ódio deste pelo pai. Entretanto, subjacente à violência paterna está a
instabilidade do casamento e da relação entre Bero e Nhanina. Embora todos os filhos estejam
sujeitos à violência paterna, é sobre Miguilim que mais recaem a ira e o ressentimento do pai,
já que ele o principal foco da narrativa.
Derradeiro, o Pai judiava mesmo com todo o mundo. Ralhava com Mãe,
coisas de vexame: “Nhanina quer é empobrecer ligeiro o final da gente: com
tanto açúcar que gasta, fazendo porcarias de dôces e comida de luxo!” O
dôce fazia era porque os meninos e ele Miguilim gostavam. Então, mesmo,
Vovó Izidra um dia tinha resmungado, Miguilim bem que ouviu: “Esse Bero
tem ôsso no coração...” Miguilim mal queria pensar. Não tinha certeza se
estava com raiva do Pai para toda a vida. (C.G., p.127).
A personagem Bero, por estar tentando fazer a passagem da condição de miserável a
93
condição de remediado, além de trabalhar incansavelmente, era exigente e autoritário com a
família. Ele, de fato, quer fazer da sua casa uma espécie de casa-grande, mas está é, apenas,
um arremedo. O comportamento de Bero é característico do sistema patriarcal, ao longo do
qual, mesmo entre os pobres, prevaleciam os pais autoritários e violentos em relação à mulher
e aos filhos. Em seu desejo de ascender socialmente, sair daquela condição de penúria, além
de trabalhar muito, repreende a mulher por gastar demais. Também dentro desta mentalidade,
e de acordo com o conceito da época, passa a exigir que Miguilim comece a trabalhar. Pai
encabou uma enxada pequena.... 'Amanhã, amanhã, este menino vai ajudar, na roça.' Nem
triste nem alegre, foi Miguilim, de manhã junto com o pai e Luisaltino. 'Teu eito é aqui.
Capina.” (C.G., 2001, p. 127).
Tanto Tiãozinho, em Conversa de Bois, quanto Miguilim, em Campo Geral, têm em
comum a obrigação do trabalho infantil, a violência física e emocional sofrida,
respectivamente, pelo patrão e pelo pai Soronho e Bero –, e a fraqueza e conivência de suas
mães, que não os defendem, embora, para eles, a mãe represente a figura do berço, da
proteção, da família, do alicerce social. Ou seja, em relação à mãe de Miguilim, seu
comportamento imaturo em relação ao casamento, bem como o fato de ela ter se relacionado
com o cunhado e com o agregado Luisaltino contribui para a instabilidade da família e para a
agressividade de Bero – que embora agressivo, fica desesperado quando da morte de Dito e da
doença de Miguilim. Em relação ao conto Conversa de Bois, tem-se, apenas, o fluxo de
consciência de Tiãozinho que, em certa medida, responsabiliza a mãe pela triste condição do
pai. Contudo, neste conto, embora seja evidente a miséria da família, não como ter clareza
sobre o comportamento da mãe que esta poderia agir de tal forma com vistas a garantir a
subsistência da família. Destaca-se, porém, que se tem, apenas, a perspectiva das memórias de
Tiãozinho, obnubilada pela tristeza advinda da merencória morte do pai.
94
Outro elemento de aproximação entre Miguilim, de Campo Geral, e Tiãozinho, de
Conversa de Bois, é o sentimento de perda de um ente querido, este sofre com a morte de seu
pai, Jenuário, e aquele com a morte de seu irmão mais querido, Dito, através dos olhos do
qual Miguilim enxergava a vida. “No Dito, pensava sempre. Mas, mesmo quando não estava
pensando conseguido, dentro dele parava uma tristeza: tristeza calada, completa, comum das
coisas quando as pêssoas foram embora.” (C.G., 2001, p. 129). Estas personagens de
Guimarães Rosa revelam um olhar sobre a infância cuja delicadeza resulta do esmerado
trabalho com a linguagem, associada a uma profunda compreensão da condição humana,
como exemplifica a citação abaixo
Diante do pai, que se irava feito um ferro, Miguilim não pôde falar nada,
tremia e soluçava; e correu para a mãe, que estava ajoelhada encostada na
mêsa, as mãos tapando o rosto. Com ela se abraçou. Mas dali o arrancava
o pai, batendo nele, bramando. Miguilim nem gritava, procurava proteger
a cara e as orêlhas; o pai tirava o cinto e com ele golpeava-lhe as pernas, que
ardiam, doíam como queimaduras quantas, Miguilim sapateando. Quando
pôde respirar, estava posto sentado no tamborete, de castigo. E tremia,
inteirinho o corpo. O pai pegara o chapéu e saíra. (C.G., 2001, p. 36).
Dito, com sua sabedoria, chama o irmão para irem para longe dessa briga, mas,
Miguilim não quer que seu pai bata em sua mãe, e, num rompante, corre até ela, abraça-a e,
dada a sua ousadia de interferir no conflito entre o pai e a mãe, ele é espancado. Nesse
fragmento Guimarães Rosa descreve a dor física que a surra de cinta provoca em Miguilim e a
impotência desse menino em defesa de sua mãe, enfrentando o pai e chefe da família. Apesar
de temer o pai, Miguilim, para defender a mãe, o enfrenta. Enquanto Dito tem a percepção de
que algo entre sua mãe e tio Terêz, por esse motivo, orienta Miguilim que não fale ao tio
que o pai brigou com a mãe. Miguilim, ao contrário de Dito, entende a gravidade do
conflito quanto ouve vovó Izidra mandar o tio embora do Mutum, antes que aconteça alguma
tragédia na família. Mas, é quando o tio lhe pede para entregar um bilhete à mãe que
95
Miguilim irá entender quealgo de errado entre a mãe e o tio, tanto é assim que não entrega
o bilhete à mãe.
Miguilim não entrega o referido bilhete à sua mãe, apesar da relação de amizade e
carinho entre ele e o tio: é com o tio que ele aprende a fazer urupuca para pegar passarinhos; é
o tio que, quando o de castigo, o libera dessas situações; e, ainda, foi na companhia do tio
e, agora padrinho, que ele fez a viagem a partir da qual inicia a narrativa e ao longo da qual
Miguilim aprendeu sobre a saudade em relação à família e sobre a beleza do Mutum.
2.4 A DOLOROSA PASSAGEM DE MENINO A “HOMEM”
Tanto a história de Tiãozinho quanto a de Miguilim se estruturam a partir de um rito de
passagem de criança a “adulto”. Nesse sentido, em que momento ocorre tal rito no conto
Conversa de Bois e na novela Campo Geral? Constata-se em ambas narrativas que tal rito
ocorre por meio das viagens realizadas pelas personagens protagonistas. Essas viagens atuam,
metaforicamente, como a passagem de Tiãozinho e Miguilim, da condição de criança à de um
adulto, sem, no entanto, terem vivenciado a fase da adolescência.
Para Mircea Eliade, o exemplo clássico de rito de passagem é o que se refere à faixa
de idade, quando a criança deixa de ser criança e entra na juventude. Contudo, também
considera como ritos de passagens: o nascimento estatuto de vivo; o casamento passagem
de um grupo sócio-religioso a outro; a morte – mudança de regime ontológico e social.
Como já observamos, os ritos de passagem desempenham um papel
importante na vida do homem religioso. É certo que o rito de passagem por
excelência é representado pelo início da puberdade, a passagem de uma faixa
de idade a outra (da infância ou adolescência à juventude). Mas também
ritos de passagem no nascimento, no casamento e na morte, e pode-se dizer
que, em cada um desses casos, se trata sempre de uma iniciação, pois
envolve sempre uma mudança radical de regime ontológico e estatuto social.
(ELIADE, 1992, p. 150).
96
Eliade faz uma distinção entre os ritos de passagem que acontecem por ocasião do
nascimento, do casamento ou da morte, que são realizados por meio de cerimônias de
admissão em determinada sociedade, enquanto que o rito de passagem que acontece na
puberdade tem caráter de iniciação que implica em provas de morte e ressurreição simbólicas
de ordem religiosa.
Mas, de acordo com os atuais conceitos, o que é ser adolescente? Ter direitos à
educação, saúde, lazer, proteção familiar? Não poder trabalhar antes dos dezesseis anos de
idade? Sim, na contemporaneidade brasileira, entende-se por adolescência o período entre
doze e dezoito anos de idade e, de acordo com o código da criança e do adolescente, os
adolescentes têm direito à educação, bem estar social. Entretanto, mesmo na atualidade, a
despeito da legislação em vigor e da mudança de mentalidade, esses direitos estão
garantidos àquelas crianças que têm acesso às mais básicas condições de sobrevivência.
Quando estas lhes faltam, tem-se a árdua e primordial labuta pela sobrevivência, ao longo da
qual muitas crianças se perdem e outras se tornam adultos aptos, que desenvolveram uma
grande resiliência.
Mas, no contexto socioeconômico representado por Guimarães Rosa em Conversa de
Bois e Campo Geral, era esse o conceito que se tinha sobre a fase da adolescência? Será que
naquele espaço social o sertão mineiro –, havia a concepção sobre a infância ou sobre a
adolescência? Sobre a adolescência parece que não, que as narrativas em análise se atêm à
abrupta passagem – via sofrimento – da condição de criança à de adulto. Inclusive, percebe-se
que as crianças eram vistas e tratadas de acordo com o que Badinter expõe sobre o conceito de
infância, que remonta ao conceito teológico agostiniano, e que imperou no Brasil em menor
ou maior grau – ao longo de todo o período colonial e imperial, adentrando ainda com força o
97
século XX.
Sobre o conceito de adolescência, é pertinente o estudo de Philippe Ariès sobre as
idades da vida, no qual ele retoma as concepções presentes nos textos da Idade Média, entre
eles Le Grand Propriétaire de toutes choses, livro VI.
Depois segue-se a terceira idade, que é chamada de adolescência, que
termina, segundo Constantino em seu viático, no vigésimo primeiro ano,
mas, segundo Isidoro, dura até 28 anos... . E pode estender-se até 30 ou 35
anos. Essa idade é chamada de adolescência porque a pessoa é bastante
grande para procriar, disse Isidoro. Nessa idade os membros são moles e
aptos a crescer e a receber força e vigor do calor natural. E por isso a pessoa
cresce nessa idade toda a grandeza que lhe é devida pela natureza. [O
crescimento, no entanto, termina antes dos 30 ou 35 anos, e até mesmo antes
dos 28. Certamente devia ser ainda menos tardio numa época em que o
trabalho precoce mobilizava mais cedo as reservas do organismo.] (ARIÈS,
1981, p. 36).
De acordo Ariès, um significativo avanço em relação ao conceito de adolescência
ao longo da transição da Idade Média para a Idade Moderna. Este avanço vai desde a
especificação de que idade considera-se como adolescência até que tipo de comportamento,
direitos e deveres são inerentes à condição do adolescente.
Ariès é um historiador influenciado pela vertente marxista fundadora dos Estudos
Culturais
20
, na década de 60, do século passado. Assim, Ariès promove seu estudo pautado
nos novos métodos de pesquisas vigentes aquele período, entre eles a história das
20
Entre os principais fundadores dos Estudos Culturais estão: Richard Hoggart (1918- ), Raymond
Williams (1921-1988) e Edward Palmer Thompson (1924-1993), também ligados à Nova Esquerda
Inglesa que surge em 1956, com historiadores britânicos vinculados ao Partido Comunista Inglês,
descontentes com o regime stalinista, que rompem com o partido e influenciam fortemente a
historiografia britânica. Raymond Williams questiona como os marxistas ortodoxos e alguns
estruturalistas tratavam o conceito de cultura e resgata os estudos de Mikhail Bakhtin, para quem a
linguagem é uma prática resultante de uma relação social. A concepção de hegemonia em Gramsci
(1891-1937) também é resgatada, a existência de um discurso ou prática hegemônica de uma
determinada classe domina significados, valores, crenças e a impõe a outras classes, tal imposição
acontece por meio de um consenso social.
Hoggart, Williams e Thompson consideram a subjetividade, as relações entre as classes e a cultura.
Acreditam que a consciência de classe se constrói nas experiências cotidianas comuns:
comportamentos, valores, condutas, costumes e culturas. Apresentam outros atores sociais e outros
espaços de poder, o que ficou conhecido como a "história vista de baixo".
98
mentalidades, que vislumbra o conhecimento das sensibilidades e visões humanas presentes
em distintos períodos históricos, conforme evidencia no prefácio da edição de 1973 do livro
História Social da Criança e da Família:
A história das mentalidades é sempre, quer o admita ou não, uma história
comparativa e regressiva. Partimos necessariamente do que sabemos sobre o
comportamento do homem de hoje, como de um modelo ao qual
comparamos os dados do passado com a condição, de, a seguir, considerar
o modelo novo, construído com o auxílio dos dados do passado, como uma
segunda origem, e descer novamente a o presente, modificando a imagem
ingênua que tínhamos no início. (ARIÈS, 1981, p. 26).
Ariès justifica seu método de pesquisa no fato de que para conhecer o passado é
preciso partir de algum fato do cotidiano, pois é a atualidade que instiga a busca da memória e
esta tem a finalidade de refletir e transformar o presente. O autor deixa claro que tem duas
teses: a primeira refere-se a uma tentativa de interpretação das sociedades tradicionais e a
segunda objetiva mostrar o novo lugar assumido pela criança e pela família na sociedade
industrial.
Segundo Ariès (1981), as sociedades tradicionais mal percebiam a criança e muito
menos o adolescente que a duração da infância era compreendia, apenas, como o período
em que esta era frágil fisicamente. “De criança pequena, ela se transformava imediatamente
em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes
da Idade Média e que se tornaram aspectos fundamentais das sociedades evoluídas de hoje.”
(ARIÈS, 1981, p. 10).
Para Ariès, a infância acabava quando terminava a dependência, ou seja até o século
XVII:
A longa duração da infância, tal como aparecia na língua comum, provinha
da indiferença que se sentia então pelos fenômenos propriamente biológicos:
ninguém teria a idéia de limitar a infância pela puberdade. A idéia de
infância estava ligada à idéia de dependência: as palavras fils, valets e
garçons eram também palavras do vocabulário das relações feudais ou
99
senhoriais de dependência. (ARIÈS, 1981, p. 42).
Sob a perspectiva de Ariès, é possível constatar que a partir do século XVIII uma
transformação na concepção de infância, especificamente pelo interesse em promover o bem
estar social das crianças, com vistas a dar-lhes condições de desenvolvimento físico e
emocional, para a manutenção da força de trabalho do sistema capitalista, assim que a criança
não fosse mais dependente fisicamente dos pais, não necessariamente do ponto de vista
emocional.
Ainda sob a perspectiva de Ariès, pode-se afirmar que Tiãozinho e Miguilim não
tiveram adolescência, que ambos ainda na infância entre sete e oito anos tiveram que
assumir atitudes adultas: Tiãozinho trabalhando como guia de carro-de-bois e Miguilim
21
tendo que ir embora, viver entre estranhos em busca de ver o mundo e também de uma outra
forma de visão que é a do conhecimento formal, conforme prometera o doutor José Lourenço.
Retomando à teoria de Ariès, Tiãozinho e Miguilim a despeito de séculos ter
surgido na Europa o conceito de infância – ainda são configurados a partir do arcaico conceito
de infância segundo o qual a partir dos sete anos as crianças deveriam agir como adultos e
passarem, inclusive, a trabalhar e a depender o mínimo possível dos adultos. Se, por um lado,
Guimarães Rosa resgata com muita propriedade essa visão arcaica da infância, por outro, em
ambos textos literários, os narradores são totalmente solidários com as personagens e o
encanto destas está na fragilidade e na sensibilidade principalmente de Tiãozinho e
Miguilim que se convertem em obstinação, o que acaba por precipitar o doloroso processo
de crescimento.
21
No conto Buriti, que faz parte do livro Noites do sertão e integra Corpo de Baile, Guimarães Rosa
retoma a história de Miguilim e o leitor fica sabendo que o menino do Mutum estudou em Ouro
Preto e, agora adulto, caminha pelo sertão vacinando o gado, o que é uma novidade indicativa de
sua formação e de sua “modernidade”. Portanto, no caso de Miguilim, esta passagem abrupta da
infância para a maturidade, embora traumática, deu resultado e fez dele um homem “formado” e
honrado.
100
Numa analogia com o estudo de Ariès, embora tenha havido uma grande evolução
entre a Idade Média e a Moderna da concepção de infância, no universo ficcional de
Conversa de Bois nãoqualquer alusão à instituição escola, cabendo aos adultos a educação
para a vida prática e para o trabalho, sem qualquer referência à educação formal advinda da
escolarização. em Campo Geral, a preocupação de Bero o patriarca com a
necessidade de seus filhos saírem da atrasada ignorância, tanto que Liovaldo vive com outra
família, justamente para estudar. Além das situações em que Bero pede para que Seo
Deográcias, que é letrado, para alfabetizar Dito e Miguilim. É no final da novela, porém, que
fica evidente a importância do estudo formal, visto que, além da busca pela “luz dos olhos”,
outro argumento de Nhanina para que o filho vá embora com o doutor é a possibilidade de ele
ir estudar.
Segundo Ariès a consciência de família e a relação afetiva entre pais e filhos, surge a
partir do século XVI, contudo, essa nova consciência de família foi mais percebida em certas
famílias abastadas:
O desenvolvimento, nos séculos XVI e XVII, de uma relação afetiva nova,
ou ao menos consciente, entre os pais e filhos não a destruiu. Essa
consciência da infância e da família no sentido em que falamos de
consciência de classe postulava zonas de intimidade física e moral que não
existiam antes. [...] A conjunção de uma sociabilidade tradicional e de uma
consciência nova da família seria encontrada apenas em algumas famílias,
famílias abastadas rurais ou urbanas, nobres ou plebéias, camponesas ou
artesãs. (ARIÈS, 1981, p. 264-265).
Para Ariès (1981), pela transição dos períodos históricos, pode-se perceber a mudança
de concepção de infância e de família, e ambas, a partir do século XVIII, passam a ser
percebidas com outro olhar um olhar talvez inspirado nos ideais do Iluminismo de
liberdade, igualdade e fraternidade –, mas que a história recente do século XX evidencia que
o que modificou fundameltalmente em relação a esses conceitos, foram os ideais do
101
capitalismo. Entretanto, é no século XVIII que haverá o fortalecimento da organização da
família por meio da própria organização espacial desta:
A reorganização da casa e a reforma dos costumes deixaram um espaço
maior para a intimidade, que foi preenchida por uma família reduzida aos
pais e às crianças, da qual se excluíam os criados, os clientes e os amigos. As
cartas do General de Martange, escritas à sua mulher entre 1760 e 1780,
permitem-nos avaliar os progressos de um sentimento da família que se havia
despojado de todo o arcaísmo e tornado idêntico ao do século XIX e início do
século XX. A família deixara de ser silenciosa: tornara-se tagarela e invadira
a correspondência das pessoas, bem como, sem dúvidas, suas conversas e
preocupações. (ARIÈS, 1981, p. 267).
Para Ariès, a organização dos cômodos da habitação promove mudanças na vida
cotidiana. É também nesses espaços que haverá a distinção entre classes, por exemplo, com a
separação de áreas para os criados. Numa análise da casa de Tiãozinho, de Conversa de Bois,
percebe-se que até mesmo em situações econômicas distintas dos verdadeiros donos do
capital, por exemplo, fazendeiros, uma separação de cômodos. Tanto que Soronho mesmo
sendo um carreiro tinha poder sobre seus subalternos, a exemplo da família de Tiãozinho, pois
ao se tornar amante da mãe de Tiãozinho, se instala na cabana da família como se fosse o
dono da casa, passando a dormir com a mãe do menino e ele e seu pai passam a dividir outro
quarto, inclusive, Soronho não se importa se Tiãozinho e seu pai testemunham tal situação, e,
muito menos, com o sentimento que tal fato provoca nos mesmos.
Considerando os conceitos de infância e de família postulados por Ariès, tanto em
Conversa de Bois quanto em Campo Geral, é possível a percepção de que a criança deixa
precocemente de sê-la e entra no mundo do trabalho dos adultos. Em Conversa de Bois,
Agenor Soronho expõe Tiãozinho à sua tirania, e em Campo Geral, Bero, em sintonia com o
arcaico conceito vigente de que o trabalho faz parte da formação, expõe Miguilim desde
criança à lida na roça.
Embora a representação social seja fator estruturante dessas obras, Guimarães Rosa,
102
contudo, media e relativiza a questão da infância. Em Campo Geral, Miguilim enxerga o
mundo através do olhar de Dito, seu irmão mais novo, uma criança que nasce sábia: Dito
parece um anjo que antecipa o que está por vir. Em Conversa de Bois que beira o
maravilhoso pelo fato de uma irara ser a testemunha ocular da estória e pelo fato de os bois
falarem, como ocorre nos contos maravilhosos a morte de Seu Agenor Soronho é
prenunciada pela conversa dos bois. Assim, tanto a ideia de Dito como um anjo quanto a
morte de Soronho, prenunciada pela fala dos bois, são construídos por elementos lúdicos
mesclados com aspectos do mundo real.
Guimarães Rosa faz alusão clara aos Contos de fadas, garantindo que as estórias
maravilhosas continuam vivas.
São narrativas que, sem a presença de fadas, via de regra, se desenvolvem no
cotidiano mágico animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou
familiares, objetos mágicos, gênios, duendes etc. e m como eixo gerador
uma problemática social – ou ligada à vida prática concreta. Ou melhor, trata-
se do desejo de auto-realização do herói ou do anti-herói... (COELHO,
1991, p. 13).
Essa relativização entre infância e o mundo do fantástico, no qual os bois pensam e
falam está presente desde o início de Conversa de Bois:
Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens,
é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas
carochas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali, e em toda
parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por
todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?! (C.B., 2001, p.325).
Manuel Timborna, filho do velho Timborna, afirma que bois falam e pede licença para
comprovar esse fato que teve como testemunha ocular a irara Risoleta. Para tal, ele conta a
história, da qual faz parte o menino Tiãozinho, espécie de símbolo de fragilidade e
determinação, e, em vários momentos a narrativa se desloca para a perspectiva de Buscapé,
103
Namorado, Capitão, Brabagato, Dançador, Brilhante, Realejo e Canindé: os bois que puxam
o carro que Tiãozinho está candiando. Nesse conto os animais falam, pensam e filosofam
sobre o ser humano que, para eles, não pensa e complica a vida.
Também em Campo Geral, mas de outra perspectiva, os animais estão muito próximos
das crianças, como exemplifica a seguinte passagem:
Os cachorros gostavam do sistema do Grivo, vinham para perto, abanando
rabo, as patas eles punham no joelho dele. [...] Quando o Luisaltino veio de
ficada, trouxe um papagaio manso, chamado Papaco-o-Papo, que sabia
muitas coisas. Pai não gostava de papagaio; mas parece que desse um não se
importou, era um papagaio que se respeitava. (C.G., 2001, p. 101).
Pior foi que Rio-Negro estava do outro lado da cerca, lambendo sal no
cocho, e Miguilim quis passar a mão, na testa dele, alisar, fazer festas. O
touro tinha todo desentendimento naquela cabeçona preta deu uma
levantada, espancando, Miguilim gritou de dôr, parecia que tinham quebrado
os ossos da mão dele. (C.G., p. 107-108).
Em Campo Geral/Miguilim a questão central é a representação da infância no
decadente sistema patriarcal, no qual circula a complexa relação de Miguilim com sua família.
Mas o texto mostra, ainda, que naquele universo sertanejo se estabelecem as relações entre
crianças e adultos, bem como entre estas e os animais, como cachorros, papagaios, bois,
gatos.
Tanto em Campo Geral quanto em Conversa de Bois percebe-se uma mescla do
fantástico com o real, como uma representação do mundo da infância. Mundo este que
transita entre o real com seus dramas, violências e desgraças e o imaginário mundo da
fantasia, como é característico no universo infantil. Entretanto, indiscutivelmente, as fantasias
infantis têm que ser rapidamente superadas à medida que as adversidades da vida desabam
com toda a sua crueza sobre tais fantasias. Tanto é assim que Tiãozinho, com apenas sete
anos, se vinga “quase sem querer”, das humilhações sofridas pelo pai antes mesmo de este ser
sepultado.
104
Salienta-se que os estudos de infância de Ariès são relevantes para o estudo social da
infância presente nos textos rosianos em análise, que neles, apesar da presença do
fantástico, está evidente que Tiãozinho e Miguilim, deixam de ser tratados como crianças
assim que demonstram certa independência física, passando sem mediação a enfrentar os
problemas e adversidades do mundo adulto um rito de passagem, uma travessia,
metaforicamente, representada pelas viagens de Tiãozinho e de Miguilim.
A travessia de Tiãozinho se ao longo da viagem do carro-de-bois, quando está
candeando os bois com uma carga de rapaduras, sobre a qual vai o corpo do pai para ser
enterrado no cemitério do vilarejo. A fala dos bois e o fluxo de consciência de Tiãozinho,
desvelam suasgoas e seu desejo de vingança futura. No entanto, antes do final da viagem,
o projeto dessa vingança “acidentalmente” se consuma. É, portanto, ao longo dessa viagem
que ocorre a narrativa e que se o rito de passagem de Tiãozinho de criança a adulto. Em
vários momentos seus solilóquios evidenciam seu desejo de quando crescer poder mandar na
mãe, na casa, de ser dono da terra e vingar-se de seu Soronho, seu patrão e amante da mãe que
tanto humilhara seu pai.
A travessia de Miguilim ocorre entre duas viagens: a da chegada da viagem para ser
crismado no Sucuriju e sua partida definitiva do Mutum e, consequentemente, da infância.
Assim, a primeira reflexão que ele faz sobre seu mundo e a consciência que ele toma sobre
este mundo, ocorre quando está fora do Mutum. É nesta viagem que Miguilim aprende,
também, sobre o conceito de beleza em relação ao lugar, ele precisou sair do Mutum para que
ocorresse este aprendizado. É neste percurso que se a dolorosa passagem de Miguilim de
criança ingênua, desatenta, inocente e míope para o amadurecimento e o entendimento do
mundo.
Nesse sentido, é exemplar a metáfora dos óculos. Embora ele tenha fisicamente um
105
problema de visão, esta também é uma metáfora da dificuldade de Miguilim de aprender a ver
o mundo a sua volta. Dito seu irmão mais novo fora, de certa forma, “os olhos de
Miguilim”. Mas, quando Miguilim coloca os óculos do doutor este ato físico tem, também,
um valor simbólico. Finalmente, ele enxerga por si mesmo que o Mutum é um lugar bonito e
que o mundo pode vir a se tornar um lugar mais inteligível e menos confuso e, aí, encerra-se a
narrativa. É, portanto, entre a chegada e a partida do Mutum que se organiza todo o rito de
passagem de Miguilim.
Outra questão fundamental é que, embora tenha havido a transição de concepção de
infância ao longo da modernidade, esta não foi homogênea e ainda hoje, nas regiões mais
isoladas e carentes, vigora um comportamento em relação à criança pobre similar ao que
imperou ao longo de toda a Idade Média. Assim, o conto e a novela evidenciam que Tiãozinho
e Miguilim, por causa das adversidades da vida, tornam-se prematuramente “homens”, sem,
no entanto, se livrarem do doloroso conflito de conciliar sua condição de crianças.
Indiscutivelmente, a sensibilidade com que Guimarães Rosa trata do tema da infância
extrapola as dimensões sociológicas nas quais se respaldaram o presente estudo e faz de
Campo Geral/Miguilim e de Conversa de bois obras emblemáticas do doloroso processo
humano de amadurecimento e compreensão do mundo.
106
III. LITERATURA E CINEMA: A TRANSPOSIÇÃO FÍLMICA DE CAMPO
GERAL, DE GUIMARÃES ROSA, EM MUTUM, DE SANDRA KOGUT
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No terceiro capítulo, objetiva-se analisar a temática infância presente no discurso
fílmico Mutum (2007), de Sandra Kogut, por meio da utilização da técnica narrativa de
cinema de David Wark Griffith. Tal análise tem como âncora uma mescla da práxis da leitura
literária, presentes no primeiro capítulo, e um olhar mais sociológico, que dialoga com o
segundo capítulo.
No que concerne à leitura do discurso fílmico, acredita-se que é fundamental que a
análise seja feita por meio da decupagem clássica do cinema, de acordo com o conceito de
Griffith, pois, assim como a teoria literária norteia parâmetros que evidenciam a questão da
forma e conteúdos literários – que possibilitam a leitura/crítica –, o cinema também dispõe de
teorias que pragmatizam a análise de sua forma e de seu conteúdo.
Contudo, salienta-se que não se objetiva no presente estudo discutir teorias sobre
cinema, mas estabelecer uma leitura comparativa entre o que foi discutido sobre a novela
Campo geral no primeiro e no segundo capítulos do presente estudo e a leitura fílmica sobre
esses mesmos temas.
Assim como na literatura a presença de um leitor como parte estruturante da obra,
também no cinema o espectador pode ser considerado como uma estrutura do próprio
discurso fílmico, que cada elemento do discurso cinematográfico é construído tendo em
vista a intenção de expressar o seu significado/sentido.
Nesse aspecto, Jean Mitry
22
é responsável pela introdução de uma nova era da teoria
22
No livro As principais teorias do cinema: uma introdução, no capítulo III, J. Dudley Andrew se
107
do cinema: Esthétique et psychologie du cinema (1963-1965), volume I, com subtítulo Les
Structures que estuda os aspectos do cinema que estariam presentes em todos filmes; Les
Formes, volume II, está relacionada às teorias referentes aos estilos e gêneros
cinematográficos. Andrew tratando sobre as principais teorias do cinema afirma que:
Na exposição sobre a imagem cinematográfica como matéria-prima, Mitry
nunca deixa de afirmar que, como espectadores, não vemos a matéria prima,
mas filmes plenamente realizados. As imagens cinematográficos existem não
apenas como escolhidas por alguém, mas como organizadas num mundo
fílmico por elas próprias. A imagem pura tem um sentido natural com
relação a isso porque existe para ser vista; mas a imagem seqüencial, a
imagem num filme completo, tem mais que um sentido, tem um significado,
um objetivo definido conferido a ela pelo papel que desempenha no mundo
“imaginário”, mas representacional, que o cinema constrói. (ANDREW,
2002, p. 156).
O autor conclui que, para Jean Mitry, o nível de significação situa-se um degrau acima
da imagem cinematográfica composta montada por isso, está, sempre, associado à
narrativa que, por sua construção, coloca o homem à vontade para, mais que percebê-la,
entendê-la. No primeiro nível, o da percepção e da imagem cinematográfica, não se pode
ignorar a realidade; e no segundo nível, o da narração e sequência das imagens, considera que
o homem, com seus planos, desejos, significados, não pode ser ignorado, evidenciando,
assim, que o cineasta constrói um novo mundo com a cumplicidade do mundo real dos
sentidos.
Christian Metz, em A significação do cinema, trata das quatro maneiras de abordagem
do cinema: crítica cinematográfica e história do cinema, as quais considera como cultura geral
cinematográfica; teoria do cinema postulada por teóricos como Eisenstein, Bela Balázs e
André Bazin que reflete sobre o cinema ou sobre o filme, cujo estudo é feito no interior do
mundo cinematográfico; filmologia estudo científico feito do exterior do filme que é
atém à teoria cinematográfica francesa contemporânea, em cujo capítulo inclui: Jean Mitry,
Christian Metz, Amédée Ayfre e Henri Angel.
108
analisada por filmólogos como G. Gohen-Séat, E. Morin.
(...) chegou o momento de começar a fazer algumas relações: uma reflexão
que levasse em conta ao mesmo tempo às obras dos grandes teóricos do
cinema, os trabalhos da filmologia e as aquisições da lingüística poderiam
paulatinamente vai demorar levar, especialmente ao nível das grandes
unidades significantes, a realizar no campo do cinema o belo projeto
saussuriano de um estudo dos mecanismos pelos quais os homens
transmitem-se significações humanas nas sociedades humanas. Contudo, diz
que, infelizmente, bem longe da filmologia e da teoria do cinema existe a
lingüística, com seus prolongamentos semiológicos. (METZ, 1972, p. 109-
110).
Metz (1972) conclui que Saussure, o mestre de Genebra, não viveu suficientemente
para verificar a importância que o cinema assumiu. Ele aspira que se faça a semiologia do
cinema e considera que o filme narrativo deve ter prioridade não exclusividade nos
estudos dos filmo-semiólogos.
O cinema não é uma língua porque contradiz três características importantes
do fato lingüístico: uma língua é um sistema de signos destinado à
intercomunicação. Três elementos de definição. Ora, o cinema, como as artes
e porque é uma arte, é uma “comunicação” em sentido único; é fato muito
mais um meio de expressão que de comunicação. (METZ, 1972, p. 93).
Metz considera a língua como um sistema de signos destinados à intercomunicação e
conclui que o cinema, mais que um meio de comunicação, é um meio de expressão, podendo
ser considerado uma linguagem, na medida em que ordena elementos significativos. Para ele,
o estudo da expressividade cinematográfica pode ser conduzido com métodos inspirados na
linguística.
Andrew estudando Christian Metz e a Semiologia do Cinema verifica que a nova
investigação científica dos trabalhos internos do cinema pode ser, agora, esboçada:
O semiótico, como teórico, vai cuidadosamente libertar cada código que
encontrar operando no cinema. Vai explicá-lo, prestando atenção ao seu
nível de especificidade, ao seu grau de generalização e à sua interação com
outros códigos. Como crítico, o semiótico vai observar os textos
109
cinematográficos isolados (sistemas únicos, gêneros, estudos do auteur, etc.),
mostrando de que modo os quase incontáveis códigos neles contidos são
sistematizados ou ligados. Vai explicar não a possibilidade das mensagens
fílmicas, como faz o teórico, mas sua estrutura real num caso particular.
Finalmente como historiador, vai examinar o desenvolvimento e evolução
dos vários subcódigos, tanto específicos. Pode traçar os tipos de iluminação
usados em diferentes épocas ou o tratamento dado às mulheres de era para
era. Desse modo, dizem-nos começaremos lentamente a entender o
significado do cinema. (ANDREW, 2002, p. 183-184).
De acordo com Andrew (2002), para Metz os códigos sintagmáticos e paradigmáticos
transcendem o filme e podem ser estudados. O semiólogo, ao interessar-se pelo estudo do
código interpretação, por exemplo, deve estudar numerosos sistemas nos quais esse código é
desempenhado.
Nos Estados Unidos, o grande nome como cineasta e teórico de cinema é David Wark
Griffith, que, assim como o russo Eisenstein, inovou a linguagem cinematográfica,
diferenciando-a dos padrões estáticos emprestados do teatro, dando versatilidade à linguagem
cinematográfica graças ao movimento da câmera, flashback das ações paralelas, grandes
planos e tomadas em primeiro plano, sendo um dos criadores da decupagem clássica do
cinema.
Griffith, assim como Eisenstein, começou sua carreira no teatro. Em 1908 Griffith
dirigiu seu primeiro filme The Adventures of Dollie As aventuras de Dollie e até 1911
realizou 326 filmes de um e de dois rolos. Em 1916 dirigiu Intolerance Intolerância –, cujo
sucesso lhe permitiu, em 1919, criar a United Artist, em sociedade com Charles Chaplin,
Mary Pickford e Douglas Fairbanks.
Assim, atuando como um leitor-modelo de segundo nível de Eco, é que se pretende,
aliar às teorias sobre leitor e sobre infância, presentes, respectivamente, nos capítulos I e II, à
técnica da narrativa cinematográfica desenvolvida pelo estadunidense David Wark Griffith
110
enquadramentos
23
, foco narrativo
24
, ponto de vista
25
, angulação
26
e movimentação
27
de câmera,
fotografia
28
, espaço
29
–, tendo em vista que a escolha de cada um desses elementos fílmicos
está diretamente relacionada à intencionalidade que o diretor autor-empírico pretende em
relação à interpretação do espectador – leitor-modelo.
3.2 CAMPO GERAL/MIGUILIM VERSUS MUTUM: ALGUMAS LEITURAS
A novela Campo Geral/Miguilim, de Guimarães Rosa, foi publicada em 1956 e sua
transposição para o filme Mutum foi realizada em 2007, sob a direção de Sandra Kogut.
Assim, a temática da infância mimetizada na referida novela por Guimarães Rosa é
representada, após cinco décadas, em uma outra linguagem.
Segundo Iser (1996), no momento da leitura o leitor carrega consigo um repertório de
ordem social, histórico e cultural, sendo que a interpretação de determinado texto ocorrerá por
meio do diálogo entre esse repertório do leitor e o texto. Logo, o espectador do filme Mutum
que tenha lido o livro Campo Geral que serviu de base para a produção fílmica de
Mutum –, carrega consigo o conhecimento sobre o conteúdo do filme e o assiste possuidor de
um “horizonte de expectativas” (Jauss, 1994), podendo, assim como o pode o leitor do livro,
23
Os enquadramentos são compostos por planos, sendo que o referencial para a classificação dos
planos cinematográficos é o tamanho da figura humana dentro do quadro, podendo ser: Grande
Plano Geral (GPG), Plano Geral (PG), Plano Conjunto (PC), Plano Médio (PM), Plano Americano
(PA), Primeiro Plano (PP), Primeiríssimo Plano (PPP), Plano Detalhe (PD) a escolha de cada um
desses planos, assim como dos demais elementos do discurso lmico, depende do sentido que se
pretende para cada cena.
24
Subjetivo, intersubjetivo e objetivo.
25
Objetivo e subjetivo.
26
Três ângulos diferentes, associados à altura da mera: normal, alta ou plongée, baixa ou contre-
plongée.
27
Movimento fílmico e movimento pró-fílmico.
28
A Fotografia é parte constitutiva da construção do discurso fílmico, tanto pelo enquadramento dos
personagens, cenário, cenografia, adereços, etc., quanto pela luz sobre estes elementos natural,
difusa ou contrastada.
29
O espaço é a materialização do mundo diegético, podendo ser: interior e exterior, naturais ou
construídos em estúdios.
111
comprovar, questionar ou modificar suas expectativas.
Nesse sentido, é fundamental a releitura (Jouve, 2002) do filme, porque a leitura de
primeiro nível (Eco, 2002), além de ser efêmera, neste caso específico de um filme produzido
a partir de uma obra literária, pode não ser profícua, pois se assiste ao filme com um conceito
pré-concebido. Ou ainda, pode-se buscar o livro no filme.
Também é fundamental o conceito bakhtiniano (1997) segundo o qual, o homem – sua
consciência é formado socialmente e tal formação ocorre por meio da dialogicidade entre o
“eu e o outro”, pois, tanto a dialogicidade entre eu espectador e o filme, quanto a leitura
do mesmo implicará a construção de nova consciência.
Salienta-se, contudo, que a construção fílmica de Mutum pode ser lida e entendida por
si própria, sem fazer qualquer alusão ao texto literário, inclusive pode ser lida como uma
representação social do atual sertão mineiro, tanto pela coerência de sua história quanto pela
verossimilhança que o filme evidencia.
Assim, Mutum é construído, essencialmente, por enquadramentos em planos gerais
PG – com a intenção de descrever o espaço e situar as personagens no mesmo, e por primeiros
planos PP com a intenção de mostrar a subjetividade das personagens. Uma das
características marcantes do filme é o fato de que os planos são longos, não se corta de um
plano a outro com rapidez, pelo contrário, não a intenção de dar velocidade ao filme, seu
ritmo parece ser definido pela subjetividade, pelo verossímil.
Afastando-se da leitura de Campo Geral e centrando-se a perspectiva no filme Mutum,
percebe-se que, embora haja lacunas entre o texto literário e o texto fílmico, este pode ser lido
por si mesmo Sua história é construída com coerência e veracidade. Há, então, um
Thiago/Miguilim protagonista –, que conduz a história. A câmera é conduzida pelo olhar e
pelo sentimento desse menino, que não depende do irmão Felipe/Dito para ver e entender o
112
mundo, mas que sofre com a morte dele. Trata-se de um menino que não tem grandes
manifestações de carinhos para com os animais nem de apego aos seus brinquedos, entretanto,
fica evidente a presença destes em sua vida quando, face a alguma situação conflitante: o
sumiço da cachorra Rebeca; os brinquedos quebrados quando da surra dada por seu pai. Um
menino que tem uma forte relação recíproca de amor e carinho com sua mãe, admiração pelo
tio Terêz e, simultaneamente, amor e receio pelo pai Bero. Assim como Miguilim, Thiago, ao
acompanhar este no trabalho na roça, o faz de forma natural, remontando à cultura do trabalho
infantil, segundo a qual, a única condição para se iniciar a criança no trabalho era um mínimo
de força física, mesmo que essa iniciação implicasse riscos, como vaquejar, que lhe parece
mais uma brincadeira do que um trabalho penoso.
Todas as etapas acima são, de fato, preparatórias para a cena final, na qual ele,
seguindo os conselhos da mãe a despeito do sofrimento por ter que deixar a família e o
Mutum – irá embora com o doutor que lhe colocara os óculos, com os quais,
metaforicamente, não só lhe mostra o mundo, mas lhe propicia, finalmente, a compreensão do
mundo, gestada através de todos os sofrimentos vividos. Finalmente, está pronto para ir em
busca da “luz de seus olhos”, mas também de melhores condições de vida.
Essa síntese, clarifica-se que o filme tem Thiago/Miguilim como condutor da história,
e, embora em alguns aspectos seja a representação fidedigna da novela, noutros há a liberdade
artística da diretora que opta por nuances distintas e exclusões integrais de situações e
personagens do texto original, seja pela dificuldade de transpor cento e trinta e cinco páginas
e inúmeros personagens em torno de noventa minutos de filme, seja pela própria condução do
eixo dramático escolhido para o filme.
113
3.2.1 Na novela: o leitor chega ao Mutum
Um certo Miguilim, morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe,
longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d'Água e de outras veredas
sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos
Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, de
serra. Miguilim tinha oito anos. Quando completara sete, havia saído dali,
pela primeira vez: o tio Terêz levou-o a cavalo, à frente da sela, para ser
crismado no Sucuriju, por onde o bispo passava. Da viagem, que durou dias,
ele guardara aturdidas lembranças, embaraçadas em sua cabecinha. De uma,
nunca pode esquecer: alguém, que estivera no Mutúm, tinha dito: um
lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante
de qualquer parte; e lá chove sempre...' (C.G., 2001, p. 27).
3.2.2 No filme: o espectador chega ao Mutum
No primeiro plano do filme câmera
subjetiva – o olhar de Thiago/Miguilim
sobre a crina do cavalo sobre o qual
estão montados ele na cabeceira do
arreio e seu tio Terêz, que conduz o
cavalo.
Tempo: 16 segundos de duração.
Apresentação do nome do filme.
Off som de pássaros e dos passos e da
respiração do cavalo.
Tempo: 10 segundos de duração.
Enquadramento: GPG
30,
de
determinado espaço do sertão mineiro
onde está situada a casa de
Thiago/Miguilim.
Tempo: 15 segundos de duração.
Há, apenas, o som do vento e de
pássaros.
Movimento fílmico – câmera fixa.
30
Grande Plano Geral GPG: Tem como função principal descrever o cenário. Ângulo de visão
muito aberto, praticamente sem percepção da ação das personagens. Tem função descritiva.
114
Entra no quadro das patas do cavalo.
Nesse momento ouve-se o som dos
passos e da respiração do cavalo.
Movimento pró-fílmico mera fixa,
são os personagens sobre o cavalo que
se movimentam em relação à câmera
entram no quadro,
CPG enquadra em primeiro plano os
personagens, sabe-se que são dois
pelos pés sobre o cavalo em segundo
plano o Mutum, ao fundo a casa de
Thiago/Miguilim.
Continua o movimento pró-fílmico:
CAM mera fixa, personagens se
movimentam em relação à CAM e o
mesmo som.
No mesmo plano GPG, o mesmo
movimento de CAM visualizam-se as
costas de um homem tio Terêz e
ouve-se o mesmo som.
Tempo da entrada das patas do cavalo
no quadro até o final desta sequência:
19 segundos.
PG dos cachorros recebendo Thiago/
Miguilim e tio Terêz.
Esta sequência tem função de corte da
anterior para a inserção da próxima: a
chegada em casa de Thiago/Miguilim
da viagem que fez para o Crisma.
PG mostra o espaço e situa neste, em
primeiro plano, a cachorra Rebeca e,
em segundo plano, Thiago/Miguilim a
cavalo com tio Terêz.
Plano Geral PG: Ângulo de visão
menor que o GPG. Privilegia o cenário
no qual é possível ver a figura das
personagens, mas é difícil de
reconhecer suas ações.
115
Guimarães Rosa, no parágrafo inicial, é sucinto. Em poucas palavras ele apresenta o
personagem-protagonista Miguilim e informa ao leitor que: ele vive com seu pai sua e e
irmãos; onde eles vivem um lugar longínquo no meio dos Campos Gerais; a idade de
Miguilim e a primeira viagem que ele fizera um ano antes, na companhia do tio para ser
crismado e que naquela viagem ele descobria que o Mutum era um lugar bonito. Na sequência
o autor-empírico comunica sobre a viagem que Miguilim fez para ser crismado na companhia
do tio Terêz, seu padrinho de crisma. Como um narrador onisciente
31
mostra o fluxo de
consciência de Miguilim, as lembranças embaraçadas em sua cabecinha, especialmente aquela
da qual ele nunca esqueceu: a fala de uma pessoa que diz que Mutum, embora situado entre
morros, com muita pedreira e com chuva constante, é um lugar bonito.
Sandra Kogut começa o filme com a volta da viagem de Thiago/Miguilim para ser
crismado. Ela descreve o Mutum de forma similar à narrada por Guimarães Rosa, já que, pelo
enquadramento em GPG – grande plano geral a diretora apresenta a casa de
Thiago/Miguilim entre morros. São planos longos, que objetivam situar espacialmente o
filme.
No segundo parágrafo da novela, Guimarães Rosa caracteriza traços internos e
externos da mãe de Miguilim, uma mulher linda, de cabelos pretos e compridos, mas que não
gosta de viver no Mutum tanto pelas constantes chuvas quanto pela tristeza que lhe causa o
entardecer daquele lugar. Na sequência o autor expõe a saudade que Miguilim sentiu do
Mutum no período em que ficou fora por ocasião da viagem do crisma e mescla esse
31
A segunda categoria de Friedman, a do narrador onisciente, ou narrador onisciente neutro, fala em
pessoa. Também tende ao SUMÁRIO, embora aí seja bastante frequente o uso da CENA para os
momentos de diálogo e ação, enquanto frequentemente, a caracterização das personagens é feita
pelo NARRADOR que as descreve e explica para o leitor. As outras características referentes às
outras questões (ângulo, distância, canais) são as mesmas do AUTOR ONISCIENTE INTRUSO,
do qual este se distingue apenas pela ausência de instruções ae comentários gerais ou mesmo sobre
o comportamento das personagens, embora a sua presença, interpondo-se entre o leitor e a
HISTÓRIA, seja sempre muito clara. (LEITE, 2007, p. 32).
116
sentimento com a relação deste menino com tio Terêz e com a água, que ao invés de saciar
sua sede, quando passada nas narinas, acalmava sua intensa saudade.
No filme, após a chegada de Thiago/Miguilim e tio Terêz em casa, enquanto este
descarrega a bagagem do cavalo, aquele é acolhido por seus irmãos e lhes entrega alguns
presentinhos dizendo que tinha mais presentes, mas que cairam no córrego e como havia
uma cobra enorme, não os catou. Sua irmã mais velha não acredita, o chama de mentiroso e
diz que, por mentir, ele vai para o inferno, Thiago/Miguilim diz que não está mentindo e que
não vai para o infermo, pois está crismado.
3.2.3 Na novela: Miguilim dá a boa notícia à mãe – o Mutum é um lugar bonito
Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia
para dar à mãe: o que o homem tinha falado que o Mútum era lugar
bonito... A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava
consolada. Era um presente; e a idéia de poder trazê-lo desse jeito de cor,
como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas. Tão grave, grande, que
nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de
esperar; e assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e
contou-lhe, estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenhum,
mas mirou triste e apontou o morro; dizia 'Estou sempre pensando que
por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e
que eu nunca hei de poder ver... 'Era a primeira vez que a mãe falava com ele
um assunto todo sério. No fundo de seu coração, ele não podia, porém,
concordar, por mais que gostasse dela: e achava que o moço que tinha falado
aquilo era que estava com a razão. Não porque ele mesmo Miguilim visse
beleza no Mutúm nem ele sabia distinguir o que era um lugar bonito e um
lugar feio. Mas só pela maneira como o moço tinha falado: de longe, de leve,
sem interesse nenhum; e pelo modo contrário de sua mãe agradava de
calundú e espalhando suspiros, lastimosa. No começo de tudo, tinha um erro
Miguilim conhecia, pouco entendendo. Entretanto, a mata, ali perto, quase
preta, verde-escura, punha-lhe medo. (C.G., 2001, p. 28-29).
117
3.2.4 No filme: Miguilim dá a boa notícia à mãe – o Mutum é um lugar bonito
PG de Thiago/Miguilim pedindo
bênção ao seu pai.
Movimento fílmico a câmera se
movimenta em relação às personagens.
PG Thiago/Miguilim, assim que recebe
a bênção de seu pai, sai correndo em
direção à sua mãe.
PG do quintal da casa de
Thiago/Miguilim, a mãe para de
estender a roupa no varal e pega o filho
no colo – abraça-o.
Detalhe do balanço de corda a
presença da infância.
PP do abraço apertado de Nhanina no
filho Thiago/Miguilim.
Primeiro Plano PP: Enquadra a
personagem na altura do busto.
Possibilita a percepção da emoção da
personagem e tal enquadramento tem
uma função mais psicológica do que
narrativa.
118
PP de Nhanina prestando atenção à fala
do filho, que lhe conta que um homem
disse que o Mutum é um lugar bonito.
PP de Nhanina que não responde nada
ao filho e o olha carinhosamente.
Fora de campo: off de canto de
pássaros, como a confirmar que o
Mutum é um lugar bonito.
PP de Thiago/Miguilim com o dedo no
rosto de sua mãe, gesto que faz com
que ela sorria para o filho.
PP de Nhanhina sorrindo para o filho.
PP de Nhanina abraçando e cheirando o
filho.
119
CAM subjetiva olhar de Nhanina em
PP no filho parece olhar nos olhos do
filho.
CAM subjetiva de Nhanina olhando o
escapulário pendurado ao pescoço do
filho.
A CAM subjetiva do olhar de
Thiago/Miguilim em PP em Nhanina,
que também o olha carinhosamente e
lhe pergunta se ganhou o escapulário de
presente.
PP de Nhanina recebendo do filho um
carinho no rosto a mãe fecha os
olhos, ao receber o carinho do filho,
subjetividade da mãe.
PP contraplano de Thiago/Miguilim
acariciando o rosto de sua mãe.
120
A CAM subjetiva do olhar da mãe de
Thiago/Miguilim, que retribui o carinho
no rosto do filho em PP – reciprocidade
de carinho. O filho fecha os olhos ao
receber o carinho da mãe
subjetividade do filho.
Tempo da sequência do instante em que
Thiago/Miguilim corre para o encontro
de sua mãe até esse momento: 50
segundos.
Na novela, a mãe de Miguilim, após ouvir do filho que um estranho havia falado que
o Mutum era um lugar bonito, não importância à informação do filho. Ela se limita a olhar
com tristeza para os morros à frente da casa e diz que eles a separam das coisas que
acontecem, ou seja, metaforicamente, é como se Nhanina dissesse que esses morros a separam
da vida que ela gostaria de ter.
No filme, até a sequência supracitada, não está ainda claro que a mãe não gosta de
viver naquele lugar e nesta cena ela é extremamente carinhosa com o filho, carinho
explicitado pela opção da diretora em filmar toda essa sequência enquandrando as
personagens – Nhanina e Thiago/Miguilim em primeiro plano.
Diferentemente da novela, na qual a mãe de Miguilim não se preocupa em demonstrar
ao filho sua insatisfação em relação à sua vida no Mutum, o filme mostra uma mãe
preocupada com os sentimentos do filho Nhanina não diz a Thiago/Miguilim que não gosta
de viver no Mutum. Tal preocupação e carinho remetem à concepção contemporânea dos
filhos como centro da família, e não daquelas concepções da infância do contexto do sistema
patriarcal evidenciadas por Badinter e Freyre.
Na novela, no parágrafo seguinte ao fragmento acima especificado, Guimarães Rosa
expõe o fluxo de consciência de Miguilim sua preocupação com os sentimentos do pai, ao
vê-lo dando mais atenção à mãe do que a ele –, e também a demonstração de insatisfação do
121
pai para com o filho, por não ter-lhe dado a mesma atenção que dispensou à mãe. Ou seja,
embora haja um narrador onisciente em relação a Miguilim– em terceira pessoa –, que sabe o
que Miguilim pensa e sente, esse narrador também voz às personagens e deixa que o
próprio Bero diga: “– 'Este menino é um mal-agradecido. Passeou, passeou, todos os dias
esteve fora de cá, foi no Sucurijú, e, quando retorna, parece que nem tem estima por mim, não
quer saber da gente...'” (C.G. 2001, p.29).
No filme, a próxima sequência representa, exatamente o que está na novela: a reação
de Bero em relação ao carinho maior do filho pela e e o pedido desta para que o marido
deixe de cisma. Contudo, não no filme, anterior à fala de Bero, o fluxo de consciência de
Thiago/Miguilim que evidencie a sua preocupação em relação aos sentimentos do pai. Há,
após essa bronca do pai, uma reação de tristeza que é captada em primeiro plano; tristeza que
parece ambígua, visto que o menino tanto pode ter ficado chateado por magoar seu pai,
quanto por ter ficado triste pela reação violenta do mesmo.
Ainda no mesmo parágrafo, o narradorautor-modelo (Eco) conta que a brabeza do
pai era tanta, que no dia seguinte domingo Bero leva os irmãozinhos de Miguilim pescar
no córrego e o deixa de castigo, até que tio Terêz o tira do castigo e o ensina a fazer arapuca
para pegarem passarinhos. Nesse trecho do livro Guimarães Rosa, assim como o fizera no
parágrafo inicial do mesmo, evidencia a relação recíproca de companherismo entre Miguilim
e tio Terêz.
No filme, não a situação em que Bero deixa Miguilim de castigo, após a
reprimenda do pai. A sequência é cortada para Thiago/Miguilim na área próxima à cozinha da
casa, sentado em um banco, cabisbaixo, entristecido, quando tio Terêz aproxima-se dele. A
partir daí, o filme representa o que está no livro – tio Terêz leva Thiago na mata buscar galhos
para construção da arapuca de pegar passarinho. Nessa sequência, a cineasta mostra o carinho
122
entre tio Terêz e Thiago/Miguilim quando os dois brincam de pega-pega, como se tivessem a
mesma idade.
Salienta-se que, no mesmo parágrafo, mesclado à aventura de pegar pássaros de tio
Terêz e Miguilim, o narrador transcreve o pensamento de Miguilim o que sentiriam os
pássaros aos serem capturados e isolados de seus companheiros –, em seguida, esse narrador
informa ao leitor que esses pássaros, depois de presos, eram soltos. Na frase seguinte uma
descrição dos trajes do Bispo, que o caracterizam como um homem rico. Momento em que
para a voz do narrador e entra a voz da personagem-protagonista. “– Tio Terêz, o senhor acha
que o Mutúm é um lugar bonito ou feioso?” (C.G., 2001, p. 31). O tio Terêz diz ao sobrinho
que não o Mutum é um lugar bonito como gosta de nele viver. Percebe-se, então, a
preocupação desse menino para com os ssaros e em relação ao desejo de saber se o lugar
onde vivem é bonito. A expressão bonito nesse fragmento pode ser lida como sinônimo de
bom um lugar aprazível para se viver. Essa parte do texto não é transcrita para o filme, não
a evidência dos pensamentos e preocupações de Thiago/Miguilim em relação aos pássaros
e nem suas indagações sobre o Mutum.
No próximo parágrafo, que se estende por quase uma página, num flashback, o autor
implícito conta ao leitor implícito que Miguilim nasceu em Pau-Rôxo, um lugar ainda mais
distante que Mutum. Além de situar geograficamente o lugar, o narrador onisciente mostra o
fluxo de consciência de Miguilim e descreve algumas reminiscências de suas primeiras
lembranças. Considerando que Miguilim está com sete anos, esses flashbacks remetem à
época em que ele ainda era um bebê, que engatinhava e sentia o frescor das folhas. Ao falar
dessas primeiras lembranças para a mãe, ela lhe diz que isso não se passara no Pau-Roxo, mas
são lembranças de um passeio que fizeram na fazenda dos Barbóza, que ficava nas Pindaíbas-
de-Baixo-e-de-Cima.
123
No parágrafo seguinte, o escritor continua a rememoração de Miguilim, agora sobre a
viagem de mudança do Pau-Rôxo para o Mutum. Vinham num carro-de-bois, além da
mudança traziam, também, uma cabrita e os cabritinhos. Desses flashbacks o narrador volta
para a situação em que Miguilim chegou da viagem que fez com tio Terêz para ser crismado.
Parece que, para o leitor, a situação já estava delineada, já houve o encontro do menino
com sua mãe e com seu pai, este já o deixou de castigo porque deu mais atenção à mãe do que
a ele, o tio Terêz o tirou do castigo e o levou para armar arapuca para pegarem passarinhos
e ele perguntou se tio Terêz achava Mutum um lugar bonito. Contudo, a partir da resposta de
tio Terêz, houve uma digressão o autor-modelo contou ao leitor-modelo onde Miguilim
nasceu, suas lembranças e, inclusive, deu voz ao próprio personagem-protagonista para falar
de suas memórias alegres e assombrosas. De repente, sem nenhuma ligação entre esse fato e a
chegada da viagem, ocorre um diálogo entre Miguilim e seus irmãos, quando da chegada da
viagem do crisma. Por vezes, parece que as situações narradas têm um desfecho e, páginas
depois, voltam à cena, como nesse exemplo.
Salienta-se que, no filme, a cineasta desconsiderou todo esse flashback e inseriu logo a
tomada na qual Thiago/Miguilim chega no Mutum e a essência do diálogo entre ele e seus
irmãos. O fato de Sandra Kogut não considerar as informações dos flashbacks rosianos
ocorre em todo o discurso fílmico de Mutum.
Constata-se, então, que, em Campo Geral, não linearidade. O narrador em terceira
pessoa narra determinada situação, permitindo que a voz das personagens se mescle à
narrativa. Há uma presença constante de flashbacks – com a intenção de explicar o presente,
poucos, contudo, dão conta de um passado distante como no que Miguilim volta à condição
de um bebê que ainda engatinha, na maior parte do tempo esses flashbacks referem-se à um
passado próximo – dias, semanas, meses.
124
Nas próximas três páginas 33 a 35 a caracterização dos irmãos de Miguilim,
Drelina, Dito, Tomezinho, Chica, Liovaldo que mora na cidade e do qual ele pouco se
lembra. a descrição da mãe fazendo creme de buriti, da Rosa preparando porco para assar
e quando o narrador volta ao diálogo da chegada de Miguilim da viagem do crisma e do
presente imaginário, que teria caído no rio, e do recorte de jornal, que causou rebuliço entre os
irmãos.
Na sequência, parte para a caracterização dos cachorros, entre eles Gigão o maior de
todos e da cachorra Pingo-de-Ouro, cuja descrição se estende por quase duas páginas dada
sua importância na vida de Miguilim. Dessa lembrança passa-se para o diálogo em que Dito
avisa ao irmão de que o pai está brigando com a mãe.
Enquanto no livro o leitor dispõe previamente de uma série de informações a respeito
da agressão de Bero, no filme, após a sequência do tio Terêz ensinando Thiago/Miguilim fazer
arapuca para pegar passarinho e, com isso, aprender a caçar a própria comida e assim nunca
passar fome, corta-se para um plano geral das duas irmãs e o irmão mais novo de Miguilim
sentados no chão em um canto externo da casa, escovando os dentes, e parte-se para a
sequência de Felipe/Dito avisando o irmão sobre a briga dos pais.
3.2.5 Na novela: a surra que Béro dá em Miguilim
Pai está brigando com Mãe. Está xingando ofensa, muito, muito. Estou
com medo, ele queria dar em Mamãe...
Era o Dito, tirando-o por um braço. O Dito era menor mas sabia o sério,
pensava ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo juízo. E gostava, muito,
de Miguilim. Quando foi a estória da Cuca, o Dito um dia perguntou:
'Quem sabe é pecado a gente ter saudade de cachorro?...' O Dito queria que
ele não chorasse mais por Pingo-de-Ouro, porque sempre que ele chorava o
Dito também pegava vontade de chorar junto.
Eu acho, Pai quer que Mãe converse mais nunca com o tio Terêz... Mãe
está soluçando em pranto, demais da conta.
Miguilim entendeu tudo tão depressa, que custou para entender. Arregalava
um sofrimento. O Dito se assustou: 'Vamos na beira do rego, aver os
125
patinhos nadando...' – acrescentava. Queria arrastar Miguilim.
– Não, não... Não pode bater em Mamãe, não pode...
Miguilim brotou em chôros. Chorava alto. De repente, rompeu para a casa.
Dito não o conseguia segurar.
Diante do pai, que se irava feito um fero, Miguilim não pode falar nada,
tremia e soluçava; e correu para a mãe, que estava ajoelhada encostada na
mêsa, as mãos tapando o rosto. Com ela se abraçou. Mas dali o arrancava
o pai, batendo nele, bramando. Miguilim nem gritava, procurava proteger
a cara e as orelhas; o pai tirava o cinto e com ele golpeava-lhe as pernas, que
ardiam, doíam como queimaduras quantas, Miguilim sapateando. Quando
pôde respirar, estava posto sentado no tamborete, de castigo. E tremia,
inteirinho o corpo. O pai pegara o chapéu e saíra.
A mãe, no quarto, chorava mais forte, ela adoecia assim nessas ocasiões,
pedia todo consolo. Ninguém tinha querido defender Miguilim. Nem Vovó
Izidra. E tanto, até o pai parecia ter medo de Vovó Izidra. Ela era riscada
magra, e seca, não parava nunca de zangar com todos, por conta de tudo.
Com o calor que fizesse, não tirava o fichú preto. 'Em vez de bater, o que
deviam era de olhar para a saúde deste menino! Ele es cada dia mais
magrinho...' Sempre que batiam em algum, Vovó Izidra vinha ralhar em
favor daquele. Vovó Izidra pegava a almofada, ia fazer crivo, rezava e
resmungava, no quarto dela, que era o pior, sempre escuro, tinha tanta
coisa, que a gente não pensava; Vovó Izidra quase vez nenhuma abria a
janela, ela enxergava no escuro.
Os irmãos estavam acostumados com aquilo, nem esbarravam mais dos
brinquedos para vir ver Miguilim sentado alto no tamborete, à paz. Dio,
de longe distante, pela porta espiava leal. Mas Dito não vinha, não queria
que Miguilim penasse vergonha.
Aonde o pai teria ido? De ficar botado de castigo, Miguilim não se
queixava. Deixavam-no, o ruim se acabara, as pernas iam terminando de
doer, podia brincar de pensar, ali, no quito, pegando nas verônicas que tinha
passadas por um fio, no pescoço, e que de vez em quando devia de beijar,
salgando a boca com o fim de suas lágrimas. O cachorro Gigão caminhava
para cozinha, devagaroso, ele tinha sempre a cara fechada, era todo grosso.
Ninguém não tocava o Gigão paa fora de dentro de casa, porque o pai dizia:
– 'Ele salvou a vida de todos!' dormia no da porta do quarto, uma noite
latiu acordando o mundo, uma cobra enorme tinha entrado, uma urutú, o pai
matou. O dia estava muito bruto de quente, Miguilim com sede, mas não
queria pedir água para beber. (C.G., 2001, p. 35-37).
3.2.6 No filme: a surra que Béro dá em Miguilim
PG de Thiago/Miguilim montando
uma arapuca.
Fora de campo: off de Felipe/Dito
Thiago
126
Felipe/Dito entra no quadro PG,
falando ao irmão Thiago o pai
brigando com a mãe.
Contraplano em PP de Thiago /
Miguilim olhando para o irmão
Felipe/Dito.
Thiago/Miguilim levanta-se e sai do
quadro.
PPP Felipe/Dito olha o irmão correndo
em direção à casa.
Primeiríssimo Plano PPP: enquadra
o rosto ou parte do rosto da
personagem, possibilitando ao
espectador compreender a expressão
facial e emocional da personagem.
Tem função mais psicológica do que
narrativa.
PG de Thiago/Miguilim correndo em
direção à casa.
Fora de campo: off de Felipe/Dito
espera Thiago.
127
PM de Thiago/Miguilim correndo em
direção à casa.
Plano Médio PM: enquadramento da
personagem a meio corpo. Tem função
narrativa, a ação tem maior impacto na
totalidade da imagem.
PG de Felipe/Dito correndo atrás de
Thiago/Miguilim.
Ponto de vista de Felipe/Dito em PG
de Thiago/Miguilim se aproximando
de sua casa.
PG de Thiago/Miguilim entrando na
casa.
Ponto de vista de Felipe/Dito.
Fora de campo: off de Felipe/Dito
pera aí Thiago.
PG de Felipe/Dito correndo em
direção da casa.
Fora de campo: off de Nhanina
gritando e falando – para.
Fora de campo: off de latido de
cachorro.
128
PG da casa.
Fora de campo: off de Bero em voz
alta, gritado – ele é meu irmão!
PG de Felipe/Dito entrando na casa.
Fotografia: contrastada mesclando
sombras de claro e escuro.
Fora de campo: off de Nhanina
chorando
PG de Felipe/Dito parando em frente à
porta.
Fora de campo: off de Bero batendo
em Nhanina e o choro dela mais alto.
PPP de Felipe/Dito, com olhar
cabisbaixo.
Fora de campo: off de Bero que passa a
bater em Thiago/Miguilim agora
vou te ensinar seu descarado.
PPP de Felipe/Dito, entristecido.
Fora de campo: off som de Bero
batendo em Thiago/Miguilim e de
Nhanhina pedindo não bate não! de
Bero toma! aprende! de Nhanina
chorando não bate nele não! de Bero
falando para Thiago/Miguilim não
olhe pra mim! choro de Nhanina.
129
Corta para PD de Rosa lavando louças.
Plano Detalhe PD: pode-se
enquadrar detalhes do rosto ou do
corpo da personagem ou de objetos de
cena. Tem função indicativa.
A CAM sai de PD e vai à PP em over
shoulder em Rosa com um cigarro na
boca mostra que é Rosa quem está
lavando as louças.
Over shoulder: enquadra a
personagem pelas costas na altura do
ombro.
PP em over shoulder de vovó Izidra
preparando a refeição.
PM de vovó Izidra entristecida.
Off de Rosa – senhora gosta que pique
maior ou menor?
Vovó Izidra não responde e vai em
direção à janela da cozinha que dá para
a área, onde também tem outro fogão
de barro e onde Thiago/Miguilim está
sentado próximo a esse fogão.
Em primeiro plano over shouder de
vovó Izidra em segundo plano ponto
de vista de vovó Izidra em PG de
Thiago/Miguilim sentado em um
banco, de castigo.
130
Vovó Izidra sai do quadro.
Fica no quadro em primeiro plano a
janela da cozinha e, em segundo plano
em PG Thiago/Miguilim, sentado de
castigo.
PP de vovó Izidra falando – Ave
Maria, uma judiação que estão
fazendo!
PD de Rosa picando batata doce e
falando – já falei, mas não adianta!
A CAM sai do PD e vai em PP em
Rosa.
Off de vovó Izidra – pois é!
PM de Felipe/Dito se aproximando de
Thiago/Miguilim.
131
PD da caneca com água que
Felipe/Dito está levando para
Thiago/Miguilim.
PD de Felipe/Dito entregando a caneca
com água para Thiago/Miguilim.
PP de Thiago Miguilim bebendo água.
Off de Felipe/Dito Thiago, sabe o
que Luisaltino disse? Que o pai foi
pro bando das pedras.
PP de Felipe/Dito falando ao irmão
acho melhor não contar pro tio...
PP de Thiago/Miguilim cabisbaixo,
ouvindo o irmão.
Off de Felipe/Dito do final da frase
anterior – o negócio da briga.
132
PG de Felipe/Dito saindo de perto do
irmão de castigo e entrando na cozinha
da casa.
PP de Thiago/Miguilim.
Fora de campo de vovó Izidra falando
para Felipe/Dito sai daí agora! Se
não for vai ficar de castigo!
No livro prevalece a opção estilística de Guimarães Rosa por narrar uma ação
detalhadamente, dando ao leitor o maior número de informação possível, tanto da
objetividade quanto da subjetividade das personagens, bem como o traço característico em
todo seu texto de intercalar a ação presente aos flashbacks que não explicam o presente
quanto retardam o desfecho da ação.
No fragmento acima do texto de Guimarães Rosa, o flashback informa ao leitor-
implícito a importância do cachorro Gigão para a família de Miguilim. Em relação à situação
subjetiva das personagens, o autor-empírico, que é ao mesmo tempo o autor-modelo e o
narrador onisciente que narra em terceira pessoa explicita para o leitor-virtual e real o
sentimento de Miguilim, bem como a dor que este sente pela surra que levou do pai. Esse
mesmo narrador dá detalhes da objetividade das personagens – mostra as ações das mesmas –,
inclusive, dá voz a essas personagens. Ou seja, mesclados ao discurso do narrador em terceira
pessoa, aparecem os discursos das personagens situadas nessas ações.
Enquanto na novela Guimarães Rosa, através dos flashbacks, prima por dar ao leitor
133
informações que caracterizem interna e externamente suas personagens, retardando o
desfecho da ação, no filme, Sandra Kogut faz o contrário, poucas informações ao
espectador e prevalecem os diálogos compostos por frases curtas, o que indica que a diretora
parte da premissa de que as imagens desvelam as ações das personagens, o que está em
sintonia com a linguagem fílmica.
Especificamente em relação à surra que Bero em Miguilim, a cena é descrita de
forma detalhada na novela, visando fazer com que o leitor sinta a dor de Miguilim. no
filme, a diretora opta pelo fora de campo, enquadrando em primeiro plano Felipe/Dito,
construindo a surra, apenas, pelo off, o som que parece ser do cinto de Bero, o choro de
Nhanina e os gritos de Bero. Essa opção permite que se avente que, no atual contexto social
em relação à infância, a cena, se filmada como está na novela rosiana, indiscutivelmente,
provocaria um impacto muito forte no espectador.
Diferentemente de Guimarães Rosa, que precisa todas as informações, Sandra Kogut,
nos sete minutos iniciais do filme, em poucas palavras, desvela para o espectador que Bero
está batendo em Nhanina, por causa de uma suposta traição dela com tio Terêz. Essa questão é
reforçada posteriormente pela fala de Felipe/Dito pedindo ao irmão para não falar ao tio Terêz
sobre a briga dos pais.
A leitura desses fragmentos da novela e do filme evidencia que o texto literário
possibilitou a criação de imagens imaginárias tanto sobre a relação conflituosa entre pai e
filho quanto sobre a dor de Miguilim, expressa pela objetividade da ação da surra e pela
subjetividade que expressa a dor física e a goa da personagem. No filme, talvez por
assisti-lo após a leitura da novela, portanto com as imagens previamente imaginadas, parece
que a ação construída pelo discurso fílmico não provoca um impacto tão forte quanta o
provocado pelo texto.
134
Na sequência da novela, Guimarães Rosa continua com o referido traço estilístico de
retardamento de desfecho e de ações paralelísticas. Enquanto Miguilim está de castigo, o
narrador mescla memórias dessa personagem ao impacto que lhe causara a monumental figura
do bispo que o crismara, bem como sobre o medo que as crianças sentem em ficarem sós,
como uma alusão ao conto Joãozinho e Maria.
O narrador insere no texto outros personagens, a exemplo do vaqueiro Jé, que naquele
momento comentara sobre a tempestade que se aproximava. Volta, ainda ao castigo de
Miguilim: “Miguilim não respondia. De castigo, não tinha ordem de dar resposta, aos mais
velhos. Sim sorria para o Dito, quando ele olhava o rabo-do-olho.” (C.G., 2001, p. 38-
39). Ato contínuo, o narrador passa a descrever o tesoureiro um belo e forte pássaro.
Quando, então, surge a fala de Dito aconselhando Miguilim que está de castigo –, para não
contar ao tio Terêz que o pai brigou com a mãe, afirmando que a Mãitina disse que tudo que
acontece é feitiço e que vai perguntar a vovó Izidra se o irmão pode sair do castigo.
No filme, após a entrada de Felipe/Dito em casa, a próxima sequência mostra a
chegada de tio Terêz que, ao ver Thiago/Miguilim de castigo, diz ao menino para que o
sobrinho saia desse castigo, mas ele não obedece a tal ordem. O tio entra rapidamente na casa
e volta para perguntar ao sobrinho onde está Nhanina, quando vovó Izidra aparece e ordena
que Thiago/Miguilim saia do castigo e chama tio Terêz para uma conversa em particular, na
qual fala para que deixe o Mutum. Essa sequência é construída pelo enquadramento em
primeiro plano de Thiago/Miguilim, com o fora de campo do off da vovó Izidira mandando o
filho Terêz embora antes que ocorra morte na família. Terêz tenta argumentar e quer se
despedir de Nhanina, mas a mãe insiste na ordem de que o filho embora o tempo desse
plano tem quase trinta segundos de duração.
Enquanto no filme o desfecho dessa ação é rápido, no livro, ao longo de duas páginas,
135
continuam narrações sobre as ações de Dito; as artes de Chica a filha que mais apanha do
pai; os latidos dos cachorros avisando sobre a chegada do tio Terêz, que ao ver o sobrinho de
castigo, libera-o; o pensamento de Miguilim de que a mãe deveria estar no quarto, no escuro;
seu divertimento de ver os tatus e seus buracos. E, então, de repente, vovó Izidra sai do quarto
escuro e chama tio Terêz e o manda embora do Mutum antes que aconteça uma desgraça em
família, e o chama de Caim que matou Abel, numa alusão à parábola bíblica, cuja fala é
ouvida por Miguilim. Continua por uma página a rotina da casa até o jantar da família,
quando, então, a chuva chega com o vento e todos correm para apanhar o resto de roupa
dependuradas no varal, com detalhes do vento, da chuva, do medo das pessoas em relação à
tempestade.
3.2.7 Na novela: a chuva
No mundo ficcional de Campo Geral/Miguilim, Guimarães Rosa representa a chuva
objetiva e subjetivamente. Mimetiza, portanto, o medo que as crianças sentiam em momentos
de temporais tapavam os ouvidos ao ouvirem os trovões como também a visão que estas
tinham dessas mudanças climáticas. Dito o temporal como um castigo do “Papai-do-Céu”
pelo ocorrido entre o pai, a mãe e tio Terêz. Nesses momentos uma grande proximidade
entre os irmãos, os quais filosofam sobre a vida e a morte. Ou seja, a tempestade serve de
pretexto para que seja abordado o temor que as crianças sentem em relação à morte. Da
exposição dessa subjetividade, o narrador passa para a materialização dos estragos que a
chuva provoca na casa envelhecida.
Dessa materialização, a narrativa mostra a crença da família como forma de proteção
contra o temporal. Drelina chama Miguilim e Dito, a mando de Vovó Izidra, para rezarem
136
juntos e todos ajoelhados em frente a um oratório, com vela benta uma representação da
cultura da crença na vela benta e em Santa Bárbara e São Jerônimo. Esse momento espiritual
é quebrado pela ação de Miguilim, que sopra um cisco na roupa de Rosa. Essa ação é
mesclada a uma alusão aos vaqueiros que chegam de suas viagens com suas roupas cheias de
espinhos e carrapichos. O texto volta para a oração – alusão à força da oração coletiva – capaz
de acabar com a tempestade. Da descrição da do momento presente da narrativa, um
flaschback que descreve a vivencidada por Miguilim quando ele era bem mais novo e
engasgou-se com um osso de galinha simbologia da simpatia de benzimento e que pela
conseguiu se salvar.
Nesse momento, a narrativa representa a e a oração da família, respaldada nos
valores católicos como a oração e a implicância de Vovó Izidra, dizendo que Mãitina está
embolando as orações. Na sequência da narrativa, após a inserção do tipo de reza que Mãtinha
faz com suas danças e cantos, o narrador faz uma alusão ao teatro, ao circo. Então, o narrador
volta à chuva.
Posteriormente, tem-se a caracterização de Vó Benvinda avó materna, falecida –,
que, quando velha, rezava noite e dia, ralhava com os meninos, mas que, quando jovem tinha
sido mulher prostituta, tal episódio foi contado ao Dito por um vaqueiro. “Mulher- atôa é que
os homens vão em casa dela e quando morrem vão pro inferno.” (C.G., 2001,. 48). O narrador
justifica que vovó Izidra, sogra e tia de Nhanina, não gosta do comportamento da sobrinha
Nhanina, cujas inconsequências talvez por uma espécie de herança atávica colocam a
segurança do casamento e da família em risco, temor esse que se confirma, com o episódio
em que Bero mata Luizaltino e depois se suicida. Contudo, a narrativa evidencia que, mesmo
com as atitudes inconsequentes de Nhanina, há sentimento de carinho de Miguilim em relação
à mãe – tem vontade de abraçá-la. A narrativa volta, então, para oração e mesclado a ela, tem-
137
se a força da chuva e os pensamentos preocupados de Miguilim para com os cachorros fora de
casa em meio a tanta chuva.
Nessa síntese percebe-se que a chuva é o pano de fundo das ações das personagens. Há
o prenúncio da chuva na página 38: “– Vai chover. O vaqueiro está dizendo que vai
chover chuva brava, porque o tesoureiro, no curral, está dando cada avanço, em cima das
mariposas!...” (C.G., 2001, p. 38). A chuva, vinculada ao drama entre Nhanina, o marido e o
cunhado, segue sendo o elo dramatúrgico por mais de dez páginas, tanto que na página 51,
ainda chuva: “Chovera pela noite a fora, o vento arrancou as telhas da casa. Ainda chovia,
nem se podia pôr para secar o colchão de Tomezinho, que tinha urinado na cama.” (C.G.,
p.51).
A chuva é constante no Mutum, fato evidenciado pelo narrador tanto no primeiro
parágrafo do livro: “e lá chove sempre.” (C.G., 2001, p. 27), quanto pela afirmação de que um
dos motivos de Nhanhina não gostar do Mutum é pelas demoradas chuvas que se precipitam
por longos períodos sobre aquela região serrana. Entre as páginas 38 e 51, toda a perspectiva
da narrativa é construída em relação à descrição da chuva como pelos sentimentos que esta
suscita nas personagens. Contudo, nesse trecho, prevalece o estilo de uma narrativa em
terceira pessoa, que voz aos personagens, que insere flaschbacks e ações paralelísticas que
retardam o desfecho de determinadas ações. Estilo presente do início ao fim da novela Campo
Geral/Miguilim.
3.2.8 No filme: a chuva
Diferentemente de Campo geral, onde Guimarães Rosa representa detalhadamente a
importância da tempestade no Mutum e a subjetividade que esta suscita em suas personagens,
138
no filme, Sandra Kogut constrói esta relação imemorial entre o homem e esta força da
natureza de forma pontual, sem intercalar outras ações paralelísticas e flashbacks¸ como
ocorre no texto rosiano.
O início da sequência da chuva no filme ocorre após o enquadramento em primeiro
plano, no qual Miguilim escuta fora de campo em off vovó Izidra mandando o tio Terêz
embora do Mutum, o tio tenta se despedir de Nhanina, mas vovó Izidra não permite. Nesse
mesmo enquadramento, após a fala de vovó Izidra, tem-se outro som fora de campo, agora um
off de choro não identificado. De quem a diretora autora-modelo pretende que seu
espectador leitor-modelo identifique que é esse choro? Para quem leu a novela, está
clarificado que é de Nhanina, mas, neste momento do filme, será que o espectador teria
informações suficientes para a partir do off desse choro – sutil –, saber de quem se trata?
No próximo enquadramento tem-se um plano geral do quintal da casa e um pouco da
mata, com efeitos de imagem e som do vento. Esse take tem seis segundos e, na sequência,
outro plano geral, também em torno de seis segundos, de uma espécie de um pequeno curral
que fica no quintal da casa e continua o efeito de imagem e som de vento. Esses dois
enquadramentos prenunciam a chuva.
Num movimento pró-filmico a câmera fixa em plano geral de uma espécie de
corredor que acesso ao quarto de Nhaninha Thiago/Miguilim entra no quadro, se
aproxima e abaixa-se próximo da porta, tentando escutar alguma reação da e. Após esse
plano, há um corte para Thiago/Miguilim na cozinha, perguntando para Rosa: a mãe vai janta
hoje, Rosa? Como esta não lhe responde, em seguida pergunta: e o Felipe?. Então Rosa o
responde de forma ríspida: eh menino larga mão de ser curioso. Esta sequência tem cerca de
vinte e seis segundos, apenas três curtas frases, poucas palavras, estilo que predomina em
grande parte do cinema contemporâneo. Especificamente sobre essa cena, após aquela
139
situação de violência a que o menino foi submetido, surra e castigo, a forma como Rosa
uma pessoa adulta responde para Miguilim, para o leitor, pode parecer como se ela não
tivesse sentimentos, entretanto, tal atitude da Rosa é compreensível, que ela não espaço
para que a situação de conflito se amplie. Ou seja, ela corta a curiosidade do menino em
relação a um assunto sério um complexo triângulo amoroso –, que não deve ser discutido
com criança, além do fato, que naquele contexto, criança que especulava demais era mal vista.
Contudo, ressalta-se que a Rosa de Sandra Kogut é construída em dissonância à de Guimarães
Rosa, que no texto literário uma relação afetuosa entre ela e Miguilim, em especial, no
apoio que esta lhe quando da morte de Dito além de ser a Rosa quem coloca “dôces-de-
leite” nas algibeiras, para a viagem que Miguilim fará com o doutor.
O próximo enquadramento fílmico de dez segundos é de uma árvore, de suas folhas
balançando com o vento – efeitos de som vento e trovoadas. Corta para uma sequência de dez
segundos, de um plano geral de uma das irmãs de Thiago/Miguilim em frente a casa,
apanhando algo levado pelo vento efeito de vento levantando a poeira do chão. Tem-se,
então, um plano geral de dez segundos, novamente um movimento pró-fílmico a câmera
está fixa –, Felipe/Dito e Thiago/Miguilim se aproximam de uma árvore e olham para o céu
como a visualizar a tempestade que se forma –, com ênfase no som do vento e dos trovões
que se acentuam fora de campo, off de vovó Izidra o menino!. Corta para um plano de
cinco segundos de uma pequena área que acesso à entrada da casa efeito de adereços
voando continua o off de vovó Izidra vai fecha a janela! Tem-se um plano geral de sete
segundos de Juliana/Drelina recolhendo a roupa do varal em meio ao vento, poeira que se
levanta do chão, efeitos sonoros de vento e trovões. Numa sequência de dez segundos, num
plano geral em frente a casa, tem-se Rosa correndo apanhar algumas bacias levadas pelo
vento. Em torno de dez segundos a câmera sai de primeiro plano do rosto e abre em plano
140
geral mostrando Juliana/Drelina terminando de recolher a roupa e correndo em direção a casa
quando Rosa vem ajudá-la e ambas entram efeitos imagem e som de vento, poeira e som
de trovões. Começa a chuva, um plano geral de cerca de vinte e cinco segundos, com Terêz
cabisbaixo, deixando a casa a pé, puxando o cavalo pela rédea. Corta para um primeiro plano
de doze segundos do olhar de Thiago/Miguilim entristecido, vendo pela janela de seu quarto o
tio ir embora sob a tempestade.
Na próxima cena, a câmera subjetiva mostra Thiago/Miguilim olhando em plano
geral, pelas costas, tio Terêz e o cavalo saindo do Mutum sob de chuva e o foco da lente
desloca-se para uma sequência interior de vinte e cinco segundos, ao longo da qual
Thiago/Miguilim está deitado no chão em frente à porta que dá acesso ao quarto de sua mãe –
desolamento, solidão.
Desloca-se para a cena do quarto, com dez segundos, na qual Nhanina está com o filho
Thiago/Miguilim no colo, acariciando seu braço e a tristeza de ambos permeia toda a cena,
enquanto fora de campo tem se o off do relinchar de um cavalo será que a autora-modelo,
Sandra Kogut, pretende que seu leitor-modelo espectador vincule os olhos lagrimados e o
suspiro de Nhanhina com esse off do cavalo, como se esta personagem estivesse tão triste pela
partida do cunhado, Terêz? A seguir, aparece Rosa colocando uma bacia para aparar as
goteiras. Enquadra-se em primeiro plano, Felipe/Dito e Thiago/Miguilim agachados e
encostados em uma parede, com uma vela acesa nas mãos de Felipe/Dito que diz ao irmão
Thiago, por causa do pai, da mãe e do tio, Deus com raiva da gente! Intercala-se a esta
sequência a vovó Izidra ascendo uma vela na cozinha, volta para a cena dos meninos e
Felipe/Dito diz Thiago você tem medo de morrer?, e Thiago/Miguilim responde: eu tenho,
mas se for sozinho, todo mundo junto não tenho não. No próximo enquadramento, estão
vovó Izidra, Rosa e Juliana/Drelina colocando bacias e baldes nas goteiras da chuva. Volta
141
para os irmãos e Thiago/Miguilim diz: Felipe, fiz uma promessa que se o pai e o tio volta
pra casa e não briga nunca mais! eu não tenho medo nunca mais. Felipe/Dito responde: o
pai volta, o tio, não. Thiago/Miguilim questiona o irmão como é que cê sabe? Entra um fora
de campo, off de vovó Izidra: vamo rezar, menino. Volta para Rosa e Juliana/Drelina,
aparando a chuva que cai dentro da casa, com o off de vovó Izidra: – Rosa, olha esses menino,
põe eles pra reza ao invés de ficar cochichando. No quartinho que compartilha com o irmão
Felipe/Dito, Thiago/Miguilim diz: a cama molhada, vou dormi com ocê. Felipe/Dito
comenta: Thiago/Miguilim eu não gosto muito do tio, não. Será que isso é errado? O
cachorro entra no quarto; Thiago/Miguilim, afirma: eu também não gosto da vó, não. Será
que a gente devia fazer uma promessa pra fica gostando dos parente? Felipe/Dito argumenta:
quando a gente cresce, a gente gosta de todos. Na sequência, Thiago/Miguilim indaga se
quando eles também crescerem haverá quem não goste deles e se eles não vão nem ficar
sabendo. Mostra, ainda, o medo que Thiago/Miguilim tem do pai não gostar dele e mandá-lo
embora, no escuro, debaixo da chuva – assim como aconteceu com tio Terêz –, sem saber para
onde ir. Nesse momento, entra o som off de animais, pássaros e cachorros então
Thiago/Miguilim pede ao irmão se vão ficar juntos até quando forem adultos, mas não recebe
resposta do irmão que está dormindo. A cena seguinte, em plano geral, apresenta um novo
dia ensolarado e sem chuva.
Assim, toda a sequência da chuva no filme, desde seu prenúncio, dura
aproximadamente uns oito minutos. Um belo trabalho de produção de efeitos de ventanias, de
som de trovoadas, ventos e relâmpagos, mesclados à tristeza de Nhanina e Thiago/Miguilim –
pela partida de tio Terêz e à conversa deste com o irmão Felipe/Dito. Novamente, percebe-
se que Sandra Kogut prima por poucos diálogos, pela exclusão das ações paralelísticas e
flashbacks presentes no texto rosiano, optando pela linearidade da narrativa. A diretora decide
142
por fazer apenas uma alusão à reza durante a chuva, como se o motivo da vovó Izidra chamar
Thiago/Miguilim e Felipe/Dito para rezar fosse melhor do que eles ficarem cochichando. Ao
contrário da força da reza e da católica que Guimarães Rosa representa em seu texto, ou
seja, parece que no filme não há, assim como o no texto rosiano, a representação da força
da cultura popular na crença nas rezas durante as tempestades.
Embora o diálogo entre Thiago/Miguilim e Felipe/Dito seja praticamente o que está no
texto de Guimarães Rosa, estes são apenas uma parte do que ambos falaram no texto literário,
o que confirma a opção da diretora em querer que o filme fale mais com as imagens do que
com as palavras. Embora haja a opção de sequências longas e de primeiros planos que
enquadram a personagem na altura do busto que buscam evidenciar a subjetividade das
personagens –, partindo do que é dado pela cineasta, certamente há como perceber o eu desses
meninos por ela construídos, mas é um eu diferente do construído por Guimarãres Rosa, tendo
em vista que, o texto literário, em muitos momentos, mostra com mais profundidade a
subjetividade dessas crianças do que o texto fílmico.
3.2.9 Na novela: Miguilim vai embora do Mutum
Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.
– “Você está triste, Miguilim?” – Mãe perguntou.
Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam
sempre dum modo tão diferente, eram grandes demais.
– Para onde ele foi?
A foi p'ra a Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. Mas amanhã ele
volta, de manhã, antes de ir s'embora para a cidade. Disse que, você
querendo, Miguilim, ele junto te leva... O doutor era homem muito bom,
levava o Miguilim, ele comprava uns óculos pequenos, entrava para a
escola, depois aprendia ofício. – “Você mesmo quer ir?”
Miguilim não sabia. Fazia peso para não soluçar. Sua alma, até ao fundo, se
esfriava. Mas Mãe disse:
Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que Deus teve poder para te dar.
Vai. Fim do ano, a gente puder, faz a viagem também. Um dia todos se
encontram...
E Mãe foi arrumar a roupinha dele. A Rosa matava galinha, para pôr na
143
capanga, com farofa. Miguilim ia no cavalo Diamante depois era vendido
na cidade, o dinheiro ficava para ele. Mãe, é o mar? Ou é para a banda
do Pau-Rôxo, Mãe? É mutio longe?” “– Mais longe é, meu filhinho. Mas é
do lado do Pau-Rôxo não. É o contrário...” A Mãe suspirava sempre.
– “Mãe, mas por que é, então, para que é, que acontece tudo?!”
– Miguilim, me abraça, meu filhinho, que eu tenho tanto amor...”
Os cachorros latiam fora; de cada um, o latido, a gente podia reconhecer.
E o jeito, tão oferecido, tão animado, de que o Papaco-o-Paco dava o .
Papaco-o-Paco sobrecantava: Mestre Domingos, que vem fazer aqui? Vim
buscar meia-pataca , p'ra beber meu parati... Mãe ia lavar o corpo de
Miguilim, bem ensaboar e esfregar as orêlhas, com bucha. “Você pode
levar também as alpercatinhas do Dito, elas servem para você...”
No outro dia os galos cantavam tão cedinho, os passarinhos que
cantavam, os bem-te-vis de lá, os passo-pretos: Que alegre é assim...
alegre é assim... Então. Todos estavam em casa. Para um em grandes horas,
todos: Mãe, os meninos, Tio Terêz, o vaqueiro Salúz, o vaqueiro Jé, o
Grivo, a mãe do Grivo, Siàrlinda e o Bustiquinho, os enxadeiros, outras
pessôas. Miguilim calçou as botinas. Se despediu de todos uma primeira
vez, principiando por Mãitina e Maria Pretinha. As vacas, presas no curral.
O cavalo Diamante estava arreado, com os estrivos em curto, o pelego
melhor acorreado por cima da sela. Tio Terêz deu a Miguilim a cabacinha
formosa, entrelaçada com ciós. Todos eram bons para ele, todos do Mutúm.
O doutor chegou. “Miguilim, você está aprontado? Está animoso?
Miguilim abraçava todos, um por um, dizia adeus até aos cachorros, ao
Papaco-o-Paco, ao gato Sossõe que lambia as mãozinhas se asseando.
Beijou a mão de mãe do Grivo. lembrança a seo Aristeu...
lembrança ao seo Deográcias...” Estava abraçado com a Mãe. Podiam sair.
Mas, então, de repente, Miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia,
quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O
doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim.
E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos
escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são
caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da
manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-
josés, como algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutúm era
bonito! Agora ele sabia. Olhou Mãtina, que gostava de o ver de óculos,
batia palmas-de-mão e gritava: Cena, Corinta!... Olhou o redondo de
pedrinhas, debaixo do jenipapeiro.
Olhava mais era para Mãe. Drelina era bonita, a Chica, o Tomezinho.
Sorriu para Tio Terêz: “Tio Terêz, o senhor parece com Pai...” Todos
choravam. O doutor limpou a goela, disse: – “Não sei, quando eu tiro esses
óculos, tão fortes, até meus olhos enchem d'água...” Miguilim entregou a
ele os óculos outra vez. Um soluçozinho veio. Dito e a Cuca Pingo-de-
Ouro. E o Pai. Sempre alegre, Miguilim... Sempre alegre, Miguilim... Nem
sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o beijava. A Rosa punha-lhe dôces-
de-leite nas algibeiras, para a viagem. Papaco-o-Paco falava, alto, falava.
(C.G., 2001, p. 150-152).
144
3.2.10 No filme: Miguilim vai embora do Mutum
Plano Geral – PG – do Mutum.
Ponto de vista de Nhanina.
Off de som de aves, insetos.
Plano Americano PA de Nhanina,
pensativa.
Off de som de aves, insetos.
PG - de Thiago/Miguilim se
aproximando de sua mãe.
PA de Thiago/Miguilim perguntando à
mãe: – Ué mãe, cadê o homem?
145
Plano Médio PM de Nhanina e
Thiago/Miguilim.
Nhanina responde ao filho: Ele foi
caçar na Vereda Grande. Mas antes
de ir pra cidade ele volta.
PM de Nhanina e de Thiago/Miguilim.
Nhanina cabisbaixa pergunda ao filho:
Thiago/Miguilim...
Primeiro Plano PP de
Thiago/Miguilim ouvindo sua mãe.
Nhanina: ... o moço disse que se ocê
quisé, ele te leva junto com ele.
Após ouvir a mãe, Thiago/Miguilim
continua no mesmo enquadramento,
por vinte e cinco segundos, olhando
pensativo e triste para a mãe
percebe-se lágrimas em seus olhos.
PP de Thiago/Miguilim saindo do
quadro.
PP de Nhaninha olhando o filho.
146
Plano Detalhe PD de Nhanina
sentando em um banco e detalhe da
roupa de Thiago/Miguilim que se
aproxima dela.
PP de Nhaninha com Thiago/Miguilim
sentado em seu colo ambos
cabisbaixos.
Nhanina comenta com o filho: O
moço é cumpadre de seu Aristeu.
pausa na cidade ele te compra
um óculos. pausa Te põe na escola.
pausa Depois você aprende um
trabalho.
PP de Nhanina e Thiago/Miguilim
olhando-se, cabisbaixos.
Nhanina pergunta ao filho: Você
quer ir?
Miguilim não responde, olha triste
para a mãe.
PP de Nhanina e Thiago/Miguilim
abraçados. Ambos entristecidos.
Nhanina: Vai filho. chorando Se
der, no fim do ano, a gente faz a
viagem também. Pausa. Um dia
todo mundo se encontra.
PP do abraço carinhoso e entristecido
de Nhanina em Thiago/Miguilim.
Fora de campo: off do som de aves e
insetos.
147
PG de Thiago/Miguilim brincando no
quintal de sua casa separa as pedras
do chão.
Tempo desse plano: 30 segundos.
Off do som de aves e insetos.
PG em primeiro plano de Thiago
Miguilim brincando no quintal de sua
casa.
GPG – em segundo plano – do Mutum.
Tempo desse plano: 15 segundos.
Off do som de vento, de aves e insetos.
PA de Nhanina arrumando a roupa de
Thiago/Miguilim o qual está no quadro
em PM sentado ao lado da mesa
observando a mãe.
Nhanina pergunta ao filho: Você
quer levar o chinelinho do Felipe?
Ainda serve no cê. Quer?
PP de Thiago/Miguilim olhando para a
sua mãe e confirmando com a cabeça
que quer levar o chinelinho do Felipe.
Em seguida pergunta à mãe: É o mar
ou é pra banda do Tabuleiro Branco?
É longe?
Off de Nhanina: Não é pra banda do
Tabuleiro Branco, não. É pra outro
lado. Só que é mais longe.
Thiago/Miguilim questiona: Então pra
que que acontece tudo mãe?
148
PP do abraço carinhoso entre Nhanina
e Thiago/Miguilim.
Fora de campo: off de latido de
cachorro.
PM de Nhanina e Thiago/Miguilim
indo em direção ao doutor.
Off do doutor: Thiago, vamo embora?
PP de Thiago/Miguilim, perguntando:
Doutor, posso?
PP do doutor olhando para
Thiago/Miguilim.
PP do doutor tirando seus óculos.
149
PD da mão do doutor entregando os
óculos na mão de Thiago/Miguilim.
PP de Thiago/Miguilim colocando os
óculos.
PP de Thiago/Miguilim com os óculos
– satisfação de poder enxergar melhor.
PM do tio Terêz que se aproxima e
olha para Thiago/Miguilim. Ponto de
vista do olhar de Thiago/Miguilim.
PP de Thiago/Miguilim olhando para
Rosa.
150
PM de Rosa olhando para
Thiago/Miguilim.
CAM subjetiva do olhar de
Thiago/Miguilim.
PP de Thiago/Miguilim.
PG dos irmãos de Thiago/Miguilim e
de vovó Izidra com o papagaio na
mão.
CAM subjetiva do olhar de
Thiago/Miguilim.
PG de Juliana/Drelina sorrindo para
Thiago/Miguilim.
CAM subjetiva do olhar de
Thiago/Miguilim.
PP de Thiago/Miguilim.
Off do som do vento e de pássaros.
151
PG da casa de Thiago/Miguilim.
Ponto de vista do olhar de
Thiago/Miguilim.
Off do som do vento e de pássaros.
PM de Nhanina Thiago/Miguilim
vira-se e olha para a mãe.
PG de Thiago/Miguilim em primeiro
plano no quadro, em segundo plano o
Mutum.
PG da mata.
CAM subjetiva do olhar de
Thiago/Miguilim.
Off do som do vento e do canto de
passáros.
PG do pátio da casa de
Thiago/Miguilim.
152
PG do pátio da frente/saída da casa de
Thiago/Miguilim .
Off de som de vento, pássaros e
insetos.
Fade áudio: som das patas dos
cavalos.
PG do acompanhante do doutor, do
doutor e de Thiago/Miguilim todos a
cavalo.
PG sequência final do filme em
primeiro plano do quadro, o pátio da
frente/saída da casa de
Thiago/Miguilim, em segundo plano
do quadro, o acompanhante do doutor,
o doutor e de Thiago/Miguilim a
cavalo indo embora do Mutum.
Tempo desse plano: cerca de sessenta
segundos.
Nas últimas duas últimas páginas de Campo Geral prevalece a opção estilística
adotada por Guimarães Rosa de mostrar o mundo subjetivo e objetivo da personagem
protagonista Miguilim –, de descrever detalhadamente o espaço no qual a história é
ambientada, mesclando a descrição do espaço à narração interior e exterior de suas
personagens. Tanto é assim que a leitura dessas páginas é capaz de provocar o efeito catártico
no leitor, que se envolve com a difícil decisão da personagem protagonista. Ou seja, uma
criança de oito anos ter que abandonar a família – de quem ele gosta tanto, apesar de achar os
adultos meio tolos e inconsequentes –, o Mutum e tudo o que até então identificou seu lugar
no mundo em busca não da visão, no sentido literal, mas de ver o mundo por si mesmo,
153
sem a mediação do Dito. Neste desfecho da novela fica evidente o rito de passagem de
Miguilim de menino a “homem”, sem, contudo, passar pela adolescência, pois, com apenas
oito anos, tem que sair de casa, deixar o carinho e a proteção de sua família, especialmente de
sua mãe, e ir em busca da vida de adulto, poder enxergar direito, estudar e ter uma profissão.
O leitortem a confirmação de que valeu a pena ler esta dolorosa e precoce passagem se ler
Noites do sertão, onde Miguel reaparece adulto, com uma profissão e em busca do amor.
No filme Mutum, da sequência em que Thiago/Miguilim se aproxima da mãe e
pergunta onde está o doutor até a última sequência, quando ele vai embora do Mutum com o
doutor, tem cerca de quinze minutos de duração ao longo dos quais prevalece a opção
estilística da diretora pelo predomínio da imagem em detrimento aos diálogos. Entretanto
esses diálogos são praticamente como os descritos na novela rosiana, representando uma
síntese da novela. Por outro lado, pode-se afirmar que o não dito pelo filme, ou seja, as
personagens enquadradas em primeiros primeiros planos que evidenciam a subjetividade
das personagens –, os planos médios, especialmente, os que mostram Nhanina e
Thiago/Miguilim muito próximos, às vezes abraçados, bem como os planos gerais, que
caracterizam a descrição do espaço, são, na realidade, a representação do que vem da palavra
romanesca de Campo Geral, assim o que não está no filme em palavra – diálogos –, o está nas
imagens, que essas imagens, mesmo sem texto, assim como os diálogos, se comunicam
com o leitor/espectador. Dessa forma, embora, alguns lugares sejam atualizados pela diretora,
a exemplo de no texto literário Miguilim perguntar se o lugar para onde vai é perto de Pau-
Rôxo e no filme Thiago/Miguilim perguntar se para onde está indo é para banda do Tabuleiro
Branco, concluí-se, que a última parte do filme a saída de Thiago/Miguilim do Mutum é
uma representação fiel do texto de Guimarães Rosa.
154
3.3 LENDO MUTUM, DE SANDRA KOGUT
Sendo estudiosa da relação cinema e literatura brasileira, muitas vezes ouvi a seguinte
afirmação: “prefiro o texto literário ao cinematográfico” e não é preciso estar apenas no meio
acadêmico para ouvir esta frase. Recentemente, um adolescente de doze anos, que está
concluindo a leitura de Eclipse, terceiro livro da série Crepúsculo
32
, comentou: “vou assistir
em novembro ao lançamento do filme Lua Nova, mas, prefiro o livro, porque o livro é muito
mais detalhado. Enquanto, no filme aparece uma parte, no livro aparece muito mais”.
Salienta-se, contudo, de que o oposto também é verdadeiro: quem prefira o filme ao texto
literário.
Sabe-se que é raro um discurso literário ser totalmente transposto para o discurso
fílmico
33
, especialmente, pela quantidade de páginas e detalhes de um livro, em oposição à
limitação da duração de um filme. Mas, esta não é a única razão das diferenças entre um texto
literário e sua adaptação para o cinema textos literários e filmes são linguagens diferentes,
este é o principal aspecto que, a priori, deve ser destacado quando se comparam obras cujas
composições e linguagens são distintas entre si.
Em Mutum (2007), as lacunas, a falta de ênfase em alguns personagens e situações, é
uma opção da diretora Sandra Kogut, que afirma que seu filme não é uma adaptação plena e
sim uma leitura do texto de Guimarães Rosa. Nesse sentido, os leitores
34
desse autor,
provavelmente, poderão preencher os espaços vazios do filme com as inferências construídas
32
No contexto da Indústria Cultural, a série dos livros Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse, Amanhecer, de
autoria da estadunidense Stephenie Meyer, é a mais nova onda de best-seller que são adaptados
para o cinema.
33
Nas recentes produções do Cinema Nacional, realizadas a partir da Literatura Brasileira, o filme
Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, pode ser considerado como uma adaptação fiel ao
texto de Raduan Nassar.
34
De acordo com o conceito de leitor de Wolfgang Iser, Vincent Jouve e de Umberto Eco, aqueles
que têm como hábito, a prática da releitura.
155
em seu imaginário, por meio da leitura da novela Campo Geral/Miguilim. Por outro lado, um
espectador que não tenha lido essa novela e assista ao filme, talvez não sinta esses vazios, e
possa compreender toda a trama pelo olhar de Thiago/Miguilim.
Ao assistir
35
ao filme Mutum, primeiramente, tive a impressão de que faltava muito do
livro de Guimarães Rosa, principalmente certas situações de conflito entre pai e filho
Miguilim e Bero –, a presença mais forte de vovó Izidra e a relação mais profunda entre os
irmãos Miguilim e Dito. Ressalva-se, porém que, assim como no livro, no filme uma
relação conflituosa, por vezes de amor e ódio, entre pai e filho. Contudo, a cineasta,
diferentemente de Guimarães Rosa, parece querer poupar o espectador, tanto que as surras
que Bero em Thiago/Miguilim são construídas, apenas, com o fora de campo pelo off
enquanto, no texto literário, o leitor parece sentir a dor de Miguilim.
A diretora optou atribuir às personagens do filme o nome das crianças que fizeram os
papeis infantis no filme. Segundo a fala de Sandra Kogut em sua audioentrevista presente
nos extras do DVD do filme tal opção foi em prol de uma confiança maior entre ela e os
atores, bem como para extrair um maior realismo das cenas. Se, para a cineasta, manter o
nome significava manter a fidelidade na narrativa fílmica proposta, para Guimarães Rosa,
nomear seus personagens era um ato de caracterização de traços da personalidade dos
mesmos, vinculados ao nome: Miguilim, ou Miguel, que significa “Quem é como Deus.”
(GUÉRIOS, 1981, p.177), e Dito – Expedito que significa “Pronto. Desembaraçado das coisas
materiais e pronto para as coisas espirituais.” (GUÉRIOS, 1981, p.115). Diferentemente do
filme Mutum, na novela Campo Geral pode-se perceber que Dito nasce pronto, é um ser
35
Com esse exercício é possível perceber a questão da dialogicidade sistematizada por Bakhtin,
analisando um texto que, necessariamente, dialoga com outro texto, que o filme Mutum é
inspirado no livro Campo Geral. Também são fundamentais para esta leitura, os conceitos de
linguagem/palavra de Bakhtin, já que, embora o livro seja o reino das palavras e o filme o reino das
imagens, constata-se que é a partir da palavra romanesca que o filme é construído, mesmo com
seus silêncios que m a intenção de fala/palavra, e, que, assim como o dito, contribuem para a
percepção da subjetividade e da interação social das personagens.
156
espiritualizado, que atua como um “anjo da guarda” para o irmão Miguilim, conduzindo-o, até
que, com sua morte, precipita a dolosa passagem de Miguilim de criança a “adulto”.
Miguel, etimologicamente, seria o “vencedor dos dragões” (GUÉRIOS, 1981, p. 61);
tanto no livro Miguilim quanto no filme Thiago –, o personagem protagonista precisa
vencer os dragões da vida, impostos pela realidade familiar e social na qual está inserido. Ou
seja, embora não haja a permanência dos nomes do texto base, tanto o Miguilim de Guimarães
Rosa quanto o Thiago de Sandra Kogut são crianças situadas num espaço do sertão mineiro
denominado Mutum, no qual terão que enfrentar os dragões impostos por suas realidades
sociais e, ao mesmo tempo, são esses embates que clarificam o rito de passagem de infância
para a vida adulta. Uma vida adulta que Guimarães Rosa constrói na travessia do menino
Miguilim para o “homem” Miguilim, cuja travessia tem início em seu texto quando este
menino tinha sete anos idade da razão na volta de sua viagem de crisma e que torna-se
“adulto” no final da novela, quando deixa Mutum e vai embora com o doutor uma criança
com cerca de oito anos, que deixa sua família para seguir um estranho, não é mais criança, é
um “homem”. Thiago-personagem do filme Mutum, assim como Miguilim, de Campo Geral,
representa essa travessia. É interessante perceber que essa realidade não é estanque à narrada
em 1956 por Guimarães Rosa, que o Thiago/real, segundo a fala de Sandra Kogut, também
vivenciou na prática essa travessia, pois, ao ser questionado por ela se não cansa de trabalhar
que o mesmo não parava durante as filmagens, estando ou não em cena ele responde
que está acostumado, pois trabalha desde que era criança. Momento em que a diretora pontua
que ele é, ainda, uma criança de dez anos. Neste sentido, a infância pode estar apenas de onde
se olha para a criança e não necessariamente na idade e na condição desta.
O Mutum, de Sandra Kogut, consegue expressar a subjetividade
36
de Thiago. É pelo
36
Segundo os pressupostos bakhtinianos a subjetividade é construída na relação intersubjetiva entre
os sujeitos sociais dessa maneira, é possível afirmar que o medo que Thiago sente por seu pai é
resultado da vivência conflituosa ente ambos.
157
olhar desse menino que se capta esse lugar situado no sertão mineiro, bem como a forte
relação de amor que ele tem para com a mãe e para como tio Terêz. Nesse aspecto, o filme é
fiel ao livro, pois em ambos percebe-se uma fusão entre espaço e personagem, que ele
consegue ver em detalhes através das lentes dos óculos do doutor. Momento em que o filme
mostra o olhar subjetivo, já que Thiago olha tanto para o Mutum quanto para a mãe com amor
e não sente vontade de ir embora. É a mãe – com o coração apertado – que quer que o filho vá
embora com o doutor para que, através da ciência, possa ver claramente o mundo, bem como
ter uma condição de vida melhor do que a família, no Mutum, pode proporcionar. Este é um
dos momentos em que o filme remete às emoções suscitadas pelo livro base no
espectador/leitor.
Voltando às minhas impressões, depois, da decepção do primeiro encontro com o
filme, voltei ao DVD, quando decidi ouvir a audioentrevista da cineasta, momento em que
entendi o porquê do figurino tão atual da vovó Izidra, das lacunas no filme, dentre as quais a
primeira surra de Thiago ao defender a mãe, a forma como foi construída a morte de
Felipe/Dito e a construção do personagem Thiago/Miguilim quase independente do irmão
mais novo Felipe/Dito. Foi esclarecedora a informação de Sandra Kogut de, ao roteirizar o
filme, não querer, num primeiro momento, voltar ao livro de Guimarães Rosa, pois pretendia
fazê-lo com as impressões que ainda tinha em sua memória desde que o tinha lido, que
eram essas impressões que a estavam motivando a filmá-lo.
Nesse aspecto, numa perspectiva bachelardiana, o Mutum de Guimarães Rosa é uma
imaginação poética tanto em sua origem autor quanto em seu destino leitor –, ou seja,
Guimarães Rosa o Mutum de forma regional espaço e universal sentimentos
humanos –, sendo que as imagens poéticas desse regional e universal que lhe tocaram o
coração são transformadas em texto literário, sendo capazes, igualmente, de tocar o coração
158
de seu leitor que reescreve o Mutum no momento da leitura. No caso de Sandra Kogut, a
cineasta o reescreveu em uma outra linguagem, a do cinema.
Guimarães Rosa ênfase à passagem da infância à precoce maturidade
37,
numa
mescla com os conflitos pessoais que, na maioria das situações, advêm do meio social em
que seus personagens estão inseridos; o foco narrativo, contudo, é a infância, como prenuncia
o subtítulo da novela Miguilim, ou seja, o pequeno Miguel. Já a cineasta, embora tenha como
fio condutor a questão da temática infância, prefere nomear o filme como Mutum nome do
espaço no qual se passou a história de Guimarães Rosa. “Um certo Miguilim morava com sua
mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui [...] em ponto remoto, no Mutum. No meio dos
campos gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, de serra” (C.G, p. 5). Daí
ter sido relevante o processo de pesquisa que a cineasta realizou ao longo de cerca de um ano,
que incluiu visitas às locações, bem como a escolha e preparação dos atores e cerca de dois
meses de vivência entre os atores escolhidos tanto profissionais quanto os iniciantes. Nesse
momento, percebi a leitora
38
de Guimarães Rosa, uma leitora comprometida em conhecer a
realidade que pretendia representar, assim como o era Guimarães Rosa com seu processo
criativo.
Concluí-se, então, que o Mutum do filme de Sandra Kogut, embora inspirado na
leitura de Guimarães Rosa, é o sertão mineiro construído por ela, como resultado de uma
pesquisa empírica, bem como que esse espaço atua como modulador da identidade das
personagens que nele vivem, sobrevivem ou subsistem.
37
Os conceitos da temática infância de Badinter, Aires e Freyre são fundamentais tanto para a
compreesão da representação desta temática no livro de Guimarães Rosa quanto no filme de Sandra
Kogut, até porque, embora o filme possa, em certa medida, ser considerado como uma livre
adaptação do texto rosiano, há no filme a representação da forma com que as crianças eram vistas e
tratadas no contexto histórico em que o livro foi escrito, onde prevalecia o sistema patriarcal.
38
Uma leitora de segundo nível, conforme definição de Eco, a que faz não releituras do texto
como leituras paralelas, quer seja de ordem social, histórica e cultural, visando compreender as
reais intenções do autor.
159
Na questão de subsistência, o espaço do filme Mutum parece remeter ao espaço de um
outro sertão, o do filme Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, especificamente,
guardadas as proporções de tempo e espaço, por fatores políticos, econômicos e sociais. Ainda
numa analogia entre Vidas Secas (1963) e Mutum (2007), respectivamente, Nelson Pereira dos
Santos e Sandra Kogut optaram na construção estética de seus filmes por suprimir algum tipo
de informação sensorial. Enquanto Nelson prefere o preto e branco, quase como uma
anacromia estourando a fotografia como se a opção de falta de cor fílmica fosse uma
metáfora para a falta não de água, como da aridez da vida, Sandra opta por anular a
informação musical com a intenção de demonstrar que o apelo de uma música, possivelmente
cativante, viesse a induzir o espectador a alcançar a intensidade emotiva pelo olhar da
diretora, mais do que a pretendida através da interpretação dos atores, em especial, de Thiago,
já que o filme é construído pelo olhar e sentimentos deste.
Dessa forma, constata-se que os enquadramentos do espaço Mutum em grande plano
geral e plano geral, têm mais do que a função de descrição ou narração. Têm a intenção de
fundirem-se às paisagens internas das personagens, daí a compreensão da opção estética da
cineasta em trabalhar, especialmente, nas sequências exteriores, com a luz natural, com efeitos
de sons oriundos do próprio ambiente, bem como com a falta de musicalidade, já que para ela
o que importava eram as paisagens internas. Assim, percebe-se que no filme de Sandra Kogut,
o espaço está impregnado na forma de ser e de agir de seus personagens, ou seja, o sertão atua
como revelador do mundo dessas personagens.
160
CONCLUSÃO
O presente estudo De meninos a “homens”: possibilidades de leituras da infância
em Conversa de bois, Campo Geral e Mutum foi estruturado em três capítulos. No primeiro
capítulo, intitulado, Leitura Literária objetivou-se analisar a articulação entre teoria
leitura/recepção e prática análises interpretativas do conto Conversa de Bois e da novela
Campo Geral.
No segundo capítulo, intitulado A infância: um constructo social, mapeou-se a origem
do conceito de infância no contexto europeu, do qual a cultura brasileira é altamente
tributária, a partir da perspectiva de Elizabeth Badinter e Philippe Ariès e, no contexto
brasileiro, tendo por base a obra de Gilberto Freyre. Autor que a despeito da restrição de
vários críticos à sua formação e visão aristocrática – abordou com pertinência muitos aspectos
sociais relevantes na formação brasileira. Esse capítulo se ateve, ainda, ao conceito de rito de
passagem, abordado por Mircea Eliade, no livro O sagrado e o profano.
O terceiro capítulo, intitulado Literatura e Cinema: a transposição fílmica de Campo
Geral, de Guimarães Rosa, em Mutum, de Sandra Kogut, respaldou-se nas teorias do primeiro
e do segundo capítulos, respectivamente sobre leitura/recepção e conceito sociológico de
infância, bem como sobre a técnica narrativa do cinema de David Wark Griffith, para apontar
algumas leituras comparativas dos referidos discursos literários e fílmicos.
Salienta-se que o objetivo deste estudo de articulação entre teoria e prática de leitura
literária, respaldou-se no fato de que, no século XX, na tríade autor-texto-leitor, o leitor
passou a ser foco de estudos de distintas tendências teórico-críticas. Assim, esta pesquisa teve
como recorte, os estudos ocorridos entre o final da década de 1960 e meados dos anos 1990 e,
subjacentes a estas abordagens teóricas a indiscutível marca dos estudos bakhtinianos
161
sobre dialogicidade.
Dessa forma, fez-se uma distinção entre Teoria da Recepção e Estética da Recepção,
afirmando que esta poderia ser sinônimo daquela. Contudo, salientou-se que a Estética da
Recepção, refere-se a uma escola teórico-crítica especifica, surgida em torno de 1967, ligada a
teóricos vinculados à Escola de Constança, na Alemanha, tendo entre seus principais
fundadores, Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Evidenciou-se, portanto, que inúmeros
estudiosos são vinculados à Teoria da Recepção, dentre eles, Roland Barthes, Michel Picard,
Waine Booth, Michael Riffaterre, Stanley Fish, Erwin Wolff.
Embora tais estudiosos sejam relevantes no contexto da Teoria da Recepção, esta
pesquisa selecionou, além dos alemães Jauss e Iser, o linguista francês, Vincent Jouve, o
romancista e semiótico italiano, Umberto Eco e o pós-estruturalista russo – também lido como
marxista –, Mikhail Bakhtin. Justificou-se, porém, a articulação de diferentes vertentes
teórico-críticas sobre leitura/recepção da arte literária, pela intenção da leitura analítica
interpretativa do conto Conversa de Bois e da novela Campo Geral. Evidenciou-se, dessa
maneira, o que de convergência e de divergência nesses teóricos, especificamente, sobre o
ato receptivo de obras literárias nas referidas análises literárias.
Concluiu-se que há divergência entre Bakhtin e alguns teóricos da recepção no tocante
à interpretação: enquanto Iser conclama à visão freudiana para a compreensão da
interpretação do leitor e Jouve também recorra à psicanálise para a construção de seus
conceitos sobre a interpretação, Bakhtin refuta muito dos preceitos de Freud a esse respeito,
pois afirma que a consciência humana é uma construção social, portanto é o mundo objetivo
que explica o subjetivo e não o contrário. Por outro lado, possibilidade de convergência
entre tais teóricos, pois Iser afirma que o leitor, no ato da leitura, carrega consigo um
repertório de ordem social, histórica e cultural, ou seja, assim como Jouve, Iser afirma que
162
esse leitor é possuidor de inferências culturais, as quais dialogam com o texto no momento da
leitura, o que remete à concepção bakhtiniana de dialogicidade.
Na aplicação das teorias de Jauss, Iser, Jouve, Eco e Bakhtin à análise interpretativa de
Conversa de Bois e Campo Geral constatou-se que na forma e conteúdo desses textos
romanescos, a presença de traços marcadamente sociais, nos quais o autor-empírico
Guimarães Rosa prevê o leitor como parte integrante da própria estrutura textual. O que
confirma a visão de Iser, Jouve e Eco de que, no ato da leitura, o leitor estruturado pelo texto,
transforma-se em leitor real, capaz de atualizar o mundo ficcional criado pelo autor, e ainda
identificou-se o autor-modelo e/ou autor-empírico o narrador dos textos em análises
Conversa de Bois e Campo Geral.
Em Conversa de Bois, Manuel Timborna recorre à irara Risoleta, que será a
testemunha ocular da estória. É ela quem segue o carro-de-bois todo o tempo e, no final,
quando ela vai embora, a estória termina. Portanto, um narrador autor-modelo que
narra a história em terceira pessoa e que transcreve o caso enfeitado por Timoborna que, por
sua vez, faz da Irara a testemunha ocular de sua estória. Contudo esse autor-modelo é uma
representação do autor-empírico, Guimarães Rosa.
Em Campo Geral/Miguilim um narrador onisciente, que centra o foco da narrativa
em Miguilim, o protagonista da estória narrada em terceira pessoa. Ou seja, tudo é narrado a
partir da perspectiva confusa de Miguilim, que tem grande dificuldade em compreender o que
se passa à sua volta. Tanto é assim que cabe a Dito orientar o irmão, para que este compreenda
o mundo em que vive. Entretanto o autor-empírico prevê a presença do leitor-empírico na
estrutura narrativa, que, para entender Miguilim, cabe a esse leitor entrar nos meandros da
mente dessa personagem para que a estória faça sentido.
Ficou evidente em Conversa de Bois e em Campo Geral a presença do discurso
163
objetivo como também do subjetivo, o que remete ao fluxo de consciência, em especial de
Tiãozinho e Miguilim, personagens crianças que percebem estarem à mercê do
comportamento muitas vezes ininteligível dos adultos. É nisto que Dito é dissonante e sábio,
visto que ele, como prenuncia seu nome, nascera sabendo entender o intricado e confuso
mundo dos adulto, bem como a complexidade da vida. Ou seja, Guimarães Rosa expressa não
a linguagem verbalizada de seus personagens, mas também através do fluxo de
consciência, o que possibilita ao leitor a percepção da subjetividade os sentimentos dos
mesmos.
Constatou-se que, na construção narrativa rosiana, representação da linguagem do
meio social no qual seus personagens estão inseridos. Nos discursos de Miguilim e Tiãozinho
ambos têm o seu “eu” formado por suas vivências sociais. Tal estratégia narrativa propiciou
que se aproximassem tais narrativas rosianas da teoria de linguagem dialogicidade de
Bakhtin, para quem o “eu” é construído na relação com o “outro”, especificamente, por meio
da palavra. Concluiu-se que Guimarães Rosa, tanto em Campo Geral (2001) quanto em
Conversa de Bois (2001), faz com que forma estrutura textual e conteúdo temática –,
sejam interligadas, especificamente, pela linguagem social que modela e condiciona as
personagens historicamente situadas em seus respectivos contextos sociais, o que remete à
concepção de Bakhtin de que a língua é resultado da interação social.
Assim, atuando como leitor-modelo de segundo nível, proposto por Eco, além de
releituras de Conversa de Bois e Campo Geral, promoveram-se leituras paralelas sobre o
conceito sociológico de infância no sistema patriarcal. Concluindo-se, portanto, que no
contexto histórico das referidas obras literárias, a forma como as personagens Tiãozinho e
Miguilim eram vistas e tratadas seria natural, pois fazia parte daquela cultura. No contexto
atual, essa visão seria dissonante em relação à mentalidade a respeito da infância, seja da
164
perspectiva legal, seja da social. Entretanto, é relevante destacar que, ainda hoje, a despeito do
Estatuto da Criança e do Adolescente e da mudança de mentalidade das famílias, um
grande contingente de crianças pobres ainda sujeitas a todo tipo de miséria, abuso e violência.
Ou seja, para que vigore a lei e mudem os costumes é fundamental que haja as mínimas
condições de sobrevivência, do contrário continuam em vigor os velhos costumes onde a
sociedade exclui e a lei não alcança.
Tendo em vista a compreensão da condição da criança nos contextos representados
pelos textos rosianos, buscou-se, no segundo capítulo, teorias sociológicas sobre a origem do
conceito de infância, especialmente a partir da obra O mito do amor materno: um amor
conquistado, de Elizabeth Badinter, na qual a autora rastreia a história da criança na sociedade
ocidental da antiguidade clássica à contemporaneidade. Dentre as muitas visões sobre a
criança ao longo do tempo destacam-se a de Aristóteles, a de Santo Agostinho, a de Descartes,
Vivès e Ariès, dentre outros. Ou seja, a autora, respaldando-se em renomados representantes
da filosofia, da história e das ciências sociais, concluiu que o conceito de infância que se tem
na atualidade é, na realidade, resultado de uma construção social. Nesse aspecto, também
pode-se aproximar essa visão de Badinter aos conceitos bakhtinianos de que o homem é um
ser social.
Verificou-se que, de acordo com Badinter, muitos dos preceitos agostinianos sobre
infância, postulados no século IV perduraram em maior ou menor grau até o século XVII,
pois será somente no início do século XVIII que terá início a reformulação desses conceitos.
Neste século, no contexto europeu, uma maior preocupação com a educação e com os
sentimentos da criança, fato motivado, em especial, pelo advento da Revolução Industrial e
pelos valores postulados pela Encyclopédie, cujos valores se aproximam das atuais
concepções de infância. Contudo, verificou-se que no contexto ficcional rosiano a infância de
165
Tiãozinho e de Miguilim ainda estaria muito próxima daquela em vigor até o final do século
XVII.
Observou-se que em Conversa de Bois e em Campo Geral as contingências sociais são
representadas pelo autor com ênfase no tom realístico. Entretanto, em sintonia com que
sempre Guimarães Rosa se atém às condições humanas, paralelamente às duras circunstâncias
nas quais estão inseridas as personagens infantis, há, também, claras referências ao mundo
maravilhoso, como a auxiliar os meninos na dura e precoce passagem à condição de adultos.
Em Conversa de Bois, percebeu-se a relativização entre mundo real e mundo fantástico pela
presença dos bois que falam, contam estórias e da irara Risoleta que “testemunha” a estória
enfeitada do Timborna. Nesse texto os bois pensam e filosofam sobre a existência humana
com certo tom de criticidade nesse momento a percepção da presença da visão do autor-
empírico, Guimarães Rosa. Em Campo Geral verificou-se que não a presença explícita do
fantástico, mas a relativização da infância com a materialização da subjetividade de
Miguilim, que é construída por meio dos pensamentos deste menino seus medos da morte,
do escuro, sua visão sobre os adultos e suas incertezas em relação ao futuro.
Na análise comparativa entre o texto literário Campo Geral/Miguilim, de Guimarães
Rosa e o texto fílmico Mutum, de Sandra Kogut, as teorias de leitura/recepção de Jauss, Iser,
Jouve, Eco e Bakhtin contribuíram para a leitura da relação autor-texto-leitor, possibilitando
identificar Sandra Kogut como leitora-modelo de Guimarães Rosa e como autora-modelo do
texto fílmico Mutum, cuja construção discursiva como argumenta Iser prevê um
leitor/espectador. E ainda, a referida análise, possibilitou analogias sobre os conceitos de
infância, sistema patriarcal e rito de passagem de Badinter, Freyre, Ariès e Eliade, em
especial, com relação aos aspectos sociais presentes nos textos literário e fílmico,
respectivamente, Campo Geral e Mutum.
166
Na novela Campo Geral constatou-se que tudo que o narrador diz é da perspectiva do
pensamento de Miguilim ou das suas ações e diálogos com as demais personagens. Em
relação a Miguilim, além do narrador acompanhar sua estória e seus pensamentos no tempo
presente da narrativa, ele recorre aos flashbacks para mostrar as primeiras lembranças de
Miguilim, quando ele ainda estava começando a andar. Tais flashbacks têm o intuito de fazer
remissão às primeiras lembranças da personagem.
Tanto a inserção da rememoração quanto das ações paralelísticas que caracterizam as
personagens e o espaço onde estão situadas, contribuem para a construção detalhada da
história de Miguilim. Essa estratégia narrativa vincula-se ao contexto cultural no qual o autor
situa temporalmente e espacialmente a personagem e sua família. Sendo assim, a
percepção da forma como a criança era vista e tratada; da maneira autoritária como Bero
conduz a família; das situações que envolvem o caráter imaturo de Nhanina, como se este
fosse uma espécie de herança legada por sua mãe Benvinda, que fora prostituta, mas
principalmente, tal comportamento remete àquela massa “sem eira nem beira”, da qual fala
Antonio Cândido; da relação quase mágica e interdepende de Miguilim com Dito; do
aprendizado de Miguilim sobre a dor da saudade e a presença da morte que leva ao seu
merencório amadurecimento precoce; do mundo sertanejo dos vaqueiros; da crença na
religião católica, representada especialmente por vovó Izidra; das heranças culturais e
religiosas africanas de Mãitina; da preocupação com a educação percebida pelo fato de
Liovaldo morar com outra família para poder estudar, bem como pelo fato de Miguilim, no
final da novela, ir embora com o doutor em busca da visão e também com o objetivo de
estudar e ter uma melhor condição econômica e social de vida, ou seja, ter ampliada, em todos
os sentidos, sua visão de mundo. Ele vai transpor os morros do Mutum que tampavam a visão
de sua mãe.
167
Em Campo Geral, Guimarães Rosa evidencia, ainda, um rito de passagem, o qual é
construído por meio da viagem. É entre a volta da viagem que Miguilim fez com tio Terêz
para ser crismado e a de sua ida embora de vez do Mutum, levado pelo doutor, que é narrada a
história de Miguilim. Essa história não narra apenas a passagem dos sete para os oito anos
dessa personagem, mas também a passagem abrupta e traumática da infância para a vida
adulta, sem passar pela transição da adolescência.
No filme Mutum, de Sandra Kogut, assim como na novela de Guimarães Rosa, a
narrativa começa e termina com uma viagem e o enredo gira em torno da personagem
protagonista Thiago/Miguilim, a relação conflituosa entre pai e filho, bem como amor e
carinho entre e e filho, a relação de amizade entre Thiago/Miguilim e tio Terêz.
Contudo, diferentemente de Guimarães Rosa, a cineasta não utiliza do recurso de flashbacks
para explicar o presente, é como se as personagens existissem a partir do início do filme. No
filme, embora haja uma relação de companheirismo entre Thiago/Miguilim e Felipe/Dito, não
é claro como na novela a relação de dependência de Miguilim em relação à Dito. Assim
como outros personagens, a exemplo de Rosa, que na novela m uma grande afinidade com
Miguilim, no filme, tal afinidade não é acentuada.
Sandra Kogut opta por adotar o nome original dos atores crianças, tanto que Miguilim
no filme será Thiago e Dito será Felipe, enquanto, para Guimarães Rosa a escolha partiu do
valor simbólico dos nomes, vinculados às características das personagens; para a cineasta a
opção por manter o nome dos atores visou estabelecer uma confiança maior entre ela e as
crianças atores iniciantes. Enquanto o autor prima pela palavra, pela inserção de
lembranças de Miguilim de alguns episódios marcantes, bem como seus conflitantes
sentimentos em relação ao espaço físico e social, optando por destacar detalhes, quer seja do
mundo geográfico, da sua relação com as pessoas e com os animais, dando ao leitor mais
168
informações sobre este ser ficcional, Kogut prima pela imagem e parece acreditar que não
necessidade de mostrar o passado desse menino e que a história entre essas duas viagens pode
levar o leitor/espectador à compreensão de quem é Thiago/Miguilim, de como vive, percebe e
é percebido naquele lugar.
Centrando a perspectiva do filme em Thiago/Miguilim – assim como fizera Guimarães
Rosa na novela a cineasta opta, inclusive, por não ter trilha sonora incidental. Essa opção
objetiva não condicionar a emoção do espectador em função da trilha sonora, mas sim para
que este veja a história pelo olhar de Thiago/Miguilim. Mas será que é a música que
direciona a emoção e o olhar do espectador? Todos os elementos do discurso fílmico têm uma
intencionalidade. Concluí-se, então, que a opção da diretora por selecionar da narrativa
rosiana os episódios do presente, sem se ater aos flashbacks pode ter a intenção de contar uma
história para seu leitor/espectador, como se para ela esse presente fosse o essencial do texto de
Guimarães Rosa. O mesmo pode ser aplicado ao fato da mesma optar por um estilo com
poucas palavras, talvez acreditando que o espectador possa compreender a história a partir das
imagens, o que é uma característica de grande parte da produção do cinema atual, que parte da
premissa de que a força da imagem implica poucos diálogos e que a imagem se justifica por
si mesma. Ou seja, a cineasta atualizou coerentemente uma realidade mimetizada mais de
cinco décadas por Guimarães Rosa, numa representação atual dessa realidade.
Ao refletir sobre o resultado deste estudo percebo que a caminhada na realização do
mesmo propiciou-me um grande crescimento como leitora tanto de Guimarães Rosa, quanto
do que os textos deste autor possibilitaram no campo da leitura: a práxis da leitura literária – a
relação teoria e prática de leitura que propiciou a aplicação das teorias de leitura de Jauss,
Iser, Jouve, Eco e Bakhtin à análise tanto dos textos rosianos Conversa de Bois e Campo
Geral, quanto do filme Mutum, de Kogut; o mapeamento do conceito sociológico sobre
169
infância, especialmente, a partir de Badinter, Ariès e Freyre, como do conceito do rito de
passagem de Mircéa Eliade, cujos conceitos foram fundamentais para a compreensão da
infância mimetizada nos referidos textos rosianos e pela analogia entre a infância representada
num contexto patriarcal e o contexto atual; a leitura fílmica de Mutum, a qual, por meio de
uma análise lmica estudo da construção do discurso fílmico respaldada na técnica
narrativa do cinema de David Wark Griffith, intercalou teorias de leitor e teorias sociológicas
sobre a temática infância, tema central dos textos de Guimarães Rosa, Conversa de Bois e
Campo Geral, e que é retomado pelo filme Mutum, de Sandra Kogut.
170
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174
Filme:
MUTUM. Direção: Sandra Kogut. Produção: Flávio R. Tambellini e Sílvia Costa. Intérpretes:
Thiago da Silva Mariz, Wallis Felipe Leal Barroso, João Miguel, Izadora Fernandes, Rômulo
Braga. Brasil: Distribuidora Video Filmes, 2007.
175
ANEXO A: GLOSSÁRIO DE TERMOS CINEMATOGRÁFICOS
ÂNGULO angulação da câmera três ângulos diferentes associados à altura da
câmera:
Câmera Normal: mesma altura das personagens e objetos de cena. Lente objetiva,
enquadra-os de frente com olhar normal.
Câmera Alta ou Plongée: lente objetiva enquadra as personagens e objetos de cena
de cima para baixo. Utilizada para desvalorizar o assunto. Possibilita evidenciar
situações de humilhação, inferioridade, fragilidade, perda, medo.
Câmera Baixa ou contre-plongée: lente objetiva enquadra as personagens e objetos
de cena de baixo para cima. Utilizada para valorizar o assunto. Possibilita evidenciar
situações de superioridade.
CAM:
Câmera
CAMPRO E FORA DE CAMPO:
Campo é o que está em quadro.
Fora de campo é o que está fora de quadro – identificado pelo som off.
CENA:
É a unidade de espaço-temporal, também chamada de sequência.
176
CENÁRIO:
É a materialização do mundo diegético conteúdo diegético: a fábula, a história
contada pelo filme e por conseguinte transformada em realidade fílmica onde
ocorre a história.
O cenário pode ser interior – interiores de casa por exemplo; ou exterior – exterior da
casa, rios, estradas
Podem ser naturais ou construídos em estúdios.
DIRETOR:
Também conhecido por cineasta.
Profissional responsável pela coordenação geral do filme.
Podendo ser: diretor contratado obedecendo a palavra final do produtor ou do
estúdio; diretor-autor – tendo liberdade para fazer o filme segundo sua concepção.
DISTRIBUIDORA:
Empresa responsável pela distribuição do filme às salas de exibição. Exemplo:
Columbia Tristar Pictures, Warner Brothers, Fox Film do Brasil, Rio Filmes.
ENQUADRAMENTOS composto por planos o referencial para a classificação dos
planos cinematográficos é o tamanho da figura humana dentro do quadro, podendo ser:
Grande Plano Geral GPG: tem como função principal descrever o cenário. Ângulo
de visão muito aberto, praticamente sem percepção da ação das personagens. Tem
função descritiva
Plano Geral PG: ângulo de visão menor que o GPG. Privilegia o cenário. É possível
177
ver a figura das personagens, mas difícil de reconhecer suas ações.
Plano Conjunto PC: apresenta a personagem, grupo de pessoas no cenário, permite
reconhecer os atores e a movimentação de cena. Tem função descritiva e narrativa.
Plano Médio PM: se enquadra à personagem a meio corpo. Tem função narrativa, a
ação tem maior impacto na totalidade da imagem.
Plano Americano PA: enquadra a personagem acima dos joelhos ou altura da
cintura. Tal plano privilegia a ação da personagem em relação ao cenário.
Primeiro Plano PP: enquadra a personagem na altura do busto. Possibilita a
percepção da emoção da personagem. Tem função mais psicológica do que narrativa.
Primeiríssimo Plano PPP: enquadra o rosto ou parte do rosto da personagem.
Possibilita compreender a expressão facial e emocional da personagem. Propicia
função simplesmente indicativa, no caso de um close na mão da personagem. Tem
função mais psicológica do que narrativa.
Plano Detalhe PD: pode-se enquadrar detalhes do rosto ou do corpo da personagem
ou de objetos de cena. Tem função indicativa.
FOCO NARRATIVO – perspectiva da qual a história é transmitida para o espectador:
Subjetiva: quando ocorre a visão da personagem.
Intersubjetiva: quando entrecruza as perspectivas de diversas personagens.
Objetiva: quando não se confunde com nenhuma personagem especifica.
FOTOGRAFIA:
Luz, efeitos de iluminação.
Contrates, claro e escuro, luz e sombra.
178
Cores e tons da imagem.
FOTOGRAMA:
Cada quadro fotográfico que compõe o filme.
Projetado em 24 quadros por segundo, possibilita a sensação do movimento contínuo
das figuras, o que dá a impressão de realidade.
MONTAGEM:
A montagem é a responsável pela organização do material filmado de forma a
estabelecer a construção do discurso fílmico na ordem narrativa pretendida.
Na montagem busca-se a articulação do ritmo, tensão e coerência interna da história.
MOVIMENTOS – a câmera possui apenas dois movimentos:
Panorâmica PAN é o movimento em que a câmera gira ao redor de um eixo
imaginário qualquer, sem deslocar-se, mostrando um cenário. Uma forma
convencional de fazer uma PAN é com a CAM fixa. Quando a CAM está fixa ocorre o
movimento pró-fílmico – os personagens se movimentam em relação a CAM.
Travelling que vem do inglês travel viajar. Movimento que desloca a câmera em
qualquer direção. O travelling pode ser feito com a CAM na mão, com CAM fixa em
veículos, ou qualquer objeto móvel. E ainda, faz-se o travelling através do carro que
em inglês é dolly. O movimento fílmico é quando a CAM se movimenta em relação à
ação das personagens.
179
PERSONAGENS:
Pessoas fictícias que vivenciam a história. Podendo analisá-las do ponto de vista
psicológico suas intenções/motivações –, ou dramático ações externas e suas
consequências.
Subdivididas em principais, secundários e figurantes.
PONTO DE VISTA a Câmera pode assumir dois pontos de vista o objetivo e o
subjetivo:
Objetivo: A CAM objetiva enquadra a ação assumindo o olhar de um observador
convencional que presencia o desenvolvimento da cena.
Subjetivo: A CAM objetiva adquire o olhar de alguma personagem. Também chamado
de plano subjetivo.
PRODUTOR:
Pessoa ou empresa responsável pela produção do filme. Envolvendo desde a captação
de recursos, a contratação de equipe técnica e artística, a viabilização de todos os
elementos para a composição dos cenários, alimentação, estadia, transporte para a
equipe, etc.
ROTEIRO:
Desenvolvimento dramático do argumento, contendo o conjunto de sequências, a
descrição das cenas e os diálogos.
Podendo ser original ou adaptado.
180
SEQUÊNCIA:
Unidades dramáticas de enredo que compõe o filme.
Divididas em planos, ou plano-sequência.
181
ANEXO B: FILMES NACIONAIS INSPIRADOS NA LITERATURA BRASILEIRA
Obra Literária
e Autor
Filme Adaptado
e Diretor
Ano de
Produção
O Guarani de José de Alencar O Guarani foi dirigido no cinema:
Antônio Leal
Benetti
Vittorio Capellaro
João de Deus
Vittorio Capellaro
Fauze Mansur
Norma Bengell
1908
1912
1916
1920
1926
1979
1997
A Moreninha de Joaquim Manuel
de Macedo
A Moreninha, dirigido por Antonio Leal 1915
Inocência de Visconde de Taunay Inocência, dirigido por Vittorio Capellaro.
Inocência, direção Walter Lima Jr.
1915
1983
A Viuvinha de José de Alencar A Viuvinha, dirigido por Luiz de Barros
(ou Ítalo Dandini)
1916
Lucíola de José de Alencar Lucíola, foi dirigido no cinema:
Franco Magliani (ou Carlos Comelli)
Alfredo Sterheim
1916
1975
O Mulato de Aluísio de Azevedo O Cruzeiro do Sul, dirigido por Vitório
Capellaro
1917
Quem conta um conto, conto do
livro de Cornélio Pires
O Curandeiro, dirigido por Antonio
Campos
1917
A Retirada de Laguna de Alfredo
D’Escragnolle de Taunay
A Retirada de Laguna, dirigido pelos
irmãos Lambertini
1917
O Grito de Ipiranga libreto de
Eugênio Egas
O Grito de Ipiranga, dirigido por
Giorgio Lambertini
1917
Heróis Brasileiros na Guerra do
Paraguai, libreto de Eugênio Egas
Heróis Brasileiros na Guerra do
Paraguai, dirigido por Achilles e Giorgio
Lambertini
1917
A Derrocada, conto de Leo
Teixeira Leite Filho
A Derrocada, dirigido por Luiz de Barros
(ou Teixeira Leite Filho)
1918
Iracema de José de Alencar Iracema, dirigido no cinema por Vittorio
Capellaro.
Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel,
dirigido em conjunto pelos cineastas por
David Cardoso e Carlos Coimbra.
1919
1977
Ubirajara de José de Alencar Ubirajara, dirigido por Luiz de Barros 1919
O Caçador de Esmeralda, poema
de Olavo Bilac
O Caçador de Esmeralda, dirigido por
Golfo Andalò
1920
Os Faroleiros de Monteiro Lobato Os Faroleiros, dirigido por Miguel
Milano
1920
A Carne de Júlio Ribeiro A Carne, dirigido no cinema por: Felippe
182
Ricci
Guido Lazzarini
1925
1952
O Cortiço de Aluísio de Azevedo O Cortiço, dirigido por Luiz de Barros
O Cortiço, dirigido por Francisco
Ramalho
1945
1979
Elza e Helena de Gastão Cruls A Sombra da Outra, dirigido por Watson
Macedo
1950
Presença de Anita, romance de
Mário Donato
Presença de Anita, dirigido por Ruggero
Jacobbi
1951
O Comprador de Fazendas conto
de Monteiro Lobato
O Comprador de Fazendas, dirigido por
Alberto Pieralise
1951
Meu Destino é Pecar, romance de
Suzana Flag (Nelson Rodrigues)
Meu Destino é Pecar, dirigido por Manuel
Peluffo
1952
Sinhá Moça, romance de Maria
Dezzone Pacheco Fernandes
Sinhá Moça, dirigido por Tom Payne, 1953
O Saci, conto de Monteiro Lobato O Saci, dirigido por Rodolfo Nanni 1953
Floradas na Serra romance de
Dinah Silveira de Queiroz
Floradas na Serra, dirigido por Fábio
Carpi e Maurício Vasquez
1954
O Tempo e o Vento de Érico
Veríssimo
O Sobrado, Walter George Durst e
Cassiano Gabus Mendes
Ana Terra, dirigido por Durval Garcia
1956
1972
A Nova Califórnia, conto de Lima
Barreto
Osso, Amor, e Papagaios, dirigido por
Carlos Aberto de Souza Barros e César
Mêmolo Jr.
1957
Jeca Tatuzinho, conto de Monteiro
Lobato
Jeca Tatu, dirigido por Milton Amaral 1959
Ganga Zumba romance de João
Felício dos Campos
Ganga Zumba, dirigido por Carlos
Diegues
1963
Vidas Secas de Graciliano Ramos Vidas Secas, dirigido por Nelson Pereira
dos Santos
1963
Os Sertões Campanha de
Canudos, de Euclides da Cunha
Deus e o Diabo na Terra do Sol, dirigido
por Glauber Rocha
Guerra de Canudos, dirigido por Sérgio
Rezende
1964
1997
A Hora e a Vez de Augusto
Matraga, de João Guimarães Rosa
A Hora e a Vez de Augusto Matraga,
dirigido por Roberto Santos
1965
Menino de Engenho de José Lins
do Rego
Menino de Engenho, dirigido por Walter
Lima Jr.
1965
O Padre e a Moça, poema de
Carlos Drummond de Andrade
O Padre e a Moça, dirigido por Joaquim
Pedro de Andrade
1966
O Iniciado do Vento, conto de
Aníbal Machado
O Menino e o Vento, dirigido por Carlos
Hugo Christensem
1967
Memória Póstumas de Brás Cubas
de Machado de Assis
Viagem ao Fim do Mundo, dirigido por
Fernando Coni Campos
Memória Póstumas de Brás Cubas,
dirigido por André Klotzel
1968
2001
183
Macunaíma de Mário de Andrade Macunaíma, dirigido por Joaquim Pedro 1969
O Alienista conto de Machado de
Assis
Azyllo Muito Louco, dirigido por Nelson
Pereira dos Santos
1970
O Romanceiro da Inconfidência de
Cecília Meireles e Autos da
Devassa de Tomás Antonio
Gonzaga, Cláudio Manuel da
Costa e Alvarenga Peixoto
Os Inconfidentes, dirigido por Joaquim
Pedro de Andrade
1972
São Bernardo de Graciliano
Ramos
São Bernardo, dirigido por Leon
Hirszman
1972
A bagaceira de José Américo de
Almeida
Soledade, dirigido por Paulo Thiago 1976
Dona Flor e Seus Dois Maridos de
Jorge Amado
Dona Flor e Seus Dois Maridos, dirigido
por Bruno Barreto
1976
Lúcio Flávio, o Passageiro da
Agonia, de José Louzeiro
Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia,
dirigido por Hector Babenco
1977
Tenda dos Milagres de Jorge
Amado
Tenda dos Milagres, dirigido por Nelson
Pereira dos Santos
1977
A Dama do Lotação, crônica de
Nelson Rodrigues
A Dama do Lotação, dirigido por Neville
d’Almeida
1978
Um Homem Célebre de Machado
de Assis
Um Homem Célebre, dirigido por Miguel
Farias Jr.
1979
Eles não usam Black-Tie, de
Gianfrancesco Guarnieri
Eles não usam Black-Tie, dirigido por
Leon Hirszman
1981
Gabriela, romance de Jorge
Amado
Gabriela, dirigido por Bruno Barreto 1983
Alguma coisa urgentemente, conto
de João Gilberto Noll
Nunca fomos tão felizes, dirigido por
Murillo Salles
1983
Verdes Anos, conto de Luiz
Fernando Imediato
Verdes Anos, dirigido por Carlos Gerbase
e Giba Assis Brasil
1983
Memórias do Cárcere, romance de
Graciliano Ramos.
Memórias do Cárcere, dirigido por
Nelson Pereira dos Santos
1984
A Hora da Estrela, romance de
Clarice Lispector
A Hora da Estrela, dirigido por Suzana
Amaral
1985
O Menino Maluquinho, livro de
Ziraldo.
Menino Maluquinho, dirigido por
Helvécio Ratton
Menino Maluquinho 2 – a aventura,
dirigido por Ferando Meirelles e Fabrízia
Alves Pinto
1995
1998
Lamarca: capitão da guerrilha de
Emiliano José e Oldack Miranda
Lamarca, dirigido por Sérgio Rezende 1994
A via crucis do corpo, livro de
contos de Clarice Lispector
O Corpo, dirigido por José Antônio de
Barros Garcia
1995
Pixote nunca mais, de Mara
Aparecida Venâncio da Silva
Pixote A lei dos mais forte, de
José Louzeiro
Quem matou pixote? Dirigido por José
Joffily
1996
184
Tieta do Agreste, de Jorge Amado Tieta do Agreste, dirigido por Cacá
Diegues
1996
O Que é Isso Companheiro? de
Fernando Gabeira
O Que é Isso Companheiro? dirigido por
Bruno Barreto
1997
O Homem Nu conto de Fernando
Sabino
O Homem Nu, dirigido por Hugo Carvana 1997
A ostra e o vento, de Moacir Lopes A ostra e o vento, dirigido por Walter
Lima Jr.
1997
Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto
Policarpo Quaresma, dirigido por Paulo
Thiago
1998
Caminhos dos Sonhos de Moacyr
Scliar
Caminhos dos Sonhos, dirigido por Lucas
Amberg
1998
Outras Histórias, contos de
Guimarães Rosa
Primeiras Estórias, dirigido por Pedro
Bial
1999
Canto dos Malditos, de
Austregésilo Carrano
Bicho de Sete Cabeças, dirigido por Laís
Bodansky
2000
O Xangô de Baker Street, romance
de Jô Soares
O Xangô de Baker Street, dirigido por
Miguel Farias Jr.
2001
Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna
Auto da Compadecida, dirigido por Guel
Arraes
2001
Bufo & Spalanzanni, de Rubem
Fonseca
Bufo & Spalanzanni, dirigido por Flavio
Tandellini
2001
Lavoura Arcaica, de Raduan
Nassar
Lavoura Arcaica, direção de Luiz
Fernando Carvalho
2001
Bellini e a Esfinge, de Tony
Bellotto
Bellini e a Esfinge, direção de Roberto
Santucci Filho
2001
O Invasor de Aquino Marçal O Invasor, direção Beto Brant 2001
Cidade de Deus, de Paulo Lins Cidade de Deus, dirigido por Fernando
Meirelles
2002
Sonhos Tropicais, de Moacyr
Scliar
Sonhos Tropicais, dirigido por André
Sturm
2002
Carandiru, de Dráuzio Varella Carandiru, dirigido por Hector Babenco 2003
Fonte: História do Cinema Brasileiro, organizado por Fernão Ramos. edição. São Paulo:
Art Editora, 1987. p.458-507; e O Cinema da Retomada Depoimentos de 90 Cineastas dos
Anos 90, de Lúcia Nagib. 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2002. p.25-515.
Observação: Salienta-se, que, além dos filmes acima relacionados, existem outros filmes
produzidos a partir da Literatura Brasileira.
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