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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
ISABEL PADILHA GUIMARÃES
A IMAGEM DA VIOLÊNCIA URBANA
NO DOCUMENTÁRIO CINEMATOGRÁFICO BRASILEIRO
NA CONTEMPORANEIDADE
Porto Alegre
2010
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ISABEL PADILHA GUIMARÃES
A IMAGEM DA VIOLÊNCIA URBANA NO DOCUMENTÁRIO
CINEMATOGRÁFICO BRASILEIRO NA CONTEMPORANEIDADE
Tese apresentada como requisito para obtenção do
título de Doutora pelo Programa de Pós-graduação da
Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Profa. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind
Porto Alegre
2010
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
G963i Guimarães, Isabel Padilha
A imagem da violência urbana no documentário
cinematográfico brasileiro na contemporaneidade. /
Isabel Padilha Guimarães. – Porto Alegre, 2010.
207 f.
Tese (Doutorado em Comunicação) – Faculdade de
Comunicação, PUCRS.
Orientação: Profa. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind.
1. Comunicação. 2. Cinema Documentário.
3. Violência no Cinema. 4. Espaço Urbano.
I. Gutfreind, Cristiane Freitas. II. Título
.
CDD 791.430981
Ficha elaborada pela bibliotecária Cíntia Borges Greff CRB 10/1437
ISABEL PADILHA GUIMARÃES
A IMAGEM DA VIOLÊNCIA URBANA NO DOCUMENTÁRIO
CINEMATOGRÁFICO BRASILEIRO NA CONTEMPORANEIDADE
Tese apresentada como requisito para obtenção do
título de Doutora, pelo Programa de Pós-graduação
da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em 12 de março de 2010.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind
_______________________________________________
Prof. Dr. Juremir Machado da Silva – PUCRS
________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Menezes Martins – UTP
_______________________________________________
Profa. Dra. Miriam Rossini – UFRGS
________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Cunha – UFPE
Porto Alegre
2010
Dedicatória
Ao Pe. José Kentenich.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Cristiane Freitas, pelas orientações, pela atenção e pela
paciência.
Ao professor Juremir Machado da Silva, pela compreensão;
Ao professor Francisco Menezes, pelos ensinamentos;
À minha mãe, Dulce, companheira, amiga, confidente e meu grande exemplo.
Às queridas amigas Paula, Adriana e Daniela, pelo carinho, amizade e
companheirismo;
Aos amigos Beto, Conrado, Thanise e Thiana, que me acompanham há
tantos anos.
“Não existe nada pior que alguém querendo fazer o bem,
especialmente o bem aos outros. O mesmo se aplica aos que
“pensam bem”, com sua irresistível tendência a pensar por e no
lugar dos outros. Encouraçados em suas certezas, eles não
têm espaço para dúvidas. E é claro que não apreendem a
complexidade da vida”.
“A vida cotidiana é permeada por conflitos que lhe
conferem toda a sua intensidade. É mesmo possível que as
múltiplas vicissitudes expliquem o impulso cego que projeta em
direção à vida. Um querer-viver obstinado, preferindo a
existência tal como ela é, apesar de tudo”.
(A parte do diabo – Michel Maffesoli)
RESUMO
A pesquisa tem por objetivo a análise da imagem da violência urbana no
cinema documentário brasileiro, utilizando como objeto de estudo, um grupo de
cinco documentários, realizados entre 2002 e 2004: Ônibus 174 (José Padilha,
2002), Fala tu (Guilherme Coelho, 2003), O cárcere e a rua (Liliana Sulzbach, 2004),
O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2004) e Justiça (Maria Augusta
Ramos, 2004). O trabalho se concentrará em longas–metragens produzidos no
Brasil e que chegaram ao circuito comercial. Trata-se de um recorte específico e
representativo de um aspecto da produção audiovisual nacional, que se refere à
relação do documentário com a violência urbana. Neste sentido, serão examinadas
as questões da representação e da impressão de realidade proporcionadas pelas
imagens cinematográficas, servindo como suporte para o estudo das obras. Na
análise dos cinco documentários, se objetiva o exame das particularidades da
violência, buscando compreender a relação dos elementos culturais e
cinematográficos que conduzem à constituição de um imaginário. Partindo desta
constatação, serão esboçadas duas noções que contribuirão para este estudo, que
são o espaço urbano e a alteridade. O método utilizado será a análise temática
proposta por Francesco Casetti.
Palavras-chave: cinema, documentário, violência urbana, espaço urbano.
ABSTRACT
The research has as objective the analysis of the image of urban violence in
Brazilian documentary movies, using as study object, a group of five documentaries,
produced between 2002 and 2004: Ônibus 174 (174 Bus ) (José Padilha, 2002),
Fala tu (You speak) (Guilherme Coelho, 2003), O cárcere e a rua (The jail and the
street) (Liliana Sulzbach, 2004), O prisioneiro da grade de ferro (The iron bar
prisoner) (Paulo Sacramento, 2004) and Justiça (Justice) (August Maria Augusta
Ramos, 2004). The work will focus on films produced in Brazil that have reached the
commercial market. It is about a specific and representative snap of an aspect of the
national audiovisual production that refers to the relationship of the documentary
with the urban violence. In that sense, the issues of the representation and the
impression of reality provided by the cinematographic images will be examined,
serving as support for the study of the works. In the analysis of the five
documentaries, the exam of the particularities of the violence is aimed at, trying to
understand the relationship of the cultural and cinematographic elements that lead to
the constitution of an imaginary one. Taking that into account, two concepts will be
sketched that will contribute to this study, which are the urban space and alterity. The
used method will be the thematic analysis proposed by Francesco Casetti.
Keywords: movies, documentary, urban violence, urban space.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Seqüestro da refém ................................................................................... 54
Figura 2: Vítima com seqüestrador ......................................................................... 77
Figura 3: Betânia, foragida do presídio .................................................................. 100
Figura 4: Cláudia, no corredor do presídio ............................................................. 100
Figura 5: Suzana (esposa do réu Carlos Eduardo) ............................................... 101
Figura 6: O réu, Carlos Eduardo, no tribunal ......................................................... 101
Figura 7: Meninos infratores no Instituto Padre Severino .................................... 101
Figura 8: Toghum visita o pai no hospital ............................................................... 101
Figura 9: Macarrão caminha na favela .................................................................. 101
Figura 10: Presos no corredor da Casa de Detenção ............................................ 102
Figura 11: Corredor da Casa de Detenção ........................................................... 102
Figura 12: Cláudia sai do presídio, após 27 anos de confinamento .................... 104
Figura 13: Suzana, esposa de um réu .................................................................. 104
Figura 14: Alan deixa o Centro de Custódia da Polinter ...................................... 105
Figura 15: Combatente chora, após deixar seu grupo de rap .............................. 105
Figura 16: Seqüestro do ônibus ............................................................................. 106
Figura 17: Televisão mostra incêndio criminoso de ônibus .............................. 107
Figura 18: Complexo Penitenciário do Carandiru ................................................. 108
Figura 19: Detentos no presídio .......................................................................... 109
Figura 20: Corredor do presídio ............................................................................ 109
Figura 21: Detento fichado ..................................................................................... 109
Figura 22: Cárcere de uma delegacia ................................................................... 111
Figura 23: Parede de uma cela decorada ............................................................. 111
Figura 24: Presídio Madre Pelletier ........................................................................ 113
Figura 25: Janelas com grades ............................................................................. 115
Figura 26: Vista do presídio ................................................................................. 115
Figura 27: Detento observa a cidade, do presídio .............................................. 115
Figura 28: Janela do Presídio do Carandiru ......................................................... 115
Figura 29: Vista do presídio .................................................................................. 116
Figura 30: Grades de uma cela............................................................................... 116
Figura 31: Celas da Polinter .................................................................................. 117
Figura 32: O réu Carlos Eduardo vai para a prisão ............................................. 117
Figura 33: Menores no Instituto Padre Severino ................................................. 117
Figura 34: Macarrão fazendo jogo do bicho........................................................ 118
Figura 35: Cláudia chora ...................................................................................... 119
Figura 36: Depoimento de Cláudia ....................................................................... 119
Figura 37: Togum canta rap .................................................................................. 119
Figura 38: Depoimento de Macarrão ................................................................... 119
Figura 39: Close up de detento ............................................................................. 119
Figura 40: Detentos nas celas de seguro ............................................................ 120
Figura 41: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ............................................... 121
Figura 42: Sala de audiência no tribunal .......................................................... . 121
Figura 43: Réu sendo julgado no tribunal ............................................................ 122
Figura 44: Imagem de uma favela ......................................................................... 125
Figura 45: Imagem de uma favela, com edifícios atrás ....................................... 125
Figura 46: Baixada Fluminense ............................................................................ 127
Figura 47: Toghum em Belford Roxo ................................................................... 127
Figura 48: Sandro adolescente ............................................................................. 130
Figura 49: Sandro seqüestrador ............................................................................ 130
Figura 50: Depoimento da detenta Cláudia .......................................................... 135
Figura 51: Depoimento de Ivone Bezerra de Melo .............................................. 135
Figura 52: Depoimento de Macarrão .................................................................... 136
Figura 53: Depoimento de um ex-diretor do Presídio do Carandiru .................. 136
Figura 54: Janta na casa da defensora Ignez ...................................................... 139
Figura 55: Janta na casa do juiz Geraldo ............................................................ 139
Figura 56: Janta na casa de Combatente ............................................................ 139
Figura 57: Detento filmando o prédio .................................................................... 143
Figura 58: Imagem feita pelo preso........................................................................ 143
Figura 59: Imagem do visor da câmera do detento ............................................ 143
Figura 60: Detento filmando a si mesmo ............................................................. 144
Figura 61: Triagem dos detentos ......................................................................... 145
Figura 62: Campana .................................................................................... ...........146
Figura 63: Foto de uma montanha ....................................................................... 146
Figura 64: Detento filma a cela sem as grades da janela .................................. 147
Figura 65: Foto do preso morto .......................................................................... . 148
Figura 66: Cláudia mostra uma foto ...................................................................... 149
Figura 67: Foto de Cláudia jovem ......................................................................... 149
Figura 68: Foto de um detento fichado ................................................................ 149
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Categorias de análise ............................................................................. 32
Tabela 2: Dados sobre distribuição, renda e público ............................................. 39
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 14
1 A OBSERVAÇÃO FÍLMICA ................................................................ 24
1.2 A HISTÓRIA DOS FILMES ................................................................ 34
1.3 CARREIRA NO CINEMA ................................................................... 38
2 O DOCUMENTÁRIO NO CINEMA ...................................................... 42
2.1 A REALIDADE DAS IMAGENS FÍLMICAS ........................................ 42
2.2 A REALIDADE DA TELA .................................................................... 43
2.3 DOCUMENTÁRIO FICCIONAL OU FICÇÃO DOCUMENTAL?......... 45
2.4 A DUPLA NATUREZA DA IMAGEM ................................................. 51
2.5 A IMPRESSÃO DE REALIDADE ........................................................ 61
3 A VIOLÊNCIA URBANA NO CINEMA................................................ 69
3.1 O REFLEXO DA VIOLÊNCIA ............................................................. 70
3.2 HOMO VIOLENS ................................................................................. 73
3.3 A VIOLÊNCIA PERFORMÁTICA ........................................................ 81
3.4 HOMO VIOLENS X CINEMA .............................................................. 84
3.5 HOMO RELATIONIS ........................................................................... 90
4 A IMAGEM DA VIOLÊNCIA URBANA NO CINEMA
DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO (2002-2004)........................................ 95
4.1 O ESPAÇO URBANO ....................................................................... 97
4.1.1 O ônibus .......................................................................................... 103
4.1.2 O presídio ........................................................................................ 108
4.1.3 O tribunal ......................................................................................... 120
4.1.4 A favela ............................................................................................ 124
4.2 A ALTERIDADE .............................................................................. 128
4.2.1 Uma vida para ser vista ................................................................... 128
4.2.2 Sociedade relacional ..................................................................... 133
4.2.3 Discursos sobre violência ............................................................ 150
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 156
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 165
ANEXOS ...................................................................................................... 174
14
INTRODUÇÃO
No cinema, a relação existente entre o que é apresentado na tela e a
realidade, atravessa diversas mediações, visto que um filme é uma tecnologia do
imaginário inserida em um social que tenta retratar. Neste sentido, não se trata de
um decalque da realidade, mas do reflexo do nosso imaginário.
Conforme Bourriaud (2009, p.59), o artista produz relações entre as pessoas
e o mundo por intermédio dos objetos artísticos. Sob este aspecto, as obras lidam
com os modos de intercâmbio social, a interação com o espectador dentro da
experiência estética proposta e os processos de comunicação, enquanto
instrumentos concretos que interligam pessoas. No caso dos documentários em
questão, os cineastas o unidos pelo tema e pelo estilo, além de compartilharem o
fato de operarem num mesmo horizonte prático e teórico que é a esfera das relações
humanas, possuindo um universo de formas, uma problemática e uma trajetória que
lhe são próprias. A apreensão de suas criações ocorre de um ponto de vista triplo,
que é, ao mesmo tempo, estético, histórico e social.
O tema da violência invadiu o imaginário social e a sua presença tamm é
constante nos documentários observados. A antropóloga Alba Zaluar (2005, p.1)
denuncia o excesso de maniqueísmos e de esquemas simplificados, disseminados
em matérias jornalísticas sobre o tema, além do fato da violência se apresentar
como uma crise em relação ao estado normal. No caso brasileiro, o estudo da
violência e do crime é sempre realizado por meio de lentes normativas, através de
um processo que fixa um universo de normas aceitas como sagradas, deixando de
lado tudo aquilo que elas eliminam como o que “não deve ser feito”. Objetiva-se a
investigação da violência urbana como fenômeno social para, em seguida discutir a
sua manifestação nos documentários cinematográficos brasileiros eleitos como
corpus de pesquisa.
15
Labaki (2005, p.197), refere-se “à explosiva criminalidade brasileira”, que
pauta análises audiovisuais, a partir da presença do Brasil das ruas, morros,
delegacias, tribunais e rceres nas telas de cinema. Assim, as questões principais
giram em torno da relação que o cinema pode estabelecer conosco e das relações
específicas que os filmes criam, além da afinidade do significante cinematográfico
com a constituição de um imaginário. Na compreensão do trajeto do conjunto de
filmes, que compõe esta pesquisa, se busca o exame da sua contribuição para a
construção das imagens da violência, veiculadas no cinema. Pois se o imaginário é
alimentado pelas imagens, o contrário também ocorre, “a existência de um
imaginário determina a existência de um conjunto de imagens” (MAFFESOLI, 2001,
p.76). Neste sentido, o cinema articula o emocional e a técnica, através da
veiculação das imagens.
Como observa Metz (1980, p.44), as diferentes linguagens, como pintura,
música, cinema, etc., se distinguem uma das outras pelo seu significante, ou seja, na
sua definição física e perceptiva e nos traços formais e estruturais que daí resulta.
Portanto, a importância da análise está no fato de que não existe nenhum significado
que seja próprio a uma determinada linguagem.
Condizente com esta visão fundamenta-se a idéia de que, o obstante a
complexidade que envolve o fazer cinema, o analisar cinema também se instaura
como atividade de ordem complexa. Ao mesmo tempo em que se analisam os
diversos aspectos formadores de uma obra, é preciso considerar o seu conjunto,
visto que apontam para valores culturais que constituem a sociedade.
Na sua reflexão sobre a análise social, em Questões fundamentais da
sociologia, Simmel (2006, p.13), examina as diferentes distâncias a partir das quais
podemos nos colocar em relação à complexidade dos fenômenos. Como exemplo,
promove uma comparação com a visão de um objeto tridimensional, que esteja a
dois, cinco e dez metros distante. A cada vez, se teria uma imagem diferente, que
estaria “correta” a seu modo. Assim, esta concepção também é válida sobre a
percepção adquirida em relação a um filme visto apenas uma vez, que difere da
postura do analista, para quem a análise se integra ao processo de recepção dos
filmes (VANOYE; GOLIOT-LETÉ, 1994). Existe o desenvolvimento da relação do
16
analista com a obra, que vai determinar a própria análise e alterar a percepção
inicial, na decomposição de seus elementos constitutivos, para a seguir, estabelecer
elos entre esses elementos isolados, em direção à reconstrução do filme.
A imagem obtida a partir de uma distância, qualquer que seja ela, tem sua
própria legitimidade e não pode ser substituída ou corrigida por outra de origem
diversa. Assim, pode-se traçar um paralelo com os diversos níveis de análise fílmica.
De acordo com a distância, surge a imagem com a possibilidade de ser conhecida
com maior ou menor precisão, mas que não terá menor valor do que a imagem, na
qual as partes se separam umas das outras. A diferença existente é somente aquela
que se entre os diversos propósitos de conhecimento, os quais correspondem a
diferentes formas de distanciamento (SIMMEL, 2006, p.14).
Nos modos de observação dos documentários que compõem a pesquisa, a
percepção obtida no primeiro contato com cada filme, foi se modificando, mediante
as observações subseqüentes que se seguiram. As leituras, o estudo e as análises
que iam se somando, proporcionaram uma nova percepção que ia se construindo
aos poucos. Existem observações que, insignificantes em seu conteúdo, tornam-se
sociologicamente pertinentes, não somente porque se repetem, mas também porque
são símbolos de situações e acontecimentos historicamente importantes (SIMMEL,
2006).
Assim, a preocupação com a aparência e, conseqüentemente, com a
imagem, o pode ser encarada superficialmente, pois se inscreve num vasto jogo
simbólico, exprimindo um modo de estar em relação com o outro, resultando na
manifestação de comunicação. Recorre-se aqui, à noção de “mundo imaginal”,
desenvolvida por Maffesoli (1996, p.129), para designar um conjunto feito de
imagens, imaginações e símbolos que constroem a vida social e que se encontram
também presentes no cinema.
As formas cinematográficas constituem-se num fundo cultural no qual os
cineastas se inspiram, e cabe ao analista explicar os movimentos que dele decorrem
(VANOYE; GOLIOT-LETÉ, 1994). Assim, as coisas se apresentam em duplo
sentido, como se tudo fosse ligado e separado, através de uma lógica contraditorial,
17
na qual não se pode mais compreender a vida social a partir de dicotomias do tipo,
verdadeiro/falso, bem/mal, etc..
Ocorre um diálogo de perspectivas, a partir da personagem com a sua fala e
do autor com a sua maneira de fazer o filme. Segundo Zaluar (2004, p.22), dois
falantes nunca se entendem completamente, nem nunca concordam inteiramente, e
é a continuidade desse hiato que permite a permanência do diálogo em que ambos
se modificam no processo de entendimento. Dele pode resultar verdades parciais de
cada ponto de vista, ou algo maior do que cada uma delas tomadas separadamente,
a partir de um acordo dialógico construído entre as partes.
Ao propor um questionamento sobre as atuais condições do cinema
brasileiro, Caetano (2005, p.221) pergunta: “a quem interessa o cinema brasileiro?
Quantos ‘cinemas brasileiros’ existem? Quais deles são interessantes? E para quem
o são? Por que alguns destes cinemas brasileiros são interessantes? E por que
os outros não o?” Trata-se de questões ligadas à produção de imagens na
sociedade contemporânea. Assim como não um único cinema brasileiro, também
não um único público. Neste sentido, ao se formular estas indagações, é preciso
reconhecer seu lugar dentro delas.
Ao se assistir “o cinema próximo”, expressão utilizada por Caetano (2005,
p.236), para caracterização do cinema realizado como obra de um local e de uma
época que o consome, no caso, referente ao âmbito brasileiro, depara-se com uma
série de aspectos que, na realidade, o fazem parte do filme. Falar do cinema
próximo é, portanto, saber que se fala do filme e do que está próximo e compõe o
seu contexto. Neste sentido, o pesquisador está inevitavelmente envolvido pelo
universo do filme e pela relação que ele estabelece com seu cotidiano e com suas
perspectivas pessoais. Como espectador do filme brasileiro, se pode fazer uma
tentativa de compreensão desde dentro. Assim, o pesquisador sempre terá que, ao
mesmo tempo, desconfiar e se filiar ao pronome “nós”, em função da posição em
que está situado.
18
Assim, o cinema brasileiro atual tem sido uma das áreas mais reflexivas em
relação ao dilema da violência na sociedade brasileira. Segundo Rossini (2003,
p.29), mesmo não se tratando de um assunto novo, “falar de favela se tornou
assunto recorrente no cinema nacional”, em função da guerra do tráfico de drogas e
da sua repercussão nos meios de comunicação. Na análise dos cinco
documentários, se objetiva o exame das particularidades da violência, que
conduzem à constituição de um imaginário, observando em que medida se encontra
situada em suas representações no cinema. Levando-se em conta, a compreensão
da relação dos elementos culturais e cinematográficos que levam a sua percepção, a
partir de que aspectos, no interior de cada filme, ocorrem a sua manifestação? Quais
os pontos a serem observados? Qual a relação das imagens da violência manifestas
na sociedade com as imagens da violência observadas na narrativa
cinematográfica? Existe um imaginário que se revelaria tanto nos fatos sociais como
nos materiais fílmicos? Que forma o imaginário da violência assume a partir dos
simbolismos presentes nos significantes fílmicos?
Verificam-se variações e diversidade de critérios no modo como a questão
da violência é apreendida. Normalmente, o termo violência urbana é associado à
delinqüência da classe baixa. Desta forma, a noção de violência é concebida e
apreendida segundo pontos de vista, dependente de julgamento de valor
(MICHAUD, 2001, p.67).
Os documentários tratam das representações de histórias pessoais que
refletem questões mais amplas, relativas ao social e à política, visto que as pessoas
retratadas o abordadas individualmente, mas também estão situadas em
determinado lugar e em relação a outros. Evoca-se o fato de que a sociedade não é
somente contratual, pois também se encontra sob a criação e a partilha de imagens
(METZ, 1980). Assim, o cinema constitui uma das formas para se apreender
diferentes configurações de práticas sociais, visto que se caracteriza por estabelecer
enunciados sobre o mundo histórico. Diante disso, o mundo imaginal constitui-se
num modo de considerar a relação espaço-tempo, que se torna determinante para a
compreensão de qualquer sociedade. Com este propósito, o objetivo desta pesquisa
é a análise e interpretação do que um filme pode revelar sobre o mundo em que se
vive e as maneiras pelas quais dá expressão a valores e crenças, ligadas ao
imaginário da violência, que constroem ou contestam formas de pertença social.
19
Sob esta circunstância, se encontram os filmes que compõem o corpus da
pesquisa. A relação dos documentários foi composta a partir de consulta ao site da
Agência Nacional de Cinema (Ancine)
1
. Foram listados os filmes nacionais
produzidos entre 2000 e 2006
2
. Foram contemplados cinco documentários,
produzidos entre os anos de 2002 e 2004, que estudados em conjunto, formam um
encadeamento, atras da sucessão de alguns aspectos ligados à violência.
O conjunto de filmes mostra pessoas que convivem com a violência, em
favelas, (Fala Tu), apresenta um seqüestro à mão armada (Ônibus 174), observa os
tribunais e processos de julgamento (Justiça), até as prisões (O prisioneiro da grade
de ferro) e ao momento do trânsito entre o cárcere e a rua, em busca da liberdade
perdida (O cárcere e a rua). Nos filmes, se constata a presença dos aparatos
estatais de prevenção, julgamento e punição, respectivamente, representados pela
polícia, pelos tribunais e pelas prisões.
Nesta perspectiva, cada filme constitui uma peça, compondo uma sucessão,
na qual cada obra tem seu projeto próprio, mas que, quando vistas em conjunto,
dizem algo de seu presente, mesmo sem ter essa ambição. Esta opção temática por
filmes que abordam a questão da violência indica o ponto de observação a partir do
qual, inúmeros filmes foram realizados, em diferentes circunstâncias, aspectos e
estilos. Na interpenetração dos filmes, se pretende uma fusão de horizontes,
examinando a repetição de certos arranjos e associações simbólicas, a partir das
suas constituições.
Quando se fala do tema da violência, se produz um discurso que
freqüentemente admite o contra ou a favor (legal ou ilegal), rejeitando qualquer
atitude que primeiramente questione a natureza do fenômeno em suas linhas mais
gerais (DAMATTA, 1993). Pretende-se analisar a imagem da violência urbana no
cinema, considerando o seu enfoque relacional, levando em conta o cotidiano,
elemento central observado nos filmes e considerado como um vetor de
conhecimento e uma alavanca metodológica para a compreensão das relações
sociais (MAFFESOLI, 1996).
1
www.ancine.gov.br, acessado em 20.04.2009.
2
Anexo 1. Tabelas da Ancine.
20
uma convergência para a oposição entre um mundo dominador e a
massa dominada, da qual a violência passa a ser a mediadora. Nesta perspectiva,
se evidencia a complexidade e ambigüidade presentes nas relações dos bandidos
com a comunidade. São criadas regras de convivência entre eles, como forma de
sobreviver à guerra do tráfico e à violência. Para DaMatta (1981), a violência urbana
e o estado de criminalidade não estão distantes do “Você sabe com quem está
falando?”, categoria que será observada no decurso do trabalho.
Aumont (1993, p.159) formula uma série de questionamentos que servirão
de apoio para o estudo dos filmes propostos: “como se situa a narração em relação
à história? É ou não interna à diegese do filme? Qual o grau de presença do
narrador no relato? (...) E os distintos pontos de vista manifestados?”. Pretende-se
investigar a relação existente entre os pontos de vista da instância narrativa, aqui
entendida como “o lugar abstrato em que se elaboram as escolhas para a conduta
da narrativa e da história, de onde trabalham ou são trabalhados os códigos e de
onde se definem os parâmetros de produção da narrativa fílmica” (AUMONT, 2002,
p.111) e os das distintas personagens, na busca do entendimento da manifestação
do imaginário da violência urbana nos filmes pesquisados.
Neste contexto, encontra-se a questão referente à voz no documentário e
aos significados transmitidos em vários níveis, para além do que é dito verbalmente.
Esta noção está relacionada com as maneiras como os pontos de vista são
transmitidos e como os filmes moldam seus temas. Os diferentes meios pelos quais
a voz se manifesta e que podem ser expressos pela composição do som e da
imagem, a partir da montagem, enquadramento, iluminação, música, ordem
cronológica, etc., observando se são semelhantes, ou ao contrário, divergem, no
decorrer das cinco narrativas propostas para estudo.
No livro Integração perversa, Zaluar (2004, p.23) discorre sobre o ofício do
pesquisador, referindo-se ao “subjetivismo ingênuo que vive o sonho impossível de
reproduzir a subjetividade alheia e acaba repetindo apenas a subjetividade do
próprio antropólogo”. Diante desta constatação, pode-se traçar uma comparação
com o ofício do documentarista. No exame dos documentários, se observa que não
uma vinculação com o objetivismo, que visaria a verdade superior do observador
21
privilegiado. Mas inclina-se para o outro extremo, o que aponta para “uma linha de
produção” dos documentários. Na estratégia de dar voz ao outro, cria-se um
determinado formato, que se reflete nos filmes em questão.
Os diversos questionamentos que orbitam ao redor do tema da violência
serão relevantes na observação dos filmes e no exame dos elementos formadores
da organização fílmica, que contribuem para o tratamento dado na constituição do
seu imaginário. Partindo desta constatação, serão esboçadas algumas noções que
contribuirão para este estudo, que se referem ao espaço urbano e à alteridade.
Se examinará os lugares onde se passam as histórias, visto que o ambiente
não é uma simples coisa inerte. Na união do físico com o simbólico que representa,
os espaços passam a adquirir uma participação ativa nas narrativas. Identifica-se a
referência aos aparatos estatais de prevenção, julgamento e punição, que se
atribuem, respectivamente, à polícia, ao judiciário e à prisão. As personagens, em
sua totalidade, se encontram em uma posição marginalizada, em áreas
consideradas periféricas, como favelas e presídios. São locais concebidos a partir
das relações sociais e tornam-se mais um elemento que colabora para entendimento
do conjunto social e do ambiente da época.
A segunda noção, que se refere à alteridade, é manifestada a partir da
constituição das personagens e na forma como são apresentadas. Sob este
aspecto, a imaginação, o afeto e os sentidos participam da construção de cada uma,
e se essencialmente através da comunicação. Logo, é como se a pessoa
passasse a ser formada por múltiplas personalidades. A identidade pluraliza-se. Esta
experiência relativiza a pessoa que não é mais encarada com uma identidade única
e específica. Pretende-se observar como o imaginário da violência se manifesta na
constituição dos atores sociais e na relação que se estabelece com a sua
representação no cinema.
As noções se relacionam, pois o lugar revela o ser, ao mesmo tempo em
que se localizam as zonas problemáticas onde costumam ocorrer trocas horizontais.
As pessoas mostradas nos documentários moram em certos lugares identificados
com a pobreza, que se torna um fator de risco e também se manifesta na atribuição
22
de identidade aos indivíduos, segundo a sua conexão aos desvios de
comportamento, como é o caso dos filmes em que são apresentados presidiários.
A pesquisa será guiada através da análise temática, proposta por
Francesco Casetti. Serão utilizadas algumas cenas e seqüências que servirão de
apoio e ilustração para pontos da análise que dialogam com a questão da
representação e do contexto que envolve o filme, a partir da concordância com a
concepção de Gilberto Velho (1999, p.57) de que “a idéia de que estabilidade,
harmonia e integração o fenômenos naturais ou normais não é necessariamente
legítima”, visto que a vida social é um processo contraditório e complexo,
permanentemente negociado por diferentes atores sociais. Questão que se
complexifica no documentário, com o acréscimo da linguagem cinematográfica, que
não só apresenta como constrói o mundo vivido
A pesquisa está dividida em quatro capítulos. O primeiro trata da condução
da análise, ao abordar o método utilizado para a realização deste estudo. Nesta
etapa será relatada a trajetória metodológica. Através da análise temática, se
pretende realizar a recomposição e modelização dos componentes temáticos,
estilísticos e narrativos, através do estabelecimento das relações entre os filmes. A
análise proporciona a constituição de um objeto novo, que descobre e formaliza as
estruturas e mecanismos mais íntimos do objeto precedente. Ainda neste capítulo,
se abordará o histórico dos filmes, a partir dos contextos das produções e suas
relações.
No segundo capítulo, se problematizará o documentário no cinema,
mediante a definição do gênero, as suas relações com a ficção e a situação dos
filmes dentro do contexto de sua produção e difusão, abordando também a sua
carreira no cinema. Será examinado o campo do documentário, através do estudo
dos campos constituídos pelos eixos pós-estruturalista e analítico-cognitivista,
contando com a contribuição dos autores Noël Carrol e Bill Nichols. Será analisada a
noção de circunstância da tomada, desenvolvida por Fernão Ramos e a relação da
imagem-tempo direta com os filmes estudados, a partir da abordagem de Gilles
Deleuze. Contará ainda, com a noção de projeção–identificação que está na origem
23
da percepção cinematográfica, a partir do ato antropológico da participação,
desenvolvido por Edgar Morin, para a compreensão da impressão de realidade
proporcionada pelas imagens fílmicas.
O terceiro capítulo trata do referencial teórico, a partir do estudo das noções
de imaginário e violência. Considerando o mecanismo cinematográfico, na busca da
compreensão do imaginário da violência, contando com os estudos sobre violência
realizados por Alba Zaluar e Roberto Damatta e com contribuições de autores como
Yves Michaud, Roger Dadoun, entre outros, no entendimento da complexidade que
envolve o fenômeno da violência.
O quarto capítulo tratará da análise formal e do conteúdo, através do exame
dos documentários selecionados, considerando a contribuição das noções de
espaço urbano e de alteridade em articulação com o estudo do imaginário da
violência urbana, para o entendimento de sua manifestação. Se buscará
compreender como a organização fílmica, a partir da composição e encadeamento
das imagens, atua na construção das imagens da violência presentes nos
documentários.
24
1 A OBSERVAÇÃO FÍLMICA
Na delimitação do objeto de pesquisa, é importante a observação da
condução, o contexto e o objetivo da análise, pois esta deve ser pertinente ao
objeto. Uma boa análise se define por seus objetivos, e esta, por si só, não se
justifica e tampouco tem interesse (JOLY, 2003). A análise fílmica feita apenas por si
mesma, sem repensá-la em função da “significação”, permaneceria somente como
um inventário fechado sobre si.
Um filme é história e testemunha sobre o imaginário da época, em que
elementos da realidade o assinalados. Neste sentido, as sociedades produzem
representações e podem passar a acreditar nelas como se tratasse da própria
realidade. Esta situação pode ocorrer com aqueles filmes que encontram viva
ressonância porque a sociedade quer saber como ela funciona. Neste ponto,
esboça-se a questão da relação que a imagem estabelece com o mundo real e
como ela o representa. Todos os filmes estão vinculados a uma organização
simbólica, ligada à cultura e sociedade e, neste sentido, o contexto simbólico revela-
se também necessariamente social, já que nem os símbolos, nem a esfera do
simbólico, em geral, existem no abstrato (JOLY, 2003). A propósito, o verossímil de
um filme deve muito aos filmes anteriores já realizados. Deve-se mais ao discurso do
que à verdade: é um efeito de corpus. Baseia-se na reiteração do discurso, seja no
nível da opinião comum ou no de um conjunto de filmes (AUMONT, 2002).
Esta concepção é evocada em função do tipo de análise que pretende se
realizar. Nesta pesquisa, a intenção é utilizar os cinco documentários selecionados,
como objeto de estudo para a observação de fenômenos sociais. Para isso, serão
utilizadas algumas noções como o espaço e a alteridade, em articulação com as
noções de imaginário e violência urbana.
A manipulação fílmica transforma em discurso o que poderia ser apenas o
decalque visual da realidade. A inteligibilidade do filme passa por três instâncias
principais: a analogia perceptiva, os códigos de nominação icônica, que servem para
25
dar nome aos objetos e aos sons, e os códigos especializados, que constituem a
linguagem cinematográfica e que estruturam os dois grupos de códigos precedentes
(AUMONT, 2002, p.184). Constata-se a presença de um enorme número de
configurações significantes que nada têm de especificamente cinematográfico, daí a
amplidão do empreendimento e o apelo a disciplinas de que esses códigos não-
específicos dependem. Forma-se uma articulação complexa e imbricada entre
códigos culturais e códigos especializados.
Aumont (1993) aponta para o fato de que, no discurso fílmico, existe uma
relação entre o dito e o dizer, que aqui pode ser entendida como a relação entre o
enunciado, ou a história propriamente dita e a enunciação, ou a maneira como esta
história é apresentada, através dos movimentos de câmera ou dos pontos de vista,
por exemplo. Neste ponto, compreende-se a narrativa como o enunciado em sua
materialidade. São imagens, palavras, menções escritas, ruídos e música, o que
torna a organização da narrativa fílmica, complexa (AUMONT, 2002). Paralelamente,
o trabalho do espectador consiste em estabelecer o nexo entre estas duas partes.
Aqui, se esboça o tema do ponto de vista. Neste sentido, se faz necessário
descrever a construção da ordem da narrativa.
Para constituir o filme em texto, é necessário, em primeiro lugar, introduzir-
se na obra. A análise fílmica supõe duas condições: a constituição de um estado
intermediário entre a própria obra e a sua análise, e a modificação mais ou menos
radical das condições de visão do filme (AUMONT, 2002, p.213). Desse modo, se
atesta a necessidade contínua de observação dos filmes, nas diferentes etapas da
pesquisa.
Por menos precisa que seja, a análise de um filme implica referências
concretas ao objeto (AUMONT, 2002). Neste sentido, os filmes serão utilizados
como exemplos, a partir das relações de certos aspectos, estruturas, temas e
detalhes pertinentes, delimitando um terreno de comparação. A análise, através da
decomposição, implicando uma transcrição das informações visuais e sonoras e
posterior recomposição, procede a um reconhecimento sistemático dos elementos
do texto e isto conduz a inventariar tudo aquilo que pertence ao objeto examinado e
que contribua para a sua compreensão, ainda que não seja acessível de imediato.
26
O caminho que conduz da observação fílmica ao propósito da pesquisa é
composto por vários elementos, nos quais se evidenciam: “a delimitação do campo
da investigação, a eleição do método de exploração e a exploração dos aspectos
específicos da indagação” (CASETTI, 1996, p.27). É importante salientar o modo
como cada uma destas eleições se justifica, segundo finalidades precisas e, neste
sentido, na orientação da análise desde o princípio. As condições de análise se
tornam imprescindíveis para a pertinência dos passos da pesquisa.
O primeiro passo para a seleção dos filmes que comporiam este estudo, foi
a realização de uma ampla pesquisa na Internet, com o propósito de formular uma
listagem dos documentários produzidos no Brasil, no período de 2000 a 2006.
Tarefa extensa que revelou-se infindável. Inicialmente, foram relacionados 108
documentários
3
. Com o propósito de organizar o material, estabeleceram-se
divisões, a partir de temas recorrentes. De maneira genérica, foram identificados
filmes sobre violência urbana e periferia, política, música, personalidades em geral e
assuntos variados, que não se encaixavam em nenhuma das categorias anteriores.
Tratam-se de classificações abrangentes, visto que muitos temas se interpenetram.
No decorrer do trabalho, esta estratégia revelou-se útil na demarcação dos filmes
que interessavam ao propósito da pesquisa. Foram listados 14 filmes relativos à
violência urbana e periferia.
Mas à medida que esta etapa da pesquisa avançava, constatou-se que a
relação jamais seria concluída, devido à questão que se refere à amplitude do corpo
do cinema brasileiro. Além disso, no decorrer da pesquisa, se verificou uma grande
quantidade de filmes que não constam na lista oficial da Agência Nacional de
Cinema. Filipe Furtado (2005, p.197) chama a atenção para o problema da
disponibilidade:
uma boa parte do que forma o cinema brasileiro dos últimos dez
anos pode ser descrita como de filmes sem corpos, obras fantasmas que
assombram as estatísticas, os editais ou mesmo os catálogos de festivais,
mas que foram banidas da existência prática do contato até com o mais
dedicado dos espectadores.
3
Em levantamentos realizados por pesquisadores, também divergência no número de
documentários realizados. No livro Filmar o real, de autoria de Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, são
relacionados 81 documentários, produzidos no período de 2000 e 2006.
27
Neste sentido, vários tipos de espectros que rondam o cinema brasileiro.
Por exemplo, filmes distribuídos que quase não aconteceram junto ao público ou
filmes que ficaram confinados ao circuito de festivais e a modos alternativos de
exibição. Daí resulta a dificuldade existente na realização de um levantamento que
contemple todos os filmes produzidos em um determinado intervalo de tempo, sem a
circunstância do risco da omissão.
Como não dados confiáveis sobre estes filmes, no que se refere à sua
produção e distribuição, se optou pela utilização das tabelas, com a relação dos
títulos lançados, da Agência Nacional de Cinema
4
, mesmo não contemplando a
totalidade de filmes produzidos no país. Esta escolha é condizente com o fato da
Ancine ser o órgão oficial de fomento, regulação e fiscalização da indústria
cinematográfica brasileira. Esta agência reguladora, vinculada ao Ministério da
Cultura, estimula a produção, distribuição e exibição de obras cinematográficas.
Através da sua página oficial, são disponibilizados dados estatísticos, editais,
informações, notícias, leis, etc.. A Ancine executa a política nacional de fomento ao
cinema, formulada pelo Conselho Superior de Cinema, fiscaliza o cumprimento da
legislação pertinente, além de registrar as obras cinematográficas que serão
comercializadas em todos os segmentos do mercado.
Na consulta ao site da Ancine, foram listados os filmes nacionais produzidos
entre 2000 e 2006
5
. Neste período, foram lançados 273 filmes. No cadastro, 70
estão classificados como pertencentes ao gênero documentário. Se observa uma
defasagem de quase 40 filmes, em comparação com o primeiro levantamento
realizado. Na definição do corpus de pesquisa, se optou por cinco documentários,
que estudados em conjunto, formam um encadeamento, através da sucessão de
alguns aspectos ligados à violência. Esta opção temática indica o ponto de
observação a partir do qual os filmes selecionados foram realizados, abordando-a
direta ou indiretamente, em diferentes circunstâncias, aspectos e estilos.
O propósito da pesquisa é a compreensão da imagem da violência urbana
nos documentários, constituindo uma ampla reflexão sobre a sua construção. Foram
4
www.ancine.gov.br, acessado em 20.04.2009
5
Anexo A. Tabelas da Ancine.
28
selecionados os documentários que reuniam o mínimo de elementos em comum,
relacionados às noções com as quais se pretende trabalhar, que são o espaço e a
alteridade. Foram considerados os locais em que se passam as histórias, as
personagens e as situações por elas vividas. Tratam-se de componentes temáticos
relacionados às pessoas que, predominantemente, o caracterizadas como
moradores de subúrbios, traficantes, presos e policiais, além do cotidiano precário
das favelas, do sistema carcerário e jurídico.
Neste sentido, a consideração de conjuntos fílmicos necessita de um mínimo
de elementos, comuns a todos os filmes, que permitam uma análise eficaz. Aumont
(1993) alerta para o fato de que é inútil a tentativa de dominação dos códigos
culturais, que serão sempre infinitos. Assim, a seleção dos elementos a serem
estudados e a construção de um modelo de análise se dá a partir do que se
pretende examinar.
Enquanto fato antropológico, o cinema apresenta uma certa quantidade de
contornos, de figuras e de estruturas estáveis que merece ser estudada (METZ,
1972, p.16). Nesta perspectiva, cada filme constitui uma peça, compondo uma
sucessão, na qual cada obra tem seu projeto próprio, mas que, quando vistas em
conjunto, dizem algo de seu presente, mesmo sem ter essa ambição.
Na interpenetração dos filmes, se pretende uma fusão de horizontes,
examinando a repetição de certos arranjos e associações simbólicas, a partir das
suas constituições. No âmbito da violência, observando aspectos vinculados ao
enfrentamento da morte, à situação de precariedade, às instituições jurídicas e
carcerárias, ocorrendo relações e superposições entre esses vários mundos.
Iniciando pelo estado de precariedade com que pessoas levam suas vidas, nas
comunidades pobres e favelas, dominadas por traficantes (Fala Tu), passando pela
ação de um homem com uma arma na mão, ameaçando suas vítimas (Ônibus 174),
chegando aos tribunais e processos de julgamento (Justiça), até as prisões (O
prisioneiro da grade de ferro) e ao momento do trânsito entre o cárcere e a rua, em
busca da liberdade perdida (O rcere e a rua). Ligada à composição de um
imaginário, uma forma dominante de organização fílmica e de relação que esta
29
estabelece com a realidade, a partir do conjunto de questões abordadas. Os atores
sociais são vistos como personagens com complexidade psicológica e uma visão
definida do mundo (NICHOLS, 2007, p.138).
Não existe conteúdo que seja independente da forma pela qual se expressa
(AUMONT, 1993). O verdadeiro estudo do conteúdo de um filme deve supor
necessariamente o estudo da sua forma, pois a abordagem simultânea destes dois
aspectos proporciona uma maior aproximação com o objeto de análise. Visto que a
forma de filmar pode indicar as representações do mundo próprias a uma cultura,
pois a construção da imagem ocorre através do exercício da linguagem, modelada
por certas estruturas, é no nível dos simbolismos mais solidamente enraizados, que
se produzirão as diferenças na apropriação dessa imagem (JOLY, 2003). Trata-se
de um meio de comunicação e de representação das sociedades. Do contrário, não
se estará tratando do filme, mas sim, de problemas gerais que constituem seu ponto
de partida.
A prática analítica tem a ver tanto com a descrição como com a
interpretação. Inicialmente, ocorre a fase de decomposição dos filmes, mediante os
seus relatos, sob forma de texto. Aqui, recorre-se ao existente, “o que significa já lhe
aplicar um ponto de vista: decidir deter-se aqui ou lá, reter isto ou aquilo, subdividir
de um modo ou de outro, etc.” (CASETTI, 1996, p.24). A seguir, no momento de
recomposição dos dados, se procede à interpretação. Cada uma das fases da
análise tem a ver com os dois procedimentos. Segundo Casetti (1996, p.24), “a idéia
resultante é que devemos enfrentar, tanto com uma operação descritiva, já orientada
para a interpretação, como com uma atividade interpretativa apoiada na descrição”.
Baseado no modelo de análise proposto por Casetti (1996, p.34),
encaminha-se para a condução do percurso metodológico, onde serão
desenvolvidas as seguintes etapas:
- segmentação – subdivisão do objeto em suas distintas partes;
- estratificação indagação “transversal” das partes, no exame dos componentes
internos, que não seguem uma linearidade;
30
As duas fases foram caracterizadas no processo de decupagem, no qual foi
elaborada uma rede de observação dos documentários selecionados.
Primeiramente, foi realizada uma decupagem de cada filme, que incluiu a indicação
de conteúdo, a transcrição de diálogos e outros parâmetros como enquadramentos,
montagem e mudanças de cenário. No decurso da pesquisa, os documentários
foram revistos e, a partir do estabelecimento dos objetivos específicos, a
decupagem, realizada inicialmente, foi complementada com novas observações, que
incluiu a apreciação das semelhanças e diferenças entre as obras.
Segundo Goliot-Leté e Vanoye (1994, p.85), certas cenas e passagens de
um filme podem ser mais do que o elo de uma corrente e serem consideradas, não
de um ponto de vista puramente sintagmático, mas de um ponto de vista mais
global:
essas partes constituem etapas narrativas que contêm, de certo
modo, o filme inteiro. A seqüência pode, então, ser analisada por si mesma
ou com relação ao filme inteiro. Pode igualmente ser analisada com
respeito a uma rede de seqüências em relação umas às outras, o que pode
permitir colocar em evidência uma rede de significação.
A observação e a escolha da rede de seqüências, que irão colaborar para o
desenvolvimento do trabalho, constituem uma das etapas mais complexas da
pesquisa, visto que os passos iniciais desta fase serão norteadores do trajeto a ser
percorrido.
O terceiro estágio se refere à enumeração e ordenação, na qual se delineia
um primeiro mapa do objeto que tenha em conta, as diferenças e semelhanças,
tanto da estrutura como das funções. Segundo Aumont (2002, p.234), a forma não
se opõe ao conteúdo, pois este, junto aos meios de expressão cinematográficos
tem, ao mesmo tempo, as suas próprias qualidades substanciais (imagem, som) e a
sua organização formal (movimentos de câmera, cortes, etc.).
Tomando como base estes dois aspectos, se chega a descobrir as
correspondências, a regularidade e os princípios que regem o objeto analisado, pois
nenhum texto se ao observador em toda a sua evidência. Este esquema é
formado por uma série de componentes distintos. Aqui, serão abordados três
31
elementos: estilísticos (movimentos de câmera, enquadramentos, etc.); temáticos
(diversas aparições de um lugar, etc.) e narrativos (repetição de uma ação do
protagonista, reiterada aparição de uma situação, etc.).
Nesta fase, foi esboçada uma pré-análise de cada texto, através do exame
das decupagens. Foram selecionados certos aspectos, que se repetem nos filmes
analisados, como a apresentação das pessoas retratadas, a presença da equipe de
filmagem em cena, as narrativas, a partir da abertura e desfecho dos filmes, os
principais assuntos abordados e o ponto de vista estético, que se refere aos
enquadramentos, trilha sonora, etc.. Na organização destes itens, foram ordenadas
duas listas. Na primeira lista, se observou a ocorrência dos temas, anteriormente
selecionados. Foram dispostos como itens e a seguir, se descreveu como eram
tratados nos filmes. Já na segunda lista, ocorreu o procedimento inverso. A partir de
cada filme, se examinou o conjunto de temas. Posteriormente, houve o cruzamento
destas informações. Este procedimento propiciou o acesso aos elementos temáticos,
estilísticos e narrativos de cada filme. A seleção de episódios e seqüências, que
serão utilizados a título de ilustração, surgiu a partir das duas listas.
No decurso do processo, se passa a seccionar estes segmentos,
diferenciando seus distintos componentes internos (espaço, tempo, ação, etc.).
Nesta decomposição, se objetiva a identificação de fatores que se repetem no curso
do texto e assinala o seu pertencimento a uma mesma área ou família: o que
emerge, é uma série de elementos, examinados nos cinco filmes pesquisados e
divididos em três grandes grupos:
- componentes temáticos relacionados aos espaços como favelas, ruas, cadeias,
tribunal e ônibus;
- componentes narrativos relacionados às personagens e suas ões, como a
queixa constante contra o Estado e a polícia por parte de moradores, presos e
traficantes, o cotidiano precário, os discursos sobre violência e o sistema relacional;
32
- componentes estilísticos narração, montagem, início e término dos filmes, trilha
sonora, plano das grades, presença de closes, panorâmicas, enquadramentos dos
corredores, presença das fotografias e recurso das cartelas.
Tabela 1
Categorias de análise
Filmes
Justiça; Fala tu; Ônibus 174; O cárcere e a rua;
O prisioneiro da grade de ferro.
Espaço
Componentes
Temáticos
Tribunal Favela Ônibus Presídio
Alteridade
Componentes
Narrativos
Ações das personagens
Discursos sobre violência
Sistema relacional
Componentes
Estilísticos
Montagem; trilha sonora; plano das grades; closes;
Panorâmicas; enquadramento dos corredores;
Presença das fotografias; recurso das cartelas.
Cada particularidade é interrogada tomando por base seu sentido para a
totalidade dos filmes. Assim, a intenção não é fazer uma dispersão do objeto de
análise como se cada um dos componentes funcionasse isoladamente. O objetivo é
fazer com que os aspectos propostos dialoguem entre si, estabelecendo uma
relação entre os elementos listados.
Na última etapa, de recomposição e modelização, ocorre o estabelecimento
de relações que servem para a recondução auma visão unitária do objeto, que
estabeleça os sentidos, através de uma representação sintética dos seus princípios
33
de reconstrução e funcionamento (CASETTI, 1996, p.34). Esta etapa se efetua no
decurso da análise dos filmes.
A finalidade desta pesquisa não é a realização de uma análise fílmica
específica para cada um dos filmes que a constitui, mas a composição de um exame
conjunto dos cinco documentários selecionados, a partir da análise temática que se
refere à questão do tratamento da imagem da violência urbana, considerando, a
partir deste ponto de vista analítico, a totalidade dos filmes, na medida em que
oferecem um conjunto de representações que remete direta ou indiretamente à
sociedade em que se inscreve. Busca-se, assim, estabelecer um eixo de análise que
contenha o germe de todos os desenvolvimentos teóricos que se seguirão ao longo
do trabalho (JOLY, 2003, p.73). Trata-se de um esquema que, proporcionando uma
visão concentrada do objeto analisado, permite o descobrimento de suas linhas de
força. Sobre a base de um conjunto de dados, revela uma regularidade e uma
sistematicidade, de outra forma, ocultas.
Para avaliar a distância que separa as obras, é necessário trabalhar sobre
as estruturas profundas e não apenas sobre os acontecimentos superficiais, não se
limitando ao conteúdo, mas levando em conta a expressão, ligada ao sentido
(GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 1994). Para Casetti (1996, p.52), um filme “a partir de
ocorrências, nem sempre claras, mostra suas leis constitutivas. Proporciona uma
chave de leitura de uma realidade, às vezes, um pouco obscura”. Através da análise,
se constitui um objeto novo, que descobre e formaliza as estruturas e mecanismos
mais íntimos do objeto precedente.
Segundo Casetti (1996, p.13), numerosas linhas de observação podem ser
ativadas conjuntamente. Os objetivos, as categorias e os esquemas propostos são,
muitas vezes, o fruto da confrontação, da integração e da contaminação de
enfoques diversos. Na via metodológica escolhida, a rede de observação do
conjunto de filmes será organizada e guiada em função do eixo de análise proposto,
a partir das noções escolhidas, que auxiliarão para o entendimento da imagem da
violência urbana, utilizando um amplo conjunto de exemplificações.
34
1.2 A HISTÓRIA DOS FILMES
Segundo dados da Ancine (Agência Nacional de Cinema), a recente
produção nacional de documentários, no período entre 2001 e 2006, representou
quase um terço da produção cinematográfica brasileira.
6
Segundo Butcher (2005),
junto com os documentários, veio também uma safra de filmes de ficção que
abordam a temática da violência. As imagens de pobreza, miséria e violência são
vistas com bastante freqüência no cinema brasileiro. Neste sentido, proporcionam
uma variedade de produção.
A violência é um dos elementos que estrutura a base de nossa sociedade.
Ela está impregnada no nosso imaginário. Como não é possível vencê-la ou
ultrapassá-la, chegando assim, a um estado de assepsia, o caminho encontrado foi
a sua integração, que pode se realizar de diversas formas. A sua carga brutal pode
ser assimilada através da ironia e do deboche, por exemplo. Brinca-se com ela, até
como uma maneira de sobrevivência, numa coletividade onde o mal é inevitável. Isto
se reflete também na cinematografia nacional, cuja representação da violência não
obedece apenas um parâmetro, mas se apresenta de forma diversificada.
Neste trabalho, não se pretende a abordagem individual dos filmes, mas a
título ilustrativo e com o objetivo de situar o leitor, foram realizados os resumos dos
filmes analisados:
- Fala tu (Guilherme Coelho, 2003) Traça um paralelo da vida de três
pessoas, que vivem em subúrbios do Rio de Janeiro. Macarrão, apontador de jogo
do bicho, Toghum, vendedor autônomo e Combatente, telefonista. Os três sonham
em ser músicos de rap. O filme mostra o seu cotidiano na periferia, marcado pela
exclusão social. Em seus depoimentos, expõe suas dificuldades e a sua relação com
certos temas, como drogas, religião, música, trabalho, polícia, etc..
6
Segundo tabela de filmes da Ancine, entre 2001 e 2006, foram lançados 248 filmes. Destes, 70 são
documentários.
35
- Ônibus 174 (José Padilha, 2002) Trata do episódio do seqüestro de um
ônibus, na zona sul do Rio de Janeiro, que ocorreu em 12 de junho de 2000 e foi
transmitido ao vivo por emissoras de televisão. A partir de imagens de arquivo,
entrevistas e documentos, o filme constrói a trajetória de Sandro, o seqüestrador,
paralelamente à ocorrência policial que culminou com a sua morte.
- Justiça (Maria Augusta Ramos, 2004) Mostra o cotidiano do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro e a realização de audiências, através das principais figuras
envolvidas como o juiz, a defensora pública e o réu. Também apresenta o dia-a-dia
destes personagens fora do ambiente do Tribunal.
- O cárcere e a rua (Liliana Sulzbach, 2004) Aborda o cotidiano de três
detentas no Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre. Cláudia, a detenta
mais antiga, que depois de 28 anos, deixa a prisão, Betânia, prestes a ir para o
regime semi-aberto e Daniela, recém chegada ao presídio. As três são
acompanhadas no processo de adaptação entre o cárcere e a rua.
- O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2004) Um ano antes
da desativação da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, os detentos
aprendem a utilizar câmeras de vídeo e documentam o cotidiano do maior presídio
da América Latina. Trata-se do sistema carcerário observado a partir do ponto de
vista dos presos.
Segundo Labaki (2005, p.51), o filme que possivelmente abriu um novo
caminho para o tema da violência não passou nos cinemas. Notícias de uma guerra
particular, dirigido por João Moreira Salles, foi exibido exclusivamente pelo canal de
TV a cabo GNT, em 1999. Mesmo o tendo sido visto no cinema, sua importância
foi reconhecida pelo esforço de oferecer um retrato de uma questão complexa: o
conflito entre policiais e traficantes nas favelas do Rio de Janeiro. O filme jamais
entrou em cartaz no circuito comercial, sendo exibido fundamentalmente em
festivais, cineclubes e tevês por assinatura (LABAKI, 2005), por isso optou-se por
não incluí-lo no corpus da pesquisa. Mesmo assim, destaca-se a importância deste
filme para a safra de documentários surgidos posteriormente, que abordam a
questão da violência, tanto no que se refere ao conteúdo, quanto à organização
36
formal (movimentos de câmera, montagem, etc.) das histórias contadas, evocando o
verossímil, que se apresenta como o resultado de um corpus, guiado por obras
anteriores e pelos seus respectivos discursos.
No que se refere ao contexto de produção, os filmes analisados mantêm
uma relação bastante direta com o noticiário policial. Os próprios personagens, como
Sandro (Ônibus 174), que passou mais de quatro horas, ao vivo, em vários canais
de televisão, no episódio do seqüestro do ônibus e Cláudia, a detenta retratada em
O rcere e a rua, que foi encontrada morta, em um quarto de hotel, no centro de
Porto Alegre, ganhando destaque na crônica policial gaúcha.
Alguns cineastas, ao penetrarem na realidade que buscavam compreender
também tiveram que prestar contas dos contatos estabelecidos com traficantes. O
filme de Salles se tornou um fato social em si, pela suspeita de que o diretor estaria
acobertando o criminoso (BUTCHER, 2005). Ele foi chamado pela polícia para
explicar as suas relações com o traficante Marcinho VP e chegou a ser convocado
para depor na CPI do Narcotráfico. Foi Marcinho VP quem deu autorização para
Salles filmar no Morro Santa Marta. Fernando Meirelles e Kátia Lund também foram
chamados pela polícia para depor, na época das filmagens de Cidade de Deus.
Em uma entrevista dada à revista Isto é, Salles explica a sua aproximação
de Marcinho VP:
Acho que é legítimo tentar compreender as razões de quem optou
pelo caminho errado. Enquanto a gente não entender as razões, Márcios VPs
surgirão todos os dias no Rio. O documentarista quer compreender a
realidade e às vezes precisa penetrar nela, ultrapassar os limites do conforto
e do que seria mais prudente.
7
Segundo Labaki (2005, p.218), nenhum criminoso brasileiro contemporâneo
teve sua trágica trajetória mais marcada pela intersecção entre a indústria das
drogas e a indústria cultural do que Marcinho VP. O traficante havia aparecido,
ainda criança, em um filme de Eduardo Coutinho, feito para a televisão, em 1987,
intitulado Santa Marta: duas semanas no morro. Em 1996, Kátia Lund pediu
autorização a Marcinho VP, que na época, era chefe do tráfico na região, para a
7
Entrevista no site: www.zaz.com.br/istoe/1588/brasil/1588guerraparticular.htm
37
gravação de um videoclipe de Michael Jackson, no Morro Santa Marta. A partir de
sua experiência na favela, Kátia Lund participou como co-diretora dos filmes Notícias
de uma guerra particular e Cidade de Deus. O contexto de produção destas obras,
antes mesmo do seu lançamento, já identifica o domínio dos traficantes sobre
determinadas áreas da cidade e demonstra a exigência da sua aprovação para a
circulação de equipes de filmagem em certos locais.
No decurso da pesquisa, se torna relevante o exame das circunstâncias em
que os filmes foram realizados, a partir das relações estabelecidas entre os
contextos de produção, que convergiram em parceria e colaboração. O capitão
Rodrigo Pimentel, por exemplo, revelado em Notícias de uma guerra particular,
constitui-se em um elemento comum a vários filmes. Ao referir-se à presença de
Pimentel no seu filme, Salles constata que se trata de “acasos que passam na frente
do documentário, e só do documentário”.
8
Quando o cineasta e sua equipe se
preparavam para deixar a sede do Batalhão do BOPE (Batalhão de Operações
Especiais), da polícia do Rio de Janeiro, após o término das filmagens, Pimentel se
aproximou e observou que enquanto a equipe estava de partida, ele ainda tinha dois
morros para invadir, antes de voltar para casa. Este comentário rendeu a sua
participação no documentário de Salles. Posteriormente, Pimentel deixou o BOPE e
passou a prestar consultoria na área de violência. Atuou também como co-produtor e
consultor do filme Ônibus 174 e escreveu, com Luiz Eduardo Soares, o livro Elite da
Tropa, que originou o filme Tropa de Elite, lançado em 2007.
Outras pessoas retratadas em Notícias de uma guerra particular também se
destacaram em outras produções. Luiz Eduardo Soares que é cientista social e
antropólogo e foi coordenador de segurança pública do Rio de Janeiro, entre 1999 e
2000, no governo de Anthony Garotinho, também participou, através de
depoimentos, do filme Ônibus 174. Há, ainda, a presença do escritor Paulo Lins, que
fala sobre o começo do tráfico. Ele foi o autor do livro que deu origem ao filme
Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2001), que se tornou um dos mais vistos e
debatidos no Brasil.
8
Depoimento está nos extras do DVD de Notícias de uma guerra particular, lançado pela Videofilmes.
38
A produtora Videofilmes, pertencente aos irmãos Walter Salles e João
Moreira Salles produz títulos de vários diretores, como Eduardo Coutinho, por
exemplo. O filme Fala tu foi realizado através de uma co-produção entre a Matizar
(produtora do diretor Guilherme Coelho) e a Videofilmes, contando com o apoio
desta no processo de produção e montagem, que teve a consultoria de João Moreira
Salles e Eduardo Coutinho. Em Ônibus 174, Padilha utilizou cenas de arquivo da
cadeia de uma delegacia, feitas anteriormente por Salles para o seu filme Notícias
de uma guerra particular, por não ter conseguido autorização para filmá-la.
1.3 CARREIRA NO CINEMA
Segundo Caetano (2005, p.20), um cinema nacional que se aceita
marginalizado do circuito de exibição e que trabalha sem a preocupação de atingir
platéias, tende à fragilidade eterna, tanto sob o aspecto financeiro, quanto sob o
estético. Ao manter este cinema, desde o início, com o empenho único de ser feito (e
não de ser visto), em função das leis relativas ao audiovisual que se ocupam da
esfera da produção, o Estado omite-se acerca da outra base de uma produção
cinematográfica, referente à sua difusão. Falta, à maioria dos filmes, um esquema
eficiente de distribuição, exibição e divulgação.
A seguir, foi feita uma tabela com os dados relativos aos documentários que
constituem o corpus desta pesquisa.
39
Tabela 2
Dados sobre Distribuição, renda e público
FILME DISTRIBUIDORA PÚBLICO RENDA
Ônibus 174
Riofilme 32.850 R$ 189.860,00
Justiça
Mais filmes 28.635 R$ 138.770,00
O prisioneiro da grade
de ferro
Imovision 27.848 R$ 156.931,00
Fala Tu
Videofilmes 10.526 R$ 71.929,00
O cárcere e a rua
Pandora 7.792 R$ 37.424,00
Se observa que os cinco filmes foram distribuídos e estiveram em cartaz
nos cinemas, embora não se tenha o dado relativo ao número de cópias, nem a
quantidade de semanas que estiveram em cartaz. Juntos, obtiveram um público de
um pouco mais de cem mil espectadores. Na tabela da Ancine sobre público e
renda, por ano e gênero (1995-2008) (Anexo D), constata-se que no período de
2002 a 2004, os documentários brasileiros obtiveram bons índices,
comparativamente com outros anos, tendo sido responsáveis por quase metade do
público e renda dos 14 anos contemplados pela lista.
O papel dos festivais torna-se determinante neste contexto. Os muitos
festivais surgidos e mantidos ao longo do tempo servem como janela principal de
exibição e divulgação de diversos filmes sem chance de distribuição. Em vez de se
diversificar, criar espaço para o pouco visto ou apontar para alternativas de cinema,
esses festivais precisaram cobrir minimamente o que estava sendo produzido
(CAETANO, 2005). Os próprios documentários que compõem esta pesquisa
condizem com a problemática da exibição. No alcance de uma maior visibilidade,
possuem uma longa carreira em festivais, antes da entrada no circuito de exibição.
Todos ganharam prêmios em festivais e mostras de cinema. Os prêmios ganhos por
um filme constituem um importante atrativo no currículo do seu diretor, na busca por
patrocínios para o projeto seguinte.
40
O desenvolvimento do vídeo digital transformou de maneira decisiva o
mercado cinematográfico brasileiro e internacional. Os filmes de ficção de baixo
orçamento podem ter outro regime de produção e a produção documental pode
contar com um grande barateamento dos custos. A equipe de Fala tu, por exemplo,
passou seis meses gravando o filme, contabilizando 72 horas de material. Em O
cárcere e a rua, a diretora realizou 80 horas de gravação. Se fosse feito em película,
os filmes se tornariam extremamente dispendiosos. Segundo Caetano (2005, p.31),
o custo se tornou mais acessível a ponto de se tornar um clichê, apontar como
característica do cinema brasileiro recente, a presença significativa dos filmes
documentários, que passaram a contar com as facilidades da tecnologia. Os filmes
que constituem o objeto desta pesquisa foram captados digitalmente e ampliados
para 35 mm. Em O prisioneiro da grade de ferro, por exemplo, detentos passaram
por oficinas realizadas pela produção do filme e aprenderam a utilizar câmeras de
vídeo.
Existindo somente através de festivais, maiores ou menores e exibições
eventuais ou comunitárias, realizou-se uma considerável produção de curtas e
médias–metragens em diversos formatos. um forte elo que liga estes filmes e
seus realizadores ao panorama dos longas–metragens (CAETANO, 2005, p.39). Os
diretores citados tiveram uma longa trajetória até dirigirem o primeiro longa,
exercendo o cinema, através da produção de curtas–metragens. À exceção de
Justiça (Maria Augusta Ramos, 2004), os filmes Fala tu (Guilherme Coelho, 2003), O
cárcere e a rua (Liliana Sulzbach, 2004), O prisioneiro da grade de ferro (Paulo
Sacramento, 2004) e Ônibus 174 (José Padilha, 2002), marcam a estréia de seus
respectivos diretores em longas-metragens. Todos dirigiram curtas e
documentários para a televisão e alguns também trabalharam com publicidade.
Estes filmes exemplificam a necessidade do cinema brasileiro,
freqüentemente, de assumir tarefas, de dar satisfações à sociedade, empenhado em
mostrar que sua existência é necessária, socialmente relevante, de preferência com
roteiros críticos em relação a alguma faceta dessa mesma sociedade. Segundo
Cléber Eduardo (2005, p.54) o cinema é encarado como se fosse apenas um
caminho para se atingir metas da condição de um povo, sem jamais ter legitimidade
para ser uma finalidade em si mesmo.
41
Aqui, recorre-se a Caetano (2005, p.43), compreendendo a expressão
cinema brasileiro, não apenas como a realização de longas–metragens, mas como o
“conjunto da produção de filmes e a relação que desenvolveram com seu público”. O
autor utiliza a expressão vontade de cinema, para expressar a força do cinema, de
seus realizadores e público frente às dificuldades enfrentadas no mercado exibidor
brasileiro.
42
2
O DOCUMENTÁRIO NO CINEMA
2.1 A REALIDADE DAS IMAGENS FÍLMICAS
Ao tratar do tema da análise fílmica, Michel Marie
9
se refere às suas
análises de trechos dos filmes Outubro (October, Sergei Eisenstein, 1928) e Uma
mulher é uma mulher (Une femme est une femme, Jean-L
UC
Godard, 1961). No
exame das duas obras, o professor Marie demonstra a complexidade presente no
aprendizado da leitura de filmes. Visto que se trata de um fenômeno que abrange
muitos elementos e é observável sob diferentes aspectos, o rigor metodológico a
direção na desconstrução e posterior reelaboração dos significados presentes nos
filmes. Ao contrário do que se possa pensar, os parâmetros previamente escolhidos
que indicarão o caminho a ser percorrido, não dificultam a tarefa, mas libertam o
analista para uma boa condução da análise.
Anteriormente, havia tido contato com uma análise do próprio Eisenstein,
sobre um trecho de seu filme Encouraçado Potemkin (Battleship Potemkim, Sergei
Eisenstein, 1925), no livro Análisis del Film (1993), de Jacques Aumont e Michel
Marie. Oportunidade de descoberta de que a criatividade e o talento não são alheios
à atividade analítica. Visto que Marie se refere ao fato de que o cinema, nos seus
primórdios, tinha a função de descoberta do planeta, penso que este achado não
cessa. Na arte da manipulação do objeto de análise, na sua associação de
elementos, na contemplação, no exame, na comparação com outras interpretações
e na compreensão do que a obra suscita em nós (JOLY, 2003, p.42), descobre-se o
planeta, transfigurado em um mundo de imaginários e sensações.
9
Michel Marie e a poesia do olhar. Revista Famecos. Porto Alegre: Edipucrs, n.33, ago. 2007.
Entrevista concedida por Michel Marie sobre o Seminário sobre história do cinema e seus métodos,
realizado no Curso de Pós-graduação em Comunicação da Pucrs, em 2007.
43
2.2 A REALIDADE DA TELA
Ao analisar os quarenta primeiros planos do filme Outubro, Marie aborda a
trajetória do diretor e a materialidade do filme, a partir dos seus enquadramentos,
variações luminosas, etc., o contexto no qual foi produzido, àquele ao qual o
aproximamos atualmente e as suas referências históricas. A escolha do caminho a
percorrer está subordinada ao que se pretende alcançar. No caso, se poderiam
aprofundar os conhecimentos sobre a URSS e a revolução socialista de 1917,
examinar a própria história do cinema ou ainda, investigar a complexidade da
montagem. No exemplo dado, o estudo deste filme sugere diferentes aspectos que
podem ser estudados separadamente ou em conjunto. Neste sentido, o filme não
substitui a realidade histórica, mas faz parte dela. O próprio Eisenstein excluía
qualquer consideração de um suposto real que conteria em si, seu próprio sentido e
no qual não se deveria tocar. O real não teria qualquer interesse fora do sentido que
se atribui a ele e da leitura que se faz a seu respeito. Para o cineasta, o cinema era
concebido como instrumento de leitura e reflexão do real, atribuindo-lhe certo juízo
ideológico (AUMONT, 2002).
A partir desta reflexão, mesmo o pior dos filmes dirá algo sobre a realidade
histórica do período em que foi feito e a sociedade ao qual pertence, estabelecendo
relações entre o mundo e formas e meios de sua representação. Partindo da idéia
de que todo filme existe em versão múltipla, vale a pena ressaltar que no período do
surgimento do cinema, esta afirmação era levada ao da letra. Mélies, por
exemplo, fazia várias versões do mesmo filme, que a técnica não permitia que se
tirassem vários positivos do mesmo negativo. Outros filmes eram remontados a cada
dois ou três anos. As versões múltiplas de um mesmo filme também se realizam em
função da construção do sentido que é estabelecida pelo espectador e que abrange
vários contextos como o social, o institucional, o técnico, o ideológico, etc.. Visto que
o espectador constrói a imagem e vice-versa, ele se torna um parceiro ativo da
imagem, que está, por sua vez, numa situação de mediação entre o espectador e a
realidade, ao realizar a vinculação desta com o domínio do simbólico (AUMONT,
1993).
44
O mesmo pode ser afirmado em relação aos gêneros cinematográficos, mas
neste caso, a multiplicidade de interpretações promove uma classificação estanque
dos filmes, em comédias, dramas, policiais, romances, etc.. São agrupados desta
forma, nas páginas com programação diária de cinema ou em videolocadoras, por
exemplo, e não raro, causam problemas a quem deseja assistir a um filme. Quem
nunca procurou um determinado filme, supondo que pertencesse a um gênero e ao
vasculhar prateleiras ou percorrer uma página de jornal, descobre que ele pertence
a outro? Daí surgem os “gêneros híbridos” do tipo comédia dramática, drama policial
ou aventura épica que em nada colaboram para o entendimento da questão.
Devemos lembrar ainda que noções com ordens tão distintas como clássico
e cinema brasileiro também foram transformadas em gêneros cinematográficos.
Visto que os modos de representação são muitos e estão em constante mutação,
essa prática de esquematização, que nunca foi a ideal, se mostra cada vez menos
eficiente. No esquema mais geral, que se refere à ficção e ao documentário, por
exemplo, esta classificação pode originar equívocos, uma vez que, desde o
nascimento do cinema, ocorre o cruzamento entre os dois gêneros.
Recordemos, por exemplo, os operários saindo da fábrica ainda que a
pedido do diretor (Lumiére), ou o cotidiano de um esquimó mesmo que
interpretando a si mesmo (Flaherty). Ainda hoje, muitos estudantes de cinema se
perguntam se os operários estavam realmente saindo da fábrica ou encenando o
seu cotidiano, pois o próprio gênero classificatório “documentário” legitima sua
percepção como verdade. Freqüentemente, as imagens acabam reconhecidas como
autênticas por um discurso externo ao visual, deixando assim, o processo de
percepção de imagens em segundo plano.
Esse processo reflete a construção do iconoclasmo no Ocidente, a partir de
um método da verdade baseada numa lógica binária, com apenas dois valores: o
verdadeiro ou o falso. Durand, na sua obra O Imaginário (1999), demonstra que à
medida que a imagem não pode ser reduzida a um argumento “verdadeiro” ou
“falso”, passa a ser desvalorizada, incerta e ambígua, tornando-se impossível extrair
uma única proposta. E aí, justamente, está o interesse do documentário, que reside
45
muitas vezes, no fato de apresentar aspectos desconhecidos da realidade, cuja
compreensão depende mais do imaginário do que do real (AUMONT, 2002).
Em uma parcela de espectadores de cinema, freqüentemente ocorre a
prática do exercício de descoberta do que é falso e do que é verdadeiro nos filmes,
como se estivessem a cobrar uma dívida. Quando se trata da exibição de
documentários, a revelação da verdade sobre um tema se torna o principal critério
de avaliação de um filme. Aqui nos deparamos com a questão que diz respeito à
relação das imagens com o real e a questão da “credibilidade” das imagens.
Mas, segundo Menezes (2003, p.559), “o pressuposto de uma ‘realidade’ do
filme associada à ‘realidade’ da coisa filmada não é possível de ser aniquilado por
uma mera operação intelectual”. É necessário buscar a construção de sentido que
se estabelece nas relações do espectador com o filme. Tratam-se de ligações
constituídas com a história, com a articulação de espaços, tempos, imagens e sons.
Uma vez que o espectador não pode se expressar em atos, interioriza sua
participação afetiva. A construção do imaginário surge a partir dessas relações,
pressupondo um deslocamento que irá resultar no processo que Morin (1991, p.146)
chamou de projeção–identificação. Na projeção, ocorre o reconhecimento de si no
outro, ou seja, atribuímos ao outro, nossas tendências e, na identificação, em vez de
se projetar no mundo, o sujeito absorve-o.
2.3
DOCUMENTÁRIO FICCIONAL OU FICÇÃO DOCUMENTAL?
O documentário tornou-se cada vez mais complexo, reflexivo e auto–
referente, incorporando ao filme, tanto um discurso sobre seu objeto de eleição
como sobre a própria arte de filmá-lo, tornando-se uma espécie de making of dele
mesmo (LABAKI, 2005, p.181). Segundo Ramos (2001, p.3), a reflexividade surge
como saída ética, ao mostrar o processo de representação. Ao questioná-lo, abala a
suposição de que a competência de um documentário está na sua capacidade de
capturar a realidade.
46
Labaki (2003, p.143) aponta um ciclo especial realizado em Paris, em 2004,
sobre documentários produzidos por cineastas predominantemente ligados ao
universo da ficção. A idéia era lembrar como o trânsito entre os dois gêneros marcou
a história do cinema, não apenas no interior dos próprios filmes, mas também na
filmografia de grandes mestres que realizaram documentários, como Martin
Scorsese, Spike Lee, Oliver Stone, Roberto Rosselini e Win Wenders.
No Brasil, também a geração do Cinema Novo, que marcou os anos 60,
manteve uma relação estreita com a produção de documentários. Com uma postura
crítica diante da realidade brasileira, acreditavam na possibilidade de transformação
social através do cinema. Dois documentários são considerados precursores do
Cinema Novo. São eles: Arraial do Cabo (Paulo Cezar Saraceni, 1959) e Aruanda
(Linduarte Noronha, 1960). Ambos tratam da vida social de comunidades na região
Nordeste do Brasil. A falta de condições e recursos financeiros, marcada pela
própria situação de subdesenvolvimento do país, foi incorporada como elemento de
uma linguagem caracterizada como “estética da fome” (ALTAFINI, 1999, p.12),
através de filmes, como por exemplo, Cinco vezes favela (1962), que retrata os
contrastes sociais através do cotidiano das favelas.
O modelo de pesquisa dos documentaristas tem fertilizado vários destaques
da atual produção de longas ficcionais no Brasil (LABAKI, 2003, p.280).
Notadamente, os filmes Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e Carandiru
(Hector Babenco, 2003), duas grandes bilheterias do cinema nacional, tiveram o seu
ponto de partida em livros de o-ficção. O primeiro é baseado no livro homônimo,
escrito por Paulo Lins, a partir de pesquisas de campo, realizadas no local, para a
antropóloga Alba Zaluar. Recorda-se que na sua primeira edição, havia um capítulo
do livro dedicado às entrevistas feitas por Lins, com os moradores de Cidade de
Deus, que foi retirado da edição seguinte. O segundo tem origem no livro Estação
Carandiru, escrito pelo médico Dráuzio Varela, que trabalhava com prevenção à
AIDS, junto aos presos.
Alguns cineastas se referem à crise da ficção, como Walter Salles, que afirma
que ficou difícil para a ficção, competir com a realidade. Para o cineasta Jorge
47
Furtado, atualmente ocorre uma profunda crise da ficção, que estaria encurralada
pela produção de Hollywood e pela produção televisiva. Ele constata que quatro dos
cinco filmes brasileiros mais vistos entre 1994 e 2004 têm “um na realidade”.
Carandiru e Cidade de Deus, ambos os filmes, já comentados anteriormente e
Cazuza (Sandra Werneck, 2004) e Olga (Jayme Monjardim, 2004), baseados em
fatos reais (BUTCHER, 2005, p.85).
Além dos cineastas que transitam de um gênero para o outro, existem os
realizadores que trabalham numa nova síntese desses registros. Para Labaki (2003,
p.145), reside nesta interpenetração dos discursos do documentário e da ficção, um
dos movimentos, atualmente, mais fascinantes do cinema.
Em O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2003), todas as
partes estão abertamente conscientes do jogo de encenação e do esforço de
construir uma imagem da vida desse presídio. Os presos se projetam para além de
sua própria figura. Tomam as rédeas do espaço em cena, ao filmarem as próprias
celas e as condições de vida no presídio. Neste caso, “a distinção entre o que a
personagem subjetivamente e o que a câmera objetivamente perde os
contornos, se esvanece, com a câmera vindo adquirir uma presença subjetiva, uma
visão interior, assim adentrando numa relação de simulação com a maneira de ver
da personagem” (TEIXEIRA, 2003, p.44). A cena inicial exibe a implosão, ao inverso,
de alguns pavilhões do presídio do Carandiru. O objetivo é mostrar a reconstrução
do lugar, através das filmagens que ocorreram sete meses antes desta implosão.
Aqui, fica caracterizado mais um exemplo do caráter construtivo do filme.
No livro Documentário no Brasil, Teixeira (2003, p.18) afirma que o retorno
da ficção como parte integrante dos documentários “é gerador de certo
estranhamento para quem se habituou, como espectador, a uma visão exclusivista
desses domínios”. a instauração de uma nova sensibilidade documental,
marcada por um jogo de indiscernibilidade entre realidade e ficção, que
isoladamente, não conseguem dar conta do sentido oriundo dos filmes.
Outro exemplo deste movimento pode ser dado pelo filme Tarnation
(Jonathan Caouette, 2004). Trata-se de um documentário sobre a vida familiar do
48
próprio diretor, no qual utilizou gravações feitas por ele, desde os onze anos de
idade. Nestas imagens, ele conversa com a câmera, encarna personagens, encena
pequenas histórias. Na montagem do longa, percebemos a parte documental
mesclada com partes ficcionais, a tal ponto de se confundirem, estabelecendo
relações de quase simultaneidade. A ficção e o documentário se complementam em
uma alternância de narrativas para a compreensão da personalidade de Jonathan
Caouette.
Esta complexidade de fenômenos também pode ser estudada no
movimento oposto, quando a ficção encarna um tom documental. Em Amores
(1997), Separações (2002) e Feminices (2004), “Domingos de Oliveira esgarça mais
e mais os limites entre o documental e o fictício, entre o registro e a encenação”
(CAETANO, 2005, p.96). Situação semelhante pode ser observada no filme Cão
sem dono (Beto Brant, 2007), com locação em Porto Alegre. A narrativa fílmica
mantém o ritmo de vida da personagem principal. Uma vida e, portanto, uma
narrativa, até certo ponto, sem grandes acontecimentos, monótona, rotineira, com
diálogos e situações do dia-a-dia que, aparentemente, não contribuem para qualquer
tipo de suspense ou problema que precise ser solucionado. Foram utilizados atores
desconhecidos pelo grande público e diálogos naturalistas. Em ambos os exemplos,
o universo diegético é embasado pelo sistema do verossímil, em que a construção, o
artifício e o arbitrário são apagados em benefício de uma naturalidade aparente
(AUMONT, 2002).
Ao problematizar a questão do documentário, Francisco Elinaldo Teixeira
(2004) caracteriza três referências teóricas que colaboraram para compor a
problemática do documentário brasileiro a partir dos anos 60. Os textos de Arthur
Omar, Jean-Claude Bernardet e Silvio Da-Rin
10
compõem três modelos que evocam
o par realidade–ficção e, neste sentido, estas análises colocam em foco, “as
categorias epistemológicas de sujeito e objeto (quem sabe e quem é alvo de saber),
mais que a interrogação sobre as convenções do objetivo (o que a mera vê) e
subjetivo (o que o personagem vê)” (TEIXEIRA, 2004, p.41).
10
OMAR, Arthur. O antidocumentário, provisoriamente. Revista de Cultura Vozes, n. 6, ago. 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DA-RIN, Silvio. Autoreflexividade no documentário. Rio de Janeiro: Cinemais, n. 8, nov. /dez. 1997.
49
Para Omar, a realidade documental é apresentada como ficção, uma vez
que utiliza dispositivos narrativos ficcionais. Como na ficção, tudo pode ser dado
como espetáculo, contudo, não deixa de haver uma vontade de verdade comum a
ambas. Na noção de antidocumentário, parte-se da linguagem do documentário para
invertê-la, numa nova combinação de elementos. o questionamento do papel do
documentário como produtor de conhecimento.
Bernardet (1985) parte da idéia de documentário enquanto espelho do real,
constituído como discurso e elaboração da realidade. A voz do documentarista
emerge para o primeiro plano, com o documentário assumindo-se plenamente como
discurso construído no real. O cineasta torna-se o sujeito (TEIXEIRA, 2004).
o modelo de Da-Rin coloca em foco os processos de representação
documental. Ao utilizar a metáfora do espelho que reflete o mundo “real”, afirma que
este está partido. Aqui é adotado o “modelo reflexivo de representação” (TEIXEIRA,
2004, p.38), mostrando a obra como produto, remetendo a uma instância produtora
e desvendando o seu processo de produção. Na tradição do documentário, estaria a
presença de uma crença em algum tipo de verdade, mas que não pode ser
confundida com a impressão de que o que se na tela estaria completamente livre
de um processo de construção de sentido.
Omar, Da–Rin e Bernardet se mantêm no registro da oposição entre real e
fictício e suas correlações. Diante disso, a proposição da indiscernibilidade entre
realidade e ficção, operada por um discurso indireto livre que afeta ambas, como
veremos adiante, “raramente se fez repercutir nessas abordagens, ao contrário da
produção documental em si” (TEIXEIRA, 2004, p.41).
A definição de documentário torna-se relativa ou comparativa, definindo-se
pelo contraste com o filme de ficção. No texto O que é documentário? Fernão
Ramos (2000, p.2), ao discorrer sobre o cinema não-ficcional, examina a abordagem
de dois eixos constituídos pelos campos pós-estruturalista e analítico-cognitivista. O
primeiro traz a questão da reflexividade do discurso cinematográfico. Frisa a
subjetividade que sustenta a representação. É um campo diluído de qualquer
especificidade e a enunciação das estruturas de linguagem envolvidas no
50
movimento da representação, ocupa o horizonte indistinto da ficção e não-ficção.
Transfere-se para a presença da dimensão discursiva, a evidência da dimensão
ficcional do documentário, ou seja, a presença do discurso pressupõe a presença da
ficção.
Segundo Nichols (2005, p.87), o exercício da reflexividade propicia a
acreditar em determinado documentário como uma representação que,
deliberadamente, abala a credibilidade, questionando a habitual disposição de crer
nos documentários, provocando suspeita sobre as convenções que esses filmes
subvertem. Neste sentido, se esboça o caminho da reflexão sobre a construção da
relação entre o documentarista e as pessoas retratadas por ele.
Um exemplo desta prática está caracterizado nos documentários, Santiago
(João Moreira Salles, 2007) e Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007). No primeiro
filme, Salles explora a sua relação com o mordomo da sua família, Santiago, durante
as filmagens para um documentário. O segundo filme é composto por vários
depoimentos de diferentes mulheres. A percepção do espectador é confundida, pelo
fato de haver testemunhos idênticos dados por mais de uma pessoa e visto que não
há informação sobre quais depoimentos são verdadeiros ou encenados.
No campo analítico-cognitivista é mais clara a possibilidade de uma
definição bem mais rígida do documentário e de suas fronteiras com a ficção
(RAMOS, 2000, p.4). Recupera-se o conceito de “verdade” na representação, a
partir de enunciados lógicos. Segundo Carroll (2004, p.89), o público entretém o
conteúdo proposicional de um filme como um pensamento assertivo, reconhecendo
a intenção assertiva de seu realizador. Este conceito implica o reconhecimento, por
parte do público, de certa intenção de quem faz o filme. Na colaboração deste
entendimento, é desenvolvido o conceito de indexação. Ao escolher um filme,
geralmente já se sabe, com antecedência, se trata-se de um documentário ou de um
filme ficcional, porque assim foi indexado e com determinada classificação vem
circulando. O conhecimento é adquirido a priori. Ambas as visões trabalham com as
fronteiras da ficção e da não–ficção. Mas, este modo de categorização pode levar a
imprecisões e equívocos. Nas tabelas da Ancine (Agência Nacional de Cinema), por
exemplo, se observa que há um item denominado “gênero” e que se refere à
51
classificação dos longas-metragens em documentário ou ficção.
11
Constata-se que
vários filmes, considerados como documentários, estão catalogados como ficção,
como Babilônia 2000 (Eduardo Coutinho, 2001), 33 (Kiko Goffman, 2004) e Evandro
Teixeira (Paulo Fontenele, 2004).
2.4 A DUPLA NATUREZA DA IMAGEM
Na abordagem da “representação do outro” na não-ficção, Nichols (2005,
p.31) afirma a caracterização das pessoas retratadas como “atores sociais”, que
“continuam a levar a vida mais ou menos como fariam sem a presença da mera”.
Seu valor não residiria nas formas pelas quais disfarçam ou transformam o
comportamento e personalidade habituais, mas nas formas pelas quais
comportamento e personalidade servem às necessidades do cineasta. Para Nichols
(2005), o direito do diretor a uma performance é um “direito” que, se exercido,
ameaça a atmosfera de autenticidade que cerca o ator social. Pois, neste caso, seria
introduzido um elemento de ficção no processo do documentário, resultante da
mudança de comportamento e de personalidade das pessoas, causando uma forma
de distorção e demonstrando como o ato de filmar altera a realidade que pretende
representar.
Neste ponto, se diverge da posição de Nichols, pois se constata que o ato
de filmar, não altera, como cria uma nova realidade. Além disso, se trata do
instante em que diretor e personagem coexistem. Nesta troca de experiências,
ambos se modificam. Mesmo mudando de comportamento, a pessoa não deixa de
ser ela mesma. E uma possível alteração, neste sentido, não destitui a pessoa da
sua personalidade, mas ao contrário, só vem a confirmá-la.
Segundo Teixeira (2003, p.41), é com a transformação dos dados da
relação entre subjetivo e objetivo, que uma ruptura se operou a partir do Cinema
Verdade, não entre ficção e realidade, mas num novo regime narrativo que as afeta.
11
O item “gênero”, que consta nas tabelas, é determinado pelo próprio diretor de cada filme, no
momento de inscrição do longa na Agência Nacional de Cinema.
52
Trata-se da dupla natureza do cinema que o torna objetivo e subjetivo ao mesmo
tempo, de tal forma a indissociar tais elementos.
Neste âmbito, Deleuze (1990) recorre à potência do falso, inseparável de
uma irredutível multiplicidade e contrário à forma do verdadeiro que é unificante.
Trata-se de uma vontade de potência que se põe em ato, de uma relação entre
forças e do poder de afetar e ser afetado. Inicialmente, são considerados dois
regimes para se pensar a natureza da imagem, denominados de imagem-movimento
e imagem-tempo.
Na imagem-movimento, a percepção do tempo se dá indiretamente, no
espaço, pelo movimento físico e pela ação. É esta que rege o discurso, através da
dinâmica da montagem, que liga uma imagem à outra.
Em A imagem-tempo, Deleuze (1990, p.171) menciona o regime da imagem
denominado de cristalino. Trata-se da descrição que constitui o objeto, substituindo-
o ou criando-o. Neste sistema, o real e o imaginário “trocam seus papéis e se tornam
indiscerníveis”, colocando em crise a verdade, que aqui, não se refere ao conteúdo
empírico, mas à forma, “à força pura do tempo”. Passado e presente não são mais
dois momentos sucessivos, mas tornam-se dois elementos que coexistem. Neste
instante, forma-se a imagem-tempo direta, da qual o movimento deriva, esboçando-
se um tempo não–cronológico, que produz movimentos essencialmente falsos, isto
é, ocorre a percepção direta do tempo, independentemente do movimento no
espaço. No decurso deste processo, surge um novo estatuto da narração, “que
cessa de ser verídica, de aspirar ao verdadeiro, para ser essencialmente falsificante”
(DELEUZE, 1990, p.177).
No cinema moderno
12
, a imagem vale por ela mesma, enquanto história ou
narrativa, com maior possibilidade da contemplação do cotidiano e da banalidade. A
12
O cinema moderno surge por volta do final da Segunda Guerra Mundial, com o advento do neo-
realismo, que marca o momento de transição do regime da imagem-movimento para a imagem-
tempo.
53
montagem não desaparece, mas muda de sentido, porque não está mais
subordinada ao movimento, mas ao tempo. Não se trata de cada um com a sua
verdade, mas da concepção de uma potência do falso que substitui a forma do
verdadeiro, pois instaura a simultaneidade de presentes e a coexistência de
passados não necessariamente verdadeiros.
Esta sensibilidade documental pode ser exemplificada na construção da
personagem Sandro, no filme Ônibus 174. O começo do filme apresenta uma
panorâmica das favelas no Rio de Janeiro. Na continuidade das imagens, no mesmo
plano–seqüência, é percebido o contraste da desigualdade social, ao ser exibida
uma mudança na paisagem urbana, com avenidas asfaltadas, edifícios, mansões
com piscinas, etc.. A cena é marcada por uma forte música instrumental. A câmera
refaz o percurso das favelas ao bairro Jardim Botânico, metaforicamente
simbolizando a trajeria de Sandro, marcada pelo anonimato e que também tem
início em uma favela, para terminar no mesmo bairro.
São alternados os momentos do dia do seqüestro do ônibus, gravados pelas
câmeras de televisão das várias emissoras que se encontravam. As imagens
mostram uma figura aterrorizante, de arma em punho, ameaçando as vítimas. Nos
depoimentos posteriores das pessoas que se encontravam no ônibus, naquele dia,
a confirmação de que Sandro tinha consciência da presença das meras e
dirigia a atuação das vítimas. Pedia que elas gritassem e fingissem estar com medo.
E em certo momento, ele clama: pode filmar prá todo Brasil olhar mesmo!”. Estas
imagens são intercaladas com imagens de Sandro, ainda criança, que assistiu ao
assassinato da mãe, sobreviveu à chacina da Candelária, freqüentou instituições
para menores e as piores cadeias do Rio de Janeiro. Segundo Deleuze (1990,
p.183), não se trata da apreensão da identidade de uma personagem, real ou
fictícia, através de seus aspectos objetivos e subjetivos, mas da descoberta do devir
da personagem real, quando ela própria se põe a ficcionar, contribuindo assim, para
a sua própria invenção.
Aqui, ao contrário da confirmação de identidades dadas e situadas de
antemão, se aponta o ato de fabulação:
54
o fundamental, aí, é essa operação de contínua passagem de um
estado a outro, do personagem real aos papéis de sua fabulação e vice-
versa, na qual o personagem deixa de ser real ou fictício, deixa de ser visto
objetivamente ou de ver subjetivamente, para vencer ‘passagens e
fronteiras’, na medida em que inventa enquanto personagem real e torna-
se tão mais real quanto melhor inventou (TEIXEIRA, 2004, p.50).
A situação do cerco ao ônibus até seu conseqüente desenlace é marcada
pela presença das câmeras de TV, o que trouxe para as figuras envolvidas
(seqüestrador, reféns ou policiais), a necessidade de construir para si mesmas,
imagens que pudessem ser veiculadas pela mídia. O cineasta opera de forma a
estruturar seu filme como a construção de uma performance e de uma personagem
(CAETANO, 2005, p.128).
A morte da refém, transmitida ao vivo, é marcada pela circunstância da
tomada. Expressão utilizada por Fernão Pessoa Ramos (2001, p.8) para definir “o
conjunto de ações ou situações que cercam e dão forma ao momento em que a
câmera capta o que lhe é exterior, ou, em outras palavras, em que o mundo deixa a
sua marca, seu índice”. Ressalta-se que esta circunstância não é exclusiva do
cinema não–ficcional. Não é negada a dimensão enunciativa de discurso desta
narrativa. O diferencial estilístico se encontra na noção de imprevisibilidade, própria
à circunstância da tomada e a sua relação com a circunstância de mundo que a
determina.
Ônibus 174
Figura 1: Seqüestro da refém
55
Ramos (2005, p.161) observa que uma das particularidades do cinema
documentário está na “forte homogeneidade circunstancial entre espaço dentro e
fora-de-campo”. Esta característica pode ser identificada, por exemplo, em uma
determinada imagem, na qual se identifica, claramente, a presença do sujeito que
sustenta a câmera. É o caso de uma seqüência, em O cárcere e a rua, em que a
câmera segue uma detenta, em direção à saída do presídio. No portão, esta câmera
é impedida de continuar filmando, por um policial, que faz um gesto em sua direção,
com o intuito de retirá-la do local. Revela-se o ponto de vista de quem filma, pois a
imagem é bruscamente deslocada da ação.
Condizente com esta idéia se revela uma das últimas cenas do filme Fala tu.
A equipe de filmagem retorna, oito meses depois do término das filmagens. E se
depara com Macarrão, uma das personagens que, anteriormente casado, agora está
viúvo. A sogra dele cobra do diretor, a ausência da equipe durante o parto da filha,
que ocasionou a sua morte. Ela acredita que a presença da câmera no hospital, teria
evitado a tragédia. Mas vale ressaltar que em nenhum momento, a palavra morte é
pronunciada. O óbito da mulher é somente sugerido. O fato inesperado e o desabafo
da sogra ocorrem no ato da filmagem, sem roteiro prévio, causando espanto e
comoção no espectador, familiarizado com a esposa grávida de Macarrão, que
participou ativamente do filme, ao lado do marido. A sogra, desconhecida do público,
intervém junto ao diretor, questionando sua postura. Para ela, a presença da câmera
poderia influenciar diretamente na circunstância pela qual passava a filha. A situação
não está dada de antemão, mas constitui-se no devir. Diante disso, se a equipe não
estivesse no local, oito meses depois de concluídas as filmagens, a percepção sobre
o documentário, possivelmente, seria diferente. Pois neste momento, diretor,
espectador e personagem são surpreendidos com o episódio.
No âmbito da função fabuladora, a criação da personagem real ocorre no
ato interativo deste com o cineasta, para além das identidades prontas e ancoradas
no presente. “Ressignifica-se, com isso, a visão recorrente sobre as facilidades do
documentário como um domínio no qual sabemos quem somos e quem filmamos”
(TEIXEIRA, 2004, p.66). Deve-se levar em conta a complexidade da relação que
envolve quem filma e quem é filmado, visto que a imagem do outro será construída a
partir dessa relação.
56
Neste processo, a caracterização dos procedimentos de filmagem esboça o
caminho percorrido pelo cineasta e seu filme. Segundo João Moreira Salles
13
existem coisas que acontecem no ato da filmagem, e de certa forma, podem
surpreender. Mas, apesar das histórias das pessoas não serem previamente
roteirizadas, pode-se ter uma idéia do que se vai ou quer encontrar, a partir do modo
de produção.
O filme O cárcere e a rua acompanha o processo de adaptação das
detentas, seja na saída ou na entrada do presídio. Foram entrevistadas 100 internas
e escolhidas três. Cláudia, por ser a mais antiga, Betânia, prestes a sair e Daniela,
recém chegada. Foram acompanhadas pela equipe de filmagem durante três anos.
Nota-se o empenho em mostrar as dificuldades e os dramas pessoais das
personagens e como elas lidam com a adversidade. No caso do filme Fala Tu, o
diretor entrevistou 67 pessoas, durante sete meses de pesquisa. Foram feitas 72
horas de gravação, em seis meses de filmagem, que foram transformados em 90
minutos de filme. Segundo o produtor Nathaniel Leclery, a questão norteadora para
a decisão de quem seria mostrado foi a escolha de quem teria uma “relação bacana
com a câmera”
14
. Aqui, recorre-se ao princípio da visualidade, caracterizado por
Esther Hamburger (2007, p.127), segundo o qual, o que será mostrado é definido a
partir de “critérios diferentes que definem o que merece e o que não merece ganhar
forma no domínio da expressão visual”.
Segundo Machado da Silva (2003, p.8), todo imaginário é uma narrativa. No
cinema, esta idéia de narrativa fílmica é associada ao modo de ver e de como esta
narrativa é realizada. Observa-se a convergência de um padrão de documentário,
nos cinco filmes analisados. Manifesta-se a “mundanidade” (MAFFESOLI, 2003,
p.129), na aproximação com a vida cotidiana das personagens e das suas relações.
No modo de “dar voz ao outro”, tanto no que se refere à temática como em relação
às preferências estéticas, remetendo a um conceito bastante difundido na obra de
Nichols (2007) que se refere à “voz no documentário” e relacionando-se à lógica
informativa que organiza um filme. Seja na escolha das personagens ou do
13
Informação retirada do DVD do filme Notícias de uma guerra particular.
14
Informações retiradas do DVD do filme Fala Tu.
57
enquadramento, na edição ou nos objetivos propostos, presentes na decisão de
filmar.
A voz está ligada ao estilo, à maneira pela qual um filme molda seu tema e
o desenrolar da trama ou do argumento, de diferentes formas, transmitindo assim,
significados em vários níveis. A elaboração de uma personagem é dada, não só pela
performance e pelo que ela apresenta e diz, mas pela maneira como é mostrada a
partir das técnicas de elaboração cinematográfica, como enquadramento, iluminação
e composição das cenas.
Os cinco documentários analisados inspiram-se na referência ao realismo
no cinema, priorizando a atuação com naturalidade, direção verossímil, etc.,
bastante pertinente no que concerne ao documentário. Merleau-Ponty (1991, p.114)
compara a elaboração de um filme a um romance ou a uma poesia, no sentido de
que ambos os exemplos, não possuem a simples função de dar significação a fatos,
idéias ou coisas, “pois, se assim, fosse, o poema poderia ser exatamente traduzido
em prosa e o romance em nada perderia sendo resumido”. As idéias e os fatos são
apenas os materiais da arte, que consiste na escolha do que se diz e daquilo sobre
o que se cala dentro da seleção de perspectivas e no tempo variável da narrativa.
Neste âmbito, a reprodução da realidade é da ordem do imaginário.
Estratégia que se converteu na retirada da voz off de cena. Os documentários são
produzidos com a realização de inúmeras entrevistas e grande número de horas de
gravação, na busca do objetivo proposto. Fundamentam-se no propósito de intervir o
mínimo possível no comportamento e na atitude das pessoas retratadas. Mas, como
o homem está condenado a agir mesmo na imobilidade, a interferência, ainda que
implícita, é inevitável. Trata-se de uma escolha ética, como defende o cineasta João
Moreira Salles. Mas refere-se também, a uma opção estética, dentre as inúmeras
formas de se contar uma história.
Recorda-se aqui, um curta-metragem do cineasta Jorge Furtado, intitulado
Esta não é sua vida (1991). A estratégia do diretor foi a escolha aleatória de uma
casa, em um bairro de periferia, na cidade de Porto Alegre. Ele registrou a história
de vida de uma mulher e sua família, sem nenhuma informação prévia sobre o que
58
iria encontrar. Em outro curta-metragem, Ilha das flores (1989), explorou a voz off,
de uma maneira absolutamente criativa, ao realizar uma associação de idéias entre
elementos que, aparentemente, não possuíam relação, refazendo o trajeto que inicia
numa plantação de tomates, para terminar em um depósito de lixo, freqüentado por
pessoas, que dali retiram seu alimento. Estes dois exemplos remetem ao valor
estético da menor coisa percebida. “Trata-se do privilégio da arte em demonstrar
como qualquer coisa passa a ter significado” (MERLEAU-PONTY, 1991, p.115). No
primeiro filme, não houve uma pesquisa anterior para a decisão de quem seria
mostrado. E o segundo é dominado pela voz off. Os dois procedimentos vão em
direção oposta ao que se observa nos documentários em geral e, especialmente,
nos cinco filmes eleitos para esta pesquisa.
No texto A dificuldade do documentário, João Moreira Salles (2006)
constata que o documentário não trata da conseqüência de um tema, mas revela a
forma de se relacionar com este tema. Para o cineasta, todo documentário encerra
duas naturezas distintas: simultaneamente, é o registro de algo que aconteceu no
mundo e também é narrativa, construída a partir do que foi registrado. Partindo desta
idéia, a oscilação entre documento e representação constituiria o verdadeiro
problema do documentário, cujo paradoxo reside no fato de que “os personagens
são muitos, mas a pessoa filmada, não obstante suas contradições, é uma só”, pelo
fato de possuir uma vida independente do filme (SALLES, 2006, p.128). Por isso,
sua natureza não seria estética, nem epistemológica, mas ética, visto que quando
uma câmera é dirigida para alguém, se estabelece um exercício de poder. Neste
sentido, o cinema documental vem tentando encontrar modos de narrar que revelem,
desde o primeiro contato, a natureza dessa relação. São filmes sobre encontros, que
tentam transformar a fórmula “eu falo sobre ele para nós em eu e ele, falamos de
nós para vocês”. Filmes que o pretendem falar do outro, mas do encontro com o
outro.
Esta concepção reflete a responsabilidade ética do diretor para com seu
personagem, cuja conseqüência seria o seu afastamento da ficção. Em contraponto
a este entendimento, aponta-se para a perspectiva da ficção deixar de ser um
modelo para se tornar uma potência. Desse modo, ocorre a desconstrução de
qualquer modelo de verdade, em direção à criação e produção de verdade.
59
Nos exemplos apresentados anteriormente, personagem e cineasta,
subjetivo e objetivo se intercedem num constante devir, ativando o ato da fabulação.
Como o personagem é real, ele afirma a ficção como potência e não como modelo.
E ao fabular, ele se afirma ainda mais como real. Ao tornar-se sempre outro, ele não
é mais separável desse devir. Diante disso, perde sentido a alternativa entre o real e
a ficção.
Em O cárcere e a rua, as cenas iniciais exibem Cláudia, uma das detentas,
olhando através da janela do ônibus e logo a seguir, caminhando pelas ruas do
centro de Porto Alegre. Esta circunstância é repetida nas cenas finais e a
compreensão do momento torna-se outra, pois já se conhece a personagem e a sua
motivação. É a primeira vez que ela sai às ruas, após 27 anos confinada no Presídio
Feminino Madre Pelletier. Ela entra em uma loja para comprar uma tinta de cabelo.
Ao deixar o local, comenta a curiosidade das vendedoras, que ao perceberem a
presença da câmera seguindo seus passos, perguntam: quem é ela?”. Cláudia
responde: ah, se elas soubessem...”. Este comentário revela a apreensão da
personagem com o preconceito que recai sobre ex-presidiários. Neste contexto, ela
se dirige à equipe de filmagem e conclui: foi bom sair com vocês, eu ia enfrentar
isso sozinha”. Ao longo da seqüência, fica evidente o envolvimento das pessoas que
realizam o filme e a mediação da câmera, no processo pelo qual passa a
personagem. A câmera adquire, simultaneamente, uma presença objetiva e
subjetiva, intervindo na maneira de ver da personagem. Ela questiona,
constantemente, a sua condição, ao dialogar com a equipe, através da câmera que
a filma.
Segundo Hamburger (2007, p.128), a presença da câmera, marcante nos
documentários pesquisados, se esboçaria como um pedido de absolvição. No
recurso da auto-reflexividade, uma forma de escapar da diegese e avisar: “nós
estamos aqui”. Pode-se indagar porque determinada pessoa está sendo retratada e
não outra, ou seja, qual o critério de escolha de quem será mostrado? Existiria uma
metodologia da qual não se pode escapar. Na superação da posição de objeto,
estaria a busca por formas estéticas que desarticulem estereótipos.
60
Segundo Zaluar (2004, p.38), o mal que atinge o humano, tal como num
genocídio ou nos atentados aos direitos humanos, é uma concepção moderna e tem
apenas 200 anos dentro da tradição ocidental desenvolvida pelos filósofos
iluministas. Essa concepção do mal, associada a uma maneira de bloquear a
violência através do sacrifício de alguém, é o que de mais primitivo as culturas
humanas inventaram. Neste ponto, ocorre a seguinte indagação: as pessoas
mostradas não são as sacrificadas, no plano midiático? Não decorre daí, a
preocupação com a maneira de apresentá-las?
Além do caráter relacional intrínseco do próprio filme, o cineasta, quando
filma, reflete sobre os encontros que irá construir com as pessoas filmadas, a partir
da mediação com a câmera e de determinadas condições, criando-se a relação
entre ambos. Estes encontros e os modos de contato e de invenção de formas de
convivência representam objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais, se
tornando formas artísticas. De um lado, esboçam-se os acontecimentos, as ações,
os espaços e as pessoas evocadas e, de outro, o caráter das formas empregadas
nessa evocação (BOURRIAUD, 2009, p.40). Se lida constantemente com clichês,
mas estes recuperam vida nas mãos dos cineastas, no respeito com o qual lidam
com os seres humanos apresentados na tela. A questão está na marca deixada
pelos filmes quando observados em conjunto.
As identidades não estão dadas, mas vão sendo constituídas no ato da
fabulação, “através do qual cineasta e personagem real inventam e se intercedem
processos de subjetivação em suas contínuas metamorfoses, seu antes e depois,
num devir incessante para além do próprio vivido” (TEIXEIRA, 2004, p.50). As
identidades fixas são substituídas pelas identificações.
Não se pode perder o fato do imaginário constituir o conector obrigatório
pelo qual forma-se qualquer representação humana, pois todo pensamento passa
por articulações simbólicas. Neste sentido, muitas verdades escapam à filtragem
lógica do método para se revelar por uma intuição (DURAND, 1999, p.41).
A dicotomia ficção e realidade no campo da imagem foi amplamente
debatida por diversos autores. Mas houve a necessidade de abordá-la, porque além
61
de continuar provocando controvérsia, parte-se desta idéia para ultrapassá-la,
através do princípio de indiscernibilidade. Os documentários selecionados para esta
pesquisa tratam do cotidiano precário das personagens, marcado por um estado de
violência. A verdade dos seus depoimentos e do que é mostrado, não se encontra
necessariamente no que está sendo contado, mas no próprio ato de contar, na
forma como ela se expressa. “Uma fabulação extremamente fértil que nos faz
experimentar a possibilidade de invenção e a força ficcional existente em todos nós”
(TEIXEIRA, 2004, p.193). Na análise do cinema narrativo, documentário ou ficção, é
preciso atentar para o fato de que os filmes não são a expressão transparente da
realidade social. Neste sentido, está o tipo de análise que não se limita apenas ao
cinema, mas pede uma leitura aprofundada da própria história social, a partir da
relação entre a organização cinematográfica e a realidade social.
2.5 A IMPRESSÃO DE REALIDADE
Visto que o cinema, assim como outros meios de comunicação, como
televisão, rádio e Internet, é uma poderosa tecnologia do imaginário (MACHADO DA
SILVA, 2003, p.8), deve-se considerar o mecanismo cinematográfico, na busca da
compreensão do imaginário da violência, a partir da caracterização do ato
antropológico da participação e do funcionamento da subjetividade na produção de
imagens.
À imagem cinematográfica, a que falta a força probatória da realidade
prática, detém um poder afetivo que justifica o espetáculo, acrescida, do que Morin
(1991, p.153) intitula de “encanto da imagem”. A construção do imaginário da
violência se dá sob uma realidade afetiva e está bastante vinculada às condições de
vida e às limitações das pessoas retratadas em um clima de sobrevivência. O mundo
do cárcere, assim como o dos tribunais e o da periferia, é um domínio fechado ao
qual se tem pouco acesso. Esferas que começaram a ser exploradas no cinema. Os
espaços apresentados são físicos, mas também subjetivos, que agregam
62
maneiras de viver, de pensar e se comportar. Elementos cercados de uma carga de
dramaticidade proporcionada pelo próprio mecanismo cinematográfico. Durante a
projeção, o “outro”, incorporado a um valor estético, ocupa o espectador.
Na relação que se esboça entre cinema e violência, o que a personagem
apresenta de “diferente” torna-se um atrativo, pois o desconhecido sempre desperta
algum tipo de reação, seja o distanciamento ou a aproximação. Freqüentemente
classificado como outro, o estranho tem sido, o grande objeto de desejo de
documentaristas, mundo afora (SELIGMAN, 2008, p.14). Assim, diferentes
gradações podem ser estabelecidas nas relações de alteridade entre cineasta,
personagem e espectador, pois todos nós, dependendo da ocasião, da localização e
dos nossos posicionamentos, podemos nos tornar “outro”.
Parte-se da noção de projeção–identificação que está na origem da
percepção cinematográfica, desenvolvida por Edgar Morin, em 1955, no texto A alma
do cinema, e posteriormente, abordada na obra de Christian Metz. Segundo Morin
(1991, p.165), a participação afetiva é concebida como “estado genético e
fundamento estrutural do cinema”. Na projeção, atribuímos a alguém, nossas
próprias tendências e características e na identificação, o sujeito, “em vez de se
projetar no mundo, absorve-o” (MORIN, 1991, p.146). Mas este mecanismo não é
um atributo exclusivo do cinema, visto que também desempenha o seu papel na vida
cotidiana. Logo, as nossas projeções–identificações referentes à vida real, entram
em jogo, quando se identificam as imagens da tela com a realidade vivida.
Na base de qualquer ficção existe a relação dialética entre uma
instância real e uma instância imaginária. Existe um equilíbrio que se
estabelece entre estes dois pólos e, por conseguinte, a gradação exata do
regime de crença adotado pelo espectador (METZ, 1980, p.79).
Este paradoxo pode ser observado na ocorrência simultânea da solidão e
comunhão nas salas de cinema. Para esta situação, Morin (1991, p.156) utilizou a
expressão “comunidade anônima da obscuridade”. Quando se está, ao mesmo
tempo, isolado e em grupo: duas condições contraditórias e complementares. “No
concreto das práticas cotidianas, o paradoxo alimenta os imaginários. Se Debord
no espetáculo, a morte da ação, com a substituição do ator pelo espectador,
63
privilegiando a contemplação à ação, Maffesoli enfatiza a pujança da contemplação
como forma de ação passiva” (MACHADO DA SILVA, 2003, p.21). Também se
observa o paradoxo na tela, no fato de se tratar da construção de um imaginário da
realidade fílmica e na sua presença-ausência e não da própria realidade.
Sob este aspecto, reside um dos atrativos do documentário. O que é
apresentado não está mais ali, em virtude da presença–ausência da imagem. Mas,
ao mesmo tempo, o que é exibido, em algum momento ocorreu, com as pessoas
apresentadas na tela. Diante disso, muitos espectadores tendem a ver os
documentários como a própria realidade. Segundo Machado da Silva (2003, p.32),
“a arte vive justamente da ambigüidade. Persiste, contudo, a expectativa da
classificação pura. Da decifração total”. Eterno dilema para a mesma questão: afinal,
o que se vê na tela, é verdade ou não?
Ao afirmar que todo filme é um filme de ficção, Metz (1980, p.86) se refere
precisamente à questão da presença-ausência. Na carência em que se baseia todo
o dispositivo, a partir da ausência do objeto que é substituído pelo seu reflexo e, ao
mesmo tempo, no procedimento que consiste em fazer esquecer essa ausência,
visto que um significante objetivamente real é negado em nome de um significado
imaginário, mas psicologicamente real. Logo, uma tendência para perceber como
real, o representado e não o representante. O equipamento cinematográfico é a
instância graças à qual, o imaginário se torna simbólico, a partir de um significante
específico e instituído, visto que há uma articulação entre o imaginário e as feições
do significante.
A concepção de Metz (1980, p.40) de que o significante fílmico é tão
indicativo como o seu significado, no que concerne às significações latentes do filme,
converge para a importância da análise fílmica. Torna-se necessário recorrer a este
expediente, pois caso contrário, não se estará tratando do filme propriamente dito e
se estará, apenas, examinando temas como a violência, por exemplo, a partir dos
filmes e não nos próprios filmes. Como ocorre em áreas do conhecimento, como a
psicologia ou o direito, nas quais, muitas vezes, a estratégia de discussão de
determinadas matérias ocorrem a partir de referências fílmicas.
64
Assim, “o significante cinematográfico não pode ser encarado com o
estatuto de veículo neutro e transparente ao serviço imediato de um significado
manifesto só ele importante, e, pelo contrário, tende a inscrever o seu próprio jogo, a
encarregar-se de uma parte cada vez mais importante da significação de conjunto do
filme” (METZ, 1980, p.42). Neste sentido, recorre-se a Morin, que evoca as técnicas
do cinema, como provocações, acelerações e intensificações da projeção-
identificação, através de um esquema intitulado Técnicas de excitação da
participação afetiva, propondo o estudo dos procedimentos adotados na elaboração
de filmes, como iluminação, ângulos de filmagem, mobilidade da mera, sucessão
de planos, etc. para compreender a subjetividade que atua na relação do espectador
com o filme. Fundamentos que serão bastante úteis no decurso da pesquisa, para o
estudo dos elementos, que em conjunto, contribuem para a formação de um
imaginário da violência nos filmes em questão.
Segundo Metz (1980, p.122), a capacidade de ficção não se refere apenas à
capacidade de inventar ficções, de construir histórias, de elaborar a diegese, mas é,
antes de tudo “a existência historicamente constituída, e muito mais generalizada, de
um regime de funcionamento psíquico socialmente regulado, que se chama
precisamente ficção. Antes de ser uma arte, a ficção é um fato”. Sob este aspecto, a
afirmação de que todo filme é um filme de ficção, não é contraditória, quando nos
referimos ao documentário. Da mesma forma, a ocorrência do duplo reforço da
função perceptiva, através do mecanismo cinematográfico, que simultaneamente,
proporciona a impressão de realidade, a partir dos signos fornecidos pelo material
fílmico e a situação de imobilidade que o predispõe interiormente, a receber o filme.
As cnicas do cinema são provocações, acelerações e intensificações da
projeção–identificação (MORIN, 1991, p.157). Podem ocorrer através da fotografia,
dos ângulos e enquadramentos, como foi visto anteriormente. Neste contexto, os
realizadores podem confiar a outros elementos, e não apenas aos personagens, a
tarefa de exprimirem estados de alma. Como por exemplo, determinadas paisagens
ou a própria música, matéria afetiva em movimento e elemento estruturador dos
filmes estudados. Segundo Morin (1991, p.159), a música de um filme constitui “um
verdadeiro catálogo de estados de alma”. Não se trata de uma simples reprodução
65
fonográfica, pois comporta uma determinada organização interna, formada por sons,
ruídos, palavras e silêncio.
Se as fabulações cinematográficas estão dotadas dessa espécie de
credibilidade, é, simultaneamente e contraditoriamente, porque a situação psíquica
em que são recebidas comporta certos traços da realidade, do devaneio e do sonho.
No espectador de cinema, a energia psíquica, que noutras circunstâncias da vida
desperta, se teria dissipado em ações, é poupada, em direção à instância
perceptiva. Sob este aspecto, o estado fílmico se encontra em uma situação de
vigília, um pouco menos afastada do sono, assemelhando-se ao fluxo onírico. Pois o
espectador, durante a projeção, coloca-se em estado de menor alerta. O próprio ato
de ir ao cinema proporciona, de antemão, o ato de baixar as defesas do seu Eu.
Para Metz (1980, p.52), o significante do cinema é perceptivo, isto é, visual
e auditivo. Neste sentido, o característico do cinema não é o imaginário que pode
eventualmente representar, mas aquele que é, aquele que o constitui como
significante. Visto que a percepção é real, mas o percebido não é realmente o
objeto, a impressão de realidade, originada em fundamentos psicológicos,
demarcando um fenômeno com conseqüências estéticas, não pode ser estudada
apenas em comparação com a percepção corrente, mas também em relação com as
diversas espécies de percepções ficcionais, de que as principais são o sonho e o
fantasma.
No texto O cinema e a nova psicologia, Merleau-Ponty (1991, p.105)
constata que a psicologia clássica considera o campo visual como uma soma de
sensações, que teria a necessidade de fundar a unidade do campo perceptivo
através de uma operação intelectual. Esta unidade seria construída, relacionando-se
à inteligência e à memória, em função da percepção analítica, que nos propicia o
valor absoluto dos elementos isolados. Neste caso, seria necessário extrair a
significação, a partir de signos dados. Merleau-Ponty (1991) refuta esta formulação e
aponta para a percepção das formas, não se tratando de uma soma de dados
visuais, táteis ou auditivos. A percepção se de modo indiviso, através da
captação de uma estrutura única da coisa, uma maneira única de existir, que fala,
simultaneamente, a todos os sentidos. O que chega à nossa percepção, não são
66
elementos justapostos, mas conjuntos. Os signos não são distintos da sua
significação, ou, o que é sentido do que é pensado. “A percepção não pode ser
entendida como a imposição de determinado significado a determinados signos
sensíveis. Quando percebo, não imagino o mundo: ele se organiza diante de mim“
(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 107).
Levando em conta a compreensão do imaginário, as narrativas agregam
“imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que realizam o
imaginado, leituras de vida e, através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta
um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar no mundo. O imaginário
emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor”
(MACHADO DA SILVA, 2003, p.11). Em Justiça, por exemplo, há a convergência da
câmera estática, com a ausência de trilha sonora. somente os ruídos e falas
geradas nos locais de filmagem. Em Ônibus 174, a primeira cena é marcada por
uma música instrumental de forte apelo emocional, com a câmera sobrevoando uma
favela. Tratam-se de escolhas estéticas que refletem escolhas políticas.
O estado fílmico, que é marcado pela diminuição da vigilância,
aproximando-se do sono e do sonho, concatena-se ao estado onírico, mediante
afinidades e diferenças. Ambos diferenciam-se pelo “grau de transferência
perceptiva” (METZ, 1980, p.111). O primeiro proporciona a impressão de realidade,
enquanto o segundo refere-se à ilusão. A conservação desta diferença ou, pelo
contrário, seu enfraquecimento, reside no sono ou na sua ausência. As fronteiras
entre o estado fílmico e o estado onírico diminuem quando o espectador começa a
adormecer e o sonhador começa a despertar.
Como observa Metz (1980, p.116), outra distinção entre filme e sonho
refere-se ao fato do sonho responder ao desejo com mais exatidão e regularidade,
enquanto o filme se encontra em estado menos seguro, pois se vincula a
percepções verdadeiras, a partir de imagens e sons impostos do exterior, que não
podem ser moldadas de acordo com a vontade do sujeito. O estado fílmico também
é caracterizado em relação ao fantasma, a partir do devaneio, que diferentemente
do sonho, constitui-se em um estado de vigília, no qual “um pouco de desejo se
67
reconcilia com um pouco de realidade graças a um pouco de magia” (METZ, 1980,
p.139).
Por isso, o imaginário combina em si, uma certa presença e uma certa
ausência. Para Metz (1980), o filme é como um espelho, mas difere deste, no
sentido de que existe uma coisa que nunca se projeta na tela, que é o corpo do
espectador. O fato deste ter conhecido a experiência do espelho e, por
conseguinte, ser capaz de constituir um mundo de objetos, sem ele próprio ter de
nele se reconhecer primeiro, é o que torna possível a ausência do espectador na
tela. Metz (1980, p.56) indaga: com quem se identifica o espectador durante a
projeção do filme?
O espectador tem a possibilidade de se identificar com a personagem, mas
é necessário que haja uma, o que faz que isto, apenas seja válido para o filme
narrativo-representativo, e não para a constituição psicanalítica do significante do
cinema. Para Metz (1980, p.57), a identificação com a forma humana que surge no
écran, no momento preciso em que se efetua, não nos diz ainda nada quanto ao
lugar do eu espectatorial na instauração do significante. Pois, além da Identificação
do espectador com os personagens do filme (secundária), a identificação com a
instância vidente (invisível), que é o próprio filme como discurso.
Convergente com a noção de Morin, no que se refere à projeção-
identificação, Metz (1980, p.59) constata que toda visão consiste num duplo
movimento: projetivo e introjetivo. Tem-se, simultaneamente, a impressão de dirigir o
olhar sobre as coisas, e de que estas últimas, iluminadas, vêm depositar-se na
pessoa que olha. O espectador, em conclusão, identifica-se consigo mesmo. É no
espectador, que o material percebido imaginário vem agrupar-se e organizar-se
numa continuidade.
Os filmes, assim, promovem tanto uma identificação com o semelhante
como uma identificação com o estranho, sendo este segundo aspecto, o que quebra
nitidamente com as participações da vida real. Os ‘malditos’ vingam-se na tela. Ou
antes, a nossa parte maldita. Nos documentários, as personagens falam de
exclusão, humilhação pela polícia, tráfico, pessoas conhecidas que estão no
68
presídio. Segundo Morin (1991, p.163), “a força da participação do cinema, pode
levar a uma identificação com os desconhecidos, os ignorados, os desprezados ou
mesmo, os odiados da vida cotidiana”, cuja realidade atenuada pela presença-
ausência da imagem, vale mais, em certo sentido, que uma realidade perigosa.
ainda, a participação polimórfica que ultrapassa o quadro das personagens. A
transformação do tempo e do espaço, os movimentos de câmera, as incessantes
mudanças de ângulos de visão tendem a arrastar os próprios objetos para o circuito
afetivo (MORIN, 1983, p.164). Neste decurso, as significações das opções estéticas
do diretor, escapam ao seu domínio, no momento em que o público entra em contato
com a obra. Graças ao imponderável, revela-se a magia do cinema.
A impressão de realidade baseia-se, portanto, em certas semelhanças
objetivas entre o que é percebido no filme e o que é percebido na vida cotidiana.
Mas estas semelhanças não explicam tudo, uma vez que o característico da
impressão de realidade é o de jogar em benefício do imaginário e não do material
que o representa.
69
3 A VIOLÊNCIA URBANA NO CINEMA
No sistema que tende a integrar o espectador no fluxo do filme e vice-versa,
não se podem determinar precisamente, as forças coexistentes que partem do
espectador e as que atuam sobre ele. Mas, a partir da percepção de certos
elementos da narrativa cinematográfica, pode-se compreender como o imaginário da
violência é apreendido pelo conjunto de filmes aqui estudados, visto que o cinema
“oferece diretamente esse modo peculiar de estar no mundo, de lidar com as coisas
e com os seus semelhantes, que permanece, para nós, visível nos gestos, no olhar,
etc.” (MERLEAU-PONTY, 1991, p.115).
No vínculo que se estabelece entre “eu e o outro”, acentua-se o que
Maffesoli (1999, p.122) denomina de “religação” social, permitida por meio de
diversos elementos como o sensível, a imagem, o corpo, a comunicação, o
emocional, que se enraízam na experiência, formadores de uma solidariedade
estética. Assim, a subjetividade não representa apenas o quadro social da recepção
da arte, que constitui o seu “meio”, mas se torna a própria essência da prática
artística (BOURRIAUD, 2009, p.31). A relação não é um domínio das
personagens e do cineasta, mas também da natureza que serve de suporte para o
objeto fílmico. Neste âmbito, o tempo e o espaço não são entidades homogêneas e
contínuas, mas podem se difratar ao infinito, sendo constituídos por elementos
múltiplos.
O que define os documentários que compõem o corpus desta pesquisa,
como filmes nos quais se podem identificar um imaginário da violência? Este
capítulo objetiva a compreensão do homo violens no cinema. Com este propósito,
se pretende uma fusão de horizontes e o registro da polifonia das vozes e
discursos variados. Trata-se de uma pluralidade de filmes que se interpenetram,
funcionando como elos de uma cadeia. Considerando a apropriação da realidade
realizada pelo cinema, o objetivo desta análise é a apreensão desta relação,
observando como o social se realiza na narrativa cinematográfica a partir do
exame do imaginário da violência urbana.
70
3.1 O REFLEXO DA VIOLÊNCIA
A essência da prática artística, segundo Bourriaud (2009, p.30), residiria na
invenção de relações entre sujeitos; cada obra de arte seria a proposta de habitar
um mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de
relações com o mundo, que geraria outras relações e assim por diante. O indivíduo,
quando acredita que está olhando objetivamente, está contemplando apenas o
resultado de intermináveis transações com a subjetividade dos outros. Através da
obra, o artista inicia um diálogo, que nasce na zona de contato em que o indivíduo
se debate com o outro para lhe impor aquilo que julga ser o seu ser.
É relevante a observação de que os cinco filmes que constituem o corpus
da pesquisa, foram produzidos entre 2002 e 2004. Realizados num período de três
anos, em três capitais, Rio de Janeiro (3), São Paulo (1) e Porto Alegre (1), abordam
assuntos semelhantes, em um mesmo contexto social, político e econômico. Foram
filmados por cineastas da mesma geração, que têm relações de amizade e
profissionais entre si. Os temas abordados pelos diretores, as personagens, a época
e os locais em que se situam as histórias, a construção da narrativa, a montagem, a
maneira como mobilizam a câmera, os enquadramentos, etc. constituem alguns dos
elementos formadores do imaginário.
Sob este aspecto, o uso das tecnologias e as relações de forças sociais têm
influência na constituição do simbólico, como por exemplo, a ordem dos planos ou o
papel do som off. O simbolismo é social, mas também possui uma materialidade
(METZ, 1980, p.26). Assim, identifica-se um imaginário social compartilhado pelo
conjunto dos filmes estudados. Pois a significação torna-se parte integrante da
constituição da própria socialidade.
Segundo Juremir Machado da Silva (2003), o homem existe no
imaginário. Na busca de uma orientação para o desenvolvimento deste capítulo,
recuperam-se os questionamentos expostos na introdução do livro Tecnologias do
Imaginário: “o que é um imaginário? Como se produz um imaginário? Quais são os
instrumentos de propagação, de disseminação e de cristalização de um imaginário?”
71
(MACHADO DA SILVA, 2003, p.7), mediante o exame da atuação das tecnologias
na produção de imaginários e dos processos através dos quais os dispositivos
tecnológicos canalizam signos.
É interessante observar que, diariamente, uma avalanche de notícias
sobre violência, em diferentes meios de comunicação. No jornalismo, se lida com o
fator tempo, quase sempre escasso, no percurso do ciclo, que vai da apuração à
divulgação dos fatos. Neste panorama, nas informações veiculadas, as fontes são a
polícia e a sua ação sobre os bandidos e as vítimas. Com os depoimentos de
ambos, realiza-se o chamado “jornalismo declaratório”.
A propósito, no formato tradicional de telejornal, também se pode observar o
“efeito Kuleshov”. Trata-se da famosa experiência, desenvolvida por Kuleshov, na
qual ele dispôs a imagem da fisionomia inexpressiva de um homem, seguida por
diferentes imagens, alternadamente tristes e alegres, como um bebê risonho ou uma
mulher morta. A expressão do homem era interpretada, segundo a imagem que era
mostrada em seguida. O sentido de uma imagem depende, então, daquelas que a
precedem no decorrer do filme e a sucessão delas, que cria uma nova realidade,
não equivalente à simples adição dos elementos empregados. No caso dos
telejornais, as notícias sobre violência são intercaladas com notícias sobre esporte,
entretenimento e política, por exemplo. A passagem é feita pelo apresentador, que
em segundos, transita de uma expressão carregada para outra mais suave. o se
trata, portanto, de uma soma de imagens, mas de uma forma temporal, que altera o
sentido do que é apresentado.
Em sociedade, mídia e violência, Muniz Sodré (2006, p.100) qualifica como
“atmosfera generalizada de horror show”, o ambiente caracterizado pelo “sofrimento
do outro e o medo coletivo” produzidos como espetáculo, em que os temas da
catástrofe e da insegurança pública são recorrentes na mídia, cuja abordagem é
marcada pela dramaticidade e pela espetacularidade, com a evocação de discursos
moralistas em torno do assunto. Com a constante advertência midiática para os
riscos de catástrofe, apela-se à proteção dos detentores do monopólio legítimo da
violência. Trata-se do Estado, com seus dispositivos armados, legitimando a
72
existência de seus aparelhos repressivos e “ensejando o desenvolvimento de uma
ideologia policialesca de vigilância e de segurança públicas” (SODRÉ, 2006, p.100).
Geralmente, os noticiários televisivos mostram a vítima, que tem medo e
ódio do agressor, e, de outro lado, o agressor, indiferente à vítima, seja esta quem
for, mas que também, à sua maneira, tem medo dela (BAIERL, 2004, p.68). Deste
modo, se configura a relação entre ambos, na qual o outro passa a ser visto como
um inimigo, ordenando-se, deste modo, a separação dos sujeitos, baseada na
concepção da identidade clássica e estável, desconsiderando o “tornar-se outro” e
sua conexão com mundo.
Os documentários analisados, diferentemente dos noticiários, são tentativas
de desvelamento das situações de violência apresentadas. Deste modo, o cinema
atua na “compreensão das necessidades simbólicas do ser humano” (MACHADO
DA SILVA, 2003, p.17). Sob este aspecto, o foco volta-se para o ser humano, seja
ele, policial, vítima ou bandido, no sentido de ver e compreender uma situação de
violência que já faz parte do cotidiano, em todas as camadas da sociedade. A
constituição das relações sociais se configura como construção palpável de sujeitos
que dela participam, a partir de seus contextos específicos.
Nas histórias e nos relatos das pessoas apresentadas nos documentários, o
privado e o público se interpenetram e se reestruturam, visto que a vida particular de
cada personagem relaciona-se com o coletivo. Segundo Bourriaud (2009, p.21) a
arte sempre foi relacional em diferentes graus, constituindo-se em fator de
socialidade e fundadora de diálogo, mantendo juntos, momentos de subjetividade
ligados à experiência singular. Assim, a relação com o outro determina o que se é.
“Neste sentido, a experiência não é vivida por um ego forte e solitário, ela deve ser
dita, contada, vista” e, numa perpétua encenação, ela introduz numa lógica que, de
parte a parte, é relacional (MAFFESOLI, 1999, p.92).
Observa-se que a compreensão da violência e seu imaginário não ocorrem
através da apresentação de causas, explicações ou argumentos. Segundo Machado
da Silva (2003, p.62), “somente o choque perceptivo pode interferir no imaginário,
cujas tecnologias trabalham com as linguagens da sedução, no universo empático
73
da compreensão”. Neste contexto, se encontra o estatuto dos filmes brasileiros
sobre violência recentes, sejam documentários ou ficções, que encontraram viva
ressonância na nossa sociedade e passaram a pautar também, produções
televisivas. Sob este aspecto, é pertinente a expressão “mundo imaginal”,
empregada por Maffesoli (2003, p.67), para designar um mundo no qual as imagens,
imaginações e símbolos, sob suas diversas modulações, são elementos essenciais
do laço social, visto que o imaginário é constituído a partir de imagens e vice-versa.
3.2 O HOMO VIOLENS
O imaginário da violência não será observado como observaríamos os fatos.
É sentido como a percepção no mundo real, com o diferencial do acréscimo da
música, da montagem e dos diversos componentes cinematográficos que compõem
um filme e que conduzirão o espectador. Em três documentários analisados,
observa-se a violência sofrida pelas pessoas retratadas, e o a violência,
eventualmente, por elas praticada, nem tampouco, as suas vítimas, como é o caso
de O prisioneiro da grade de ferro, O cárcere e a rua e Justiça, cujas personagens
se encontram presas ou aguardando julgamento. São mostradas as condições em
que vivem nas prisões. Tratam-se de pessoas que perderam a voz e a visibilidade, a
partir da sua condição de presidiárias ou rés. Em Ônibus 174, se observa,
efetivamente, a violência exercida pela personagem principal, ao mesmo tempo em
que se constata a violência, por ela sentida, ao longo dos anos, desde a sua
infância. E em Fala Tu, é abordado o cotidiano de três pessoas, moradoras de
subúrbios, que em seus depoimentos, demonstram o descontentamento com a
própria situação econômica e social e com a violência policial. Estes filmes o se
referem exatamente ao ato de violência explícita, mas se baseiam no que seria o
dia-a-dia de precariedade destas pessoas.
dificuldade em se definir violência, dada a diversidade de definições que
podem ser propostas. Aqui, se busca uma definição que conta tanto dos estados
quanto dos atos de violência. Segundo Michaud (2001, p.10),
74
há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores
agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a
uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física,
seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações
simbólicas e culturais.
A sociedade preocupa-se com uma crescente insegurança, que não tem
apenas a ver com o volume efetivo da criminalidade, mas também diz respeito às
normas, a partir das quais são concebidos os fenômenos criminosos (MICHAUD,
2001, p.33). Na noção de violência se encontra a idéia de uma força, de uma
potência natural cujo exercício contra alguma coisa ou contra alguém, torna o caráter
violento.
A violência é assimilada ao imprevisível, à ausência de forma, ao
desregramento absoluto. Como transgressão das regras e das normas, deixa
entrever a ameaça do imprevisível. A caracterização de alguma coisa–ato,
comportamento ou situação, como violência, pressupõe a atribuição de um valor
(MICHAUD, 2001, p.12). Por isso, é um erro pensar que a violência pode ser
concebida e apreendida independentemente de critérios e de pontos de vista.
É relevante a observação da classificação indicativa dos filmes, aqui
analisados, nas capas dos seus DVDs. O filme Fala Tu, por exemplo, traz a
classificação: “violência leve”. O filme O cárcere e a rua exibe a qualificação de:
“violência leve, violência (ameaça), violência (assassinato)”. O próprio termo
“violência” supõe julgamentos de valor, que nos exemplos, infere uma conotação
negativa muito marcada, mesmo que não existam imagens que conduzam às
categorizações apresentadas. Segundo Yves Michaud (2001, p.111), a relatividade e
o caráter indefinível do conceito de violência não são de modo algum acidentais,
mas inerentes a um tipo de noção que polariza a diversidade conflitiva das
avaliações sociais: os mesmos fatos não são apreendidos, nem julgados segundo os
mesmos critérios.
Joron (2005, p.10) observa que a violência é um conceito mole, uma neblina
conceitual. Dentro da violência, existe o eixo de encontro com o outro.
Genericamente, se trata de “uma força individual ou coletiva, física ou psicológica,
75
justificada ou não, que exprime um estado ou satisfaz uma necessidade imediata, ou
serve para modificar uma situação, manter uma ordem satisfatória”. A definição de
violência embaraça-se, devido à polifonia de seu significado e à multiplicidade de
manifestações. Segundo Zaluar (2005, p.8), o que sentido e foco para a ação
violenta é a sensibilidade mais ou menos aguçada para o excesso no uso da força
corporal ou de um instrumento de força e o conhecimento maior ou menor dos seus
efeitos maléficos, seja em termos de sofrimento pessoal ou de prejuízo à
coletividade.
A propósito, constata-se que em três dos cinco filmes estudados, O
prisioneiro da grade de ferro, Justiça e Ônibus 174, a ocorrência de uma frase,
constantemente repetida pelos detentos que são mostrados. É pronunciada durante
uma reza, na declamação de uma poesia e pode até ser lida em uma parede: paz,
justiça e liberdade”. Quem não acompanha o noticiário ou mesmo, está fora do
âmbito político e social brasileiro, provavelmente fará uma leitura particular, sem
considerar o seu entorno e desconhecendo o fato de tratar-se do lema do Comando
Vermelho, uma das maiores organizações criminosas do país, criada nos anos 60.
Esta força existe em um contexto sociocultural, tratando-se de um revelador eficaz e
útil dos nossos modos de ser em sociedade e dos nossos modos de excluir.
Joron (2005, p.11) faz uma distinção entre violência privada e coletiva, que
possuem repercussões morais diferentes. A coletiva pode ser usada para chamar a
atenção do Estado sobre os seus disfuncionamentos. Pode ser um catalisador de
mudança social. A privada (individual) é denunciada com mais facilidade, porque é
pouco concebida moralmente. É considerada uma intrusão, pois a sua conseqüência
é a morte ou pessoas atingidas física e moralmente. Como é mais individual,
podemos nos colocar no lugar das pessoas feridas e atingidas. No filme O
prisioneiro da grade de ferro, o mostrados presos preparando crack, os facões
usados para se defender, fotos de detentos mortos dentro da cadeia, as celas de
castigo, etc.. Em Ônibus 174, se pode acompanhar depoimentos de bandidos e
policiais, descrevendo o que sentem quando matam. Além do ato de violência
explícita, através de Sandro com sua arma na mão, esta também é sugerida pelo
clima de extrema precariedade. A morte está permanentemente presente. Afora sua
76
manifestação física, impregna todos os atos da vida cotidiana. Aqui, violência e
ameaça se apóiam mutuamente.
A violência é revelada do ponto de vista de quem a pratica e de quem sofre
as suas conseqüências. Sob este aspecto, o incomum não é o que, mas quem
conta. E o cinema se torna o espaço singular perante o qual estas pessoas terão
corpo e voz. O discurso do bem e do mal está presente nas falas das personagens,
ao discorrerem sobre os riscos a que estão expostas, as dificuldades financeiras e,
principalmente, a exclusão social. A fala da personagem Toghum, no filme Fala Tu é
reveladora: eu nasci excluído. Se eu não me direcionar para sair dessa camada
de excluídos, nem que seja dez porcento, ninguém vai fazer por mim. Não precisa
nem viver o bem, mas viver”. Esta fala reflete a sobrevivência das pessoas
explorando suas possibilidades. A violência aparece como algo corriqueiro, típico do
dia-a-dia das pessoas, que se expressa no conjunto das relações sociais e na vida
cotidiana, através do desemprego, qualidade dos serviços públicos, desrespeito,
perda da dignidade e ausência de cidadania, que vai minando o cotidiano dos
sujeitos (BAIERL, 2004, p.52).
o reconhecimento e a aceitação do instante obscuro constitutivo de cada
um e do conjunto social. Segundo Maffesoli (2007, p.107), os sinais desta integração
podem ser sentidos na crueldade encenada pelo teatro e pelo cinema
contemporâneo. É importante observar os aspectos estruturais e antropológicos da
violência, que é caracterizada pelo seu aspecto indivisível. Em cada coisa e em cada
situação, existe o seu contrário, revelando a força da alteridade, num misto de
atração-repulsa, amor-ódio, generosidade e egoísmo. (MAFFESOLI, 2007, p.70).
Em Fala Tu, por exemplo, Macarrão se refere às suas músicas em estilo
rap, como crônicas do cotidiano e declara: bandido e trabalhador vão gostar da
minha música, mas playboy e polícia não”. Outra personagem, apelidada de DJ A,
cuja esposa sofre um assalto, afirma indignada: os bandidos têm que roubar na
zona sul, o na zona norte”. Em O prisioneiro da grade de ferro, através do verso
cantado por um detento e sua banda, chamada Sobreviventes do rap: Carandiru,
casa do diabo, sua vida se transforma num verdadeiro inferno”. Por meio de rituais
de magia negra realizados nas celas, em cujas paredes se lê: se Deus é por nós,
77
quem será contra nós?”. Além de detentos, que se referem às pedras de crack que
enrolam como a raspa da panela do diabo”. No filme Ônibus 174, há a personagem
Sandro, que ordena à sua vítima que escreva frases no pára-brisa do ônibus: ele
têm um pacto com o diabo”, ele vai matar geral”. Ele olha para as câmeras de
televisão, revela que estava na chacina da Candelária e brada, aos gritos: pode
filmar prá todo Brasil olhar mesmo”.
Ônibus 174
Figura 2: Vítima com seqüestrador.
A violência permanece no horizonte das relações e na maneira como é
percebida, o que conta tanto quanto a violência efetiva (MICHAUD, 2001, p.60).
Ocorre a integração e a visibilidade desse mal. É o que permite entender o
surgimento e o desenvolvimento da violência e das comunidades de condenados
pela justiça que se formam, em presídios, por exemplo, e que são denominados de
bandidos, criminosos, assaltantes, marginais, etc., independentemente da gravidade
do crime cometido, que pode variar de um roubo de telefone celular a um homicídio.
Conforme Zaluar (2004, p.196), os bandidos o pessoas que andam
armadas, vivem permanentemente de suas atividades ilegais e têm uma
característica pessoal e interna: a disposição para matar. Esses arranjos e outras
associações simbólicas relacionando o uso da arma de fogo, o dinheiro no bolso, a
78
conquista de mulheres, o enfrentamento da morte e a concepção de um indivíduo
completamente livre, revelam que as práticas do mundo do crime vinculam-se a um
etos de virilidade, centrado na idéia de chefe.
Esta concepção aproxima-se da noção de bandido social que age de modo
organizado (hierarquicamente), fazendo valer, além das armas, a autoridade e o
prestígio das relações de amizade e compadrio, além de todas as crenças em
santos. Como se observa em O prisioneiro da grade de ferro, em cujo espaço do
presídio estão presentes as manifestações de várias religiões, como a católica, a
evangélica e a umbandista, além do domínio e atuação de organizações criminosas
como Comando Vermelho e PCC (Primeiro comando da capital).
A problemática da violência sempre sofreu com uma concepção binária das
coisas, como se esta fosse exterior ao elo social e como se este último não se
servisse e mesmo não produzisse a violência. Existe um papel assumido por esta
violência no universo coletivo do acesso ao Outro, que se desdobra como um vetor
de comunicação social. Existe também uma violência presente em propósitos ou
imagens que não pertencem a seu registro.
Violência e alteridade, o outro me ocupa é insuportável! Para ele
não é suficiente ser o outro; ainda é necessário que ele me implique nele,
me ingira, me absorva na sua alteridade; que ele me vire e revire no seu
próprio interior, para me jogar na cara uma imagem minha desconhecida por
mim e com a qual me reveste. O outro me inflige uma dupla violência:
violência da alteridade como tal, e violência da alteridade porque tenta me
identificar, porque corrói ou soterra a minha identidade (DADOUN, 1998,
p.67).
Aqui, a partir do esquema projeção–identificação, é perfeitamente possível a
identificação com o traficante, o morador da favela ou o policial. Porque as
personagens são apresentadas em sua multiplicidade. A fenomenologia da violência
cotidiana está presente nas mímicas, gestos, palavras, posturas, no espaço no qual
as pessoas atuam, etc.. A maioria dos filmes não apresenta a violência explícita e o
que se observa é um estado de violência aparente, a partir do cotidiano das pessoas
enfocadas que participam, ao mesmo tempo, das instituições, do mercado, da
empresa, da vizinhança pobre e da família. As suas falas, registradas em
entrevistas, mostram as relações e as superposições entre esses vários mundos e o
79
saber, por elas, acumulado a respeito das falhas, incoerências, discriminações e
hipocrisias das instituições jurídicas (ZALUAR, 2004, p.22).
Existe uma tendência à dicotomização de mundos o dominante ou
marginal, o incluído e o excluído. O foco em divisões deste tipo impede o
entendimento das passagens múltiplas e das trocas contínuas que se articulam e
tornam, por exemplo, frágeis, a fronteira entre o legal e o ilegal, o público e o privado
(ZALUAR, 2005, p.7), visto que a violência se manifesta diferenciadamente na
sociedade, afetando o cotidiano das pessoas e a coletividade de maneiras distintas.
Segundo Baierl (2004, p.22), o medo, produzido e construído a partir da forma como
a violência vem se materializando na sociedade, cria novas alternativas de
sociabilidade, alterando o modo de ser e agir das pessoas, dos grupos e das
comunidades em seu cotidiano.
Além disso, o mundo do crime organizado não está tão distante do mundo
empresarial e do mercado, com seus valores e suas regras. Seja na linguagem
cotidiana ou nas relações com a família, o vizinho e o trabalhador. Segundo Zaluar
(2004, p.21), muitos participam simultaneamente do mundo do trabalho e do crime.
Sua adesão a uma atividade que os coloca cotidianamente em contato com a morte
e com a guerra, faz dos criminosos, personagens trágicos, em conflito consigo
mesmos, com seus parceiros e com suas prováveis vítimas.
Existe uma equação entre a violência e a igualdade e ocorre porque ela
denuncia a extrema necessidade de hierarquização. A violência, no mundo
brasileiro, é um instrumento utilizado quando os outros meios de hierarquizar uma
dada situação falham irremediavelmente. Deste modo pode-se equacionar o “Você
sabe com quem está falando?com a violência. Em ambos os casos, o objetivo é a
separação radical de papéis sociais, rompendo assim, com o individualismo. Se o
ator está só no momento da violência contra o outro, ele não está mais só quando se
trata de sustentar ou legitimar sua ação, o que é sempre realizado de modo coletivo,
podendo-se então, saber com certeza, quem está do lado de quem.
É o que se nos filmes, cujas histórias se passam em presídios. Segundo
Damatta (1981, p.191), em nosso universo social, à falta de relações de compadrio,
80
altas amizades e laços poderosos de sangue, lança-se mão da violência como o
único padrinho possível, que passa a ser um mediador básico entre a massa de
destituídos e o sistema legal e impessoal que torna a exploração social “inevitável” e
“justa” aos olhos dos dominantes. O que teoricamente teria que ser uma situação de
igualdade entre todos os presos, reproduz os mecanismos da sociedade. Este fato é
visto, inclusive, na compartimentação das áreas das penitenciárias, dos tribunais e
das favelas. As pessoas passam a ser qualificadas pelo espaço que ocupam e por
aquilo que não tem, habitando locais considerados periféricos. Aqui, a referência não
é de ordem geográfica, pois além de indicar distância, “aponta para aquilo que é
precário, carente, desprivilegiado em termos de serviços públicos e infra-estrutura
urbana” (CALDEIRA, 1984, p.7).
Na interpretação da concepção de um espaço, como o presídio, por
exemplo, pode-se compreender a sociedade com suas redes de relações sociais. O
que se observa é que os vínculos hierarquizados são reproduzidos neste local e a
ameaça da violência física se torna uma espécie de garantia para a manutenção
dessas relações. Seja a violência entre detentos, dos guardas contra os detentos e
vice-versa. Constata-se um hiato entre os princípios da instituição carcerária e as
suas práticas, pois a rotina e organização do local, depende da população que nela
vive, tendo pouca relação com a idéia que dela se pode fazer, relacionada à
manutenção da ordem e ao cumprimento das penas (MICHAUD, 2001, p.64).
Segundo Zaluar (2002, p.21), a violência não se refere aos critérios de uma
civilização, nem às regras de uma sociedade dada, nem mesmo a um tempo
histórico determinado, estando presente, mesmo que limitada ou relativamente
controlada, em todas as culturas. Quando a violência irrompe, ela é governada não
apenas pelo cálculo racional, mas pela paixão ou pela emoção descontrolada, se
propagando num circuito de vinganças e de prazeres destrutivos. Além disso, cria
um imenso abismo entre o que detém o instrumento, que obriga à submissão, e a
sua vítima, que não tem defesa, nem recurso.
81
3.3 A VIOLÊNCIA PERFORMÁTICA
Esther Hamburger (2007), no seu artigo intitulado Violência e pobreza no
cinema brasileiro recente, questiona o que ela denomina de papel da visualidade,
isto é, o que merece ou não se tornar visível. Sob este aspecto, evoca-se o âmbito
da visualidade cinematográfica, que nos interessa para esta discussão. Filmes como
Notícias de uma guerra particular (1999), Cidade de Deus (2002), O invasor (2003),
entre muitos outros, ao acentuar a presença visual de cidadãos pobres, negros e
moradores das periferias, estimularam e intensificaram a “disputa pela definição de
que assuntos e personagens ganharão expressão audiovisual, como e onde”
(HAMBURGER, 2007, p.114). Visto que o “estoque de imagens” dos documentários
formadores do corpus desta pesquisa, “constitui capital para a compreensão de
relações culturais internas da nossa sociedade” (GUTFREIND, 2006, p.9), é
determinante que se pense sobre o tipo de imagem de periferia, pobreza e violência,
construída pelos filmes em questão. Tornou-se aum clichê a afirmação de que
se faz filmes sobre violência no Brasil, dada pela impressão da quantidade e da
repercussão dos filmes produzidos.
Ao examinar o debate em torno da adequação da representação midiática
da periferia, Esther Hamburger (2007, p.120) observa que a recente exposição de
representações da pobreza, em geral associada à violência, aumentou e se
sofisticou no cinema, num processo que estimula a disputa em torno do controle do
que merece e do que não merece se tornar visível. A mesmo os cineastas
adquiriram certa relevância para a discussão da violência urbana e passaram a ser
tratados como especialistas do assunto.
O tema da violência invadiu o imaginário social. Mas, segundo Zaluar (2005,
p.1), a redução da explicação da criminalidade violenta à pobreza e à desigualdade
impede um entendimento mais complexo da questão. Ressalta-se que o modelo
tradicional de polícia repressiva que a faz privilegiar o pobre como o alvo de sua
investigação e castigo, colabora para a fixação de um modelo, que se manifesta no
cinema. Quando se estuda cinematografia ou o que uma sociedade permite
representar dela num espaço sociocultural, pode-se aproximar à questão do
82
estereótipo, que colabora na formação do imaginário. No caso do Brasil, o
estereótipo é a violência, que está no cotidiano e na banalidade.
Neste âmbito, podemos recorrer a Aumont (2002, p.90), que nomeia de
imagem figurativa em movimento, a representação de um objeto, como um ato de
ostentação que implica que se quer dizer algo a propósito desse objeto, pois antes
de sua representação, veicula para a sociedade, uma gama de valores dos quais
é representante. Neste sentido, qualquer objeto seria um discurso em si, podendo
constituir-se, desta forma, em um estereótipo. É uma amostra social que se torna um
iniciador de discurso, pois tende a recriar em torno dele, o universo social ao qual
pertence. Desse modo, qualquer representação chama a narração, pelo peso do
sistema social ao qual o representado pertence.
Condizente com esta idéia, Fernão Pessoa Ramos (2003, p.14), no artigo
intitulado Narcisismo às avessas, chama a atenção para a representação
acentuadamente negativa de aspectos da vida social brasileira, por meio de
mecanismos de catarse, que se realiza a partir do estabelecimento de uma
dualidade maniqueísta entre povo idealizado e Estado incompetente. É definido
como “naturalismo cruel”, o prazer que toma a narrativa em deter-se na imagem da
exasperação ou da agonia, em obras-chave da produção cinematográfica brasileira.
Segundo Ramos (2003, p.14), “a imagem da miséria, da sujeira, a ação
dramática em ambientes fechados e abafados (como prisões ou favelas), surge de
modo recorrente. Ações com requintes cruéis de violência são exibidas em toda sua
crueza”. Esta referência encontrar-se-ia no fato do cinema brasileiro contemporâneo
apresentar aspectos “bestiais e repulsivos da vida” de forma crua e desagradável.
Mas Ramos não faz distinção sobre este tipo de representação na ficção e no
documentário. No que se refere aos filmes estudados, estes circunscrevem a sua
base no cotidiano precário, não transpondo certas fronteiras. O cinema lida com o
imaginário construído sobre situações de violência e precariedade e o com as
realidades vividas, relativas, por exemplo, às cenas “reais” como as presenciadas
pelas pessoas que “sofrem na pele” com a violência.
83
O que é mostrado exige uma justificação ética, que não é reivindicada
quando se trata da ficção. O filme Ônibus 174 expõem um ato de violência, no
instante em que a refém é alvejada, enquanto se encontra sob o domínio do
seqüestrador. Segundo Zaluar (1986), o ato de matar uma pessoa não é julgado a
priori, como um crime, segundo uma concepção universal de justiça. A avaliação
moral deste ato depende de quem foi morto, se pertencia ou não à comunidade e
em que circunstâncias isso ocorreu. Vale ressaltar, que as cenas haviam sido
exibidas, ao vivo, pela televisão e exaustivamente reprisadas nos dias que se
seguiram ao seqüestro do ônibus. Este fato é condizente com a idéia de que a
câmera em ação, no caso citado, é menos vulnerável à acusação de comportamento
não ético, porque as imagens foram feitas acidentalmente e o evento da morte é
compartilhado com certo espanto, tanto pelo cinegrafista como pelo público que
se encontrava.
Freqüentemente, assiste-se no noticiário televisivo, tiroteios, pessoas de
arma em punho ameaçando suas vítimas, etc.. Pois, não obstante, a exibição de
certas circunstâncias, como a morte, por exemplo, constitui-se em um tabu social no
documentário, pois conforme Sobchack (2005), a sua representação consiste em um
excesso de visibilidade, uma vez que é vivenciada como uma experiência que tem
origem no real.
Baierl (2004, p.23) se refere à hipótese de que “a violência e o medo
combinam processos que alteram a arquitetura urbana, segregando grupos em
espaços sociais e discriminando certos segmentos”. Exemplifica a questão,
examinando entrevistas realizadas por ela, que indicam que uma criança moradora
da favela não se espanta ou se assusta com um cadáver no chão, enquanto uma
criança de classe média, provavelmente, se assustaria, que nunca ou raramente
se depararia com tal cena em seu cotidiano. Em áreas de favelas, a possibilidade de
se defrontar com pessoas assassinadas e presenciar conflitos armados e violentos é
maior do que em outros espaços territoriais da cidade. Para pessoas de outros
segmentos sociais, a idéia da morte violenta decorre do que é apresentado através
da mídia.
84
O evento da morte, que faz parte do cotidiano das pessoas que vivem em
áreas periféricas consideradas violentas, está confinada em “guetos”, quando se
trata de imagens documentais. É raro encontrar filmes que apresentem situações
“reais” de mortes violentas, como ocorre, por exemplo, com os filmes da série Faces
da Morte, que apresentam a experiência do processo de morrer, de diversas formas,
sendo considerados imorais, em virtude de violarem um tabu visual sem uma
justificativa ética. A visualidade da morte questiona seus limites de representação
cinematográfica.
Como observa Sobchack (2005, p.127), no que se refere ao documentário,
“a morte suscita um problema especial na sua representação”, sendo tratada como
uma experiência privada e anti-social. Pois os critérios para a visão da morte na
ficção não são tão rigorosos como no documentário. Enquanto na ficção é,
principalmente, “icônica e simbólica”, sendo algo representável e até corriqueiro, no
documentário, a morte é “antes de tudo, indicial”, pois a questão da ética é muito
mais rigorosa, neste caso, pelo tabu social que consiste na visualização “real” de
eventos de violência e morte.
3.4 HOMO VIOLENS x CINEMA
Para Dadoun (1998, p.10), não qualquer aspecto da realidade humana
que o seja, de alguma maneira, associado à violência. Ela também cobrirá tudo o
que tem relação com força, potência, poder e energia. Dadoun se pergunta se a
arte, com seu poder e suas ambigüidades, não seria o mais seguro sustentáculo do
homo violens, na sua eterna queda de braço com a violência. Afirma que é preciso
efetuar uma espécie de desprendimento e ver a violência com um outro olhar: o da
arte, passando assim, do campo de forças para o campo das formas. É dado o
exemplo da pintura expressionista de Van Gogh que, “através de seu movimento
explora a louca complexidade do homo violens preso, numa rede, num cálculo,
numa intensidade, num gozo estético graças ao efeito da arte” (DADOUN, 1998,
p.108).
85
Uma das críticas feitas por Zaluar (2005, p.2), refere-se ao fato da mídia se
debruçar, sobretudo, sobre estatísticas relativas a número de mortos e danos físicos
causados pela violência, por se tratarem de elementos visíveis e publicizáveis. Mas
neste caso, o cinema constitui-se num espaço que, ao privilegiar a abordagem da
violência em contextos particulares, relativos às pessoas retratadas, possibilita que
além dos mortos e feridos, leve-se em conta os sofrimentos morais e psíquicos, que
ao contrário, são impalpáveis. Além disso, é importante ressaltar que os
documentários, normalmente, contêm uma tensão entre o específico e o geral, entre
momentos únicos da história e generalizações (NICHOLS, 2007).
Na relação dos filmes que compõem a pesquisa, é a combinação destas
duas circunstâncias, que é a situação individual de cada personagem e a sua
organização fílmica, proporcionada pelo estilo mosaico, que estrutura a narrativa a
partir dos momentos particulares das várias pessoas retratadas, que ocorre a
contextualização da violência, em determinado tempo e lugar. Constata-se que
possuem roteiros com estruturas semelhantes. Cada um apresenta várias histórias
que o contadas de forma alternada, seja por semelhança ou contraste. Se
identifica a referência à atuação dos aparatos estatais de prevenção, julgamento e
punição, que se atribuem, respectivamente, à polícia, ao judiciário e à prisão. As
personagens, em sua totalidade, se encontram em uma posição marginalizada, em
áreas consideradas periféricas, como favelas e presídios.
São mostradas as formas de reação ao medo, de enfrentamento ou
passividade frente às diferentes manifestações de violência, através da busca de
alternativas na esfera do privado. Os filmes apresentam esta resistência à violência,
sob o ponto de vista dos criminosos ou réus, a partir do momento em que estão sob
a jurisdição do Estado. No documentário Fala Tu, cujas personagens são moradores
de favelas ou subúrbios, o discurso empregado atribui as dificuldades econômicas e
sociais à incompetência do Estado e à desigualdade de classes, através da
dicotomia entre pobres e ricos, estes últimos chamados de playboys. Também
manifestam a queixa contra a repressão policial e não à violência exercida por
traficantes ou bandidos. São pessoas que estão submetidas a vinculações verticais
e hierarquizadas, a partir do relacionamento com as instituições públicas. “Uma
86
relação entre desiguais, que uns podem exigir e explorar, e aos outros resta
obedecer para não perder seus meios de subsistência” (CALDEIRA, 1984, p.150).
Neste panorama, o cinema tem o poder de evocar a teatralidade cotidiana,
que se fundamenta na duplicidade, no jogo da troca de máscaras e nos múltiplos
papéis que a pessoa é chamada a desempenhar, explorando a força da alteridade,
que o se pode negar (MAFFESOLI, 2003). Esta força pode ser estigmatizada e
marginalizada, mas, ainda que em forma de sombra, está presente. Segundo
Maffesoli (2003, p.66) “até mesmo o Deus da tradição ocidental é obrigado a tolerá-
lo, na pessoa de Satã”. A violência é um elemento essencial da construção simbólica
do social.
No texto Os discursos da violência no Brasil, Damatta (1993, p.178)
examina como a violência é percebida e discutida no nosso país. São caracterizados
dois modelos, denominados, respectivamente, de leitura teórica e discurso popular.
O primeiro refere-se à violência como conseqüência da ausência de polícia
repressiva. A comunicação deste discurso aconteceria de forma violenta, em tom de
denúncia, no qual nada é poupado. Exemplo clássico deste tipo de discurso estaria
nos programas de televisão como Brasil urgente, da Rede Bandeirantes e Cidade
Alerta, da Rede Record, cujos apresentadores exaltados e aos berros, na maioria
das vezes, exigem do Estado mais policiamento nas ruas para prevenir e liquidar a
violência. Se trata de um discurso no qual a compreensão se confunde com o
diagnóstico, sendo marcado, freqüentemente, por sugestões de como resolver o
problema da violência no Brasil, sem espaço para qualquer tipo de dúvida ou
contradição.
O segundo discurso, relativo ao senso comum, é uma narrativa baseada na
experiência diária. Neste caso, a violência surge como um mecanismo social
indesejável, como uma “ação espontânea, reparadora e direta que rompe os
espaços e as barreiras dos costumes, as normas legais, e invade de qualquer
maneira o espaço moral do adversário” (DAMATTA, 1993, p.180). A imagem que
estaria mais condizente com este tipo de discurso seria a de uma briga ou conflito
entre duas ou mais pessoas engajadas num confronto físico.
87
Os documentários apresentam os dois tipos de discurso. O primeiro, relativo
aos disfuncionamentos do Estado, é compartilhado tanto pelas personagens como
pelos próprios cineastas. Caracteriza-se pela crítica, mesmo velada, às ausências de
autoridade, Estado e Justiça, considerados “o grande algoz” (DAMATTA, 1993,
p.179) e responsável pela felicidade ou miséria do povo. No discurso do senso
comum, que é pessoal e relacional, a violência aparece como um mecanismo
destinado a promover pessoalmente a justiça, quando as corporações legais falham
no cumprimento de suas obrigações (DAMATTA, 1993, p.186). Neste nível de
percepção, o que conta é o plano pessoal, enquanto o discurso erudito acentua o
universal. A coexistência das duas abordagens é condizente com o princípio da
lógica contraditorial, que mantêm os paradoxos ao invés de uma síntese perfeita e
racionalmente definida, a partir de uma multiplicidade de valores heterogêneos que
se combinam, criando certa unicidade.
Os documentários tratam de histórias pessoais, permeadas pela ausência
ou impotência do Estado em assumir seu papel de garantia dos direitos e da
segurança da população. Os instrumentos legais não se configuram como legítimos
e eficientes, considerando que polícia aparece como um sujeito que também
aterroriza. A disfunção do Estado na gestão pública pode ser observada nas cenas
finais do filme O prisioneiro da grade de ferro, com a inauguração de um presídio,
numa clara alusão à continuidade da situação limite representada pela precariedade
vista na Casa de Detenção do Carandiru ou nos comentários, em voz over
15
, feitos
no desfecho do caso do Ônibus 174, nos quais há uma compilação de depoimentos
de vítimas e de especialistas que criticam a ação policial e a ineficiência do Estado
no trato com os meninos de rua e crianças carentes, o que facilitaria o surgimento de
pessoas como Sandro.
A partir da percepção dos perigos e riscos a que estão sujeitas, as pessoas
atuam e fazem o que podem para controlá-los e evitá-los (ZALUAR, 2002, p.24). No
exemplo, ocorre a convergência dos discursos descritos. O do senso comum, que
15
A voz over remete à sobreposição de vozes externas às imagens, enquanto a voz off se refere às
vozes que estão fora da imagem, mas pertencem ao universo sonora da cena. Fonte: LINS,
Consuelo. MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
88
consiste em uma ação na qual a força corporal surge como instrumento básico de
violação da integridade do outro e no qual o ato de violência se configura como
físico. Este discurso não se caracteriza por explicitar uma visão econômica e política,
mas por exprimir uma posição na qual a violência se relaciona à “maldade humana”
ou ao uso da força contra o fraco, pobre ou destituído (DAMATTA, 1993, p.181). As
pessoas são apresentadas como vítimas em potencial, a partir da constatação da
violência policial sofrida por elas e das experiências dolorosas, violentas ou injustas
que tiveram com as instituições encarregadas de representar a lei (ZALUAR, 2004,
p.201). A maioria das personagens o negras e pobres, com pouca escolaridade,
que sofrem discriminação pela sua etnia e situação econômica e social, além da
presença dos presos e dos réus e do preconceito que envolve pessoas nesta
condição.
Isto ocorre em O prisioneiro da grade de ferro, no qual os presos
asseguram a sua defesa, aparelhando-se com armas produzidas por eles mesmos,
além da participação em grupos, para aumentar o seu domínio na cadeia. Em O
cárcere e a rua, a presa, que acusada de matar o filho, permanece isolada, para
não ser morta pelas outras detentas. Em Justiça, a queixa dos réus, que
reclamam da propina exigida pelos policiais, para obterem a liberdade. Nos três
casos, se tratam de pessoas que se encontram sob a proteção do Estado, estando
aí implicado, mesmo que subjacente, o discurso erudito, que se refere à estrutura do
sistema. Em Ônibus 174, Sandro, que também esteve, em várias ocasiões, sob esta
mesma proteção, é morto por policiais, no interior de uma viatura da polícia. As
pessoas que orbitam ao redor das personagens principais, também estão
desprotegidas, sob risco permanente e à mercê da violência, como ocorre em Fala
Tu, no qual valem-se do rap, para expressar o seu descontentamento com a própria
situação social.
Quando, numa sociedade, o poder não se constitui como um
instrumento legítimo e legal, os diferentes grupos passam a arbitrar o que é
justo e injusto. É aí que as estratégias individuais, a violência pelas próprias
mãos ganha peso e vulto e que o medo prolifera. Essa é a marca da
fragilidade e da impunidade dos órgãos públicos de justiça e segurança do
cidadão. Quando a lei não se constitui como instrumento de aplicação da
justiça, passa a ser arbitrada no âmbito do privado, pautada em cima de
interesses também privados (BAIERL, 2004, p.67).
89
A violência, neste caso, não seria uma expressão da sociedade, mas uma
resposta funcional da sociedade a alguma coisa considerada uma anomalia
provocada por um determinado tipo de sistema (DAMATTA, 1993, p.178). Caberia à
polícia, em última instância, garantir a segurança dos cidadãos, pois tem ela o dever
de prevenir, coibir e conter as diferentes formas de violência e criminalidade. Mas,
segundo Baierl (2004, p.155), na história brasileira e na prática concreta das
organizações policiais, o seu papel e a sua representação social têm sido
profundamente contraditórios. A população, que deveria olhar a polícia como alguém
em quem confiar, ao contrário, identifica-a com sujeitos que desrespeitam a lei e
agridem as pessoas indistintamente, em vez de transmitir segurança, além de
promoverem subornos, ampliando as ações ilegais dos bandidos (BAIERL, 2004,
p.156). A violência desenvolve novas formas de socialidade, que desafiam os
poderes legalmente instituídos, enfrentando o Estado no controle das favelas,
bairros de periferia e presídios.
Na oscilação entre um código e outro, quando a justiça mostra-se falha e
pouco confiável, abrem-se as portas para a atuação de outra justiça fundada na
moral pessoal. Como observa Damatta (1993, p.187), esta situação “mapeia um
sistema desconfiado da possibilidade de justiça, porque sabe que, esgotados os
recursos de um sistema, poderá lançar mão do outro”. Por serem complementares,
ocorre a dificuldade para o estabelecimento de limites para a justiça e para a ação
policial.
Em Justiça, se esboça uma situação visivelmente constrangedora. A fala de
um réu, ao contar as circunstâncias do roubo de um carro, é repleta de gírias. A juíza
traduz o que é dito para uma linguagem jurídica, que é tão ininteligível quanto às
gírias. Ocorre um duelo verbal em relação à forma da fala. A linguagem jurídica
torna-se, naquela situação, uma forma de demonstração de poder, pois o réu não
compreende os termos utilizados pela juíza e conseqüentemente, o que é dito sobre
ele. Segundo Maffesoli (2004, p.32), em suas diferentes modalidades, a gíria inverte
a ordem das palavras e se empenha em exprimir um mundo diferente daquele que a
ordem estabelecida pretende impor. Isto pode ser exemplificado também, pelo título
do filme Fala tu, extraído da fala de uma das personagens.
90
O julgamento torna-se um drama social no qual se observa como se
comportam as personagens principais. Zaluar (2004, p.165), aponta para a
“ambigüidade da configuração jurídica brasileira inquisitorial na fase do inquérito e
acusatória no processo jurídico”, afetando o resultado final dos processos. O
judiciário, na maioria das vezes, apenas legitima uma engrenagem discriminatória
pela qual os usuários pobres e os pequenos traficantes “que são vigiados mais de
perto pelos policiais, não têm bons advogados e não podem pagar propinas”
terminam condenados à pena de privação de liberdade (ZALUAR, 2004, p.167).
3.5 HOMO RELATIONIS
No filme Justiça, se observa uma seqüência que mostra a defensora pública
e o juiz com suas respectivas famílias, em suas casas, assistindo ao noticiário
televisivo. Em ambas as televisões passam cenas de ônibus sendo incinerados e a
informação de que se trata de incêndios criminosos. Esta imagem funciona como
símbolo de uma situação, esboçando-se a relação com a lógica social de ganhar
rosto e voz. Esta destruição equivaleria a um “você sabe com quem está falando?”
Com a violência surgindo “como um modo drástico de separar e individualizar”
(DAMATTA, 1993, p.191).
Esta prática corresponderia a uma das faces da violência no Brasil
condizente com as noções relativas à vingança, ao quebra-quebra e ao “sabe com
quem está falando?”, conformando-se, respectivamente, às modalidades de reparo,
protesto e reconhecimento social. Segundo Damatta (1993, p.186), são tentativas de
juntar pela intervenção direta, o plano das leis universais e igualitárias do mundo da
rua e a moralidade particularista e hierarquizada do universo da casa, tratando-se de
formas institucionalizadas de violência, através das quais se busca transcender essa
divisão.
As três modalidades constituiriam maneiras de lidar com as injustiças,
fazendo com que os que controlam o sistema legal e a burocracia jurídica e policial
91
sofram de uma idéia de justiça moral. Como ocorre com a organização criminosa
Comando Vermelho, originada no interior de prisões brasileiras. Com seu lema Paz,
justiça e liberdade, surgiu, inicialmente, com o objetivo de lutar por melhores
condições de vida para os presos nas cadeias. Mais tarde, o propósito sofreu um
desvio, sendo estendido para o domínio do tráfico de drogas, em várias regiões do
país e dentro dos próprios presídios. A lealdade dos criminosos com esta
organização é evocada pelos seus líderes e participantes, sob pena de uma
infidelidade ao grupo ser paga com a própria vida. Com isso, sincroniza-se a idéia de
“justiça” com a de moralidade pessoal (DAMATTA, 1993, p.188).
No texto Três teses sobre a violência (2001), Ricardo Timm de Souza
aborda as relações entre as noções de alteridade e violência. São apresentadas três
considerações que colaboram para o entendimento da questão, no contexto
proposto, referente ao conjunto de filmes estudados.
A primeira tese se refere à violência como negação de uma alteridade.
Considerada a partir de “atos que negam a condição de ‘outro’ do outro, ou seja,
daquele que não pertence ao pólo de decisão”, numa tentativa de neutralizá-la
enquanto tal (TIMM DE SOUZA, 2001, p.9). Sob este domínio, a violência pode se
expressar no uso indiscriminado da força física ou psicológica, representada pela
dominação do outro, como instrumento para potencializar o medo.
Neste caso, a violência é associada à desordem, à insegurança e ao
confronto direto entre as pessoas, tendo relação com a ausência de mediação,
conduzindo à invasão dos espaços e ao encontro cara a cara, no qual a força
substitui outros eixos organizatórios, como por exemplo, as mediações da lei
(DAMATTA, 1993, p.183).
A segunda tese afirma que “a maior das violências consiste em velar os
vínculos profundos que qualquer ato violento tem com qualquer outro ato violento”
(TIMM DE SOUZA, 2001, p.9). As infinitas maneiras de manifestação da violência,
no mundo contemporâneo, não se dariam com a mesma transparência à visibilidade.
Existem formas múltiplas de negação da alteridade, em todos os níveis da vida. A
compreensão do sentido que a violência assume no mundo atual passa pela
92
compreensão da desconexão entre a infinita cadeia de fatos que são expressões e
traduções da mesma estrutura de negação da alteridade.
Damatta (1993, p.190) observa que “se perante a legislação todos são
sujeitos integrais e indivisos, as normas não escritas da moralidade pessoal nos
lêem como singularidades que ocupam somente uma posição numa teia de
relações”. Isto obrigaria a uma leitura dos atos de modo relacional ou relativo aos
motivos impostos por outra pessoa. Esta questão também se refere ao envolvimento
em determinada estrutura que propicia um estado de violência. Sob este aspecto, os
indivíduos devem ser julgados com o pressuposto de que são responsáveis
exclusivos pelo que fazem, mas deve-se levar em conta que as pessoas fazem
coisas não apenas porque querem, mas, sobretudo, porque uma dada relação assim
comanda. Exemplo desta perspectiva está na argumentação de que “Y roubou
‘pensando na sua família’” (DAMATTA, 1993, p.190). Neste caso, a idéia de
responsabilidade individual e indivisível está em competão com noções
antiindividualistas que dizem que este tipo de atribuição de comprometimento seria
impossível porque as pessoas têm obrigações para com suas relações.
Na terceira tese, Timm (2001, p.9) questiona uma possível desarticulação
da racionalidade violenta, que passe pelo questionamento radical de certos
postulados da razão tidos como intocáveis pelo esclarecimento moderno e que, na
verdade, acobertam a violência exercida contra outras racionalidades possíveis e
reais.
A economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da
sociedade capitalista. Segundo Foucault (2002, p.74), a ilegalidade dos bens foi
separada da ilegalidade dos direitos. Esta divisão corresponde a uma oposição de
classes, pois, de um lado, a ilegalidade mais acessível às classes populares seria a
dos bens, relativa à apropriação violenta de propriedades; de outro, a burguesia, que
reservaria para si, a ilegalidade dos direitos, a partir da possibilidade de desviar seus
próprios regulamentos e leis e de fazer funcionar um imenso setor da circulação
econômica por um jogo que se desenrola nas margens da legislação, através de
fraudes, evasões fiscais, operações comerciais irregulares, etc.. Trata-se de
93
transgressões, freqüentemente impunes no Brasil, graças à burocracia e à
ineficiência e lentidão da justiça. Normalmente, o crime é identificado com o castigo
recebido. Se os infratores não são julgados e condenados, logo o são
identificados com o delito cometido.
Assim, o prejuízo que um crime faz ao corpo social seria a desordem que
introduz nele: “o escândalo que suscita, o exemplo que dá, a incitação a recomeçar
se não é punido, a possibilidade de generalização que traz consigo. Um crime que
apavora a consciência tem muitas vezes um efeito menor que um delito que todo
mundo tolera e se sente capaz de imitar por sua conta” (FOUCAULT, 2002, p.74). É
a sociedade que define, em função de seus interesses próprios, o que deve ser
considerado como crime.
Portanto, além da complexidade do fenômeno, revela-se a presença de dois
códigos em nossa sociedade, complementares e até simétricos. As teorias eruditas
que indicam mecanismos políticos abstratos como causa da violência e o discurso
pessoal, no qual a atribuição da violência a uma causa concreta, que aos
eventos um valor moral (DAMATTA, 1993, p.184). Os questionamentos propostos
serão úteis para se compreender a complexa relação que se estabelece entre a
noção de violência e a sua representação em uma organização fílmica, observando
como as três teses se articulam e estão presentes na produção de documentários.
É no espaço do cotidiano que a vida se revela, se faz e se constrói. Os fatos
e acontecimentos ganham vida, sentidos e significados e vão construindo trajetórias
e caminhos. E neste domínio, a violência e o medo adquirem sentidos. Na
apresentação do drama vivido, no cotidiano, é difícil a identificação de quem são os
mocinhos ou os bandidos. Ambos se confundem na tela do cinema. Pois o
imaginário conduz à multiplicidade de sentidos que cada pessoa confere à sua
existência. Assim, a conexão entre o objetivo e o subjetivo relaciona-se à lógica
contraditorial, que leva em consideração o heterogêneo, com a atuação das pessoas
retratadas sendo marcada por uma “seqüência de instantaneidades, pequenas
porções do real, feito de sinceridades sucessivas”, permitindo o seu reconhecimento
94
no conjunto social, a partir da afirmação de sua alteridade (MAFFESOLI, 1999,
p.94).
O que tem interesse é o momento, o acontecimento que vale por si mesmo,
que está no banal, no cotidiano e não numa situação considerada excepcional.
“Cada objeto, através de sua própria banalidade, está cercado de uma aura que faz
acontecimento” (MAFFESOLI, 1999, p.194). Cada filme se apresenta como uma
duração a ser experimentada, sendo encarado como um conjunto de
acontecimentos, que nem sempre terão um desfecho. São resultado das relações
humanas e produtores de relações, pois organizam modos de socialidade.
95
4. A IMAGEM DA VIOLÊNCIA URBANA NO CINEMA DOCUMENTÁRIO
BRASILEIRO (2002 – 2004)
A atividade de análise fílmica parte do pressuposto de uma perspectiva
fundada na comparação, procurando inventariar nos filmes, um dado número de
relações e regras e desmontando certos arranjos ou combinações, para constatar
como são assumidas. O cinema uma nova visibilidade para elementos presentes
no mundo, pois os objetos, ou o que é apresentado na tela, está deslocado do seu
cenário original. A análise, por sua vez, desloca esses objetos, reagrupa-os e os
observa, novamente, no conjunto de filmes.
Na exploração da forma do discurso da narrativa relacionada à temática da
violência, buscou-se respeitar a personalidade de cada uma das obras. A
heterogeneidade dos temas tratados é grande, o que permite ler os filmes a partir de
vários pontos de vista, dependendo do que se queira privilegiar, pois é impossível
analisar todos os assuntos presentes no espaço de um único trabalho.
Vamos examinar como o fenômeno da violência é apropriado e reelaborado
pelos filmes, sendo introduzido num novo circuito, no qual os elementos associados
a ela são dotados de novo significado. A partir da identificação de uma série de
elementos examinados nos cinco filmes pesquisados, consideram-se os
componentes temáticos, relativos aos espaços onde se localizam as narrativas, os
componentes narrativos, que dizem respeito às personagens retratadas e os
componentes estilísticos, que perpassam as duas categorias anteriores. Para
facilitar a leitura da análise, recuperou-se a tabela ilustrativa da página 32 (Tabela 1).
A análise está dividida em duas partes, relativas ao espaço e à alteridade. A
primeira parte considera os quatro locais principais onde ocorrem as histórias e a
segunda se refere aos três elementos que, juntos, constituem o tema da alteridade.
96
Categorias de análise
Filmes
Justiça; Fala tu; Ônibus 174; O cárcere e a rua;
O prisioneiro da grade de ferro.
Espaço
Componentes
Temáticos
Tribunal Favela Ônibus Presídio
Alteridade
Componentes
Narrativos
Ações das personagens
Discursos sobre violência
Sistema relacional
Componentes
Estilísticos
Montagem; trilha sonora; plano das grades; closes;
Panorâmicas; enquadramento dos corredores;
Presença das fotografias; recurso das cartelas.
4.1 O ESPAÇO URBANO
A noção apresentada se refere à questão do espaço urbano. É constante,
nos filmes selecionados que compõe esta pesquisa, a presença da favela, do
presídio e dos espaços intermediários, como por exemplo, a fronteira entre o cárcere
e a rua, o tribunal, onde ocorre o trânsito de pessoas em julgamento e o ônibus, que
por ser um meio de transporte, também se encontra em uma zona de transição.
É utilizada a expressão “urbano”, porque nos documentários analisados, se
observa a repetição destes locais, situados no âmbito das grandes cidades ou no
seu entorno, representando espaços nos quais a miséria convive com a riqueza.
Segundo Damatta (1991, p.36), nas cidades brasileiras, a demarcação espacial e
social se faz no sentido de uma gradação entre centro e periferia. Apesar de muitas
97
favelas cariocas estarem localizadas geograficamente no centro de bairros, são
consideradas lugares periféricos. Assim, os espaços se constituem em esferas de
significação social, pois “separam contextos, contêm visões de mundo e éticas
particulares” (DAMATTA, 1991, p.53).
Nesta perspectiva, o espaço é ordenado por sua relação com os grupos,
que se combinam e se reformulam, na complexa lógica social que cada sociedade
ordena para si e para seus membros. Na passagem de um grupo social para outro, a
transformação do espaço é sentida como um elemento socialmente importante. Sob
este aspecto, serão utilizadas as noções de casa e de rua, propostas por Damatta
(1991, p.17), pois uma clara divisão entre estes dois espaços sociais
fundamentais que dividem a vida social brasileira, e que não designam apenas
espaços geográficos, mas também esferas de ação, “capazes de despertar
emoções, reações, leis, etc..”
Não se trata de um contraste rígido, mas de um par estrutural que é
constituído na própria dinâmica de sua relação, permitindo uma série de variações,
combinações e contextualizações (DAMATTA, 1991). Na gramaticalidade dos
espaços brasileiros, rua e casa se reproduzem mutuamente, visto que há espaços
na rua que podem ser fechados ou apropriados por um grupo, tornando-se “casa”.
O que tem importância social o é o espaço, senão o encadeamento e a
conexão de suas partes. Neste sentido, nota-se que os lugares não são abordados
de forma isolada. Em cada filme, uma composição das esferas ocupadas pelas
personagens e a sua mobilidade de um domínio a outro. Observa-se que “o espaço
se confunde com a própria ordem social” (DAMATTA, 1991, p.34). São lugares
marcados pela precariedade e pela desigualdade social. O cárcere, o tribunal, a
favela e a atuação da polícia nestes locais, apontam para o nculo dos aparatos de
Estado com estruturas sociais injustas. Os ambientes onde ocorrem as narrativas se
tornam elementos fundamentais, determinantes das histórias de vida apresentadas.
Especificamente, os espaços, presentes nos filmes, são:
98
- Fala tu as três personagens retratadas, Macarrão, Toghum e Combatente,
moram e circulam pelos bairros de Estácio, Belford Roxo, Penha, Bonsucesso,
Favela de Vigário Geral, localizados no Rio de Janeiro.
- O cárcere e a rua as personagens Cláudia, Betânia e Daniela circulam
pelo Presídio Madre Pelletier, pelo albergue feminino da Susepe (Superintendência
de Serviços Penitenciários) e pelas ruas do centro de Porto Alegre.
- O prisioneiro da grade de ferro Complexo Penitenciário do Carandiru, em
São Paulo, considerado o maior presídio da América Latina.
- Ônibus 174 ruas do Bairro Jardim Botânico e do centro do Rio de Janeiro,
Instituto Padre Severino (para menores infratores), cadeia da 26º Delegacia de
Polícia do Rio de Janeiro e favela Nova Holanda.
- Justiça Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Centro de Custódia da
Polinter (Divisão de Capturas da Polícia Civil do Rio de Janeiro), ruas do centro do
Rio de Janeiro e favela.
Existe a articulação dos modos de relacionamento social das personagens,
que perpassa os espaços citados anteriormente e é influenciada por eles. O
ambiente não é uma simples coisa inerte. Na união do físico com o simbólico que
representa, o espaço participa da narrativa, pois é concebido a partir das relações
sociais e se torna mais um elemento que colabora para o entendimento do conjunto
social e do ambiente da época. Segundo Simmel (1986), o espaço é uma forma que
em si mesma não produz efeito algum. Depende das forças que mantém unidos os
habitantes de um território. Sob este aspecto, evoca-se a expressão utilizada por
Maffesoli (1996, p.271), denominada de “enraizamento dinâmico”, para caracterizar
o pertencimento a um lugar, mas nunca de uma maneira definitiva, através de uma
série de situações que desenha uma geografia imaginária, que permite que a
99
pessoa se acomode ao ambiente físico, ao mesmo tempo em que ele é construído
simbolicamente.
Segundo Maia (2009, p.107), “o local, com sua pequena narrativa sobre o
cotidiano banal das pessoas, foi negligenciado por um longo período de tempo
devido aos discursos grandiosos que privilegiavam falas apoiadas em visões de
processos de mundialização cultural”. Se a noção de tempo que prevalece na nossa
sociedade é seqüencial e histórica, a que prevalece no cotidiano é repetitiva e
cíclica. Os documentários costuram mosaicos com os discursos fragmentados que
narram o cotidiano precário. Os ambientes retratados vão sendo recriados, tanto
pelos atores sociais envolvidos como pela própria linguagem cinematográfica
utilizada, criando-se assim, uma narrativa. O espaço do acontecimento banal ganha
destaque, esboçando uma ponte entre o público e o privado. Consolida-se a
“eternidade cotidiana” (MAFFESOLI, 2003, p.65). No perpétuo recomeço de cada
dia, o tempo torna-se lento. Com exceção de Ônibus 174, os outros filmes iniciam e
terminam a partir de pontos arbitrários. Não há passado e nem futuro.
Segundo Caldeira (1984, p.118), no conjunto de fragmentos que enchem o
tempo, “o cotidiano é o insignificante aparente”. É no dia-a-dia retratado nos
documentários, que as personagens adquirem visibilidade e vão se transformando
em caras familiares para o espectador. Como é o caso dos presos, que no
cumprimento da sua pena, buscam sentido para o período vivido nos presídios se
dedicando as mais diversas atividades.
Ao se contemplar o conjunto dos cinco documentários, constata-se a
repetição de certos arranjos no decurso das narrativas. Segundo Aumont (2002), a
montagem é o princípio que rege a produção de significado e que organiza os
significados parciais produzidos num determinado filme. Os documentários
estudados estão organizados a partir de divisões constituídas como se fossem
capítulos, que unidos, formam um conjunto de temas. Neste ordenamento, são
utilizados vários recursos, como o emprego de cartelas, que indicam o local da ação,
o nome da personagem ou uma breve explanação sobre o assunto que será
abordado. Também é utilizado o escurecimento gradual da tela, que assinala uma
100
mudança de assunto no filme ou o uso de tomadas panorâmicas do local onde
ocorre a narrativa. Além disso, os planos abertos de cenas cotidianas e diversos
tipos de enquadramentos que, combinados com as trilhas sonoras, proporcionam a
constituição de uma forma dominante de organização fílmica, que será analisada ao
longo do capítulo.
Inicialmente, será abordado um certo tipo de enquadramento,
constantemente repetido no exame dos documentários, estando presente em
inúmeras cenas. Tratam-se de cenas nas quais as personagens o mostradas,
geralmente, de costas, caminhando por um corredor, que pode estar localizado em
vários lugares, como o tribunal, o presídio, ou a própria rua, por exemplo.
As cenas são caracterizadas por uma espécie de solidão das personagens,
em situação de abandono. A ambientação dos lugares em que se encontram é
geralmente marcada por forte degradação, ocorrendo também ao ar livre, com
pessoas caminhando pelas ruas. Pode-se pensar neste estilo de filmar, como um
emblema da alteridade e do espaço ocupado, reunidos num único enquadramento.
A personagem nos as costas enquanto caminha ou, metaforicamente, somos
nós, que não enxergamos seu rosto? A percepção o é a soma de dados visuais,
táteis ou auditivos, pois se realiza de modo indiviso, através da captação de uma
estrutura única, de uma maneira de existir que fala a todos os sentidos (MERLEAU-
PONTY, 1991, p.105).
O cárcere e a rua
Figura 3: Betânia, foragida do presídio. Figura 4: Cláudia, no corredor do presídio.
101
Justiça
Figura 5: Suzana (esposa do réu Carlos Eduardo). Figura 6: O réu Carlos Eduardo, no Tribunal.
Ônibus 174
Figura 7: Meninos infratores no Instituto Padre Severino
Fala tu
Figura 8: Toghum visita o pai no hospital. Figura 9: Macarrão caminha na favela.
102
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 10: Presos no corredor da Casa de Detenção. Figura 11: Corredor da Casa de Detenção.
Na exposição sobre as noções da casa e da rua, Damatta (1991) aborda a
questão do espaço e, especificamente, do corredor, na casa tradicional urbana
brasileira, que funciona como metáfora para a rua. Pode-se traçar uma analogia com
este tipo de enquadramento observado nos filmes. Geralmente, nas casas, existe
um corredor de circulação, que seria igual à rua como espaço único e exclusivo de
relacionamento de todas as suas peças que operam como se fossem “casas”.
Assim, a rua está para a casa como o corredor está para todos os cômodos. Janelas
e portas fazem a ponte entre interior e exterior. Andar pelos corredores seria
equivalente a percorrer as ruas de uma cidade. As portas que se abrem para ele
seriam como portas de rua e as demais peças equivaleriam a zonas da própria
cidade.
No artigo A cidade contemporânea: leituras e escritas do urbano, Maia
(2009, p.105) refere-se à metáfora da auto-estrada, criada pelo escritor Julio
Cortázar, para uma viagem realizada, na qual o objetivo não era o ponto de
chegada, mas o próprio trajeto. O foco estava no caminho e não no destino,
tratando-se de um lugar de velocidade que se transformou em lentidão deliberada.
Pode-se traçar um paralelo com o simbolismo de lugares de passagem que
concentram a atenção de várias narrativas, como o corredor, o ônibus, o tribunal e
inclusive, o presídio, que apesar de ser um local fechado e protegido, é apresentado
como um lugar de grande circulação. No deslocamento pelo ambiente, é como se as
pessoas observadas nas figuras anteriores, não soubessem para onde ir, logo, a
103
saída encontrada está no caminho que se faz ao caminhar, mesmo que não haja um
destino definido.
4.1.1 O ônibus
Situação fílmica que se repete, freqüentemente, consiste na aparição das
pessoas retratadas em meios de transporte coletivos, mais especificamente, o
ônibus. Um espaço que é visto, rotineiramente, com o objetivo de conduzir
passageiros de um lugar a outro, adquire novo sentido, consonante com a visão das
personagens que assume um tom mais reflexivo.
Em O cárcere e a rua, as imagens iniciais são realizadas de dentro de um
ônibus. Mostra uma das personagens sentada, olhando a cidade pela janela. A
seqüência inicia com imagens em preto e branco, que vão se tornando coloridas. É
quando ela começa a adquirir visibilidade, complementada por uma cartela com o
título do filme. Momento em que a mulher retratada ganha cor e legenda. Logo a
seguir, ela surge caminhando no centro da cidade. Ainda o se sabe onde se
passa a história. Gradualmente, se compreende por que o filme começa daquela
maneira. podemos chegar a este entendimento pela retrospectiva ao início do
filme, com a adição do conhecimento adquirido posteriormente, de que se trata da
primeira vez em que a mulher sai sozinha, após 27 anos de confinamento, visto que
no final do filme, esta viagem de ônibus é retomada.
104
O cárcere e a rua
Figura 12: Cláudia sai do presídio, após 27 anos de confinamento.
No filme Justiça, a mãe e a esposa de um réu transitam entre o tribunal e a
favela em que moram, utilizando este meio de transporte coletivo. também o
rapaz, que após deixar o Centro de Custódia da Polinter, caminha solitariamente à
noite, até subir em um ônibus. Neste documentário, os réus aparecem em ônibus,
enquanto o juiz e a defensora pública se deslocam dirigindo o próprio carro.
Justiça
Figura 13: Suzana, esposa de um réu.
105
Figura 14: Alan deixa o centro de Custódia da Polinter
Em Fala tu, Combatente, após abandonar o grupo de rap feminino, do qual
fazia parte, é mostrada no ônibus, à noite, sozinha e chorando.
Fala tu
Figura 15: Combatente chora, após deixar seu grupo de rap.
Nas situações descritas, as personagens se encontram contemplativas,
apreciando a paisagem pelas janelas dos ônibus, em momentos de silêncio e
solidão, apesar de ser um local movimentado com grande trânsito de passageiros.
Trata-se de uma circunstância peculiar, em que ausência de ação e na qual as
pessoas retratadas se encontram em estado de passividade. Segundo Damatta
(1993, p.194), a necessidade de usar o transporte coletivo “é um dos mais acabados
106
sinais de um estilo de vida subalterno, inferior ou pobre. O transporte coletivo
simboliza o anonimato de uma cidadania com muitos deveres, mas sem nenhum
direito”.
Ao contrário do que ocorre nos filmes abordados anteriormente, em Ônibus
174, o coletivo se encontra parado e toda ação acontece no seu interior. O próprio
título do documentário já indica o lugar da ação principal. O seqüestro de um ônibus,
realizado durante o dia, numa rua movimentada do bairro Jardim Botânico, na cidade
do Rio de Janeiro, revelou toda a fragilidade do aparato policial, para uma situação
de extrema complexidade. O ônibus, cercado de janelas, dava uma boa visibilidade
da ação do seqüestrador, além de estar localizado em uma rua movimentada. Neste
espaço aberto, os policiais não sabiam como proceder. Existia um diálogo paralelo
entre o que acontecia para as câmeras de televisão e o que ocorria dentro do
ônibus, entre seqüestrador e timas. Metaforicamente, o coletivo se transformou
num palco para a atuação da personagem Sandro. A sua invisibilidade é
reconquistada pela polícia através da sua morte.
Ônibus 174
Figura 16: Seqüestro do ônibus.
Damatta (1981, p.189) aponta para a relação existente entre violência e
meios de transporte coletivo:
107
“é enquanto passageiro ou transeunte, isto é, enquanto um
personagem desgarrado e individualizado do grupo primário, que
parecemos estar mais sujeitos ao uso da violência contra o sistema. A
violência acaba servindo como um modo de reintegração ao sistema, não
mais como um indivíduo, mas como uma pessoa com nome, honra e
consideração”.
Ser usuário de transporte público é, no caso do Brasil, o ponto final de uma
massificação que todos tentam evitar. O transporte coletivo também cria outra
tensão, relativa ao fato de apanhar as pessoas quando elas estão entre a casa e a
rua, no momento em que ainda não se foi integrado ao mundo disciplinado do
trabalho e também não se é membro da casa e da vizinhança, contextos em que o
cidadão é visto como pessoa e gente. No espaço ambíguo da rua e neste momento
do transporte público, se é mais sensível ao tratamento igualitário (DAMATTA, 1993,
p.194). Desta perspectiva, as ações violentas sobre os ônibus constituiriam-se no
“sabe com quem está falando?” das massas de indivíduos destituídos e sem voz. É
uma reação, no sentido de ganhar visibilidade. Neste caso, a violência surge como
mecanismo que permite à pessoa ganhar um rosto de cidadão.
Justiça
Figura 17: Televisão mostra incêndio criminoso de ônibus.
108
4.1.2 O presídio
O espaço é um conjunto complexo, formado, simultaneamente, pela
materialidade das coisas e pela imaterialidade das imagens, constituindo assim, uma
ordem simbólica. Segundo Maffesoli (1996, p.264), “o espaço não é uma
grandeza geometricamente perceptível, é, de uma maneira simbólica, o conjunto dos
elementos que fazem comunicação”. Ressalta-se que o espaço existe a partir de um
discurso multiforme, que abrange componentes verbais e não-verbais, como
informações, rumores, imagens, palavras, afetos, etc..
O filme O prisioneiro da grade de ferro se passa no Complexo Penitenciário
do Carandiru. Inicialmente, ocorre a implosão, ao contrário, do presídio. Trata-se de
uma metáfora para a reconstituição do local, sete meses antes da implosão. Há uma
panorâmica do Complexo do Carandiru, que localiza a ação. Na primeira imagem, a
câmera percorre um corredor vazio. A seguir, presos caminham por este corredor,
em direção à câmera. Eles são identificados na história, pelo seu nome e número da
cela. Para retratar as “celas de seguro”, nas quais os detentos estão totalmente
isolados, a equipe de filmagem passa a câmera, através de uma portinhola, para os
presos que se encontram gravarem aquele espaço. Ao mesmo tempo em que
gravam as imagens, descrevem o que vêem. Escolhem os enquadramentos,
enquanto funcionam como narradores do ambiente que está sendo mostrado,
tornando-se uma espécie de anfitriões do lugar.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 18: Complexo Penitenciário do Carandiru.
109
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 19: Detentos no presídio. Figura 20: Corredor do presídio.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 21: Detento fichado.
Exploram-se os corredores e as celas, examinando como os presos
constroem e se relacionam com os cubículos habitados, que são decorados pelos
próprios ocupantes. São caracterizados ainda, outros locais que compõem o
presídio, como a academia, o pátio, o campo de futebol e a enfermaria. Os diversos
110
ambientes são reorganizados pelos presos, de acordo com as próprias
circunstâncias e interesses. A divisão do espaço se dá em ltiplas perspectivas.
grupos ligados a diversas religiões, como a evangélica, a católica e a
umbandista, que se reúnem para rezar ou praticar rituais. os escultores e
desenhistas, que trocam idéias sobre as suas criações. Existem ainda, os que se
dedicam à música, os que jogam futebol ou praticam boxe e assim por diante. Os
agrupamentos possuem uma ética particular e elaboram-se a partir do território
dado, seja ele real ou simbólico.
O presídio se torna o único espaço de ação para os detentos. Local de onde
tentam tirar um sentido para a sua existência. Como observa Caldeira (1984, p.128),
“numa sociedade em que o tempo pode ser perdido ou economizado, tolerar
esperas e vazios e viver o cotidiano como uma eterna disponibilidade para o que se
apresenta como inevitável e necessário pode ser sentido como uma perda”. Sob
este aspecto, cria-se a necessidade de dominar o tempo e lhe imprimir uma direção.
Damatta (2000, p.27) compara o espaço do lar, como algo que contrasta
com a morada coletiva das prisões, dormitórios ou alojamentos, “onde não se pode,
efetivamente, projetar nas paredes, nas portas, no chão e nas janelas a nossa
identidade social”. Mas, observando o entorno dos detentos em O prisioneiro da
grade de ferro, nota-se que as celas e os espaços coletivos como corredores e salas
de convivência adquirem um aspecto que assinala a passagem e a circunstância dos
presos que ali habitam. Às paredes sujas e descascadas, acumulam-se uma
miscelânea de elementos como fotos de mulheres nuas, frases e pinturas dos mais
diversos tipos. Os espaços sociais vão se transformando de acordo com os modos
de vida que vão sendo introduzidos.
111
Ônibus 174
Figura 22: Cárcere de uma delegacia.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 23: Parede de uma cela decorada.
Formam-se comunidades emocionais, no seu aspecto efêmero, na sua
vinculação local, na composição cambiante e na falta de organização. Nota-se a
instabilidade destas uniões, o que faz com que possam existir “imoralismos éticos”
(MAFFESOLI, 1988a, p.16). Aquele domínio é regido por leis próprias que são
respeitadas, inclusive, pelo diretor do presídio. Um dos presos, identificado como um
pastor da comunidade evangélica, revela que a situação dos encarcerados melhorou
112
depois que o PCC (Primeiro Comando da Capital)
16
começou a mandar e, inclusive,
“os estupros acabaram”. Constata-se, neste caso, uma das características das
sociedades relacionais que se refere à presença de vários códigos de
comportamento que operam simultaneamente. Observa-se que a violência é
concebida como algo pessoal e concreto. Isto é, algo voltado contra um ser humano
palpável, tangível e real e não contra categorias abstratas (como um grupo ou
classe), definidas por meio de critérios políticos ou econômicos (DAMATTA, 1993,
p.183).
O poder do PCC, por exemplo, de organizar os presos não é questionado
nem pela direção do presídio, que se beneficia para manter as coisas sob controle.
Aqui, a violência surge como um potente e irreversível recurso para fazer com que
os indecisos se decidam e as facções políticas se definam claramente. A
cordialidade brasileira está dialeticamente relacionada à gica brutal das
identidades sociais, seus desvendamentos e o fato de que o sistema oscila entre
cumprir a lei ou respeitar a pessoa (DAMATTA, 1981, p.167).
No interior das prisões existe uma ordem vigente, dada pelos próprios
presos, que deve ser respeitada. O medo instaura-se se em um contexto em que o
Estado não consegue assumir para si, seu papel legítimo de garantir e manter o
“Estado de Direito” e de gerenciamento dos espaços públicos (BAIERL, 2004). Os
filmes apresentam a precariedade em que vivem as pessoas que estão sob o
domínio do Estado. A conformação e a disciplina deste espaço específico são dadas
tanto pela direção do presídio como pelos detentos, que adquirem outra dimensão
moral e social. A violência brasileira seria um modo desesperado de buscar a
integração política e social de um sistema vivido e percebido como fragmentado,
dividido e dotado de éticas múltiplas, servindo tanto para hierarquizar os iguais
quanto para igualar os diferentes. Seria também um mecanismo fundamental para
juntar a lei com a amizade pessoal e a casa com a rua (DAMATTA, 1993).
Em O cárcere e a rua, ocorre situação semelhante. Daniela, 19 anos,
recém-chegada ao presídio, é suspeita de ter matado a própria filha, violando assim,
16
Trata-se de uma quadrilha organizada, originada em São Paulo, que domina parte do tráfico de
drogas, com atuação em vários presídios no Brasil.
113
a regra estabelecida de que se trata de um crime imperdoável, mesmo para quem
está presa e aguardando julgamento. Ela precisa contar com a proteção da interna
mais antiga e respeitada, que recebe a incumbência da própria diretora do presídio
de dar proteção à jovem que corre risco de vida, visto que as outras detentas não
admitem este tipo de crime e ameaçam matá-la. “A furiosa indiferença pelo social,
extrai sua força da perda, do fato de nada ser e ao mesmo tempo, da certeza, desta
comunhão firmada com os outros” (MAFFESOLI, 2004, p.153). Mesmo sendo moral
em várias áreas, não deixam de possuir certa ética com o grupo. No exemplo dado,
a lei pode ser cumprida, graças à relação que se estabelece entre as detentas,
determinada pela hierarquia, que atribui uma posição de subordinação à mulher que
está presa a mais tempo.
O cárcere e a rua
Figura 24: Presídio Madre Pelletier.
Neste sentido, inserido numa lógica da identificação, o vínculo social se
fortalece, ainda que o presídio seja identificado como um local de passagem das três
detentas, já que as mulheres escolhidas para compor o filme estão em trânsito. Uma
delas está chegando, enquanto as outras duas vão para o regime semi-aberto.
Cláudia, a presa mais antiga do local, declara: “quando chega a hora da liberdade, tu
o envolvida nesse mundo fechado, que é estranho”. Ela está tão inserida e
adaptada àquele contexto, sob a proteção dos muros do presídio, com certa
114
respeitabilidade adquirida junto à direção e às outras detentas, que o próprio
significado da liberdade se relativiza, devido à opressão sentida, na convivência em
sociedade, pelo preconceito que envolve pessoas na condição de ex-presidiárias.
Segundo Foucault (2002, p.165), na utilização de processos de
individualização para marcar exclusões, como o asilo psiquiátrico ou a penitenciária,
todas as instâncias de controle individual funcionam num duplo modo: o da divisão
binária e da marcação, caracterizada como louco/não louco, perigoso/inofensivo,
normal/anormal. Os mecanismos de poder são dispostos em torno do anormal, para
marcá-lo e modificá-lo. Zaluar (2004, p.205) ressalta que o artificialismo das divisões
tornou-se equivocado, tanto no plano das práticas sociais, quanto das idéias e
valores, pois no mundo urbano, a pluralidade de culturas em coexistência, com
comunicação freqüente entre suas divisões, impede que cada uma delas se feche
para as outras. No caso dos documentários sobre violência, se observa que a
exclusão, ao invés de ser caracterizada pela individualidade, é imputada ao grupo.
Estas pessoas formam os lugares, que são compostos de espacialidade, que é dada
por construções imaginárias que compõem o ambiente. O estático espacial se anima
e cria vida.
Neste sentido, é freqüente a identificação das grades das cadeias em portas
e janelas, a partir de planos fechados, proporcionando uma sensação de
claustrofobia. Em observação mais atenta, nota-se que esta percepção é atenuada
pela composição das cenas. Este tipo de enquadramento se repete em todos os
filmes que apresentam o cárcere. Em O prisioneiro da grade de ferro, identifica-se o
plano fechado de uma janela, com suas grades escuras em primeiro plano. Do lado
externo, se a chuva, que cai em um muro imundo e descascado. Sobre ele, um
pássaro pousado. Também se observa, através das grades de uma janela, um trem
que se desloca rapidamente. Há, ainda, imagens externas do prédio, com seus
muros e janelas gradeadas, em um fim de tarde, combinadas com a sonoridade da
música Ave-Maria. Em O cárcere e a rua, cenas semelhantes às descritas, que
mostram a paisagem através das grades de uma janela. A trilha sonora é marcada
por uma suave música de violão.
115
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 25: Janela com grades. Figura 26: Vista do presídio.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 27: Detento observa a cidade, do presídio.
Figura 28: Janela do Presídio do Carandiru.
116
O cárcere e a rua
Figura 29: Vista do presídio. Figura 30: Grades de uma cela.
Nos filmes Ônibus 174 e Justiça, também a predominância de planos
fechados de grades. Este tipo de enquadramento remete à questão da imagem-
tempo e a sua relação com a memória, na qual passado, presente e futuro
coexistem simultaneamente. Não se trata de uma memória psicológica, feita apenas
de lembranças, tal como o flashback poderia representar ou de uma sucessão de
presentes que passam conforme o tempo cronológico. Trata-se de um esforço de
evocação produzido num presente atual ou de exploração de um aspecto do
passado (DELEUZE, 1990).
Nos exemplos, a profundidade de campo apresenta um pássaro, um trem ou
a chuva. Estes elementos poderiam representar a liberdade pregressa ou porvir, do
outro lado das grades. Situação que revela um sistema de contrastes, pois a chuva,
por exemplo, apresenta a dupla significação de fertilização espiritual e material,
que se trata de um agente fecundador do solo. Lugares considerados violentos e
precários adquirem um tom poético, dada a lentidão com que se arrastam as cenas,
mescladas a belas músicas. Observa-se que no filme Fala tu, mesmo não havendo
imagens gravadas em cadeias, o estilo de filmagem das grades se mantêm, em uma
espécie de metáfora para a situação vivida pelas pessoas, em um clima de
sobrevivência, semelhante aos detentos, possuindo pouquíssimas condições
financeiras e cercadas pela violência.
117
Justiça
Figura 31: Celas da Polinter Figura 32: O réu Carlos Eduardo vai para a prisão.
Ônibus 174
Figura 33: Menores no Instituto Padre Severino.
118
Fala tu
Figura 34: Macarrão fazendo jogo do bicho.
É importante salientar que a sua percepção não é dada somente pelo
universo diegético recebido. Também é constituída pela maneira como o ambiente é
apresentado na narrativa, através dos elementos cinematográficos que o constituem
e que se referem aos enquadramentos deste espaço. Exemplificando esta
perspectiva, observa-se em O cárcere e a rua, a alta carga dramática proporcionada
pelo close dos semblantes das detentas, somada à trilha sonora, marcada por uma
suave música instrumental, durante os seus depoimentos. Em Justiça, a maioria dos
enquadramentos dos réus e das pessoas que participam do julgamento, também se
apresenta em planos fechados. Não é possível perceber o ambiente na sua
totalidade, o que proporciona certa sensação claustrofóbica. Além disso, neste tipo
de enquadramento, bastante recorrente nas situações em que ocorrem
depoimentos, a fisionomia da face substitui a pessoa como um todo e esta parte
torna-se mais reveladora do que o resto do corpo.
119
O cárcere e a rua
Figura 35: Cláudia chora. Figura 36: Depoimento de Cláudia.
Fala tu
Figura 37: Toghum canta rap. Figura 38: Depoimento de Macarrão.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 39: Close up de detento
120
.
Figura 40: Detentos nas celas de seguro.
4.1.3 O tribunal
Em Justiça, o tribunal também consiste em um espaço transitório, no qual é
revelada a distância entre juízes e réus. Estes últimos sequer compreendem a fala e
as expressões usadas pelos magistrados. A linguagem jurídica domina socialmente
o ambiente. Um aspecto peculiar marcante se refere ao fato de que, enquanto a
maioria dos documentários, formadores do corpus desta pesquisa, dirige a narrativa
para a esfera das favelas ou cárceres, Justiça se refere especialmente aos réus, que
estão a caminho do julgamento, para serem condenados ou absolvidos. Mas,
simultaneamente, uma contextualização da ação, visto que, são reportados os
locais que constituem as extensões dos tribunais. Os julgados, geralmente, são
oriundos de favelas e aguardam a sentença, após o julgamento, no Centro de
Custódia da Polícia, na cidade do Rio de Janeiro. Em virtude da falta de movimento
da câmera, o espectador adquire certas posições dentro da sala de julgamento e
dos locais mostrados, vendo sob determinados pontos de vista, com o olhar
confinado em planos fechados, nos quais não há movimentação de câmera.
121
Justiça
Figura 41: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Figura 42: Sala de audiência no tribunal.
Os policiais atuam como testemunhas e, sob seus olhares, os réus o
julgados. O sistema judiciário é apresentado como um elo de uma corrente
formada por paradoxos. A defensora pública Ignez contesta a opinião de um
promotor que afirma que “nesse país, ninguém é preso”. Ela argumenta: “e as
cadeias superlotadas? quem preso é ladrão de galinha”. A imobilidade da
câmera e a ausência de trilha sonora é o reflexo, na montagem da narrativa, da
própria imobilidade da justiça brasileira, refém da burocracia. Trata-se de um filme
sem comentários em voz over, sem trilha ou efeitos sonoros complementares,
sem legendas, sem reconstituições históricas e sem entrevistas.
122
Justiça
Figura 43: Réu sendo julgado no tribunal.
Todos os delitos cometidos são conhecidos através de conversas entre a
defensora pública e o u ou por intermédio dos fatos relatados pelo juiz. O
conhecimento sobre os crimes se na palavra dita. Não são mostradas as
vítimas dos réus. O que não deixa de gerar certo interesse sobre a outra versão
das histórias apresentadas. É o oposto do que ocorre, geralmente, nos noticiários
televisivos, nos quais a visibilidade está concentrada sobre as vítimas.
Zaluar observa (2004, p.157) a presença do institucional na configuração do
crescimento da criminalidade no Brasil, com o funcionamento ineficiente e injusto da
justiça, que teve um papel crucial no modo pelo qual veio a se concretizar a crise da
moralidade, o enfraquecimento do ethos do trabalho e a importância cada vez maior
do lazer e do prazer na vida cotidiana. Nesse cenário, a pobreza ganha novos
significados. Pois não se trata somente da privação de bens materiais, relativa à
sobrevivência física, mas também da importância simbólica desses bens, que
afirmariam uma posição hierárquica e uma identidade através do estilo. “A privação
material e simbólica é relativa, ou seja, advém da comparação com os mais
aquinhoados, mas é também decorrente das novas prioridades de consumo”
(ZALUAR, 2004, p.159).
123
Sob este aspecto, um aumento da vulnerabilidade de determinadas
pessoas ou grupos sociais à incidência das violências públicas, com a legitimação
da negação de alteridade com “modelos de criminosos”, dos quais seriam derivados
todos os demais indivíduos que violam as normas penais (SALO DE CARVALHO,
2007, p.37). O foco do combate à violência encontra-se na figura do delinqüente de
classe baixa, como o assaltante ou o trombadinha. Neste sentido, as infrações
praticadas poderiam ser encaradas como uma estratégia de sobrevivência num
contexto no qual, as desigualdades sociais são gritantes. Mas não se pode imputar
mecanicamente a criminalidade à pobreza. Embora a falta de oportunidades de
trabalho com remuneração digna possa levar à criminalidade, não são todos os
pobres que se valem da delinqüência para sobreviver.
A corrupção e a política institucional, predominantemente baseada em
táticas repressivas da população pobre, estariam adicionando mais efeitos negativos
à sua existência. A conivência e a participação de policiais e outros atores políticos
importantes na rede do crime organizado é peça fundamental na constituição da
explosão da violência no Brasil, a partir do final da década de 1970 (ZALUAR, 2004,
p.160). Fato que pode ser observado em Justiça, através das queixas dos réus que
relatam o pedido de propina por parte dos policiais, para o serem denunciados. A
polícia faz parte dos grupos profissionalmente ligados à violência e incumbida de
seu controle, ela tem uma prática que não se conforma necessariamente às regras
prescritas pelas autoridades competentes.
4.1.4 A favela
Ônibus 174 inicia com uma panorâmica das favelas no Rio de Janeiro e vai
em direção às mansões, edifícios e piscinas. A trilha sonora instrumental é forte e
emotiva. Esta seqüência é marcada por falas em voz over de meninos que expõem
as suas dificuldades em viver nas ruas. O fato de se ouvir suas vozes e não se
enxergar seus rostos, demonstra o anonimato destas pessoas. No percurso feito
pela câmera, há a dicotomia entre a favela e o bairro de classe média. Uma metáfora
124
para a jornada de Sandro, pois esta panorâmica também representa o seu
anonimato.
No filme Fala Tu, a primeira cena localiza a área onde se passam as
histórias. É mostrado um subúrbio, vários trens e uma das personagens caminhando
neste local. São mostrados vários bairros na periferia, por onde circulam as pessoas
retratadas. As próprias personagens refletem sobre o cenário que habitam e
circulam. Toghum revela que apanhou da polícia quando era criança. Também foi
obrigado a se despir, durante uma revista policial e levou “tapa na cara”, além de
ter sido chamado de “aviãozinho”. Macarrão afirma que gostaria de continuar
morando no bairro do Estácio, mas não no Morro do Zinco, “por causa da guerra”,
entre os traficantes e os freqüentes tiroteios no local. Em outro momento, a esposa
de um amigo de Macarrão é assaltada e ele afirma que “os bandidos têm que roubar
na zona sul, não na zona norte”. Esta fala mostra a desigualdade social, revelada
pela divisão de espaços. O aumento dos crimes violentos criou medo na população
das cidades e aumentou o preconceito contra os pobres em geral, tidos como os
agentes da violência. Discriminados por morarem no mesmo local que “bandidos”, os
favelados e moradores de bairros populares enfrentam dificuldades, como por
exemplo, os repetidos tiroteios (ZALUAR, 2004, p.162).
Esta situação é condizente com o que afirma Tatiane Alves Baptista (2007,
p.125) no artigo Juventude, consumo e violência: decorrências da desigualdade
social nos dias presentes. Os entrevistados relataram situações em que foram
tratados pelos policiais como bandidos por morarem na favela e serem negros. Os
jovens pobres tornam-se as principais vítimas da criminalidade violenta, seja pela
ação da polícia ou dos próprios delinqüentes, vivendo segundo as regras da
reciprocidade violenta e da vingança privada, devido à ausência de uma instância
jurídica na resolução de conflitos (ZALUAR, 2004, p.162).
Segundo Coimbra (2007, p.132), desde o final do século XIX, se
encontravam presentes nas elites brasileiras as subjetividades que constituem o
dispositivo da periculosidade, que afirma queo importante quanto o que um
indivíduo fez, é o que ele poderá vir a fazer. Assim, dependendo de uma
determinada natureza (pobre, negro, analfabeto, morador da periferia, etc.), a
125
pessoa poderia vir a cometer atos perigosos. A partir da suposta relação entre
pobreza e criminalidade, desenvolve-se a idéia de uma instabilidade atribuída aos
espaços públicos, como favelas, por exemplo, que passam a ser consideradas
territórios perigosos.
Ônibus 174
Figura 44: Imagem de uma favela.
Justiça
Figura 45: Imagem de uma favela, com edifícios atrás.
Exemplifica-se aqui, o caso de Notícias de uma guerra particular (João
Moreira Salles, 1999), por se tratar de um filme emblemático, pois serviu de modelo
para documentários posteriores, através da caracterização de certos elementos
como, por exemplo, o modelo de nomeação dos personagens ou a utilização de
tomadas aéreas. Segundo o cineasta João Salles
17
: “o filme assume o desencanto”.
Nele, se aborda a exclusão do espaço da favela, que é tratada através do esboço
17
Depoimento dado nos extras do DVD do filme Notícias de uma guerra particular.
126
dos três tipos que convivem com a violência naquele domínio: o policial, o traficante
e o morador. Em depoimento, Paulo Lins diz que a mídia descobriu a violência
quando ela saiu do espaço da favela. O chefe da polícia do Rio de Janeiro, na
época, Hélio Luz, é categórico:
como manter os excluídos da favela sob controle? Com repressão (...)
A polícia é política mesmo. Isso aqui é uma sociedade injusta e nós
garantimos essa sociedade injusta. O excluído fica sob controle. Ai dele que
saia disso. Esse país é calmo. Como tem o Fashion Mall entre duas
favelas?.
18
O narrador do filme informa que a favela é um ambiente, no qual o único
segmento do Estado que vai ao morro é a polícia. Neste contexto, uma moradora
chamada Hilda, resume o que significa, para parte dos moradores, as invasões na
favela: “essa juventude tem espírito suicida e protege a comunidade da entrada
violenta da polícia. É o lado bom das armas”. Segundo Maffesoli (1995, p.116), “o
espaço vivido simbolicamente permite compreender que são as representações
coletivas que constituem o meio no qual se vive com os outros”. Além disso, deve-se
levar em conta o componente relacional da vida social. O homem em relação. Não
apenas a relação interindividual, mas também a que liga o homem a um território, a
uma cidade, a um meio-ambiente que é partilhado com outros. A própria rua pode
ser vista e manipulada como se fosse um prolongamento ou parte da casa. É o que
ocorre nas favelas cariocas, onde é difícil demarcar com nitidez os limites das casas
e das ruas. Nos espaços ocorre uma série de relações e se combinam significados
que os transformam não apenas em locais de moradia ou num espaço objeto de
conhecimento, mas num “lugar de reconhecimento”. E este reconhecimento é
possível porque a vida cotidiana estaria baseada em uma espécie de convenção
coletiva que indica a cada um a maneira de se comportar. Se alguém sai das regras,
corre o risco de perder o reconhecimento e tornar inviável a sua vida no bairro
(CALDEIRA, 1984, p.121).
É importante ressaltar que nos documentários, não são informadas a
localização exata dos bairros que são mostrados, o que não deixa de evocar certa
generalização, especialmente para os espectadores que não são familiarizados com
os locais onde ocorrem as narrativas. Em Fala tu, os lugares nos quais se passa a
narrativa, são mencionados pelas personagens ou revelados através de letreiros
18
Depoimento dado no filme Notícias de uma guerra particular.
127
sobre as imagens. São apresentados como, Bonsucesso, Belford Roxo, Penha,
Estácio, Morro do Zinco, Vigário Geral e Baixada Fluminense. Como não
panorâmicas ou qualquer elemento que os caracterize de forma específica, assiste-
se ao filme, como se se passasse num local. À exceção ocorre em Ônibus 174,
porque neste caso, uma panorâmica que percorre parte da cidade até chegar ao
local da ocorrência do seqüestro.
Fala tu
Figura 46: Baixada Fluminense.
Figura 47: Toghum em Belford Roxo.
Filmar o que existe não significa que a realidade fala por si. A geografia
espacial tornou-se fundamental para a realização dos filmes, o que impõe
determinadas linhas ao que vai ser filmado. Segundo Teixeira (2004, p.187), o que
é uma aceitação não-resignada do mundo e uma recusa em apontar saídas,
explicações ou soluções, no estabelecimento de relações complexas entre o singular
128
de cada personagem, de cada situação e o contexto social em que estão inseridas.
São documentários que não tentam explicar, mas compreender certos aspectos do
mundo.
4.2 A ALTERIDADE
4.2.1 Uma vida para ser vista
Xavier (2006) contrapõem a personagem clássica da ficção com a
personagem moderna do documentário. Na ficção clássica, o importante é aparentar
verdade, pela coerência interna das relações, e não buscar o “verdadeiro” no sentido
do fato realmente acontecido. A representação da lógica do mundo envolve a
focalização do que poderia acontecer e que seria mais típico a uma certa ordem das
coisas; na personagem moderna do documentário, a exposição do que
empiricamente acontece em certo local e hora, como um fato que mesmo parecendo
improvável, e que, embora tenha ocorrido, não representaria a ordem do mundo
porque não seria característico. Assim, a ficção abriria um campo em que o dado
chave na definição de uma personagem é sua ação, enquanto no documentário, o
ponto decisivo é a força de cada momento, “o que de revelador em cada instante
da vida, numa série descontínua e até arbitrária de experiências” (XAVIER, 2006,
p.115). O que se faz é a exploração da narrativa na impotência da ação. A
personagem moderna não se define inteira no seu destino, pois o desenlace nem
sempre é a conseqüência lógica de premissas contidas nas ações já vividas.
No documentário contemporâneo se observa uma variedade de caminhos
para a construção das personagens. A atenção pode estar partilhada entre várias
pessoas. Sob este aspecto, nem todos os entrevistados são personagens no mesmo
sentido. Tudo muda conforme a posição de cada um no jogo e na sua relação com o
assunto (protagonista, observador teórico, testemunha, etc.).
129
A construção da personagem também pode estar predominantemente,
concentrada em um único sujeito ao longo do filme como o caso de Sandro em
Ônibus 174. Nesta situação, a personagem é objeto de relatos, quando é dada uma
imagem indireta mediada por outros discursos. a combinação do momento
decisivo, definidor do seu destino, com o retrospecto da sua história, constituído por
depoimentos e o levantamento de informações através de documentos.
O seqüestrador do ônibus 174 é negro, pobre e invisível socialmente. O
filme revela que dois meses antes de sua morte, Sandro procurou Ivone Bezerra
de Mello, que realiza um trabalho social junto aos meninos de rua que vivem em
frente à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, para pedir ajuda. Ele
declarou que não sabia ler, nem escrever, nunca havia trabalhado e não tinha
carteira assinada. Segundo Ivone, ao final da conversa, ele pergunta: “o que vou
fazer?”. Ainda, segundo depoimento de uma tia, ele dizia que queria ser famoso e
aparecer na televisão.
Com o seqüestro do ônibus, ele se transforma em protagonista e
recupera a visibilidade, reafirmando a sua existência social através das câmeras.
Segundo depoimento, dado no documentário, pelo antropólogo Luiz Eduardo
Soares, ocorre um processo de autoconstituição, que se dá pela mediação da
violência através da arma, somada ao seu aparecimento na mídia. Segundo
Soares, “o menino troca a sua alma por esse momento efêmero, da pequena
glória de ser reconhecido”.
A personagem Sandro (Ônibus 174) é abordada a partir de uma
pluralidade, e não com uma estranheza estigmatizada. Sandro é vários,
testemunha do assassinato da própria mãe, menino de rua, sobrevivente da
chacina da Candelária, analfabeto e assaltante. A personagem examinada não
tem a forma de outro monstruoso, mas ao contrário, são mostrados momentos em
que se soma passado e futuro, através da reconstituição de sua trajetória,
atravessando a fronteira entre o real e o fictício, através da fabulação.
130
Ônibus 174
Figura 48: Sandro adolescente. Figura 49: Sandro seqüestrador.
Estabelece-se o paralelo entre Sandro, as vítimas e os policiais. São
formulados vários discursos a seu respeito. o policial que se refere a Sandro
como marginal, a especialista que o chama de menino de rua e a amiga, que ao
descrever como o conheceu, refere-se a ele como um amigo. É ressaltada a
importância das câmeras de TV, que o transformaram em protagonista. o
depoimento de uma menina de rua, com o rosto desfocado, metáfora, para a sua
invisibilidade: “a gente pede á sociedade que enxergue a gente com outro rosto,
porque se eles enxergarem a gente, com o rosto que eles mesmo bota a imagem na
gente, a gente não vai a lugar nenhum”.
A câmera não se ocupa apenas do presente. A personagem é
constantemente ligada ao antes e depois que constituem uma imagem–tempo direta.
E para isso é necessário que a personagem seja primeiro real, é o modo dela poder
“afirmar a ficção como potência e não como modelo”, e é fabulando que ela se
afirma “ainda mais como real e não como fictício”
(TEIXEIRA,
2003,
p.
51).
Desse
modo, qualquer modelo de verdade é desconstruído, para se tornar criador de
verdade, pois não se trata de um cinema da verdade, mas a verdade do cinema.
Neste sentido, se identifica uma complexidade na construção da personagem,
proveniente das relações estabelecidas com o cineasta, somadas à construção do
imaginário do outro, realizada pelo espectador. A pessoa constrói-se na e pela
comunicação. E a imaginação, os sentidos, o afeto, e não apenas a razão, participa
131
dessa construção (MAFFESOLI, 1996, p.310). No decurso da análise, se evidenciou
a convergência desta perspectiva. Quando se observa o conjunto dos cinco
documentários, a articulação de um imaginário da violência constitui-se a partir da
afinidade dos elementos formadores da organização fílmica. Segundo Ismail Xavier
(2006, p.101), “no cinema da voz do outro, a preocupação é afirmar identidades
próprias, fazer a defesa da diferença em contraposição à explicação, que do exterior,
venha impor um sentido às vivências”.
Os documentários partem das histórias de vida de suas personagens, para
a seguir, delinear situações sociais de suas vidas, nos diversos espaços citados
anteriormente, como a favela, o tribunal e o presídio. Revela-se o cotidiano marcado
por uma situação material de precariedade e o seu modo de se relacionar com o
mundo. São pessoas que ocupam posições periféricas na nossa sociedade, além de
não viverem a experiência do mercado de trabalho. Se utilizam de estratégias de
sobrevivência, como a colocação no trabalho informal, por exemplo. Além de
habitarem lugares como ruas, favelas e presídios que são identificados como
ambientes deteriorados, sujos, característicos do não-trabalho e da vagabundagem.
Estes aspectos e as pessoas que moram nestes locais são associados à violência e
ao crime (CALDEIRA, 1984, p.166).
No filme Fala Tu, as três personagens são situadas, na abertura do filme,
através de seus apelidos, idades e os tipos de trabalho realizados. A alteridade
também é marcada através da opção religiosa de cada um. Toghum tem 32 anos, é
vendedor autônomo e budista. Combatente tem 21 anos, é telefonista e pratica o
santo daime. Macarrão, aos 33 anos, é apontador de jogo do bicho e sua família é
evangélica. Todos têm em comum, o desejo de viver exclusivamente da música
estilo rap e a decepção por não conseguirem. Em O cárcere e a rua, a atenção é
dividida entre três mulheres, no trânsito entre o confinamento e a liberdade. Cláudia,
Betânia e Daniela são identificadas pelos seus nomes, através de cartelas. Ocorre
uma série de entrevistas com as detentas, que são associadas a cenas do cotidiano
de cada uma delas. Estes documentários buscam recuperar histórias, em um
processo que procura dar forma, nome e visibilidade a uma identidade. Os filmes
revelam experiências pessoais que reverberam questões sociais mais amplas,
encarnando perspectivas que compartilham histórias de exclusão.
132
Diferentemente dos dois exemplos, O prisioneiro da grade de ferro e Justiça
abordam várias personagens, mas não , de fato, um aprofundamento psicológico
relativo à personalidade ou às motivações das pessoas apresentadas, pois nos dois
casos, o foco prevalece nas ações realizadas no cotidiano, na construção dos
espaços do presídio e do tribunal, levando-se em conta o seu mecanismo de
funcionamento e a imagem da atuação das instituições públicas, marcada pela
incompetência do Estado que resultaria em um universo de pobreza e miséria para
as pessoas retratadas.
Entre os cinco filmes estabelece-se uma série de paralelos e contrastes, em
uma espécie de comunhão de experiências, através da “transmissão de práticas de
lugar e deslocamento, memória e tempo, revelando-se uma tensão entre passado e
presente” (NICHOLS, 2005). Assim, evoca-se a noção da voz do documentário, que
se relaciona com as maneiras pelas quais o filme fala do mundo. Como observa
Nichols, a concepção de voz está ligada à idéia de uma lógica informativa que
orienta a organização do documentário. Ela não é restrita aos atores sociais, mas se
manifesta através de todos os meios de representação disponíveis. Portanto,
identifica-se uma perspectiva semelhante, na relação dos documentários com a sua
compreensão e envolvimento no mundo histórico. O ato de mostrar torna-se mais do
que mero registro, porque está organizado por atos específicos de seleção e arranjo.
Na tendência do documentário atual, uma certa reserva com o recurso
da voz over, referida também como “voz de Deus”, porque ela é identificada com a
voz de uma autoridade que fala em nome do filme, ao descrever uma situação,
apresentar um argumento ou propor uma solução. Nesta perspectiva, este recurso é
utilizado com moderação. Trechos de depoimentos dados pelas personagens são
transformados, posteriormente, em offs. Segundo Caetano (2005, p.137), as
individualizações da instância narradora, que desloca o discurso do narrador para a
personagem, lidam com um acúmulo de vozes e, conseqüentemente, de significados
e posicionamentos. Trata-se da convivência entre duas narrações, a interna (do
personagem), a externa (do autor). A visão do filme se articula na voz da
personagem, cujo discurso pode ser legitimado ou tratado com um enfoque crítico, a
partir da seleção das falas e das imagens, que estão a cargo da direção do
documentário. À exceção do Prisioneiro da grade de ferro, cujas imagens, feitas
133
pelos presos, são narradas por eles mesmos, no momento em que estão sendo
produzidas. Não obstante, o filme Ônibus 174, vale-se ainda, de depoimentos de
especialistas, que a partir das suas reflexões traduzem os dramas sociais vividos
pelas personagens.
Assim, combinam-se dois todos de filmagem, que abrange o
acompanhamento das ações das personagens e a realização de entrevistas. Em O
cárcere e a rua e Fala tu, as personagens emitem opiniões e perguntam coisas para
o cineasta. À exceção ocorre em Justiça, no qual não depoimentos, tratando-se
de um documentário observativo. As pessoas são o que fazem e o que dizem
através das evidências sonoras e visuais.
4.2.2 Sociedade relacional
Damatta (1991, p.115) refere-se à tradição literária monológica da obra
fundada numa idéia e numa personagem central, orientada dentro da tradição
individualista, para a seguir, contrapô-la à obra dialógica ou dialogicamente
orientada onde “o autor o fala do herói, mas com o herói”. O “dar voz”, nos
documentários pesquisados, esboça-se a partir da característica relacional que
marca a sociedade brasileira. Trata-se de um dado estrutural em todas as situações.
Exprime uma condição já institucionalizada, convergente com o nosso imaginário e o
nosso modo de ser. Os filmes refletem este princípio, cristalizado na sociedade
brasileira, referente ao relacional, na maneira como lidam no trato com o outro.
Trata-se de um sistema no qual o valor fundamental é “relacionar, misturar, juntar,
confundir, conciliar. Ficar no meio, descobrir a mediação e estabelecer a gradação,
incluir e jamais excluir”. (DAMATTA, 1991, p.114).
O cineasta deve se tornar “outro”, com suas personagens e o espectador.
Aqui, o pressuposto de que toda comunicação é um deslocamento. “O processo
de construção do imaginário individual se , essencialmente, por identificação
(reconhecimento de si no outro), apropriação (desejo de ter o outro em si) e
distorção (reelaboração do outro para si)” (MACHADO DA SILVA, 2003, p.13). Perde
134
a validade, desse modo, a fórmula recorrente para situar e definir esse tipo de
cinema, no qual as identidades estariam claramente definidas, a partir de quem filma
e quem é filmado. Segundo Teixeira (2003, p.52), “às identidades petrificadas
contrapõe–se às subjetividades nômades” e a forma de identidade eu = eu (ou eles
= eles) deixa de valer para as personagens e para o cineasta, tanto no real quanto
na ficção.
Esta noção é convergente com o que se observa nos documentários. Eles
demonstram a possibilidade de diálogo entre categorias divergentes e subordinadas
pelas hierarquias no mundo diário. Como exemplo, pode-se citar os vínculos que se
estabelecem entre diretor, personagem e espectador e que podem vir a proporcionar
o “tornar-se outro”, num modelo dialógico no qual o cineasta produz a mediação,
propiciando um circuito entre as três partes envolvidas no processo, expressando
um modelo relacional.
É assinalado o fato de que ao delegar a responsabilidade do discurso ao
outro, esta situação se evidencia quando esse outro é de classe social inferior. Sob
este aspecto, seria uma forma de não se colocar e de situar-se pela perspectiva do
indivíduo. Segundo Caetano (2005, p.140), o método das entrevistas foi hegemônico
neste sentido, justificado pela “supostamente generosa atitude artística social de
dar voz ao outro para captar sua alteridade e não reduzir seres singulares a
representações sintéticas de certa realidade”.
No livro Cineastas e imagens do povo, Bernardet (2003, p.286) questiona a
função da entrevista no documentário. Para ilustrar o seu posicionamento, menciona
o episódio em que um amigo lhe disse que queria fazer um “documentário
verdadeiro” e não um filme em que se liga a câmera e se coloca o entrevistado na
sua frente. Este procedimento caracterizaria “a quase totalidade do documentário
brasileiro na atual conjuntura”. Bernardet (2003) considera que a entrevista virou um
cacoete, em virtude da sua generalização. Estaria sendo realizada de forma
automática, remetendo mais ao cineasta do que ao entrevistado. Também critica o
dispositivo espacial, do entrevistado em frente à câmera, pela falta de originalidade e
em detrimento de outras formas dramáticas e narrativas, que acaba por gerar um
135
espaço em que o cineasta seria o centro, visto que, é para esse centro que se dirige
o olhar do entrevistado.
O cárcere e a rua
Figura 50: Depoimento da detenta Cláudia.
Ônibus 174
Figura 51: Depoimento de Ivone Bezerra de Melo.
136
Fala tu
Figura 52: Depoimento de Macarrão.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 53: Depoimento de um ex-diretor de Presídio do Carandiru.
Estende a sua análise para o fato de que a predominância da entrevista
implica, igualmente, a predominância do verbal, estreitando o campo de observação
do documentarista de tudo que não se refira à palavra, relativo ao gestual, etc.. As
informações recebidas são fornecidas verbalmente pelo entrevistado em resposta ao
estímulo da pergunta, sem levar em conta, as que poderiam provir de outros campos
de observação. Este método privilegiaria a relação entrevistado/cineasta, mas não
as interações que poderiam ser apreendidas entre as pessoas filmadas
(BERNARDET, 2003, p.287).
137
Contrapondo-se a esta visão, o recurso da entrevista pode expressar
experiências pessoais, relativas à vida de certo grupo social, de determinada
sociedade, em um tempo específico e num determinado lugar, podendo servir de
referência ao coletivo. Não se trata de um acontecimento corriqueiro, mas de um
momento especial, no qual as pessoas são retiradas do cotidiano vivido ao serem
solicitadas a considerar assuntos dos quais não se fala todos os dias. “Na
articulação dos elementos encontrados, se constrói uma interpretação que é, em
geral, uma ordenação original de coisas velhas, de pedaços de imagens,
experiências, opiniões, etc.(CALDEIRA, 1984, p.144). Esta interpretação é produto
de um momento especial, apresentando-se como um discurso organizado e
contendo uma visão mais global do que se poderia ter no cotidiano. Considera-se
que cada entrevista é uma experiência, pois o que é dito não existia antes e foi
produzido no momento e na relação com o interlocutor.
Esta posição abarca certa lógica contraditorial presente na construção dos
documentários em questão. Pois se busca o cotidiano, a partir de um mecanismo
que se encontra fora da esfera do ordinário de todos os dias. Além disso, o fazer e o
dizer podem não coincidir. Deve-se considerar que a personagem pode estar no
comando do discurso verbal, mas não, necessariamente, à frente, no que se refere
ao visual. O que se pode surgir ou não em relação ao que o personagem diz.
Deixa-se de viver diretamente as experiências mostradas na tela para entrar em
contato com a voz e a mente mediadoras do narrador que não se situam sozinhas,
mas se combinam com as do cineasta, quando este utiliza as entrevistas como
narração em primeira pessoa para as imagens veiculadas.
Neste sentido, a questão se complexifica sobremaneira. Ao se manifestar
determinado aspecto, em um filme, a interpretação não está, necessariamente, dada
de antemão. A seguir, dois exemplos que ilustram esta proposição. Na cena de O
prisioneiro da grade de ferro, na qual os presos se reúnem diante da câmera e um
deles faz um discurso, afirmando que espera que a justiça olhe por eles, pois são
seres humanos e trabalhadores. Esta fala pode ser compreendida com compaixão
ou ironia. No documentário O cárcere e a rua, a detenta Betânia, em seus
depoimentos, enquanto ainda está na cadeia, critica os homens e diz o querer
mais namorar. Afirmação que é desmentida pelas suas próprias atitudes, no decorrer
138
da narrativa, que nos vários encontros com a equipe de filmagem, após se tornar
fugitiva do regime semi-aberto, revela ter se relacionado com vários homens em um
curto período de tempo. Ao final do filme, em uma espécie de epílogo, vemos
Betânia se afastando da câmera, em uma bicicleta. Sobre a sua imagem, surge uma
frase que encerra a sua participação: “ela continua a dizer que homem não presta”.
Nos momentos em que se refere ao sexo oposto, é em resposta às indagações
feitas por sua interlocutora, que optou por esta pauta. Durante os seus depoimentos,
ela não é questionada por mudar constantemente de opinião, revelando incoerência
nas suas posições. Este confronto é relegado para o final, com uma legenda
carregada de ironia.
Ressalta-se que em quatro dos cinco documentários (Com exceção de
Justiça), o dispositivo espacial, do entrevistado em frente à câmera é um recurso
utilizado com certa freqüência, o que torna a aparição deste tipo de enquadramento,
bastante repetitiva. O entrevistado mantém o olhar para fora de campo, em direção a
alguém, que o espectador não sabe quem é, pois não foi informado a respeito. A voz
do interlocutor “fantasma” também não é ouvida. Logo, não o estabelecimento de
um diálogo, mas de um monólogo, dirigido e montado por “alguém”.
Em Justiça, não há o recurso da entrevista, mas esta ausência é preenchida
pelas próprias personagens, a partir da disposição espacial estabelecida pela
câmera. Durante o jantar, em casa, na companhia de sua família, a defensora
pública Ignez discorre sobre a justiça brasileira, com suas falhas e incoerências.
a plena consciência da presença da câmera, posicionada na cabeceira da mesa, o
que porventura, pode ter contribuído para o teor da conversa naquela circunstância.
Neste sentido, a falta de depoimentos é substituída por outra forma convencional de
mostrar uma pessoa.
139
Justiça
Figura 54: Janta na casa da defensora Ignez. Figura 55: Janta na casa do juiz Geraldo
Fala tu
Figura 56: Janta na casa de Combatente.
As personagens encontram brechas, na busca da sua expressão individual.
Em O cárcere e a rua, Cláudia pede informação a um rapaz, na primeira saída, após
ir para o regime semi-aberto. O rapaz, desconfiado, olha para a câmera e pergunta:
“tá gravando?”. Ela responde: “eu não sei mesmo. Sabe por que eu não sei? Porque
eu to saindo da cadeia”. Em outro momento, dirige-se para a câmera e afirma que
está cansada e quer ir embora. Nota-se a dificuldade que tem para se localizar.
Reclama com a equipe de filmagem, que todas as pessoas para quem perguntou
sobre a localização da parada de ônibus, ensinaram o caminho errado e “vocês
deixaram”. Aqui, percebe-se que enquanto a cineasta agia como se Cláudia
estivesse sozinha, esta se conta da artificialidade daquela situação, pois de fato,
140
estava acompanhada de pessoas que a filmavam e que poderiam lhe indicar o
caminho, mas que optaram por se omitir. Daniela, acusada de matar o próprio filho,
se dirige à equipe de filmagem e pede segredo sobre a morte do filho, com medo
das outras detentas. Betânia é acompanhada pela equipe, durante o período em que
se encontra foragida, após fugir do regime semi-aberto. Um clima de cumplicidade
se estabelece entre as três detentas e a câmera. Neste filme, nota-se que as
detentas constroem seus depoimentos e revisam posições sobre determinados
assuntos. Enquanto está presa no regime fechado, Cláudia, por exemplo, afirma que
não aprendeu nada na cadeia. Quando vai para o regime semi-aberto, ela muda de
opinião, ao constatar que aprendeu muitas coisas na cadeia.
Em Fala tu, Macarrão, ao analisar a sua vida, afirma: “se a música fala em
favor de quem não tem coisa nenhuma, o rap é nosso”. Em outro momento, afirma:
“eu não sou ninguém no rap. Nunca dei nada pro rap, e o rap nunca me deu nada”,
contradizendo a opinião dada anteriormente. Ao analisar a sua própria condição
social, manifesta o seu pensamento sobre o cineasta que o retrata: “tu é um cara
que tem um futuro, tá ligado? Essa parada de cinema grana. Nestes exemplos,
se constituem momentos, em que as pessoas retratadas tomam a iniciativa da
palavra, independentemente do instante da entrevista, buscando uma interação, que
pode ser no diálogo com um estranho ou com a própria equipe de filmagem. Esta
questão se refere à auto-reflexividade, que contribui para a impressão de
transparência no documentário, através da constatação da presença da equipe de
filmagem.
Segundo Xavier (2006, p.119), na construção da personagem, as pessoas
se tornam interessantes, quando se libertam do estereótipo, pois “cada um é cheio
de dobras e se faz sujeito na prática, no embate com a situação, ou na invenção de
um modo de viver certa condição”. Trata-se de evidenciar as praticas da oralidade e
dos gestos pelos quais um sujeito se apropria de sua condição. O real se transforma
num componente de uma espécie de fabulação, em que as personagens formulam
idéias, fabulam e se inventam. É um processo no qual há um curto-circuito da
pessoa com a personagem que vai sendo criada no ato de falar e posteriormente, no
processo de montagem (TEIXEIRA, 2004, p.190).
141
Os filmes, apesar de abordarem a pobreza e a violência, não promovem
esta relação de forma automática. Não se dedicam a mostrar um determinado
acontecimento, e mesmo quando o fazem, como é o caso de Ônibus 174, é de
maneira a abordar o cotidiano dessas pessoas, seu dia-a-dia, dramas e
pensamentos de uma maneira não estigmatizada. Neste sentido, constata-se a
incorporação da relação entre a personagem e a câmera, mediante à performance
integrada à narrativa. A própria presença da câmera supõe uma relação, uma vez
que “não existe o estar sozinho no documentário” (EDUARDO, 2008, p.3). Assim, a
imagem documenta, não o que esteve diante da câmera, mas também a maneira
pela qual a câmera apresentou o que se exibe diante dela.
Segundo Damatta (1991, p.119), o romance Gabriela, cravo e canela, de
Jorge Amado, resgata o componente relacional, revelando-se “a fórmula de
entendimento da sociedade brasileira”. Assim, pode-se realizar uma aproximação
com os documentários estudados.
A partir de Gabriela, assume uma posição empírica diante dos
acontecimentos. Deixa de ditar normas e decide captar sentido, significado
e valores por meio das suas personagens. o são as personagens que
dão exemplos e, como modelos de ação, propõem diretrizes; mas é a
relação entre autor, leitor e personagem que parece buscar o sentido, num
constante esforço de reflexão e relativização (DAMATTA, 1991, p.120).
O foco de interesse está em uma vida interior que é capaz de ter tanta força
quanto um diagnóstico econômico e político tradicional. Esta estratégia revela-se na
abordagem realizada pelos filmes. Segundo Nichols (2005, p.205), na inter-relação
do documentário com o mundo histórico, identificam-se duas ênfases: a primeira
destaque às questões sociais e a segunda realça o retrato pessoal. Os
documentários de questões sociais consideram as questões coletivas de uma
perspectiva social. Os que levam em conta o retrato pessoal consideram as
questões sociais de uma perspectiva individual. Nos documentários, o foco está no
indivíduo e não na questão social. As pessoas anônimas passam a existir através do
olhar da câmera, destacados da coletividade. Esta é apresentada implicitamente,
através do contexto em que se encontram os atores sociais. Ocorre uma divisão do
tipo incluído e excluído, com o reforço do discurso erudito e do senso comum que é
dado tanto pelas pessoas retratadas como pelos cineastas. O fundamento do
142
discurso dos entrevistados encontra-se na separação entre “nós” e “eles”,
evidenciando-se a dicotomia entre ricos e pobres, em uma esquematização baseada
num complexo de contrastes, convergente com o posicionamento dos cineastas.
O Prisioneiro da grade de ferro assume esta condição desta forma. Visto
que no início do filme, informa sobre a oficina de vídeo realizada com os detentos,
para a realização do projeto dos próprios presos se filmarem. Não por acaso, o
subtítulo do documentário é Auto-retratos. Graças ao dispositivo criado por
Sacramento a utilização da câmera pelos próprios presos, para que eles registrem
as imagens do que desejam mostrar desvelam-se ltiplas facetas e detalhes da
sobrevivência dos detentos naquele espaço. Segundo Caetano (2005, p.115), a
presença da mera na imagem, reflete uma auto-reflexividade que integra o
processo, por legitimar a entrada do espectador ao ambiente e ao acesso às
imagens e narrativas.
A abordagem das pessoas retratadas se de forma individual e não como
parte de uma estatística. “Há no espaço e no tempo, uma certa liberdade para o
sujeito, para fazer emergir a auto-exposição e um conhecimento de si produzido pela
troca em que, mesmo efêmera, define uma partilha de experiência projetada no
plano” (XAVIER, 2006, p.118).
A constituição das personagens passa pela mediação da câmera, através
das filmagens realizadas pelos próprios detentos. A sua composição é dada,
igualmente, pelas tomadas realizadas, na eleição do que e como será mostrado,
através dos enquadramentos e falas que acompanham as gravações.
Nesta forma de filmar, uma seqüência na qual, detento e cineasta se
posicionam mutuamente. Não se trata da visão do cineasta, nem do detento, mas de
visões em coexistência. Composta por três movimentos, o cineasta retrata o detento
filmando um prédio. Em seguida, vemos a imagem deste prédio, feita pelo preso. Na
cena seguinte, se um plano fechado, do visor da câmera do detento. Nas três
cenas, temos: o olhar do diretor, o olhar do detento e um terceiro enfoque, no qual
cineasta, detento e espectador compartilham a mesma imagem, desfrutando de uma
rara circunstância de coincidência de olhares.
143
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 57: Detento filmando o prédio.
Figura 58: Imagem feita pelo preso.
Figura 59: Imagem do visor da câmera do detento.
144
Em outro momento, um detento tem a tarefa de filmar a sua cela à noite. Ele
segura a câmera e estende a sua mão através das grades da janela, virando a lente
em sua direção. Assim, filma a cela de fora para dentro. Desta forma, explora a
perspectiva do próprio olhar sobre si mesmo. Isto foi possível, porque o “dar voz ao
outro”, significou a liberdade da forma, a liberdade da emancipação para se mostrar.
Naquele instante, o preso foi solto. Na compreensão da sua fala, acolhemos o seu
ponto de vista: “a nossa realidade, por enquanto, é feita de aços e sonhos”.
Metáfora, para a sua imagem na grande tela, com uma câmera na mão e uma idéia
na cabeça.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 60: Detento filmando a si mesmo.
Nestes exemplos, o “dar voz ao outro” não se limita a tomar seus
depoimentos e mostrá-los em seus ambientes. Este modelo é ultrapassado, no
sentido de proporcionar também, a liberdade da forma. Não se trata do que mostrar,
mas do como e de quem mostrará, constituindo-se uma escolha estética para o olhar
do outro. Opção instaurada pelo autor. Revelação de como deseja construir a
imagem da personagem. A câmera, nas mãos e sob a ótica dos detentos, explicita
as regras do jogo. O espectador compartilha desta força presente no filme. “A
câmera participa desta situação, não por mera autenticidade e honestidade para
com o espectador, mas para não se perder o que a câmera pode proporcionar em
relação à percepção, o que pode se produzir de acontecimento em determinada
situação” (XAVIER, 2006, p.116).
145
O prisioneiro da grade de ferro inicia com a exposição de fotografias, em
preto e branco, de um grupo de presos fichados. Em off, cada um diz o seu nome e
o pavilhão em que está preso. São as pessoas que irão filmar o cotidiano do
presídio. Na palestra de triagem, os detentos estão com o mesmo uniforme, o
mesmo corte de cabelo e todos são filmados de costas, como uma multidão sem
nome. Aos poucos, no decorrer do filme, se percebe as suas individualidades,
através das roupas, atividades, decoração das celas, etc.. Ao final do documentário,
a exposição destas fotos é retomada, proporcionando uma circularidade da
narrativa, que retorna ao seu começo. Pois, ao rever as fotos, o espectador está
familiarizado com aquelas pessoas.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 61: Triagem dos detentos.
No decurso da história, vários presos apresentam fotografias da época em
que ainda se encontravam em liberdade, efetuando-se uma espécie de transição no
tempo, na qual passado e presente são confrontados. Um detento mostra uma foto
de uma bela paisagem, com um campo cercado por montanhas, que ele deixa
exposta em um mural na sua cela. Na mesma cena, outro detento aproxima a
câmera da janela e filma a cidade. Ao contrário do tradicional enquadramento das
janelas gradeadas, ele aproxima a câmera da janela e filma o exterior como se não
houvesse grades. Neste momento, narra a cena: “a visão que a gente tem aqui da
cela”. Um terceiro preso utiliza um espelho, chamado de campana, que ao ser
estendido para fora da janela, permite olhar outros ângulos da área externa, mesmo
146
sendo limitado pelas grades. Nos exemplos, ocorre uma expansão da visão, através
de pequenas ousadias em direção à libertação do cativeiro, a partir da inversão do
ponto de vista em uma busca simbólica da liberdade.
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 62: Campana.
Figura 63: Foto de uma montanha.
147
Figura 64: Detento filma cela sem as grades da janela
Observa-se ainda, a figura de um fotógrafo e as fotos feitas por ele, de
presos mortos de forma violenta. São imagens chocantes, que podem ser
mostradas sob a forma congelada da fotografia. Segundo Damatta (1991, p.170), os
mortos “são entidades tipicamente relacionais e, como tal, comandam atenção e
reverência”. Eles são apresentados como uma peça crítica da dinâmica deste
universo social.
Na sua abordagem da representação da morte no documentário, Sobchack
(2005, p.136) aponta para o fato de que um cadáver não é percebido como sujeito,
embora provoque confrontação e faça lembrar da subjetividade e de seus limites
objetivos. Trata-se de um significante do corpo que não tem poder de significar. Atrai
nossa compaixão como objeto que é, sendo índice de um sujeito que era. É o corpo
vivo que constitui o campo sígnico para significar indicialmente o “morrer” e a
“morte”, enquanto o cadáver é o signo icônico e simbólico para o “morto”.
O momento da morte só pode ser representado no contraste visível e
vigoroso de dois estados do corpo físico: “o corpo vivo, intencional e animado e o
corpo como cadáver, carne não-intencional, inanimada, estática”. O cadáver é mais
um signo indicial do “morto” do que da “morte”. Não significa um processo de
transformação, mas uma coisa. Isso não quer dizer que não se reaja ao ver um
cadáver na tela, mas sim, que se reage a ele como se se tratasse de um objeto, de
um “outro” que não nós (SOBCHACK, 2005, p.135).
148
O prisioneiro da grade de ferro
Figura 65: Foto de preso morto.
uma acentuação do presente, que segundo Maffesoli (2003, p.58), seria
uma maneira de expressar a aceitação da morte. “Viver no presente é viver sua
morte de todos os dias, é afrontá-la, é assumi-la”. Esta concepção remete a um
presenteísmo e a encarnação na vida ordinária, demarcando uma intensidade, que
em virtude da precariedade, “se consagra a gozar ao máximo, e o mais rápido
possível” (MAFFESOLI, 2003, p.59).
O cárcere e a rua também apresenta esta transição através da presença da
fotografia. Em depoimento, Cláudia afirma que enquanto estiver no presídio, a cela é
a casa dela. Na mudança do presídio para uma casa de passagem, quando vai para
o regime semi-aberto, leva os objetos acumulados ao longo dos anos na cadeia,
como uma televisão, peças de decoração, utensílios, etc.. No interior da cela, as
fotografias e a televisão representaram as janelas para o mundo exterior, durante os
27 anos em que esteve encarcerada. Ela mostra retratos antigos, em que aparece
ao lado do filho, da família e de amigos, antes de ir para a prisão, condenada por
homicídio. Na evocação de suas memórias, revela-se o contraste com a detenta que
se tornou e a vida que leva dentro do presídio.
Esta situação também ocorre em Ônibus 174, em que são evocadas
recordações, através de fotos da infância de Sandro e sua família, que destoam da
sua imagem aterrorizante captada pelas câmeras de televisão, no dia do seqüestro
149
do ônibus. A foto funciona como uma representação da pessoa que se era, antes de
se entrar no presídio e da situação de liberdade que gozava, em confronto com o
que se tornaram. Caracteriza-se a organização das relações não-cronológicas na
imagem-tempo direta, constituída por esta conjunção de momentos que embaralham
liberdade e cárcere, e conseqüentemente, passado e presente.
O cárcere e a rua
Figura 66: Cláudia mostra uma foto
.
Figura 67: Foto de Cláudia jovem.
Justiça
Figura 68: Foto de um detento fichado.
150
4.2.3 Discursos sobre violência
No artigo As vítimas da violência no Brasil, publicado em 1981, Oliven
(1986, p.20) alertava para o fato da violência urbana ter se transformado no
grande tema do Brasil. Afirma que devido ao “clima generalizado de insegurança e
pânico que se apossou dos habitantes de nossas cidades, negar a existência ou o
aumento da violência seria, no mínimo, uma insensatez”. Quase trinta anos após a
publicação do texto, a questão levantada não perdeu sua atualidade. Ganhou amplo
destaque na nossa sociedade, sendo debatida nos mais diversos fóruns.
Mas, ao contrário do propósito de muitos veículos de comunicação, de
elaboração de propostas concretas e imediatas para a contenção da violência, se
objetiva examinar o que há de subjacente ao fenômeno, nas cinco narrativas fílmicas
propostas para estudo.
Na análise do discurso midiático sobre a violência, Andréia Carvalho e
Silene Freire (2007, p.109) apresentam uma pesquisa cujo foco diz respeito aos
discursos jornalísticos veiculados pela imprensa escrita de grande circulação no
Brasil e que indica a existência de um enfoque diferenciado das notícias sobre
violência de acordo com as características socioeconômicas dos acusados em
questão, pois existiria a tendência para uma leitura mais compreensiva das
subjetividades e das condições que levaram o jovem “bem nascido” ao crime. Ao se
identificar socialmente a violência como obra de bandido, reforça-se a separação
entre “nós, brasileiros de bem”, e “eles”, fortalecendo a idéia de que a violência se
localiza em determinados grupos sociais.
Constatam que os crimes cometidos por pessoas oriundas das classes
média ou alta são tratados como uma anomalia isolada, devido a sua condição
financeira, creditada a algum fator externo, como problemas psicológicos, ou como
resultado de dependência química, que vincularia a violência à ação dos traficantes,
ou seja, aos “outros”, recebendo da mídia, um tratamento mais individualizado, ao
contrário da abordagem dada a jovens pobres, negros ou pessoas territorialmente
identificadas com a pobreza, para os quais são atribuídos termos genéricos como
151
“menores” e “infratores” (CARVALHO; FREIRE, 2007, p.114). Ocorre a construção e
disseminação da idéia de que a ocupação repressora de locais considerados
perigosos conteria a expansão da violência.
a vinculação implícita da associação entre juventude, pobreza e
criminalidade, destacando os números crescentes de uma “escalada” da violência e
da falta de condições do poder público para controlar essa situação (CARVALHO;
FREIRE, 2007, p.115). As causas sociais do problema, na maioria das vezes, não
são lembradas e se diluem na forma sensacionalista em que o relatadas como
notícias.
As queixas contra a postura policial e o discurso que põe a culpa no Estado
são constantes. Em Ônibus 174, o depoimento de Rodrigo Pimentel que discorre
sobre o papel do policial militar. Os policiais também são criticados pelos
especialistas, pelas vítimas e pelos jornalistas em seus depoimentos. O antropólogo
Luiz Eduardo Soares, por exemplo, se refere às prisões como pocilgas. vários
testemunhos sobre a fragilidade da segurança blica e críticas ao aparato policial.
ainda, os discursos dos policiais e das reféns que falam a favor do seqüestrador
do ônibus. Este posicionamento é corroborado pela cena da morte da refém.
Inicialmente, esta seqüência é exibida de forma rápida, em tempo real, com os
movimentos bruscos da câmera, que treme no decurso da ação. A seguir, sob outros
ângulos, a mesma situação é configurada em câmera lenta. As imagens são
acompanhadas pela trilha sonora marcada por uma música instrumental intensa,
concomitante a vários comentários em voz-over, que descrevem a cena. Em todos
os depoimentos, há a defesa explícita de Sandro e a crítica à ação policial.
Segundo Oliven (1986, p.23), é preciso distinguir entre as diferentes formas
de violência existentes no Brasil, como a corrupção, as grandes negociatas, golpes
no mercado financeiro, desvios de verba pública, que causam grande prejuízo
financeiro e geralmente, ficam impunes. São questões relegadas a um segundo
plano, que se eleva à posição de “problema nacional”, a violência urbana nas
grandes cidades. A utilização do termo violência urbana não significa aceitar o fato
de que existe uma violência que é inerente à cidade. Preserva-se a idéia de que a
violência tem raízes sociais e não ecológicas, o que implicaria imputar ao meio
152
ambiente, chamado cidade, a capacidade de gerar violência. Ele se refere à uma
dramatização da violência, que ocorre no nosso país, através da qual se constrói
uma imagem maniqueísta da cidade, dividida em duas, entre homens de bem e
homens de mal, criando-se, assim, um novo bode expiatório, que é a figura do
“marginal”. Esta visão dualista encobre o fato de que as “duas cidades” são, na
verdade, um conjunto articulado, que uma assegura a existência e a reprodução
da outra (OLIVEN, 1986, p.19).
Observa-se que no conjunto dos cinco documentários, uma tendência
para a manutenção do modelo descrito por Oliven, pois se mantêm a imagem
maniqueísta, na direção oposta, a partir de uma inversão de papéis. Os “homens de
mal” mudam de posição com os “homens de bem”. Mesmo proporcionando uma
visão mais individualizada a uma parcela da população sem visibilidade, na tentativa
do reconhecimento da alteridade das pessoas retratadas, a construção baseada na
dualidade é preservada. Sob este aspecto, são omitidos os diferentes aspectos,
relativos à violência, que orbitam ao redor das pessoas retratadas, como por
exemplo, o questionamento dos motivos que levam às pessoas a se encontrarem
presas, e conseqüentemente, a definição do que é ou não é crime no Brasil. Os
filmes se dedicam às conseqüências do tema, não às suas causas.
O plano pessoal é importante neste nível de percepção, o que contrasta
com o discurso erudito, que acentua o universal, o impessoal e o abstrato. Ou seja, a
violência apresentada seria mais profunda e personalizada. Os filmes combinam os
dois tipos de discurso. O do senso comum, dado pelas pessoas que aparecem no
filme e o erudito, mais sutil, dado pela própria construção do documentário. Tanto
um como outro, realçam a culpa do Estado e das classes mais abastadas, para a
situação de miséria em que se encontram as pessoas retratadas.
É significativa a constatação de que não a presença de vítimas nos
filmes que apresentam detentos ou réus. Raramente se sabe por que as pessoas
estão presas. E quando se obtém esta informação, esta é dada de maneira breve,
em depoimentos, sem que se saibam os detalhes. Em O prisioneiro da grade de
ferro, somente dois detentos falam sobre os crimes cometidos. Romualdo informa
que está preso por assalto à mão armada e seu companheiro de cela, Adilson,
153
afirma que cometeu homicídio. Na seqüência, Adilson mostra um desenho, feito por
ele, de duas crianças, que afirma serem os filhos dele. A declaração sobre o crime é
atenuada pela mudança de assunto. Os outros presos apenas citam o artigo pelo
qual foram condenados.
Em O cárcere e a rua, as detentas fazem breve referência ao crime
cometido. Em Justiça, a descrição do delito feita pelos juízes, a partir das
perguntas feitas aos réus. Nos filmes, os crimes revelam-se nas falas das
personagens. São atenuados pela situação de precariedade em que se encontram
as pessoas retratadas. Em Fala tu, as pessoas retratadas expressam a sua relação
com a violência, através da música. As letras de rap abordam temas como as es
de presidários, mulheres de bandidos, dia de visita na cadeia, uso de drogas e
discriminação racial. Ônibus 174 é o único filme em que há, efetivamente, a ação de
um bandido com arma em punho, tratando-se do crime em ato. Nota-se o
depoimento de uma das seqüestradas, que declara ter conversado com Sandro
como se fossem amigos.
Na sociedade brasileira existe uma espécie de combate entre o mundo
público das leis universais e do mercado e o universo privado da família e das
relações de compadrio. É uma sociedade que possui formas diferenciadas de
definição de seus membros, de acordo com o conjunto de relações que se
estabelecem em situações específicas (DAMATTA, 1991, p.92).
Em Sistema penal e violência, Salo de Carvalho (2007, p.33) ressalta que o
modelo criminológico é caracterizado pela negação da alteridade, pela supressão do
outro, pelo não-reconhecimento da diversidade, com a criação de mecanismos
policiais para sua repressão formal. Mas, a compreensão do outro é inseparável de
sua invocação. Neste sentido, o encontro com o outro ocorre com o olhar e implica
ambos. “A violência se manifesta, portanto, quando um toma posse do outro,
consumindo-o aos poucos, controlando-o em suas manifestações, contendo seus
desejos e sua identidade” (SALO DE CARVALHO, 2007, p.34). A constituição dos
mecanismos de repressão não concebe a recepção e o respeito pela alteridade que
descentra, transportando e construindo novos lugares. O Outro é alguém que deve
ser apartado, contido, consumido, não olhado. a dificuldade de compreensão do
154
outro pelos aparelhos repressivos, através da naturalização do crime como
qualidade intrínseca de determinadas pessoas.
Segundo Zaluar (2004, p.162), na violência dentro das prisões, os presos
são as principais vítimas da criminalidade violenta, seja pela ação da polícia ou dos
próprios delinqüentes. E desta forma, a sua imagem é construída no âmbito das
narrativas. Vivem segundo as regras de reciprocidade violenta e de vingança
privada, devido à ausência de uma instância jurídica na resolução de conflitos
internos. Em O prisioneiro da grade de ferro, é possível observar vários depoimentos
de detentos que reclamam “do sistema desfavorável aos presos”.
As quadrilhas organizadas como PCC e Comando Vermelho transformam-
se num poder central, não em algumas favelas, mas também no interior dos
presídios, onde matam rivais e alteram as redes sociais. Segundo Zaluar (2004,
p.212), as extensas redes do tráfico de drogas e armas estão divididas pelos
comandos, compostos por jovens pobres “que se matam uns aos outros por
rivalidades pessoais e comerciais, seguindo o padrão estabelecido pela organização
que cria regras militares de lealdade e submissão”. Os documentários apresentam a
confusão de valores e regras de conduta nas práticas sociais dentro e fora das
instituições.
Os finais dos filmes apontam para a falta de saída ou solução imediata dos
problemas e das situações que afetam as pessoas. Não há luz no fim do túnel. Em O
prisioneiro da grade de ferro, a inauguração de uma nova penitenciária pelo
governador de São Paulo, na época, Geraldo Alckmin. Logo a seguir, se observa um
homem, no pátio do presídio, declamando uma poesia, que termina com o lema do
Comando Vermelho: “paz, justiça e liberdade”. Também são apresentados
depoimentos de ex-diretores do Complexo Penitenciário do Carandiru que criticam o
sistema carcerário. Em Ônibus 174, se apresenta uma situação dicotômica. O
enterro de Geisa, lotado de pessoas que estão para prestar a última homenagem
e o enterro de Sandro, que é acompanhado apenas por sua mãe adotiva. Evidência
de um sistema de contrastes que indica a continuidade das circunstâncias
anteriormente apresentadas. Em Justiça, Fala Tu e O cárcere e a rua, não
desfechos para as pessoas que são mostradas. Elas continuam a seguir suas vidas,
155
com os mesmos problemas que se tornaram conhecidos do espectador, no decurso
do filme, como o desemprego, as dificuldades financeiras e um permanente estado
de precariedade que marca o cotidiano.
Desta perspectiva, a sociedade se reflete e se concretiza em todas as suas
manifestações, encarnando-se tanto na polícia quanto no criminoso. Violência e
concórdia seriam modos pelos quais um sistema de valores se revela. Uma
sociedade se mostra tanto pelo que preza como sagrado quanto pelo que teme e
despreza como crime e violência.
156
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito do trabalho foi o de compreender a construção das imagens da
violência urbana no documentário cinematogfico brasileiro, a partir da seleção de
cinco documentários, que compõem o corpus desta pesquisa.
Pretendeu-se observar a representação da violência urbana no cinema,
tendo como ponto de partida, a análise temática, proposta por Francesco Casetti.
Buscou-se a articulação das noções de espaço e de alteridade, pois estas fazem
sentido em termos relacionais, visto que a constituição dos atores sociais encontra-
se ligada à composição dos espaços e estes, por sua vez, estão organizados a partir
das relações sociais que se constroem nos ambientes.
Assim, foi estabelecida uma rede de observação dos filmes, a partir dos
componentes temáticos, relacionados aos espaços onde ocorrem as narrativas, dos
componentes narrativos, que se referem às ações das personagens, ao sistema
relacional e aos discursos sobre violência e dos componentes estilísticos, que
abordam a linguagem cinematográfica utilizada na construção dos documentários.
A seguir, considerou-se as referências teóricas que colaboraram para
compor a problemática do documentário, a partir da abordagem dos eixos pós-
estruturalista e analítico-cognitivista e a noção de imagem-tempo, abordada na obra
de Gilles Deleuze. Além disso, se caracterizou a dicotomia ficção e realidade no
campo da imagem, uma vez que a definição de documentário torna-se relativa ou
comparativa, definindo-se pelo contraste com o filme de ficção. Na segunda parte,
na caracterização da impressão da realidade no cinema, se problematizou o
mecanismo cinematográfico, na busca da compreensão do imaginário da violência, a
partir da caracterização do ato antropológico da participação e do funcionamento da
subjetividade na produção de imagens, a partir do esquema da projeção-
identificação, proposto por Edgar Morin, que está na origem da percepção
cinematográfica.
157
No terceiro capítulo, se examinou como o social se realiza na narrativa
cinematográfica, a partir do exame do imaginário da violência urbana, levando-se em
conta os discursos sobre violência e a sua percepção na sociedade. São
caracterizados dois modelos, denominados de leitura teórica e discurso popular.
Segundo Damatta (1991), as interpretações dualísticas do Brasil, talvez não
tenham sido capazes de englobar o objeto que pretendiam estudar. Isto ocorre
porque elas estariam coladas à sociedade que pretendiam desvendar, não sendo
capazes de enquadrá-la, ultrapassá-la e vê-la de modo totalizado. Porque não
conseguiram sair de certos espaços da sociedade e, sobretudo, não descobriram
que, no Brasil, mais importante do que os elementos em oposição é a sua conexão,
a sua relação e os elos que conjugam os seus elementos.
Descobrir essas conexões é estudar a sociedade brasileira, sendo capaz de
captá-la em seu movimento, surgindo daí a sociedade relacional. Isto é, um sistema
onde o conjunto tem razões que os termos que ele relaciona podem ignorar,
corroborando assim, com a proposição de Morin sobre a relação das partes com o
todo. Damatta (1991) ressalta a importância do estudo do “&” que liga a casa-grande
com a senzala, por exemplo. Esta idéia também remete à relação dialógica proposta
por Maffesoli. Existem sociedades onde os indivíduos o fundamentais e
sociedades onde as relações é que são valorizadas, como no caso do Brasil.
Assim, se observa o reflexo de uma lógica contraditorial presente nos
documentários estudados. O modelo relacional estabelecido entre cineasta e
personagem está colado à sociedade que os filmes almejavam revelar e na escolha
do que e como seria mostrado.
Não existe uma articulação geral de todos os fragmentos em que se dividem a
experiência e os discursos, mas isso não significa que as partes estejam
desconexas ou isoladas. algumas maneiras de articular fragmentos,
estabelecendo nexos entre eles. Deve-se considerar que a própria experiência
cotidiana é fragmentada. É através da descoberta dos mecanismos de composição,
de organização, de significação e de ambigüidade, que se pode estabelecer a
158
coerência ou as contradições entre eles, constatando-se como se esse arranjo
nos documentários.
Evoca-se a combinação de locais com infraestrutura precária, que são
vistos com enquadramentos minuciosamente concebidos, associados a belas
músicas e closes que “retiram” as pessoas daqueles ambientes, em determinados
momentos marcados pela reflexão, na busca por um aprofundamento psicológico
das pessoas retratadas.
A vida de cada personagem relaciona-se com o coletivo através do discurso
erudito assinalado pelo papel desempenhado pelo Estado, detentor do monopólio
legítimo da violência. Nos documentários, clama-se por uma configuração mais justa
no exercício das funções de policiamento e repressão por parte do governo. Sob
este aspecto, revela-se a situação de abandono dos presos em O prisioneiro da
grade de ferro. A dependência de uma detenta que precisa contar com a proteção
da interna mais antiga para não ser morta pelas outras presas, uma vez que a
direção da penitenciária não é capaz de garantir a sua segurança, em O cárcere e a
rua. Através da queixas generalizadas dos réus, que revelam a exigência de propina
por parte dos policiais, em Justiça. No tratamento negligente dado a Sandro, nas
diversas instituições para menores infratores pelas quais passou, em Ônibus 174. E
no desemprego, na discriminação e na violência sofridas pelas pessoas retratadas
em Fala Tu.
Evidencia-se a violência privada praticada pelo Estado e sofrida pelos
atores sociais. O exame da questão se sob uma perspectiva dicotômica, sendo
abordado a partir da divisão de classes sociais, na configuração dos pares pobreza x
riqueza, incluídos x excluídos, nós x eles, englobando não o Estado, como a
própria sociedade.
Desponta um movimento inverso ao que se observa, normalmente, nos
noticiários televisivos, visto que estes particularizam a visualidade das vítimas de
crimes, principalmente se forem de classes média e alta. Nos documentários, quem
surge são as pessoas com menor visibilidade midiática, que se realiza de forma
individualizada. São os pobres e os infratores, retratados como timas em potencial,
159
a partir da constatação da violência policial sofrida por eles e das experiências
dolorosas e violentas que tiveram com as instituições encarregadas de representar a
lei. A caracterização predominante da vítima, que normalmente se observa nos
programas jornalísticos, desaparece. Mas, neste ponto, ocorre uma inversão. O
papel de vítima passa ser assumido por quem é visto, normalmente, como algoz.
Como em Ônibus 174, no qual as pessoas que se encontravam sob a mira do
revólver do seqüestrador analisam a circunstância vivida durante o cerco ao ônibus.
Momento significativo, visto que nos depoimentos uma convergência da imagem
construída em torno de Sandro, que é visto como uma vítima da sociedade, inclusive
por aqueles que sofreram o seqüestro.
Os documentários contemplam a questão referente ao estereótipo. Existe,
predominantemente, a presença visual de cidadãos pobres, negros e moradores de
periferias, alvos do modelo tradicional de polícia repressiva, associada à imagem de
pobreza e violência e retratada nas favelas, nas salas de julgamento e nas prisões.
Além disso, a maioria das personagens tem pouca escolaridade,
discriminadas pela sua etnia e por sua situação econômica e social. também as
figuras dos presos e réus e, conseqüentemente, o preconceito que envolve pessoas
nesta condição. Mas não uma problematização em torno dos motivos que levam
determinadas pessoas a serem mostradas em detrimentos de outras. Neste sentido,
há um reforço do estereótipo.
a manifestação de uma lógica contraditorial, que simultaneamente,
mantêm o estereótipo e procura desfazê-lo. Diante disso, mesmo que ocorra a
tentativa de sua desconstrução, se observa o seu reforço, pois não variação nos
tipos abordados, tratando-se do pobre, negro, morador da periferia, etc.. O
imaginário da violência está ligado a esse tipo de representação. Existe também
uma periculosidade atribuída a certos espaços. Os documentários acabam
legitimando esta circunstância, uma vez que as subjetividades que constituem este
dispositivo, afirmam que tão importante quanto o que um indivíduo fez, é o que ele
poderá vir a fazer. Assim, dependendo de uma determinada natureza (pobre, negro,
analfabeto, morador da periferia, etc.), a pessoa poderia vir a cometer atos
perigosos. A partir da suposta relação entre pobreza e criminalidade, desenvolve-se
160
a idéia de uma instabilidade atribuída aos espaços públicos, como favelas, por
exemplo, que passam a ser consideradas territórios perigosos. Os documentários
não interpelam este posicionamento.
Há a percepção de que os documentários realçam certos modelos, visto que
exibem, por exemplo, detentos nos presídios, em uma circunstância na qual o crime
é identificado com o castigo recebido. Mas se os infratores não forem julgados e
condenados, não serão identificados com o delito cometido. A violência é
compreendida como negação de uma alteridade e pode se expressar no uso
indiscriminado da força física ou psicológica, representada pela dominação do outro,
como instrumento para potencializar o medo. Além disso, constata-se a atenção
dada a formas múltiplas de negação de alteridade que não se dão da mesma
maneira à visibilidade. Contudo, não um questionamento sobre o que pode ser
considerado crime, através da desarticulação de certas premissas. Sob este
aspecto, mantêm-se a divisão entre a ilegalidade dos bens, mais acessível às
classes populares e referente à apropriação violenta de propriedades, priorizada nos
documentários e a ilegalidade dos direitos, correspondente ao desrespeito às leis
que possibilita transgressões ligadas, por exemplo, a setores de circulação
econômica, possibilitando, fraudes, evasões fiscais, etc., que, geralmente, contam
com a burocracia e lentidão da justiça. Assim, é a sociedade que define, em função
de seus interesses próprios, o que é considerado crime, em uma posição
corroborada pelos filmes em questão.
Diante disso, não se instaura uma problemática sobre as normas a partir
das quais são concebidos os fenômenos criminosos. Não se sabe por que as
pessoas se encontram presas, com raras exceções. O foco de interesse está no
cotidiano e nas relações que se estabelecem. São encaradas como vítimas pela
forma como são tratadas nos presídios, mas o um exame do fundamento do
processo que leva as pessoas ao encarceramento. As exceções ocorrem em Ônibus
174, no qual há um fio condutor que leva a um entendimento da situação do
seqüestrador. E em Justiça, que apresenta processos de julgamento e logo, os
motivos que levam uma pessoa a ser presa. A frase da defensora pública elucida a
questão, neste sentido: “no Brasil, só tá preso quem é ladrão de galinha”.
161
Revela-se a presença de dois códigos em nossa sociedade, que se
caracterizam através das teorias eruditas que indicam mecanismos políticos
abstratos como causa da violência e o discurso pessoal, no qual a atribuição da
violência a uma causa concreta, dando aos eventos um valor moral. Trata-se de um
discurso que culpabiliza o Estado, mostrando como as pessoas sobrevivem em um
estado de precariedade.
Os filmes valem-se do estereótipo da violência, para tentar desconstruí-lo,
em uma tentativa de não estigmatizar as pessoas. Neste sentido, identificou-se uma
direção na maneira como são realizados, a partir da utilização dos elementos
cinematográficos, explorando as possibilidades da imagem, como por exemplo,
através da presença da fotografia, que contribui para a noção da alteridade, no
confronto entre passado e presente das pessoas retratadas, de um enquadramento
constantemente repetido em todos os filmes, que mostra pessoas caminhando por
um corredor, como se estivessem em um labirinto, sem rumo definido, das cenas
que se passam no interior de ônibus, privilegiando momentos de introspecção, nos
planos fechados das grades das cadeias, que proporcionam uma sensação
claustrofóbica, atenuada por músicas instrumentais, geralmente suaves e poéticas.
No que diz respeito à relevância do espaço, os próprios títulos dos
documentários fazem referência aos locais nos quais se passam as narrativas.
Quatro dos cinco filmes mencionam os ambientes, com exceção de Fala tu, que
reporta a uma gíria. Sua importância reside no fato de serem concebidos e se
transformarem a partir das relações sociais, possuindo um papel central ligado à
concepção do cotidiano. Em O prisioneiro da grade de ferro, cada detento é
encarregado de mostrar um ambiente do presídio. Em O rcere e a rua, o
espaço das celas na penitenciária e a casa que as presas habitam quando vão para
o regime semi-aberto. Justiça mostra as salas de julgamento, o movimento de
pessoas pelos corredores do tribunal, os defensores e juízes no espaço do lar e a
prisão, na qual se encontram os réus detidos preventivamente. Ônibus 174 explora
os lugares pelos quais Sandro passou em cada etapa de sua vida. E em Fala tu, as
personagens transitam por vários bairros do Rio de Janeiro, identificados através de
cartelas. Os documentários costuram mosaicos com os discursos fragmentados que
162
narram o dia-a-dia precário. A própria divisão fílmica se a partir da repartição dos
espaços.
Neste sentido, é no cotidiano que a vida se revela e se constrói. É onde os
fatos adquirem sentidos e constroem trajetórias. Neste domínio, a violência e o medo
adquirem sentidos. È o lugar no qual estilos de vida e papéis não se apresentam
como unidades, mas como fragmentos, decompostos em pequenas parcelas, em um
amontoado de tarefas que se vai fazendo quase que automaticamente. a
fragmentação dos relatos e da própria experiência dos atores sociais, captada
através da montagem e dos enquadramentos semelhantes, em uma espécie de
dramaturgia documentária compartilhada pelos documentários. Não distinção
entre as diferentes formas de violência. Na questão da visualidade, referente à
imagem de pobreza e miséria apresentadas, nãode fato, o uso da força corporal,
mas a ameaça à integridade física ou moral das pessoas retratadas.
Quando as pessoas são exibidas fazendo algo incorreto ou fora da lei, como
mostrar os facões usados para se defender no interior do presídio ou embalar
pedras de crack, como ocorre em O prisioneiro da grade de ferro e da mesma forma,
no Ônibus 174, em que um bandido encapuzado explica como o seqüestrador
deveria ter agido para não ser morto, sugerindo que se estivesse encurralado como
ele, teria matado as pessoas no interior do ônibus. Em ambos os casos, as pessoas
não são mostradas, sob pena de serem reconhecidas, perdendo assim, o rosto e
conseqüentemente, a identidade, tornando-se alguém e ninguém, ao mesmo tempo.
Logo, as outras pessoas retratadas, com seus rostos expostos, não são identificadas
com os tipos de ato mostrados. Além disso, os depoimentos dessas pessoas culpam
o Estado que não proporciona condições para uma sobrevivência digna, o que
provocaria a preferência pela atividade ilícita praticada.
A violência brasileira seria um modo de buscar a integração política e social
de um sistema vivido e percebido como fragmentado, dividido e dotado de éticas
múltiplas, servindo tanto para hierarquizar os iguais quanto para igualar os diferentes
e servindo como um mecanismo fundamental para juntar a lei com a amizade
pessoal.
163
O foco dos documentários se encontra no questionamento do modelo
repressivo e da conivência e participação de policiais na rede do crime organizado.
Não evocam a problemática do que é ou não considerado um delito ou um crime. O
que é a constatação de uma situação precária na qual os atores sociais se
encontram, e a crítica, mesmo velada, a esse sistema, além da reivindicação por um
tratamento mais digno para essas pessoas.
A constituição dos mecanismos de repressão não concebe a recepção e o
respeito pela alteridade que descentra, transportando e construindo novos lugares.
O Outro é alguém que deve ser apartado, contido e não olhado. a dificuldade de
sua compreensão pelos aparelhos repressivos, através da naturalização do crime
como qualidade intrínseca de determinadas pessoas. A preocupação com o papel
do Estado na gestão pública advém da preocupação com os mecanismos de
repressão que deveriam ter respeito pela alteridade. As queixas contra a postura
policial e o discurso que põe a culpa no Estado são constantes.
A questão está no modelo criminológico adotado e na exclusão das
pessoas. Ao se identificar socialmente a violência como obra de bandido, reforça-se
a separação entre “nós, brasileiros de bem”, e “eles”, fortalecendo a idéia de que a
violência se localiza em determinados grupos sociais. Mas esta dicotomia entre “nós”
e “eles”, se mantém, uma vez que as pessoas retratadas assumem o papel de
vítima.
Diferentes gradações podem ser estabelecidas nas relações de alteridade
entre cineasta, personagem e espectador. Assim, a concepção de voz está ligada à
idéia de uma lógica informativa que orienta a organização do documentário. Neste
sentido, é determinante que se pense sobre o tipo de imagem de periferia, pobreza e
violência, construída pelos filmes em questão. Os finais dos filmes, por exemplo,
mostram a continuidade de uma série de circunstâncias. O “dar voz” nos
documentários pesquisados, esboça-se a partir da característica relacional que
marca a sociedade brasileira, tratando-se de um dado estrutural em todas as
situações, não possuindo necessariamente relação com o “tornar-se outro”, pois no
caso dos filmes aqui estudados, o espectador não possui contato com o cineasta,
164
nem com a sua voz e tampouco com a sua imagem. As falas dos atores sociais são
constituídas em uma espécie de monólogo e o outro encontra-se apenas na direção
do olhar do entrevistado. De um lado, se tem os acontecimentos, as ações, os
espaços e as pessoas evocadas e de outro, esta forma de convivência, a partir de
um modo de contato, no qual a relação dialógica é excluída da narrativa.
Este ponto se constitui em uma marca deixada pelos filmes quando
observados em conjunto. No caso dos documentários em questão, os cineastas são
unidos pelo tema e pelo estilo, a partir de elementos formadores do imaginário como
os temas abordados pelos diretores, as personagens, a época e os locais em que se
situam as histórias, a construção da narrativa, a montagem, a maneira como
mobilizam a câmera, os enquadramentos, etc.. Assim, identifica-se um imaginário
social compartilhado pelo conjunto dos filmes estudados. Pois a significação torna-se
parte integrante da constituição da própria socialidade.
165
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Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/spp/n38/n38a02.pdf>
174
ANEXOS
175
ANEXO A
Tabelas da Ancine
Filmes lançados entre 1995 e 2008
176
177
178
179
180
181
182
183
184
185
186
187
188
189
190
191
192
193
194
ANEXO B
Tabela da Ancine
Público e renda por ano e gênero
195
196
197
198
ANEXO C
Fichas técnicas
199
O prisioneiro da grade de ferro (auto-retratos)
Direção: Paulo Sacramento
Produção: Gustavo Steinberg e Olhos de Cão Produções Cinematográficas
Duração: 123 minutos
Ano: 2004
Cidade: São Paulo
Roteiro: Paulo Sacramento
Fotografia: Aloysio Raulino
Montagem: Ide Lacreta e Paulo Sacramento
Técnico de som direto: Louis Robin e Márcio Jacovani
Mixagem: Ricardo Reis
Suporte de captação: Vídeo (Mini DV)
Suporte de projeção: 35 mm
200
Fala tu
Direção: Guilherme Coelho
Produção: Maurício Andrade Ramos, Mano Tales, Nathaniel Leclery
Co-produção: Matizar e Videofilmes
Duração: 74 minutos
Ano: 2003
Cidade: Rio de janeiro
Roteiro: Nathaniel Leclery
Fotografia: Alberto Bellezia
Montagem: Márcia Watzl
Som: Leandro Lima
Distribuição: Riofilme
Suporte de captação: DV cam
Suporte de projeção: 35 mm
201
Justiça
Direção: Maria Augusta Ramos
Produção: Luís Vidal, Niek Koppen, Jan de Ruiter e Rennée Van der Grinten
Duração: 100 minutos
Ano: 2004
Cidade: Rio de Janeiro
Roteiro: Maria Augusta Ramos
Fotografia: Flávio Zangrandi
Montagem: Virgínia Flores, Maria Augusta Ramos e Joana Coilier
Estúdio: Selfmade Films, NPS e limite Produções
202
Ônibus 174
Direção: José Padilha
Co-direção: Felipe Lacerda
Produção: José Padilha e Marcos Prado
Co-produção: Rodrigo Pimentel
Duração: 128 minutos
Ano: 2002
Cidade: Rio de janeiro
Fotografia: César Moraes e Marcelo Guru
Montagem: Felipe Lacerda
Música: João Nabuco e Sasha Ambak
Distribuição: Riofilme, Think Film e Zazen Produções
203
O cárcere e a rua
Direção: Liliana Sulzbach
Produção: Annette Bittencourt, Everson Nunes, José Pedro Goulart, Ricardo
Baptista da Silva, Zeppelin Filmes
Duração: 80 minutos
Ano: 2004
Cidade: Porto Alegre
Estúdio: Kiko Ferraz Studios
Roteiro: Liliana Sulzbach e Ângela K. Pires
Fotografia: Sadil Breda
Montagem: Ângela K. Pires
Distribuição: Pandora Filmes
204
ANEXO D
Cartazes dos filmes
205
206
207
208
209
Livros Grátis
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