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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
MESTRADO EM SOCIOLOGIA
GERCIANE MARIA DA COSTA OLIVEIRA
CHICO DA SILVA
Estudo sociológico sobre a manifestação de um talento artístico
FORTALEZA
2010
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2
GERCIANE MARIA DA COSTA OLIVEIRA
CHICO DA SILVA
Estudo sociológico sobre a manifestação de um talento artístico
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Sociologia.
Orientadora: Maria Auxiliadora de Abreu
Lemenhe
FORTALEZA
2010
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3
GERCIANE MARIA DA COSTA OLIVEIRA
CHICO DA SILVA
Estudo sociológico sobre a manifestação de um talento artístico
Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Sociologia, da
Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Sociologia.
Aprovada em_____/______/_____.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profª. Drª. Maria Auxiliadora de Abreu Lemenhe (Orientadora)
___________________________________________________
Profª. Drª. Andréa Borges Leão
____________________________________________________
Profª. Drª. Kadma Marques Rodrigues
4
Dedico este trabalho a todos aqueles que de
forma direta, ou indireta, contribuíram para
sua realização, em especial a meus familiares,
amigos e professores.
5
AGRADECIMENTOS
No ano que se comemora o centenário de nascimento deste grande artista, Chico da
Silva, realizar um trabalho de pesquisa que requer tamanha responsabilidade e cuidado se
fez possível graças à ajuda de muitas pessoas. Pessoas estas que neste breve espaço desejo
expressar toda a minha gratidão e reconhecimento.
Gostaria, portanto, de agradecer a meus familiares, meus pais Pedro Paulo e Maria
Rosimar e minhas irmãs, Rosa Emilia, Rosana e Rosalia, sempre presentes nos principais
acontecimentos de minha vida.
À minha orientadora, Profa. Dra. Maria Auxiliadora de Abreu Lima Lemenhe, por seu
direcionamento preciso e suas observações oportunas, tão caras à concretização deste
trabalho.
Às professoras que integram a banca examinadora, Profa. Dra. Kadma Marques
Rodrigues e Profa. Dra. Andréa Borges Leão, pelo aceite do convite e pelas contribuições que
se fizeram permanentes, desde o momento da qualificação até este último ato da defesa.
Ao professor, e também diretor do Museu de Arte da UFC (MAUC), Pedro Eymar pela
disponibilização do material do acervo do museu e por suas informações ricas em detalhe,
próprias de quem presenciou alguns dos eventos importantes do meio artístico e cultural
cearense.
Agradeço, ainda, ao fotógrafo do MAUC Pedro Humberto, por sua atenção e
receptividade.
Ao artista, e também biógrafo de Chico da Silva, Roberto Galvão, pelos dados e
conhecimentos desprendidamente compartilhados.
Sou grata ao José Guedes, artista e diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC),
pela intermediação junto à administração do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, que
tornou possível a realização da visita ao acervo do pintor naif, de responsabilidade da
Secretaria da Cultura do Ceará (SECULT), que ali se encontra resguardado.
A todos do Centro Popular de Pesquisa Documentação e Comunicação (CPDOC) do
Pirambu, por tornar acessível materiais diversos como fotos, jornais e entrevistas registradas
em fita cassete.
6
Agradeço também aos meus amigos “silvícolas” que próximos ou à distância me deram
sempre força e ânimo. São eles: Chico, Alana, Cláudia, Ivna, Mário e Ana Paula Rodrigues.
Agradeço ainda à Aline, à Emanuelle Kelly, à Juliana, ao Jefferson, à Ana Lúcia, à
Fabiana e à Mayara pelos dias felizes que construímos nestes dois anos.
Um agradecimento especial para minha amiga Fátima, companheira no percurso e nos
percalços do mestrado.
Também agradeço ao meu namorado, Rafael, por seu incentivo e confiança.
Por fim, mas não menos importante, quero agradecer ao apoio financeiro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico (CNPq), sem o qual a realização e
desenvolvimento desta pesquisa teria sido muito mais difícil.
7
“Me chamo Chico da Silva,
De fala branda e macia,
Passo na água, não molho,
Piso na folha e não chia.”
8
RESUMO
O presente trabalho tem como intuito principal compreender, sob a perspectiva
sociológica, a manifestação do pintor naif Chico da Silva no contexto artístico cearense dos
anos 40. Nascido no Alto do Tejo, cidade do Acre, Francisco Domingos da Silva, filho de pai
indígena e mãe cearense chega a Fortaleza em meados dos anos 30. Tendo seus trabalhos
muralistas “descobertos” pelo crítico e pintor suíço Pierre Chabloz, em 1943, Chico passa a
produzir telas, sob a interferência e orientação do estrangeiro, que levadas aos circuitos locais,
nacionais e internacionais despertam grande interesse e admiração dos pares, da crítica e do
público. Contudo, tal aceitação local não se deve, exclusivamente, aos valores e propriedades
intrínsecas à suas obras, mas ao espaço dos possíveis objetivamente inscrito, que se delineia
no modernismo tardio e no processo de autonomização do campo artístico cearense dos anos
40. A ruptura com os padrões artísticos europeus advindos principalmente da França e as
afinidades formais e de idéias que se tecem nessa configuração entre arte “moderna” e arte
“primitiva” viabilizam a paradoxal inscrição dos trabalhos independentes de Chico da Silva
no campo artístico cearense, que no seu estado de autonomização não oferece lugar aqueles
que renegam e desconhecem sua história.
Palavras-Chave: CHICO DA SILVA, ARTE, CAMPO ARTÍSTICO, CEARÁ.
9
RÉSUMÉ
Ce travail a comme intention principal comprendre, du point de vue sociologique, la
manifestation du peintre naïf Chico da Silva dans le contexte artistique du Ceara des annés 40.
à Alto do Tejo, la ville du Acre, Francisco Domingos da Silva, fils du père indien et mère
cearense arrive à Fortaleza dans la motié des annés 30. En ayant ses travaux muralistes
"découverts" par le peintre suisse et critique Pierre Chabloz, en 1943, Chico a commencé à
produire des peintures, sous la direction et l'ingérence de l'étranger, qui ont été conduites au
circuit locale, nationale et internationale suscitent un grand intérêt et l'admiration de ses pairs,
de la critique et du public. Toutefois, tel acceptation locale ne se doit pas, exclusivement, aux
propriétés et aux valeurs intrinsèques à ses ouvres, mais à l'espace des possibles
objectivement enregistrés, qui se décrive dans la modernité tardive et le processus
d'autonomisation du champ artistique du Ceara des annés 40. La rupture avec les standards
artistiques européens qui viennent essentiallement de la France et les affinités idéalistes et
formelles qui sont tissées dans cette configuration entre l’art “moderne” et l'art “primitive” a
permis la paradoxale entrée du travail indépendant de Chico da Silva dans le champ artistique
du Ceará, qui dans son état d’autonomisation n’offre pas de place à ceux qui nient et ignorent
son histoire.
Mots-Clé: CHICO DA SILVA, ART, CHAMP ARTISTIQUE, CEARÁ.
10
Lista de ilustrações
Figura 1. Chico da Silva executando seus trabalhos muralistas (MAUC). ..............................38
Figura 2. Chico da Silva perfomatizando a “descoberta” (MAUC)...........................................1
Figura 3. Pintando em tela (MAUC). .........................................................................................1
Figura 4. Desenho representativo do ciclo das artes feito pelo próprio Chabloz. (1944). .......53
Figura 5. “Os três mosqueteiros do pincel”: (da esquerda para a direita) Antônio Rodrigues,
Paula Barros e Ramos Cotoco, 1910 (MIS). ............................................................................63
Figura 6. O encontro de Chico da Silva e o scapiano Antônio Bandeira (MAUC)..................88
Figura 7. Oriodime, 1945; guache s/papel 20 X 44,5 cm (SECULT). .....................................96
Figura 8. O pássaro longo e sua jibóia. Guache sobre cartão. 96,5 x 66,0cm. Acervo:
MAUC/UFC .............................................................................................................................98
Figura 9. O pára-quedista na prova da bomba, 1959; guache sobre cartão 73,7 X 94,5 cm
(MAUC). ................................................................................................................................100
11
Sumário
INTRODUÇÃO........................................................................................................................12
CAPÍTULO 1. ARTISTA, OBRA E SOCIEDADE. ...............................................................19
1.1. O estatuto coletivo da arte. ................................................................................................20
1.2. Percursos do olhar: o desafio de se fazer sociologia das artes visuais ..............................24
CAPÍTULO 2. DOS MUROS ÀS TELAS: A INSERÇÃO PARTICULAR DE CHICO DA
SILVA NO MEIO ARTÍSTICO CEARENSE.........................................................................29
2.1. O ingresso peculiar. ...........................................................................................................30
2.2. Seguindo o rastro biográfico..............................................................................................33
2.3. A “descoberta” de um talento............................................................................................38
2.4. Efeitos do encontro com Chabloz......................................................................................43
2.5. O Olhar do “descobridor”..................................................................................................48
CAPÍTULO 3. AUTONOMIZAÇÃO DO CAMPO ARTÍSTICO CEARENSE: UM
ESPAÇO DOS POSSÍVEIS SE DELINEIA. ............................................................................58
3.1. Os antecedentes do campo artístico cearense....................................................................59
3.1.1. Artes plásticas nos anos 20 e 30: a transposição pictórica do “real”. .....................62
3.1.2. Um passo a diante: as primeiras mostras de arte.....................................................69
3.2. A “Fase renovadora” da pintura cearense na década de 40...............................................72
3.2.1. As entidades artísticas e o modernismo tardio........................................................76
3.2.2. Chico da Silva e o movimento “renovador”............................................................86
CAPÍTULO 4. A OBRA SINGULAR DE CHICO DA SILVA: AFINIDADES ENTRE O
“PRIMITIVO” E O “MODERNO”..........................................................................................95
4.1. O “pulo do gato”................................................................................................................96
4.2. Rupturas e subversões: as relações entre arte “primitiva” e arte “moderna” ..................102
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................114
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................117
ANEXOS................................................................................................................................125
12
INTRODUÇÃO
As motivações que me levaram a eleger este universo de estudo a arte - e o tema
específico “Chico da Silva”, poderiam ser expostas aqui de forma quase autobiográfica.
Afinal, não é este muitas vezes o tom que ganha tais justificativas de escolha? Buscando
estabelecer o elo entre a experiência vivida (seja ela acadêmica ou não) e o tema de estudo, o
pesquisador é tentado a fazer uma espécie de retrospecto, compilando fatos que indiquem
potencialmente a futura escolha do assunto. Sendo assim, ao olhar para trás, poderia dizer que
meu gosto infanto-juvenil pelo desenho encontra ressonância nesta inquietação por perscrutar
o universo artístico, fato que não é de todo falso, mas nem por isso determinante.
Como bem nos ensina a sociologia, muito do que achamos natural é construção, e com
o objeto de pesquisa não poderia ser diferente. Mais do que um achado – idéia enfatizada pela
própria expressão “encontro com o objeto” a temática de estudo é elaborada, constituída e
fomentada por diversos fatores. Em muito, ela projeta marcas que denunciam nosso percurso,
e neste sentido, afirmaria que ela corresponde a uma trajetória. Portanto, é sob esta
perspectiva que circunscrevo meu interesse pela temática. Não propondo neste espaço fazer
auto-análise de trajetória aos moldes do sociólogo Bourdieu
1
, não é este o intuito. Trata-se,
antes de tudo, de colocar em suspenso a própria natureza das escolhas, rompendo desta forma
o discurso romantizado e puramente subjetivo.
No ano de 2004 um ano depois de meu ingresso no Curso de Ciências Sociais tive
a oportunidade de ser bolsista arte do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará
(MAUC). Reformulada sob as novas diretrizes do recém fundado ICA (Instituto de Cultura e
Arte), a bolsa oferecia em estágio inicial, uma verdadeira imersão nas atividades artísticas e
culturais de nossa cidade. Palestras, oficinas, visitas: foi um período intenso de formação
sobre arte em suas múltiplas manifestações (dança música, pintura e etc.) e suas mais
diferentes fases.
1
Em um inusitado exercício sociológico, Bourdieu em Esboço de auto-análise (2005) lança olhar sobre sua
própria trajetória e conseqüentemente a produção de suas obras contextualizando-as em meio ao jogo de
disputas simbólicas que animavam e definiam o campo intelectual de sua época. Longe de aventurar-me em tal
empreitada, exigente de um alto nível de objetivação e racionalização, a recorrência ao termo trajetória visa
neste momento reavaliar, de forma rasa, as “escolhas” tidas como inconsciente.
13
Nessas vivências cotidianas, em um movimento de felizes descobertas, tive a
oportunidade de me aproximar da história das artes plásticas cearense, até então desconhecida
para mim. Surpreendi-me de forma positiva e negativa -, com o curso paradoxal de muitas
trajetórias de nossos artistas que, gozando de certo prestígio no estrangeiro, quase não tinham
reconhecimento da crítica e do público local.
Esses percursos individuais, que pelas dificuldades e obstáculos encontrados, mais se
assemelhavam a sagas homéricas, me ofereciam, neste sentido, um quadro panorâmico das
realidades e condições que se impunham àqueles que desejavam viver de arte nesse Estado,
nas décadas passadas. Confesso que a visão desse conjunto não era lá muito boa.
O que pude perceber é que por muito tempo o Ceará apresentou um ambiente inóspito
para a pintura, desfavorável em termos estruturais e pictóricos para o florescimento de seus
talentos. A sorte é de que nessas terras os artistas possuem duas características principais as
quais o jornalista Jeovah Motta bem denota: a tenacidade e a energia (apud LEITE, 1949).
Portanto, contrariando a todas as determinações materiais e até climáticas a questão da
representação da luz peculiar do Ceará sempre fora um problema para nossos pintores surge
composições como: os abstratos enérgicos de Bandeira; os figurativos majestosos de
Raimundo Cela; as imagens delineadas a traço forte de Aldemir Martins e os bichos surreais
de Chico da Silva.
Assim, paralelo a estas experiências de cunho mais específico proporcionadas pela
bolsa, procurei contemplar, através do curso de disciplinas: Estética, Filosofia da Arte,
História da Arte - e leituras individuais, meu interesse pela área especial. Neste momento,
ainda que de forma introdutória, tentava estabelecer aproximações às perspectivas teóricas de
estudo da arte presentes; principalmente, na obra de Theodor Adorno, Pierre Bourdieu e
Norbert Elias. Resultantes deste exercício de interligação entre experiência de bolsista e
experiência acadêmica, os trabalhos finais das disciplinas remetiam-se constantemente a
temáticas da arte cearense. E um assunto em especial mostrava-se recorrente em minhas
articulações: a carreira artística peculiar de Chico da Silva.
Figura ambígua, polêmica, dona de um percurso bastante singular, Chico da Silva, em
meio a condições adversas pobreza, analfabetismo, ausência de técnica aos moldes
acadêmicos- insere-se no campo artístico cearense projetando-se para o cenário nacional e
14
internacional como “um dos artistas primitivos
2
entre os maiores do mundo”
3
. Seus quadros
irão compor o acervo de Louvre em Paris e integrar coleções particulares de figuras ilustres
como o ex-presidente Figueiredo, o ex-presidente americano Jimy Carter e a Rainha
Elizabeth. Seu estilo inaugura a tendência plástica que coloca o Ceará como um dos mais
importantes pólos de manifestação da arte naif
4
no mundo.
Dos muros da Praia Formosa às renomadas galerias de arte: é possível explicar esta
ascensão pelas propriedades intrínsecas e específicas a obra de Chico da Silva? Deve-se ao
seu traço despreocupado e a sua resolução “instintiva” o fascínio exercido por suas telas no
público e na crítica? Inúmeros pensadores teorizaram sobre esta questão estética, mesmo
assim ela parece inesgotável.
Kant (1993), por exemplo, em seu Tratado das noções de beleza, aborda esta como
uma realidade trans-histórica, resultado de um trabalho harmonioso e inerente. Já para alguns
autores das Ciências Sociais, como Bourdieu, o valor singular de uma obra não dependeria
simplesmente da coerente disposição dos elementos na tela, mas sim do reconhecimento do
olhar fruidor que enfim a realiza: “a obra de arte existe enquanto objeto simbólico dotado
de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por
espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para conhecê-la e
reconhecer como tal (...)” (BOURDIEU, 1996a: 259).
Contudo, este olhar não diz respeito a um individuo que, de forma isolada, por
assimilação nata, consegue encontrar sentido na obra contemplada. A possibilidade de
atribuição de sentido é somente viabilizada pelo acesso às chaves interpretativas que se
constroem coletivamente. Portanto, é no âmbito do social que os valores estéticos de uma
determinada época são estabelecidos.
Desta forma, torna-se imprescindível perceber que referenciais de arte estavam sendo
colocados naquele momento, entendendo, assim, em que espaço social encontrava circunscrita
a manifestação individual da arte de Chico. E é neste movimento que a pesquisa se
2
”Termo aplicado à pintura de artistas aparentemente ‘ingênuos’ ou ‘incultos’, os quais se exprimem por meio
de forma simples, sem nenhuma sofisticação ou preocupação estilística”. (FREITAS, 2002, p. 123)
3
Fala do crítico de arte e ex-ministro da Cultura do governo do general de Gaulle André Malraux. (apud Ibidem:
155)
4
“Explica Lucien Finkelstein, francês radicado no Brasil: o adjetivo francês ‘naif’ vem do latim ‘nativus’, que
significa nascente, natural, espontâneo, primitivo. Assim, pode ser substituído também por ingênuo e primitivo,
mas as três palavras devem ser tomadas ao da letra. Todas têm origem no latim: ingênuo vem de ‘ingenuos’
(nascido livre) e primitivo, de ‘primitivus’ (que pertence ao primeiro estado de uma coisa). Essas três definições
poderiam servir para caracterizar a pintura ‘naif’, que é natural, livre e pura.” ( FREITAS,op.cit: 99)
15
encaminha, buscando compreender as “sobreposições de determinações”, o feliz encontro
entre as condições históricas e sociais (as estruturas que estão postas) e as propensões
individuais (o talento individual que surge nesse contexto) (BOURDIEU, 1996a; ELIAS,
1995).
Ao trabalhar com a noção bourdesiana de trajetória busca-se desviar da simples
narrativa de uma história particular, aos moldes biográficos. Logo, retraçar o percurso
artístico deste pintor significa situá-lo em uma complexa teia de relações sociais que
configuram o campo artístico. Sob esta perspectiva disposicional o artista não é visto nem
como mero reflexo do seu contexto social, nem como um ser isolado, livre para criar a seu bel
prazer. Configurado dentro de uma rede de relações objetivas, ele age e sofre mutuamente
sob/as pressões do espaço social, apresentando-se, ora como sujeito de transformações e
rupturas, ora como vítima dos constrangimentos das regras (SIMIONI, 2002).
Substrato deste jogo de tensões, a produção artística não deve, nestes termos, ser
tomada nem sob o prisma individualista puro, que a aborda, especificamente, em suas
conexões diretas com o temperamento particular, subjetivo e até inconsciente do artista, nem
sob o enfoque sociológico global, que a considera expressão imediata de um povo, raça ou
nacionalidade
5
. A primeira reduziria a obra a uma espécie de materialização das sensações,
dilemas e conflitos pessoais do artista, condenando a sua interpretação a uma simples busca
de evidências nos fatos biográficos. a segunda perspectiva anularia totalmente o papel do
produtor, condicionando suas ações a uma mera resposta mecânica dessa sociedade geral,
fadando sua leitura a um prisma “reflexista” do contexto amplo.
A produção artística deve ser compreendida, portanto, a partir de uma concepção
menos simplista, que não se desloque drasticamente neste movimento pendular entre o
“individual” e o “coletivo” de um pólo a outro, mas que a conceba como fruto deste nexo
entre as condições sociais e as agências individuais.
E é justamente sob este entendimento, que a obra de Chico da Silva é tratada neste
trabalho. Tentando, desta maneira, contemplar a propositiva levantada pelo principal biógrafo
do pintor, Roberto Galvão:
5
Roger Bastide, o introdutor da Sociologia da Arte no Brasil, apreende a obra artística sob este ponto de vista:
“(...) Em resumo, nas suas origens a arte é coletiva e não individual, exprime o gênio do povo, da raça, e não o
esforço pessoal (...)” (1971: 12)
16
Sua obra necessita de uma análise completa em virtude das múltiplas
conjunturas onde ela se desenvolveu e das interferências sociais que sofreu.
Também não se pode negar, na obra de Chico, riqueza estética incomum e uma
multiplicidade enorme de sutilezas que merecem ser observadas por quem
deseja analisá-las. Ele subverteu técnicas convencionais de aplicação das tintas,
ocupar os espaços e misturar as cores. Confunde o espectador com seu universo
temático; será que ele pinta animais fantásticos ou fantasmas de nossa realidade
presente?
6
.
Portanto, esta análise toma para si a importante tarefa de abordar aspectos da vida deste
pintor que foi e é reconhecido como um dos grandes vultos artísticos, não do Estado do
Ceará - ainda que ele seja originário do Acre, seu nascimento artístico se aqui -, como do
país. Único pintor de nossa história a conseguir o imensurável feito de ser premiado se não na
maior, uma das maiores, instâncias de consagração das artes plásticas, a Bienal de Veneza,
Chico da Silva merece tal estudo, dada a relevância histórica e artística que sua trajetória
assume frente aos acontecimentos de sua época e lugar.
Muito embora o trabalho se enverede por uma perspectiva bourdesiana que avoca, no
dizer de Natalie Heinich uma tônica “denuncista”, fundamentada no ato do “desvelamento” e
da “desmistificação” das “ilusões” mantidas pelos atores em torno das idéias de singularidade
e individualidade do artista
7
, não se busca nessa discussão desnudar o caráter poético da
linguagem artística e muito menos de seu produtor. Nem tampouco, retirar a máscara social
(GOFFMAN, 1975) desse indivíduo - como se esses papéis construídos socialmente fossem
simulacros - para que enfim sua “essência verdadeira” apareça, isenta de mágica e illusio.
O intuito fundamental de tal exercício é, sobretudo, entender, sem cair em um
sociologismo determinante, a importância da rede de relações objetivas na viabilização da
manifestação individual de um talento. É compreender sob que confluência de fatores, para
além dos subjetivos e pessoais, o aparecimento de um artista da dimensão de Chico da Silva
se torna possível.
Para a realização de tal empreitada a disposição do trabalho se encontra articulada da
seguinte maneira:
6
Texto de Roberto Galvão que se encontra no catálogo “Chico da Silva em três dimensões. Fortaleza: Centro
Cultural Banco do Nordeste”.
7
A partir desta constatação a socióloga francesa coloca: J’ai mis longtemps a comprendre que les valeurs sont
pas des illusion à demonter mais des systémes d’evaluation à analyser, et que la volonté de faire du collectif le
lieu de la verité, et de l’individuel le lieu de l’illusion, peut n’être qu’une ideólogie sociologiste s lors qu’elle
ne s’interroge par sur la façon dont les acteurs se déplacent entre ces deux les, selon les contextes.
(HEINICHI, 2007:175)
17
O primeiro capítulo cuida, basicamente, dos aspectos teóricos e metodológicos da
pesquisa. Propondo inicialmente a discussão sobre o “estatuto coletivo da arte”, a dimensão
sociológica do trabalho artístico individual, o texto se encaminha para o aclaramento da linha
teórica pilar que se adota na investigação (perspectiva bourdesiana) e as suas categorias
analíticas constitutivas (campo artístico, trajetória, “criador incriado”).
Delimitando o tempo histórico e o corpus de dados - no qual se inclui as obras do pintor
Chico da Silva - a ser tratado, o tópico lança, ainda, a reflexão sobre a difícil tarefa de se fazer
a sociologia das artes visuais, explanando seus obstáculos, empecilhos e desafios; os quais
visam ser contornados, sob determinados limites, pelo presente trabalho.
o segundo capítulo traz aspectos biográficos do artista Chico da Silva, enfatizando
principalmente o momento da sua inserção no cenário cultural e artístico cearense: o início
peculiar da sua carreira como pintor, a “descoberta” de suas composições muralistas nas casas
dos pescadores pelo crítico suíço Jean Pierre Chabloz, a execução dos primeiros trabalhos em
guache e papel e etc.
Mais que dispor esses fatos cronologicamente, nesse espaço, se problematiza e se
adentra na dimensão sociológica desses fenômenos: a “descoberta” casual, a passagem de
suporte (muro/tela), a admiração de Chabloz, notabilizando o conjunto de fatores de outras
ordens, para além da individual e da subjetiva (social, histórica, cultural), que viabilizam esse
achado e essa aceitação de Chico da Silva, primeiro pelo crítico estrangeiro, depois pelo meio
artístico do Ceará.
O terceiro capítulo aborda, por sua vez, o processo de constituição e autonomização do
campo artístico cearense na década de 40, a fim de situar a manifestação individual de Chico
da Silva nesse espaço de possibilidades delineado.
Recuando aos antecedentes desse campo, a pesquisa se debruça sobre o estado da arte
nos anos 20 e 30, atentando para o estágio embrionário da esfera da pintura, no qual não
sequer a diferenciação entre pintores e “pintores de liso” (muralistas, cartazistas, decoradores
e etc.), e para algumas medidas de importante valor (como a organização das primeiras
amostras e exposições de pintura), protagonizadas por essa geração de artistas, das quais
surge o esboço das estruturas básicas que constituem o campo artístico.
Tratando da fase artística em questão, a década de 40, - tempo de agitação estética,
cultural e intelectual que mobilizou a capital cearense -, a análise recai sobre a inscrição do
pintor Chico da Silva no seio dessa configuração particular.
18
Período no qual se denota o maior adensamento do modernismo nas diversas
expressões, inclusive na pictórica; no qual se percebe a incorporação das instituições artísticas
numa personalidade jurídica (CCBA Centro Cultural de Belas Artes e SCAP Sociedade
Cearense de Artes Plásticas) e se evidencia a afirmação do domínio dos produtores sobre
aquilo que os designa (a forma, a maneira e o estilo), a “fase renovadora” marca a abertura
para experimentações de outros meios, linguagens e formas artísticas, que não a acadêmica.
Neste sentido, compreender de que modo as telas “disformes” e “desproporcionais” de
Chico da Silva encontram lugar nesta configuração de efervescência estética torna-se o
interesse fundamental do terceiro capítulo.
O quarto tópico visa problematizar a questão paradoxal que se levanta no
desenvolvimento da investigação: Se “No campo artístico levado a um estágio avançado de
sua evolução, não lugar para aqueles que ignoram a história do campo e tudo que ela
engendrou (...)” (BOURDIEU, 1996a: 275), como compreender a inserção da obra primitiva
de Chico da Silva (uma arte desfiliada a qualquer tradição ou escola artística) no contexto dos
anos 40, que é, precisamente, neste momento que arte cearense volta-se de forma reflexiva
sobre si mesma, em um movimento cumulativo do domínio artístico que torna as obras cada
vez mais auto-referenciadas e semanticamente sobrepostas?
Para discutir tal estado de contradição, inicialmente, a pesquisa recorre ao estudo dos
aspectos estilísticos e conteúdisticos da obra de Chico da Silva, no intuito de perceber as suas
características particulares, principalmente aquelas que assinalam para a sua desvinculação
com o universo da arte oficial. Partindo da observação do quadro Oriodime, de 1945, a
investigação busca contemplar os elementos mais significativos da obra do pintor, denotando
nesse exercício - que não se esgota na pura análise formal, mas que se atenta também aos
aspectos extra-pictóricos - uma espécie de silêncio entre as telas de Silva e a história da arte,
tanto em termos teóricos como práticos.
Valendo-se da própria teoria do campo a investigação tenta, finalmente, entender como
é possível tal incoerência - manifestações artísticas independentes, como a de Chico da Silva,
se inscreverem na história do campo artístico que elas mesmas renegam ou desconhecem -,
buscando nesta articulação compreender como se a entrada dessas manifestações
“primitivas”, pela mão da arte “moderna”, na história da arte oficial.
19
CAPÍTULO 1. ARTISTA, OBRA E SOCIEDADE.
20
1.1. O estatuto coletivo da arte.
Pensar a trajetória singular de um artista constitui um exercício complexo que transpõe
os limites do simples estudo biográfico e da pura análise formal da obra. Compreender a
emergência de um talento em um determinado contexto exige lançar um novo olhar sobre as
práticas de criação. Olhar este que extrapola o âmbito do meramente individual e que recoloca
a arte em seu estatuto coletivo (HEINICH, 2008).
Neste sentido, a incursão sociológica sobre a manifestação individual artística ao se
estabelecer na ruptura com os enfoques tradicionais de interpretação espiritualistas estéticas
que abordam o artista somente a partir de suas características pessoais e subjetivas e pela
inserção de um terceiro termo no cerne da problematização - a “sociedade” - desloca, nesta
articulação, o ângulo de análise da relação “artista/obra” para “arte/sociedade”.
A serem tomadas as práticas de criação por essa perspectiva relacional entre arte e
sociedade busca-se ampliar e complexificar a discussão, não obstante, faz-se necessário
atentar para os reducionismos que as variantes desse novo prisma podem trazer. Ora, o
entendimento das obras artísticas como epifenômenos do contexto em que ela se realiza
econômico, social, cultural e institucional –, tributárias, em grande parte, da tradição marxista,
mostra-se por demais simplista, que estabelece nexos diretos e imediatos entre a sociedade
geral, que é heterogênea e implexa e os elementos formais e estilísticos de um trabalho
estético . Deste modo, torna-se pertinente redimensionar essa relação arte/sociedade,
perscrutando novos caminhos que estabeleçam o fio que interliga tais propriedades “externas”
as “internas”.
A abordagem de Bourdieu sobre a produção dos bens culturais, em especial dos
artísticos, sem dúvida, apresenta um novo olhar sob esse binômio arte/sociedade. A proposta
trazida especialmente em seu livro Regras da Arte mostra-se inovadora uma vez que,
problematiza a relação direta apontada principalmente pela teoria do “reflexo”
8
- entre texto
e contexto, obra de arte e sociedade. Para este autor, os aspectos econômicos e sociais
exerceriam, sim, influência sob a arte, contudo tais exterioridades sofreriam uma espécie de
mediação, de tradução aos códigos próprios do campo.
8
Bourdieu refere-se particularmente às análises de cunho marxista Lukács e Goldman que reduzem o
significado das obras culturais a nível de ‘expressão simbólica’ do mundo social.
21
Desta forma, o artista não pode ser tomado como um mero porta-voz inconsciente da
sua classe social. A materialização de seu trabalho, seja na literatura, na música ou na pintura,
responderia, antes de tudo, a uma determinada posição objetiva circunscrita no campo
artístico. Sua obra mostra, assim, um ponto de vista, que interpreta o mundo de algum lugar
que, não necessariamente, corresponde a uma classe econômica.
A análise do romance Educação Sentimental de Flaubert feita por Bourdieu se
nesta perspectiva. Partindo da obra, ele busca encontrar os nexos existentes entre a
composição da ficção e o espaço social que o autor ocupa. Neste sentido, Flaubert expressaria
em seu trabalho o jogo de tensões no qual ele mesmo encontra-se mergulhado, imprimindo na
figura de Frederic Moreau, personagem principal da trama, seu conflito enquanto nova
posição: “arte pela arte”.
Ao situar o escritor no interior da cena cultural em processo entre 1830-1850,
momento este de densificação do campo intelectual e literário que viria a ser totalmente
constituído no final do século XIX, Bourdieu desmistifica a noção romantizada do trabalho
artístico. Trazendo à luz os aspectos condicionantes de uma obra literária, ele coloca em
suspenso a idéia de nio como “criador incriado”, mostrando-o como produto”, fruto de
uma dinâmica sócio-histórica.
(...) a análise científica das condições sociais da produção e da recepção da obra
de arte, longe de a reduzir ou de a destruir, intensifica a experiência literária:
como se verá a propósito de Flaubert, ela parece anular, de início, a
singularidade do “criador” em proveito das relações que a tornam inteligível,
apenas para melhor redescobri-la ao termo do trabalho de reconstrução do
espaço no qual o autor encontra-se englobado e “incluído como um ponto”...)
(BOURDIEU, 1996a: 14-15).
Neste movimento de dessacralização de conceitos, a figura do artista e a importância
da sua atividade são reavaliadas. É preciso considerar - destaca Bourdieu - que a constituição
desta categoria socialmente distinta é resultado de um longo processo histórico, nascente da
progressiva autonomização do campo artístico.
Basta levantar a questão proibida para perceber que o artista faz a obra e é ele
próprio feito, no seio do campo de produção, por todo o conjunto daqueles que
contribuem para o ‘descobrir’ e consagrar enquanto artista ‘conhecido’ e
‘reconhecido’, críticos, prefaciadores, marchands (...) (Ibidem: 193).
22
Portanto, trata-se de apreender de qual lugar o agente artista revela seu ponto de
vista, compreender sua localização em relação às outras posições dispostas no espaço social,
objetivando o sujeito objetivante. Nisto consiste a Ciência das obras culturais. Ainda que a
linguagem das artes plásticas tenha sua particularidade com relação à literatura, que se
expressa via discurso, as operações descritas por Bourdieu em sua análise apontam
possibilidades de estudo destas obras específicas
9
.
Logo, a noção de campo social (especificamente de campo artístico) elaborada por
Bourdieu apresenta-se bastante fecunda para a interpretação do objeto proposto. Tal
ferramenta analítica demonstra sua capacidade heurística nesta pesquisa que coloca em
questão a experiência absoluta da arte, possibilitando assim uma leitura aprofundada de
determinadas noções que circulam neste espaço e que, muitas vezes, são tratadas como
intocáveis.
E é sob esta perspectiva, que a história individual do artista naif Chico da Silva é
enfocada no presente estudo. Suas passagens e experiências de vida são analisadas e deste
modo, objetivadas a fim de restabelecer os inúmeros fios que interligam o indivíduo ao seu
contexto. Situando, assim, a sua manifestação criativa original em meio as suas condições de
realização.
Fundamentalmente, o estudo se embasa nos dados provenientes de fontes diversas:
literatura biográfica, artigos de jornais, revistas e periódicos, catálogos de exposições,
dicionários de arte, filmes, diários, obras do artista e entrevistas. Este último procedimento
metodológico foi direcionado àqueles sujeitos cujo discurso apresentava-se relevante para
constituição da pesquisa. Consistiu, portanto, como foco principal os contemporâneos de
Chico: artistas, amigos, fãs, além de estudiosos.
Quanto ao recorte temporal, a investigação assume contornos mais profundos a partir da
fase de inserção de Chico da Silva no campo artístico cearense, iniciada, efetivamente, nos
anos 40. A ênfase neste período específico não é arbitrária e encontra em dois motivos sua
justificativa. Primeiro, é essencialmente nesta cada que os ventos do modernismo chegam
com mais força no Ceará, configurando um terreno produtivo para novas experimentações e
expressões artísticas, das quais Chico da Silva torna-se exemplo; segundo, a ausência de
9
Sabe-se que Bourdieu deixou centenas de páginas sobre o pintor impressionista Manet que ainda não foram
publicadas. Provavelmente, esta análise sobre o artista indique um tratamento mais específico para o estudo das
linguagens pictóricas (MICELI apud BOURDIEU, 2005).
23
documentos e informações que dizem respeito à infância e adolescência
10
do pintor
inviabilizam uma possível leitura da fase que precede sua “descoberta”, tal lacuna biográfica,
não permite, desta forma, a incursão sobre o momento primeiro de formação de disposições
(habitus) e constituição de habilidades do artista.
Como fora citado anteriormente, a pintura de Chico da Silva também é utilizada como
fonte de pesquisa. Sem dúvida, a obra de arte apresenta-se como um objeto de investigação, já
que ela traz em si, de forma materializada, as marcas estéticas de um tempo. Deste modo, meu
olhar de pesquisadora diante destes objetos se coloca para além da fruição e da experiência
estética; atentando, assim, para a historicidade revelada por eles.
Neste sentido, as obras selecionadas convertem-se em janelas. Sobre estas o
pesquisador debruça-se, espreitando que ligações permeiam este universo que
insiste em ser desvelado. Ao projetar-se nesse mundo, o “olhar” do cientista
perscruta significações que articulam, num feixe fortemente atado, a
materialidade das obras à experiência pessoal e social do artista.
(RODRIGUES, 2002: 38)
Contudo, o exame deste corpus pictórico requer procedimentos metodológicos
peculiares, que atentem para a especificidade da linguagem visual. Levando em consideração
que este é um terreno novo para a sociologia e que seus métodos próprios encontram-se em
vias de constituição, o uso das imagens apresenta-se, ainda, como um desafio incontornável
para os estudiosos da área. Sobre o assunto Heinich comenta,
Por fim, um terceiro problema colocado por essa injunção, o de fazer a
sociologia das obras de arte, é a ausência de um todo de descrição
sociológica das obras salvo se passar pela análise dos autores, o que nos
levaria de volta a uma sociologia da recepção. Da mesma forma que as pessoas,
os grupos, as instituições e as representações se oferecem à análise estatística, à
entrevista e à observação. Quase não existe abordagem empírica das obras de
arte que não seja redutível às descrições que os críticos, os peritos e os
historiadores da arte, desde muito tempo, experimentaram. Para quem
considera, como fazemos aqui, que uma disciplina se define, antes de mais
nada, pela especificidade de seus métodos, esse é um questionamento
primordial sobre a possibilidade de se fazer uma ‘sociologia das obras’.
(HEINICH, 2008: 129)
10
Existem dados muito vagos sobre este período. O que se sabe é que antes de chegar a Fortaleza, Chico teve
passagem em Recife, Quixadá e Guaramiranga.
24
1.2. Percursos do olhar: o desafio de se fazer sociologia das artes visuais
Eleger uma perspectiva investigativa única para o estudo das imagens talvez não seja
nem o melhor, nem o mais acertado caminho. Como já fora colocado, as diversas implicações
que circundam o tratamento das linguagens pictóricas pedem o esforço analítico criativo para
tatear, entre os mais diferentes saberes, semiologia, história e crítica da arte conceitos e
métodos que viabilizem a compreensão destes “significantes não- verbais” (PASSERON,
1995, p.287). Portanto, a não aceitação de um pacote metodológico fechado possibilita
transitar entre variadas linhas de reflexão, delineando assim, em espécie de síntese, o
“percurso do olhar” caracteristicamente sociológico. E é a partir deste híbrido de
procedimentos que os quadros do pintor Chico da Silva são examinados nesta análise.
Como primeira etapa do trabalho, a seleção do corpus pictórico a ser analisado exigiu
especial atenção. No caso da produção de Chico, uma série de objeções influi diretamente
nesta escolha, entre elas, a viabilidade de acesso a este material. Por conta de sua projeção, a
obra do pintor naif encontra-se espalhada por todo Brasil, e fora dele também
11
. No Ceará,
coleções particulares e públicas dispõem de seus quadros, mas é no acervo do MAC (Museu
de Arte Contemporânea) do Dragão do Mar e do MAUC (Museu de Arte da Universidade
Federal do Ceará) que se acham amostras expressivas do talento desse pintor. Diante disto,
torna-se pertinente focar o estudo na observação destes trabalhos específicos.
Além da acessibilidade, outro critério motiva esta eleição: a questão da autenticidade.
As inúmeras “reproduções” feitas por aprendizes e imitadores do artista primitivo surgiam na
pesquisa como um obstáculo metodológico: afinal, como identificar um verdadeiro Chico da
Silva? Estudos crítico realizados neste sentido denotam alguns aspectos de diferenciação
entre o “mestre” e seus “discípulos”.
Claudionor, a partir da figuração de Chico, desenvolve um universo de tipos
fixos, de desenho definido, com características específicas e nomes próprios.
Ivan de Assis agregou ao imaginário de Chico uma série de elementos novos,
animais alados apanhados entre os mergulhos no seu inconsciente e as telas dos
cinemas ‘hollywoodianos’ de temas mitológicos e greco-romanas. O público
também participou da composição do temário, solicitando os galos de Aldemir.
Ivan satisfaz o público, apropriou-se de um galo encontrado como ilustração da
capa de desenho escolar e compõem ‘a briga de galos’ que imediatamente foi
incorporada à prototipia estabelecida por Claudionor. O próprio Claudionor,
11
Obras do pintor encontram-se no acervo de OEA, de Nelson Rockfeller, da família Onassis, no Museu de
Louvre em Paris e no Museu de Neuchâtel, na Suíça.
25
segundo informações obtidas através de Estrigas, apropriou-se do jacaré, do
Querosene jacaré, e a partir de suas formas criou alguns dragões. (GALVÃO,
1986: 59-60)
Contudo, tais constatações não solucionam por total a problemática, restando à
pesquisa eleger - em virtude de determinadas garantias - os acervos do MAC e do MAUC
como principais fontes. Isso porque as obras que compõem a coleção do MAC são as
primeiras telas encomendadas por Chabloz a Silva, na década de 40, o que lhes imputa valor
autêntico incontestável. os trabalhos que integram a coleção do Museu da Universidade
foram adquiridos no período em que o artista trabalhou no órgão
12
, deste modo, encontram-se
afastadas as suspeitas que ponham em dúvida a autoria desses quadros.
Feita a seleção do material, os procedimentos da análise que se seguiu visaram atender a
complexa tarefa de interligar as características intrínsecas da obra (elementos formais e
estilísticos, temática, técnicas, influências estéticas) ao contexto geral que a circunscreve. No
caso da pintura, especificamente, a busca destes nexos encontra uma série de impedimentos
dado regime semiótico característico das imagens. Como estabelecer, portanto, a conexão
entre os elementos formais de um quadro (traços, conteúdos, cores, etc.) e a sociedade na qual
ele é produzido? No campo das linguagens discursivas, autores como Pierre Bourdieu e
Raymond Williams oferecem perspectivas que discutem, de certo modo, esta imbricação.
Em um singular estudo sobre o livro Educação Sentimental de Flaubert, Bourdieu
identifica na estruturação do romance (arranjo do universo dos personagens e representação
espaço-geográfico dos lugares sociais dos agentes) uma espécie de “projeção” do campo de
lutas no qual o próprio escritor se encontrava mergulhado. Desta maneira, ao longo da ficção,
Flaubert analisa Flaubert, objetivando na esfera da resolução formal sua dúbia colocação
como artista: engajado/ burguês.
Os ocupantes dessa posição contraditória estão destinados a opor-se, sob dois
aspectos diferentes, às diferentes posições estabelecidas e, com isso, a tentar
conciliar o inconciliável, isto é, os dois princípios opostos que comandam essa
dupla recusa. Contra a ‘arte útil’ variante oficial e conservadora da ‘arte social’,
da qual Máxime Du Camp, amigo próximo de Flaubert, era um dos mais
notórios defensores, e contra a arte burguesa, veículo inconsciente ou
consciente de uma doxa ética política, eles querem a liberdade ética, ou mesmo
12
A passagem de Chico da Silva pelo museu de arte da UFC foi breve (1959-1961), porém muito importante em
termos de consagração. Realizando seus trabalhos na própria dependência do MAUC, além de receber total
aparato material para a execução de sua pintura, o artista tornou-se próximo do círculo intelectual cearense: fator
de extrema relevância para o alcance de reconhecimento artístico.
26
a provocação profética; pretendem, sobretudo, afirmar a distância com relação
a todas as instituições, Estado, Academia, jornalismo, mas sem se reconhecer
por isso no abandono espontaneísta dos boêmios que também se valem desses
valores de independência, mas para legitimar transgressões sem conseqüências
propriamente estéticas, ou puras e simples regressões à facilidade e à
‘vulgaridade’. (BOURDIEU, 1996a: 95-96)
Já Raymond Williams, ao analisar as variadas roupagens formais do teatro na história
(tragédia grega, teatro neoclássico, teatro renascentista, teatro burguês, naturalismo e
expressionismo), denota na forma a mediação central entre arte e sociedade. Assim, as
mudanças e transformações sociais apareciam transmutadas para o universo dramático não
somente em termos de conteúdo; mas, sobretudo, de forma.
O mais notável sobre a forma mais antiga – a forma central mais importante do
Renascimento inglês era a integração dramática que ela fazia daquilo que,
depois, seria separado como questões “públicas” e “privada”. A crise do
Hamlet ou do Rei Lear é uma crise simultânea do colapso público e privado:
não tematicamente, mas em nível formal profundo na linguagem. Nas cenas
“loucas” do Hamlet e, de maneira mais notável nas cenas de tempestade do Rei
Lear, isso atinge, através de ações e questões gerais, àquilo que é, ao mesmo
tempo, a virtual dissolução da comunicação significados convencionais,
sequências e conexões radicalmente pertubadas e até mesmo ruptura sob
pressões enormes e ainda, de maneira admirável, a expansão da linguagem
dramática para representar até mesmo esse processo: a crise total ainda
representada, formada. (WILLIAMS, 1992: 156)
Sem dúvida estas contribuições incidem luzes sobre a questão; mas,como trazer estes
modelos de estudo discursivos, para o terreno das artes visuais? É possível apropriar-se
livremente de instrumentais analíticos da sociologia da literatura em prol de uma sociologia
das imagens? Alguns autores reivindicam o tratamento das obras visuais, exatamente, a partir
de seu estatuto discursivo. Desta maneira, as variadas manifestações e produções artísticas
devem ser entendidas como “textos” - prontos para serem lidos e interpretados. Sobre o tema
Vera Zolberg comenta:
Algumas formas de arte favorecem a leitura mais fácil e claramente do que
outras, embora todo especialista em uma forma de arte pareça acreditar que seu
assunto é mais difícil de ser apreendido desse modo do que outros. Pode
parecer óbvio que obras literárias são ‘lidas’, mas é um desafio tentar ler’
música, pintura e escultura, arte ou desenho comercial. (2006: 51-52)
27
E é este desafio que o filósofo da arte Louis Marin propõe em seu livro Sublime
Poussin. Especificamente no capítulo Ler um quadro em 1639, segundo uma carta de
Poussin, o autor discute as múltiplas fronteiras e cruzamentos que se definem entre o
“legível” e o “visível”. A tônica de aproximação destas duas operações encontra-se expressa
logo nas primeiras linhas do texto, em forma de pergunta: “Lemos uma carta, um poema, um
livro; o que significa ler um desenho, um afresco?(2000: 19) A resposta delineia-se mais a
frente, de maneira clara e enfática: “Ler é, precisamente, reconhecer uma estrutura de
significância: que tal forma, tal figura, tal traço é um signo, que ele representa alguma outra
coisa sem que saibamos necessariamente qual é outra coisa representada. É assim que
olhamos comumente os quadros (...)” (Ibidem: 20).
Esta espécie de tradução direta entre elementos plásticos e signos lingüísticos
fundamenta-se- basicamente- na instauração de um lugar comum para palavras e imagens.
Lugar este que fora denegado pela pintura clássica, do século quinze ao século vinte, dada a
relação de condicionamento destas duas linguagens
(...) ou o texto é regrado pela imagem (como nesses quadros em que são
representados um livro, uma inscrição, uma letra, o nome de um personagem),
ou a imagem é regrada pelo texto (como nos livros em que o desenho vem
complementar, como se ele seguisse apenas um caminho mais curto, o que as
palavras estão encarregadas de representar). É verdade, só muito raramente essa
subordinação permanece estável: pois acontece ao texto de o livro ser apenas
um comentário da imagem, e o percurso sucessivo, pelas palavras, de suas
formas simultâneas; e acontece ao quadro ser dominado por um texto, do qual
ele efetua, plasticamente todas as significações. Mas pouco importa o sentido
da subordinação ou a maneira pela qual ela se prolonga, multiplica e inverte: o
essencial é que o sino verbal e a representação visual não são jamais dados de
uma só vez. (FOUCAULT, 1988: 39-40)
A pintura moderna ao revisar esta disposição hierárquica
13
busca diluir as fronteiras
que separam tais regimes semióticos, traçando pontos de fusão e encontro. Entretanto (ante
este movimento de ruptura) é admissível afirmar que a brecha existente entre palavras e
13
Ao trazer para o mesmo plano imagens e signos o artista plástico Klee concebe a horizontalização destes
elementos. “Barcos, casas, gente, são ao mesmo tempo formas reconhecíveis e elementos da escrita. Estão
postos, avançam por caminhos ou canais que são também linhas para serem lidas. As árvores das florestas
desfilam sobre pautas musicais. E o olhar encontra, como se estivessem perdidas em meio às coisas, palavras que
lhe indicam o caminho a seguir, que lhe dão nome à paisagem que está sendo percorrida. E no ponto de junção
dessas figuras e desses signos, a flecha que retorna tão freqüentemente (a flecha, signo que traz consigo uma
semelhança de origem, como se fosse uma onomatopéia gráfica, e figura que formula uma ordem), a flecha
indica em que direção o barco está se deslocando, mostra que se trata de um sol se pondo, prescreve a direção
que o olhar deve seguir, ou antes a linha segundo a qual é preciso deslocar imaginariamente a figura aqui
colocada de um modo provisório e um pouco arbitrário”.(FOUCAULT, 1988: 40-41)
28
imagens foi absolutamente extinta? È possível conceber que a zona de silêncio entre o
“dizível” e o “visível” foi totalmente suplantada? Para Foucault a particularidade de cada
linguagem mostra-se nítida e neste sentido, os dois regimes, o da palavra, e o da pintura; não
se reduzem um ao outro.
(...) Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit
que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais
que se diga o que se vê, o que se não se aloja jamais no que se diz, e por
mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,
comparações, o lugar onde resplandecem não é aquele que os olhos
descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem (...) (Idem, 1981:
25)
Ciente dos limites da palavra frente às imagens, a incursão sobre as telas do pintor
Chico da Silva assume uma postura metodológica modesta de apreender nesta “(...)
linguagem nebulosa, anônima, sempre meticulosa e repetitiva, porque demasiado ampla (...)”
(Ibidem) que é a pintura, fragmentos de significação passíveis se não de “leitura”, pelo menos
de “descrição”. Descrição essa que parte da explanação dos aspectos formais, estilísticos,
conteudísticos da obra desse pintor (técnicas e meios utilizados, conteúdos das imagens ou
linguagens, influências estéticas ou não de obras criadas na mesma tradição ou similar),
mas que não perde de vista o horizonte de análise extra-pictórico (a relação do pintor e seu
trabalho com o campo artístico no qual ele se situa) inscrevendo-se, assim, em determinada
medida, na esteira das análises que ultrapassam a pura leitura icônica (aquelas que se atem à
dimensão propriamente plástica dos trabalhos) e se enveredam por caminhos mais complexos,
compreendendo as imagens em um contexto muito mais amplo, para além dos limites da
moldura (PANOFSKY, 1991: 52).
29
CAPÍTULO 2. DOS MUROS ÀS TELAS: A INSERÇÃO
PARTICULAR DE CHICO DA SILVA NO MEIO ARTÍSTICO
CEARENSE.
30
2.1. O ingresso peculiar.
A entrada de Chico da Silva no meio artístico cearense se deu de maneira um tanto
quanto particular. Diferente dos pintores de sua geração, tais como Antônio Bandeira
14
,
Aldemir Martins
15
, Barboza Leite
16
e outros, Chico da Silva não costumava freqüentar os
ateliês coletivos embriões da Associação Cearense de Belas Artes (CCBA) e Sociedade
Cearense de Artes Plásticas (SCAP) - que aglutinavam jovens e experientes artistas ávidos
por leituras, discussões e práticas em arte
17
; nem circulava entre intelectuais, literatos e
artistas plásticos que rotineiramente nos cafés e livrarias da cidade se encontravam para
refletir sobre as modernas concepções estéticas em movimento. Seu percurso parece fugir a
este roteiro comum, impresso recorrentemente nas trajetórias de seus contemporâneos.
Com Bandeira, por exemplo, a dinâmica de integração se estabeleceu a partir destes
núcleos de formação. Originário do meio estudantil, assim como Aldemir Martins, aos
14
Nascido no ano de 1922, Antônio Bandeira encontra nas primárias aulas de desenho de Dona Mundica sua
experiência inicial com a atividade artística. Espírito irrequieto e dinâmico, Bandeira juntamente com o grupo de
novos e veteranos artistas fundam em 1941 o Centro Cultural de Belas Artes, mais tarde chamado de Sociedade
Cearense de Artes Plásticas (SCAP). Por intermédio de Jean Pierre Chabloz, em 1945, viaja para o Rio participando
nesta cidade de diversas amostras e exposições. Ganha uma bolsa para Paris, onde estuda por cinco anos na École
Nationale Superieure des Beaux Arts. Entre idas e vindas ao exterior, passa por importantes centros artísticos como
Itália, Londres e Bruxelas. Morre em 1967, na cidade de Paris (ESTRIGAS, 2001).
15
“Pintor, desenhista e gravador, Aldemir Martins nasceu em Ingazeiras, Ceará, em 1922. Em 1947 transfere-se para
São Paulo. No ano de 1955, obteve o prêmio de ‘Melhor Desenhista nacional’. Em 1959, obteve o prêmio de ‘Viagem
ao Estrangeiro do salão nacional de Arte Moderna’. (...) Suas obras se encontram em museus e coleções no Brasil e
exterior” (GALVÃO, 2008:135).
16
“Desenhista, pintor e gravador, Barboza Leite nasceu em Uruoca, em 1920. Foi um dos fundadores da Sociedade
Cearense de Artes Plásticas. Estudou gravura com Henrique Oswaldo e Goeldi. Participou de diversas coletivas e
salões oficiais, obtendo premiação no III Salão de Abril (pequena medalha de ouro); IV Salão de Abril (2º Prêmio de
pintura); (...) Entre as suas individuais, destacam-se as do Museu Nacional de Belas Artes (1951), no Rio de Janeiro, e
a da Casa Raimundo Cela (1982) em Fortaleza. Foi premiado no Salão de Abril em 1946/47/48/49. Faleceu em
Campos, em 1996” (Ibidem: 136).
17
Ao narrar a formação da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), Mário Baratta, pintor e crítico carioca de
grande influência nas transformações do cenário local, elenca uma série de oficinas artísticas que funcionavam em
Fortaleza: “Um dia, nas conversas de oficina, lembrei que poderíamos nos organizar num grupo, numa sociedade e
assim realizarmos salões, exposições e outras atividades artísticas. A idéia foi bem acolhida e eu saí a correr oficina
por oficina convidando os artistas para uma sessão que iríamos realizar no Centro Estudantil Cearense. E eu
comecei a fazer minha procissão de passos. Primeiro, fui à oficina de F. Ávila ficava na então Travessa S. Paulo,
no quarteirão entre Senador e Gen. Sampaio, lado sul, quase no meio da quadra. De , além do Ávila, veio o
Raimundo Kampos (R. Kampos). Na Major Facundo, lado do sol, no quarteirão limitado pela Pedro Pereira e Pedro
I, estava a oficina do Delfino. Ele foi a reunião programada e levou Raimundo Garcia. Na Pedro Pereira, quase em
frente ao prédio do INPS, estava a oficina de Santos Dumont, que compareceu com o irmão que pintava paisagens de
uma ingenuidade imensa. Ainda na Pedro Pereira, pouco antes do cruzamento com a Senador Pompeu, do mesmo
lado, morava e trabalhava o Mestre Georgemir (George Miranda), que também atendeu ao nosso chamado. Da sala
técnica do Distrito das Secas (DNOCS) foram o índio Cordeiro, o F. Matos, que depois foi professor de desenho
no Colégio Militar, e o Jaime Silva. No prédio onde funciona a Prefeitura Municipal, estava o Clube Iracema, e
alugavam as lojas do andar térreo. Numa dessas lojas, achava-se instalado o atelier do Sr. Miranda Relvas, que se
dedicava unicamente à ampliação de retratos a pastel. Dos artistas que ali trabalhavam, lembro-me que, entre
outros, foram o Barrica, o Barboza Leite e o Expedito Branco (...) (ESTRIGAS, 2004: 112-113).
31
dezoito anos, Bandeira trava seu primeiro contato com o grupo de novos e já atuantes artistas
que se reunindo em torno destes espaços de trabalho produziam quase que auto -
didaticamente, em um ambiente animado por trocas de experiência e críticas mútuas. Sobre
este exercício relata Mário Baratta
18
.
Todos os trabalhos eram submetidos à crítica do conjunto e a ninguém cabia
magoar, pois a crítica era honesta e procurava apenas mostrar falhas, erros que
deveriam ser evitados. Era uma crítica construtiva. (...) Nunca o nosso grupo
mostrava ao público tudo que produzia, mas apenas aquilo que passava na
crítica, o que de melhor produzia. No atelier, havia aquilo que os franceses
chamam de entre-aide, que estimulava. (...) (ESTRIGAS, 2004: 30-31)
Mais que um lugar de vivência e prática, estas oficinas acabavam por viabilizar a
constituição de uma rede de relações entre os agentes participantes, onde, na ausência de
instituições formativas aos moldes de uma Academia de Belas Artes, a produção e difusão
dos trabalhos, mesmo que de forma limitada, tornava-se possível.
Ali, no dizer de Baratta, nascia-se artisticamente não somente em termos de
aprendizado técnico, mas, sobretudo de valoração. O reconhecimento dos pares, da crítica em
surgimento oriunda do meio literário - e do blico circulo estreito - que paulatinamente
tomava conhecimento daqueles trabalhos, favoreciam a constituição de um novo lugar social
para o artista e para sua obra
19
. E é neste processo que Bandeira desponta, alcançando
projeção local e internacional.
Pertencente a geração anterior, mas de atuação marcante na cada de 40, Raimundo
Cela
20
, assim como os artistas novatos, encontra nas atividades desta iniciativa informal uma
18
“Pintor, rio Baratta nasceu no Rio de Janeiro, em 1914. Premiado no Salão de Abril de1946, participou de
várias coletivas em Fortaleza e do salão paulista de 1943 e do III Salão de Abril, em 1946. Individualmente, expôs
na Galeria Ignez Fiúza, em Fortaleza. É citado no Dicionário de Artes Plásticas do Brasil, do Roberto Pontual. Foi
presidente da SCAP em 1946. Faleceu em Fortaleza, em 1983” (GALVÃO, 2008: 136).
19
Para Nathalie Heinich, a concepção da singularidade do artista e de sua obra fundamenta-se na aceitação e
reconhecimento de diferentes instâncias: “... on peut distinguer au moins quatre sous-ensemble d’observateurs et
juges de la peinture, enégalement nombreux et inégalement distant des artistes. Il y a tout d’abord les pairs
(collègues et concurrents à la fois), puis les critiques, ensuite les marchand et collectionneurs, et enfin le grand
public. Ce son d’autant plus restraints qu’ils sont proches de l’artiste les ‘quatre cercles de la
reconnaissance’” (1991: 16).
20
Nascido em 1890, na cidade de Sobral, Raimundo Cela apresenta-se como um dos mais importantes nomes da
pintura cearense. Formado pela Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, Cela já em suas primeiras
exposições de âmbito nacional ganha destaque, dado seu domínio técnico e grande capacidade de execução. Por
conta de um prêmio, passa seis anos na Europa, lugar onde vive e respira arte, em suas mais diversas manifestações
e dimensões temporais. Retornando ao Ceará, fixa-se em Camocim, cidade de onde partirá anos depois à Fortaleza.
Neste período, trava contato com Mário Baratta e imbrica-se ao movimento artístico no qual Fortaleza encontrava-
32
via privilegiada de (re) inserção e (re) integração ao circuito artístico cearense. Motivado por
Mário Baratta a romper com o estado de isolamento no qual vivia alguns anos, Cela, em
retorno à Fortaleza, aproxima-se deste grupo de tendências inovadoras, voltando a produzir
regularmente seus trabalhos em um novo atelier, agora localizado no foyer do Teatro José de
Alencar (ESTRIGAS, 1988b).
Sem abandonar o estilo de linha acadêmica enfatizado, principalmente, pelo esmero
na aplicabilidade técnica -, o pintor sobralense apóia e participa ativamente da fundação do
Centro Cultural de Belas Artes, em junho de 1941, e do I Salão de Abril, em 1943. Neste
estreitamento de relações, uma via de mão dupla se constitui. Seu prestígio incontestável,
afirmado pelo prêmio do Salão Nacional de Belas Artes em 1917 (premiação que lhe conferiu
uma bolsa de estudos na Europa), acresce e empresta legitimidade ao jovem grupo de artistas,
ao mesmo tempo em que, o trânsito neste meio, possibilita a Cela o estabelecimento de
contatos e, conseqüentemente, a formação de uma clientela expressiva.
Neste contexto, “Enquanto a arte e os seus artistas, em Fortaleza, agitavam-se, e
agitavam o ambiente, onde estava e o que fazia o meio índio Francisco Domingos da Silva?
Aquele que iria ocupar um lugar muito destacado, e também muito discutido, não em sua
pessoa como em sua arte, pelos meandros em que se meteu e pelas circunstâncias dos
acontecimentos” (ESTRIGAS, 1988a: 22).
Ao oeste da cidade, em uma localidade banhada pelas águas do Rio Ceará e do Oceano
Atlântico, Chico da Silva sobrevivia, alheio à efervescência artística e cultural vivenciada pela
capital naqueles anos intensos. Impulsionado por motivações, as quais esta discussão
sociológica não ousa abarcar, em meio a seus afazeres diversos, o jovem acreano encontrava
tempo para exteriorizar nas “paredes nuas” (LÉGER, 1989) das casas de pescadores, seu
universo próprio, permeado de animais e figuras estranhas. Se para os moradores da vila,
aquilo não passava de rabiscos sem sentido e beleza, para Jean Pierre Chabloz, crítico e pintor
suíço, tais desenhos expressavam originalidade e “admirável poder de evocação poética”
(CHABLOZ, 1993:149).
E é, destarte, a partir deste contato que a história individual de Chico da Silva cruza-se
com a história do campo artístico cearense. É a partir deste encontro casual, que a carreira
marginal do “pintor praiano” começa a ser inscrita na história da arte de âmbito local e
se mergulhada. Em 1945, transfere-se para o Rio de Janeiro onde ensina gravura em metal na Escola Nacional de
Belas Artes. Falece no ano de 1954, aos 64 zanos, em Niterói.
33
nacional. Desprovido de capital econômico, cultural e técnico, Silva encontra na mediação de
Chabloz seu único trunfo para o ingresso nesse micro espaço social, a qual ele e sua arte, não
por uma questão de escolha, mas por determinações históricas e sociais, são indiferentes.
Tendo este “crédito” inicial, o pintor, sem o saber, oferece ao campo artístico cearense
em vias de autonomização, a oportunidade de realizar algumas possibilidades que ali se
encontravam objetivamente inscritas (BOURDIEU, 1996a). Sua trajetória ilustra, em muito, a
ação dos condicionamentos sociais, da “constelação de fatos” (ELIAS, 1995), para o
surgimento e manifestação de um determinado talento individual.
Portanto, a entrada de Chico da Silva no meio artístico cearense não se fez meramente
pelas propriedades intrínsecas da obra deste pintor, nem pelo seu talento imanente, mas,
sobretudo, pelo contexto propício delineado inicialmente naquela configuração específica dos
anos 40 - momento de intensas reavaliações e rupturas estéticas. Ora, é no seio destas
transformações que emergem e engendram o processo de constituição do campo artístico que
a manifestação expressiva particular de Chico da Silva se revela e se firma.
2.2. Seguindo o rastro biográfico
Francisco Domingos da Silva nasceu no Alto do Tejo, cidade do Acre, em uma das
prováveis datas de 1910, 1916 e 1922. Filho de Minervina Félis de Lima cearense fugida da
seca que busca sobrevivência no eldorado amazônico e Francisco Domingos da Silva
índio peruano de provável origem Kampa, Chico da Silva passa seus primeiros anos de vida
habitando a divisa entre o Brasil e o Peru, região de caudalosos rios e densa vegetação
(CHABLOZ, 1993; ESTRIGAS, 1988a; GALVÃO, 2000; 1986).
Tal dado biográfico assumirá significância interpretativa primordial na obra do pintor,
que o repertório imagético plasmado nas composições de Chico mostra-se diretamente
imbricado aos temas da natureza. Neste sentido, a crítica, de uma forma geral, estabelece a
ligação, ou por assim dizer – a fusão -, entre estas duas dimensões, vida e obra
21
, colocando a
21
Sem dúvida, a origem de Chico da Silva é apresentada por críticos e biógrafos como a mola central, o fio
condutor, que empresta sentido a toda sua obra. À exemplo disso, eis alguns dos inúmeros comentários que
abordam o trabalho do pintor sob esta ótica “... Tendo vivido o prólogo da existência dentro da floresta
amazônica, esmagado ou impresso por ela, como todas as crianças que ali se criam, trouxe no inconsciente uma
estamparia de visões, de cores, de pletora vegetal, de gritos luminosos, de fantasmas, de riquíssima e
assombrada fauna” João Jaques F. Lopes (GALVÃO, 1986: 82); “Mantém aquelas visões e figuras procedentes
34
última como manifestação e extensão da primeira
22
. Muito embora, o próprio Chico da Silva,
contradizendo críticos e biográficos, nega esta conexão imediata entre reminiscências de
infância e universo pictórico-temático:
Esses mundos que eu pinto não são recordações de quando eu era menino, não,
isso se chama imaginação, ciências ocultas, astronomia... quando eu era
pequeno, não via nada disso, vivia nos rios, de cima pra baixo, com meu pai
(GALVÃO, 1986:57).
Ainda criança, relatos não comprovados apontam a possibilidade de Chico da Silva ter
convivido entre missionários que se fixaram na localidade onde sua família habitava.
Especula-se que justamente neste período de formação educacional, tenha aprendido técnicas
iniciais de desenho
23
, fato que propiciou o desenvolvimento da sua habilidade com o traço
distante do ideal pelos moldes acadêmicos – mas de propriedades inegáveis: firmeza e
continuidade (ESTRIGAS, 1988a).
por volta dos seis anos de idade, é trazido para a terra natal de sua mãe, onde reside
inicialmente no sertão de Quixadá
24
. A família do futuro pintor primitivista acredita que o
berço de dona Minervina, nesse novo contexto, possa proporcionar condições de vida mais
favoráveis e cômodas que a do Norte. Porém, fatalmente, nesta localidade, transcorre um dos
da fabulação popular amazônica, alteradas por prodigiosa imaginação. É o interprete de uma mitologia diluída
na tradição oral de uma região imensa que somente ele fixou e refletiu... Clarival de Prado Valadares (Ibidem:
83) ; “Chico sensibiliza o suporte do quadro e trata aquela fauna e flora amazônica com uma originalidade e
uma força intuitiva impressionante. Esse é um grande pintor primitivo” José Geraldo Vieira (Ibidem: 89)
22
De certo modo, poder-se-ia remeter esta articulação entre vida e obra, àquilo que Pierre Bourdieu discute em
seu ensaio L’illusion biographique”. A vida, tomada como “... um todo, um conjunto coerente e orientado, que
pode e deve ser apreendida como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva...” (1986, p.30),
apresenta-se, portanto, dotada de um sentido único, ou no dizer sartriano, de um “projeto original”. Tudo se
encaminha para um fim – de forma contínua e unidimensional – para um ápice: a criação da obra de arte, sentido
e síntese de toda a trajetória. Realizando-se a dupla resignificação, o artista converte sua própria existência em
obra de arte (BOURDIEU, 1996) ao mesmo tempo em que concebe esta produção como expressão máxima da
sua história.
23
Na
matéria publicada no jornal do Brasil (RJ), em agosto de 1969, Chabloz aponta indícios que embasam, de
certa forma, este dado: “Segundo me dissera, ainda, desde pequenino, o “Pintor da Praia” tinha experimentado,
para com o desenho, uma verdadeira paixão, o coração e o espírito saturados de inesquecíveis visões,
armazenadas no decorrer de sua primeira infância, gostava de exteriorizar aquelas visões, agora, com os
pequeninos meios que lhe se ofereciam: muros humildes, alguns pedaços de carvão de lenha e de giz e, para as
“tintas”, fragmentos de barro queimado, frutas e folhas, com as quais ele conseguia, com grande habilidade,
extraordinários efeitos cromáticos- como ele mesmo me revelara, mais tarde, através de uma pequena
demonstração convincente, na Praia Formosa.
24
Algumas biografias dão conta de uma possível passagem de Chico da Silva pelo Recife antes de chegar ao
Ceará. (CHABLOZ, 1952; GALVÃO, 1986; 2000) Outras, como a do memorialista e historiador Estrigas
(1988), registram a transferência direta do Acre para a cidade de Quixadá. Sem dúvida, a ausência de
documentações precisas sobre a vida do pintor ocasiona este desencontro de informações entre um relato e outro.
35
trágicos acontecimentos da história de Francisco. Seu pai, Domingos da Silva, veio a falecer
em conseqüência de uma mordida de cascavel (ibidem).
Após o evento, Chico permanece por mais seis anos com a mãe nesta cidade até que se
mudam novamente. Desta vez, para a região serrana do Ceará, Guaramiranga – terra de
“dramas” e flores - onde passará a adolescência e o início de juventude trabalhando nos
bananeirais e cafezais do sítio Uruguaiana, propriedade de Maria Libânia Holanda.
(GALVÃO, 2000).
Em meados dos anos 30, Fortaleza ganha nova feição, ares de “modernidade”, A
dinâmica do “progresso” varre em ritmo acelerado os vestígios de outra época, reanimada e
revivida somente pelas saudosas lembranças de cronistas e memorialistas. Assiste-se,
portanto, neste período, transformações em curso nos mais diversos setores e âmbitos da
cidade. Como bem explicita Nogueira:
(...) Pode-se dizer que o período se constitui em marco na história da cidade,
uma vez que ocorreram modificações de relevo, em sua fisionomia: a
substituição da iluminação pública a gás por um sistema elétrico, em 1934; a
inauguração do Excelsior Hotel, em 1931, arranha-céu com impressionantes sete
andares edificados vale salientar, sobre as ruínas do sobrado Comendador
Machado, demolido em 1927 (construção que datava de 1825 e guardava a
marca de ser a primeira a ostentar três pavimentos, na vila recém elevada à
cidade); por fim, a pavimentação das ruas com paralelepípedos e, nas vias mais
movimentadas, a concreto, uma reforma empreendida pelo intervalo municipal
Raimundo Girão, em 1933 (2002: 22-23)
Porém, concomitantemente às inovações, sérios problemas vão surgindo.
Urbanisticamente, a cidade cresce de forma desordenada
25
, fora dos planejamentos estatais,
originando, assim, os primeiros aglomerados habitacionais caracterizados de favelas
(PONTE: 1999).
25
Tal descompasso deve-se, em muito, ao intenso deslocamento das massas interioranas para os centros urbanos
em decorrência dos períodos de estiagem. Como aponta Silva (1992 apud COSTA, 1999: 12) “a origem do
processo de favelização de Fortaleza está ligada aos constantes deslocamentos de lavradores sem terra e
pequenos proprietários que se dirigem para a cidade devido à rigidez da estrutura fundiária, que praticamente
impede o acesso desses lavradores à terra e os outros meios de produção. Nos períodos de estiagem mais
prolongadas este processo se intensifica. A cidade, à medida que oferece melhores condições e dispõe de
empregos industriais ou outros, reforça, até certo ponto, esses deslocamentos. Embora este processo tenha
começado no final do século passado, é a partir deste que se instalam na cidade as indústrias, ligadas ao
beneficiamento de produtos agrícolas. A maior dinamização deste setor provoca o surgimento de novas
oportunidades de emprego, o que inicia o constante fluxo de deslocamento para a capital”.
36
E, destarte, em meio a estas mudanças materiais e culturais
26
que chegam à capital
cearense o jovem Francisco da Silva e dona Minervina, movidos, mais uma vez, pelo anseio
de dias melhores. E com este quadro, marcado por reconfigurações urbanas, estéticas,
econômicas e sociais, que o futuro pintor e sua mãe se deparam.
Na favela do Pirambu, localizada na zona oeste da cidade, a família se instala.
Compartilhando do destino de muitos que fizeram sua morada, os dois encontram nesta
localidade uma situação bem característica, ocasionada pelo modelo concentrador e
fundamentalmente urbano que se configurou na década de 30 e 40 em todo o Brasil.
Amontoados populacionais advindos do interior, expulsos de suas terras pelo alastre da seca,
improvisavam formas de sobrevivência na capital alojando-se em lugares desprestigiados e
marginalizados pelas classes mais abastas. Em Fortaleza, a zona oeste – e conseqüentemente o
Pirambu - mostra-se como este lócus depositário para onde tudo que representa ameaça ao
padrão higienizador e disciplinador trazido pelos ideais da Belle Époque é lançado.
(...) Pode-se imaginar a cidade de Fortaleza como um grande tapete com um
lado visível, exposto e de acesso fácil. No lado menos visível, onde tudo não
deveria ser visto, que oferecia risco social ou sanitário era “varrido para debaixo
do tapete”; leprosário, lazaretos, indústrias e seus poluentes (com a ação dos
ventos, que sopravam do Leste para o Oeste, projetariam para longe
contaminações e resíduos industriais).
Aos poucos, a concentração demográfica de Fortaleza vai se localizando na
Zona Oeste, ocupada em sua maioria pela sua massa trabalhadora (COSTA,
1999: 11)
Contudo, em meio a este contexto socioeconômico problemático no qual o Pirambu
encontrava-se circunscrito, as belezas e encantos da paisagem semi tocada, oferecidas por
aquela região na década de 30, apresentavam-se como um caso a parte. Lagoas, dunas
brancas e coqueiros compunham a imagem de um paraíso virgem ainda por ser desbravado;
matéria- prima pictórica e conceitual esta, de inigualável valor para a arte em suas mais
diversas vias expressivas.
26
Registros da época apontam transformações significativas na esfera cultural: modos e hábitos são,
paulatinamente, esquecidos, outros incorporados. “Fortaleza (...) vae perdendo aos poucos os seus velhos
hábitos patriarchaes. De Matuta acanhada e arisca, como araponga no collo virginal dos morros sertões,
transformou-se na melindrosa, na “flapper” dos yankees, recebendo com derriço e faceirice encantadora, o
osculo da civilisação com todos os seus artifícios e atrações magnéticas. Tenham a palavra, aquelles que se
acham do melancólico outomno da existência, esto é, na phase do desfolha dos lyrios’. Comparem elles a
Fortaleza dos bondecos de burros e do phonografo com a actual Fortaleza dos arranhas-céos, dos golfinhos e
das lindas, avenidas que são artérias escancaradas ao immenso formigueiro humano. A diferença é apenas
estupenda” (A RAZÃO, 1931 apud NOGUEIRA, 2002:79).
37
Antes, uma extensa faixa de terra de areias brancas, de onde se podia avistar a
belíssima visão do mar. À hora do nascer do sol, nas bandas do Mucuripe,
cedinho da manhã, tão cedo quanto o acordar dos jangadeiros que logo se
punham a empurrar suas pequenas embarcações de timbaúba para dentro do
mar. Jangadas de velas que corriam velozes sobre as ondas e retornavam quando
o sol, lentamente, punha-se. Gerardo Damasceno – escritor e ficcionista do
Pirambu (apud Ibidem: 14).
Portanto, é frente a este cenário plural, caracterizado pela ausência de recursos
estruturais básicos e pela presença de um panorama natural privilegiado
27
que Chico da Silva
se encontra. Como tantos outros que ali residiam, o jovem acreano batalha em prol do pão de
cada dia. Forjando artimanhas de sobrevivência, Silva desenvolve uma série de pequenos
trabalhos informais, cuja listagem - longa e diversificada – ele mesmo tece:
Já fiz muita coisa na vida...fui sapateiro, sei consertar sapato-tanque ou polar, fui
tamanqueiro, mestre de oxigênio a carbureto, guarda de barco, escafandrista de
tirar coisas do fundo do mar, consertador de guarda-chuva, um pouco barbeiro,
ajudante de marinheiro... (apud GALVÃO, 1986:70)
Assim, entre um ofício e outro, furtivamente, em passagem pela vila de casas da Praia
Formosa, Chico da Silva rabisca os muros recém caiados com materiais o tanto quanto
inusitados. “... Apanhou cacos de telha e pedaços de tijolo vermelho, para o rubro e
sangüíneo. Folhas de bocado de mato, para cores embalsamadas de escuridão e da tristeza.
Caon mortuário, para o preto e o cinza” (GALVÃO, 2000: 20). A solução final destes
experimentos intuitivos, como no dizer dele, “Fazia bem à vista”. Ao traço das longas linhas
precisas e “elegantes” nasciam animais fabulosos, que em contorno se aproximavam da
representação de pássaros, peixes, cobras e bichos-preguiça, aparentemente originários de um
mundo arcaico e surreal.
27
Sem interligar de forma simplista e direta as figuras misteriosas trazidas em suas composições aos elementos
imagéticos que o rodeava naquele período, não seria exagero afirmar que tal experiência estética evocada pelo
quadro paisagístico litorâneo, contemplado pela imensidão do oceano atlântico, tenha repercutido, não de forma
puramente reflexiva, mas condicionante, no substrato final de sua obra. Como bem destaca Estrigas (1988a: 19):
“Entre a natureza oceânica e a vida em comunidade ele desenvolvia suas experiências e atividades. Na
comunidade, buscava ganhar algum dinheiro e, frente ao mar, satisfazia o instinto selvagem livre percorrendo
as praias, mais no sentido centro da cidade, indo do Pirambu à Praia do Poço da Draga que também se
chamava Praia Formosa e, ainda, Praia do Gasômetro, que ficava, fica, bem perto da descida do Passeio
Público e hoje é ladeada pela avenida Leste-Oeste”.
38
Figura 1. Chico da Silva executando seus trabalhos muralistas (MAUC).
Tais composições chamavam atenção de quem passava por ali, atenção inclusive do
pintor e crítico suíço Pierre Chabloz que em um final de tarde do ano de 1943, -assim ele
conta - ao caminhar por aquela vila, vê-se diante daqueles “etranges dessins”.
2.3. A “descoberta” de um talento
Num lindo fim de tarde, nessa hora gloriosa em que a platina fascinante da
luminosidade cearense cede lugar ao mais suntuoso ouro vermelho, eu passeava ao
longo da praia quando, de repente, minha atenção foi atraída por estranhos
desenhos que enfeitavam algumas casinhas de pescadores. Intrigado, aproximei-me
para ver aquilo mais de perto.
Amplamente esboçado a carvão ou giz, havia grandes pássaros de linhas elegantes,
peixes um tanto monstruosos, estranhas aparições de navios-fantasmas. O que me
chamou a atenção e me seduziu logo nesses desenhos elementares foi sua
originalidade, seu estilo nitidamente arcaico e seu admirável poder de evocação
poética. Entusiasmado, procurei saber quem era o autor dessas composições murais.
“É um cara meio louco”, responderam. “É um caboclo que veio não se sabe de
onde, se diverte rabiscando os muros e desaparece, sem deixar o endereço”
(CHABLOZ, 1993: 149-150).
“Começa pelo fato de que jamais perdi o contato com minhas origens. Me gabo
disso. Retorno sempre ao Ceará, aos seus bonecos de pano, suas figuras de carvão
na parede, seus bichos no tijolo da calçada, no muro do Náutico da praia
Formosa, os navios sumários e poderosos nas fachadas das bodegas de cachaça do
39
Pirambu
28
. Volto aos vaqueiros “assinando” o gado, às louceiras fazendo formas
de panela, bules, jarras e cacos de torrar café. É tudo isto que eu carrego comigo no
meu desenho” (MARTINS apud GALVÃO, 2008: 154).
“Estava riscando bichos numa parede da praia quando de entre os curiosos que
cercavam saiu um estrangeiro alto que lhe dirigiu perguntas sobre a sua vida,
descendência, trabalho. Mandou a pequena multidão afastar-se, retirou o próprio
Francisco da frente do muro riscado e bateu várias fotografias dos desenhos.
Apresentou-se: - Jean-Pierre Chabloz. Ficou com o endereço do artista. Prometeu
novos contatos. Procurou-o de fato” (TEMÓTEO apud ESTRIGAS, 1988a: 25).
“Passeava ele (Chabloz), certa vez, pelas ruas sujas e obscuras do Pirambu quando
a atenção despertada por uns bichos inusitados, pintados a carvão (sic) em muros e
paredes de casebres. Eram dragões, peixes voadores, sereias, - enfim todo um
mundo de figuras fantásticas e ameaçadoras. Chabloz quis saber quem era o autor
daqueles estranhos desenhos e obteve a seguinte resposta: - ‘É um indiozinho que
aparece por aqui todos os dias. Ele rabisca e vai embora’. A notícia de que havia um
estrangeiro alto, de olhos azuis e jeito bom, interessado pelos ‘rabiscos’ do Chico da
Silva, correu, célere, por todo o bairro. (...)” (CHABLOZ, 1969: 5).
A descoberta dos trabalhos de Chico da Silva apresenta-se como um dos episódios mais
obscuros de sua biografia. Afinal, quem primeiramente se deparou com seus rabiscos nos
muros, “Chabloz” ou “Aldemir e Bandeira”? Onde, realmente, o encontro se deu “Pirambu”
ou “Praia Formosa”? Os escassos registros que nos chegam sobre este acontecimento - artigo
escrito por Jean-Pierre Chabloz ao Cahier D’Art, depoimentos do artista Aldemir Martins,
matérias publicadas em jornais locais -, longe de oferecerem uma versão unívoca para o fato,
divergem entre si, envolvendo de imprecisão e dúvida mais um capítulo da vida do artista.
Porém, em meio a estes desencontros de informações e disputas simbólicas pelos louros do
achado, um aspecto interessante encontra-se colocado no cerne destas diferentes narrativas, a
afirmação e reconhecimento do “dom” artístico pela circunstâncialidade casual da
“descoberta”.
28
Grifo da autora.
40
A temática da descoberta fortuita de um talento aparece ao longo da história da arte de
maneira recorrente. São inúmeros os relatos que trazem como elemento central esta situação
específica. Um dos mais conhecidos e, apontado como precursor desta vasta literatura
existente, é o conto popular sobre Giotto, jovem pastor de ovelhas, que ao desenhar figuras de
animais nas pedras e na areia é encontrado acidentalmente por Cimabue, pintor renomado da
região de Toscana. Este, percebendo naqueles trabalhos improvisados as potencialidades do
jovem camponês, leva-o consigo, encarregando-se pessoalmente da instrução e formação
artística daquele que viria a ser um dos maiores pintores italianos (KRIZ; KURZ, 1988).
Derivadas desta narrativa, muitas outras versões se constituíram, algumas respeitando
fielmente os seus elementos básicos: 1) O “descobridor” torna-se mentor do “descoberto”; 2)
Um encontro ocasional inicio a essa associação; 3) A partir deste evento acidental a vida
do “descoberto” transforma-se subitamente, outras, apresentando pouquíssimas alterações.
Segundo Vasari (5:12), que aparentemente se baseia na tradição oral de Siena,
Beccafumi foi levado a exercer a sua profissão exactamente da mesma maneira
que Giotto. Filho de um camponês chamado Meccarino, guardava as ovelhas do
pai e desenhava-as na areia; foi então descoberto por um nobre de Siena, que
garantiu a sua educação e o tratou como filho, e finalmente faz dele herdeiro do
seu título. Vasari (4:510; 2: 668) dá-nos relatos idênticos dos primeiros anos e
da descoberta tanto de Andréa Sansovino como de Andréa del Castagno (Frey,
1982, 20). Esta história da descoberta de um pastor talentoso encontrado a fazer
esboços foi mais tarde adoptada tanto para Zurbarán como para Goya, apesar de
existirem mais duas versões alternativas da descoberta lendária do último
(Keher, 1918, 20; n.d, 5: Loga, 1903,4). (...)
A fórmula biográfica em si, depressa se tornou popular, apesar de uma ou outra
passagem pode ser omitida. Assim, por exemplo, Bernardo Pocetti foi
descoberto por Ridolfo Ghirlandaio quando, aos seis anos de idade, desenhava
figuras na parede de uma igreja (Baldinucci, 3:134). Ou, para citar um derivado
remoto, o pintor japonês Maruyama Okyo foi descoberto por um samurai que
passava, depois de pintar um pinheiro num saco de papel da aldeia (Kümel in
Thieme – Becker, 6:586)... (KRIZ; KURZ, 1988: 35-36).
Invariavelmente, o que se torna nítido no arranjo similar destas histórias é a ênfase do
“acaso” como atributo demarcador de uma espécie de predestinação, de eleição divina. A
força do destino que rege e aproxima circunstancialmente duas trajetórias, cujas afinidades
logo se manifestam, prevê, neste sentido, o futuro de glória desde sempre resguardado ao
selecionado. As condições eventuais que forjam o inesperado encontro realçam, nestes
termos, a qualidade sobrenatural e fantástica da escolha, assentando, desta maneira, suas
raízes clássicas no leito de uma longa tradição mitológica, ricamente permeada destes
41
incidentes e fortuitos, desencadeadores de reviravoltas drásticas no curso da vida não de
jovens heróis, como também de deuses e semideuses. (Ibidem)
Sublinhada nesta fórmula biográfica da descoberta casual de um talento, encontra-se,
sobretudo, as acepções românticas de “dom” e “genialidade”, intrinsecamente manifestas pela
caracterização livre, espontânea e original do trabalho artístico. Nestes testemunhos, inclusive
o que destaca Chico da Silva, a habilidade do artista é apreendida como algo inato, congênito
e neste sentido imanente a uma dádiva divina. Nota-se, sob esta perspectiva, que aquilo que
parece inexplicável e incompreensível a gica racional - o desenvolvimento de aptidões sem
nenhuma intervenção técnica ou formativa - encontra suas elucidações no plano do místico e
do religioso, fato que reveste de caráter mágico tanto o objeto artístico como o seu executor. É
a própria idéia do “criador incriado” (BOURDIEU, 1996a), digno de culto e veneração, que
se forja nos meandros desta interpretação. Envolto em uma auréola sacralizaste e distintiva o
produtor artístico se apresenta, partilhando atributos e propriedades tipicamente conferidas a
deuses e santos.
Compreende-se, portanto, no interior destas elaborações biográficas sobre Chico da
Silva os efeitos simbólicos levantados pela presença deste tema típico: a descoberta casual de
um fenômeno. O talento latente do “pintor praiano” explicitado pelo poder de atração de suas
obras murais sob artistas e críticos não importa aqui a ordem da tomada de conhecimento-
nas diferentes tramas se faz nítida, assegurando, em certo ponto, a denominação irrefutável de
sua grandeza artística. Assim, “todos os acontecimentos casuais que levam à sua descoberta, e
daí à sua brilhante ascensão, aparecem nas apresentações biográficas como conseqüências
inevitáveis de seu gênio” (KRIZ; KURZ, 1988: 43).
Na ampla literatura biográfica da arte dita “primitiva”, casos semelhantes ao de Chico
da Silva evocam este desdobramento fatal: o artista é descoberto em conseqüência de seu
talento irrefutável. Com Cardosinho (1861-1947), precursor da arte naif no Brasil na década
de 30, por exemplo, os fatos se desenrolam neste sentido. Descoberto por Portinari e pelo
pintor nipo-francês Foujita, o artista português radicado no Rio de Janeiro, que produzia
descompromissadamente em suas horas de ócio gozadas na aposentadoria, passava a integrar,
apoiado por seus “mentores”, grandes exposições como “Pintores Modernos Brasileiros”, em
Londres (1944), mostra de artistas brasileiros de Arte moderna em Nova Yorque (1944),
coletiva Pan American Union em Washington (1960) e outras, alcançando em um curto
espaço de tempo larga projeção nacional e internacional.
42
De enredo similar, a trajetória de José Antônio da Silva também aborda o mesmo
assunto. Porteiro de um hotel na cidade de São Paulo, Antônio Silva (1909) que nas ocasiões
vagas pintava autodidaticamente, é encontrado, no ano de 1943, pelos renomados críticos
Paulo Mendes de Almeida e Lourival Gomes Machado. A partir desta relação, o pintor de
temática preponderantemente paisagística e ruralista, aproxima-se do círculo artístico e
cultural paulista, figurando exposições individuais e coletivas, onde obtém prestígio tanto de
seus pares como do público cultivado.
Sob estas mesmas condições temos nacionalmente: Pedro Paulo Leal (1935-1967)
descoberto na década de 30 pelo marchand Jean Boghici; Ivonaldo (1993) encontrado por
Jacques Ardies; Maria Auxiliadora (1935-1974), doméstica descoberta pelo cônsul norte
americano Werner Arnhold; Waldomiro de Deus (1944), achado e incentivado inicialmente
por Américo Pellegrini Filho; Agostinho Batista de Freitas (1927) descoberto pelo professor
Pietro Maria Bardi; João Alves (1906) achado do fotógrafo francês Pierre Verger; Júlio
Martins da Silva (1993) encontrado em 1967 pela pesquisadora Lélia Coelho Frota; Miranda
descoberta de Lucien Finkestein, fundador do Museu Internacional de Arte Naif (MIAN) no
Rio de Janeiro e tantos outros, cujo levantamento completo demandaria trabalho infindável.
Contudo, o que se encontra velado por trás desta concepção romântica da existência de
um talento “desde sempre ali”, “latentemente manifesto e evidente”, é conjunto de princípios
e postulados artísticos, instituído socialmente, que define o que é e o que não é arte. Neste
sentido, a recorrência da temática da descoberta nas trajetórias dos artistas naifs mostra um
novo olhar lançado sobre estas práticas artísticas até certo tempo consideradas amadoras,
marginais e forasteiras. As rupturas estéticas ensejadas pelo modernismo de 20, no Brasil, ao
abrirem caminho para outros padrões estilísticos e formais que não os acadêmicos,
reestruturaram e redefiniram as fronteiras da dita arte legitima e oficial, incluindo, neste
movimento, tais manifestações isoladas, alheias à própria tradição da história da arte.
Sob esta perspectiva, o encontro entre marchands, críticos, artistas consagrados e estes
classificados “pintores de domingo” incide não pelos atrativos intrínsecos e essenciais destas
composições plásticas de natureza disforme e antiacadêmicas, mas, principalmente, pela
disposição de um novo olhar, voltado para a liberdade de criação e para o desprezo das
convenções limitantes, historicamente forjado em uma configuração especifica. Fenômeno
este que será visto mais de perto no caso específico de Chico da Silva.
43
2.4. Efeitos do encontro com Chabloz
O primeiro contato com Chico da Silva exigiu bastante paciência e persistência de Jean
Pierre Chabloz. O fato de os moradores da Praia Formosa não terem nenhum conhecimento a
respeito daquele homem que rabiscava os muros e saía sem abandonar rastro, tornava o
trabalho de busca ainda mais difícil. Ao deixar seu endereço com alguns residentes daquela
vila, Chabloz tem a esperança que o autor muralista o procure. Porém, o medo de ser
repreendido faz com que Chico resista ir ao seu encontro por algum tempo, até que, qualquer
mês mais tarde, o dito “meio-louco”, enfim, bate a sua porta.
Apresentando-se de maneira simples e direta - Eu sou Francisco da Silva o pintor da
praia” - o jovem artista causa boa impressão ao crítico estrangeiro.
Vestido com uma camiseta clara e uma calça de algodão, a cabeça coberta por
um chapeuzinho de palha engraçado, redondo, Silva me agradou logo pela
franqueza de sua atitude e inteligência viva irradiada em seu rosto, um
verdadeiro rosto de índio, de uma quente tonalidade púrpura escura. Ele devia
ter, então, entre 20 e 25 anos, a julgar pela sua aparência, e segundo algumas
informações que ele próprio me forneceu. Informações muito imprecisas, é
verdade, e sujeitas à cautela, pois, em matéria de idade, é impossível qualquer
precisão com relação a esses felizes “pássaros errantes” que, na maioria das
vezes, não tem nem mesmo registro civil. E nada perderam com isso
(CHABLOZ, 1993:150).
A partir deste contato inicial,
mudanças profundas se operaram nos
modos de fazer do pintor. A primeira
delas, a transposição dos muros às telas,
demandou uma série de conversões e
redimensionamento plásticos, que
influenciaram diretamente na composição
e feitura final da obra. Isto se deve ao
caráter constitutivo assumido por tais
suportes papel, telas, muros e outros
dentro deste movimento de criação e execução. As marcas e impressões destes elementos se
não determinam a “natureza” do produto final, as condicionam, caracterizando, assim, a
realização da obra de arte como resultante desta tensa interlocução entre as intenções do
Figura 2. Chico da Silva perfomatizando a “descoberta”
(MAUC).
44
artista e as possibilidades, múltiplas e complexas, oferecidas em potência pelos materiais
artísticos (PAREYSON, 1991)
Faz-se necessário, portanto, atentar para esta passagem no percurso plástico de Chico da
Silva, do “momento da parede”
29
momento este de construção da linguagem, de elaboração
dos principais temas explorados ao longo de sua carreira – para as telas, compreendendo quais
particularidades a arte muralista guarda, com relação à pintura de cavalete.
Possuindo umas das histórias mais longas dentro das artes plásticas, este tipo de
manifestação pictórica cuja origem, para muitos historiadores da arte, remonta aos afrescos
egípcios e à própria arte rupestre, encontra diferenciações, em termos de linguagem, dimensão
e conceito, que demarcam a sua especificidade em meio às outras formas de expressão visual.
Caracterizada primordialmente pela utilização da superfície de paredes como suporte,
projeções em alta escala e execução em espaços públicos, a arte muralista na
contemporaneidade ganha lugar especial, dada a sua feliz inserção nos contextos urbanísticos,
por facilmente se vincular à arquitetura da cidade e viabilizar um novo discurso artístico,
pautado nos conceitos de democracia e coletividade (CANCLINI, n.d).
Tal dimensão crítica cultivada e explorada de forma mais visível pelos países latinos
como o México e o Chile, assumiam nessas configurações particulares significações amplas,
que contemplavam e ultrapassavam a esfera estética. O muralismo mexicano, por exemplo,
trazia em sua proposta de “arte monumental” a crítica incisiva à pintura de cavalete e ao
individualismo criador, ao mesmo tempo em que sugeria a urgente conversão do povo em
público fruidor. Já no Chile, assiste-se a uma produção muralista de caráter politicamente
engajado, feita mais por militantes que artistas, orientada, sobretudo, para difundir a
candidatura Allende e a do programa da Unidade Popular (Ibidem).
Reconhece-se, portanto, neste conjunto de oposições, construídas e resignificadas ao
longo da história: suporte (muro/tela), espaço (público/ atelier) e regime de produção
(individual/coletiva), fronteiras bem delineadas que se colocam entre dois modos de pintura
artística: a mural e a de cavalete. Neste sentido, sem entrar no rito de uma discussão
avaliativa em que se questionariam as perdas e ganhos ocasionados neste movimento de
transposição por quais passa as obras do pintor, destaca-se a existência de significantes
29
Expressão utilizada pelo professor e atual diretor do Museu da Universidade Federal do Ceará (MAUC), Pedro
Eymar ao se referir a este estágio da arte de Chico da Silva, cuja produção, lamentavelmente, foi perdida.
(Entrevista, 16/03/09).
45
adaptações. Adaptações estas, em certo sentido necessárias, ao se reportar a nova realidade
posta pelo mercado de bens artístico. Nas palavras de Léger:
Um quadro moderno é um objeto válido em si, absolutamente independente do
meio em que foi criado. Um quadro feito em Paris orna uma parede de Tóquio.
Amanhã, se vendido e partirá, talvez para Lisboa. Essa arte moderna é em
essência especulativa e viajante (1989: 112)
Neste sentido, a questão da
portabilidade, exigência do próprio
processo de inserção e consagração
do artista no meio encontra-se
manifesta nesta passagem de
suporte. Despregar a arte de Chico
da Silva dos muros e instituir-lhe
qualidade móvel permitiu que seus
trabalhos pudessem ser vistos e reconhecidos em lugares distantes como Genebra (1959),
Lausanne (1950), Lisboa (1952) e tantos outros. Suas obras viajaram por localidades, onde
jamais o artista imaginaria. Muito embora, é válido destacar, que em meio a estas
reivindicações práticas, a dita vocação muralista”
30
do pintor não foi totalmente
negligenciada, nem mesmo por Chabloz.
Quanto mais penso nisso, mais me parece que somente a pintura mural poderia
valorizar ao máximo os dons excepcionais de Francisco Silva. Mural foi o ponto
de partida de sua livre expressão artística. Mural deveria ser, a meu entender, o
resultado lógico. É mais que provável que delicadamente iniciado nos segredos
da alta técnica do afresco, o Pintor da Praia, posto ao da parede, mostraria
então todo o seu talento (CHABLOZ, 1993:155).
Requisição intrínseca à transposição de suporte, o uso de instrumentos adequados” à
pintura de cavalete também são colocados à mão de Silva, são estes: lápis, nanquim, guache,
pastel, folhas de bistrol e pincéis. A expectativa de Chabloz é que uma amostra “superior” aos
“ensaios” murais possa ser produzida nestas novas experimentações. A primeira – duas
30
Vocação exaltada pelo ex-ministro da Cultura do governo do general de Gaulle, André Malraux. Este sabendo
dos trabalhos iniciais do artista enfatiza: “Faço votos calorosos, para que lhe sejam confiados muros!”.
Figura 3. Pintando em tela (MAUC).
46
composições a pastel e uma a nanquim e lápis de cor - não oferece um resultado de todo bom
para o crítico, mas um em especial lhe chama atenção.
O assunto escolhido por Silva era dos mais simples: um pássaro fêmea e
quatro filhotes. Mas a composição (os filhotes, apresentados de perfil, dispostos
como raios em torno da mãe), a expressão selvagem dos olhos, a sobriedade do
colorido, o efeito altamente decorativo do conjunto, tudo contribuía para fazer
dessa criação espontânea uma pequena obra-prima de arte primitiva que se
tornou o ponto de partida de uma maravilhosa coleção de “Silvas”, constituída
lentamente ao longo de minhas duas temporadas cearenses, por sucessivas
“entregas de encomendas” do Pintor da praia (Ibidem).
Incentivado materialmente e financeiramente, o artista aventura-se e entrega-se
totalmente ao mundo dos guaches buscando atender a expectativa do estrangeiro, seu único
cliente, em termos de definição de motivos, preenchimento de cores e outros aspectos. As
pinceladas do artista, neste sentido, entram em negociação com seu próprio padrão de
composição plástica e a demanda esperada pelo comprador, modelando soluções que visam
equacionar as “... tensões e ambivalências emergentes em meio às interações com que se
envolvem os artistas em seu universo de trabalho” (MICELI, 1996: 140).
Nascem destas “estratégias de acomodação” (Ibidem: 21), obras como: “Um dragão
comendo arraias” cuja temática da natureza peixes, cobras, pássaros e etc. apresenta-se
como traço essencial e preponderante. A figura humana, por sua vez, motivo incipiente neste
conjunto de trabalhos iniciais selecionado por Chabloz, é considerada pelo crítico como
elemento prejudicial ao temperamento do artista, “o começo do seu fim” (CHABLOZ, 1993:
152). Fato que embasa a sua intervenção incisiva no desencorajamento deste tema específico.
Nota-se que as interferências de Chabloz nas etapas do processo criativo de Chico da
Silva estão para além das escolhas dos temas. Os materiais que deveriam ser utilizados pelo
artista também passam pela avaliação e crisol do “mentor”. Para ele, a fim de conservar o
multicolorido vivaz “próprio” da obra primitivista de Silva, a técnica do guache seria a mais
apropriada, ao contrário do óleo. “No meu entender, o óleo, por ser muito pesado, opaco,
enfim, muito material, teria sido mortal para suas delicadas versões poéticas” (idem).
Ao negar aulas de desenho ao sedento “aprendiz”, Chabloz também acaba por imprimir
marcas diretivas do seu ponto de vista no trabalho do jovem pintor. Numa tentativa de não
despejá-lo de seu “paraíso natural”, o estrangeiro almeja, através desta atitude, preservar a
47
incorruptibilidade “primitiva” de Silva, protegendo-o dos “artificialismos” acadêmicos
“civilizados”
31
.
Residem, destarte, nesta concepção de tom purista traços de uma visão romântica sobre
as culturas indígenas, principalmente as brasileiras, cultuadas pelo velho mundo. Desde os
relatos de viajantes do século XVI às elaborações teóricas da bondade natural ensejadas por
filósofos e humanistas dos séculos precedentes o índio brasileiro tem representado, dentro do
pensamento europeu, a imagem de uma idade humana perdida ingênua e feliz –, subterrada
no desenfreado processo civilizador.
Considerado assim como o homem em seu estágio original”, isento das maldades e
frivolidades próprias do meio social, o silvícola, e seu modo de vida, despertavam profundo
interesse nestas sociedades tidas como avançadas” que ofereciam a oportunidade destas
culturas contemplarem resquício de certo estado de pureza, essencial e intocado. Partindo
desta idéia, torna-se justificável a popularidade e difusão que a figura do indien brésilien
ganhou na Europa, basta atentar para a presença deste elemento em variadas manifestações
artística como pintura, escultura, poesia e gravura dos séculos XVI e XVII. Como não
rememorar ainda, frente a esta discussão, o episódio de Rouen (1550), cidade da Normandia,
em que participaram de um grande espetáculo para o rei Henrique II e a sua esposa Catarina
de Médicis os “exóticos” silvícolas brasileiros?
(...) Assim, entre as festividades religiosas, os bailados, os arcos de triunfo, os
discursos e apoteoses oficiais, de que participaram sábios e artistas vindos de
toda a França e, até, do estrangeiro, lembraram-se os organizadores da entrada
de oferecer ao par real um espetáculo estranho e pitoresco: a vida dos habitantes
do chamado Novo Mundo.
Mas, considerados os diferentes povos da América, não foram os artistas que
arranjaram a festa procurar aqueles mais civilizados, como os do México ou do
Peru, a fim de exibirem aspectos da sua vida. Cedendo ao gosto da época,
inclinaram-se por uma demonstração em que figurassem os brasileiros, como
representantes do verdadeiro estado natural de inocência e bondade. Aquela
corte luxuosa, fatigada e corrompida por todos os requintes da civilização e da
cultura, preferia ter diante dos olhos, qualquer coisa que fosse como uma lição
31
Esta interligação entre a origem indígena de Silva e o suposto estado de pureza expresso nas mais diferentes
dimensões, inclusive na artística, encontra-se declarada por Chabloz em diversas passagens, vejamos uma delas:
“De ‘Chico Silva’ – ou melhor: de Francisco Silva- quero conservar, apenas, a luminosa lembrança do
GRANDE e PURO artista que fora outrora, e que, mais firme, mais ajuizado, menos vaidoso, também,
resistindo às armadilhas dum meio que não soube respeitá-lo e orientá-lo construtivamente, os seus lindos
“guaches”, pintados com AMOR e AUTO-DELEITE. O próprio “Chico Silva”, alias, se for ainda capaz de
“maturar” um pouco, sadiamente, sinceramente, de vez em quanto deve sentir no fundo da alma, uma dolorosa
saudade dos tempos longinques em que ele, privilegiado AMADO DE TUPAN, fora o humilde, puro e
inconfundível Pintor da Praia!” (1969b: 1).
48
de felicidade, através da frescura dos instintos e do primitivismo do espírito
(FRANCO, 1976: 47).
Trazendo para o âmbito da pintura: não seria contraditoriamente essa a lição que
Chabloz esperava de seu aprendiz “meio-índio”? “Uma lição de frescura dos instintos e do
primitivismo do espírito”? De certa maneira, para ele, aquela expressão vital de Silva,
caracterizada pela ausência da interposição do domínio técnico a cultura entre o homem e
a natureza, soava como algo impulsional, elementar e, neste sentido, inovadora. Suas telas
carregadas de animais e aparições estranhas, que aos olhos acadêmicos não passariam de
composições toscas e bizarras, apresentavam-se, no entender do crítico suíço, como uma
injeção de ânimo na já saturada história artística européia, fatidicamente condenada pelo
esgotamento de técnica, estilos e conteúdos.
Portanto, é sob o olhar de Chabloz que Chico da Silva produz, é sob sua orientação que
ele se guia, mediando e solucionando em termos pictóricos esta complexa relação existente
entre a sua manifestação impulsiva e o conjunto de restrições, diretamente ou indiretamente,
imposto pelo seu “instrutor”. Muito embora, em meio a estas táticas adaptativas – táticas aqui
empregadas no sentido próprio de Michel de Certeau
32
por quais passa a linguagem inicial
de Silva, plasma-se um rastro visível do tratamento empregado por Chabloz, na feitura e
fatura final da obra. Neste sentido, torna-se bastante pertinente compreender a que
referenciais Pierre Chabloz desejava atender ao estimular ou interditar determinados aspectos
na expressão artística de Chico da Silva? A partir de que olhar, situado espaço e
temporalmente, ele contempla e dirige aquelas composições plásticas?
2.5. O Olhar do “descobridor”
Quando Jean Pierre Chabloz chega ao Brasil com sua esposa, fugindo da guerra que
se anunciava na Europa, traz em sua bagagem artística cultural, orientações diversas
provenientes de fontes múltiplas, embasadas em princípios de linha tradicional e
32
“... chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma
delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o outro. É por isso
deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha (...). Este não-lugar
lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as
possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares
vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém
espera. É astúcia” ( CERTEAU, 1994:100-101).
49
vanguardista. Ao mesmo tempo em que não desprezava o figurativo e os processos clássicos
da pintura sob modelo nos seus trabalhos, “... estava em contato com grupos mais avançados
de pintores franceses, vendo e estudando a arte de Renoir e de Matisse, sem falar nos
modernos como Picasso...” (ESTRIGAS, 1994). Admirador de Monet, Degas, Utrillo e Van
Gogh, Chabloz, mostra-se, desta forma, como um tipo que não se encerra facilmente em
pacotes classificatórios: seria ele um pintor e crítico de tendências mais modernas ou
acadêmicas? Sua produção e percepção estariam alinhadas a um gênero de natureza mais
clássica ou vanguardista? Difícil definir isto categoricamente.
Nascido em Lausanne (Suíça) no ano de 1910, Chabloz, que desde muito cedo definiu
seu caminho, que não era o almejado pelo pai – a engenharia -, tem sua rica trajetória artística
e humanística esboçada na passagem de importantes centros formativos, situados nos mais
diferentes locais da Europa. São estes: o Centro de Humanidades Latim-Greco em Lausanne,
o Conservatório de Música de Genebra, Escola de Belas Artes de Genebra, Instituto Jean-
Jacques Rosseau (Instituto Internacional de Ciências da Educação), Academia de Brera e
Academia de Belas Artes de Florença e de Milão (PERLINGEIRO, 2003).
Desenvolvendo suas habilidades de forma difusa, o jovem Chabloz experimenta nestes
espaços, as mais diferentes manifestações e possibilidades artísticas: pintura, desenho, música
e outras, não limitando seu interesse ao puro plano da produção e execução destas, mas
dedicando-se também à reflexão filosófica sobre o fenômeno da arte como um todo. Assim,
para além do domínio cnico, Chabloz expandia sua capacidade, demonstrando, ao ministrar
importantes conferências neste período - O olho lúcido, Pontos de vista, Do indivíduo ao
Universal e A chave de Ouro do professor Edgard Willems - sua competência analítica e
expositiva (Ibidem).
Interrompida suas atividades amostras, exposições, cursos, palestras e etc –, na
Europa, por conta dos rumores da guerra eminente, Chabloz, e cerca de duas dezenas de
artistas, desembarcaram, em maio de 1940, no solo brasileiro. Trazendo esposa e filha
33
, o
esteta suíço cultiva a esperança de retornar brevemente ao seu país, o que de fato não
acontece, que o navio que tomaram em Gênova foi o derradeiro, que conseguiu cruzar o
Atlântico. Aparentemente, as forças do acaso que ele, como estudioso de numerologia e
destas ciências afins, tanto considerava empurravam seu percurso artístico e pessoal para
este continente. Como que por desígnio, os caminhos do estrangeiro eram guiados até estas
33
Chabloz neste período era casado com uma brasileira que conhecera na Suiça, Regina. Com ela, teve uma
filha, Ana Maria (PERLINGEIRO, 2003)
50
terras tropicais, confirmando, de certa maneira, a revelação de uma vidente que ele consultara
em Genebra.
...não tão estranhas, afinal de contas, quantas as revelações feitas em Genebra,
no ano passado, por uma vidente de passagem por aquela cidade. Sem ser
profissional, creio eu, não era por isso menos extralúcida e especializada, se
posso dizer na clara visão das vidas anteriores.
Com viva curiosidade, deixei-a mergulhar seu olhar visionário em toda
espessura de meu superpassado. Aprendi então coisas surpreendentes: três
encarnações teriam precedido minha atual peregrinação por esse Vale de
lágrimas: uma hindu, uma árabe e uma portuguesa. Quando de minha última
viagem, eu vivia, parece, em Lisboa-a-Dourada (quando não está chovendo).
Filho de um rico negociante lusitano, eu o teria irritado, profundamente, pela
vida indolente e dissipada que levava. Não conseguindo despertar em mim o
nobre gosto do trabalho, com um magistral pontapé mandou-me passear por
sobre o Atlântico Sul, até os longínquos brasis, ‘a fim de que eu aprendesse a
viver’, a me ‘defender’(...)
- A senhora vê, mais precisamente, em qual região do Brasil se deu minha
‘aterrissagem?’, perguntei-lhe. Ela me olhou demoradamente, fazendo pesar
sobre mim seu estranho olhar impassível, um verdadeiro olhar de esfinge. Em
seguida, pegando um lápis, traçou, sem hesitação, um contorno geográfico, e
disse:
- Você está vendo esta ponta que avança no oceano em direção à África? Foi ai.
Você nela, muito trabalhou e muito ganhou. Depois percorreu todo continente.
Viveu por longos anos no Chile, no Peru, na Bolívia...
Mas, eu não a escutava mais. Meu olhar não podia se afastar de seu croqui,
dessa ponta do continente sul-americano que avançava no oceano em direção à
África. Essa ponta era o Nordeste do Brasil, era a região do Ceará (CHABLOZ,
1993: 15).
Muito embora, antes de ‘aterrissar’ no Ceará, Chabloz fizesse breves passagens por
outras localidades do país, inclusive pelos grandes centros: Rio de Janeiro e São Paulo. Nestes
estruturados círculos artísticos, o estrangeiro deparou-se com panoramas de pintura diferentes,
resultantes de cursos e experiências particulares. O Rio, ainda profundamente marcado pelas
diretrizes estéticas da Academia de Belas Artes apresentava, nos anos 40, uma linha de
produção mais prudente e contida, apoiada em convenções dispostas e aceitas. São Paulo,
por sua vez, vivenciava o estado de “revolução permanente” “sempre provocando
movimentos, tomando iniciativas” (NAVARRA apud AMARAL, 2006: 168-169),
perpetuando, ao uso de novas linguagens e conceitos, a atmosfera de transformações e
rupturas tributária à geração dos anos 20. (ibidem: 170)
Portanto, a aproximação inicial de Chabloz com a arte brasileira se constituiu a partir
destas duas tradições plásticas. Levando em consideração que a produção pictórica nacional
resumia-se, em termos efetivos, nestes centros referenciais maiores, os aspectos ali
51
observados pelo estrangeiro permitiram a elaboração de uma leitura analítica sobre o estado
da pintura no Brasil.
Empenhado neste movimento reflexivo, Chabloz logo alcança posição de destaque neste
cenário específico, entrando, assim, para o rol dos grandes nomes da crítica que atuavam na
década de 40 como Rubem Navarra, Santa Rosa, Sergio Milliet e outros. Neste sentido, como
bem coloca Lourival Gomes Machado em seu artigo “As intenções de Chabloz” para a revista
Clima 9, as capacidades intelectuais do estrangeiro, em visibilidade, se sobrepunham às
suas habilidades artísticas, fato que o caracterizou primordialmente como um pintor que
pensa. Nas palavras do crítico paulista:
um Chabloz que se vê, há outro que se sente e compreende. Esta coragem de
não considerar completo, equilibrada pela coragem de ter como certo e firme o
caminho que palmilha, dão a nota básica da personalidade deste intelectual. O
Chabloz intencional é um feixe de direções que tendem a se fundir. Um feixe e
não uma sucessão. O racional é bem filho de Jean-Jacques Rousseau de
Genebra. O místico não sei de onde vem, mas sinto em seu desejo de arrancar
um sentimento de cada coisa, um sabor muito europeu, uma maneira de ser
vinda de fora, que torna dolorido o seu contato com a América. Chabloz diz que
o contato entre lápis do desenhista e o seu papel é um crepitar quase elétrico,
capaz de criar um campo magnético no qual, aos poucos, certos pontos
começam a atrair a grafite e a prendê-la, ordenando uma direção. Não é uma
simples imagem literária. Chabloz crê no magnetismo e procura propiciá-lo
quando ele mesmo desenha, acariciando o papel, seduzindo-o para que sua alma
a auxilie. As três qualidades que se conjugam em torno da característica
primordial de Chabloz que se permite ser um artista que pensa, que expõe e
teoriza o próprio métier (MACHADO apud PERLINGEIRO, 2003 : 8-9)
Gozando, inicialmente, de uma aceitação quase que imediata dos principais grupos de
atividade culturais e artísticas nestas cidades, Chabloz, entre os anos de 1941 e 1942, atua de
maneira presente e dinâmica. A convite do Instituto Brasileiro de História da Arte, o
estrangeiro realiza no Museu Nacional de Belas Artes (Salão Nobre) do Rio, três conferências
com projeções luminosas sobre o tema: “O valor revelador do grafismo e da pincelada no
desenho e na pintura”. em São Paulo, propõe algo de natureza mais profunda e impactante:
sugere a criação de um curso de iniciação plástica que é entusiasticamente recebido em um
primeiro momento, mas, depois, em conseqüência dos rumores da eclosão de uma segunda
guerra, o projeto é arquivado completamente.
Contudo, sua atividade analítica e formativa, neste eixo, logo encontra uma série de
limitações, dado os desafetos institucionais adquiridos pelo estrangeiro neste curto período de
estadia. A culminância de tal mal estar deve-se, em muito, às duras críticas feitas por Chabloz
52
à arte brasileira em especial à Plástica, endereçadas de forma mais direta à Academia de
Belas Artes. Para o estrangeiro, a produção do fenômeno pictural encontrava-se inviabilizada
no país, sobretudo no Rio, por causas de distintas ordens: naturais, psicológicas e históricas.
Sobre esta última, explanada em seu artigo “O Brasil e o problema pictórico” publicado na
Revista Clima, Chabloz disserta:
"CAUSAS HISTÓRICAS - Na curva de desenvolvimento de todas as
"civilizações picturais", completas e autênticas, nota-se, no princípio da
trajetória, uma fase primitiva. Assim é que se tem os Primitivos italianos, os
Primitivos flamengos, franceses, alemães, etc. O desenvolvimento da
humanidade não é, em certo modo, mais que o desenvolvimento do homem. E,
como a criança passa necessariamente por um período de infantilismo (que se
manifesta em todas as suas criações, artísticas especialmente), a jovem
humanidade, da mesma maneira, não pode evitar este período infantil - fase de
tentativas, de ensaios tímidos e encantadores pela pureza de intenção, a frescura
da emoção criadora, a ausência de toda a habilidade superficial, a inabilidade
técnica, que é muitas vezes, entretanto, espantosamente expressiva"
34
Portanto, a ausência desta fase primitiva é apontada por Chabloz como um dos
principais aspectos deficientes da nossa história plástica. Como “imaginar um verão e um
outono fecundos sem a bela, emocionante floração anterior à primavera?” (CHABLOZ,
1993:121). Nestes termos, o ciclo evolutivo artístico, para ele, encontra-se intimamente ligado
ao ciclo da vida e da natureza.
...intimamente ligada à vida, da qual, em última análise, não é senão uma
SUBLIMAÇÃO na QUINTESSENCIA, a arte obedece, como toda a natureza, a
um ritmo evolutivo CICLICO. Da mesma forma que temos as ESTAÇÕES:
PRIMAVERA, VERÃO, OUTONO E INVERNO, e na vida das criaturas: A
MOCIDADE, A IDADE MADURA, O DECLÍNIO ‘OUTONAL e a
VELHICE com a morte, temos na ARTE, quatro fases ou ASPECTOS
CARACTERÍSTICOS: PRIMITIVISMO, CLASSICISMO, ACADEMICISMO
E ‘ANARQUISMO’ INDIVIDUALISTA. (CHABLOZ, 1944: 6).
34
O descobridor. Disponível em: http://www.mauc.ufc.br/acervo/chicodasilva/indexchico. htm>. Acesso em: 10
mar. 2009.
53
Figura 4. Desenho representativo do ciclo das artes feito pelo próprio Chabloz. (1944).
Na sua visão, foram desastrosas as conseqüências causadas pela intensa e desmedida
absorção dos valores neoclassisistas, amplamente difundidos aqui pela Missão Francesa de
1816
35
. Para ele, este conjunto de orientações estéticas pautada, em termos gerais, pela
utilização da perspectiva, do claro e escuro e agrupamento de figuras; pela grande correção do
desenho, emprego de outras tintas e uso de composição equilibrada, desviou, por mais de cem
anos, o fluxo gradativo e processual da “evolução” pictórica brasileira. Sob a égide deste
corpo instrutivo, enraizado e disseminado profundamente através de duas entidades em
especial a Escola de Belas Artes e o Museu Nacional de Belas Artes no Rio
potencialidades genuínas foram anuladas e tolhidas.
Neste sentido, ao pular as etapas que engendram a dinâmica “natural” do
desenvolvimento das artes, o Brasil colhe os efeitos nefastos de um curto-circuito cultural
provocado pelo transplante apressado de variadas doutrinas, orientações e técnicas formais. O
quadro que se configura, aponta Chabloz, é de uma arte caricatural e artificializada,
sabotadora das “... elaborações autônomas, as lentas e profundas sedimentações que, sozinhas,
poderiam dar ao país um ‘centro de gravidade’ autêntico e, consequentemente, uma imagem,
uma fisionomia, uma expressão que lhe fossem realmente próprias” (CHABLOZ, 1993: 121).
35
Liderada por Joaquim Lebreton, a Missão Francesa tinha por principal objetivo estabelecer no Brasil a “Escola
Real de Ciências, Artes e Ofícios”. Subdividida em duas partes: “a) quadro superior e artístico, com um chefe,
seis professores e três assistentes; b) quadro complementar ou de artes mecânicas, com seis mestres de artes e
ofícios” (TAUNAY, 1983: 32) a orientação pedagógica de tal entidade encontrava-se delineada para além do
âmbito artístico, agregando o ensino de artífices auxiliares, como o ofício mecânico em sua grade formativa.
Contudo, apesar destas intenções de ordem técnica e utilitária, é na esfera das artes que esta empreitada alcança
seu maior êxito, já que as produções artísticas em suas mais diversas manifestações – pintura, escultura,
arquitetura e outros – seguirá a risca o padrão logrado pela instituição.
54
Diante desta análise, Chabloz conclui que não existe uma arte genuinamente brasileira,
o que não demarca a impossibilidade de ainda vir a existir. Todavia, seria necessária uma
nova “atitude de espírito”. Seria preciso, sobretudo, “libertar o navio, encalhado nas águas
barrentas do academismo, da arte literária e anedótica, da "fabricação" pictural e turística,
vulgarmente decorativa ou publicitária...”
36
.
Portanto, é à luz destas interpretações gerais, que Jean Pierre Chabloz circunscreve a
produção visual plástica do Ceará ao longo da trajetória artística brasileira. É sob este prisma,
imbuído de expectativas, que o estrangeiro denota as particularidades pictóricas da terra
alencarina. Vislumbrando a possibilidade de retomar no Ceará o caminho perdido, obstruído
pelas altas dosagens de neoclassismo introduzidas pela missão de 1816, o crítico se instala,
iniciando, ao lado de outras figuras, sua participação naquele que seria um dos capítulos mais
importantes da historia da arte deste estado brasileiro.
Chamado a trabalhar como propagandista do SEMTA (Serviço Especial de Mobilização
de Trabalhadores para a Amazônia) em Fortaleza, no ano de 1943, Chabloz logo se vê
encantado pelos ares e habitantes da capital. Desenhos, pinturas e escritos produzidos neste
primeiro momento de permanência, registram tal estado de motivação e entusiasmo. São
obras figurativas de tipos populares carreteiros, agricultores, vaqueiros e etc. executadas
especialmente a óleo e a grafite; estudos de marcação de cores sobre a paisagem cearense;
descrições pitorescas do cotidiano da cidade e outras. Indiscutivelmente, lápis e papel
tornaram-se uma valiosa via de captura e conhecimento desta nova realidade para o artista.
Gozando da segurança financeira proporcionada por seu emprego oficial, o esteta suíço,
em suas horas de lazer, entrega-se inteiramente às atividades artísticas, culturais e
pedagógicas de Fortaleza, encontrando nestes espaços, trânsito livre para a efetivação de seus
anseios e propósitos artísticos.
Foi violonista do Quarteto de Cordas do Conservatório de Música e da
Orquestra Sinfônica de Fortaleza e seu primeiro recital na cidade foi no Teatro
José de Alencar. Ensinou violino no Conservatório Alberto Nepomuceno, foi
conferencista, crítico de arte e jornalista em O Estado, antigo jornal diário de
Fortaleza, onde publicou crônicas de arte chamada “Arte e Cultura”. Nas
palavras de sua mulher Regina: ‘Chabloz adorou Fortaleza! Lá formou um
grupo de arte, juntos pintavam paisagens ao ar livre, e como ele dizia: era um
36
O descobridor. Disponível em: http://www.mauc.ufc.br/acervo/chicodasilva/indexchico. htm>. Acesso em: 10
mar. 2009.
55
peregrino viajando com um bastão pelo mundo até encontrar um lugar para ficar
– acredito que Fortaleza foi este lugar’ (PERLINGEIRO, 2003:9)
Por intermédio de Mário Baratta, figura que conhecera em suas pinturas noturnas, ao ar
livre, o estrangeiro entra em contato com o cenário das artes plásticas local, ainda de feição
incipiente e desinstrumentalizada. Ao freqüentar o pequeno e improvisado Atelier Artis de
Baratta, localizado na Rua Barão do Rio Branco, conhece alguns jovens cearenses “que o
demônio da expressão plástica havia mordido” (CHABLOZ, 1993: 125), eram eles:
Raimundo Campos, Aldemir Martins, Antônio Bandeira, Angélica Souza
37
.
Neste movimento de aproximação e descoberta, Chabloz denota particularidades e
potencialidades do estado de caráter morfológico, plástico e até mesmo psicológico as quais
ele de imediato encontra afinidades
38
. A dita “autenticidade” paisagística e a “essencialidade”
da pintura, apontada pelo descompromisso dos artistas locais com os “ismos” classificatórios,
conformavam-se, em certo sentido, aos seus ideais de arte verídica, fato que motivou
infinitamente a sua crença no papel revolucionário do Ceará frente à “reinvenção da pintura”
39
.
No Ceará, a pintura experimenta uma nova sensação nova, ao mesmo tempo
inquietante e inebriante, de recomeçar do zero: de reinventar a pintura.
Maravilhosamente simplificado, o fenômeno pictórico reduz-se aqui a sua
essência primeira e eterna. O coração do artista, em comunhão calorosa com o
do modelo ou da paisagem, seu olho acariciando a ambos, sua inteligência
escrutando linhas, formas e cores para daí fazer brotar a significação profunda, o
testemunho, tal um vibrante sismógrafo, registra naturalmente. Livre de
complicações inúteis, ele obedece somente aos princípios fundamentais da
transposição plástica. E, naturalmente, esse testemunho se vê carregado de dupla
e necessária emoção: humana e pictórica, da qual somente a harmoniosa fusão
pode fazer nascer uma obra sã, completa, duradoura. (CHABLOZ, 1993: 118)
37
A pintora Angélica de Souza nasceu na cidade de Quixadá, no ano de 1924. Filha do escultor Jacinto de
Souza, do qual recebeu suas noções primeiras sobre o desenho, Angélica teve sua estréia artística no III Salão de
Pintura Cearense do CCBA. Participando também da mostra Pinturas de Guerra e dos III, IV e V Salões de
Abril, notícias que obteve menção honrosa e medalha de bronze no Salão Nacional de Belas Artes, no RJ
(GALVÃO, 2008).
38
Do ponto de vista pictórico a ‘matéria-prima’ no Ceará é extremamente rica e estimulante. A qualidade do ar
e da luz, a autenticidade perfeita da paisagem os caracteres morfológicos e psicológicos dos habitantes, e
tudo dispostos e cujos rostos, gestos e roupas exprimem harmonicamente uma bela e profunda unidade interior.
Tudo, no Ceará, favorece as diversas modalidades da transposição plástica e se presta, de modo admirável, à
sua mais alta e completa expressão: a pintura mural. Somente a pintura permitiria fixar, pictoricamente, como
era de se esperar, em sua latitude e longitude espirituais, a amplidão e a nobreza do cenário cearense e a vida
excepcional que, biblicamente, se desenvolve nessa Terra da luz” (CHABLOZ, 1993: 117).
39
Interessante a afirmação indireta que Chabloz faz sobre a importância de Chico da Silva no cenário da pintura
ao reportar-se a este termo “reinvenção” em seu texto: “Lápis e pinceis” Não por acaso, o titulo da matéria sobre
o pintor praiano ao Cahier D’art chama-se: Um índio brasileiro reinventa a pintura.
56
À luz destes esquemas interpretativos, não se tornaria leviano afirmar que Chabloz
acreditou ter achado no Ceará as condições adequadas e necessárias para o florescimento de
uma fase primitivista brasileira. Categoricamente, ele afirma isto em sua última volta ao
estado, na década de 80, quando decepcionado com as formas de produção artística, um
tanto quanto polêmicas, desenvolvidas por Chico da Silva, ele declara: “Voltei para
ressuscitar o primitivismo!”
40
.
Portanto, é sob este enquadramento que Chabloz percebe e compreende a pintura de
Chico da Silva, é sob esta visão que ele apreende e direciona as produções artísticas do pintor
praiano. Depositando todas as suas fichas no talento “espontâneo” do jovem artista, o crítico
espera fielmente que pela mão esquerda de Silva se opere a verdadeira ruptura de padrões e
convencionalismos estéticos, dos quais, para ele, a arte brasileira tornara-se refém. E neste
intuito ele não mede esforços, utilizando-se de sua rede de relações: nacional e internacional
media a entrada de Chico da Silva no mercado de bens simbólicos promovendo exposições,
amostras de sua “coleção-Silva” particular em várias localidades do mundo, de forma especial
na Europa.
No Ceará, intermedia a exibição de alguns guaches do primitivista no III Salão de
Pintura Cearense (1944), organizado pela entidade CCBA (Centro Cultural de Belas Artes).
Neste evento, ao lado de figuras como Barboza Leite, R. Campos e Barrica, os trabalhos do
novato não despertam muito interesse, nem por parte da crítica, nem do público, fato que se
deve, em muito, a indisponibilidade dos códigos artísticos necessários destes sujeitos para
imputação de sentido a estas obras ausentes de perspectiva, sombra e volume (ESTRIGAS,
1988a). Ora, como bem assinala Bourdieu:
Em uma dada formação social, o grau em que uma obra de arte é legível é
função da distância entre o código que a obra em questão exige objetivamente e
o código artístico disponível para um indivíduo particular, e a distância entre o
código que a obra exige e a competência individual definida pelo grau em que o
código social (também ele mais ou menos adequado) foi incorporado. De um
lado, as obras que constituem o capital artístico objetivado exigem códigos
desigualmente complexos e refinados e, portanto, suscetíveis de serem
adquiridos em ritmo mais ou menos rápido através de uma aprendizagem
institucionalizada ou não. De outro lado, cada indivíduo possui uma capacidade
definida e limitada de apreensão da informação proposta pela obra, em função
do conhecimento que possui do código genérico do tipo de mensagem
40
Chabloz: um olhar estrangeiro O Povo, Fortaleza, 29 ago. 1993. p. 23-25.
57
considerada, seja a pintura em conjunto, seja a pintura de uma determinada
época, de uma dada escola ou de um dado autor. Quando a mensagem excede
suas possibilidades de apreensão, o espectador incapaz de receber a informação
não tem outra escolha senão desinteressar-se do que lhe parece uma borração
sem rima e sem razão, um jogo de formas e cores desprovido de qualquer
necessidade, ou então -se forçado a aplicar os códigos de que dispõe sem
indagar a respeito de sua adequação ou de sua pertinência (BOURDIEU, 1992:
286).
Revela-se neste fato o caráter gradativo e processual de incorporação das novas
concepções estéticas tanto nos modos de fazer, como nos modos de ver. O olhar do público
cearense, profundamente marcado pela tendência neoclássica academicista, apesar de estar em
recém contato com a plástica moderna, ainda resiste frente a “formas imprecisas, nebulosas...”
de Chico da Silva (LEITE, 1949:10). Situação esta modificada nos anos que se seguem, a
partir da própria efetivação da autonomia do campo artístico e do claro delineamento de um
espaço de possibilidades temáticas e estilísticas, que abrem caminho para o tratamento e
aceitação destas novas linguagens e padrões de composição não naturalistas, dentre as
quais, a dita arte “primitiva” se coloca.
58
CAPÍTULO 3. AUTONOMIZAÇÃO DO CAMPO ARTÍSTICO
CEARENSE: UM ESPAÇO DOS POSSÍVEIS SE DELINEIA.
59
3.1. Os antecedentes do campo artístico cearense.
O cenário artístico no qual o nome de Chico da Silva surge apresenta-se como um dos
períodos mais efervescentes da arte no Ceará. A década de 40, conhecida como fase
renovadora (ESTRIGAS, 1983), caracteriza-se pela intensa incorporação das tendências
modernistas - ainda que não represente a ruptura total com o academicismo - e pela efetiva
instucionalização do campo, a partir da organização de entidades aglutinadoras como: o
Centro Cultural de Belas Artes (CCBA) e a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP).
O contexto, nesta época, mostrava-se favorável a experimentações, à busca de novos
estilos e conceitos. O Ceará, que por sua vez, “(...) recebeu também sua dosagem de
neoclássico que atingiu nossos artistas que executaram seus trabalhos seguindo a orientação já
atenuada em algum aspecto” (Idem, 1992: 42) abria-se para outras referências, traduzindo no
espaço artístico, as profundas mudanças econômicas e sociais que o Estado atravessava.
Contudo, é preciso destacar, que tal processo de renovação não emerge de forma
brusca. um longo curso de gestação que antecede sua plena configuração. Neste sentido,
torna-se oportuno lançar um olhar às cadas precedentes, no intuito de reconstituir os fios
que as liga aos acontecimentos ulteriores.
Apresentando-se na história plástica cearense, como um momento de tímida e
significante expressão artística
41
as décadas de 20 e 30 prepararam os protagonistas e o
próprio meio para a grande fase seguinte, que seria, no dizer de Estrigas, o começo do plano
mais elevado na caminhada artística cearense (2009). Ainda que marcado por um quadro de
condições adversas ausência de instituições formativas, inexistências de espaços próprios
para exposição e comércio das obras; exercício crítico insipiente, desarticulação dos artistas
entre si tal período, contrariando, em partes, os efeitos desta carência infra-estrutural
generalizada, não apresenta nomes de grande relevo para a pintura local, tais quais Gerson
Farias
42
, Otacílio de Azevedo
43
e Vicente Leite
44
, como promove eventos de significativo
41
José Liberal de Castro, professor de arquitetura da Universidade Federal do Ceará, utilizando-se das palavras
do pintor e poeta Otacílio de Azevedo refere-se a este período, enfaticamente os anos 20, como “...uma das
épocas de mais produtividade cultural da cidade de Fortaleza (...) (apud AZEVEDO, 2004: 55).
42
Gerson Farias (Fortaleza 1889-1943) foi um dos desbravadores da atividade artística no Ceará. Pintor e
cenógrafo autodidata, Gerson recebeu uma bolsa de estudos, em 1917, do então governador João To de
Sabóia, para realizar estudos no Rio de Janeiro, contudo não levou a diante a empreitada, desistindo no caminho.
Além de integrar a amostra coletiva organizada por Walter Severiano, em 1924, com Otacílio de Azevedo,
Pretaxto Bezerra (TX) e Clovis Costa, em 1934, funda o primeiro atelier de pintura, célula embrionária do
movimento artístico da década posterior (GALVÃO, 2008).
60
impacto na cultura visual de Fortaleza como são exemplares as edições seqüenciais de 1924
a 1926 do denominado Salon Regional e a amostra proporcionada pelo pintor paraense
Valdemar Costa, em 1937, onde expuseram reputados artistas cearenses.
No entanto, estes sopros de ânimo não extinguem, por completo, a situação de
desamparo na qual se encontrava a pintura do período. O Estado que contava com a
presença de equipamentos culturais ativos Instituto Histórico de Ceará, criado desde 1887;
Academia Cearense de Letras, fundada em 1884; Casa de Juvenal Galeno, fundada nos anos
vinte; Centro Estudantal Cearense e Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua, ambos fundados em
1931- de longe ofereciam ambiente propício para o desenvolvimento das artes pictóricas e
seus talentos, deixando a cargo dos aguerridos e solitários artistas a difícil tarefa de fomentar
a tradição visual, renegada, muitas vezes, em detrimento da supremacia de uma cultura
literária (situação esta predominante não só no Ceará, como em todo país).
Convém salientar que no Brasil o prestígio da língua, e do saber ao qual essa
língua deve dar acesso, é tão grande que durante todo o período colonial e pré-
republicano, ler e escrever, e conseqüentemente toda a vida intelectual, foi o
privilégio da aristocracia urbana e rural. O que explica que aos olhos dos
humildes esse domínio da leitura e da escrita tornou-se o maior sinal de uma
condição social. Dessa maneira, desde o surgimento da República que, pela
gratuidade e generalização do ensino primário, oferecia ao povo a iniciação do
“saber”, o Brasil entrou numa fase de tremenda intelectualização. (...).
É fácil perceber que tal cerebralização determina, no Brasil, uma atmosfera
nitidamente desfavorável à criação e à apreciação plástica. E, de fato, se
brasileiro curva-se diante da ciência, da qual estuda e cultiva as mais diversas
disciplinas, com ardor e sucesso, se é capaz de deleitar-se com a literatura, que
aprecia e julga como conhecedor fino, ele brinca, por outro lado, com os valores
de arte, principalmente plásticos, tratando-os com leviandade e desenvoltura
desconcertante (...) (CHABLOZ, 1993: 120).
Desta forma, sofrendo agruras devido à indiferença do poder público e das elites, estes
persistentes homens, dispersos ou em pequenos grupos ou oficinas, trabalhavam sob duras
43
Pintor, poeta, escritor e desenhista, Otacílio de Azevedo nasceu na cidade de Redenção, no ano de 1896.
Transferindo-se para Fortaleza em 1910, inicia-se no mundo por diversas vias, enlaçando em determinada
integralidade a atividade escrita e pictórica. É autor do livro Fortaleza Descalça, obra preciosa para a memória
artística e cultural do Ceará (Ibidem).
44
Vicente Ferreira Leite (Crato, CE 1900 – RJ, GB 1941). “(...) Foi aluno de Rodolfo Chambelland e Lucílio de
Albuquerque no curso livre da antiga ENBA. Recebendo no SNBA, medalhas de bronze (1926) e de prata (1935)
e prêmios de viagem ao país (1935) e ao estrangeiro (1940). José Maria dos Reis Júnior em A Pintura no Brasil
(1941), considerou-o um paisagista de sensibilidade, apesar de deficiente na composição. Figura no acervo
MNBA, Pinacoteca do Estado de o Paulo e Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora)” (PONTUAL, 1969:
308).
61
penas, carecendo das estruturas mais básicas, como livros e materiais para a pintura
45
. Isto
acontecia pela inexistência de uma circulação mais efetiva, neste período, destas obras
livrescas (de caráter cnico e histórico). As poucas que aqui chegavam, atingiam valores
exorbitantes, e como a grande maioria dos artistas provinham de classes populares, acabavam
não tendo recursos para adquiri-las.
O mesmo acontecia com os materiais e instrumentos apropriados para a pintura,
importados da Europa, principalmente da França, os quais assumiam localmente valores
elevadíssimos. Tintas em bisnagas tornavam-se, assim, artigos de luxo nos ateliers. Frente a
esta realidade, muitos artistas contornavam a problemática improvisando artesanalmente seus
próprios materiais e suportes.
A falta de meios pecuniários para adquirir tintas em bisnagas, preparava Lucas,
[o artista Lucas Nascimento] numa tábua apropriada, as suas próprias tintas
misturando os pigmentos com óleo de linhaça e verniz. O azul ultramar, o verde,
o amarelo, eram triturados a espátula. Desse conjunto policrômico saíam, como
por milagre, as ofuscantes amostras de sua paleta privilegiada (AZEVEDO,
1992: 298)
Logo, o que se configurava era um cenário em muitos aspectos desfavorável para a
produção pictórica, agravado pela indefinição do lugar específico para as artes plásticas e,
concomitantemente, para o artista. A inexistência desse lugar próprio - de uma posição social
definida - relegava a estes produtores desempenhar funções difusas, simultâneas e indistintas;
conjuntura esta que denuncia, sob alguns indícios, o momento ainda embrionário de
constituição e autonomização do campo artístico.
De fato, do final do século XIX até o fim da primeira metade dos anos 1930, o
contexto de criação de arte em Fortaleza revelava a indiferenciação própria de
um campo artístico em seu momento de gênese. Inicialmente amorfo, o
domínio da pintura caracterizava-se não pela falta de radicalizações estéticas
entre pintores acadêmicos e pintores modernos, mas, também, pela atuação
45
Ao término dos anos trinta, observaremos em Fortaleza o aumento expressivo de oferta de materiais para a
pintura, fato que influenciará diretamente na produção plástica da época. “Segundo Raimundo Garcia, no final
dos anos trinta até tempo da Segunda Guerra, a loja de Epitácio, na esquina da Rua Liberato Barroso com a
Major Facundo, fornecia excelentes materiais para artistas: telas francesas; pigmentos franceses e holandeses,
vendidos em pó ou pão, que é bolo do pigmento já hidratado; guaches; papéis Fabriano e Canson, este vendido
em rolos de 20 e 50 metros, depois por metro; secante em pó; terebentina e aguarás de muito boa qualidade;
óleo de linhaça puro, vendia no litro ou meio litro. Os pincéis eram da marca Tigre, os melhores ainda hoje, e
Condor. Também se usava tintas nacionais Águia, em tubos de estranho, e, depois, apareceu, por alguns anos
apenas, uma tinta com consistência de massa, em pequenas latas do tamanho das latas de atum, que ele acredita
era de nome Vanda” (GALVÃO, 2008: 174-175)
62
indiferenciada entre fotógrafos-pintores, escritores-pintores e, mesmo, entre
pintores e os chamados ‘pintores de liso’, os quais se dedicavam à pintura
mural, à confecção de anúncios publicitários, cartazes de cinema, e outros.
(RODRIGUES, 2007: 37)
3.1.1. Artes plásticas nos anos 20 e 30: a transposição pictórica do “real”.
Reportando-se de forma particular às duas décadas iniciais do século vinte
46
,
encontramos atividades isoladas que ensaiavam modos de fazer arte, mesmo que de caráter
improvisado e informal. Elencando este panorama particular, temos o trio formado por
Antônio Rodrigues, Paula de Barros e Ramos Cotoco - os mais bem conceituados da época
(ESTRIGAS, 1992).
Considerado o melhor retratista a carvão e a crayon do Ceará, Antônio Rodrigues,
também conhecido como A. Roiz, que tinha por ofício paralelo a barbearia, influenciou
praticamente uma geração inteira de jovens a ingressar, e a se aperfeiçoar, no mundo das artes
plásticas. Raimundo Ramos, José de Paula Bastos, Carlos Severo
47
, Gérson Farias, Lucas
Nascimento
48
e Otacílio de Azevedo, são alguns, dos que, fascinados pelas obras impecáveis
do mestre, - minuciosamente desenhadas sob o auxílio de uma lupa -, entregaram-se ao métier
artístico. Produzindo incansalvemente em seu sobradinho, situado na Rua Formosa, hoje
conhecida como Barão do Rio Branco, A. Roiz foi, sem dúvida, o primeiro artista do lápis a
ganhar destaque fora de sua terra natal (AZEVEDO, 1992).
Apesar de ter como temas de sua predileção o nu e a natureza morta, José de Paula
Barros destacou-se no cenário artístico por sua habilidade como pintor de retratos a óleo.
Requisitado freqüentemente a representar nomes de peso da sociedade alencarina, é de sua
autoria, ainda, juntamente com Ramos Cotoco, a execução decorativa do Teatro José de
Alencar cuja demonstração de sua alta capacidade - contrariando os efeitos da não
46
Não se pode desprezar ainda a produção artística da segunda metade do século anterior, registros destacam:
“Artistas da qualidade de Johan Brindreill atuantes em Fortaleza pelo menos de 1849 a 1860; Reis de
Carvalho, pintor oficial da comissão científica de exploração que percorreram o Ceará por mais de dois anos a
partir de 1859; (...) e João Araripe Macedo, prêmio de viagem ao exterior do Salão Nacional de Belas Artes, em
1900 (...)” (GALVÃO, 2008: 205).
47
Proprietário do jornal caricato O Figarino, Carlos Severo atuo como artista de maneira marcante no final do
século XX (Ibidem).
48
“Pintor Lucas do Nascimento nasceu em Fortaleza, em 1890, faleceu na mesma cidade em 1923” (Ibidem:
130)
63
profissionalização artística - acha-se ali anunciada, de forma especial, na alegoria “Três
graças”
49
, realizada magistralmente a partir da refinada técnica da perspectiva aérea (Ibidem).
Figura 5. “Os três mosqueteiros do pincel”: (da esquerda para a direita) Antônio Rodrigues, Paula
Barros e Ramos Cotoco, 1910 (MIS).
Pintor, caricaturista, desenhista, compositor e poeta, Raimundo Ramos Filho, conhecido
por um defeito congênito de Ramos Cotoco, marcou época como um dos mais populares
personagens cearenses, dada sua versatilidade artística. Contemplado em uma sextilha de
Gustavo Barroso - que também lhe estampa uma caricatura, em xilogravura - no Jornal “O
Garôto” de 1907 ou 1908, Cotoco é descrito e enlevado pelo cronista por suas habilidades
frente à limitação física: “Eis aqui caro leitor/ O Ramos, o tal pintor/ Que a mão direita não
mete/ no bolso do paletó/ Mas com a outra, esquerda, só/ Pinta a manta e pinta o sete”
(ALENCAR, 1967: 114).
Figura obrigatória das rodas patuscas da cidade, Ramos escandalizava e atraía as
camadas mais altas por seu visual no mínimo excêntrico: costumava trazer na lapela ou um
gigantesco girassol ou um apanhado de lírios-do-vale. Publicou, em 1906, o livro de poesias e
modinhas Cantares Boêmios (1906)
50
, cujas páginas retratam com bastante vivacidade
49
As “Três Graças” reportam-se diretamente as imagens mitológicas das três musas da arte: Música, Pintura e
Poesia.
50
Para Edigar Alencar é uma agradável surpresa que, apesar de sua vida boêmia, Ramos Cotoco tenha
publicado este livro com uma exímia apresentação gráfica e com o cuidado de apresentar ao final a parte de
música (ALENCAR, 1967)
64
Fortaleza, no final do século XIX e do inicio do XX. Nele, o artista além de quebrar o padrão
da modinha chorona no Ceará, ousa cantar e versar personagens das classes mais pobres:
teceloas, cozinheiras, engomadeiras, matutos, etc., temáticas inusitadas para aquele estilo.
De seu trabalho como pintor destaca-se a decoração do Teatro José de Alencar,
em Fortaleza, bem como, segundo informação de Herman Lima na História da
Caricatura no Brasil (1963) a de residências de famílias abastadas da mesma
cidade, “especialmente sala de visitas e de jantar, com vistosos murais de flor e
frutas, naturalmente ingênuos no seu primitivismo natural, porém muito
apreciado naqueles tempos” (PONTUAL, 1969: 446).
De feição irreverente e atuação notável, Francisco Bembém igualmente figura entre os
importantes artistas plásticos do começo dacada de 20. Ainda que classificado por Otacílio
de Azevedo apenas como um “tipo popular”, Bembém, em tom de brincadeira, produzia
objetos estéticos de propriedades originais e criativas incontestáveis. Utilizando-se de
materiais diversos - quengas de coco, buchas, palhas de coqueiro - elaborava esculturas
singulares que pelas características curiosas, acabavam atraindo numerosa freguesia para sua
garapeira.
Penduradas no teto do boteco havia diversas cabeças de velhos e velhas feitas de
quengas de coco em que Bembém aproveitava os orifícios originais para fazer os
respectivos olhos. Das buchas fazia as barbas, os bigodes e os cabelos. Os
fregueses divertiam-se contemplando aquele fúnebre cortejo de cabeças sem
corpo (AZEVEDO, 1992: 154-155).
Requisitado a confeccionar as figuras simbólicas que se achavam juntas ao monumento
histórico dedicado ao capitão J. da Penha, em um dos ângulos do jardim da praça José de
Alencar, Bembém recebe, em crítica ao seu desempenho, as seguintes palavras elogiosas de
um jornal da época: “ um artista patrício que vive modestamente no seu ‘atelier’ quasi
desconhecido, e no entanto, os trabalhos expostos ao lado da herma do capitão J. da Penha,
revela perfeitamente seu caráter artístico e o seu merecimento”( SOUSA, 1932: 67).
Assim, motivados pela audácia destes mestres autodidatas, uma representativa geração
de artista foi se constituindo e, neste sentido, perpetuando, em meio à década de 30, os
ensinamentos e técnicas deixados por aqueles. Compunham, portanto, este renovado cenário:
Júlio Azevedo, Vicente Leite, Mário Dias
51
, Milton Rodrigues
52
, Jota Carvalho
53
, Clóvis
51
Desenhista e um exímio litógrafo, Mário Dias apresenta-se como um dos nomes de destaque das terras
alencarinas. Por conta de seu talento, recebe do governo, em 1917, uma bolsa de estudos na Escola Nacional de
65
Costa
54
, Walter Severiano
55
, Clidenor Capibaribe
56
e tantos outros. Dedicados ao estudo e a
execução dos valores e princípios apregoados pelo neoclássico, a produção visual apresentada
por esta leva de pintores não expressa significantes rupturas aos cânones da arte que imperava
nos anos anteriores, prevalecendo assim, majoritariamente, o estilo figurativo.
***
O exercício de transposição fidedigna da “realidade” às telas, combinado a busca da
virtuosidade técnica, princípios estes fundamentados no academicismo; marca fortemente o
processo de composição, nas três primeiras décadas do século, como algo muito mais voltado
para a “execução” do que para a “criação”. Capturar com a maior precisão possível, através de
traços e pinceladas, os elementos observáveis na natureza, definia, nestes termos, a grandeza e
as propriedades artísticas do pintor.
Desta maneira, ainda que por esforços próprios, dominar tecnicamente noções de
desenho, emprego de coloração, distribuição de volumes, tratamento de sombras, etc. -
recursos estes pré-estabelecidos e inscritos no berço de uma tradição coletiva - tornava-se
exigência incontornável. Os termos elogiosos de Otacílio de Azevedo, direcionados ao
trabalho de Ramos Cotoco, deflagram bem este comprometimento da arte em retratar o “real”,
tal qual ele se mostra:
Belas Artes, contudo não se adaptando à dinâmica acadêmica retorna à Fortaleza no ano de 1922 (GALVÃO,
2008).
52
“Desenhista e pintor Milton Rodrigues trabalhou no atelier de seu pai Antônio Rodrigues. Participava do
grupo de artistas que freqüentava o atelier de Clóvis Costa” (Ibidem: 130).
53
J. Carvalho apresenta-se como um dos nomes artísticos do Ceará cujo talento ultrapassou o âmbito local.
Expondo no Salão Nacional de Belas Artes, em 1941, e figurando mostras individuais na cidade de São Paulo,
1928, e no Rio de Janeiro, Carvalho tornou-se verbete no livro Artistas, Pintores no Brasil de Theodoro Braga
(Ibidem).
54
“Desenhista ativo em Fortaleza nas primeiras décadas do século XX. Pouco se sabe sobre a vida de Clóvis
Costa, além de informações dadas por Otacílio de Azevedo, na Fortaleza Descalça, pág 308, 309 e 310. Estudou
desenho com Antônio Rodrigues” (Ibidem: 132).
55
“Fotografo, desenhista e pintor Walter Severiano (Fortaleza 1894-1943) é citado por Otacílio de Azevedo em
Fortaleza Descalça e por Barboza Leite em Esquema da Pintura no Ceará (Ibidem).
56
Nascido em 1908, em Juazeiro do Norte, Clidenor Capibaribe, mais conhecido como Barrica, chega a
Fortaleza ainda menino onde mora com sua mãe e tio. Mais tarde, entrando em contato com personagens que
compunham o cenário da pintura local Pretextato Bezerra (TX), Otacílio de Azevedo, Carlos Felinto
Cavalcante e outros – inicia suas atividades de cunho artístico. Trabalhando em um estúdio fotográfico, encontra
clima favorável para o desenvolvimento de habilidades plásticas que serão determinantes na construção de sua
carreira posterior de pintor (RODRIGUES, 2002).
66
Suas paisagens eram apreciadas devido à poesia que delas se evolava num como
milagre. Suas árvores, lavadas de sol e batidas pelo vento, vestidas de
exuberante clorofila, pareciam mover-se; suas cachoeiras, caindo sobre as
sáxeas arestas dos rochedos limosos, delineadas as mais das vezes em bruno
Van Dyck, eram de uma leveza tal que nos davam a impressão de minúsculos
lençóis de água sob finíssimos bordados de espumas. Era mágico do pincel, o
soberano das coisas (AZEVEDO, 1992: 301).
Sob estas orientações, prevalecia como gêneros artísticos recorrentes nesta etapa: as
pinturas religiosas, os retratos, as paisagens e os registros históricos. Este último tipo de
produção plástica, explorada desde o final do século dezenove, tem por emblema o quadro
Fortaleza Liberta
57
(1884) de José Irineu de Sousa
58
, realizado em comemoração a
Libertação dos escravos no Ceará. Reproduzida no livro Impressões do Brasil no Século
Vinte, mais tarde impresso na Inglaterra pela Lloyd’s Great Britain Publishing Co, esta obra
ganha maior importância dada indiscutível habilidade do artista em representar cerca de
cinqüenta personagens, em sua maioria figuras de renome, sob exímio detalhamento e
fidelidade. Décadas ulteriores, o grande painel “Últimos escravos do Ceará” (1938) de
Raimundo Cela - óleo sobre tela - feito por encomenda ao governo estadual, inscreve-se nesta
categoria, coincidentemente com temática semelhante.
Sendo a igreja um dos principais clientes das artes pitorescas no Ceará, faz-se, por
conseguinte, marcante a produção de motivo religioso. Demarcando tal afirmativa
encontramos como exemplo a composição de uma Nossa Senhora da Conceição, executada
por Júlio de Azevedo
59
, na Matriz de Cascavel; duas telas de dimensões consideráveis,
aprontadas por Ramos Cotoco, encontradas na capela de N. S. do Carmo e no prédio da
Sociedade de São Vicente de Paula; além de pinturas diversas, desempenhadas, na Igreja
principal de Baturité, pelos artistas Gerson Farias e Otacílio de Azevedo cuja feitura rendeu
um caso bastante anedótico para nossa história artística. Chamados a terminarem, durante
quinze dias, o trabalho inacabado de Raimundo Siebra
60
, Gerson e Otacílio “Como pintores
medievais” tiveram “... que vestir um a um todos os anjinhos de uma arcada da porta que dava
57
Atualmente este quadro se encontra nas instalações do Museu do Ceará, localizado no centro de Fortaleza.
58
José Irineu de Souza (Fortaleza, CE 1850 – Idem 1924). “(...) Vindo para o Rio de Janeiro, estudou
particularmente com Vítor Meireles, entre outros, freqüentando também o Liceu Imperial de Artes e Ofícios, que
lhe conferiu a medalha de prata e em cuja exposição de 1882 (organizada pela Sociedade Propagadora de
Belas Artes) figurou (...). Lecionou desenho no Pará e no Amazonas” (PONTUAL, 1969: 502)
59
Nascido em Redenção, no ano de 1890, Júlio de Azevedo foi fotógrafo, escultor e pintor. Mudou-se para
Pernambuco em 1919 onde falece em 1967 (GALVÃO, 2008).
60
Raimundo Siebra integrou a geração artística das primeiras décadas do século XX. Agraciado com uma bolsa
de estudos para freqüentar a Escola Nacional de Belas Artes, tem sua vida colhida na cidade do Rio de Janeiro,
em um trágico acidente de carro (GALVÃO, 2008).
67
para o altar-mor. O padre, por demais pudico, não suportava a idéias de ver pessoas despidas
na Igreja, nem mesmo pimpolhos...” (AZEVEDO, 1992: 311).
Constituindo em um volume considerável, a produção pictórica desta fase, pelo menos
em termos de registro, os retratos executados assinalam para o efeito consagrador da
representação artística visual e, em especial, deste gênero
61
. A elite cearense
62
, assim como
as elites de outros Estados Brasileiros, almejando consolidar seu prestígio e poder social
encontrava na composição retratística uma via poderosa de expressar privilégio e distinção.
Assim, figuras do alto escalão
63
político, social e artístico arregimentavam-se como uma
clientela significativa para estes pintores, denotando a valorização progressiva dos talentos
locais, já que no século XIX era prática comum encomendar pinturas aos ateliers da Europa e
trazer artistas estrangeiros de elevado nível para retratarem as mais importantes
personalidades da Província
64
.
61
Em sua obra, “Imagens Negociadas”, rgio Miceli discute, com bastante propriedade, os efeitos e
investimentos simbólicos mútuos gerados na execução de retratos que, ao solidificar e reafirmar o poderio social
dos grupos dirigentes legitima, concomitantemente, o posicionamento do artista em relação ao seu campo.
Tomando como fio central da análise o corpo pictórico retratístico produzido por Candido Portinari,
especificamente entre os anos de 1920 e 1940, Miceli penetra, a partir de uma metodologia sociológica das
imagens, nesta urdidura de mão dupla que é a composição de um retrato, revelando a negociação - entre
demandas dos representados e oferta de soluções estilísticas e formais do artista - que subiste neste processo.
62
Relatos de memorialista assinalam o apreço destas classes mais abastadas pelos retratos a óleo. Atente-se a
este trecho descritivo de Lopes: “No meio do quarteirão da Rua General Sampaio, entre as travessas Guilherme
Rocha e São Paulo, estava o maravilhoso solar da família Teóphilo. Possuía jardins laterais, com gradeados e
portões de ferro e seus salões ostentavam, além de magníficos lustres ‘Bacarat’, muitas obras de arte, inclusive,
retratos a óleo de membros da família, em ricas molduras de talha dourada...” (1988, 61-62)
63
Com a profusão crescente de estúdios fotográficos no Ceará, instalados desde o final do século dezenove, o
gosto pelos retratos difundiu-se entre outros segmentos sociais, que não o da elite. Os baixos custos trazidos
pelas aceleradas inovações tecnológicas, que barateavam, neste fluxo, equipamentos e matérias-primas,
propiciaram a essas classes medianas, indisponibilizadas de maiores recursos para encomendas de retratos a
óleo, encontrar na fotografia um meio viável de representação icônica. Nesta dinâmica, Fortaleza tornou-se uma
comunidade maníaca por retratos “(...) estão eles dependurados pelas paredes bisávos, avós, os próprios
donos da casa e até os primeiros filhos e, quando não mais espaço para essa exposição, em que se percebe
certo sabor nobiliárquico, sobram as figuras reveladas em postais dos álbuns, ou simplesmente vão para as
caixas de sapato” (CAMPOS apud PONTE, 1999:131). Muito embora, esta vulgarização da fotografia, em um
primeiro momento, mostre-se como forte ameaça à produção plástica do Ceará, o quadro que se configura é de
articulação destas duas formas de captura do “real”, a fotografia e a pintura, agenciadas na técnica da
fotopintura. Caracterizada pela sobreposição de pinturas a óleo, guache ou pastel no retrato, tal processo,
utilizado pelas principais capitais do país, teve no estado bastante aceitação, fato que propiciou a constituição de
um corpo de profissionais, composto em sua maioria por artistas, que ao aliar procedimentos de caráter
tecnológico e artístico, permaneciam e se desenvolviam, de certa maneira, no âmbito da cultura visual. Como
bem assinala Rodrigues Neste contexto, o trabalho em estúdios fotográficos aparece como uma atividade que
ao menos não estabelece com a pintura uma distância abissal” (2002: 50).
64
“(...) Assim, pinturas assinadas por diversos artistas estrangeiros são encontradas, ainda hoje, nos salões de
diversas famílias tradicionais e nos museus e instituições culturais do Estado” (GALVÃO, 1987:33).
68
Situam-se, portanto, neste período áureo do figurativo cearense: obras de José de Paula
Barros cujos modelos são: Nogueira Acióli, Liberato Barroso e Marcos Franco Rabelo
65
;
trabalho de Gerson Farias, que retrata o General Tibúrcio (copiado de outro quadro de Pedro
Américo); quadro de Jose Irineu de Sousa representando João Tomé, presidente do Estado
naquele momento, e a tela de Raimundo Cela, “Retrato de Gerson Farias”, vestígio icônico de
uma personalidade ímpar, capturada de forma genial pelos pinceis do mestre sobralense.
Por final, a composição paisagística apresenta-se como um estilo característico deste
momento artístico. Para Galvão a predileção por esta temática não confirma, taxativamente, o
completo desconhecimento dos artistas cearenses dos novos posicionamentos estéticos,
apregoados pelas vanguardas internacionais dos anos 20. A recorrência ao registro da natureza
no seu entender - estaria mais ligada à necessidade de se acomodar, não às condições
sócio-culturais daquele período, como às artísticas, no sentido de que a ausência de uma base
teórica impossibilitava “... compreender em profundidade as sofisticadas construções
intelectuais das vanguardas históricas” (2008: 145).
na leitura de Barboza Leite, deve-se a pertinência da própria paisagem nordestina “...
vigorosa e soberba induzindo planos, revelando-se plasticamente em ritmos que o vento
esculpia sobre as ondas, sobre as copas das árvores” (ESTRIGAS, 1983: 87) a constituição da
escola de paisagismo cearense, motivada, nestes termos, pela presença imponente dos três
elementos naturais: o mar, a terra e o céu. Alinham-se, portanto, a este tipo de produção:
Ramos Cotoco, Lucas Nascimento, Raimundo Cela, Vicente Leite
66
e tantos outros.
65
O retrato do então presidente do Estado do Ceará, coronel Marcos Franco Rabelo, foi exposto na antiga
Maison Art Noveau, de Fortaleza (PONTUAL, 1969).
66
Especialmente na obra de Vicente Leite é possível observar o conflito artístico ocasionado pela iluminação
particular das praias cearenses. Habituado, por duas décadas, com “... à luz diáfana e imprecisa dos panoramas
sulistas, encontrava (...) grande dificuldade em pintar a nossa paisagem violentamente banhada de sol”
(AZEVEDO, 1992: 317) acabando por emprestar tons “do sul” às imagens marítimas nordestinas. Tal obstáculo,
de ordem mais técnica que climática, encontra-se eximiamente solucionado nos trabalhos de Raimundo Cela,
cuja feitura apreende com grande maestria a luz ofuscante destas terras. Sobre esta habilidade do artista
sobralense, disserta Estrigas: “... como de Sorolla dizia Claude Monet, é bem sua essa capacidade de
representar com o mínimo de recursos, como o faz, aquela inacreditável luminosidade do céu cearense, vibrante
e fino como de metais candentes, u totalmente branco em certas horas, corrido duma trágica palpitação que
Raimundo Cela consegue trazer ao vivo para os seus óleos e aquarelas” (1988b: 44).
69
3.1.2. Um passo a diante: as primeiras mostras de arte.
Dentre as atividades artísticas e culturais proporcionadas para a elite urbana do Ceará,
nas décadas de 20 e 30 as amostras e exposições de pintura figuram como eventos irregulares
e descontínuos, quando se toma como parâmetro as constantes realizações de saraus,
concertos e peças teatrais na cidade. Basta lançar mão dos periódicos e jornais da época para
constatar esta desproporção, expressa em termos de volume e freqüência. Ao passo que
encontram-se registrado apenas sete exposições plásticas de relevo neste ínterim - as amostras
de Vicente Leite e José Rangel (1924-1925), as quatro edições da Exposição Regional da
Pintura (1923-1926) e a exposição de Dakir Parreira e Ângelo Guido (1925) -, quase que
semanalmente, chamadas davam conta de algum espetáculo teatral, sessão literato-musical ou
concerto
67
em cartaz
68
.
Contudo, nenhum outro lazer atraía tanto os fortalezenses como o cinematográfico.
Desde a instalação do primeiro Cosmorama na cidade, sistema de projeção de imagens
ancestral à projeção em movimento , em 1869, via-se a preferência do público por este tipo de
diversão que foi ganhando vulto ao longo dos anos. Na década de 20, a capital contava
com uma quantidade expressiva de salas de exibição, que se multiplicando em ritmo
acelerado, especialmente na área do centro urbano, suplantavam antigas atividades populares.
Frente a esta dinâmica consta, portanto, no ano de 1932, o funcionamento dos seguintes
cinemas:
67
A necessidade de reproduzir o padrão cultural tipicamente europeu, em especial o francês e o inglês, induzia a
elite cearense a desenvolver o gosto por estas atividades artísticas.
68
RECITAL DA STA.IZA GONDIM LINS. Amanhã, realizar-se-á, nos luxuosos salões do Club dos Diários, o
primeiro recital de canto da soprano brasileira senhorita Iza Gondim Lins. Tal recital é ansiosamente esperado
pelo “grand mond” cearense, prevendo-se desde já que o mesmo alcance o mais completo êxito. A senhorita Iza
Gondim Lins, discípula do saudoso maestro Meneleu Campos é possuidora de innumeras qualidades artísticas,
já evidenciadas e applaudidas em os centros principaes de diversas capitaes (...)Abaixo publicamos o programa
organizado: 1. Melodia teu ohar, Rorina Medonça; 2. Racinto Santuzza, da Cavalharia Rusticana, P. Mascapi;
3. Pregliner da Tosca, Puccini; 4. Valsa canção meu calvário de A. Piloto; 5. La Valles (da opera) Batalani; 6.
Suicídio da Gioconda, de Ponchielle; 7. Romanza de Iara, da opera de Schiavo Carlos Gomes” (Theatro e
Música. Correio do Ceará, Fortaleza, p.2. 26 jan. 1928).
“COMPANHIA NAZARETH DE REVISTAS. A bordo do paquete “Duque de Caxias” que zarpará amanhã, do
porto de São Luiz do Maranhão é esperada brevemente, a companhia Nazareth de Revistas, que realizará uma
temporada no Theatro José de Alencar. O elenco da companhia, que vem sob direção do applaudido Cômico
Leoni Siqueira, é composto de 30 figuras, entre as quaes destacam-se as atrizes Candida Palacios, tão
conhecida e admirada do nosso publico, e Açucena Banhos, sobre cujos trabalhos a imprensa do norte tem feito
as melhores referências (...)” (Compahia Nazareth de Revistas. Correio do Ceará, Fortaleza, p.2. 02 fev. 1928).
70
- Moderno,Majestic - Teatro e Politeama, da emprese L.Severiano Ribeiro, todos
na Praça do Ferreira;
- do Círculo São José, à Praça Cristo Redentor;
- do Centro Artístico, à Rua Tristão Gonçalves;
- da União dos Moços Católicos, à Rua Barão do Rio Branco, prédio do Instituto
Epitácio Pessoa;
- Recreio Iracema, sociedade recreativa, com teatrinho e cinema na Bulevar
Visconde de Cauípe, 1023;
- Fênix, da Fênix Caixeiral, para recreação de seus associados, instalado na sede
da sociedade, à Rua Guilherme Rocha;
- Paroquial, no Instituto Jesus, Maria, e José, à Praça Figueira de Melo;
- Merceeiros, à Rua Major Facundo 421, sede da Associação dos Merceeiros;
- Luz, à Praça Castro Carreira e
- Popular, na Praça de Pelotas (NOBRE, 1989:26)
Deste modo, o que se percebe é o intenso cultivo de um habitus artístico e cultural
fortalezense voltado para a apreciação do cinema, do teatro, da literatura e da música, fato que
não se aplica, de um todo, ao campo das artes plásticas. Sem dúvida, as ausências de uma
Escola de Belas Artes e de locais apropriados para exposições, aliada a desarticulação dos
artistas entre si, contribuíram significativamente no delineamento deste quadro insipiente.
Deste modo, as primeiras mostras de pintura, timidamente organizadas nos idos dos anos
20, representam, neste contexto, o acordar para a tradição pictórica; assinalam, neste sentido,
para o “(...) despertar de propósitos artísticos daqueles que já marchavam dentro da
problemática estética e da situação problemática da arte e dos artistas no Ceará, além de
concorrer, com elementos outros, para o passo seguinte, imediato, que colocou a arte e o
artista em um novo plano” (ESTRIGAS, 1983:12).
Realizado entre os anos de 1923 e 1926, o Salon Regional, cuja primeira edição não
registros, conta em seu segundo evento (1924), na Foto Walter, com a participação dos
artistas Otacílio de Azevedo, Gérson Farias, José Lauro Catunda, Emme Guilherme, Queirós,
A. Roriz e Walter Severiano. Empreitada de poucos homens, o Salon surpreende pela
permanência nos anos subseqüentes. Em 1925, a exposição, novamente organizada por
Walter Severiano, Otacílio de Azevedo e Gerson Farias, traz como novo nome Vicente Leite,
então aluno da Escola Nacional de Belas Artes, de férias em Fortaleza. a edição que se
71
segue (1926), quarta e última, é marcada pela volta de alguns pintores ao salão, são estes:
Queirós, Catunda e Guilherme (Ibidem; RODRIGUES, 2006).
Reportando-se ainda aos anos de 1925 e 1926, duas importantes exposições chamaram a
atenção da imprensa e do público fortalezense: a mostra do pintor Vicente Leite e do escultor
José Rangel e a exibição dos trabalhos de Dakir Parreiras e Ângelo Guido.
A primeira, realizada no Club Iracema, neste tempo sediado no palacete, apresentou de
Vicente Leite, entre outros, os seguintes quadros: “Retrato de Clovis Bevilaqua, retrato do
pintor Heráclito Santos exposto no ‘Salão Official; Paisagem carioca, ‘Menção Honrosa’, no
Salão Official de 1924; Pão Assucar, Gazeteiro carioca, Amanhecer na Bahia de Guanabara,
Luar, (marinha); Momentos de descanso (...)”; e do escultor José Rangel as obras: “Divinos
Dolor, In cruce salus, Agrippa, Vênus, Talie, Achille, Caralla, Sapho, Antinuos, Minerva,
Fauno, Menina e moça, Chefe de seita, Andaluza e Dezenho”
69
.
a segunda exposição, de Darkir Parreira e Ângelo Guido, sucedida no Clube dos
Diários, apresentou ao público uma mostra privilegiada do talento destes dois pintores
visitantes. De Parreira: “‘Romance’, Barrancos ao sol’, ‘Exemplo materno’, ‘Pastando’,
‘Andayssús’ (Cabo Frio), ‘Morro da Guia’ (Cabo Frio), ‘Caminho da Aldeã’, ‘O porto de
Cabo Frio’, ‘O campanário da Villa’, ‘Sudoeste’, ‘Velha Olaria’, ‘Rochedos’, ‘Penedia’,
‘Raio de Sol’, ‘Cômoros brancos’ (...)”; agora de Ângelo Guido: “‘Canção do mar’,
‘Tumultuar das Ondas’, Luz tropical’, ‘Manhã de Sol’ (Pernambuco), ‘Agua corrente’
(idem), ‘Reflexos’ (idem), ‘Depois da maré (idem), Anoitecer’ (idem), ‘Casebre’ (idem),
‘Poças d’agua’ (idem), ‘Rua do velho Recife’(idem) (...)”
70
Depois de um intervalo de mais de dez anos sem nenhum acontecimento voltado para as
artes plásticas, em 1937, aporta ao Ceará Valdemar Costa, artista paraense radicado em São
Paulo, trazendo o que se intitulou: a “Exposição Paulista no Norte”. A convite da “Sociedade
Cearense de Cultura Artística” - entidade ligada principalmente à música - Valdemar organiza
uma apresentação dos pintores locais a qual se denominou “Exposição Preparatória da Pintura
Cearense”.
69
Pintura e Esculptura: a exposição de hoje no Club Iracema. CeaIllustrado, Fortaleza, n.31, p.52, 08 fev.
1925. Semanal. Anno I.
70
A exposição de hoje no Club Iracema. Ceará Illustrado, Fortaleza, n. 34, p. 75, 01 mar. 1925. Semanal. Anno
I.
72
Retornando a S. Paulo Valdemar Costa foi entrevistado por Mozart Firmeza (o
pintor cearense Pereira Júnior), nessa época fazendo jornalismo no sul (Correio
de S. Paulo), a quem afirmou haver sido elevado o número de visitantes à
exposição, ao mesmo tempo em que fazia o elogio dos nossos artistas e citando
os conhecimentos que os mesmos possuíam acerca dos vultos de destaque da
arte nacional como Portinari Segal Flávio de Carvalho e outros. Dos artistas
cearenses que participaram da mostra ele ressaltou Gerson Farias Pretaxto
Bezerra (TX) Clidenor Capibaribe (Barrica) Afonso Bruno Clóvis Costa
(ESTRIGAS, 1983: 12)
Destarte, tais eventos, mesmo que raros e descontínuos, têm significante importância
no processo de formação do campo artístico cearense, no sentido de que, promovem a
aproximação do público com as obras visuais - seus estilos e linguagens incutindo
gradativamente as disposições e competências necessárias para a apreciação e fruição destes
objetos artísticos. Esta dinâmica aproximativa será efetivamente intensificada na década
posterior, a partir do surgimento de um conjunto de instituições específicas (locais de
exposição, instâncias de consagração, instâncias de reprodução dos produtores e
consumidores, agentes especializados) que viabilizam e condicionam a circulação e economia
própria destes bens culturais.
3.2. A “Fase renovadora” da pintura cearense na década de 40.
A década de 40 representou para a pintura cearense preservadas as devidas
particularidades aquilo que a semana de 22 significou para as artes plásticas, nos grandes
centros artísticos brasileiros: um momento de rupturas e inovações tanto no plano estilístico,
quanto temático. Ainda que essas reavaliações estéticas não tenham assumido a radicalidade
do movimento paulista, dada a convivência, até certo ponto, harmônica entre técnicas e estilos
“modernos” e “acadêmicos”. Tais transformações engendraram, a partir da redefinição
identitária da pintura e de seus produtores a constituição de uma esfera própria para as artes
plásticas no Ceará, onde a arte de Chico da Silva encontra suas vias de possibilidades.
Sem cair em um reducionismo “reflexista”, pode-se dizer que este quadro de
mudanças vivido no universo artístico pictórico refrata, em algum sentido, as mutações
intensas que a cidade de Fortaleza passava naquele período, nas suas mais diversas ordens. O
73
salto demográfico que a cidade dera no intervalo de duas décadas
71
, a atmosfera de guerra
que a capital mergulhara e a profusão de novos estilos arquitetônicos caracterizados como
“modernos”, tudo isso acarretou, sob determinado aspecto, outros posicionamentos frente à
realidade artística e aos valores estéticos, provocando este estado de efervescência cultural,
artística e intelectual que marca os anos 40 como a “Fase renovadora” da pintura.
Com uma população de aproximadamente 180 mil habitantes, a cidade, que, desde os
anos 30 se expandia de forma acelerada e desordenada mostrava-se, na década de 40, cada vez
mais dividida, traduzindo, espacialmente, a nítida diferenciação entre as classes sociais que
existiam. O centro urbano, área tradicional e histórica, concentrava as residências das famílias
mais abastadas e antigas da cidade, portadoras de grande relevo social e econômico; o entorno
deste centro Benfica, ao sul e Jacarecanga, a oeste também se apresentava como reduto
dessas famílias de nome, das quais a “Gentil” era mais emblemática; o bairro Aldeota, por sua
vez, abrigava a burguesia em ascendência; já as regiões do chamado Alagadiço (São Gerardo)
e da Praia de Iracema reuniam as classes média e alta; e as zonas praieiras, localidades
desprestigiadas pela elite, acolhiam as camadas mais pobres, resultantes, em grande parte, da
afluência de imigrantes vindos do sertão central (GONDIM, 2001; SILVA FILHO: 2002).
Em termos culturais, novos hábitos e lazeres eram assimilados pelos citadinos: a
sensação do rádio que chegara com toda força nos grandes centros brasileiros, configurando a
década de 40 como a “era de ouro do rádio”, logo se dissemina entre o público fortalezense.
Pequenos rádios-receptores, trabalhados a mogno, sintonizavam em espaços públicos os
cafés, bem numerosos no período
72
- e privados, a grade de programação diversificada da
Ceará Rádio Clube, PRE-9, que atuava solitária, desde 1935, na transmissão radiofônica e na
realização de programas de auditório.
Alguns cafés circundantes da Praça do Ferreira davam-se ao luxo de manter em
funcionamento eletrolas, tocando Ave-Maria no Morro, na voz de Dalva de
Oliveira. Depois da incorporação da PRE-9, sucederam-se ‘temporadas’ de
artistas famosos como: Linda e Dircinha Batista, Manezinho Araújo, Milu Melo,
71
“(...) O censo de 1920 indica 78.536 habitantes, ao passo que em 1929 o Relatório da Prefeitura Municipal
estabelecia uma estimativa em torno de 117.000. Já segundo o censo de 1940, a população alcançava a cifra de
180.000, o que significava um crescimento intercensitário superior a 100 em apenas vinte anos. Noutras
palavras, a população de Fortaleza mais que dobrou no período de 1920-40, conferindo à cidade uma dimensão
inaudita até então” (SILVA FILHO, 2002: 29).
72
“Nos idos de 45, quase todas as esquinas do centro comercial de Fortaleza tinham um café, sem contar uns
poucos meios de quarteirão. Esses cafés, redutos de bucolismo romântico, que anos mais tarde seriam
substituídos pelos inexpressivos cafés expressos, tinham um pouco de charme aristocrático do início do século,
além de um doce toque parisiense. Além disso, eram cenário certinho para o famoso samba de Noel Rosa, “Seu
garçom, faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada...”(LOPES, 1988: 69)
74
entre outros. Coincidindo com a inauguração da livraria Aequitas, inicia-se o
rádio teatro no horário nobre. A transmissão de jogos de futebol também era
novidade. O Maestro Mozart Brandão regia as orquestras. As notícias vinham
pelo matutino Prenove e pelo Noticiário Relâmpago, sob patrocínio da Casa das
Máquinas. (COLARES apud GALVÃO, 2008: 52)
A eclosão da segunda guerra mundial também trouxe impactos significativos para a
dinâmica social, cultural e econômica de Fortaleza dos anos 40. Com a instalação, no final de
1943, da Base Aérea das Forças Aliadas, um contingente expressivo de cerca de 50 mil
soldados norte-americanos foi transportado para a cidade, provocando visíveis modificações
na sua rotina e cenário. Os espaços de sociabilidade e lazer (cinemas, praças, praias, clubes e
outros) ganharam nova feição a partir da circulação destes homens, cuja fisionomia,
vestimentas e modos se distinguiam claramente dos cearenses; os estabelecimentos
educacionais, particulares e públicos, tiveram sua dinâmica alterada ao ceder suas instalações
para treinamento preparatório dos soldados e outros fins; e nas ruas da cidade, em meio ao vai
e vem dos civis, o tráfego de Jipes militares, exibindo as insígnias das tropas americanas,
reconfiguravam a cena urbana. Somada a essas interferências no cotidiano, tem se ainda como
reflexos desta presença ianque em Fortaleza, a substituição curricular nas escolas, da língua
francesa pela língua inglesa, além da incorporação de peças de vestuário tipicamente
americano, como os blusões.
Outro efeito concreto da incidência da segunda guerra mundial na capital cearense foi
a implantação do SENTA (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a
Amazônia). A principal tarefa desta instituição era recrutar homens saudáveis, levá-los à
Amazônia, no intuito de trabalharem na extração de látex vegetal, matéria esta de fundamental
importância para a indústria bélica, por conta da produção de borracha. Do Ceará saiu,
literalmente, um “exército”, oriundo, majoritariamente, do sertão. É interessante ressaltar que
a conveniência desse projeto, para estes sertanejos, soava, naquele momento, como
providencial, já que a região vivia mais um período de seca dizimadora. Deste modo, cerca de
30 mil cearenses partiram a caminho do eldorado amazônico, esperançosos de encontrar a
riqueza e a fartura que sua terra lhes negava (GALVÃO, 2008).
A economia do período também não ficou imune às repercussões do conflito mundial,
o egresso populacional de homens para as fileiras do Exercito da Borracha como para a Força
Expedicionária Brasileira, aliado à seca, trouxeram implicações desastrosas para o campo, no
sentido de que o setor agrícola e pecuário fora diretamente prejudicado. A capital, por sua
vez, sofreu as seqüelas destes tempos de guerra com o racionamento de alimentos, petróleo,
75
querosene e gasolina. Tal situação induziu o fortalezense a assumir uma atitude de cautela
frente aos gastos e dispêndios. Deste modo, quem possuía carro, por exemplo, (em 1944,
cerca de 1287 veículos circulavam em Fortaleza) acabava optando, em virtude do
racionamento de combustível, pelos meios de transporte públicos, os bondes
73
.
(...) Em Fortaleza, os problemas eram sérios pela pequenez e absoletismo do
setor fabril, escassez de matéria-prima e pela crise energética provocada pela
ineficiência e desinteresse em fazer investimentos na Usina da cidade, pela
concessionária The Ceará Light, Trarnway end Power Co. Ltd., cuja eletricidade
ainda era produzida pela queima de madeira. Havia também escassez de
petróleo, gasolina e querosene que eram racionados, causando a paralisação de
alguns veículos. Surgia [sic] combustíveis alternativos como o gasogênio
(GALVÃO, 2008: 53)
Arquitetonicamente, a cidade também refletia este quadro de mudanças. Sob a égide do
“ecletismo”, estilo caracterizado pela mélange de padrões formais, novos modelos
arquitetônicos entraram em voga constituindo aquilo que Castro denominou de “modernismo
indefinido” (1987:217). Compreendido como uma variante do estilo eclético o “moderno” foi
assim implementado pelos projetistas fortalezenses sob a inspiração das soluções lançadas na
Exposition de Arts Decoratifs et Industriales Moderns, de Paris, em 1925, mais conhecida
como Art Déco. Erguiam-se desta maneira, prédios como o edifício Sede dos Correios e
Telégrafos de Fortaleza, construído em 1932 que nitidamente isentos dos elementos
decorativos próprios da belle époque apresentavam paramentos lisos e superfícies reentrantes
revestidas de pó e de pedra
74
(Ibidem).
Destarte, frente a este movimento de profundas transformações que a capital passava a
esfera das artes plásticas não poderia ficar à margem. Traduzindo em uma linguagem própria -
que impede a simplista leitura de equivalência entre elementos visuais e a realidade social
mais ampla - a pintura cearense expressava estes novos valores e conceitos gestados nos
diversos âmbitos (econômico, cultural, social e político) apontando, inclusive, as tensões e
contramarchas que permeiam este processo de inovação.
Portanto, marcados pelo “espírito” transformador de seu tempo, os artistas plásticos
cearenses sentem a urgência de “(...) plasmarem nas telas em branco, uma mensagem nova, de
arte e temperamento (...)” (LEITE, 1949:8). Agrupados em torno da figura de Mário Baratta,
73
Cidade ganha novos hábitos. Diário do Nordeste, Fortaleza, p.15 -16. 04 out. 2009.
74
Tem-se ainda edificados sob esta influência: o Quartel Batalhão de Segurança, mais tarde transformado em
Centro de Saúde, a Praça José de Alencar, feita em 1932 e a Coluna da Hora, de 1933 (GALVÃO, 2008:37).
76
agente catalizador deste movimento, eles se articulam de forma mais séria, imprimindo,
paulatinamente, um caráter institucional às reuniões esporádicas que aconteciam nos ateliês
de Delfino Silva e Francisco Ávila. Assim, surgem as primeiras entidades artísticas
organizacionais responsáveis, em grande parte, pela incorporação de novas tendências e
sentidos na pintura, ponto de abertura para inclusão de outras linguagens estilísticas, nas
quais a manifestação “primitiva” de Chico da Silva encontrará seu lugar.
3.2.1. As entidades artísticas e o modernismo tardio.
Como fora anunciado, as entidades agremiadoras dos artistas cearenses Centro
Cultural de Belas Artes (CCBA) e Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP) - tiveram
sua célula inicial nos ateliês coletivos, espalhados nas diversas ruas do centro urbano de
Fortaleza. Provenientes de necessidades comuns àqueles que se enveredavam pelo íngreme
caminho da pintura, elas representaram formalmente, dentro de um quadro processual, “(...)
um episódio de incorporação das instituições artísticas numa personalidade jurídica, o que,
por si só, já revela a pujança da esfera das artes, que se torna mais estruturada e independente
(PINHEIRO FILHO, 2008: 114).
Parece razoável afirmar que o modo como estas entidades se instituíam na capital
cearense conformava-se, em diversos aspectos, ao caráter organizacional de outras
associações de pintores atuantes nos principais centros artísticos do país, sobretudo, nos idos
dos anos 30. Em muito, elas se assemelhavam a grupos tais quais: o Núcleo Bernadelli (RJ)
75
, o Santa Helena (SP)
76
e a SPAM Sociedade Pró-Arte Moderna (SP)
77
que buscando
75
O Grupo Bernadelli de atuação marcante entre os anos 1941 e 1942, na cidade do Rio de Janeiro, é assim
denominado em homenagem aos irmãos Henrique e Rodolfo Bernadelli, defensores de reformas no ensino da
Escola Nacional de Belas Artes, instituição na qual lecionavam. Constituída por um grupo de artistas
inconformistas, a agremiação promovia cursos de desenho com modelo vivo e aulas ao ar livre, em excursões ao
domingo. São alguns dos nomes que compuseram a entidade: Ado Malagoli, Bráulio Polava, Bruno Lechowsky,
Edson Mota, Milton da Costa e outros (GALVÃO, 2008).
76
“O grupo Santa Helena foi assim denominado em virtude do nome do prédio onde vários artistas que
compunham o grupo mantinham o ateliê: Palacete Santa Helena, um velho edifício localizado na Praça da Sé,
no centro da capital paulista” (Ibidem: 47). Nascido na década de 30, a organização congregou artistas como
Aldo Bonadei, Alfredo Rullo, Clóvis Graciano, Humberto Rosa e outros que preocupados com o domínio do
ofício e com o apuramento técnico, discutiam entre si sobre as questões da arte, desenvolvendo trabalhos de
características comuns.
77
Liderada pelo artista lituano Lasar Segall, a Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) que surge na cada de 30,
em meio ao quadro de ebulição artística de São Paulo, se coloca como uma instituição associativa não dos
artistas plásticos como de literatos, intelectuais e dos chamados “amigos das artes”. Reunindo nomes de peso
como Anita Maffalti, Sérgio Milliet, Tarsila do Amaral, Victor Brecheret e outros, a SPAM, apesar de sua curta
77
estabelecer espaços de sociabilidade que garantisse melhores condições de profissionalização
aos seus agentes
78
, se mobilizavam internamente, promovendo cursos livres de desenho e
pintura, excursões ao campo e outras atividades.
Deste modo, sob determinada influência, direta ou indireta
79
, nasce no Ceará, no ano
de 1941, com a participação de Afonso Bruno, Antônio Bandeira, Barboza Leite, Clidenor
Capibaribe, Delfino Silva, Expedito Branco
80
, Francisco Ávila, George Miranda
81
, Gerson
Farias, João Siqueira, Luiz Índio Cordeiro, Mário Baratta, Otacílio de Azevedo, Raimundo
Campos, Raimundo Garcia, Rolnei Correia e Rubens Azevedo e com o apoio de Raimundo
Cela (GALVÃO, 2008: 80-81), o Centro Cultural de Belas Artes (CCBA):
Aos trinta dias do mês de junho, do ano de mil novecentos e quarenta e um, na
Sede do Centro Estudantal Cearense, à Rua Floriano Peixoto, nº 133, às 19,30 h,
com a presença de quase a totalidade dos pintores residentes em Fortaleza,
realizou-se a Sessão de Fundação de um Centro de Cultura de Belas Artes no
Ceará.
De inicio, foi organizada a mesa na qual tomaram parte os colegas: Mário
Baratta, Clidenor Capibaribe, Luiz Índio Cordeiro, Afonso Bruno e Jaime Silva.
O colega M. Baratta usando da palavra expôs aos presentes a finalidade do
Centro, que seria a aproximação de todos os artistas pintores, criação de uma
escola de desenho e pintura, mantida e dirigida pelos associados, conferências,
organizações de salões anuais e galerias permanentes, onde todos pudessem
trabalhar e desenvolver o Centro, levar ao conhecimento do diretor de Instrução
Pública e Fundação do mesmo e seus fins (...) (ESTRIGAS, 1983: 14).
existência, movimentou o círculo artístico cultural paulista promovendo Salões, exposições, amostras e
conferências (PEREIRA FILHO, 2008).
78
“Cotejando a estratégia dos dois principais grupos de pintores de estação popular formados na década de
trinta o Santa Helena, em SP e o cleo Bernadelli, no RJ -, com a conduta dos modernistas’ de ‘elite’ da
década anterior, Frederico Morais salienta a preocupação profissionalizante que presidia os esforços dos dois
grupos. Essa conduta consistiria em participar ativamente na formação de instâncias de divulgação e de
consagração, e em pensar na possibilidade de venda de quadros” (DURAND, 1989: 101).
79
Em seu livro A escola invisível, Roberto Galvão assinala para a influência direta destes grupos no movimento
artístico cearense destacando a passagem de integrantes do Grupo Bernadelli no Ceará: “Outro aspecto a
considerar neste fazer-se do movimento artístico cearense, foi a presença em Fortaleza, de João Rescala, um
dos líderes do Grupo Bernadelli, por ocasião da exposição inaugural do primeiro grupo cearense de artistas
plásticos, o Centro Cultural de Belas Artes –CCBA, em 1941. Barrica (apud Estrigas, 1983: 74) narrou em
poucas linhas uma excursão a Caucaia em busca de paisagens para pintar, onde Rescala pintou um canavial
que presenteou a Mário Baratta; Baratta afirmou em depoimento publicado no A Fase Renovadora da Arte
Cearense (Estrigas, 1983: 82) que Rescala ‘muito serviu para consolidar a união da turma. Outra ponte que
pode ter sido estabelecida entre o Núcleo Bernadelli e os artistas cearenses pode ter acontecido através de
Inimá de Paula, artista mineiro que gravitou pelo Núcleo e residia em Fortaleza por ocasião da criação da
Sociedade Cearense de Artes Plásticas –SCAP, participando da mostra Pintores de Guerra, em 1944, época que
o Núcleo carioca já havia se desfeito” (2008: 75-76).
80
“Pouco sabemos sobre Expedito Branco, além de ser um dos fundadores do CCBA e de participar dos dois
primeiros Salões Cearenses de Pinturas, promovidos pela instituição em 1941 e 1942” (Ibidem: 137)
81
Denominado por Baratta Mestre Georgemir, poucas informações se tem sobre este artista.
78
Amparado por um programa definido de atividades, o CCBA se apresentava, nestes
termos, como um espaço de convivência e formação mútua onde “A liberdade de fazer, sentir
e interpretar era total, mas a qualidade do trabalho e a consciência de que o movimento era de
renovação se constituía um objetivo a ser atingido (...)” (Idem, 2001: 19). Frente a essa
propositiva inovadora, algumas audácias formais, ainda que situadas lado a lado às práticas
artísticas de princípios acadêmicos, eram vivenciadas e experimentadas neste ambiente, “(...)
menos ‘pour épater le bourgeois’ do que para afirmar novas orientações” (Idem, 1983: 18).
Desprendidos de um padrão pitoresco unívoco, os artistas cearenses passeavam por
tendências variáveis que definiam a natureza plástica do movimento, em muito, pela sua
heterogeneidade. Sobre esta pluralidade que se constata, Barboza Leite disserta:
(...) Havia os diletantes, amarrados a um policromismo efusivo e sem
consistência; os comportados, simétricos, sem grandes evasões; os exaltados, em
decorrência de informações literárias parcialmente digeridas; os impressionados
pela poesia, tendentes à busca metafísica; os que trocavam a tinta pela argila e a
pedra; havia os que apenas se encantavam com a vida em sua origem elementar
(...) (apud ibidem: 88)
Conservando certo “modernismo sadio”, as obras destes pintores mostravam-se, em
determinados aspectos, sóbrias e contidas, ao se tomar como referência, especificamente, as
radicalizações estilísticas operadas pelo movimento moderno do círculo artístico paulistano.
Voltadas para um “abstracionismo sem rompantes e agressividades”, “longe de esoterismos e
arrojos da decadência futurista” (Ibidem: 18), essas manifestações guardavam determinada
linha de equilíbrio e organização interna bem próxima à tônica moderada da produção
pictórica realizada pelo Grupo Bernadelli, a qual Durand em sua análise busca os elementos
causais:
O aprendizado autodidata ou em ateliês coletivos, o ganho da vida por meio de
ocupações extra-artísticas, ou nas artes ‘aplicadas’, o futuro incerto até que
grandes iniciativas implantassem de vez a arte ‘moderna’ sobre o gosto
conservador, são traços de carreira de boa parte dos pintores e escultores que
começaram nos anos 30 e que não provinham de família de posses (...). Assim,
não é de estranhar que a senda ‘modernista’ para vários deles se apresentasse
como via perigosa e insegura, autorizando um recuo mais precavido à arte de
feitio acadêmico, tal como se pode ver em vários componentes no Núcleo
Bernadelli e uma parte da produção do pessoal do Santa Helena (...). No mundo
das carências culturais em que viviam, a situação de guerra na Europa privava-
os até mesmo de álbuns e demais fontes iconográficas necessárias para a
atualização (1989: 102-103)
79
Muito embora o que parece ínfimo e irrisório para uma determinada realidade artística
pode ser o bastante para provocar uma verdadeira reviravolta estética em outra dinâmica.
Neste sentido, o progressivo desvencilhar das artes cearenses dos valores puramente
miméticos, calcados na tradição neoclássica, foi o suficiente para escandalizar “o povo
acostumado com esse decorativismo exagerado e fora de época (...)” (ESTRIGAS, 1983: 19).
Ora, o público familiarizado com “(...) coisas bem lambidinhas, bem comportadazinhas, bem
parecidinhas e, sobretudo bem coloridazinhas e bem bonitinhas (...)” (Idem, 1994:51), ao se
deparar com telas “mal acabadas”, portadoras de linguagens pictóricas de caráter moderno e
diferente dos trabalhos habitualmente exibidos, sofreram considerável impacto que
careciam, ainda, dos códigos de leitura necessários para e apreciação e imputação de sentido a
tal visualidade.
Portanto, de se atentar, nesta configuração em especial, para as medidas de cunho
vanguardistas agenciadas por esta “meia-dúzia de abnegados” (Idem, 1983: 19) das quais
repercutem as estruturas constitutivas de um campo artístico autônomo e independente: a
criação de instâncias de consagração (salões, mostras, exposições e etc.) parece ser uma
delas.
Congregando esforços de todos os participantes do CCBA o I Salão de Pintura
Cearense, organizado em setembro de 1941 no Palácio do Comércio, e sua II e III edições,
realizadas respectivamente em 1942 e 1944, refletem a intensificação deste delineamento, já
iniciado nas modestas exposições ocorridas nos anos 20 e 30, que vem especificar e afirmar o
lugar próprio das artes plásticas entre as outras manifestações e linguagens artísticas
imagéticas.
Condicionando a celebração da arte e seus produtores, estes espaços de legitimação e
divulgação atraíam para si a atenção de uma parcela da sociedade fortalezense, oferecendo
uma mostra expressiva do processo laboratorial e experimental vivenciado pelos pintores,
sejam no interior do ateliê coletivo, no exercício, por exemplo, de reprodução de um modelo
vivo; ou nas atividades externas: as excursões matutinas e noturnas, reveladoras das mais
belas e inusitadas paisagens da capital cearense, tais quais o Morro do Moinho e o Poço das
Dragas.
Logo, nesta “(...) Fortaleza tão indiferente e fria às manifestações artísticas (...)”
(Idem, 1994: 38), esses eventos suscitavam o despertar para os talentos emergentes e para o
80
novo tratamento visual por eles manejados, provocando comentários significativos na esfera
da imprensa, que se outrora pouco valor dava aos acontecimentos desta natureza, agora
assumia o duplo papel de agente crítico - ao tecer considerações, em grande parte, de caráter
genérico sobre as propriedades das obras e seus enquadramentos estilísticos – e agente difusor
– ao colocar a sociedade a par destes acontecimentos e de suas repercussões.
Assim, a Gazeta de Notícia refere-se a este empreendimento de amplitude artística e
social organizado pelo CCBA, nos seguintes termos: “Foi uma surpresa e uma grande
novidade. A primeira exposição surpreendeu a muita gente, ao mesmo tempo, revelou grandes
artistas” (Idem, 1983: 19). O Estado, por sua vez, assinala: “Um oásis no escaldante deserto
de materialismo desportivo que nos assoberba muito tempo: um raio de sol nessa penumbra
de artificialismos enervante e barulhento de que os jornais enchem colunas e colunas...”
(Ibidem). Especificamente, sobre o II Salão, declara concisamente a Revista Contemporânea:
“(...) O ‘II Salão Cearense de Belas-Artes constitui, portanto, uma forte demonstração de
pintura. ‘Revolucionários’ ou não eles estão elevando o nome do Cea artístico” (Ibidem:
20). E, finalmente, sobre a III versão do evento, o Correio do Ceará denuncia: “Sem auxílios
oficiais, sem o necessário estímulo do público que geralmente é indiferente à sorte dos
artistas, trabalham os pintores cearenses numa silenciosa e meritória devoção a sua arte,
aumentando e melhorando sua produção” (Ibidem: 21).
Instaurando, ainda, o sistema de premiação em sua III edição, o Salão Cearense de
Pintura - aos moldes das Academias Nacional de Belas Artes (antes pólo monopolizador do
juízo estético) - apresentava-se, portanto, como este espaço qualificado a atribuir o título
distintivo responsável pela alocação posicional ascendente dos pintores no interior do campo
artístico. Como se sabe, dentro de uma economia própria dos bens culturais, os títulos
honoríficos, medalhas, incentivos monetários tornam-se objeto de disputa entre os agentes
concorrentes, por funcionarem como uma espécie de capital simbólico
82
, agregador de valor
82
“(...) Chamo de capital simbólico qualquer tipo de capital (econômico, cultural, escolar ou social) percebido
de acordo com as categorias de percepção, os princípios de visão e divisão, os sistemas de classificação, os
esquemas classificatórios, os esquemas cognitivos, que são, em parte, produto da incorporação das estruturas
objetivas do campo considerado, isto é, da estrutura de distribuição do capital no campo considerado. O capital
simbólico que faz com que reverenciemos Luís XIV, que lhe façamos a corte, com que ele possa dar ordens e que
essas ordens sejam obedecidas, com que ele possa desclassificar, rebaixar, consagrar etc., existe na medida
em que todas as pequenas diferenças, as marcas sutis de distinção na etiqueta e nos níveis sociais, nas práticas
e nas vestimentas, tudo o que compõem a vida na corte, sejam percebidas pelas pessoas que conhecem e
reconhecem, na prática (que incorporam), um princípio de diferenciação que lhes permite reconhecer todas
essas diferenças e atribuir-lhes valor, em uma palavra, pessoas prontas a morrer por uma querela de barretes.
O capital simbólico é um capital com base cognitiva, apoiado sobre o conhecimento e reconhecimento
(BOURDIEU, 1996b : 149-150).
81
(no caso da obra de arte: simbólico e econômico, já que para o mercado de artes plásticas estas
ordens se convertem) à obra artística e a seu “criador”. Nestes termos, estes sistemas de
premiação que se constituíam na dinâmica artística cearense ofereciam a oportunidade de
validação e reconhecimento dos pintores que encontravam, muitas vezes, neste acúmulo local
o ponto de partida para a inserção em outros circuitos de consagração nacional e
internacional. É, destarte, por ocasião desta primeira premiação oferecida pelo III Salão que
são agraciados com títulos: Antônio Bandeira (primeiro lugar em pintura), Mário Baratta
(segundo lugar em pintura) e João Maria Siqueira
83
(premiado na categoria desenho).
No ano de 1943, no intervalo entre o II e o III Salão Cearense de Pintura, outra
instância de consagração se constitui na capital. Agora, sob a organização da Secretaria de
Arte da União Estadual dos Estudantes (UEE), nasce o Salão de Abril, um dos mais
importantes canais de exposição da cidade que se faz presente até nossos dias como
“termômetro das artes plásticas no Ceará” (GALVÃO, 1987: 52), talvez não com a mesma
vivacidade e atuação das primeiras décadas de sua fundação, mas não com menor relevância
para o quadro artístico contemporâneo ainda carente de locais de notabilidade e divulgação.
Trazendo ao público “poucos artistas, mas de melhor qualidade” (ESTRIGAS, 1994:
24) o Salão de Abril, em sua primeira versão, apresentou o trabalho de nove pintores, cuja
nuclealidade central respondia pelo movimento do CCBA. Eram eles: Raimundo Cela,
Antônio Bandeira, Mário Baratta, Aldemir Martins, Afonso Bruno, João Maria Siqueira,
Rubens, Fonsek e Jean Pierre Chabloz.
As proposições que as obras expunham “(...) Era uma confirmação, e aprofundamento,
do que se mostrara nas exposições últimas antecedentes” (Ibidem). Ao lado de
manifestações eminentemente acadêmicas, as quais tinham por representante a figura ímpar
de Raimundo Cela, novas tendências de cunho “moderno” eram proclamadas, tanto pelos
coloridos acentuados de Mário Baratta, convicto da dissociabilidade entre pintura e desenho;
como pelas audaciosas e denuncistas aquarelas “Miséria e oração” e “Casebres entre árvores”
de Antônio Bandeira a quem a crítica jornalística compara ao mestre Van Gogh.
83
“Desenhista e pintor autodidata João Maria Siqueira nasceu em Pacatuba, em 1917. Participou de várias
mostras coletivas, destacando-se: o III Salão Cearense de Pintura, onde obteve o primeiro Prêmio de desenho.
Foi um dos fundadores do Centro Cultural de Belas Artes e da Sociedade Cearense de Artes Plásticas, sendo,
em 1950, presidente da SCAP. De 1975 a1978, dirigiu a Casa de Cultura Raimundo Cela, em Fortaleza.
Faleceu em Fortaleza, em 1997” (GALVÃO, 2008: 137)
82
Não obstante, em meio a este quadro de transformações e avanços significativos
notabilizados no plano pictórico-formal, a permanência de antigas problemáticas de
implicância infra-estrutural, sofridas também pelas gerações ulteriores, emprestava ar de
imobilidade e estaticidade ao movimento artístico cearense deste período. Indubitavelmente,
se que os passos necessários para oferecer uma estrutura material propícia, para o
desenvolvimento artístico local, ainda não tinham sido dados e estavam longe de se
efetivarem. A falta de recursos financeiros, ocasionadas pelo quase que total desamparo do
Estado e das elites, neste contexto ainda era uma triste realidade que limitava e condicionava,
em muito, as ações do grupo, conferindo até mesmo certo caráter nômade à entidade
“recheada por mudanças de sede e mesmo períodos sem um local fixo para o
desenvolvimento de seus trabalhos” (RODRIGUES, 2002: 56).
Abrigado inicialmente no Centro Estudantil Cearense, o CCBA contou em sua curta
existência com três sedes oficiais. A primeira tinha lugar no porão de um palacete do Benfica,
de propriedade do Sr. Santabaia, “que ficava do lado esquerdo, no sentido do fim da linha,
vis-à-vis com a Fundição Cearense” (ESTRIGAS, 1983: 16), cujo aluguel fora facilitado pela
morte do último morador
84
. A segunda sede localizava-se, por sua vez, no andar da
Rotisserie, atual prédio da Caixa Econômica Federal na Praça do Ferreira, onde funcionava
uma espécie de república de estudantes. A terceira e última, também situada na Praça do
Ferreira, tinha por espaço o velho edifício da Intendência, prédio de arquitetura antiga -
fachada com relevos, porta larga de carvalho com dobradiças enormes, escadaria e corrimão
de jacarandá polido -, cedido pela prefeitura municipal de Fortaleza.
Portanto, sob as marcas de uma trajetória itinerante, mas de muitos feitos, é que o
CCBA, no ano de 1944, encerra suas atividades. Reconfigurado em suas propositivas e
direcionamentos, ele desaparece para dar lugar a uma nova denominação: a Sociedade
Cearense de Artes Plásticas (SCAP) que exerce certo continuísmo das linhas de ação
principais do CCBA, mas agrega outros elementos, expressos, principalmente, na elaboração
de um novo estatuto e na maior aderência de artistas do circuito plástico e também do
literário.
Instituída oficialmente no dia 27 de agosto de 1944, a SCAP traz destacadamente em
seu regimento sua principal finalidade: “elevar o nível cultural artístico” no meio cearense. A
proposta que não desvia, de certa forma, dos anseios estipulados pelo grupo do CCBA, se
84
A morte do último morador de tuberculose acaba por afastar possíveis inquilinos.
83
daria, sob esta nova organização, em torno de ações bem efetivas como: a) a realização de:
salões de artes plásticas, galeria permanente de arte, concurso de motivos e escolas e cursos
de desenho artístico e aplicado, pintura e escultura; b) a manutenção de um atelier, uma
biblioteca e um centro de palestras sobre arte; c) a promoção de intercâmbios com artistas ou
sociedades do país ou do estrangeiro (Idem, 1983).
Funcionando inicialmente no velho prédio da intendência, que abrigara o CCBA em
seus últimos dias, a SCAP reunia em sua primeira formação, tanto artistas que figuraram entre
os fundadores da primeira entidade artística, como novos nomes que entravam em contato
com o mundo das artes por intermédio dessa outra organização. São alguns daqueles que
participaram das atividades iniciais da agremiação: Clidenor Capibaribe (Barrica), Antônio
Bandeira, Aldemir Martins, Sérvulo Esmeraldo
85
, Inimá José de Paula, Carmélio Cruz
86
,
Jonas Mesquita
87
, Barboza Leite, Goebel Weyne
88
, Zenon Barreto
89
, Mário Baratta, José
Maria Siqueira, Raimundo Campos e Jean Pierre Chabloz.
Traçando limites mais amplos para seus propósitos de formação e divulgação das artes
no Ceará, a SCAP agregou, ainda, em sua dinâmica, jovens escritores tais como Braga
Montenegro, Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros, Artur Eduardo Benevides, Otacílio
Colares, Fran Martins, Eduardo Campos, Ciro Colares e outros que em contato com as idéias
e linguagens modernas no âmbito literário, nacional e internacional, debatiam e discutiam,
nos cafés e rodas de conversa da cidade sobre novas fórmulas e tendências de crescente
profusão.
A movimentação espontânea que se formaliza institucionalmente sob a sigla CLÃ
(Clube de Literatura e Arte), ao encontrar afinidades identitárias com a associação de pintores
scapianos - em termos ideários e de sugestões estéticas - estabelece nexos estilísticos e
conteudísticos com o conjunto de manifestações pictóricas, em um diálogo bastante intenso.
85
“Saiu de Fortaleza para S.Paulo e em seguida para a Europa onde esteve por muito tempo e goza de bom
conceito. Hoje vive entre lá e cá” (ESTRIGAS, 1983: 31)
86
Nascido em Canindé, no ano de 1924, o pintor, desenhista e cenógrafo Carmélio Cruz transferiu-se para o Rio
e em seguida para São Paulo sendo seus trabalhos aceitos nas diversas cidades. Foi presidente da SCAP em
1858. Faleceu em Fortaleza, em 1981 (GALVÃO, 2008).
87
“Instala-se em S. Paulo onde divide o tempo entre a arte e outras atividades. Já obteve prêmio no Salão
Paulista de Arte Moderna” (ESTRIGAS, op.cit: 31).
88
Fixou-se no Rio onde obteve prêmio de cartaz na bienal paulista. Professor na Escola de Arte Industrial e
importante figura nas artes gráficas (Ibidem).
89
“Apesar de algumas exposições e viagens a outros estados preferiu permanecer em Fortaleza. Tem
participado de mostras internacionais, como Bienal de S.Paulo, Salão Nacional de Arte Moderna onde é prêmio
de aquisição, Panorama de Arte Contemporânea, além de outros” (Ibidem)
84
No conjunto CLÃ-SCAP estariam as determinantes que marcam as obras todas
do grupo. Bem examinada a produção do grupo, evidencia-se que uma mesma
estética subjacente liga os poemas de Antônio Girão Barroso, os sonetos de
Otacílio Colares e as pinturas de Aldemir Martins (ESTRIGAS, 2004: 108)
Faz-se necessário ressaltar que, é desse entrosamento, ou como assinala Gilmar de
Carvalho, dessa “simbiose” (apud Ibidem: 9) entre a SCAP e o CLÃ, que nasce o esboço de
um espaço crítico de importância fundamental para a constituição de uma esfera própria e
autônoma das artes plásticas cearense.
Ora, esses literatos, que também militavam na imprensa, ao veicularem notas sobre as
amostras e exposições realizadas pela entidade e ao tecerem comentários específicos sobre os
artistas e suas obras “ressaltando as qualidades e mostrando os defeitos, os pontos fracos”
(Idem, 1983: 43) instituíam e consolidavam uma linguagem peculiar que só dizia respeito ao
domínio pinturesco, elaborando assim “(...) uma definição autônoma do valor propriamente
artístico” (BOURDIEU, 1989: 290).
Nota-se, deste modo, que a SCAP em sua articulação ampliada leva adiante e
amadurece a proposta de libertação e renovação artística colocada pelo CCBA. Assim, em
busca de novas temáticas, motivos e técnicas, os artistas da agremiação continuavam a se
dedicar tanto aos estudos e experimentações realizadas no ambiente interno do atelier, como
àqueles desempenhados ao ar livre, em excursões pela cidade. Sobre esses momentos
particulares, Bandeira em uma apresentação para um catálogo de uma mostra sua no MAUC
oferece uma visão,
(...) Houve naquela época realmente um cheiro de tinta, uma vontade de tinta,
uma ânsia de desenhar, de pintar, de aprender, de vasculhar a humanidade local
que é a humanidade universal. Homens se deslocavam no domingo (perdão,
Senhor, era domingo o dia de trabalho para nós, pois a semana era de outras
ocupações), e nos morros e subúrbios de Fortaleza uma caravana partia, à moda
de Courbet, à moda de Van Gogh (não temos a pretensão dos mestres, mas
jeitos, gestos e instrumentos de trabalho eram os mesmos), e daquelas excursões
nasciam figuras e paisagens, às vezes simples naturezas-mortas de peixes ou
frutas. Outras vezes, de noite, nos sótãos, se desenhava, uns posando para os
outros, pintores representando Cristo ou Barrabás, prostitutas (não havia o
chamado modelo) ensaiando Madalenas ou Madonas. Éramos jovens meio
bíblicos e anedóticos, havia vontade e pureza no ambiente. Queríamos aprender
e fazer queríamos uma irmandade que a arte nos dava. E havia também um
pouco de boemia, eram jovens os ‘pintores de Fortaleza’ (ESTRIGAS, 2001:
50-51).
85
O produto final dessas vivências era exposto para o público em geral, nas amostras e
salões, também organizados pela entidade, que não tinham o intuito de divulgar os
trabalhos e os nomes dos artistas, como o de formar o olhar desse público para fruição de
novas linguagens que requeriam outros esquemas de apreciação. Foi assim nas exposições
coletivas e individuais articuladas avulsamente, como a “Pintura em Guerra” (1944), e no
Salão de Abril, evento permanente promovido pela SCAP de 1946 a 1958. As obras
apresentadas a cada ano, além de evidenciarem uma notável evolução técnica dos pintores,
um tratamento mais apurado das composições promoviam a aproximação dos fortalezenses
com novas formas e manifestações de caráter moderno, demarcados nos estilos cada vez mais
pessoais dos artistas. Era o expressionismo, sobretudo, que se colocava, chamando a atenção
não para o motivo em si, mas para o modo singular de formar.
Logo, esse momento conduz o fazer artístico “(...) a uma tomada de posição com
relação à forma, ao modo de fazer, distanciando-se pouco a pouco de temas, até
desmaterializá-los sob o domínio de uma figuração mais ‘livre’” (RODRIGUES, 2007: 32). A
arte, portanto, se desliga de qualquer aspecto exterior ou significação transcendente, - no caso
do “motivo” e “anedótico” esse aspecto seria o literário, o discursivo -, referindo-se, se não a
ela mesma, “reivindicando a autonomia da representação propriamente ‘icônica’”
(BOURDIEU, 1996: 159). Neste sentido, a retratação em um quadro de uma maça verde
sobre um tapete vermelho, por exemplo, não se faria sobre a relação entre dois objetos, mas
sobre a relação entre dois tons, um verde e um vermelho (LÉGER, 1989: 21).
Acompanhada dessa espécie de volta reflexiva e crítica que os produtores fazem sobre
sua produção, opera-se, ainda, a afirmação do domínio que eles têm sobre aquilo que os
define e o que lhes pertence em particular, isto é, a forma e a técnica. Neste sentido,
Afirmar a autonomia da produção é conferir o primado àquilo de que o artista é
senhor, ou seja, a forma, a maneira e o estilo, em relação ao ‘indivíduo’,
referente exterior, por onde se introduz a subordinação a funções ainda que se
tratasse da mais elementar, ou seja, de representar, significar e dizer algo. É, ao
mesmo tempo, recusar o reconhecimento de qualquer outra necessidade além
daquela que se encontra inscrita na tradição própria da disciplina artística
considerada; trata-se de passar de uma arte que imita a natureza para uma arte
que imita a arte, encontrando, em sua história própria, o principio exclusivo de
suas experimentações e de suas rupturas, inclusive com a tradição (BOURDIEU,
2007:11).
86
E nesta dinâmica de falar de si mesma, a arte acaba por se referenciar na sua própria
história, que é também a história de produção do campo. Evocando “a história do gênero que
se encontra objetivada nas obras passadas e registradas, codificadas, canonizadas por todo um
corpo de profissionais da conservação e da celebração (...)” (BOURDIEU, 1996: 273), cada
nova obra realizada situa-se, inclusive as de vanguarda, com relação ao que foi feito
anteriormente, sobrepondo-se nesta justaposição de camadas semântica, inscrevendo-se nesta
linha de continuidade e de cumulatividade do campo.
Por conseguinte, denota-se que nesse estágio de autonomia do campo artístico, no qual
se apresenta índices como: a emergência de instituições especificamente artísticas (museus,
salões, galerias e etc.), a formação de um conjunto de agente especializados (críticos, artistas,
jornalistas e etc.) e a constituição de uma história própria que faz a arte falar de si mesma e
não de outra esfera, não espaço para aqueles que renegam a história do campo e tudo que
ele forjou, já que tal conhecimento não se torna condição relevante, como imprescindível
para a inserção e acomodação nesse microcosmo social.
3.2.2. Chico da Silva e o movimento “renovador”.
Ainda que Chico da Silva não tenha participado ativamente do movimento artístico
renovador, como agente direto, sua trajetória encontra-se intimamente ligada a esse
acontecimento e pode ser compreendida na esteira desse processo. Ora, pensando que o
artista tivesse executado seus trabalhos muralistas de caráter disforme e desproporcional,
vinte anos mais cedo de sua real “descoberta”, - isto é, no período que antecede o
adensamento do modernismo no Ceará suas composições encontrariam se não indiferença,
indiscutivelmente, resistência por parte da crítica e dos pares, que seu padrão pictórico
mostraria extrema dissonância aos cânones realistas e figurativos que orientavam a pintura
daquele período. Portanto, compreende-se que é no seio da efervescência cultural e artística,
deflagrada nos anos 40, que a expressão de Chico da Silva encontra suas possibilidades
objetivas de realização.
Como fora dito, Chico da Silva não estabelece nenhum contato pessoal com o grupo
scapiano. Apesar de o depoimento de alguns artistas do movimento apontar para o
conhecimento da existência do “pintor praiano” – Aldemir Martins fala de figuras de carvão
na parede, bichos no tijolo da calçada, no muro do Náutico da praia Formosa, navios
87
sumários e poderosos nas fachadas das bodegas de cachaça do Pirambu” (MARTINS, 1992
apud GALVÃO, 2008: 154) e especula-se que Antônio Bandeira tenha visto primeiro os
desenhos do “meio-índio” nas casas dos pescadores o que se percebe é um visível
distanciamento entre o pintor primitivo e a entidade artística cearense.
Contudo, tal afastamento não é total, pelo ponto de encontro que se funda na figura
ímpar de Pierre Chabloz, um dos principais agentes incentivadores do movimento estético e
“descobridor” das composições primitivas de Chico da Silva.
Em tentativas, inicialmente não muito bem sucedidas, Chabloz visa, senão integrar
diretamente Chico da Silva ao grupo (fica bastante clara a acepção “espontânea” que o crítico
empresta ao processo criativo de Silva, sendo por isso negativa a sua aproximação com a
SCAP, formativa por excelência
90
), dar a conhecer seus trabalhos, a seu ver “renovador”, aos
participantes da entidade. Entretanto, de início o pintor encontra sérias resistência entre esses.
As palavras do escritor Artur Eduardo Benevides evidenciam bem esse momento: “Chabloz o
elogiava como um primitivista muito bom. Nós sabíamos, mas não dávamos essa importância
que ele tem e que só viria a ser reconhecida a posteriori. Ele era um artista simples e comum,
sem essa projeção que viria alcançar” (BENEVIDES, 1985 apud GALVÃO, 2008: 156)
Subscrito nesta empreitada aproximativa de Chabloz está a própria idéia de que,
inconscientemente, Chico da Silva, ainda que à margem, estaria ligado a reviravolta estética
que o Ceará processava. Longe do centro da cidade, onde o meio artístico se agitava, na
periferia, o artista, como que motivado por forças elementares, anunciava, sem o saber, um
caminho novo de criação - liberto de todas as amarras impostas pelo padrão rígido do
academicismo.
Neste sentido, Chico alinhava-se posicionalmente ao grupo de artista contrário à frieza
superficial da arte neoclássica; sua obra entrava em sintonia com aquelas que, de alguma
forma, seja pela maneira irreverente de exibição ou por estabelecer novos modelos de
composição, buscavam subverter as regras convencionalmente instituídas. Assim, mesmo
carecendo de uma elaboração conceitual que fundamente seu posicionamento, Chico da Silva
aloca-se, por uma série de características formais e estilísticas que serão discutidas no capítulo
90
Sobre esta distância entre Chico da Silva e a SCAP, Estrigas comenta: “Os artistas que atuavam, nesse
período, não haviam praticamente, conhecido Francisco e, consequentemente, não houvera possibilidade de um
relacionamento de amizade entre eles. Em conseqüência, os artistas, nem mesmo pelos laços e afinidade
artística, lembraram-se, ou tiveram motivos fortes, para, pelo menos, procurar o ‘índio’ e atraí-lo, conservando-
o no meio. Talvez, ou com certeza, isso foi providencial para Francisco, pois se tal acontecesse ele poderia ter
perdido sua pureza original e se desviado, ninguém sabe para onde (...)” (1988a:31)
88
seguinte, em direção ao movimento moderno, constituindo-se, mais tarde, ao lado de Bandeira
e Aldemir, como um dos pólos fundamentais do modernismo cearense (SILBERSTEIN,
1977: 219).
Figura 6. O encontro de Chico da Silva e o scapiano Antônio Bandeira (MAUC).
Deste modo, assim como o pintor naif Henri Rousseau encontra abrigo entre os artistas
que compõem a mostra revolucionária do Salão dos Independentes na França, em 1886; Chico
da Silva acha refúgio no conjunto de manifestações estéticas de cunho moderno que se erige
no Ceará, na década de 40. E é, por conseguinte, no curso desta dinâmica de inovação e
experimentação que suas obras são levadas aos salões locais, nacionais e internacionais de
acepção vanguardista.
Destarte, no ano de 1944, numa estréia silenciosa, por interferência de Chabloz, Chico
da Silva expõe no III Salão Cearense de Pintura seus primeiros trabalhos realizados a guache
e em tela. A mostra que reunia quadros produzidos pelo novato no espaço de um ano, como já
foi explanado em outro momento, pouco despertou interesse da crítica e do público, fato que
lhe rende não mais que um breve comentário de Barboza Leite no seu livro “Esquema da
Pintura no Ceará”. Repercussões a parte, o simples fato de Chico da Silva figurar entre
pintores como Antônio Bandeira e Mário Baratta, engajados diretamente ao movimento
estético, demonstra o englobamento de sua expressão por esta dinâmica de transformações
artísticas.
Em 1945, o pintor naif é incluído em uma exposição de artistas cearenses organizada
por Pierre Chabloz para a Galeria Askanazy (RJ), primeira galeria destinada à arte moderna
no Brasil. O evento tinha intuito de apresentar a nova condição da pintura cearense, o que se
produzia em termos de artes plásticas neste estado e o que os artistas tinham feito “para a
renovação da pintura brasileira” (ESTRIGAS, 2004: 55)
91
. Elencavam, portanto, a amostra:
91
A cerca dos comentários de Rubem Navarra sobre o momento “renovador” da pintura cearense, Mário Baratta
tece algumas considerações que vão de encontro à leitura do crítico: “(...) Há nessa introdução, feita por
89
Antônio Bandeira, Inimá (pintor mineiro que trabalhara, durante muito tempo, no Ceará), o
desenhista Raimundo Feitosa, Chabloz e como fora citado, Chico da Silva.
Dessa vez, diferente do que acontecera no III Salão Cearense de Pintura, o primitivo
não passa despercebido. Arrancando comentários elogiosos de um dos mais importantes
críticos atuantes do país, Rubem Navarra, Chico da Silva é aclamado, sob uma análise longa e
detalhada deste intelectual, por suas propriedades inventivas e criadoras. No texto que é
redigido à apresentação do catálogo da amostra, o crítico o compara a grandes nomes das
artes plásticas, de âmbito geral e da esfera estritamente naif, situando este “recém-chegado”
(BOURDIEU, 1989: 298) no quadro das tentativas anteriores e inscrevendo-o, desta forma, na
história do campo artístico.
(...) O outro é uma espécie de hóspede de honra da exposição, o índio Francisco
Silva. Devo dizer que as aquarelas desse artista indígena são qualquer coisa de
muito sério. Na arte brasileira, só Cicero Dias, há dez anos, me dera uma
impressão de ingenuidade lírica tão poderosa, aplicada à pintura. O artista
descoberto por J. P. Chabloz foi criado entre os índios da Bolívia e tem uma
origem meio enigmática. O que importa é êle ser um exemplo maravilhoso do
que existe em potencial na sensibilidade indígena como promessa de arte
criadora. Este é um capítulo que não foi ainda escrito na arte brasileira, e se
relaciona com a cultura plástica de nossos índios, da qual se conhecem apenas
escassos documentos de pintura decorativa escassos, mas de grande
importância. Como situar a posição dêsse índio do Ceará, seu lirismo plástico
tão espontâneo e primitivo como uma flôr que desabrocha no mato? Esse índio é
uma espécie de Dali em estado de natureza (...) (apud GALVÃO, 1985: 86).
As palavras de Navarra, por sua vez, reverberam de forma positiva no cenário local.
Rompendo com o silêncio dos pares, rio Baratta em uma matéria escrita ao jornal O
Estado reconhece, sob ressalva de pormenores de caráter moral, a importância e significância
da produção artística de Silva:
Francisco da Silva, que Ruben Navarra aproxima de Dali, mas que muito
maiores aproximações encontraremos com Raoul Dufy, é apresentado como
‘índio do Ceará’. Francisco da Silva, ainda hoje nos botecos da praia do Náutico,
é inteiramente analfabeto e não duvido nada de sua origem indígena. Gosto
muito das decorações que F. Silva faz em vasos de barro. São pássaros
Navarra, alguns senões que me fazem crer que não está ele muito ao corrente do que se faz por aqui em pintura.
Infelizmente, Navarra, cearense mesmo, conhece Bandeira. Não pode avaliar quanto temos feito para a
renovação da pintura brasileira. À libertação acadêmica temos procurado chegar justamente pela observação
da natureza Navarra traçando um programa descobriu o caminho que, há mais de cinco anos, trilhamos (...)”
(ESTRIGAS, 2004: 55).
90
fantásticos, cobras lendárias, Yaras, giritiranas-bola, seus motivos prediletos, e
isto é pintado com uma ingenuidade pura como um primitivo poderia fazer.
Quem vê os trabalhos de Chico da Silva não pode imaginar nunca que ele tenha
maculado a pureza primitiva de seus olhos em qualquer gravura de nossa arte de
ocidentais (ESTRIGAS, 2004: 54-55)
Assim, seguindo o curso comum das trajetórias artísticas da época (Ceará Rio
Europa), nos últimos meses de 1948 as obras do “pintor praiano” são levadas pelo suíço Jean
Pierre Chabloz ao exterior. A “coleção-Silva” que agora estava ampliada
92
foi nesta estadia,
de forma mais enfática
93
, publicamente apresentada aos europeus, por meio da imprensa e de
amostras.
Expostas, portanto, no outono de 1949, no Salon Beauregard, em Genebra, as telas do
pintor brésilien despertaram “vivo interesse dos artistas, dos críticos de arte e do público
genebriano”
94
. Na cidade natal de Chabloz, Lausanne, integraram exposição em uma
moderna e pequena Galeria de Arte da “Rue de Bourg”, localizada no centro chique da
cidade. em 1951, agregados a exposição pessoal de trabalhos de Chabloz, realizada a
convite de Antonio Ferro, embaixador de Portugal na Suíça, os quadros de Chico da Silva são
mostrados nos grandes salões do Palácio Foz Secretaria Nacional da Informação -, em
Lisboa, chamando bastante atenção dos especialistas e do público em geral (CHABLOZ,
1969a: 5).
No ano seguinte, Chabloz leva a coleção de Silva a Paris. Lá, ele negocia a “Exposition
Francisco Silva” com a Galeria Jeanne Bucher, a mais renomada de Montparnasse, que frente
às resistências de Chabloz em lhe consentir o poder de venda sobre as obras do pintor, logo
desiste da empreitada, fato lastimável para o crítico que tanto desejava apresentar aos
parisienses os guaches visionários de Francisco.
Contudo, a capital francesa, lugar de onde se irradiava o padrão artístico e cultural para
o mundo, tomaria conhecimento da existência e das obras de Chico da Silva por outra via. Em
92
No intervalo de 1947-1948, período de reinstalação de Chabloz em Fortaleza, o crítico comprara mais
“guaches” do artista, “vários dos quais atingiram a uma rara qualidade” (CHABLOZ, 1969b: 5)
93
Em um período anterior, no final do ano de 1945, em uma de suas idas e vindas, Chabloz havia levado os
trabalhos de Chico da Silva para a Europa, contudo, como ele mesmo afirma, nesta ocasião não lhe deu a mínima
publicidade.
94
As revistas internacionais notabilizavam a passagem dos guaches de Francisco “Une exposition pas comme les
outres est ouverte jusqu’au 12 octobre dans les salon de la Société mutuelle artistique, à Genévi. Organisée par
l’artiste romand bien connu Jean Pierre Chabloz, elle presente les ouvres curieuses du Sud Américain Francisco
Silva, Amazonien analphabète, gauches autodidacte douè d’um talent naturel, d’um sens de la composition et de
la couleur que pourraient lui envier nombre de la peintre ‘moderne’ parmi le plus raffinés” ( Une exposition pas
comme les autres. Je vois Tout In Famille, Lausanne, n.40, p.5, 05 out. 1949)
91
Paris mesmo, Chabloz redige um longo artigo a revista mensal Cahier D’Art cujo título, de
forma direta, assinala para o caráter revolucionário da pintura do artista acreano, Un indien
brésilien re-invente la peinture. Apresentando detalhes da “descoberta”, o texto descrevia as
primeiras impressões que o estrangeiro tivera, ao deparar-se diante daquelas composições
muralistas feitas a carvão e cacos de telha; sua aproximação com o “pintor da praia” e a
iniciação do artista, por intermédio dele, ao mundo dos guaches e telas. Sem ressalvas, no
decorrer de sua descrição, Chabloz imputa taxativamente propriedades vanguardistas à obra
de Silva:
Deliciosamente surpreso, eu experimentava a rara sensação de assistir a uma
verdadeira reinvenção da pintura. E, coisa curiosa e admirável, nas 20 obras que
hoje possuo dele, podem-se distinguir nitidamente fases sucessivas... bem
marcadas. Partindo do mais puro arcaísmo, o Pintor da Praia tornou-se
“clássico”, depois “barroco”, “impressionista” e finamente “moderno” e até
“surrealista”, se ouso empregar uma tal nomenclatura a respeito de uma arte tão
espontânea que permaneceu sempre, apesar de suas oscilações, essencialmente
primitiva (CHABLOZ, 1993: 151-152).
A partir destas passagens pelo exterior, na qual Chico suscita interesse dos círculos mais
cultos e eruditos da Europa, o pintor é incorporado de vez neste capítulo importante da
história da arte cearense, que demarca a abertura para a expressão de novos estilos e manejo
de formas. E a tendência que se segue é uma maior aceitação de sua obra em nível local,
aprofundada pela liberação mais contundente do uso de técnicas, meios, conteúdos e
linguagens diversas, causados pela intensificação do diálogo que se entre a arte cearense e
as movimentações artísticas de dimensão nacional. Como destaca Estrigas:
(...) Com a renovação artística que precedeu de perto e preparou a Bienal de São
Paulo, alguns artistas cearenses, mais informados e mais sensíveis ao que se
fazia por aqueles lados, abandonaram o velho processo impressionista e
procuraram se expressar com a modernidade do momento. A Bienal de São
Paulo, a partir de 1951, foi o toque de liberação para a arte que, daquele
momento em diante, permitiria tudo, até mesmo a reformulação do conceito de
arte e de estética, e o que se viu daria para enlouquecer Monteiro Lobato que,
por muitíssimo menos, disse o que disse de Anita Malfatti em 1917.
Todos os meios, todos os materiais, todos os propósitos, tornaram-se válidos, ou
aceitos como tal, para a execução do trabalho, e por mais rótulos que fossem
criados para etiquetá-los, muitos não o puderam ser, pois não se enquadravam
em nenhum rótulo (2009: 209)
92
Assim, gozando de maior prestígio e sob o enquadre deste novo conceito estético, Chico
da Silva encontra resguardo no recém inaugurado Museu de Arte da Universidade do Ceará
(neste momento, ainda não federal), instituição esta, idealizada pelo reitor Antônio Martins
Filho, que após a dissolução da Sociedade Cearense de Artes Plásticas, em 1958, assume a
missão artística de dinamizar e agitar as artes plásticas local.
O Museu que, em um propósito inicial equivocado, pretendia somente se interessar
pelos nomes internacionais; em correção, se ocupou não de apresentar os novos talentos
da terra, como de expor os artistas mais velhos, integrantes em grande medida da SCAP.
Neste sentido, percebe-se a afinidade que se constitui entre o MAUC e o movimento moderno
que se processava na capital cearense anunciada pela tônica da exposição de abertura do
órgão, composta pelos óleos e guaches “(...) de um dos mais discutidos e anticonformistas dos
pintores brasileiros”
95
: Antônio Bandeira.
Portanto, é neste ambiente o qual visa, ao mesmo tempo, sedimentar a cultura de um
povo e agitar a sua pacacidade, que Chico da Silva desenvolve por um espaço de três anos
seus trabalhos pictóricos (1961-1963)
96
. Apesar de se mostrar como um elemento estranho -
Gilberto Brito rememora que Francisco sentia-se plenamente à vontade no Museu ao ponto de
andar descalço e embriagado pelas dependências, aparecendo e se ausentando quando bem
quisesse (GALVÃO, 2000: 33) - o pintor alcança, neste espaço, legitimidade definitiva
enquanto artista conceituado, escrevendo, deste modo, seu nome no rol dos grandes pintores
do Ceará:
Com a sua permanência nesse órgão da Universidade, Francisco Silva passou a
ser mais conhecido, não pelos professores e funcionários, mas, também, por
outros segmentos da sociedade e do meio artístico. Era comum as altas figuras
serem presenteadas com trabalhos pintados pelo artista do Pirambu, sendo ele
bastante solicitado (ESTRIGAS, 1988a: 39).
95
Exposição de Pinturas de Antônio Bandeira. Disponível em: http://www.mauc.ufc/expo/1961/02/indexl. htm.
Acesso em: 20 jan. 2010.
96
Escândalos e especulações demarcam o egresso de Chico da Silva do Museu de Arte da Universidade do
Ceará no ano de 1963. Em seu livro A arte na dimensão do momento, composto por comentários escritos, ao
calor da hora, entre os anos de 1951 a 1971, Estrigas aborda a sucessão de fatos que desembocam na saída de
Chico do MAUC. Uma carta anônima, enviada ao reitor, de conteúdo acusativo ao diretor, Floriano Texeira, e a
outro funcionário do museu, imputada a Chico da Silva, seria o fator principal de sua saída. Contudo, como alega
o próprio Estrigas “(...) Chico da Silva é analfabeto, incapaz de escrever qualquer coisa” (1997: 38). Frente a
esta impossibilidade lógica chega-se ao remetente, quer dizer à remetente real da denúncia. Tratava-se da própria
mulher do pintor.
93
A partir desta estadia, um quadro de Chico da Silva passa a ser tão ambicionado pela
alta sociedade alencarina, quanto uma tela de Bandeira ou Aldemir. Gradativamente, as
classes urbanas mais abastadas da capital cearense voltam-se para o “ex-pintor da praia”
ansiosos de ter em suas paredes uma composição daquele que arrebatara a Europa, e os
homens da universidade, com sua proposta re-inventiva de pintura.
Também os turistas do sul e de fora do país desejam conhecê-lo e comprar suas obras,
muito teria contribuído para isso a presença das telas de Chico da Silva na exposição realizada
no Rio de Janeiro, na Galeria Relevo, em 1963, organizada por Jan Bogchi, na qual figuraram
também Jean Pierre Chabloz e Aldemir Martins. Esboçava-se, assim, com esta procura
exarcebada dos quadros do pintor acreano, com este verdadeiro “boom Chico da Silva”,
muitas das estruturas embrionárias que permitiram o surgimento do mercado de arte cearense
e muitas das bases que dinamizaram o desenvolvimento do comércio das artes visuais no
Ceará
97
.
Percebe-se, portanto, nestas atividades em torno dos trabalhos e da figura de Silva, na
qual se mobilizam agentes diversos (singulares Jean Pierre Chabloz e coletivos MAUC),
não a dinâmica de colocação nos trilhos deste artista e de suas obras, inicialmente
desconexas com o passado da arte, como a atribuição de um papel chave a este sujeito no
curso das transformações artísticas e estéticas de ordem nacional e local. Papel este que, por
uma série de indícios, pode-se dizer que ele mesmo desconhece. A este respeito é sugestiva a
seguinte declaração:
Eu não sei quem sou. Não sei se sou de lua ou de terra. Posso até ser da
atmosfera. O pintor Jean Pierre Chabloz é que disse que sou um pintor
primitivo, um dos maiores não do Brasil, mas do estrangeiro. Eu não digo
nada. Deixo que os jornais, as televisões e principalmente os críticos digam
(SILVA apud GALVÃO, 1985:71).
97
Montezuma destaca: “Configura-se em dois vetores preponderantes o desenvolvimento desse mercado de
pintura em Fortaleza, caracterizado pelas gerações scapianas e Raimundo Cela secundadas pelas influências
advindas da mercantilização da Arte na região sudeste do País. Outro fator importante ao desenvolvimento do
mercado de pintura local decorreu, sem dúvida, da explosão da década de 60 do fenômeno ‘Chico da Silva’,
nome artístico de Francisco Domingos da Silva, primitivista cearense que, pelo prestígio obtido nacional e
internacionalmente, estimulou a demanda local, a ponto de fazer surgir entre nós a chamada “Escola do
Pirambu”, uma verdadeira fábrica de pintores que imitavam a obra incomum de Chico da Silva e ainda
assinavam como se fossem o próprio ou este mesmo assinava as obras de seus imitadores como se fosse de sua
autoria” (1990: 58).
94
Porém, esta não consciência clara de seu posicionamento não deve ser entendida sob a
perspectiva de uma ingenuidade total, de uma alienação completa com seu trabalho e valor, a
cuja idéia muitos enfoques biográficos acabam por recorrer, utilizando-se de uma imagem
reducionista e estereotipada do “índio analfabeto”, “sem instrução”, “sem estrutura para
conduzir-se de acordo com um meio”, que pinta sem nenhum propósito e discernimento.
Chico, de certa forma, poderia não efetuar racionalmente um cálculo preciso de suas tomadas
de posição, de seus alinhamentos estilísticos e formais e de suas escolhas e afinidades
pictóricas, mas isso não lhe coloca na condição de absoluta ignorância e cegueira quanto a sua
atividade artística. Assim, tomando de empréstimo as colocações de Roberto Galvão sobre o
gênero plástico de pintor pode-se afirmar que Chico: “Ingênuo, jamais” (2000:10).
Agora, sem dúvida, deve-se em muito ao “poder de transmutação do campo”
(BOURDIEU, 1983:93) não transformar esse artista “espontâneo” em um revolucionário
inspirado, como abrigar sobre o mesmo teto, suas manifestações “marginais” e “forasteiras”
que ignoram inteiramente a história da arte e as propositivas modernas, que se constituem em
um diálogo intenso com esse legado. Somente por efeito de uma lógica própria, imanente a
um campo artístico autonomizado, torna-se possível conceber tal estado de contradição
particular.
E é justamente sobre este estado que as páginas que se seguem irão se ocupar.
95
CAPÍTULO 4. A OBRA SINGULAR DE CHICO DA SILVA:
AFINIDADES ENTRE O “PRIMITIVO” E O “MODERNO”.
96
4.1. O “pulo do gato”.
Figura 7. Oriodime, 1945; guache s/papel 20 X 44,5 cm (SECULT).
No ano de 1945, Chico da Silva, sob as observações de Jean Pierre Chabloz, realiza o
quadro intitulado Oriodime (fig.4), um dos seus primeiros trabalhos feitos a guache e papel
que levados aos principais centros de exposição, nacional e internacional, arrancam
comentários elogiosos da crítica especializada por seus atributos singulares. A obra, cujo
nome é uma invenção do artista a qual ele contraditoriamente dizia emprestar veracidade
98
,
traz ao centro a figura de um pássaro, imediatamente identificável por suas características
marcantes - o bico, a penugem, as garras -, todavia de proporções - pensando em uma escala
naturalística - acentuadamente desiguais e formas nitidamente “distorcidas”.
A questão da desproporcionalidade é sentida na relação que se estabelece entre as
partes integrantes da imagem do pássaro (a cabeça, o tronco, o rabo), como também entre este
elemento central, que domina a tela, e os demais secundários: troncos, folhagens, outros
animas e etc. Não uma medida constante que os interligue coerentemente na ordenação
98
Em uma entrevista feita pela pintora Heloísa Juaçaba, Chico assim fala sobre a escolha dos nomes de seus
quadros: “Os nomes dos quadros são mais verdadeiros do que os quadros. O nome guarda a história e as cores,
e as formas guardam a imaginação. Por exemplo, o Pepino Perseguidor é um quadro da seca de 32 que vem
informando sobre os insetos que viviam nas árvores esturricadas, por falta d’água no inverno. O Pepino é um
pássaro que teima em viver de qualquer jeito. O Gavião Real é o retrato que conta a beleza do Rei dos
Pássaros. O Baleon é a baleia dos grandes mares profundos e dos oceanos revoltosos... (ESTRIGAS, 1988a:
94).
97
interior da obra, a correspondência se de uma forma puramente arbitrária e não respeita
pré-definições de escalas consolidadas
99
.
Esta disposição irregular, analisada sob uma perspectiva rigorosamente técnica,
comprometeria o sentido harmonioso do conjunto, que é dessa coesão, dessa correlação
entre as diversas partes que tal característica se depreende (OSTROWER, 2004: 281), no
entanto, outros fatores parecem corroborar na manutenção de certo estado harmônico da obra.
As zonas espaciais de equilíbrio que o artista cria, por exemplo, entre o canto superior direito
e o inferior esquerdo apresentam-se como um deles. O peso visual da base, gritantemente
delineado em azul vivo, mostra-se compensado na diagonal pela extensão dos ramos e
folhagens e pela concentração da mesma cor que segue às fugidas pinceladas a sua direção
oposta.
As “distorções” formais ou acentuações formais, se assim preferirmos chamar, em
virtude da carga pejorativa da palavra “distorção”, por sua vez, revelam o caráter não
imitativo da obra de Chico da Silva. Apesar de evocar elementos presentes na natureza
pássaros, peixes, árvores sua arte não estabelece nenhum compromisso com o dito “real”,
no sentido que renega, conscientemente ou o, os artifícios simuladores dessa suposta
“realidade” (profundidade, perspectiva, volume e etc.), permitindo-se reelaborá-la e recolocá-
la “espontaneamente” em uma dinâmica puramente plástica e imaginativa. Como definiu José
Maria Iglesias
Animais e plantas exarcebam-se nas versões que deles nos o artista, até
chegar a uma quase identidade representativa. Quero dizer que se pode falar de
flores cuja carne palpita, de animais de pétalas irisadas... Pelo lado fantástico,
muitas de suas obras recordam-nos as criações de alguns surrealistas, mas
resulta, óbvio afirmar, que a intenção é quase diametralmente oposta (apud
GALVÃO, 1986: 83).
Desta maneira, Silva sintetiza no tracejo de suas “linhas elegantes” “gratuitas e
volutas” o que seria esta totalidade neutra a plenitude da natureza recriando-a a partir de
suas intenções, calculadas ou inconscientes; restituindo, no plano puramente pictórico, sua
independência representativa em relação ao objeto representado. Nestes termos, percebe-se,
no quadro Oridiome em particular, que a distribuição dos detalhes da penugem, não responde
99
Existe uma variedade de proporções simétricas e assimétricas: 2:2, 2:4, 4:8, etc ou 3:7, 3:8, 4:9, 5:7, 5:9...
recorrentemente utilizadas, amoldando-se aos princípios acadêmicos, no campo da pintura, escultura e
arquitetura (OSTROWER, op. cit.: 292)
98
a qualquer tentativa de diferenciação de uma espécie específica de pássaro. Ela encontra sua
finalidade dentro do próprio movimento compositivo e deve ser apreendida a partir da lógica
interna deste sistema formal que a pintura constitui. Logo, as mobilizações por Silva “(...) não
eram ditadas pela aparência das coisas do mundo, mas eram simplesmente as mais adequadas
à organização de sua composição”
100
(HARRISON, 1998: 196).
Figura 8.
O pássaro longo e sua jibóia. Guache sobre cartão. 96,5 x 66,0cm. Acervo: MAUC/UFC
As cores não naturalistas, cruas e puras, denunciam uma aplicação técnica
“rudimentar” assimilada pelo artista, em grande parte, de modo empírico. Os tons surgem no
trabalho, assim, uniformes, sem gradações e, por isso, isentos de sugestões de espaço ou
profundidade tridimensional que se anulam por total, aos moldes do estilo “cloisonniste” (ou
“sintetista”), na delimitação do contorno escuro que circundam e separam as áreas cromáticas.
100
Um anedótico episódio ocorrido no III Salão de Abril, ocasião onde foram expostos os primeiros guaches de
Chico da Silva, denota bem como esta dissociação entre a composição e as “coisas do mundo” causava
estranhamento ao público cearense ainda acostumado a reconhecer na tela os elementos integrantes da
“realidade”. Conta Chabloz que estava um visitante parado diante de um dos pássaros imaginários de Silva a
fazer ar de decifração de um enigma, quando ele intrigado por tal postura aproxima-se e resolve sondar
abordando-o. Prudentemente, o crítico instiga o comentário daquele homem que, como esperando uma ocasião
para revelar sua apreciação declara honestamente: “- Curioso, de fato... muito curioso! Veja o senhor, faz dez
minutos que procuro identificar este pássaro. E é estranho. Não consigo. Deus sabe, porém, que eu conheço
todos os nossos pássaros do Nordeste e até da Amazônia. Vivi mais de 20 anos. Apelei em vão todas as
minhas lembranças, não consegui identificar esse ssaro. Aliás, o senhor quer a minha opinião? Receio que o
autor deste quadro não seja sério, pois das duas uma: ou este pássaro não existe ou o pintor o pintou muito
mal”(CHABLOZ.1993: 153-154). A resposta para tal questão, em muito, seria resolvida pela defesa de Matisse
que ao ser criticado pelas distorções do feminino presente em seu quadro Nu bleu. Souvenir de Biskra afirma:
“Se eu encontrasse uma mulher como essa na rua, eu fugiria aterrorizado. Acima de tudo eu o crio mulher,
faço um quadro (PERRY, 1998: 61, grifo da autora).
99
Dispostas de maneira aleatória e intuitiva; as cores parecem se plasmar em um sentido
puramente ornamental, guiadas pelo “fazer bem a vista”, chamando, por conseguinte, a
atenção para superfície pintada da tela, para sua planaridade”, onde se projeta as imagens. É
por estas e outras propriedades de tônica “decorativa” que a obra de Chico da Silva encontra-
se, até hoje
101
, atrelada pela crítica às artes aplicadas. Rubem Navarra ao tecer suas
impressões sobre o pintor no prefácio da exposição da Galeria Askanasy, em 1945, sobre isto
se manifesta.
(...) Ao lado de seu surrealismo primitivo, chamemos assim, um lado arte-
aplicada que podia servir excelentemente para ornamentos de cerâmica,
lembrando estampas chinesas de pássaros ou antigos vasos de civilizações
passadas. Como êsse índio, de haver outros veios de arte nativa e popular
abandonados à beira do caminho por êsse imenso Brasil. Não será o primeiro
nem o último (apud GALVÃO, 1986: 86).
Resguardando um efeito lírico, a seqüência rítmica constituinte do trabalho de Silva
parece se dar pela repetição e pela semelhança da orientação espacial dos elementos visuais
em sua ordenação que levam à familiaridade. Não que a obra careça de diferenciação, sem
isso “o campo visual não passaria uma única imagem nebulosa” (OSTROWER, 2004: 127),
mas as tensões criadas pelo pintor em termos formais são mínimas. Percebe-se que pinceladas
separadas delineiam linhas curtas e longas se agregando desta maneira, em um mesmo curso
direcional, provocando intervalos de continuidade e descontinuidades que aos poucos se
acomodam em formas visualmente perceptíveis. Cadenciadas e intensificadas pela “máquina
de costura dentro do braço” (GALVÃO, op.cit: 71)- metáfora que o próprio artista recorre ao
descrever seu modo de pintar - elas seguem direções definidas, que encontram seu poder
contrastivo, muitas vezes, na aplicação colorística. Obras como O Pára-quedista na prova da
bomba (fig.5), do período de permanência no MAUC, deflagram bem esta arrumação. As
linhas representativas da explosão, contínuas em grande parte e minimamente moduladas,
conservam certo caráter estático, que se quebra no alinhamento e sobreposição das cores
vibrantes, articuladas indefinidamente.
101
Em uma entrevista concedida ao jornal Diário do Nordeste, o museólogo e então professor de história da arte
da Universidade Federal do Ceará João, Alfredo de Pessoa, compara Chico da Silva ao pintor espanhol Miró
na potencialidade de apropriação de sua manifestação pelas artes aplicadas. Comenta ele: “Chico da Silva se
transformou num mito, mas esse mito está desaparecendo, cada dia está mais esquecido, quando o Ceará poderia
ter para si o Chico da Silva como Miró para Barcelona. Pode-se criar uma coleção sublime de arte aplicada,
almofadas, potes, xícaras, azulejos, tudo se pode fazer com o Chico da Silva como uma marca do Ceará” (apud
Chico, nosso Miró. Diário do Nordeste, Fortaleza, p.8. 17 jun. 2007).
100
Figura 9. O pára-quedista na prova da bomba, 1959; guache sobre cartão 73,7 X 94,5
cm (MAUC).
O pontilhismo, tratado por biógrafos e críticos como um rastro étnico em sua arte - já
que se reporta a cnica indígena utilizada em pinturas corporais expressivas de particular
cosmogonia -, se apresenta como uma das bases elementares do trabalho de Chico da Silva,
notável tanto na fase inicial como no período derradeiro de sua produção configurada na
década de 80. Emprestando leve peso e densidade visual à composição, este artifício que
ganha adeptos, mais tarde, entre os “primitivos”, dos quais Grauben
102
é emblema, assume
status distintivo na obra de Silva por inaugurar uma via plástica excêntrica, inovadora em um
contexto cearense eminentemente marcado pelo técnico-academicismo.
O ponto, elemento mais simples da linguagem visual, mostra-se, assim, explorado no
trabalho deste pintor em toda sua potencialidade representativa, própria e autônoma,
agrupando-se, em momentos, de forma dispersa, em outros, concentrada. A tela Oridiome
demonstra a qualidade expressiva resultante de tal mobilização peculiar: a aleatoriedade
aplicativa e a irregular padronização em termos de tamanho e formato dos pontos delineiam
102
Grauben Bomilcar de Monte Lima, nasceu no Crato, Ceará (1889) e faleceu no Rio (1972). Ingressou no
mundo da pintura aos 70 anos em seus livres dias de aposentadoria. Incentivada por Ivan Serpa, freqüentou o
curso de pintura do Museu de Arte Moderna e, em 1961, participou da sua primeira coletiva. Sua obra,
nitidamente marcada pelo pontilhismo, “(...) recria a natureza sua fauna e flora, borboletas, árvores, flores (...).
Em sua pintura o desenho se subordina inteiramente a cor intensa que passa pelos fundos de seus quadros, gera
arabescos e formas, dentro de uma composição bidimensional densa de cores decorativas como as de tapetes
persas (...)” (AQUINO, 1978: 126).
101
uma tipologia de rico valor pictórico que combinadas aos outros constituintes visuais,
provocam efeito inesperado e, neste sentido, de grande originalidade.
Portanto, identifica-se na obra de Silva aspectos inusitados, novos até mesmo para o
contexto artístico cearense, de intensas aberturas e experimentações estilísticas formais. O
modo específico de pintar, o uso de técnicas incomuns e a particularização do universo
temático ao inviabilizarem qualquer comparação imitativa, a não ser distintiva, com os pares e
os representantes da tradição, encerram no principio da originalidade o fundamento essencial
da sua grandeza artística. O pintor exalta, desta maneira, o que Luc Boltanski e Laurent
Thévenot chamariam de natureza “inspirada”, própria da inovação moderna que, em
detrimento de uma natureza “doméstica” da tradição acadêmica ancorada na envergadura
técnica, privilegia a distância com a rotina, a novidade e a invenção individualizada de uma
competência inédita (apud HEINICH, 1991: 25).
Neste sentido, sob o regime do “moderno” a criatividade é elevada como predicado
indispensável na denominação do que seria ou não uma obra artística. O verdadeiro artista
não reproduz friamente o mundo sensível, ele cria, imprimindo na arte a sua experiência
singular que é irredutível a qualquer equivalência, objetivando em uma espécie de marca
pessoal, distinta, as suas vivências únicas e peculiares as quais o trabalho da crítica busca
“reconstituir” tecendo uma leitura aproximativa entre esta dupla dinâmica de particularização:
a artística, na ordem do estilo e a biográfica, em torno da pessoa (Ibidem: 40).
E é, portanto, dentro dessa compreensão do processo artístico como movimento criativo
que a pintura de Chico da Silva é apreendida, pelo público, pela crítica e por ele mesmo. O
pintor – dizia Silva – “(...) é aquele que cria da sua cabeça. Conheço pintor no Brasil, que vem
estudando vinte cinco anos e não sabe pintar, se ele pinta um cavalo é sempre um cavalo.
Não sabe dar o pulo do gato. Ele não sabe dizer vou pintar isto ou aquilo” (apud GALVÃO,
1986: 71). Logo, essa arte de formulação - a que exige puro domínio técnico - não passa de
“engenharia”. Por ser “(...) projetada com o pensamento, mas pintada sem o sentimento. É
uma pintura que “às vezes pode ser rica e às vezes pode ser pobre...” (ESTRIGAS, 1988a: 93-
94).
Contudo, vale à pena frisar, que aquilo que se entende por original, assume esta
condição a partir de uma perspectiva relacional. Nenhuma obra, seja literária ou plástica, traz
em si os predicados que a determinem como produção singular e irredutível. É preciso, nestes
termos, considerar o espaço social em que ela se gesta “(...) comparar as formas recorrentes,
102
as semelhanças e dessemelhanças com outras formas” (CASANOVA, 2002: 17) a fim de
apreender nesta totalidade - no caso das artes pictóricas: o conjunto de estilos, escolas e
gêneros - a particularidade desta manifestação expressiva que se quer ver surgir. E é desta
maneira que o foco recai, nesta discussão, sobre o trabalho de Chico da Silva, compreendendo
que o que lhe parece mais estranho, mais alheio à sua construção, à sua forma e à sua
singularidade estética é, portanto, o que lhe gera e lhe permite a emergência (Ibidem).
4.2. Rupturas e subversões: as relações entre arte “primitiva” e arte “moderna”
Desfiliada de qualquer tradição ou escola artística, a obra pictórica de Chico da Silva
parece ignorar completamente, tanto em nível de estilo como de conteúdo, a história do
campo artístico cearense que a precede e na qual, paradoxalmente, ela mesma se inscreve. O
tratamento das cores cruas, a indefinição dos planos e perspectivas, o inédito artifício do
pontilhismo e o particular repertório temático, longe de fazer referência a alguma composição
canonizada ou artista celebrado pelos agentes do campo, manifesta a despreocupação, e até
certo alheamento a esta herança.
Sem dúvida, a ausência de domínio teórico dessa história e também prático deve-
se, em muito, a sua condição de pintor autodidata. Estando à margem deste corpo de
conhecimento específico, sua produção plástica acaba por não buscar, calculadamente ou
disposicionalmente, vínculos, formais e temáticos, com alguma escola ou corrente artística.
Sua obra se realiza, sobretudo, em um plano independente; sob certa medida “livre”
(não por escolha, mas por falta de acesso) dos convencionalismos e padrões estipulados por
este universo peculiar. Fato que o artista plástico italiano Giuseppe Baccaro constata em sua
declaração: “Eis um pintor que nos desafia. È porque não espera nada de nós. Se alguém
jamais pintou para pintar sem ter em vista nem se perturbar com os outros. Ele é Chico da
Silva”
103
103
Texto que se encontra no catálogo “Chico da Silva Chabloz Chico da Silva. Apresentação Dodora
Guimarães; texto Jean Pierre Chabloz, Giuseppe Baccaro, Estrigas, Aldemir Martins; curadoria Dodora
Guimarães, Vera Galvão, Roselina Simplício; fotografia José Albano. Fortaleza: Centro Cultural da Abolição,
2001. [18] p., il. p&b color”.
103
Desta forma, a obra é assim enquadrada na classificação da dita arte primitiva - também
chamada de naif, ingênua e ínsita
104
no sentido que essa se caracteriza como um conjunto
de manifestações estéticas não eruditas, de aprendizagem autodidata e de inspiração
espontânea (AQUINO, 1978: 11).
Delimitada em traços tênues na amálgama das variadas expressões que também
compartilham, em certa medida, destes aspectos (não erudição, autodidatismo e
espontaneidade) a arte primitiva - diz Lucien Finkelstein, fundador do Museu Internacional de
Arte Naif (MIAN), no Rio de Janeiro, em 1995 - para ser mais bem definida, necessita do
estabelecimento de uma clara diferenciação entre ela e essas outras formas de arte que se
mostram aparentemente próximas. Sendo elas: a arte popular, a arte folclórica, a das crianças,
a dos doentes mentais, a art brut e a arte dos outsiders (2002).
Para o autor, sem dúvida há traços da arte popular e da arte folclórica nas manifestações
“primitivas”, nas suas temáticas, nas suas técnicas rudimentares apreendidas empiricamente,
no seu informalismo, na sua liberdade de expressão e etc. Contudo, se na arte popular e na
arte folclórica a produção é coletiva, anônima e repetitiva, na arte naif ela é individual
105
,
particular e criativa. Nestes termos: “Não existe um ‘estilo’ naif em pintura: cada artista é um
mundo à parte e tem sua maneira pessoal de criar. Podemos dizer que há tantas maneiras naifs
de pintar quanto são os pintores naifs” (Ibidem: 7).
Quanto à aproximação que se estabelece entre a arte naif e a arte das crianças e a dos
doentes mentais - pela “pureza”, “ingenuidades” e pelo desapego aos padrões de perspectiva e
104
convergências e divergências entre os autores quanto ao uso dos termos primitivo, naif, ingênuo e ínsito,
como sinônimos. Para alguns estudiosos existem particularidades de acepção de cada palavra que impedem esse
emprego. Por exemplo, Oscar D’Ambrosio assinala que “(...) se convencionou chamar primitivos os artistas
não-eruditos, aqueles cuja arte surge a partir de temas populares geralmente inspirados no meio rural.
quando o tema é urbano, costuma-se utilizar o termo naif (“ingênuo”, em francês), que se pronuncia naíf e
ganha especial relevância entre artistas franceses e haitianos para designar os pintores que rejeitam as regras
convencionais de pintura, ou o tiveram acesso a elas” (1999: 161). Para outros, todos esses qualitativos, em
linhas gerais, se referem ao mesmo conjunto de manifestações artísticas: “O nome escolhido ‘arte ingênua’
merece uma explicação. Esta não é a única denominação possível. O primeiro nome historicamente escolhido,
foi o de ‘naif’. O que equivale, aproximadamente, ao nosso primitivo. Mas não é suficientemente claro, pois os
flamengos e italianos, anteriores a 1400, eram primitivos. E a arte africana também foi chamada de primitiva.
As denominações são inúmeras: autodidatas, instintivos, primitivos modernos ou neo-primitivos, ínsitos (como
artistas inatos), ingênuos. Todas as nomenclaturas parecem boas, se os artistas têm qualidade” (AQUINO,
1978 : 19). O presente estudo se alinha ao último posicionamento.
105
O artista naif busca individualmente os recursos técnicos e os procedimentos plásticos que lhe permitam
compartilhar com os demais seu modo de compreensão do mundo. Esse universo é povoado com imagens do
cotidiano, cenas corriqueiras, passagens históricas, paisagens de sua vizinhança, contos populares e com
freqüência, incursões em territórios míticos. Quer seja pintor ou escultor, inventa ações para percorrer sua
jornada individual e relatar com voz própria a experiência de seus passos. Não raro, retoma gestos ancestrais e
nas imagens traçadas por suas os, reproduz além dos temas que lhes o caros, suas relações com o cosmo,
que os irmana com as demais culturas” (CARVALHO apud Encontros e reencrontros da Arte Naif Brasil e
Haiti, 2005: 1)
104
proporcionalidade que estas realizações guardam - a distinção deve ser considerada nas
finalidades e objetivos que cada uma delas estabelece. Para Anatole Jacovsky “A pintura das
crianças não é obra de arte. Para elas não passa de divertimento, enquanto para os
primitivistas trata-se do objetivo de suas vidas (...). O naif começa onde morre a criança”
(apud D’AMBROSIO, 1999: 164). Lucien Finkelstein, por sua vez, define: “Enquanto a
criança se diverte ao pintar, o doente mental ao usar a tela expressa seus medos, suas
angústias, suas visões, revela as imagens do inconsciente. Ambos desprezam ou desconhecem
as normas estabelecidas. E, em geral, nunca aprenderam a pintar ou a desenhar, “assim como
os naifs”, contudo, prossegue Finkelstein “A aproximação que se costuma fazer deve parar
por aí” (2002: 8).
Finalmente, no que diz respeito às relações que se instituem entre a arte primitiva, a arte
brut e os outsiders, o autor demarca enfaticamente:
(...) falar de arte naif e citar a art brut e dos outsiders é um contrasenso. São
expressões artísticas opostas. Essas denominações marcam um gênero,
espontâneo, inventivo que também transgride as normas e, em princípio, é
realizado por pessoas sem cultura artística. Mas o artista outsider é iconoclasta e
se propõe a chocar, a ser bizarro, escandaloso, anarquista, de mau gosto.
Objetivos esses que não fazem parte da palheta dos naifs (Ibidem).
Bem verdade que tais definições e fronteiras não podem ser tomadas como fatos
puramente objetivos, como largas linhas visivelmente traçadas entre as manifestações
expressivas na suas práticas “reais”. Elas devem ser apreendidas, antes de tudo, como
constructos e elaborações sociais, produtos coletivos, as quais a amnésia da gênese acaba por
lhe conferir este ar de eternidade, objetividade e pré-existência ao social (BOURDIEU, 1989).
Logo, como denota Norbert Elias, as próprias categorizações e escolas artísticas “são
abstrações acadêmicas, que não fazem justiça ao caráter-processo dos dados observáveis a que
se referem. Subjacente a elas está a idéia de que a metódica divisão em épocas, que
normalmente encontramos nos livros de história, se adapta perfeitamente ao curso real do
desenvolvimento social” (1995: 15).
Assim, por se tratarem de “abstrações”, a fixação de uma possível origem de um gênero
artístico fica a cargo de variadas leituras que recuam ou avançam na linha do tempo de acordo
com as suas definições e interpretações. No caso da arte primitiva, autores vão situar seu
nascimento na origem remota da arte. “Pode-se dizer que ela nasceu com o primeiro ser
humano que se arriscou a deixar seus traços nas grutas e cavernas pré-históricas. Artistas
105
natos que além de serem autodidatas, precisavam improvisar seu material a partir do que
encontravam ao redor: terra, cinzas, folhas esmagadas, resinas (...) (FINKELSTEIN,
2002:5).
Sob este enfoque, a arte naif, ou ingênua, sempre existiu, a Arte Moderna, que se
contextualiza no século XIX, apenas legitimou-a, “(...) incluindo-a em um dos capítulos de
sua História. E em outros como o do surrealismo, o do realismo fantástico, o da arte bruta,
ou o da pop-art muitos artistas primitivos se entrosaram perfeitamente seja na aparente
coincidência de objetivos, seja como fonte de inspiração para artistas eruditos” (AQUINO,
1978:11).
Neste sentido, ao se detalhar as características que definem este gênero artístico,
percebe-se o cil amoldamento dos trabalhos de Chico da Silva no âmbito desta
categorização. Isto se deve, indubitavelmente, ao caráter informal de sua obra, à liberdade
técnica que lhe é própria e à sua não inscrição “(...) dans aucune tradition de problèmes et
solution artistique, semblent sortir du néant” (BECKER, 2006: 270). Categoricamente a arte
de Francisco, assim como se coloca a arte primitiva, é uma arte livre de dívidas e não deve
nada a ninguém (CHABLOZ, 1952).
Contudo, uma questão se institui nesta demarcação: se “No campo artístico levado a um
estágio avançado de sua evolução, não há lugar para aqueles que ignoram a história do campo
e tudo que ela engendrou (...)” (BOURDIEU, 1996a: 275), como compreender a inserção da
obra primitiva de Chico da Silva no contexto dos anos 40, que é, precisamente, neste
momento que arte cearense volta-se de forma reflexiva sobre si mesma, em um movimento
cumulativo do domínio artístico que torna as obras cada vez mais auto-referenciadas e
semanticamente sobrepostas?
A discussão de Bourdieu, sobre o caso francês, lança algumas luzes sobre esta
problemática, no sentido de que, ao denotar o artista naif, na figura de Henri Rousseau, como
o “ponto cego”, de sua teoria de especialização e fechamento do campo artístico pela
cumulatividade, o autor se coloca questão semelhante. Como um sujeito, desprovido de
cultura e cnica, que produz despreocupadamente aos domingos, em seus livres dias de
aposentadoria, é evocado e colocado pelos pares e pela crítica especializada francesa entre
artistas que ele mesmo desconhece e que suas intenções jamais ousaram invocar?
Somente, pelo efeito de uma lógica imanente de um campo elevado a um alto grau de
autonomia e habitado por uma dinâmica de ruptura constante com a tradição estética, é que se
106
torna possível conceber o registro destas manifestações artísticas na história da qual elas
mesmas são indiferentes e estranhas, conclui ele. (Ibidem)
Ampliando o alcance desta assertiva, compreende-se, em que sentido, se estabelece a
própria inserção e a cooptação destas práticas classificadas como arte primitiva, ingênua, naif
no seio do movimento de vanguarda, do inicio do século XX, na Europa, e de como esta
lógica se empresta em outros contextos, inclusive o cearense. Incontestavelmente, a
radicalização das fissuras com os padrões técnicos, formais e estilísticos acadêmicos,
realizada de maneira mais contundente pela linguagem moderna
106
, proporciona o registro
destas expressões “independentes da história e do estilo” (MERIN, 1978:13) no bojo desta
dinâmica de subversão e superação, além de instituir uma série de afinidades entre elas.
Em seu livro, Primitivism in Modern Art, Robert Goldwater, trata sob que aspecto se
esta espécie de conformação entre o que os artistas, do começo do século XX, entendiam por
arte “primitiva” em determinado momento, artefatos produzidos por sociedades não
ocidentais, em outro, manifestações expressivas de sociedades mais “simples”, tais quais as
camponesas e o movimento modernista europeu. Para ele, estas produções não somente
inspiraram os trabalhos destes pintores ansiosos por fontes de inovações, o que de fato
aconteceu (vide a Demoiselles d’Avignon de Picasso, mostra emblemática da influência
estética africana e ibérica) como se alinhavam aos seus interesses, que resguardavam uma
idéia de expressão artística pura e direta.
Sob esta ótica, muitos artistas, desde o final do século XIX, afastando-se da concepção
do “moderno” calcado na industrialização e urbanização da sociedade capitalista, voltam-se
idealisticamente para estes fazeres artísticos não “civilizados” - ou à margem da “civilização”
- a fim de reaprenderem o que viria a ser este modo de expressão livre e genuinamente
“instintivo”; isentos, por sua vez, dos convencionalismos e virtuosismos acadêmicos.
O “ir embora” tornou-se, desta maneira, um aspecto fundamental para o vanguardismo
francês. Regiões distantes como da Bretanha, tipicamente agrícolas, transformaram-se em
reduto para estes pintores que, em busca de aluguéis mais baratos e de fonte de inspiração,
enxergavam nestas comunidades possibilidades de tematizações outras, que não a cultura
106
A arte romântica, do início do século XIX, já produzia esta reação contra a frieza e sujeição acadêmica da arte
neoclássica que a arte moderna levará até as últimas conseqüências. Calcados na busca do individualismo, da
liberdade de ação, da espiritualidade em lugar da lógica e método, artistas como Eugène Delacroix e os pré-
rafaelitas Dante Gabriel Rosseti e William Holman Hunt já apresentavam na intensidade das cores e nas
temáticas recorrentes à “Idade da fé”, a oposição aos convencionalismos apregoados pelo estilo neoclássico
(GOMBRICH, 1954).
107
citadina. O mito do camponês rural, - intocado pelos artificialismos e materialismos do
mundo moderno e guardião de costumes religiosos incomuns (bastante difundido entre a
burguesia urbana), assumia nestas obras o signo da “primitividade”, explorado, sobretudo, de
forma naturalística no tema, o que soava contraditório, que apesar das convenções técnicas
não significarem automaticamente “primitividade”,
(...) elas significam um rompimento com as formas de naturalismo (...). Ao fazê-
lo, elas chamam nossa atenção tanto para os processos reais da pintura na
superfície da tela quanto para ilusão criada. E esta, por sua vez, poderia ser
interpretada como um tipo de primitivismo, pois o artista deixou um vestígio
visível da atividade física de fazer o quadro, sugerindo um modo mais direto,
imediato de expressão (PERRY, 1998: 18).
E é, justamente, nesta relação entre a linguagem pictórica e o “primitivismo” que o
artista francês Paul Gauguin encontra seu caminho de vanguarda estética. O pintor
oitocentista que se estabeleceu durante certo tempo na remota ilha do Taiti e nas ilhas
Marquesas na Polinésia, visou apreender e manifestar em seus trabalhos a feição do
“primitivo”, principalmente, pela técnica. Perseguindo “equivalentes pictóricos do
‘primitivo’” (Ibidem: 19), o artista encontrou nas sintetizações formais, na ausência de escala
naturalística e nas deformações imagéticas, a própria expressão destes modos artísticos mais
“sinceros” e “simples” que ao romperem com qualquer sugestão de espaço e profundidade -
característica ilusionista da arte ocidental – imbricavam-se intrinsecamente no projeto estético
“moderno”.
Neste sentido, tais aspectos formais associados à cultura artística designada como
“primitiva” amoldavam-se plenamente ao processo de depuração pictórica vivenciado pela
linguagem plástica na arte moderna. O primado da forma sobre o conteúdo, ao dispensar a
extrema semelhança da obra com os elementos do mundo (a mostra de habilidade ao retratar a
“realidade” ficava, portanto, interligada à falta de conteúdo emocional, ou à insinceridade),
alocava ao puro jogo de cores, formas e linhas as reais finalidades da pintura, permitindo a
entronização de trabalhos, tais quais os “primitivos” que, sob o julgamento da academia,
seriam classificados como mal representativos ou não-figurativos. Entendendo-se, de
antemão, que:
108
Chamar uma obra de ‘não-figurativa’ é usar uma forma mais especializada de
descrição. Em minha opinião é melhor pensar a figuração como uma forma de
designar aqueles tipos de técnica e procedimentos gráficos por meio dos quais a
ilusão de um corpo sólido de algum tipo de ‘figura’, embora não
necessariamente de figura humana é estabelecida num quadro. Um pintura
não-figurativa é, portanto, uma pintura que é feita sem que se recorra àqueles
tipos particulares de técnica e procedimento. Segue-se que uma pintura não
figurativa não é simplesmente uma figura sem pintura; é uma pintura que não
oferece, seja em termos técnicos seja em termos conceituais, nenhum espaço que
se possa imaginar ser ocupado por um corpo sólido (...) (HARRISON, 1998:
201)
Além destas conformações no plano estilístico, a concepção da apreensão imediata da
“realidade” presente nas manifestações artísticas “primitivas”, constituía afinidades com o
discurso “moderno” também na ordem da reelaboração identitária do artista. O criar sem
sujeições, com “honestidade”, buscando resoluções “instintivas” e “espontâneas” próprias,
reitera a idéia das potencialidades criativas, inatas do ser artista, que galgando as interposições
da técnica e dos procedimentos não responde a nenhum artífice, o seu coração. Sob este
ponto de vista, o autodidatismo não se apresenta somente como uma via possível de fazer
arte, mas de todas a mais privilegiada. Gaugin assinala para esta visão em uma de suas cartas.
O que principalmente hoje me preocupa é saber se estou no bom caminho, se
faço progressos, se estou executando boas falhas (o grifo é do próprio Gauguin).
Pois as questões da textura, de cuidados com a execução e mesmo com a
preparação da tela estão para mim, em segundo plano...O metiê vem sozinho,
apesar de você mesmo, com o exercício; e tanto mais facilmente quando se
pensa em outra coisa que não seja o próprio metiê (apud AQUINO, 1978: 40).
E é, justamente, sob este prisma que os chamados “pintores de domingo”, isto é, os
pintores amadores que realizavam seus quadros nas horas de folga, ou em seus dias de
aposentadoria (daí a idade avançada de muitos) são revalidados pelos artistas de vanguarda,
na França. Por se tratarem, em sua maioria, de pessoas que tinham certo “baixo” nível
intelectual e formativo (culturalmente e tecnicamente), estes pintores, ao tentarem retratar, de
forma autodidata, a natureza e o cotidiano urbano que os rodeava, ofereciam, no entender da
arte “intelectualizada”, uma visão pura, cândida e infantil da realidade, e neste sentido eram
admirados por esses qualitativos “primitivos”.
Desta maneira, Henri Rousseau, pintor que realiza seus trabalhos sob estas condições, é
aclamado pelas mais importantes figuras do mundo artístico plástico de sua época. Kandinski,
por exemplo, se refere ao “douanier” nos seguintes termos: “Henri Rosseau abriu a via para as
109
novas possibilidades da simplicidade. Para nós, esse aspecto do seu talento tão diverso é
altamente o mais importante” (apud FINKELSTEIN, 2002: 6). Pablo Picasso, apresentado ao
artista naif por Paul Signac, (pintor pontilhista que expôs juntamente com Rousseau no Salão
dos Independentes e que de todos os participantes fora o único a apoiá-lo), também se
fascinado pelas telas de caráter simples e sincero do alfandegário. Ora, o gênio espanhol que
se aproximara dos artefatos “primitivos” de origem não ocidental por suas propriedades
formais e conteudísticas diretas e espontâneas, afina-se simultaneamente com trabalhos de
Henri Rousseau por encontrar similar propositiva em sua obra, ainda que se guardem as
devidas particularidades de meios, linguagens e materiais entre elas.
How can we account for Picasso’s simultâneos appreciation of African sculpture
and of the painting of Henri Rousseau? In its striving for academic realism and
its actual result of flat patterns of color Rousseau’s art is at the opposite pole
from a sculpture which, if not always more basically conceived in three
dimensions than any that Europe had produced, certainly has had that character
attributed to it. Since this contrast in foring mal qualities is obvious, we must
look for the connecting link rather in the psychological attitude of the two arts,
or more accurately, in these attitudes as thy were conceived by Picasso
(GOLDWATER, 1986: 157)
Portanto, o verdadeiro culto que se funda na imagem de Henri Rousseau - culto este
que extrapola o próprio âmbito das artes plásticas, pois também os poetas como Guillaume
Apollinaire demonstravam seu grande apreço pelo “douanier” - anuncia à acomodação ideal
que se dá entre os anseios e objetivos anunciados pela arte moderna - a liberdade de expressão
e a quebra dos cânones acadêmicos frios – e estas práticas artísticas que se delineavam fora da
órbita das escolas e estilos consagrados historicamente, e por isso, renegavam,
“naturalmente”, a todo este jugo imposto pelas convenções. Assim, para os pintores modernos
“intelectualizados” perseguir e extrair esta essência naif, ingênua, primitiva em sua arte
tornava-se não só um imperativo de vanguarda, mas uma condição. Nestes termos:
La admiracion por Rousseau y el ingênuo procedimento autodidata de los
“pintores domingueros” llévo a otros artistas a descargasse de las complicadas
teorias del ‘expresionismo’ y del ‘cubismo’ consideraúlos lastre inútil. Ellos
quisieron adptarse al ideal del ‘hombre de la calle”, y pintar cuadros ingênuos y
llenos de espontaneidade em los que cada hoja de los árboles y cada surco del
campo pudieran contaise (...) (GOMBRICH, 1954: 458)
110
E tal tendência se faz sentir em outros países, para além dos limites do continente
europeu. Com a exposição de Henri Rousseau promovida pelo pintor norte americano Max
Weber (1881-1961)
107
, em Nova Iorque, no ano de 1908, um novo olhar para as práticas
informais dos limners
108
- retratistas amadores dos séculos XVII a XIX - foi lançado. Ora, o
campo artístico de Nova Iorque que mostrara um estado de ruptura com a tradição trinta
anos atrás com a aceitação dos impressionistas rejeitados pela França, demonstra novamente
seu espírito heterodoxo na valorização destas manifestações artísticas “sorrateiras”, que em
um sentido diretamente oposto ao acadêmico renegam qualquer característica ilusionista de
fidelidade ao real, ao visual e à aparência (LIPMAN, 1942). Joseph Pickett (1848-1918), John
Kane (1860-1934), Patrick Sullivan (1894-?), Anna Mary Robertson e Grandma Moses
(1860-1961) são alguns dos nomes revelados neste contexto de reavaliações estéticas que
constituem o quadro peculiar da pintura primitiva americana.
No Brasil, é também na configuração da arte moderna que estabelece um campo
artístico autônomo, com suas instituições específicas mais ou menos especializadas (museus,
salões, galerias, bienais), com seu corpo de agente constituído (jornalistas, críticos,
professores, editores) e com sua história particular delineada (Anita, Segall e a Semana de
1922), que estas expressões classificadas como “primitivas” entram para cena artística oficial.
As condições que se forjam, sobretudo, na década de 40, não são propícias, como
necessárias para o aparecimento destas manifestações, no sentido que: a) o amadurecimento
do campo artístico, assistido em termos estruturais e idealístico neste período, ao proporcionar
um maior fechamento da esfera artística plástica, condicionando-a a uma lógica própria (que
institui o primado da forma sobre o conteúdo; do modo de representação sobre o objeto
representado), permite, e até pleiteia, essa desvinculação com a “realidade”, essa
despreocupação com a retratação fidedigna - proposta esta que arte primitiva traz; b) a tônica
107
A
pós sua estadia em Paris para estudos, toma conhecimento dos trabalhos dos “primitivos” modernos e fica
fascinado pela sua estética particular. De volta aos Estados Unidos, em organização com Wilhelm Uhde,
promove em Nova Iorque uma exposição de Henri Rousseau, sendo esta aceita de forma calorosa pelo público e
pela crítica americana (AQUINO, 1978: 99).
108
“Les limners sont des intinérants, qui vont par monts e par vaux, décorant les demeures des fermies de
motifs, hommes ou paysages, faits à la ressemblance, ou de fresque et autres composition plus libre
d’inspiration. Les portrait likness du propriétaire ou de as famille est le plus demande; et c’est aussi porquoi
bom nombre de limners employaient leurs loisirs d’hiver à préparer dês toiles où tout figurait, le cor,
l’attitude, le costume, parfois même les mains du personnage, ne laissant em Blanc que le visage, qui será celui
du modele, le moment venu. D’où l’uniformité de ces ouvres, dont les caractères essentiels se retrouvent même
chez les portraitistes qui travaillent entièrement sur le sujet: attitudes conventionnelles, comme stéréotypées,
qu’accusent encore la raideur du dessin et la dureté dês couleurs appliquées dans um esprit de schématisation,
de simplification, pour activer la besogne” (MERIN, 1978: 79)
111
particular que o modernismo brasileiro assume na busca da sua identidade própria, da sua
“brasilidade”, conduz os círculos intelectuais e artísticos a “descobrir” as formas de produção
artísticas populares que supostamente resguardariam essa autenticidade, essa singularidade
nacional. Desta maneira, “Associado à ‘descoberta’ da arte popular por intelectuais ligados ao
aparelho de Estado e à imprensa, veio a aceitação da pintura ‘primitiva’, pela via da
‘descoberta’ e promoção dos primeiros artistas ‘ingênuos’ brasileiros” (DURAND, 1989:
112).
Portanto, no caso especificamente brasileiro, o florescimento da arte primitiva,
evidenciado no surto de “descobertas” desses pintores de domingo” que aconteceram em
todo país, responde, primeiramente, ao fato dessas práticas artísticas se alinharem
perfeitamente aos ideais de liberação estéticas reivindicados pelo modernismo no Brasil
contestação às regras acadêmicas, busca de uma originalidade no modo de formar,
experimentações de meios, linguagens e estilos não fixos e etc - e ao fato delas representarem
esse Brasil “autêntico”, “genuíno” - não pela recorrência de temáticas populares, mas pela
forma simples e direta de pintar -, intocado pelos artificialismos técnicos e formativos do
estrangeiro. Nestes termos, a arte primitiva mostra-se, assim, como uma fonte pura e
imaculada de expressão, de onde a Arte Oficial deveria beber em seus dias de enfado e
esgotamento.
Esses artistas populares, ingênuos e primitivos são alicerces da cultura. É através
dos naifs que muitas vezes a chamada Arte Oficial vai se alimentar; é bem forte
que germina a seiva mais cristalina, e dela se bebe, quando nos cansamos de
viver num mundo de ilusões e aparências. É nessas pinturas que fala a voz do
excluído. Assim como fazem nos países realmente cultos, devemos dar vivas aos
naifs do Brasil (SANT’ANNA apud D’AMBROSIO, 1999: 163).
Vê-se que é no bojo da revolução trazida pela arte moderna, que a arte naif vem se
afirmando em todos os países. Tanto no Brasil, quanto em outros lugares do mundo, ela
encontra seu espaço de inserção e de possibilidade nas atividades e dinâmicas promovidas
pelo movimento moderno. Na França, o Salão dos Independentes (evento de artistas rejeitados
pelo Salão Oficial dada as suas propositivas formais revolucionárias), abriga o “douanier”
Henri Rousseau. Nos Estados Unidos, as mostras e os salões de vanguarda novaiorquinos
trazem à tona a tradicional e marginalizada arte dos limners. Já no Brasil, bienais e exposições
de tendência moderna acolhem pintores autodidatas, sem qualquer instrução além da primária,
como Cardosinho, Heitor dos Prazeres e José Antônio da Silva, entre outros.
112
Não contrariando esta lógica, o Ceará, por sua vez, também promoverá a aceitação da
obra naif de Chico da Silva pelas vias da arte moderna. O movimento “renovador” intelectual
e estético assistido, de forma mais contundente, na década de 40, permite a inscrição destes
trabalhos no cerne da sua dinâmica, pela afinidade de propostas que se instauram entre estes
dois canais de expressão.
Os artistas cearenses que por muito tempo se encontravam sob o jugo do neoclássico,
ao tentarem romper de todas as formas com os princípios deste estilo (a idéia, para muitos, era
radicalizar, sacudir a cidades a partir de uma nova experiência estética, feita até mesmo na
exposição dos quadros de cabeça para baixo), abrem desta maneira, um espaço de
possibilidades para produções, que assim como as de Chico da Silva, não se caracterizavam
pela fidelidade ao “real”, não se prendiam a transposição fidedigna dos elementos da natureza,
não se entronizaram como objetos artísticos pela sua aplicabilidade técnica e pelo seu respeito
às convenções; mas que apresentavam um estilo pessoal (anunciado no seu modo peculiar de
formar), que buscavam expressar um sentido bem particular e que se faziam na perseguição
da liberdade e da unicidade de resolução, sem interferências de receitas ou padrões
importados (isso de forma consciente ou não).
Logo, nesta nova configuração artística cearense, a propriedade da originalidade é
enaltecida em detrimento do domínio técnico. Se no inicio dos anos 20, pintar significava
reproduzir de forma fidedigna a natureza - por isso a produção neste período resumiu-se na
execução de paisagens, naturezas mortas e retratos, em estilo puramente figurativo -, a partir
do modernismo a forma sobrepõe-se ao conteúdo. Forma essa que é uma maneira de
expressão característica e diferenciadora de um artista.
Estabelece-se, destarte, nesse contexto a clara distinção entre a “execução” e a
“criação”, não repetir o que os outros fizeram, mas criar, expressar seu universo interior de
forma única e própria, conferindo aura à obra (aquela que não é substituível). É a autoridade
do artista frente às propriedades das tintas, é a liberdade criativa do gênio original
109
que se
contrapõem aos constrangimentos da regra.
109
Esta idéia de gênio original constitui-se, fundamentalmente, na oposição do Romantismo à concepção de
gênio artístico própria do Classicismo Francês e do Renascimento Italiano. Se para estas duas escolas o talento
estava associado “(...) a uma cnica apurada, a uma perícia de execução, à realização de uma obra sem erros,
equilibrada e arduamente alcançada” (SÜSSEKIND, 2008: 8), para o Romantismo ele embasava-se na criação
original a partir da natureza. Sob este prisma é que o filósofo alemão Friedrich Schiller, que foi um dos que
dinamizou esse debate na filosofia e na teoria da arte dos culos XVIII e XIX, concebe a genialidade associada
a uma ingenuidade, no sentido de que para ele a verdadeira arte se expressa sem nenhuma intermediação do
113
Neste sentido, a arte primitiva de Chico da Silva parece responder perfeitamente a
estes conceitos de originalidade e de unicidade que se impõem neste novo regime artístico do
moderno. Por se tratar de uma manifestação, de certa forma, isolada ela elabora “(...) um style
éminemment personnel” e cria “des formes e genres inédits” (BECKER, 2006: 274) que não
permite nenhuma vinculação imediata a alguma escola, tradição ou artista consagrado do
mundo da arte, tornando-se assim singular e única.
Além do mais, a expressão vista como “espontânea”, “livre” e “ingênua” de Chico da
Silva responde a um dos principais propósitos lançados pela arte moderna, que no Ceará, são
difundidos e defendidos pela geração de pintores da década de 40: a sensibilidade acima dos
cálculos gélidos das proporções e perspectivas manejados pela arte acadêmica. Desta maneira,
como bem destaca Matisse: “A arte moderna é uma arte de invenção; no seu início, trata-se de
um arroubo do coração. Portanto, por sua própria essência, ela está mais próxima das artes
arcaicas e das artes primitivas, do que da arte do Renascimento” (FINKELSTEIN, 2002: 10).
Paradoxalmente, infere-se que é exatamente no momento de autonomização do campo
artístico cearense, momento este em que a arte se volta para si mesma, tornando, nesta
dinâmica interna, as obras cada vez mais esotéricas, auto-referenciadas, fechadas na sua
própria história (que é a história de produção do campo), que os trabalhos de Chico da Silva,
desfiliados a qualquer tradição estética e independente em termos de conhecimento técnico e
teórico da arte convencional, encontram suas possibilidades objetivas de manifestação.
O estado constante de ruptura com a tradição estética instaurado nesta fase artística
delineia, portanto, um lugar de coerência e sentido para essas produções, evidenciando,
assim, o poder de transmutação do campo” (BOURDIEU, 1983: 93) que por puro efeito de
uma lógica que lhe é imanente proporciona o ajustamento e acomodação de tais
contradições.
pensamento racional, manifestando-se espontaneamente como a natureza. Assim: “Todo verdadeiro gênio tem
de ser ingênuo, ou não é gênio. Apenas sua ingenuidade o torna gênio...” (SCHILLER apud Ibidem: 79)
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chico da Silva se apresentou, e se apresenta, para muitos como uma personalidade
intrigante; isto se deve, em grande medida, a dissonância de seu percurso artístico com
relação aos seus pares e a especificidade de sua obra e vida. Mozart Soriano Aderaldo é um
dos que se questiona sobre a peculiaridade do pintor naif: “Como era que um homem de
parcas letras, de escalão bem baixo, poderia conceber aqueles desenhos maravilhosos e ao
mesmo tempo aquelas tonalidades fortes e firmes que combinavam em si muito bem?(apud
GALVÃO, 2000: 33).
Tal interrogativa levantada por Aderaldo, dentro de um estudo sociológico, pode não
permitir avanços significativos no entendimento dessa singularidade, já que assim como
Mauss em Essai sur la magie passa dos instrumentos utilizados pelo feiticeiro para o próprio
feiticeiro, e deste para a crença dos seus clientes e, paulatinamente, para todo o universo
social no qual se elabora e se exerce a magia (BOURDIEU, 1983), a análise deve sair do
reduto das características particulares e pessoais do artista em direção ao contexto o
contexto aqui empregado não no sentido “de uma objetividade histórica, aliás impossível, mas
de uma construção intelectual(...)” (SIMIONI, 2002: 15). Deste modo, a compreensão da
manifestação de Chico da Silva se dá sob esta perspectiva que ultrapassa o âmbito do
puramente individual e subjetivo, restituindo o estatuto coletivo da arte.
“Descoberto” pintando animais estranhos a carvão e giz nos muros das casas dos
pescadores na Praia Formosa ,em 1943, pelo crítico suíço Jean Pierre Chabloz, Chico da Silva
tem sua vida, a partir desse encontro, radicalmente transformada. De tamanqueiro, verdureiro
e consertador de guarda-chuva ele passa a ser pintor, abraçando de vez, por intermédio do
estrangeiro, o mundo das tintas e pincéis.
Transpondo para as telas aquela linguagem que ele construíra no seu suporte ancestral,
os muros, o artista não redimensiona nesse primeiro momento sua expressão “espontânea”,
como a condiciona aos novos meios que lhe eram colocados a mão: folhas de bistrol, tintas,
pincéis, penas, nanquim e as direciona no sentido apontado, diretamente ou indiretamente, por
Chabloz.
Ora, o suíço que por trazer uma bagagem extensa de vivência artística, tanto do âmbito
acadêmico, como dos círculos informais das vanguardas estéticas européias, conseguiu
enxergar naqueles desenhos “disformes” e “fora de proporção” originalidade e poder poético,
115
ao interditar e animar determinadas medidas no trabalho artístico do “pintor praiano” acabava
por emprestar, assim, sua visão imbuída de representações e expectativas.
Ele que denotara em suas reflexões sobre o estado da arte brasileira a ausência de
uma fase primitiva no curso do seu ciclo “natural”, ao categorizar Silva como um primitivo,
“cuidava” para que esta fase “primaverildo pintor não fosse maculada pelos artificialismos
acadêmicos, depositando nele todas as suas esperanças da re-invenção da pintura não a do
Ceará como a do Brasil.
Motivado por essas concepções, Chabloz leva as obras de Chico da Silva aos circuitos
locais, nacionais e internacionais de artes plásticas, intermediando definitivamente sua entrada
no mercado de bens simbólicos.
Não obstante, no âmbito local Francisco encontra inicialmente resistência, por parte
dos pares e do público, isso porque o Ceará, apesar de apresentar uma abertura às linguagens
modernas, ainda se encontrava fortemente marcado pelo estilo neoclássico, amplamente
difundido nas terras alencarinas desde o século XIX. O aprofundamento processual da
autonomização do campo artístico que delineia o espaço de possibilidade para a manifestação
destes trabalhos não naturalísticos e não figurativos (entendendo por figuração a resultante de
um conjunto de técnicas e procedimentos gráficos por meio dos quais se busca a ilusão de um
corpo tridimensional no quadro) demarcará, por sua vez, a inscrição de Chico da Silva e suas
composições na história da arte.
Com as reavaliações e experimentações estéticas operadas pelo movimento artístico
cearense (articulado em torno das instituições artísticas CCBA e SCAP) dos anos 40, novos
conceitos e valores sobre a arte são forjados. Se nas décadas de 20 e 30 a produção pictórica
cuidava de representar a realidade de maneira mais aproximada e fidedigna possível, na
década que se segue o principio que se coloca é o da originalidade, da “criação” em
detrimento a “execução”: O artista não somente representa a natureza, mas agrega ao
movimento compositivo elementos da sua personalidade, do seu gesto, transformando a fatura
final em uma obra de sua criação e fantasia (MONTENEGRO apud ESTRIGAS, 1983).
Neste sentido, se institui nessa reconfiguração o primado da forma sobre o conteúdo,
do modo de representação sobre o elemento representado. O tema da obra, que para a arte
acadêmica não só era relevante, como essencial, dentro do discurso moderno é completamente
abandonada, resguardando, desta maneira, ao puro jogo de cores, linhas e contornos às
116
propriedades típicas da pintura (diferenciando-a das outras manifestações imagéticas como a
fotografia, o cinema) e de seus produtores.
A arte também faz uma volta reflexiva sobre si mesma, referenciando-se na sua
própria história, que é a mesma história de produção do campo artístico. Cada nova obra,
inclusive as de características vanguardistas, se sobrepõe às do passado, estas que são
conservadas e celebradas por um corpo de agentes tais quais historiadores da arte, analistas,
exegetas, inscrevendo-se em uma linha de continuidade e cumulatividade.
É o campo artístico que se autonomiza, estabelecendo sua lógica e linguagem
particular, fechando-se nesta dinâmica cada vez mais em si mesmo. E é, justamente, frente a
este estágio de independência da esfera artística cearense que as obras de Chico da Silva
encontram sentido. Inscrevendo-se ou sendo inscrito na esteira das transformações
estéticas, suas composições alinham-se ao quadro renovador de artistas como Antônio
Bandeira e Aldemir Martins que por suas investidas em novos caminhos estilísticos de
expressão, destituíam-se das amarras impostas pelos frios e calculistas padrões técnico-
acadêmicos, sendo por isso levadas às principais galerias de arte moderna do país e do
mundo.
Contudo, uma questão paradoxal se coloca nessa inserção. Se em um campo artístico
autonomizado não há lugar para aqueles que renegam a história desse campo, como conceber,
nessa conjuntura, a manifestação artística de Chico da Silva? Sim, pois basta lançar o olhar
nas obras desse artista para perceber em suas características a completa indiferença e
estranheza dos seus trabalhos em relação a esse legado: a forma de disposição das cores cruas,
a indefinição de planos e perspectivas, o inusitado uso do pontilhismo e o particular repertório
temático.
É a lógica particular deste campo artístico autonomizado e, por isso, em permanente
estado de ruptura com a tradição estética que viabiliza a entrada destas manifestações, como a
de Chico da Silva, que não devem nada à pintura. Sob esta afirmativa, compreende-se, neste
sentido, o porquê do contexto favorável da arte moderna (sem dúvida é na configuração da
arte moderna que o campo artístico se autonomiza) na inserção destas expressões assistida nos
mais diferentes meios (Europa, Estados Unidos, Brasil e também Ceará) e de como nesta
dinâmica de inclusão se tecem afinidades estilísticas, formais e conceituais entre estas duas
vias expressivas: a “moderna” e a “primitiva”.
117
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125
ANEXOS
Cronologia
1910 – Nasce em 16 de julho, no Alto do Tejo, Vale do Juruá, no estado do Acre.
1916 – Transfere-se para Quixadá.
1933 – Transfere-se para Fortaleza.
1937 – Inicia-se nas pinturas.
1943 – Jean Pierre Chabloz conhece as pinturas murais de Chico.
1944 – Participa no III Salão Cearense de Pinturas, organizado por Chabloz.
1947 – Trabalhos de Chico são expostos na galeria Askanasy, no Rio de Janeiro.
1948 – Chabloz volta para o velho mundo.
1950 – Pinturas de Chico são expostas na Galeria Pour L’Art, em Lausanne,na Suíça.
1952Cahier D’Art publica o texto “Um índio brasileiro reinventa a pintura”.
1956 – Pinturas de Chico são expostas no Museu Etnográfico de Neuchantel, Suíça.
1959 Chabloz retorna a Fortaleza e apresenta Chico ao reitor Martins Filho, que o contrata
para trabalhar na UFC.
1962 Chabloz deixa de se interessar pelas ações de Chico, “muito mais mundanas que
artísticas”.
1963 – Chico expõe na Galeria Relevo, de Jean Boghici.
1964 – Presumível data do início do trabalho coletivo.
1966 – É agraciado com a Menção especial do Júri, na Bienal de Veneza.
1976 É agraciado com a Medalha Anchieta, pela Câmara de São Paulo. Tem fortes
problemas de saúde física e mental.
1977 Chico é retirado da Santa Casa de Saúde pelo casal Margarida e Agostinho Ramires,
que se dizem parentes do artista. Chico volta às exposições.
1982 – Problemas cardiovasculares afetam o artista.
126
1984 Recebe a Medalha da Abolição, maior comenda do Estado do Ceará, e a Ordem da
Estrela do Acre, no grau de Cavaleiro.
1985 – Morre, em 5 de dezembro.
(GALVÃO, 2000: 86-88)
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