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UNIVERSIDADE DE SANTA CATARINA UFSC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
JOHANNA WOLFRAM HEUER
A NORMATIZAÇÃO DOS SEPULTAMENTOS EM NOSSA SENHORA DO
DESTERRO: Uma história funerária
FLORIANÓPOLIS
2004
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JOHANNA WOLFRAM HEUER
A NORMATIZAÇÃO DOS SEPULTAMENTOS EM NOSSA SENHORA DO
DESTERRO: Uma história Funerária
Dissertação apresentada como requisito à
obtenção do grau de mestre em história
cultural. Departamento de História. Centro de
Ciências Humanas. Universidade Federal de
Santa Catarina.
Orientadora: Maria Bernardete Ramos Flores
FLORIANÓPOLIS
2004
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AGRADECIMENTOS
O primeiro agradecimento é para a minha orientadora Bernardete, que
respeitou o meu ritmo e fez sempre intervenções acertadas. Além de ser uma
profissional singular, tem grande sensibilidade.
Agradeço também ao Marlon que esteve ao me lado e ajudou a encontrar
meu caminho profissional. Obrigado pelo apoio, pelas conversas e por acreditar em
mim.
Também não poderia esquecer todo o pessoal dos arquivos públicos: o
Arquivo Público Estadual, a Biblioteca de Obras Raras da UFSC, o arquivo
Municipal, a Cúria Estadual, o arquivo da Irmandade dos Passos e especialmente a
Biblioteca Estadual. Agradeço a eles não por mim, mas também pelos outros
pesquisadores, pois eles conhecem o acervo e fazem questão de ajudar e dividir a
informação.
Outro agradecimento vai à Gláucia e ao Marcos também foram muito gentis
dividindo as mesmas angústias ou guardando fontes que me interessavam.
Obrigada também à minha família, que acompanhou o processo à distância,
mas sempre me apoiou e ofereceu porto seguro.
Finalmente agradeço ao meu namorado Cristiano, que tem estado ao meu
lado nos últimos anos e me faz muito feliz.
RESUMO
Esta dissertação trata do surgimento dos cemitérios públicos de Nossa Senhora do
Desterro. Para tanto, acompanha a transição dos enterros realizados nos cemitérios
adjuntos das igrejas, até a criação das primeiras necrópoles públicas. O trabalho
aborda o momento de transição da relação com o corpo morto, quando o cadáver se
torna um problema para a Higiene. Assim, acompanha o debate que ocorreu em
torno desta questão até a mudança de práticas em relação ao corpo morto.
Apresentamos como ocorreu o processo de criação e transferência das necrópoles
para longe do núcleo urbano, bem como a adequação destes espaços às novas
normas higiênicas. Aqui são abordados os elementos que faziam parte das
necrópoles públicas, além do funcionamento da estrutura de controle dos
sepultamentos. Mostramos ainda como as práticas em relação ao sepultamento
estiveram ligadas não só ao perigo que representavam os miasmas, mas também ao
controle populacional. Por fim, o trabalho apresenta as questões que estiveram à
criação da segunda necrópole pública de Desterro já no início do século XX.
Palavras-chave: Cemitérios públicos, Nossa Senhora do Desterro, História
ABSTRACT
This dissertation deals with the emergence of public cemeteries of Nossa Senhora do
Desterro. Thus, it follows the transition of burials in the cemeteries near the churches,
to the creation of the first public necropolis. The paper focuses on a moment of
transition in the relationship with the dead body when the body becomes a problem
for hygiene. Thus follows the debate that took place around this issue with the
changing practices in relation to the dead body. The process of creation and transfer
of burial away from the urban core is shown, as well as the adequacy of these
spaces to the new hygiene laws. Here are discussed the elements that were part of
the public cemeteries, and the operation of the structure control of the burials. We
also show how the practices in relation to the burial were linked not only to the
danger that represented the miasma, but also to issues of population control. Finally,
the paper presents the questions that where connected to the creation of the second
public cemetery of Desterro early in the twentieth century.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 6
CAPÍTULO 2 MORRER EM DESTERRO ................................................................. 16
2.1 ANTIGAS PRÁTICAS ................................................................................................ 16
2.2 O CAMPO SANTO ................................................................................................... 17
CAPÍTULO 3 O CADÁVER E A HIGIENE ................................................................ 28
3.1 A MUDANÇA DAS PRÁTICAS ..................................................................................... 28
3.2 O PRIMEIRO EXÍLIO DOS MORTOS ............................................................................. 34
3.3 O CADÁVER SE TORNA UM PROBLEMA ...................................................................... 37
CAPÍTULO 4 A CONSTIUTIÇÃO DOS NOVOS ESPAÇOS .................................... 44
4.1 AS NOVAS NECROPÓLES ......................................................................................... 44
4.2 CIDADE DOS VIVOS, CIDADE DOS MORTOS ................................................................ 50
4.3 O CEMITERIO ALEMÃO ............................................................................................ 52
4.4 CEMITÉRIO COMO ESPAÇO HIGIÊNICO ....................................................................... 54
4.5 A ARBORIZAÇÃO DOS CEMITÉRIOS ........................................................................... 57
4.6 O ADMINISTRADOR E O COVEIRO .............................................................................. 60
4.7 A RESPONSABILIDADE DO ENTERRO E A RENDA DOS CEMITÉRIOS ................................ 63
4.8 A MORTE EM NÚMEROS .......................................................................................... 65
4.9 O CONTROLE DEMOGRÁFICO .................................................................................. 69
CAPÍTULO 5 O LUGAR DA MORTE ....................................................................... 76
5.1 O SEGUNDO MOMENTO DAS NECRÓPOLES .............................................................. 76
6 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 95
FONTES PESQUISADAS ....................................................................................... 100
6
1 INTRODUÇÃO
A morte vem sendo há muito tempo tema privilegiado na literatura e na
filosofia. Assim, temos toda a literatura romântica do século XIX, onde a morte e os
temas trágicos fizeram parte da criação artística. No entanto, nas ciências humanas
é percebido um silêncio em relação à ela.
Porém, a partir da década de 50 do século XX a morte também começou a
ser objeto de estudo para a história e a sociologia. Se essas disciplinas estudavam
áreas do cotidiano como a sexualidade, a família e o lazer, em se tratando da morte
esses estudiosos se calaram. Assim, isoladamente, somente historiadores da arte
fizeram trabalhos sobre a morte, a exemplo de Huizinga com o Outono da Idade
Média.
1
Após a Segunda Guerra Mundial as relações com a morte foram
redescobertas pelas disciplinas que estudam o homem, que nesse período
proliferaram escritos sobre o assunto. Em 1951, Edgar Morin escreve L´Homme et la
Mort devant L´Histoire.
2
Quatro anos depois, Geoffrey Gorer escreveu The
Pornografy of Death,
3
e um pouco mais tarde B. H. Gleiser e a. L. Straus publicaram
Time for Dying.
4
Em 1956, foi realizado nos Estados Unidos um colóquio sobre a
morte que reunia profissionais de diversas áreas das ciências humanas. Após a
Segunda Guerra Mundial, também foram publicados vários trabalhos na área da
1
Neste livro, o autor estuda as representações da morte nos séculos XIV e XV, utilizando arquivos
iconográficos que tratavam dos "temas macabros". Estes temas eram encontrados na ornamentação
das igrejas, onde as imagens mais freqüentes eram de corpos em decomposição, ou da dança
macabra entre esqueletos. Para Huizinga essa representação da morte era uma ilusão diferenciada
do poderio comercial da burguesia e do poder monetário dos príncipes, no entanto era compartilhada
pelos contemporâneos e tinha o valor de verdade. HIUZINGA. L’autonomne du moyen age. Paris:
Payot, 1975, p. 325.
2
MORIN, Edgar L’ homme et la mort, Paris: Correa, 1951, p. 32.
3
Segundo esse sociólogo inglês, a morte teria se tornado o grande tabu ocidental a partir do século
XIX. Assim, quanto mais a sociedade vitoriana afrouxava as interdições sexuais, mais rejeitava a
morte. Para ele, no cotidiano contemporâneo não havia mais espaço para a tristeza e a aflição, pois
ser feliz se tornou quase uma obrigação social. A morte e o luto se tornaram então uma ruptura
indesejada e um assunto proibido. GORER, G. The pornography of death. Nova York, Doubleday,
1963, 87 p.
4
Os autores tratam da alienação do moribundo, onde o direito sobre a própria morte lhe foi retirado e
transferido para os médicos e enfermeiros. O poder médico também modificou a regularidade da
morte, o tempo que transcorria entre os primeiros avisos e o último adeus. Agora esse momento pode
ser abreviado ou prolongado, de acordo com a vontade médica e familiar. GLASER; STRAUSS, A. L.
Time for Dying. Chicago: Aldine, 1968, 122 p.
7
psicologia e da psiquiatria, a exemplo da obra de Feifel (1959)
5
The meaning of
death. Já em Sobre a arte de morrer, Kluber-Ross
6
(1969) analisa os estágios
enfrentados por pessoas enlutadas.
Assim, o interesse crescente pelo assunto demonstra uma reação ao tabu
que se tornou a da morte, pois segundo Ariès "os sociólogos teriam aplicado à morte
e a proibição de falar nela, o exemplo que Freud deu a respeito do sexo e dos seus
interditos."
7
Se durante tanto tempo o tema foi abordado apenas na literatura, neste
período, houve uma proliferação de escritos.
Com a descoberta da morte, a historiografia contemporânea se aproximou do
tema, surgindo várias publicações relacionadas. Dois historiadores especificamente,
dedicaram grande parte de sua vida às pesquisas sobre as relações do Ocidente
com a morte. Michel Vovelle e Philippe Ariès publicaram desde os anos 60 livros e
ensaios que modificaram a relação da historiografia com o tema. Apesar de muito
diferentes em concepções e métodos, esses dois historiadores são referência nos
estudos sobre a morte, graças às longas pesquisas despendidas sobre o assunto.
Michel Vovelle publicou em 1987 “Imagens e Imaginário na História”
8
. Neste
livro aborda as várias representações da morte na mentalidade coletiva européia, em
um período que vai a Idade Média até o século XX. Utilizando ries de arquivos
religiosos e iconográficos, ele verifica que na longa duração, a "morte real" ganha
constantemente novos significados. Para ele, a morte existe como um fato, como um
fim biológico comum a todos os homens em tempos imemoriais. O que mudaria com
o tempo, são as representações que cada sociedade faz dela.
9
Segundo Vovelle, "a
história da morte guarda um valor exemplar e específico, pois a morte representa um
"invariante" ideal e essencial na experiência humana. É um invariante relativo
todavia, visto que as relações dos homens com a morte se alteram, como também a
maneira como ela os atinge, embora a conclusão permaneça a mesma: é a morte."
10
Para ele existiriam duas mortes: a morte vivida, que atinge as populações e é
5
KOVÁCS, M. J. A morte em vida. In: M. H. P. F. Bromberg, M. J. Kovács, M. M. M. J. Carvalho, & V.
A. Carvalho (Orgs.), Vida e morte: laços da existência (p.11-33). São Paulo: Casa do Psicólogo. 1996
6
Kübler-Ross, E. Sobre a morte e o morrer (P. Menezes, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. 1998,
(Texto original publicado em 1969).
7
ARIÉS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. 2 v. 452 p. p.
143.
8
VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história. São Paulo: Brasiliense, 1987.
9
È importante lembrar que a noção de representação de Vovelle diferencia-se do conceito presente
nas produções de Chartier.
10
VOVELLE, op. cit., p. 246.
8
comprovada pelos números estatísticos, e a morte sentida, que são as
representações elaboradas, encontradas nos rituais e signos nebres. Assim,
Vovelle considera que a morte é um dado, e que as medições estatísticas podem
apreender sua realidade.
11
Neste sentido, Philippe Ariès distancia-se de Vovelle. Se os dois
pesquisadores têm como tema a morte, Ariès pesquisa sobre a constituição das
relações como as conhecemos hoje. Ao contrário de Vovelle, busca saber como se
constituíram verdades que se tornaram absolutas, a ponto de imaginarmos que elas
sempre existiram.
12
A exemplo de suas pesquisas sobre a família, Ariès afirma que
quando verdades se estabelecem, temos tendência a estabelecer origens
longínquas a elas, quando na verdade, esta origem é muito recente.
No livro a História da Morte no Ocidente, Ariès diz que, a partir do século
XVIII, teria havida uma inversão da morte, ou melhor, uma crise da morte. Se
durante a Idade dia esta era familiar, "domesticada"
13
, nos últimos dois séculos
teria se tornado repelida, maldita, e interdita. Se antes ela fazia parte do cotidiano
medieval, a partir de então foi retirada das residências e recolhida aos hospitais,
clínicas, necrotérios e cemitérios. Aos poucos, a morte se tornou então o grande
tabu moderno. Se o nascimento e a concepção são hoje claramente comentados
com as crianças, o mesmo não acontece com a morte. Assim, a morte se tornou um
assunto desagradável e quase proibido nas famílias.
14
Neste sentido, este trabalho busca aproximar-se da metodologia e das
concepções de Ariès, pois, assim como ele, acreditamos que as relações
contemporâneas com a morte se constituíram em um período bem recente, marcado
por várias rupturas. Também consideramos que não o apenas as significações da
morte que mudam ao longo do tempo, pois além de ser um fato absoluto, a sua
constituição como objeto também é datada.
Para trabalhar a constituição desse objeto, utilizamos como referência os
estudos de Michel Foucault sobre a vida e a morte. Para Foucault, a crise da morte
11
Ibid., p. 246.
12
As pesquisas de Ariès estão mais próximas das de Foucault, pois assim como eles, Ariès
estabelece rupturas, verificando a constituição as relações e atitudes perante a morte.
13
O conceito de morte domesticada refere-se às relações medievais com a morte. Além de estar
integrada ao cotidiano e ao ambiente das casas, a morte também era familiar ao moribundo. Se nas
relações contemporâneas o direito sobre a morte foi transferido ao poder médico, na morte
domesticada o moribundo sentia os sinais da morte próxima e sabia o momento em que ela iria
ocorrer. ARIÈS, op. cit., p. 130.
14
ARIÉS, 1981, op. cit., p. 132.
9
esteve associada a um movimento maior, onde não apenas a morte, mais a finitude
em geral, surgiu como problema filosófico. O pensamento clássico, por exemplo,
concebia o entendimento humano como uma limitação do entendimento infinito.
Assim, a morte também não era entendida como o fim da existência, mas como um
momento de transferência de poderes.
15
Mas, se no Antigo Regime a morte era enaltecida, a partir do culo XVIII a
situação começa a se modificar. Até então, o pensamento ocidental era orientado
pelo princípio da infinitude, mas agora surge o conceito de finitude. O homem que
era visto como uma extensão do criador se torna um ser único, irreproduzível, e
também finito. Assim, a morte não é mais o momento de reintegração ao ser divino,
mas o fim da existência humana. Dessa forma, a grande ritualização pública da
morte, da qual participava toda a sociedade, veio progressivamente se apagando, se
tornando cada vez mais discreta. Se a morte deixou de ser um ritual de
transferência, para se tornar o fim do indivíduo, não havia mais espaço para as
comemorações.
16
Foucault diz que junto com a inversão do pensamento ocidental, surgiram
novas tecnologias de poder que também alteraram as relações com a morte. Nos
séculos XVII e XVIII, houve uma primeira tomada de poder do corpo, onde as
tecnologias se centravam essencialmente no controle do corpo individual. Através de
uma série de práticas, se estabelecia a distribuição espacial dos corpos individuais,
bem como procurava-se aumentar a sua força útil através de técnicas que deveriam
ser exercidas da maneira menos onerosa possível. Assim, era estabelecido todo um
sistema de vigilância, hierarquias e inspeções, que podem ser chamadas de
tecnologia disciplinar do trabalho. Essa tecnologia vai permanecer nos séculos
posteriores, porém os seus instrumentos vão ser utilizados para outro objetivo. A
partir do século XVIII, o poder não se dirige mais ao controle do homem-corpo, mas
ao homem vivo, o homem espécie. Se o controle disciplinar procurava reger a
multiplicidade de corpos individuais, esse novo poder se dirige à um outro corpo:
massa global afetada por processos de conjunto como o nascimento, a doença, a
reprodução e a morte, que tem o nome de população."
17
Essa população não é mais
a sociedade composta por uma multiplicidade de indivíduos, mas um só corpo
15
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 87
16
ARIÉS, 1981, op. cit., p. 88.
17
FOUCAULT, 1999, op. cit., p. 89.
10
múltiplo com inúmeras cabeças. Se o poder do soberano fundava-se no direito sobre
a morte dos súditos, essa nova tecnologia denominada por Foucault de biopoder, se
justifica pela manutenção e pela preservação da vida. A população deve ser
administrada de modo que se conserve sempre um equilíbrio, uma proporção fixa
entre a taxa de morbidade e de natalidade. Para isso, a biopolítica implantou
diversos mecanismos reguladores que visavam estabelecer uma homeostase, uma
média global nesse fluxo populacional. Assim, através de várias práticas, procurava-
se aumentar o número de nascimentos e combater a doença e a morte.
18
Assim, com o estabelecimento de um Estado caracterizado pelo controle da
população, a morte vem sendo constantemente desqualificada. Se até o século XVIII
os grandes funerais faziam parte do momento de transferência dos poderes, a partir
de então, os ritos foram progressivamente diminuindo, se tornando cada vez mais
discretos. No Antigo Regime "passava-se de uma instância de julgamento à outra,
de um direito de vida civil ou público, para um direito que era o de vida eterna ou de
danação eterna." No entanto, como todos os mecanismos do biopoder buscavam
prolongar a vida e combater os desequilíbrios, “a morte é o limite, a extremidade do
poder. Ela está do lado de fora em relação ao poder, sobre ela o poder te
domínio através dos meros estatísticos. Mas aí, não é mais a morte, mas a
mortalidade."
19
Assim, é normal que a morte tenha se recolhido ao âmbito privado,
pois nessa nova política ela se encontra fora dos domínios do biopoder.
Porém, enquanto os ritos fúnebres se retiram da esfera pública, o cadáver se
torna uma questão para o novo governo. Se o destino do corpo interessava somente
ao poder eclesiástico, agora o Estado se apropria do corpo morto e normatiza os
ritos fúnebres. Segundo o estudo de Roberto Machado, tanto o corpo vivo, quanto o
corpo morto deveriam ser adequados às mesmas normas de higiene. Para a
medicina, o cadáver deve ser tratado da mesma forma, pois, "caso contrário, haverá
luta entre a vida e a morte, da qual a morte certamente sairá vitoriosa."
20
Esse novo tratamento dispensado ao corpo morto esteve ligado à medicina
vigente no século XVIII. Segundo as teorias do período, a saúde das populações
estava diretamente ligada à qualidade do ar. É o caso da teoria dos fluidos que
pregava a necessidade do corpo estar em constante equilíbrio, realizando trocas
18
FOUCAULT, 1999, op. cit., p. 90.
19
Ibid., p. 91.
20
MACHADO. Roberto. A danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 24.
11
com o ambiente através dos poros e da respiração. O calor, a umidade e a secura
excessiva poderiam obstruir a circulação sanguínea, desequilibrando o organismo.
21
Outro fator que contribuía para a qualidade do ar era a presença dos miasmas.
Para os teóricos, esses gases continham corpúsculos invisíveis que permaneciam
no ar, tornando-o denso e corrompido. Acreditava-se que principalmente nas cidades
havia uma grande concentração dos miasmas, pois o ar não circulava
adequadamente. Elencavam-se várias fontes produtoras de miasmas: eles eram
exalados nos pântanos, nas latrinas, por animais ou vegetais em decomposição e
até por doentes. As doenças o eram transmitidas diretamente de um doente à
outro, mas através da corrupção que um enfermo podia provocar no ar.
22
Assim, graças à teoria miasmática o cadáver configurou-se como um
problema a partir do século XVIII. Se eles dividiam o espaço das igrejas e das casas
com os vivos, a partir de então, esta prática foi alvo de inúmeras críticas. Segundo
os teóricos, durante a fase da putrefação o corpo morto liberaria perigosos gases,
causadores dos mais diversos flagelos. Não diretamente do morto vivo, mas através
da corrupção do ar, os miasmas cadavéricos espalhavam a morte em todo o seu
foco de alcance.
23
Para neutralizar a ação desses gases, uma série de práticas foi estabelecida
pelas autoridades higiênicas. A primeira delas foi a separação entre o mundo dos
vivos e dos mortos. Se os mortos eram enterrados no meio do núcleo populacional,
agora são criados espaços específicos para rece-los. Surgem então os cemitérios
públicos que, obedecendo as novas normas de higiene, vão controlar os corpos e
normatizar os enterros. Todo o seu planejamento, arquitetura, organização interna e
administração tem como objetivo a minimização da ação mórbida dos miasmas. A
medida das sepulturas, as árvores, o muro, os espaços vazios, a capela mortuária,
faziam com que os miasmas permanecessem bem longe das populações.
24
Mas além de controlar os miasmas, a construção dos cemitérios também teve
outro objetivo. Se até então muitos enterros não entravam na contabilidade
mortuária, com o surgimento das novas necrópoles essa situação se modificou. Os
21
MURYCY, 1998 apud MORAES, Laura do Nascimento Rôtolo. Cães, vento sul e urubus:
higienização e cura em Desterro. Florianópolis (1830-1918). Porto Alegre, 1999, 332 f. Tese
(Doutorado) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, p. 48.
22
Ibid., p. 32.
23
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991 (3
.
reimp. 1999), p. 57.
24
Ibid., p. 58.
12
cemitérios públicos fizeram parte da estrutura que permitiu conhecer a totalidade de
óbitos. Assim, com base nestes números, foi possível desenvolver as medições
estatísticas. Esses meros eram essenciais para a administração, pois era através
da estatística que a população se tornava uma realidade quantificável.
Segundo Jacques Revel, com a estatística surge um corpo coletivo, onde é
produzido um espaço contínuo e abstrato em que qualquer ponto é por definição
igual a outro
25
Se antes da estatística existiam apenas os moradores, com essa
instituição surge a população. Através dos mapas demográficos, é possível conhecer
informações detalhadas como as doenças que afetam a população, o grupo mais
atingido e a extensão do mal causado. Assim, com base nos dados, era possível
delinear estratégias de combate, diminuindo a mortalidade e aumentando o número
de nascimentos.
A construção dos cemitérios públicos esteve ligada, portanto, à várias
mudanças operadas nos séculos XVIII e XIX. A primeira delas era o controle dos
males causados pelo cadáver. A segunda, o controle da morte em números. Mas
tanto uma quanto a outra, tinham como objetivo final manter e preservar a vida, pois
o controle dos miasmas impediam a propagação da morte, e o controle dos óbitos
permitia gerir a população, aumentando o seu contingente.
Porém, a construção dessas novas necrópoles higiênicas não ocorreu da
mesma forma em todos os lugares. Enquanto em alguns países da Europa ele
ocorreu por volta do século XVIII, no Brasil e em Desterro, ele vai acontecer quase
um século depois. Pode-se dizer que a história funerária contemporânea passou por
dois momentos distintos. No primeiro, que teve inicio na Europa no século XVIII,
ocorreu a construção das necrópoles extra-urbe. Essa mudança foi orientada pela
teoria miasmática que proibiu os enterros religiosos, levando as necrópoles para
longe das cidades.
26
Um segundo momento foi à volta dos cemitérios para as cidades. O
crescimento das cidades ocasionou uma reaproximação dos cemitérios, já que áreas
antes afastadas passaram a integrar as cidades em expansão. Além disso, a teoria
microbiológica que se impôs no século XIX e o perigo do cadáver foi relativizado.
Com as novas pesquisas, foi verificado que as emanações não eram tão prejudiciais
25
REVEL, Jackes. A invenção da sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1990. p. 159-169.
26
REIS, op. cit., p. 45.
13
quanto se acreditava, e que para reintegrar os mortos novamente, bastava apenas
adequar algumas normas.
27
No entanto, se na Europa esses dois momentos foram bem cindidos, no
Brasil, a história funerária teve contornos diferentes. Como o a criação das
necrópoles públicas ocorreu por volta do século XIX, aqui a cisão não foi muito clara.
Durante muito tempo a teoria miasmática e microbiológica coexistiram no país,
orientando várias práticas da saúde pública. No final do século XIX, quando foram
implantadas campanhas de combate aos micróbios, ainda se falava na existência
das emanações. Foi no início do século XX que a teoria microbiana se impôs,
fornecendo arcabouço para as práticas de higiene.
28
Assim, se os cemitérios do início do século XIX foram orientados pela teoria
dos miasmas, os do final desse século apresentam influência das duas correntes.
Nos debates que antecederam essas segundas construções é possível encontrar
argumentos dessas duas teorias.
Foi sobre essa normatização da morte que se pretendeu trabalhar nesta
dissertação. Considerando as várias relações envolvidas, pretendeu-se observar de
que forma ocorreram as mudanças que vão da antiga prática do enterro nos
templos, ao estabelecimento das necrópoles higiênicas.
No entanto, não é possível dizer que este é um trabalho sobre os cemitérios
públicos de Desterro, pois a intenção não é esgotar aqui uma história sobre a sua
constituição. Se eles ocupam um lugar tão importante no trabalho, é para mostrar a
importância da sua presença na estrutura de controle da morte. Mais do que as
necrópoles higiênicas, o trabalho fala sobre a constituição do cadáver como um
problema contemporâneo.
Grande parte das fontes consultadas são documentos públicos, que
intenção foi trabalhar a administração da morte. Várias informações foram
encontradas em relatórios e ofícios enviados aos presidentes da Província de Santa
Catarina, bem como Códigos de Posturas. Em documentos como relatórios das
27
PAULIER, Armand. Manuel d’higiene publique e privée. Paris, 1879. 320 p.
28
As vacinas jeneerianas não se tratavam de práticas da microbiologia. Apesar dessas inoculações
seguirem o princípio do contágio, elas são consideradas como pré-microbianas. Somente com as
pesquisas de Pasteur e Koch, o princípio dos micróbios foi descoberto. Sobre isso conferir
FERNANDES, Tânia Maria. A vacina antivaríolica (1808-1920). Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999, p. 2.
14
paróquias e regulamentos dos cemitérios foram pesquisadas problemas como a
questão higiênica e o controle da morte em números.
A consulta à outras fontes mostrou que a questão dos sepultamentos não se
restringia às autoridades públicas: em vários periódicos da Província encontramos
debates sobre as novas normas de sepultamento. Tanto na construção da primeira,
quanto da segunda necrópole pública, artigos e correspondências contribuíram para
formar opiniões sobre a questão.
Nos livros de atas das irmandades religiosas, observamos também como as
instituições religiosas se adequaram às em relação à morte. Através deles pudemos
acompanhar a transição dos rituais fúnebres barrocos ao sepultamento dentro das
normas higiênicas.
Também não podemos deixar de comentar a contribuição de pesquisadores
locais para o enriquecimento do trabalho. Na obra de Oswaldo Rodrigues Cabral,
encontramos importantes informações sobre os sepultamentos nos séculos XVIII e
XIX, e sobre a relação com o corpo morto. Além disso, a partir de seus estudos,
seguimos indicações de fontes que nos levaram à muitos outros caminhos.
na pesquisa “Os Filhos da Falha” de Henrique Pereira Oliveira foi possível
acompanhar as intervenções higienistas, bem como o papel destinado às
irmandades nos enterros de Desterro. Além disso, pudemos ver neste trabalho,
como a imprensa participou da mudança de práticas ocorrida no século XIX.
No capítulo sobre segundo momento das necrópoles, a pesquisa de Sandro
da Costa trouxe relevantes dados sobre a transferência da necrópole pública, bem
como sobre a remodelação do espaço urbano no início do século XX. Através destes
estudos foi possível reconstituir o papel destinado ao cadáver no espaço urbano de
Desterro deste período.
Assim, agradecemos tanto os pesquisadores locais, quanto os profissionais
dos arquivos. Graças à eles pudemos ampliar o desenvolvimento deste trabalho e
compreender como ocorreram as mudanças em relação ao corpo morto em
Desterro, desde o século XVIII ao século XX.
A divisão do trabalho foi feita em 4 capítulos, que vão desde a realização dos
enterros nas igrejas, até a constituição da segundas necrópoles pública de Nossa
Senhora do Desterro.
Na primeira parte do trabalho falamos das antigas práticas de enterro e da
situação fúnebre em vários países. Trata-se, por exemplo, da influência do poder
15
eclesiástico nos ritos fúnebres e da função que as Irmandades desempenhavam no
enterro dos indigentes. Neste primeiro capítulo, procurou-se fazer um paralelo com
outros países para demonstrar a especificidade da história funerária em Desterro.
O segundo capítulo fala do momento em que o cadáver se torna um problema
e inicia-se o debate sobre a construção das necrópoles públicas. Nele, veremos de
que forma as práticas de intervenção urbana orientaram a construção espaços
adequados para os mortos.
O terceiro capítulo analisa as características que fizeram dos cemitérios
públicos espaços ideais para o controle da morte: a sua arquitetura que obedecia
regras simétricas de construção, os elementos que faziam dele um espaço higiênico;
a estrutura administrativa e sua subordinação à municipalidade. Assim, procurou-se
demonstrar como a sua construção foi determinante não apenas para o controle do
cadáver, mas também para o controle dos vários níveis da morte, como o controle
da morte em números.
No quarto capítulo falamos sobre o segundo momento das necrópoles em
Desterro. Se o perigo dos cadáveres era relativizado na Europa graças às
pesquisas da microbiologia, Ainda havia o medo dos miasmas e, mais uma vez, o
cemitério foi transferido do núcleo urbano. No entanto, alguns preceitos da teoria
microbiana orientaram alguns fatores, como por exemplo, a escolha do terreno ideal.
Neste capítulo também falamos das várias outras condições que determinaram a
mudança da necrópole para o bairro do Itacorubi. A remodelação urbana por que
passava a cidade no período, deslocou alguns dos elementos indesejados para
longe do núcleo populacional.
Assim, este trabalho procurou compreender como ocorreu a mudança do
momento em que a morte e o cadáver faziam parte do cotidiano da cidade, o
instante em que esses elementos se tornam problemas e são exilados do convívio
dos vivos. E a partir de então, quais foram e de que forma se constituíram os novos
espaços destinados à morte.
16
CAPÍTULO 2 MORRER EM DESTERRO
2.1 ANTIGAS PRÁTICAS
Antes da construção dos cemitérios públicos, não havia a separação entre o
mundo dos vivos e dos mortos. A morte integrava o cotidiano desde a Idade Média,
pois, o doente não falecia nos hospitais, mas nas casas onde era velado por seus
familiares e vizinhos. Antes mesmo da chegada da morte, seus signos estavam
presentes: fechavam-se as janelas, o cheiro de incenso e velas se espalhava pelos
aposentos e um número grande de “assistentes” vinha acompanhar os últimos
momentos. Esses acompanhantes, segundo as regras religiosas, eram condição
indispensável para que o moribundo tivesse uma “boa morte”. Para morre bem, era
necessário conhecer o momento de sua morte, morrer em companhia de outras
pessoas e receber os sacramentos fúnebres.
29
Além da morte estar presente nas casas, havia outros espaços divididos
pacificamente por vivos e mortos. As ruas, praças e logradouros, eram palco do
cortejo fúnebre, onde boa parte dos habitantes da cidade prestavam homenagem ao
falecido. O cotidiano das cidades era rompido, as atividades diárias cessavam para
que se fizesse parte do ritual de despedida. A morte estava presente também em
vários signos: janelas eram fechadas, casas comerciais não funcionavam em
respeito, a faixa preta indicava o luto pelo falecimento.
Mas não era apenas a morte que dividia o espaço com os vivos, o corpo
morto também estava integrado aos espaços. Até o século XVIII, não existia o
estranhamento em relação ao velório no interior da casa, nem tampouco em relação
ao enterro no interior das igrejas.
Segundo a crença do período medieval, o cadáver deveria ser enterrado
próximo ao santos.
30
No interior das paredes, no solo, nos adros, ou nos fundos das
29
ARIÉS, 1981, op.cit. p. 45.
30
Na Antiguidade a necrópole existia em um espaço exterior à urbe. Somente com a ascensão do
catolicismo os enterros passaram a ser feitos dentro da área religiosa. No século XVIII quando houve
o exílio dos cemitérios, os defensores desta medida argumentavam que o enterro no campo santo
não passava de uma tola superstição, pois os antigos romanos enterravam seus mortos de forma
correta. REIS, op.cit., p. 136.
17
igrejas, o enterro em solo sagrado possibilitava a intercessão dos santos no ingresso
ao reino dos céus. As chances variavam conforme a proximidade do altar: quanto
mais próximo o corpo fosse enterrado, mais chances o morto teria de ser absolvido.
Por esse motivo, as covas no interior das paredes ou no solo eram sempre mais
caras restando o enterro no pátio dos fundos para os pobres e indigentes. Roberto
Machado diz que "nas igrejas os cadáveres eram sepultados por todos os lados: no
pavimento, pelas paredes, debaixo dos altares, ou mesmo em cima deles"
31
O enterro dos cadáveres nas igrejas não era incômodo aos fiéis, nem ao
clero. Os mortos estavam totalmente integrados às práticas religiosas, pois, a sua
presença era vista pelos religiosos como uma lembrança constante da existência do
purgatório. O próprio cheiro que desprendia dos corpos, resultante da
decomposição, era reconhecido como o odor da caridade cristã, o “odorato”.
32
Como não existiam regras de sepultamento, muitas vezes restos de corpos
acabavam ficando espalhados pelos pátios das igrejas. As feiras e espetáculos
realizados nos pátios aconteciam em meio a esses restos, e não raramente, alguém
tropeçava em um crânio.
33
Essa proximidade com os mortos existiu em alguns
lugares até parte do século XIX. Na Bahia, por exemplo, segundo João José Reis,
era comum encontrarem ossos em frente às igrejas.
34
2.2 O CAMPO SANTO
Em Nossa Senhora do Desterro, assim como no resto do Brasil, os enterros
eram feitos dentro do espaço religioso. Seguindo as práticas medievais, os mortos
eram enterrados na Igreja Matriz, ou nas capelas pertencentes às irmandades.
35
30
Existiam várias formas de sepultura religiosa: no interior das igrejas havia as sepulturas
numeradas; na área externa existiam os adros - paredes em forma de arco com gavetas; ou ainda os
carneiros, galerias subterrâneas onde os cadáveres eram enterrados na parede. Algumas igrejas
possuíam também um pequeno cemitério anexo ao templo, construído na frente ou nos fundos da
edificação. MACHADO. op. cit., p. 54-57.
31
Ibid., p. 59.
32
ARIÉS, 1981, op. cit., p. 225.
33
Ibid., p. 226.
34
REIS, op.cit. p. 89.
35
É importante lembrar que se no núcleo central as práticas começaram a se modificar já no século
XIX, em localidades como o Ribeirão da Ilha, elas tiveram uma continuidade.
18
A primeira construção religiosa a receber corpos foi a ermida erguida por
Francisco Dias Velho em 1674. Neste período a população era bastante reduzida e
a pequena igreja era suficiente para realizar os enterros. Conta-se que até o próprio
fundador do povoado havia sido enterrado nesta construção.
36
Um século depois, a situação de Desterro se modificava. Graças ao seu
posicionamento estratégico, a Ilha foi inserida no aparelho administrativo e militar do
governo metropolitano e, em 1726, foi elevada à condição de Vila de Nossa Senhora
do Desterro. Com o estabelecimento de uma tropa regular e o povoamento por
casais de açorianos, o número de habitantes da Ilha aumentou consideralvemente.
Entre os anos de 1748 e 1756, foram transportados de Açores e da Ilha da Madeira,
aproximadamente 5.000 pessoas.
37
Assim, o administrador da Vila, Jose da Silva
Paes, considerou necessário solicitar a permissão para a elevação de uma nova
igreja, onde os fiéis pudessem ser recebidos em dias festivos. Em 1756, ele
encaminhou um ofício ao Rei de Portugal solicitando permissão para construir uma
nova igreja, pois, segundo ele, a antiga Matriz era "muy pequena em capacidade e
simetria."
38
Após a construção dessa nova igreja, a edificação da antiga ermida foi
destruída.
Desde então, foi no espaço da Igreja Matriz que os corpos passaram a ser
enterrados. Nas paredes e no chão interno, eram sepultadas as figures ilustres, e os
que podiam pagar. No cemitério anexo, as pessoas com menos condições,
escravos, e indigentes. Segundo Cabral, na Matriz da Vila foi enterrada quase toda
gente da era colonial e como existia a crença de que os santos pudessem interferir
no julgamento, as covas perto do altar eram sempre as mais disputadas.
39
No entanto, não eram todos os desterrenses que faziam uso do campo santo.
Esse privilégio era concedido aos que professavam a religião e principalmente,
contribuíam com a receita da Igreja. Aos demais, era reservado destino menos
nobre: ateus, pobres e escravos eram por vezes enterrados em terrenos
36
SILVA, Dalton da. Os serviços funerários na organização do espaço e na qualidade sócio-
ambiental urbana: uma contribuição ao estudo das alternativas para as disposições finais funerárias
na Ilha de Santa Catarina (Tese de Doutorado). Florianópolis: UFSC, 2002. p. 47.
37
Nem todo esse contingente permaneceu em Desterro, muitos casais se fixaram em outras
localidades de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Sobre essa questão conferir OLIVEIRA,
Henrique Luiz Pereira. Os filhos da falha: assistência aos expostos e remodelação das condutas em
desterro (1828-1887). (Dissertação de mestrado em História). São Paulo: PUC, 1990. p. 33.
38
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro. Notícia, vol. 2. Florianópolis:
Lunardelli, 1979, p. ,407.
39
Ibid. p. 408.
19
particulares, ou em casos mais isolados, abandonados em terrenos baldios ou
praias. Segundo Oswaldo Rodrigues Cabral, não era difícil “encontrar corpos de
escravos cinzas e estufados, ou vermelhos e corroídos pelos peixes."
40
Henrique
Pereira diz ainda, que antes do estabelecimento da Roda dos Expostos era possível
encontrar no cenário urbano corpos de crianças recém-nascidas muitas vezes
mutilados por animais.
41
Mas terminar a vida de tal maneira o era ambição da maioria dos
habitantes. Por isso muitas pessoas ao sentirem a aproximação da morte doavam
uma jóia à Igreja. Era um valor bastante elevado, que podia corresponder a vários
anos de contribuição. A Ordem Terceira chegava a cobrar valor de 70 mil réis,
42
aceitos somente em um pagamento único. Segundo Cabral, muitas pessoas
chegavam a doar grande parte dos bens para garantir vaga nas covas religiosas.
43
Além da Igreja Matriz, existiam ainda outras alternativas aos que quisessem
ser enterrados no campo santo. As irmandades surgidas em Desterro no século
XVIII, ofereciam aos seus sócios o enterro em suas capelas, ou cobriam o custo do
enterro na capela da Matriz. Também os que tinham menos condições, como pobres
e escravos, recorriam às irmandades para ter o enterro dentro das normas
religiosas. Algumas delas, como a Irmandade dos Passos e a Irmandade do Rosário,
destinavam parte de sua renda para enterrar os pobres e indigentes.
44
A História das irmandades remonta o século XVIII, quando estas foram
instituídas na Alemanha e depois em Portugal para que se pudesse cumprir
eficientemente as Obras de Misericórdia. Dessas confrarias faziam parte inicialmente
pessoas que faziam votos religiosos, como freiras, irmãos, ou sacerdotes. Mais
tarde, também fizeram parte pessoas leigas, geralmente com posses econômicas.
Segundo Nereu do Vale Pereira, as práticas religiosas e culturais começaram
a se organizar em Desterro durante a corrente colonizadora do século XVIII. Assim,
40
Parece que a prática de enterrar ou abandonar escravos nas praias não era tão incomum, pois
Gilberto Freire cita casos semelhantes em Sobrados e Mocambos. Segundo ele, os urubus,
empregados da Câmara, vinham com regularidade bicar corpos que a Santa Casa não enterrava
direito. Sobre essa questão conferir FREIRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 6.ed.: José Olympio,
1981, p. 48.
41
OLIVEIRA, op. cit. p. 77.
42
Para efeito de comparação, o cemitério público de Desterro vai cobrar a quantia de 6 mil réis para
que alguém ocupasse um jazigo pelo prazo de 10 nos. CABRAL, op.cit. p. 410.
43
Ibid., p. 37.
44
Ibid., p. 38.
20
as Irmandades que aqui se estabeleceram são na sua maioria originarias do
arquipélago de Açores.
45
A primeira Confraria de Misericórdia foi fundada em Açores no ano de 1483,
sendo logo em seguida criado um hospital para que se pudesse realizar as Obras de
Misericórdia.
46
A Irmandade dos Passos, por exemplo, foi instituída em 1591 na
cidade de Ponta Delgada por recomendação dos jesuítas que haviam se
estabelecido nessa cidade. Nos anos seguintes, surgiram outras confrarias tendo o
Senhor dos Passos como Padroeiro: em 1592, foi fundada a Confraria na Ilha de
São Miguel; em 1581 na Ilha de Santa Maria; em 1589 em Angra do Heroísmo e em
1543 na Ilha do Faial. Ao longo do tempo foram surgindo outras Confrarias,
chegando ao número de 18.
47
A mais antiga das irmandades de Desterro é a Ordem Terceira de São
Francisco. Criada em 1745, através do pedido feito pela Câmara à corte do Rio de
Janeiro, a Ordem veio atender à necessidade de socorro espiritual e de sacramentos
por parte do povo da Vila.
48
Inicialmente os Terceiros ocuparam a antiga capela da
Matriz e depois, com a construção da segunda igreja, receberam uma capela
contígua. Com o crescimento do número de associados, a ordem prosperou e
construiu seu próprio templo. Além dos sócios, a Ordem realizava também o enterro
de algumas pessoas sem condições, utilizando para isso parte das esmolas ou
doações de festas religiosas.
49
Segunda em antiguidade dentre as associações religiosas de Nossa Senhora
do Desterro, a Confraria de Nossa Senhora do Rosário foi fundada em 1750.
50
Em
sua grande maioria tinha como sócios escravos e negros libertos, porém, recebeu no
quadro vários brancos que nela entraram "por espírito de humildade, pagamento de
promessa ou por solidariedade"
51
Como os sócios não tinham muitos recursos, a
Confraria tinha como figura obrigatória um "andador", uma pessoa encarregada de
45
Arquivo dos Açores apud. PEREIRA, Nereu do Vale. Memorial histórico da irmandade do
Senhor Jesus dos Passos. Florianópolis: Ministério da Cultura, 1997. 2 v. p. 367.
46
Ibid., p. 368.
47
Ibid., p. 307.
48
Ibid., p. 308.
49
CABRAL, op.cit., p. 409.
50
Existe uma discussão sobre qual das ordens teria sido a primeira a ser criada em Desterro. A
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário reivindica o título de mais antiga. Segundo os seus
membros, a Ordem em 1850. No entanto, os documentos e as atas das primeiras reuniões foram
perdidos durante o período da invasão espanhola, o que impedia a comprovação de sua antiguidade.
Os primeiros documentos da Irmandade datam de 1878. Sobre esta questão conferir Ibid., p. 4.
21
pedir esmolas de porta em porta, não apenas nas ocasiões de festa, mas nos dias
comuns do ano.
52
Outra fonte de renda da Irmandade eram os imóveis. Ela possuía algumas
casas que eram alugadas para cobrir as despesas anuais. Para as celebrações
religiosas existia inicialmente uma pequena capela, sendo que em 1775, surgiu a
iniciativa da construção de uma nova igreja, conforme constava na Ata:
Termo de Meza que se faz sobre fazer nova Igreja de Nossa Senhora do
Rosário: Aos 25 dias do mês de setembro de 1875, nesta Vila de Nossa
Senhora do Desterro, foi sentado por todos os irmãos que se fizesse uma
nova igreja de pedra e cal pelos dinheiros e rendimentos da mesma
Irmandade e esmolas. Será recorrido ao Bispo a sua licença pois, a capela
existente se encontra em ruínas.
53
Pode-se perceber a falta de recursos da Irmandade pelo tempo que essa
nova igreja levou para ser construída. Somente em 1800 tem-se notícia da
conclusão da obra.
54
Os compromissos da irmandade determinavam uma rie de obrigações
como a celebração do culto à Nossa Senhora do Rosário, obtenção de recursos
para libertação dos escravos cativos, ajuda aos irmãos orfãos.
55
Mas dentre os
capítulos do compromisso, um tema que se destaca pelo número de vezes em
que é citado. Dos vinte e um itens que compõe o compromisso do Rosário, oito
tratam do tema da morte. no primeiro Capitulo, a Irmandade do Rosário
estabelece que:
Toda pessoa de qualquer qualidade que quiser ser irmão nesta Santa
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dará duas oitavas de ouro no
momento de sua entrada e será aceito por Irmão. Destas duas oitavas se
dirão seis missas por sua morte.
56
52
Ibid., p. 5.
53
Relatório da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, 1875, p.3 apud. CABRAL, Oswaldo Rodrigues.
História da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Florianópolis: A Irmandade,
1950, p. 13.
54
Ibid., p. 14.
55
Ibid., p. 15.
56
Este compromisso pertence a uma irmandade de Minas Gerais. Provavelmente os seus irmãos
tinham mais recursos dos que o da Irmandade de Desterro. Mas o que aproxima as duas irmandades
é a preocupação com o enterro digno de seus irmãos. SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. 2. ed.
São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p. 55.
22
Em Minas Gerais, na localidade de Rio do Peixe e de Rio Manso, as atas da
Irmandade revelam que a criação da Irmandade objetivou oferecer aos escravos um
enterro digno, dentro das normas religiosas. Antes dessas instituições os escravos
eram muitas vezes enterrados ou abandonados em terreno não sagrado, “como
acontecia com os animais e os infiéis.”
57
Mas além do enterro do corpo no campo santo, a Irmandade também se
preocupava com outros aspectos do ritual fúnebre. No momento da morte eram
concedidos os sufrágios e dias após a morte, rezavam-se missas pela alma do irmão
falecido. O numero de missas celebrado variava conforme as posses da Irmandade:
quanto mais rica, mais “encomendações” recebia o irmão.
58
Além disso, a Irmandade determinava que cada irmão fosse acompanhado no
enterro pelos outros membros. Isso, segundo Julita Scarano era uma forma de
conferir um certo prestigio social ao falecido.
59
Em Desterro o acompanhamento do
cortejo também era previsto pelos compromissos, deixando de ser realizado por
ocasião dos surtos epidêmicos. Segundo Cabral, apesar das ameaças da
Irmandade, os irmãos não se arriscavam a chegar tão próximo dos cadáveres em
época de epidemias.
60
Em Minas Gerais, consta que o cortejo era uma das poucas ocasiões onde os
senhores não negavam a saída dos escravos. Apesar de não encontrarmos registros
sobre a resistência dos senhores em Desterro, parece que a Irmandade encontrava
certa dificuldade em preencher o cargo de andador. Em 1817, em relatório à Mesa,
José Pereira de Medeiros explicava o motivo:
A Irmandade do Rosário não encontra quem queira servir ao lugar de
andador, pois a maior parte da Irmandade é composta de escravos cativos e
não podem acodir as campainhas quando ocorre de falecer algum irmão.
61
Assim, muitos senhores não concordavam que seus escravos se
ausentassem constantemente de seus afazeres para comunicar aos irmãos a
ocorrência de uma morte.
57
Ibid., p. 53.
58
Ibid., p. 54.
59
Ibid., p. 56.
60
CABRAL, 1979. op. cit. p. 20.
61
Relatório da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, 1817, apud. CABRAL, 1950, op. cit. p. 3.
23
O campo santo da Irmandade do Rosário foi construído no terreno dos
fundos da nova igreja. Com o término das obras em 1800, foi destinado um terreno
para o enterro dos irmãos, bem como para a construção de catacumbas.
62
Conclui-
se que o sepultamento era uma questão relevante para a Ordem, pois, em 1811 a
Mesa determinou que a pompa das missas deveria ser reduzida, bem como toda
despesa supérflua. O objetivo maior era melhorar as condições do cemitério e das
catacumbas para oferecer um enterro digno aos seus irmãos.
63
Esta Irmandade teve
importante papel na história de Desterro pois garantiu que os escravos pudessem
ser enterrados de acordo com as normas religiosas.
Outra importante irmandade foi a do Senhor Jesus dos Passos, criada em
1762 por Joana de Gusmão. Normalmente, o cuidado dos doentes e os
sepultamentos do pobres e indigentes era realizado em outras cidades brasileiras
pelas Santas Casas de Misericórdia. Como em Desterro nunca houve tal instituição,
esse trabalho era feito pela Irmandade dos Passos que administrava o Hospital de
Caridade. Esse hospital foi inaugurado em janeiro de 1879, com a finalidade primeira
de atender ao doente pobre e lhe prestar assistência material e espiritual.
64
Alguns anos antes, a Irmandade demonstrava intenção de criar um
hospital, assim, em 1872, a Mesa deliberou que a Irmandade construiria um hospital
para o remédio dos pobres e necessitados. Em seguida mandou afixar na porta
principal da Matriz um comunicado informando que a Irmandade havia tomado a
[...] resolução de exercitar, com os que forem pobres, toda a caridade que
couber nas limitadas forças com que se acha, dando-lhes não somente
sepultura na sua Igreja, mas ainda contribuindo com algumas esmolas para
o seu curativo; e no caso de serem absolutamente destituídas de todo
socorro, também os mandara recolher em casa particular, onde sejam
assistidos pelo amor de Deus, porque esperam que todas as pessoas, a
quem a Providência divina tem feito menos necessitadas nesta Vila,
contribuição com suas esmolas para ajudar a estabelecer uma obra que
será agradável aos olhos de Deus e muito meritória para os que a
praticarem.
65
No mesmo ano a Irmandade enviou à Rainha D. Maria I um requerimento
solicitando autorização para a construção do hospital e para a obtenção dos direitos
cedidos às Santas Casas de Misericórdia, alegando que havia
62
CABRAL, 1979, op.cit. p. 8.
63
Ibid., p. 9.
64
Antes disso, os doentes era recolhidos nas próprias casas e lá eram tratados. Ibid. p. 247.
65
Relatório Irmandade Senhor Jesus dos Passos, 1872 apud OLIVEIRA, 1990, op. cit., p. 104.
24
Grande pobreza na Ilha, e a falta de socorros, que experimentam os ditos
pobres que aqui habitam por não se haver estabelecido ainda em Nossa
Senhora do Desterro a Santa Casa de Misericórdia, nem algum outro
hospital de Caridade, e só assim o militar
66
O hospital não conseguiu receber os mesmos benefícios que as Casas de
Misericórdia. Passou a funcionar a partir de 1789, recebendo a pensão anual de
300.000 reis.
67
Assim como os demais hospitais criados pelas irmandades, o Hospital de
Caridade era o espaço onde eram realizadas a segunda e a sétima obrigação das
"sete obras corporais" que eram tratar dos enfermos pobres e conceder sepultura
aos necessitados. Essa obrigação foi prevista pelo compromisso de Misericórdia de
Lisboa, estabelecido em 1515, e incorporado mais tarde aos objetivos de diversas
irmandades fundadas posteriormente em Portugal e seus domínios.
68
O compromisso era composto ao todo por Quatorze Obras de Misericórdia,
divididas de acordo com sua natureza em dois grupos. O das obras espirituais
consistia em:
Ensinar os simples (catequese), dar conselhos a quem pede, castigar os
que erram, consolar os desconsolados, sofrer injurias com paciência e rezar
pelos vivos e pelos mortos. No segundo grupo denominado obras corporais
estavam: redimir os cativos, visitar os presos, curar os enfermos, cobrir os
nus, dar de comer aos famintos dar de beber a quem tem sede, dar pouso
aos peregrinos e cobrir os mortos.
69
Dentre as Obras de Misericórdia, destaca-se a caridade para com os irmãos
enfermos, pobres e desvalidos. Assim, os jornais da época diziam que:
Não havendo na Ilha de Santa Catarina a Santa Casa de Misericórdia, “era
a “Irmandade Senhor Jesus dos Passos que devia cuidar dos doentes,
curando até que estivessem estabelecidos, ou dando mortalha e sepultura
na capela aos que falecessem.
70
66
Relatório Irmandade Senhor Jesus dos Passos, 1872 apud OLIVEIRA, 1990, op. cit, p. 104.
67
Ibid., p. 166.
68
As sete obras corporais consistiam em: resgatar cativos e visitar prisioneiros; tratar dos doentes;
vestir os nus; alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres;
sepultar os mortos. RUSSEL-WOOD, Fidalgo e filantropo: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia:
1550-1755. Brasília, UNB 1981. p. 32.
69
PEREIRA, Nereu do Vale. Memorial histórico da irmandade do Senhor Jesus dos Passos.
Florianópolis: Ministério da Cultura, 1997. 2v. p. 361.
70
Jornal Argos, 21 de Agosto de 1858, p. 3.
25
Para realizar as Obras de Misericórdia a Irmandade contava com um
patrimônio imobiliário, que assim como o da Irmandade do Rosário era alugado para
reverter em renda. Também havia a figura do andador que em nome da caridade
cristã, solicitava a contribuição.
Além do atendimento aos enfermos, também era realizado pela Irmandade o
sepultamento dos pobres. Inicialmente, os enterros eram realizados na própria
construção da igreja, entre a estrutura das paredes, ou no chão. Em 1826, foi
construído um cemitério nos fundos para os enterros gerais. Outros enterros também
eram feitos nas catacumbas que foram instituídas pela Irmandade Senhor Jesus dos
Passos no ano de 1860.
71
Ao que parece, os enterros ocupavam um papel relevante entre as Obras de
Caridade. Em 1832 o Livro de Atas da Irmandade dos Passos recomendava que o
pouco dinheiro arrecadado nas esmolas, fosse destinado ao cumprimento das obras,
pois, segundo ele,
As esmolas devem pertencer à caridade dos pobres e de nenhuma forma
terem destino diverso. Que se evitem despesas supérfluas com festas e
comemorações, que se reduzam as despesas, pois o principal objetivo deve
ser a cura dos enfermos e o sepultamento dos mortos.
72
Além de se responsabilizar pelo enterro dos irmãos pobres, a Irmandade
também realizava o sepultamento dos pacientes que faleciam no Hospital de
Caridade.
Devido a questões higiênicas que vamos ver mais tarde, em 1852 a
Irmandade obteve autorização da Câmara para que pudesse construir um seu
cemitério particular nos fundos do Hospital de Caridade.
Além do enterro dos doentes que se internavam para falecer, o Hospital de
Caridade também arcava com o custo do enterro dos expostos. A Mesa de 7 de
julho de 1832 informou que a renda anual necessária para atender aos expostos
seria de 2:102$800, sem incluir neste montante os 800 réis gastos com a mortalha
que envolvia o corpo.
73
Da quantia necessária para o cuidado com os expostos, a
Câmara Municipal se comprometia em fornecer quatrocentos mil réis. No entanto,
71
PEREIRA, op. cit. p. 365.
72
LIVRO de Atas da Irmandade Nosso Senhor Jesus dos Passos, 1832
73
Relatório da Irmandade Nosso Senhor Jesus dos Passos, 1832, p. 73, apud. OLIVEIRA, 1990, op.
cit. p. 154.
26
neste ano nenhuma parcela havia sido concedida, fazendo com que a Irmandade
acumulasse uma dívida de 3:014$040. A Irmandade garantia também o enterro e a
sepultura dos expostos no cemitério Menino Deus, pertencente ao hospital.
74
O enterro dos mais pobres também foi realizado por outras associações
religiosas que surgiram em Desterro durante os séculos XVIII e XIX. Foram elas: a
Irmandade do Espírito Santo, a do Santíssimo Sacramento, a de São Sebastião e do
Glorioso Arcanjo São Miguel das Almas. Esta última, curiosamente, tinha como
função apenas o enterro dos corpos e sufrágio das almas. Segundo Cabral, as suas
comemorações eram exclusivamente nebres, e uma vez por ano, a Irmandade
realizava uma procissão onde se cantava o Libera Me e as urnas eram expostas.
75
Um pouco mais tarde, as Irmandades parecem questionar a sua obrigação de
prestar assistência ao enterro dos pobres e indigentes. Um relatório da Irmandade
do Senhor dos Passos, diz que
[] o estado financeiro da Irmandade seria mais próspero, se os poderes
públicos olhassem com mais carinho a Instituição, considerando os serviços
que esta presta ao Estado e ao Município, enterrando os seus indigentes
sem qualquer remuneração.
76
Como veremos mais adiante, essa obrigação deixou de caber às associações
religiosas e foi assumida pela Câmara. No entanto, além da municipalidade,
existiram também outras associações legais que ofereciam o custeio dos rituais
fúnebres. Em 1862, a Sociedade União e Beneficência publicava um anúncio no
jornal onde dizia que: "ao sócio que por ventura vier a falecer se fará o funeral de 3ª
classe, incluindo caixão, quatro tocheiros, cova, encomendação, missa de sétimo dia
e convite de todos os membros pelo jornal.
"
77
Também o exército se responsabilizava pelo enterro de seus oficiais menos
favorecidos. Assim, em 1852, a viúva Rita Maria publica no jornal Cruzeiro do Sul a
seguinte reivindicação: “eu, Rita Maria de Carvalho, viúva do capitão integrante da
74
Relatório da Irmandade Nosso Senhor Jesus dos Passos 1832 apud OLIVEIRA, 1990, p. 152.
75
Não existe no jornal a informação sobre a natureza dessas urnas, porém é possível deduzir que se
tratam dos caixões que a Irmandade possuía para o enterro dos irmãos desfavorecidos. Como
veremos adiante, as urnas da irmandade serviam apenas para o momento do cortejo, sendo
devolvidas após o enterro do corpo. CABRAL, 1979, op. cit., p. 15.
76
Relatório, da Irmandade Nosso Senhor Jesus dos Passos, 1924, p. 2, apud OLIVEIRA, 1990, op.
cit,
77
Jornal Argos, 6.02.1862.
27
primeira linha João Manoel de Carvalho, venho solicitar que me seja abonada a
quantia destinada ao custeio dos funerais e enterros dos oficiais pobres.”
78
Mas os enterramentos não representavam apenas custos financeiros às
irmandades. Aos que podiam pagar, elas cobravam taxas pelos sufrágios, mortalhas,
esquifes ou caixões e, principalmente, pela ocupação dos jazigos. Em 1808, a
Ordem Terceira cobrava 920 réis por sepultura que se abrisse dentro de sua capela
(valor considerado alto, se comparado aos 320 réis cobrados pela Câmara no
cemitério público em 1841). A receita das Irmandades contava ainda com o aluguel
de utensílios funerários aos seus sócios.
79
Como até metade do século XIX não existiam esquifes ou caixões privativos,
as irmandades dispunham de um ou dois que eram cedidos ou alugados aos
membros para o transporte dos corpos. Após a procissão, os corpos eram retirados
dos caixões que voltavam à sacristia da igreja para servir à outros irmãos. No
entanto, se comparada à receita total das irmandades, a renda com os rituais e
jazigos o era muito grande. No livro de atas da Irmandade dos Passos, de uma
renda anual de 33.316$00, os jazigos renderam 1:591$000, o serviço de encomenda
mento 9:495$000 e o aluguel dos caixões 1:481$000. O valor das jóias naquele ano,
chegou a 5:890$000.
80
78
As corporações militares se comprometiam a ajudar nos funerais dos oficiais mais pobres. Estes
também seriam enterrados na parte geral do cemitério público. O CRUZEIRO do Sul, 1.10.1852.
79
CABRAL, 1979, op. cit., p. 457.
80
LIVRO de Atas da Irmandade Nosso Senhor Jesus dos Passos, 1874, p. 4
28
CAPÍTULO 3 O CADÁVER E A HIGIENE
3.1 A MUDANÇA DAS PRÁTICAS
No entanto, não foram as despesas ou receitas, que ocasionaram mudanças
nas formas de se enterrar em Desterro. Juntamente com outras modificações no
espaço urbano, os enterros nos espaços das igrejas passaram a ser criticados, até
serem totalmente proibidos em 1841. Mas esse processo não foi uniforme, nem
ocorreu de maneira pacífica. A atual forma de enterro se estabeleceu apos um
longo embate, onde as práticas baseadas no costume resistiam muitas vezes, as leis
e estruturas de controle.
Desde o final do século XVIII, a produção do saber médico sobre o espaço
urbano vem modificando os contornos, a distribuição e os fluxos. A nova cidade,
higiênica nasce dentro de uma racionalidade, onde certas práticas e condutas são
desclassificadas. O saber médico se torna a partir desse período, detentor das
verdades humanas e parâmetro de avaliação.
Dentro das novas teorias higiênicas, a configuração da cidade constituía um
perigo à saúde das populações. As ruas estreitas e sem planejamento, os hospitais,
enfermarias, o lixo, excrementos, e animais mortos, a concentração populacional,
todos os elementos que constituíam a paisagem urbana no período, eram
responsáveis pela má qualidade do ar.
A preocupação com o ar era fundamental para os reformadores, pois,
segundo as teorias do período, a saúde das populações estava diretamente ligada à
sua qualidade. É o caso da teoria dos fluidos que pregava a necessidade do corpo
estar em constante equilíbrio, realizando trocas com o ambiente através dos poros e
da respiração. O calor, a umidade e a secura excessiva poderiam obstruir a
circulação sanguínea, desequilibrando o organismo.
81
Assim, na primeira metade do século XIX, o centro urbano de Desterro foi o
espaço de intervenções, onde vários focos e irregularidades sanitárias foram
81
MORAES, op. cit, p. 48.
29
detectadas. Ameaças a saúde pública, foram apontadas: as barracas de comércio, o
hospital militar, o enterro no interior dos templos, o lixo, os animais mortos, etc…
82
Em 1842, uma enfermaria militar no centro da cidade de Desterro foi vista
como perigoso foco de contaminação e propagação de doenças. Naquele ano a
cidade passou por um surto epidêmico de “febre cerebral”, fazendo com que as
enfermarias ficassem superlotadas. Assim, a Câmara de Desterro solicitou ao
Presidente da Província que mandasse remover o “Hospital Militar do Quartel,” por
ser “um grande manancial pestilento.”
83
Em 1855, por ocasião de uma epidemia de cólera, um novo pedido foi feito,
porém sem resultados. A enfermaria foi removida para controlar uma nova epidemia
em 1862, porém, durante a Guerra do Paraguai, por questão de economia, a
enfermaria volta ao centro da cidade. Somente em 1872, a enfermaria foi finalmente
removida, sendo construído um prédio ao lado do Hospital de Caridade para abrigá-
la.
84
Outras intervenções no núcleo urbano também ocorreram nessa segunda
metade do século XIX. Uma das mais significativas foi a demolição das
“barraquinhas” do largo da Matriz. Em 1831, a mara de Desterro solicitou ao
Presidente da Câmara a permissão para demolição das barracas pois
O dano publico é resultado pelas barracas por conta da Fazenda nacional,
alugadas a pessoas imorais e ate escravos, e que desde a sua origem tem
sido receptáculo de roubos e lugar de todo gênero de prostituição, além de
ridículo que faz apresentar a praia da praça da Cidade.
85
Segundo o requerimento enviado à Sociedade Patriótica pelo engenheiro
Patrício Sepúlveda, era necessário solicitar a Câmara providências “a fim de se
demolirem as barracas d’Estado em frente à Praça, acabando-se assim com esta
guarita de vagabundos e escravos vadios.”
86
As barraquinhas permaneceram no
largo da Matriz, até 1845, quando se tornou necessária a remoção por ocasião da
visita do Imperador D. Pedro II.
A produção do saber médico sobre o espaço urbano não tencionava apenas
criar um novo modelo de cidade higiênico e controlado mas também
82
MORAES, op. cit. p. 127.
83
CABRAL, 1979, p. 198.
84
Ibid., p.199.
85
Ibid, p. 201.
86
Ibid, p. 202.
30
disciplinarizar condutas, reorganizar os fluxos, delimitar espaços. “O objetivo da
medicina era produzir um novo tipo de individuo e de população, combatendo a
periculosidade social.”
87
Assim, quando o novo mercado foi construído, o regulamento estabelecia
que ficava proibido o ajuntamento de escravos e a circulação de negros e mendigos,
bem como os jogos, danças, tocatas e outros divertimentos. Além dessas medidas o
documento também regulamentava o comércio, prevendo uma fiscalização das
condições sanitárias das mercadorias.
88
Mas todas essas intervenções no núcleo urbano de Desterro, não foram
apregoadas unicamente pelos médicos, ou sanitaristas. As mudanças de prática
eram defendidas por outras vozes, como as de engenheiros, cronistas dos jornais,
os poetas, comerciantes, autoridades do governo provincial, etc. Afinal, é importante
lembrar que neste período a idéia de modernização e civilização estava ligada à
Higiene.
O principal veículo que difundiu as novas idéias higiênicas foi a imprensa
periódica vinda da Corte, ou publicada na Ilha. Segundo Henrique Pereira Oliveira,
os jornais desempenharam uma função primordial na remodelação das condutas no
meio urbano. Através deles circulavam os ideais da higiene urbana, na forma de
crônicas, notícias, ou comunicados.
Durante a segunda metade do século XIX, os jornais tinham um grande
alcance junto à população, pois os assuntos publicados viravam tema de discussão
em vários locais públicos.
89
Cabral diz que no início do século XIX, era comum que
os fregueses de casas comerciais se reunissem para ler e discutir as notícias do dia.
Os principais periódicos que circulavam no período foram: o Novo Iris, O Correio, O
Catarinense, A Revelação, O Conservador, O Mensageiro, O Argos, O Botafogo e O
Santelmo.
90
87
COSTA, Jurandir Freire da. Ordem médica e norma familiar. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.
282.
88
É importante lembrar que o fato de existir proibindo tais práticas indica a dificuldade em coibi-las,
bem como a resistência da população em se adequar. REGULAMENTO para praça do Mercado de
Nossa Senhora do Desterro.da Província de Santa Catarina. 21.12.1850 apud. OLIVEIRA, 1999, op.
cit. p. 204.
89
O alcance dessas publicações aumentou também graças ao maior número de pessoas
alfabetizadas. Em 1872, havia em Desterro 5.073 pessoas alfabetizadas, em 1890, esse número
aumentou para 7.011 e em 1903, subiu para 13.474 pessoas. PEDRO, Joana Maria. Mulheres
honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. UFSC, 1994. 210p, p.33
90
CABRAL, 1979, op. cit, p. 103.
31
Os jornais exerceram no período uma dupla função. Além de difundirem o
discurso médico, promovendo uma reeducação, os jornais também atuavam como
instâncias de vigilância. Segundo Oliveira, a vigilância exercida pelos jornais era
invisível, pois, as pequenas denúncias muitas vezes eram publicadas através de
pseudônimos. Assim,
O jornal tornou-se um meio para exercer a vigilância e correção dos
comportamentos nos espaços públicos e algumas vezes ate mesmo
condutas em espaços privados. Em qualquer lugar poderia haver um olhar
passível de registrar, anonimamente, seu estranhamento diante das práticas
cotidianas da população. Um olhar de carne, mas também um olhar
invisível. Desta forma a imprensa funcionava como uma espécie de
panóptico sem torre, multipresente.
91
Os habitantes denunciavam através do jornal praticas ofensivas a higiene,
solicitando que as autoridades tomassem providências. Assim, em 1853, o jornal
Correio Catarinense publicou a reivindicação de um habitante que assinava sob o
pseudônimo de “O amante da limpeza”:
Por muito obséquio, ao Sr. Fiscal, queira dar um passeio pela rua do
Príncipe, do canto da do livramento ate o da Paz, a examinar da forma que
esta com imundícies, e das 9 da noite em diante os despejos que na praia
se fazem de tigres obrigando os moradores a fecharem as portas e janelas
por não suportar o mau hálito, quando querem tomar o fresco; com isto fará
um grande serviço ao público.
92
Algumas vezes as publicações dos leitores dirigiam as criticas as próprias
instâncias fiscalizadoras. Segundo eles, as irregularidades ocorriam devido a
conivência ou falta de repreensão por parte das autoridades.
Alem da função pedagógica e de vigilância, o jornal era o espaço de
intercessão entre o público e o privado, de enfrentamentos e disputas políticas, de
veiculação de modelos de subjetivação.
Por todas as funções a que se prestavam os jornais, eles foram elementos
muito importantes na mudança das formas de enterro em Desterro. Através deles
foram desqualificadas antigas práticas, difundidas teorias médicas, denunciadas
irregularidades. No período anterior a construção do cemitério, os jornais veiculavam
o discurso médico, seja na fala de engenheiros, Inspetores de Saúde, moradores
ilustrados. O enterro nos templos começava a ser considerado um perigo a saúde e
91
OLIVEIRA, 1990, op. cit., p. 228.
92
O Correio Catarinense, 19.01.1853, apud. OLIVEIRA, 1990, p. 229.
32
os jornais questionavam essa prática, cobravam providências, ensinavam a
população a se prevenir dos males causados pelo cadáver.
Em 1839, um clérigo publica no jornal O Conciliador que :
E preciso muita coragem, muita e bom nariz para se entrar nas igrejas,
onde faltavam sepulturas vagas, achando-se todas com cadáver por
consumir e estando a terra do interior das mesmas tão embebidas dos
óleos que fluem dos corpos que não tem mais forca para consumir os que
se lhe lançam , e notando-se que pelas paredes, mesmo das catacumbas,
onde ha, filtram esses óleos, do que, tanto nos corpos das Igrejas como
nessas catacumbas, resultam exalações que infectam o ar que
respiramos.
93
Mais tarde, quando o enterro fora dos cemitérios públicos foi proibido, os
jornais contribuíram para coibir as resistências da população. Através das denúncias
de moradores ou autoridades, os jornais tornavam públicos delitos como o abandono
de corpos em praias, ou terrenos baldios. Não se sabe qual era o destino dos
infratores. Dada a falta de registros, é possível que os delitos não fossem
investigados e punidos. No entanto a visibilização desses delitos funcionava como
alerta, coibindo a ocorrência de novos casos. O jornal lembrava constantemente que
a partir de então a práticas de sepultamento eram controladas e vigiadas. No ano de
1861, passados vinte anos da construção do cemitério público (no local que
abrigaria mais tarde a cabeceira da Ponte Hercílio Luz), um leitor escreve ao jornal
Argos denunciando que: O corpo de João Antonio Ferreira, foi encontrado insepulto,
sendo conduzido em rede até a igreja Matriz, onde foi feito o exame de corpo de
delito.”
94
Em 1883, o Jornal A verdade publica a notícia de que o corpo de um
escravo que foi achado dentro de uma propriedade particular:
O cadáver do escravo Bento, de propriedade do Senhor Francisco Martins,
foi encontrado no lugar de “Paixão” desta cidade. Ao encontrar o cadáver a
autoridade policial procedeu em seguida o exame médico e verificou que a
morte foi causada por asfixia e submersão.
95
Além de denunciar as contravenções da população, os jornais também eram
espaços onde se criticava a administração pública. Em 1882, o jornal Argos fala
sobre o descaso da Câmara em relação à conservação e cuidado do cemitério
municipal. O artigo diz que:
93
O CONCILIADOR, 12.08.1839, p. 3 apud. CABRAL, 1979, op. cit. p. 470.
94
Jornal Argos, 12.04.1861, p. 5.
95
Jornal A Verdade, 04.11.1883, p. 2.
33
A missão da Câmara Municipal é difícil e tem como único premio a gratidão
do povo. O calçamento das ruas da cidade, o aformoseamento de suas
praças, a limpeza de suas ruas. A Câmara apresenta o triste espetáculo de
praias cheias de cães e outros animais mortos. O cemitério publico, onde
repousam restos de pessoas caras estava em tal estado de abandono que o
Excelentíssimo Presidente não pode deixar de fazer sentir a Câmara
Municipal. Para que a morada dos mortos seja respeitada, será necessário
voltar ao enterramento nos templos como faziam os antigos cristãos,
convencidos que ali descansam mais pacificamente? Acabe a Câmara com
esse espetáculo e dê exemplo ao povo, para que eles saibam que os
senhores se consagram ao serviço público.
96
Um jornal também noticiou um caso de negligência do administrador do
cemitério público. Segundo a publicação, uma Irmã da Ordem Terceira estava
enterrada no cemitério quando, por ocasião do reaproveitamento da cova, seu corpo
foi deixado dias insepulto sem que estivesse decomposto. O jornal diz que a Câmara
não dispensou o administrador, considerando a escassez de candidatos para
ocupar a vaga.
97
Assim, em vários momentos da história dos enterros em Desterro, os jornais
exerceram importante papel. No momento em que as teorias médicas começavam a
se impor, os jornais faziam circular as novas teorias, exerciam uma função
pedagógica, ensinavam a população a reconhecer e combater as práticas baseadas
no costume. Os jornais também estiveram presentes no período da construção do
cemitério público. Neles era possível acompanhar as idas e vindas dessa
negociação, os debates, as correntes defensoras, a discussão sobre qual o local
mais adequado.
Quando o corpo morto se torna um problema para a higiene, os jornais vão
ensinar a se proteger dos gases exalados, como proceder nos casos de morte em
família, e qual a maneira segura de acompanhar um enterro. E no século XX,
quando o cemitério público é transferido para a localidade do Itacorubi, os jornais
vão ser um dos espaços onde se debate sobre a conveniência da mudança.
96
Jornal Argos, 21.01.1862, p. 6.
97
CABRAL, 1979, op. cit. p. 470.
34
3.2 O PRIMEIRO EXÍLIO DOS MORTOS
Como vimos anteriormente, no movimento de profilaxia urbana, vários
elementos eram vistos como ameaças a boa qualidade do ar: pântanos, hospitais,
enfermarias, casas mal ventiladas, lixo, animais mortos, vegetais em decomposição,
matadouros, ruas estreitas, doentes, etc…
Nesse quadro de combate aos miasmas, o cadáver começa a ser apontado
como mais um dos causadores de doenças e flagelos da população. Segundo os
teóricos do período, durante a fase de putrefação o cadáver liberava miasmas
extremamente nocivos à saúde humana. E como essa fase ocorria justamente no
interior dos templos, os reformadores consideravam imprescindível a transferência
dos corpos para locais mais adequados.
Na Europa, o enterro nos templos começou a receber críticas isoladas a partir
do século XVI. Porém foi no século XVIII que o movimento toma proporções
significativas. Em 1706, o Monsenhor Maria Lancisi aconselhou o Papa Clemente XI
a construir um cemitério fora do perímetro urbano de Roma.
98
Em Portugal, no ano
de 1800, Dr. Vicente Coelho de Seabra escreveu sobre os prejuízos causados pelas
sepulturas nos templos. Em 1835, foi publicada na Inglaterra uma memória falando
sobre os perigos do enterro dentro das igrejas.
99
A França, no início do século XVIII, foi o primeiro país a fazer um estudo
sistematizado sobre o perigo das inumações. O governo de Paris, preocupado com
as epidemias, designou uma comissão de médicos para estudar os efeitos das
emanações cadavéricas. Os médicos, por sua vez, colecionavam exemplos das
tragédias provocadas pelos gases. A mais célebre das pesquisas, publicada em
1743 por Haugenot, relata o caso das crianças que se reuniram na igreja de
Borgonha para fazer a primeira comunhão, quando uma exalação maligna teria se
elevado de um dos túmulos escavados sob as lages da igreja. O eflúvio se difundiu e
provocou uma catástrofe: o cura, o vigário, 40 crianças e 200 paroquianos morreram
envenenados.
98
CATROGA, Fernando. O Céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos mortos em
Portugal (1756-1911) Coimbra: Minerva,1999, p.112.
99
CATROGA, op. cit. p. 128.
35
Outro médico parisiense, Huges Maret denunciou as exalações metíficas
lançadas dos sepulcros sobre o ar enclausurado dos templos. Para ele, as covas
abertas na Igreja de Nossa Senhora de Motpellier permitiram perceber um vapor
fétido que impregnava as roupas e o corpo.
100
Para comprovar o perigo desses vapores, Maret jogou nas covas gatos e
cachorros que, segundo ele, teriam morrido em meio a convulsões. Ele cita ainda o
curioso caso de um coveiro que teria morrido dez dias após abrir a cova de um
obeso.
101
Essas discussões sobre os enterros chegaram ao Brasil um século mais
tarde, mais ou menos nas primeiras décadas do século XIX. Enquanto Paris passava
por um segundo momento nas práticas fúnebres, os médicos brasileiros traziam para
o Brasil o questionamento sobre as teorias miasmáticas. Dois médicos
especificamente, contribuíram para a difusão das teorias sobre a inumação. Maurício
Rebouças e José Correa Picanço estudaram nas mesmas escolas de medicina que
Maret e Haugenot, trazendo para o Brasil as teorias e experiências realizadas na
Françaa. Picanço publicou em 1812 um ensaio sobre o perigo dos enterros nos
templos, enquanto Mauricio Rebouças defendeu uma tese sobre o assunto em Paris.
Em 1832, a tese de Rebouças foi publicada no Brasil.
102
Nos relatórios da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, rios casos
de tragédias locais citados por médicos. Dizía-se que na Bahia, vários fiéis morreram
ao abrirem pela manhã as portas da igreja de São Francisco. Também foi relatado o
caso de um coveiro que ao mexer em uma cova recém fechada foi subitamente
atacado por uma infecção asmática. No Rio de Janeiro, a questão também
provocava criticas por parte dos médicos. Dizia-se que a igreja de Santo Antônio era
perigosa, pois nela se depositava uma grande quantidade de cadáveres, formando
sobre a cidade uma nuvem mais grave do que o ar que se precipitava sobre a
cidade.
103
Segundo os médicos brasileiros, o perigo das emanações dava-se pela
manhã, que durante a noite os gases permaneciam estagnados dentro da
construção. Assim, recomendava-se que ninguém fosse a missa neste horio,
100
REIS, op. cit., p. 90.
101
Além do perigo das covas recém abertas, considerava-se que pessoas obesas ofereciam mais
perigo a saúde em decorrência da decomposição de sua gordura corpórea. REIS, op. cit., p. 257.
102
REIS, op. cit., p. 40.
103
Ibid., p. 256.
36
especialmente as mulheres, que eram mais suscetíveis aos miasmas “graças à
predominância do sistema linfático”
104
Para eles, a própria arquitetura das igrejas,
com paredes grossas e poucas janelas, favorecia a concentração dos miasmas, que
eram potencializados pela respiração dos fiéis e pelo calor das velas e do incenso.
Como exemplo do perigo, era citado o caso da irmã do médico Lino Coutinho que
teria sido acometida de uma febre pútrida após ir à missa pela manhã.
Mas não era dentro das igrejas que os cadáveres precipitavam os seus
males. Todo o ambiente que circundava os templos estava sujeito aos gases
mortíferos. Na Bahia, por exemplo, se dizia que todas as casas próximas as igrejas
eram inabitáveis e doentias. Havia no de uma freguesia uma casa que a cada
dez dias era ocupada por um novo morador. Segundo os médicos, uma substância
oleaginosa escorria pelas paredes e corrompia toda a água e os alimentos. Um
pouco mais tarde, os miasmas cadavéricos são acusados de também causar surtos
epidêmicos nas populações próximas aos cemitérios.
105
Em lugares como Paris, a crítica aos enterros nos templos ocorreu a partir do
século XVIII. Em 1763, o parlamento parisiense nomeou uma comissão de médicos
para estudar a salubridade dos enterros. Com base nestas conclusões, se tentou
proibir os enterros através de um decreto do mesmo ano. No entanto, o enterro nas
igrejas foi proibido definitivamente em 1780. Conta-se que a transferência das
ossadas foi um espetáculo trico: sob a luz de tochas, inúmeras carroças
carregavam os restos para a periferia. Porém o volume era tanto que muitos ossos
acabavam caindo da carroça se espalhando pelas ruas da cidade.
106
Apesar desse movimento ter tomado forma no início do século XVIII, a
especificidade de cada local deu à história dos sepultamentos contornos diferentes.
Em alguns países europeus as práticas mudaram no mesmo período. Na Espanha,
por exemplo, o sepultamento nos templos foi proibido em 1787. Mas em outros
países do continente, a convivência foi tolerada até o início do século seguinte. Em
Portugal, Segundo Fernando Catroga, somente após vários surtos epidêmicos do
século XIX, o governo resolve tomar providências. Em 1835 um decreto referendado
pelo estadista Rodrigo Fonseca de Magalhães proibiu inumações dentro dos
104
Ibid., p. 257.
105
Ibid., p. 257.
106
CATROGA, op. cit. p. 285.
37
templos. Ele diz que essa era “uma ptica funesta à saúde dos seus cidadãos,
vindo a fazer um tráfico de pestilência e de morte
107
Em 11 de Janeiro de 1801, o príncipe Regente de Portugal enviou uma Carta
Régia aos governadores provinciais do Brasil, recomendando que fosse feita a
construção de cemitérios públicos distante dos núcleos urbanos.
108
No entanto,
parece que esta determinação não foi cumprida em Desterro, pois os enterros
continuavam a ser feitos na Igreja Matriz. Como vamos verificar, a mudança dos
enterros em Desterro não ocorreu em função de nenhuma determinação externa,
mas a partir da crescente mudança na relação da cidade com o corpo morto.
3.3 O CADÁVER SE TORNA UM PROBLEMA
Desde o início da constituição do povoado de Nossa Senhora do Desterro, os
mortos eram enterrados no Campo Santo. No interior do templo, ou no cemitério
adjunto, o corpo morto era integrado ao cotidiano da igreja. Esta prática ocorria tanto
no núcleo central, quanto nos povoados, a exemplo do Ribeirão da Ilha e Rio
Vermelho. Nestes locais os fiéis faziam suas orações em meio ao odor dos corpos
em decomposição, sem que isso se constituísse um problema.
As teorias higiênicas dos séculos XVIII e XIX modificaram a relação da
população com o cadáver. Quando o núcleo urbano de Desterro passou por diversas
intervenções, vários elementos foram apontados como corruptores do ar. E um dos
primeiros problemas a ser apontado foi o cadáver.
Vários jornais começam a criticar as práticas tradicionais de enterro. As
teorias sobre o enterro nos templos, muitas vezes veiculadas por jornais de outras
localidades, apontavam o cadáver como um dos grandes responsáveis pela
qualidade do ar. Em 1838, um jornal local dizia que o enterro nos templos tornava
Mal sadio o local da cidade, outrora tão salubre, manifestando-se nela,
amiúde, doenças de mau caráter. O mal epidêmico que ora lavra e que
tantos estragos tem feito, causa terríveis acidentes de que somos
testemunhas e que todos lamentamos.
109
107
CABRAL, 1979, op. cit. p. 480.
108
SILVA, 2002, op. cit. p. 113.
109
ARGOS, 1838 apud CABRAL, 1979, op. cit. p. 480.
38
Uma das grandes mudanças na relação com o cadáver foi a modificação na
percepção do cheiro do cadáver. Se até então este odor era associado à piedade
cristã, passou a ser identificado como algo negativo, um alerta que indicava a
presença do perigo. Os médicos adjetivavam negativamente o odor cadavérico,
classificando-o como insuportável, desagradável, pernicioso, insultante, repugnante,
ingrato, atormentador, mau. A vigilância olfativa tornou perceptível o cheiro do
cadáver, ensinando a evitar permanecer em sua presença.
Para as autoridades religiosas, o odor do cadáver não deve mais fazer parte
do espaço da Igreja. Ao invés de lembrar os fiéis a existência da imortalidade, o
cheiro agora impede a concentração e a prática da oração. Assim, no interior da Ilha
o Monsenhor Manuel Joaquim da Paixão solicita ao Presidente da Província que
tome providências em relação ao sepultamento dentro da igreja.
Desde o tempo em que me acho empregado na qualidade de Parocho desta
matriz, um fétido odor sai dos corpos, a ponto de não poder-se entrar
Na igreja sem que haja um grande incômodo. Peço a V. Excelência para
tomar providências necessárias para que o público não sofra com esse ar
corrupto e pestífero
110
.
O Presidente da Província vai mais longe ainda, dizendo que esta prática
ofende à divindade e que está ligada à motivos menos nobres como a vaidade. Além
disso, os cemitérios públicos são citados como signos da modernidade e da
civilização.
é preciso acabar de uma vez por todas com essa prática insultante à
Divindade, quanto prejudicial à saúde pública, de converter os templos em
túmulos, práticas que a despeito do exemplo dado na Capital do Mundo
Cristão, a despeito do exemplo do que tem determinado os Concílios e Leis
Canônicas e as civis mais bem calculadas, pôde por séculos fazer vingar
entre nós a estúpida vaidade, o orgulho ridículo e aferro insensato a frívolas
distinções.
111
E, além do odor cadavérico, outros elementos despertam reações contrárias.
Se o enterro fazia parte do cotidiano das igrejas, agora a visão dos corpos em
110
MONSENHOR Manuel Joaquim da Paixão. Igreja Nossa Senhora do Ribeirão. Ofício enviado ao
Presidente da Província. 23 de janeiro de 1849
111
Relatório do Presidente da Província, 1841. apud CABRAL, 1979, op. cit. p. 410.
39
decomposição também causa choque. Um viajante de passagem por São Francisco
do Sul relata a reação dos fiéis diante de um sepultamento:
além de imoral, repugna o âmago da civilização. No dia 2 de junho, a Igreja
Matriz festejava o Espírito Santo e sucedeu de haver um enterro o qual fui
assistir. Eram 7 horas da tarde, quando acabou a encomendação do
cadáver e no meio da Igreja se abria uma cova para dar asilo ao defunto.
Repentinamente, exala da cova um fétido que de tão enjoativo que era,
alcançou o vigário que passava pela porta. Quase todos os circunstantes
saíram espavoridos. E faça idéia, senhor editor, do quanto é imundo ver sair
os pedaços de um cadáver putrificado. Nisto manda o sacristão aprofundar
a sepultura e lançar dentro o cadáver encomendado, com os fragmentos do
outro. Eis que vem chegando o povo para a novena, e senhoras houveram
que encontrando o mau cheiro na porta, retiraram-se para as suas casas.
então fiz comigo uma reflexão e lembrei-me do quanto é útil termos
cemitérios públicos em cidades civilizadas. Devería-se mandar proibir o
enterro de cadáveres dentro dos templos, que o próprio vigário roga para
que isso seja feito.
112
Para combater os perigos causados pelos cadáveres, uma série de
intervenções ocorreram nos enterros. A primeira delas foi no tempo tradicional dos
rituais. Segundo o Código de Posturas de Desterro de 1828, nenhum corpo poderia
permanecer na casa por mais de 24 horas após a morte.
113
No entanto, a modificação das práticas de enterro, não ocorreu de maneira
uniforme. Como toda mudança de práticas, o movimento ocorreu de forma desigual
e muitos ainda respeitavam o tempo tradicional dos funerais. Isso ocorria
principalmente, em regiões mais afastadas do núcleo urbano. Em um ofício enviado
em 1828 ao Presidente da Província, o Sub-comissário de Polícia diz que:
na localidade de Ganchos de Dentro o povo é tão teimoso, que o material
fecal é depositado ao redor da casa e os cadáveres são conservados nas
casas por um período superior a vinte quatro horas.
114
Porém, apesar de não obedecer uma trajetória retilínea, as antigas práticas
de enterro eram coibidas através da criminalização. O mesmo ofício sugere que,
para que não ocorram semelhantes práticas, a punição aos infratores deve ser
112
Jornal Novo Íris 12.10.1851, p. 4.
113
Código de Posturas de Desterro, 1828, p. 5.
114
Ofício enviado por Felizardo José Sagaz (sub-comissário de Polícia) para o Presidente da
Província Manoel Joaquim Machado,1828, p. 2.
40
aumentada. Assim, para impedir que ocorram tais absurdos, não bastam apenas
multas, mas devem ser efetuadas prisões nesses casos de negligência”.
115
A regulamentação, a punição e a reeducação, aos poucos tornaram menor o
tempo entre a morte e o sepultamento. Principalmente nos períodos de epidemia, a
população se mostrava receosa em manter contato prolongado com o cadáver.
Através dos obituários é possível verificar que os enterros eram realizados em um
período inferior a 12 horas após a morte. Entre 1862 e 1870, foram publicados os
seguintes obituários:
Faleceu ontem as 3 horas da madrugada depois de longo padecimento, o Sr.
Joaquim Xavier Nunes, o qual foi sepultado ontem as 9 horas da manhã.
116
Faleceu ontem as 7 horas da manhã e foi sepultado na tarde de ontem, o
coronel Bonifácio de Andrade, membro da repartição de terras e da Assembléia
Provincial.
117
Faleceu ontem as 4 da madrugada e enterrou-se hoje, as 11 da manhã, José
Fernandes de Oliveira Magalhães.
118
Se até então, o tempo dos rituais respeitava as normas religiosas do velório,
percebe-se através das publicações que a população se mostrava receosa em
manter contato com o corpo morto. O tempo entre a morte e o sepultamento, muitas
vezes era inferior ao máximo permitido pela legislação.
Segundo as teorias médicas do período, existiam algumas soluções com o
poder de neutralizar os miasmas cadavéricos. A Terapêutica Brasileira, escrita por
Urias da Silveira, dizia que
[...] ao falecer um doente, o seu rosto devia ser coberto com uma toalha
embebida em desinfetante a fim de que os líquidos cadavéricos entrassem
em contato com o agente anti-séptico. Ao se introduzir o corpo no caixão,
deve-se forrá-lo com panos velhos molhados na solução, para evitar que
durante o trajeto ao cemitério derrame-se no caixão os líquidos cadavéricos.
Se os acompanhantes fossem senhoras ou crianças, em vez do ácido
fênico, cujo cheiro é incômodo, se devia dar preferência à solução feita de
ácido sublimado."
119
115
Ofício felizardo José Sagaz...., p. 3
116
Jornal Argos, 16.04.1862, p. 3.
117
O Constitucional, 8.10.1870, p. 7.
118
Ibid.
119
SILVEIRA, Urias da. Terapêutica brasileira: o tesouro do médico prático. Rio de Janeiro: B L.
Garnier, 1889. p. 87.
41
Para este autor, não bastava a neutralização do corpo morto, mas também de
tudo que tivesse tido contato com ele. A roupa e o leito, por exemplo, deviam ser
lançados ao fogo, e as casas desinfetadas com solução fenicada e cal.
[] para evitar o contato com o cadáver, é necessário não se demorar nos
locais de sua passagem como os hospitais, salas mortuárias, necrotérios e
habitações particulares de cadáveres. Como medida mais drástica, nos
casos de cólera, deve-se sitiar a casa do falecido e os vizinhos deveriam
mudar-se para outras ruas. Em alguns é aconselhado até cortar a
comunicação com outras cidades, à exemplo do que se fez em Prest, na
Hungria.
120
Algumas dessas medidas também foram tomadas em Desterro, com relação
ao tratamento dos cadáveres. Segundo Cabral, no trajeto entre a casa e a sepultura,
os cadáveres eram envolvidos em lençóis embebidos em soluções neutralizadoras.
Os acompanhantes também levavam junto ao nariz lenços para proteger-se.
[] ricos e pobres deviam embrulhar os cadáveres numa camisa, e também
num lençol fumigado por ácido muriático oxigenado. Era assim que os
mortos deviam ser conduzidos, em caixões ou tumbas fechadas, sem que
os encarregados do transporte não deixassem de ter o cuidado de colocar
junto à boca e o nariz, lenços molhados em vinagre ordinário."
121
Segundo a teoria miasmática, o envolvimento do corpo reduzia a propagação
dos miasmas. Assim, a mortalha signo do ritual religioso recebe agora uma nova
função. É ela que vai se constituir na primeira barreira de isolamento do corpo
morto. Assim, o Código de Posturas de Desterro determinou que a partir de 1832
ficava
[] proibido enterrar escravos sem mortalha, sob a pena de hum mil reis de
multa. E nenhuma pessoa, por mais miserável que fosse, será sepultada
sem ser envolvida em qualquer mortalha de stofo. Se o falecido ou seus
parentes não tivessem recursos, essa mortalha seria doada pela Câmara
para garantir o enterro correto.
122
No entanto, na nova relação com o cadáver, esta forma de transporte deixou
de ser suficiente para proteger os acompanhantes das emanações. Ainda em 1836,
as Posturas de Desterro determinavam a extinção dos esquifes das irmandades, os
substituindo por um transporte mais adequado, onde o corpo seria duplamente
120
Ibid. p. 88.
121
CABRAL, 1979, op. cit., p. 411.
122
Código de Posturas de Desterro, 03. 1836, p. 4.
42
isolado. Assim, surge também a obrigatoriedade do uso do caixão. Ao contrário do
esquife onde o morto desfilava à céu aberto, o caixão funcionava como uma
segunda barreira, isolando não as emanações, como também os fluidos
corpóreos. Para isso as Irmandades disporiam de um ou dois caixões para servir aos
seus irmãos. Também a Igreja Matriz ofereceria o serviço mediante esmola arbitrada
em favor da fábrica.
123
No início do século XIX, a obrigatoriedade do caixão fechado se restringia
somente aos casos de doença contagiosa. Em 1836, o artigo 9 das Posturas dizia
que “nenhum corpo, de qualquer tamanho que fosse, seria conduzido sem ser em
caixão fechado, quando o facultativo houver declarado que a enfermidade do
falecido é contagiosa."
124
Para os que não cumprissem a determinação, a Câmara estabelecia o
pagamento de uma multa no valor de 8$000,00. Um ano depois, o combate aos
miasmas se tornou mais intensivo: o apenas nos casos de epidemia, mas em
qualquer causa mortis, o caixão seria conduzido fechado.
125
No entanto, apesar da
legislação e das multas impostas, houve alguma resistência por pare da população.
Um jornal de 1876 noticiava que apesar de ser proibida por lei, a condução
continuava a ser feita em ataúdes abertos, onde o cidadão era carregado céu
aberto, de papo pro ar, à vista de seus conterrâneos, amigos e parentes".
126
Apesar do caixão ter sido escolhido como o invólucro perfeito para a
condução, muitas vezes ele era o responsável pela corrupção do ar das casas. Por
ser um artigo caro, muitas pessoas acabavam utilizando os caixões da Matriz ou das
Irmandades. Mas como essa urna era usada e reutilizada por diversas vezes, elas
acumulavam inevitavelmente restos de vários cadáveres. Assim, muitas vezes eles
levavam para a casa "todas as sobras do defunto velho, tudo aquilo que escapara
ao seu vital controle."
127
Para os que não escolhessem um ataúde vindo de outro enterro, havia a
opção do aluguel de caixões em empresas privadas. Esses caixões por não serem
gratuitos, eram normalmente mais limpos do que os das Irmandades ou da Câmara.
Em 1858 a Firma Fernando Antônio d’Avila anunciava "a venda e aluguel de caixões
123
Código de Posturas, 1836 p. 4.
124
Código de Posturas, 1836 p. 5.
125
CÓDIGO de Posturas de Nossa Senhora do Desterro, 05.1857, p. 13
126
CABRAL, 1979, op. cit., p. 509.
127
CABRAL, 1979, op. cit., p. 509.
43
para todos os tamanhos de defuntos e conforme as circunstâncias que se
precisar."
128
Outra empresa, essa de propriedade de Joaquim da Silva alugava
"caixões para anjos e adultos, por preços diferentes para pobre e ricos."
129
A própria
Irmandade do Glorioso Arcanjo São Miguel explorava o mercado e alugava caixões
para interessados.
130
Essa prática incomodou as autoridades e, em 1876, a Câmara
Municipal solicitava ao Presidente da Província que fosse proibida a condução de
pessoas em caixões de aluguel. Mas depois de 6 anos esse tipo de comércio ainda
existia em Desterro.
131
Assim, no início do controle da morte, o sudário e o caixão constituíram-se
como as primeiras medidas de combate aos miasmas. Funcionado como barreiras
no isolamento das emanações, estes artefatos envolviam o corpo no momento do
transporte, minimizando os perigos cadavéricos. No entanto, a normatização dos
enterros não se restringiu apenas ao momento do transporte. Era necessário criar
também um espaço adequado ao controle e tratamento do cadáver. Assim, iniciou-
se o debate sobre a construção das novas necrópoles higiênicas. E é sobre esse
novo esse novo espaço destinado à morte que falaremos no próximo capítulo.
128
Ibid., p. 510.
129
O CONCILIADOR, 12. 03. 1876, p. 4
130
CABRAL, 1979, op. cit., p. 509.
131
Ibid., p. 510.
44
CAPÍTULO 4 A CONSTIUTIÇÃO DOS NOVOS ESPAÇOS
4.1 AS NOVAS NECROPÓLES
Se o sudário e o caixão foram as primeiras medidas de combate às
emanações cadavéricas, eles ofereciam proteção apenas no momento do
transporte. Como os caixões não eram privativos, no momento do enterro eles
retornavam às irmandades, o corpo era enterrado sem qualquer proteção. Assim, os
presentes eram expostos aos miasmas do morto recém-chegado e aos dos que
descansavam na cova reaproveitada.
Além dessa exposição temporária, havia a exposição constante dos
freqüentadores das igrejas. Todo o processo de decomposição se completava
dentro dos templos, e o óleo cadavérico que escorria pelas paredes corrompia o ar
do interior e da periferia. E mais do que isso, se espalhava pela cidade graças aos
ventos fortes e constantes que sopravam na Ilha. As autoridades higiênicas se
preocupavam com a localização da Matriz, pois, o ponto elevado em que ela se
encontrava, facilitava a propagação das emanações sobre a cidade.
Assim, não bastava mais apenas isolar em caixões, era necessário também
deslocar a presença dos cadáveres para longe da cidade. Autoridades higiênicas,
eclesiásticas e a opinião pública pediam a proibição dos enterros nas igrejas,
principalmente nos períodos epidêmicos. Foi assim que em 1841, após um grave
surto de febre amarela, os enterros nos templos foram definitivamente proibidos pela
lei Provincial 137.
132
Mas para que esta determinação pudesse ser cumprida, era necessário criar
um espaço adequado para o tratamento da morte e do cadáver. O cemitério público
foi o ambiente ideal produzido pelo pensamento higiênico do século XIX. Como
veremos mais adiante, o cemitério de Desterro tinha todas as condições necessárias
para proteger os vivos dos males do cadáver: a sua localização, a arquitetura, e a
subordinação da administração à municipalidade. Todas essas características
desautorizavam o templo como moradia dos mortos, coibindo a prática secular do
132
CABRAL, 1979, op. cit., p. 305.
45
enterro ad sanctus. Assim, a construção do cemitério de Desterro marcou nesse
momento, a ruptura na convivência entre vivos e mortos, separando definitivamente
os dois mundos.
O debate sobre os enterros iniciou-se em Desterro no início do século XIX. A
separação da necrópole, porém, foi posta em questão em 1832, quando um
representante da Sociedade Patriótica apresentou à Câmara a proposta da criação
de um cemitério público. A idéia de Jerônimo Coelho foi aceita, porém levou dez
anos para ser efetivada. Durante todo este tempo os enterros continuaram a ser
feitos nos templos. Naquele mesmo ano, a Câmara Municipal designou uma
comissão para avaliar qual terreno oferecia melhores condições à construção do
cemitério. Como nos demais cemitérios construídos neste período da reforma
funerária, a preocupação maior era de que ele fosse bem distante do núcleo
populacional. Outra preocupação da Câmara era que o terreno escolhido fosse bem
altivo e ventilado, de preferência longe dos ventos Leste e Sudeste."
133
Depois de avaliar durante um ano quais seriam os melhores terrenos, a
comissão sugeriu a chácara situada no Morro do Vieira, próximo ao Forte de
Sant`ana. Este local, no entanto havia sido escolhido para abrigar o novo
matadouro, adiando a escolha do terreno para o ano seguinte. Em seguida cogitou-
se construir o cemitério em terreno concedido em usufruto à Irmandade dos Passos,
mas a idéia não foi bem aceita, já que a localização do terreno, no alto da Boa Vista,
seria próximo demais da cidade. Segundo declarava um relatório
Jamais deveria ser construído um cemitério nos terrenos do Menino Deus,
de onde sopram furiosos ventos Leste e Sudeste, que precipitam os
miasmas sobre toda a cidade, o que evidentemente as colhe da infecção
sobre aquele bairro, derrama o imundo cemitério do Hospital de
Misericórdia, de maneira que torna aquele local e vizinhança num dos
bairros mais doentios da cidade.
134
Assim, como esse terreno oferecia os mesmos perigos da Matriz, a
comissão acabou escolhendo a chácara de propriedade de José Vieira de Castro.
Em 1840, ela foi então desapropriada pela Câmara que alegou utilidade pública.
135
A
Câmara designou para planejar a construção o engenheiro Patrício Sepúlveda,
133
Ibid., p. 407.
134
CABRAL, 1979, op. cit., p. 408.
135
Regulamento do Cemitério Público de Desterro, 1841, p. 2.
46
responsável também por várias reformas posteriores. Atendendo a solicitação do
Presidente da Província, o engenheiro enviou em 1840, o seguinte ofício:
Cumprindo o que Vossa Excelência ordenou em Ofício de 21 de maio,
tenho a honra de enviar-se a planta do cemitério da capela a construir em
terreno que foi de José Vieira. O local é bom, altivado e ao norte da cidade,
impedindo que esta seja infectada pelos miasmas exalados dos corpos em
decomposição.
136
Em 1841, foi inaugurada então, a primeira necrópole de Desterro. A partir
daí foi determinada pelo Presidente da Província a proibição do enterro de qualquer
cadáver, seja no interior das igrejas quanto nas catacumbas de fábrica. Segundo a
resolução de 1 de junho de 1841, todos os que morressem na cidade, seriam
enterrados no cemitério público.
137
Foto tirada do Continente para a Ilha em 1922. O cemitério localizava-se distante do
centro urbano.
138
136
Ofício enviado pelo engenheiro Patrício Sepúlveda ao Presidente da Provícia, 1840, p. 1.
137
CABRAL, 1979, op. cit., p. 502.
138
Vista do cemitério público. Data 1920. Acervo: Paulo Ricardo Caminha
47
Vista da Ponte Hercílio Luz, à esquerda, o cemitério público, o forno de lixo e a ETE Estação de
Tratamento de Esgoto. Data em torno de 1925.
Acervo: Paulo Ricardo Caminha.
O primeiro cemitério público do Estado foi o de Desterro, localizado na
cabeceira da futura Ponte Hercílio Luz, próximo ao Forte de Sant´Ana.
Em vários locais da Província também existia o debate sobre a construção
das necrópoles públicas. Durante o mês de abril de 1851, o jornal Novo Íris publicou
correspondências com a oposição de Francisco Camacho à construção do cemitério.
O vereador teria se oposto à proposta apresentada à Câmara, alegando que na
cidade haviam 7 cemitérios. O relator da proposta do cemitério responde dizendo
que os sete cemitérios citados por Camacho eram na verdade, terrenos baldios,
onde as pessoas por conta própria, realizavam os enterros. Cemitério verdadeiro a
cidade teria apenas o pequeno junto à Matriz "que não serve senão para sepultar
escravos e pessoas miseráveis, pois está em desuso a inumação dos cadáveres
dentro da igreja.
139
Foi designado então pelo Presidente da Província, uma comissão para avaliar
a situação dos enterros em São Francisco. O presidente da comissão João de
139
Jornal Novo Iris, 22.04.1851, p. 4.
48
Souza Alvim, por sua vez, declara ter visto apenas um cemitério, e que Francisco
Camacho chama de necrópoles lugares onde se tem enterrado algumas pessoas
apenas por extrema necessidade. O problema maior, segundo ele, era que o vigário
não permitia que fossem enterrados fora do local sagrado, nem os cadáveres
falecidos por epidemias. "Há muitos anos", dizia João de Souza Alvim,
[] foram enterrados na Ilha da Vaca, Morro do Hospital e Paranaguá
Mirim, as pessoas falecidas da epidemia de cãibra, mas nas ocasiões das
epidemias de bexiga e febre amarela, aos cadáveres foram enterrados no
interior da igreja ou no cemitério junto à ela.
140
Outro caso que contribuiu para a transferência dos mortos foi o relato já citado
do viajante que presenciou um enterro no interior da Catedral de São Francisco. O
viajante publicou no mesmo jornal um relato onde se mostrava profundamente
chocado com os efeitos que a visão e o cheiro do cadáver provocavam nas pessoas
que freqüentavam a igreja. Ele pedia que as autoridades tomassem providência e
dessem fim à esse bárbaro costume. Outra publicação do jornal dizia que o local
ideal para a construção do cemitério seria um terreno próximo à chácara do Deyrolle,
"pois nada melhor do que ventos que não se deitam sobre a cidade."
141
Após todos
esses pedidos, em 23 de maio de 1851, a Câmara aprovou o projeto apresentado
pela comissão de redação. E em 1851, foi inaugurada a nova necrópole da cidade
de São Francisco do Sul.
Os outros cemitérios públicos do Estado foram construídos décadas mais
tarde. A cidade também litorânea de Itajaí teve o seu cemitério somente no ano de
1874. Já nas cidades de colonização alemã, a história dos ritos fúnebres é um pouco
diferenciada das cidades litorâneas mais antigas. Nessas regiões nunca existiram os
enterros dentro das igrejas, pois estas foram cidades que nasceram dentro das
normas de higienização.
Mas apesar das particularidades de cada região, os regulamentos dos
cemitérios das várias cidades são bastante parecidos. Tanto a arquitetura, quanto a
parte administrativa seguiam o modelo de outros cemitérios existentes no país.
Estes, por sua vez, eram quase cópias dos cemitérios europeus, principalmente os
parisienses. Assim, se compararmos o regulamento dos cemitérios de São
Francisco, Desterro, Itajaí, com o de Paris, excetuando-se a parte administrativa,
140
Ibid., p. 5.
141
Jornal Novo Iris, 06.05.1851, p. 4.
49
eles vão ser quase idênticos.
142
Esses regulamentos, expedidos pelo Presidente da
Província determinavam como deveria ocorrer todo o funcionamento dos cemitérios
públicos. Como o controle da morte foi transferido das autoridades eclesiásticas para
a autoridade municipal, foi através dos regulamentos que as novas normas de
sepultamento foram colocadas em prática. Eles determinavam rios aspectos, indo
da arquitetura dos cemitérios, até as penalidades impostas aos infratores.
A arquitetura, por exemplo, era planejada pelos engenheiros contratados. A
abertura das sepulturas, porém, ficava ao encargo do administrador e era
determinada pelos regulamentos. Assim, eles especificavam quais seriam as
dimensões corretas, o espaçamento entre elas e a sua localização, sempre
atentando para que se mantivesse uma coerência com as regras de construção. O
administrador do cemitério devia cuidar para que as sepulturas seguissem as regras
do planejamento geométrico, estabelecendo a melhor simetria possível. A
apresentação também estava ligada à outra questão. Mais do que uma preocupação
com a simetria, a localização de cada elemento visava garantir também as boas
condições do enterro dos cadáveres. Além disso, o regulamento determinava ainda
a localização das árvores e os espaços mantidos vazios para a boa circulação do
ar.
143
As condições de enterro também eram controladas nestes documentos.
Segundo eles, um cadáver não poderia ser enterrado sem a proteção do caixão, ou
ainda, fora do tempo previsto pela lei. A cova para receber o morto devia ser aberta
pelo funcionário do cemitério, ou por alguém escolhido pelo responsável pelo morto.
Porém, se deveria atentar para que esse escolhido cumprisse as normas do
cemitério, abrindo a cova nas dimensões corretas e, principalmente, fechando
hermeticamente.
As normas de sepultamento tinham como objetivo não apenas o controle do
cadáver e dos miasmas, mas também da morte em números. Através do registro do
óbito no livro do administrador, a Inspetoria de Higiene tinha as informações precisas
sobre a morte. Com esses dados era possível saber quantas pessoas haviam
morrido, as principais causas de morte e qual parcela da população foi mais atingida
142
Em Paris, existiam vários cemitérios públicos que eram subordinados às prefeituras de cada
bairro. Também a equipe responsável pelos cemitérios era bem mais numerosa que dos cemitérios
brasileiros. Enquanto aqui o número de funcionários era no máximo três, existiam até 12
funcionários. Regulamento do Cemitério Público de Paris, 1830, p. 7.
143
Regulamento do Cemitério Público de Desterro, 1841
50
pelos flagelos. Como veremos mais adiante, através dessas informações eram
elaboradas políticas de combate aos inimigos da saúde pública.
Mas para que toda essa estrutura funcionasse corretamente, os
regulamentos também eram específicos quanto à parte administrativa, determinando
o número de funcionários suficiente, as obrigações competentes a cada função, o
nível hierárquico, as penalidades impostas aos infratores e as instâncias exteriores
que fiscalizariam o bom cumprimento das obrigações de cada um. Assim,
determinando cada detalhe, os regulamentos garantiam que estes espaços fossem
os ambientes mais apropriados para o enterro. A nova necrópole, portanto, nasceu
com normas próprias, que permitiram um completo controle da morte.
4.2 CIDADE DOS VIVOS, CIDADE DOS MORTOS
Quando os enterros foram proibidos nas igrejas, segundo Fernando Catroga,
as novas necrópoles criadas tentaram reproduzir o ambiente dos vivos. Seguindo as
mesmas normas de construção, assim, foram-se elevando réplicas de cidades,
ordenadas segundo as regras da disciplina geométrica.
Na Europa, surgiram vários
modelos de construção dos cemitérios. Em Paris, a divisão do cemitério era feita
através de avenidas onduladas, enquanto que o de Portugal seguia o desenho de
uma cruz, com vários blocos retangulares, como os de uma cidade moderna.
144
Os cemitérios brasileiros parecem ter seguido o modelo português,
determinando-se para cada espécie de enterro, uma área determinada. Existia neles
a divisão para a sepultura das irmandades, os enterros leigos, e também, para as
covas rasas.
145
No ofício enviado pelo engenheiro Patrício Sepúlveda, pode-se imaginar
como se configurava o desenho do cemitério público de Desterro. Nele constata-se
uma preocupação em construir o cemitério dentro da disciplina geométrica utilizada
nas cidades contemporâneas. Segundo Sepúlveda,
144
CATROGA, op. cit., p. 307.
145
Ibid., p. 306.
51
foi difícil planejar o cemitério, pois o terreno destinado era muitíssimo falho e
quase todo irregular. Eu tomei a parte mais plana fixada pelas linhas e
construí 26 braços quadrados, e só não estabeleci mais simetria e beleza na
obra, pois o terreno era todo irregular e pedregoso.
146
A necrópole era cercada por uma parede de tijolos rebaixada em igual altura
com pilares de braço a braço, com uma abertura protegida por um portão de ferro.
Em uma linha que seguia reta a partir da entrada, eram plantadas árvores que
formavam um caminho até o final do cemitério. Ao lado dessas árvores vinham as
sepulturas que segundo o Presidente da Província, seriam:
construídas simetricamente e distribuídas da seguinte forma: a quarta parte
seria para a Igreja Matriz, e as outras três seriam dividias proporcionalmente
entre as Irmandades do Sacramento, Nossa Senhora do Rosário, Ordem
Terceira, e Espírito Santo.
147
Uma pequena parte do cemitério seria destinada ainda aos que professam
outras religiões. Os mesmos princípios governavam outros cemitérios blicos da
Província, como os de São Francisco. Segundo as normas deste, as Irmandades
deveriam construir os seus jazigos na forma de catacumbas, compreendendo a
largura de 6 palmos, localizando-se no espaço junto ao muro lateral ali existente.
Estas seriam dispostas umas sobre as outras, formando uma fileira uniforme de dois
andares. O espaçamento entre as sepulturas também era regulado, devendo ter a
largura de três palmos, que seriam ladrilhados e cobertos com a mesma cobertura
das catacumbas, para se abrigarem as pessoas que acompanham os cadáveres.
Apenas na extensão de fundo e frente do cemitério, em frente ao portão, o espaço
ficaria vazio para circulação do ar. Em toda a extensão de frente e de fundo e
também na largura do portão, não se abriria qualquer sepultura, ficando todo esse
espaço livre para a rua. Esse corredor seria bordado de alegretes e ciprestes que
deviam medir, no máximo, vinte palmos de comprimento. A divisão do cemitério
seria feita da seguinte forma: ao lado do muro lateral, ficariam as catacumbas
destinadas às Irmandades, logo após, viriam os jazigos temporários ou
permanentes, e depois, as covas rasas. No meio do cemitério viriam as árvores, que
plantadas em linha reta, formavam um corredor vazio, em frente ao portão.
148
146
Ofício enviado pelo Engenheiro Patrício Sepúlveda…op.cit., p. 5.
147
Coleção de Leis da Província de Santa Catarina, 1840, p. 5.
148
Regulamento do Cemitério Público de São Francisco, 5. 04.1855, p. 2.
52
No cemitério público de Itajaí, além de determinar a localização de cada
sepultura, o regulamento também especificava as dimensões corretas das covas e
de seu espaçamento. O administrador deveria fiscalizar para que não fossem
abertas sepulturas com dimensão inferior a 1,98 de comprimento, 0,66 de largura e
1,54 de profundidade. Isso no caso dos adultos. Quando fosse enterrado um menor,
a sepultura deveria ter no mínimo 1,32 de comprimento, 0,44 de largura e 1,32 de
profundidade. O espaçamento entre as sepulturas era um pouco maior do que o
exigido em Desterro. Ao invés de três palmos, era necessário deixar 6 palmos nas
laterais. Entre a cabeça e os pés do morto, era preciso deixar a distância de dois
palmos.
149
É possível deduzir através dos ofícios e dos regulamentos qual era a
configuração formada pelos elementos dos cemitérios públicos. E, ao que parece,
salvo pequenas diferenças, eles seguiam a mesma forma de divisão. A dos tipos de
sepulturas partia do muro lateral e seguia até o meio do cemitério, onde havia um
espaço vazio formado por um corredor de árvores. Em frente deste corredor ficava o
portão de entrada do cemitério e nos fundos a capela destinada à realização dos
velórios e sacramentos. Ao contrário da divisão dos cemitérios portugueses (onde
havia pequenos blocos retangulares reproduzindo a divisão dos bairros), os
cemitérios da Província tinham grandes blocos ininterruptos, que seguiam do final do
cemitério até sua entrada. Também é possível ver que em todos eles existe a
preocupação em seguir normas simétricas de construção, que em todos os
regulamentos existe a recomendação ao administrador de não permitir a abertura de
sepulturas ou a ereção de monumentos que desrespeitem essas regras.
4.3 O CEMITERIO ALEMÃO
Depois da construção do cemitério público, outro cemitério veio juntar-se à
este um pouco mais tarde. Em 1869, a comunidade alemã de Desterro iniciava a
construção de um cemitério próprio, localizado no terreno ao lado da necrópole
municipal.
149
Regulamento do Cemitério Público de Itajaí, 13.05.1874 p. 6.
53
Segundo João Klug, o grupo alemão que se fixou em Florianópolis professava
em sua maioria a religião Luterana. Como se instalaram em uma região
constituída, com características lusitanas, a religião serviu neste momento como
instrumento de coesão étnica. Assim, a partir de 1860, surgiram várias associações
alemãs, que visavam a ajuda mútua e a continuidade das práticas culturais. Dentre
essas associações estavam o Clube Germânia (recreativo-cultural), a Associação
Escolar Alemã (educacional), a Associação dos Atiradores (recreativa-cultural),
Comunidade Evangélica Alemã (religiosa) e a Associação do Cemitério da
Comunidade alemã.
O enterro dos não católicos em cemitérios públicos era assegurado pelo
governo brasileiro desde 1863. Segundo decreto, o registro dos óbitos dos não
católicos devia ser feito pelo escrivão do juízo de paz em livro apropriado. Assim
também, os cemitérios públicos seriam obrigados a reservar um espaço específico
para o enterro dos não católicos.
150
No entanto, em 1879, o deputado Barros
Pimentel diz que o decreto não resolveu o problema em muitas localidades. E até
mesmo depois da proclamação da República clérigos católicos continuavam a proibir
os enterros.
151
O espaço para os que professavam outras religiões existia desde a sua
construção, determinado pelo regulamento de 1841.
152
No entanto, não havia ainda
uma total separação entre o domínio religioso e leigo. Apesar do cemitério público
ser totalmente controlado pela Câmara, ele deveria ser abençoado por uma
autoridade religiosa católica, o que conferia uma identidade religiosa ao cemitério. A
construção do cemitério alemão esteve ligada à tentativa de coesão do grupo. Tanto
isso se confirma que, em 1882, a comunidade resolveu ceder uma área aos alemães
católicos, alegando que o acesso ao cemitério deveria ser possível à todos os
alemães, independente do credo.
153
Em 1868, a Câmara Municipal concedeu permissão para a instalação do
cemitério alemão. Foi formada uma comissão para cuidar do assunto, onde foi
decidido que o cemitério seria mantido por contribuintes da associação. A
150
GUEDES, 1987, apud. KLUG, João. Imigração e luteranismo em Santa Catarina: a comunidade
alemã de Desterro- Florianópolis: Papa-Livro, 1994, 240p, p. 154.
151
RIBEIRO, Boanerges. 1973 apud. Ibid., p. 155.
152
Regulamento do Cemitério Público de Nossa Senhora do Desterro…op.cit., p. 3
153
PBDEGF (1869-1907) apud. KLUG, op. cit., p. 155.
54
comunidade comprou o terreno, que ficava ao lado do cemitério público, e o material
para a construção.
154
Outras questões relativas ao cemitério também eram de responsabilidade da
comunidade. Se o Cemitério Público era administrado por funcionários da
municipalidade, o alemão possuía o seu próprio encarregado. Em 1869 o Sr.
Kranz se prontificou a cuidar do local, arborizar e controlar os enterros. Mas apesar
do cemitério alemão possuir uma certa autonomia, ele ainda estava subordinado à
Câmara. Quando foi decidido o acesso aos alemães católicos, a Sociedade teve que
enviar à Câmara um pedido de permissão.
155
Assim também o controle das normas
higiênicas era exercido pela Câmara.
Quando o novo cemitério do Itacorubi foi construído, se destinou uma área
para o enterro dos luteranos, bem como dos que professavam outras religiões.
4.4 CEMITÉRIO COMO ESPAÇO HIGIÊNICO
Mas as regras de construção dos cemitérios não existiam apenas para
adequá-los aos padrões de simetria, como metáforas das cidades. Mais do que
espaços ordenados pela geometria, os cemitérios deveriam ter as condições ideais
para o enterro dos cadáveres. A neutralização dos efeitos do cadáver era um dos
objetivos da construção dos cemitérios e, segundo Roberto Machado, o projeto
médico em relação aos cemitérios se estrutura em dois princípios: a sua localização
e a organização interna.
156
Em relação à esta última, uma das principais mudanças ocorridas foi a
individualização das sepulturas. Com os cemitérios religiosos havia as sepulturas
individuais, mas esta não era a única forma de enterro. Os pobres eram enterrados
coletivamente nas valas comuns, o que segundo Catroga, reproduzia a
diferenciação social existente na cidade dos vivos. Mas nem todos os países tiveram
a vala comum proibida nas novas necrópoles. Na França e na Itália, elas
continuaram a existir por vários anos. Porém em Portugal, Catroga diz que não
154
CABRAL, 1979, op. cit., p. 483.
155
Ibid., p. 157.
156
MACHADO, op. cit., p. 291.
55
houve o hábito do enterro na vala comum."
157
Em Desterro, a nova necrópole
nasceu com essa separação.
A individuação da sepultura tinha para a higiene uma função bastante prática.
Para pesquisadores franceses, a terra era o melhor lugar para o sepultamento, pois
ela possui a capacidade de consumir mais rapidamente os corpos. No entanto,
quando havia um excesso de cadáveres enterrados em um mesmo local, a terra
ficava embebida pelos fluidos cadavéricos e a decomposição tornava-se mais lenta.
Segundo Ricardo Jorge Almeida, os cemitérios de Paris apresentavam um número
tão excessivo de cadáveres, que após a reabertura da cova o corpo se encontrava
quase intacto.
158
Além de saturamento do solo, os miasmas cadavéricos não
deveriam se misturar. Segundo Roberto Machado, de cada cadáver partiam raios de
corpúsculos fétidos, que podiam ser medidos. Desta forma, os limites de cada raio
deveriam, no máximo, coincidir com os limites de outro raio corporal, pois a
interpenetração das duas mortes concentraria emanações pútridas e alteraria o ar.
Assim, a individuação das sepulturas minimizava o perigo dos cadáveres permitindo
a eliminação completa do corpo.
159
Além de serem individuais, as covas também deveriam respeitar a medida
padrão estabelecida. Esses números eram definidos de acordo com a medição dos
raios miasmáticos. Segundo esses cálculos, a distância entre os cadáveres deveria
levar em conta também a terra dos cemitérios. A mesma, apesar de permeável aos
vapores, atrapalhava os fluxos que saiam dos corpos, sendo a sua ação
proporcional a espessura das camadas. Para dificultar a saída dos gases deletérios
as sepulturas deveriam ser cavadas dentro de uma determinação mínima
160
Assim,
seguindo o modelo de outros cemitérios, o regulamento de Desterro determinava
medidas mínimas de segurança para isolamento dos miasmas.
161
Outra preocupação nos cemitérios era a eliminação completa dos corpos e
seus fluidos. Se nas igrejas as sepulturas eram reabertas antes que o corpo se
consumasse, nos cemitérios havia a determinação de que nenhuma sepultura seria
aberta num prazo inferior a dois anos. Esse era o tempo estimado para que se
completasse o processo de decomposição sem que fosse oferecido perigo aos
157
CATROGA, op. cit., p. 238.
158
ALMEIDA, Ricardo Jorge. Higiene Social. Porto: Liv. Civilização, 1855, p. 54.
159
MACHADO, op. cit., p. 291.
160
Ibid., p. 292.
161
Regulamento do cemitério público de Nossa Senhora do Desterro, 1841, p. 6.
56
vivos. Para que isso ocorresse, além de coibir o reaproveitamento prematuro das
covas, os regulamentos determinavam que a área desocupada do cemitério deveria
ser três vezes maior do que a área que preenchida por sepulturas. A metragem do
terreno também deveria levar em conta o número de habitantes da cidade, para que
não fosse necessário abrir sepulturas recentes.
162
Quanto à sua localização, foi visto que um dos critérios de escolha era a
distância do centro urbano da cidade. Além disso, o terreno deveria preencher,
sempre que possível, determinadas exigências em relação ao ar e suas
características. As condições atmosféricas para impedir a concentração das
emanações pútridas era a temperatura baixa, o ar seco e movimentado. Segundo a
teoria miasmática, a temperatura baixa condensaria o ar e fecharia os poros
exalantes dos animais, o ar seco aumentava a capacidade do ar em absorver as
partículas maléficas e a movimentação dispersaria a matéria exalada. Em oposição
à essas condições, estão a temperatura alta, que opõe pouca resistência às
exalações, o ar úmido, que absorve pouca matéria por ser muito aquoso; e o ar
imóvel onde havia muita concentração de partículas no mesmo local.
163
Assim, o
cemitério se localizava no alto de um morro, com permanentes ventos secos e
frescos.
Na organização interna do cemitério, também havia a mesma preocupação
em relação à qualidade do ar. Em frente ao portão havia um corredor vazio
ornamentado nas laterais por uma vegetação de no máximo vinte palmos de
comprimento. Nesse corredor, segundo os regulamentos, não poderiam ser abertas
sepulturas, nem tampouco erguidos monumentos. Para facilitar a circulação do ar,
as árvores plantadas também não poderiam ter a copa muito aberta nem ultrapassar
a altura máxima permitida. Assim, aconselhava-se que fossem plantadas árvores
especificadas como salgueiros ou ciprestes. A profundidade das covas, por sua vez,
ajudava a conter os miasmas em segurança abaixo do solo. A mortalha, o caixão, o
cal, e, por fim, uma camada de terra, deveriam conter os miasmas bem longe dos
vivos. Para conter as emanações existiam ainda, as árvores, que formavam uma
barreira ao redor do cemitério, evitando que os miasmas cadavéricos alcançassem a
cidade. O cemitério possuía ainda uma capela mortuária utilizada para velórios o que
retirava parte dos rituais fúnebres do centro urbano.
162
Regulamento cemitério público desterro, p. 7.
163
MACHADO, op. cit., p. 291.
57
Assim, a construção da nova necrópole obedeceu à critérios específicos
determinados pelas teorias da época. Todo esse conjunto arquitetônico se
apresentava para o pensamento higiênico como o espaço ideal para os enterros
modernos. Substituindo os templos, todos os detalhes de sua construção visavam
garantir a segurança da população e neutralizar os perigos do corpo morto. Na nova
necrópole, o corpo se decompunha adequadamente, os miasmas eram contidos por
várias barreiras e os enterros realizados de forma controlada. Nenhum elemento
estava por acaso. Toda a construção foi cuidadosamente planejada para que o
cemitério se tornasse a nova morada higiênica dos mortos.
4.5 A ARBORIZAÇÃO DOS CEMITÉRIOS
Outro elemento que contribuiu com a higiene dos cemitérios públicos foi a
existência de árvores. Durante a Idade Média, os cemitérios religiosos eram pouco
adornados e quase desprovidos de vegetação, com exceção das nogueiras,
utilizadas para fazer os óleos rituais.
164
Mas no final do século XVIII, um tipo
específico de vegetação passou a compor o cenário cemiterial. A vegetação
conífera, segundo os higienistas, era a mais adequada ao plantio em cemitérios,
pois não impedia a circulação do ar e tinha a propriedade de purificar emanações
malignas.
Cientistas franceses realizavam experiências com uma dessas árvores em
1880, na Argélia. Nas áreas em que foram feitas grandes plantações de cipreste,
houve uma diminuição significativa na incidência de doenças infecto-contagiosas.
O cipreste além de ser uma bela árvore, tem o poder de tornar salubre as
regiões afetadas por paludismo ou por emanações. Por isso a sociedade de
ciências recomenda o seu plantio em locais como cemitérios ou regiões
pantanosas
165
afirma a revista que publicou a pesquisa. A partir do século XIX as outras
coníferas passaram então a fazer parte do cenário dos cemitérios. Em 1804, uma lei
francesa aconselhava o plantio dessas árvores, "pois é sabido que elas servem para
164
CATROGA, op. cit., p. 121.
165
FIGUIER, Louis. L’anée scientifique. Paris: Librarie Hachette, 1883, p. 32
58
purificar o ar, e em nenhuma parte ele precisa ser tão puro quanto nos
cemitérios."
166
Em Nossa Senhora do Desterro, desde a criação dos cemitérios públicos, a
vegetação conífera esteve presente. Ainda no seu projeto, o engenheiro Patrício
Sepúlveda dizia que a porta da entrada seria de ferro e as divisões do terreno
seriam feitas com cravos do Líbano. Para embelezar e purificar o estabelecimento,
seriam plantados chorões e ciprestes.
167
Em outros cemitérios, no entanto, a
vegetação ficou restrita às bordas e à entrada do cemitério. Em São Francisco, por
exemplo, determinou-se que o se abriria sepultura em toda a extensão do
cemitério, e esse espaço seria bordado de alegretes de vinte palmos de
comprimento para o plantio de ervas aromáticas. Ficava proibido o plantio de árvores
no interior do cemitério.
168
Os ciprestes foram se impondo então, como o elemento botânico
característico dos cemitérios, sendo identificado como mais um signo da morte.
Segundo Catroga, os poetas utilizaram o cipreste como tema, relacionando sua
figura "triste e lúgubre" com as dores da morte. Assim, na literatura do século XIX,
são encontradas diversas referências à esse signo, como no trecho do poema épico
O Uruguai, de Basílio da Gama:
Lá reclinada, como quem dormia
Na branda selva e nas mimosas flores
Tinha a face na mão e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancolia e sombra"
169
Também podemos encontrar o cipreste em poemas como as Sete Damas, de
Alphonsus de Guimaraens:
Sete Damas por mim passaram.
E todas sete me beijaram.
E quer eu queira quer não queira.
Elas vêm cada sexta-feira.
Sei que plantaram sete ciprestes.
Nas remotas solidões agrestes.
166
CATROGA, op. cit., p. 123.
167
Ofício enviado pelo engenheiro Patrício Sepúlveda…op.cit., p. 2.
168
Regulamento do Cemitério Público de São Francisco, 21.03.1855, p. 3.
169
GAMA, 1769. Apud CATROGA, op. cit., p. 205.
59
Deixaram-me como um mendigo…
Se elas vão acabar comigo!
Todas, rezando os Sete Salmos.
No chão cavaram sete palmos.
170
Leonor de Almeida se reporta ainda aos ciprestes para chorar a morte de sua
filha:
Sombra da noite, lúgubres ciprestes,
Que o sol medroso, da sua luz não toca
Vós guardais um tesouro, que rodeia
Mil gemidos maternos
171
Mas estes não foram os únicos poetas que utilizaram a figura do cipreste
como tema. Segundo Catroga, "seria fastidioso citar todas as múltiplas referências à
paisagem cemiterial deste período."
172
Podemos citar ainda a marquesa de Aloma,
Luís Rafael Soyé, Manuela Barnardo de Souza e Melo e Bocage. Catroga diz que
desde a metade do século XIX até a década de 30 do século XX, proliferaram textos
espalhados por diversas revistas literárias.
173
Em Desterro, os escritores locais também fizeram uso do cipreste em seus
escritos sobre a morte. Em 1911, o almanaque de Santa Catarina publicou o
seguinte texto:
Os ciprestes que eretos ergue-se nas alamedas do saudoso jardim dos
mortos, parecem imersos em profunda agonia, como que embalando as
sepulturas na sua infinita e triste mudez. Aqui se levanta sem beleza a
ornamentação de flores sem perfume, das sombras verdes que
emurchecidas pelo calor vivente do sol, vem guarnecer a triste morada dos
mortos.
174
Outra revista literária, de 1862, relaciona o cipreste a outros signos da
morte:
Fi-lo frio como a terra sepulcral, imerso no sono eterno. Ontem ainda te vi
cheio de vida, colhendo flores, e hoje, nas trevas do sepulcro, à sombra do
cipreste, dormes tranqüilo.
175
170
GUIMARAENS, Alphonsus de, - Poesia Completa. Nova Aguilar, 2001, 652 p.
171
ALMEIDA, 1844 apud. CATROGA, op. cit., p. 205.
172
Ibid., p. 206.
173
Ibid., p.122.
174
O Almanaque, 10. 06. 1911, p. 7.
175
O Pajaça, 02.06.1862, p. 5.
60
4.6 O ADMINISTRADOR E O COVEIRO
Um dos componentes fundamentais na estrutura que passou a controlar a
morte foram os responsáveis pelo funcionamento dos cemitérios públicos. Os
cemitérios de Desterro, ao contrário dos parisienses, contavam com apenas duas ou
três pessoas. No entanto, ainda era possível ter o controle sobre os cadáveres e a
morte em números, graças à rede a qual esses funcionários passaram a fazer parte.
Com o enterro nos templos, os coveiros eram subordinados às autoridades
eclesiásticas, responsáveis pela remuneração, correções e dispensas no caso de
inapetência. Mas a situação se modifica no século XIX com a construção dos
cemitérios públicos. Segundo Jorge Crespo,
O regulamento dos coveiros foi modificado em 1817, substituindo o de
1646, criado por D. João VI. Nesse novo regulamento os administradores
foram subordinados as autoridades locais e o poder das entidades
religiosas foi neutralizado, "
176
O administrador do cemitério era nomeado e juramentado pela Câmara
Municipal, sendo conservado "enquanto servir à população."
177
Como o horário dos
enterros era imprevisível, ele deveria morar o mais próximo possível do cemitério,
em casas alugadas por sua conta. As vezes, chegava a morar dentro do próprio
cemitério em uma casa construída pela Câmara. A função do administrador era
quase indispensável na estrutura de controle, pois este não poderia se ausentar da
cidade sem antes pedir licença à Câmara e designar um substituto. Essa era
inclusive a maior infração que podia ser cometida pelo administrador. No
regulamento do cemitério público de Desterro, o abandono temporário do cargo
estabelecia uma multa de 4$000, que era quase o dobro das estabelecidas à outras
infrações. E até nos casos de doença, o administrador poderia se ausentar se a
Câmara considerasse idôneo o substituto indicado.
O administrador era responsável por todos os registros no cemitérios,
verificando se todos os documentos do morto estavam em ordem, registrando os
enterramentos e confeccionando os mapas de óbitos. O regulamento do cemitério
público de Desterro também determinava que o administrador não consentisse o
176
CRESPO, Jorge. História do Corpo. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 239
177
Regulamento do Cemitério Público de Nossa Senhora do Desterro…op.cit., p, 3.
61
enterro de nenhum cadáver sem que lhe fosse apresentada uma permissão escrita,
assinada pelo delegado, ou sub-delegado de polícia a rubricada no verso pelo
vigário da Matriz. Assim, depois de conferidas todas as informações sobre o morto,
o administrador dava a permissão e lavrava o termo de enterramento, registrando
todos os dados do falecido. A Câmara fornecia ao administrador um livro de
assentamentos onde eram registradas as informações da seguinte maneira: à
margem do nome do falecido se anotava o dia, mês e ano do sepultamento, o lugar
de enterro, o número da catacumba, a idade, o estado civil e o nome do cônjuge.
Também deveria constar a filiação, naturalidade, a hora do falecimento, local e
causa mortis. Através das informações deste livro, o administrador confeccionava os
mapas de óbitos que deveriam ser entregues à Câmara no início de cada mês.
Assim, o controle sobre o movimento demográfico era realizado através do trabalho
do administrador. Era ele quem garantia o cumprimento da normatização dos
enterros e detinha o poder sobre as informações da morte.
Também era responsabilidade do administrador garantir que o cemitério
funcionasse dentro das normas higiênicas. O regulamento de 1841 determinava que
era de sua responsabilidade marcar o local de abertura das sepulturas, verificar se
as mesmas obedeciam as medidas e se o fechamento foi hermético. Como dispunha
do mapa de enterros, zelava também para que as sepulturas não fossem
reaproveitadas em um prazo inferior a dois anos do último enterro. O administrador
deveria ainda vigiar para que não entrassem no cemitério "cães e outros animais
que possam revolver as sepulturas, bem como que o recinto do cemitério esteja
sempre no melhor estado de asseio."
178
Todas essas atribuições eram fiscalizadas
pelo fiscal da Câmara. Ele verificava o cemitério e o livro de enterros, denunciando
qualquer irregularidade ou omissão ao Estado. Além do fiscal, a própria população
fiscalizava o cumprimento dos deveres do administrador. Em um dos trechos, o
relatório diz que: "qualquer cidadão pode denunciar a falta de cumprimento dos
deveres do administrador, e a vista da denuncia, por participação da Câmara e as
autoridades competentes."
179
Mas dessa estrutura fazia parte também outro funcionário, subordinado ao
administrador do cemitério. Se o administrador fiscalizava o cumprimento das
normas cemiteriais, o coveiro as executava. Ele era designado pelo administrador, e
178
Ibid., p. 3.
179
Regulamento do Cemitério Público de Nossa Senhora do Desterro…op.cit., p. 8
62
tinha como função a abertura das covas e catacumbas, bem como o cuidado com a
segurança e a limpeza. Assim como o administrador, o coveiro também estava
sujeito à penalidades quando não cumpria com os seus deveres. Se não enterrasse
corretamente, ou deixasse um corpo insepulto, na primeira falta receberia multa de
1$000 e, na segunda, seria destituído do cargo. No entanto, ao que parece, a
Câmara era mais condescendente com os coveiros, pois este não era um cargo
muito fácil de ser preenchido. Segundo Cabral "por medo dos mortos, ou das
epidemias, poucos estavam interessados em ocupar tão tétrica função. Ninguém em
tempos de epidemia queria ter como trabalho diário o manuseio dos cadáveres."
180
Os coveiros eram vistos pela população como pessoas com o caráter
diferenciado dos demais. Não apenas por se exporem ao perigo dos miasmas, mas
também por lidarem diariamente com a morte sem sofrer grandes abalos. Através
das publicações sobre o assunto é possível ter uma idéia de como esse profissional
era visto. Em 1907, a revista literária Crisântemo publica o seguinte texto:
Dentre todos os que compõe uma imensa multidão, destaca-se pela
fisionomia, cujo riso sarcástico pelos golpes alheios, acentua-se com cunho
indelével. O coveiro é um homem rude e simples, que apesar de seus bons
sentimentos mal compreendidos, parece imprimir no circunstantes o agouro
e o pânico. O que causa mais estranheza é a naturalidade com que o
coveiro lida com as situações diárias da morte. Ele é tão estranho às
lágrimas, como as depredações que se esbulham sobre os esquifes,
enfrentando com indizível impassibilidade a aflição e a dor que a esfaimada
adversária da vida leva aos lares. Nada comove aquele coração afeito às
rudezas da vida, que tudo observa sereno com a adunca no ombro.
Apesar de humilde e desprezado, o coveiro é mais digno do que muitos
cidadãos, pois representa a austeridade de um juiz, nivelando sem distinção
de classe e de cor, todos os homens.
181
O rendimento dos funcionários do cemitério era responsabilidade da
municipalidade. No início da criação do cemitério blico, essa obrigação era
dividida com as Irmandades e com a Matriz,
182
mas já em 1848, a tabela de
despesa da municipalidade mostra que o salário era pago integralmente pela
Câmara. A despesa total com o administrador do cemitério contabilizava 1:020$000
por ano, e a com o coveiro 720$000. Mas além do rendimento mensal pago pelo
município, os coveiros e os administradores recebiam uma espécie de comissão
pelos enterros realizados no cemitério. O administrador do cemitério da Capital fazia
180
CABRAL, 1979, op. cit., p. 405.
181
O Crisântemo, 06.11.1907, p. 4.
182
Metade do pagamento era feito pelas entidades religiosas, que também entregavam um
regulamento religioso a ser obedecido pelos funcionários. CABRAL, 1979, op. cit, p. 506.
63
a cobrança das espórtulas recebendo a metade para si e a outra metade para o
coveiro. Se o responsável pelo enterro não quisesse utilizar os serviços do coveiro,
poderia fazer por si mesmo, ou contratar outra pessoa, desde que fossem
respeitadas as normas de enterro. Por esse serviço a Câmara receberia 3$000
quando a sepultura fosse de adulto e 2$000 para um menor.
4.7 A RESPONSABILIDADE DO ENTERRO E A RENDA DOS CEMITÉRIOS
Até o início do século XIX, os custos da mortalha e do caixão, do enterro e da
sepultura eram arcadas pela Igreja e pelas irmandades. Dar sepultura aos
desfavorecidos fazia parte das sete obras corporais previstas no Compromisso das
Obras de Misericórdia. Em 1828, o livro de Atas da Irmandade dos Passos diz que:
quanto aos enterros, a Irmandade deve ter um livro onde conste a despesa
que por amor a Deus se teve com os pobres, onde se deve constar o nome
dos que foram enterrados em nossa capela. Deve-se declarar o nome do
defunto, o número da sepultura e o ano em que foi enterrado.
183
Em 1855, foi apresentada na Assembléia Provincial uma lei que determinava
a contribuição de 10 réis por alqueire e por arroubo de todos os grãos de produção
da Província que fossem exportados, em benefício do Imperial Hospital de Caridade.
O produto da contribuição seria recolhido pelo Presidente da Província e repassado
à administração do Hospital que não poderia "aplicar as quantias em nenhum outro
objeto que não fosse o tratamento dos enfermos nela existentes e nas despesas
com os possíveis enterramentos."
184
Mas ao que parece a lei não foi aprovada pela
Câmara, e na noite de 8 de maio, o sino da Matriz tocou em sinal de funeral pela
queda da lei.
185
Assim, o Hospital de Caridade continuava a cuidar do enterro dos
indigentes, sendo que a Câmara era responsável apenas pelo fornecimento da
mortalha e do caixão.
Mas se durante todo o século XVIII, essa era uma obrigação tida como natural
pela caridade cristã, no século XIX, os enterros continuam a ser assistidos pelas
183
Livro de Atas da Irmandade Nosso Senhor Jesus dos Passos, 1828, p. 5
184
O Constitucional, 08.05.1855, p. 6
185
Ibid., p. 6.
64
igrejas, porém a obrigatoriedade começa a ser questionada. Em relatório citado, a
Irmandade dos Passos diz que o Estado financeiro da Irmandade vai mal, pois ela
cuida desses enterros, que na verdade, seriam obrigação do Município.
186
No
entanto, durante todo o século XIX, essa obrigação foi dividida pela Câmara e pelas
irmandades que assistiam os pobres. Parte dos falecidos eram enterrados no
Hospital de Caridade, e parte no cemitério público. Em 1874 o regulamento do
cemitério, diz que: "[…] todas as sepulturas dos cadáveres de pessoas miseráveis e
expostos serão abertas às custas do Hospital de Caridade e quando este não existir,
serão abertas às custas da Câmara."
187
Somente em 1936, o Município passou a ser totalmente responsável pelos
enterros com a interdição do cemitério do Hospital de Caridade.
188
Assim, como o
controle da morte mudou de domínio, também as despesas com os enterros
passaram a ser do Município. Antes dos cemitérios públicos, a Câmara pagava à
Igreja Matriz as espórtulas pelas covas abertas no templo. Com os cemitérios, a
situação se inverteu, a renda da Igreja e Irmandades sofreu uma baixa, pois eram
elas que pagavam ao cemitério os valores pelas covas. Na verdade, quem pagava,
eram os seus irmãos associados. Enquanto aos enterros gerais era cobrada a
quantia de 640$000 no caso das catacumbas e jazigos das irmandades, eram
cobrados apenas 400 réis.
189
A renda dos cemitérios públicos era de 3$000 por 0,22
metros quadrados em Desterro. Dessa forma, se a morte passou a ser controlada
pelo Estado, também coube a ele dar amparo aos que não tinham condições de
pagar o enterro. Se antes isso era feito pelas igrejas e irmandades, agora é a
Câmara responsável pelo enterro dos desfavorecidos. Os enterros não são mais
realizados graças à piedade cristã, mas pelo Estado que tem obrigação de assistir
aos menos favorecidos.
186
Relatório da Irmandade Nosso Senhor Jesus dos Passos, 1874 p. 4.
187
Regulamento do cemitério Público de Desterro, 1874
188
Relatório da Irmandade Nosso Senhor Jesus dos Passos, 1936, p. 10
189
Regulamento do Cemitério Público de Desterro, 1874 op.cit., p.2
65
4.8 A MORTE EM NÚMEROS
A criação dos cemitérios públicos esteve ligada também a outra forma de
controle. Além de normatizar o corpo morto, os cemitérios também fizeram parte da
estrutura de controle demográfico que surgiu no século XIX.
Desde 1775, a Ilha de Nossa Senhora do Desterro foi constantemente
atingida por surtos epidêmicos. Em cada uma de suas visitas as epidemias
deixavam um número de mortos superior ao de um ano inteiro. Na maioria das vezes
as epidemias chegavam pelo mar, trazidas pelos navios que descarregavam
mercadorias e notícias. Foi assim com o barco hamburguês Charles Ross, que
atracou na Ilha, deixando toda a tripulação contaminada pelo “vômito negro”.
Segundo o Presidente da Província, metade da população foi contaminada e 87
pessoas morreram
190
.
Se o mar era a porta de entrada para epidemias, aqui chegando, elas
encontravam o ambiente propício para se desenvolver. Para os profissionais da
saúde, a Ilha reunia todas as condições desfavoráveis à boa saúde da população:
mangues, pântanos e ventos úmidos. Esses fatores eram apontados como os
responsáveis pelo estado sanitário da cidade, não havendo muito que se fazer
diante de tal situação. Assim, quando a natureza não contribuía, a morte era um
tributo a ser pago, uma fatalidade que escapava ao controle do governo. Restava às
autoridades apenas resignar-se, ou pedir que soprassem os ventos do oeste, “estes
sim, secos e saudáveis”.
191
Os relatórios enviados pelos Inspetores de Higiene e Comissários de Polícia
deixam claro esse sentimento de impotência ante as doenças. Em 1861, o Inspetor
lamenta o pouco que se podia fazer diante desses flagelos que dizimavam
famílias inteiras, destruindo existências produtivas e saberes
laboriosamente conquistados”. É pois, contraditório abrir as portas do país
incentivando a imigração, quando não é possível salvar nem as vidas que
aqui estão.
192
190
CABRAL, 1979, op. cit., p. 469.
191
Ibid., p. 469.
192
Relatório da Inspetoria de Higiene enviado ao Presidente da Província, 1861, p. 12.
66
Assim, pode-se dizer que os surtos epidêmicos dos séculos XVIII e XIX foram
momentos limites na história da saúde pública de Desterro. Não é o caso de colocá-
las aqui como problemas propulsores de solução, porém, ocorre que, diferentemente
das epidemias da Idade Média, esses surtos desequilibraram a saúde de um novo
corpo. A noção da população surgida no século XVIII não se refere a uma
multiplicidade de corpos, mas sim, a um corpo que é afetado pelos mesmos
fenômenos específicos e suas variáveis próprias: natalidade, mortalidade,
esperança de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência de doenças, formas de
alimentação e habitat.”
193
A saúde desse corpo dependia, dentre outras coisas, de uma espécie de
homeostase, um equilíbrio entre a proporção de nascimentos e óbitos. A saúde
pública então, não vai combater toda e qualquer morte, mas apenas a que afeta
esse delicado fluxo. Os surtos epidêmicos, são portanto, um momento limite, pois
rompem bruscamente com uma média já esperada.
Desde o início do século XIX, já se observava uma preocupação com o
aumento populacional da Vila. Na Memória Política sobre a Capitania de Santa
Catarina, escrita por Paulo José Miguel de Brito, estão elencadas as causas que, na
avaliação do autor, dificultavam a conservação e o aumento da população. Segundo
ele, as causas do lento aumento populacional não se deviam a causas físicas como
o clima, topografia, solo, mas sim à características morais da população e a
inapetência administrativa do governo. Segundo ele, o governo deveria investir mais
esforços no aumento da população, pois esta seria a verdadeira riqueza dos
Estados. Brito constatou que no ano 1810, a Vila de Nossa Senhora do Desterro
contava com uma população de 5.250 pessoas. Entre os anos de 1774 e 1813,
observou que o aumento foi estacionário por uns anos, retrógrado em outros e
lentamente progressivo em outros. Um dos meios de conservar e aumentar a
população era para Brito o controle demográfico, feito a partir de mapas
populacionais enviados pelas capitanias ao Ministério. Ele observa no entanto que
nos mapas enviados
apenas se faz menção do número dos habitantes de ambos os sexos, livres
ou escravos, omitindo-se a proporção da população com a extensão do
território, e a dos sexos, nascimentos, casamentos, óbitos, idades, filhos
naturais, e legítimos, com cada uma das classes e delas com a população
193
Oliveira, 1990, op. cit., p. 78.
67
total, omite-se igualmente qual seja a relação com os recrutamentos e com
cada uma das classes da nação que se empregam nas artes, nos ofícios, e
n’outros modos de vida, quais sejam as causas físicas ou políticas da
mortalidade prematuro e da maior ou menor propagação.
194
Até parte do século XIX, o controle do fluxo populacional era feito de modo
incipiente, baseado exclusivamente nas atas das igrejas. Através do registro dos
batismos e enterros os vigários remetiam um resumo da população, e, assim era
composto o fluxo populacional da Província. No entanto, muitas pessoas eram
enterradas fora do domínio religioso, ficando de fora desta contabilidade. Nas cartas
enviadas ao presidente da Província, por exemplo, os vigários de várias localidades
se queixam da dificuldade de executar o serviço solicitado. Em 1830, o Vigário
Cordeiro de Souza declara ter recebido, junto com a correspondência, um modelo de
mapa, mas que não teve acesso aos números de nascimentos e mortes da vila.
195
O
vigário da localidade de Ribeirão também se desculpa em 1823, por não ter
conseguido enviar os mapas.
196
Em 1828, o Vigário da comarca de Lages envia ao presidente da Província a
seguinte carta:
Remeto a VªExª o mapa desta Vila seguindo o modelo que tenho em meu
poder, indo anexo o resumo da população da Freguesia, cuja infalibilidade
eu não afirmo, pois extrai das listas diligenciadas pelo emprego do capitão-
mor desta Vila. Quase muito afirmo sobre obitar porque são muitos os que
morrem e algumas vezes em cujas casas falecem em cujas casas não dão
parte e não os sepultam em campo santo. E apesar de eu os ameaçar com
penas impostas pela Igreja, eles ainda fazem pouco caso. Portanto, rogo a
VªExª haja de remediar semelhante mal a fim de que eu possa
desempenhar com aptidão o que Vª Exª me incumbiu.
197
Mas, além dos enterros fora dos campos santos a própria estrutura religiosa
não era adequada para o levantamento demográfico. Normalmente existia apenas
um vigário em cada paróquia e a sua função era cuidar da saúde religiosa da Vila,
realizando cultos e administrando sacramentos. Como muitas pessoas moravam
longe da paróquia era impossível ao pároco se ausentar tanto tempo para colher os
dados.
194
BRITO, 1932 apud OLIVEIRA, 1990, op.cit., p. 78.
195
Correspondência enviada pelo vigário Cordeiro de Souza ao Presidente da Província,1830, p. 1
196
Correspondência enviada pelo vigário Francisco Xavier ao Presidente da Província, Comarca de
Ribeirão,1823, p. 4.
197
Carta enviada por Anacleto Dias Baptista ao Presidente da Província. Comarca de Lages, 1828, p.
5.
68
Para a administração pública, o modelo de coleta de dados das paróquias não
era eficiente, pois não revelava dados muito importantes sobre o fluxo populacional.
Além de conhecer os números exatos de nascimentos e mortes, as autoridades
queriam ter controle sobre as causas das mortes, a sua natureza, o grupo atingido e
extensão dos flagelos. Para eles era impossível delinear estratégias de combate às
doenças e à morte, sem saber com precisão o que exatamente estava sendo
combatido. Como nas estratégias de guerra, a saúde pública buscava levantar o
maior número possível de informações sobre o inimigo. Em 1835, o Inspetor de
Higiene Pública diz que
a demografia é a contabilidade da higiene. E é por meio dela que podemos
conhecer a nossa riqueza e o nosso capital, representado pela massa total
da população. Das questões de higiene blica que a demografia compete
elucidar, nenhuma com certeza tem mais importância do que o estudo da
mortalidade, principalmente se encararmos sob o duplo ponto de vista dos
meios de diminuí-la. Quando o sábio Broca foi perguntado sobre as medidas
empregadas para diminuir a mortalidade infantil em França, respondeu que
conhecia uma que concretiza todas as outras: uma boa estatística dos
vivos e dos mortos. E com efeito, como é possível combater qualquer mal,
sem conhecer previamente seu grau de intensidade e o grupo da
coletividade humana mais dizimado? Empregar os poderosos recursos de
que dispõe a higiene, é como caminhar nas trevas, é inutilizar esforços,
tempo e dinheiro, é desmoralizar a grande ciência e mentir a seus elevados
intuitos. A demografia mais sensível do que a higiene, denuncia o mal
aonde não se havia suspeitado e ensina a higiene a procurá-lo.
198
Para ele o conhecimento demográfico não devia ser visto como uma despesa,
mas como um instrumento da saúde pública, que traria economia aos cofres do
Estado. Pois,
mais cara do que a moléstia, é a morte. Portanto, toda a despesa com a
higiene é na verdade, uma grande economia. Notável sumidade médica
calculou que a moléstia e a morte custaram à França um bilhão e
setecentos de francos, e diz Rochard que este grande país reduziu à um
décimo sua mortalidade, realizando uma economia de 165 milhões.
Economia essa que só foi possível, graças ao poderoso instrumento da
demografia.
199
Para utilizar corretamente esse instrumento, foram criados em Desterro vários
mecanismos de controle da morte. No entanto, o conhecimento demográfico era
198
Relatório da Inspetoria de Higiene Pública enviado ao Presidente da Província, 1835, p. 3.
199
Ibid., p. 3.
69
motivo de queixas até o final do culo XIX. Em 1876, um relatório da Inspetoria de
Saúde Pública diz que
com os dados que por intermédio da Presidência podemos conseguir, ainda
assim muito incompletos, bem pouco nos foi facilitado estudar a estatística
patológica e demográfica da Província. Segundo o ultimo recenseamento, a
Província de Santa Catarina consta de 159,802 habitantes distribuídos em
45 paróquias. Destas apenas 26 enviaram a relação do obituário durante o
ano de 1876. E sobre essa relação que baseamos os nossos cálculos,
posto que bem limitada confiança nos mereçam.
200
”.
Em 1885, outro Inspetor solicita ao governo da Província que torne obrigatório
o envio dos mapas. Ele diz no relatório que
teria grande satisfação de apresentar uma estatística completa, porém,
como a Secretaria não teve acesso aos mapas de assentamento, seria de
conveniência que V. Excelência obrigasse as Vilas a remeter os mapas
estatísticos.
201
Quase dez anos depois, parece que a situação não fora ainda resolvida. O
relator declara que não pode cumprir
às ordens expedidas no ofício de 16 de fevereiro de 95, onde determinado o
envio dos mapas no dia 15 de cada mês, pois foram dirigidos 67 quase
infrutíferos ofícios à delegados e escrivães de todas as localidades.
Debalde! Muitos nem resposta deram a essa repartição. Algumas
estatísticas realmente foram enviadas a essa Inspetoria, porem defeituosas
de modo que poucas são as que preenchem ao fim útil E indispensável pois
que se crie uma lei que torne obrigatório aos seus escrivães o fornecimento
de seus assentamentos. Apenas dessa forma posso apresentar a estatística
de mortalidade dessa Capital.
202
4.9 O CONTROLE DEMOGRÁFICO
A prática do enterro nos templos fazia com que os mapas estatísticos das
Freguesias fossem incompletos não atendendo ao fim destinado. Como a estrutura
da Igreja não era adequada, uma primeira maneira de contabilizar essas mortes foi
tornar obrigatória a sua comunicação. Assim, em 1836, o código de Posturas da
200
Relatório da Inspetoria de Saúde Pública enviado ao Presidente da Província, 1876, p. 5.
201
Relatório da Inspetoria de Saúde Pública enviado ao Presidente da Província, 1885, p. 2
202
Ibid., 1894, p. 3.
70
cidade de Joinville prevê que: “todas as pessoas que enterrarem corpos fora dos
recintos dos cemitérios religiosos, e não comunicarem o fato à autoridade policial,
serão multados em 10$000 reis e nas reincidências o dobro”.
203
A própria população acaba fazendo parte dessa estrutura de controle. No
mesmo código, existe um artigo afirmando que “todo aquele que tiver conhecimento
de um sepultamento fora dos recintos permitidos e não comunicar o fato às
autoridades policiais, se igualmente multado no valor de 10$000 réis e na
reincidência o dobro”
204
Porém, foi a partir da criação dos cemitérios públicos que o controle do
número de mortos foi sistematizado. Os espaços sujeitos ao controle administrativo
eram constituídos por uma estrutura específica, permitindo o conhecimento mais
aproximado da mortalidade das Freguesias. Assim, após a constituição do cemitério
público de Desterro, a administração pública determinou que fora desses locais,
ficava proibido o enterro de qualquer cadáver. A coleção de Leis de Santa Catarina
diz em 1843 que, de de janeiro em diante, no cemitério público se sepultarão
os cadáveres das pessoas que falecerem no distrito da capital“.
205
Também em
outras localidades, a prática do enterro fora desses espaços se torna proibida. O
código de Posturas de Lages, diz em 1852 que “a Câmara indicará os cemitérios
onde devem ter lugar os enterros públicos, ficando sujeito à multa de 10$000, os
enterros que fora deles se realizarem”.
206
Assim, foi somente com a criação dos
cemitérios públicos que a mortalidade passa a ser conhecida se tornando uma
realidade passível de controle.
Mas para que o controle demográfico fosse exercido de maneira adequada,
outros elementos também foram integrados à estrutura. Desde a criação dos
cemitérios públicos, a figura da autoridade policial começou a fazer parte do
processo de enterro dos corpos. Exercendo práticas de controle, disciplinarização e
registro de saberes, ela criou condições de possibilidade para que o número de
mortos entrassem na contabilidade administrativo.
A história da Polícia está ligada ao processo em que o Estado ocidental deixa
de restringir suas funções a defesa da paz e do direito, e passa a exercer uma série
de funções antes exercidas pela Igreja ou por particulares. Inicialmente, as funções
203
Código de Posturas da Cidade de Joinville,1872, p. 12.
204
Ibid., p. 12.
205
Coleção de Leis da Província de Santa Catarina,1843, p. 8.
206
Código de Posturas da Cidade de Lages…op.cit., p. 4.
71
da Polícia deveriam garantir a segurança interna e externa e o aumento das
riquezas e felicidade públicas. No entanto, as funções se modificam quando ela
passa a fazer parte de uma nova forma de governo caracterizada pelo governo da
população.
Nessa transição do Estado soberano para o Estado administrativo, a Polícia
não vai ser a instância que pune ou que julga, mas um dispositivo tutelar que
permite a observância das leis.
207
Segundo Oliveira, a Polícia não pode ser
confundida nem com o código, nem com a instância que julga e pune. A Polícia atua
como um dispositivo auxiliar no controle da conduta dos indivíduos, criando
condições para que estes ajam dentro das normas legais.
Assim, na normatização dos enterros em Desterro, a Polícia era a instância
que verificava o cumprimento das normas e coibia as antigas práticas. Se a
administração Provincial regulamentou as formas de enterro, a Polícia que criou
condições para que a população adequasse à nova legislação. Através dos Códigos
de Postura os delegados e inspetores foram investidos de várias formas de
autoridade que não se restringiam ao momento do enterro. Desde o momento em
que ocorria a morte, a a descida do corpo à sepultura, eram os delegados e
inspetores que tutelavam a normatização dos enterros.
Em vários locais da Província, a figura dos inspetores começa a fazer parte
dos enterros. Além da obrigatoriedade da comunicação, a legislação previa também
a presença indispensável dos delegados e inspetores no momento do enterro. A
partir de 1830, os códigos de Postura determinam que nenhum enterro poderia ser
realizado sem o acompanhamento da autoridade policial. E, em 1836, o código de
Posturas de Lages diz que: “nenhum corpo poderá ser dado à sepultura sem a
prévia participação do Juiz de Paz ou do respectivo inspetor responsável pelo
quarteirão, ficando sujeito a multa de 10$000 reais, quem desrespeitar a norma.”
208
Dois anos depois, em 1838, as de Posturas de Desterro dizem que nenhum
corpo seria: “dado a sepultura sem a prévia participação do sub-delegado respectivo
da cidade de freguesias, e aos inspetores de quarteirões nos distritos, declarando-se
o lugar em que se vai fazer o enterro”.
209
207
OLIVEIRA, 1990, op. cit., p. 81.
208
Código de Posturas de Lages…op.cit., p. 5.
209
Código de Posturas de Nossa Senhora do Desterro, 1832, p. 2.
72
Para que os meros da morte fossem apreendidos pela estrutura de
controle, no momento posterior à morte o responsável deveria comunicar o
ocorrido à autoridade policial do Distrito. Assim, o falecimento deixava de interessar
somente ao núcleo próximo ao morto, passando a integrar o levantamento
estatístico. O Código de Posturas de Desterro determinava em 1842, que “o dono
da casa onde alguém vier a falecer, ou a pessoa encarregada do enterro do morto, é
obrigada a declarar no momento seguinte a morte, o fato ocorrido à autoridade
policial do distrito da sua residência”.
210
Com a criação dos cemitérios públicos, a presença dos Inspetores e
delegados no momento do enterro objetivava que o enterro ocorresse dentro das
normas higiênicas. Além das orientações que o administrador e o coveiro deveriam
seguir, a autoridade policial se constituía como um testemunho autorizado,
avalizando o sepultamento.
Dentro da nova regulamentação, um enterro só poderia ser realizado na
presença do administrador e da autoridade policial, mediante uma autorização por
escrito. Assim, o regulamento do cemitério público de Desterro determina que o
sepultamento poderá ocorrer mediante a apresentação de uma permissão
assinada pelo delegado ou sub-delegado de polícia, tendo no verso a seguinte nota:
Fica feito o assentamento de óbito, rubricada pelo vigário da Matriz (a quem
para isso será antes apresentada) pela qual nota lavrará o mesmo
administrador o termo de encerramento, declarando-se nele: o nome do
falecido, a idade, a cor, o estado, sendo casado, o nome da pessoa com
quem era, o nome do pai e da mãe, se forem conhecidos, a naturalidade, a
data do falecimento.
211
A partir deste momento, era impossível realizar qualquer enterro em Desterro
sem o cumprimento dessas etapas. Em 1845, um inspetor de Desterro não liberou o
enterro de dois soldados, pois o quartel não havia lhe mandado as informações
necessárias sobre os mortos. Por se tratar de dois militares, o caso acabou gerando
polêmica e foi levado ao Presidente da Província. O Inspetor obteve o apoio
provincial, pois estava atentando para as normas de enterro
212
Além de verificar as condições higiênicas, a Polícia foi investida de outras
formas de autoridade. Como muitas vezes os doentes não recebiam
210
Código de Posturas de Nossa Senhora do Desterro…op.cit., p. 2.
211
Regulamento do Cemitério Público de Desterro, 1841…op.cit., p. 2.
212
CABRAL, 1979, op. cit., p. 410.
73
acompanhamento médico, a causa-mortis era desconhecida. Na falta do cirurgião
que declarasse o motivo do falecimento, a Polícia deveria relacionar a causa da
morte, colhendo informações com os responsáveis pelo morto. O código de Posturas
de 1838, diz que nos casos onde
não houvesse assistente, ou que a morte tivesse sido repentina, os
respectivos subdelegados na cidade e freguesias e os inspetores de
quarteirão nos distritos, tomarão no mais curto espaço de tempo as
informações e esclarecimentos precisos sobre a enfermidade, para
procederem como for de direito.
213
Essa atribuição policial era de suma importância, pois, a elaboração dos
mapas estatísticos dependia do conhecimento da mortalidade e de causas. Mais
tarde, porém, a Polícia vai perder a autoridade do diagnóstico. Para um
conhecimento mais exato das doenças que afetam a população, é necessário que a
voz autorizada do médico determine a causa-mortis. Assim, para se realizar um
enterro, passa a ser obrigatório também, o atestado do cirurgião. Em 1868, as
Posturas de São José dizem que a pessoa encarregada do enterro era
[] obrigada a declarar à autoridade policial do distrito de sua residência, o
nome, idade, cor, filiação, naturalidade, profissão do morto e hora do
falecimento, assim com apresentar um atestado do cirurgião que assistiu a
morte, do Juiz de Paz ou pároco da freguesia, incluindo a causa da morte e
a sua hora.
214
Além de verificar o óbito e declarar a causa-mortis, os Inspetores também
deveriam atestar se a morte em questão não estava relacionada a nenhum crime.
Em outubro de 1877, um jornal noticiou que
Na madrugada de 3 corrente, foi encontrado boiando o corpo do infeliz
comandante que foi conduzido à terra pelo sub-delegado e por dois
médicos. O corpo foi depositado na capela do cemitério para ser sepultado
na manhã seguinte. O mui zeloso chefe de Polícia, secundado pelo não
menos zeloso sub-delegado da Capital, ordenou que se fizesse na manhã
seguinte um minucioso exame feito as 9 horas pelo ilustrado Dr. Argolo
Fanão.
215
Em 1893, o Inspetor se nega a conceder a autorização para o enterro de um
corpo, por suspeitar da ocorrência de um crime
213
Código de Posturas de Desterro, 1838 p. 2.
214
Código de Posturas de São José, 1868.
215
Gazeta de Joinville, 23.10.1877, p. 7.
74
No dia 5, pelas 6 horas da manhã foi José Jascke a casa do Inspetor do
quarteirão pedir-lhe o atestado para enterrar a mulher Joana que havia
falecido, Segundo ele de hidropisia. Ali chegando, o inspetor, a fim de
verificar pessoalmente o óbito, encontrou o cadáver amortalhado e
coberto. O inspetor descobriu o cadáver e notou um ferimento sobre a
fronte. Determinou então aquela autoridade, que o cadáver não fosse
enterrado sem a autorização do Comissário de Polícia. Este seguiu a casa
acompanhado do escrivão Machado da Costa e pelo Dr. Carlos Large.
216
As informações relacionadas nas declarações dos inspetores eram
imprescindíveis ao conhecimento demográfico e a elaboração de estratégias de
ação. Além do número de mortes e das causas, era possível conhecer informações
mais específicas como a faixa etária mais atingida, o sexo, a cor e classe social.
Assim, se nos livros de assentamento das igrejas era anotado apenas o nome, o
número da sepultura e o ano em que foi enterrado, o termo de enterramento dos
cadáveres era feito segundo o seguinte modelo:
[] a margem do nome do falecido e dentro das margens: aos dias do mês
de ano for sepultado neste cemitério público, no lugar que tem o sinal tal, ou
catacumba o corpo de ... idade ... solteiro ou casado com ... filho de ... e
de ... ou de pais desconhecidos, natural de ... falecido aos ... do mês de ...
do ano de [...]
217
Segundo os regulamentos, a Câmara determinava que o livro de termos seria
apresentado nas sessões ordinárias da Câmara de três em três meses. Para auxiliar
o trabalho da Câmara, o administrador entregava junto com o livro um mapa
correspondente a três meses.
Mas, além das informações transmitidas pelos administradores, as
autoridades contavam com uma segunda fonte. Os Inspetores ou subdelegados
deveriam remeter semanalmente a relação dos óbitos ocorridos na semana anterior.
Nessa declaração, constavam apenas informações básicas como o nome, a idade, e
a cor do falecido.
218
Dessa forma, os cemitérios blicos e a estrutura de controle conseguiram
diminuir em muito a margem de erro na contabilidade mortuária. No entanto, desde
que foi estabelecido, o controle demográfico levou muito tempo para ser
aperfeiçoado e oferecer dados confiáveis. Além da resistência da população às
216
Gazeta de Joinville, 03.09.1893, p. 3
217
Regulamento do Cemitério Público de Nossa Senhora do Desterro, 1841 op.cit., p. 2.
218
Ibid., p. 2.
75
novas normas de enterro, havia muitas falhas no envio dos mapas pelas Freguesias.
Algumas vezes até, os sepultamentos de cemitérios particulares o entravam na
contabilidade oficial da Província. Em 1878, um jornal de Laguna publica um
comunicado administrativo dizendo que
Conforme puderam ver os leitores através do obituário publicado no número
passado, a mortalidade nesta quinzena foi extraordinária, comparada à dos
meses anteriores. Esses números podem ser mais preocupantes se
considerarmos que no obituário não se encontram os enterrados nos
cemitérios particulares.
219
Se essas denúncias não eram feitas diretamente às autoridades policiais,
muitas vezes elas ocorriam na forma de publicações anônimas nos jornais. Como
vimos anteriormente, os jornais permitiam uma constante vigilância e ajudavam a
coibir novas ocorrências. Ao tornarem os casos públicos, os jornais lembravam que
as práticas de enterro eram agora controladas.
Em 1853, doze anos após a criação do cemitério público de Desterro, o jornal
Correio Catarinense publicou o seguinte comunicado:
As 6 horas da tarde do dia 11 do corrente, foi encontrado na praia do finado
Francisco Caetano, ao de uma pedra, mal sepultado, o cadáver de uma
criatura, que parecia ser branca, e a poucos dias nascida, em um caixão
próprio para ser sepultado, coberto com paninho cor de rosa, muito bem
arranjado, trazia travesseiro com renda e uma grinalda de flores. Foi logo
sepultado no cemitério público por ordem da sub-delegacia, que prossegue
nas competentes averiguações. Esta comunicação nos foi feita por pessoa
fidedigna e por isso a reputamos exata, entretanto suspendemos o nosso
juízo pelo que respeita a causa que ocasionou semelhante desumanidade;
e prometemos publicar o que a respeito soubermos.
220
Dentro das novas regras que regem a morte, as autoridades policiais
desempenham um importante papel: são elas que vão garantir que os enterros
ocorram dentro das normas higiênicas além de centralizar as informações sobre o
número de mortes.
219
O Município,13.03.1878, p. 5.
220
O Correio Catarinense. 14.12.1853 p. 3-4.
76
CAPÍTULO 5 O LUGAR DA MORTE
5.1 O SEGUNDO MOMENTO DAS NECRÓPOLES
A história dos sepultamentos passou por dois momentos distintos na Europa.
O primeiro, que se iniciou em alguns países no século XVIII, foi a transferência da
necrópole para longe dos núcleos urbanos. Na França, depois de muito debate, foi
construído o cemitério Mary sur Oise, distante 22 km da cidade de Paris. Na
Inglaterra, o Common Cemitery ficava a 36 km de Londres, sendo criada uma linha
férrea com gare especial para o despacho dos caixões. São Petersburgo seguiu o
mesmo exemplo e até o Rio de Janeiro teve o projeto de um cemitério distante cinco
léguas da corte.
221
Durante o século XIX, dois novos fatores ocasionam mudanças significativas
na relação com as necrópoles. O primeiro foi o crescimento das metrópoles, que aos
poucos, engoliram novamente os cemitérios. Paralelamente a isso, ocorreu uma
mudança teórica nos debates sobre os sepultamentos.
Duas teorias sobre a origem das doenças se rivalizaram durante o século
XVIII e XIX. A primeira, chamada de infeccionista, era a teoria dos miasmas que
dizia que a transmissão das doenças ocorria através da corrupção do ar causada
pelos miasmas.
Já a teoria do contágio, dizia que as doenças eram transmitidas de um
indivíduo à outro através do toque, ou de objetos contaminados. Os contagionistas
acreditavam que uma moléstia aparecia sempre que um veneno se reproduzia no
indivíduo doente e se espalhava pela comunidade.
222
Durante os séculos XVIII e XIX, nem uma das duas teorias havia se
consolidado, havendo um grande debate entre os teóricos dos dois lados. No
entanto, foi a teoria infeccionista que durante um período longo acabou orientando a
reformulação urbana. Toda a reforma funerária também foi orientada por ela. O exílio
dos cadáveres, as necrópoles higiênicas foram decorrência do medo dos miasmas
221
FERNANDES, op. cit., p. 35.
222
CHALUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996, p. 47.
77
Os anti-cemiteristas
223
diziam que os gases resultantes da putrefação subiam a
superfície e envenenavam todo o ambiente ao redor.
A teoria do contágio, apesar de menos prestigiada, também orientou algumas
ações da saúde pública. De inspiração contagionista, surgiram as famosas
quarentenas nos navios e também as campanhas de vacinação jenerianas
224
. Os
infeccionistas, por exemplo, diziam que de pouco adiantavam as quarentenas nos
navios, se o ar das cidades estava corrompido.
No culo XIX, no entanto, várias pesquisas realizadas por contagionistas
acabaram sobrepondo essa teoria à primeira. Se com a vacina jeneriana havia o
princípio do contágio, as pesquisas de Pasteur Koch e Miquel, trouxeram à
discussão novos elementos que eram os micróbios. As causas das moléstias não
eram mais os invisíveis e mal cheirosos miasmas, mas sim, microscópicos seres que
penetravam no corpo humano através de vários agentes.
225
Para a história funerária, a sobreposição da teoria contagionista teve várias
conseqüências. Se no primeiro momento da reforma funerária os miasmas exilaram
o cadáver e as necrópoles para longe das cidades, na metade do culo XIX, a
teoria dos micróbios reaproximou novamente os dois mundos. O cadáver foi objeto
de estudo dos microbiologistas, que verificaram que as temidas emanações
cadavéricas não eram tão perigosas quanto se imaginava.
Os gases emanados dos cadáveres foram divididos em dois grupos. O
primeiro deles, produzido na fase anterior à mineralização, era responsável pelo mau
cheiro que desprendia do cadáver. No entanto, os ácidos butírico, valérico,
propiônico, capílico e não causavam qualquer mal o homem. Assim, o temido odor
cadavérico foi inocentado pelos microbiologistas, pois, “nem sempre o fedor é
ofensivo, mas sim, uma outra ordem de entidades que podem ou não acompanhá-
los.”
226
223
Na Europa houve debates entre correntes que defendiam e outras que criticavam a existência dos
cemitérios dentro das cidades. No final do século XIX, quando as necrópoles foram reintegradas às
cidades, os “cemiteristas” adeptos da teoria da microbiologia, diziam que os perigos dos miasmas não
passavam de uma crença ultrapassada, da mesma forma os “anti-cemiteristas” diziam que era uma
inconseqüência trazer novamente as necrópoles para as cidades. ALMEIDA, op. cit., p. 32.
224
A campanha de vacinação jeneriana é considerada, como uma fase anterior à microbiologia.
havia o princípio do contágio, mas os fundamentos da microbiologia foram elaborados numa fase
posterior com os experimentos de Pasteur e Koch. ALMEIDA, op. cit., p. 32.
225
FERNANDES, op. cit., p. 30.
226
ALMEIDA, op. cit., p. 14.
78
Essa ordem de entidades era a dos corpúsculos sólidos, lançados pelo
cadáver na fase que antecedia à mineralização. Estes, não eram mais os miasmas
mefíticos de Maret, que se lançavam como raios deletérios a partir da cova, mas
sim, “um ser animado, um pigmeu, porém gigante, que a experiência conferiu o
nome de micróbio”.
227
Afirmava-se ainda que na última fase de transformação cadavérica, as
substâncias corpóreas se modificavam, transformando-se em minerais. Nesta etapa,
o corpo produzia um outro grupo de gases, dos quais os principais eram o amoníaco
e o gás-carbônico. Este último era considerado pelos pesquisadores como o
responsável pelos acidentes ocorridos nos templos e cemitérios. Segundo eles, os
trabalhadores não eram acometidos por envenenações miasmáticas, mas sim por
asfixia causada pelo excesso de gás-carbônico e falta de oxigênio.
Assim, em 1879, o Conselho Municipal de Paris designou uma comissão
formada por químicos e microbiologistas para analisar o solo, a água, e o ar dos
cemitérios parisienses. Em 1880, foi concluído o relatório e no mesmo ano foram
publicados vários trabalhos secundando a nova corrente de idéias. Dentre eles, se
destacam as dissertações de Robinet, Martin e Du Mesnil.
228
Em 1879, o químico Schutsenberg analisou o solo cemiterial à profundidades
variáveis entre 4 e 8 cm. O solo extraído desse experimento encontrava-se
impregnado de gás carbônico em uma proporção de 4 a 12%. nas covas abertas
e nos carneiros, o ar era abundante em s carbônico. O pesquisador alegava, no
entanto, que não era possível confundir as condições dos carneiros com a dos
cemitérios, pois a quantidade de gás carbônico encontrado nos cemitérios era quase
inofensiva aos vivos. Segundo ele, o gás carbônico era perigoso em espaços
fechados, mas era diluído em locais abertos.
Para demonstrar a teoria, Robinet fez um cálculo baseado nos cemitérios
parisienses. Segundo ele, eram enterrados nos campos de repouso 157.500kg de
materiais orgânicos por ano, mas os cadáveres não teriam mais do que 32% de
substância combustível, o que por ano, 50.400kg. Disso, a parte oxidável é de
80%, o que 40.000kg, resultando assim, em uma oxidação de 147.840kg.
Segundo ele, a companhia de iluminação produz 9:073:68kg por ano, o que
oito vezes mais do que toda a massa de cadáveres enterrada em 5 anos. Portanto,
227
ALMEIDA, op. citi, p. 14.
228
Ibid., p. 15.
79
se considerarmos toda a quantidade de gás produzida pelas fornalhas, respiração
humana e animal, essa quantidade se torna insignificante.
229
O nível microbiológico dos cemitérios também foi analisado por Miguel. O
pesquisador fez a contagem dos micróbios desde a periferia de Paris, até o centro
da cidade. Segundo as suas pesquisa, o nível de micróbios aumentava
espantosamente a medida que se penetrava nas cidades e nos bairros imundos. A
contagem de micróbios no parque Montsouris, na periferia de Paris, ficava em 6 a
8%. No interior de Paris, na rue Rivoli, a cifra era 10 vezes maior, enquanto que nos
hospitais, chegava a ser até 100 vezes maior. Enquanto isso, a contagem feita no
cemitério de Montparnasse, mostrava um número apenas 2 vezes maior do que o
parque de Motsouris. Assim, “na grande capital, podiam se emparelhar com os
cemitérios, do ponto de vista da microbicidade, os grandes parques arborizados”.
230
Uma última análise foi feita com a água próxima aos cemitérios. Alegava-se
que os fluidos cadavéricos entrariam no solo contaminariam os lençóis próximos. No
entanto, a climatologia telúrica, que analisava a composição e os processos
biológicos que ocorriam no solo, concluiu que todas as emanações e fluidos do
cadáver eram retidos e transformados em outros elementos. O amoníaco, por
exemplo, era transformado em ácido nítrico, desde que a composição do solo fosse
rica em silicatos básicos e óxidos de ferro. O hidrogênio sulfurado era imediatamente
reduzido pelas bases do solo, transformando-os em sulfuretos e sulfatos.
Assim, os relatórios concluíram que um cemitério em boas condições era
mais seguro do que muitos locais dentro das próprias cidades. Os bairros imundos,
com suas latrinas abertas e hospitais cheios de micróbios, eram mais perigosos à
saúde do que um cemitério normatizado.
Dessa forma, para eles, não era mais necessário construir os cemitérios o
afastados das cidades, o corpo morto poderia ser novamente integrado ao espaço
urbano, desde que fossem observadas determinadas regras. Para a climatologia
telúrica, o solo mais favorável à instalação dos cemitérios era o de poros médios,
“[…] pois é necessária para a decomposição do cadáver, o ar e o calor, e essa
operação oscila, como toda decomposição orgânica, entre a combustão rápida e a
putrefação lenta.
231
229
Ibid., p. 25.
230
Ibid., p. 31.
231
ARNAULD, Jules. Nouveaux elements d’higiene. Librarie J. B. Baillière et Fils: Paris, 1889, p. 25.
80
O solo deveria ser alcalino ou calcar, ferruginoso, conter óxidos de ferro, e
carbonatos de cal, neutralizando os gases cadavéricos e acelerando a
decomposição. Assim, Pettenkopfer dizia que a famosa saturação dos anti-
cemiteristas não era causada pelo excesso de cadáveres, mas sim, pela composição
incorreta dos solos. Em solos de composição arsênica, com pouca porosidade, os
corpos levavam mais de cinco anos para se decompor, deixando o solo encharcado
de fluidos.
Para os novos pesquisadores, isso era suficiente, pois a putrefação cemiterial
não se passava livre e rapidamente ao ar. Ela era subterrânea e lenta, pois a
camada de terra espessa retinha os gases no interior do solo, influindo
poderosamente sobre o processo de decomposição graças às suas propriedades
físicas e químicas. O solo do cemitério agia “como um finíssimo sendal, onde se
enrolava o hábito pestilento do cadáver pobre”.
232
Outro elemento que contribuía para a saúde dos cemitérios era a vegetação.
As árvores foram bem vindas neste segundo momento dos cemitérios, pois elas
produziriam o oxigênio, contrapondo o gás-carbônico produzido pela putrefação.
Além disso, elas também funcionariam como barreiras e filtros para o ar, “[…] pois
em suas folhas são abandonados muitos corpúsculos, que eles não podem
atravessar alguns obstáculos como tecidos de algodão, e ficam retidos nas folhas
das árvores”.
233
Como o gás carbônico era diluído no espaço aberto, os pesquisadores
também aconselhavam que os cemitérios fossem bem ventilados, recebessem
correntes de vento. Para isso, os cemitérios deveriam se localizar em espaços
“largos, arborizados e livres, desempenhando assim, o papel sanitário das praças
espaçosas e jardins arborizados.”
234
Assim, nesse segundo momento, a teoria microbiológica modificou a relação
com os cadáveres. Os cemitérios não precisavam mais ser construídos o mais longe
das cidades, bastava apenas que ele fosse adequado à normas de segurança.
Assim, em 1889, um manual de higiene de Paris, diz que “[...] dentro de condições
232
ALMEIDA, op. cit., p. 12.
233
Ibid., p. 12.
234
Ibid., p. 13.
81
naturais vantajosas, e precauções sanitárias bem cumpridas e aplicadas, os
cemitérios são dos lugares mais inofensivos de uma cidade”.
235
No final do século XIX, os cemitérios foram então reabilitados pela saúde
pública.
No entanto, se na Europa houve uma divisão bem distinta desses dois
momentos, essa situação não correu da mesma forma no Brasil. Aqui, o movimento
de expulsão dos mortos ocorreu quase um século depois da Europa. Assim,
enquanto a França vivia o seu segundo momento na história fúnebre, no Brasil, os
enterros nos templos começavam a se tornar incômodos. Aqui não houve uma
grande ruptura na teoria. Durante o século XIX, práticas orientadas pelas duas
teorias conviveram juntas. Somente no final do século XIX, a microbiologia se
consolida no Brasil, no entanto, mesmo nesse período ainda se falava nos perigos
dos miasmas.
Em Desterro, a crítica aos enterros nos templos iniciou por volta de 1830,
sendo esta prática proibida por lei provincial, em 1841. Nesse momento, foi criado o
cemitério público de Desterro, localizado onde hoje se encontra a cabeceira da
Ponte Hercílio Luz. Se hoje esta área está integrada ao núcleo urbano, no período a
localização era relativamente afastada, pois não lançava sobre a cidade os miasmas
trazidos pelos ventos (a exemplo do cemitério do Menino Deus).
Ao contrário da Europa, não houve em Desterro, uma ruptura significativa
entre esses dois momentos dos cemitérios públicos. Como no Brasil, as teorias
miasmáticas e microbiologistas coexistiram até o início do século XX. Em Desterro
observa-se a mesma situação: na construção do segundo cemitério público, na
segunda década do século XX, houve influência tanto da teoria miasmática, quanto
da microbiana.
Depois do cemitério público da cabeceira da ponte, somente no final do
século XIX, por volta da década de 70, a construção de um novo cemitério começa a
ser objeto de discussão.
Em 1876, um relatório da Inspetoria de Higiene defende a construção de um
novo cemitério público, utilizando ainda o discurso da teoria miasmática. Segundo
ele, os cemitérios existentes haviam esgotado sua capacidade máxima,
dificultando assim a decomposição dos corpos. A saturação do solo, Segundo os
235
ARNAULD, op. cit., p. 2.
82
teóricos dos miasmas, era dos maiores perigos dos cemitérios. Quando o corpo não
se decompunha adequadamente, os gases subiam à superfície corrompendo o ar.
236
No discurso do relator também percebe-se a preocupação com a localização
do cemitério. Se no momento da construção, o cemitério da cabeceira da Ponte
Hercílio Luz encontrava-se afastado do núcleo populacional, no início do século XX
a situação era diferente. Como o crescimento da cidade abarcou a área do cemitério,
mais uma vez, a necrópole deveria ser afastada do núcleo urbano. Assim, segundo
o relatório,
[] Florianópolis tem o cemitério do Menino Deus anexo ao hospital de
Caridade, onde são sepultados os irmãos da Irmandade e logo atrás, o
cemitério para os que falecem no hospital e que são indigentes. O sistema
desse cemitério em Catacumbas de tijolos e todos acima do nível do terreno
é por demais inconveniente e deve ser abolido. O cemitério público,
colocado na entrada da cidade, está bem cheio e serve a esta capital a
muitíssimos anos, estando ali sepultados mais de 30 mil indivíduos. O
solo está portanto, impregnado e não há mais razão de existência
desse cemitério dentro do coração da cidade, devendo esse ser removido o
quanto antes desse local.
237
Em 1897, outro relatório evoca novamente o perigo dos miasmas sobre a
cidade. Somando-se à isso estavam ainda as condições climáticas da Ilha:
É sabido que reina constantemente sobre essa Capital os ventos Sul e
Nordeste, notando-se alguns de oeste e de leste, vento úmido, favorecendo
assim causas de diversas moléstias do aparelho circulatório. O vento
nordeste, quente e úmido, o que mais constantemente reina, passa
diretamente pelo cemitério, trazendo em sua passagem germes deletérios
para a cidade que está próxima. Condições essas que a higiene condena e
reconhece como nocivas. É indispensável, pois o quanto antes a mudança
do cemitério para local mais conveniente.
238
A criação da nova necrópole é também motivo de debate na imprensa
periódica. Em 1894, o Jornal do Comércio publica a seguinte matéria:
Atualmente se agita a questão do estabelecimento de um novo cemitério,
por ser absolutamente impossível a continuação de sepultamentos no que
existe mais de 53 anos. Este cemitério recebeu 22.000 sepulturas e
não dispõe de lugar para catacumbas, nem sepulturas comuns. A
inconveniência dos enterros no atual cemitério deve ser reconhecida, não
236
Relatório da Inspetoria de Higiene enviado ao Presidente da Província, 1876 p. 5.
237
Relatório da Inspetoria de Higiene enviado ao Presidente da Província, 1876, p. 4
238
Relatório da Inspetoria de Higiene de Santa Catarina ao Governador do Estado Hercílio Luz, 1897,
p. 6.
83
apenas pela sua localização, mas pelos graves prejuízos causados à saúde
pública.
239
Em 1893, o relatório enviado ao Vice-presidente do Estado Elyseu Gulherme
da Silva, lembra da importância que representará a transferência da necrópole para
o bom estado da saúde pública;
Uma das providências lembradas pela Inspetoria e desde muito reclamada
como de suma importância para a saúde pública nesta Capital, é a da
mudança do cemitério para local mais distante e menos populoso do que o
que se acha presentemente.
240
Assim, em 09 de novembro de 1912 foi promulgada a Lei Municipal n 343,
autorizando o Superintendente Municipal de Florianópolis a fazer a aquisição de um
terreno para a instalação do novo cemitério. O texto declara também, como devem
ser regulamentadas as regras de funcionamento do cemitério:
Art. 1 Fica a Superintendência Municipal autorizada a fazer a aquisição de
um terreno que, pela sua topografia, natureza e área se preste a instalação
de um cemitério. Uma vez adquirido será ele adaptado ao fim, procedendo-
se ao nivelamento, arborização e construção de muros. Art. 2 As
irmandades, confrarias e comunidades possuidoras de terrenos contiguo us
ao atual cemitério municipal serão concedidas, da área total, espaços
suficientes para estabelecerem seus cemitérios, que serão separados por
muros ou grades, gozando das prerrogativas que anteriormente tinham em
virtude da lei. Tais corporações ficam obrigadas a fazer cessão gratuita
temporária ou efetiva aos seus membros de terrenos equivalentes aos que
lhes pertencem por motivo de arrendamento ou compra dos antigos
cemitérios. A mesma obrigação terá a municipalidade para com os
proprietários e arrendatários de terrenos do atual cemitério público, podendo
para tal fim fazer construir ao longo dos muros do novo, ou em qualquer
lugar que mais convenha, pequenos jazigos.”
241
A municipalidade adquiriu um terreno localizado no bairro Itacorubi, em uma
localidade conhecida como “Três Pontes”. No ano de 1915, tiveram início então, as
obras de construção do novo cemitério. No entanto, devido a dois fatores, o
estabelecimento da nova necrópole municipal foi adiado alguns anos. A grande
distância e os meios precários de ligação dificultavam o transporte dos cadáveres da
cidade ao cemitério. O outro fator foi a disponibilidade financeira da administração.
Como os recursos para a implementação da nova necrópole não eram suficientes,
239
Jornal do Comércio, 10.021894, p. 2.
240
Relatório apresentado ao Vice-Presidente do Estado Elyseu Guilherme da Silva pelo secretário do
governo Eduardo Otto Horn, 1893, p. 7
241
Lei Municipal n. 343, Florianópolis, 1912, p. 3.
84
naquele ano, foi inaugurado apenas um pequeno cemitério que atenderia ao bairro
do Itacorubi.
No ano de 1916, um outro pequeno cemitério foi inaugurado no bairro
Trindade. O cemitério da Santíssima Trindade, construído junto à atual Igrejinha da
UFSC, veio trazer mais uma alternativa de sepultamentos além da necrópole
pública. O livro de assentamentos de óbitos trazia as seguintes inscrições:
Servirá este livro para inscrição dos óbitos que se derem no distrito da
Trindade e que forem sepultados no cemitério do citado distrito. Contém o
número de fichas indicadas no termo de encerramento, todas numeradas
por mim, rubricadas com o apelido de Peixoto de que uso. Secretaria da
Superintendência Municipal de Florianópolis, 18 de dezembro de 1916.
242
Como foi dito, na criação dessa segunda necrópole, houve a influência das
duas correntes teóricas: a miasmática (ou infeccionista) e a microbiológica. Se a
localização do terreno considerou a distância da urbe devido aos miasmas, a
escolha do terreno vai estar fundamentada nas novas pesquisas sobre o
comportamento químico das substâncias. A climatologia telúrica analisava quais
eram os melhores solos para o sepultamento, considerando a sua natureza.
Em 1894, a administração municipal designou a comissão encarregada das
obras públicas para avaliar o terreno da futura necrópole. O Jornal do Comércio
publicou o andamento da pesquisa executada pela comissão:
A comissão de obras públicas lançou suas visitas a chácara pertencente ao
cidadão Carlos Guilherme Schmidt e do cidadão Bonfarte Demaria, que se
situam no bairro do Itacorubi. Passou a comissão a medir o terreno e
verificou que ele tinha 24, 130 metros quadrados. Entrando no trabalho de
sondagem do solo, não encontraram nele água, nem pedra, até muito além
da profundidade necessária. A comissão reconheceu também que o solo
era formado por saibro miúdo e argila vermelha e ferruginosa. Segundo a
comissão, o solo oferecia todas as condições para o estabelecimento do
novo cemitério, que o solo oferece permeabilidade suficiente para das
acesso ao oxigênio necessário para a combustão lenta e a decomposição
dos cadáveres. Também existe a força absorvente da argila que ao mesmo
tempo que impede a extrema impermeabilidade, absorve os sucos e gases
resultantes da decomposição.
243
242
Livro de Assentamento de Óbitos, Cemitério da Santíssima Trindade, 1916, p. 1.
243
BRITO, PAULO José Miguel de. Memória Política sobre a Capitania de Santa Catarina. Rio de
Janeiro, 1816. Reimpressão da Sociedade Biblioteca Literária Catarinense. Florianópolis, 1932, p. 38.
apud COSTA, Sandro Oliveira da. Ponte Hercílio Luz: mutações de uma cidade insular (1890-1860)
Dissertação de Mestrado, Florianópolis, UFSC. 2002. p. 14
85
Mas a criação dessa segunda necrópole pública foi determinada por outras
relações além do medo do contágio. No momento em que ela foi estabelecida, o
espaço da cidade passava por modificações distintas das ocorridas na primeira
metade do século XIX.
No início do povoamento da Ilha, a distribuição geográfica dos elementos
urbanos, obedecia aos modelos portugueses. Assim como as demais cidades de
colonização lusitana de Santa Catarina, em Desterro também verificava-se a praça
central e a Matriz como elementos determinantes da organização do traçado urbano.
Além da praça e da igreja, outro elemento que determinou o traçado original
foi a praia, pois, o porto desempenhava importante função na cidade. Segundo o
trabalho de Sandro Costa
244
, a Vila de Desterro apresentava-se na forma de um
tabuleiro de xadrez, tendo como norteadores, a praça, a igreja e a praia. Apesar da
ocupação posterior não ter seguido um padrão simétrico e ordenado, essa primeira
distribuição determinou divisões importantes na ocupação do espaço urbano.
O Tigre.
Fonte: RAMOS, Átila. Memória do Saneamento Desterrense. Florianópolis.
244
Sandro Oliveira da. Ponte Hercílio Luz: mutações de uma cidade insular (1890-1860)
Dissertação de Mestrado, Florianópolis, UFSC. 2002. p. 14
86
Sendo o porto um importante elemento na utilização do espaço, a expansão
do núcleo urbano foi orientado pela face leste da praça. Nesta direção surgiram
ruas, casas comerciais e moradias que adaptaram-se ao relevo natural da Ilha.
Desta forma, operou-se uma divisão na ocupação do espaço urbano. Enquanto na
face leste, a cidade se desenvolvia, a face oeste foi escolhida para abrigar práticas e
elementos não tão desejáveis na cidade.
Onde antes as chácaras faziam fronteira com núcleo urbano, foi instalada a
primeira necrópole da cidade. Uma dessas chácaras foi escolhida para receber um
dos problemas da cidade: o cemitério. Ele passou então a delimitar a fronteira oeste
da cidade. Mas além da necrópole municipal, outros elementos caracterizaram a
face oeste como um espaço menos nobre.
Até o início do século XIX, os dejetos eram despejados nas calçadas, nas
imediações do Mercado Público, ou nas praias. Escravos ou empregados eram
encarregados do seu transporte nos Tigres até as praias mais próximas. Segundo
Átila Ramos:
Até o início do século XX, o vento sul era o principal auxiliar do saneamento
da cidade de Desterro. A ausência total de instalações sanitárias levava os
moradores a despejar os dejetos nas calçadas e nas praias próximas ao
atual Mercado Público. Tal situação era amenizada com a chegada dos
grandes temporais que com o vento forte tornava a cidade mais limpa e
arejada.
245
Segundo Oswaldo Rodrigues Cabral:
A praia, no século XIX não desfrutava do menor prestígio e não foi em
Santa Catarina, mas em toda parte. Praia era lugar de despejo, de cachorro
morto, de lixo, lugar onde se derramavam as vasilhas de material fecal, para
que tudo se diluísse na maré, para que tudo desaparecesse no refluxo.
246
245
RAMOS, Átila, Memória do Saneamento Desterrense. Florianópolis: CASAN, 1986, 345p., p. 58.
246
CABRAL, 1979, op.cit., p. 407.
87
Vista do cemitério alemão à esquerda, o forno de lixo em operação e a ETE Estação de Tratamento de Esgoto.
Data: 1920.
Acervo: Paulo Ricardo Caminha
Em 1910, a administração pública intervêm na prática do despejo de dejetos,
construindo um forno incinerador de lixo. E mais uma vez, o lado Oeste da praça foi
escolhido para abrigar esse elemento indesejável da urbe. Construído próximo ao
Forte de Santana, era feito de tijolos comuns com um canal condutor de fumaça indo
desembocar numa chaminé de 40 metros de altura. O lixo da Capital era recolhido
todos os dias e transportado por carroças até o forno, para então ser incinerado.
Esse sistema permaneceu ativo até 1958, quando se decidiu deslocar o lixo para um
local mais afastado da urbe.
88
Escavações para implantação da avenida em frente à ponte Hercílio Luz. Data 1925
Acervo: Paulo Ricardo Caminha
Além da necrópole e do forno de lixo, a face oeste da praça também abrigou
também a ETA Estação de Tratamento de Água e Esgoto. No caminho entre a
praça e a necrópole, localizava-se ainda a rua Conselheiro Mafra, espaço conhecido
por ser zona de meretrício. A prostituição também não deveria fazer parte da
paisagem urbana, assim, foi mais um dos elementos que caracterizaram a ocupação
do espaço ocorrida nesse ponto da cidade.
No entanto, vários fatores fizeram com que no início do culo XX, a situação
da porção oeste se modificasse. A expansão urbana integrou essa área novamente
ao núcleo da cidade, tornando o lixo e a necrópole novamente um problema a ser
sanado.
A partir de 1910, várias intervenções urbanas foram operadas na cidade: a
remodelação urbana buscava nesse momento o apenas sanear, mas também
modernizar a cidade. Assim, à exemplo de cidades como São Paulo, Paris e Rio de
Janeiro, foram construídas grandes avenidas, criado o sistema de esgoto e realizada
a primeira ligação da Ilha com o continente.
89
A construção da Avenida Hercílio Luz, a Avenida Adolpho Konder e da Ponte
Hercílio Luz, ocupou a área oeste da cidade, tornando esse espaço novamente
valorizado. Com a construção dessas grandes obras, essa área se torna a porta de
entrada da cidade. Todo visitante que chegasse na cidade, passava
obrigatoriamente por lá.
Antes mesmo da construção dessas obras, quando elas ainda estavam no
projeto, havia uma preocupação em remodelar esse espaço. Se fazia necessário
remover os elementos indesejados para outro local, para criar uma boa impressão a
quem chegasse. A presença da necrópole se torna incômoda, não apenas pelo
perigo dos miasmas, mas também pelo impacto visual que causa no visitante. Em
1887, o Presidente da Província Francisco José da Rocha comenta em relatório a
situação do cemitério, inclusive que a construção neste local, tenha sido um erro.
Impõe-se as sérias cogitações a remoção do cemitério do local em que se
acha que é o ponto mais pitoresco da cidade, e seria o mais saudável talvez
por sua situação e elevação. Ao aspecto lúgubre que imprime a Capital,
sendo a primeira parte dela que se apresenta ao viajante, ou vinha do norte
ou do sul, acrescente o inconveniente de estar colocado de modo que o
nordeste e o sudeste, ventos que mais constantemente reinam passam pelo
alto do cemitério para difundir-se nessa cidade, o mesmo sucedendo
quando o vento norte, e o sul fraco não deixará de prejudicar a parte da
cidade onde as mais aprazíveis chácaras. Esta remoção exige trabalhos
e despesas de certa ordem, mas é indispensável e urgente. A colocação
desse cemitério foi um erro deplorável.
247
A associação do cemitério a lembrança da morte, e portanto, a sentimentos
negativos, também foi um dos argumentos usados para a transferência. Além dos
miasmas, era preciso também retirar do centro urbano a imagem do cemitério e tudo
que ele evocava. Virgílio Várzea sobre a necrópole diz que:
O cemitério era e ainda é hoje a única impressão desagradável que
recebem os que visitam o Desterro, especialmente quando entram pelo
norte, pois o primeiro porto a se avistar daí é justamente esse alto de
outeiro, em cuja base uma fita de mar se interpõe separando a Ilha da terra
firme. Os antigos, fazendo uso desse lugar, tão bonito pela sua vista e
paisagem, a necrópole da capital, não previram o ar fúnebre e sinistro que
lhe iam dar, e o que é pior, ignoravam os graves perigos a que expunham a
cidade, com os miasmas que sobre ela se espalhariam de certo, durante o
verão, quadra em que sopram seguidamente os ventos do quadrante norte,
onde está este local.
248
247
ROCHA, Francisco José da. Relatório do Presidente da Província, 1887.
248
VÁRZEA, Virgílio. Santa Catarina: a Ilha. Florianópolis: Lunardeli, 1985, p. 31. A primeira edição
de sua obra data de 1900, apud. COSTA, 2002, op.cit., p. 70.
90
Em 1897, o Inspetor José Eufrásio da Cunha fala do aspecto triste e lúgubre
que os signos da morte conferem a esse porto de entrada da cidade:
Como se não bastassem as condições por sua natureza péssimas, foi
escolhido exatamente um dos pontos mais elevados, mais saudáveis e
pitorescos da cidade para nele se localizar o cemitério, dando assim o
aspecto lúgubre e triste quando apresentado aos olhos do visitante. Logo ao
entrar nesta Capital deparam imediatamente na entrada com uma colina
rodeada de cruzes trêmulas como que indicando ser a necrópole do
Estado…é indispensável pois o quanto antes a mudança do cemitério para
local mais conveniente. Doloroso, desolador e quiçá fúnebre é esse
espetáculo que uma capital civilizada em pleno século das luzes pode
oferecer.
249
Assim, mais uma vez a necrópole foi transferida para um local mais distante.
No entanto, como já foi visto, o cemitério não passou a funcionar no período previsto
pelas autoridades. Em 1915, somente o pequeno cemitério do Itacorubi atendia aos
óbitos do bairro. E, mesmo após a construção da ponte Hercílio Luz, o primeiro
cemitério municipal continuava a receber sepultamentos.
Em Janeiro de 1925, foi aberta a concorrência pública para a realização das
obras do cemitério do Itacorubi. O projeto e a execução ficaram ao encargo do Sr.
Carlos Nilson, que havia prestado serviços anteriores à administração da Capital.
Como esta obra despenderia uma quantia muito elevada, os custos da construção
foram divididos entre o Estado e o Município.
250
O Cemitério São Francisco de Assis
foi inaugurado então no dia 17 de novembro de 1925.
Com criação do novo cemitério, a primeira necrópole foi desativada sendo
feita a transferência de parte dos restos mortais dos que estavam sepultados.
Segundo Oswaldo Rodrigues Cabral, parte dos ossos e terra do antigo cemitério
serviu para o aterro da Praça da Bandeira e do Largo 13 de Maio.
Além da primeira necrópole, também foi interditado o cemitério pertencente a
Irmandade dos Passos. O relatório da Mesa de 1926 diz que é sabido que a
inauguração do cemitério São Francisco de Assis vai trazer como conseqüência a
interdição dos antigos cemitérios. Assim, propõe uma última homenagem aos seus
irmãos enterrados:
Considerando que a instalação do Cemitério das Três Pontes trará como
conseqüência a interdição do atual cemitério público e talvez dos
249
Relatório da Inspetoria de Higiene de Santa Catarina, enviado pelo Inspetor José Eufrásio da
Cunha,1897, p. 6.
250
VEIGA, op.cit., p. 298, apud. COSTA, 2002, op. cit., p. 71.
91
particulares existentes em sua proximidade, a Irmandade pensa dever uma
última homenagem a todos aqueles que, membros dela foram e exerçam
cargos, se achem naquele sepultado, promovendo os seus parentes a
transferência para o usuário dos Irmãos, existente em nosso cemitério,
independente do pagamento.
251
A transferência do cemitério para o cemitério do Itacorubi possibilitou a
construção da Avenida Adolpho Konder, ampliando as vias de acesso à Ponte. Em
1925, a Lei Municipal n. 539, de 12 de março declarava que ficava
O superintendente Municipal autorizado, dentro das precisas condições de
higiene, e de acordo com as deliberações da junta médica nomeada pelo
Governo do Estado, em data de hoje e sob a presidência do Diretor de
Higiene, a promover a remoção dos despojos sepultados na área do atual
Cemitério Público, destinada às obras da rua de acesso à ponte Hercílio
Luz, para outro local do mesmo Cemitério e fora da referida área.
252
Com a construção da Ponte e das vias de acesso, o centro da cidade sofreu
várias alterações. A principal delas foi o redirecionamento do crescimento urbano da
cidade. Se até então a parte Sul e Leste apresentavam um maior número de
construções e de ruas, agora a parte oeste também foi integrada a essa expansão
urbana. A transferência dos elementos indesejáveis para uma área afastada do
núcleo urbano permitiu que essa área fosse novamente valorizada. É interessante
observar que em 1958, quando o incinerador de lixo foi desativado, o local escolhido
para abrigar o depósito de lixo foi o mesmo da nova necrópole: o bairro do Itacorubi.
Assim, com a criação do cemitério do Itacorubi, os cadáveres foram mais uma vez
exilados, juntando-se à elementos que não tinham espaço na paisagem urbana.
251
Relatório da Irmandade Nosso Senhor dos Passos, 1926-1929, p. 2.
252
Lei Municipal n. 432. Florianópolis, 12.03.1925, p. 2.
92
6 CONCLUSÃO
Com a realização desse trabalho procurou-se compreender como se deu o
processo de normatização dos sepultamentos em Nossa Senhora do Desterro do
enterro nas igrejas até o estabelecimento de espaços higiênicos e estruturas de
controle.
No decorrer da pesquisa, observamos que a história dos enterros em
Desterro assumiu feições bastante singulares, quando comparadas às de outros
locais. Se na Bahia, a criação dos cemitérios públicos gerou revolta entre a
população e o clero, aqui, os próprios religiosos solicitavam às autoridades que
tomassem providências. Entre a população também não houve críticas ao
estabelecimento das necrópoles. É bem verdade que durante muito tempo houve
resistências quanto ao cumprimento das normas de sepultamento. Mas não se
encontrou um só registro desfavorável ao estabelecimento da necrópole.
Também observamos que, nessa adequação das condutas às novas normas,
os jornais desempenharam importante função. Não apenas por permitirem a
circulação das teorias norteadoras, mas também por se constituírem como um
dispositivo de vigilância. Os jornais eram o espaço onde as práticas se tornavam
públicas, o que lembrava constantemente a existência de um controle. Na
normatização dos enterros em Desterro, essa mudança não foi defendida apenas
por autoridades ligadas à área da saúde. Os jornais publicavam críticas de pessoas
das mais variadas áreas, como poetas, cronistas, padres e engenheiros.
O processo de normatização dos sepultamentos não ocorreu de forma
uniforme: enquanto as mudanças se operaram no núcleo urbano, no interior da Ilha
as práticas de sepultamento obedeciam antigas tradições.
Além disso, as medidas de combate ao perigo cadavérico também não
seguiram um curso linear. Nos períodos de surtos epidêmicos a administração
tornava as medidas mais severas, suavizando-as em momentos menos
conturbados. Foi o caso do sudário e do caixão. Constituindo-se como as primeiras
formas de isolar o cadáver, a obrigatoriedade do caixão fechado variava conforme as
condições sanitária da cidade.
93
As mesmas variações ocorriam com o tempo entre o óbito e o sepultamento.
Em momentos de epidemia, a determinação era de que todo corpo fosse sepultado
antes de completadas 24 horas. Porém, se as intervenções da administração
variaram conforme o quadro sanitário, a população muitas vezes não adequou a sua
conduta as novas normas de enterro. Em muitos casos os habitantes respeitavam o
tempo tradicional dos funerais.
O controle do sepultamentos começou a ser possível com a construção
das novas necrópoles. Nelas havia toda uma estrutura que compreendia a
arquitetura e a administração. Além de proteger a população dos miasmas, os
cemitérios em Desterro fizeram parte da estrutura de controle demográfico
populacional. Se antes das necrópoles era quase impossível saber o número total de
óbitos, a proibição do enterro fora desse espaço começou a delinear um quadro
sanitário-demográfico da Vila. Esses números foram de suma importância para
delinear estratégias de combate às doenças. As vacinas, a implantação do sistema
de esgoto, a reeducação dos hábitos da população, tiveram como referência os
mapas de controle sanitário.
É claro, que o tempo entre o criação dessa estrutura e o seu funcionamento
adequado, foi bastante longo. Mesmo quando a população fazia os enterros no
espaços permitidos, muitas vezes eram as freguesias e deixavam de enviar
corretamente os dados. Assim, até o início do culo XX os relatórios da Inspetoria
de Higiene, se queixam da falta de envio dos mapas.
O segundo momento das necrópoles em Desterro foi determinado por
condições diferenciadas do primeiro cemitério. Não era mais preciso iniciar uma
nova prática, pois, o enterro no espaço higiênico já era realizado há 50 anos.
Diferentemente do que ocorreu na Europa, em Desterro não houve o movimento de
reintegração da necrópole ao meio urbano. No final do século XIX, quando a cidade
cresceu e abarcou a área do cemitério, mais uma vez surgiram críticas em relação à
sua presença. No entanto, se ainda havia o medo dos miasmas, outros fatores
determinaram a sua transferência para o bairro do Itacorubi. A remodelação urbana
ocorrida no início do século XX buscou sanear e adequar a cidade aos padrões
considerados modernos. Assim, a área em que se encontrava o cemitério, precisou
ser modificada, pois foi escolhida para receber grandes obras como a ligação entre o
continente e a Ilha. Com a abertura de vias de acesso à ponte, a área leste e oeste
da cidade foram interligadas, modificando o direcionamento do crescimento urbano.
94
Dessa forma, tanto a necrópole, quanto o forno incinerador de lixo precisaram ser
transferidos para outro local, pois na paisagem urbana ideal, não havia espaço para
esses elementos.
95
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SUB-SETOR DE OBRAS RARAS SETOR DE SANTA CATARINA
BIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE DE SANTA CATARINA,
FLORIANÓPOLIS
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de 13 de maio de 1874.
Regulamento do Cemitério Público de São José, aprovado pela
resolução de 21 de março de 1855.
Regulamento do Cemitério Público de São Francisco, aprovado pela
resolução de 5 de abril de 1859.
Regulamento do Cemitério Público de Nossa Senhora de Desterro,
aprovado pela resolução de 03 de março de 1841.
Coleção de Leis da Província de Santa Catarina, 1835/1889, Desterro:
J. J. Lopes.
Código de Posturas de Nossa Senhora do Desterro, aprovado pela
Assembléia Provincial pela resolução de junho de 1835.
Código de Posturas de Lages, aprovado pela Assembléia Provincial
pela resolução de junho de 1836.
Código de Posturas de Nossa Senhora do Desterro, aprovado pela
Assembléia Provincial pela resolução de março de 1838.
Código de Posturas de Nossa Senhora do Desterro, aprovado pela
Assembléia Provincial pela resolução de maio de 1857.
Código de Posturas de Itajaí, aprovado pela Assembléia Provincial pela
resolução de maio de 1868.
Código de Posturas de São José, aprovado pela Assembléia Provincial
pela resolução de junho de 1868.
Código de Posturas de Joinville, aprovado pela Assembléia Provincial
pela resolução de março de 1872.
Código de Posturas de Blumenau, aprovado pela Assembléia
Provincial pela resolução de setembro de 1883.
102
8.2.2 Periódicos
a) Revistas:
O Almanach Revista Literária Ilustrada, outubro de 1910.
O Almanach Revista Literária Ilustrada, dezembro de 1911.
O Crysantemo Revista Literária Ilustrada, novembro de 1907.
b) Jornais
Argos, Desterro 1861, 1862, 1867, 1870
O Cruzeiro do Sul Desterro, 1859, 1862
O Pajaça Desterro, 1862
O Constitucional Desterro, 1855, 1874, 1870
O Cacique Desterro, 1871
O Conciliador Desterro, 1873
Gazeta de Joinville, 1877, 1893
Jornal A Verdade
Jornal Novo Íris
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
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