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Os subordinados do Rei seguem a ordem do Príncipe e começam a experimentar o
sapato pelas damas da nobreza, sem, todavia, encontrar a verdadeira dona. Chegam, enfim, na
casa das duas irmãs que, conforme afirma o narrador, “fizeram o possível para que seus pés
entrassem na sapatilha, mas não conseguiram nenhum resultado” (PERRAULT, 2007,
p.132).
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Cinderela pede para experimentar o sapato e, como de costume, é zombada por suas
irmãs. No entanto, o súdito do Rei, percebendo sua beleza, concede-lhe o direito de provar o
calçado: “O espanto das duas irmãs foi enorme, mas maior ainda foi quando Cinderela tirou
do bolso a outra sapatilha e a calçou no outro pé” (Idem, p.113).
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Nesse instante, a Madrinha
aparece e, utilizando-se novamente do recurso mágico, transforma Cinderela na linda princesa
do baile.
[As duas irmãs] Lançaram-se aos seus pés para pedir-lhe perdão de todos os
maus-tratos por que a tinham feito passar. Cinderela as ergueu e lhes disse,
abraçando-as, que lhes perdoava de coração e que lhes pedia que amassem
muito e sempre. Levaram-na para junto do Príncipe, arrumada como estava:
ele achou que ela estava mais linda do que nunca e, poucos dias depois,
casou-se com ela. Cinderela, que era tão boa quanto bela, trouxe suas irmãs
para morar no Palácio e fez com que se cassassem, no mesmo dia, com dois
grandes Senhores da Corte (PERRAULT, 2007, p.113).
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Com esse desfecho, no qual se processa a inversão da ordem inicial,
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o
leitor/ouvinte tem seu desejo de justiça satisfeito e uma lição de civilidade a seguir. Como
declara André Jolles, “sevícias, desprezo, pecado, arbitrariedades, todas essas coisas só
aparecem no Conto para que possam ser, pouco a pouco, definitivamente eliminadas e para
que haja um desfecho em concordância com a moral ingênua” (JOLLES, 1976, p.201).
Constatamos, portanto, que a estrutura dada ao conto coopera para despertar a
sensação de indignação perante as injustiças sofridas pela protagonista. A participação da
Madrasta, por exemplo, contribui para a divisão das personagens em dois pólos – bem versus
mal, atuando como uma forma de caracterizar as duas filhas, já que ambas eram em tudo
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“qui firent tout leur possible pour faire entrer leur pied dans la pantoufle, mais elles ne purent en venir à
bout”(PERRAULT, 1990, p.251-2).
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“L'étonnement des deux sœurs fut grand, mais plus grand encore quand Cendrillon tira de sa poche l'autre
petite pantoufle qu'elle mit à son pied” (PERRAULT, 1990, p.252).
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“Alors ses deux sœurs la reconnurent pour la belle dame qu'elles avaient vue au bal. Elles se jetèrent à ses
pieds pour lui demander pardon de tous les mauvais traitements qu'elles lui vaient fait souffrir. Cendrillon les
releva, et leur dit, en les embrassant, qu'elle leur pardonnait de bon cœur, et qu'elle les priait de l'aimer bien
toujours. On la mena chez le jeune prince, parée comme elle était: il la trouva encore plus belle que jamais, et
peu de jours après il l'épousa. Cendrillon, qui était aussi bonne que belle, fit loger ses deux sœurs au palais, et les
maria dès le jour même à deux grands seigneurs de la cour” (PERRAULT, 1990, p.252).
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Na história narrada em Ester, sobre Mardoqueu, o desfecho também conta a inversão da situação inicial, ou
seja, da posição de humilhado, Mardoqueu é exaltado: “Então, disse o rei a Hamã: Apressa-te, toma a veste e o
cavalo, como disseste, e faze assim para com o judeu Mardoqueu, que está assentado à porta do rei; [...] / E
Hamã tomou a veste e o cavalo, e vestiu a Mardoqueu, e o levou a cavalo pelas ruas da cidade, e apregoou diante
dele: assim se fará ao homem de cuja honra o rei se agrada!” (Ester 6:10-1).