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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ
Departamento de Economia e Contabilidade
Departamento de Estudos Agrários
Departamento de Estudos da Administração
Departamento de Estudos Jurídicos
CURSO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO
VERA ELIANE DOS SANTOS GRIMM
COMUNIDADES TRADICIONAIS E O RECONHECIMENTO JURÍDICO:
O CASO DO QUILOMBO FAMÍLIA SILVA
Ijuí (RS)
2009
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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL
VERA ELIANE DOS SANTOS GRIMM
COMUNIDADES TRADICIONAIS E O RECONHECIMENTO JURÍDICO:
O CASO DO QUILOMBO FAMÍLIA SILVA
Ijuí (RS)
2009
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1
VERA ELIANE DOS SANTOS GRIMM
COMUNIDADES TRADICIONAIS E O RECONHECIMENTO JURÍDICO:
O CASO DO QUILOMBO FAMÍLIA SILVA
Dissertação apresentada no curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Desenvolvimento
Mestrado, requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Desenvolvimento.
Unijuí Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul.
Linha de Pesquisa: Direito, Cidadania e
Desenvolvimento.
Orientador: Doutor Doglas Cesar Lucas
Ijuí (RS)
2009
2
UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento – Mestrado
A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação
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elaborada por
VERA ELIANE DOS SANTOS GRIMM
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Desenvolvimento
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas (UNIJUÍ): __________________________________________
Profª. Drª. Salete Oro Boff (UNISC): _____________________________________________
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin (UNIJUÍ): ________________________________________
Ijuí (RS), 07 de dezembro de 2009.
3
Ao meu pai (in memorian), por me
fazer acreditar que sempre é possível ir além.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, sempre.
Aos meus familiares, pelo incentivo e pela
compreensão nas horas ausentes.
Ao professor Doglas Cesar Lucas, pelo apoio
e orientação.
À professora Raquel Sparemberger, pela
amizade e auxílio na realização do trabalho.
Aos demais professores e colegas, pela
oportunidade de convivência e de trocas de
experiências e impressões durante a realização
do curso.
Aos amigos, que tendo feito parte do Mestrado
ou não, compartilham meus anseios e
inquietações.
5
“É idéia contraditória querer uma
nação ser livre, e se o consegue, blazonar, em
toda a parte e em todos os tempos, de sua
liberdade, mantendo dentro de si a escravidão,
isto é, o idêntico costume oposto à liberdade.
Os brasileiros, portanto, devem escolher entre
estas duas alternativas: ou eles nunca hão de
ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não
ter consigo a escravidão”.
(Hipólito José da Costa, 1822)
6
RESUMO
A presente pesquisa analisa a crise ambiental na sociedade de risco e seus reflexos sobre
comunidades quilombolas da atualidade que vivenciam um contexto de inúmeros conflitos
nos mais variados aspectos, além de permanente luta por seus direitos, por seu território e até
mesmo por sua história. Nesse sentido, faz-se uma abordagem sobre as características da
sociedade de risco e suas consequências para o cenário atual, especialmente para as
comunidades relacionadas, enfatizando a origem das desigualdades entre os diferentes povos
ao longo do processo do desenvolvimento brasileiro, bem como as perspectivas futuras para
essas comunidades, principalmente com relação ao constitucionalismo contemporâneo.
Assim, surge a discussão a respeito do reconhecimento dos direitos destes povos e também
questões relacionadas às dimensões sociais e culturais afetadas pela sociedade de risco, para o
que o debate acerca do assunto ganha abordagem antropológica. O alcance da proteção
jurídica aos remanescentes de quilombos vai sendo construído, mas as garantias não são
efetivas e um longo caminho a percorrer, o qual engloba embates teóricos e ideológicos e,
sobretudo, a redefinição do Estado, dos conceitos jurídicos e da atuação dos sujeitos em
sociedade. A questão quilombola não é recente e nem sua luta é novidade, pelo contrário,
trata-se apenas da persistência e da resistência coletiva de um povo para superar a aniquilação
e as perdas que a comunidade teve até o momento, como forma de inclusão numa nação que
se denomina multicultural. Levando em conta todo o processo histórico, com suas
implicações e repercussões, a questão dos direitos dos remanescentes de quilombos coloca-se
em evidência na atualidade, corporificada nas muitas disputas e conflitos estabelecidos em
todo o país, como é exemplo o caso da Família Silva, que persiste na luta pelo
reconhecimento, pela liberdade e pela identidade, que mesmo com a previsão legal de seus
direitos se veem impelidos a provar seu passado e, com isso, afirmarem a titularidade de suas
reivindicações.
Palavras-chave: Sociedade de risco. Direitos quilombolas. Constituição. Resistência negra.
Liberdade. Identidade.
7
ABSTRACT
This study examines the environmental crisis in the risk society and its impact on today's
maroon communities, who experience a context of many conflicts in various aspects, and
continual struggle for their rights, through its territory and even his history. In this sense, it is
a discussion of the characteristics of risk society and its consequences for the current scenario,
especially for the communities involved, emphasizing the origin of inequality among different
peoples throughout the process of Brazilian development, and the prospects future for these
communities, especially in relation to contemporary constitutionalism. Thus, there is
discussion about the recognition of the rights of these people as well as issues related to social
and cultural dimensions affected by the risk society, to which the debate on the issue gained
anthropological approach. The scope of legal protection to quilombo is being built, but the
guarantees are not effective and there is a long way to go, which includes theoretical and
ideological struggles, and especially the redefinition of the state, legal concepts and actions of
the individuals in society. The issue is not new maroon and their struggle is not new,
however, it is just persistence and collective resistance of a people to overcome the
annihilation and loss that the community had so far, as being included in a nation is called
multicultural. Taking into account the whole historical process, with its ramifications for the
rights issue quilombo puts in evidence today, embodied in the many disputes and conflicts
established throughout the country as an example the case of the Silva Family that persist in
the struggle for recognition, freedom and identity, that even with the legal provisions of their
rights find themselves compelled to prove his past and thereby claiming ownership of their
claims.
Key words: Risk society. Rights quilombolas. Constitution. Black resistance. Freedom.
Identity.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................9
1 COMUNIDADES TRADICIONAIS NA SOCIEDADE DE RISCO: O MEIO
AMBIENTE NATURAL E CULTURAL AMEAÇADO ...................................................12
1.1 Crise ambiental e sociedade de risco..................................................................................12
1.2 Sociedade de risco: conflitos ambientais e sociais.............................................................15
1.3 Comunidades tradicionais no Brasil: breve contextualização............................................21
1.4 Comunidades tradicionais: aspectos naturais e culturais....................................................30
2 COMUNIDADES QUILOMBOLAS: DESAFIOS SOCIOAMBIENTAIS E
CULTURAIS DIANTE DOS RISCOS.................................................................................33
2.1 Reflexos dos riscos globais nessas comunidades: da escravização aos processos de
titulação dos territórios.............................................................................................................33
2.2 A proteção jurídica no Brasil e o seu alcance para os povos quilombolas.........................41
2.3 A identidade, o reconhecimento e o território dos remanescentes de quilombos...............45
3 COMUNIDADE TRADICIONAL FAMÍLIA SILVA: UM QUILOMBO URBANO
EM BUSCA DO RECONHECIMENTO .............................................................................51
3.1 Breve histórico da herança quilombola..............................................................................51
3.2 Conflitos jurídicos: a luta coletiva pelo reconhecimento da identidade quilombola..........57
3.3 Análise crítica/avaliação dos desafios futuros....................................................................62
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................69
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................72
ANEXOS .................................................................................................................................78
9
INTRODUÇÃO
O cenário atual evidencia que a humanidade está vivendo em meio aos inúmeros
conflitos oriundos da sociedade de risco. Os conflitos são traduzidos como um problema
global ao mesmo tempo com repercussão para realidades locais, que provocam implicações e
transferem uma série de incertezas para comunidades tradicionais, inclusive no que diz
respeito aos conhecimentos destes povos na atualidade. Assim, a preocupação com a questão
do reconhecimento dos direitos dos diferentes povos é relevante, enquanto integrantes de uma
sociedade que vivencia um vasto contingente de riscos, nos mais variados aspectos.
Este trabalho foi desenvolvido com base na pesquisa de dissertação elaborada,
vinculada ao Mestrado em Desenvolvimento da Unijuí/RS – Linha de Pesquisa Direito,
Cidadania e Desenvolvimento –, a qual visa realizar uma abordagem acerca dos riscos globais
e reflexos locais, enfocando o meio ambiente natural e cultural dos conhecimentos
tradicionais no Brasil, especificamente a respeito de comunidades quilombolas.
A escolha da temática: “Comunidades Tradicionais e o Reconhecimento Jurídico: o
caso do Quilombo Família Silva”, se deu em razão da luta desses povos em oposição à
folclorização de sua cultura e de sua identidade que, desde a origem do nosso país,
representou e ainda representa a luta contra a expropriação de seus corpos, de seus bens e
de seus direitos. Para essas comunidades, cuja apropriação do próprio espaço necessário para
viver significa ainda hoje um ato de reação à segregação, à discriminação e a um vasto
contingente de riscos que enfrentam na atualidade, a organização coletiva é a forma de
alcançar a inclusão social, principalmente com a utilização de procedimentos legais como a
demarcação de terras ou os processos de titulação de seu território, como no caso dos
remanescentes de quilombolas.
10
Os riscos, como pretendemos demonstrar, são oriundos da globalização e da crescente
degradação ambiental, gerados pelo avanço da sociedade de risco que provoca sérias
repercussões no presente contexto, inclusive na realidade brasileira, tornando este um assunto
intrigante no momento atual. Desse modo, até mesmo as diversas comunidades tradicionais
têm suas riquezas biodiversas e culturais ameaçadas por esse contexto de incertezas,
vivenciando um cenário de impasses e desafios.
Os impasses socioambientais e culturais que as comunidades tradicionais estão
vivenciando, têm relação direta com a limitação do território e até mesmo com a usurpação do
mesmo. Isso gera impasses interétnicos e de tensão devido à superposição de diversidades
entre modos de organização social e de produção, dentre outras peculiaridades.
Isto torna relevante o debate acerca das perspectivas socioambientais, culturais,
político-econômicas e etno-históricas, ainda mais quando falamos em sociedade de risco e a
incidência dos riscos globais e dos reflexos locais para o meio ambiente natural e cultural dos
conhecimentos tradicionais dos quilombolas no Brasil.
Deste modo, o desenvolvimento do presente trabalho está organizado em três
capítulos. O primeiro refere-se às “Comunidades Tradicionais na Sociedade de Risco: o Meio
Ambiente Natural e Cultural Ameaçado”, abordando as concepções que orientam a crise
ambiental na sociedade de risco, sua análise e as consequências ou efeitos que são
desencadeados para os diversos segmentos sociais. Efeitos estes que não são ecológicos e
que a cada dia originam novos conflitos e novas demandas.
Assim, passa-se a delimitar os conflitos ambientais e sociais na sociedade de risco,
para depois fazer uma breve contextualização a respeito das comunidades tradicionais no
Brasil, suas características, definições e peculiaridades quanto ao meio ambiente e quanto às
relações sociais e interações com as demais comunidades, referindo-se ainda aos aspectos
naturais e culturais dos povos tradicionais.
No segundo capítulo enfatiza-se “A Sociedade de Risco e os Direitos Coletivos das
Comunidades Quilombolas”, com o debate a respeito dos reflexos dos riscos globais nessas
comunidades, bem como uma breve abordagem sobre a proteção jurídica no Brasil e as novas
concepções que trazem à tona a discussão a respeito da identidade, do reconhecimento e do
território dos remanescentes de quilombos. Assim, este enfoque faz-se necessário para
compreender o alcance não terminológico do termo “remanescentes de quilombos”,
incluído no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
11
Federal de 1988, cuja aplicabilidade jurídica abarca vários significados, os quais não se
restringem ao campo do Direito.
Ao abordar os aspectos jurídicos do reconhecimento dos direitos das comunidades
tradicionais faz-se a relação entre os conceitos do passado e sua superação na realidade atual,
ou então a dificuldade em superar preconceitos históricos e proporcionar condições para que
as populações quilombolas possam buscar a efetividade de direitos consagrados no
ordenamento legal ou na Constituição brasileira.
No terceiro capítulo a discussão é trazida para a realidade mais próxima e abordamos
“O Contexto da Comunidade Tradicional Família Silva”, um quilombo urbano do Rio Grande
do Sul que busca reconhecimento. Neste momento destacamos um breve histórico da herança
quilombola, abordando sobre como nos dias de hoje são travados conflitos jurídicos e como
as comunidades remanescentes de quilombo desenvolvem a luta coletiva pelo reconhecimento
de sua identidade. Ao final deste capítulo desenvolvemos uma sucinta análise crítica no
sentido de compreender o que a trajetória histórica nos demonstrou, o que devemos construir
em termos de igualdade, cidadania e efetivação de direitos e o que isto representa em termos
de desafios futuros, numa tentativa de ponderar entre as possíveis posturas a serem adotadas a
fim de evitarmos que a crise avance ainda mais.
As batalhas judiciais são cada vez mais frequentes quando falamos em titulação de
terras quilombolas, ainda mais porque isso envolve múltiplos interesses e ressalta diferenças
que muitos não querem reconhecer. Assim, muitas das comunidades que se engajam na luta
pelo reconhecimento de seu território necessitam travar, além das batalhas no campo jurídico,
verdadeiros confrontos com o conservadorismo do sistema vigente e a falta de solidariedade
de muitos segmentos de nossa sociedade.
A discussão sobre os avanços que temos hoje poderá demonstrar o quanto as atitudes
do passado estavam equivocadas, além de ressaltar o que ainda deve ser mudado e
conquistado. Com o tema estudado neste trabalho perceberemos a ligação entre muitos dos
problemas contemporâneos, como a crise ambiental e as consequências da sociedade de risco,
de modo que ao mencionarmos as comunidades tradicionais estamos nos referindo aos
desafios que grande parte da população humana enfrenta no contexto atual, não
necessariamente enquanto minoria étnica, com a expectativa que tal abordagem possa
contribuir para que a discussão aflore e que cada vez mais pessoas se conscientizem de seu
papel na sociedade e no mundo contemporâneo.
12
1 COMUNIDADES TRADICIONAIS NA SOCIEDADE DE RISCO: O MEIO
AMBIENTE NATURAL E CULTURAL AMEAÇADO
“Num mundo em transformação acelerada, cuja
globalização é imposta pelas novas tecnologias de
informação e pelos canais de trocas bancárias e
econômicas, eu me impressiono com o número daqueles
que pensam que nada pode mudar”.
(Alain Touraine).
1.1 Crise ambiental e sociedade de risco
Muitos fatores contribuíram para a emergência da sociedade de risco, tanto no que se
refere aos impactos ambientais quanto aos demais impactos gerados pelo processo de
industrialização e aceleração do desenvolvimento de um modo geral.
O debate internacional sobre os problemas ambientais e sobre a crise ambiental, como
um todo, vem alcançando maiores proporções e avançando em alguns aspectos. Discute-se
sobre o conceito de desenvolvimento sustentável
1
para que este vincule eficiência econômica
com justiça social e prudência ecológica. Para tanto, é imprescindível a redefinição das
relações sociedade humana – natureza.
Desta maneira, todos os impasses da sociedade de risco são tidos agora como uma
realidade que se instaurou mais tempo, mas que com a modernidade se tornou então
globalizada ou mundializada, sendo uma nova ordem global ou sistema social. Nessa nova
forma de organização, como refere Giddens (1991, p. 14), “os modos de vida produzidos pela
modernidade nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma
maneira que não têm precedentes.”
Segundo o autor, este novo contexto cria, além das oportunidades favoráveis, um lado
sombrio, muito carregado e perigoso. Isto ocorre devido ao vasto número de incertezas e
inseguranças vivenciadas pelas pessoas numa sociedade fragmentada e repleta de desencaixes,
1
Aqui podemos nos referir às oito dimensões da sustentabilidade mencionadas por Veiga (2005, p. 171): social,
cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica, política nacional e política internacional.
13
principalmente em questões de organização, de lógica de tempo e espaço, na confiança e
muitos outros fatores que facilitam a proliferação dos ambientes de risco e perigo da
atualidade. Ou seja, “a modernidade é inerentemente globalizante.” (GIDDENS, 1991, p. 69).
Isto evidencia ainda mais que “a globalização se refere essencialmente a este processo
de alongamento, na medida em que as modalidades de conexão entre diferentes regiões ou
contextos sociais se enredaram através da superfície da Terra como um todo.” Neste sentido,
prossegue o autor, “a globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações
sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos
locais são moderados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa.”
(GIDDENS, 1991, p. 69).
Tudo está tão interligado que até mesmo é passível de ser confundido, já que “a
transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões
sociais através do tempo e do espaço.” (GIDDENS, 1991, p. 70).
Dessa maneira, o reflexo do cenário de constantes mudanças nos campos político,
jurídico e social está destituindo o Estado do centro do poder e enfraquecendo as demais
instituições da sociedade. A vontade geral não é mais o sentido do Estado e muitos dos
direitos e garantias previstos constitucionalmente são inefetivos. De certa forma, vivenciamos
uma era de perda da cidadania, pois os direitos civis, políticos e sociais só podem ser
garantidos de fato por intermédio do Estado, como era o pressuposto de proteção social do
Welfare State, com um Estado interventor e preocupado em garantir a justiça social
2
.
A este respeito, Carvalho (2002, p. 225) observa que “o foco das mudanças está
localizado em dois pontos: a redução do papel central do Estado como fonte de direitos e
como arena de participação, e o deslocamento da nação como principal fonte de identidade
coletiva”, ou seja,
[...] em circunstâncias de globalização acelerada o Estado tornou-se muito pequeno
para grandes problemas da vida, e muito grande para os pequenos problemas da
vida. Ao mesmo tempo em que as relações sociais se tornam lateralmente esticadas e
como parte do mesmo processo, vemos o fortalecimento de pressões para a
autonomia local e identidade cultural regional. (GIDDENS, 1991, p. 70).
2
Nesse sentido, conferir BEDIN, Gilmar Antonio. O desenvolvimento da cidadania moderna e o neoliberalismo.
In: DAL RI JÚNIOR, Arno; OLIVEIRA, Odete Maria (Orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e
perspectivas nacionais – regionais – globais. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. p. 435-462.
14
No entanto, há laços de confiança que são essenciais para que a descontinuidade
provocada pelos sistemas modernos não alcance proporções tão elevadas ao ponto de que não
se possa reverter o quadro de riscos e perigos do novo contexto social. Esses laços são
vislumbrados nas relações de parentesco, nas relações entre membros de comunidades locais,
na cosmologia religiosa e na tradição.
São contextos que guardam a possibilidade de garantir a solidez das instituições
sociais ao longo do tempo, como meio apto a reduzir o impacto das transformações da
sociedade de risco e dos riscos propriamente ditos, pois
o ambiente de risco pré-moderno sofre transformações análogas. Em condição de
modernidade, os perigos que enfrentamos não derivam mais do mundo da natureza.
É claro, ciclones, terremotos e outras catástrofes naturais ainda ocorrem. Mas em sua
maior parte, nossas relações com o mundo físico são radicalmente diferentes
daquelas das épocas anteriores especialmente nos setores industrializados do
globo, mas em certo grau em toda a parte. A primeira vista, os perigos ecológicos
que enfrentamos atualmente podem parecer semelhantes às vicissitudes da natureza
encontradas na era pré-moderna. O contraste, contudo, é muito nítido. Ameaças
ecológicas são o resultado de conhecimento socialmente organizado, mediado pelo
impacto do industrialismo sobre o meio ambiente material. São parte do que
chamarei de um novo perfil de risco introduzido pelo advento da modernidade.
Chamo de perfil de risco um elenco específico de ameaças ou perigos característicos
da vida social moderna. (GIDDENS, 1991, p. 111-112).
No âmbito da globalização, “a modernidade dês-loca no sentido anteriormente
analisado – o local se torna fantasmagórico. Entretanto, esta é uma vivência de camada dupla,
ou ambivalente, ao invés de simplesmente uma perda de comunidade.” Para o autor, ao
mesmo tempo em que a nova realidade causa familiaridade, gera também o estranhamento,
num cenário onde o que é imposto pelo fenômeno globalizador ganha mais aceitabilidade e
adequação do que, muitas vezes, coisas ou pessoas próximas que antes faziam parte do
cotidiano (GIDDENS, 1991, p. 141).
É um vasto contexto de insegurança, que faz com que aos poucos as discussões
acentuem-se no sentido de buscar soluções próximas. Para tanto, os movimentos sociais
passam a ter um papel sobremaneira especial. “Como modalidades de engajamento radical
com importância difusa na vida social moderna, os movimentos sociais fornecem pautas para
potenciais transformações futuras.” (GIDDENS, 1991, p. 158).
São manifestações que permearam as lutas e as transformações históricas, sendo que,
na atualidade adotam outros enfoques. “Outros tipos de movimentos sociais são mais novos,
no sentido em que vieram a aumentar a sua proeminência em anos relativamente recentes.”
15
São movimentos que, mais do que reivindicar por uma causa, agregam esforços para voltar-se
para causas políticas emancipatórias, e também para causas da vida, cujos exemplos o os
de lutas pela paz e os de lutas ecológicas (GIDDENS, 1991, p. 160).
Dessa maneira, refere Giddens (1991, p. 160), “a área de luta dos movimentos
ecológicos em cuja categoria os movimentos de contracultura também podem ser incluídos
e o meio ambiente criado”, cujas “preocupações ecológicas, entretanto, não derivam apenas
dos riscos de alta-consequência e enfocam também outros aspectos do meio ambiente criado.”
O autor enfatiza que “do outro lado da modernidade, como virtualmente ninguém na
Terra pode continuar sem perceber, pode não haver nada além de uma ‘república de insetos e
grama’, ou um punhado de comunidades sociais humanas ‘danificadas e traumatizadas’.”
(GIDDENS, 1991, p. 173). Ou seja, que a responsabilidade pelo que está acontecendo hoje é
de quem pertence ao mundo.
Não podemos mais negar que
uma das consequências fundamentais da modernidade, como este estudo enfatizou, é
a globalização. [...] A globalização que é um processo que tanto fragmenta quanto
coordena – introduz novas formas de interdependência mundial, nas quais, mais uma
vez, não ‘outros’. Estas, por sua vez, criam novas formas de risco e perigo ao
mesmo tempo em que promovem possibilidades de longo alcance de segurança
global. (GIDDENS, 1991, p. 174).
Dessa maneira, a crise atual se processa de várias formas e repercute em diferentes
setores, expondo cada vez mais indivíduos aos riscos. As incertezas quanto ao destino do
planeta no que se refere ao meio ambiente também agregam incertezas sociais, econômicas,
culturais, cujo processo de globalização reforça os medos e contribui para o agravamento
das consequências.
1.2 Sociedade de risco: conflitos ambientais e sociais
Os conflitos produzidos pela sociedade contemporânea traduzem uma dimensão
paradigmática. Esta incorporou novas demandas de caráter social e cultural, as quais
ultrapassam a simplicidade da construção jurídica individual típica da sociedade liberal-
burguesa de períodos anteriores. A racionalidade das instituições jurídico-políticas da moder-
nidade, fundadas num idealismo legalista e no indivíduo juridicamente abstrato, não consegue
responder satisfatoriamente às questões que dizem respeito à relação cidadão x Estado.
16
Isto repercute ainda mais ao considerarmos o impacto da abrangência de um
pensamento economicista na órbita ambiental, tornando evidente o fato de que os conflitos
tendem a se acentuar na sociedade atual, na qual a abertura dos mercados foi a solução
encontrada pelo sistema capitalista para aumentar as taxas de crescimento econômico e
impulsionar uma nova economia mundial.
Neste contexto, as fronteiras de Estados nacionais diminuíram e a globalização passou
a ser determinada pelos Estados mais desenvolvidos economicamente. Com isso, as políticas
de desenvolvimento e o papel dos Estados na economia passaram a ser ditados pela nova ótica
global. Assim, os principais traços da economia foram acentuando sua dominação pelo
sistema financeiro e pelo investimento à escala global, além de processos de produção
flexíveis e multilocais, revolução das tecnologias de informação e comunicação, desregulação
das economias nacionais – com a exigência cada vez maior de que estas se abram ao mercado
mundial, priorizando exportações, mobilidade dos recursos e regulação estatal mínima, entre
outras exigências (SANTOS, 2003).
O que se evidenciou com este processo de globalização, no qual o desenvolvimento é
voltado basicamente para o crescimento econômico, é que as diferenças entre países pobres e
ricos aumentaram. Tal efeito se deu especialmente devido às drásticas mudanças políticas e
sociais, acentuadas pela incessante degradação do meio ambiente.
Sob esta ótica, a problemática ambiental também passou a ser apresentada como
objeto ímpar, pois conforme assevera Leff (2001), deve-se possibilitar que a organização
social seja repensada para que se possa fundar uma nova racionalidade que considere o
homem e a natureza de forma integrada. Essa seria a forma de o conceito de sustentabilidade
ganhar proporções especiais, alcançando uma múltipla dimensão que abrange o social, o
cultural, o ecológico, o ambiental, o territorial, o econômico e o político.
A esse respeito, especialmente com relação à utilização de recursos naturais pelo
homem, Acselrad (2004, p. 7) diz haver dois pontos de vista, os quais não têm a ver somente
com a quantidade de recursos utilizada. Veja-se:
Isso leva ao desenvolvimento de duas visões sobre a utilização dos recursos naturais.
A primeira, onde prevalece a problemática das quantidades de matéria e energia,
postula que, sendo finitos os recursos do planeta, temos que economizá-los. Tal
concepção, de perfil tendencialmente economicista, resulta em que se busque
postergar, por medidas de combate ao desperdício, o momento em que os recursos
se esgotarão.
17
Uma outra formulação, que compreende e ultrapassa a questão de quantidades,
coloca pergunta distinta: se o mundo e seus recursos são finitos, quais são os fins
para os quais nós deles nos apropriamos? Para produzir tanques ou arados? Para
fabricar armas mortíferas ou para produzir alimentos para os que têm fome? [...]
Nessa ótica, não está em causa apenas a escassez futura de meios que se anuncia,
mas a natureza dos fins que norteiam a própria vida social.
Castells (1999, p. 155) refere, acerca das teorias que discutem sobre a utilização dos
recursos naturais, que
por vezes essa é a ciência ruim, fingindo saber o que acontece com a natureza e com
os seres humanos e revelando a verdade oculta sob os interesses do industrialismo,
capitalismo, tecnocracia e burocracia. Embora critiquem a dominação da vida pela
ciência, os ecologistas valem-se da ciência para fazer frente a esta em nome da vida.
Neste contexto, torna-se cada vez mais evidente que não podemos separar sociedade e
meio ambiente. Como refere Acselrad (2004, p. 27): “trata-se de pensar um mundo material
socializado e dotado de significados. Os objetos que constituem o ambiente’ não são
redutíveis a meras quantidades de matéria e de energia, pois eles são culturais e históricos.”
complexidade de processos sócio-ecológicos e políticos que colocam o homem e a
natureza no interior dos conflitos sociais. Isso se manifesta por meio das diferentes formas de
apropriação e significação do mundo material: técnicas sociais e culturais, principalmente,
porque, a partir do século XX, houve a intensificação do crescimento econômico e
populacional e a consequente aceleração do processo de degradação do meio ambiente e dos
recursos naturais.
Deste modo, a relação entre crescimento econômico e meio ambiente, que apresenta
conflitos desde os tempos mais remotos, conquista centralidade nas discussões globais, pois
pode colocar em risco a vida na terra. Como definição pode-se dizer que
Os conflitos ambientais são aqueles envolvendo grupos sociais com modos
diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando
pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do
meio que desenvolvem ameaçadas por impactos indesejáveis transmitidos pelo
solo, água, ar ou sistemas vivos decorrentes do exercício das práticas de outros
grupos. (ACSELRAD, 2004, p. 27).
Leite e Ayala (2003, p. 123) referem que “a sociedade capitalista e o modelo de
exploração capitalista dos recursos economicamente apreciáveis se organizam em torno de
práticas e dos comportamentos potencialmente produtores de situações de risco.” Esse modelo
18
de organização econômica, política e social submete e expõe o ambiente, progressiva e
constantemente, ao risco.
Estas relações conflitivas, entre o processo de crescimento econômico e o meio
ambiente, se manifestam, basicamente, por meio dos principais problemas ambientais e seus
agentes causadores, que são: 1) poluição efeito estufa/mudança climática; 2) destruição da
camada de ozônio; acidificação, poluição tóxica; 3) degradação dos recursos naturais
renováveis extinção de espécies; 4) desmatamento; degradação do solo/perda da fertilidade
do solo; 5) degradação da água; degradação dos recursos pesqueiros; 6) esgotamento dos
recursos naturais não-renováveis combustíveis fósseis, minerais etc.; 7) outros problemas
ambientais congestionamento; resíduos tóxicos e embalagens; lixo urbano; poluição sonora,
desastres ambientais etc.
Os conflitos se manifestam também por meio das implicações culturais decorrentes
desse processo, que levam à perda, por parte das comunidades tradicionais, de seu
conhecimento relativo ao uso e cultivo de plantas e ao manejo do ecossistema como um todo,
além de seus conhecimentos relacionados aos próprios costumes, como língua, tradições,
ritos, danças, artesanato e sua própria história.
Neste sentido pode-se considerar que essas relações são características da sociedade
mundial do risco, tão bem descrita por Beck (1998), segundo o qual os riscos da
modernização são universais e seus efeitos são imprevisíveis. Nos riscos da modernização se
junta o que está separado pelo conteúdo, pelo espaço e pelo tempo, gerando um nexo de
responsabilidade social e jurídica. A respeito disso, Leite e Ayala (2003, p.182) asseveram
que:
É inegável que atualmente estamos vivendo uma intensa crise ambiental,
proveniente de uma sociedade de risco, deflagrada, principalmente, a partir da
constatação de que as condições tecnológicas, industriais e de organização e gestão
econômicas da sociedade estão em conflito com a qualidade de vida. Parece que esta
falta de controle da qualidade de vida tem muito que ver com a racionalidade do
desenvolvimento econômico do Estado que marginalizou a proteção do meio
ambiente. Ademais, não é possível deixar de mencionar que a falta de
conscientização ambiental e a expansão demográfica são elementos relevantes no
exame da crise ambiental.
Deste modo, constata-se que os problemas oriundos da sociedade de risco possuem
características locais e globais, isso porque os efeitos o produzidos de maneira diferenciada
para populações e para agentes econômicos, além das dimensões espacial, econômica,
19
temporal e científica. Ao mesmo tempo em que se apresentam de uma maneira universal, os
riscos da modernização refletem localmente, trazendo efeitos incalculáveis e imprevisíveis.
Beck (1998) esclarece que a Sociedade de Risco coincide com a modernidade
industrial, tendo dessa forma suas origens em dois momentos distintos, quais sejam na
Revolução Francesa e no surgimento do Estado Liberal, com o advento de garantias de
direitos mínimos ao cidadão e com a legalidade; e na Revolução Industrial e no modelo
capitalista, com o incremento da apropriação sobre os recursos naturais.
São processos que acarretaram muitas alterações, especialmente com a supremacia das
empresas multinacionais em relação às empresas nacionais e com a organização dos Estados
segundo um contexto global de eficiência produtiva; além do que ocasionam uma série de
reflexos, como é exemplo do que ocorre em razão do fenômeno da globalização.
Sob este enfoque a “sociedade global de risco”, como Beck (1998) define, permite
compreender a sociedade contemporânea nos seus mais diversos aspectos. Entretanto, a
concepção de risco
3
não é nova, ela somente ganha enfoques novos na medida em que os
riscos estão ligados diretamente ao futuro do planeta. Representam as ameaças e as incertezas
nos mais variados setores da vida na Terra, restando ao homem buscar soluções para os
desafios provocados pela modernidade.
A ameaça global traz novas e consideráveis situações de conflito, sendo que muitas
passam despercebidas devido às inúmeras incertezas que os riscos da modernização
promovem atualmente (BECK, 1998). São ameaças ao solo, às plantas, ao ar, à água, aos
animais e uma pluralidade de outros riscos que aos poucos vão ganhando repercussão e
gerando preocupação, principalmente com seus efeitos futuros.
Os efeitos são tão imprevisíveis que não permitem que determinados grupos de
pessoas os evitem, já que possuem efeitos diversos, como é o caso do efeito social de
bumerangue, ao qual estão sujeitos inclusive ricos e poderosos. Isso ocorre porque mais cedo
ou mais tarde os riscos afetarão também aqueles que os produzem ou se beneficiam deles.
Neste pensamento, o autor ainda enfatiza que a natureza não pode ser pensada de
forma isolada da sociedade e vice-versa, ainda mais porque as destruições da natureza,
3
“O sentido comum da palavra risco significa uma possibilidade de perigo, de dano, um acontecimento eventual,
incerto, cuja ocorrência não depende da vontade dos interessados”. (PAVIANI; SPAREMBERGER, 2005, p.
122).
20
integradas na circulação universal da produção industrial, deixam de ser meras destruições da
natureza e se convertem em um componente integral da dinâmica social, econômica e política.
Deste modo, surgem efeitos secundários como os conflitos econômicos, sociais e
políticos, provocando ameaças médicas, sociais e econômicas globais para os seres humanos,
com desafios completamente novos para as instituições sociais e políticas da sociedade
mundial globalizada, como são os que se dão com relação aos aspectos culturais e suas
implicações. Isso se torna mais complexo pelo fato de que os efeitos secundários têm vozes,
olhos, caras e lágrimas (BECK, 1998).
Os problemas do meio ambiente, desta forma, não são problemas do seu entorno, mas
sociais, do ser humano, de sua história, de suas condições de vida, de sua referência no mundo
e na realidade, de seu ordenamento econômico, cultural e político. Assim, para Beck (1998),
há relação entre a crítica do risco e a crítica sociológica da cultura, pois esta também tem suas
normas lesionadas com o curso da modernidade e se em situação de ter que lutar contra o
mal causado por essa modernidade.
As ameaças para a vida por parte do desenvolvimento civilizatório afetam as
comunidades de experiência de vida orgânica que conectam as necessidades vitais
humanas com as das plantas e dos animais. Ao morrer dos bosques o ser humano se
conhece como ser natural com pretensões morais, como uma coisa móvel e
vulnerável, mas, como parte natural de um todo natural ameaçado e do que é
responsável. (BECK, 1998, p. 83).
Diante disso, para reagir frente às incertezas da sociedade de risco, aos poucos surgem
novos movimentos sociais. A atuação dos mesmos vai se dar em protesto às situações de risco
e de perigo, e resultam do engajamento de indivíduos que buscam ainda lutar contra a
individualização, num processo de re-construção da própria identidade.
Estes movimentos, que passaram a ter significado muito relevante nos últimos anos,
podem ser demonstrados por meio das lutas ecológicas, das lutas pela paz, da luta das
mulheres, das lutas pela igualdade, das lutas pelo direito à diferença. São esses e tantos outros
embates que os atores sociais se veem obrigados a travar na busca pelo reconhecimento e pela
efetivação de seus direitos na sociedade global de risco, que persistem as desigualdades
existentes e surgem muitas outras desigualdades.
21
1.3 Comunidades tradicionais no Brasil: breve contextualização
O cenário de incertezas afeta, especialmente, as categorias mais vulneráveis de
indivíduos, como é o caso das comunidades tradicionais de quilombolas e de indígenas, que
por representarem uma minoria face aos interesses da sociedade globalizada, acabam tendo
seus direitos extremamente violados e desconsiderados. O que prevalece são os interesses
econômicos, em nome do desenvolvimento.
Essas comunidades ou sociedades podem ser definidas como:
Grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem
historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na
cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto a
povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que desenvolveram
modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos.
(DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 27).
No Brasil, as comunidades tradicionais
4
representam um vasto número de grupos
sociais e culturais, que habitam determinados espaços naturais, vivendo em harmonia com a
natureza. Os recursos naturais são essenciais para sua sobrevivência e para a manutenção da
própria existência, enquanto espaço de reprodução da cultura e afirmação da identidade.
Estes grupos incluem indígenas, quilombolas, seringueiros, pescadores, ribeirinhos,
caiçaras, sertanejos, etc., que ao longo de sua história desenvolveram técnicas especiais de
utilização dos recursos naturais, preservando o ecossistema e contribuindo para o
desenvolvimento do meio ambiente. Ao mesmo tempo, possuem um conteúdo muito rico em
termos de história da comunidade, preservando a cultura de seu povo durante gerações
(DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Os grupos indígenas, de um modo particular, influenciaram a cultura de um modo
geral, formando uma cultura rústica que se instalou nos variados eixos comunitários,
mantendo um modelo de exploração e manejo dos recursos naturais, de organização para o
4
Ou populações tradicionais, como aborda Arruda (1999, p. 81), esclarecendo que “a colonização do Brasil
empreendida pelos portugueses a partir do século XVI plasmou entre a população rural um modelo
sociocultural de adaptação ao meio que, malgrado suas diferenças regionais e as que se podem detectar ao
longo do tempo, apresenta características comuns que marcam ainda hoje as comunidades humanas em regiões
isoladas do país. Esse modelo sociocultural de ocupação do espaço e de utilização dos recursos naturais deve a
maior parte de suas características às influências das populações indígenas e ao caráter cíclico e irregular do
avanço da sociedade nacional sobre o interior do país.”
22
trabalho e de socialização que, embora positivo, não é reconhecido da maneira como deveria
(ARRUDA, 1999).
Para as comunidades quilombolas, neste sentido, foram várias as repercussões do
escravismo, tendo significação econômica, cultural e social para os africanos, que limitou
até mesmo os costumes, as tradições e a vida em sociedade dos negros. Situação que só veio a
piorar com a libertação, pois os escravos não tinham perspectivas para superar as condições
ou a falta de condições de subsistência e a discriminação de um modo geral.
Esse modelo rústico de exploração dos recursos naturais foi empregado pelas demais
populações tradicionais, cada uma a sua maneira, de modo que as comunidades tradicionais
interferiram de forma positiva na proteção do mundo natural. Em decorrência disto é que se
entende que a biodiversidade
5
não é um conceito apenas biológico, mas que sua compreensão
resulta das práticas desses povos.
Em que pesem as teorias conservacionistas, a biodiversidade deve ser encarada como
produto das sociedades e culturas humanas, de modo que o modelo de conservação por meio
de áreas protegidas não passa de uma visão estética. Muitas teorias foram sendo
desenvolvidas, como a conservacionista, a da ecologia profunda, a da biologia da
conservação, dentre outras. No entanto, o que prevalece é que as paisagens são produto da co-
evolução humana, fruto da história das comunidades tradicionais, cujo conhecimento é
primordial para a conservação do planeta (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Em contrapartida, o que vivenciamos cada dia de forma mais acentuada é que apesar
de em algum momento – o homem ter realizado uma interferência no meio que favoreceu e
favorece a diversidade biológica, essa prática está perdendo as condições de continuar a
existir.
Diante desta realidade, muitas comunidades estão buscando e algumas já alcançaram o
reconhecimento de alguns direitos, inclusive na órbita jurídica. No entanto, com a
modernização, esses direitos, a cultura, os conhecimentos tradicionais e o próprio território
desses povos continuam ameaçados. Isso ocorre em virtude dos interesses econômicos, da
exploração desenfreada dos recursos naturais, da expansão urbana, do avanço da especulação
5
“[...] a biodiversidade resulta de contribuições culturais de povos e comunidades que desenvolvem uma relação
de estreita dependência do meio natural, formas culturais diferenciadas de interação e de apropriação dos
recursos ambientais, e um vasto conjunto de conhecimentos, inovações e práticas.” (SANTILLI, 2005).
23
imobiliária, da invasão de garimpeiros e de madeireiras, e de tantos outros fatores, também
decorrentes da sociedade de risco.
Os indígenas e os quilombolas, devido ao reconhecimento constitucional, possuem um
status jurídico diferenciado e, considerando em termos de representatividade, apesar de serem
tratados como minorias étnicas, constituem uma parte significativa da população brasileira.
Considerando essas peculiaridades é que será dado enfoque especial à comunidade
quilombola neste trabalho
6
.
Justamente por terem alguns direitos reconhecidos constitucionalmente, é que a falta
de efetivação desses e de reconhecimento de tantos outros se torna mais alarmante. Ainda
mais quando falamos em direitos indígenas, direitos de um povo que sofreu a usurpação de
seu território, sendo explorado e dizimado em razão do desenvolvimento; e também quando
falamos dos direitos dos quilombolas, que foram extirpados de seu habitat e comercializados
para vários continentes e nações, inclusive para o Brasil, onde contribuíram no esforço
produtivo na fase colonial e imperial (MAESTRI FILHO, 1979).
A partir de então foi que se desenvolveram os ciclos econômico-sociais, inicialmente
num contexto político-econômico colonialista e mercantilista, no qual o poder baseava-se na
disputa pelo aumento da produção agrícola (RUBERT, 2005). Com isto, essas comunidades
vivenciaram um contexto extremamente contaminado por exploração, desigualdades,
preconceitos, discriminação e uma série interminável de injustiças sociais, que levaram à
redução de suas populações e ao aniquilamento gradual decorrente dos processos de
colonização a que foram submetidos índios e negros (KRETZMANN; SPAREMBERGER,
2008).
O aniquilamento também se deu com relação à cultura dos povos, conforme assevera
Colaço (2006, p. 11-12), com relação aos indígenas:
6
Apesar de o presente trabalho enfatizar o estudo relacionado aos quilombolas, sua cultura, seu reconhecimento
e seus direitos, além dos desafios perante a sociedade de risco, e como se trata de comunidade tradicional que
em muitos momentos tem sua trajetória relacionada à dos povos indígenas, muitas vezes é necessário
mencionar também os indígenas, principalmente para permitir a compreensão com base em realidades que se
assemelham. Rattner (2005, p. 2) refere que “existem muitas definições para o termo cultura, embora haja um
consenso entre os estudiosos de que cultura refere-se àquela parte do ambiente produzida pelos homens e por
eles aprendida e utilizada no processo contínuo de adaptação e transformação da sociedade e dos indivíduos.
Para conhecer a cultura de um povo é fundamental conhecer sua história, sua evolução cultural, ou seja,
suas tradições e as transformações que construíram e ainda constituem a cultura particular de cada
tribo ou qualquer organização social.” (grifo nosso).
24
A América era povoada por diversas etnias indígenas que no contato com o
europeu, sofreram um choque demográfico cultural. Demográfico, em decorrência
da guerra da conquista, das doenças transmitidas pelos brancos e pela intensiva
exploração da mão-de-obra indígena, como a escravidão, a “encomienda e o
repartimiento, cultural como consequência da incompreensão, do desrespeito e da
destruição de sua cultura pela imposição da cultura ocidental
7
.
A respeito dos povos africanos, Hasenbalg (1979, p. 29) afirma que:
[...] o escravismo foi uma experiência histórica crucial para os negros nas Américas.
Além de seu significado econômico, a importância da relação senhor escravo,
como relação em que as clivagens de classe e raça coincidiam quase perfeitamente,
reside nas formas em que se moldou a tradição cultural e os padrões de organização
social do grupo racial subordinado.
Assim, essa breve análise de alguns dados que fazem referência ao início do processo
de colonização/desenvolvimento econômico brasileiro, permite demonstrar que o não
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e quilombolas ao longo do processo de
desenvolvimento do país, repercute ainda hoje, mesmo em pleno século XXI. Todo o
contingente de exploração vivenciada por essas comunidades reflete na situação de
desigualdade social e vulnerabilidade extrema que ainda os cerca, o que é inaceitável na época
atual, principalmente quando nos referimos aos Direitos Humanos e à Democracia de forma
tão contundente.
Ramos (1988, p. 73) afirma que:
[...] os movimentos de expansão da sociedade brasileira interferem de perto na vida
indígena, por força do potencial destrutivo que carregam. A abertura de estradas, a
implantação de hidrelétricas que acompanham a descoberta de riquezas de interesse
econômico em áreas até então inexploradas acarretam perturbações ecológicas em
consequência de desflorestamentos, extinção de espécies da flora e da fauna,
poluição ambiental; causam, também, a disseminação de doenças e originam a
invasão de territórios e enfrentamento com as populações indígenas. Detona-se,
assim, uma corrente de desastres e crimes ameaçando e inviabilizando a manutenção
do modo de vida tradicional.
7
“Sob o regime da encomienda, os índios eram considerados como “vassalos” da coroa, mas confiados” a um
colono espanhol denominado encomiendero, o qual tinha sobre eles uma verdadeira delegação de poder
público, incluindo-se um direito de jurisdição e uma tutela ampla: podia forçá-los a trabalhar par ele e em
contrapartida, devia protegê-los e evangelizá-los e pagar-lhes um salário para manter a ficção jurídica da
liberdade deles.” (ROULAND, 2004, p. 113-114). A prática do repartimiento surgiu a partir da revolta de
1497, quando “os colonos, revoltados, dividiram entre si os indígenas, cada um recebeu um certo número de
índios submetidos ao trabalho forçado.” [...] Tratava-se, então, de uma prática que procedia da mais completa
arbitrariedade, um fato consumado que o Estado se esforçou para legalizar de um modo ou de outro, seguindo
um processo que se reproduziria muitas outras vezes ao longo dos empreendimentos coloniais posteriores.”
(ROULAND, 2004, p. 113).
25
As chamadas comunidades remanescentes de quilombos e as comunidades indígenas
ocupam tradicionalmente inúmeras porções territoriais no Brasil
8
, inclusive no estado do Rio
Grande do Sul. Apesar de terem seus direitos reconhecidos constitucionalmente, no entanto,
vivenciam, ainda na atualidade, conflitos e disputas de caráter amplo, compreendendo
questões étnicas, históricas, antropológicas e culturais (SILVA, 2000).
A dificuldade de aplicação dos preceitos constitucionais deriva da herança colonial
escravista, principalmente para os quilombolas. Sob esse contexto, os quilombos foram
conceituados “como grupos de escravos que, à margem das leis existentes, fugiam e se
embrenhavam nas matas para saquear, roubar e matar administradores e proprietários de
fazendas.” (SILVA, 2000, p. 3). Desse modo, essa se configura na
[...] dificuldade maior para se assegurar os direitos das comunidades, pois a titulação
das terras implica no reconhecimento da diferença como pressuposto para o
estabelecimento de direitos sociais específicos. Daí ser necessário romper com os
postulados nos quais certa historiografia se baseou para construir a noção de
quilombo no Brasil e que, hoje, servem de referência para fomentar o discurso
jurídico. (SILVA, 2000, p. 4).
Representando figuras ligadas à escravização, os quilombos não são muito aceitos,
sendo considerados figuras do passado ou representatividades socioculturais que não encon-
tram lugar em nossa sociedade. Assim, para entendimento sobre a história dessas comuni-
dades, é necessário observar alguns aspectos como “o processo através do qual tomaram
posse na área que hoje habitam, elemento fundamental para se entender a formação do grupo,
sobretudo as suas estratégias de preservação no espaço territorial.” (SILVA, 2000, p. 6).
As comunidades indígenas, por sua vez, apesar de possuírem o direito às terras que
ocupam, vivenciam inúmeros problemas, ainda mais porque
[...] o Estado não tem cumprido esse papel legal de proteção às áreas indígenas;
mesmo as totalmente regularizadas, na sua maior parte, sofrem invasões de
garimpeiros, mineradoras, madeireiras e posseiros; são cortadas por estradas,
ferrovias, linhas de transmissão, inundadas por usinas hidrelétricas e outros impactos
decorrentes de projetos econômicos da iniciativa privada e projetos
desenvolvimentistas governamentais. (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 53).
Isso reflete nada mais que as consequências da sociedade de risco, pois inclusive o
“aparato jurídico-político, criado pelo estado tem sido posto à prova pela diversidade,
8
Segundo dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo, “mais de 2 mil comunidades quilombolas espalhadas pelo
território brasileiro mantêm-se vivas e atuantes, lutando pelo direito de propriedade de suas terras consagrado
pela Constituição Federal desde 1988” (SILVA, 2000, p. 2).
26
heterogeneidade e complexidade de uma economia transnacionalizada”, na qual a “nova
ordem neoliberal impõe uma nova padronização e uniformização cultural tão aviltante quanto
à proposta nas origens dos estados-modernos.” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 64-65).
Neste sentido, Diegues e Arruda (2001, p. 27) destacam que:
A legislação constitucional brasileira de 1988, assim como a de vários países de
formação pluriétnica, já reconheceu o direito à diferença cultural, e estipula como
‘direitos coletivos’ o direito ao seu território tradicional, à sociodiversidade, ao
patrimônio cultural, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à
biodiversidade. Entretanto, o ‘tradicional’ continua sendo definido conforme
critérios ocidentais de uma antropologia inadequada, na qual os índios aparecem,
além das imagens antes evocadas, também como ‘máquinas adaptativas
equilibradas’. A mudança cultural, a recriação da tradição, só são aceitas com
relação à corrente civilizatória ocidental. Quando ocorre com outras sociedades,
aparece sob o signo de sua não legitimidade identitária.
Deste modo, apesar de o Brasil apresentar elementos para a proteção jurídica das
comunidades indígenas e de quilombolas, a evidência dos reflexos dos riscos globais nessas
comunidades está presente. Ainda mais porque todo esse contexto leva a um conflito das
comunidades com a sua própria identidade, desencadeando processos de reordenação
ambíguos, pois ao mesmo tempo em que recriam laços de continuidade com sua herança
cultural, desenvolvem um regime de dependência com outros setores, como mercado, Estado
ou outras entidades (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 29).
Neste contexto, a partir do estudo em múltiplas fontes: bibliográfica, documental,
jurisprudências, relatos pessoais, dentre outras, é possível perceber como os antepassados
dessas comunidades viveram concretamente a história de seus grupos e como vivem
atualmente, percebendo ainda a incidência dos riscos e vislumbrando os desafios futuros para
a proteção e reconhecimento das comunidades locais
9
.
No Brasil consenso sobre o uso do termo “população indígena”, significando etnia,
ou seja, povos que guardam continuidade histórica e cultural desde antes da conquista
européia da América (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 23).
9
As fontes documentais e os relatos pessoais foram mencionadas, apesar de não ter sido realizada a pesquisa de
campo pretendida, pois serão utilizados dados do Laudo Antropológico “Família Silva”, elaborado pela
antropóloga Ana Paula Comin, o qual agrega todos estes elementos.
27
Apesar das interpretações equivocadas e do tratamento aos indígenas como
comunidades primitivas, desde períodos anteriores ao descobrimento do país os índios
habitavam o território brasileiro, vivendo nele de forma bastante peculiar.
Encontramos nele sociedades de caçadores, pescadores e coletores vivendo em
comunidades altamente móveis, desfrutando de sistemas culturais baseados na posse
coletiva de um território, na distribuição igualitária de recursos, em formas acéfalas
de organização política; populações organizadas em aldeias permanentes, com
agricultura acompanhada de caça, pesca e coleta, onde o governo descentralizado
não permite o exercício de força ou dominação de uns membros sobre os outros.
(RAMOS, 1988, p. 9).
Com a ocorrência da invasão européia e a consequente dizimação da população
indígena, houve uma nítida interferência no modo de vida índio, tendo suas comunidades sido
reduzidas e dominadas, enquanto outras mudavam de região para fugir da escravidão.
Com a dominação originou-se, segundo Ramos (1988), o conceito de tribo, sendo esse
resultante da imposição dos europeus sobre os índios, pois se referiam aos mesmos por
grupos, separando-os por mansos, bravos, selvagens, civilizados. Tal designação, segundo a
autora, é imprópria por relacionar-se ao colonialismo e derivar de uma invenção dos ditos
“civilizados” para dominar
10
.
Os povos indígenas apresentam características particulares que lhes confere um
sistema social bastante diverso da sociedade em geral e até mesmo dos demais grupos de
populações tradicionais. Isso fica demonstrado por meio da “noção de territorialidade e a
relação com o meio ambiente, para depois focalizarmos as relações sociais, as relações
políticas e os sistemas de crenças.” (RAMOS, 1988, p. 12). E ainda, “para as sociedades
indígenas a terra é muito mais do que simples meio de subsistência, ela representa o suporte
da vida social e está diretamente ligada ao sistema de crenças e conhecimento. Não é apenas
um recurso natural, mas – e tão importante quanto este – um recurso sociocultural.” (p.13).
Para os indígenas não a noção de propriedade privada e os indivíduos utilizam em
conjunto os recursos do meio, a fim de realizar a caça, a pesca, a coleta e a agricultura em
comunidade; preocupando-se com a subsistência do grupo, no qual partilham a abundância e a
escassez. “A terra e seus recursos naturais sempre pertenceram às comunidades que os
utilizam, de modo que praticamente não existe escassez, socialmente provocada, desses
10
Nesse sentido, conferir Ramos (1988, p. 11-12), que refere a origem do termo “triboe o seu emprego para
designar os índios conquistados.
28
recursos. Se escassez natural (por exemplo, falta de terreno apropriado para o plantio em
dado local), ela é partilhada por todos.” (RAMOS, 1988, p. 16).
Assim como o território, as questões sociais, os rituais e a religiosidade são
extremamente importantes para as populações indígenas, estando tudo relacionado à história
cultural. Desse modo, o território deixa de ter importância “apenas como sustentáculo físico
dessas populações, mas também e principalmente como uma realidade socialmente
construída, elaborada e intensamente vivida.” (RAMOS, 1988, p. 19).
Sabendo dessa valorização, percebemos as reais proporções da invasão européia em
nosso país, pois ao privar os povos de seu território os colonizadores foram aos poucos
extirpando-lhes de seu modo próprio de vida, de trabalho, de organização social e de sua
própria cultura. Ramos (1988, p. 20-21) refere que:
por todas essas razões, fica claro por que o significado de territorialidade para as
sociedades indígenas não é o mesmo que para as populações nacionais que as
rodeiam. Extirpada de seu território, uma sociedade indígena tem poucas chances de
sobreviver como grupo cultural autônomo. No território estão inscritas as mais
básicas noções de autodeterminação, de articulação sociopolítica, de vivência e
crenças religiosas, para não falar na própria existência física do grupo. A redução
dos territórios indígenas, que tem sido uma constante na história do contato
específico, violências de várias ordens, com a privação cultural, social, religiosa,
moral, econômica e ecológica das sociedades indígenas.
E, ainda, a autora afirma que limitar o território indígena não passa de uma
condenação, mantendo-os na penúria, na privação de recursos naturais e obrigando-os a
vender seu trabalho. Quando a utilização era plena, os índios realizavam todas as atividades
de seu cotidiano naquele espaço, como seu trabalho, agregando sempre questões sociais,
rituais e religiosas. Empregavam na produção técnicas ora rudimentares, ora mais elaboradas,
conforme a região e a população indígena que habitava determinado território, revelando um
embasamento cognitivo do meio ambiente, fruto da criação cultural de cada sociedade. Essas
afirmações revelam que o conhecimento dos indígenas com relação ao ambiente, seu manejo
e potencialidades é bastante vasto, inclusive no que se refere à sustentabilidade local e das
espécies animais e vegetais.
No entanto, a organização social dos índios foi muito abalada com a colonização, pois
até mesmo o padrão habitacional foi alterado, restando pouca semelhança com as aldeias
originárias quando se trata das comunidades indígenas atuais mais próximas dos centros
habitados. De um modo geral, mantêm as influências do parentesco na organização de suas
29
aldeias e, apesar de possuírem líderes políticos e religiosos, convivem em sociedades sem a
existência de um poder centralizado, solucionando e inibindo a sua maneira determinados
conflitos ou ações inadequadas perante o grupo.
E, para complementar esta breve caracterização sobre as sociedades indígenas, vale
lembrar outro aspecto de extrema relevância no que diz respeito à religiosidade. Para os
indígenas, a religiosidade sempre esteve muito presente, traçando a unidade entre o natural, o
social e o espiritual. De modo que seus membros têm obrigação de manter a ordem do mundo
natural e sobrenatural, empregando para isto práticas xamanísticas, ritos de purificação, além
de regras sociais e éticas
11
que, de certa forma justificam a relação destes povos com seus
pares e com o ambiente.
Por outro lado, aqueles a quem hoje denominamos remanescentes de comunidades de
quilombos, ou seja, os descendentes de escravos negros são formados por grupos oriundos
dos tempos de escravidão no Brasil, que foram formando seus habitats a partir da apropriação
de territórios sem dono ou de terras doadas. Existem em nosso meio desde aquela época, mas
recentemente é que passaram a ter seus direitos reconhecidos.
As denominações pelas quais são identificados são inúmeras, mas a que tem recebido
destaque, inclusive constitucional é “remanescente de quilombo”, condição que lhes confere
identidade e a possibilidade de garantia de seu território. Tal terminologia passou a ter
relevância a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe à tona o
debate acerca da defesa das comunidades quilombolas, sendo que o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias assim dispôs:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos.
Desde então, as discussões se acirraram em torno do alcance da expressão ali trazida,
no intuito de adequar critérios para interpretar o dispositivo constitucional e possibilitar que
os diversos grupos descendentes dos escravos africanos pudessem enquadrar-se em tal
definição e buscar seus direitos ao território e, muito mais do que isso, a sua identidade.
11
Neste sentido, conferir em Ramos (1988, p. 81-89), que traz um breve relato de alguns rituais utilizados pelos
indígenas para estabelecer a ligação entre o natural e o sobrenatural.
30
Diegues e Arruda (2001, p. 49) referem sobre os quilombolas que
descendentes de escravos negros, os quilombolas sobrevivem em enclaves
comunitários, muitas vezes antigas fazendas deixadas por outros proprietários.
Apesar de existirem desde a escravatura, no fim do séc. XIX, sua visibilidade social
é recente, fruto da luta pela terra, da qual, na maioria das vezes, não possuem
escritura, mas tiveram garantidos seus direitos com a Constituição de 1988. Vivem,
em geral, de atividades vinculadas à pequena agricultura, artesanato, extrativismo e
pesca, variando de acordo com as regiões em que estão situados. Na Amazônia,
localizados muitas vezes ao longo de rios e igarapés, garantem sua subsistência com
a pesca, o extrativismo e a pequena agricultura. Em outras regiões, as atividades são
quase que exclusivamente agrícolas.
E, ainda, foram estabelecidos direitos territoriais especiais, conforme leciona Santilli
(2005, p. 85), sendo que
o artigo 216, parágrafo 5º, da Constituição, que faz parte da seção dedicada à
cultura, estabelece o tombamento de todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas de antigos quilombos. É o chamado “tombamento
constitucional”. Os quilombolas gozam de um regime jurídico privilegiado em
relação às demais populações tradicionais seringueiros, castanheiros, etc. , que
não tem direitos expressamente assegurados pela Constituição. Entretanto, ainda se
estrutura, no ordenamento jurídico brasileiro, um arcabouço legal que efetiva e
concreta proteção aos direitos dos quilombolas, também reconhecidos como
minorias étnicas, culturalmente diferenciadas.
Com essa inovação em termos de disciplinar conteúdos relacionados à questão
quilombola, a Constituição estabeleceu ainda que as comunidades, tanto indígenas quanto
quilombolas, pudessem ingressar em juízo para buscar ou defender direitos, ou seja, possuem
legitimidade para tal.
1.4 Comunidades tradicionais: aspectos naturais e culturais
Devido as suas peculiares formas de vida e de apropriação da natureza, as
comunidades tradicionais desenvolvem uma relação intrínseca entre o natural e o cultural, ou
seja, de modo a não existir uma separação entre bens ambientais naturais ou culturais, que
uma interação e uma correlação que agrega à diversidade das espécies uma diversidade
cultural própria da ação destes povos no ambiente em que vivem.
Tais aspectos resultam no que denominamos de biodiversidade, conceito que é
formado a partir das “contribuições culturais de povos e comunidades que desenvolvem uma
relação de estreita dependência do meio natural, formas culturais diferenciadas de interação e
de apropriação dos recursos ambientais, e um vasto conjunto de conhecimentos, inovações e
31
práticas relativas à biodiversidade.” (SANTILLI, 2005, p. 98). Ou, como referem Diegues et
al. (2001, p. 207), “a diversidade das espécies, de ecossistemas e genética não é somente um
fenômeno natural, mas também cultural”, que se traduz numa definição construída pelas
populações humanas.
Com relação ao que chamamos de ambiente natural, pesquisas que revelam que o
Brasil é o líder mundial da biodiversidade, contando com um grande número de espécies de
plantas e de animais, além de muitas espécies sequer conhecidas.
Neste sentido, as populações tradicionais têm papel relevante na conservação e no uso
sustentável da diversidade biológica, pois desenvolvem seus meios de subsistência de maneira
a não agredir ou comprometer o território e o meio em que vivem, numa relação de “simbiose
com a natureza, pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos e pela noção de
território ou espaço onde se reproduzem econômica e socialmente.” (SANTILLI, 2005, p.
129).
Shiva (2001, p. 145) refere que “a biodiversidade está intimamente relacionada à
capacidade de auto-organização”, implicando na possibilidade dos povos recuperarem seus
direitos à auto-organização, pois que “não simboliza apenas a riqueza da natureza, ela
incorpora diferentes tradições culturais e intelectuais.” No entanto, existem dois paradigmas
que conflituam no espaço onde a diversidade da natureza e a diversidade cultural convergem:
são o paradigma da sustentabilidade e o paradigma dos interesses comerciais.
O primeiro é mantido pelas comunidades locais, cuja sobrevivência e
sustentabilidade estão ligadas ao uso e conservação da biodiversidade. O segundo é
mantido pelos interesses comerciais, cujos lucros estão ligados à utilização da
biodiversidade global como insumos de sistemas de produção globais, centralizados
e homogêneos. Para as comunidades indígenas locais, conservar a biodiversidade
significa conservar seus direitos aos recursos, conhecimento e sistemas de produção
próprios. Para os interesses comerciais, como as empresas de biotecnologia
farmacêutica e agrícola, a biodiversidade em si não tem valor, não passa de
matéria-prima. Esta produção tem suas bases na destruição da biodiversidade, à
medida que os sistemas locais de produção fundados na diversidade são desalojados
pela produção fundada na uniformidade. (SHIVA, 2001, p. 146).
No entanto, o que precisamos dar conta é que o conhecimento que as comunidades
tradicionais possuem a respeito do meio ambiente em que estão inseridas, mais do que valor
comercial, representa um valor inestimável porque se refere ao destino do planeta, das
espécies animais e vegetais. A conservação dos ecossistemas depende dos saberes das
32
comunidades locais que durante muito tempo exploraram os recursos naturais sem provocar
as devastações e ameaças que a exploração comercial tem causado em grandes proporções.
Como aspectos naturais podemos destacar o ambiente natural, plantas, animais e
demais recursos que a comunidade dispõe e cultiva para a subsistência do grupo. Enquanto
que os aspectos culturais se referem às crenças, rituais, práticas do grupo, língua, danças,
música e religiosidade, bem como ao próprio território em que estão inseridos, pois este
traduz a manutenção dos costumes e a transmissão do conhecimento entre as gerações.
O conhecimento tradicional ou conhecimento das populações tradicionais constitui-se
de práticas, conhecimentos empíricos e costumes passados de geração para geração, no seio
das comunidades tradicionais e de sua relação com a natureza, representando o resultado de
um processo contínuo e que pertence a toda a comunidade. Tal conhecimento muitas vezes é
explorado e empregado em pesquisas, produção de medicamentos ou cosméticos, e
comercializado indiscriminadamente e sem reconhecer os direitos das comunidades detentoras
do conhecimento expropriado.
A Convenção sobre a Diversidade Biológica dispõe que as partes envolvidas devem
reconhecer a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades
locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais, cujo benefício de seu emprego
deveria ser repartido equitativamente entre os membros do grupo. Ou seja, as comunidades
locais (quilombolas, ribeirinhos, seringueiros etc) e as populações indígenas que fornecerem
seus saberes, relevantes para a conservação e exploração da biodiversidade, deveriam receber
benefícios. Ou seja, o país que tiver acesso à exploração dos elementos de nossa
biodiversidade através da utilização do conhecimento tradicional destas comunidades poderia
proceder à bioprospecção observando, em especial, o princípio da repartição de benefícios.
Deste modo, ainda vale destacar que a Convenção sobre Diversidade Biológica
determina que os países contratantes criem mecanismos de proteção e acesso aos recursos
genéticos, o que está sendo articulado através de projetos de Lei que deverão dispor sobre o
controle ao acesso, sendo esses recursos essenciais para a proteção do patrimônio ambiental e
cultural de nossos povos.
33
2 COMUNIDADES QUILOMBOLAS: DESAFIOS SOCIOAMBIENTAIS E CULTU-
RAIS DIANTE DOS RISCOS
“A intolerância da diversidade é a maior ameaça à paz
nos nossos tempos; em contrapartida, o cultivo da
diversidade é a maior contribuição à paz paz com a
natureza e entre os vários povos.”
(Vandana Shiva).
2.1 Reflexos dos riscos globais nessas comunidades: da escravização aos processos de
titulação dos territórios
A realidade em que nos encontramos hoje é o resultado da política de colonização e
povoamento que, mesmo com o passar dos anos, décadas e séculos, reflete o arcaísmo da
conquista ou da cobiça dos conquistadores, como vemos por meio das minorias étnicas
estigmatizadas. Primeiramente foi empregada a mão-de-obra indígena, “descoberta” por
Colombo por volta de 1500, quando relatou a seu país de origem:
Eles não possuem armas e andam completamente nus. Não têm nenhum
conhecimento da arte da guerra e são a tal ponto covardes que mil deles não
ousariam resistir com firme a três dos nossos homens. Vê-se, pois, que eles estão
aptos para que os comandemos e os façamos trabalhar, semear e fazer tudo o que
julgamos útil [...]. Eles poderão construir cidades e de habituar a se vestir e a se
comportar como nós. (ROULAND, 2004, p. 112).
Assim, segundo o entendimento dos colonizadores, seria possível domesticar aquele
povo e obter deles a força de trabalho de que necessitavam os descobridores. Com isso, a
empreitada colonial escravizou indígenas desde esse período, com o que foram empregadas as
práticas do repartimiento e da encomienda, além da evangelização que, segundo Rouland
(2004, p. 114) representou a primeira legitimação da conquista.
Daí por diante foi apenas um passo para se chegar à escravização de africanos, visto
que a ambição dos conquistadores e colonizadores estava recém despertando e eles
justificavam a conquista como sendo um “instrumento de civilização”.
Rouland (2004, p. 114) explicita que a passagem da escravização de índios para a
escravização de negros se deu mais ou menos assim:
34
Esse regime da encomienda legalizou, desse modo, uma exploração brutal dos
índios das Antilhas. Associado às epidemias, ele surtiu o terrível efeito que
conhecemos: um verdadeiro genocídio que dizimou a população autóctone das ilhas.
De meio milhão de habitantes em 1492, não restavam mais que 30 mil em 1514. A
consequência dessa hectacombe foi a ruína da primeira colonização, a qual teve
como saída a seguinte desculpa: a importação de escravos negros provenientes da
África para substituir a mão-de-obra indígena exterminada e a conquista do
continente das “terras firmes”.
Nesse período, também foram surgindo algumas normas, mas que mantinham os
privilégios dos colonizadores e subjugavam a classe menos ou nada favorecida, de modo que
somente legalizavam “um direito de jurisdição sobre os homens” (ROULAND, 2004, p. 115)
e novas formas de dependência, ainda mais porque “Ao longo desse primeiro período da colo-
nização, o direito esteve sempre depois dos fatos. A legislação legalizou as práticas mais con-
denáveis, e quando quis colocar em prática a justiça, foi pouco ou nada aplicada.” (p. 116).
Deste modo, os problemas causados por anos de injustiça social dificultam a
proposição de respostas aos desafios da atualidade, especialmente os vivenciados por
comunidades, como as de quilombolas, que hoje lutam pelo reconhecimento do direito à
diferença, à autodeterminação, ao território, etc.
Este processo de luta, apesar de ser chamado por muitos autores de novos movimentos
sociais ou de novos direitos (SANTOS, 2005; COLAÇO, 2003), nada mais é que o reflexo
das consequências que levaram muitas comunidades tradicionais a esta terrível realidade de
discriminação, exclusão e aniquilação, e que contemporaneamente se insurgem para recuperar
(se é que isso seja possível) suas diferenças étnicas, sua cultura, seus direitos enquanto ser
humano e cidadão.
Mesmo com o passar dos anos, a independência não possibilitou que os diferentes
povos adquirissem o direito de dispor de si mesmos, ainda mais porque tal prerrogativa
sempre assombrou a soberania e sua manutenção nos campos econômico, social e cultural.
Assim, as diferenças foram mantidas ou senão acentuadas, em prol da estabilidade da nação,
enquanto que os direitos individuais ou coletivos continuaram em último plano.
Com as lutas sociais e suas árduas batalhas, os direitos foram sendo conquistados e
inscritos nas legislações dos diferentes países, até erigirem-se a vel constitucional. Nas
Cartas de Direitos afirmaram-se os direitos dos indivíduos enquanto cidadãos e enquanto
membros de determinados povos, como temos atualmente a respeito dos povos indígenas e
quilombolas, no caso brasileiro.
35
Apesar de a questão quilombola ser antiga em nosso país, não podemos dizer o mesmo
a respeito da legislação que trata do assunto. Sem considerar a lei “abolicionista” e os
preceitos que regulamentavam a escravidão no Brasil, recentemente é que passou-se a
mencionar expressamente o negro ou o afrodescendente como sujeito de direitos e passível,
portanto, de vê-los regulamentados. Esses direitos, então, tratados como “novos”, passaram a
figurar na letra da lei, mais precisamente na Constituição Federal que, ao disciplinar a
igualdade entre os indivíduos faz sobressaltar-se que existem mais diferenças do que as que
muitos gostariam de admitir entre membros de uma mesma nação.
Neste contexto, o debate sobre o reconhecimento dos direitos dos remanescentes de
quilombos tornou-se tema atual, trazendo à tona a questão da titulação das áreas quilombolas,
além do debate acerca do sistema de cotas. Isso demonstra que os quilombos perpetuaram-se
no tempo e que toda a história da colonização ainda se faz bastante presente, despertando as
discussões e divergências latentes e demonstrando a dificuldade de enfrentar tais conflitos.
A igualdade pode estar ingenuamente pretendida por meio da Carta Constitucional,
mas tal preceito não basta por si só. Para que tenhamos um pouco menos de diferenças em
termos de direitos e sua efetividade, é necessário que sejam reconhecidas as diferenças e que,
a partir delas, possamos então possibilitar que os mais diferentes segmentos de nosso povo
tenham voz e vez.
Mas esse novo embate não é fácil, principalmente porque ao tratar de questões
polêmicas como a das comunidades quilombolas, um passado vergonhoso que volta à
realidade, demonstrando o paradoxo da ideologia racista que foi calcada ao longo da história.
E que pese ser uma questão recepcionada pelos dispositivos legais, não podemos negar que
muitos ainda crêem ser possível o convencimento da homogeneidade e que as diferenças são
insignificantes.
O termo “quilombo”, como originariamente foi concebido, representava associações
sociais ou políticas, cuja composição não apresentava restrições quanto à origem de seus
membros, transformando-se em instituição cultural (MUNANGA apud AMARAL FILHO,
2009). No Brasil também há relatos de que abrigava integrantes de origens diversas, mas estes
dados são conhecidos por poucos e que o senso comum restringiu a associação dos quilombos
como sendo terras de pretos.
36
Mais recentemente, com a Constituição de 1988, o Brasil mostrou-se disposto, entre
outras coisas, a pagar as dívidas sociais com as comunidades tradicionais.
O ano de 1988 foi marcado pelos trabalhos da Assembléia Constituinte e as
comemorações do centenário da Lei Áurea, o que provocou uma onda revisionista
sobre a historia da escravidão/abolição no Brasil. Vinham à pauta discussões sobre
relações raciais e as condições sociais do negro brasileiro como nunca antes havia
acontecido em debate público. (AMARAL FILHO, 2009, p. 2).
Assim, a questão dos remanescentes de quilombos ganhou a nação e iniciou-se o longo
processo de titulação das terras aos negros e também de reconhecimento da identidade
quilombola. Estes deixaram de ser definidos por outros para terem o direito de se auto-
identificarem como tais, conforme preceitua o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.
Mesmo assim, a visão arcaica permanece e muitos tentam determinar o que deve ou
não ser entendido como remanescente de quilombo, numa tentativa de limitar as titulações da
propriedade, ou seja, mais uma vez o interesse econômico (individual) tenta sobressair-se em
prol do social (coletivo).
Hoje, a questão quilombola é tida como a afirmação da diferença, como reafirmação
da etnicidade no processo de luta pela terra, pelos laços culturais, pelos costumes e práticas
sociais peculiares, cuja manutenção é essencial para a sobrevivência da comunidade.
Com base nos princípios constitucionais é que são fundamentadas as conquistas de
direitos e, assim, prima-se por sanar as injustiças de outrora e por evitar que novas ou mais
graves ainda sejam cometidas.
Em nossa realidade específica, atualmente, o tratamento constitucional às
comunidades indígenas e às comunidades quilombolas no sistema brasileiro prevê algumas
peculiaridades. Com relação aos quilombolas ou remanescentes das comunidades de
quilombolas, como o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)
denomina, a definição parte da autodenominação ou auto-atribuição contida na Convenção
169 da OIT para os indígenas, sendo que o grupo local é que deve se autodeterminar enquanto
remanescente de quilombos, para que tenha então direito ao território quilombola.
Segundo Santilli (2005), o conceito de quilombo sofreu evoluções antropológicas e
legais, avançando para o reconhecimento de direitos territoriais, diferentemente de outras
37
comunidades tradicionais que não possuem um status jurídico diferenciado. Como exemplo
de regulamentação a respeito, destacamos ainda o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003,
que expressamente faz constar o critério de autodefinição para fins de identificação étnica e
traz uma definição de remanescentes de comunidades dos quilombos que gera muitas
discussões, principalmente levando a considerar análises no campo da antropologia, o que
torna então a discussão bem mais ampla e não encerra o problema em questão.
Santilli (2005, p.172) esclarece nesse sentido que:
O conceito jurídico de quilombo deve ser compreendido e definido com base em tais
conhecimentos antropológicos, e não pode se prender a uma visão positivista
limitante e estagnante. Uma visão reducionista dos quilombos contraria a essência
constitucional e das regras fundamentais de interpretação do texto constitucional: a
de sua efetividade máxima, que procura retirar do texto constitucional o máximo que
ele tem a oferecer, principalmente na matéria de direitos.
Neste contexto, a temática dos povos tradicionais sofreu mudanças nos últimos anos e
impulsionou o crescimento dos movimentos étnicos, principalmente por meio das ações de
luta pelo território. Com isso, os preceitos constitucionais e a legislação infraconstitucional
permearam novas discussões e interpretações no cenário brasileiro sobre estes povos.
A previsão jurídico-legal do reconhecimento de alguns preceitos relacionados a essas
comunidades, como é o caso dos quilombolas, não garante de forma contundente o respeito à
diversidade e à convivência harmônica em nossa sociedade, é necessário algo mais, que
resulte em alternativas de redistribuição e reconhecimento ou de transformação e afirmação,
como refere Albuquerque (2008, p. 134), que sejam “remédios afirmativos e transformativos”
para as injustiças sociais.
Colaço (2003, p. 94) assevera que:
O Estado deve garantir o direito à igualdade, que implica o direito à diferença. Os
direitos dos povos não devem ser opostos aos direitos individuais: o cidadão é
sujeito de direitos individuais, independentemente das diferenças sociais ou
culturais; a autonomia dos povos, ao contrário, estabelece direitos diferenciados. Os
direitos comuns de cidadania, promulgados pelo Estado, devem incluir o direito à
diferença de culturas que o compõem.
Neste sentido, é possível afirmar que os desafios estão basicamente na superação das
interpretações que consideram a sociedade brasileira como um todo homogêneo e consideram
a pluralidade como um desafio à soberania estatal (SANTOS, 2008).
38
Vivenciamos uma realidade em que os índios e os negros são vistos mais como índios
e negros e menos como seres humanos, refletindo um processo de colonialismo que ainda não
teve fim. Isso demonstra os inúmeros desafios que estão longe de serem superados e diante
dos quais a Constituição e a aplicação de seus preceitos tem papel fundamental, especialmente
para possibilitar a refundação do Estado, do Direito, da sociedade e da cidadania propriamente
dita.
A problemática dos povos tradicionais ou dos quilombolas no Brasil é uma questão
socioambiental, que engloba diversas questões. A origem do problema remonta ao período da
colonização e formação da sociedade, cujos reflexos orientaram a estruturação de
desigualdades, com diferentes classes sociais.
A sociedade brasileira desenvolveu-se com base nas influências externas, trazidas e
impostas pelos colonizadores, por meio das táticas de conquista. Hoje, as práticas refletem nas
injustiças sociais, nas desigualdades e outros problemas estruturais de nossa sociedade, a qual
guarda os resquícios da exploração e da exclusão.
No início os índios foram explorados e condenados ao trabalho e à escravidão, sendo
destituídos de sua liberdade, de seu território e de sua cultura. Posteriormente foram os negros
as timas da opressão que, sem poder oferecer resistência, foram subjugados ao trabalho
escravo em prol do desenvolvimento.
Aos poucos a escravização do indígena no Brasil foi sendo substituída pela de escravos
negros africanos, principalmente tendo em vista que havia baixa densidade demográfica da
população indígena no Brasil; as tribos iam ficando mais arredias, pois percebiam o processo
de escravização; além do que o trabalho forçado dizimava os grupos.
Nas palavras de Pinsky (2000, p. 21),
o negro foi trazido para preencher o papel de força de trabalho compulsório numa
estrutura que se organizava em função disso. A grande lavoura colonial não se
preocupava em prover o sustento dos produtores, mas em produzir para o mercado.
Dessa forma, a “racionalidade” e a eficiência de sua organização podiam ser
avaliadas na medida em que atingissem esses objetivos, para os quais o escravo era
fundamental.
Neste sentido, foram várias as repercussões do escravismo, tendo significação
econômica, cultural e social para os africanos, que limitou até mesmo os costumes, as
39
tradições e a vida em sociedade dos negros. Situação que veio a piorar com a libertação
pois os escravos não tinham perspectivas para superar as condições ou a falta de condições de
subsistência e a discriminação de um modo geral.
Os fatos históricos, dessa forma, originaram o quadro de dados alarmantes que
comprovam que a abolição da escravatura condenou os africanos a um longo processo de
injustiças. Isso, nas palavras de Carvalho (2002, p. 53), resulta na situação de que a população
negra
é a parcela menos educada da população, com os empregos menos qualificados, os
menores salários, os piores índices de ascensão social. Nem mesmo o objetivo dos
defensores da razão nacional de formar uma população homogênea, sem grandes
diferenças sociais, foi atingido. A população negra teve que enfrentar sozinha o
desafio da ascensão social, e frequentemente precisou fazê-lo por rotas originais,
como o esporte, a música e a dança. Esporte, sobretudo o futebol, música, sobretudo
o samba, e dança, sobretudo o carnaval, foram os principais canais de ascensão dos
negros até recentemente.
Alguns negros foram contemplados pela “brecha camponesa”, recebendo mesmo antes
da abolição parcelas de terra onde podiam cultivar nos períodos determinados por seus
senhores, o que inibia as fugas e mantinha o interesse dos escravos naquele local, por meio de
uma ilusão de propriedade. “A ‘brecha’ significava o incremento da produção de gêneros
alimentícios para os próprios escravos e o acúmulo de algum capital empregado na compra de
roupas, por exemplo, que supria a carência do fornecimento por parte da escravatura
escravista.” (MÜLLER, 2008, p. 32-33).
Tal situação vinha a facilitar as trocas e a aquisição de produtos no período pós-
abolição, o que continuava a manter os negros nos locais em razão de possuírem, então,
alguma condição de subsistência. No entanto, não deixava de ser uma forma de manutenção
da escravidão, porém com aparência de liberdade.
Os dados recentes, coletados e divulgados pelo movimento quilombola, afirmam a
existência de cerca de cinquenta mil comunidades remanescentes de quilombos no Brasil,
sendo que apenas uma minoria adquiriu a titulação de sua propriedade.
O Decreto 4.887 regulamenta o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias e elenca princípios básicos para o reconhecimento dos remanescentes de
quilombos, a partir da auto-identificação, assegurando o território como mais do que a mera
habitação, mas sim o espaço para o desenvolvimento econômico, cultural e social das
40
comunidades, sendo propriedade coletiva dos descendentes. Ao passo que as definições de
quilombos sempre atribuíram aos mesmos a característica de resistência negra e negação ao
sistema escravista, derivam de um período histórico em que os grupos africanos eram
praticamente ignorados, vivendo à margem da sociedade, sem direitos e sem possibilidades de
escolha de seu próprio destino.
A Constituição veio a alterar a definição que antes se constituía por cinco elementos,
segundo Almeida (1999, p. 14-15): a fuga, a quantidade mínima de escravos, o isolamento, a
moradia habitual e o auto-consumo, além da capacidade de reprodução. Passou-se a admitir
que a condição de remanescente de quilombo envolve mais particularidades do que até então
eram observadas, contemplando uma diversidade de processos como as fugas da escravidão,
a formação de comunidades a partir das heranças, doações, o recebimento de terras em troca
de serviços e até mesmo a compra de terras.
Hoje não podemos conceituar remanescentes de quilombo sem abordar a relação da
identidade negra, do território e da formação histórica de nosso país, relação com caráter de
herança cultural e material, cuja “situação presente dos segmentos negros em diferentes
regiões e contextos é utilizada para designar um legado, uma herança cultural e material que
lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar específico.”
(GARCIA in ANDRADE, 1997, p. 47).
Ao falarmos então dos direitos dos quilombolas ao reconhecimento, estamos nos
referindo à territorialidade e à identidade étnica, ou seja, avançaremos em questões com
nuances antropológicas e sociais bastante amplas, antes não consideradas pelo direito no caso
dos afro-descendentes.
Na sociedade de risco em que vivemos, as consequências da modernidade cada vez
mais ganham voz e rosto e fazem com que os sujeitos ameaçados pelo processo busquem as
possibilidades concretas de afirmarem seus direitos e evitar mais sofrimento para os membros
de sua coletividade ou seus iguais. Os grupos quilombolas são um exemplo disso,
perpetuando a resistência de outrora e reivindicando, na atualidade, direitos muito tempo
evocados e negados pela sociedade que ainda não superou o preconceito.
Amaral Filho (2009, p. 1) provoca o assunto discorrendo que
41
o ‘Quilombo’ é uma poderosa metáfora libertária ainda não totalmente apreendida,
creio, nem pela academia, nem pelo movimento negro, que também não atualizou o
seu discurso para o pós-colonial latino-americano de um modo geral, e para o
brasileiro, em particular. Acredito que quilombo é uma metáfora que a mídia trata
superficialmente porque despreparada para lidar com o assunto.
Assim, cada vez mais percebemos a relação que a crise da modernidade tem com a
exclusão dos povos explorados, sendo que no caso dos negros a etnicidade é hoje o
instrumento de luta, é o meio pelo qual o processo de reconhecimento está delineado, com
base nos preceitos constitucionais.
2.2 A proteção jurídica no Brasil e o seu alcance para os povos quilombolas
No que se refere às populações tradicionais, os povos indígenas e quilombolas
possuem características semelhantes no âmbito jurídico, na medida em que possuem
reconhecimento de alguns direitos na legislação nacional. No entanto, a inclusão desses novos
direitos não se deu realmente com a efetividade dos mesmos, pois se tratou de inseri-los no
ordenamento jurídico sem a preocupação de analisar as possibilidades de sua aplicação e das
repercussões para a totalidade da sociedade.
Quanto aos quilombolas, o reconhecimento de direitos específicos é algo
relativamente recente no Brasil. No entanto, os direitos dos índios às suas terras são
reconhecidos desde a época colonial e pelas sucessivas Constituições brasileiras desde a de
1934. Já o direito dos remanescentes de quilombos foi reconhecido pela primeira vez na
Constituição de 1988, por meio do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias
12
.
Apesar da disposição expressa, na prática a concretização do art. 68 tem encontrado
entraves, como as intermináveis disputas judiciais, fazendo com que poucas comunidades
negras obtenham a titularidade de suas terras, continuando a ter seus direitos ameaçados.
No âmbito estadual também contamos com algumas legislações que versam sobre os
direitos dos quilombolas, ainda mais porque o reconhecimento da existência de
comunidades quilombolas na maioria dos estados brasileiros, sendo então que 18 desses
estados contam com dispositivos legais como, por exemplo, Amapá, Bahia, Espírito Santo,
12
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos.
42
Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba,
Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
São Paulo e Sergipe. As normas vão desde Constituições Estaduais, leis complementares, leis,
decretos, entre outros.
Em termos de legislação específica podemos destacar o mencionado art. 68 do
ADCT, bem como os arts 215 e 216 da Constituição da República, que “determinam a
regularização territorial das comunidades quilombolas e protegem suas culturas”; o Decreto nº
4.887, de 20 de novembro de 2003, que “regulamenta o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias”; a Convenção 169 da OIT, de 7 de junho de 1989, que abrange a Convenção
sobre os Povos Indígenas e Tribais em países independentes, da Organização Internacional do
Trabalho, das Nações Unidas (ONU); o Decreto Legislativo 143, de 20 de junho de 2002,
que aprova o texto da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre os
povos indígenas e tribais em países independentes; o Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004,
que promulga a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre
Povos Indígenas e Tribais, a Instrução Normativa nº 49 do INCRA, que regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão,
titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de
que tratam o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal de 1988 e o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003; a Portaria n. 98 da
Fundação Cultural Palmares, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das
Comunidades dos Quilombos da Fundação Cultural Palmares e o regulamenta.
As comunidades de afro-descendentes ou quilombolas também são reconhecidas na
esfera internacional, especialmente em países da América Latina como a Colômbia, Equador,
Suriname, Honduras, Belize e Nicarágua. Nestes países, legislações que reconhecem os
direitos das comunidades afro-descendentes
13
.
13
Como exemplo da previsão legal relacionada aos povos quilombolas podemos destacar: “a Colômbia, no texto
constitucional de 1991, reconheceu a diversidade ‘étnica e cultural da nação’ (art. 7º), estabelecendo, ainda,
um prazo de cinco anos para edição de lei reconhecendo às comunidades negras que tenham ocupado terras
baldias nas zonas rurais ribeirinhas dos rios da Cuenca do Pacífico, de acordo com as suas práticas
tradicionais de produção, o direito à propriedade coletiva sobre as áreas que a referida lei demarcar” (art.
55, transitório), o que veio a ser regulamentado pelas Leis nº 70/93 e 397/1997. A Constituição da Nicarágua
(1987), por sua vez, fixou parâmetros mais ousados, ao garantir às comunidades da costa atlântica” o direito
a “preservar e desenvolver sua identidade cultural na unidade nacional, dotar-se de suas próprias formas de
organização social e
administrar seus assuntos locais conforme suas tradições”, reconhecendo, ao mesmo
43
Além disso, outros instrumentos internacionais são criados pelo Direito Internacional e
adotados por alguns países para reconhecer e garantir os direitos das comunidades
remanescentes de quilombolas. No Brasil, por exemplo, temos desde 1969 o reconhecimento
da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,
resolução da Assembléia das Nações Unidas (ONU) que condena a discriminação racial e
cujos estados-membros comprometem-se a adotar políticas destinadas a eliminar a
discriminação racial em todas as suas formas, dentre outros preceitos.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos
Indígenas e Tribais também tem força de lei no Brasil. É instrumento que, entre outros
aspectos, assegura o direito ao auto-reconhecimento aos povos indígenas ou tribais, além do
direito dos quilombolas à propriedade de suas terras.
Marés (2003) enfatiza que os direitos dos povos encontram dificuldade de ser
efetivados em razão do caráter individualista da maioria dos ordenamentos jurídicos,
enquanto representam direitos coletivos que são. Segundo o autor, mesmo com toda a
exploração estes povos lutaram e as sociedades envolventes não conseguiram assimilá-los,
sendo que o sistema teve que reconhecer-lhes direitos coletivos, abrindo caminho para o
reconhecimento dos povos.
Tão significativa foi essa abertura que os direitos coletivos extrapolaram para outros
segmentos sociais, iniciando as discussões sobre multiculturalismo e emancipação, saindo,
dessa forma, das bases de um direito meramente contratual para abarcar o direito de um povo
enquanto os indivíduos exercem uma condição de pertencimento ao mesmo ou à comunidade
tradicional. Além da questão de se tratarem de direitos coletivos, a legislação (e sua
aplicabilidade) esbarrou num sistema judiciário conservador que, segundo Marés (2003)
acabou limitando a atuação dos povos, que os mesmos tiveram que formar organizações e
acessar na justiça para garantir seus direitos.
Enquanto direito coletivo, o direito à titulação da propriedade encontra muitas
dificuldades para ser efetivado. Na maioria, são comunidades cujos membros se aproximavam
tempo, as formas comunais de propriedade das terras”, bem como uso, gozo e desfrute das águas e
bosques destas terras (art. 89). De forma expressa, estatuiu que “o desenvolvimento de sua cultura e seus
valores enriquece a cultura nacional”, devendo o Estado criar programas especiais para o exercício de seus
direitos de livre expressão e preservação de suas línguas, arte e cultura” (art. 90). A Lei 445, de 2003,
estabeleceu o procedimento de titulação das terras. Ademais, as comunidades garífunas de Honduras e Belize,
bem como os “maroons” do Suriname e do Panamá, todas comunidades negras, encontram-se em processo de
reconhecimento, em seus respectivos países, do direito às propriedades ocupadas.”
44
e formaram vínculos devido à identificação cultural e à crescente exclusão social da qual eram
vítimas, sendo que a permanência em determinados locais teve origem inicialmente pelas
fugas e, mais tarde por outros motivos como proximidade de locais de trabalho, doação de
terras, entre outros.
A permanência nos territórios quilombolas não foi tranquila ao longo do tempo, pois o
desenvolvimento, o avanço do capitalismo e a urbanização crescente fizeram diminuir as
áreas originariamente adquiridas, de forma semelhante ao que ocorrera com as terras
indígenas. Se não bastassem as invasões e apropriações das terras por outros, atualmente para
garantir as pequenas porções que lhes restaram, os remanescentes de quilombolas precisam
submeter-se a verdadeiras batalhas jurídicas para fazer valer seu direito de grupo. O direito de
propriedade desencadeia um conflito bastante complexo, ainda mais porque o valor
econômico torna mais difícil a disputa em razão dos interesses em jogo.
Baldi (2009, p. 5) assevera sobre o reconhecimento jurídico das comunidades
quilombolas que:
a discussão jurídica relativamente às formas de desapropriação e à própria
constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 (que regula o procedimento de
reconhecimento das comunidades quilombolas) ainda se encontra pendente de
apreciação pelo STF, em ação direta de inconstitucionalidade não julgada, mas o
acórdão coloca questões que merecem ser melhor discutidas e apreciadas, à luz do
direito internacional de direitos humanos, do direito comparado (as Constituições da
Colômbia, Nicarágua e Equador também reconhecem direitos às comunidades
negras descendentes de escravos) e da própria interpretação da Constituição, que
deve dar a máxima efetividade aos direitos fundamentais. Os desafios em tempos de
“constitucionalismo intercultural”, são, portanto, consideráveis, ainda mais quando
envolvem aspectos étnico-raciais e questionam, como no caso da “disposição
transitória” (com vinte anos de vigência!), o colonialismo e o racismo que a
sociedade brasileira insiste em considerar inexistentes ou findos.
Isso reflete a realidade de que, embora existam preceitos legais para o reconhecimento
desses direitos, não estrutura jurídica apta a proporcionar por si só a aplicabilidade da lei a
fim de garantir sua efetividade. Por meio de um sistema conservador, de base patrimonialista,
o direito brasileiro apresenta determinadas barreiras ao reconhecimento e à incorporação de
novas práticas, mantendo a gica formalista e individualista que formou o sistema jurídico-
político e econômico brasileiro.
Ou seja, a implementação dos direitos não consegue ser efetivada independentemente
das influências políticas e econômicas, o que se torna evidentemente mais difícil em um
regime capitalista.
45
2.3 A identidade, o reconhecimento e o território dos remanescentes de quilombos
A história não esconde que a escravidão teve uma grande contribuição do Brasil para
ocorrer, pois uma grande parcela de homens que foram escravizados no mundo foi
comercializada para cá, constituindo aqui, juntamente com os indígenas a força de trabalho
que serviu por muitos anos para a formação do sistema econômico brasileiro, principalmente
a partir do trabalho nos engenhos, fazendas, minas, etc.
Sem abandonar suas origens o negro submeteu-se ao trabalho escravo, mas manifestou
sua resistência, quer seja pelas lutas por liberdade ou pelas fugas, quer seja pela manutenção
de seus ritos, costumes, crenças e saberes, que hoje se encontram presentes e indissociáveis da
cultura brasileira.
Apesar de que os quilombos não se originam somente a partir das fugas dos escravos
como a história contava até quase os dias atuais, estas fugas foram marcantes por
representarem o símbolo maior da resistência africana contra a dominação, sendo marcante no
contexto brasileiro o Quilombo de Palmares e os relatos sobre o mesmo, com sua luta por
liberdade, pela identidade e pelo direito.
É o que esclarecem Reis e Gomes (1996, p. 25): “a memória de Palmares, além de
ficar gravada na mente de autoridades e senhores na virada dos 700 anos, propiciou mudanças
na legislação escravista para a repressão de quilombos e fugitivos. Outros Palmares não
podiam aparecer.” Destacam ainda que
em todas as áreas escravistas onde se destaca a maneira como se forjaram políticas
de alianças destes com outros setores da sociedade envolvente. Assim, foi na
Jamaica, nas Guianas, na Colômbia, no Brasil, na Venezuela e em outras regiões
onde quilombolas, cimarrones, palenques, cumbes e marrons procuraram se
organizar econômica e socialmente em grupos e comunidades. Tentavam manter a
todo o custo sua autonomia e ao mesmo tempo agenciavam estratégias permeadas
de contradição e conflitos de resistência junto a piratas, indígenas, comerciantes,
fazendeiros, lavradores, até autoridades coloniais e especialmente junto àqueles que
permaneciam escravos. A partir de tais e outras tantas experiências os fugitivos
determinaram os sentidos de suas vidas como sujeitos de sua própria história. (REIS;
GOMES, 1996, p. 25).
É o que continua a acontecer atualmente, tendo se passado um longo período histórico
onde as reflexões não deixaram de existir e no qual várias foram as formas de resistência
negra, cuja idéia ganha novas dimensões a partir das lutas cotidianas. Em contrapartida,
muitas das políticas de integração dos diferentes grupos étnicos podem constituir, de certa
46
forma, a negação de direitos coletivos, pois a igualdade, a diferença e a exclusão se
aproximam mais do que seria o ideal na sociedade contemporânea. Isso enseja que o debate
sobre direitos humanos e as lutas dos povos seja realizado de forma ampla, de modo a não
afirmar conceitos individualistas.
A tensão existente entre igualdade e diferença demonstra a necessidade de repensar a
cidadania e os direitos dos cidadãos, o que fortalece o surgimento dos novos movimentos
sociais de luta nos mais variados contextos, como dos grupos minoritários, de negros e de
índios. São muitas as reivindicações, inclusive que refletem diretamente na sobrevivência
material e cultural desses grupos e que necessitam de ações amplas para sua concretização.
Isso significa que, mais do que incluir direitos no rol das garantias constitucionais,
chegou a hora de possibilitar que esses grupos participem do cenário nacional, atuando como
sujeitos no espaço público, alcançando de fato o reconhecimento. Ou seja, o que Semprini
(1999) denominou de espaço multicutural, pois a partir da consideração dos diferentes
atores envolvidos e de suas reivindicações e conflitos é que se abre a perspectiva de redefinir
a cidadania e estender a efetividade de direitos também aos negros, aos índios, às mulheres e
às demais minorias que atualmente tentam superar a exclusão, para o que o Estado tem um
papel fundamental.
São muitos desafios que as comunidades tradicionais brasileiras vêm travando nas
últimas décadas, sempre em busca de derrubar os preconceitos e assim afirmar sua identidade
e seus direitos, individuais e coletivos. Estes direitos, apesar de estarem agora elencados na
Carta Magna carecem de efetivação, sendo que na maioria dos casos a validade dos mesmos
ocorre por meio de longas e desgastantes batalhas judiciais. Com isso, a luta objetiva a
preservação da diversidade cultural ou da sociodiversidade, que no caso dos quilombolas e
dos grupos tradicionais em geral está relacionada à sobrevivência natural e material.
As reivindicações identitárias, quer seja pelo reconhecimento dos costumes, das
tradições ou mesmo do território, descaracterizam qualquer forma de homogeneização que
tente ser aplicada. Neste sentido, Albuquerque (2008, p. 12) refere que “os conceitos de
soberania, de poder político, de direito devem ser redefinidos.”
Os direitos identitários surgem em razão de que os efeitos da sociedade de risco
provocam ameaças novas e com isso demandas por novos direitos, aos quais o Estado não
está atendendo. Assim também ocorre com relação aos direitos culturais, sendo que os atores
47
sociais
14
estão se mobilizando para solucionar seus problemas e conquistar o respeito e a
efetividade de seus direitos.
A discussão adentra em muitas questões, como o direito às diferenças, com base nos
direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal de 1988, conforme preceitua e
estabelece o Estado Democrático de Direito, o que possibilita pensar um novo Direito,
considerando a diversidade social, cultural, política e jurídica existente em nosso país.
Aparício (2008) refere que a denominação “novos” foi empregada para estabelecer a
diferença entre os movimentos sociais contemporâneos, surgidos a partir dos anos 60 do
século 20 na Europa, dos tradicionais movimentos de luta de classes de períodos. Em grande
número surgem os movimentos de gênero, de lutas pela paz, ecológicos e das minorias
étnicas, cujos atores pleiteiam direitos e buscam transformar a sociedade, defendendo o
reconhecimento de direitos específicos enquanto membros de determinado grupo e também a
afirmação de valores, dentre os quais o movimento étnico é um dos mais importantes.
Nestes movimentos, a questão da identidade coletiva é central, sendo a premissa para a
união do grupo em prol dos interesses do grupo, como ocorre no caso dos quilombolas.
Assim, a partir do conceito de raça, remanescentes de escravos, com uma identidade
diferenciada, formam o movimento de resistência aos diferentes fatores que desencadearam a
opressão e a dominação cultural de que foram vítimas ao longo dos tempos.
Assim, com base em múltiplas concepções, os novos movimentos identitários lutam
pelo reconhecimento próprio, ou seja, são reivindicações de minorias, em conflito com os
modelos culturais, buscando alterar a situação de negação aos seus próprios valores, à sua
língua, à sua organização social dentro de um Estado-Nação que se diz pluriétnico.
O debate multicultural aponta a necessidade de repensar o modelo/sistema de Estado
que temos hoje para construir uma “ordem jurídica da diversidade [...] direcionada para o
reconhecimento do direito à autonomia.” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 12).
No contexto empregado em sua obra, o autor refere-se aos direitos indígenas, mas
cujas proposições podem ser ampliadas para alcançar a questão quilombola, ainda mais
quando se refere ao tema do multiculturalismo e da autodeterminação.
14
“[...] indivíduos, grupos ou organizações de identidade própria, reconhecidos por outros, com capacidade de
modificar seu ambiente de atuação.” (NASCIMENTO, 2001, p. 95).
48
Albuquerque (2008, p. 13) destaca, inclusive, que
o debate sobre a teoria multicultural, no Brasil, tem sido ampliado em decorrência
da implantação, pelo governo federal, de uma política de afirmação aos negros,
garantindo uma ampliação do acesso à universidade por meio do sistema de quotas.
Os povos indígenas, assim como os negros, também representam uma parcela da
sociedade que tem sofrido, durante séculos, preconceitos e racismos de toda a ordem
e, por isso, faz-se premente encontrar meios para que não só as injustiças do passado
sejam corrigidas, mas principalmente, para que se propicie uma mudança política e
social em relação às minorias étnicas do país.
O debate multicultural surge quando os demais indivíduos percebem o mal causado às
minorias exploradas e excluídas e a necessidade de desfazer as injustiças históricas. Mas a
discussão não é simples, pelo contrário, envolve questões políticas, ideológicas e culturais
bastante complexas, entre as quais é difícil implantar um consenso.
O fato é que o aparato jurídico que temos hoje “tem sido posto à prova pela
diversidade, heterogeneidade, e complexidade de uma economia transnacionalizada”. Com
isso, “a cultura também vem sendo mundializada, sobretudo em torno do consumismo
selvagem que a ordem neoliberal impôs às pessoas.” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 64-65).
A luta pelo direito à diferença é contra a homogeneização e em prol da manutenção das
diversidades regionais e culturais. Isso leva a discussão para dentro dos grupos étnicos. Para o
autor,
o Estado contemporâneo tornou-se o principal opositor às práticas dos grupos
étnicos. A transformação do aparelho estatal passa por uma ampliação da discussão
sobre o pluralismo etno-jurídico. Porém, tanto o multiculturalismo como o
pluralismo podem ser compreendidos sob diferentes enfoques e linhas de
pensamento. (ALBUQUERQUE, 2008, p. 69).
Para formar um entendimento e até mesmo uma crítica sobre o multiculturalismo,
Albuquerque (2008) menciona vários autores, fazendo uma análise sobre as concepções
teóricas de cada um. No entanto, como nosso objetivo não é aprofundar o tema, não se torna
necessário neste momento partir para esta discussão teórica, de modo que apenas houve a
preocupação em trazer alguma noção devido à sua relação com o debate a respeito do
reconhecimento dos direitos dos remanescentes de quilombolas na atualidade.
No centro deste debate também está a cultura, conceito que engloba muitos
significados e que reflete as experiências humanas ao longo dos tempos. A diversidade
ocasiona contradições e conflitos e muitas nações incorrem no erro de reduzir os conflitos por
49
meio da negação das diversidades. No caso brasileiro, a colonização foi um eficiente processo
de negação da diversidade e da homogeneização cultural. Contudo, a Constituição de 1988
incorporou o pluralismo étnico ao disciplinar expressamente a questão quilombola,
reconhecendo as manifestações desses povos, que carecem de desenvolvimento.
(ALBUQUERQUE, 2008).
A questão da cultura e da identidade são inerentes ao tema em estudo, sendo que a
identidade define-se a partir das inter-relações dos indivíduos em seus grupos, do diálogo com
as coisas e das trocas com as mesmas, e às vezes dos conflitos que nos cercam (TAYLOR,
1993).
Muitas teorias permeiam o campo da identidade, do que é cultura, da política da
diferença, política da dignidade igualitária, liberalismo, comunitarismo, justiça distributiva,
ética comunitarista etc. São teses que se complementam ou que se contradizem, mas que não
esgotam o tema e nem levam a um consenso com relação à polêmica das relações inter-
culturais.
Mas vale referir algumas noções de Touraine (1998, p. 97) que se aplicam ao nosso
problema, pois o autor refere que o caminho de cada um depende do esforço de cada
indivíduo, que é ator social, sujeito de sua própria história. Em sua teoria multicultural analisa
o individual e o coletivo, como no caso dos movimentos sociais. Para o autor, o movimento
social representa manifestações que são “questionadoras das orientações gerais da sociedade”.
Esclarece ainda que
[...] o movimento societal não pode ser, também, senão um esforço para unir a luta
contra inimigos sempre ameaçadores e a defesa dos direitos sociais e culturais. Este
esforço nunca atinge completamente seu fim, de sorte que o movimento permanece
sempre fragmentário e cheio de contradições. Longe de ser um personagem
profético, um movimento societal é um conjunto mutável de debates, de tensões e de
divisões internas. (TOURAINE, 1998, p. 118).
Dessa forma, são os movimentos sociais que questionam a ordem social imposta e
compreendem
a ação coletiva concentrada na afirmação de direitos culturais, na defesa das
minorias (étnicas, nacionais, de gênero etc.). Trata-se de atores identificados cada
vez menos por uma atividade funcional e cada vez mais por uma pertença, dedicados
à possibilidade de transformação de uma sociedade vertical em uma sociedade cada
vez mais horizontal, substituindo-se a hierarquia pela diversidade. (ALBUQUER-
QUE, 2008, p. 107).
50
Seguindo a ideia de Touraine, Albuquerque (2008, p. 108) discorre que
A ideia de sujeito caminha na direção não apenas das lutas pelos direitos sociais e
culturais, mas também para o reconhecimento do direito de cada ator, individual ou
coletivo, de ser artífice de sua própria história, de se afirmar, e defender-se como tal,
com capacidade de participar do mundo instrumental e, ao mesmo tempo,
reconhecer e reinterpretar a sua identidade. (grifo nosso).
Considerando a premissa de que não há isolamento completo das culturas, é necessário
considerar os vários segmentos da sociedade, os diferentes grupos que a constituem e também
fatores externos para construir um novo caminho a seguir, para redefinir o fundamento de
nossa história. Ainda mais com relação à nova ordem global e o alcance disso.
51
3 COMUNIDADE TRADICIONAL FAMÍLIA SILVA: UM QUILOMBO URBANO
EM BUSCA DO RECONHECIMENTO
“[...] temos o direito a ser iguais sempre que a diferença
nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes sempre
que a igualdade nos descaracteriza.”
(Boaventura de Souza Santos).
3.1 Breve histórico da herança quilombola
No intuito de dar rosto, voz e lágrimas ao debate sobre a crise ambiental na sociedade
de risco e tornar a discussão a respeito de quilombolas um pouco mais perceptível para a
nossa realidade acadêmica, optamos por coletar informações a respeito de uma comunidade
quilombola do Estado do Rio Grande do Sul a “Comunidade Família Silva” que vivencia
uma realidade de busca de direitos enquanto remanescente de quilombos numa área territorial
urbana de nosso Estado. Neste cenário serão observadas algumas peculiaridades enquanto
comunidade quilombola e também de sua luta judicial pela efetivação dos preceitos contidos
na Constituição de nosso país.
Conforme informações obtidas juntamente à Comissão Pró-Índio de São Paulo/CPISP
(2008), o Quilombo dos Silva é o primeiro quilombo urbano do país, localizado no bairro
Três Figueiras, área nobre de Porto Alegre/RS. Abriga quase 60 pessoas, descendentes de
escravos, que vivem há mais de meio século no local. A emissão de posse da área foi
concedida ao Incra pela Justiça Federal do Rio Grande do Sul. O local, de 6,5 mil metros
quadrados, foi reconhecido como comunidade quilombola em 2006.
A Família Silva é remanescente da antiga Colônia Africana, sendo que os primeiros
integrantes ali chegaram no início dos anos 1940, oriundos do interior do Estado do Rio
Grande do Sul. Eram descendentes de escravos que foram então morar na periferia da cidade
de Porto Alegre, pois aquela área era considerada distante e não valorizada
15
.
15
Neste aspecto, conferir o Laudo Antropológico Família Silva, que esclarece toda a trajetória dos mesmos
desde seus antepassados, trazendo vários elementos que comprovam a identidade quilombola e a forma de
aquisição do território disputado (COMIN, 2009).
52
A valorização do local só passou a ocorrer após 1960, quando iniciaram as ameaças do
setor imobiliário. Atualmente, a área localizada na Rua João Caetano, bairro Três Figueiras de
Porto Alegre/RS, que se constitui no Quilombo da Família Silva, é cercada por condomínios e
prédios de alto luxo. Tais imóveis ao longo dos últimos dez anos avançaram sobre 90% da
área original habitada pelos Silva, de modo que o território original – antes de quatro hectares,
foi reduzido a cerca de meio hectare, onde vivem hoje as 12 famílias que compõem o
quilombo.
Para embasar a disputa pela titulação das terras do quilombo foi necessário realizar um
laudo antropológico da Família Silva. Esse laudo comprovou os laços étnicos, culturais e
territoriais da comunidade e possibilitou que a mesma fosse a primeira do país a obter o
Certificado de Reconhecimento da Fundação Palmares (FCP)
16
. Mas isso não intimidou a
especulação imobiliária e, mesmo assim, supostos proprietários reivindicam a posse da área,
através de ações judiciais, de modo que a luta da Família Silva iniciada em 1970 continua
ainda hoje.
Somente em junho de 2004, o Incra/RS iniciou o processo de identificação,
delimitação, demarcação e reconhecimento do território, que será encerrado com a titulação e
registro da área como remanescente de quilombos nos cartórios de registros de imóveis. Com
o reconhecimento da área, as famílias passam a almejar a possibilidade de idealizar projetos e,
sobretudo, de viver com dignidade.
O território da Família Silva, que antes era região da periferia, sofreu o impacto do
desenvolvimento e do crescimento urbano, que com a ocorrência desses fatores a área
urbana se sobrepôs à área externa da cidade, sendo aos poucos incorporada à mesma e
retirando, dessa forma, o espaço das camadas mais pobres da sociedade.
Devido a isto, a comunidade foi perdendo território que antes contribuía para sua
subsistência e hoje vive numa área sobreposta por condomínios de apartamentos. Os
integrantes da comunidade desempenham seus trabalhos fora do território quilombola
realizando, por exemplo, serviços domésticos ou de vigilância para obter a renda para o
16
A Fundação Cultural Palmares é uma entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei
Federal 7.668, de 22.08.88, tendo o seu Estatuto aprovado pelo Decreto 418, de 10.01.92, cuja missão
corporifica os preceitos constitucionais de reforços à cidadania, à identidade, à ação e à memória dos
segmentos étnicos dos grupos formadores da sociedade brasileira, somando-se, ainda, o direito de acesso à
cultura e a indispensável ação do Estado na preservação das manifestações afro-brasileiras. Como órgão
vinculado ao governo Ministério da Cultura, a Fundação expede um certificado de reconhecimento que
viabiliza a abertura do procedimento de titulação da área quilombola (http://www.palmares.gov.br/).
53
sustento da família, e não mais com o cultivo e a comercialização de produtos agrícolas, como
era no início da formação do quilombo.
Como consequências geradas pela sociedade atual, “os Silva” passaram a vivenciar
invasões e agressões promovidas pelo aparato policial do município e mesmo sem motivos
eram frequentemente abordados, espancados e até mesmo tinham casas arrombadas. Os atos
de violência coincidiram com o interesse pela aquisição de sua área. Além disso, foram
perdendo parte do território, utilizado para produzir flores, frutas e verduras, as quais eram
comercializadas na região, bem como para realizar a prática de rituais e costumes do grupo,
como os batuques, as danças, tradições como a “folia de reis”
17
.
Segundo Comin (2009, p. 2), o caso dos quilombolas tornou a questão mais debatida
pouco tempo, sendo que “a explicitação de uma etnicidade por parte desta comunidade
ganhou visibilidade mais recentemente, em função da mobilização dos afro-descendentes pelo
reconhecimento de uma identidade cultural singular, no plano da construção da nação
brasileira.”
A luta dessa comunidade perpassou por várias instâncias, como a Secretaria Municipal
de Direitos Humanos de Porto Alegre, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa do Rio Grande do Sul, o Ministério Público Federal, entre outros, que aderiram à
causa e estão possibilitando que se formem processos de ressignificação das categorias de
classificação étnicas, superando aos poucos o preconceito racial, o que sentido à expressão
“remanescentes das comunidades dos quilombos”, descrita pelo art. 68 do Ato de Disposições
Constitucionais Transitórias.
A pesquisadora refere que
após a Abolição da Escravidão as formas organizacionais identificadas como
quilombos têm seus nomes mudados, da mesma forma alteram-se as táticas de
expropriação desses grupos pela sociedade envolvente. A partir de então, essas
coletividades correspondem a outra dinâmica, a da territorialização étnica como
modelo de convivência com outros grupos na sociedade nacional. Inicia-se uma
longa etapa de construção da identidade dessas comunidades, seja pela formalização
da diferença étnico-cultural no âmbito local, regional e/ou nacional, seja pela
consolidação de um tipo específico de segregação social e residencial dos negros nas
cidades que implicam em deslocamentos, realocamentos, expulsões e reocupações
dos espaços. Essa dinâmica produz aquilo que hoje conhecemos como bairros, vilas,
redutos ou territórios negros. (COMIN, 2009, p. 23).
17
Conforme relatos pessoais dos integrantes do quilombo, cujas falas estão transcritas no Laudo elaborado para
instruir o processo de titulação.
54
O Laudo Antropológico da Família Silva, trabalho técnico elaborado por Comin
(2009, p. 1), parte de um convênio
firmado em agosto de 2003 para a realização do projeto de elaboração de laudo
antropológico de reconhecimento da comunidade remanescente de quilombo Família
Silva, em cumprimento ao Artigo 68/Atos das Disposições Constitucionais
Transitórias. O registro dele encontra-se no Livro 404-D, fls. 193, reg. 27452 da
FCP.
Com a expressão contida no referido artigo surgiram inúmeras demandas por
regularização fundiária engendradas pelas comunidades negras rurais através do art. 68 dos
Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, o que
gerou discussões e tornou necessária a execução dos laudos para melhor caracterizar e definir
as comunidades que se auto-determinam remanescentes de quilombolas. Além de expressão
auto-referente, o termo “remanescentes de quilombos” assume a condição de ferramenta
jurídica que agora servirá para assegurar aos negros “a possibilidade de pleitear, perante os
legisladores, administradores e dirigentes do governo brasileiro, um atendimento às condições
mínimas de acesso ao direito e à cidadania plena, como prevê o dispositivo constitucional.”
(COMIN, 2009, p. 2).
Com a disputa jurídica a Família dos Silva passou a buscar também o fortalecimento
político enquanto comunidade, perante o poder local da sociedade envolvente, contando com
o apoio de pesquisadores, do poder público, do movimento negro e até mesmo da imprensa,
tornando explícita a sua luta por direitos fundamentais, essenciais para a continuidade física e
cultural da coletividade, reduto de resistência negra e remanescente de quilombos (COMIN,
2009).
As fontes empregadas pela antropóloga constituem material bastante rico, pois a
pesquisa envolveu
fontes escritas, manuscritas ou impressas dos séculos XIX e XX de caráter
judiciário, cartorial, cartográfico, paroquial, assim como periódicos e bibliografia
de forma integrada com a coleta de dados referentes à memória da comunidade. No
que se refere à análise de dados histórico-documentais, privilegiou-se a análise
qualitativa dos mesmos, e seu cruzamento com os depoimentos recolhidos junto ao
grupo. Naqueles casos em que as informações constantes nas fontes já eram de
natureza quantitativa, eles foram organizados e tabulados em tabelas e gráficos;
contudo não se quantificou dados originalmente qualitativos. (COMIN, 2009, p. 6).
A autora ressalta que seu papel o foi no sentido de atestar ou não a identidade do
grupo, “mas o de identificar a estruturação interna do mesmo e os seus processos sociais
55
interativos, ou seja, não definir, mas contextualizar essa coletividade, utilizando como
parâmetro as classificações e categorias nativas de auto-identificação”, de modo que o
resultado não é um atestado de reconhecimento ou certificação.
Nesse sentido, o objetivo da pesquisa foi de, a partir de uma perspectiva
antropológica e histórica, investigar a comunidade negra “Família Silva”, buscando
compreender a sua cultura e historicidade, e destas, os elementos que compõem a
sua identidade étnica e sua territorialidade, enquanto espaço que resguarda sua
experiência de transição da condição de camponeses presos às redes de relações
oriundas do período escravocrata, fortemente marcadas pela exploração da sua força
de trabalho e pela opressão e discriminação – para a de trabalhadores urbanos.
(COMIN, 2009, p. 8).
Alguns elementos básicos da definição de quilombolas, como: 1) a fuga; 2) uma
quantidade mínima de fugitivos; 3) isolamento geográfico; 4) moradia habitual, o rancho; e 5)
capacidade de reprodução e autoconsumo na figura do pilão, estão presentes na maioria das
definições, desde as constantes nas legislações mais antigas, mencionados anteriormente.
No entanto, para o relatório,
o conceito de quilombo será percebido enquanto forma de organização social
referente a um determinado grupo étnico que adquire sentido para seus integrantes
na medida em que os mesmos são constrangidos pela sociedade envolvente e têm a
sua existência ameaçada em virtude da espoliação dos territórios tradicionalmente
ocupados. O uso da noção, portanto, não estará vinculado com o período
escravocrata, uma vez que os quilombos perduraram para além de tal época,
sendo renomeados, reclassificados pela sociedade que buscava reorganizar-se em
função das mudanças de ordem jurídica, mas que manteve as distinções em termos
raciais e a segregação em termos espaciais no cotidiano das relações sociais. É
somente a partir desse entendimento que a existência do artigo 68 e a sua
aplicabilidade tornou-se coerente não somente para este pleito em especial, mas
para todos os outros que o precederam e que o sucederão, isto é, porque essas
unidades sociais conhecidas por quilombos aos fins do século XIX e atualmente
percebidas como terras de pretos perpetuaram-se enquanto modelo organizacional
que permite aos seus integrantes buscar por outros meios aquilo que na história
dessas populações lhes é sistematicamente negado: a reparação das injustiças
sociais e o acesso ao mundo dos direitos e da cidadania. (COMIN, 2009, p. 21).
(grifos nossos).
O laudo destacou a origem ou a genealogia da Família Silva, desde os escravos
ancestrais, revelando a forma de aquisição do território, o período de ocupação e o vínculo
estabelecido enquanto comunidade quilombola. Apesar de que hoje não cultivam muito as
tradições coletivas, os relatos investigados e as entrevistas demonstram o período em que
vivem no local, confirmado inclusive por fotos e arquivos de um importante educandário do
município de Porto Alegre a Escola Anchieta, em cuja edificação alguns negros da Família
Silva auxiliaram e depois também estudaram no local (COMIN, 2009).
56
Comin (2009, p. 1) afirma que
a fim de melhor caracterizar o histórico da “Família Silvano município de Porto
Alegre, cabe situar de uma forma mais ampla a trajetória dos espaços negros nesta
cidade, assim como a dinâmica dos processos de expulsão a que foram submetidos.
Se a expansão da urbe se deu de forma centrífuga, o mesmo também aconteceu com
os territórios negros urbanos ao longo do século XX. A macro-tendência constatada
para o século passado foi de que, à medida em que a cidade foi crescendo, os
territórios negros “cinturões de cor em torno da cidade que se aburguesava
lentamente – foram sendo empurrados para periferias cada vez mais distantes
18
.
E ainda esclarece:
Na “Família Silva”, como a própria denominação evidencia, a origem comum está
sendo acionada através do idioma do parentesco, este que é um aglutinador de seus
integrantes e nexo de sua territorialidade, como demonstraremos ao longo deste
relatório. Os “Silva” são uma população negra que provém de descendentes de
escravos. Sua origem comum é a base a partir da qual se estrutura o processo de luta
pela manutenção de suas terras. A origem do grupo, expressa através da metáfora da
família, é uma fonte primária da etnicidade e, nesse sentido, é constitutiva do caráter
étnico do grupo e de suas fronteiras étnicas. A persistência dessa comunidade negra
no território reivindicado reflete a sua luta contra a exclusão social sofrida pelas
pessoas que compõem o grupo, situação agravada pela sistemática expulsão das
populações negras e pobres promovida pela lógica do crescimento e urbanização da
cidade. (COMIN, 2009, p. 23).
A autora esboça o levantamento genealógico da família e traça os vínculos socio-
culturais e históricos da comunidade, referindo-se a todo um passado de escravidão de fato,
que comprova por registros e outros documentos, mencionando os costumes e o modo de vida
que foram transformando-se em razão das circunstâncias, pois os descendentes passaram a se
adaptar com as novas situações e realidades que viviam.
Esta experiência demonstra na prática o que abordamos até aqui: uma comunidade
quilombola que foi submetida aos caminhos que a sociedade lhe impôs, sem muitas opções ou
chances de escolha, e que muito tempo após a Abolição da Escravatura precisa reforçar a sua
herança escrava para ter direito de lutar por igualdade e justiça. É uma grande contradição,
mas é a possibilidade que muitos negros têm nos dias de hoje, cuja situação é agravada por se
relacionar a minorias que representam parcelas mais vulneráveis e mais afetadas pelos riscos
que a sociedade contemporânea oferece.
18
Neste capítulo, a autora traz um interessante levantamento sobre a inserção dos territórios de escravos no
município de Porto Alegre e a discriminação com o que eram considerados, ao passo que várias eram as
ocorrências e os registros dessas comunidades a partir da segunda metade do século XIX, dados que
contribuíram para a elaboração do laudo (COMIN, 2009).
57
A chegada e a permanência da comunidade Família Silva no local onde hoje vivem
retrata a caminhada que determinado povo quilombola teve para superar a exclusão que lhe
foi imposta em decorrência dos processos de desenvolvimento e de escravismo que o Brasil
adotou. Aos poucos foram tentando construir sua identidade e agora, ao reconhecerem-se
como remanescentes de quilombolas buscam desvencilhar-se, enfim, da lógica de dominação
que os persegue desde o período escravista.
A comunidade não permaneceu isoladamente no local, ao contrário, sempre participou
de uma ou de outra maneira da comunidade do seu entorno, como exemplo, na escola ou com
a venda de flores e frutas pelas redondezas, interagindo na medida do possível com a
sociedade, não sendo, portanto, uma comunidade isolada. Isso, porém, não impediu que
perdessem parte de seu território ou que a desigualdade que vivenciaram desde sempre se
mantivesse, de modo que as dificuldades também permaneceram.
Mesmo assim é na localidade de Três Figueiras que parte da história da Família Silva
pode ser concebida, o que demonstra a tradição da ocupação da área, inicialmente habitada
pelos ancestrais que ali buscaram construir o futuro. Ali desenvolveram suas hortas e
terreiros, construíram casas e difundiam entre seus novos membros os costumes e tradições
que os identificavam enquanto comunidade tradicional quilombola. No entanto, essas
particularidades foram um tanto alteradas pela diminuição do território e também pelas
dificuldades de sobrevivência que levaram muitos integrantes a buscar trabalho em locais fora
da comunidade para possibilitar sustentar a família e o grupo.
O crescimento do município e do bairro deu visibilidade ao local e também
valorização imobiliária, de modo que as áreas ociosas antes de sua ocupação foram
apropriadas por terceiros, aproveitando-se do fato que os membros da Família Silva não
tinham conhecimento de como evitar tais ocorrências ou de que deveriam legalizar seu
território.
3.2 Conflitos jurídicos: a luta coletiva pelo reconhecimento da identidade quilombola
A titulação das terras tradicionais proporciona agora o resgate da cidadania esquecida
dos povos quilombolas, cada um com sua história, transformados em símbolos de luta pela
igualdade tão almejada em nosso país. Muitas dessas comunidades descendem de forma direta
dos quilombos de outrora, enquanto outras se caracterizam por novas formações, sendo que
58
estão espalhadas em vários Estados da federação, dispostas de modos diversos, com formas
peculiares de organização e que até pouco tempo viviam quase que na invisibilidade (LEITE,
1996).
Atualmente, por meio das reivindicações por reconhecimento de direitos e pela
titulação das terras, as comunidades descendentes de quilombos passam a construir sua
identidade política de remanescentes de quilombos. Deste modo, os negros que descendem de
ex-escravos, que formaram suas comunidades, reafirmam os laços internos, mantêm e
desenvolvem suas relações externas, organizando-se em prol da sobrevivência e autonomia
coletiva.
A trajetória, como já foi esclarecido, não foi livre de conflitos, a exemplo do que ainda
hoje ocorre. Basicamente, em seus territórios comuns, mantinham e desenvolviam suas
tradições, com um modo de vida simples e integrado com a natureza. Esses costumes ou
saberes representam hoje a forma de valorizar a identidade negra e proporcionar a emergência
política, social, cultural e jurídica dos remanescentes. Pois, como refere Müller (2009, p. 38)
“ser ‘remanescente de quilombos’ torna-se importante aos que reivindicam esse novo plano
da identidade.”
A lógica da convivência, da valorização dos laços familiares e dos vínculos
estabelecidos entre os membros da comunidade é o que constrói a relação de pertencimento
que os descendentes hoje fazem uso para se auto-definirem como remanescentes de
quilombos. Os crescentes conflitos e as ameaças mais presentes à permanência dos
quilombolas em seus territórios conferiram a motivação final para a necessária luta pelo
reconhecimento das terras e dos direitos. Em outras palavras,
a luta que os levou à busca de um outro tipo de reconhecimento viabiliza uma forma
de leitura positiva da identidade negra que possuem, ao mesmo tempo em que
assegura a atenção do Estado às necessidades que advêm do segmento camponês.
Aliás, nesse sentido a demanda de reconhecimento originou-se, em parte, da busca
da preservação do sentimento de “campesinidade”, que só pode ser assegurado,
neste momento, com a conquista de um espaço político que comporte a diferença.
(MÜLLER, 2009, p. 40).
Neste sentido, Baldi (2009) ressalta muitas questões, semelhantes às apresentadas
nesta dissertação, que se fazem presentes no momento em que um conflito pelo
reconhecimento das terras quilombolas é travado no cenário jurídico. Como exemplo, alguns
fatores aqui são explicitados:
59
o processo destaca a necessidade de revisão, no meio jurídico, da noção de
“quilombo”, que foi objeto de profundo redimensionamento pela historiografia e
pela antropologia.”; [...] implica a necessidade de reconhecer a diversidade étnico-
cultural; [...] estabelece um repensar do conceito de “comunidade tradicional”; [...] a
noção de territorialidade como espaço de reprodução cultural, social, religiosa,
ancestral e econômica põe em xeque a visão tradicional; [...] recoloca a discussão da
imensa concentração fundiária do país, cujo caráter étnico de discriminação ficará
oculto, porque a abolição deu por encerrado o “problema do negro”, excluindo-se
dos textos legais e constitucionais qualquer referência a “quilombos”, que
reaparecem cem anos depois, na Constituição de 1988.; [...]. (BALDI, 2009, p. 1-2).
Para tratar de termos mais específicos, segundo dados da Comissão Pró-Índio de São
Paulo, as primeiras ações propostas em favor dos quilombolas com base no art. 68 do ADCT
da Constituição Federal foram propostas em 1993 pelo Ministério Público Federal (MPF) e
visavam defender os direitos da comunidade de Rio das Rãs, na Bahia. Primeiramente,
ingressaram com uma Ação Civil Pública contra determinada empresa que tumultuava o livre
desenvolvimento da comunidade e obteve desfecho positivo. A outra foi uma ação ordinária
que pleiteava a declaração de remanescentes de quilombos para os fins do art. 68 da ADCT da
Constituição Federal, bem como exigia a delimitação e a demarcação da área ocupada pela
comunidade e a emissão do respectivo título, sendo que a União foi condenada a adotar as
medidas necessárias e a área foi titulada em 2000.
O processo de regularização da área do Quilombo Família Silva foi representado pelo
Incra em 2004, com o Decreto assinado em 2006
19
, declarando de interesse social a terra
ocupada pela comunidade para dar início então à desapropriação.
Foram promovidas então quatro ações desapropriação, sendo partes distintas da área,
com a concessão de imissão provisória da posse do imóvel nas quatro ações, de modo que os
quilombolas não precisaram abandonar a área. As ações, no entanto, foram questionadas por
outras demandas como ação reivindicatória que apesar de julgada procedente o chegou a
fazer com que os integrantes da Família Silva tivessem que abandonar suas terras.
Os quilombolas então agravaram a decisão e ingressaram com ão de manutenção de
posse na Justiça Federal, além de outra ação ordinária na Justiça Estadual para suspender a
decisão mencionada, adquirindo com isso o direito de permanecerem na área enquanto o
19
Decreto de 26 de outubro de 2006, que “declara de interesse social a área ocupada pela Comunidade
Remanescente do Quilombo Família Silva, situada no Município de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande
do Sul, e dá outras providências.”
60
processo estivesse em andamento
20
. Na decisão de Agravo de Instrumento n. 70011999836, o
voto da relatora enfatizou que
altamente litigiosa, portanto, a questão da posse fática sobre a área em questão e,
entre os dois valores, ora em jogo, esta Câmara opta por preservar o bem maior, que
é o interesse público, coletivo e social, dando provimento ao agravo, para sustar a
ordem de imissão de posse, até que se perquira melhor sobre as questões que não
ficaram bem esclarecidas e exigem de um Judiciário que deve, antes de tudo,
preservar os valores constitucionais, mantendo-se o statu quo que de fato inalterável.
na ação de Manutenção de Posse n. 2005.71.00.020104-4 a decisão foi proferida
com base no art. 68 do ADCT da Constituição Federal no sentido de:
reconhecer e assegurar provisoriamente a posse da Associação Comunitária Quilombo
Família Silva sobre a área discutida na ação;
estabelecer aos réus que se abstivessem de reivindicar, turbar ou esbulhar a posse;
ordenar aos réus que se abstivessem de adotar quaisquer providências, judiciais ou
extrajudiciais, que limitassem ou afetassem a posse da área por parte da associação, até o
ulterior julgamento da presente ação ou a ultimação da titulação definitiva de que trata o
art. 68 da ADCT da Constituição Federal;
fixar a multa diária de R$ 10.000,00, por dia, para cada réu que descumprir a decisão;
assegurar proteção àqueles que tanto tempo resistem e lutam pela própria
sobrevivência, mesmo que às margens da ordem vigente e ao custo da própria
sobrevivência, sem nunca terem perdido sua dignidade ou deixado de lutar por ela.
Algumas decisões:
IMISSÃO DE POSSE. SENTENÇA DE REIVINDICAÇÃO TRANSITADA EM
JULGADO. COISA JULGADA VERSUS DISCUSSÃO, EM SEDE DE QUERELA
NULITATIS, EM AÇÃO ORDINÁRIA. CONSTATAÇÃO DE FATOS NOVOS,
NÃO ABRANGIDOS PELA SENTENÇA, PROFERIDA EM SEDE DE
DIREITOS PRIVADOS, SUGERINDO A OCORRÊNCIA DE QUILOMBOLA, A
CONFIGURAR DIREITO PÚBLICO, COLETIVO E SOCIAL. PREPONDE-
RÂNCIA SOBRE O DIREITO PRIVADO, CUJA CONSISTÊNCIA SE VÊ, NO
MÍNIMO, AFETADA POR EVENTUAIS VÍCIOS DE ORDEM PROCESSUAL, A
SEREM INVESTIGADOS. SUSTAÇÃO DA ORDEM DE IMISSÃO DE POSSE.
AGRAVO PROVIDO. (AGRAVO DE INSTRUMENTO - DÉCIMA SÉTIMA
CÂMARA CÍVEL - Nº 70011999836 – COMARCA DE PORTO ALEGRE).
20
Nesta ação, a manifestação do Juiz foi no sentido de que: estão presentes os requisitos do art. 15 do DL
3.365/41, aplicáveis por conta do art. 5º da Lei 4.132/62. O depósito foi feito, segundo os critérios expostos na
petição inicial e constantes da legislação vigente. Ao que tudo indica, os expropriados não se encontram na
posse do imóvel desapropriado, que é ocupado pela própria comunidade quilombola. Por isso, defiro a
imissão provisória na posse do imóvel desapropriado em favor do INCRA, garantindo aos integrantes da
comunidade quilombola Associação Comunitária Kilombo de Família Silva, que permaneçam na área até
agora ocupada.”
61
Como o conceito de remanescente de quilombo carrega uma concepção um tanto
desvinculada do real sentido da expressão, a Associação Brasileira de Antropologia definiu,
em 1994, o quilombo como “toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de
escravos vivendo da cultura da subsistência e onde as manifestações culturais têm forte
vínculo com o passado”, sendo que O’Dwyer (2002, p. 19) afirma que:
Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou
resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica.
Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente
homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de
movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que
desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de
seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio [...].
No que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação da terra não é feita
em termos de lotes individuais, predominando seu uso comum.
E, em termos jurídicos é este, pois, o conceito com o que devemos tratar para definir a
abrangência do conceito expresso constitucionalmente e torná-lo aplicável aos caos práticos.
Ainda mais porque, conforme todas as críticas salientadas ao conceito de quilombo, temos
que pensar de acordo com os dias de hoje, sendo que
ao “serem identificados como “remanescentes”, aquelas comunidades “em lugar de
representarem os que estão presos às relações arcaicas de produção e reprodução
social”, passam a ser “reconhecidas como símbolo de uma identidade, de uma
cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e militância negra” e, neste sentido, “os
laços das comunidades atuais com grupos do passado precisam ser produzidos hoje,
através da seleção e da recriação de elementos de memória, de traços culturais que
sirvam como os “sinais externos” reconhecidos pelos mediadores e o órgão que tem
a autoridade de nomeação” (AGRAVO DE INSTRUMENTO n. 008.04.00.034037-
5/SC – Relatora: Des, Federal Maria Lúcia Luz Leiria, 13/04/2009).
Assim, percebe-se que mesmo não existindo definição clara na legislação brasileira, as
possibilidades de um julgamento que vislumbre os direitos coletivos dos povos quilombolas
estão presentes, de modo que os julgadores possam considerar então não somente a letra fria
da lei, mas também todo um aparato sociocultural que permeia a questão jurídica e que pode
conferir aplicabilidade aos ordenamentos de acordo com as concepções do estado democrático
de direito.
As comunidades quilombolas que buscam reconhecimento jurídico e garantia de
direitos culturais, sociais e territoriais enfrentam verdadeiras batalhas judiciais, conforme
relato anterior, para fazer com que suas reivindicações sejam ouvidas e, quem sabe, atendidas.
Com a atual previsão legal a respeito do auto-reconhecimento como remanescentes de
62
quilombos, o termo “quilombo” passou a ser conceituado ou entendido sob nuances diversas
daquela do período colonial, compreendendo comunidades existentes nos mais variados
pontos de nosso país e que possuem relação com a sociedade envolvente.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 passou a admitir a diversidade étnico
culturas ou socioambiental da nação, como forma de reconhecer e valorizar os conhecimentos
tradicionais e propiciar que determinadas minorias excluídas tenham referendado o seu direito
de participação e a garantia aos seus direitos em geral. Assim, as comunidades tradicionais
são vistas como parte do cenário atual, reconhecendo sua contribuição para a questão da
preservação ambiental.
A possibilidade de autodefinição para os povos tradicionais avança no sentido de
atenuar a discriminação imposta até aqui, para abrir espaço para que cada indígena,
quilombola ou outro membro dessas comunidades possa, livremente, resgatar/construir sua
identidade tão massacrada no passado histórico de nosso país.
3.3 Análise crítica/avaliação dos desafios futuros
Com o processo abolicionista os negros foram esquecidos, abolidos do processo social
e político da nação e, hoje, muito tempo depois, precisam justificar sua territorialidade,
ancestralidade, convivência comunitária, o parentesco, os costumes, etc. E da aceitação desses
fatores é que vai depender o reconhecimento e a efetividade de seus direitos.
A partir de todos os aspectos aqui abordados é possível afirmar que
Não é pouca coisa uma Constituição falar em quilombos. [...] além do relevante
valor simbólico da consagração textual, consequências jurídicas relevantes,
decorrentes do caráter constitucional, que confere, além da evidência, supremacia e
rigidez aos respectivos dispositivos normativos. (ROTHENBURG, 2008, p. 445).
Dispositivos estes que são vinculados a direitos fundamentais, para cujas minorias são
de especial importância.
O art. 68 do ADCT permite estipular um conceito de quilombo que passa a ser
compreendido como “o lugar e a comunidade formados principalmente por negros, escravos
ou não, eventualmente longe de fazendas e cidades, em busca de liberdade e identidade”.
63
(ROTHENBURG, 2008, p. 447, grifo nosso), de modo que a definição contemple “os
quilombos em sua contemporaneidade.” (p. 448).
Arruti (2003, p. 6) esclarece que
apesar das exigências do termo, os ‘remanescentes’ não são sobras de antigos
quilombos, presas aos fatos do passado por uma continuidade evidente e
prontamente resgatada na memória coletiva do grupo, prontos para serem
identificados como tais. Independente de ‘como de fato foi’ no passado, os laços
dessas comunidades com grupos do passado precisam ser produzidos hoje, através
da seleção e recriação de elementos da memória, de traços culturais que sirvam
como os ‘sinais externos’ reconhecidos pelos mediadores e pelo órgão que tem
autoridade de nomeá-los ou reconhecê-los.
A esse respeito Rothenburg (2008, p. 449) assevera que
o conceito procura ressaltar uma dimensão não-territorial que o texto do art. 68 do
ADCT contém mas não explicita. Quilombo é, ainda e antes de mais nada, uma
comunidade, um grupo de pessoas que desenvolvem relações específicas. Ainda que
a base territorial seja fundamental para permitir que essas relações se formem e se
mantenham, a dimensão ‘humana’ possui importância jurídica própria e fornece
argumento para que se proteja juridicamente uma comunidade que esteja sem
território ou que tenha sido deslocada para outro território ou cujo território esteja
em processo de regularização. Quilombo é o lugar e é também a comunidade.
Neste contexto, a razão da formação da comunidade não é fator preponderante, mas há
que ressaltar-se a existência atual do grupo, como forma de emergência da identidade
comunitária em seus diversos aspectos.
Os quilombolas, como todos os demais brasileiros, são titulares dos direitos
fundamentais elencados na Constituição Federal, sendo que o direito à propriedade possui
especial importância. Nas palavras de Sarmento (2007, p. 3),
para comunidades tradicionais a terra possui um significado completamente
diferente da que ele apresenta para a cultura ocidental das massas. Não se trata
apenas da moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas
sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo
através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores e
do modo peculiar de vida da comunidade étnica.
Privado da terra, o grupo tende a se dispersar e a desaparecer, absorvido pela
sociedade envolvente. Portanto, não é a terra que se perde, pois a identidade
coletiva também periga sucumbir. Dessa forma, não é exagero afirmar que quando
se retira a terra de uma comunidade quilombola, não se está apenas violando o
direito à moradia dos seus membros. Muito mais que isso, se atenta contra a própria
identidade étnica destas pessoas. Daí porque, o direito à terra dos remanescentes de
quilombo é também um direito fundamental cultural (art. 215, CF).
64
Apesar de tudo isso, sabemos que não basta que um direito esteja expressamente
previsto para que sua efetividade possa ser vislumbrada. Ao contrário, vivenciamos na
sociedade atual um crescente aumento dos conflitos e dificuldades cada vez maiores em dar
respostas aos anseios sociais.
A sociedade pós-moderna
21
está vivendo em meio a inúmeros e constantes desafios. O
cenário presente caracteriza-se pelo elevado crescimento
22
da humanidade com relação aos
aspectos: humano, econômico, social, político, científico e tecnológico, o que destoa de
consequências como o aumento das desigualdades sociais, da miséria, da degradação
ambiental, do enfraquecimento das relações e das instituições e, dentre tantos outros, da
desvalorização da cultura.
As incertezas estão levando o homem, enquanto sujeito social, a rever conceitos e
paradigmas na sociedade em rede. Principalmente porque são necessárias outras formas de
agir, de pensar e de se posicionar frente às relações de interdependência, geradas pelo
processo de globalização na sociedade moderna de risco.
A mudança que se torna imperiosa é a que se baseia em fundamentos éticos,
estabelecendo a construção de valores, como é o caso da solidariedade. Assim, será possível
uma verdadeira mudança que implique em muito aprendizado, pois o homem deve aprender
23
a cooperar, a compartilhar, a ter solidariedade, a buscar e priorizar o coletivo e não o
individual.
Os grupos humanos constroem suas características assim como sua própria história, de
modo que não podemos afirmar que determinados indivíduos sejam bons ou maus por
21
Podemos denominar a sociedade atual de pós-moderna porque se baseia em conceitos, fundamentos e
paradigmas diversos dos da sociedade moderna, apresentando mudanças profundas e transformações, cuja
base material está na globalização econômica. O mito do progresso faz emergir novos ideais relacionados à
política, à economia, à cultura, à sociedade em geral. Nesse sentido, conferir em VATTIMO, Gianni. O fim
da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
22
Não como negar o crescimento da humanidade em diversos aspectos. O crescimento humano, por exemplo,
tem razão de ser em virtude da diminuição das taxas de mortalidade infantil em muitos países, além do
aumento da expectativa de vida; já com relação ao aspecto social, percebemos que, no caso brasileiro, a
diminuição do índice de desemprego e as políticas públicas proporcionam, aos poucos, melhoras nesse
campo.
23
Barreto (2003, p. 303, grifo nosso) afirma que é necessário aprender e não reaprender, pois “cabe aos homens
trabalhar pela edificação de relações interpessoais e sociais que expressem os valores que respondem aos seus
anseios de uma vida em coletividade. E trabalhar significa aqui que a forma desejada não existe enquanto
arquétipo primitivo de vida em coletividade e, portanto, não um resgate ou uma recuperação a serem
feitos”.
65
natureza
24
. O que determina o grau de emancipação, que terá significado na aceitação das
diferenças na convivência entre os demais é o processo de autotransformação que passam
enquanto sujeitos sociais. Ao longo das experiências vividas, serão delineadas as
características sócio-econômico-político-culturais do indivíduo, agregando também elementos
afetivos e subjetivos, sociais e culturais, diversos de uma sociedade para outra, mesmo
involuntariamente.
No livro A Anatomia da Destrutividade Humana, Fromm define sociedades pacíficas e
agressivas, estabelecendo que:
nas pacíficas há um mínimo de hostilidade, violência ou crueldade. A punição
rigorosa, o crime, a instituição da guerra estão ausentes ou desempenham nelas um
papel extremamente pequeno. As crianças são tratadas com amor e bondade. As
mulheres geralmente são consideradas iguais aos homens; não são exploradas ou
humilhadas e, em geral, há uma atitude permissiva e afirmativa com relação ao sexo.
pouca competição, cobiça, inveja, individualismo ou exploração. Prevalece
nessas sociedades uma atmosfera geral de confiança, auto-estima e bom humor. No
caso das sociedades agressivas, o que as caracterizam são violência interpessoal,
destrutividade, agressividade, malícia e crueldade, seja dentro da tribo ou contra os
de fora. A atmosfera geral é de hostilidade, medo e tensão. excesso de
competição, dá-se grande ênfase à propriedade privada, as hierarquias são rígidas, e
o comportamento é belicoso. (apud BARRETO, 2003, p. 300).
Para relacionarmos com o tema em estudo, podemos dizer que o trecho acima reflete o
que vivemos atualmente, pois com relação a sociedades onde mais harmonia, temos como
exemplo trazidos pelo autor, de um modo geral, as sociedades primitivas remanescentes
25
,
principalmente indígenas e esquimós
26
, devido ao caráter comunitário de sua vivência, e
também comunidades quilombolas que estão sendo impelidas a resgatar a cooperação e a
solidariedade como forma para a sobrevivência coletiva (BARRETO, 2003).
No caso brasileiro, mesmo havendo uma quantidade significativa da população
indígena que habita o país, além de uma grande miscigenação de povos, a
característica da solidariedade não resistiu às constantes transformações cio-
culturais advindas dos processos de colonização e exploração. Desse modo
estabeleceu-se uma sociedade complexa na qual o anseio desenvolvimentista domes-
ticou os indivíduos para a competição, principalmente sob o regime capitalista.
24
Apesar de existirem diversas vertentes que afirmam a índole boa ou má do ser humano, as premissas nas quais
são baseadas possuem um vasto território a ser questionado, principalmente porque não podemos aceitar
teorias que apregoam a universalidade, a homogeneidade, a obrigatoriedade e a imutabilidade da natureza
humana. (BARRETO, 2003, p. 294-295).
25
O autor se refere a sociedades que embora existam na época atual, mantiveram os mesmos costumes e
tradições de seus antepassados, caracterizando-se como sociedades não complexas, que não apresentam
divisões sociais e econômicas, além de possuírem um alto grau de cooperação entre seus membros
(BARRETO, 2003, p. 298-303)
26
Dados trazidos com base em pesquisas realizadas por Orlick (1989) e Kischimoto (1995), tendo por objeto a
diversidade com relação à cooperação e a solidariedade humana (BARRETO, 2003, p. 298-303).
66
Esta competição é oriunda do capitalismo e acentuada com a globalização que, na
sociedade de risco, por um lado, impede que os atores sociais estejam engajados em prol de
um objetivo comum/coletivo e leva a sociedade a se tornar altamente individualista, pois
estimula
um modo de competição que, se necessário, ignora a norma e transforma seu
objetivo com vistas à destruição do outro, o concorrente, tornando a questão, não
raro, uma disputa pessoal que beira a patologia, capaz de conduzir a sociedade a um
alto grau de violência e, no limite, à sua desagregação. O pragmatismo dos fins
coloca os meios em segundo plano e torna a convivência uma luta fraticida.
(BARRETO, 2003, p. 293).
Muito desse processo de desagregação social é incutido de forma ideológica, mas não
é uma construção definitiva. “Cabe aos homens trabalhar pela edificação de relações
interpessoais e sociais que expressem os valores que respondem aos seus anseios de uma vida
em coletividade.” (BARRETO, 2003, p. 303). Isto é o que está ocorrendo a partir dos novos
movimentos sociais que ganham destaque no cenário contemporâneo.
A construção de uma nova cultura seja na realidade brasileira, no caso do
reconhecimento dos direitos dos remanescentes de quilombolas, ou em qualquer outra
sociedade – passa pela elaboração de uma concepção de ser humano. Passa, sobretudo, pela
construção de relações sociais, políticas, simbólicas e econômicas que se
estabelecem na convivência diária, marcada por fatos corriqueiros e simples
reprodução da própria vida, todos eles impregnados de relações vinculares que, em
última instância, nos remetem a nossas experiências identitárias. (BARRETO, 2003,
p. 306).
Ou seja, é a redefinição de conceitos que se faz necessária para que cada comunidade
possa afirmar-se enquanto tal, como detentora de direitos e da titularidade de sua história.
Isso não é fácil, sobretudo em um país onde os níveis de emprego e de renda
demonstram extrema exclusão e desigualdade social, onde a escravidão, a dominação e a
opressão ainda são perceptíveis pelos discursos políticos, pelas práticas cotidianas, pelos
preceitos legais, pela não efetividade de direitos. Mas cabe aos indivíduos transformar a sua
índole capitalista. Para tanto, as mudanças não devem ocorrer somente nos campos da política
e da economia, deve haver um processo para resgatar/recriar valores, fundamentos e conceitos
e proporcionar a verdadeira emancipação do ser humano, que viabilize a construção de uma
visão crítica de mundo, a consolidação das identidades e, enfim, a construção da verdadeira
cidadania num regime democrático.
67
No entanto, percebemos que ao passo em que o reconhecimento de direitos aos
quilombolas parece ganhar espaço e viabilidade, interesses contrários atuam no sentido de
dificultar/impedir tal efetividade. Por meio da burocracia e da o celeridade a norma do art.
68, que deveria ser auto-aplicável, esbarra em dificuldades, falta de orientação adequada às
comunidades, além das ações judiciais propostas pelos que se dizem proprietários dos
territórios quilombolas, da falta de políticas públicas ou ações afirmativas do poder público
para viabilizar os direitos dos povos minoritários.
também tentativas de aferir inconstitucionalidade ao Decreto 4.887/03 e ao art. 68
do ADCT em razão do critério de auto-identificação. Isso obstaculiza os processos de
titulação e faz com que um direito que levou cerca de cem anos para ser reconhecido
formalmente ainda leve algum tempo para contemplar as inúmeras comunidades quilombolas
da atualidade, dificultando o exercício da cidadania e minimizando as potencialidades de um
verdadeiro regime democrático
27
.
Sen (2000, p. 178), em sua obra Desenvolvimento como Liberdade, refere-se à
democracia como papel instrumental e construtivo das liberdades, pois oferece oportunidade
de participação dos sujeitos sociais, sendo que
os direitos civis e políticos dão às pessoas a oportunidade de chamar a atenção
eficazmente para necessidades gerais e exigir a ação pública apropriada. A resposta
do governo ao sofrimento intenso do povo frequentemente depende da pressão
exercida sobre esse governo, e é nisso que o exercício dos direitos políticos (votar,
criticar, protestar, etc.) pode realmente fazer diferença.
“A cidadania poderá ser traçada por liberdades mais afirmativas se colaborar sempre
que possível com os outros intervenientes políticos, incluindo os Estados e os agentes do
sector privado.” (FALK, 1999, p. 301). E com participação, pois
constitui um meio de garantir todos os direitos inerentes ao estatuto de membro,
envolvendo inclusivamente não as responsabilidades de proteção por parte do
Estado à luz do direito internacional mas também o dever de lealdade do indivíduo
para um determinado Estado. (FALK, 1999, p. 256).
Apesar das ameaças à cidadania, os cidadãos são os únicos agentes que podem
proteger as conquistas existentes e avançar na implementação dos direitos humanos, sem
deixar que se torne mais um artifício ideológico ou que a invocação do estatuto da cidadania
27
Sobre dados atuais a respeito do número de comunidades quilombolas existentes, da quantidade de certidões
emitidas e sobre os processos judiciais em andamento, conferir em: <http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/institucional/
grupos-de-trabalho/quilombos-1/documentos-1>.
68
poderá servir como um outro pretexto para impor barreiras e dificuldades aos membros mais
vulneráveis de uma determinada sociedade” (FALK, 1999, p. 274), como hoje ocorre sob a
justificativa de uma igualdade que não existe.
Essa é a forma apontada pelos autores, em sua maioria, para modificar o que as
experiências demonstram, superar as injustiças históricas, as quais afirmaram a cidadania
relacionada ao aspecto socioeconômico, garantindo apenas a igualdade formal, bem como
superar os efeitos da globalização e da crise ambiental como um todo, que enfraquece cada
vez mais a identidade e desgasta, desse modo, as bases da própria cultura e os fundamentos da
cidadania tradicional, sujeitando as minorias e demais segmentos, como as comunidades
tradicionais referidas, aos lugares e papéis que são rejeitados pelos grupos dominantes.
Neste contexto, ao abordamos a sociedade de risco, seu conceito e suas consequências
na atualidade, relacionamos a mesma com a crise ambiental que avança em nosso planeta. A
crise não é nova e nem desconhecida, pelo contrário, é bastante familiar para a maioria das
pessoas que vivenciam cotidianamente seus efeitos e, com isso, passam a ter a chance de se
preocupar com o futuro ambiental, social e cultural da humanidade.
Social e cultural sim, pois o ambiente é tudo o que nos cerca e que se transforma de
acordo com as trocas e as interações dos demais integrantes, como resultado da evolução dos
povos nos mais variados aspectos. Assim, a crise ambiental apresenta reflexos nos demais
campos, provocando não os desastres ecológicos propriamente ditos, mas outros também,
os chamados secundários, como foi observado a partir das concepções de Beck (1998).
Efeitos estes que são os que afetam as comunidades tradicionais que mencionamos
anteriormente e que levam ao surgimento de novos conflitos e movimentos sociais pela
efetivação de direitos, como é a luta das comunidades quilombolas que ganha cada vez mais
repercussão nos dias atuais e desencadeia novas formas de organização para a atuação
coletiva.
Os riscos estão longe de acabar e a luta está apenas começando. Ainda estamos
conhecendo os reflexos da sociedade que se impõe, os quais também se alteram no mesmo
ritmo em que se dão as transformações globais. Deste modo, muitos são os desafios futuros,
muitos deles imprevisíveis, para o que o fortalecimento das identidades, da cidadania
enquanto membros de uma coletividade demonstra-se como uma das formas de superar
injustiças e resistir aos efeitos da crise atual.
69
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mudanças ao longo dos anos permitiram que as leis fossem alteradas, mas apesar
das previsões legais o reconhecimento por direitos é uma verdadeira batalha social e judicial
que apenas aponta o início de um longo caminho. Ao mesmo tempo em que necessitamos
preservar a biodiversidade, também a diversidade cultural merece atenção, de modo que possa
existir a sustentabilidade em todos os aspectos.
Com o estudo da presente temática, tentou-se demonstrar a importância das
comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, principalmente como um possível modo
de contribuir para a superação da crise ambiental como um todo. Neste intuito, realizou-se
uma breve abordagem a respeito do tema explicitado, analisando especificamente o caso das
comunidades tradicionais e da comunidade quilombola Família Silva, trazendo o exemplo da
comunidade que busca pelo seu direito à diferença, ao território e à cidadania nos tempos
atuais.
Deste modo, a pesquisa pretendeu desenvolver uma apresentação do tema,
alinhavando perspectivas possíveis, considerando o vasto repertório de incertezas e riscos
vivenciados pelas comunidades tradicionais no Brasil. Os direitos das minorias étnicas
enfatizadas abrangem muito mais do que direitos territoriais. São direitos culturais e de auto-
organização que estão envolvidos, ou seja, o direito à diferença.
Embora preceitos jurídicos reconheçam os direitos dos diferentes povos que compõem
a nação brasileira, sabemos que a efetividade dos direitos ainda não foi alcançada. Deste
modo, a sequência de fatos e situações que ameaçam os povos tradicionais continua a ocorrer,
gerando-lhes perdas e danos irreparáveis, de modo que além dos riscos atuais evidenciam-se
os riscos futuros de permanência de conflitos, péssima qualidade de vida, redução das áreas
70
destinadas aos índios e aos quilombolas, sem fazer referência aos impactos ecológicos
propriamente ditos, que afetam a sobrevivência de novas gerações.
A reflexão sobre o tema possibilita, ainda, a tomada de consciência para a necessidade
de superação de equívocos históricos, de conquista de direitos e de transformação desses
direitos em efetividade, possibilitando assim que essas comunidades tenham meios de prover
sua sustentabilidade econômica, social e cultural. Essa seria uma forma de conceber de fato o
Brasil como um país pluriétnico
28
e multicultural
29
, nos termos da Constituição Federal de
1988, reconstruindo o espírito da lei e da cidadania para que estivesse ao alcance de todos os
povos.
Muitos dos conflitos oriundos da sociedade de risco recém estão ganhando forma.
Ainda mais porque a sociedade que temos hoje foi formada com base em relações de poder,
na qual foi implantado o capitalismo e ao longo do tempo se desenvolveram problemas
estruturais que apresentam repercussões para grande número de indivíduos.
O Direito e as leis foram ditados pelo Estado que pretendeu homogeneizar a sociedade
sem prever, no entanto, a série de conflitos advindos do desenvolvimento e da modernidade.
Assim ocorre a respeito dos mitos de igualdade, democracia, de um país livre, que
acentuaram os problemas sociais e fizeram com que hoje, no Brasil – para não irmos tão longe
o Estado não conta de responder ou satisfazer às demandas da sociedade. Com isso,
afirmam-se as reivindicações, formam-se movimentos sociais, cujos conflitos emergem e
clamam por respostas.
Assim como os riscos, a crise também não é nova. uma acentuação da mesma
frente aos efeitos que solapam a dignidade dos povos numa nação concebida sob os moldes de
Estado Democrático de Direito. Deste modo, evidencia-se que a questão do reconhecimento
dos direitos dos quilombolas não surgiu do nada, reportando-se a tempos de escravidão, a
anos de exclusão, nos quais se deixou à margem da sociedade os negros e outras minorias.
28
Pluriétnico pode ser compreendido como o país que se propõe a reconhecer a diversidade nos mais variados
aspectos, como nos campos étnico e cultural, superando conceitos antagônicos aos preceitos constitucionais e
possibilitando a concretização da democracia.
29
Segundo Kretzman e Sparemberger (2008, p. 88), “a questão multicultural está presente na maioria dos países
formados por uma população heterogênea, por instituições democráticas e atingidos pelas consequências
desastrosas dos processos de globalização hegemônica. Esses países apresentam minorias fortemente
discriminadas e exploradas, que carregam o peso da colonização, da tentativa de assimilação forçada, de
incorporação ao cenário nacional e da superioridade de uma cultura dominante, que considera todos os
homens como “livres e iguais”.
71
Na perspectiva do tema abordado, sem a pretensão de esgotar o assunto ou de
encontrar a solução definitiva para os problemas do mundo, desenvolvemos a presente
pesquisa que, apesar da brevidade com que transcorremos sobre a questão, permitiu-nos
refletir a respeito das causas sociais, do desenvolvimento e sobre o que não poderíamos deixar
de mencionar – os direitos.
A questão dos quilombolas Família Silva serve para ilustrar os inúmeros conflitos que
carecem de solução em nosso país, dos quais a sociedade em geral é responsável direta ou
indiretamente. No entanto, para a maioria das pessoas, as questões que dizem respeito às
minorias em debate parecem não ter relevância face ao individualismo que permeia nosso
cotidiano. Essas mesmas pessoas não percebem que o surgimento de tantos movimentos e
lutas sociais servem de alerta para que não haja mais possibilidades de mascarar a realidade e
iludir-se de que tudo está bem, subestimando o sofrimento, as injustiças e os problemas
sociais.
Diante da inefetividade do sistema jurídico e de toda a inércia dos sistemas político e
econômico vigentes, talvez seja a partir de pequenas e simples comunidades tradicionais e de
outros grupos minoritários que as transformações tenham início, embasadas em verdadeiras
causas sociais, justificadoras de movimentos em prol da superação da crise e de suas
consequências, que não deixaram outra alternativa para a humanidade a não ser a luta coletiva
para a garantia de seus direitos fundamentais.
Considerando toda essa realidade alarmante, podemos dizer ainda que, mesmo não
sendo problemas ou conflitos inéditos, surgem discussões atuais que abrem espaço para
colocá-los na pauta do dia. Principalmente porque, neste momento, torna-se importante o
despertar da consciência enquanto membros de uma coletividade, sujeitos de direitos e
atores/agentes da própria história. É o que os novos movimentos sociais estão realizando e o
que, quem sabe, podede alguma forma conceber os novos rumos da humanidade e orientar
as relações interculturais na sociedade mundializada.
72
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78
ANEXOS
79
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003
Regulamenta o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos de que trata o
art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, incisos IV e VI,
alínea "a", da Constituição e de acordo com o disposto no art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias,
DECRETA:
Art. 1
o
Os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação,
a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, serão procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto.
Art. 2
o
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste
Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com
a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1
o
Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos
quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.
§ 2
o
São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas
para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3
o
Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de
territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à
comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.
Art. 3
o
Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo
da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1
o
O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.
§ 2
o
Para os fins deste Decreto, o INCRA podeestabelecer convênios, contratos, acordos e
instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito
Federal, organizações não-governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.
§ 3
o
O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de
qualquer interessado.
§ 4
o
A autodefinição de que trata o § 1
o
do art. 2
o
deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral
junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento.
Art. 4
o
Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da
Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA
80
nas ações de regularização fundiária, para garantir os direitos étnicos e territoriais dos
remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos de sua competência legalmente fixada.
Art. 5
o
Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, assistir e
acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização
fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades
dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao
procedimento de identificação e reconhecimento previsto neste Decreto.
Art. 6
o
Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos quilombos a participação
em todas as fases do procedimento administrativo, diretamente ou por meio de representantes por
eles indicados.
Art. 7
o
O INCRA, após concluir os trabalhos de campo de identificação, delimitação e
levantamento ocupacional e cartorial, publicará edital por duas vezes consecutivas no Diário Oficial
da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localiza a área sob estudo, contendo as
seguintes informações:
I - denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das comunidades dos quilombos;
II - circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel;
III - limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo das terras a serem tituladas;
IV - títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras consideradas suscetíveis
de reconhecimento e demarcação.
§ 1
o
A publicação do edital será afixada na sede da prefeitura municipal onde está situado o
imóvel.
§ 2
o
O INCRA notificará os ocupantes e os confinantes da área delimitada.
Art. 8
o
Após os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA remeterá o relatório técnico
aos órgãos e entidades abaixo relacionados, para, no prazo comum de trinta dias, opinar sobre as
matérias de suas respectivas competências:
I - Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional - IPHAN;
II - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA;
III - Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;
IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI;
V - Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional;
VI - Fundação Cultural Palmares.
Parágrafo único. Expirado o prazo e não havendo manifestação dos órgãos e entidades, dar-se-
á como tácita a concordância com o conteúdo do relatório técnico.
Art. 9
o
Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a publicação e notificações a
que se refere o art. 7
o
, para oferecer contestações ao relatório, juntando as provas pertinentes.
Parágrafo único. Não havendo impugnações ou sendo elas rejeitadas, o INCRA concluirá o
trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Art. 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos
incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o INCRA e a Secretaria do
Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do título.
Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos
estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de segurança nacional, à
faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de
Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando
garantir a sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do Estado.
Art. 12. Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos incidem sobre terras de propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou dos
Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes responsáveis pela titulação.
Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos
título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado
81
ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção
dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.
§ 1
o
Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de
propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7
o
efeitos de comunicação prévia.
§ 2
o
O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória
disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante
levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem.
Art. 14. Verificada a presença de ocupantes nas terras dos remanescentes das comunidades
dos quilombos, o INCRA acionará os dispositivos administrativos e legais para o reassentamento das
famílias de agricultores pertencentes à clientela da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias
de boa-fé, quando couber.
Art. 15. Durante o processo de titulação, o INCRA garantirá a defesa dos interesses dos
remanescentes das comunidades dos quilombos nas questões surgidas em decorrência da titulação
das suas terras.
Art. 16. Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a Fundação Cultural
Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes das comunidades dos
quilombos para defesa da posse contra esbulhos e turbações, para a proteção da integridade
territorial da área delimitada e sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras
entidades ou órgãos que prestem esta assistência.
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento aos órgãos da
Defensoria Pública quando estes órgãos representarem em juízo os interesses dos remanescentes
das comunidades dos quilombos, nos termos do art. 134 da Constituição.
Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de
título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2
o
, caput, com obrigatória inserção
de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.
Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações legalmente
constituídas.
Art. 18. Os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos, encontrados por ocasião do procedimento de identificação, devem ser comunicados ao
IPHAN.
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares deverá instruir o processo para fins de registro
ou tombamento e zelar pelo acautelamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro.
Art. 19. Fica instituído o Comitê Gestor para elaborar, no prazo de noventa dias, plano de
etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das comunidades dos quilombos, integrado por
um representante de cada órgão a seguir indicado:
I - Casa Civil da Presidência da República;
II - Ministérios:
a) da Justiça;
b) da Educação;
c) do Trabalho e Emprego;
d) da Saúde;
e) do Planejamento, Orçamento e Gestão;
f) das Comunicações;
g) da Defesa;
h) da Integração Nacional;
i) da Cultura;
j) do Meio Ambiente;
k) do Desenvolvimento Agrário;
l) da Assistência Social;
m) do Esporte;
n) da Previdência Social;
o) do Turismo;
p) das Cidades;
82
III - do Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome;
IV - Secretarias Especiais da Presidência da República:
a) de Políticas de Promoção da Igualdade Racial;
b) de Aqüicultura e Pesca; e
c) dos Direitos Humanos.
§ 1
o
O Comitê Gestor será coordenado pelo representante da Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial.
§ 2
o
Os representantes do Comitê Gestor serão indicados pelos titulares dos órgãos referidos
nos incisos I a IV e designados pelo Secretário Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial.
§ 3
o
A participação no Comitê Gestor será considerada prestação de serviço público relevante,
não remunerada.
Art. 20. Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das comunidades dos
quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento preferencial, assistência técnica e linhas
especiais de financiamento, destinados à realização de suas atividades produtivas e de infra-
estrutura.
Art. 21. As disposições contidas neste Decreto incidem sobre os procedimentos administrativos
de reconhecimento em andamento, em qualquer fase em que se encontrem.
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares e o INCRA estabelecerão regras de transição
para a transferência dos processos administrativos e judiciais anteriores à publicação deste Decreto.
Art. 22. A expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo INCRA far-se-ão sem
ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da área.
Parágrafo único. O INCRA realizará o registro cadastral dos imóveis titulados em favor dos
remanescentes das comunidades dos quilombos em formulários específicos que respeitem suas
características econômicas e culturais.
Art. 23. As despesas decorrentes da aplicação das disposições contidas neste Decreto correrão
à conta das dotações orçamentárias consignadas na lei orçamentária anual para tal finalidade,
observados os limites de movimentação e empenho e de pagamento.
Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 25. Revoga-se o Decreto n
o
3.912, de 10 de setembro de 2001.
Brasília, 20 de novembro de 2003; 182
o
da Independência e 115
o
da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Gilberto Gil
Miguel Soldatelli Rossetto
José Dirceu de Oliveira e Silva
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 21.11.2003.
83
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
DECRETO DE 26 DE OUTUBRO DE 2006
Declara de interesse social a área ocupada pela
Comunidade Remanescente do Quilombo Família
Silva, situada no Município de Porto Alegre, no
Estado do Rio Grande do Sul, e outras
providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe conferem os arts. 84, inciso IV, e
216, § 1
o
, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 5
o
da Lei n
o
4.132, de 10 de setembro
de 1962, combinado com o art. 6
o
do Decreto-Lei n
o
3.365, de 21 de junho de 1941,
DECRETA:
Art. 1
o
Fica declarada de interesse social, nos termos dos arts. 5
o
, inciso XXIV, e 216, § 1
o
, da
Constituição, e art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a área de 6.510,7808m
2
ocupada pela Comunidade Remanescente do Quilombo Família Silva, situada no Bairro Três
Figueiras, Quarteirão 5, Município de Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, composta de
propriedades matriculadas no Cartório de Registro de Imóveis da 4
a
Zona de Porto Alegre, sob os n
os
63992, 6595, 88602 e 123842, compreendida pelas seguintes coordenadas: inicia-se a descrição
deste perímetro no vértice CCE M 0001, de coordenadas N 6.677.932,380 m e E 483.418,567 m,
situado na divisa entre o Condomínio Vivendas Del Sur com Empresa Astir; deste, segue,
confrontando com a Empresa Astir, com os seguintes azimutes e distâncias: 107°53'58" e 40,10 m
até o vértice CCE M 0002, de coordenadas N 6.677.920,055 m e E 483.456,726 m; 109°11'34" e 4,68
m até o vértice CCE M 0003, de coordenadas N 6.677.918,518 m e E 483.461,143 m; 98°31'54" e
4,85 m até o vértice CCE M 0004, de coordenadas N 6.677.917,798 m e E 483.465,942 m; deste,
segue, confrontando com a Rua João Caetano, com o azimute e distância de 100°45'40" e 15,92 m
até o vértice CCE M 0005, de coordenadas N 6.677.914,825 m e E 483.481,582 m; deste, segue,
confrontando com a Empresa Astir, com azimute e distância de 92°06'33" e 17,54 m até o vértice
CCE M 0006, de coordenadas N 6.677.914,180 m e E 483.499,114 m; deste, segue, confrontando
com o Condomínio Piccola Citta/Construtora e Fundações TOD, com o azimute e distância de
194°21'41" e 88,81 m até o vértice CCE M 0007, de coordenadas N 6.677.828,149 m e E
483.477,087 m; deste, segue, confrontando com Antônio Silva dos Santos e Ronei Silva dos Santos,
com o azimute e distância de 303°14'53" e 46,91 m a o vértice CCE P 0001, de coordenadas N
6.677.853,871 m e E 483.437,852 m; deste, segue, confrontando com o Beco (Rua João Caetano
projetada), com os seguintes azimutes e distâncias: 303°14'53" e 4,18 m até o vértice CCE P 0002,
de coordenadas N 6.677.856,160 m e E 483.434,360 m; 303°11'48" e 5,72 m até o vértice CCE M
0008, de coordenadas N 6.677.859,291 m e E 483.429,576 m; deste, segue, confrontando com
Condomínio Vivendas dei Sur, com os seguintes azimutes e disncias: 3015'13" e 53,51 m até o
vértice CCE V 0001, de coordenadas N 6.677.888,633 m e E 483.384,827 m; 37°38'30" e 8,82 m
até o vértice CCE M 0009, de coordenadas N 6.677.895,616 m e E 483.390,212 m; 37°38'30" e
46,43 m até o vértice CCE M 0001, de coordenadas N 6.677.932,380 m e E 483.418,567 m, ponto
inicial da descrição deste perímetro. Todas as coordenadas aqui descritas estão georreferenciadas
ao Sistema Geosico Brasileiro, a partir das estações ativas da RBMC de Porto Alegre, de
coordenadas N 6.673.047,825 e E 488.507,425, e São Leopoldo, de coordenadas N 6.704.186,206
e E 485.318,397, e encontram-se representadas no Sistema UTM, referenciadas ao Meridiano
Central 51° WGr., tendo como o Datum o SAD-69. Todo s os azimutes e distâncias, áreas e
perímetros foram calculados no plano de projeção UTM.
84
Art. 2
o
Excluem-se dos efeitos deste Decreto as áreas de domínio público, as de domínio particular
invalidado por nulidade, comisso ou tornado ineficaz por outros fundamentos, bem como eventual
área com usucapião configurado a benefício dos remanescentes da comunidade de quilombo.
Art. 3
o
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, atestada a legitimidade
dominial das matrículas dos imóveis situados no polígono descrito no art. 1
o
deste Decreto, fica
autorizado a promover e executar a desapropriação, na forma prevista no Decreto-Lei n
o
3.365, de 21
de junho de 1941.
§ 1
o
O INCRA, independentemente de declaração judicial prévia, deverá apurar administrativamente
as ocorrências referidas no art. 2
o
, e as invocará em juízo, para fins de exclusão da indenização.
§ 2
o
A Advocacia-Geral da União, por intermédio de sua unidade jurídica de execução junto ao
INCRA, poderá, para efeito de imissão de posse, alegar a urgência a que se refere o art. 15 do
Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941.
Art. 4
o
Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 26 de outubro de 2006; 185
o
da Independência e 118
o
da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Guilherme Cassel
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 27.10.2006
85
G864c Grimm, Vera Eliane dos Santos.
Comunidades tradicionais e o reconhecimento jurídico: o caso do
Quilombo Família Silva / Vera Eliane dos Santos Grimm. – Ijuí, 2009.
– 84 f. ; 30 cm.
Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Desenvolvimento.
“Orientador: Doglas Cesar Lucas”.
1. Sociedade de risco. 2. Direitos quilombolas. 3. Constituição. 4.
Resistência negra. 5. Liberdade. 6. Identidade. I. Lucas, Doglas Cesar.
II. Título. III. Título: O caso do Quilombo Família Silva.
CDU: 349.3
394.3(81)
504.03
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Aline Morales dos Santos
CRB10 / 1879
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