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A descrição que Gonzaga Duque faz de Mater dolorosa (anexo 36), escultura de
Correia Lima, exige um trabalho mais intenso, uma mobilidade maior da imaginação, pois é
uma peça, com duas figuras, sem paisagem nem cores:
Ella curva-se, em lagrimas, desgraçada e desamparada, sobre o cadaver do filho,
victima de um desastre; chega-se-lhe, examina-o, ainda em duvida procura reanimal-
o, e só depois de comprehender a inteira realidade é que a dor a subjuga. E que dor!
... Não tem palavras. A morte do filho pesa-lhe como um castigo. Dil-o,
desesperadamente, o gesto da sua mão sobre a própria cabeça, que lhe parece fragil
para supportar a verdade! Mas, o que constitue a attracção irresistivel do grupo, é a
insexualização desse lindo corpo de mulher moça, o seu deslocamento da
sensualidade pela expressão do seu sentimento. (DUQUE, 1929, p. 74).
É possível pensar que são esses seres de sensação que fazem com que Gonzaga
Duque se desprenda a descrever, de modo tão criativo, as imagens que analisa. É interessante
notar que ele cria uma narrativa dos acontecimentos precedentes do que o artista fixou,
desenvolve os que ali estão presentes e ainda discorre sobre a maneira como o objeto foi feito,
destacando as habilidades do artista.
Podemos observar o quadro Arrufos (1887), de Belmiro de Almeida, e inferir que
se ele não apresentasse a vida, o movimento que tem – e isso não significa simples
encadeamento de cenas, como já vimos – talvez não seria possível uma descrição tão cheia de
sensações como esta:
O marido, um rapaz de fortuna, chega em companhia da esposa à bonita habitação
em que viviam até aquele dia como dois anjos. Tudo em redor demonstra que aquele
interior é presidido por um fino espírito feminino, educado e honesto. Ela, o encanto
desse interior à bric-à-brac, depõe o toucador de palha sobre um mocho coberto por
um belo pano de seda e entra em explicações com o esposo. E ele, muito a seu
cômodo em um fauteuil de estofo sulferino, soprando o fumo do seu colorado
havana, responde-lhe palavra por palavra às explicações pedidas. Há um momento
em que ela excede-se, diz uma frase leviana; ele reprova, ela retruca, ele repele;
então ela não se pode conter, é subjugada por um acesso de ira, atira-se ao chão,
debruça-se ao divã para abafar entre os braços o ímpeto do soluço. É este o
momento que o artista escolheu. Da esposa, debruçada sobre o divã, vê-se apenas o
perfil, mas ouve-se-lhe os soluços que fazem estremecer o seu corpo. Debaixo do
seu vestido foulard amarelo percebe-se o colete, o volume das saias, os artifícios
exteriores que a mulher emprega para dar harmonia à linha do corpo. Na fímbria do
vestido a ponta do sapatinho de pelica inglesa ficou esquecido, sobre o tapete do
assoalho, como se propositalmente, animado por estranho poder, tomasse aquela
atitude para contemplar a rosa que caiu do peito da moça e jaz no chão, melancólica,
desfolhada, quase murcha, lembrando a olorente alegria que se despegara do coração
da feliz criatura naquele tempestuoso momento de rusga. E o esposo, um guapo
rapaz delicado e forte, num gesto de indiferentíssimo, atende a tênue fumaça que se
desprende do charuto, levantando-o entre os dedos, em frente do rosto. (DUQUE,
1995a, pp. 211-212).
Esse texto não é um ensaio, uma crítica de arte, porque Gonzaga Duque não está
aqui sendo técnico como em outros ensaios. Percebemos que essa descrição é pura literatura,