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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Santos, Geovana Gentili
S237m Mamãe Ganso à brasileira: as personagens de Perrault no
Sítio do Picapau Amarelo / Geovana Gentili Santos. Assis,2008
183f. : il.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Perrault, Charles, 1628 – 1703 – Personagens. 2. Lobato,
Monteiro,1882 – 1948. 3. Literatura infanto-juvenil . 4. Contos
de fadas – História e crítica. I. Título.
CDD 028.5
808.899282
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Agradeço...
À CAPES, pela Bolsa concedida, oferecendo condições favoráveis para o
desenvolvimento deste trabalho;
Ao Programa de Pós-Graduação e aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, que
sempre me atenderam prontamente;
À Biblioteca da UNESP de Assis, pela valiosa contribuição bibliográfica e ao gentil
atendimento de seus funcionários;
Ao AEL Arquivo de Edgar Leuenroth Centro de Pesquisa e Documentação Social
IFCH/UNICAMP, pelo precioso auxílio dos funcionários na localização de artigos sobre
Monteiro Lobato;
Ao CEDAE – Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio IEL/UNICAMP,
pela simpática acolhida e pela contribuição na consulta dos acervos “Biblioteca lobatiana” e
“Fundo Monteiro Lobato”;
À Biblioteca Infanto-juvenil Monteiro Lobato, pela atenciosa recepção de seus
funcionários e pela disponibilização de materiais;
Ao prof. João Luís Cardoso Tápias Ceccantini, pela amistosa acolhida, guiando os
meus passos na pesquisa acadêmica desde a Graduação e pela credibilidade depositada ao
longo deste trabalho;
À profa. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, pelo incentivo à pesquisa desde a Iniciação
Científica e pela leitura cuidadosa apresentada no Exame de Qualificação;
Ao prof. Alvaro Simões Junior, pelas sugestões apontadas no Exame de Qualificação e
pela gentil participação na Defesa;
À profa. Vera Teixeira de Aguiar, pela leitura e pela contribuição oferecida na Defesa;
Ao prof. Marco Antonio Domingues Sant’Anna e à profa. Ana Maria Carlos, pela rica
contribuição que proporcionaram a este trabalho por meio de seus cursos da Pós-Graduação e
pela leitura atenta das monografias que se tornaram parte integrante desta dissertação;
À profa. Maria Cecília Zanon, quem me apresentou a chocante versão do conto
“Chapeuzinho Vermelho”, de Charles Perrault, no seu curso de Língua Francesa e que, talvez
sem saber, plantou a semente que germinou neste trabalho;
À profa. Daniela Mantarro Callipo, pelas constantes palavras de encorajamento e pelo
auxílio na revisão das traduções do francês;
7
Ao Jaison, por ter motivado minha incursão na pesquisa e por estar sempre ao meu
lado, com palavras de incentivo, suavizando os momentos de angústia e intensificando os de
alegria;
À minha querida mãe, Nadir, que, incondicionalmente, esteve ao meu lado, sonhando
os meus sonhos e realizando-se com minhas realizações;
Ao meu pai, Alberto, que, mesmo distante, não deixou de torcer e de acreditar nas
minhas escolhas;
Aos meus estimados irmãos, Vanessa e Wagner, que, sem medir esforços, me
apoiaram e estiveram presentes nessa minha trajetória acadêmica;
À família Crestani Roni, Idete, Giana e Nono José pelas carinhosas acolhidas ao
longo desse percurso;
Aos amigos da Comunidade Manaim, pelo apoio e pelo carinho recebido a cada
reencontro;
Aos amigos: Elaine e Leandro; Kátia e Fernando; Aline e Rafael; Fernanda; Vanessa
Regina; Maria Cláudia e Profa. Sonia França pela amizade sincera, ingrediente fundamental
nessa trajetória;
Ao Chinho e à Shanny, meus gatos de estimação, pelo carinho e pela companhia nas
horas de estudo;
A todos que direta ou indiretamente participaram e contribuíram para a realização
deste trabalho.
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presente trabalho estuda o modo de caracterização das personagens dos contos de fadas
de Charles Perrault (1628-1703) e o processo de transcontextualização (Hutcheon)
dessas figuras para o universo ficcional infantil de Monteiro Lobato (1882-1948). Num
primeiro momento, são analisadas cinco narrativas selecionadas da obra Contes de ma mère
l’oye (1697) e de seu contexto de produção, com vistas a determinar o posicionamento
(Maingueneau) e a concepção literária de Perrault. Na seqüência, é elaborado um estudo
crítico dos contos de Monteiro Lobato, verificando as adaptações e/ou transformações
realizadas pelo escritor brasileiro ao introduzir as personagens de Perrault nas aventuras do
Sítio do Picapau Amarelo. Na parte final do trabalho, realizamos uma apreciação teórica do
procedimento criativo adotado por Lobato, a fim de delinear o modo como se processa a re-
apresentação (Sant’Anna) dos elementos característicos dos contos de fada na produção
ficcional de Lobato.
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e travail étude la manière de caractérisation des personnages des contes de fées de
Charles Perrault (1628-1703) et le processus de transcontextualisation (Hutcheon) de
ces figures pour l’univers fictionel enfantin de Monteiro Lobato (1882-1948). Dans le premier
moment, nous analysons cinq récits sélectionnés de l’oeuvre Contes de ma mère l’oye (1967)
et son contexte de production, avec l’objectif de determiner le positionnement (Maingueneau)
et la conception littéraire de Perrault. Ensuite, nous entreprenons une étude critique des contes
de Monteiro Lobato, en vérifiant les adaptations et les transformations que l’auteur brésilien a
réalisées dans les personnages de Perrault qui sont introduits dans les aventures du Sítio do
Picapau Amarelo. Dans la dernière partie du travail, nous réalisons une appréciation théorique
du procédé créatif adopté par Lobato, avec l’ intention de tracer la manière comme est
executée la re-présentation (Sant’Anna) des éléments caractéristiques des contes de fées dans
la production ficcionnelle de Lobato.
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: Charles Perrault, Monteiro Lobato, contes de fées, littérature enfantine.
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CONTOS DE FADAS: UMA FORMA LITERÁRIA DA ARISTOCRACIA E
DA BURGUESIA....................................................................................................
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CONTES DE MA MÈRE L’OYE: ENTRE O CLÁSSICO E O MODERNO......... 41
“O Barba Azul” – a dialética da aparência e da essência......................................... 43
“O Pequeno Polegar” – imagens em contraste.........................................................
52
“O Gato de Botas” – a esperteza em cena................................................................ 61
“O Chapeuzinho Vermelho” – astúcia versus ingenuidade......................................
66
“Cinderela ou O sapatinho de vidro” – o jogo entre civilité e incivilité...................
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A LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA E O ACERVO LITERÁRIO
EUROPEU: O INÍCIO DA NOSSA HISTÓRIA.....................................................
85
DA LITERATURA UNIVERSAL PARA O SÍTIO DE DONA BENTA.............. 90
“Narizinho Arrebitado” – a primeira visita de Polegar............................................ 92
“O Sítio do Picapau Amarelo” – a confirmação do projeto literário de Monteiro
Lobato.......................................................................................................................
98
“Cara de Coruja” – a festa no Sítio de Dona Benta..................................................
99
“O Irmão de Pinocchio” – a fusão entre o real e o mágico...................................... 109
“O Circo de Cavalinho” – nova visita ao Sítio de Dona Benta............................... 113
O Picapau Amarelo – a mudança no Mundo das Fábulas....................................... 114
12
“As botas de sete léguas” – novas peculiaridades de um pequeno herói................ 120
“As fadas” – a desconstrução das regras de civilité................................................. 125
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O POSICIONAMENTO LITERÁRIO DE MONTEIRO LOBATO....................... 133
MONTEIRO LOBATO E OS CONTOS DE FADAS: UM INVESTIMENTO
GENÉRICO..............................................................................................................
144
Do de pirlimpimpim ao faz-de-conta emiliano: o maravilhoso no Picapau
Amarelo....................................................................................................................
145
Emília, uma fada à brasileira?.................................................................................. 150
Os serões no Sítio de Dona Benta: a re-apresentação de uma tradição antiga........ 156
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Bibliografia de Charles Perrault...............................................................................
173
Bibliografia de Monteiro Lobato.............................................................................
173
Bibliografia geral.....................................................................................................
175
13
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14
Durante a leitura dos livros infantis de Monteiro Lobato (1882-1948), familiarizamo-
nos com a sua criação: Emília, a boneca de pano; Visconde de Sabugosa, o sabugo de milho;
Rabicó, o porco Marquês, as crianças Narizinho e Pedrinho e as duas senhoras Dona
Benta e Tia Nastácia. Entretanto, a cada nova leitura das histórias, percebemos que o Sítio do
Picapau Amarelo um espaço que se quer tipicamente nacional além de acolher as figuras
concebidas pelo escritor, recebe também personagens da literatura estrangeira, na condição de
visitantes.
Considerando esse aspecto, constatamos que a obra infantil lobatiana estabelece um
diálogo com a História, ao introduzir figuras como Hans Staden, Alexandre o Grande,
César; com a Mitologia, ao situar as aventuras na Grécia Antiga, na Grécia de Péricles e
aquelas vivenciadas na companhia de Hércules; com o Folclore, ao resgatar figuras como o
Saci, a Iara, a Cuca; e com a Literatura de um modo geral e mesmo com a indústria cultural,
ao incorporar personagens, como Dom Quixote, Branca de Neve, Príncipe Codadade, Gato de
Botas, Peter Pan, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Capitão Gancho, Rosa Branca e Rosa
Vermelha, Pequeno Polegar, Lobo, Barba Azul, Marinheiro Popeye, Gato Félix, Alice do País
das Maravilhas, entre outros.
A constatação dessa relação entre a ficção infantil de Monteiro Lobato e as narrativas
da tradição literária motivou a realização desta pesquisa, que tem por objetivo analisar
especificamente a presença das personagens dos contos de fadas de Charles Perrault (1628-
1703) nas obras infantis de Monteiro Lobato.
A escolha de tal estudo justifica-se, primeiramente, por se tratar de dois autores que
representam peças-chave no campo literário infantil. Charles Perrault, com Histoires ou
contes du temps passé avec des moralités Contes de ma mère l’oye (1697),
1
contribui para a
voga dos contos de fadas no século XVII e para o início de uma literatura destinada às
crianças. Monteiro Lobato, por sua vez, torna-se, com a saga do Picapau Amarelo,
responsável pela consolidação da literatura infanto-juvenil no Brasil.
Apesar das diversas traduções para o português dos contos de Perrault e da
popularidade dessas narrativas, podemos observar, no meio acadêmico, certa resistência ao
seu estudo. Para a escritora Ana Maria Machado, tal postura é decorrente do fato de essas
histórias populares constituírem “uma categoria diferente entre os clássicos”. A despeito da
1
Obra publicada na França, em 1697, contendo oito contos em prosa com moralidades ao término de cada uma
delas: “Le Petit Chaperon Rouge”, “La Barbe-Bleue”, “Le Maître Chat ou Le Chat Botté”, “Les Fées”,
“Cendrillon ou La Petite Pantoufle de Verre”, “Riquet à la Houppe”, “Le Petit Poucet e “La Belle au Bois
Dormant”.
15
“tamanha influência que exerceram sobre nossa cultura”, essas histórias “não são encaradas
pelos críticos e
pela academia com a mesma nobreza e prestígio” dos livros clássicos. Para a
autora, esse desapreço talvez seja uma conseqüência do fato de terem sido, sempre, oferecidas
às crianças: Muitas vezes, são consideradas apenas ‘histórias infantis’ e, por isso, vistas
como pouco importantes” (MACHADO, 2002, p.68).
As barreiras erigidas em relação aos contos de fadas, sobretudo no que diz respeito
ao reconhecimento de seu valor literário, tornam-se evidentes nas pesquisas dedicadas a esse
gênero. Parte significativa da bibliografia sobre o assunto ignora o fato de essas histórias
serem resultado de uma elaboração artística, ou seja, “produtos da criação pessoal do autor,
por sua vez, pertencentes a contextos sócio-históricos específicos” (CANTON, 1994, p.35).
Como esses contos veiculam lições universais, as personagens e situações narrativas
representadas tornam-se, por diversas vezes, verdadeiros símbolos para as teorizações
psicanalíticas. De um modo geral, esses trabalhos desconsideram o trabalho de elaboração
literária e priorizam exclusivamente os componentes simbólicos e propósitos didáticos
relacionados ao desenvolvimento moral e psicológico da criança.
Nessa linha, podemos destacar, por exemplo, o trabalho A linguagem esquecida
(1951), de Erich Fromm, no qual o pesquisador analisa o conto “Chapeuzinho Vermelho”
versão presente na coletânea dos Irmãos Grimm –, pontuando os significados presentes em
seus detalhes narrativos: “O ‘Chapeuzinho de veludo vermelho’ é um símbolo da
menstruação. A menininha de cujas aventuras nos falam tornou-se adulta e vê-se agora
defrontada com o problema do sexo” (FROMM, 1964, p.173). Para Fromm, a advertência
dada pela mãe para que a menina não saísse do caminho “é claramente um alerta contra o
perigo do sexo e de perder a virgindade” (Idem, p.173); a figura masculina é representada
“como um animal implacável e astucioso, e o ato sexual descrito como um ato canibalista em
que o macho devora a fêmea” (Idem, p.173).
Numa perspectiva similar, Bruno Bettelheim, em A psicanálise dos contos de fadas
(1976), desenvolve sua pesquisa visando a auxiliar pais e educadores a compreender a
importância do significado dos contos de fadas para as crianças na resolução de seus conflitos
existenciais. Sob essa abordagem, as narrativas tornam-se “terapêuticas” de modo que “o
paciente encontra as suas próprias soluções, por meio da contemplação daquilo que a história
parece sugerir acerca de si e de seus conflitos íntimos” (BETTELHEIM, 2007, p.36, grifo do
autor). Apesar de reconhecer que os contos de fadas são antes de tudo “uma obra de arte” e
que o prazer experimentado em sua leitura decorre de “suas qualidades literárias” (Idem,
16
p.20), Bettelheim desconsidera, em suas análises, o fato de que os contos, enquanto criações
literárias, constituem o produto de um autor individual inserido em um contexto histórico-
social determinado.
Ao dedicar-se à história “Chapeuzinho Vermelho”, o psicanalista faz críticas severas
a Perrault, afirmando que o conto, na versão do acadêmico francês, “perde muito de seu
atrativo por ser óbvio que o lobo não é um animal voraz mas sim uma metáfora, que deixa
pouco à imaginação do ouvinte” (BETTELHEIM, 2007, p.235). Para Bettelheim, Perrault
“ridiculariza” o valor do conto de fadas na medida em que detalha o seu significado. As
críticas intensificam-se ainda mais na análise de “A Bela Adormecida”:
[Perrault] introduz detalhes que prejudicam a personagem da história de
fadas, como ao dizer que, quando do seu despertar, o vestido da Bela
Adormecida foi considerado fora de moda: “ela estava vestida como minha
avó, e tinha um colarinho pontudo surgindo sobre uma gola alta; não parecia
nem um pouco menos bela e encantadora por isso”. Como se os heróis de
contos de fadas não vivessem num mundo em que a moda não muda
(BETTELHEIM, 2007, p.317, nota de rodapé).
Restringindo sua leitura apenas às qualidades “terapêuticas” da narrativa, o
psicanalista ignora o contexto em que a versão francesa surge e faz uma leitura equivocada
dos detalhes ali presentes. Conforme enfatiza e defende Jack Zipes, em Les contes de fées et
l’art de la subversion (1983), os contos escritos por Perrault estão intimamente ligados ao seu
período de surgimento o do absolutismo, de Luís XIV e à questão da construção de uma
civilité, – palavra fundamental para a compreensão dessas narrativas. Como a noção de
civilidade, naquele momento, está intrinsecamente associada à aparência, a moda torna-se um
quesito essencial para o francês mostrar-se civilizado. Dessa forma, a referência feita às
vestimentas assume, na narrativa, uma função muito além daquela de “prejudicar a
personagem”, de modo que o leitor da época certamente perceberia e se divertiria com as
sugestões irônicas que pontuam a relevada preocupação com a aparência manifestada pela alta
sociedade francesa, freqüentadora dos salões, que considerava uma “vergonha” apresentar-se
com uma roupa “fora de moda” (Cf. Mongrédien, s.d, p.73-92).
Para Bettelheim, a indicação feita ao vestido de Bela Adormecida
destrói aquele tempo mítico, alegórico e psicológico que é sugerido pelos
cem anos de sono ao transformá-lo em um tempo cronológico determinado.
Torna tudo frívolo [...]. Com tais detalhes, que tinham a intenção de divertir,
Perrault destruía a sensação de atemporalidade que é um elemento
importante na eficácia do conto” (BETTELHEIM, 2007, p.317).
17
A nosso ver, a afirmação de que a personagem se vestia “à moda da vovónão tem
por objetivo determinar cronologicamente a situação narrada, pois, ao contrário, a simples
referência aos reis e ao castelo a situaria num dado período histórico. Assim como a
indeterminação temporal constitui um propriedade essencial da forma dos contos de fadas, a
“antigüidade imaginada” também seria um elemento característico dessa modalidade,
conforme aponta Marina Warner, em Da fera à loira (1999, p.17). Essa observação, portanto,
pode ser considerada como uma forma de o narrador dar “uma piscadela” ao leitor/ouvinte e
destacar a passagem temporal da história. Talvez, essa leitura um tanto inadequada das
produções de Perrault, efetuada por Bettelheim, resulta do posicionamento assumido pelo
psicanalista, conforme se depreende da seguinte declaração:
O conto de fadas claramente não se refere ao mundo exterior, embora possa
começar de forma bastante realista e ter traços do cotidiano inscrito nele. [...]
o que interessa aos contos de fadas não é a informação útil sobre o mundo
exterior, mas os processos interiores que têm lugar no indivíduo
(BETTELHEIM, 2007, p.36).
Focando-se nos “processos interiores”, Bettelheim relega a um plano secundário as
questões sócio-históricas dos contos de Perrault, considerando a junção entre “racionalidade”
e “fantasia” um grande “prejuízo” para a sua obra. No entanto, não seria essa a magia da
coletânea que, por meio do maravilhoso, traz à tona questões de seu tempo, como vaidade,
moda, civilidade, miséria, desigualdade social etc.?
Na vertente dos estudos psicanalíticos, outros trabalhos abordam também os
símbolos presentes nessas histórias, como é o caso de Interpretação dos contos de fadas
(1981), A individuação nos contos de fadas (1984) e A sombra e o mal nos contos de fadas
(1985), de Marie-Louise Von Franz; Repressão sexual: essa (des)conhecida (1984), de
Marilena Chauí, especialmente o capítulo “Contos de fadas”; Contos de fadas vividos (1986),
de Hans Dieckmann e, mais recentemente, Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis
(2006), de Mario e Diana Corso.
2
No capítulo “Contos de Fadas”, Marilena Chauí propõe uma leitura que considere as
formas de representação da sexualidade presentes nessas histórias, analisando narrativas como
“Chapeuzinho Vermelho”, “João e Maria”, “A Gata Borralheira”, “A Branca de Neve”, “A
2
Somam-se a esses estudos, aquelas obras que destacam a importância dos contos no desenvolvimento cognitivo
das crianças: Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. (1992), de Marly Amarilha;
Literatura infantil: gostosuras e bobices (1995), de Fanny Abramovich; Contos para escrever-se: alfabetização
por meio dos contos de fadas (1997), de L. C. Going; O conto na psicopedagogia (1999), de Jean-Marie Gillig;
Os sete pecados capitais nos contos de fadas (2000), de S. Cashdan; Contos de fadas e realidade psíquica: a
importância da fantasia no desenvolvimento (2003), de Glória Radino.
18
Bela Adormecida”, “A Bela e a Fera”, “Pele-de-Burro” e o “Pequeno Polegar”. Depois de
desenvolver suas análises, Chauí reconhece ter desconsiderado o que seria a “alma dos contos
de fadas”:
Sobretudo, não fizemos qualquer menção à alma dos contos, isto é, que são
obras literárias. Nada dissemos de sua construção artística, de suas origens,
transformações reelaborações no decorrer do tempo [...], do modo como
participa, de várias fontes diferentes de pensamento [...] do significado da
ordem de aparição e desaparição de personagens ou da seqüência dos
eventos. Essa ausência da consideração artística é grave... (CHAUÍ, 1985,
p.49-50, grifo da autora).
Mediante esta negligência, surge-nos a seguinte inquietação: como seria possível
analisar os símbolos presentes nessas narrativas sem levar em consideração o trabalho estético
empreendido pelo autor e o seu contexto de produção? Ao selecionar os contos de fadas,
Marilena Chauí não indica a fonte da qual extrai as histórias contempladas por seu estudo,
ignorando o fato de que essas narrativas possuem diferentes versões e autorias.
Na publicação de Mario e Diana Corso, constatamos um equívoco freqüentemente
reproduzido nas publicações dos contos de fadas: a atribuição de histórias ou de versões que
não condizem com a produção original do autor referido. No prefácio A criança e seus
narradores”, Maria Rita Kehl reproduz uma versão de “Chapeuzinho Vermelho”, na qual a
menina come e bebe o sangue de sua avó, atribuindo-a ao acadêmico francês: “Para o nosso
espanto, este conto recolhido na França, por Charles Perrault, da tradição oral camponesa do
século XVII, termina bruscamente aqui” (KEHL, 2006, p.15). A explicação para esse engano
encontra-se na nota inserida ao término do conto, em que se indica a fonte da narrativa. Em
vez de constar a obra de Perrault Contes de ma mère l’oye ou alguma das diversas
traduções para o português, tem-se a referência à obra de Robert Darnton, intitulada O grande
massacre de gatos (1984). Neste livro, essa mesma história não é atribuída a Perrault e as
palavras de Darnton que antecedem a transcrição do conto contradizem as de Kehl: “uma
história que todos conhecem, embora em versão diferente da que reproduzimos a seguir, que é
o conto mais ou menos como era narrado em torno às lareiras, nas cabanas dos camponeses,
durante as longas noites de inverno, na França do século XVIII” (DARNTON, 1986, p.21).
A esse descuido da atribuição do conto da tradição oral a Perrault, soma-se a
afirmação de que “a infantilização das narrativas tradicionais, transformadas nos atuais
‘contos de fadas’, é concomitante à criação de um mundo próprio para a criança” (KEHL,
2006, p.16). Como pontuam Jack Zipes (1983) e Kátia Canton (1994), a compilação dos
contos de fadas corresponde a uma adaptação do conjunto de narrativas pertencentes à
19
tradição popular, realizada por um autor em um determinado contexto, e não a uma
infantilização das histórias que circulavam oralmente por entre os camponeses.
Com base nessas considerações, foi-nos possível verificar a tendência dos estudos
psicanalíticos para a omissão de informações referentes à produção e à história do gênero
contos de fadas, lacuna que, de um modo geral, induz o pesquisador a uma leitura equivocada
das narrativas. Sobre essa questão, Darnton (1986, p.23) manifesta sua oposição a esse tipo de
abordagem conferida às histórias de origem popular: “com uma misteriosa sensibilidade para
detalhes que não apareciam no conto original, o psicanalista [Erich Fromm] nos conduz para
um universo mental que nunca existiu ou, pelo menos, que não existia antes do advento da
psicanálise”. Para o historiador, tal postura deve-se a uma “cegueira diante da dimensão
histórica dos contos populares” (Idem, p.23). Assim como Darnton, diversos pesquisadores
dessa modalidade literária têm destacado a importância de se considerar o contexto de
surgimento dos contos de fadas para a compreensão dessas narrativas. Nessa linha,
encontram-se estudiosos como Marc Soriano (1968), Jack Zipes (1983), Catherine Magnien
(1990), Kátia Canton (1994), Marina Warner (1994), Jacques Prévot (2000), Tony Gheeraert
(2007). Somam-se a esses nomes, aqueles que ainda não contam com uma ampla repercussão
dos seus livros no Brasil, cujo acesso permanece restrito a leituras secundárias,
disponibilizadas em dissertações, artigos e resenhas veiculadas pela internet, tais como
Jacques Barchilon (1975), Marc Fumaroli (1980) e Raymonde Robert (1982/2002).
No âmbito nacional, o trabalho do francês Marc Soriano, Les contes de Perrault:
culture savante et traditions populaires (1968), embora ainda não tenha sido contemplado com
uma tradução para o português, destaca-se como uma das obras críticas de maior influência
sobre o estudo dos contos de Perrault. Em sua pesquisa, o autor busca “pistas” nas moires
e nos Parallèles para levantar uma hipótese sobre o enigma da autoria dos Contes de ma mère
l’oye: Charles Perrault ou Pierre Darmancour? Retomando e relacionando aspectos da vida
pessoal e acadêmica com a publicação dos oito contos em prosa, Soriano conclui que os
Contes são frutos de um trabalho em conjunto, no qual “é impossível negar o papel
desempenhado pelo pai, mas impossível também desprezar o do filho” (SORIANO, 1977,
p.364, tradução nossa).
3
Quanto aos contos atribuídos a Perrault, o pesquisador francês
procura mostrar que eles “são uma adaptação, ou seja, uma elaboração erudita dos contos de
3
“Impossible de nier le le du père, mais impossible non plus de méconnaître celui du fils” (SORIANO, 1977,
p.364).
20
transmissão oral” (Idem, p.XIV, tradução nossa).
4
Para tanto, o autor estabelece comparações
entre as versões da tradição oral e as de Perrault, apontando as semelhanças e as diferenças
existentes entre elas.
Seguindo as proposições de Soriano, o trabalho de Marisa B. T. Mendes, Em busca
dos contos perdidos (1999), retoma questões relacionadas à vida e à obra de Perrault. Para o
desenvolvimento de suas análises dos contos, a autora pauta-se também nas considerações
estruturalistas de Vladimir Propp. O estudo de Marisa Mendes consiste essencialmente em
localizar, dentre as 31 funções elencadas por Propp, “as mais significativas” desempenhadas
pelas personagens, com o objetivo de “desvendar” os “significados das funções femininas”
nos contos de Perrault.
No que compete à forma dos contos de fadas, verificamos que os estudos que se
debruçam sobre essa modalidade literária desenvolvem suas considerações sob uma óptica
estruturalista. Vladimir Propp, autor de Morfologia do conto maravilhoso (1928), obra
consagrada ao exame das relações entre as partes e o todo do conto popular e folclórico,
acredita ser executável o estudo das formas e o estabelecimento das leis que regem a sua
disposição com a mesma precisão da morfologia das formações orgânicas (Cf. PROPP, 1984,
p.23). Propp identifica nos contos russos elementos variáveis (nome e atributos das
personagens) e elementos constantes (suas funções), criando classificações para cada um
deles. Em As raízes históricas do conto maravilhoso (1946), Propp desenvolve um estudo
com o propósito de “elucidar as raízes históricas do conto maravilhoso enquanto gênero como
um todo” (BEZERRA, 1997, p.XIV). Para tanto, Propp considera essencial a junção da
pesquisa formal com a pesquisa histórica, pois “compreende que a morfologia é estéril
quando desvinculada dos dados etnográficos” (Idem, p.XIV). Assim, considerando a pesquisa
desenvolvida em Morfologia do conto maravilhoso, Propp busca na
etnografia as formas mais arcaicas da vida material e da organização social
dos povos, mitos, concepções religiosas, práticas mágicas, rituais e outras
formas de pensamento primitivo anteriores ao conto, elementos que lhes
permitem rastrear a gênese e explicar o próprio conto maravilhoso
(BEZERRA, 1997, p.XIV).
Nessa perspectiva estruturalista, André Jolles, em Formas Simples (1930), procura
explicar a estrutura dos contos de fadas valendo-se da contraposição entre “forma artística”,
de configuração “sólida, peculiar e única”, e “forma simples”, caracterizada pela “mobilidade,
generalidade e pluralidade”. A primeira encontra sua “realização definitiva mediante a ação
4
“Les contes attrib à Perrault sont une adaptation, c’est-à-dire une élaboration savante de contes de voie
orale” (SORIANO, 1977, p.364).
21
do poeta”, enquanto a segunda forma apresenta uma “renovação constante” de modo que,
conforme se costuma dizer, “qualquer um pode contar um conto” (Cf. JOLLES, 1976, p.194-
5).
Outra pesquisa que toma um dos contos de Perrault como objeto de estudo é o de
Norma Discini, intitulado Intertextualidade e conto maravilhoso (2004). Neste trabalho, a
autora vale-se das formulações teóricas de Bakhtin para realizar a análise das relações
dialógicas existentes entre o conto Le Petit Chaperon Rouge” e suas variantes intertextuais,
“Chapeuzinho e o Lobo torturador”, de Alberto Berquó; “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico
Buarque; “Chapeuzinho Vermelho”, dos Irmãos Grimm; e “Fita Verde no cabelo (nova velha
estória)”, de João Guimarães Rosa. Para Discini, essa relação dialógica
redimensiona o texto-base, ampliando o alcance da narrativa e
universalizando os temas e as figuras. Lê-se esse discurso sobrepondo ao
prazer do reconhecimento do texto-base o prazer do desvendamento da
metáfora e do símbolo, bem como o arsenal prazer do entendimento da
recriação do conteúdo pela expressão (DISCINI, 2004, p.257).
Constatamos, ainda, referências a Perrault e à sua obra nas histórias da literatura
infanto-juvenil brasileira, que trançam um breve perfil do acadêmico e de sua coletânea:
História da literatura infantil brasileira (1968), de Leonardo Arroyo; Panorama histórico da
literatura infantil/juvenil (1983) e Literatura infantil: história teoria análise (1987), de
Nelly Novaes Coelho; Literatura infantil brasileira: história & historias (1990), de Marisa
Lajolo e Regina Zilberman. No que concerne exclusivamente aos contos de fadas, Coelho
publica dois estudos: O conto de fadas (1986) e O conto de fadas: símbolos, mitos e
arquétipos (2003).
nas histórias da literatura francesa,
5
verificamos certa superficialidade na
apreciação do autor francês. A principal característica atribuída a Perrault é a de um
acadêmico “moderne” que se opunha aos ideais dos “anciens”, na Querelle des anciens et des
modernes, ocorrida na França, durante o reinado de Luís XIV. Todavia, essas antologias não
salientam a importância desse evento na vida literária francesa, restringindo-se, na maioria
das vezes, à citação dos nomes dos autores e das obras envolvidas nessa discussão acadêmica.
Essa abordagem generalizante permite constatar que Perrault não é inserido pela crítica no
5
Foram consultadas as seguintes antologias: Histoire de la littérature française: depuis le XVIIème. siècle
jusqu’à nos jours (1913), de Émile Faguet; Dix siécles de littérature française: du Moyen Âge au XVIIIème.
siècle (1984), de Pierre Deshusses; XVIIème siècle: les grands auteurs français du programme: anthologie et
histoire littéraire, (1985), de A. Lagarde e L. Michard; Histoire de la littérature française (1949) e Manuel des
études littéraires françaises Moyen Âge XVI XVIIème. siècles (1954), de Phillipe Van Tieghem; Histoire de la
littérature française: de lémaque à Candide (1958), de A. Chérel; Histoire de la littérature française: les
écrivains classiques (1960), H.Champris; Histoire de la littérature française (1992), de Xavier Darcos.
22
“rol dos grandes escritores” do século XVII, quando muito, seu nome está associado ao do
escritor Boileau
6
, em considerações que versam sobre a Querela.
No que se refere a essa disputa acadêmica, poucos títulos foram localizados,
destacando-se o estudo La vie littéraire au XVIIème siècle (1956), de Georges Mongrédien,
em que o autor procura explicar a estética defendida pelos “anciens”, liderados por Boileau, e
os motivos que conduziram à Querela, movimento que dividiu a Academia Francesa em
“anciens” e “modernes”. Por meio do projeto “Google Recherche de Livres”
(http://books.google.com), idealizado pelo site de busca Google, a fim de viabilizar o contato
com o “patrimônio literário mundial”, foi-nos possível acessar o trabalho de Hyppolyte
Rigaud, intitulado Histoire de la querelle des anciens et des modernes (1856), no qual o autor
analisa o papel desempenhado por Perrault nessa disputa.
Com relação à bibliografia acima elencada, notamos que, apesar da ampla divulgação
dos contos de Perrault no Brasil, não muitos estudos críticos que se debrucem
especificamente sobre sua obra. Na maior parte, trata-se de pesquisas estrangeiras, das quais
poucas contam com uma tradução para a língua portuguesa, restringindo o alcance desses
trabalhos no meio brasileiro, uma vez que a leitura depende da competência em outras
línguas.
Tendo em vista, portanto, tal lacuna, o trabalho sobre Perrault justifica-se,
essencialmente, pela ausência identificada de um tratamento consistente sobre a dimensão
literária dos contos de fadas. Esse aspecto deveria, a nosso ver, ocupar uma posição central
nos estudos, que essas narrativas são, antes de tudo, criação ficcional produto resultante
da necessidade humana de ficção e fantasia (Cf. CANDIDO, 1995, p.235-63).
No texto “O direito à literatura”, publicado em Vários escritos (1970), Antonio
Candido questiona se a arte e a literatura também não entrariam na lista de bens que não se
pode suprimir: “São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a
instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência a opressão
etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura”
(CANDIDO, 1995, p.241). Após constatar que a literatura
7
aparece como uma manifestação
6
Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711) é autor do livro L’art poétique (1674) e definidor da doutrina chamada
clássica. Em seu poema didático-artístico “pretende divulgar idéias bem conhecidas dos doutos: a arte literária é
uma imitação da natureza, sendo pois a verdade o seu ideal o homem na sua verdade eterna, a arte não pode
prescindir da razão” (BERRETTINI, 1979, p.08, grifos da autora).
7
Para essa discussão, Antonio Candido define literatura de modo mais amplo, como “todas as criações de toque
poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que
chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes
civilizações” (CANDIDO, 1995, p.242).
23
universal e que “não homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar
em contato com alguma espécie de fabulação” (Idem, p.242), Candido conclui que a
satisfação dessa necessidade constitui um direito inalienável. A literatura passa a ser
considerada, portanto, como um fator indispensável de humanização. Essa função dada à
literatura estaria, por conseqüência, ligado à complexidade de sua natureza, da qual distingue
três faces:
(1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado;
(2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do
mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento,
inclusive como incorporação difusa e inconsciente (CANDIDO, 1995,
p.244).
Antonio Candido chama a atenção para o fato de pensarmos comumente que a
literatura atua em nós, leitores, devido à terceira face, como se ela fosse um tipo de instrução;
no entanto, Candido declara que a satisfação produzida ocorre “devido à atuação simultânea
dos três aspectos, embora costumemos pensar menos no primeiro, que corresponde à maneira
pela qual a mensagem é construída; mas esta maneira é crucial, porque é o que decide se uma
comunicação é literária ou não” (CANDIDO, 1995, p.245, grifos do autor). O crítico enfatiza:
“Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é
grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção (Idem, p.245, grifos do
autor).
A essas palavras de Candido, somam-se aquelas de Umberto Eco, em Obra aberta
(1968), que enfatizam, igualmente, a primazia do modo de formar em relação aos demais
elementos da obra literária:
[…] o discurso primeiro da arte, ela o faz através do modo de formar; a
primeira afirmação que a arte faz do mundo e do homem aquela que pode
fazer por direito e a única de significado real, ela a faz dispondo suas formas
de uma maneira determinada, e não pronunciando, através delas, um
conjunto de juízos a respeito de determinado assunto (ECO, 1971, p.255-6).
Com base nesses pressupostos teóricos, podemos dizer que os contos de fadas
apresentam-se como uma modalidade literária que atinge seus efeitos por meio do trabalho
com a linguagem e por meio da disposição dos seus elementos estruturais, firmando-se,
portanto, a exigência de uma análise crítico-literária especializada, capaz de apreciar a
organização de suas estruturas formativas, a abertura das suas operações discursivas e o
alcance de seu potencial estético.
Esse estudo crítico dos contos de Perrault servirá de base para a análise do modo
como as personagens dessa tradição literária são incorporadas ao universo ficcional do Sítio
24
do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Dos trabalhos dedicados ao exame da relação da
obra lobatiana com outras manifestações do “arquivo literário”,
8
podemos destacar,
inicialmente, as referências às visitas de personagens estrangeiras no Picapau Amarelo
mencionadas por Edgar Cavalheiro, em Monteiro Lobato: vida e obra (1955): “Como não
sonhar com uma temporada no ‘Picapau Amarelo’, principalmente quando havia a chance de
lá encontrar todos os personagens famosos das fábulas e histórias?...” (CAVALHEIRO, 1955,
p.599). Na seqüência, cumpre mencionar o trabalho de Bárbara Vasconcelos de Carvalho
(1982), que aponta para o fato de as personagens serem classificadas em “personagens
permanentes, as estáveis, internas; e personagens ocasionais, as instáveis ou externas”
(CARVALHO, 1984, p.136, grifo do autor). Ou seja, a primeira categoria faz referência às
figuras ficcionais criadas pelo próprio Lobato – Narizinho, Pedrinho, Emília etc. –, e a
segunda abarca aquelas que provêm de outras obras literárias.
No livro Atualidade de Monteiro Lobato (1983), organizado por Regina Zilberman,
alguns estudiosos lobatianos também destacam, em seus artigos, esse processo de inserção de
personagens estrangeiras no Sítio de Dona Benta. Marisa Lajolo, em A modernidade em
Lobato” declara:
[...] pode-se ver, no intercâmbio do sítio com outros espaços mágicos (por
exemplo, o mundo grego de Hércules ou Péricles, o mundo de fadas da
mitologia européia) um procedimento muito próximo da colagem; da
mudança das personagens do mundo encantado para o sítio de dona Benta
[...] tudo isso não torna o sítio de Lobato vizinho daquele sertão que, com
Guimarães Rosa, vai ser o mundo? (LAJOLO, 1983, p.48).
Em “Lobato e os Modernistas”, Eliana Yunes afirma que “a apropriação de certas
passagens, históricas ou ficcionais, para sua reescritura, aproxima-o do antropofágico sem
manifesto” (YUNES, 1983, p.54). De modo similar, Ana Mariza R. Filipouski, em “Monteiro
Lobato e a Literatura Infantil Contemporânea”, considera que “os contos de fadas, distantes
da realidade infantil, cuja estrutura desgastada foi [...] questionada pelas próprias personagens
do sítio, renascem com outra roupagem e se tornam mais próximos, emancipadores”
(FILIPOUSKI, 1983, p.105). Ainda nessa vertente, Glória Maria F. Pondé, em “A herança de
Lobato”, destaca que, “na sua literatura infantil, Monteiro Lobato procura dar ambiência aos
contos de fadas, através do sítio do Pica-pau Amarelo...” (PONDÉ, 1983, p.113).
Em outra obra que aborda essa relação de Lobato com a tradição literária, Ligia
Cademartori Magalhães, no capítulo “Literatura infantil brasileira em formação”, publicado
no livro Literatura infantil: autoritarismo e emancipação (1984), assinala o desejo de Lobato
8
No último capítulo dessa dissertação, trataremos mais especificamente sobre esse aspecto.
25
de criar uma literatura onde as crianças pudessem morar e demonstra que, para tanto, o
escritor “reconhecia a necessidade do gênero sofrer modificações e expressa essa intenção
na sua primeira obra. Introduzindo na trama personagens do conto infantil tradicional, como
Dona Carochinha e Pequeno Polegar, o autor denuncia o desgaste das velhas fórmulas”
(CADEMARTORI, 1987, p.136).
Em “Monteiro Lobato, o inovador”, capítulo da obra De Lobato a Bojunga: as
reinações renovadas (1987), Laura Sandroni, após apresentar as personagens do Sítio do
Picapau Amarelo, declara: “É com esse material básico, acrescido de inúmeros outros
personagens, coadjuvantes variáveis, que Monteiro Lobato cria o seu universo ficcional...”
(SANDRONI, 1997, p.51). Sandroni ainda acrescenta: “Os personagens secundários são,
muitas vezes, tomados às histórias clássicas da tradição européia, do folclore brasileiro e até
da incipiente indústria cinematográfica...” (SANDRONI, 1997, p.55).
Em Personagens da literatura infanto-juvenil (1990), Sonia Salomão Khéde salienta
que “através de processos lúdicos e alegóricos está a relação intratextual e intertextual que os
personagens estabelecem entre si e entre personagens de outros livros, inaugurando um
diálogo rico pela discussão dos valores e das formas de viver” (KHÉDE, 1990, p.55).
Desse conjunto de estudos, merece destaque também a obra Monteiro Lobato: um
brasileiro sob medida (2000), na qual Lajolo também faz menção à presença de personagens
de outras obras na produção lobatiana:
Monteiro Lobato consegue extraordinários efeitos de sentido ao fazer
contracenar numB cenário de jabuticabeiras, pintos-suras e ex-escravos
pitando cachimbo tanto personagens fundadores da literatura infantil
ocidental como Cinderela, Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho, como
personagens da literatura infantil estrangeira contemporânea a sua como
Alice e Peter Pan (LAJOLO, 2000, p.62).
Por meio desse conjunto de citações dos críticos e estudiosos da literatura infantil,
percebemos que a inserção das personagens estrangeiras, dentre outros aspectos, é indicada
como uma característica moderna da produção ficcional de Monteiro Lobato. No entanto, não
nesses estudos uma verticalização no que compete a esse processo de construção literária
adotado por Lobato, analisando-se a questão apenas superficialmente.
Em segundo lugar, cumpre referir os trabalhos acadêmicos dedicados ao estudo dessa
relação da obra de Monteiro Lobato com outras produções literárias. Destacamos,
inicialmente, a pesquisa desenvolvida na UNESP Universidade Estadual Paulista Campus
de Assis por Loide Nascimento de Souza, sob a orientação do prof. Benedito Antunes,
intitulada O processo estético de reescritura das fábulas por Monteiro Lobato (2004). Nesse
26
trabalho, Souza aborda a história do gênero fábula e suas propriedades essenciais, dedicando-
se ao estudo do estilo de La Fontaine, que, de acordo com a pesquisadora, figura como a
principal referência para a criação do universo ficcional lobatiano. Após essa abordagem,
Loide de Souza passa ao estudo da obra Fábulas, de Monteiro Lobato, e conclui: “Quando
Monteiro Lobato estende para Dona Benta e Emília a possibilidade de criação e recriação de
fábulas, aponta para a continuidade criativa do gênero” (SOUZA, 2004, p.266).
Somam-se a esse trabalho duas dissertações de mestrado defendidas na UNICAMP –
Universidade Estadual de Campinas –, sob a orientação de Marisa Philbert Lajolo: Um inglês
no Sítio de Dona Benta: estudo da apropriação de Peter Pan na obra infantil de Monteiro
Lobato, de Adriana Silene Vieira (1998), e As terras novas do Sítio: uma leitura da obra O
Picapau Amarelo (1939), de Mariana Baldo de Gênova (2006). Ressaltamos que a escolha
dessas produções científicas deve-se ao fato de elas tratarem especificamente da presença de
personagens (ou obras) estrangeiras na literatura infantil de Lobato.
O trabalho de Vieira propõe um estudo da presença da obra Peter Pan, de James
Barrie nos textos de Monteiro Lobato, mais especificamente em Peter Pan (1930), Memórias
da Emília (1936) e O Picapau Amarelo (1939). Vieira demonstra, ao longo de sua
dissertação, como se executa o processo de apropriação da obra de Barrie e a adaptação
realizada por Lobato, que torna Dona Benta narradora da história, dando-lhe liberdade para
trabalhar com os elementos do texto original, a fim de adequá-los ao interesse de seus
ouvintes. Vieira afirma que Lobato reconta a história de Peter Pan quando o traz para o seu
mundo, pois reutiliza de motivos, de personagens e do próprio espaço da história inglesa.
Dessa forma, o ‘mundolobatiano expande-se, cabendo dentro dele vários outros mundos, de
várias outras épocas” (VIEIRA, 1998, p.112).
O estudo de Mariana Baldo de Gênova propõe uma leitura da obra O Picapau
Amarelo (1939) com base na mudança de personagens estrangeiras para o Sítio de Dona
Benta. O objetivo principal da dissertação é atestar a opção de Monteiro Lobato por uma
visão crítica e pessimista na representação da sociedade moderna e urbanizada de seu tempo,
encaminhando-se, portanto, na contramão da fortuna crítica do autor que ressalta, sobretudo, a
fantasia presente no livro: “Além de se observar o engajamento do escritor em diferentes
momentos do texto, sua visão em nada se assemelha ao otimismo. O desânimo diante da
sociedade moderna revelado na leitura pode caracterizar um início de desapontamento com o
que, em A Chave do Tamanho (1942), nos depararíamos” (GÊNOVA, 2006, p.108).
27
Cabe destacar ainda, a dissertação de Mestrado, Peter Pan para as crianças
brasileiras: a adaptação de Monteiro Lobato para a obra de James Barrie (2001), de Gabriela
Hardtke Böhm, desenvolvida sob a orientação de Vera Teixeira de Aguiar, pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Neste trabalho, Böhm dedica-se ao estudo da
adaptação realizada por Lobato da obra do escritor escocês, demonstrando ser essa técnica
uma forma do escritor brasileiro não apenas “importar” e “traduzir histórias de crianças de
outras terras”, mas sim de fazer suas personagens viajar por diversas “Terras do Nunca de
crianças de todo o mundo”.
Os estudos acadêmicos mencionados os de Souza, Vieira, Gênova
9
e Böhm
10
apesar de tratarem de modo mais específico e detalhado da presença de personagens e obras
da tradição literária nos textos lobatianos, o abarcam todas as inserções realizadas por
Lobato em seu universo ficcional, permanecendo, assim, lacunas a serem preenchidas. Dessa
maneira, nossa pesquisa a respeito da presença das personagens dos contos de fadas de
Charles Perrault na produção literária infantil de Monteiro Lobato vem somar-se a esses
estudos existentes, a fim de contribuir para uma melhor compreensão acerca do seu fazer
literário.
Com o propósito de suprir a carência de estudos da relação entre Perrault e Lobato,
esta dissertação pretende executar o seguinte percurso: analisar, num primeiro momento, os
contos de fadas de Perrault e seu contexto de produção, priorizando a dimensão literária das
narrativas, e examinar, na seqüência, o modo como as personagens desses contos são
incorporadas por Lobato em sua ficção infantil. A partir dos resultados desse estudo
comparativo, pretendemos traçar, na parte final do trabalho, uma análise teórica a respeito do
procedimento criativo adotado por Lobato no processo de atualização e reinvenção dessa
tradição literária.
Convém ressaltar que essa proposta comparativa contrapõe-se ao tradicional “estudo
das fontes ou das influências” método que as tendências crítico-teóricas atuais têm
considerado ultrapassado para o estudo das relações entre obras e autores. Conforme salienta
Silviano Santiago, em Uma literatura nos trópicos (1978), esse discurso crítico
9
Parte da exposição apresentada pelas autoras em suas respectivas dissertações de Mestrado é retomada no livro
Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil (2008), no qual publicam os artigos O picapau amarelo: o espaço
ideal e a obra-prima”, de Mariana de Gênova; “Peter Pan lido por Dona Benta”, de Adriana Silene Vieira e
“Monteiro Lobato e o processo de reescritura das fábulas”, de Loide Nascimento de Souza.
10
Parte de sua dissertação de Mestrado é apresentada no artigo Peter Pan para as crianças brasileiras: a
adaptação de Monteiro Lobato para a obra de James Barrie”, no livro Leitura e literatura infanto-juvenil
memória de Gramado (2004), organizado por João Luís Cardoso Tápias Ceccantini.
28
[...] apenas sublinha a falta de imaginação de artistas que são
obrigados, por falta de uma tradição autóctone, a se apropriar de modelos
colocados em circulação pela metrópole.
[...] Tal discurso reduz a criação dos artistas latino-americanos à
condição de obra parasita, uma obra que se nutre de uma outra sem nunca a
lhe acrescentar algo de próprio; uma obra cuja vida é limitada e precária,
aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte, do chefe-
de-escola (SANTIAGO, 1978, p.19-20).
Em sintonia às proposições de Santiago, este trabalho investe na compreensão do
modo como Lobato se “posiciona” diante do “arquivo literário” e o modo como esse
“posicionamento” instaura a intertextualidade na criação do seu universo ficcional. Para o
desenvolvimento desta proposta, organizamos a nossa pesquisa em três capítulos. No primeiro
capítulo, realizamos, inicialmente, uma contextualização do período de produção da obra
Contes de ma mère l’oye e analisamos, na seqüência, cinco narrativas publicadas nesse livro,
com vistas a determinar o “posicionamento” e a concepção literária de Charles Perrault. A
seleção de cinco narrativas “La Barbe Bleue”, “Le Petit Poucet”, Le Maître Chat ou Le
Chat de Botté’, “Le Petit Chaperon Rouge” e “Cendrillon ou La Petite Pantoufle de Verre”
justifica-se por serem as personagens dessas histórias que Monteiro Lobato retoma em seu
universo ficcional infantil.
Depois desse percurso analítico pelo universo maravilhoso dos contos de fadas de
Perrault, passamos, no segundo capítulo, à análise do processo de formação da literatura
infantil brasileira, verificando suas principais tendências, obras e autores. Tendo por base esse
exame, refletimos sobre a postura de Monteiro Lobato em relação à tradição literária,
discutindo suas idéias, seu projeto literário e as inovações operadas pelo escritor no gênero.
Analisamos, ainda, as adaptações e/ou transformações realizadas por Lobato ao inserir as
personagens de Perrault em sua produção literária.
Com base nas constatações obtidas com as análises das obras de Lobato,
empreendemos, no terceiro capítulo, uma discussão teórica sobre o procedimento criativo
adotado pelo escritor brasileiro na elaboração das histórias do Sítio do Picapau Amarelo. Esse
modo de sistematização do trabalho justifica-se pelo fato de que, em nosso entender, é a obra
literária que deve encaminhar a reflexão teórica, em vez de submeter-se o texto literário a
teorias fechadas que reduzem o seu alcance estético.
Para o desenvolvimento dessa etapa da pesquisa, priorizamos, essencialmente, as
cartas trocadas com Godofredo Rangel
11
e os artigos de Lobato com o objetivo de tentar
11
A respeito das citações das obras de Monteiro Lobato, optamos pela transcrição literal sem realizar qualquer
atualização ortográfica ou qualquer correção gramatical. Essa decisão deve-se ao fato de o uso da língua ser um
29
compreender o pensamento e a postura do escritor brasileiro a respeito da elaboração de sua
própria literatura. Da leitura desse material, merece destaque a ocorrência de expressões tais
como “saber combinar”, “assimilar processos” e “coar”, que indicam uma concepção literária
pautada no exercício de tornar próprio o alheio. Estabelecendo uma continuidade crítica da
tradição dos contos de fadas, Lobato promove um reaproveitamento criativo de três elementos
essenciais desse gênero literário: o recurso maravilhoso, a reinvenção do modelo de figura
feérica e a prática dos serões.
Finalmente, o estudo dessa combinação entre o Sítio do Picapau Amarelo e os
Contos da Mamãe Ganso pretende demonstrar a interação dialética que se evidencia nessa
conciliação entre as personagens clássicas e as brasileiras, permitindo entrever um processo
simultâneo de nacionalização dos contos de fadas de Perrault e de universalização da criação
ficcional de Lobato.
fator caracterizador da postura do Lobato que não se importava com as intransigências lingüísticas: “Se por
‘saber português’ entendes conhecer por miúdo os bastidores da Gramatica e a intrigalhada toda dos pronomes
que vem antes ou depois, concordo com o que dizes na carta: um burro arreado de regras será eminente. Mas
para mim ‘saber português’ é outra coisa: é ter aquele doigté do Camilo, ou a magnificente allure processional
de Ramalho, ou a sublime gagueira do Machado de Assis. Aqui em S. Paulo o brontosauro da gramática chama-
se Alvaro Guerra, um homem que anda pela rua derrubando regrinhas como os fumantes derrubam pontas de
cigarro. As regras desse homem tremendo, quando vêm ao bico da pena dos escritores, matam, como unhas
matam pulgas, tudo o que é beleza e novidade de expressão tudo que é lindo mas a Gramatica não quer
(LOBATO, 1964, v.12, p.168-9).
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31
uando falamos em contos de fadas, vem-nos à mente os momentos em que
ouvíamos dos mais velhos ou se líamos nos livros ilustrados as histórias que,
imediatamente, transportam-nos para um mundo de seres encantados: reis, rainhas, príncipes,
princesas, fadas, varinha de condão, madrastas, lobos, bruxas, gigantes, ogros, dentre outras
figuram que fazem parte desse Reino.
Essas histórias são, na maior parte das vezes, o primeiro contato com a literatura,
saciando a necessidade intrínseca que o homem possui de fantasia. Como registra a escritora
Cora Coralina, essas histórias penetram a imaginação de tal forma que passamos a vivê-las,
sentindo-nos um pouco de cada personagem. Como se esquecer de Chapeuzinho Vermelho,
ou de Cinderela com seus sapatinhos de vidro, ou da Bela Adormecida em seu sono de cem
anos, ou, ainda, do Pequeno Polegar com suas botas de sete léguas?
Universalmente conhecidas, essas narrativas passam de geração a geração e, ainda
hoje, marcam a infância de muitas crianças. Entretanto, por diversos motivos, esses contos
circulam, muitas vezes, como se não possuíssem autores, tendo seu contexto de produção
ignorado. Em ocasiões piores, deparamo-nos com coleções que, apesar de darem os créditos
ao autor, deturpam ou alteram os textos originais e, quando o, misturam as diferentes
versões.
Considerando a importância dessa forma literária, sobretudo no âmbito da literatura
infanto-juvenil, no presente capítulo, dedicamo-nos ao estudo de uma das obras que dá origem
e abre o caminho para a voga de uma modalidade literária no século XVII: Histoires ou
contes du temps passé avec des moralités Contes de ma mère l’oye (1697), do escritor
Charles Perrault. Inicialmente, trataremos do contexto de surgimento dessa coletânea de oito
contos para, em seguida, dedicarmo-nos à análise de cinco dessas narrativas, verificando o
processo de construção de cada personagem. A escolha por esses cinco contos deve-se,
especificamente, à retomada dessas figuras na obra infantil de Monteiro Lobato.
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O ato de contar e ouvir histórias envolve práticas desenvolvidas pelos homens desde
os primórdios da civilização que se estendem até nossos dias. Durante muitos anos, essa
tradição serviu como veículo de transmissão de ensinamentos, de concepções de mundo, de
princípios religiosos, morais e éticos. Esses valores eram repassados de geração a geração, por
meio de cantos, de rituais e de histórias que circulavam oralmente, divertindo os adultos e,
algumas vezes, assustando as crianças.
Na França do século XVII, a prática de narrar histórias era muito cultivada entre as
classes populares. Para o historiador Robert Darnton (1986), os contos populares dizem algo
sobre o universo mental dos camponeses, pois essas histórias baseavam-se na realidade
cotidiana dessa camada social, marcada por períodos de fome, miséria e pestes. Numa
proposição similar à de Darnton, Jack Zipes declara que essas narrativas
expõe[m] as duras realidades do poder político, sem disfarçar a violência e a
brutalidade da vida cotidiana: crianças famintas, estupros, punições
corporais, explorações abusivas... tais eram as condições de vida que são as
origens do conto tradicional, condições tão opressivas que obrigavam quase
que necessariamente a uma abstração simbólica (ZIPES, 1986, p.18-9,
tradução nossa
).
12
Pertencentes a uma tradição oral, essas histórias se propagavam entre as pessoas,
sofriam alterações e adquiriam significados diferentes de acordo com os contadores e com o
contexto em que eram narradas, servindo tanto para distrair quanto para expressar os anseios
das classes sociais menos favorecidas. Por meio de histórias fantasiosas, os camponeses
podiam triunfar sobre os senhores das aldeias, transformar-se em belos príncipes, comer
abundantemente e realizar ações que, na vida real, eram impráticáveis. Sobre tal aspecto, Jack
Zipes afirma que
Os contos populares foram os primeiros atos simbólicos pelos quais eles [os
camponeses] anunciaram suas aspirações, consideraram e projetaram a
possibilidade mágica de um conjunto de meios imaginários que lhes
permitisse desejar que qualquer um pudesse se tornar um cavaleiro com uma
12
“ils présentaient aussi les dures réalités du pouvoir politique, sans travestir la violence et la brutalité de la vie
cotidienne: enfants affamés, viols, punitions corporelles, exploitation abusive... telles étaient les conditions de
vie qui sont aux racines du conte traditionnel, conditions si accablantes qu’elles obligeaient presque
nécessairement à une abstration symbolique” (ZIPES, 1986, p.18-9).
33
elegante armadura ou uma deliciosa princesa (ZIPES, 1986, p.18, tradução
nossa).
13
Fortemente ligado ao universo campesino, esses contos apresentam as preocupações
decorrentes dos sistemas feudais, patriarcais e monárquicos, característicos dessa sociedade
pré-capitalista. Ainda nas palavras de Zipes,
O mundo do conto tradicional é abundantemente povoado por reis, rainhas,
príncipes, princesas, soldados, camponeses, animais, seres sobrenaturais
(bruxas, fadas, elfos, anões, duendes, gigantes), enquanto nunca mostra em
cena membros da burguesia ou da Igreja. Não se encontram também,
sinais de industrialização, descrições precisas sobre o comércio ou a vida na
cidade (ZIPES, 1986, p.18, tradução nossa).
14
É desse conjunto de narrativas tradicionais e veiculadas oralmente que surgem os
contos de fadas, representando o “advento de uma forma literária que se apropria de
elementos populares para apresentar valores e comportamentos das classes aristocráticas e
burguesas” (CANTON, 1994, p.30).
A moda dos contos de fadas cria, no reinado de Luís XIV, um verdadeiro movimento
literário, concretizado principalmente por meio da participação de mulheres aristocráticas. Em
1696, Marie-Jeanne Lhéritier (1664-1734) publica L’adroite princesse ou les aventures de
finette, logo após o aparecimento da versão em prosa de Belle au bois dormant, de seu tio
Charles Perrault (1628-1703), no jornal Le Mercure Galant. Em 1697, Charles Perrault
publica Contes de ma re l’oye. Neste mesmo ano, Mademoiselle Catherine Bernard (1663-
1712?) lança seu romance Inès de Cordoue, contendo ao final dois contos de fadas. Madame
Marie-Catherine D’Aulnoy (1650/1-1705), que teve participação significativa nesse período
de voga dos contos de fadas, publica Histoires de fées, em dois volumes e, no ano seguinte,
Contes Nouveaux ou les fées à la mode, em quatro volumes. Ainda em 1698, surgem: Histoire
de Mélusine, sob a autoria de Paul-François Nodot (1650-1710), Contes moins contes que les
autres, de Jean de Prechac (1676-?), e Contes de fées, de Madame Henriette-Julie de Murat
(1670-1716), além de outras coleções anônimas posteriores.
No início do século XVIII, outros escritores seguiram a moda dos contos de fadas e,
de modo semelhante a Perrault e a Mme D’Aulnoy, cooperaram para a manutenção dessa
13
“Les contes populaires furent les premiers actes symboliques par lesquels ils énocèrent leurs aspirations,
envisagèrent et projetèrent la possibilité magique d’un ensemble de moyens imaginaires leur permettant
d’espérer que n’importe qui pourrait devenir un chevalier à la brillante armure ou une délicieuse princesse
(ZIPES, 1986, p.18).
14
“Le monde du conte traditionel est abondamment peuplé de rois, reines, princes, princesses, soldats, paysans,
animaux et créatures surnaturelles (sorcières, fées, elfes, nains, lutins, géants), alors qu’il ne met jamais en scène
des membres de la bourgeoisie ou de l’Eglise. On n’y trouve pas non plus de machines, de signes
d’industrialisation, de descriptions précises sur le commerce ou la vie dans la cité” (ZIPES, 1986, p.18).
34
forma literária na corte e nos salões franceses. Destacam-se, dentre outros, Gabrielle-Suzanne
de Villeneuve (1695-1755), com sua obra Contes Marins ou la jeune américaine (1740-3),
Jacques Cazotte (1719-1792), com Mille et une fadaises (1742), e Jeanne-Marie Leprince de
Beaumont (1711-1780), com Magasin des enfants (1757). Em 1785, a voga dessa modalidade
literária atinge seu apogeu com a coleção de Charles-Joseph de Mayer (1751-1825), Le
cabinet des fées ou collection choisie de contes de fées et autres contes merveilleux, editada
em quarenta e um volumes, reunindo contos de fadas publicados nos séculos XVII e XVIII. A
esse respeito, André Jolles afirma que
Pouco depois da publicação dos Contos de Perrault, narrativas do mesmo
gênero inundaram a França e o resto da Europa. Podemos dizer sem temor
que o gênero vai dominar toda a literatura do começo do século XVIII e
substituir, por um lado, a grande narrativa do século XVII, o romance; e, por
outro lado, tudo o que ainda restava da novela toscana. A quantidade dessas
narrativas é incalculável e, entre 1704 e 1708, a narrativa oriental veio
juntar-se-lhes com a primeira tradução de Mil e Uma Noites por Galland,
embora toda a literatura setecentista esteja salpicada de narrativas desse tipo
(JOLLES, 1976, p.191).
A publicação desses contos com temas oriundos da tradição popular ocorre num
momento em que a estética literária vigente, posteriormente denominada de classicismo,
15
defendia “um conceito de literatura que se alicerça na Antigüidade greco-latina”
(GONÇALVES, 1999, p.116). De acordo com João Alexandre Barbosa, um dos traços
fundamentais na formação do classicismo seria
a íntima associação, provocada pelas redescobertas e interpretações dos
clássicos, entre poesia, literatura e poética. A partir de então, o poeta está,
por assim dizer, condenado a ver sempre o seu trabalho individual à sombra
da tradição: entre a expressão pessoal e o trabalho de arte, instala-se, como
elemento de emulação e limite da personalidade, o passado, aquilo que é
anterior (BARBOSA, 1999, p.13).
Com base nos conceitos de Aristóteles (Poética), Horácio (Arte poética) e Longino
(Tratado do sublime), “os classicistas franceses codificaram regras que se tornaram
verdadeiro sistema, atuando como modelo para os poetas e escritores em geral” (BARBOSA,
1999, p.129, grifo do autor). De 1660 a 1700, surgem diversas reflexões sobre a doutrina
clássica, tais como: Nouvelles réflexions sur l’Art Poétique (P.Lamy); Réfletions sur
l’éloquence et la Poétique (P. Rapin); De l’origine des romans (Huet); Traité du poème
épique (Marolles) (Cf. MONGRÉDIEN, 1956).
15
De acordo com Antoine Compagnon, em O demônio da teoria, “o termo [classicismo] apareceu no século
XIX, paralelamente a romantismo, para designar a doutrina dos neoclássicos, partidários da tradição clássica e
inimigos da inspiração romântica” (COMPAGNON, 2001, p.235).
35
Dentre essas obras, destaca-se L’art poétique (A arte poética), de Nicolas Boileau-
Despréaux (1636-1711), publicada em 1674. Segundo Gonçalves (1999, p.129), com esse
livro, Boileau “forneceu a palavra final daquilo que passaria a reger as invenções literárias do
período, indo ao encontro dos propósitos gerais do classicismo racionalista, da moral que
dominava todos os pólos dos pensadores e, conseqüentemente, do público”. Além de
reconhecido teórico, Boileau desempenha, no cenário intelectual da França de Luís XIV, o
papel de líder dos “anciens” na Querelle des anciens et des modernes.
16
A Querela tem início com a leitura do poema “Le siècle de Louis le Grand” (“O
século de Luís o Grande” 1687), de Charles Perrault. Opondo-se à supervalorização dos
antigos e defendendo a valorização do nacional, o acadêmico estabelece uma equiparação
entre a antigüidade e os dias do Rei-Sol.
A bela antigüidade foi sempre venerável
Mas jamais acreditei que ela fosse adorável
Vejo os antigos sem dobrar os joelhos;
Eles são grandes, é verdade, mas homens como nós;
E pode-se comparar, sem medo de ser injusto,
O século de Luís ao belo século de Augusto (PERRAULT, 1842, p.320,
tradução nossa).
17
Perrault reconhece o valor da antigüidade, entretanto, rejeita a submissão à suposta
superioridade dos antigos, relativizando os parâmetros literários tradicionais. Essa postura
subversiva, que contraria um dos aspectos basilares do classicismo, permeará os quatro
volumes de sua autoria publicados sob o título Parallèle des anciens et des modernes.
Com a instauração dessa querela, a academia francesa passa a se dividir em dois
pólos: de um lado, os “anciens”, “defensores de uma literatura cuja fonte primeira é a cultura
grega e latina, adeptos de gêneros confirmados como a epopéia, a tragédia e a comédia”
(COSTA, 2004, p.237); no outro extremo, os “modernes”, “praticantes de uma literatura de
divertimento e defensores de novos gêneros como a ópera, a poesia galante, o conto, o
romance burlesco” (Idem, p.237).
16
Para informações mais detalhadas sobre a Querela, consultar Histoire de la Querelle des anciens et des
modernes (1856), de M. Hippolyte Rigault. Este trabalho foi digitalizado pelo Google e está disponível no site de
busca http://books.google.com
17
“La belle antiquité fut toujours vénérable, / Mais je ne crus jamais qu’elle fût adorable. / Je vois les anciens
sans plier les genoux: / Ils sont grands, il est vrai, mais hommes comme nous; / Et l’on peut comparer, sans
crainte d’être injuste, / Le siècle de Louis au beau siècle d’Auguste...” (PERRAULT, 1842, p.320). A respeito da
tradução apresentada, cabe ressaltar que se retomou apenas o conteúdo, sem realizar a recuperação métrica.
Sobre a obra consultada (1842), contendo as memórias, os contos e outras produções de Perrault, convém
destacar o trabalho de digitalização realizado patrocinado pelo site de busca Google e a disponibilização do
material no endereço http://books.google.com
36
Marc Soriano, ao analisar o posicionamento dos “modernes”, enfatiza a consciência
que mantinham da necessidade de estabelecer uma continuidade crítica em relação ao acervo
dos antigos:
eles são os humanistas que pesquisaram, fixaram e traduziram os
manuscritos antigos. Eles respeitam os grandes artistas gregos e latinos e
colaboraram para o renascimento’ das pesquisas que lhes concernem. Mas,
ao mesmo tempo, eles lutam contra o ‘complexo de inferioridade’ que essas
obras-primas poderiam inspirar nos franceses (SORIANO, 1968, p.300,
tradução nossa).
18
Além de rejeitar a exaltação dos antigos, os “modernes” opuseram-se também ao uso
da mitologia clássica pa(greco-latina), baseada no politeísmo, e sustentaram o emprego do
maravilhoso judaico-cristão, fundamentado no monoteísmo. Defenderam também o emprego
da língua francesa tanto no ensino quanto na prática, opondo-se ao uso do latim que era, nesse
momento, a língua oficial da Igreja e da Universidade.
Nesse cenário de disputa acadêmica, Perrault publica uma série de contos, reunidos
em 1694, no volume Griselidis avec le conte Peau d’Âne et celui des Souhaits ridicules
(Grisélidis com o conto Pele de Asno e o dos Desejos ridículos).
19
No prefácio da quarta
edição (1695), as considerações de Perrault refletem o seu posicionamento em relação à
estética clássica e às produções de seu tempo: “É verdade que algumas pessoas que querem
parecer sérias, e que têm bastante espírito para ver que são Contos feitos por prazer, e que a
matéria deles não é muito importante, olharam-nos com desprezo
(PERRAULT, 2007,
p.13)
.
20
O acadêmico demonstra plena consciência de que sua produção sofreria o rechaço dos
“anciens”, sobretudo de Boileau, pois, como afirma Gonçalves (1999, p.125), o teórico
“ignorava tudo o que vinha do povo”. E, como reconhece Perrault, suas histórias fazem parte
de uma tradição oral, de modo que se configuram como “conto[s] de Velha”, ou seja,
18
“Les Modernes, eux, sont les humanistes qui ont recherché, établi et traduit les manuscrits antiques. Ils
respectent les grands artistes grecs et latins et ont collaboà la ‘renaissance’ des recherches que les concernent.
Mais en même temps, ils luttent contre le ‘complexe d’infériorité’ que ces chefs-d’oeuvre porraient inspirer aux
Français” (SORIANO, 1968, p.300).
19
Sobre essa publicação, Marc Soriano (1968, p.22, nota 3) faz o seguinte esclarecimento: “Une ‘seconde
édition’ de Grisélidis, avec le conte de Peau-d’Ane et celui des Souhaits ridicules fut publié à Paris, chez la
veuve de J.-B. Coignard, 1964, in-12 (Bibl. Nat. Y5238). On ne connaît pas d’exemplaire de la troisième édition;
il en reste un de la quatrième, parue en 1695 et qui semble être la première qui contienne l’importante ‘Préface
des Contes en vers’. C’est l’exemplaire de la Bibliotèque Victor Cousin reproduit en facsimilé par Firmin-Didot
en 1929” (“Uma ‘segunda edição’ de Grisélidis, com o conto Pele de Asno e o dos Sonhos ridículos foi
publicada em Paris, pela viúva do editor J.-B. Coignard, 1964, in-12 (Bibl. Nat. Y5238). Não se conhece o
exemplar da terceira edição; tem-se um da quarta edição, publicada em 1695, sendo a primeira a conter o
importante ‘Prefácio dos Contos em versos’. É o exemplar da Biblioteca Victor Cousin reproduzido em fac-
símile por Firmin-Didot em 1929” – tradução nossa).
20
“Il est vray que quelque personne qui affectent de paraistre graves, et qui ont assez d’esprit pour voir que ce
sonto des Contes faits à plaisir, et que la matière n’en est pas fort importante, les ont regardées avec mépris”
(PERRAULT, 1948, p.21).
37
narrativas contadas “todos os dias a Crianças por suas Governantas, e pelas suas Avós”
(PERRAULT, 2007, p.13).
21
Apesar do desprezo de alguns, a coletânea é bem recebida por
outros:
Ficaram muito felizes de perceber que essas bagatelas não eram puras
bagatelas, que encerravam uma moral útil, e que a narrativa prazerosa com
que vinham envolvidas não tinha sido escolhida senão para fazê-las entrar
mais agradavelmente na alma e de maneira que instruísse e divertisse ao
mesmo tempo. Isso deveria bastar-me para não temer a recriminação de ter-
me divertido com coisas frívolas. (PERRAULT, 2007, p.13, grifo nosso).
22
Observamos, nesse fragmento, que Perrault procura legitimar a importância dos
contos por meio de uma das características fundamentais do classicismo: a moralidade. Sobre
essa questão, Gonçalves aponta que, afora a imitação dos antigos, outro requisito essencial era
“a presença do moralismo pela descrição das virtudes e dos vícios além de um desfecho moral
em suas peças” (GONÇALVES, 1999, p.124). Pautando-se por esse elemento, Perrault
ressalta o valor educativo, psicológico e social das narrativas de sua coletânea: “Por mais
frívolas e estranhas que sejam todas essas Fábulas em suas aventuras, é certo que excitam nas
Crianças o desejo de se parecer com aqueles que eles vêem tornar-se felizes, e ao mesmo
tempo o temor das desgraças em que os maus caíram por sua maldade” (PERRAULT, 2007,
p.15).
23
Verificamos, nessas passagens, a consciência do autor do alcance psicológico de suas
histórias para a formação e desenvolvimento das crianças: “É incrível com que avidez essas
almas inocentes, e das quais ainda nada corrompeu a retidão natural, recebem essas instruções
ocultas” (Idem, p.15).
24
Ainda nesse prefácio, o acadêmico francês procura legitimar suas histórias por meio
de uma relativização irônica dos parâmetros literários dos “anciens”, que consideravam
autênticas as obras amparadas na “autoridade” da antigüidade clássica:
Mas como estou lidando com muitas pessoas que não se esteiam em razões e
que não podem ser tocadas senão pela autoridade dos Antigos, vou satisfazê-
las a esse respeito. As Fábulas Milesianas, tão célebres entre os gregos, e que
21
“tous les jours à des Enfans par leurs Gouvernantes et par leurs Grand’mères” (PERRAULT, 1948, p.21-2).
22
“Ils ont été bien aisés de remarquer que ces bagatelles n’estoient pas pures bagatelles, qu’elles renfermoient
une morale utile, et que le récit enjoué dont elles estoient enveloppées n’avoit été choisi que pour les faire entrer
plus agréablement dans l’esprit et d’une manière qui instruisist et divertist tout ensemble. Cela devroit me suffire
pour ne pas craindre le reproche de m’estre amusé à des choses frivoles” (PERRAULT, 1948, p.21-2).
23
“Quelque frivoles et bizarres que soient toutes ces Fables dans leurs aventures, il est certain qu’elles excitent
dans les Enfans le sir de ressembler à ceux qu’ils voient devenir heureux, et en mesme temps la crainte des
malheurs où les méchans sont tombés par leur méchanceté” (PERRAULT, 1948, p.24).
24
“Il n’est pas croyable avec quelle avidité ces ames innocentes et dont rien n’a encore corrompu la droiture
naturelle reçoivent ces instructions cachées” (PERRAULT, 1948, p.25).
38
fizeram as delícias de Atenas e de Roma, não eram de outra espécie que as
Fábulas desta Coletânea (PERRAULT, 2007, p.13).
25
Operando uma dissolução da oposição entre antigos e modernos, Perrault confronta
as criações existentes a fim de comprovar a equivalência de suas narrativas com as do legado
greco-romano: “Griselidis” teria a mesma natureza da “história da Matrona de Éfeso”; o conto
“Peau d’Âne” seria tanto um “conto de Velha” quanto a “Fábula de Psiquê”, de Luciano e
Apuléio; “Souhaits ridicules” pertenceria ao mesmo gênero da Fábula do Lavrador” (Cf.
PERRAULT, 2007, p.13).
Nesse contexto de adaptação do acervo pertencente à tradição popular, com vistas a
“torná-lo aceitável segundo os critérios do ‘bom gosto’ discursivo da corte francesa e dos
salões burgueses” (ZIPES, 1986, p.19-20, tradução nossa),
26
o nome de Perrault assume uma
posição de destaque, com uma postura subversiva:
Charles Perrault inventara um gênero e, finalmente, recriara no papel um
equivalente rebuscado daquela simplicidade de tom popular por meio da
qual a fábula se perpetuara de boca em boca até então. O gênero tornou-se
moda, desnaturando-se: aristocratas e précieuses passaram a transcrever e a
inventar fábulas (CALVINO, 1990, p.10).
Dez anos após o início da Querelle, publica-se Contes de ma mère l’oye (1697), sem
a indicação do nome do autor na capa do volume, constando apenas em sua dedicatória a
assinatura de Pierre Darmancour, filho mais novo de Perrault.
27
Depois da morte de Perrault,
em 1703, a obra aparece vinculada ao seu nome. Assim como nos contos publicados a partir
de 1691, as oito narrativas em prosa
28
que compõem a obra também têm seus textos
encerrados com uma ou mais moralidades escritas em versos. Segundo Jack Zipes, esse
aspecto moral das histórias abrange igualmente os demais autores de contos de fadas:
Se a maioria desses contos procurava primeiramente reter a atenção dos
adultos, pode-se dizer que eles eram igualmente o suporte e a expressão de
uma imperiosa tendência de fornecer modelos de comportamento para
25
“Mais comme j’ay affaire à bien des gens qui ne se payent pas de raisons et qui ne peuvent estre touchés que
par l’autorité et par l’exemple des Anciens, je vais les satisfaire là-dessus. / Les Fables Milésiennes si célèbres
parmy les Grecs, et qui ont fait les délices d’Athènes et de Rome,n’estoient pas d’une autre espèce que les Fables
de ce Recueil” (PERRAULT, 1948, p.21-2).
26
“pour le rendre acceptable selon les critères du ‘bon goût’ discursif de la cour française et des salons
bourgeois” (ZIPES, 1986, p.19-20).
27
Para maiores informações sobre a questão da autoria dos contos dessa coletânea, conferir o trabalho de Marc
Soriano (1968) e a “Introdução” de Catherine Magnien (1990).
28
A escolha pela narrativa em prosa também evidencia a postura de Charles Perrault perante a estética literária
de seu tempo, que valorizava a escrita em versos.
39
instruir e educar as crianças das classes favorecidas (ZIPES, 1986, p.26,
tradução nossa).
29
Desse modo, estreitamente ligadas ao processo de interiorização de regras e valores,
essas narrativas surgem num período em que a infância passa a receber maior atenção e
particularização, como afirma Philippe Ariès, em História social da criança e da família:
“passou-se a admitir que a criança não estava madura para a vida, e que era preciso submetê-
la a um regime especial, a uma espécie de quarentena antes de deixá-la unir-se ao
adulto”(ARIÈS, 1981, p.277, grifo do autor).
Para o pesquisador Jack Zipes, o fato de os contos de fadas promoverem a
socialização e a transmissão de valores está intimamente ligado ao período histórico em que
foram produzidos, o absolutismo, no qual a cultura francesa propunha a toda Europa modelos
de civilidade. Assim, civilité seria a palavra-chave para entender os contos de fadas
produzidos tanto por Perrault quanto pelos demais adaptadores da França de Luís XIV. Diante
dessa tese de Zipes, convém retomar o que se entendia por civilino período das produções
dessas obras. Roger Chartier, em Leituras e leitores na França do Antigo Regime, dedica-se,
no capítulo “Distinção e divulgação: a civilidade e seus livros”, à discussão desse conceito.
Inicialmente, Chartier busca as definições presentes em três dicionários da segunda metade do
século XVII Richelet (1680), Furetière (1690) e Dicionário da Academia (1694)
apontando três definições em comum: 1) a civilidade como sinônimo de honesto e
honestidade; 2) a civilidade reconhecida nas ações e também nas convenções; 3) a civilidade
pensada como algo que se ensina e se aprende, desde a infância (Cf. CHARTIER, 2004, p.50-
1).
Nessa pesquisa, Chartier retoma o tratado de Erasmo De civilitate morum
puerilium (1530) – suas traduções, adaptações e imitações, as quais tiveram um grande
sucesso editorial na Europa, e aponta a sua importância no processo de definição do termo
civilité:
Na história do conceito de civilidade, o texto de Erasmo marca um momento
fundador. Por um lado, graças a edições latinas (pelo menos oitenta no
século XVI, pelo menos treze no século XVII), ele propõe a toda Europa
erudita um código unificado de condutas cujo cumprimento realiza a civilitas
na sua nova acepção. Por outro, por suas traduções e adaptações, ele
aclimata nas línguas vernáculas uma palavra e uma noção que designam
agora um componente essencial da educação das crianças (CHARTIER,
2004, p.53).
29
“Si la majorité de ces contes recherchaient d’abord à retenir l’attention des adultes, on peut dire qu’ils étaient
également le support et l’expression d’une impérieuse tendance à fournir des modèles de comportement pour
bien élever et éduquer les enfants des classes favorisées (ZIPES, 1986, p.26).
40
O pesquisador destaca ainda o livro de Antoine de Courtin – Novo tratado da
civilidade que se pratica na França entre as pessoas honradas que se baseia numa
definição moral da civilidade e que visa, prioritariamente, à instrução de jovens: “Remetida
assim a uma virtude cristã maior, a caridade, a civilidade deve ser uma questão de cada um,
seja qual for sua classe ou sua qualidade” (CHARTIER, 2004, p.57). A noção de civilité
recebe no século XVII um “estatuto ambíguo”, que permanece na tensão entre o parecer e o
ser: “Longe de indicar com exatidão as qualidades da alma, a civilidade chega a ser
considerada uma aparência enganadora, como uma polidez de convenção que recobre a
maldade” (CHARTIER, 2004, p.59-60). Ou ainda, “a civilidade do século XVII é entendida
antes de tudo como um parecer social. Cada um deve ser realmente aquilo que parece e ajustar
assim o seu ser moral às aparências exigidas pelo seu estado no mundo” (CHARTIER, 2004,
p.62).
Associando o surgimento dos contos de fadas à preocupação da sociedade francesa
com a civilidade, Jack Zipes afirma:
Os contos de fadas para crianças foram escritos e produzidos com o objetivo
de socializar as crianças, confrontá-las às normas precisas e às expectativas
definidas na escola, na vida pública e em suas casas. Os exemplos morais
eram expressamente codificados nos livros de boas maneiras e de civilidade.
O que significa que o ato simbólico individual de escrever um conto de fadas
denotava certo nível de consciência, e de consciência social que
correspondia aos cânones do modo de socialização dessa época (ZIPES,
1986, p.20, tradução nossa).
30
Num pensamento paralelo ao de Zipes, podemos dizer que, além de indicar certa
consciência social, a opção por uma determinada modalidade literária em detrimento de outras
exprime também o posicionamento” do autor diante da estética literária vigente em sua
época. Conforme as formulações teóricas de Dominique Maingueneau (2006, p.167), uma
estreita ligação entre “o posicionamento, a memória intertextual e o investimento de algum
gênero”, de modo que “mediante os gêneros mobilizados e os excluídos, um dado
posicionamento indica qual é para o escritor o exercício legítimo da literatura” (Idem, p.168).
Dessa maneira, inserida num contexto de disputa acadêmica, a publicação de Contes
de ma mère l’oye reflete a posição “de um escritor consciente dos problemas postos por um
30
“Les contes de fées pour enfants furent écrits et produits dans le but de socialiser les enfants, pour les
confronter à des normes précises et aux attentes définies à l’école, dans la vie publique ou chez eux. Les
exemples moraux étaient expressément codifiés dans des livres de bonnes manières et de civilité. Ce qui signifie
que l’acte symbolique individuel d’écrire un conte de fées dénotait un certain niveau de conscience, et de
conscience sociale, qui correspondait aux canons du mode de socialisation de cette époque” (ZIPES, 1986, p.20).
41
gênero a se reinventar” (MAGNIEN, 1990, p.35, tradução nossa)
31
e que considerou os contos
de fadas “como uma manifestação moderna, fazendo parte da história e a história se
realizando por atos simbólicos inovadores” (ZIPES, 1986, p.28, tradução nossa).
32
Sendo
assim, ao optar por produzir uma obra que não se adequava às normas vigentes e defendidas
pela academia, Charles Perrault define sua postura diante da tradição literária e revela sua
concepção de literatura.
Ao decidir por extrair da tradição popular o material para compor os Contes de ma
mère l’oye e ao negar-se a elaborá-los estritamente de acordo com os parâmetros literários
estabelecidos pela doutrina clássica, Charles Perrault evidencia aquele que é primordial não
ser” (MAINGUENEAU, 2006, p.163) e inova, configurando-se como precursor no caminho
para uma nova tendência literária na França de Luís XIV. É por meio dessa postura crítica e
subversiva que, com a publicação dos contos em prosa, Perrault confere “cidadania literária
ao mundo maravilhoso das fadas” (PAES, 1989, p.09)
,
introduzindo a corte francesa no
encanto do “Era uma vez...”
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Na leitura de Contes de ma mère l’oye, constatamos a reiteração de traços estruturais
similares no decorrer das oito narrativas reunidas na coletânea. Para Vladimir Propp, essa
repetição ocorre porque o conto maravilhoso possui “grandezas constantes e grandezas
variáveis”. Para o autor, “o que muda são os nomes (e, com eles, os atributos) dos
personagens; o que não muda são suas ações, ou funções” (PROPP, 1984, p.25). Propp
estabelece uma relação de 31 funções que “devem ser definidas sem tomar em consideração a
identidade daquele a quem se atribui sua execução” e “tampouco se deve levar em conta o
modo pelo qual elas se realizam” (Idem, p.61).
Na perspectiva de Jolles (1976, p.195), essa constância justifica-se por tratar-se das
palavras próprias da formaem que “todos os elementos conservam [...] seu caráter fluido,
genérico, sempre renovado” (Idem, p.196). Segundo o autor, ao se imergir no conto,
“aniquila-se o universo de uma realidade tida por imoral” (Idem, p.202). Dessa forma, os
31
“d’écrivain conscient des problèmes posés par un genre à reinventer” (MAGNIEN, 1990, p.35).
32
“comme une manifestation moderne, faisant partie de l’histoire, et histoire se réalisant par des actes
symboliques novateur” (ZIPES, 1986, p.28).
42
elementos estruturais da narrativa são dispostos de modo a estabelecer esse distanciamento
dos dados empíricos; daí o fato de a ação do conto localizar-se num espaço indeterminado e
de suceder-se num tempo impreciso, dando a idéia de que o lugar “é em toda e nenhuma
parte” e a época é “sempre e nunca” (JOLLES, 1976, p.202). De maneira semelhante, as
personagens são caracterizadas sem especificações individualizadoras, pois, “se o príncipe do
conto tivesse o nome de um príncipe da História, seríamos logo transportados da ética do
acontecimento para a ética da ação” (Idem, p.202).
33
Jolles destaca, ainda, a importância do
“prodígio maravilhoso” para a forma do conto de fadas. De acordo com o pesquisador, “o
Conto é incompreensível sem o maravilhoso”, uma vez que essa é “a única possibilidade que
se tem de estarmos seguros de que deixou de existir a imoralidade da realidade” (Idem, p.
202).
Contrapondo-se a essas abordagens estritamente formalistas, Jack Zipes salienta que
considerar os contos de fadas como “universais” e “atemporais” representa grande perda da
história do gênero, pois essas narrativas surgem em um contexto sócio-político determinado.
A dificuldade dessa abordagem [...] é que se todos os contos tradicionais têm
essencialmente uma morfologia idêntica (mesmo se às vezes as funções
variam), eles exprimem todos a mesma coisa: uma sorte de enunciado
universal parcial sobre a condição humana. A forma é, nela mesma,
significação, e a historicidade do indivíduo criador (ou dos criadores), assim
como a sociedade na qual eles se inscrevem, permanecem eclipsadas atrás
dessa significação. Tais abordagens formalistas dos contos tradicionais e dos
contos maravilhosos são responsáveis, na maioria das vezes, pelas razões
que nos incitam a considerar os contos como universais, atemporais e
eternos. A tendência parece querer homogeneizar os esforços criativos de
modo que as diferenças entre os atos humanos e os atos sociais não
apareçam mais (ZIPES, 1986, p.15, tradução nossa).
34
Nessa mesma linha, a apreciação de Marina Warner (1999, p.17) procura contemplar
as categorias universalizantes das narrativas sem descurar das especificidades do contexto
histórico-social em que foram produzidas. Para a autora, “mais do que a presença das fadas, a
função moral, a antigüidade imaginada, o anonimato oral da fonte primeira e o final feliz
33
Para Jolles “ética do acontecimento” seria aquela da moral ingênua, aquela que responde à pergunta “Como
devem acontecer as coisas no universo” e “ética da açãorefere-se à ética filosófica, na qual se faz a pergunta:
“Que devo fazer?” (Cf. JOLLES, 1976, p.199).
34
La dificul dans cette approche [...] est que si tous les contes traditionnels ont essentiellement une
‘morphologie’ identique (même si parfois les fonctions varient), ils expriment tous la même chose: une sorte
d’énoncé universel partiel sur la condition humaine. La forme est, en elle-même, signification, et l’historicité de
l’individu créateur (ou des créateurs), ainsi que la société dans laquelle ils s’inscrivent, s’effacent derrière cette
signification. De telles approches formalistes des contes traditionnels et des contes merveilleux sont pour une
grande partie responsables des raisons qui nous incitent à considerer les contes comme universels, hors du temps,
et éternels. La tendance semble vouloir homogénéiser les efforts créatifs de façon à ce que les différences entre
les actes humains et les actes sociaux n’apparaissent plus” (ZIPES, 1986, p.15).
43
(embora todos esses fatores contribuam para a definição do gênero), é a metamorfose que
define o conto de fadas”. Dessa maneira, as botas de sete léguas, os animais falantes, a
transformação dos heróis, enfim, “todos os prodígios que criam a atmosfera dos contos de
fadas desestruturam o mundo apreensível” (Idem, p.18) e, esse encantamento, “universaliza os
cenários da narrativa” (Idem, p.19).
No entanto, Warner (1999, p.21) ressalta, de modo similar à Jack Zipes, que,
“embora sejam distribuídos universalmente, os contos emergem em diferentes lugares
temperados com sabores diferentes, características diversas, além de detalhes e contextos
regionais que proporcionam ao seu público a satisfação de uma identificação especial”. Desse
modo, a autora questiona as “teorizações dos psicanalistas” que convertem as personagens e
situações narrativas dos contos de fadas em símbolos de abrangência universal. Para Warner,
“o impulso em direção ao significado universal obscureceu os poderes igualmente grandes do
gênero de iluminar experiências embutidas em condições sociais e materiais” (Idem, p.21).
Observamos, assim, na estrutura do gênero contos de fadas uma tensão entre o
“universal” e o “particular”. Segundo Gonçalves (1999, p.121), “os ideais do classicismo
estiveram, obsessivamente, voltados para a busca de uma forma de articulação entre o
individual e o universal”. Inserido nesse contexto, Perrault, um clássico moderne, coloca em
discussão no interior das narrativas reunidas em Contes de ma mère l’oye problemáticas
concernentes à sua realidade imediata que, por representarem questões essencialmente
humanas, adquirem uma dimensão universalizante.
Com base nas considerações traçadas acima, pretendemos analisar, nos tópicos
seguintes, o processo de construção das personagens dos cinco contos selecionados da obra de
Perrault. O estudo do modo de configuração dessas narrativas contribuirá, posteriormente,
para o exame da presença dessas personagens do mundo maravilhoso no universo ficcional de
Monteiro Lobato.
“O Barba Azul” – a dialética da aparência e da essência
O narrador inicia sua história com uma apresentação geral: “Era uma vez um homem
que tinha lindas casas na Cidade e no Campo, baixelas de ouro e prata, móveis de brocado,
carruagens inteiramente douradas; mas, por infelicidade, esse homem tinha a barba azul”
44
(PERRAULT, 2007, p.95).
35
Nesse trecho inicial, observamos a ênfase dada aos bens
materiais que a personagem possui e a presença de uma única informação a respeito do seu
aspecto físico, a “barba azul”, que, da maneira como é exposta, se caracteriza como uma
desgraça: “isso o tornava tão feio e tão horrível que não havia mulher nem moça que não
fugisse ao vê-lo” (Idem, p.95).
36
Em poucas linhas, a problemática que circunda o protagonista do conto é
apresentada: apesar de toda a sua riqueza, Barba Azul sofria o desprezo das mulheres por
conta da coloração incomum de sua barba. No decurso da narrativa, o narrador relata a
maneira como a relação amorosa se estabelece em sua vida: “Uma de suas vizinhas, Dama de
família nobre, tinha duas filhas lindíssimas. Ele pediu-lhe uma delas em Casamento, mas
deixou-lhe a escolha de qual ela lhe queria dar” (PERRAULT, 2007, p.95).
37
Neste ponto,
cumpre mencionar a explicação de Catherine Magnien de que “Dame de qualité”, traduzido
por Mário Laranjeira como “Dama de família nobre”, seria uma senhora pertencente à
nobreza, mas viúva e pobre, sendo, portanto, viável o casamento de uma das suas filhas com
Barba Azul, homem de considerável riqueza (Cf. MAGNIEN, 1990, p.305). Nesse jogo de
escolha, as duas moças não aceitavam o fato de ter como esposo um homem que tinha as
barbas azuis e, além disso, “o que as desgostava também é que ele tinha casado com várias
mulheres e que não se sabia o que tinha acontecido com elas” (Idem, p.95).
38
Observamos,
nesse comentário, que, apesar de expor um ponto intrigante sobre o passado de Barba Azul, o
narrador se limita a somente mencioná-lo sem oferecer qualquer esclarecimento, criando uma
atmosfera misteriosa em torno da personagem.
Estrategicamente, Barba Azul convida a Dama e suas filhas para passarem uns dias
em uma de suas casas no campo: “a coisa caminhou tão bem que, afinal, a Caçula começou a
achar que o Dono da casa não tinha mais a barba tão azul e que era um homem de bem. Logo
que voltaram à Cidade, o Casamento foi concluído” (PERRAULT, 2007, p.95-6).
39
Nessa
passagem, notamos a caracterização da filha mais nova como interesseira, na medida em que
35
“Il était une fois un homme qui avait de belles maisons à la Ville et à la Campagne, de la vaisselle d'or et
d'argent, des meubles en broderie, et des carrosses tout dorés; mais par malheur cet homme avait la Barbe bleue”
(PERRAULT, 1990, p.207).
36
“cela le rendait si laid et si terrible, qu'il n'était ni femme ni fille qui ne s'enfuît de devant lui” (PERRAULT,
1990, p.207).
37
“Une de ses Voisines, Dame de qualité, avait deux filles parfaitement belles. Il lui en demanda une en
Mariage, et lui laissa le choix de celle qu'elle voudrait lui donner” (PERRAULT, 1990, p.207).
38
“Ce qui les goûtait encore, c'est qu'il avait déjà épousé plusieurs femmes, et qu'on ne savait ce que ces
femmes étaient devenues” (PERRAULT, 1990, p.207).
39
“enfin tout alla si bien, que la Cadette commença à trouver que le Maître du logis n'avait plus la barbe si bleue,
et que c'était un fort honnête homme. s qu'on fut de retour à la Ville, le Mariage se conclut” (PERRAULT,
1990, p.208).
45
a riqueza do futuro esposo atua decisivamente na mudança de sua opinião, fazendo, até
mesmo, com que se esquecesse da anormalidade de sua barba. Contrastando com a descrição
dos dias de divertimento na casa de Barba Azul, o casamento é anunciado em uma única frase
extremamente objetiva, marcando a ausência de sentimentalidade na relação estabelecida: o
Casamento foi concluído”.
Passado um mês, Barba Azul tem de fazer uma viagem de negócios e, antes de partir,
recomenda à sua esposa
que ela se divertisse bem durante sua ausência, chamasse as suas boas
amigas, levasse-as ao Campo se quisesse, e comesse bem em todo lugar.
“Aqui estão as chaves do guarda móveis, aqui estão as baixelas de ouro e de
prata que não se usam todos os dias, aqui estão as dos meus cofres-fortes,
onde estão o meu ouro e a minha prata, as das caixas onde ficam minhas
pedrarias e aqui está a gazua para todos os cômodos. Quanto a esta chavinha,
é a chave do gabinete no fim da grande galeria dos aposentos do andar
térreo: podes abrir tudo, ir por toda parte, mas quanto a este gabinete,
proíbo-te de entrar nele, e de tal forma proíbo eu, se te acontecer de abri-lo,
não nada que não possas esperar da minha cólera (PERRAULT, 2007,
p.96).
40
Ao entregar as chaves dos diversos cômodos de sua casa, o marido explica à sua
esposa o que cada aposento contém. A descrição objetiva das chaves iniciais tem por
finalidade demonstrar simplesmente a extensão da riqueza de Barba Azul, contrapondo-se à
amplitude do espaço concedido para a apresentação da proibição que circunda a pequena
chave do gabinete. O contraste entre os cômodos e suas respectivas chaves é acrescido pela
localização desprivilegiada do gabinete, situado “no fim da grande galeria dos aposentos do
andar térreo”. O contraponto formulado pela narrativa parece atuar de modo a salientar a
dimensão da curiosidade feminina que, apesar de ter toda a riqueza do marido à sua
disposição, se sente tentada a desvendar o que poderia estar sob a proteção de uma chave tão
pequena e num aposento nos fundos da casa?
Apesar de ter prometido obediência, a jovem esposa impacienta-se com a presença
de suas amigas: Foi o premiada por sua curiosidade que, sem considerar que não ficava
40
“qu'il la priait de se bien divertir pendant son absence, qu'elle fît venir ses bonnes amies, qu'elle les menât à la
Campagne si elle voulait, que partout elle fît bonne chère. Voilà, lui dit-il, les clefs des deux grands garde-
meubles, voilà celles de la vaisselle d'or et d'argent qui ne sert pas tous les jours, voilà celles de mes coffres-
forts, où est mon or et mon argent, celles des cassettes où sont mes pierreries, et voilà le passe-partout de tous les
appartements. Pour cette petite clef-ci, c'est la clef du cabinet au bout de la grande galerie de l'appartement bas:
ouvrez tout, allez partout, mais pour ce petit cabinet, je vous fends d'y entrer, et je vous le défends de telle
sorte, que s'il vous arrive de l'ouvrir il n'y a rien que vous ne deviez attendre de ma colère” (PERRAULT, 1990,
p.208).
46
bem abandonar as companheiras,
41
desceu por uma escadinha escondida com tanta
precipitação que achou que ia quebrar o pescoço por duas ou três vezes” (PERRAULT, 2007,
p.96).
42
A descrição do modo como a personagem se desloca para chegar até o local proibido
contribui para apontar o descontrole e a curiosidade que dominam a personagem feminina.
Mesmo recordando das palavras de Barba Azul, “a tentação era tão forte que não conseguia
superá-la: pegou então a chavinha e, tremendo, abriu a porta do gabinete” (Idem, p.96).
43
Nas passagens recuperadas, verificamos a presença de dois termos-chave da tradição
bíblica – tentação e proibição – que indicam uma retomada do motivo bíblico do fruto
proibido. Na narrativa do livro de Gênesis, Adão e Eva poderiam comer todos os frutos do
Éden, com exceção de uma única árvore: “Do fruto das árvores do jardim comeremos, mas,
do fruto da árvore que esno meio do jardim, disse Deus: ‘Não comereis dele, nem tocareis,
para que não morrais” (Gênesis, 3:2-3). O ponto crucial de ambas as narrativas está no “livre
arbítrio” concedido às figuras femininas. A despeito de sua interdição, os elementos proibidos
são colocados à disposição das personagens, criando um misto de curiosidade, temor e
sedução.
Ludibriada pelas palavras da serpenta, Eva cede à tentação e come do fruto proibido.
Da mesma forma, a esposa de Barba Azul ignora a restrição do marido e adentra no aposento
proibido. Constatamos, por meio dessa comparação, que a construção da personagem
feminina em “La Barbe Bleue” recupera a concepção blica sobre a natureza da mulher, em
que a sua curiosidade transparece como a fonte e a origem do pecado.
Nessa perspectiva, Mariana Warner considera que o Barba Azul, além de ser um
“patriarca cujas ordens devem ser obedecidas”, assume uma posição semelhante à da
“serpente que seduz por despertar a curiosidade e o desejo e castiga com a morte”
(WARNER, 1999, p.279-80). Desse modo, ao retomar o maravilhoso judaico-cristão em sua
produção literária, Charles Perrault evidencia um posicionamento contrário à estética vigente
no período, que recorria à mitologia clássica para a criação de suas obras.
Com a entrada da mulher no gabinete, um novo clima se instaura na narrativa:
De início não viu nada, porque as janelas estavam fechadas; depois de alguns
instantes começou a ver que o assoalho estava todo coberto de sangue
41
Observamos, nessa afirmação, a instrução às boas maneiras, fato que explicita o quanto a noção de civilité se
faz presente nos contos de Perrault.
42
“Elle fut si pressée de sa curiosité, que sans considérer qu'il était malhonnête de quitter sa compagnie, elle y
descendit par un petit escalier dérobé, et avec tant de précipitation, qu'elle pensa se rompre le cou deux ou trois
fois” (PERRAULT, 1990, p.209).
43
mais la tentation était si forte qu'elle ne put la surmonter: elle prit donc la petite clef, et ouvrit en tremblant la
porte du cabinet” (PERRAULT, 1990, p.209-10).
47
coagulado, e que esse sangue refletia os corpos de várias mulheres mortas e
dependuradas ao longo das paredes (eram todas as mulheres com quem
Barba Azul havia casado e que havia degolado uma depois da outra). Ela
achou que ia morrer de medo, e a chave do gabinete, que ela acabara de tirar
da fechadura, caiu de sua mão (PERRAULT, 2007, p.96-7).
44
44
“D'abord elle ne vit rien, parce que les fenêtres étaient fermées; après quelques moments elle commença à voir
que le plancher était tout couvert de sang caillé, et que dans ce sang se miraient les corps de plusieurs femmes
mortes et attachées le long des murs (c'était toutes les femmes que la Barbe bleue avait épousées et qu'il avait
égorgées l'une après l'autre). Elle pensa mourir de peur, et la clef du cabinet qu'elle venait de retirer de la serrure
lui tomba de la main” (PERRAULT, 1990, p.210).
48
“La Barbe Bleue” – Ilustração de Gustave Do
45
45
Em 1862, Gustave Do ilustra, para uma edição de Stahl-Hetzel, a obra Contes, de Perrault. Nessas
ilustrações de Doré, observamos traços góticos que, na opinião de Tony Gheeraert, em “De Doré à Perrault”
(2007, p.09), “relève plus du fantastique gothique que du merveilleux” [“salienta mais o fantástico gótico do que
o maravilhoso” – tradução nossa]. Para Gheeraert, essa forma de representação gera certa dissonância em relação
à obra de Perrault, por serem categorias totalmente estranhas ao acadêmico francês (Cf. GHEERAERT, 2007,
p.12). Ao longo de nossas análises reproduziremos outras ilustrações de Gustave Doré.
49
Pouco a pouco, o narrador revela a visão da esposa do Barba Azul. O espaço que
antes se distinguia pela beleza da decoração e pelo requinte dos móveis adquire uma nova
caracterização: um cenário terrível, que conta com ausência de luz, com sangue coagulado e
com corpos pendurados pela parede. Percebemos que a revelação desse local horripilante na
luxuosa e suntuosa casa de Barba Azul coopera para instaurar na narrativa o clima de tensão e
para colocar em xeque as qualidades do protagonista.
A explicação entre parêntesis sobre os corpos ali presentes liga-se à primeira
referência feita pelo narrador às ex-mulheres desaparecidas do Barba Azul. Constatamos que,
estrategicamente, o narrador omite no início da história a morte das mulheres como uma
maneira de enredar o leitor na trama narrativa. Concernente a essa postura do narrador, Yves
Reuter, em A análise da narrativa (2002, p.75), afirma: “o fato de poder a priori dominar
todo o saber e dizer tudo não implica necessariamente fazê-lo. De fato, para surpreender o
leitor, o narrador pode retardar o momento de lhe dar uma informação”. Essa manipulação
dos dados faz o leitor sentir o mesmo impacto sentido pela personagem diante da revelação
dos corpos.
No quarto, procurando acalmar-se, a esposa de Barba Azul percebe que a chave do
gabinete está manchada de sangue e “por mais que ela tentasse lavá-la, e até esfregá-la com
areia e sapólio ficava sempre sangue nela, pois a chave era encantada, e não havia meio de
limpá-la totalmente: quando se limpava o sangue de um lado ele aparecia do outro
(PERRAULT, 2007, p.97).
46
Essa passagem assemelha-se àquela de Macbeth (1623), de
William Shakespeare, na qual a personagem Lady Macbeth, após cometer um assassinato,
permanece com uma mancha de sangue em suas mãos e, por mais que a lavasse e a
esfregasse, ela não saía: “Aqui sempre existe uma mancha”; “Sai mancha maldita!... Sai,
estou dizendo!...”; “Como! Estas mãos nunca ficarão limpas?...” (SHAKESPEARE, 1981,
179-80).
Se, em Macbeth, a nódoa presente nas mãos conduz Lady Macbeth ao delírio, em
“La Barbe Bleue”, a jovem esposa não esboça qualquer reação de espanto perante esse
advento maravilhoso. Essa atitude confirma uma característica própria da forma dos contos de
fadas, como afirma André Jolles, (1976, p.202, grifo do autor): o maravilhoso não é
maravilhoso, mas natural”. A esse respeito, cabe ressaltar, ainda, que a presença do
46
“Elle eut beau la laver, et même la frotter avec du sablon et avec du grais, il y demeura toujours du sang, car la
clef était Fée, et il n'y avait pas moyen de la nettoyer tout à fait: quand on ôtait le sang d'un té, il revenait de
l'autre” (PERRAULT, 1990, p.210).
50
maravilhoso no conto de Perrault evidencia sua postura contrária em relação às tendências da
poética clássica, que priorizava o racional.
Barba Azul, para surpresa de sua esposa, retorna na mesma noite e, na manhã
seguinte, pede-lhe o molho de chaves. A partir desse momento, ocorre uma alteração na
estrutura do conto, que interrompe a narração e abre espaço para o discurso direto:
“Por que há sangue nesta chave?” – “Eu não sei de nada”, respondeu a pobre
mulher, mais pálida do que a morte. “Não sabes de nada”, retomou Barba
Azul; “eu sei muito bem; tu quiseste entrar no gabinete! Pois bem, minha
Senhora, vais entrar lá e ocupar o teu lugar junto das Damas que viste”
(PERRAULT, 2007, p.97).
47
Notamos que o emprego do diálogo coopera para a manutenção do clima de tensão
que, a cada troca de turno, se intensifica ainda mais. Para reforçar essa atmosfera, o narrador
revela mais uma característica de Barba Azul, até então, mascarada: “[a esposa] teria
comovido um rochedo, tão bela e aflita como estava; mas Barba Azul tinha o coração mais
duro que um rochedo... Deves morrer, minha Senhora”, disse ele, “e é já” (Idem, p.97, grifo
nosso).
48
Somente após a descoberta dos corpos das ex-mulheres no gabinete é que as
características de Barba Azul são reveladas pelo narrador.
Diante da sentença dada pelo marido, a esposa pede-lhe um tempo para rezar, como
uma forma de protelar a sua morte e possibilitar a chegada de seus irmãos. Nessa parte, a
narrativa é construída pelo encadeamento de falas repetidas que também intensificam o clima
de tensão:
Ana, minha irmã Ana, não estás vendo chegar nada? E a irmã Ana lhe
respondia “Só estou vendo o Sol que empoeira e o mato que verdeja”.
Entrementes Barba Azul, com um grande facão na mão, gritava com toda
força para a sua mulher: “Desce depressa, ou eu vou subir em cima”.
“Mais um momento, por favor”, respondia-lhe a mulher; e logo gritava mais
baixo: Ana, minha irmã Ana, não estás vendo chegar nada?E a irmã Ana
respondia “Só estou vendo o Sol que empoeira e o mato que verdeja”.
“Desce depressa”, gritava o Barba Azul, “ou eu vou subir aí em cima”. – “Já
vou”, respondia a sua mulher, e depois gritava: Ana, minha irmã Ana, não
estás vendo chegar nada?” [...] “Não queres descer?”, gritava Barba Azul.
– “Mais um momento”, respondia a sua mulher; depois gritava: Ana, minha
irmã Ana, não estás vendo chegar nada?“Estou vendo”, respondeu ela,
“dois Cavaleiros que vêm por este lado, mas ainda estão muito longe...”
“Deus seja louvado”, exclamou um momento depois, “são meus irmãos,
47
“Pourquoi
y a-t-il du sang sur cette clef? – Je n'en sais rien, répondit la pauvre femme, plus pâle que la mort.
Vous n'en savez rien, reprit la Barbe bleue, je le sais bien, moi; vous avez voulu entrer dans le cabinet!
bien, Madame, vous y entrerez, et irez prendre votre place auprès des Dames que vous y avez vues”
(PERRAULT, 1990, p.210-1).
48
“Elle aurait attendri un rocher, belle et affligée comme elle était; mais la Barbe bleue avait le coeur plus dur
qu'un rocher: / – Il faut mourir, Madame, lui dit-il, et tout à l'heure” (PERRAULT, 1990, p.211, grifo nosso).
51
estou lhes fazendo sinal o mais que eu posso para que venham depressa”
(PERRAULT, 2007, p.98, grifo do autor).
49
O jogo de frases lembra a estrutura de uma ladainha, oração formada por uma série
de invocações curtas e respostas repetidas, contribuindo para a preservação da situação
dramática da narrativa por meio da protelação do desfecho das ações. Nesse fragmento,
verificamos que o pedido para se encomendar a Deus não passa de uma estratégia feminina
para ganhar tempo. Sua “reza”, na verdade, é dirigida à irmã, buscando nela a sua salvação
imediata com a expectativa da chegada dos seus irmãos e, não, a salvação espiritual, conforme
simula. Notamos, nessa postura da esposa, certa semelhança àquela de Sherazade,
personagem do conto oriental As mil e uma noites. Para evitar sua morte, após deitar-se com o
rei Schariar, a jovem passa a contar-lhe histórias, protelando a sua sentença.
Quando a esposa de Barba Azul desce de seu quarto e põe-se aos pés do marido em
prantos, pedindo-lhe mais tempo para recolher-se, verificamos, novamente sua simulação a
fim de protelar a situação: “‘Não, não’, disse ele, ‘recomenda a tua a alma a Deus’; e
erguendo o braço...” (PERRAULT, 2007, p.98).
50
No auge da tensão narrativa, ouvem-se
fortes batidas na porta que paralisam Barba Azul: “abriu-se a porta e logo se viu entrar dois
Cavaleiros que, de espada em punho, correram para cima da Barba Azul” (Idem, p.98).
51
Sem
ter herdeiros, toda a riqueza passa a ser da jovem mulher, que utiliza parte da fortuna para
realizar o casamento de sua irmã, comprar cargos para seus irmãos e promover o seu próprio
casamento “com um homem de bem que a fez esquecer os maus tempos que tinha passado
com Barba Azul” (Idem, p.98).
52
No desfecho dado à narrativa, observamos que o casamento se torna uma
recompensa às figuras femininas e proporciona a aquisição de cargos às masculinas. Além
disso, verificamos a inversão do desfecho bíblico, pois, se Adão e Eva sofrem as
conseqüências de seus atos sendo expulsos do jardim; no conto “La Barbe Bleue”, o castigo é
anulado devido à estratégia da jovem esposa. Constatamos, portanto, que há na narrativa de
49
“‘Anne, ma soeur Anne, ne vois-tu rien venir?’ Et la soeur Anne répondait: ‘Je ne vois rien que le Soleil qui
poudroie, et l'herbe qui verdoie’. ‘Descends donc vite, criait la Barbe bleue, ou je monterai là-haut. Je m'en
vais’, répondait sa femme, et puis elle criait: ‘Anne, ma soeur Anne, ne vois-tu rien venir? [...] Ne veux-tu pas
descendre? criait la Barbe bleue. – ‘Encore un moment’, répondait sa femme; et puis elle criait: ‘Anne, ma soeur
Anne, ne vois-tu rien venir?’ ‘Je vois’, répondit-elle, ‘deux Cavaliers qui viennent de ce côté-ci, mais ils sont
bien loin encore...’ ‘Dieu soit loué’, s'écria-t-elle un moment après, ‘ce sont mes frères; je leur fais signe tant que
je puis de se hâter’” (PERRAULT, 1990, p.212).
50
“‘Non, non, dit-il, recommande-toi bien à Dieu’; et levant son bras... ” (PERRAULT, 1990, p.212).
51
“on ouvrit, et aussitôt on vit entrer deux Cavaliers, qui mettant l'épée à la main, coururent droit à la Barbe
bleue” (PERRAULT, 1990, p.212).
52
“elle-même à un fort honnête homme, qui lui fit oublier le mauvais temps qu'elle avait passé avec la Barbe
bleue” (PERRAULT, 1990, p.213).
52
Charles Perrault a recuperação da tradição bíblica com vistas a criar novos planos de sentido.
E, apesar do desfecho favorável à figura feminina, a moral ao término da narrativa reforça o
perigo de deixarmo-nos seduzir por certos sentimentos: “A curiosidade, embora tenha
encantos, / Se paga, muitas vezes, com prantos; / [...] é um prazer fugaz / Provado, logo se
esvazia, / E o preço pago é sempre alto demais” (PERRAULT, 2007, p.99).
53
No que se refere à caracterização da personagem Barba Azul, cabe ressaltar sua
elaboração dinâmica, promovendo um jogo dialético entre aparência e essência. Sendo esses
dois elementos a base da noção de civilité mantida no século XVII, podemos pensar que a
personagem Barba Azul seria a representação desse conjunto de formalidades que mantém
uma “aparência enganadora” e que, por meio da polidez das convenções, encobre suas
maldades. Entretanto, essa leitura é suavizada na segunda moral apresentada ao término do
conto, na qual encontramos a seguinte afirmação: “Hoje não Esposo tão terrível / Ou que
possa exigir o impossível” (PERRAULT, 2007, p.99).
54
“O Pequeno Polegar” – imagens em contraste
Expondo a situação sócio-econômica de um casal de lenhadores, o narrador início
a sua história: “Eram muito pobres e os seus setes filhos davam muita despesa, porque ainda
não podiam ganhar a vida sozinhos” (PERRAULT, 2007, p.121).
55
Além disso, outro
incidente lhes gerava muita tristeza:
O que os magoava também, é que o mais novo era muito franzino e não
falava, e eles achavam que era falta de inteligência o que era apenas uma
característica do seu espírito. Era pequenininho e, quando veio ao mundo,
era do tamanho do dedo polegar, o que fez com que o chamassem de
Pequeno Polegar. A pobre criança era o bode expiatório da casa, e punham
nele a culpa de tudo que acontecia (PERRAULT, 2007, p.121).
56
Em seu discurso, o narrador dá ênfase à apresentação do filho mais novo, ressaltando
a maneira como este era visto e tratado por sua família. Apesar da exposição do sentimento de
53
“La curiosité malgré tous ses attraits, / Coûte souvent bien des regrets; / [...] un plaisir bien léger; / Dès qu’on
le prend il cesse d’être, / Et toujours il coûte trop cher” (PERRAULT, 1990, p.213).
54
“Il n’est plus d’Époux si terrible, / Ni qui demande l’impossible” (PERRAULT, 1990, p.214).
55
“Ils étaient fort pauvres, et leurs sept enfants les incommodaient beaucoup, parce qu'aucun d'eux ne pouvait
encore gagner sa vie” (PERRAULT, 1990, p.277).
56
“Ce qui les chagrinait encore, c'est que le plus jeune était fort délicat et ne disait mot: prenant pour bêtise ce
qui était une marque de la bonté de son esprit. Il était fort petit, et quand il vint au monde, il n'était guère plus
gros que le pouce, ce qui fit que l'on l'appela le petit Poucet. Ce pauvre enfant était le souffre-douleurs de la
maison, et on lui donnait toujours tort (PERRAULT, 1990, p.277).
53
desprezo dos pais, o narrador procura salientar as qualidades que Polegar possuía: “Era,
entretanto, o mais fino e o mais ajuizado dos irmãos e, se falava pouco, escutava muito”
(PERRAULT, 2007, p.121).
57
Desde o parágrafo inicial da narrativa, percebemos o
estabelecimento de um contraponto entre a imagem de Polegar formulada pela família e a
apresentada pelo narrador: de um lado, temos a desqualificação da pequena personagem,
considerada pelos pais como um “franzino”, desprovido de inteligência; de outro lado,
observamos que o narrador reconfigura a imagem da criança por meio do enaltecimento de
suas qualidades interiores.
Na seqüência, o narrador passa a relatar os momentos difíceis vividos por aquela
família: “Veio um ano de muita desgraça, e a fome foi tão grande que o pobre casal resolveu
desfazer-se dos filhos” (PERRAULT, 2007, p.121).
58
Ao ouvir a conversa sobre o abandono
dos filhos na floresta, Polegar pensa em uma estratégia para contornar a situação. Ao
amanhecer, ele vai até a margem de um riacho e enche o seu bolso com pedregulhos brancos
que, durante o trajeto, são lançados ao chão demarcando o caminho percorrido. Os pais, ao
verem os filhos ocupados com os feixes de lenha, “afastaram-se deles sorrateiramente” (Idem,
p.122).
59
Embora movidos pela necessidade extrema, o modo como é caracterizado o
abandono dos filhos pontua a insensibilidade dos pais, conforme transparece pela escolha dos
termos empregados: “insensiblement” (no francês) e “sorrateiramente” (na tradução para o
português).
Quando percebem a ausência dos pais, as crianças se apavoram. Polegar, no entanto,
fazendo jus aos atributos conferidos pelo narrador no início da narrativa, toma a frente e pede
calma aos irmãos: “Não tenham medo, meus irmãos; meu Pai e minha Mãe nos deixaram
aqui, mas eu levarei vocês de volta para casa, é me seguir” (Idem, p.122).
60
Contradizendo
a imagem formulada pelos pais, o Pequeno Polegar consegue contornar astuciosamente a
situação, levando seus irmãos de volta para casa.
Enquanto as crianças estavam perdidas na floresta, o Senhor da Aldeia envia aos
lenhadores o dinheiro de uma dívida que, segundo o narrador, “lhes devolveu a vida, pois os
pobrezinhos estavam morrendo de fome” (PERRAULT, 2007, p.122).
61
No que concerne a
57
“Cependant il était le plus fin, et le plus avi de tous ses frères, et s'il parlait peu, il écoutait beaucoup”
(PERRAULT, 1990, p.277).
58
“Il vint une année très fâcheuse, et la famine fut si grande, que ces pauvres gens résolurent de se défaire de
leurs enfants” (PERRAULT, 1990, p.277-8).
59
“s'éloignèrent d'eux insensiblement” (PERRAULT, 1990, p.278).
60
“‘Ne craignez point, mes frères; mon Père et ma Mère nous ont laissés ici, mais je vous remènerai bien au
logis, suivez-moi seulement” (PERRAULT, 1990, p.279).
61
“Cela leur redonna la vie, car les pauvres gens mouraient de faim” (PERRAULT, 1990, p.279).
54
esse aspecto, Catherine Magnien (1990, p.311-2) salienta que a fome foi uma questão
endêmica da França do século XVII. Robert Darnton (1986, p.49) acredita que “abandonando
os filhos na floresta, os pais do Pequeno Polegar tentavam enfrentar um problema que
acabrunhou os camponeses muitas vezes, nos séculos XVII e XVIII o problema da
sobrevivência durante um período de desastre demográfico”. Com o dinheiro recebido, a mãe
de Polegar vai ao açougue e, “como fazia muito tempo que não comia, comprou três vezes
mais carne do que o necessário para o jantar de duas pessoas” (Idem, p.122).
62
Após se saciar,
a mãe sente remorso pelo abandono dos filhos, transferindo toda a culpa da ação ao marido:
“Guilherme, foi você que quis perdê-los. Bem que eu disse que a gente se arrependeria”
(Idem, p.123).
63
Nesta parte da narrativa, observamos que a descrição do comportamento da
lenhadora coopera para a elaboração de uma advertência à postura das mulheres: “ela [a
lenhadora] martelava a cabeça dele, e ele era do tipo de muitos homens que gostam muito das
mulheres que avisam, mas que acham muito inoportunas aquelas que estão sempre dizendo
que já avisaram” (PERRAULT, 2007, p.123).
64
Se no conto “La Barbe Bleue”, a curiosidade feminina é denunciada, nesta narrativa,
outro aspecto é relacionado à natureza mulher e posto em discussão. Observamos certa crítica
a esse “impulso feminino”, podendo ser associada ao fato de a sociedade da época estar
preocupada com a noção de civilité, ou seja, com a adequação do comportamento às regras de
civilidade.
Graças à perspicácia de Polegar, as crianças retornam à casa dos pais e participam
também da refeição. O casal de lenhadores fica feliz em revê-los, porém, a felicidade de tê-los
novamente em casa não perdura por muito tempo, como afirma o narrador:
essa alegria durou tanto quanto duraram os escudos. Uma vez que já tinham
gastado todo o dinheiro, porém, voltaram a cair naquela mesma tristeza
anterior e resolveram perdê-los de novo e, para que seu plano não falhasse,
decidiram levá-los para muito mais longe do que na primeira vez
(PERRAULT, 2007, p.123).
65
Pela passagem acima, verificamos que o sentimento afetivo dos pais se ajusta ao
ritmo das oscilações econômicas de modo que, enquanto recursos para comprar alimentos,
62
“Comme il y avait longtemps qu’elle n’avait mangé, elle acheta trois fois plus viande qu’il n’en fallait pour
souper de deux personnes” (PERRAULT, 1990, p.279).
63
“Guillaume, c'est toi qui les as voulu perdre; j'avais bien dit que nous nous en repentirions” (PERRAULT,
1990, p.279).
64
“elle lui rompait la te, et qu’il était de l’humeur de beaucoup d’autres gens, qui aiment fort les femmes qui
disent bien, mais qui trouvent très importunes celles qui ont toujours bien dit” (PERRAULT, 1990, p.280).
65
“cette joie dura tant que les dix écus durèrent. Mais lorsque l'argent fut dépensé, ils retombèrent dans leur
premier chagrin, et résolurent de les perdre encore, et pour ne pas manquer leur coup, de les mener bien plus loin
que la première fois” (PERRAULT, 1990, p.280).
55
os pais sentem alegria de estar com suas crianças, mas, quando o recurso acaba e eles se vêem
sem condições de dar provimento aos pequenos, o desgosto e o desejo de abandoná-los na
floresta retornam. Entretanto, a falta de opção dos pais de Polegar acaba por relativizar os
juízos morais, na medida em que transparece como um mal necessário, atenuando, assim, as
apreciações judicativas.
Ao tomar conhecimento da nova intenção dos pais de abandonar os filhos, Polegar
tenta agir como outrora, porém é surpreendido ao encontrar a porta da casa trancada. Sem
poder contar com o primeiro plano, o Pequeno Polegar decide guardar o pão do café-da-
manhã a fim de usá-lo no lugar das pedras para marcar o caminho. O casal de lenhadores
conduz seus filhos a um lugar mais denso e escuro da floresta, abandonando-os ali:
[os meninos] Ficaram então muito aflitos, pois quanto mais andavam, mais
se perdiam e se embrenhavam na Floresta. Caiu a noite e soprou um vento
fortíssimo que lhes dava um medo terrível. Tinham a impressão que, por
todos os lados, ouviam o uivar de Lobos que vinham em sua direção para
comê-los. [...] Desabou uma forte chuva que lhes penetrou os ossos;
escorregavam a cada passo e caíam na lama e, quando se levantavam,
estavam cobertos de barro, sem saber o que fazer de suas mãos
(PERRAULT, 2007, p.124).
66
Considerando que a forma literária dos contos de fadas prioriza a economia narrativa,
dispensando a pormenorização descritiva das situações, chama a atenção o detalhamento
excessivo aplicado à caracterização do ambiente na passagem citada acima. Esse dado
estrutural da narrativa atua no sentido de intensificar o aspecto aterrorizante da floresta, que se
torna escura, com fortes ventos, uivos de lobos, chuva intensa e lamaçal, a ponto de as
crianças “nem mesmo falar entre si ou virar a cabeça” (PERRAULT, 2007, p.124).
67
Essa
apresentação pormenorizada da disposição gubre da floresta exerce a função de sensibilizar
o leitor, induzindo-o a se comover com o drama vivenciado pelas personagens.
Apesar do medo paralisante, é Polegar quem toma a iniciativa de tentar tirar os
irmãos daquele lugar, estabelecendo, outra vez, um contraste entre as suas ações e a imagem
elaborada pela família. O pequeno garoto sobe em uma árvore, avista uma luz ao longe e
conduz os irmãos naquela direção. Por desventura, a casa encontrada pertencia a um Ogro.
Diante da nova dificuldade, Polegar não recua e convence a mulher do Ogro a abrigá-los.
Nesse ponto da história, percebemos, novamente, o emprego de recursos discursivos com a
66
“Les voilà donc bien affligés, car plus ils marchaient, plus ils s'égaraient et s'enfonçaient dans la Forêt. La nuit
vint, et il s'éleva un grand vent qui leur faisait des peurs épouvantables. Ils croyaient n'entendre de tous côtés que
des hurlements de Loups qui venaient à eux pour les manger. [...] Il survint une grosse pluie qui les perça
jusqu'aux os; ils glissaient à chaque pas et tombaient dans la boue, d'où ils se relevaient tout crottés, ne sachant
que faire de leurs mains.” (PERRAULT, 1990, p.280).
67
“Ils n'osaient presque se parler ni tourner la tête” (PERRAULT, 1990, p.281).
56
finalidade de intensificar o clima tenso e aterrorizante da narrativa, conforme transparece na
descrição da refeição do Ogro: “O Carneiro ainda estava todo sangrando, mas por isso mesmo
pareceu-lhe mais apetitoso” (PERRAULT, 2007, p.124).
68
Com seu faro sensível, o Ogro logo sente o cheiro de carne fresca no ar. Ao serem
descobertos, os meninos pedem piedade, mas, como afirma o narrador, eles “estavam diante
do mais cruel de todos os Ogros que, longe de sentir dó, os devorava com os olhos”
(PERRAULT, 2007, p.125).
69
Se no trecho que narra o primeiro abandono na floresta, a brevidade e a objetividade
caracterizam o discurso do narrador, constatamos que, nesse segundo episódio, a descrição e a
pormenorização de alguns aspectos são empregados para sustentar o clima de apreensão e de
terror. O próprio jogo de perguntas e respostas entre o Ogro e a sua mulher coopera para
manter o suspense em torno da possível morte das crianças:
“O que é que você quer fazer a esta hora? não tem bastante tempo amanhã
cedo?” “Cale-se”, retomou o Ogro, “eles vão ficar mais maturados”.
“Mas você ainda tem aí tanta carne” retrucou a mulher; “veja, são uma
Vitela, dois Carneiros e a metade de um Porco!” – “Você está certa”, disse o
Ogro; “dê bastante comida para eles, para que não emagreçam, e leve-os
para a cama” (PERRAULT, 2007, p.125).
70
Inserido nesse espaço onde tudo conflui para a desgraça, Polegar recorre a uma nova
estratégia, trocando os bonés que traziam à cabeça pelas coroas de ouro das ogrinhas, a fim de
enganar o Ogro. Observamos, assim, que é o Pequeno Polegar quem elabora, novamente, um
plano para ludibriar o perigo eminente em que estavam envolvidos.
Como previsto por Polegar, o Ogro se arrepende de não -los matado antes e, de
madrugada, encaminha-se para o quarto das crianças. Devido à artimanha da troca dos bonés
pelas coroas, Polegar consegue salvar a sua vida e a de seus irmãos, fazendo com que o Ogro
sacrificasse as suas próprias filhas: “cortou sem hesitar o pescoço de suas sete filhas”
(PERRAULT, 2007, p.126).
71
Assim que se dá conta do terrível engano que cometera, o Ogro
começa a perseguir os meninos, que já haviam fugido da casa.
Depois de percorrer um longo caminho com suas botas de sete léguas, o Ogro
descansa em cima da pedra em que os meninos estavam escondidos e, ali, dorme
68
“Le Mouton était encore tout sanglant, mais il ne lui en sembla que meilleur” (PERRAULT, 1990, p.282).
69
“ils avaient à faire au plus cruel de tous les Ogres, qui bien loin d'avoir de la pitié les dévorait déjà des yeux”
(PERRAULT, 1990, p.283).
70
“Que voulez-vous faire à l'heure qu'il est? n'aurez-vous pas assez de temps demain matin?
Tais-toi, reprit
l'Ogre, ils en seront plus mortifiés.
Mais vous avez encore tant de viande, reprit sa femme, voilà un Veau,
deux Moutons et la moitié d'un Cochon!
Tu as raison, dit l'Ogre, donne-leur bien à souper afin qu'ils ne
maigrissent pas, et va les mener coucher (PERRAULT, 1990, 283).
71
“il coupa sans balancer la gorge à ses sept filles” (PERRAULT, 1990, 285).
57
profundamente. Polegar pede aos seus irmãos que sigam para a casa de seus pais e,
aproximando-se do Ogro, tira as suas botas e as calça. De posse das botas de sete léguas, o
Pequeno Polegar retorna à casa do Ogro e, astutamente, convence a mulher a entregar toda a
riqueza que possuíam. Assim, ao retornar para a casa dos pais levando consigo a fortuna do
Ogro, o filho mais novo é “recebido com muita alegria” (Idem, p.127).
72
Pelo desfecho
apresentado, verificamos que a narrativa opera uma inversão da ordem inicialmente
estabelecida, pois o filho que gerava mais desgosto aos pais converte-se, ao final, naquele que
proporciona a felicidade da família.
Neste ponto, podemos identificar, novamente, um diálogo com a tradição bíblica,
mais especificamente com a história de Davi e Golias, relatada no livro de I Samuel, 17: 1-58.
No tempo do reinado de Saul, os israelitas são afrontados em batalha pelos filisteus. Dentre
eles, levanta-se Golias um homem de seis côvados e um palmo de altura bramindo contra
os israelitas: “Hoje, desafio as companhias de Israel, dizendo: Dai-me um homem, para que
ambos pelejemos” (I Samuel, 17: 10). Durante quarenta dias, Golias ameaça-os de manhã e à
tarde, até que Davi, enviado por seu pai para ter notícia de seus três irmãos, escuta a afronta
do inimigo e se dispõe a enfrentá-lo. Portando uma funda e algumas pedras, Davi acerta a
fronte do inimigo e mata-o.
Podemos observar que ambas as narrativas são construídas com base num mesmo
enfoque temático: o embate entre a força física e as faculdades espirituais. Nesse confronto, o
menor e desprezado enfrenta e vence o “gigante ameaçador”. Tanto Polegar como Davi
apresentam-se como figuras menosprezadas por sua aparência física: Polegar é pequeno,
delicado e fala pouco; Davi, por sua vez, é desprezado por Golias por ser um “jovem ruivo e
de gentil aspecto” (I Samuel, 17: 42). No entanto, a despeito dessa inferioridade física, as duas
personagens são adotadas de coragem e inteligência, o que lhes possibilita a vitória sobre os
seus inimigos: o Ogro e o Golias
72
“où il fut reçu avec bien de la joie” (PERRAULT, 1990, 287).
58
“Le Petit Poucet” – Ilustração de Gustave Doré
59
Considerando todo o desenrolar da história, notamos que a ressalva inicialmente
apresentada pelo narrador, estabelecendo um contraste de imagens, possuía por finalidade
despertar no leitor/ouvinte certa dúvida acerca do modo como a família concebia Polegar. A
essa indicação, somam-se aquelas que enfatizam a cautela da pequena personagem:
“levantara-se de mansinho e fora colocar-se debaixo do banquinho de seu pai” (PERRAULT,
2007, p.122, grifo nosso);
73
“pegando os bonés de seus irmãos e o seu, foi, devagarinho
colocá-los na cabeça das sete filhas do Ogro” (Idem, p.126, grifo nosso);
74
“Desceram de
mansinho para o quintal e pularam o muro” (Idem, p.126, grifo nosso);
75
“tirou-lhe as botas
de mansinho e calçou-as” (Idem, p.127, grifo nosso).
76
Os fragmentos citados deixam entrever
o destaque conferido à inteligência e à destreza com que o pequeno herói manipula as
situações para contornar as circunstâncias de perigo enfrentadas no decorrer da narrativa.
Ao final da história, o narrador problematiza a moralidade das ações do Pequeno
Polegar e, por meio da inserção da opinião de outras pessoas, opera uma relativização do
desfecho dado à narrativa:
Há muitas pessoas que não concordam com esta última circunstância e,
segundo elas, o Pequeno Polegar nunca teria roubado nada do Ogro; na
verdade, ele nunca teria tido escrúpulos em tomar dele as botas de sete
léguas, porque precisava delas para ir atrás dos meninos. Essas pessoas
garantem também que o Pequeno Polegar, depois de calçar as botas do Ogro,
foi para a Corte, onde ele sabia que se tinha muita preocupação com um
Exército que estava a duzentas léguas de distância, e com o sucesso de uma
Batalha que se travara. Ele foi, dizem, encontrar-se com o Rei e disse-lhe
que, se assim desejasse, traria notícias do Exército antes do fim do dia. O Rei
prometeu-lhe uma grande importância em dinheiro se conseguisse tal feito.
O Pequeno Polegar trouxe notícias na mesma tarde, e como essa primeira
expedição o tornou conhecido, ganhava todo o dinheiro que queria; pois o
Rei lhe pagava muitíssimo bem (PERRAULT, 2007, p.127-8).
77
73
“il s'était levé doucement, et s'était glissé sous l'escabelle” (PERRAULT, 1990, 278, grifo nosso).
74
“et prenant les bonnets de ses frères et le sien, il alla tout doucement les mettre sur la te des sept filles de
l'Ogre” (PERRAULT, 1990, 285, grifo nosso).
75
“Ils descendirent doucement dans le Jardin, et sautèrent par-dessus les murailles (PERRAULT, 1990, 285,
grifo nosso).
76
“Le petit Poucet, s'étant approché de l'Ogre, lui retira doucement les bottes” (PERRAULT, 1990, 286, grifo
nosso).
77
“Il y a bien des gens qui ne demeurent pas d'accord de cette dernière circonstance, et qui prétendent que le
petit Poucet n'a jamais fait ce vol à l'Ogre; qu'à la vérité, il n'avait pas fait conscience de lui prendre ses bottes de
sept lieues, parce qu'il ne s'en servait que pour courir après les petits enfants. Ils assurent que lorsque le petit
Poucet eut chaussé les bottes de l'ogre, il s'en alla à la cour, il savait qu'on était fort en peine d'une armée qui
était à deux cents lieues de là, et du succès d'une bataille qu'on avait donnée. Il alla, disent-ils, trouver le roi, et
lui dit que s'il le souhaitait, il lui rapporterait des nouvelles de l'armée avant la fin du jour. Le roi lui promit une
grosse somme d'argent s'il en venait à bout. Le petit Poucet rapporta des nouvelles dès le soir même, et cette
première course l'ayant fait connaître, il gagnait tout ce qu'il voulait; car le roi le payait parfaitement bien”
(PERRAULT, 1990, p.287-8).
60
Para conferir maior credibilidade a essa segunda versão do desfecho da história, o
narrador procura especificar qual é a fonte das informações relatadas, destacando a intimidade
dessas pessoas com a família de Polegar: “Essas pessoas garantem que têm essa informação
de fonte segura, e dizem até que comeram e beberam na casa do Lenhador” (PERRAULT,
2007, p.128).
78
Por fim, o narrador afirma que, depois de ter exercido esse ofício de
mensageiro e ter acumulado dinheiro, Polegar compra cargos para seu pai e seus irmãos.
Sobre esse aspecto, Magnien (1990, p.313) ressalta que a venda de títulos da nobreza e de
cargos oficiais, mesmo que inúteis, era uma forma válida para se arrecadar verbas para o
Estado. Para a pesquisadora, Perrault, com uma pontinha de malícia, faz referência a esse
comércio de vaidades, do qual também se beneficiou. As considerações biográficas fornecidas
por Mário Laranjeira complementam as informações de Magnien: “Passando a ser controlador
geral das edificações, [Perrault] recebe 3.000 libras de honorários. Colbert criou para ele esse
cargo de que se provido sem desembolsar nada e que lhe rende 4.125 libras por ano”
(LARANJEIRA, 2007, p.215).
Com a apresentação dessa outra versão dos fatos, notamos que se concede ao
leitor/ouvinte a possibilidade de optar pelo desfecho que melhor lhe aprouver. A primeira
versão oferecida pela narrativa atua no sentido de satisfazer o sentimento do leitor da justiça
realizada, mediante o enaltecimento da superioridade da inteligência do pequeno em desfavor
da força bruta. No segundo desfecho proposto, verificamos uma nítida preocupação em
amenizar e justificar os meios empregados para a obtenção da riqueza, procurando conferir à
personagem qualidades próprias de “homens de bem”.
Por meio da análise apresentada, verificamos que a estrutura adotada para a
construção do conto valoriza as qualidades daquele que é considerado como frágil e
debilitado. O pequeno, além de ter suas virtudes ressaltadas, adquire um caráter heróico,
concentrando em si qualidades que só são reveladas nas ações que executa. Gaston Bachelard,
em A poética do espaço, aponta para a necessidade de se compreender que “na miniatura os
valores se condensam e se enriquecem” (BACHELARD, 1989, p.159). Dessa forma, o
verdadeiro valor da personagem não está na sua aparência, mas sim na sua essência, como
salienta a moralidade ao término da narrativa: “Às vezes, entretanto, é esse feio e mirrado /
Que faz feliz toda a família” (PERRAULT, 2007, p.128).
79
78
“Ces gens-là assurent le savoir de bonne part, et même pour avoir bu et mangé dans la maison du Bûcheron”
(PERRAULT, 1990, p.288).
79
“Quelque fois cependant c’est ce petit marmot / Qui fera le bonheur de toute la famille” (PERRAULT, 1990,
p.289).
61
“O Gato de Botas” – a esperteza em cena
A partilha dos bens deixados por um moleiro aos seus filhos dá início ao conto: “Um
moleiro deixou como únicos bens para os três filhos que tinha o seu Moinho, seu Burro e seu
Gato” (PERRAULT, 2007, p.101).
80
Sem demora, a partilha é feita: “O mais velho ficou com
o Moinho, o segundo com o Burro, e o mais novo com o Gato. Este último estava
inconsolável com a pobreza do seu quinhão” (Idem, p.101).
81
Em mais uma narrativa, o filho
mais novo se vê em uma situação de desvantagem em relação aos demais irmãos: “‘Meus
irmãos’, dizia, ‘poderão ganhar a vida honestamente, trabalhando juntos; quanto a mim,
quando tiver comido o meu gato, e tiver feito com sua pele um agasalho para as minhas mãos,
vou ter de morrer de fome’” (Idem, p.101).
82
Após essa apresentação objetiva das personagens, observamos que a narrativa detém-
se exclusivamente nas ações do Gato e de seu dono. Assumindo o papel de protagonista da
história, o Gato adquire voz e declara ao seu dono: “Não se aflija, meu Senhor, o senhor
precisa me dar um Saco e mandar fazer um par de botas para eu andar no mato, e verá que o
senhor não está tão malservido quanto acha” (PERRAULT, 2007, p.101
).
83
Por tê-lo visto
caçar ratazanas com muita habilidade, o dono acredita na possibilidade de ser ajudado pelo
animal:
Quando o Gato obteve o que pediu, calçou garbosamente
84
as botas e,
colocando o saco ao pescoço, pegou o cordão com as duas patas da frente e
se foi para uma charneca onde havia muitos coelhos. Colocou farelo e folhas
de serralha dentro do saco e, deitado como se estivesse morto, esperou que
algum coelhinho novo, pouco sabedor ainda das astúcias do mundo, viesse
se enfiar no saco para comer o que ele havia posto ali (PERRAULT, 2007,
p.101).
85
80
“Un meunier ne laissa pour tout biens à trois enfants qu'il avait, que son Moulin, son Ane et son Chat”
(PERRAULT, 1990, p.221).
81
“L'aîné eut le Moulin, le second eut l'Ane, et le plus jeune n'eut que le Chat. Ce dernier ne pouvait se consoler
d'avoir un si pauvre lot” (PERRAULT, 1990, p.221).
82
“Mes frères, disait-il, pourront gagner leur vie honnêtement en se mettant ensemble; pour moi, lorsque
j'aurai mangé mon chat, et que je me serai fait un manchon de sa peau, il faudra que je meure de faim”
(PERRAULT, 1990, p.221).
83
“Ne vous affligez point, mon maître, vous n'avez qu'à me donner un Sac, et me faire faire une paire de
Bottes pour aller dans les broussailles, et vous verrez que vous n'êtes pas si mal partagé que vous croyez”
(PERRAULT, 1990, p.221-2).
84
Na tradução de Renata Cordeiro (2004, p.96), o termo “bravement” é traduzido por “decididamente”,
salientando a firmeza da ação realizada pelo Gato.
85
“Lorsque le Chat eut ce qu'il avait demandé, il se botta bravement, et mettant son sac à son cou, il en prit les
cordons avec ses deux pattes de devant, et s'en alla dans une garenne il y avait grand nombre de lapins. Il mit
du son et des lasserons dans son sac, et s'étendant comme s'il eût été mort, il attendit que quelque jeune lapin peu
instruit encore des ruses de ce monde, vînt se fourrer dans son sac pour manger ce qu'il y avait mis”
(PERRAULT, 1990, p.222).
62
Notamos, nessa passagem, o contraste entre a astúcia do Gato de Botas e a
ingenuidade do coelhinho. Diferentemente do esperado, o Gato não leva sua caça para o seu
dono, e sim para o Rei: “Eis aqui, Majestade, um Coelho da Charneca que o Senhor Marquês
de Carabás (era o nome que resolveu dar ao seu Dono) me encarregou de presentear a Vossa
Majestade de sua parte” (PERRAULT, 2007, p.102).
86
Convém ressaltar, nesse trecho da
história, a ocorrência de uma inversão paródica do mito da criação do mundo proposto pela
tradição bíblica. De acordo com essa tradição, cabe ao homem o ofício de nomear os seres da
terra: Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo animal do campo e toda ave dos
céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda
alma vivente, isso foi o seu nome” (Gênesis, 2:19). No presente conto, essa hierarquização é
desfeita e o Gato assume o direito de nomear e de comandar as ações de seu próprio dono. O
filho do Moleiro subordina-se, portanto, à astúcia e à inteligência do Gato, sem desempenhar
nenhuma ação por iniciativa própria. Observamos nessa construção a subversão de uma
ordem, apresentando o mundo às avessas.
Na seqüência, o Gato executa uma rie de caçadas similares, continuando a levar
para o Rei, “durante dois ou três meses”, todos os “frutos da caça de seu Dono” (PERRAULT,
2007, p.102).
87
Essa excessiva cortesia evidencia a intenção calculista do Gato de estabelecer
com o Rei um vínculo vantajoso para seu dono e para si próprio. Valendo-se dessas
artimanhas, o Gato pretende promover a ascensão social de seu dono por meio do
favorecimento do Rei.
Depois de ganhar a confiança do Rei, o Gato de Botas planeja a simulação de um
afogamento do seu dono a fim de chamar a atenção da Majestade e propiciar o encontro entre
os dois: “Socorro! Socorro! o Marquês de Carabás está se afogando!” (PERRAULT, 2007,
p.102),
88
Considerando o fato de o seu patrão não possuir roupas adequadas para o encontro, o
Gato forja também o roubo das vestimentas do Marquês:
Enquanto retiravam o pobre Marquês do rio, o Gato aproximou-se da
Carruagem e disse ao Rei que, enquanto seu Senhor estava nadando, tinham
chegado alguns Ladrões que roubaram as suas roupas, embora tivesse
86
“Voilà, Sire, un Lapin de Garenne que Monsieur le Marquis de Carabas (c'était le nom qu'il lui prit en gré de
donner à son Maître), m'a chargé de vous présenter de sa part” (PERRAULT, 1990, p.222).
87
“Le Chat continua ainsi pendant deux ou trois mois à porter de temps en temps au Roi du Gibier de la chasse
de son Maître” (PERRAULT, 1990, p.223).
88
“Au secours, au secours, voilà Monsieur le Marquis de Carabas qui se noie!” (PERRAULT, 1990, p.223).
63
gritado com força: “pega ladrão”; o malandro as havia escondido debaixo de
uma grande pedra (PERRAULT, 2007, p.102).
89
Denunciando o caráter ardiloso do Gato, o narrador revela que “o malandro”
90
havia
escondido as roupas “debaixo de uma grande pedra”. Sem desconfiar de nada, o Rei
providencia ao suposto Marquês um dos trajes mais belos, realçando-lhe, assim, a boa
fisionomia a ponto de deixar a princesa “loucamente apaixonada”.
Em seguida, seguem todos a passeio. Para pôr em prática outra etapa do seu plano, o
Gato de Botas vai à frente da carruagem e, ao encontrar os trabalhadores do campo, lhes diz:
Gente boa que está ceifando, se vocês não disserem ao Rei que o campo que estão ceifando
pertence ao Senhor Marquês de Carabás, serão todos picadinhos miúdo como carne de
pastel” (PERRAULT, 2007, p.102-3, grifo do autor).
91
Assim, quando o Rei passa por
aquelas terras e pergunta aos trabalhadores a quem pertenciam, obtém como resposta: “É do
Senhor Marquês de Carabás, disseram todos juntos, pois a ameaça do Gato os havia
amedrontado” (Idem, p.103).
92
Para finalizar o plano estratégico formulado, o Gato dirige-se ao castelo do Ogro, que
era o dono de todas as terras pelas quais o Rei passara. Dissimulando os seus verdadeiros
interesses, o Gato aproxima-se do Ogro, já munido das informações necessárias para vencê-lo,
“dizendo que não queria passar perto do Castelo sem ter a honra de fazer-lhe uma reverência”
(PERRAULT, 2007, p.103).
93
. As precauções tomadas pelo Gato dão mostras do caráter
ardiloso e calculista que orienta as suas ações. Suas artimanhas revelam-se também nos
desafios que propõe ao ogro:
“Garantiram-me”, disse o Gato, “que o senhor tem o dom de se transformar
em toda espécie de Animais, que poderia, por exemplo, se transformar num
Elefante?” “Isso é verdade”, respondeu o Ogro bruscamente, “e para lhe
mostrar, o senhor vai me ver transformado num Leão” (PERRAULT, 2007,
p.103).
94
89
“Pendant qu'on retirait le pauvre Marquis de la rivière, le Chat s'approcha du Carrosse, et dit au Roi que dans
le temps que son Maître se baignait, il était venu des Voleurs qui avaient emporté ses habits, quoiqu'il eût crié au
voleur de toute sa force; le drôle les avait cachés sous une grosse pierre” (PERRAULT, 1990, p.223).
90
Renata Cordeiro (2004, p.99) opta pelo termo “espertalhão” para a tradução da palavra “drôle ”. Ambas
revelam a essência do Gato que, por meio de artifícios astuciosos, atinge seus objetivos.
91
“Bonnes gens qui fauchez, si vous ne dites au Roi que le pré que vous fauchez appartient à Monsieur le
Marquis de Carabas, vous serez tous hachés menu comme chair à patê” (PERRAULT, 1990, p.224).
92
“C'est à Monsieur le Marquis de Carabas, dirent-ils tous ensemble, car la menace du Chat leur avait fait
peur” (PERRAULT, 1990, p.224).
93
[…] disant qu'il n'avait pas voulu passer si près de son Château, sans avoir l'honneur de lui faire la révérence
(PERRAULT, 1990, p.225).
94
“On m'a assuré, dit le Chat, que vous aviez le don de vous changer en toutes sortes d'Animaux, que vous
pouviez par exemple vous transformer en Lion, en Éléphant? Cela est vrai, répondit l'Ogre brusquement, et
pour vous le montrer, vous m’allez voir devenir Lion” (PERRAULT, 1990, p.225).
64
“Le Maître Chat ou Le Chat de botté” – Ilustração de Gustave Doré
65
O medo do Gato de Botas é tão grande que, ao ver aquele leão na sua frente, ele salta
para o telhado. Quando o Ogro volta a sua forma natural, o Gato lhe faz outro desafio:
“‘Garantiram-me ainda’, disse o Gato, ‘mas eu não consigo acreditar, que o senhor tem
também o poder de tomar a forma de Animais pequenos, por exemplo, de se transformar em
um Rato, num Camundongo; confesso que acho isso totalmente impossível’” (PERRAULT,
2007, p.103).
95
Desafiado a comprovar a dimensão do seu poder, o Ogro torna-se vítima de
sua própria vaidade e transforma-se ingenuamente em um camundongo, esquecendo-se de que
estava na frente de um gato. Satisfeito com o resultado das suas artimanhas, o Gato
imediatamente “pulou em cima dele e o comeu” (Idem, p.103).
96
Na seqüência, percebendo que o Rei se aproximava do castelo, o Gato de Botas vai
ao seu encontro e lhe diz: “Seja Vossa Majestade bem-vinda ao Castelo do Senhor Marquês
de Carabás” (PERRAULT, 2007, p.104).
97
Espantado com a notícia, o Rei fica muito feliz
com as qualidades e a riqueza do Marquês, oferecendo-lhe sua filha em casamento. No
mesmo dia, os jovens se casam e o Gato, graças à sua astúcia, “se tornou um grande Senhor, e
nunca mais correu atrás de ratos, a não ser para se divertir” (Idem, p.104).
98
De modo
semelhante ao conto Le Petit Poucet”, aquele que era visto como sinônimo de infortúnio é
convertido em agente da mudança de vida.
Aqui também, o conto apresenta ao final duas opções de moralidade. Na primeira,
uma valorização da esperteza como o bem maior que um jovem pode ambicionar: Para os
jovens, segundo a usança / Valem mais a indústria e a esperteza / Que a já garantida
riqueza(PERRAULT, 2007, p.104, grifo autor). Na segunda moralidade, podemos observar
um enaltecimento da boa aparência – fator essencial da noção de civilité que circunda o século
de Luís XIV: É que a roupa, as feições e a juventude / Para inspirar ternura, amiúde / São
os meios cujo efeito é poderoso (Idem, p.104, grifo autor).
95
“On m'a assuré encore, dit le Chat, mais je ne saurais le croire, que vous aviez aussi le pouvoir de prendre la
forme des plus petits Animaux, par exemple, de vous changer en un Rat, en une souris; je vous avoue que je
tiens cela tout à fait impossible” (PERRAULT, 1990, p.225).
96
“il se jeta dessus et la mangea” (PERRAULT, 1990, p.225).
97
“Votre Majesté soit la bienvenue dans le Château de Monsieur le Marquis de Carabas” (PERRAULT, 1990,
p.225).
98
“devint grand Seigneur, et ne courut plus après les souris, que pour se diverter” (PERRAULT, 1990, p.226).
66
“O Chapeuzinho Vermelho” – astúcia versus ingenuidade
O conto “Le Petit Chaperon Rouge” assume uma configuração diferenciada em
relação às demais narrativas reunidas em Contes de ma mère l’oye. Nele não são utilizados
recursos mágicos; o único expediente que faz remissão à atmosfera própria do maravilhoso é
o fato de o Lobo possuir a faculdade da fala. Além desse aspecto, o conto rompe com as
propriedades tradicionais do gênero ao fazer a opção por um final trágico, dispensando a
habitual promessa de felicidade eterna tão característica dos finais dos contos de fadas. Por
conta dessas diferenciações, a tradição crítica tem classificado essa narrativa como um conto
moral ou “conte d’avertissement” (“conto de advertência”) (Cf. SORIANO, 1977, p.148).
O conto inicia-se com uma breve apresentação da protagonista, uma “menina de
Aldeia, a mais bonita que se poderia ver” e que era chamada por todos de Chapeuzinho
Vermelho, devido ao chapeuzinho que sua avó lhe havia dado e “que lhe ficava tão bem”
(PERRAULT, 2007, p.91).
99
Além de contribuir para a elaboração imaginativa da
personagem, as poucas informações dadas a respeito da menina supervalorizam sua beleza e
sua boa aparência, como uma forma de destacá-la dentre as demais da Aldeia.
Na seqüência, o narrador concentra sua narrativa em um dado acontecimento: “Um
dia, sua mãe [...] disse-lhe: ‘Vai ver como está a saúde da tua avó, pois me disseram que ela
andava adoentada; leva para ela uma broa e este potinho de manteiga” (PERRAULT, 2007,
p.91).
100
Diante da ordem recebida, Chapeuzinho Vermelho “pôs-se imediatamente a caminho
para ir à casa da avó, que morava numa outra Aldeia” (PERRAULT, 2007, p.91).
101
Nesse
trecho, notamos o cuidado do narrador de relatar a reação da menina diante da tarefa
designada por sua mãe, enfatizando o seu comportamento obediente.
Enquanto passava pelo bosque, Chapeuzinho encontra com um lobo:
que ficou com uma enorme vontade de comê-la; mas não quis arriscar, por
causa de alguns Lenhadores que estavam na Floresta. Perguntou aonde ela
ia; a pobre criança, que não sabia que era perigoso parar para ficar escutando
99
“Il était une fois une petite fille de Village, la plus jolie qu'on eût su voir; sa mère en était folle, et sa mère-
grand plus folle encore. Cette bonne femme lui fit faire un petit chaperon rouge, qui lui seyait si bien, que partout
on l'appelait le Petit chaperon rouge” (PERRAULT, 1990, p.195).
100
“Un jour sa mère, ayant cuit et fait des galettes, lui dit: ‘Va voir comment se porte ta mère-grand, car on m'a
dit qu'elle était malade, porte-lui une galette et ce petit pot de beurre’” (PERRAULT, 1990, p.195).
101
“[...] partit aussitôt pour aller chez sa mère-grand, qui demeurait dans un autre Village”(PERRAULT, 1990,
p.195).
67
um Lobo, disse-lhe: “Vou visitar a minha Vovó [...] (PERRAULT, 2007,
p.91).
102
A passagem acima condensa vários aspectos significativos para a construção do
sentido da narrativa. Primeiramente, por apresentar uma nova personagem que atuará
decisivamente para que ocorra uma mudança no rumo da história: o compadre Lobo. Sem
nenhuma outra informação a respeito dessa figura, o qualificativo “compadre” é a única
designação dada pelo narrador à personagem. Contudo, esse modo de tratamento condensa o
tipo de lobo com quem Chapeuzinho acabava de se deparar, pois não se trata de qualquer
lobo, mas sim, de um que se passa por amigo, por companheiro, por camarada, mas que, na
verdade, demonstra apenas um falso interesse pelas tarefas de sua vítima. Segundo Catherine
Magnien (1990, p.304) esse qualificativo viria da obra de La Fontaine (1621-1695),
empregado para assinalar a falta de escrúpulos morais de alguns animais, como a Raposa e o
Lobo.
Em segundo lugar, o trecho citado reforça a caracterização da protagonista,
lembrando ao leitor/ouvinte que se trata de uma menina, de uma criança que, sem saber dos
perigos da vida, age ingenuamente, dando atenção àquilo que seria uma ameaça à sua
integridade. Observamos, assim, o encontro de duas personagens essencialmente antagônicas.
A primeira, caracteriza-se pela astúcia, representada na figura do Lobo que, apesar da vontade
que sente de comer a menina imediatamente, teve noção do perigo que correria se ali mesmo a
comesse, devido à presença dos Lenhadores na floresta. Chapeuzinho Vermelho,
desprovida de qualquer noção do perigo que corria, caracteriza-se pela sua ingenuidade:
“Vou visitar a minha Vovó, e levar-lhe uma broa com um potinho de
manteiga que minha Mãe mandou para ela”. “Ela mora muito longe?”
perguntou o Lobo. “Ah, sim!, disse o Chapeuzinho Vermelho, “é depois
daquele moinho que você está vendo longe, na primeira casa da Aldeia
(PERRAULT, 2007, 94).
103
Na cena acima, verificamos a sagacidade do Lobo. Ardilosamente, ele manifesta
certo interesse pelo que realizaria Chapeuzinho Vermelho e, por meio do jogo de perguntas e
respostas, consegue as informações necessárias para conseguir planejar uma forma de
viabilizar o que tanto desejava: matar a sua fome. Com uma estratégia traçada, o Lobo faz
uma proposta desafiadora à menina: “Pois bem”, disse o Lobo, “eu também quero ir visitá-la;
102
“En passant dans un bois elle rencontra compère le Loup, qui eut bien envie de la manger, mais il n'osa, à
cause de quelques Bûcherons qui étaient dans la Forêt. Il lui demanda où elle allait; la pauvre enfant, qui ne
savait pas qu'il est dangereux de s'arrêter à écouter un Loup, lui dit:” (PERRAULT, 1990, p.195-6).
103
“‘Je vais voir ma Mère-grand, et lui porter une galette avec un petit pot de beurre que ma Mère lui envoie.
Demeure-t-elle bien loin? lui dit le Loup. Oh! oui, dit le petit chaperon rouge, c'est par delà le moulin que vous
voyez tout là-bas, là-bas, à la première maison du Village ” (PERRAULT, 1990, p.196).
68
eu vou por este caminho aqui, e tu, por aquele ali, e a gente vai ver quem chega primeiro”
(PERRAULT, 2007, 94).
104
Escolhendo para si o caminho mais curto a fim de ganhar tempo,
o Lobo age com rapidez, sem desviar a atenção do seu objetivo: chegar à casa da vovó.
Chapeuzinho Vermelho, por sua vez, segue pelo caminho mais longo, “brincando de
colher flores e avelãs, correndo atrás das borboletas e fazendo brinquedos com as florzinhas
que encontrava” (PERRAULT, 2007, 94).
105
Nesse percurso, a menina deixa transparecer em
suas ações a ingenuidade de sua essência, evidenciando a despreocupação típica de uma
criança que se deixa entreter com as coisas que encontra à sua frente. Por meio da descrição
do comportamento de cada personagem se estabelece um nítido contraste entre a
determinação do Lobo e a dispersão de uma criança sem malícia.
Nesse ponto, o foco da narrativa desloca-se das ações de Chapeuzinho Vermelho
para as do Lobo e sua chegada à casa da vovó é relatada da seguinte forma: “Toc, toc.
“Quem é” “É a sua netinha, Chapeuzinho Vermelho (disse o Lobo imitando a voz da
menina); estou lhe trazendo uma broa e um potinho de manteiga que a Mamãe mandou para a
senhora” (PERRAULT, 2007, p.92).
106
Para ter acesso à parte interna da casa da Vovó, o Lobo assume, habilmente, a
identidade da menina. Observamos que o mascaramento do Lobo se evidencia tanto pelo
disfarce da voz quanto pela reprodução da fala de Chapeuzinho Vermelho sobre os alimentos
que levaria para a sua avó. A velhinha, que se encontrava acamada, não identifica qualquer
diferença no tom da voz, informando ao Lobo como entrar na casa: “Puxa o barbante que o
trinco se abre” (PERRAULT, 2007, p.92).
107
104
“ – ‘He bien!’, dit le Loup, ‘je veux l’aller voir aussi; je m'y en vais par ce chemin ci, et toi par ce chemin-là,
et nous verrons qui plus tôt y sera’” (PERRAULT, 1990, p.196).
105
“la petite fille s'en alla par le chemin le plus long, s'amusant à cueillir des noisettes, à courir après des
papillons, et à faire des bouquets des petites fleurs qu'elle rencontrait” (PERRAULT, 1990, p.196).
106
“Toc, toc. ‘Qui est là?C'est votre fille le petit chaperon rouge (dit le Loup, en contrefaisant sa voix) qui
vous apporte une galette et un petit pot de beurre que ma Mère vous envoie” (PERRAULT, 1990, p.196).
107
“Tire la chevillette, la bobinette cherra” (PERRAULT, 1990, p.196).
69
“Le Petit Chaperon Rouge” – Ilustração de Gustave Doré
70
Rompendo com a estrutura de troca de falas, o narrador reassume a voz narrativa e,
na agilidade do ritmo narrativo, aponta as ações realizadas pelo Lobo: “O Lobo puxou o
barbante e a porta se abriu. Ele se atirou sobre a boa senhora e devorou-a num abrir e fechar
de olhos, pois fazia três dias que não comia. Em seguida fechou a porta, foi deitar-se na cama
da Vovó e ficou esperando Chapeuzinho Vermelho” (PERRAULT, 2007, p.92).
108
Nesse
trecho, percebemos a presença desses seis verbos “puxou”; “se atirou”; “devorou-a”;
“fechou”; “foi deitar-se”; “ficou esperando” que possuem como único sujeito o lobo e que
se justapõem em um único parágrafo, designando os diferentes movimentos realizados pela
personagem. Com essa seqüência, podemos constatar que o ritmo narrativo se ajusta à fome
do Lobo, criando uma unidade entre o tema e a forma.
Toc, toc. Quem é?” O Chapeuzinho Vermelho, que ouviu a voz grossa do
Lobo, ficou com medo de início, mas julgando que a Vovó estivesse
resfriada, respondeu-lhe: “É sua neta, o Chapeuzinho Vermelho, que está lhe
trazendo uma broa e um potinho de manteiga que Mamãe mandou para a
senhora”. O Lobo gritou, afinando um pouco a voz: “Puxa o barbante que o
trinco se abre”. O Chapeuzinho Vermelho puxou o barbante e a porta se
abriu (PERRAULT, 2007, p.92).
109
Há, outra vez, uma mudança na forma narrativa, que passa da narração para o
discurso direto. Contudo, verificamos que o diálogo que se instaura entre o Lobo e o
Chapeuzinho é a repetição do diálogo entre o Lobo e a Vovó. A diferença entre esta cena e a
anterior está no fato de que agora o Lobo se disfarça de Vovó, evidenciando a sua habilidade
de assumir diversas identidades. Apesar do deslize do Lobo de não suavizar o tom da sua voz
ao responder para Chapeuzinho, a ingenuidade da garota aldeã não lhe permite reconhecer a
voz grossa do Lobo. Embora sinta estranhamento e medo, Chapeuzinho Vermelho associa
essa alteração à má saúde da avó, agindo mais uma vez como uma criança sem malícia.
Por meio da dissimulação – “escondendo-se na cama, debaixo das cobertas” –,
característica que marca todas as ações do Lobo, a falsa vovó pede à sua neta que guarde o
bolo e a manteiga e que, em seguida, venha deitar-se com ela, convite estratégico para
aproximar-se da menina. Sem suspeitar de nada, “Chapeuzinho Vermelho despe-se e vai pôr-
se na cama, onde ficou muito espantada com o jeito como a Vovó era sem roupa”
108
“Le Loup tira la chevillette, et la porte s'ouvrit. Il se jeta sur la bonne femme, et la vora en moins de rien;
car il y avait plus de trois jours qu'il n'avait mangé. Ensuite il ferma la porte, et s'alla coucher dans le lit de la
Mère-grand, en attendant le petit chaperon rouge, qui quelque temps après vint heurter à la porte” (PERRAULT,
1990, p.196).
109
“Toc, toc. ‘Qui est là?’ le Petit Chaperon rouge, qui entendit la grosse voix du Loup, eut peur d'abord, mais
croyant que sa Mère-grand était enrhumée, répondit: ‘C'est votre fille le Petit Chaperon rouge, qui vous apporte
une galette et un petit pot de beurre que ma mère vous envoie’. Le Loup lui cria en adoucissant un peu sa voix:
‘Tire la chevillette, la bobinette cherra’. Le petit chaperon rouge tira la chevillette, et la porte s'ouvrit”
(PERRAULT, 1990, p.196-7).
71
(PERRAULT, 2007, p.92).
110
Inocentemente, ao ver a forma diferente da suposta Vovó,
Chapeuzinho, como toda criança em sua ingenuidade e curiosidade, ao invés de correr, passa
a apontar o que de estranho lhe parece:
“Vovozinha, como a senhora tem braços grandes!” – “É para te abraçar
melhor, minha netinha.” “Vovozinha, como a senhora tem pernas
grandes!” “É para correr melhor, minha netinha.” “Vovozinha, como a
senhora tem orelhas grandes!” “É para melhor te escutar, minha netinha.”
“Vovozinha, como a senhora tem olhos grandes!” – “É para te ver melhor,
minha netinha.” “Vovozinha, como a senhora tem dentes grandes!” “É
para te comer” (PERRAULT, 2007, p.92).
111
Verificamos, nessa parte final da história, uma reiteração da mesma estrutura
discursiva. Com um jogo de perguntas e respostas, com a repetição da construção frasal e com
a apresentação gradual das partes do corpo, a narrativa adquire certa dramaticidade e atinge
seu ponto culminante na última resposta: “É para te comer”
.
Rompendo abruptamente com a
série que vinha sendo empregada, o Lobo anuncia e realiza seu desejo: “E dizendo isso, o
Lobo mau se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a comeu” (PERRAULT, 2007, p.92).
112
No auge da tensão, a narrativa se encerra.
Pela análise realizada do conto “Chapeuzinho Vermelho”, podemos constatar a
oposição entre a ingenuidade da menina aldeã e a astúcia do Lobo que, apesar de ser chamado
pelo narrador de “compadre” Lobo, revela-se, por meio de suas ações, um típico enganador
que, ardilosamente, se disfarça, mantendo uma aparência que se opõe à sua essência. No que
concerne à estrutura do conto, observamos que a repetição, a presença dos diálogos e a
brevidade das descrições são recursos que cooperaram para a construção do sentido do texto,
conferindo-lhe dramaticidade e um ritmo narrativo que se ajusta ao fluxo das ações. Assim, a
forma como o narrador apresenta os fatos conduz, com maior rapidez, o leitor/ouvinte ao
desfecho da história e lá o abandona, deixando-o sob o impacto da tragédia.
Para finalizar a narrativa, a moralidade chama a atenção do leitor, sobretudo das
meninas, para a existência de lobos “melosos”, alertando para o fato de que, de todos, “é o
mais perigoso”. Notamos, assim, que na moralidade o verbo “manger” (em português: comer)
adquire uma conotação para além do simples ato de ingestão de alimentos, passando a
110
“Le Petit Chaperon rouge se déshabille, et va se mettre dans le lit, où elle fut bien étonnée de voir comment sa
Mère-grand était faite en son déshabillé...” (PERRAULT, 1990, p.197).
111
“Ma Mère-grand, que vous avez de grands bras! – C'est pour mieux t'embrasser, ma fille. – Ma Mère-grand,
que vous avez de grandes jambes! C'est pour mieux courir, mon enfant. Ma Mère-grand, que vous avez de
grandes oreilles! C'est pour mieux écouter, mon enfant. Ma Mère-grand, que vous avez de grands yeux!
C'est pour mieux voir, mon enfant. Ma Mère-grand, que vous avez de grandes dents! C'est pour te manger”
(PERRAULT, 1990, p.197).
112
“Et en disant ces mots, le méchant Loup se jeta sur le Petit Chaperon Rouge, et la mangea” (PERRAULT,
1990, p.197).
72
designar o ato sexual; e, o lobo, deixa de designar o animal e passa a referir-se a um tipo
determinado de homem. Desse modo, com a inserção da moralidade ao término da narrativa,
constatamos a preocupação com a instrução das jovens para os perigos da vida. Para Marina
Warner (1999, p.215), há na moralidade do conto certa ironia, pois “o lobo já não representa o
ambiente selvagem, mas sim os enganos da cidade e dos homens que nela exercem
autoridade”.
“Cinderela ou O sapatinho de vidro” – o jogo entre civilité e incivilité
O conto inicia-se com uma breve exposição das personagens e da relação entre elas:
Era uma vez um Gentil-homem que desposou em segundas núpcias uma
mulher, a mais altiva e orgulhosa que se tenha jamais visto. Tinha ela duas
filhas com seu temperamento e que se pareciam com ela em tudo. O Marido,
por sua parte, tinha uma filha jovem, mas de uma doçura e de uma bondade
sem par; nisso ela puxara à mãe, que era a melhor pessoa do mundo
(PERRAULT, 2007, p.109).
113
Nessa apresentação, observamos que o narrador estrutura o seu discurso de modo a
estabelecer dois grupos antagônicos de personagens: de um lado, a segunda mulher com suas
duas filhas altivas e soberbas; de outro, o Marido, um nobre, e sua filha que se assemelhava à
primeira mulher pela doçura e bondade. Essa divisão dicotômica das personagens é enfatizada
quando o narrador afirma que logo após a realização do casamento, “a Madrasta deu largas ao
seu mau humor; não podia suportar as boas qualidades daquela moça que tornavam as suas
filhas ainda mais odiáveis” (PERRAULT, 2007, p.109).
114
Percebemos, nesse comentário do
narrador, o contraste entre as boas maneiras da filha do Marido e a postura inadequada das
filhas da Madrasta, o que deixa transparecer uma preocupação com as regras de civilidade.
Além de servir como justificativa para as más ações da Madrasta, a sugestão do seu
sentimento de inveja revela também o tipo de relação que se estabelece entre os componentes
daquela família:
Encarregou-a das ocupações mais vis da Casa: era ela quem limpava a louça
e as escadas, que esfregava o quarto da Senhora e os das Senhoritas suas
113
“Il était une fois un Gentilhomme qui épousa en secondes noces une femme, la plus hautaine et la plus fière
qu'on eût jamais vue. Elle avait deux filles de son humeur, et qui lui ressemblaient en toutes choses. Le Mari
avait de son côté une jeune fille, mais d'une douceur et d'une bonté sans exemple; elle tenait cela de sa Mère, qui
était la meilleure personne du monde” (PERRAULT, 1990, p.245).
114
“la Belle-mère fit éclater sa mauvaise humeur; elle ne put souffrir les bonnes qualités de cette jeune enfant,
qui rendaient ses filles encore plus haïssables” (PERRAULT, 1990, p.245).
73
filhas; dormia no lugar mais alto da casa, no sótão, num miserável colchão
de palha, enquanto suas irmãs estavam em quartos assoalhos, onde tinham
leitos da última moda e espelhos onde se viam dos pés à cabeça. [...] Quando
terminava o trabalho, ia colocar-se no canto da lareira e sentar-se nas cinzas
do borralho, o que fazia com que, de costume, a chamassem em casa de
Buncinzela. A caçula, que não era tão mal-educada como a primogênita,
chamava-a de Gata Borralheira ou Cinderela (PERRAULT, 2007, p.1109-
10).
115
Os recursos discursivos descrição e comparação empregados, nessa parte do
conto, colaboram para sensibilizar o leitor em relação às injustiças sofridas por Cinderela.
Desse modo, a informação das tarefas de que é incumbida a jovem e, na seqüência, a
descrição do seu quarto que destaca as condições precárias em que dormia e a
pormenorização dos quartos de suas meias-irmãs que possuíam assoalho e contavam com
espelhos (artigo de luxo) destacam, por meio do contraste, o desprezo sofrido pela
personagem. O tratamento desprezível concedido a Cinderela manifesta-se também na própria
forma como é chamada por sua Madrasta e uma de suas meias-irmãs. Segundo Renata
Cordeiro,
Cendrillon (palavra antiga e título do conto francês) era o caldeirão que
ficava pendurado no átrio da lareira. Já Cucendron como a chamavam os
da casa quer dizer que a personagem ficava sentada (punha a bunda cul)
no borralho, nas cinzas, como os gatos costumam fazer. [...] Na Antigüidade,
sentar-se nas cinzas era sinal de dor, humilhação
116
ou penitência
(CORDEIRO, 2004, p.122).
Na seqüência, o narrador procura salientar as qualidades de Cinderela: “A pobre
moça sofria tudo com paciência, e não ousava queixar-se ao seu pai. [...] Gata Borralheira,
com suas roupas horrorosas, era mesmo assim cem vezes mais bonita que as irmãs, ainda que
estas se vestissem magnificamente” (PERRAULT, 2007, p.110).
117
115
“Elle la chargea des plus viles occupations de la Maison: c'était elle qui nettoyait la vaisselle et les montées,
qui frottait la chambre de Madame, et celles de Mesdemoiselles ses filles. Elle couchait tout en haut de la
maison, dans un grenier, sur une méchante paillasse, pendant que ses urs étaient dans des chambres
parquetées, elles avaient des lits des plus à la mode, et des miroirs où elles se voyaient depuis les pieds
jusqu'à la tête... / Lorsqu'elle avait fait son ouvrage, elle s'allait mettre au coin de la cheminée, et s'asseoir dans
les cendres, ce qui faisait qu'on l'appelait communément dans le logis Cucendron. La cadette, qui n'était pas si
malhonnête que son aînée, l'appelait Cendrillon” (PERRAULT, 1990, p.245-6).
116
Na tradição bíblica é comum encontrar essa atitude de cobrir-se com cinzas para simbolizar um estado de
humilhação. No livro de Ester (4:1-4), Mardoqueu, ao saber da sentença de morte prometida a todos os judeus
por Hamã, “rasgou Mardoqueu as suas vestes, e vestiu-se de um pano de saco com cinzas, e saiu pelo meio da
cidade, e clamou com grande e amargo clamor; / e chegou adiante da porta do rei; porque ninguém vestido de
pano de saco podia entrar pela porta do rei. / Em todas as províncias aonde a palavra do rei e a sua lei chegavam
havia entre os judeus grande luto, com jejum, e choro, e lamentação; e muitos estavam deitados em pano de saco
e em cinzas”
117
“La pauvre fille souffrait tout avec patience, et n'osait s'en plaindre à son père. [...] Cendrillon, avec ses
méchants habits, ne laissait pas d'être cent fois plus belle que ses sœurs, quoique tues très magnifiquement
(PERRAULT, 1990, p.246).
74
Rompendo com as descrições das personagens e da relação entre elas, a narrativa
detém-se em um novo episódio: “Aconteceu que o filho do Rei deu um baile e convidou todas
as pessoas de boa estirpe: nossas duas Senhoritas também foram convidadas, pois faziam bela
figura na Região” (Idem, p.110).
Antes de passar a esse momento, o narrador se ocupa da postura das irmãs nos dias
que antecedem a festa. A alternância entre a arrogância/mesquinharia das duas irmãs e a
bondade/dedicação de Cinderela induz o leitor/ouvinte a formular um sentimento de
indignação pelas injustiças sofridas pela protagonista: estão elas muito felizes e
ocupadíssimas em escolher as roupas e os penteados que lhes ficassem melhor; novo
sacrifício para a Gata Borralheira, pois era ela quem passava as roupas das irmãs e engomava
seus punhos e plissados” (PERRAULT, 2007, p.110).
118
Observamos que a felicidade das
duas irmãs se converte em mais tarefas para Cinderela, cabendo à jovem, além dos vis
trabalhos designados pela Madrasta, cuidar das vestimentas de suas meias-irmãs.
Para reforçar a altivez das filhas da Madrasta, o narrador concede voz a essas
personagens e, por meio da reprodução de suas falas, explicita a valorização da moda e da
manutenção de uma boa aparência:
“Eu”, diz a mais velha, “porei o meu vestido de veludo vermelho e minhas
rendas da Inglaterra”. “Eu”, diz a caçula, “só terei a minha saia simples;
mas, em compensação, porei o meu manto de flores de ouro e meu barrete de
diamantes, que não é dos mais comuns.” Mandaram chamar a boa chapeleira
para arrumar os chapéus de duas camadas e comprar pintas de tafetá preto
119
na melhor Artesã (PERRAULT, 2007, p.110).
120
Verificamos a preocupação das irmãs em sustentar o luxo e o requinte de suas
roupas, como forma de ostentação e distinção social. Tanto o tipo de tecido quanto as rendas
inglesas e os bordados em ouro remetem a questões comuns no tempo de Luís XIV, período
no qual a moda era tema central.
121
Confiando no bom gosto de Cinderela, as irmãs a chamam
para auxiliar nos preparativos:
118
“Les voilà bien aises et bien occupées à choisir les habits et les coiffures qui leur siéraient le mieux; nouvelle
peine pour Cendrillon, car c'était elle qui repassait le linge de ses sœurs et qui godronnait leurs manchettes”
(PERRAULT, 1990, p.246).
119
Segundo Catherine Magnien (1990, p.309), naquela época, as mulher colocavam pequeno pedaços de tafetá
preto no rosto a fim de ornamentá-lo e de ressaltar a brancura da pele.
120
“‘Moi, dit l'aînée, je mettrai mon habit de velours rouge et ma garniture d'Angleterre. Moi, dit la cadette, je
n'aurai que ma jupe ordinaire; mais en récompense, je mettrai mon manteau à fleurs d'or, et ma barrière de
diamants, qui n'est pas des plus indifférentes’ On envoya quérir la bonne coiffeuse, pour dresser les cornettes à
deux rangs, et on fit acheter des mouches de la bonne Faiseuse” (PERRAULT, 1990, p.246-7).
121
Para maiores informações, consultar Georges Mongrèdien, em A vida quotidiana no tempo de Luís XIV, no
qual dedica um capítulo do livro à discussão sobre as vestimentas e a moda nessa época.
75
Borralheira as aconselhou o melhor que pôde e até se ofereceu para penteá-
las, o que elas aceitaram. Enquanto eram penteadas, elas diziam: “Cinderela,
você gostaria de ir ao baile?” “Ora, Senhoritas, vocês estão zombando de
mim. Aquele não é o lugar que me convém.” “Tem razão, iriam dar muita
risada se vissem a Buncinzela chegando no Baile. Qualquer outra que não
Cinderela lhes teria feito penteados bem tortos; mas ela era boazinha e
penteou-as perfeitamente bem (PERRAULT, 2007, p.110).
122
Opondo-se à arrogância das duas irmãs, Cinderela apresenta-se solícita e, em troca, é
humilhada. Observamos, nesse ponto, a evidente distinção estabelecida entre a jovem e as
duas irmãs, na medida em que Cinderela não se considera digna de freqüentar tal ambiente,
pois, o baile restringe-se àqueles que pertencem a classe civilizada, enobrecida. Verificamos,
uma vez mais, que a construção da personagem principal se realiza com base no contraste das
figuras que a ela se opõem a Madrasta e as filhas. Para enfatizar esse procedimento, o
narrador justapõe, em seu discurso, as ações de uma e das outras, de modo que os aspectos
negativos apontados nas atitudes da madrasta e das suas duas filhas sirvam de reforço para
exaltar o comportamento positivo de Cinderela.
Enfim, chega o dia do baile. Todos saíram “e Cinderela as acompanhou com o olhar
enquanto pôde; quando não as viu mais, começou a chorar” (PERRAULT, 2007, p.110).
123
Vendo a jovem chorar, “a Madrinha, que era uma Fada, disse-lhe: ‘Você gostaria de ir ao
baile, não é?’ ‘Ah, sim!’ disse Cinderela suspirando. ‘Pois bem, você vai ser uma boa
menina?’” (Idem, 110-1).
124
Ao reproduzir a fala de Cinderela, o narrador confere maior expressão à sua tristeza
por não ir ao baile, enredando ainda mais o leitor/ouvinte na trama narrativa. A informação de
que a Madrinha é dotada de poderes mágicos é dada apenas ao espectador; Borralheira
permanece sem saber dessa excepcionalidade, até o momento em que as transformações
começam: “deixando apenas a casca, bateu nela com sua varinha, e a abóbora foi
imediatamente transformada em uma bela carruagem toda dourada” (PERRAULT, 2007,
122
On envoya quérir la bonne coiffeuse, pour dresser les cornettes à deux rangs, et on fit acheter des mouches
de la bonne Faiseuse: elles appelèrent Cendrillon pour lui demander son avis, car elle avait goût bon. Cendrillon
les conseilla le mieux du monde, et s'offrit même à les coiffer; ce qu'elles voulurent bien. En les coiffant, elles lui
disaient: ‘Cendrillon, serais-tu bien aise d'aller au Bal? Hélas, Mesdemoiselles, vous vous moquez de moi, ce
n'est pas ce qu'il me faut. Tu as raison, on rirait bien si on voyait un Cucendron aller au Bal. Une autre que
Cendrillon les aurait coiffées de travers; mais elle était bonne, et elle les coiffa parfaitement bien. Elles furent
près de deux jours sans manger, tant elles étaient transportées de joie” (PERRAULT, 1990, p.246-247).
123
“on partit, et Cendrillon les suivit des yeux le plus longtemps qu'elle put; lorsqu'elle ne les vit plus, elle se mit
à pleurer” (PERRAULT, 1990, p.247).
124
“Sa Marraine, qui était Fée, lui dit: Tu voudrais bien aller au Bal, n’est-ce pas? Hélas oui, dit Cendrillon en
soupirant. – Hé bien, seras-tu bonne fille?” (PERRAULT, 1990, p.247).
76
p.111).
125
O elemento maravilhoso é introduzido no conto e, como se espera dessa forma
literária, ele não causa qualquer estranhamento ou surpresa na personagem.
Depois de providenciado o transporte e a nova roupa, Cinderela parte para o baile.
Sua chegada causa grande impacto:
Fez-se então um grande silêncio; todos pararam de dançar e os violinistas
não tocaram mais, tão atentos estavam a contemplar as grandes belezas
daquela desconhecida. Ouviu-se um ruído confuso: “Oh, como é bela!” [...]
Todas as Damas estavam atentas a considerar o seu penteado e as suas
roupas para mandar fazer iguais no dia seguinte, [...] Ela dançou com tanta
graça que foi admirada ainda mais. (PERRAULT, 2007, p.112).
126
No fragmento citado, percebemos a valorização da aparência, pois mesmo sendo uma
“desconhecida”, Borralheira, com sua presença impecável, chama a atenção de todos.
Podemos notar, ainda, a preocupação das Damas com a moda, aspecto fundamental para a
manutenção da tão prezada civilité. Como declara Mongrèdien, em A vida quotidiana no
tempo de Luís XIV: “Elas [as mulheres] corariam de vergonha se fossem visitar alguém ou
então de passeio pelos Cours-la-Reine com uma toilette fora de moda que as tornaria motivo
de chacota para toda a gente distinta” (MONGRÉDIEN, s.d., p.73). Considerando, portanto, a
importância dada às vestimentas, compreendemos que a descrição dos preparativos das filhas
da Madrasta para o baile, como o cuidado com o tecido, a combinação das peças de roupa, os
adornos, as jóias e os penteados, contribui para reforçar ainda mais a beleza de Cinderela.
O desejo das demais Damas de imitar o vestido de Borralheira evidencia o efeito de
padronização gerado pela ambição de mostrar-se civilizado. Desse modo, imitá-la converte-se
numa forma de afirmar-se e de distinguir-se socialmente. Como declara Tony Gheeraert
(2007, p.24, tradução nossa), Cinderela torna-se “uma alegoria da civilidade”.
127
A jovem
consegue unir à sua bela aparência, uma essência dócil e educada que se traduz em gestos
polidos: “Ela foi sentar-se ao lado das irmãs e lhes fez mil gentilezas: repartiu com elas as
laranjas e os limões,
128
que o Príncipe lhe havia dado” (PERRAULT, 2007, p.112, grifo
125
“n’ayant laissé que l’ecorce,la frappa de sa baguette, et la citrouille fut aussitôt changée en un beau carosse
tout doré” (PERRAULT, 1990, p.247).
126
“Il se fit alors un grand silence; on cessa de danser, et les violons ne jouèrent plus, tant on était attentif à
contempler les grandes beautés de cette inconnue. On n'entendait qu'un bruit confus: ‘Ah, qu'elle est belle! [...]
Toutes les Dames étaient attentives à considérer sa coiffure et ses habits, pour en avoir dès le lendemain de
semblables, [...] elle dansa avec tant de grâce, qu'on l'admira encore davantage” (PERRAULT, 1990, p.249).
127
“une allégorie de la civilité” (GHEERAERT, 2007, p.24).
128
Em nota, Mário Laranjeira esclarece que “trata-se de laranjas e limões doces que, na época, vinham da
Provença, de Portugal ou da China. Era um luxo servi-los em bailes e reuniões sociais” (LARANJEIRA, 2007,
p.112).
77
nosso).
129
Ao ouvir soar onze horas e três quartos, horário combinado com a Madrinha para
que retornasse, caso contrário toda a magia se desfaria, Borralheira fez uma grande
reverência aos presentes e saiu” (Idem, p.112, grifo nosso).
130
Quando as irmãs retornam para casa, vão diretamente contar a Cinderela o corrido no
baile. A jovem, por sua vez, manipula a conversa com suas meias-irmãs de modo a manter em
oculto a sua identidade: “‘Pobre de mim! Senhorita Javota, empreste-me o seu vestido
amarelo que você usa todos os dias.’ – ‘Realmente’, disse a Senhorita Javota, ‘só faltava essa!
Emprestar seu vestido a essa Buncinzela feiosa” (PERRAULT, 2007, 112).
131
Valendo-se da
arrogância da sua meia-irmã e do fato de elas não saberem a verdadeira identidade da Princesa
do baile, Cinderela reverte a situação a seu favor. O que seria mais uma situação de
humilhação, afinal Borralheira não é considerada digna de estar entre os membros da corte,
torna-se chacota em relação à filha da Madrasta. O leitor/ouvinte é capaz de apreender essa
jogada por ter sido informado de que Cinderela é a princesa. A ocultação de informações a
certas personagens revela o posicionamento irônico que o narrador adota em relação a elas,
expondo-as até mesmo ao ridículo.
O segundo dia de baile é narrado de forma sucinta, ressaltando a beleza de Cinderela
e a sua saída às pressas do baile:
No dia seguinte, as duas irmãs foram ao Baile e Cinderela também, mas
ainda mais bem vestida do que na primeira vez. O Filho do Rei ficou o
tempo todo perto dela e não parou de lhe dizer palavras doces; a Mocinha
estava se divertindo muito e se esqueceu do que a Madrinha lhe havia
recomendado, de maneira que ouviu tocar a primeira pancada da meia-noite
quando achava que ainda eram onze horas: levantou-se e fugiu rapidamente”
(PERRAULT, 2007, p.113).
132
A distração de Borralheira quanto ao horário de saída do baile atua tanto como um
elemento complicador quanto como um meio de viabilizar a reaproximação da jovem com o
Príncipe. Se, num primeiro momento, a saída repentina do baile e a dissolução do
maravilhoso representam a separação entre os dois jovens; num segundo momento, a perda de
um dos pares do sapato cria um elo entre eles: “poucos dias depois, o filho do Rei mandou
129
“Elle alla s’asseoir auprès de ses soeurs, et leur fit mille honnêtetés: elle leur fit part des oranges et des citrons
que le Prince lui avait donnés” (PERRAULT, 1990, p.249).
130
“elle fit aussitôt une grande révérence à la compagnie, et s’en alla” (PERRAULT, 1990, p.249).
131
“Hélas! Mademoiselle Javotte, prêtez-moi votre habit jaune que vous mettez tous les jours. Vraiment, dit
Mademoiselle Javotte, je suis de cet avis! Prêtez votre habit à un vilain Cucendron” (PERRAULT, 1990, p.250).
132
“Le lendemain les deux sœurs furent au Bal, et Cendrillon aussi, mais encore plus parée que la première fois.
Le Fils du Roi fut toujours auprès d'elle, et ne cessa de lui conter des douceurs; la jeune Demoiselle ne
s’ennuyait point, et oublia ce que sa Marraine lui avait recommandé; de sorte qu’elle entendit sonner le premier
coup de minuit, lorsqu’elle ne croyait pas qu’il fût encore onze heures: elle se leva et s’enfuit aussi légèrement”
(PERRAULT, 1990, p.250-1).
78
publicar ao som das trombetas que se casaria com a moça cujo pé se ajustasse perfeitamente à
sapatilha” (PERRAULT, 2007, p.113).
133
133
“peu de jours après, le fils du Roi fit publier à son de trompe qu'il épouserait celle dont le pied serait bien
juste à la pantoufle”(PERRAULT, 1990, p.251).
79
“Cendrillon ou La petite pantoufle de verre” – Ilustração de Gustave Doré
80
Os subordinados do Rei seguem a ordem do Príncipe e começam a experimentar o
sapato pelas damas da nobreza, sem, todavia, encontrar a verdadeira dona. Chegam, enfim, na
casa das duas irmãs que, conforme afirma o narrador, “fizeram o possível para que seus pés
entrassem na sapatilha, mas não conseguiram nenhum resultado” (PERRAULT, 2007,
p.132).
134
Cinderela pede para experimentar o sapato e, como de costume, é zombada por suas
irmãs. No entanto, o súdito do Rei, percebendo sua beleza, concede-lhe o direito de provar o
calçado: “O espanto das duas irmãs foi enorme, mas maior ainda foi quando Cinderela tirou
do bolso a outra sapatilha e a calçou no outro pé” (Idem, p.113).
135
Nesse instante, a Madrinha
aparece e, utilizando-se novamente do recurso mágico, transforma Cinderela na linda princesa
do baile.
[As duas irmãs] Lançaram-se aos seus pés para pedir-lhe perdão de todos os
maus-tratos por que a tinham feito passar. Cinderela as ergueu e lhes disse,
abraçando-as, que lhes perdoava de coração e que lhes pedia que amassem
muito e sempre. Levaram-na para junto do Príncipe, arrumada como estava:
ele achou que ela estava mais linda do que nunca e, poucos dias depois,
casou-se com ela. Cinderela, que era tão boa quanto bela, trouxe suas irmãs
para morar no Palácio e fez com que se cassassem, no mesmo dia, com dois
grandes Senhores da Corte (PERRAULT, 2007, p.113).
136
Com esse desfecho, no qual se processa a inversão da ordem inicial,
137
o
leitor/ouvinte tem seu desejo de justiça satisfeito e uma lição de civilidade a seguir. Como
declara André Jolles, “sevícias, desprezo, pecado, arbitrariedades, todas essas coisas
aparecem no Conto para que possam ser, pouco a pouco, definitivamente eliminadas e para
que haja um desfecho em concordância com a moral ingênua” (JOLLES, 1976, p.201).
Constatamos, portanto, que a estrutura dada ao conto coopera para despertar a
sensação de indignação perante as injustiças sofridas pela protagonista. A participação da
Madrasta, por exemplo, contribui para a divisão das personagens em dois pólos bem versus
mal, atuando como uma forma de caracterizar as duas filhas, que ambas eram em tudo
134
“qui firent tout leur possible pour faire entrer leur pied dans la pantoufle, mais elles ne purent en venir à
bout”(PERRAULT, 1990, p.251-2).
135
“L'étonnement des deux sœurs fut grand, mais plus grand encore quand Cendrillon tira de sa poche l'autre
petite pantoufle qu'elle mit à son pied” (PERRAULT, 1990, p.252).
136
“Alors ses deux sœurs la reconnurent pour la belle dame qu'elles avaient vue au bal. Elles se jetèrent à ses
pieds pour lui demander pardon de tous les mauvais traitements qu'elles lui vaient fait souffrir. Cendrillon les
releva, et leur dit, en les embrassant, qu'elle leur pardonnait de bon ur, et qu'elle les priait de l'aimer bien
toujours. On la mena chez le jeune prince, parée comme elle était: il la trouva encore plus belle que jamais, et
peu de jours après il l'épousa. Cendrillon, qui était aussi bonne que belle, fit loger ses deux sœurs au palais, et les
maria dès le jour même à deux grands seigneurs de la cour” (PERRAULT, 1990, p.252).
137
Na história narrada em Ester, sobre Mardoqueu, o desfecho também conta a inversão da situação inicial, ou
seja, da posição de humilhado, Mardoqueu é exaltado: “Então, disse o rei a Hamã: Apressa-te, toma a veste e o
cavalo, como disseste, e faze assim para com o judeu Mardoqueu, que está assentado à porta do rei; [...] / E
Hamã tomou a veste e o cavalo, e vestiu a Mardoqueu, e o levou a cavalo pelas ruas da cidade, e apregoou diante
dele: assim se fará ao homem de cuja honra o rei se agrada!” (Ester 6:10-1).
81
parecidas com a mãe; para reforçar a situação familiar hostil na qual Cinderela está inserida; e
para enfatizar, por meio da comparação, as qualidades da jovem.
Em consonância com a temática do conto, as moralidades, que o encerram, salientam
o valor das boas maneiras: Mas chamamos de graça algo que mais / Valor ainda tem que
prata ou ouro [...] Beldades, vale mais que estar nem penteadas, / O dom da graça para
prender um coração, / É este, na verdade, o dom das Fadas; / A graça pode tudo, o resto é
ilusão (PERRAULT, 2007, p.114, grifo do autor).
138
Como observa Tony Gheeraert (2007,
p.23), essa moralidade apresenta o conto como uma iniciação, cujo objetivo é a aquisição da
“bonne grâce”, termo técnico dos tratados de civilidade. O dom da graça torna-se um meio de
assegurar a promoção social da personagem: Dando-lhe trato e instrução, / Tanto que dela
fez uma Rainha (PERRAULT, 2007, p.114, grifo do autor).
139
Sendo assim, Por certo é
uma grande vantagem / Ter inteligência e coragem / Ser bem nascido, ter bom senso (Idem,
p.114, grifo do autor).
140
Considerando esses versos, Gheeraert afirma que “as moralidades
concedem, portanto, a leitura do conto como uma alegoria da educação da mulher cortês.
Mais que a beleza ou a virtude, é o domínio do código da civilidade que faz o mérito da
mulher e pode-lhe abrir as portas da corte” (GHEERAERT, 2008, p.23, tradução nossa).
141
***
Ao longo deste capítulo, pudemos verificar o papel significativo desempenhado por
Charles Perrault para a voga dos contos de fadas na França de Luís XIV, com a publicação de
Contes de ma mère l’oye. Opondo-se às regras clássicas defendidas pelos anciens, Perrault
busca na tradição popular o material para a composição das suas histórias, adaptando-as ao
gosto e aos ideais da classe burguesa e aristocrática. Além disso, o acadêmico opta pelo
maravilhoso, elemento fundamental para os contos de fadas, em detrimento da razão. Prioriza
também a tradição bíblica em vez da mitologia greco-romana. Assim como na narrativa
bíblica em que “qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo
138
“Mais ce qu’on nomme bonne grâce / Est sans prix, et vaut mieux encor. [...] Belles, ce don vaut mieux que
d’être bien coiffées, / Pour engager un coeur, pour en venir à bout, / La bonne grâce est le vrai don des Fées; /
Sans elle on ne peut rien, avec elle, on peut tout” (PERRAULT, 1990, p.253).
139
“En la dressant, en instruisant / Tant et si bien qu’elle en fit une Reine” (PERRAULT, 1990, p.253).
140
“C’est sans doute un grand avantage, / D’avoir de l’ esprit, du courage, / De la naissance, du bon sens”
(PERRAULT, 1990, p.253).
141
“Les moralités donnent donc à lire le conte comme une allégorie de l’éducation de l’honnête femme. Plus que
la beauté ou la vertu, c’est la maîtrise du code de la civilité que fait le mérite de la femme et peut lui ouvrir les
portes de la cour” (GHEERAERT, 2007, p.23).
82
se humilha será exaltado”, nos contos de Perrault, os mais frágeis e desfavorecidos são, por
fim, exaltados.
As categorias da narrativa, nessa modalidade literária, adquirem uma abordagem mais
generalizante, contribuindo para a universalização das histórias. Entretanto, nos contos de
Perrault aspectos que se relacionam às questões cio-históricas da época em que são
produzidos. Como, por exemplo, a referência à compra e venda de cargos, fato que possibilita
o enobrecimento para quem os adquirisse e o aumento das finanças do Estado; à fome e à
miséria que assolaram as classes inferiores no período do Reinado de Luís XIV; e à
preocupação com a formação de homens, mulheres e crianças conhecedoras e praticantes do
código de civilidade. Em diversas passagens, o emprego de termos específicos que fazem
parte desses tratados tão comuns no século XVII: “malhonnêteté”, “honnêteté”, “honnête
homme”, “honnête femme”, “gentilhomme”, bonne grâce”, savoir-vivre”, “bonne fille”.
Podemos dizer, portanto, que Perrault, homem engajado com as questões de seu tempo, soube
problematizar o modo de vida da sociedade em que estava inserido, sem perder de vista a
dimensão universalizante de suas histórias.
83
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)
84
eclarações similares à da escritora Lygia Bojunga Nunes eram freqüentemente
encaminhadas a Monteiro Lobato. Nas correspondências ao seu amigo
Rangel, Lobato fala das inúmeras cartas que recebia de seus leitores, as quais relatavam a
expansão de sua obra e os efeitos gerados por ela no cotidiano daqueles que, com a leitura das
aventuras da turma do Sítio do Picapau Amarelo, passaram a viver um caso de amor” em
suas vidas: “Se alguém me perguntasse qual a oitava maravilha do mundo, eu diria: a Emilia,
ou o Sitio do Picapau Amarelo, pois tudo se confunde” (LOBATO, 1964, v.12, p.349).
142
Essas cartas são consideradas por Lobato como “verdadeiros prêmios que possa ter um
escritor no fim da vida” (Idem, p.347).
143
Sem imaginar o alcance que teriam suas histórias, Lobato afirma: “ao escrever a
historia de Narizinho, naquele escritorio da rua Boa Vista, me caiu do bico da pena uma
boneca de pano muito feia e muda, bem longe estava eu de supor que iria ser o germe da
encantadora Rainha Mab do meu outono” (Idem, p.350).
144
Esse universo ficcional, onde
muitos passaram a morar conta com um rol de personagens fixas que participam de aventuras
ambientadas no Sítio do Picapau Amarelo. Além dessas figuras, aparecem também diversas
personagens consagradas do fabulário infantil para viver “novas reinações”, tais como:
Cinderela, Gato de Botas, Pequeno Polegar, Príncipe Codadade, Branca de Neve, Peter Pan,
Gato Félix, Tom Mix, Chapeuzinho Vermelho, entre outras.
Considerando o modo de composição da obra infantil de Monteiro Lobato, que se
efetiva a partir do estabelecimento de um diálogo explícito com clássicos da literatura infanto-
juvenil e da indústria cultural, pretendemos realizar, no presente capítulo um estudo da
presença das personagens de Charles Perrault no Sitio do Picapau Amarelo de Monteiro
Lobato.
142
Fragmento extraído da carta de 28/03/1943.
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Com a publicação de Contes de ma mère l’oye, em 1697, Charles Perrault é
consagrado, por diversos estudiosos e críticos da literatura infantil, como o inaugurador do
gênero:
A Literatura Infantil tem seu início através de Charles Perrault, clássico dos
contos de fadas, no século XVII. Naturalmente, o consagrado escritor
francês não poderia prever, em sua época, que tais estórias, por sua natureza
e estrutura, viessem constituir um novo estilo dentro da Literatura, e elegê-lo
o criador da Literatura da Criança (CARVALHO, 1984, p.77).
Outros pesquisadores de literatura infanto-juvenil também salientam essa atitude
inaugural de Perrault. Lígia Cademartori, em O que é literatura infantil, considera o escritor
francês como “iniciador da literatura infantil” (CADEMARTORI, 1986, p.34). Nelly Novaes
Coelho também faz atribuições dessa ordem: “Com esse trabalho de exegese, e obviamente,
ignorando o alcance que teria, Perrault cria o primeiro núcleo da literatura infantil ocidental:
‘Histórias ou contos do tempo passado, com suas moralidades Contos da minha Mãe Gansa
(Contes de ma re l’Oye, 1967)” (COELHO, 1991, p.66). E complementa: “Com a
publicação dos oitos ‘Contos da Mãe Gansa’, nascia a literatura infantil, que hoje conhecemos
como clássica” (Idem, p.68). Marisa Lajolo e Regina Zilbermam, em Literatura infantil
brasileira: história & histórias, pontuam que
Perrault não é responsável apenas pelo primeiro surto de literatura infantil,
cujo impulso inicial determina, retroativamente, a incorporação dos textos
citados de La Fontaine e Fénelon. Seu livro provoca também uma
preferência inaudita pelo conto de fadas, literarizando uma produção até
aquele momento de natureza popular e de circulação oral, adotada doravante
como principal leitura infantil (LAJOLO & ZILBERMAN, 1991, p.16).
Leonardo Arroyo, no livro Literatura infantil brasileira (1968) destaca:
A importância de Perrault não é apenas de criador, mas também a de escritor
que rompeu com o preconceito mantido em tôrno da cultura popular e em
tôrno da criança. Graças ao seu livro possibilitou o florescimento de uma
série de autores importantes para a literatura infantil, tanto em seu país como
em outras nações da Europa (ARROYO, 1968, p.30).
As palavras de Arroyo enfatizam a postura inovadora de Charles Perrault de voltar-se
a elementos tratados, até então, com preconceito, a cultura de origem popular e a criança. Esta
deixa de ser concebida como “adulto em miniatura” e, por conta dessa nova perspectiva,
brinquedos são fabricados em escala industrializada e um maior número de livros é dedicado
86
a elas. Nesse processo, tanto a família quanto a escola desempenha um papel fundamental
para a manutenção e a solidificação da ideologia da burguesia, pois cabe a essa instituição a
mediação entre a criança e a sociedade, como também, a habilitação da criança para o
consumo de obras impressas:
a literatura infantil vincula seu aparecimento à emergência de um novo
hábito, o de leitura, e existe para propagá-lo. E a leitura, enquanto prática
difundida em diferentes camadas sociais e faixas etárias, isto é, enquanto um
procedimento de obtenção de informações cotidiano e acessível a todos, e
não raro e erudito, é uma conquista da sociedade burguesa do século 18. A
expansão do mercado editorial, a ascensão do jornal como meio de
comunicação, a ampliação da rede escolar, o crescimento das camadas
alfabetizadas todos esses são fenômenos que se passam durante o
Iluminismo, sendo esta filosofia a sistematização e a culminância teórica que
justificará a práxis social, voltada à aceleração do processo civilizatório. O
ler transformou-se em instrumento de instrução e sinal de civilidade
(ZILBERMAN & CADEMARTORI, 1984, p.20-1).
Associado à questão da instrução e da civilidade, o hábito de leitura expande-se; ao
sucesso dos contos de fadas somam-se outras obras, como Robinson Crusoé (1719), de Daniel
Defoe (1660-1731) e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swif (1667-1745). No século
XIX, Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) retomam os contos fadas
com a publicação de Kinder-und Hausmärchen (1812) e, sob a esfera do maravilhoso, têm-se
Contos (1833), de Hans Christian Andersen (1805-1875); Alice no País das Maravilhas
(1863), de Lewis Carroll (1832-1898); Pinóquio (1883), de Collodi (1826-1890); Peter Pan
(1911), de James Barrie (1860-1937). Na linha das histórias de aventura, surgem: O último
dos moicanos (1826), de James Fenimore Cooper (1789-1851); Cinco semanas num balão
(1863), de Jules Verne (1828-1905); As aventuras de Tom Sawyer (1876), de Mark Twain
(1835-1910); A ilha do tesouro (1882), de Robert Louis Stevenson (1850-1894). ainda as
obras que tratam de aspectos do cotidiano, sem a presença de acontecimentos maravilhosos;
nesse rol, destacam-se: Ovos de Páscoa (1816), de Cônego von Schmid (1768-1854); As
meninas exemplares (1857), da Condessa de Ségur (1799-1874); Mulherzinhas (1869), de
Louise M. Alcott (1832-1888); Heidi (1881), de Johanna Spyri (1827-1901) e Coração
(1886), de Edmond De Amicis (1846-1908).
São autores como esses que dão consistência e conferem um perfil à literatura
destinada às crianças, garantindo a sua continuidade e sua atração. Segundo Lajolo e
Zilberman (1991, p.21), “são eles que confirmam a literatura infantil como parcela
significativa da produção literária da sociedade burguesa e capitalista”.
87
No Brasil, com a implantação da Imprensa (1808), viabiliza a publicação de livros
para a infância. Em 1818, publica-se a coletânea Leitura para meninos, contendo uma coleção
de histórias morais relativas aos defeitos ordinários às idades tenras, e um diálogo sobre
geografia, cronologia, história de Portugal e história natural, de José Saturnino da Costa
Pereira (1771-1852) e a tradução de As aventuras pasmosas do Barão de Munkausen. Marisa
Lajolo e Regina Zilberman (1991, p.23-4) destacam o fato de surgir, somente em 1848, outra
edição das Aventuras do Barão de Münchhausen, pela editora Laemmert, o que torna evidente
a irregularidade e a incipiência da circulação de livros no contexto cultural brasileiro.
Nesse período inaugural da literatura infantil brasileira, notamos uma
desconsideração pela tradição popular, ou pelo folclore, ou pelas histórias dos negros, ou
pelos mitos indígenas e constatamos uma propensão ao acervo literário europeu para a
composição de suas produções. Edgar Cavalheiro, no livro Monteiro Lobato, denuncia esse
procedimento:
Nossos escritores extraíam dos vetustos fabulários o tema e a moralidade das
engenhosas narrativas que deslumbraram e enterneceram as crianças das
antigas gerações, desprezando, freqüentemente, as lendas e tradições
aparecidas aqui, para apanharem nas tradições européias o assunto de suas
historietas. (CAVALHEIRO, 1955, p.567).
A essas palavras de Cavalheiro, somam-se aquelas de Edmir Perrotti, em O texto
sedutor na literatura infantil: “Não é, por exemplo, na tradição oral extremamente rica que se
buscará material para ser oferecido sob a forma escrita para o público infanto-juvenil, mas sim
na Metrópole” (PERROTTI, 1986, p.57). Marisa Lajolo e Regina Zilberman igualmente
ressaltam esse aspecto: eram os clássicos infantis europeus que forneciam o material para as
adaptações e traduções que precederam a propriamente dita produção brasileira de literatura
infantil” (LAJOLO & ZILBERMAN, 1986, p.17).
Outro fator a ser destacado diz respeito à inadequação lingüística. Essas obras
iniciais apresentam um elevado índice de erudição, tornando-as incompreensíveis e
incompatíveis com seu público. A consciência da necessidade de uma transformação surge,
primeiramente, entre escritores e profissionais da educação, como Olavo Bilac (1865-1918),
Arnaldo de Oliveira Barreto (1869-1925), Tales Andrade (1890-1977), Viriato Correia (1884-
1967), que visam à nacionalização da literatura para a infância. Em relação a essa iniciativa,
Leonardo Arroyo afirma:
A reação nacional ao enorme predomínio de literatura didática e literatura
infantil que nos vinha de Portugal, em obras originais e traduzidas,
manifestou-se de forma isolada em algumas regiões mais desenvolvidas
88
culturalmente no país. Mas foi particularmente na área escolar que ela
começou, passando depois a dar exemplo de inconformismo pleno na área
das traduções (ARROYO, 1968, p.163)
.
Nesse contexto, autores como Carlos Jansen Müller (1829-1889) e Figueiredo
Pimentel (1869-1914) tornam-se responsáveis por grande parte das traduções e adaptações de
obras estrangeiras que circulam, nessa época, no Brasil. Sob a firma Jansen, surgem os
seguintes livros: Contos seletos das mil e umas noites (1882); Robinson Crusoé (1885);
Viagens de Gulliver (1888); As aventuras do celebérrimo Barão de Münchhausen (1891);
Contos para filhos e netos (1894) e D. Quixote de La Mancha (1901). Para Arroyo, a atuação
de Carlos Jansen no panorama literário demonstra sua consciência a respeito das produções
inadequadas destinadas às crianças (Cf. ARROYO, 1968, p.172).
Figueiredo Pimentel, por sua vez, é responsável pelas traduções dos contos de fadas
de Perrault, Grimm e Andersen, totalizando dez títulos, dentre os quais os mais conhecidos
são: Contos da Carochinha (1894); Histórias da avozinha (1896) e Histórias da baratinha
(1896), editadas pela Livraria Quaresma. Nelly Novaes Coelho considera o volume Contos da
Carochinha “a primeira coletânea brasileira de literatura infantil organizada com a expressa
intenção de traduzir em ‘linguagem brasileira’ os contos infantis que circulavam em várias
coletâneas estrangeiras ou em traduções portuguesas” (COELHO, 1991, p.215-6). Leonardo
Arroyo enfatiza o caráter inovador das traduções, pois “subvertiam inteiramente como leitura
os cânones da época, sobre serem escritos em linguagem solta, livre, espontânea, e bem
brasileira para o tempo. Foram os livros que atravessaram anos” (ARROYO, 1968, p.178).
Numa breve análise dos contos de fadas traduzidos por Pimentel, sobretudo daqueles
que possuem os mesmos títulos dos de Perrault, constatamos a diferença de versões. Para a
sua coletânea, Pimentel possivelmente recorreu a outras fontes e não propriamente à versão
francesa de Charles Perrault. Outro aspecto distintivo em Contos da Carochinha seria a
atribuição de nomes próprios às personagens: Chapeuzinho chama-se Albertina, ou em sua
forma mais íntima, Naná; o Marquês de Carabás é Felipe, e seus irmãos são Augusto e Heitor;
o Gato de Botas recebe a designação de Malhado; o pai da Cinderela é chamado de Lucas e a
Bela Adormecida de Iris. Essa nomeação pode ser considerada como uma forma de aproximar
o conto pertencente a outra tradição cultural à realidade do leitor brasileiro. A linguagem
empregada, apesar das qualificações destacadas por Arroyo, ainda conserva algumas
construções mais próximas da forma erudita. A respeito de Histórias da Avozinha, Regina
Zilberman, em A literatura infantil na escola, declara que essa obra “tem a ver com o livro de
mesmo nome, elaborado por Travassos Lopes, autor português, e esse, por sua vez, com
89
algum ancestral mais distante, remontando ao folclore da Europa Central” (ZILBERMAN,
2003, p.156).
Em 1915, sob a direção de Arnaldo de Oliveira Barreto, a Edições Melhoramentos
inaugura a Biblioteca Infantil com a tradução de O patinho feio, de Hans Christian Andersen.
Para Arroyo (1968, p.186), “o significado revolucionário da iniciativa de Arnaldo de Oliveira
Barreto [...] parece estar mais na apresentação gráfica dos volumes do que propriamente no
conteúdo”, pois os clássicos (Perrault, Grimm, Andersen, Schmid etc.) não eram
desconhecidos aos leitores.
Além das traduções, outras publicações surgem nesse período: Contos infantis
(1886), de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Adelina Lopes Vieira (1850-?); Contos
pátrios (1904), de Olavo Bilac e Coelho Neto (1864-1934); Histórias de nossa terra (1907),
de Júlia Lopes de Almeida; Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manuel Bonfim
(1868-1932); Era uma vez (1917), de Júlia Lopes de Almeida, e o romance Saudade (1919),
de Tales de Andrade. Em poesia, destacam-se as obras: Coração (1893), de Zalina Rolim
(1869-1961); Livro das crianças (1897), de Zalina Rolim e João Köpke (1852-1926); Poesias
Infantis (1904), de Olavo Bilac, e Alma infantil (1912), de Francisca Júlia (1871-1920) e Júlio
da Silva (1853-1930).
Apesar da intenção de nacionalizar a literatura brasileira, verificamos nos textos
dessa época, as traduções, as adaptações ou as obras originais, uma concepção de literatura
pautada na preocupação em transmitir valores morais e ideológicos de uma classe dominante,
e em elaborar um modelo de língua nacional. No prefácio do livro Alma infantil, de Francisca
Júlia e Júlio da Silva, os autores evidenciam essa visão conservadora:
As nossas escolas do Estado estão invadidas de livros medíocres. A maior
parte deles são escritos em linguagem incorreta onde, por vezes, ressalta o
calão popular e o termo chulo. Esses livros pois, em vez de educar as
crianças, guiando-lhes o gosto para as cousas belas e elevadas, vicia-as desde
cedo, familiarizando-as com as formas dialectais mais plebéias (LAJOLO &
ZILBERMAN, 1986, p.279).
Com esse breve panorama, constatamos que o início da nossa literatura para as
crianças tem como características fundamentais o “transplante de temas e textos europeus
adaptados à linguagem brasileira”, o entusiasmo patriótico e o conservadorismo lingüístico
(LAJOLO & ZILBERMAN, 1986, p.17).
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Em 1916, Monteiro Lobato expressa a Godofredo Rangel
145
sua insatisfação em
relação aos livros destinados ao público infantil: “Que é que nossas crianças podem ler? Não
vejo nada [...] É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a
iniciação de meus filhos. Mais tarde poderei dar-lhes o Coração de Amicis um livro
tendente a formar italianinhos...” (LOBATO, 1964, v.12, p.104-5). Sem encontrar uma
literatura adequada para a formação de seus próprios filhos, Lobato empenha-se em suprir
essa lacuna: “Como tenho um certo jeito para impingir gato por lebre, isto é, habilidade por
talento, ando com ideia de iniciar a coisa” (Idem, p.104).
Sua estréia no gênero infanto-juvenil efetiva-se em 1920 com a publicação de A
Menina do Narizinho Arrebitado. A preocupação do escritor em satisfazer esse público
específico evidencia-se nas suas cartas a Rangel, como a de 09/02/1921: “Mando-te o
Narizinho escolar. Quero tua impressão de professor acostumado a lidar com crianças.
Experimente nalgumas, a ver se se interessam. procuro isso: que interesse ás crianças
(LOBATO, 1964, v.12, p.228, grifo nosso).
146
Em Conferências, artigos e crônicas (1959), Monteiro Lobato declara a importância
de se criar livros que estimulem o interesse pela leitura: “Quem começa pela menina da
capinha vermelha pode acabar nos Diálogos de Platão, mas quem sofre na infância a ravage
dos livros instrutivos e cívicos, não chega até nunca. Não adquire o amor da leitura”
(LOBATO, 1964, v.4, p.253-4). Devido a esses “livros impróprios”, “há homens que
passaram a vida sem ler um livro, fora os escolares, justamente por não terem tido em criança
o ensejo de ler um livro que lhes falasse à imaginação” (Idem, p.253-4). Compreendendo
que o apelo à imaginação é fator essencial nas obras para as crianças, Lobato dedica-se a esse
público, criando novas aventuras no Sítio do Picapau Amarelo.
Muitas dessas histórias contam com a participação de personagens provindas de
outras obras, como as dos contos de fadas de Perrault. A respeito desse procedimento criativo,
Ana Maria Machado, no livro Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002),
declara:
145
José Godofredo de Moura Rangel (1884-1951), mineiro, formou-se em direito pela Faculdade do Largo São
Francisco, onde conheceu Monteiro Lobato. Depois da formatura, retornou ao seu estado natal, onde exerceu a
função de juiz e de professor de português em algumas cidades. Escreveu também três romances: Os bem
casados (1910), Falange gloriosa (1917) e Vida ociosa (1921).
146
Carta de 09/02/1921.
91
Toda literatura sempre se fez em cima de um diálogo com as obras
anteriores, de um contágio daquela escrita com os livros lidos pelo autor.
Sem esse permanente intercâmbio, não se escreve. Hoje se reconhece isso de
forma muito aberta e se fala em intertextualidade. Mas mesmo antes que
surgisse esse nome, os textos sempre trocaram referências entre si,
conversaram uns com os outros nas leituras de cada indivíduo que se
aproximou deles, de cada autor que os criou (MACHADO, 2002, p.126-7)
O termo intertextualidade aparece nos estudos de teoria literária a partir das
reflexões de Julia Kristeva no livro, Introdução à Semanálise (1974). Com base nas
formulações de Mikhail Bakhtin, a pesquisadora afirma que “todo texto é absorção e
transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de
intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla(KRISTEVA, 1974,
p.64).
Assim como Ana Maria Machado destaca que a experiência de leitura do escritor
torna-se indissociável do seu ato criativo, Julia Kristeva propõe que “o interlocutor do escritor
é, pois, o próprio escritor, enquanto leitor de outro texto. Quem escreve é o mesmo que lê.
Sendo seu interlocutor um texto, ele próprio não passa de um texto que se relê ao reescrever-
se” (KRISTEVA, 1974, p.87).
Umberto Eco, em Pós-escrito a O nome da rosa (1985), também reconhece a
impossibilidade de separar sua bagagem de leitura da concepção textual. Após a experiência
de escrita de O nome da rosa, Eco confessa: Redescobri assim aquilo que os escritores
sempre souberam (e tantas vezes disseram): os livros falam sempre de outros livros e toda
história conta uma história já contada”.
Para o exame desse “intercâmbio de textosno universo ficcional lobatiano, cumpre
averiguar as proposições teóricas de Dominique Maingueneau sobre a questão: “quando se
consideram as condições de surgimento das obras, o essencial não é a afirmação de uma
intertextualidade radical tese de resto indiscutível e que se aplica a todo discurso
constituinte –, mas o modo como cada posicionamento gera essa intertextualidade
(MAINGUENEAU, 2006, p.165, grifos nossos). Pautando-se nessa proposta, pretendemos, no
presente tópico, verificar a maneira como Lobato posiciona-se perante a tradição literária e a
forma como assimila e recombina seus elementos com vistas a criação de uma obra nova. A
importância de se realizar essa análise incide na possibilidade de se definir, a partir dela, a
concepção de literatura de Monteiro Lobato.
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A primeira aparição das personagens dos contos de fadas de Charles Perrault ocorre
no primeiro capítulo do livro Reinações de Narizinho (1931), intitulado “Narizinho
Arrebitado”. Inicialmente, uma breve apresentação da vovó Dona Benta, uma senhora de
mais de sessenta anos que mora numa casinha branca, chamada de tio do Picapau Amarelo,
em companhia da Nastácia e da sua neta Lúcia. A menina de sete anos, mais conhecida como
Narizinho, tem encanto por duas coisas: pela boneca de pano Emília – feita por Tia Nastácia –
e pelo ribeirão que passa nos fundos do pomar do Sítio.
Na seqüência, a narrativa se reveste de elementos maravilhosos como aponta o
próprio título: “Uma vez...”. Essa expressão adquire o mesmo significado de “Era uma vez...
empregado constantemente no início das histórias maravilhosas com o intuito de marcar o
início de um relato que ultrapassa a racionalidade e que se abriga no imaginário. Desse modo,
com o emprego dessa construção lingüística, o leitor é convidado a imergir no mundo da
fantasia.
Sob esta atmosfera maravilhosa, desenvolve-se a seguinte história: a menina Lúcia,
que gostava de ir ao ribeirão, às tardes, é visitada por um peixinho e por um besouro vestidos
de gente. “Vestido de gente, sim! [O peixinho] Trazia casaco vermelho, cartolinha na cabeça e
guarda-chuva na mão a maior das galantezas!” (LOBATO, 1957, p.04) e o besouro
“também vestido de gente, trajando sobrecasaca preta, óculos e bengalão” (Idem, p.04).
Inicialmente, os dois bichinhos não sabem em que “terra” estão, até que Narizinho se
apresenta ao peixinho que afirma ser o Príncipe Escamado do Reino-das-Águas-Claras.
Após uma longa conversa, o Príncipe convida Narizinho e sua boneca Emília para
conhecerem seu Reino: “E ainda estavam discutindo os milagres das famosas pílulas [do Dr.
Caramujo] quando chegaram a certa gruta que Narizinho jamais havia visto naquele ponto.
Que coisa estranha! A paisagem estava outra” (LOBATO, 1957, p.08). Com este trecho,
temos a certeza de que a narrativa se desenvolve num plano diferente daquele da realidade,
pois a própria personagem reconhece a mudança que ocorre no espaço; trata-se da passagem
do plano real para o plano maravilhoso. É por meio dessa junção de planos que Lobato cria
dentro do Sítio (cenário ficcionalizado como real) um novo Reino Encantado (espaço
maravilhoso), formado por bichos aquáticos.
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Neste “Mapa do Mundo das Maravilhas”, observamos a materialização espacial das histórias clássicas da
literatura. Essa representação do Reino Encantado torna-se uma chave de leitura para as narrativas de Lobato,
pois reproduz ao leitor o modo como o escritor se posiciona frente ao acervo literário. A junção do Sítio de Dona
Benta e do Reino-das-Águas-Claras nesse mesmo “Mundo das Maravilhas” explicita o processo de
nacionalização dos clássicos e o de universalização da criação lobatiana.
Esse mapa seria a ilustração daquele apresentado por Peninha no conto “Pena de papagaio” (Reinações de
Narizinho): “Que bonito! exclamou [Pedrinho] depois de ler os nomes de todas as terras e mares. Até o
sítio da vovó está marcado, com o chiqueirinho de Rabicó bem visível” (LOBATO, 1957, p.254).
94
Esse novo Reino Encantado servirá de palco para as primeiras denúncias de
Monteiro Lobato a respeito do desgaste das produções literárias infantis publicadas até então.
Para pôr em prática seu projeto literário de renovação das histórias clássicas, Lobato insere
em seu texto a personagem Dona Carochinha, uma baratinha de mantilha, que se torna a
guardiã das figuras do Mundo Maravilhoso e de suas histórias.
148
Ao incorporá-la em sua obra
e atribuir-lhe a qualificação de velha, Lobato reforça a idéia de que as narrativas destinadas ao
público infantil já se encontravam desgastadas.
Na busca de uma de suas personagens, Dona Carochinha vai ao Reino-das-Águas-
Claras:
“Ando atrás do Pequeno Polegar respondeu a velha. duas semanas que fugiu
do livro onde mora e não o encontro em parte nenhuma. percorri todos os reinos
encantados sem descobrir o menor sinal dele”. (LOBATO, 1957, p.11).
Narizinho, quando a velha baratinha, tem a impressão de conhecê-la. O Príncipe
lhe confirma: “Com certeza, pois não menina que não conheça a célebre Dona
Carochinha das histórias, a baratinha mais famosa do mundo!” (LOBATO, 1957, p.11). Com
essa afirmação, notamos que Dona Carocha tem sua fama garantida, que a maioria das
crianças a conhece. Essa passagem, apesar de sua aparente simplicidade, revela a consciência
literária e o “posicionamento” de Monteiro Lobato diante do acervo literário infantil. Dessa
maneira, percebemos que Lobato não descarta e nem menospreza o que já foi produzido para
as crianças; ao contrário, propõe a renovação dessas histórias já consagradas no panorama da
literatura infanto-juvenil ocidental. A referência à obra de Pimentel também demonstra que,
para a realização de sua obra, Lobato valeu-se de livros que circulavam no período.
Curiosa para saber o porquê da fuga do Polegar, Narizinho questiona a velha:
Por que ele fugiu? – indagou a menina.
Não sei respondeu Dona Carochinha, mas tenho notado que muitos
dos personagens das minhas histórias andam aborrecidos de viverem toda
a vida presos dentro delas. Querem novidade. Falam em correr mundo a fim
de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada
maravilhosa está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o
dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato-de-Botas brigou com
o Marquês de Carabas e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix.
Branca-de-Neve vive falando em tingir os cabelos de preto e botar ruge na
cara. Andam todos revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o
pior é que ameaçam fugir, e o Pequeno Polegar já deu o exemplo (LOBATO,
1957, p.11).
148
Além dessa representatividade, Dona Carochinha faz alusão à obra do escritor Figueiredo Pimentel, Contos
da Carochinha (1984), que reunia as traduções das conhecidas histórias dos escritores Charles Perrault, Irmãos
Grimm e Hans Christian Andersen.
95
Pelo fragmento acima, constatamos que Monteiro Lobato, estrategicamente, cria uma
problemática a insatisfação das personagens em relação à mesmice de suas histórias que
lhe servirá como meio viabilizador para a concretização de seu projeto literário. Dessa forma,
toda e qualquer alteração nas narrativas clássicas que compõem o arquivo literário infantil
ocorrerá pela vontade de seus protagonistas.
A novidade declarada por Dona Carocha é aprovadíssima por Narizinho, que “gostou
tanto daquela revolta que chegou a bater palmas de alegria, na esperança de ainda encontrar
pelo seu caminho algum daqueles queridos personagens” (LOBATO, 1957, p.11). Segundo a
velha baratinha, essa crescente insatisfação no Mundo das Fábulas é motivada pelo
surgimento de novas personagens, como Pinóquio, Gato Félix e, “sobretudo de uma tal
menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer” (Idem, p.11). Nesta
declaração de Dona Carochinha, outro aspecto fundamental do pensamento lobatiano fica
evidente: a valorização do nacional que, na fala da guardiã, se evidencia pelo emprego do
termo “sobretudo”, conferindo destaque ou, até mesmo, prioridade a Narizinho em relação às
demais personagens citadas.
Mesmo sem conhecer pessoalmente a menina do nariz arrebitado, a velha guardiã das
personagens clássicas já ouviu falar da tal garota e das duas senhoras que com ela moram num
lugar chamado Sítio do Picapau Amarelo. Esse conhecimento prévio de Dona Carochinha
indica a popularidade da criação lobatiana no próprio Mundo Maravilhoso, sendo esta
equiparada àquelas existentes e consagradas no âmbito da literatura infantil. Novamente,
Lobato valoriza o nacional e coloca sua produção no mesmo nível de amplitude ou divulgação
dos demais clássicos.
Narizinho desentende-se com Dona Carocha em defesa de sua vovó e de Tia
Nastácia:
– Dobre a língua! – gritou vermelha de cólera. Velha coroca é
vosmecê, e tão implicante que ninguém mais quer saber das suas
histórias emboloradas. A menina do narizinho arrebitado sou eu, mas
fique sabendo que é mentira que eu haja desencaminhado o Pequeno
Polegar, aconselhando-o a fugir. Nunca tive essa “bela idéia”, mas
agora vou aconselhá-lo, a ele e a todos os mais, a fugirem dos seus
livros bolorentos, sabe? (LOBATO, 1957, p.12).
Com o advento desse episódio, as portas do universo ficcional lobatiano abrem-se
definitivamente para a entrada de todas as personagens do Reino Encantado. Podemos ler esse
desentendimento das duas personagens como um choque entre a tradição, representada pela
figura da baratinha de mantilha, e a renovação, defendida por Narizinho. A primeira pretende
96
manter as figuras clássicas presas em suas histórias e a segunda apóia a idéia de liberdade,
para que as personagens possam viver novos acontecimentos.
O primeiro a desejar novas façanhas é o Pequeno Polegar que, por meio do disfarce
de bobo da corte, procura refúgio no Reino-das-Águas-Claras, conforme narra o quarto
capítulo – “O bobinho”:
– Um anãozinho nos apareceu aqui ontem para contratar-se como
bobo da côrte. Estamos sem bobo desde que o nosso querido Carlito Pirulito
foi devorado pelo peixe-espada.
O candidato ao cargo de bobo da corte entrou conduzido pelo
mordomo, e logo saltou para cima da mesa, pondo-se a fazer graças.
Narizinho percebeu incontinente que o bobinho não passava do Pequeno
Polegar vestido com o clássico saiote de guizos e uma carapuça também de
guizos na cabeça. Percebeu mas fingiu não ter desconfiado de nada
(LOBATO, 1957, p.14).
Apesar da fantasia e do novo nome gigante Fura-Bolo –, Narizinho reconhece o
pequeno herói e convida-o imediatamente para ir visitar o Sítio, pois não levava o menor jeito
para o novo ofício de bobo da corte. Nesse instante, Dona Carochinha entra na sala em busca
de sua pequena personagem que, rapidamente, é escondida por Lúcia em sua manga. Agindo
assim, Narizinho propicia a fuga de Polegar, conduzindo-o, na seqüência, até a gruta dos
tesouros e escondendo-o numa concha. Entretanto, a baratinha encontra-o e leva-o embora.
Esse episódio da captura do Pequeno Polegar só vem à tona com seus detalhes quando Emília
adquire a fala e pode contar como tudo realmente aconteceu:
Emília empertigou-se toda e começou a dizer na sua falinha fina de
boneca de pano:
Pois foi aquela diaba da Dona Carocha. A coroca apareceu na gruta
das cascas...
– Que cascas, Emília? Você parece que ainda não está regulando...
Cascas, sim repetiu a boneca teimosamente. Dessas cascas de
bichos moles que você tanto admira e chama conchas. A coroca apareceu e
começou a procurar aquele boneco...
– Que boneco, Emília?
– O tal Polegada que furava bolos e você escondeu numa casca bem lá
no fundo. Começou a procurar e foi sacudindo as cascas uma por uma para
ver qual tinha boneco dentro. E tanto procurou que achou. E agarrou na
casca e foi saindo com ela debaixo do cobertor...
– Da mantilha, Emília!
– Do COBERTOR.
– Mantilha, boba!
– COBERTOR. Foi saindo com ela debaixo do COBERTOR e eu vi e
pulei para cima dela. Mas a coroca me unhou a cara e me bateu com a casca
na cabeça, com tanta força que dormi. acordei quando o Doutor Cara de
Coruja...
– Doutor Caramujo, Emília!
Doutor CARA DE CORUJA. acordei quando o Doutor CARA
DE CORUJÍSSIMA me pregou um liscabão.
97
Beliscão emendou Narizinho pela última vez, enfiando a boneca
no bolso... (LOBATO, 1957, p.28).
Nessa reconstituição feita por Emília, constatamos uma de suas principais
características: a teimosia. Em sua fala, a boneca de pano emprega termos equivocados e,
apesar das repetidas correções de Narizinho, insiste em suas designações, repetindo-as com
maior ênfase. Lia Cupertino Duarte, em Lobato humorista (2006, p.56), afirma que “o humor
resulta do modo irreverente com que Emília usa a linguagem. Recusando-se a utilizar a língua
no seu padrão formal, a personagem substitui expressões padronizadas por designações mais
comuns e usuais, como ‘casca’ no lugar de ‘concha’ e ‘cobertor’ no lugar de ‘mantilha’”.
A aquisição da fala garante à boneca sua autonomia. Podendo expressar-se
verbalmente, Emília deixa de participar passivamente dos acontecimentos e passa a revelar
sua posição diante dos fatos, tornando-se mais expressiva e impositiva. Se, no episódio em
que Dona Carocha briga com Narizinho para recuperar Polegar, Emília pode somente agir,
roubando os óculos da velha; com a aquisição da fala, a boneca pode verbalizar sua opinião e
expressar seus sentimentos, chamando-a de “diaba” e “coroca”. Notamos, portanto, que o
direito à fala é significativo na constituição da personagem que, a cada novo episódio,
garantirá sua independência, expondo suas idéias a cada nova “reinação”.
Voltando à questão da presença do Pequeno Polegar na narrativa, verificamos que,
na sua primeira participação, a personagem não desenvolve grandes ações. Contudo, a
importância deste episódio é notória na medida em que se configura como a abertura para as
próximas aventuras que contarão com a participação das demais personagens do fabulário
infantil.
Em face dessa participação, surge a pergunta: por que o Pequeno Polegar e não outra
personagem? Lobato escolhe uma personagem que se particulariza conforme analisado no
conto “Le Petit Poucet” por sua coragem, sua inteligência e seu tamanho, além de ser um
verdadeiro líder, conduzindo seus irmãos de volta para a casa de seus pais. No texto lobatiano,
essas características são postas a serviço de um novo projeto literário: sua coragem se revela
na audácia da personagem de ser o primeiro a tentar fugir de Dona Carochinha; sua esperteza
na inteligência de disfarçar-se de bobo da corte para favorecer sua fuga; e a sua pequenez ao
caber na manga da roupa de Narizinho e em uma concha. Percebemos, assim, que as
características inerentes à personagem são propícias para viabilizar o início da “reforma” do
Mundo Maravilhoso. Logo, concluímos que a participação do Pequeno Polegar, nesse
episódio, tem o objetivo de revelar ao leitor o propósito essencial da produção lobatiana: a
renovação.
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No capítulo “O Sítio do Picapau Amarelo”, também presente no livro Reinações de
Narizinho, a inserção da personagem Pequeno Polegar dá-se pela lembrança das crianças do
Sítio, ou seja, o pequeno herói é apenas evocado no discurso das personagens lobatianas, sem
participar ativamente da narrativa.
Depois que Narizinho e Emília voltam do Reino-das-Águas-Claras, o assunto entre
elas não é outro senão as aventuras vividas por lá. “E quando não pensava nisso [Emília]
pensava no Pequeno Polegar e nos meios de fazê-lo fugir de novo da história onde o
coitadinho vivia preso” (LOBATO, 1957, p.31). A boneca indignada com a situação de
Polegar diz que irá até o lugar onde mora Dona Carochinha para dar-lhe um pontapé no nariz
e trazer o “Polegada” para o Sítio.
– Polegar, Emília!
– PO-LE-GA-DA.
Era teimosa como ela só. Nunca disse Doutor Caramujo. Era sempre
Doutor Cara-de-Coruja. E nunca quis dizer Polegar. Era sempre Polegada
(LOBATO, 1957, p.31).
A conversa sobre a fuga do Pequeno Polegar ressalta algumas características da
boneca, tais como: falar asneiras, ser teimosa e ter sempre razão. Dessa maneira, constatamos
que a incorporação de Polegar no discurso das personagens lobatianas contribui para o próprio
processo de construção da boneca Emília. O assunto da visita e as peripécias vividas no
Reino-das-Águas-Claras ressurge quando Pedrinho chega ao Sítio para passar as suas férias:
Narizinho contou a série inteira daquelas maravilhosas aventuras,
despertando em Pedrinho um desejo louco de também conhecer o príncipe-
rei. De nada se admirou, conforme o seu costume. Tanto ele como Narizinho
achavam tudo muito natural! estranhou que o Pequeno Polegar tivesse
fugido da sua historinha.
Isso, sim, não deixa de intrigar disse ele. Se Polegar fugiu é que
a história está embolorada. Se a história está embolorada, temos de botá-la
fora e compor outra. muito tempo que ando com esta idéia fazer todos
os personagens fugirem das velhas histórias para virem aqui combinar
conosco novas aventuras. Que lindo, não? (LOBATO, 1957, p.52-3, grifo
nosso).
Para tratar do desgaste das narrativas clássicas de maneira compatível com a
mentalidade do leitor infantil, Monteiro Lobato recorre a uma imagem típica do cotidiano
doméstico, a do emboloramento que traduz concretamente o processo de envelhecimento das
formas de expressão literária. O procedimento adotado por Lobato para interromper essa
99
banalização e instaurar novos planos de sentido é a combinação do velho com o novo,
conforme se depreende da citação apresentada acima.
Verificamos, portanto, que a presença de Polegar na história auxilia na revelação do
projeto literário de Lobato e no processo de evolução da Emília. Somando a aquisição da fala
a um comportamento inflexível, a boneca de pano vai impondo-se nesse universo. Lobato
confessa: “E assim, independente de qualquer calculo, evolui essa Emília que hoje me
governa, em vez de ser por mim governada. É quem realmente manda no Sítio. Emília põe
e dispõe” (LOBATO, 1964, v.12, p.343).
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O capítulo “Cara de Coruja” inicia-se com os preparativos da festa que as crianças do
Sítio vão oferecer aos amigos do País das Maravilhas: “Que reinação vamos ter hoje,
Narizinho? / Nem é bom falar, vovó! Vai ser uma festa linda até não poder mais. reis e
príncipes e princesas e fadas...” (LOBATO, 1957, p.175). A reinação começa e a ansiedade
pela chegada dos amigos maravilhosos é grande. A primeira a chegar é Cinderela e, de
maneira diferente do tradicional, Rabicó anuncia: – “Senhorita Cinderela, a princesa das
botinas de vidro!” (Idem, p.176). O modo como o Marquês se refere à personagem rompe
com sua típica caracterização: a princesa dos sapatinhos de cristal. Essa ruptura ocorre por
meio da troca dos termos “sapatos” por “botinas” e “cristal” (tradução comumente
empregada) por “vidro” (tradução literal da palavra francesa “verre”). Além de conferir um
tom humorístico ao texto, essa substituição realizada por Rabicó evidencia o processo de
dessacralização que o objeto maravilhoso sofre ao ser retomado no universo ficcional
lobatiano.
Narizinho, por sua vez, recepciona sua convidada de forma inovadora: “Asalam
alekum!”
Cinderela admirou aquele modo oriental de saudação, que Narizinho tinha
aprendido num volume das Mil-e-Uma-Noites, e como também entendesse
muito de coisas orientais, porque ia a muitas festas do Príncipe Codadade e
outros, respondeu na mesma ngua: Alekun asalam! (LOBATO, 1957,
p.177).
Informações novas que não figuram no conto francês referentes à Cinderela são
apresentadas quando esta é inserida na obra lobatiana. O conhecimento dos costumes orientais
e a amizade com o Príncipe Codadade, indicam que, sob a óptica de Lobato, o universo
100
maravilhoso constitui-se como um único Livro, no qual todas as personagens se conhecem e
se relacionam entre si.
Na passagem citada, podemos observar, ainda, outro aspecto fundamental da
construção da obra de Monteiro Lobato: a constituição de suas personagens como leitoras.
Com a leitura da obra Mil-e-uma-noites clássico oriental amplamente difundido na tradição
ocidental
149
Narizinho aprende um cumprimento típico daquela cultura. Notamos, por
conseguinte, que a leitura adquire um papel formador, auxiliando de modo decisivo na
aquisição de novos conhecimentos e na interação com outras culturas.
Após as apresentações, Emília “esqueceu todas as recomendações e enfiou-se
debaixo da cadeira de Cinderela” (LOBATO, 1957, p.177). Com toda sua irreverência, a
boneca não se submete às regras e age com espontaneidade, de acordo com sua vontade. Esse
comportamento da boneca opõe-se e, até mesmo, ridiculariza as convenções de civilidade
difundidas no próprio conto “Cendrillon”. Nesse encontro com Emília, a princesa declara a
popularidade da boneca de pano no Reino Maravilhoso: “Já a conheço de fama!” (Idem,
p.177). O fato de Cinderela conhecer a personagem brasileira promove a equiparação entre o
local (turma do Sítio do Picapau Amarelo) e o universal (cânone literário).
Emília, por sua vez, afirma: “Também eu conheço toda a sua história. Mas um
ponto que não entendo bem. É a respeito dos tais sapatinhos. Um livro diz que eram de cristal;
outro diz que eram de cetim. Afinal de contas estou vendo você com sapatinhos de couro...”
(LOBATO, 1957, p.177). Ao indagar sobre o verdadeiro material dos sapatos de Cinderela, a
boneca de pano põe em xeque as diferentes versões (ou traduções) de sua história e revela a
sua postura crítica diante dos livros, sem aceitar passivamente todas as proposições
apresentadas.
Cinderela riu-se muito da questão e respondeu que na verdade fora de
sapatinhos de cristal no famoso baile onde se encontrou com o Príncipe pela
primeira vez. Mas que esses sapatinhos não eram nada cômodos, faziam
calos; por isso usava agora sapatinhos de camurça (LOBATO, 1957,
p.177).
Por meio da dúvida de Emília sobre o material dos sapatos de Cinderela, Monteiro
Lobato recupera a discussão ocorrida em torno dessa questão. Mário Laranjeira (2007), na
tradução do conto “Cendrillon”, menciona em nota:
149
Quanto à difusão de As mil e uma noites na cultura ocidental, Jorge Luis Borges, em “Sete noites” (1987),
afirma: “São obra de milhares de autores, mas nenhum deles pensou que estivesse edificando um livro ilustre,
um dos mais ilustres de todas as literaturas e mais apreciado no Ocidente do que no Oriente, segundo me
dizem” (BORGES, 1987, p.78, grifo nosso).
101
Em francês, a palavra “verre” (vidro), que consta no conto de Perrault, é
homófona de “vair” (palavra já em desuso, que designava um tipo de
“couro”), pois ambas se pronunciam /ver/. Daí surgiu uma polêmica sobre a
matéria com que era feita a sapatilha, “verre” ou “vair” (“vidro” ou “couro”).
Balzac, entre outros, defendia a segunda solução, ao passo que Anatole
France e outros postulavam pela primeira, como está no texto original
(LARANJEIRA, 2007, p.109).
Com base nessa proposição, percebemos o conhecimento de Lobato acerca das
questões contextuais da recepção dos contos de Perrault e, ao retomá-las na sua narrativa,
continuidade a essa polêmica. Emília, que tinha outra dúvida, pergunta à princesa:
outro ponto que me causa dúvidas, continuou a boneca. Que é
que aconteceu para sua madrasta e suas irmãs, afinal de contas? Um livro diz
que foram condenadas à morte pelo Príncipe; outro diz que um pombinho
furou os olhos das duas
Nada disso aconteceu disse Cinderela. Perdoei-lhes o mal que me
fizeram – e hoje já estão curadas da maldade e vivem contentes numa
casinha que lhes dei, bem atrás do meu castelo (LOBATO, 1957, p.178).
Pelas passagens até aqui recuperadas, verificamos que, no universo lobatiano, as
diferentes versões da história de Cinderela são questionadas e busca-se na protagonista a
resposta para essas controvérsias. Nas afirmações da princesa, constatamos, por sua vez, um
jogo dialético entre continuação e renovação, cabendo ao leitor perceber a “brincadeira” com
os clássicos. No fragmento acima, notamos certa semelhança com o final narrado em
“Cendrillon” e o acréscimo de informações, como as casas atrás do castelo de Cinderela.
Mais um convidado é anunciado pelo Visconde de Sabugosa:
– Estou vendo outra poeirinha lá longe!
Deve ser a minha amiga Branca-de-Neve disse a Princesa
Cinderela. Branca mora perto de mim e quando passei por vi que sua
carruagem já estava na porta do castelo (LOBATO, 1957, p.178).
Nesse trecho, notamos que se salienta a concretude conferida ao Reino Encantado
espaço ficcional em que as mais diversas personagens habitam em suas casas ou castelos,
mantendo relações de amizade e tornando-se vizinhas. Observamos, assim, que Monteiro
Lobato reúne essas personagens da literatura infantil em um mesmo espaço, rompendo com a
idéia de que cada uma delas pertence a um livro e a um autor específico. Esse procedimento
expressa a concepção de Lobato de literatura como um livro único.
Outro caso de amizade ocorre entre Rosa Branca e Bela Adormecida. Esta envia por
sua amiga um comunicado para as crianças do Sítio: – “A Bela Adormecida manda comunicar
que não pode vir” (LOBATO, 1957. p.180). Após a aproximação de uma poeira bem pequena,
Rabicó anuncia:
102
– Um senhor pingo de gente com umas botas maiores do que ele!
– O Pequeno Polegar! – gritaram as princesas, e acertaram.
Esquecidas de que eram famosas princesas, foram correndo receber o
pequenino herói. Era ele o chefe da conspiração dos heróis maravilhosos
para fugirem dos embolorados livros de Dona Carocha e virem viver novas
aventuras no sítio de Dona Benta. Polegar havia fugido uma vez, e apesar
de capturado estava preparando nova fuga dele e de vários outros.
(LOBATO, 1957, p.181-2).
Por meio de uma personagem atrapalhada, Monteiro Lobato ridiculariza a abordagem
tradicional conferida ao Pequeno Polegar, produzindo um tom humorístico no texto. Nessa
passagem, torna-se nítida, ainda, a veiculação da idéia do Sítio como um espaço onde reina a
liberdade de ação. Ao verem Polegar, as princesas do Mundo Maravilhoso rompem com as
formalidades próprias da civilité e agem com espontaneidade. Essa conduta demonstra o
modo como Lobato dialoga com a tradição literária.
Outro aspecto a ser observado refere-se à propagação da idéia da fuga dos livros
“embolorados”. A constante retomada desse tema nas histórias lobatianas pode ser lida como
uma maneira de cultivar no leitor a curiosidade e, até mesmo, o desejo pela concretização
dessa proposta. Emília, quando vê que o pequeno herói está no Sítio, fica num “assanhamento
jamais visto” e demonstra familiaridade com a personagem. Ela agarra-o, bota-o no colo e o
faz contar toda a sua vida; além disso, ela lhe mostra seus brinquedos:
Mostrou-lhe uma coleção de feijões pintadinhos que Tia Nastácia lhe
dera, o pincel de goma-arábica que lhe servia de vassoura e mil coisas.
Polegar gostou de tudo, principalmente dum pito velho que tinha sido de Tia
Nastácia – um pito sem canudo. Gostou tanto que a boneca lhe disse:
Pois se gosta, leve, que arranjo outro. Mas, com perdão da
curiosidade, para que é que o senhor quer esse pito?
Para brincar de esconder respondeu o pingo de gente dando um
pulo para dentro do pito e ficando tão bem escondidinho que ninguém seria
capaz de o descobrir (LOBATO, 1957, p.183).
A escolha do pito e a utilidade dada ao objeto por Polegar, revelam que, sob o olhar
lobatiano, a personagem adquire uma postura mais próxima do comportamento infantil,
diferentemente do conto “Le Petit Poucet”, no qual se responsabiliza em conduzir seus irmãos
de volta para casa. Essa caracterização mais infantilizada
150
proporciona a aproximação entre
o universo da personagem e o do leitor, propiciando uma maior interação entre a obra e o
público. Emília, que também representa esse universo infantil, logo sugere uma nova função
para as botas de sete léguas: “Eu, se fosse o senhor, deixava-as aqui no sítio por uma
semana. Que bom! Poderíamos brincar o dia inteiro de estar aqui e estar lá no mesmo
150
Cabe ressaltar que o termo “infantilizado”, aqui empregado, esvazia-se de qualquer conotação depreciativa.
103
instante” (LOBATO, 1957, p.182). Nessa sugestão da boneca, verificamos que a brincadeira e
a diversão são fatores centrais do projeto literário de Monteiro Lobato, no qual procura-se
valorizar a inteligência da criança e a riqueza do mundo imaginário.
Emília manifesta uma intensa afetividade por Polegar, sendo o único a ganhar um
presente da boneca de pano: “Emília era interesseira. Gostava de receber presentes, mas não
de dar. O único presente que deu em toda sua vida foi aquele pito” (LOBATO, 1957,
p.183).
151
Observamos também que a presença de Polegar, nessa parte da narrativa lobatiana,
torna-se significativa para revelar algumas características da própria criação de Lobato, no
caso, o egoísmo de Emília.
Nesse encontro com a boneca, Polegar reconhece a sua fragilidade e a sua
dependência do objeto maravilhoso:
– Antes de mais nada, tire as botas. Não sei como o senhor tem
coragem de andar com tamanho peso nos pés...
É que sem elas eu não valho nada. Sou pequenino demais e fraco,
mas com estas botas não tenho medo nem de gigante (LOBATO, 1957,
p.182).
Se, no conto “Le Petit Poucet”, é o narrador quem se incumbe de descrever as
características e os sentimentos de Polegar,
152
no universo lobatiano, verificamos que a
personagem fala de si mesma e de suas limitações. Essa mudança na técnica narrativa confere
às personagens maior liberdade de expressão.
Logo após a chegada de Polegar, ouve-se um grande rumor e Branca-de-Neve diz:
“Não abra! É o malvado que matou seis mulheres!…” (LOBATO, 1957, p.183). Por
curiosidade, Narizinho também havia convidado para a festa o Barba Azul, fato que deixa as
princesas bastante furiosas: – “É azul mesmo! – exclamou. Azul como um céu!… Que
horrendo monstro! Imaginem que traz na cintura um colar de seis cabeças humanas…” (Idem,
p.183). Confrontando essa descrição feita por Narizinho do Barba Azul com aquelas presentes
no conto “La Barbe Bleue”, constatamos que neste não há qualquer referência à quantidade de
mulheres com as quais o rico homem das barbas azuis havia se casado; além disso, os corpos
dessas mulheres são encontrados em um quarto na parte inferior da casa. Dessa maneira,
151
Em Caçadas de Pedrinho (1933), é narrada a forma como Emília adquire de Tia Nastácia o pito que de
presente ao Pequeno Polegar: “Você me salvou a vida
,
Emília, e não o que pague semelhante coisa. Dou
tudo quanto me pedir. / Quero aquele pito de barro em que você pita respondeu a boneca. / Foi assim que
Emília ganhou o lebre pito de barro que mais tarde deu de presente ao Pequeno Polegar” (LOBATO, 1986,
p.47).
152
“O Pequeno Polegar não ficou muito aborrecido” (PERRAULT, 2007, p.123); “Chegaram finalmente à casa
onde estava a vela, depois de alguns sustos” (Idem, p.124); “o Pequeno Polegar, que ficou com muito medo
quando sentiu a mão do Ogro apalpar a sua cabeça” (Idem, p.124).
104
verificamos que tanto a personagem quanto a sua história sofrem alterações no universo
ficcional lobatiano. A primeira alteração seria, portanto, a precisão na quantidade de mulheres
mortas por Barba Azul e, a segunda, a incorporação de um adereço na caracterização da
protagonista: um cinto com seis cabeças humanas, objeto que lhe confere uma aparência mais
aterrorizante.
Na continuidade da narrativa, Cinderela demonstra conhecer bem a história da
indesejada personagem ao questionar: É esquisito isto! Sempre supus que o irmão da
sétima mulher de Barba Azul o houvesse matado…” (LOBATO, 1957, p.184). Evocando o
final presente no conto de Perrault, em que os irmãos da última mulher o matam, Cinderela
não compreende como tal figura ainda encontrava-se viva. Para justificar essa aparente
incongruência, a boneca de pano lança sua resposta: “É que não matou bem matado
Explicou Emília. Outro dia aconteceu um caso assim aqui no sítio. Tia Nastácia matou um
frango, mas não o matou bem matado e de repente ele fugiu para o terreiro…” (Idem, 184). A
partir da associação com um caso ocorrido no dia-a-dia do Sítio, a boneca irreverentemente
apresenta uma explicação para o reaparecimento do Barba Azul.
Furioso por não permitirem sua entrada, Barba Azul faz ameaças e é a boneca de
pano quem o enfrenta: “Emília perdeu a paciência; botou a boquinha no buraco da fechadura e
berrou: /– Pois case, se for capaz! Mando Pé-de-Vento te ventar pra os confins do Judas.
pintar essa barba de preto que é o melhor, seu cara-de-coruja! (LOBATO, 1957, p.184).
Notamos que a participação de Barba Azul na festa torna-se um meio viabilizador para
conhecer um pouco mais Emília, uma boneca de pano que, com seu jeito birrento e nada
educado, desconsidera as afrontas de Barba Azul e o põe para correr. É desse modo que
Emília vai se constituindo e criando a sua própria identidade.
Logo que o Gato de Botas chega à festa, ele é informado da história do falso Gato
Félix, que afirmava ser seu cinqüentaneto. Nessa parte da história, há a retomada de um
episódio narrado no capítulo “O Gato Félix”, em Reinações de Narizinho:
E o gato Félix começou:
Houve na França um gato muitíssimo ilustre, que era escudeiro do
Marquês de Carabas tão ilustre que não no mundo inteiro criança que
não o conheça.
– Até eu! – gritou Emília. Era o tal Gato-de-botas!…
Justamente menina. Esse famoso gato era o escudeiro do Marquês
de Carabas. Fez coisas do arco-da-velha, como se sabe, até que se casou com
uma linda gata amarela e teve muitos filhos. Esses filhos tiveram outros
filhos. Estes outros filhos tiveram novos filhos, e veio vindo aquela gataria
que não acabava mais até que nasci eu.
105
– Que bom! – exclamou Narizinho. Então você é bisneto ou tataraneto
do Gato-de-botas?
Sou cinqüentaneto dele – disse o gato Félix. Mas não nasci na Europa.
Meu avô veio para a América no navio de Cristóvão Colombo e naturalizou-
se americano. Eu ainda alcancei meu avô. Era um velhinho muito velho, que
gostava de contar histórias da sua viagem (LOBATO, 1957, p.150).
Para enganar a turma do Sítio, o falso gato Félix cria uma história absurda a respeito
do Gato de Botas, conferindo-lhe um novo estado civil (de solteiro para casado) e uma
enorme descendência. A estrutura dada a essa narrativa faz com que tanto as personagens
quanto o leitor permaneçam enredados nas falsas informações dadas pelo mentiroso Félix, de
modo que a história do famoso gato do Senhor Marquês de Carabás seja atualizada com a
apresentação de novos aspectos, até então totalmente desconhecidos.
Todas essas “novas” informações são recuperadas e contraditas pelo próprio Gato de
Botas em “Cara de Coruja”: – “Mentira cínica! – disse o Gato-de-Botas. Nunca me casei. Não
tive nem filho, quanto mais cinqüentaneto!” (LOBATO, 1957, p.184). Nesse ponto da
história, um aspecto comum e recorrente na obra infantil de Monteiro Lobato fica evidente: a
constante retomada de episódios já vividos pela turma do Sítio.
Concernente a esse procedimento, Marisa Lajolo (2000, p.63), afirma que “uma
história faz referência a outra, sublinhando com isso o caráter circular de sua obra, conjunto
de livros cuja leitura pode recomeçar infinitamente de qualquer ponto”. Além dessa
possibilidade de começar a leitura de qualquer ponto da obra, esse método literário evidencia
a continuidade da composição da obra infantil lobatina. Observamos que a cada retomada se
o acréscimo de novas informações, que complementam e vinculam uma história à outra.
Esse modo de organizar e de ligar os fatos revela a coerência interna que a obra adquire ao
longo de sua constituição, compondo, ao fim, uma extensa narrativa (a saga do Picapau
Amarelo) formada por uma gama de narrativas menores.
Outro fator que também contribui para a manutenção da coerência interna da
produção literária infantil lobatiana é a incessante referência ao desejo de renovar as histórias
“emboloradas” e de trazer as personagens do Mundo das Fábulas para o Sítio do Picapau
Amarelo. No presente capítulo, esse assunto reaparece em dois momentos, na chegada do
Gato de Botas na festa “O Pequeno Polegar veio cochichar-lhe ao ouvido alguma coisa
com certeza a respeito da tal conspiração contra Dona Carocha” (LOBATO, 1957, p.184) e
na hora da despedida “Quando chegou o momento de despedir-se do Pequeno Polegar,
[Emília] cochichou-lhe ao ouvido uma porção de coisas sobre Dona Carocha e aconselhou-o a
fugir novamente e vir morar com eles ali no sítio” (Idem, p.196). Notamos, pelos trechos
106
citados, que a constante menção à insatisfação das personagens em relação à mesmice de suas
histórias apresenta-se como uma estratégia de Monteiro Lobato para efetuar qualquer
alteração nas narrativas clássicas da literatura infantil. Em outras palavras, podemos dizer que
toda modificação ocorre de acordo com a vontade das próprias personagens.
O Pequeno Polegar e o Gato de Botas vão ao castelo de Cinderela buscar a varinha
de condão esquecida em cima do criado-mudo. O Gato de Botas ainda tem o ensejo de dançar
com Rosa Branca, além de disputar valentias com Pedrinho e Aladino: “Quero ver o que vale
mais, se esse bodoque e essa lâmpada ou as minhas botas-de-sete-léguas!…” (LOBATO,
1957, p.191). Nessa afirmação, o fato de as botas serem de sete-léguas torna-se instigante,
pois no conto “Le Maître Chat ou Le Chat de Bottée” não qualquer referência a essa
excepcionalidade do calçado: “Não se aflija, meu Senhor, o senhor precisa me dar um
Saco e mandar fazer um par de botas para eu andar no mato” (PERRAULT, 2007, p.101).
153
Entretanto, no Sítio de Dona Benta, é o próprio Gato quem afirma a excepcionalidade de suas
botas. Constatamos, portanto, que Monteiro Lobato, além de se valer da famosa personagem,
sente-se na liberdade de alterar alguns de seus aspectos, servindo-se estrategicamente do
próprio Gato de Botas, como uma forma de conferir maior veracidade à nova característica
apresentada.
Chapeuzinho Vermelho também comparece à festa e é recebida, por todos, com
muita alegria: “Boa-tarde para todos os presentes, ausentes e parentes! (LOBATO, 1957,
p.188). Emília logo questiona a personagem:
Antes de mais nada foi dizendo Emília, quero saber o seu
verdadeiro nome, porque uns dizem Capinha Vermelha e outros, Capuzinho
Vermelho. Qual é o certo?
– Meu verdadeiro nome é Capinha Vermelha, porque depois que vovó
me fez esta capinha todos que me viam ir para a casa dela diziam: “Lá vai
indo a menina da capinha vermelha!” Mas, como vocês podem ver, esta
capinha tem um capuz, que eu às vezes uso. De modo que tanto podem
chamar-me Capinha, como Capuzinho, ou mesmo Chapeuzinho Vermelho
(LOBATO, 1957, p.189).
Nesse fragmento, o fato de as personagens de Lobato serem leitoras e conhecedoras
do acervo literário torna-se evidente. Esse repertório de leitura e a postura crítica perante os
textos que lêem ou ouvem permite-lhes questionar aspectos que lhes parecem contraditórios.
No caso, Emília problematiza as diferentes traduções dadas ao nome da personagem dos
contos de fadas e, para sanar sua dúvida, aproveita o oportuno encontro com a própria
153
“Ne vous affligez point, mon maître, vous n’avez qu’à me donner un Sac, et me faire faire une paire de Bottes
pour aller dans les broussailles” (PERRAULT, 1990, p.221-2).
107
Chapeuzinho. A resposta dada pela menina à questão de Emília é bem similar àquela, dada
pelo narrador, no conto “Le Petit Chaperon Rouge”: “Essa boa senhora mandou fazer para ela
um chapeuzinho vermelho que lhe ficava tão bem que todos a chamavam de Chapeuzinho
Vermelho” (PERRAULT, 2007, p.91).
154
Com essa similaridade, verificamos que Monteiro
Lobato sente-se na liberdade de ora retomar as versões existentes e de ora acrescentar ou
modificar alguns aspectos.
Emília, com toda sua irreverência, faz outra pergunta:
Diga-me: sua avó era muito magra?
Capinha estranhou a pergunta – mas respondeu que sim.
– Muito magra ou meio magra?
– Bem magra.
Então não entendo aquele lobo disse Emília porque uma velha
muito magra não é alimento. Só osso... (LOBATO, 1957, p.189).
Com espontaneidade em suas ações, Emília transgride as normas e fala o que sente
vontade, criando assim, por várias vezes, uma dimensão cômica nos textos. Nessa parte, a
comicidade surge da natureza da questão feita pela boneca, visto que, inicialmente, não se
compreende no que a magreza ou não da avó de Chapeuzinho interessaria. Pautando-se na
resposta dada pela menina, Emília desconstrói a imagem da figura da vovó da maneira como
se refere a ela. Essa caracterização soma-se àquelas feitas anteriormente pelo Marquês de
Rabicó em que também assinala de forma mais despojada ou “dessacralizadora” os aspectos
particularizadores de cada personagem dos contos de fadas.
Outros convidados aparecem no Sítio, tais como Ali Babá, Patinho Feio, Peter Pan,
Soldadinho de Chumbo, Hansel e Gretel, heróis das Mil-e-Uma-Noites, Sindbade, os heróis
gregos, Perseu, Teseu, Minotauro: “Tantos personagens maravilhosos vieram, que o terreiro
de Dona Benta ficou de não caber um alfinete” (LOBATO, 1957, p.187). Na hora do lanche,
mais uma novidade:
Todos tomaram café, menos Cinderela.
– Só tomo leite – explicou a linda princesa. Tenho medo de que o café
me deixe morena.
Faz muito bem disse Emília. Foi de tanto tomar café que Tia
Nastácia ficou preta assim... (LOBATO, 1957, p.190).
Curiosamente, Cinderela não toma uma bebida tipicamente brasileira com medo de
sua pele escurecer. A retomada dessa superstição mostra que as crendices populares também
são incorporadas ao espaço do Sítio do Picapau Amarelo. Brincando com essas
154
“Cette bonne femme lui fit faire un petit chaperon rouge, qui lui seyait si bien, que partout on l’appelait le
Petit chaperon rouge” (PERRAULT, 1990, p.195).
108
especificidades, Monteiro Lobato alimenta a imaginação de seus leitores e continuidade à
caracterização das personagens. Após brincarem de transformar e “destransformar” com a
varinha de condão de Cinderela, uma situação inesperada acontece: “E estavam ainda nessa
brincadeira, quando ouviram na porta uma batida esquisita, muito diferente das demais. As
princesas assustaram-se” (LOBATO, 1957, p.192): as batidas eram do Lobo.
Nesse ponto da narrativa instaura-se certa tensão, Narizinho tenta acalmar as
princesas, mas ela mesma não entendia o reaparecimento daquele Lobo: “Não pode ser
disse ela. O lobo que comeu a avó de Capinha foi morto a machadadas por aquele homem que
entrou. É o que dizem os livros” (LOBATO, 1957, p.192). Como leitora dos contos de fadas,
a menina Lúcia retoma em sua fala a versão presente nas histórias compiladas pelos Irmãos
Grimm, na qual um Lenhador aparece e mata o Lobo, salvando a vovó e a Chapeuzinho.
155
A
boneca, que sempre acha respostas para essas questões difíceis, afirma: Deve ser erro
tipográfico sugeriu anasticamente Emília, que também fora espiar o lobo. É lobo sim e
magríssimo! Bem se que se alimenta de velhas bem velhas. Com certeza soube que
Dona Benta morava aqui e…” (Idem, p.192). Com sua agudeza de espírito, Emília uma
resposta inapropriada à situação de temor e, ao reparar na magreza do Lobo e associá-la a da
Avó de Chapeuzinho, gera comicidade na narrativa.
De tanto pavor, Narizinho e as princesas desmaiam, restando apenas Emília e o
Visconde na sala. O Lobo estava com meio corpo para dentro da casa quando a boneca
grita por Tia Nastácia, que o coloca imediatamente para correr: “Lobo sem vergonha!
prear no mato que é o melhor. Dona Benta nunca foi quitute pra teu bico, seu cão
sarnento!…” (LOBATO, 1957, p.194). Apesar do Lobo ter suas características conservadas
ao ser incorporado no universo ficcional lobatiano, notamos que este é posto a serviço de uma
nova proposta literária: comer Dona Benta.
Quando o relógio bate seis horas, as personagens começam a ir embora: “foi um
rodopio de abraços e beijos e palavras de despedidas – tudo num grande atropelo” (LOBATO,
1957, p.195). Na pressa, Aladino, Cinderela e o Gato de Botas esquecem seus objetos
mágicos e Narizinho, Pedrinho e Emília imaginavam as diversas brincadeiras que fariam
com a lâmpada, a varinha de condão e as botas de sete léguas, quando ouvem bater na porta:
155
“[o caçador] Resolveu então não atirar e, pegando uma tesoura, abriu o estômago do lobo adormecido. / Qual
não foi a sua surpresa quando ele viu o rosto sorridente de Chapeuzinho Vermelho espiar para fora ao primeiro
corte, e quando o abriu mais, ela saltou para fora exclamando: / ‘Puxa, fiquei tão assustada. Estava terrivelmente
escuro no estômago do lobo!’ / Depois eles ajudaram a velha avozinha, que estava viva e intata, a sair, mas ela
mal conseguia respirar. Quando o lobo acordou, era tarde demais para salvar a própria vida. Ele caiu de novo na
cama e morreu, e o caçador arrancou a sua pele” (GRIMM, 2005, p.269-70).
109
– Boa tarde! – disse a velha, fingindo não reconhecer a boneca e sentando-se
para descansar. – Sou Dona Carocha, a que toma conta de todos esses
personagens do mundo maravilhoso. [...] Vim buscar a lâmpada do
Aladino, a vara de condão de Cinderela e as botas do Gato de Botas
(LOBATO, 1957, p.197).
A velha baratinha põe fim à alegria dos meninos e leva consigo os objetos
esquecidos, até mesmo o espelho mágico que Branca de Neve havia dado à boneca. Muito
insatisfeita com a situação, Emília não deixa a saída da velha por menos e lhe diz: “– Cara-de-
coruja seca! Cara de jacarepaguá cozinhada com morcego e misturada com farinha de bicho
cabeludo, ahn!... e botou-lhe uma língua tão comprida que Dona Carochinha foi arregaçando
a saia e apressando o passo…”. (LOBATO, 1957, p.197). Essa atitude de Emília, além de
revelar um pouco mais do seu caráter e temperamento, pode ser lida, também, como o
confronto entre a tradição e a renovação, pois, ao ir buscar os objetos maravilhosos
esquecidos no Sítio, Dona Carocha procura evitar qualquer alteração nessas histórias
consagradas, ao contrário de Emília, que sempre incentiva a fuga das personagens para o
Sítio.
Como uma antecipação da aventura que será vivida em O Picapau Amarelo (1939),
no qual as personagens do País das Maravilhas mudam-se definitivamente para as terras
vizinhas das do Sítio de Dona Benta, a narrativa “Cara de Coruja” já conta com a participação
das mais diversas figuras dos contos de fadas.
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Depois da tentativa frustrada de dar vida ao irmão de Pinóquio, Narizinho leva o
boneco João Faz-de-Conta,
156
para um passeio no ribeirão: “recostou a cabeça no tronco e
cerrou os olhos, porque o mundo ficava três vezes mais bonito quando cerrava os olhos”
(LOBATO, 1957, p.218). O sol já começava a se esconder atrás do morro quando,
De repente Narizinho ouviu um bocejo ahhh! Olhou... Era Faz-de-
conta que se espreguiçava, como quem sai de um longo sono.
Achando aquilo a coisa mais natural do mundo, a menina apenas
disse:
156
Apesar de ter sido feito por Tia Nastácia, o nome da nova personagem é dado por Emília: “João Faz-de-
Conta é o melhor nome que acho para este boneco. / Por quê? / João, porque tem cara de João. Todo sujeito
desajeitado é mais ou menos João. E Faz-de-Conta, porque só mesmo fazendo de conta que se pode admitir uma
feiúra desta. Faz de conta que não é feio. Faz de conta que não tem ponta de prego nas costas. Faz de conta
que...” (LOBATO, 1957, p.212-3).
110
Ora graças! Eu tinha certeza de que os ares do ribeirão fariam você
mudar.
Eu sou sempre o mesmo respondeu o boneco. Não mudei. Não
mudo nunca. Quem muda são vocês, criaturas humanas. Você mudou,
Narizinho.
Como isso? exclamou a menina franzindo a testa. Estou no que
sempre fui…
Parece. Tanto mudou que está entendendo a minha linguagem e vai
ver coisas que sempre existiu neste sítio e no entanto você nunca viu. Olhe
lá! (LOBATO, 1957, p.218).
Nesse trecho, verificamos uma das inovações de Monteiro Lobato no gênero: a fusão
entre o real e o maravilhoso. Como aponta Nelly Novaes Coelho, para a versão de 1931, o
escritor deixa de marcar textualmente “os limites ente racional e irracional, ou entre verdade e
invenção”, ou seja, “já não sono ou sonho ‘explicando’ racionalmente a convivência das
personagens com o maravilhoso” (COELHO, 1995, p.851). Observamos, portanto, que a
magia passa a penetrar a realidade, possibilitando acontecimentos extraordinários. Essa forma
de introduzir o maravilhoso torna-se também um meio viabilizador para Lobato realizar a
renovação das histórias clássicas na literatura infanto-juvenil.
Com a “mudança de estado”, Narizinho enxerga “a mais linda casa que ela viu em
toda a sua vida, com trepadeiras na frente e duas janelas de venezianas verdinhas” (LOBATO,
1957, p.222) e, para sua surpresa, tratava-se da casa de Chapeuzinho Vermelho.
– Capinha! Que felicidade encontrar-te aqui!
E a minha felicidade de receber tua visita ainda é maior, Narizinho!
Há quanto tempo te espero!…
Abraçaram-se e beijaram-se e ficaram de mãos presas e os olhos
postos uma na outra. Era ali a casa da Menina da Capinha Vermelha, cuja
avó havia sido devorada pelo lobo. Capinha já tinha estado no sítio de Dona
Benta no dia da recepção dos príncipes encantados e ficara gostando muito
de Narizinho e Emília, tendo-as convidado para virem passar uns dias com
ela (LOBATO, 1957, p.222).
No fragmento acima, podemos observar o modo como Monteiro Lobato se posiciona
perante o “arquivo literário”. Notamos que o escritor mistura elementos pertencentes aos
contos de fadas com elementos próprios de seu universo ficcional, aproximando e
estabelecendo elos de amizade entre personagens de “mundos” diferentes, como Narizinho e
Chapeuzinho Vermelho. Além disso, verificamos que Lobato altera a própria história de
Chapeuzinho ao transpor sua casa para as terras do Sítio de Dona Benta. Com esse jogo,
Monteiro Lobato rompe com os limites do conto na versão francesa e, ao mesmo tempo,
brinca com o leitor, exigindo-lhe um “vai-e-vem” por entre os textos em diálogo.
111
Narizinho ainda relata à Menina que Emília, de posse do alfinete de pombinha,
poderia tornar-se “uma fada que nunca existiu no mundo: a Fada de Pano” (LOBATO, 1957,
p.223). Chapeuzinho Vermelho, contente com tal possibilidade, afirma: “Pois ela que se
transforme e apareça por aqui para brincarmos de virar” (Idem, p.222). Semelhantemente ao
Pequeno Polegar quando escolheu o pito para se esconder, Chapeuzinho Vermelho também vê
na possibilidade de Emília tornar-se uma fada um meio para brincar. Com essa reação,
percebemos que as personagens, ao participar das histórias de Lobato, adquirem um
comportamento mais próximo do infantil, ou seja, vêem nas situações mais inusitadas a
oportunidade para a diversão. Ao constituir seu universo ficcional dessa maneira, Lobato
demonstra sua sensibilidade em relação ao seu público, aproximando obra e leitor.
A concepção do Reino Encantado como um único universo fica novamente explícita
quando João Faz-de-Conta comenta a passagem de Peter Pan por aquelas bandas e
Chapeuzinho afirma: “Que pena não ter portado um minuto para tomar café conosco!
exclamou Capinha. Ele sempre me visita e gosto muito dele” (LOBATO, 1957, p.223).
Lobato reúne as mais diversas personagens, tanto as clássicas quanto as contemporâneas, num
mesmo espaço ficcional vivenciando novas experiências juntas. Estavam ainda conversando a
respeito de Peter Pan quando João Faz-de-conta berra, “apontando para a estranha figura que
acabava de pular a cerca do quintal com uma enorme faca de matar mulher na mão. / Feche
os olhos, Narizinho! gritou ele. Barba Azul vem vindo!… A menina para salvar-se fechou
os olhos com quanta força teve…” (Idem, p.223-4). O simples ato de cerrar os olhos, na
esfera ficcional lobatiana, serve como uma espécie de portal, de passagem entre o real e o
mágico: “E salvou-se. Quando Narizinho reabriu os olhos, viu que estava outra vez no pomar,
à beira do ribeirão, sentada na ‘sua raiz’ com Faz-de-Conta ao colo, mudo e morto como
antes” (LOBATO, 1957, p.224).
157
Tudo se transforma novamente como se o encantamento
tivesse sido desfeito.
Nessa narrativa, observamos que, no fazer literário de Lobato, Barba Azul torna-se
um típico representante do “mal”, seguindo a dicotomia característica dos contos de fadas. A
conversa de Emília com seu cavalinho explicita bem essa idéia:
Boa? Está muito enganado. Mais malvada que ela o Barba Azul. Você
porque é novo nesta casa e não a conhece. Tia Nastácia não tem de nada.
157
Em Reinações de Narizinho dois momentos em que esse método também é usado pela turma como
passagem do maravilhoso para o real. No final do conto “O Sítio do Picapau Amarelo”, Narizinho fechou os
olhos. Depois criou coragem e os foi abrindo devagarinho. E viu... sabe quem? Viu Tia Nastácia” (LOBATO,
1957, p.78). Em “O pó de pirlimpimpim”, para escaparem do Pássaro Roca, Emília sugere: “Fechem os olhos
com toda a força! berrou ela dando o exemplo. / Instintivamente todos obedeceram [...] Quando de novo
abriram os olhos... estavam no sítio outra vez, perto da porteira” (Idem, p.310).
112
Pega aqueles frangos tão lindos e zás! torce-lhes o pescoço. Mata patos,
mata perus, mata camundongos não o que não mate. Outro dia, no
Natal, a diaba assassinou um irmão de Rabicó, tão bonitinho! Pegou naquela
faca de ponta que mora na cozinha e fuct! Enfiou dentro dele, até no
fundo. E pensa que foi só isso? Está enganado! Depois pelou o coitadinho
numa água bem fervendo e assou o coitadinho num forno tão quente que
nem se podia chegar perto (LOBATO, 1957, p.210).
Conhecedora da história do Barba Azul, Emília compara as ações deste com as de
Tia Nastácia. A repetição do verbo matar; os termos “torce-lhes”, “assassinou”, “diaba”; a
ênfase na beleza dos bichos mortos pela cozinheira – “frangos tão lindos”, “tão bonitinho” e o
modo como Emília dispõe no seu discurso esses elementos contribuem para destacar a
“maldade” de Tia Nastácia e para aproximá-la ao máximo de Barba Azul. Assim como este
ameaça sua esposa com uma faca, a cozinheira do Sítio também utiliza esse objeto para fazer
suas vítimas. Percebemos, nesse trecho, que Emília procura de todas as formas estabelecer
certa ligação entre as atitudes das duas personagens, valendo-se de recursos discursivos para
persuadir seu interlocutor.
Em outro momento, nesse mesmo conto, há referências a Barba Azul:
Passe para o meu cavalo! continuou o menino, fechando uma
carranca de Barba Azul [...]
Ah, o mundo veio abaixo! Emília berrou como se houvesse sete
pulmões dentro dela: “Acudam! Barba Azul está querendo me matar!” e foi
tal a gritaria que todos acudiram assustados, certos de que algum grande
desastre havia acontecido.
– É este Barba Azulzinho que me chamou de cara de coruja seca e me
deu um beliscão – disse Emília soluçando (LOBATO, 1957, p.214-6).
Barba Azul torna-se um protótipo da maldade e sua figura passa a ser evocada por
Emília em situações que envolvem algum tipo de perversidade, tais como as matanças de Tia
Nastácia e as ameaças de Pedrinho. Verificamos, portanto, que a boneca vale-se,
estrategicamente, da carga simbólica que acompanha a figura de Barba Azul, sobretudo
quando deseja enfatizar ações negativas de outras personagens, como é o caso da briga com
Pedrinho, situação em que a boneca consegue fazer com que todos tomem “o partido dela,
inclusive Dona Benta” (LOBATO, 1957, p.216). Em mais um episódio, notamos que a
literatura lobatiana busca no “arquivo literário” construído por Perrault os elementos
necessários para a elaboração de suas personagens.
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No capítulo “Circo de Cavalinho”, em Reinações de Narizinho, uma breve
participação das personagens de Perrault. Nessa aventura, o Pequeno Polegar, o Gato de Botas
e a Chapeuzinho Vermelho vão a o Sítio de Dona Benta para assistir o espetáculo do
“Grande Circo de Escavalinho”, a convite das crianças.
Sempre gerando tumulto com sua presença, Barba Azul, tenta se aproximar do tio
para acompanhar o espetáculo de circo, mas logo é posto para correr:
Calma! Calma! Não
se assustem! O monstro já vai longe. Maroto ferrou-lhe uma dentada na barba, que até
arrancou um chumaço – e mostrou um punhado de barba de Barba Azul. / Todos vieram ver e
cada qual levou um fio como lembrança” (LOBATO, 1957, p.244). Nessa passagem, notamos
a repulsa por Barba Azul devido à sua fama de “matador” que, no espaço do Sítio, se
intensifica ainda mais. Contudo, observamos que, ao mesmo tempo em que querem manter
Barba Azul bem longe, as personagens guardam um fio de sua barba como lembrança, fato
que o torna presente na história de cada uma delas.
O Pequeno Polegar também participa da história com breves intervenções. Além de
liderar as demais figuras do Mundo Maravilhoso na conspiração contra Dona Carocha, ele
mobiliza o público para solicitar a presença de um palhaço. O fato de Polegar desenvolver
novamente o papel de líder em uma aventura no Sítio do Picapau Amarelo demonstra o
conhecimento de Monteiro Lobato a respeito do acervo literário, pois o escritor reaproveita a
principal característica da personagem e a coloca em função de novos propósitos. Seja para
propiciar a mudança no Mundo das Fábulas, para pedir a apresentação de um palhaço ou
mesmo para expor outro aspecto fundamental da obra lobatiana:
Para salvar a situação Narizinho entrou no picadeiro com um cabo de
vassoura de tabuleta de ponta, onde se lia em enormes letras vermelhas:
INTERVALO.
Intervalo, tem dois LL! gritou o Pequeno Polegar que era
partidário da ortografia antiga, a complicada.
Mas ninguém lhe deu atenção. (LOBATO, 1957, p.249-50).
Aparentemente sem muita relevância, essa breve intervenção de Polegar chama
atenção para outra questão relativa às produções literárias destinadas ao público infantil: a
linguagem. Polegar, uma personagem clássica da literatura infantil, e, conforme acrescenta o
narrador, um partidário da ortografia antiga, solicita a correção da grafia da palavra
“intervalo”, mas ninguém lhe atenção. Numa atitude semelhante à do público, Monteiro
114
Lobato também não se atém à proposta daqueles que defendem o uso de uma linguagem
erudita na literatura infantil; ao contrário, propõe com a criação do Sítio do Picapau Amarelo
o emprego de uma linguagem mais fluida, próxima da oralidade, com a presença de ditos
populares, onomatopéias e outras figuras de linguagem que tornam a obra mais acessível e
compatível com a mentalidade infantil.
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No livro O Picapau Amarelo, de 1939, a concretização do projeto literário
lobatiano: as personagens do País das Maravilhas mudam-se para as terras vizinhas das do
Sítio. O subtítulo dado à obra, “O Sítio de Dona Benta, um mundo de verdade e de mentira”,
evoca um aspecto fundamental da composição das obras infantis lobatianas: a mescla de
elementos retirados da realidade empírica com aqueles do imaginário. No livro O Saci (1921)
há uma minuciosa descrição do local habitado por Dona Benta e seus netos:
A sala de jantar era bem espaçosa, com janelas dando para o jardim,
depois vinha a copa e a cozinha.
– E a sala de visitas? Tinha?
Como não? Uma sala de visitas com piano, sofá de cabiúna, de
palhinha tão bem esticada que “cantava” quando Pedrinho batia-lhe tapas.
Duas poltronas do mesmo estilo e seis cadeiras. A mesa de centro era de
mármore e pés também de cabiúna.
[...] O jardim ficava nos fundos da sala de jantar, um verdadeiro amor
de jardim, de plantas antigas e fora da moda. Flores do tempo da
mocidade de Dona Benta: esporinhas, damas-entre-verdes, suspiros, orelhas-
de-macaco, dois pés de jasmim-de-cabo, e outro, muito velho, de jasmim-
manga (LOBATO, 1988, v.2, p.145-6).
Com a pormenorização da distribuição dos cômodos da casa, dos objetos que a
compõem, das plantas etc., o leitor é capaz de elaborar, pouco a pouco, uma imagem criativa
de como seria a estrutura física do Sítio. Isso se torna possível porque os elementos citados
são familiares do leitor e se relacionam com sua realidade. Esse espaço também é formado
por componentes maravilhosos e a concretude desse universo é discutida nas palavras iniciais
d’O Picapau Amarelo:
O Sítio de Dona Benta foi se tornando famoso tanto no mundo de verdade
como no chamado Mundo de Mentira. O Mundo de Mentira, ou Mundo da
Fábula, é como a gente grande costuma chamar a terra e as coisas do País
das Maravilhas, lá onde moram os anões e os gigantes, as fadas e os sacis, os
piratas como o Capitão Gancho e os anjinhos como Flor das Alturas. Mas o
Mundo da Fábula não é realmente nenhum mundo de mentira, pois o que
115
existe na imaginação de milhões e milhões de crianças é tão real como as
páginas deste livro. O que se é que as crianças logo que se transformam
em gente grande fingem não mais acreditar no que acreditavam (LOBATO,
1956, p.03).
Na primeira frase, notamos a afirmação da popularidade das obras lobatianas em dois
mundos: no “de verdade”, que se refere ao sucesso editorial de Monteiro Lobato e no “de
mentira”, confirmando a fama do Sítio junto às demais produções literárias. Essa notoriedade
no Mundo das Fábulas indica, como pontuado anteriormente, o processo de universalização
da criação lobatiana e, além disso, seria a concretização do desejo de Lobato de ver as
produções nacionais ocuparem seu lugar junto às demais obras: “Que lindo se figurassemos
na assembleia mundial como povo capaz de uma ideia sua, uma arte sua...” (LOBATO, 1964,
v.4, p.49).
Ao longo da obra infantil lobatiana, constatamos a recorrente crítica à postura incrédula
dos adultos face aos elementos maravilhosos. Contudo, no trecho acima mencionado,
observamos que, contradizendo a essa costumeira descrença, o anúncio da chegada da carta
do Pequeno Polegar no sítio é feito por Dona Benta:
Prezadíssima Senhora Dona Benta Encerrabodes de Oliveira:
Saudações. Tem esta por fim comunicar a V. Excia. que nós, os
habitantes do Mundo da Fábula, não agüentamos mais as saudades do Sítio
do Picapau Amarelo, e estamos dispostos a mudar-mos para aí
definitivamente. O resto do mundo anda uma coisa das mais sem graça. é
que é o bom. Em vista disso, mudar-nos-emos todos para a sua casa se a
senhora der licença, está claro... (LOBATO, 1956, p.05).
Pelas análises até aqui realizadas, verificamos que, para executar o projeto de
nacionalização das “velhas fábulas”, Monteiro Lobato primeiramente sugere a proposta da
mudança das personagens dos contos de fadas para o Picapau Amarelo. Depois da
participação nas “reinações” da turma do Sítio como visitante, Lobato cria uma história que
narra exatamente a concretização desse projeto literário. Com a constante retomada da
insatisfação das personagens com a mesmice de suas histórias, Lobato envolve,
estrategicamente, o leitor nesse “problema”, incutindo a idéia da transferência de “universos”.
Sob a condição de não ultrapassar a cerca que divide as Terras Novas das do Sítio,
Dona Benta aceita a proposta da mudança. Da parte das personagens, “as condições foram
aceitas, e passada uma semana começou a mudança dos personagens do Mundo da Fábula
para as Terras Novas de Dona Benta. O Pequeno Polegar veio puxando a fila” (LOBATO,
1956, p.18-9). No papel de líder da população maravilhosa, o pequeno herói conduz essa
transferência do Reino Encantado:
116
Mas não vinham a passeio, não; vinham com armas e bagagens, com
os castelos e palácios, para uma fixação definitiva. Vinham para morar toda
vida. O Pequeno Polegar explicou:
Eles sempre sonharam uma coisa assim. Nunca puderam habitar
sossegados numa terra que fosse unicamente deles. Uns moravam em livros,
outros na cabeça das crianças. Agora vão ser donos de um território próprio,
só deles. Vão sossegar, os coitados (LOBATO, 1956, p.19).
O espaço do Sítio expande-se e propicia a união das diversas figuras ficcionais,
tornando-se um espaço único onde todas passam a habitar. Segundo a fala de Polegar, esse
deslocamento consiste na realização de um “sonho”, na concretização de algo que sempre
idealizaram. Notamos, portanto, um processo dialético na construção do universo ficcional
lobatiano, pois, ao mesmo tempo em que opera uma nacionalização dessas histórias,
universaliza a sua própria criação, possibilitando uma convivência ímpar entre as personagens
clássicas e as brasileiras, num contexto geográfico, social e cultural familiar ao leitor
brasileiro. Como o maravilhoso passa a integrar a realidade, “aquelas terras ordinaríssimas,
onde havia saúva e sapé, começaram a transformar-se como por encanto” (LOBATO,
1956, p.22-3). De maneira semelhante aos contos de fadas, em que o maravilhoso é aceito
com naturalidade, sem gerar qualquer estranhamento nas personagens, verificamos que os
acontecimentos maravilhosos também são vividos pela turma do Sítio com certa naturalidade:
“Lá estavam todos encarapitados, com os olhos fixos na procissão sem fim dos personagens
fantásticos, de mudança para as Terras Novas” (Idem, p.24).
Dentre todos os novos habitantes, Polegar é o único que não traz bagagem alguma,
apenas suas botas de sete léguas: “E sabe a idéia dele, vovó? Deu com a casa do joão-de-barro
ali no Cedro Grande e apossou-se dela. Já se recolheu. Está lá dentro descansando da viagem”
(LOBATO, 1956, p.25). Quando o casal de passarinhos retorna ao ninho e o vê ocupado, eles,
imediatamente, brigam com o Polegar: “Os dois passarinhos investiam furiosos contra o
intruso, procurando deitá-lo fora” (Idem, p.37). Nessa confusão, o Visconde tenta ajudar
Polegar, mas, por fim, recebe uma “botada” do pequeno herói. O Pequeno Polegar, por sua
vez, cai do ninho e se espatifa no chão. “Polegar gemia de dor. Dona Benta examinou-lhe a
perna. / Quebrada, sim, com um ossinho aparecendo. Mas de sarar. Tia Nastácia tem um
remédio ótimo para isto. Numa semana ou duas põe-no bom” (Idem, p.64-5).
Se nas narrativas analisadas, o Pequeno Polegar tinha uma participação mais
secundária, em O Picapau Amarelo, verificamos que o pequeno herói desenvolve ações e
vivencia situações que lhe trazem, como conseqüência, uma nova característica:
E como vai passando o Polegar? Com esta lufa-lufa nem tive tempo
de visitá-lo.
117
Vai indo, sinhá, vai sarando. Aleijadinho fica, ah, isso fica mesmo.
Quebrou a canela. Eu encanei o melhor que pude, mas não endireita mais
tem que usar muleta.
Coitado! exclamou Dona Benta. O mais gentil personagenzinho
da Fábula, estropiado, de muletas!... (LOBATO, 1956, p.111).
Nessa passagem, percebemos a continuidade criativa da história de Polegar que passa
a ser concebido sob a óptica lobatiana. Assim, essa nova característica atribuída à personagem
pode ser lida como uma forma de Lobato marcar a diferença de sua criação literária e de
“brincar” com o leitor. Além dessa experiência no Cedro Grande, Polegar conhece algumas
crianças, leitoras das aventuras publicadas em Reinações de Narizinho que haviam localizado
o Sítio de Dona Benta.
Polegar havia sarado, mas vinha de muletas. Ao ouvir o barulho na
varanda, pulou da caminha para ver o que era. O encontro de tantas crianças
fê-lo abrir a boca.
– Meu amor, meu amor! – e Rãzinha colocou-o na palma da mão.
Que festa foi aquilo! Até parecia sonho. O célebre Pequeno Polegar,
que as crianças do mundo inteiro conhecem de fama e de história, eles o
tinham ali, em carninha e ossinho – vivinho da silvinha.
Mas essas muletas, Polegar? Que é isso? Você nunca foi aleijado...
(LOBATO, 1956, p.162).
Pela reação das crianças, observamos que, além de leitoras das histórias do Picapau
Amarelo, elas também conhecem os contos de fadas, pois, ao verem o Pequeno Polegar com
uma nova característica, elas estranham a sua condição e o questionam. Constatamos,
portanto, que o conhecimento das histórias clássicas por parte do leitor torna-se fundamental
para o reconhecimento das alterações propostas pelo escritor no seu universo ficcional.
Notamos, ainda, nesse trecho, outro aspecto relevante da obra infantil de Lobato e que diz
respeito à linguagem, evidente na adaptação da conhecida expressão “em carne em osso,
vivinho da silva”, empregado, no texto lobatiano, com todos os termos no diminutivo, a fim
de enfatizar o tamanho da personagem.
Além das ações até aqui apontadas, Polegar toma uma atitude muito similar àquela
narrada em “Le Petit Poucet”:
Polegar chegou e foi direto a Dona Benta. Parecia aflito.
– Que há, figurinha?
O que disse ele arrumando-se nas muletas é que o sítio está
ameaçado de ataque. O pirata que a senhora esqueceu tentou seduzir o
burro e o hipopótamo...
– Rinoceronte – corrigiu Dona Benta.
– Sim, o chifrudo. Nada conseguindo, retirou-se, danado da vida,
rogando mil pragas de milhões e está com intenção de reunir os malfeitores
da zona para um ataque ao sítio
(LOBATO, 1956, p.173-4).
118
Conhecedor do ofício de mensageiro desempenhado por Polegar de levar notícias do
Rei ao Exército ou das Damas aos seus amantes, Lobato insere a personagem no seu texto
para desenvolver o mesmo serviço, entretanto, com a função de alertar Dona Benta da invasão
pretendida por Capitão Gancho, criando novo plano de sentido. Nesse excerto, é curioso
observar a similaridade da postura de Polegar com a de Emília, quando esta é corrigida por
alguém. Ao ouvir o pequeno herói chamar o Quindim de “hipopótamo”, Dona Benta corrige-o
e verbaliza o signo que melhor designaria esse tipo de animal. Polegar, contudo, nega-se a
repetir a palavra dita pela senhora e opta por chamá-lo de “chifrudo”, revelando uma
personalidade forte, idêntica à de Emília. Talvez, seja essa semelhança que permita a intensa
amizade entre os dois.
Em O Picapau Amarelo, Barba Azul é mencionado na conversa de Pedrinho com
Sancho Pança:
Sancho logo fez camaradagem com Pedrinho, ao qual contou várias
proezas de seu amo que não figuram no famoso livro de Cervantes.
Ah! Menino, este meu amo é na verdade o herói dos heróis. Ainda
pouco, ali na entrada das Terras Novas, espetou com a lança um homem
muito feio, de grandes barbas azuis.
– De barbas azuis? Então era o Barba-Azul! Bem feito! Esse homem é
o maior especialista em matar mulheres. Já liquidou sete. Não estava de faca
na mão?
– Trazia na cintura uma enorme faca de ponta, sim.
– Pois é isso mesmo. Com aquela faca o malvado já matou sete
esposas – e matará a oitava, se aparecer outra tola que se case com ele.
Pois ficou bem espetado pela lança de meu amo continuou
Sancho. Quis resistir; mas quando ia puxando a faca, foi alcançado no
peito e derrubado (LOBATO, 1956, p.31-2).
Sempre indesejado pelas demais personagens dos contos de fadas, Barba Azul que
no conto La Barbe Bleue” é morto pelos irmãos de sua última esposa –, tem um novo fim no
espaço ficcional lobatiano: ele é morto por Dom Quixote. Com esse novo final, Lobato rompe
com os limites de autoria e aproxima diferentes personagens em um único espaço ficcional.
Se nos contos anteriores notamos a presença de um novo adereço na figura de Barba Azul o
cinto com a cabeça de suas ex-mulheres que lhe conferia uma imagem mais aterrorizante,
neste, verificamos a retomada de um objeto já mencionado no conto francês: a faca. A
pergunta que Pedrinho faz a Sancho a fim de identificar se se tratava realmente de Barba
Azul, faz remissão à cena final da versão francesa do conto, na qual a personagem ameaça
matar sua esposa com um facão. Com essa questão, observamos que Pedrinho possui um
repertório de leitura capaz de lhe fornecer condições para identificar as personagens.
119
em relação à história do Barba Azul, percebemos que, no trecho citado, ocorre
uma alteração na quantidade de ex-mulheres do rico homem. Na primeira participação no
Sítio, a personagem aparece usando um cinto com as seis cabeças de suas ex-esposas, na
fala de Pedrinho, Barba Azul teria matado sete mulheres, enquanto que, na versão francesa,
não nenhuma especificação. Podemos pensar que essas divergências seriam uma maneira
de mostrar que “quem conta um conto sempre aumenta um ponto”, isto é, de que na fala de
diferentes personagens a mesma história pode sofrer variações. Esses desencontros de dados
podem ser considerados também como uma estratégia de Lobato para despertar no leitor,
exigindo-lhe uma postura mais ativa perante o texto literário.
Como leitora crítica dos contos de fadas, Emília questiona o fato de praticamente
nada ser dito a respeito dos príncipes e de quase nunca desempenharem um papel muito ativo
nas histórias, aparecendo, na maioria das vezes, apenas no final da narrativa: “Casam-se,
uma grande festa e pronto!”. Observando esse tratamento dado aos “príncipes-maridos”, a
boneca procura descobrir com Branca de Neve o que eles realmente fazem: “Onde anda o
seu?” / “Caçando. É doidinho por caçadas. à noite me aparece aqui, com uma penca de
faisões ou perdizes” (LOBATO, 1956, p.49). No universo de Lobato, essa questão da
representatividade dos príncipes e de sua ausência, adquire um significado maior, revelando, a
perspectiva feminina sobre o assunto: “Homem que não sai de casa é a maior das pestes”.
Narizinho conversa com Branca de Neve sobre o maravilhoso presente nas
histórias das personagens do Mundo das Fábulas:
Que coisa curiosa! disse Narizinho. No Mundo da Fábula
ninguém morre duma vez. Peter já venceu esse Gancho e o fez afogar-se no
mar e ser engolido pelo jacaré e depois disso o Capitão nos apareceu
em casa e agora vai aparecer novamente aqui...
Se não fosse assim explicou Branca –, isto não seria nenhum País
das Maravilhas. O maravilhoso está justamente nisso...
Foi também o que aconteceu para o lobo que devorou a avó de
Capinha. Morreu a machadadas, e no entanto, continua a viver e a farejar
avós – como aquele dia lá no sítio (LOBATO, 1956, p.56-7).
No diálogo acima, temos a explicação do maravilhoso como um componente
imprescindível para a manutenção do Mundo das Fábulas. De forma dica e acessível à
mentalidade infantil, Monteiro Lobato vale-se de uma personagem do próprio País das
Maravilhas para explicar o maravilhoso, empregando exemplos práticos que facilitam à
compreensão dos procedimentos de criação literária por parte das crianças.
A breve participação de Chapeuzinho Vermelho confirma a amizade que se
estabelece entre as personagens dos contos de fadas e as crianças do Sítio: “Capinha!
120
Exclamaram todos na maior alegria, vendo surgir a encantadora criança com uma cesta de
flores na mão. Nunca houve tantos abraços e beijos” (LOBATO, 1956, p.57). Nesse novo
espaço, Chapeuzinho surpreende-se ao saber da existência de uma Quimera: “Capinha
ignorava que coisa fosse a Quimera. ‘Alguma vaca?’, perguntou. / Ao saber do monstro de
três cabeças, arrepiou-se toda. Que horror! Minha vida era fugir do lobo agora tenho de
fugir de Quimera também...” (Idem, p.57-8). Opondo-se à simples reprodução do conto
original, Lobato, ao inserir Chapeuzinho Vermelho no seu universo ficcional, amplia o campo
de ação da personagem, permitindo-lhe realizar novas ações.
Com a leitura desta obra, podemos perceber nitidamente a continuidade dos contos
de fadas realizada por Lobato. Sob sua óptica, as histórias modificam-se e as personagens
adquirem novas características. Com essa atualização, Monteiro Lobato vai além da simples
reprodução dessas narrativas, ele re-cria o Mundo das Fábulas.
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Na maioria dos textos lobatianos, a aventura é relatada por um narrador que durante
alguns momentos da história cede voz às personagens. Em outros casos, além do narrador,
algumas personagens do Sítio assumem esse papel e contam histórias, como em Dom Quixote
para as crianças (1936), no qual Dona Benta narra a história da pitoresca personagem Dom
Quixote. Outro exemplo seria o livro Histórias de Tia Nastácia (1937), em que a cozinheira
conta as histórias populares nacionais às crianças do Sítio. Na narrativa “As botas de sete
léguas”, Histórias Diversas (1959), a narrativa adquire uma focalização mais limitada, pois os
acontecimentos são relatados a partir da visão da personagem-narradora.
Naquele enorme hotel de trinta andares, há um porteiro quase do tamanho de
um andar. Está sempre ali pela calçada, vestido de comprida sobrecasaca cor
de cinza, com uma fila de botões de metal amarelo na frente e dois atrás. Nos
dias de chuva, assim que chega um automóvel com hóspede dentro, ele abre
um enorme guarda-chuva vermelho e vai ao seu encontro. Para um hotel
nada mais precioso que um “hóspede”. É preciso que não tome nem uma só
gota (LOBATO, 1988, v.15, p.193).
Sem fazer qualquer referência explícita ou precisa a respeito do espaço, o narrador
evoca em seu discurso algo característico de uma cidade grande: um hotel. Sem se preocupar
em descrever pormenorizadamente a aparência física desse estabelecimento, o narrador
apenas afirma sua altura. A inserção dessa particularidade ostenta a grandeza do lugar que,
121
somado à descrição das vestimentas do porteiro, reforçam a imagem de grandiosidade e luxo.
Entretanto, nessa passagem, percebemos a postura crítica do narrador na descrição da ação do
porteiro em dias chuvosos desvelando, com um tom irônico, o verdadeiro interesse presente
naquela atitude. Com uma estrutura discursiva simples e objetiva, há, nesse trecho, a
referência a um aspecto da sociedade moderna: as ações e os comportamentos regidos de
acordo com o sistema capitalista que visa apenas ao lucro.
Sem omitir dos leitores fatos da realidade empírica, Monteiro Lobato permite-lhes a
tomada de um posicionamento reflexivo e crítico perante os acontecimentos que os cercam.
Seguindo na contramão daqueles que defendiam a tese de que os livros para a infância não
deveriam abordar temas políticos, Lobato rompe com essa tradição.
Diante desse hotel, o narrador percebe “uma coisinha mexendo-se na calçada”
(LOBATO, 1988, v.15, p.193-4) e quando observa, vê que se trata de “uma gentinha! A mais
galante das gentinhas! Um dos mais famosos personagens do Mundo das Fábulas: o Pequeno
Polegar!...” (Idem, p.194). Muito surpreso com o encontro, o narrador coloca Polegar na
palma de sua mão e questiona-lhe:
Polegarzinho querido, como é que se atreve a andar assim por estas ruas
tão cheias de gente, com as botas de sete léguas ao ombro, em vez de
calçadas? Este porteiro gigante, que navega por aqui, de um momento para
outro te esmaga com o imensíssimo ... Como quem possui uma bota de
sete léguas anda assim com ela ao ombro? (LOBATO, 1988, v.15, p.194).
Conhecedor dos contos de fadas, o narrador reconhece o Pequeno Polegar e estranha
o fato de ele estar sem suas botas de sete léguas. Por meio do emprego do adjetivo “querido” e
do diminutivo, o narrador expressa sua afetividade ao pequeno herói. Além de ser uma forma
apreciativa, o sufixo diminutivo enfatiza a noção de pequenez, contrastando com a descrição
do porteiro que tem suas medidas ampliadas pelos qualificativos “gigantee “imensíssimos”.
Observamos, nessa construção, a visão do pequeno sobre a cidade, com a ampliação de suas
proporções.
Polegar explica que sua vinda para a cidade deve-se ao defeito de um dos pés de sua
bota. Como havia feito uma longa caminhada, o pequeno herói resolve hospedar-se no hotel
de “trinta andares” e deixar para o dia seguinte a busca pelo conserto de suas botas. Diante
desse problema, o narrador decide acompanhar o Pequeno Polegar, atitude que lhe permite
conhecer particularidades e detalhes, até então, não revelados sobre a pequena personagem.
– Porque escolheu justamente este [hotel]?
– Por ser o mais alto da cidade – trinta andares. Quero ficar bem lá em
cima. Gosto muito de cuspir em gente, embora saiba que isso é uma grande
122
falta de educação. Mas ficando no último andar, satisfaço o meu gosto e não
causo mal a ninguém.
– Por quê?
– Porque o meu cuspinho é o pequeno que seca no ar antes de
alcançar alguém... (LOBATO, 1988, v.15, p.194-5).
Se, no conto “Le Petit Poucet”, o Pequeno Polegar tem em vista o retorno para a casa
de seus pais, verificamos que, sob a óptica de Lobato, ocorre a inversão dessa postura mais
próxima da realidade adulta e a personagem adquire um comportamento comum no mundo
infantil: a brincadeira. Constatamos também a relativização da personalidade de Polegar, pois,
se na versão francesa procura-se justificar as suas ações a fim de caracterizá-lo como um
autêntico herói; no universo ficcional lobatiano, a personagem revela suas “maldades”
interiores.
No interior do hotel, o gerente assombra-se ao saber que o quarto reservado é para
aquela figura “de meio palmo de altura [...] em cima do balcão e que se sentara na beira duma
caixa de fósforo” (LOBATO, 1988, v.15, p.195). O narrador explica que se trata do
“famosíssimo Pequeno Polegar, que veio ver se encontra quem lhe conserte uma bota que está
atrasando” (Idem, p.195). Sem compreender nada, o gerente “com ar abobalhado foi abrindo o
livro de registro” (Idem, p.195). Notamos, novamente, o ceticismo dos adultos perante o
mundo maravilhoso, contrastando com a credibilidade das crianças. Diferentemente do
narrador que, de imediato, reconhece o Pequeno Polegar, o gerente estranha a presença da
pequena personagem, passando ao cumprimento de suas obrigações:
– Nome? – perguntou e eu transmiti a pergunta ao personagenzinho, o
qual respondeu de modo que também a mim me causou surpresa.
– Meu nome é Nicolau Ildefonsius Nicomédio.
– Nacionalidade e idade?
– Nasci na Pérsia no ano de 1425.
– Casado ou solteiro?
– Solteiro – foi a resposta da galanteza e suspirou. – Onde encontrar
uma mulher do meu tamanho, com quem casar-me? (LOBATO, 1988, v.15,
p.195).
No capítulo primeiro deste trabalho, verificamos que, nos contos de fadas, as
personagens adquirem uma caracterização mais generalizante, sem a menção de dados que as
individualizem. Consciente dessa propriedade, Lobato acrescenta em seu texto atributos que,
até então, não eram conhecidos e o faz, de modo perspicaz, por meio do próprio Pequeno
Polegar, conferindo maior veracidade às informações apresentadas (nome, idade,
nacionalidade e estado civil). Com esse procedimento, Monteiro Lobato rompe com os limites
123
do conto Le Petit Poucet” e, por meio da incorporação de novos dados, atualiza o conto
francês, apresentando uma nova leitura de sua personagem.
Admirado com a idade de Polegar, o narrador pergunta-lhe:
– Como é que não envelhece, Polegar?
– Porque pertenço à turma dos “personagens”. Envelhecem vocês,
gente; os “personagens”, não. Peter Pan, Emília, o Gato de Botas, Capinha
Vermelha, a Gata Borralheira, todos nós não somos gente, somos
“personagens”. Ontem passei o dia com a Gata Borralheira; está a mesminha
do tempo do baile em que perdeu o sapato (LOBATO, 1988, v.15, p.195).
No trecho acima, verificamos a preocupação de Monteiro Lobato em conscientizar os
pequenos leitores de que as personagens são uma construção ficcional. Lobato toma como
exemplos, personagens conhecidas do leitor a fim de tornar mais acessível à mentalidade
infantil o processo de construção dessas figuras. Polegar, explica que as personagens
pertencem a uma categoria cuja passagem do tempo não gera o mesmo efeito causado nos
homens. Ao explorar a diferença entre “gente” e “personagem”, Lobato chama a atenção para
a necessidade de se tomar certo distanciamento do texto e de se evitar a identificação ingênua.
Com isso, Lobato valoriza a dimensão ficcional da literatura, procurando inserir as crianças
nesse domínio, com vistas à formação de um leitor capaz de realizar uma leitura diferenciada.
No decurso da narrativa, novas peculiaridades a respeito do Polegar são
apresentadas, contribuindo para a atualização dessa famosa figura ficcional:
O banho de Polegar foi interessante. Havia no quarto um pires, que
enchi d’água e serviu de piscina. Do sabonete da pia cortei um pedacinho do
tamanho de um grão de arroz e com esse sabonetinho ensaboou-se todo.
Não creio que haja no mundo cena mais galante do que Polegar a ensaboar-
se! Depois enxugou-se e foi para a cama. Estava cansadíssimo. Levantei a
colcha e no meio daquela imensidade branca, que era o lençol, coloquei-o
deitadinho, coberto com o meu lenço de seda.
[...] No dia seguinte voltei cedo e ajudei-o a tomar o café da manhã:
meia colherinha de café com leite, da qual ingeriu três gotas, com uma
isca de pão. Quis experimentar a geléia que veio num cálice e besuntou-se
todo... (LOBATO, 1988, v.15, p.196).
A descrição detalhada do banho e do café da manhã de Polegar possibilita a
elaboração imaginativa dessas ações por parte do leitor. Nessa exposição, a ampliação das
dimensões de um quarto de hotel evidencia a perspectiva do pequeno e enfatiza o tamanho do
Pequeno Polegar. Além disso, confere ao texto certo tom humorístico por meio do jogo entre
“grande” e “pequeno” na descrição das ações desenvolvidas por Polegar. Novamente, o
emprego do diminutivo contribui no reforço de uma característica particularizadora do
Polegar e na expressão da afetividade do narrador para com a pequena personagem.
124
Infelizmente, Polegar não encontra na cidade alguém que o ajude. Tanto o sapateiro
quanto o relojoeiro o compreendem que o problema da bota é de ordem mágica.
Percebemos, na postura dos representantes do universo adulto, a descrença diante dos
acontecimentos do Mundo das Fábulas. O narrador, por sua vez, preocupa-se com a situação
de Polegar e afirma: “sem que seu par de botas funcione perfeitamente, você não se arruma
neste mundo. Fica sem defesa” (LOBATO, 1988, v.15, p.197). Reconhecendo a importância
do objeto maravilhoso na construção da personagem, o narrador recorda-se de Emília: “Sim.
Emília seria capaz de dar um jeito aquilo, como dera em tantos problemas aparentemente
insolúveis” (Idem, p.196). Por fim, é no Sítio do Picapau Amarelo que o narrador a única
possibilidade de ajudar o pequeno herói.
No universo ficcional lobatiano, uma história faz menção a outra, exigindo do leitor
um “vai-e-vem” pelas obras. Em “As botas de sete léguas”, a retomada da cena em que o
Pequeno Polegar esteve no Sítio, narrado em “Cara de Coruja”: “Polegar havia estado no
Picapau Amarelo e se dava muito com Emília, da qual havia recebido um presentinho: o pito
de barro de Tia Nastácia, ‘para esconder-se dentro quando fosse preciso’” (LOBATO, 1988,
v.15, p.197). Depois de lembrar a amizade entre Polegar e Emília, o narrador sugere: “Muita
gente jura que o Pequeno Polegar tinha paixão pela Emília. Pode ser. Não tenho elementos
para dar opinião sobre o assunto” (Idem, p.197). E, para aumentar ainda mais tal suspeita, o
narrador informa que “Emília recebeu Polegar como quem recebe o namorado, e beijou-o
como quem come um bombom. Depois perguntou o que queríamos” (Idem, p.197). Com uma
postura imparcial, o narrador lança a questão e isenta-se de qualquer compromisso com o
assunto, tentando comprovar ao leitor, por meio dos fatos e não por simples inferência, a
suspeita levantada. Ao assumir essa postura aparentemente descomprometida, o narrador
permite ao leitor imaginar e tirar suas próprias conclusões a respeito do caso.
Ao chegarem ao Sítio do Picapau Amarelo, o Polegar e o narrador são recebidos por
Emília que, ao pegar a bota,
[...] espiou dentro, cheirou-a, franziu o nariz como se houvesse sentido um
cheirinho de chulé, e disse:
– Só há um jeito, que é aplicar o faz-de-conta. Bota que atrasa é desses
casos que nenhum mecânico do mundo conserta, porque o é desarranjo
físico e sim da mágica que há dentro. Que idéia boba a sua, de andar
procurando sapateiros e relojoeiros. Se procurasse um pai de santo ainda
vá... (LOBATO, 1988, v.15, p.198).
Com toda sua irreverência, Emília faz cara de quem encontra nas botas do Polegar
um cheiro de chulé, atitude que rompe com a imagem de um objeto mágico perfeito,
125
conferindo a ele uma característica comum aos mais ordinários sapatos. Percebemos,
portanto, que, na perspectiva de Lobato, a personagem dos contos de fadas adquire uma
caracterização mais humanizada, desenvolvendo ações e apresentando necessidades mais
próximas das humanas, tais como, descanso, banho e alimentação. Emília espanta-se ao notar
que a natureza do problema da bota é de ordem mágica e, com todo o seu atrevimento, ironiza
as tentativas feitas por Polegar: “Se procurasse um pai de santo ainda vá...”
Problema de mágica resolve-se com outra mágica, desse modo, o famoso faz-de-
conta de Emília entra em ação:“FAZ DE CONTA QUE ESTA BOTA NÃO ATRASA NEM
UM CENTÍMETRO. Pronto!” (LOBATO, 1988, v.15, p.198). Num passe de mágica, as botas
de sete guas voltam a funcionar perfeitamente; “Emília apenas comentou com o seu célebre
arzinho de dó: / Incrível que haja no mundo quem se aperte por tão pouco...” (Idem, p.198).
Apesar de toda a sua inteligência, a famosa personagem do clássico conto de fadas só
encontra solução para o seu problema na mágica de Emília. Esta e as outras diversas situações
em que a boneca se vale do faz-de-conta, dão abertura para se pensar na possibilidade
sugerida na história “Uma pequena fada” (Histórias Diversas): “Quem sabe se Emília não
era realmente uma fada?” (Idem, p.228).
Por meio dessa sugestão, constatamos que ocorre na narrativa a exaltação da
personagem brasileira; afinal, é a ex-boneca de pano quem conserta as famosas botas de sete
léguas de Polegar e o salva do risco de desaparecer do mundo das crianças. Mesmo com a
valorização de Emília, Lobato não deixa de apontar a importância dessa figura no imaginário
infantil: “Não podendo escapar dos inimigos, dum momento para outro ele desaparece da
cena e vai ser um desastre. Como poderá o mundo das crianças viver sem o Pequeno
Polegar?” (Idem, p.196, grifo nosso).
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Em “As fadas” (Histórias Diversas), o Gato de Botas é o homenageado da festa
organizada por Branca de Neve. Para introduzir esta história, o narrador afirma:
Quantas
coisas aconteceram no Picapau Amarelo que não estão contadas nos livros! Muitas até
passaram despercebidas dos meninos, como, por exemplo, a festa noturna que Branca de
Neve ofereceu ao Gato de Botas” (LOBATO, 1988, v.15, p.239). Nessa declaração, podemos
observar a sugestão de que o espaço do Sítio está em constante atividade e que muitas das
126
aventuras lá vividas não são narradas, despertando a curiosidade e a imaginação do leitor para
as possíveis peripécias ocorridas no Picapau Amarelo. Com essa sugestão, o narrador reforça
a idéia do Sítio de Dona Benta como um espaço ficcional aberto às demais personagens do
Reino das Fábulas, no qual podem realizar atividades que extrapolam os limites de suas
narrativas originais, tornando o Picapau Amarelo em um local propício para a atualização das
histórias clássicas da literatura infantil. Rompidas as fronteiras, vêem-se contracenar em um
mesmo ambiente as diversas figuras ficcionais, desde as clássicas até as contemporâneas de
Monteiro Lobato:
estava Aladino com sua lâmpada maravilhosa ao colo, e a Alice do País
das Maravilhas, e Rosa Branca e sua irmã Rosa Vermelha, e Capinha com o
lobo que lhe comeu a vovó espiando de longe, e o Pato Donald junto com o
cachorro Pluto. E estava também uma curiosa turminha de sacis, que pela
primeira vez apareciam numa festa de personagens (LOBATO, 1988, v.15,
p.240).
Ao reunir essas diferentes personagens em um mesmo espaço, Lobato mistura as
diferentes tradições culturais (ocidental e oriental): “O mais curioso desta festa foi que os
convidados não vieram em suas carruagens e coches, e sim no Tapete Mágico, que os
príncipes orientais puseram à disposição de Branca. Muito interessante aquilo” (LOBATO,
1988, v.15, p.239). Em vez de utilizarem o meio de transporte característico dos contos de
fadas da tradição literária do Ocidente –, as personagens chegam à festa de tapete mágico,
meio de transporte comum nos contos maravilhosos orientais. Em outra passagem, podemos
também verificar a junção de objetos característicos de tradições culturais diferentes:
“Embaixo da ‘mangueira grande’ fora armada a mesa do banquete, com uma alvíssima toalha
de linho e rica baixela de prata que os anões de Branca tinham trazido do castelo, para fazer
companhia às porcelanas oferecidas pelo Príncipe Amed” (Idem, p.239). Se, nos contos de
fadas os bailes ocorrem em castelos, construção típica da cultura européia; no universo
ficcional lobatiano, a festa é organizada debaixo de uma mangueira. Com esse deslocamento,
Lobato “tropicaliza” as personagens, propiciando a aproximação entre obra e leitor.
Os pratos servidos pelos anões de Branca de Neve são, na maioria, comidas
conhecidas do paladar brasileiro, como os doces: “pudim de laranja, queijadinha, papo-de-
anjo, bom-bocados, canudinhos de cocada com ovo, casadinhos, furrundu, ameixa recheada,
pipoca coberta, baba-de-moça, doce de abóbora com coco, doce de figo, doce de cidra, doce
de pêssego, doce de leite” (LOBATO, 1988, v.15, p.239). E, os salgados: “Peru recheado,
carne-seca desfiada com angu de farinha de milho, mandioquinha frita, lombo com farofa,
cambuquira, lambari frito, suã de porco com arroz, torresmos pururucas [...] peixe com pirão,
127
leitoa assada, cuscuz...” (Idem, p.240). Os sucos também são de frutas nacionais: “havia toda
sorte de refrescos em lindas jarras de cristal; limonada, maracujazada, laranjada, cajuada,
refresco de morango, de bacuri, de grumixama, de amora, de tamarindo, de..., de..., de...”
(Idem, p.240).
A citação dos doces, dos salgados, dos sucos e, até mesmo, da “água do pote de
Dona Benta, fresquíssima sem ser gelada e mais gostosa que todos os refrescos” (LOBATO,
1988, v.15, p.240) cooperam para a valorização da cultura e da riqueza natural brasileira.
Assim, personagens que aparecem em cenários tipicamente europeus (como as dos contos de
fadas de Perrault, Grimm e Andersen), americanos (como as personagens da Walt Disney) e
orientais (sobretudo, as personagens das Mil e Uma Noites) são inseridas em um local
tipicamente tropical e, neste, elas têm a oportunidade de saborearem as delícias dessa terra.
Os convidados iam chegando e se servindo sem a menor cerimônia. Saíam
do tapete e corriam para a mesa e este pegava um doce, aquele um
sanduíche, um croquete, uma empadinha. Os que ainda não haviam jantado,
atiravam-se aos pitéus mais sólidos, leitoa ou peru (LOBATO, 1988, v.15,
p.240, grifo nosso).
Como na história “Cara de Coruja” (Reinações de Narizinho), no qual as princesas
ao verem o Pequeno Polegar correram para recebê-lo, esquecendo-se de que eram famosas
princesas; em “As fadas”, verificamos também o abandono das convenções de civilité,
presentes nos contos de fadas. No sítio, as personagens não se prendem a cerimônias ou a
etiquetas típicas da nobreza, sentem-se livres para agir com naturalidade e espontaneidade.
Neste ambiente de liberdade e descontração, de repente, ouve-se um “zunzum” de vozes,
anunciando a chegada do homenageado da festa:
O Gato de Botas entrou majestosamente, no seu lindo vestuário de nobre
francês do tempo dos reis Luíses: calção e jaqueta de veludo bordado,
punhos de renda, gola não sei como e cabeleira empoada de branco, muito
crespa. Chapéu de aba larga com uma grande pluma, e botas, as famosas
botas do Gato de Botas. Entrou apoiando-se em sua alta bengala de castão de
ouro; e tirando o chapéu com toda elegância, fez um cumprimento geral,
com uma graciosa curvatura. Coisa de gato francês (LOBATO, 1988, v.15,
p.239).
Na descrição do Gato de Botas, Lobato retoma com certa ironia o luxo ostentado pela
nobreza francesa no período dos reis Luíses. Em A vida quotidiana no tempo de Luís XIV,
Georges Mongrédien relata a importância dada à moda: “As damas gastavam uma soma
enorme com vestuário: brocados de ouro e de prata, damascos, veludos, cetins, tafetás, tudo
com relevos, ornado de ramagens e de passamanarias, ajoujados de renda, de falvalás, pesados
enfeites aplicados em cor” (MONGRÉDIEN, s.d, p.76). Lobato retoma nos trajes do Gato de
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Botas detalhes que procuram ressaltar a suntuosidade da personagem, como o tipo de roupa, o
tecido de veludo bordado, a renda nos punhos, o chapéu com pluma e a peruca. Sobre esse
hábito da nobreza de utilizar perucas, Mongrédien declara: “o homem elegante cuida da
cabeleira parte importante dos seus atavios. [...] A partir de 1703, passam a empoá-las [as
perucas] de branco” (Idem, p.89). Os gestos do Gato de Botas também cooperam para a
elaboração de sua imagem majestosa. O narrador, porém, ao declara que toda a elegância do
gestual da personagem é “coisa de gato francês”, ironiza seu comportamento, característico de
um momento em que, na França, uma acentuada preocupação com as convenções da
civilité.
Como pudemos observar em passagens anteriores, no universo ficcional lobatiano, as
normas de etiqueta são postas de lado e as personagens agem com naturalidade. Com o Gato
de Botas ocorre a mesma ruptura e, o próprio requinte de sua postura, é o que propicia a
violação das regras de um comportamento tido como adequado.
E foi justamente essa curvatura que estragou a festa.
– E por quê?
Porque ao curvar-se, o Gato de Botas viu ali no chão a coisa que mais
mexe com as tripas de um gato...
– Sei, uma gata...
– Não!... Viu um rato...
[...]
Exatamente. Viu o ratinho e esqueceu-se de que ele, Gato, era uma
personagem, e grande personagem, a quem a Princesa Branca de Neve
oferecia um banquete. E agindo institivamente como qualquer gato comum,
deu um pulo em cima do ratinho, para agarrá-lo e comê-lo. Mickey também
se esqueceu que era personagem e fugiu como qualquer camundongo à-toa
que vê gato.
– E lá se foi a festa... (Idem, p.242-3).
No fragmento acima, a descrição das ações do Gato de Botas gera um contraste com
a imagem primeiramente elaborada. Se a essência da civilité consiste no jogo entre aparência
e essência, conforme declara Roger Chartier (2004), Monteiro Lobato brinca com essa
dicotomia no presente conto. Da aparência glamourosa, com vestimentas luxuosas, passa-se à
ação instintiva, ou seja, revela-se a verdadeira essência do Gato. Verificamos, portanto, que,
ao inserir o Gato de Botas em seu universo ficcional, Lobato opera um rebaixamento do papel
nobre da personagem à sua simples condição de gato, comum a qualquer outro da espécie.
Sedento por caçar Mickey Mouse, o Gato de Botas sobe na mesa, derruba os doces e
os salgados, desmancha toda a festa organizada por Branca de Neve e instaura um verdadeiro
pânico entre as personagens: “A desordem foi completa. Como a maior parte dos personagens
não sabia do que se tratava, puseram-se a correr às tontas, tomados de pânico – e aqui era uma
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princesa que tropeçava e caía; logo adiante, um rei que derrubava a coroa... (LOBATO, 1988,
v.15, p.243). Constatamos que a desordem torna-se também uma maneira de propiciar a
renovação dos contos de fadas. Apesar de Monteiro Lobato retomar uma ação
semelhantemente desenvolvida no conto “Le Maître Chat ou Le Chat de Botté”, na qual o
Gato de Botas induz o Ogro a transformar-se em rato para caçá-lo; notamos que, no novo
contexto, a sua astúcia e a sua habilidade são ridicularizadas, tanto pela ingenuidade de não
reconhecer o Mickey Mouse como uma personagem, quanto por agir instintivamente,
destruindo a festa e a sua própria imagem de nobre francês. No término da narrativa, essa
inversão da imagem do Gato torna-se evidente quando ele “já sem botas, sem chapéu de
plumas, sem casaco de veludo, de calções, reapareceu no recinto da festa, vindo da
escuridão do pomar” (LOBATO, 1988, v.15, p.245).
Como toda ação gera uma reação, o “pega” que o Gato de Botas em Mickey
Mouse, além de ter produzido “um dos maiores pânicos de que notícias no Mundo da
Fábula” (LOBATO, 1988, v.15, p.243), também provoca uma grande perda para uma das
princesas convidadas, pois a Gata Borralheira teve seu sapatinho de cristal esmagado por
Espalhado, uma personagem nova criada por Emília. E, como se não bastasse, o outro é
utilizado por Branca de Neve para espatifar no focinho do Gato.
Diferente das demais narrativas nas quais a turma do Sítio se faz presente na história,
em “As fadas”, as figuras centrais são personagens que fazem parte da tradição literária.
Percebemos, novamente, que o Sítio do Picapau Amarelo se torna um espaço viabilizador
para a renovação do Mundo das Fábulas, reunindo as mais diversas personagens.
Enquanto no pomar de Dona Benta se desenrolavam estas cenas, na casa
todos dormiam a sono solto. E sonhavam. E em sonhos Narizinho se
queixava para Emília: “Que pena os personagens das fábulas terem se
esquecido de nós! Há quanto tempo não aparecem?... (LOBATO, 1988,
p.244).
Fantasia e realidade fundem-se num mesmo plano e criam um efeito de ambigüidade
na obra que, sem apresentar explicações sobre a possibilidade ou não da ocorrência dos fatos
maravilhosos, instiga e brinca com a imaginação do leitor, tornando o tio um local perfeito
para essas “reinações”.
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Com esse passeio pelas obras infantis de Monteiro Lobato foi-nos possível verificar
o modo como escritor posiciona-se diante das produções nacionais para as crianças e da
tradição literária infantil. Consciente da necessidade de uma produção literária que se
adequasse às condições locais e aos leitores brasileiros, Lobato traça um trajeto peculiar o
acervo literário e cria seu universo ficcional pautado no “intercâmbio de textos”.
Considerando esse procedimento criativo, analisamos a presença das personagens de Charles
Perrault nas aventuras do Sítio do Picapau Amarelo. Verificamos que, ao inserir essas figuras
em suas obras, Monteiro Lobato renova os contos de fadas acrescentando informações e
alterando as características de cada personagem. Ao construir seu universo ficcional dessa
maneira, Lobato indica qual é para ele “o exercício legítimo da literatura”. Com base nas
análises realizadas, pretendemos, no próximo capítulo, discutir, em termos teóricos, o método
de criação lobatiano.
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onteiro Lobato, com uma postura crítica diante da maciça adoção de hábitos
estrangeiros, procura despertar a sociedade brasileira para a necessidade de
formar uma identidade nacional.
Para denunciar essa condição servil em relação à cultura estrangeira, Lobato descreve as
mobílias que compõem a casa brasileira: “cadeiras Luiz 15 ou 16, mesinha central Império,
jardineiras de Limoges, tapetes da Pérsia, “perdões” da Bretanha, gessos napolitanos,
porcelanas de Copenhague, ventarolas do Japão, dragõezinhos de alabastro chinês”
(LOBATO, 1964, v.4, p.25-6). Com relação à língua, o escritor salienta ironicamente o uso
excessivo do francês: “E tudo nomeado á francesa, basse-cour, étang, vieille cour, vieux
moulin e outras sonoridades de encher o ouvido” (Idem, p.49). No que concerne à arte
brasileira, Lobato destaca a presença de certo descompasso nos quadros que enfeitam as
paredes brasileiras, uma vez que são “franceses no estilo e no assunto, apesar de rubricados
por nomes nacionais” (Idem, p.47).
Lobato enfatiza a necessidade de se educar os artistas brasileiros a fim de torná-los
independentes e capazes de olhar a natureza ao seu redor e de extrair dela a matéria para a sua
composição. A aquisição de um estilo próprio é fundamental, na concepção de Lobato, pois é
o que confere uma fisionomia particular à obra de arte. Lobato reconhece que a obtenção de
um estilo próprio ocorre por meio do contato com o que foi produzido: “Nosso estilo deve
ser a decorrente natural do estilo com que os avós nos dotaram. Sempre vivo, sempre em
função do meio, se quer fugir á pecha de rastacuerismo deve retomar a linha do passado e
desenvolve-la á luz da estesia moderna” (LOBATO, 1964, v.4, p.33, grifo nosso).
Considerando as demais declarações sobre o fazer literário firmadas por Lobato,
pretendemos desenvolver uma reflexão teórica a respeito do procedimento criativo adotado
pelo escritor brasileiro, com o objetivo de delinear o modo como se processa a re-
apresentação dos elementos característicos dos contos de fada na sua produção ficcional
infantil.
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Publicadas sob o título A Barca de Gleyre (1944), as cartas trocadas com Godofredo
Rangel constituem um rico material para a compreensão do pensamento de Monteiro Lobato a
respeito do fazer literário. Mais do que um simples veículo de comunicação para os relatos do
cotidiano, essa correspondência torna-se um espaço de discussão e de formação literária, por
meio da troca de indicações de leitura e de críticas a autores e obras lidas. Considerando a
força enunciativa desses escritos, pretendemos delinear o “posicionamento literário” de
Lobato, o qual implica, conforme as proposições teóricas formuladas por Dominique
Maingueneau (2006, p.163), “um certo percurso do arquivo literário, a redistribuição implícita
ou explícita dos valores vinculados com as marcas legadas por uma tradição”.
De acordo com o teórico, o discurso literário estabelece uma relação essencial com a
memória. A eleição ou a exclusão do outro constitui uma forma de “construir para si uma
identidade” e de “definir trajetórias próprias no intertexto” (MAINGUENEAU, 2006, p.163).
Mediante esse procedimento, “o criador indica qual é para ele o exercício legítimo da
literatura” (Idem, p.163).
Consciente da dependência cultural do Brasil, Monteiro Lobato em seus escritos
demonstra sua aversão à postura servil adotada pelos artistas brasileiros perante as obras
estrangeiras. Lobato procura ressaltar que a cópia de objetos para um novo contexto sem
qualquer adequação ou olhar crítico gera um esvaziamento de sentido no objeto copiado:
– Cariatide
158
, não é o teu lugar. Estás a gemer como sob um grande peso,
mas esta sacada que sustentas tem pontas de trilhos por baixo. Deixa que os
trilhos gemam e façam caretas, que eles é que fazem a força. És duma
inutilidade absoluta, e és grotesca porque finges um esforço de mentira.
na Grécia onde nasceste tinhas uma razão de ser, mas aqui não (LOBATO,
1964, v.4, p.35, grifo nosso).
Essa crítica de Lobato repete-se em vários momentos, como no artigo “Torpilhar”,
em Conferências, artigos e crônicas (1959), no qual rechaça, com tom irônico, o nosso
habitual apelo por tudo o que é francês:
159
Se adotamos o pensamento francês, o sentimento francês, a moda
francesa, os vícios franceses, a francesa, o ódio francês ao alemão, que mais
é lhe adotarmos língua? [...] E iremos por esse belo caminho até que um dia
possamos mudar o nome de Brasil para Brésil e cairmos, arquejantes de
158
“Suporte arquitetônico, originário da Grécia antiga, que se apresentava quase sempre com a forma de uma
estátua feminina e cuja função era sustentar um entablamento” (HOUAISS, 2004, p. 626).
159
Para maiores considerações, conferir também Belle époque tropical (1993), no qual Jeffrey D. Needell faz um
estudo da influência francesa sobre a elite brasileira.
134
gozo, aos pés da França, exclamando na língua nova: Mariana, cherida
Mariana, ambrassa o teu filho, o mais cherido, este Brésil que por ti tanto
soupirou” (LOBATO, 1964e, p.101-2).
Nas correspondências remetidas a Rangel, Lobato revela a sua insatisfação com a
condição da literatura brasileira que segue incontinente os passos da “moda” estrangeira. Em
02/06/1904, afirma:
O mais especial de Byron, para nós, foi a sedução que exerceu nos nossos
revoltados poeticos daquele tempo. Todos byronizaram. Era moda. Como
depois todos hugoaram, quando a moda virou Hugo [...] Depois
parnasianamos com Raimundo e Alberto. E zolaizamos com Aluisio, etc.
Chega. (LOBATO, 1964, v.11, p.58).
A despeito de priorizar a criação do novo a partir de formas velhas, Lobato deixa
transparecer uma plena convicção da necessidade de individualizar o seu estilo literário.
Cansado da condição servil da cultura brasileira, Lobato converte a busca por um estilo
próprio e a oposição à “uniformização” do pensamento no leitmotiv da sua produção literária.
Em 15/11/1904, Lobato vale-se do quadro de Charles Gleyre (1808-1874) Ilusões perdidas
– para expor suas idéias:
Estamos moços e dentro da barca. Vamos partir. Que é a nossa lira? Um
instrumento que temos de apurar, de modo que fique mais sensível que o
galvanometro, mais penetrante que o microscopio: a lira eolia do nosso
senso estetico. Saber sentir, saber ver, saber dizer. E tem você de rangelizar a
tua lira, e o Edgar tem que edgardizar a dele, e eu de lobatizar a minha.
Inconfundibiliza-las. Nada de imitar seja quem for. Eça ou Esquilo. Ser
Eça II ou um Esquilo III, ou sub-Eça, um sub-Esquilo, sujeiras! Temos de
ser nós mesmos, apurar os nossos Eus, formar o Rangel, o Edgar, o Lobato.
Ser núcleo de cometa, o cauda. Puxar fila, não seguir (LOBATO, 1964,
v.11, p.81-2).
Apesar do equívoco cometido na descrição do quadro, como reconhece o próprio
autor em nota,
160
as imagens criadas por ele não perdem sua força expressiva. Na incerteza do
caminho da arte, a execução da lira passa a representar metaforicamente o exercício literário
do escritor e o seu senso estético, que devem ser continuamente aperfeiçoados e
individualizados, assim como a performance musical. No final da carta, Lobato aconselha a
Rangel: “seja você mesmo, porque ou somos nós mesmos ou não somos coisa nenhuma [...]
Ha no mundo o odio á exceção e ser si mesmo é ser exceção. Ser exceção e defende-la
160
“Há um erro aqui. Esse quadro de Charles Gleyre que entrou para o museu de Luxemburgo e de se passou
para o Louvre, sempre foi vítima de traições. Gleyre denominou-o Soir mas o publico foi mudando esse nome
para Ilusions Perdues e assim ficou. Eu tambem mexi no quadro. Pus o velho dentro da barca e fiz a barca vir
entrando no porto, toda surrada. Tro pobre Gleyre. Sua barca não vai entrando, vai saindo, como se deduz da
direção do enfunamento das velas...” (LOBATO, 1964, v.11, p.83).
135
contra todos os assaltos da uniformização: isto me parece grande coisa” (LOBATO, 1964,
v.11, p.83).
A busca por um estilo próprio e a oposição à “uniformização” tornam-se o leitmotiv
de Monteiro Lobato. Em diversas ocasiões, o escritor expõe ao amigo que para ser um
“homem de letras vitorioso” é necessário individualizar-se e não reproduzir discursos
consolidados ou estilos. Na carta de 1907, explicita-se a crítica de Lobato a Rangel por
incorporar o estilo de outros autores e abafar o seu:
Ando para te passar um pito. Você grudou-se num certo número de autores,
conviveu demais com eles – Zola, Flaubert, Goncourt – e estranha todos que
deles se diferenciam. Isso é estreiteza. Nada de habitos, meu caro. Habito é
preguiça. Coisa para velhos e estropiados. Um homem vivo deve ser como o
mar, sempre em movimento. O velho é o lago – manso lago azul, essa
besteira (LOBATO, 1964, v.11, p.186).
Lobato reivindica do amigo uma postura mais distanciada em relação aos autores que
lê, sem submeter-se e restringir-se à obra deles. Com a oposição de duas imagens, a do mar e
a do lago, Lobato expõe o modo como o escritor deve posicionar-se perante o acervo literário.
Podemos observar, nas duas comparações estabelecidas – “homem vivo como o mar” e
“velho como lago” –, a expressão do pensamento lobatiano de que o escritor em formação
deve estar em contínuo movimento, percorrendo as diversas correntes literárias a fim de
extrair desse contato elementos que auxiliem na construção do seu senso estético.
Camilo Castelo Branco é um dos escritores pelo qual Monteiro Lobato demonstra
grande admiração e que ocupa tempo considerável de suas leituras. Em 15/09/1909, Lobato
comenta com Rangel a maneira como lê as obras do escritor português:
Mandei vir Noites de Insonia, de Camilo, 12 volumes, e ainda apanhei uns
em Taubaté. E leio anotando os jeitos. Palavras novas não me interessam. A
grande coisa não é possuir montes de palavras; se assim fosse, um
dicionarista batia Machado de Assis. É saber combinar bem as palavras,
como o pintor combina as tintas e o musico o faz ás notas (LOBATO, 1964,
v.11, p.273, grifo nosso).
Para Lobato, o essencial não é expressar algo inédito, mas sim saber combinar os
elementos existentes e transformá-los em novos. Em termos teóricos, as palavras de Linda
Hutcheon, em Uma teoria da paródia (1985, p.19), expressam esse posicionamento de
Monteiro Lobato: “Não se trata de uma questão de imitação nostálgica de modelos passados:
é uma confrontação estilística, recodificação moderna que estabelece a diferença no coração
da semelhança” (HUTCHEON, 1985, p.19, grifo nosso).
136
Essa perspectiva lobatiana sobre a criação artística evidencia-se também nas palavras
presentes no “Prefácio da 1ª. Edição”, de Idéias de Jéca Tatú (1919).
161
Nelas, a postura
crítica de Lobato em relação à adoção do estilo de outrem em detrimento da construção de um
estilo próprio torna-se nitidamente perceptível:
Uma idéia central unifica a maioria dêstes artigos dados à estampa em
“O Estado de São Paulo”, na “Revista do Brasil” e em outros periódicos.
Essa idéia é um grito de guerra em prol da nossa personalidade... A corrente
contrária propugna a vitória do macaco. Quer no vestuário, a cinturinha de
Paris; na arte, “aveuglesnés”; na língua, o patuá senegalesco... Combate a
originalidade como um crime e outorga-nos, de antemão, o mais cruel dos
atestados: és congenialmente incapaz duma atitude própria na vida e nas
artes; copia, pois, ó imbecil!
Convenhamos: a imitação é, de feito, a maior das fôrças criadoras.
Mas imita quem assimila processos. Quem decalca não imita, furta. Quem
plagia não imita, macaqueia [...]
– Macaquitos, então?
– Upa! Macacões! (LOBATO, 1964, v.4, p.IX).
Pela passagem acima, verificamos que o autor de Idéias não se opõe à imitação como
forma de elaboração artística, ao contrário, reconhece seu poder criativo. Além disso, Lobato
faz a ressalva de que a imitação exige a assimilação de processos. Tanto o “saber combinar”
quanto o “assimilar processos” indicam um procedimento de criação em que o artista se volta
para o patrimônio cultural e, a partir desse material, produz algo novo e individualizado.
Lobato admite que na obra d’arte, além dos elementos intrinsecos, permanentes, regidos
pelas leis eternas das proporções e do equilibrio, ha o estilo que mais não é do que sua
fisionomia inconfundível” (LOBATO, 1964, v.4, p.37).
162
Observamos que para o criador do
Picapau Amarelo o relevante na construção de uma obra de arte é saber imprimir nos
elementos já existentes sua marca, sua “fisionomia pessoal”.
Verificamos, assim, que Lobato retoma a imitação enquanto procedimento criativo
tal como era concebida no século XVI. Em Literatura comparada, Sandra Nitrini, com base
nas formulações de Odette Mourgues, esclarece que “naquela época, a imitação consistia num
princípio artístico, mas o escritor não devia imitar servilmente, não devia sacrificar a sua
própria individualidade; ao contrário, devia impregnar a obra com sua marca própria
161
Inicialmente, os artigos foram publicados em O Estado de São Paulo e na Revista do Brasil. Em 1919, Lobato
organiza esses textos e publica-os sob o título Idéias de Jéca Tatú que, posteriormente, passa a compor a coleção
Obras Completas (1946). Para uma análise crítica, conferir o trabalho Um Jeca nos vernissages (1995), de Tadeu
Chiarelli.
162
Lobato define o estilo nos seguintes termos: “Estilo é a feição peculiar das coisas. Um modo de ser
inconfundível. A fisionomia. A cara” (LOBATO, 1964, v.4, p.24). Ou, como declara em “Ainda o estilo”: “O
estilo é a fisionomia da obra d’arte. Produto conjugado do homem, do meio e do momento, é pelo estilo que ela
adquire carater” (Idem, p.37).
137
(NITRINI, 2000, p.140, grifo nosso). Essa “marca própria” estaria “ligada indissoluvelmente
a uma consciência aguda de certos aspectos individuais de sua nacionalidade e de seu século”
(Idem, p.140). Essa concepção será veementemente defendida por Lobato: “A pintura
brasileira deixará de ser um pastiche inconsciente quando se penetrar de que é mistér
compreender a terra para bem interpreta-la” (LOBATO, 1964, v.4, p.58).
No artigo “A questão do estilo”, Lobato cita Olavo Bilac como um exemplo válido
de postura a ser adotada pelos artistas brasileiros perante o cânone:
Côe-se a arte colonial através dum temperamento profundamente
estetico, filho da terra, produto do ambiente, alma aberta á compreensão da
nossa natureza: e a arte colonial surgirá moderníssima, bela, fidalga e gentil
como a lingua barbara de Vaz Caminha sai bela, fidalga, gentil e
modernissima dum verso de Olavo Bilac.
O poeta, no entanto, ao compôr o “Caçador de Esmeralda” não tomou
de Corneille um vocábulo, nem de Anatole um conceito, nem de Musset uma
noite, nem de Rostand um galo nem de Lecomte uma frialdade, nem da
Grecia um acanto, nem de Roma uma virtude. Mas, sem o querer, pelo fato
de ser um moderno aberto a todos os ventos, tomou de Corneille a pureza da
lingua, de Musset a poesia, de Lecomte a elegancia, da Grecia a linha pura,
de Roma a fortidão d’alma e com o antigo-bruto fez o novo-belo
(LOBATO, 1964, v.4, p.33, grifos nossos).
Com o emprego do verbo “coar”, Monteiro Lobato propõe um método de criação em
que o “antigo”, ao passar pelo filtro do senso estético do artista, faz-se “novo”. Opondo-se à
idéia de genialidade do escritor, Lobato reconhece que a obra de arte nasce do diálogo com
outras criações, incidindo sua originalidade nas combinações realizadas. Ao caracterizar Bilac
como “um moderno aberto a todos os ventos”, Lobato recupera a idéia presente na carta
anteriormente citada em que compara o autor com o mar. Essas duas comparações dão ênfase
ao constante movimento necessário na herança literária, não para copiar um escritor já
consagrado e tornar-se “Eça II ou um Esquilo III”, mas sim, para extrair desse patrimônio
elementos que propiciem a aquisição de um senso estético próprio, capaz de transformar o
“antigo-bruto” em “novo-belo”. Podemos reconhecer, nessa proposição de Lobato, o que vem
sendo discutido atualmente a respeito do processo de criação artístico, conforme se observa
nas considerações de Cecilia Almeida Salles, em Gesto inacabado (2007): “a originalidade da
construção encontra-se na unicidade da transformação: as combinações são singulares. Os
elementos selecionados existiam, a inovação está no modo como são colocados juntos”
(SALLES, 2007, p.89).
As declarações “saber combinar”, “assimilar processos” e “coar” indicam um modo
de produção em que se torna próprio o alheio. Contudo, “não para rouba[r] ao dono”, mas sim
138
“para pegar o jeito de também te-las assim, proprias” (LOBATO, 1964, v.12, p.07).
163
Lobato
explica seu método de leitura: “O meu processo é anotar as boas frases [...] Não releio mais
esse livro não ha tempo mas releio o compendiado, o extrato, e aspiro o perfume e
saboreio. Formo assim um florilegio camiliano do que nele mais me seduz as visceras
esteticas” (Idem, p.07, grifo nosso). Nessa afirmação, os dois verbos empregados aspirar e
saborear sugerem imagens em que a apreciação ocorre por meio de sentidos, metaforizando
uma maneira de valer-se do outro para construir sua própria obra.
Essas proposições de Lobato relativas ao fazer literário assemelham-se àquela
defendida pelos modernistas e denominada antropofagia. De acordo com Haroldo de
Campos, em Da razão antropofágica (1983, p.109), a antropofagia expressa “o sentido agudo
da necessidade de pensar o nacional e o universal em relação dialógica”. Não seria essa a
proposta defendida também por Monteiro Lobato? Percebemos, portanto, que, mesmo antes
da realização da Semana de 22, na qual os modernistas trouxeram à luz esse método literário
de devoração do outro, essa forma de conceber as relações intertextuais era praticada por
alguns escritores brasileiros, como, por exemplo, Machado de Assis.
164
Na busca pela individualidade, Monteiro Lobato, em 11/12/1917, declara: “meu
estilo está em formação. Talvez fique em formação toda a vida. O de hoje é uma fase. Fase da
Lua Cheia, talvez precursora de mais equilibrada e discreta Mingoante” (LOBATO, 1964,
v.12, p.163). Com a oposição de duas fases da lua, Lobato indica o trajeto a percorrer e a meta
a ser atingida: o aprimoramento da linguagem. Essa postura de Lobato a respeito do uso da
língua revela seu posicionamento diante do “acervo literário”, sobretudo no âmbito da
literatura infantil.
Na carta de 17/06/1921, essa inquietação em relação à linguagem empregada nas
produções literárias torna-se explícita quando Lobato expõe seu projeto editorial de publicar
os clássicos para as crianças. Apoiando-se nas edições de Laemmert, organizadas por Carlos
Jansen Müller, Lobato afirma:
Quero a mesma coisa, porém com mais leveza e graça de
lingua. Creio que até se pode agarrar o Jansen como “burro” e reescrever aquilo em lingua
desliteraturizada
[...]
É ir eliminando todas as complicações estilisticas do ‘burro’”.
(LOBATO, 1964, v.12, p.233). A referência ao estilo empregado por Jansen nas traduções dos
clássicos para o português do Brasil indica o descontentamento de Lobato diante dessas obras.
Desse modo, ao propor a “desliteraturização” dos textos para as crianças, Lobato visa à
acessibilidade as obras estrangeiras e revela a sua concepção de literatura.
163
Fragmento extraído da carta de 16/01/1915.
164
A diante, trataremos mais detalhadamente sobre esse aspecto.
139
Segundo Maingueneau (2006, p.163), “todo ato de posicionamento implica um certo
percurso do arquivo literário”, de modo que o autor “não se opõe a todos os outros exercícios
tomados em bloco, mas essencialmente a alguns deles: o Outro não é qualquer um, mas
aquele que é primordial não ser”. Nessa trajetória pelo acervo, Monteiro Lobato opõem-se a
certo tipo de exercício literário e afina-se a outros. Em suas cartas, constatamos a referência a
alguns escritores que contribuem para a sua formação literária, tais como Charles Perrault,
Machado de Assis e Maria José Dupré.
Na carta de 19/12/1915, verificamos que o texto de Charles Perrault é retomado
como modelo de forma narrativa adequado ao público infantil:
Chegou-me afinal o livro infantil mas não é livro infantil. Não é
literatura para as crianças. É literatura geral.
Para ser infantil tem o livro de ser escrito como o CAPINHA
VERMELHA, de Perrault. Estilo ultra direto, sem nenhum granulo de
“literatura”. Assim: Era uma vez um rei que tinha duas filhas, uma muito
feia e má, chamada Teodora, a outra muito bonitinha e boa, chamada Inês.
Um dia o rei, etc.
A coisa tem de ser narrativa a galope, sem nenhum enfeite literario. O
enfeite literario agrada aos oficiais do mesmo oficio, aos que compreendem
a Beleza literaria. Mas o que é beleza literaria para nós é maçada e
incompreensibilidade para o cerebro ainda não envenenado das crianças
(LOBATO, 1964, v.12, p.372-3).
Dessa maneira, verificamos que Lobato se vale de uma obra clássica não para copiá-
la, mas para assimilar o modo de construção do texto e extrair dele um princípio estético para
as narrativas que se propõem às crianças: a “narrativa a galope sem nenhum enfeite literario”.
Essa postura de Lobato diante da produção de Perrault revela sua sensível percepção das
necessidades específicas do público infantil.
165
No âmbito da literatura brasileira, Lobato manifesta seu gosto pela precisão da
linguagem machadiana: “não pode haver língua mais pura, agua mais bem filtrada, nem
melhor cristalino a defluir em fio da fonte” (LOBATO, 1964, v.12, p.33).
166
Os termos
empregados por Lobato metaforizam o trabalho lingüístico de Machado que, sem se deter em
excessos, diz o máximo com o mínimo de palavras. No artigo publicado no jornal La
Prensa,
167
por ocasião do centenário de nascimento de Machado, Lobato ressalta a “justa
medida” da estética machadiana: “Machado de Assis ensinou o Brasil a escrever com
limpeza, tacto, finura, limpidez. Criou o estilo lavado de todas as douradas pulgas do
165
Essas “complicações estilistas” mencionadas por Lobato, possivelmente fazem referências ao estilo rebuscado
presente nas obras parnasianas/simbolistas.
166
Fragmento extraído da carta de 03/06/1915.
167
Artigo posteriormente incluído na obra Mundo da lua e Miscelânea.
140
gongorismo, do exagero, da adjetivação tropical [...]” (LOBATO, 1964, v.15, p.332). Por
diversas vezes em suas cartas, Lobato reforça esse aspecto da obra de Machado:
Não conheço melhor modelo que Machado de Assis. Camilo ainda me
choca, é muito bruto, muito português de Portugal e nós somos daqui.
Machado de Assis é o classico moderno mais perfeito e artista que possamos
conceber. Que propriedade! Que simplicidade! Simplicidade não de
simplório, mas do maior dos sabidões. Ele gasta suas palavras como um
nobre de raça fina gasta a sua fortuna (LOBATO, 1964, v.11, p.263).
168
Ao designar Machado de Assis como um “clássico moderno”, Lobato reconhece a
sua filiação a uma tradição literária que investe na criação a partir do diálogo com outros
textos, sem sacrificar, no entanto, a sua própria individualidade artística. Em outra passagem
de suas cartas, Lobato declara, em 30/07/1910: Tenho a impressão de que as Memorias
Postumas de Braz Cubas foram escritas por um conjunto de mestres: Sterne, Anatole, Xavier
de Maistre e Stendhal [...] Parece um livro ateniense, anacronicamente rebentado no Rio de
Janeiro (LOBATO, 1964, v.11, p.292-3).
Lobato percebe que em Machado de Assis se encontra a idéia do processo de
assimilação como uma forma de “desentranhar” riquezas novas dos velhos clássicos,
tendência explicitada no texto crítico “Instinto de nacionalidade” (1873):
Feitas as exceções devidas não se lêem muito os clássicos no Brasil [...] Em
geral não se lêem o que é um mal. Escrever como Azurara ou Fernão
Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu
estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem,
desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas,
não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinha os antigos, nem tudo
tem os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o
pecúlio comum (ASSIS, 1979, p.809, grifo nosso).
Consciente de que a cópia banal como procedimento criativo gera certo descompasso
entre a obra e o seu tempo, Machado salienta a importância de se voltar aos clássicos como
uma forma de “assimilar processos”, como uma maneira de extrair desse legado elementos
que, somados aos próprios, se fazem novos.
Outra escritora que desempenha um papel significativo na formação literária e
estética lobatiana, como declara o próprio escritor, é Maria José Dupré:
Rangel: apareceu-nos uma senhora Dupré que está operando uma revolução
literaria. Esta nos ensinando a escrever e eu muito aproveitei a lição.
Revelou-me um tremendo segredo: o certo em literatura é escrever com o
mínimo de literatura! Certo, porque desse modo somos lidos, como ela está
168
Fragmento extraído da carta de 30/08/1909.
141
sendo e como eu consegui ser nos livros em que me limpei de toda
“literatura” (LOBATO, 1964, v.12, p.339, grifo do autor).
169
Lobato percebe, pelo contato com esses autores, que a riqueza de uma obra literária
não consiste no seu rebuscamento lingüístico; ao contrário, a opção por uma linguagem
precisa, sem “enfeites literários”, propicia a aproximação da obra com o leitor, ampliando seu
alcance. Constatamos, portanto, que, ao posicionar-se de modo contrário ao estilo afetado de
Jansen e de maneira favorável à simplicidade estilística de Perrault, de Machado e de Dupré,
Monteiro Lobato constrói sua trajetória no “arquivo literário” e indica qual é, na sua
perspectiva, o “exercício legítimo da literatura”. Essa preocupação com a linguagem torna-se
uma constante na produção literária de Monteiro Lobato que, constantemente, submete suas
obras à revisão, como expressa na carta de 01/03/1943: “O último submetido a tratamento
foram as Fábulas. Como o achei pedante e requintado! Dele raspei quase um quilo de
‘literatura’ e mesmo assim ficou alguma” (LOBATO, 1964, v.12, p.340).
A atuação de Lobato no panorama da literatura infanto-juvenil ocorre com base em
dois projetos literários que se complementam: o de tradução e o de criação. No primeiro caso,
podemos dizer que a postura de Lobato se diferencia das demais por compreender a tradução
como “um transplante”, em que “o tradutor necessita compreender a fundo a obra e o autor, e
reescreve-la em português como quem ouve uma historia e depois a conta com palavras
suas (LOBATO, 1964, v.15, p.127, grifo nosso). Nesses termos, a tradução torna-se uma
maneira de trazer a produção estrangeira para a cultura nacional e de ampliar o alcance das
obras clássicas, rompendo com as barreiras lingüísticas. Para tanto, é necessário que o
tradutor não se prenda à tradução literal, pois “a obra torna-se ininteligivel e asnatica” (Idem,
p.127). É preciso “dizer exatamente a mesma coisa que o autor diz, mas dentro da sua lingua
de tradutor, dentro da sua forma literaria de tradutor” (Idem, p.118). Observamos com essas
declarações que, para Monteiro Lobato, o exercício da tradução não se limita a encontrar
palavras equivalentes de uma língua na outra; ao contrário, trata-se de uma “remodelação”
capaz de tornar a obra acessível ao leitor brasileiro: “Gosto imenso de traduzir certos autores.
É uma viagem por um estilo. E traduzir Kipling, então? Que esporte! Que alpinismo! Que
delícia remodelar uma obra d’arte em outra língua!” (LOBATO, 1964, v.12, p.327, grifo
nosso).
170
No projeto literário de criação, Monteiro Lobato constrói seu universo ficcional
baseado no intercâmbio de “mundos”. Considerando as análises do capítulo anterior em que
169
Fragmento extraído da carta de 01/02/1943.
170
Fragmento extraído da carta de 16/06/1934.
142
se examinou a presença das personagens de Charles Perrault e as asserções de Lobato aqui
recuperadas, verificamos que sua obra infantil é constituída a partir da assimilação dos contos
de fadas e da combinação de suas convenções com elementos próprios.
Para estabelecer essas novas combinações, Monteiro Lobato vale-se da paródia como
técnica narrativa. Nas palavras de Sant’Anna (1998, p.31) “o que o texto parodístico faz é
exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente
maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma tomada de
consciência crítica”. Associando essa definição às análise das narrativas de Lobato, notamos
que o escritor re-apresenta os contos de fadas de Perrault, mostrando uma nova forma de ler
(ou de valer-se) desse clássico amplamente divulgado na cultura brasileira. Lobato “libera”
esse discurso ao extrapolar seus limites e ao transpor essas personagens da tradição literária
para um universo ficcional totalmente diferente. Esse modo de criação revela a consciência
crítica de Monteiro Lobato em relação ao panorama da literatura infantil brasileira que se
pautava, sobretudo, na “importação” de obras estrangeiras para a formação literária dos
pequenos leitores.
De modo semelhante, Linda Hutcheon (1985), define:
A paródia é, pois, na sua irônica ‘transcontextualização’ e inversão,
repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto
em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente
assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada,
como pode ser depreciativa; tanto pode ser criticamente construtiva, como
pode ser destrutiva. O prazer da ironia da paródia não provém do humor em
particular, mas do grau de empenhamento do leitor no ‘vai-vém’ intertextual
(boucing) para utilizar o famoso termo de E. M. Forster, entre cumplicidade
e distanciação (HUTCHEON, 1985, p.48, grifo do autor).
Se Sant’Anna fala em re-apresentação, Hutcheon cria o termo transcontextualização
para designar o processo operado pelo texto paródico na obra ou nas convenções parodiadas.
Nesse procedimento de criar o “novo” a partir do “velho”, verificamos a postura crítica do
parodiador – “É uma tomada de consciência crítica” (Sant’Anna) / “Está implícita uma
distanciação crítica” (Hutcheon) que encontra na ironia o recurso para a criação de novos
planos de sentido.
Na definição formulada por Hutcheon, uma referência a um elemento decisivo
para concretização da paródia: o leitor. Em sua opinião, o leitor desempenha o papel de
codificador e, depois, o de descodificador, tendo de efetuar “uma sobreposição estrutural de
textos que incorpore o antigo no novo” (HUTCHEON, 1985, p.50). A respeito da participação
do leitor na construção de sentido do texto, Umberto Eco, em Lector in fabula (2004, p. 39,
143
grifo do autor), afirma: “o texto postula a cooperação do leitor como condição própria de
atualização. Podemos dizer melhor que o texto é um produto cujo destino interpretativo deve
fazer parte do próprio mecanismo gerativo”. Observamos, portanto, que, ao estabelecer uma
relação intertextual entre sua obra e os clássicos contos de fadas de Perrault, Monteiro Lobato
exige a interação criativa do leitor com seu texto de modo a apreender e a concretizar a
efetivação da paródia, identificando as transformações e/ou adaptações articuladas pela obra
nova. De modo perspicaz, Lobato vale-se de textos que tinham ampla circulação entre os
leitores infantis e, por meio da ironia criticamente construtiva, cria um novo universo
ficcional.
A esse respeito, Silviano Santiago, em Uma literatura nos trópicos (1978, p.24),
afirma que, no novo contexto, “se o significante é o mesmo, o significado circula uma outra
mensagem, uma mensagem invertida”. Com base nessas considerações teóricas, notamos que,
por meio do deslocamento/transcontextualização, Monteiro Lobato re-apresenta de modo
invertido as personagens de Perrault nas aventuras do Sítio de Dona Benta: o Pequeno Polegar
torna-se aleijado e de muletas; Cinderela calça sapatos de camurça; o Gato de Botas caça o
Mickey Mouse; o Lobo tenta comer a vovó Dona Benta; e o Barba Azul usa um cinto com as
cabeças de suas ex-mulheres e é morto por Dom Quixote.
Com esse procedimento, contesta-se “o conceito de propriedade de textos e objetos.
Desvincula-se um texto-objeto de seus sujeitos anteriores, sujeitando-os a uma nova leitura”
(SANT’ANNA, 1998, p.46, grifo do autor). Na leitura das histórias de Lobato, percebemos
essa ruptura das narrativas com seus autores, o Mundo das Fábulas passa a ser concebido
como um universo único. Ao criar suas obras, Lobato demonstra sua postura crítica diante do
“acervo literário” e, conseqüentemente, interfere na hierarquia desse arquivo. Segundo
Maingueneau (2006, p.166), “o criador pode atribuir um lugar a si mesmo por efração e
pela modificação das hierarquias”. Ou, como já havia sugerido Pierre Bourdieu, em As regras
da arte (1996), instaura-se uma disputa pela hegemonia no campo literário, de forma que o
autor passa a marcar época quando consegue “fazer existir uma nova posição para além das
posições estabelecidas, na dianteira dessas posições, na vanguarda, e, introduzindo a
diferença, produzir o tempo” (BOURDIEU, 1996, p.181).
171
Apesar da posição diferenciada adotada na construção de uma nova obra, Linda
Hutcheon observa que a paródia opera também “como um método de inscrever a
171
Para um estudo mais amplo sobre a questão, conferir Enio Passiani, em Na trilha do Jeca (2002), que
empreende uma análise do papel de Monteiro Lobato na formação do campo literário no Brasil, baseando-se nas
proposições teóricas de Pierre Bourdieu.
144
continuidade” (HUTCHEON, 1985, p.32), a partir da distância crítica. Constatamos, portanto,
que Monteiro Lobato promove, por meio da paródia e da execução de novas combinações,
uma continuidade crítica da forma dos contos de fadas, criando uma narrativa que, apesar das
semelhanças, impõem-se no “acervo literário” pela diferença.
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Na criação do tio do Picapau Amarelo, Lobato recupera a tradição dos contos de
fadas e recria os elementos característicos dessa modalidade literária, como o maravilhoso.
Constituindo uma propriedade imprescindível do gênero, o maravilhoso possibilita
acontecimentos que, na realidade empírica, jamais se sucederiam. Nos contos de Perrault, esse
elemento permite a ocorrência do sono de cem anos da Bela Adormecida; a transformação da
abóbora e das vestimentas de Cinderela; o andamento sobrenatural das botas de sete léguas do
Pequeno Polegar; o não-desaparecimento da mancha de sangue da chave mágica de Barba
Azul; enfim, o maravilhoso gera situações que, por mais inusitadas que sejam, não despertam
nenhum estranhamento nas personagens e nos leitores. Como afirma Jolles (1976, p.202), é o
prodígio do maravilhoso que se espera que aconteça e que se exige dessa modalidade literária:
“o que seria maravilhoso, no contexto dessa forma e, portanto, despido de sentido, seria que
tais coisas não acontecessem; o conto e o seu universo peculiar perderiam então a validade”.
De modo semelhante, nas narrativas de Monteiro Lobato, o maravilhoso também possibilita
acontecimentos extraordinários: os bonecos adquirem vida e, por meio de pós mágicos, a
turma vive as mais diversas aventuras dentro e fora das terras do Sítio.
A respeito da “filiação” que o escritor estabelece ao construir seu universo ficcional,
Dominique Maingueneau (2006, p.168) afirma que “defender um certo posicionamento vai
ser, portanto, determinar que as obras devem investir em determinados gêneros e não em
outros”. Logo, “a condenação deste ou daquele gênero não é uma decisão exterior à criação
propriamente dita” (Idem, p.168). De modo similar, Bourdieu (1996, p.108) havia
declarado que, ao criar Madame Bovary ou A educação sentimental,
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ustave Flaubert “situa-
se ativamente, por escolhas que implicam umas tantas recusas, no espaço dos possíveis que se
oferecem a ele”.
145
Como Flaubert, Monteiro Lobato também se posiciona “ativamente” diante do
“arquivo literário” e, por meio de suas escolhas, procura criar seu espaço ao lado das obras já
existentes. Desse modo, ao combinar elementos próprios com as convenções literárias dos
contos de fadas, Monteiro Lobato intervém na “hierarquia dos gêneros”. No entanto,
conforme ressalta Bourdieu (1996, p.108), faz-se necessário compreender essas escolhas e
compreender a significação diferencial que as caracteriza no seio do universo das escolhas
compossíveis e a relação inteligível que une esse sentido diferencial à diferença entre o autor
dessas escolhas e os autores de escolhas diferentes das suas”. Numa proposição similar,
Maingueneau enfatiza: mais do que a pertinência a um gênero, o que importa é a maneira
como a obra gere suas relações com esse gênero(MAINGUENEAU, 1996, p.141, grifo do
autor).
Com base nessas proposições de Maingueneau e de Bourdieu, pretendemos
examinar, no presente pico, o modo como Lobato recupera a tradição dos contos de fadas
com vistas à criação de novos planos de sentido. Ampliando a discussão do capítulo anterior,
propomo-nos a analisar, além da transcontextualização das personagens de Perrault, a
maneira como são empregadas as características formais dessa modalidade literária na
construção do Sítio do Picapau Amarelo.
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A primeira narrativa do livro Reinações de Narizinho, “Narizinho Arrebitado”,
explicita essa “filiação” da obra de Lobato às narrativas que se desenvolvem sob a atmosfera
do maravilhoso. A primeira experiência maravilhosa ocorre depois da apresentação das
personagens: Narizinho conhece o Reino das Águas Claras, que fica no fundo do ribeirão do
Sítio. Nesse trecho da história, a paisagem comum do ribeirão de Dona Benta metamorfoseia-
se, trazendo à luz todo um Reino Encantado que, até então, passava despercebido.
Essas transformações ocorrem com certa freqüência no universo ficcional lobatiano.
Em Emília no país da gramática (1934), as personagens estão caminhando e, de repente,
deparam com um novo espaço: “Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu com eles numa
região onde o ar chiava de modo muito estranho [...] É que já entramos em terras do País da
Gramática explicou o rinoceronte Estes zumbidos são os SONS ORAIS, que voam soltos
no espaço” (LOBATO 1988, v.6, p.11). Sem qualquer explicação, a paisagem modifica-se,
146
como também se observa em O Picapau Amarelo, com a mudança das personagens do País
das Maravilhas para as Terras Novas: “Aquelas terras ordinaríssimas, onde havia saúva e
sapé, começaram a transformar-se por encanto” (LOBATO, 1956, p.22-3). Outro exemplo
está em O Minotauro (1939), no momento em que a turma do Sítio decide ir visitar a Grécia
antiga e não a atual: “Todos concordaram e, fechando os olhos, fizeram tchibum! Foram sair
adiante, em plena Grécia de Péricles. Tudo mudou como por encanto” (LOBATO, 1988,
v.12, p.113).
Além da metamorfose do espaço, verificamos, no Sítio, a transformação das próprias
personagens. Os grandes exemplos são a Emília e o Visconde. Ambos deixam de ser bonecos
e metamorfoseiam-se em “gente”, como reconhece Dona Benta, em Caçadas de Pedrinho:
“Mas lembre-se, Nastácia, que também nunca vimos contar de nenhuma boneca que falasse,
nem de nenhum visconde de sabugo que agisse tal qual uma gentinha – eestão a Emília e o
Visconde de Sabugosa” (LOBATO, 1988, v.3, p.39). Em O Saci, Narizinho também sofre
uma metamorfose, é transformada por Cuca em pedra. A menina é salva por Pedrinho e o
Saci: “um fato maravilhoso se deu. Uma pedra no terreiro, que ninguém se lembrara de ter
visto ali, principiou a inchar, a crescer e a tomar forma de gente. Segundos depois essa forma
de gente começou a apresentar os traços de Narizinho (LOBATO, 1988,v.2, p.245-6).
Considerando os exemplos mencionados nos parágrafos anteriores e as palavras de
Marina Warner (1999, p.17) de que “é a metamorfose que define o conto de fadas”,
constatamos que Monteiro Lobato, na elaboração do seu universo ficcional, investe nesta
modalidade literária ao retomar e re-apresentar suas características basilares, criando novos
planos de sentido.
Além da metamorfose, na estrutura dos contos de fadas, os objetos mágicos também
cooperam para a manutenção da atmosfera de encantamento, criando “um imenso teatro de
possibilidades nas histórias: tudo pode acontecer” (WARNER, 1999, p.18). Nos contos de
Perrault, podemos constatar essa abertura dada à narrativa, por exemplo, quando as botas de
sete guas são incorporadas na história do Pequeno Polegar, ampliando as possibilidades de
ação da personagem; ou, na varinha de condão da madrinha de Cinderela, viabilizando as
transformações necessárias para a ida da personagem ao baile. No tio do Picapau Amarelo,
o prodígio do recurso maravilhoso será introduzido a partir de “Pena de Papagaio”, o
penúltimo capítulo de Reinações de Narizinho: “o menino invisível [Peninha] tirou dum
saquinho certo de pirlimpimpim [...] que é o mais mágico que as fadas inventaram”
147
(LOBATO, 1957, p.259). Produzido por seres sobrenaturais, as fadas, o possibilita o
deslocamento das personagens lobatianas para outras partes do País das Maravilhas.
Neste mesmo capítulo, as crianças experimentam uma viagem com o pó e vão,
juntamente com Peninha, para o País das Fábulas onde conhecem La Fontaine e Esopo:
“sentiram-se leves como plumas, e tontos com uma zoeira nos ouvidos. As árvores
começaram a girar-lhes em torno como dançarinas de saiote de folhas e depois foram se
apagando [...] Eles boiavam no espaço como bolhas de sabão levadas por um vento de
extraordinária rapidez” (LOBATO, 1957, p.260). Esses eram os sintomas do que logo
passavam com a chegada ao destino.
Peninha é uma personagem que desperta dúvida nas crianças do Sítio a respeito de
sua verdadeira identidade: “Estou desconfiado disse Pedrinho que o tal gico de
Peter Pan era o nosso de pirlimpimpim. / E quem nos garante que o tal Peninha, que deu
a você o de pirlimpimpim, não seja esse mesmo Peter Pan?” (LOBATO, 1988, v.5, p.133).
Com essa sugestão, Lobato explicita ao leitor empírico sua concepção concernente ao
processo de composição de uma obra literária. Nesse jogo intertextual, Lobato demonstra que
seu universo ficcional é um complexo “mosaico de citações”, confirmando a tese de que “todo
texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p.64), tornando “a
linguagem poética pelo menos dupla (Idem, p.64). Assim, como declara a escritora Ana
Maria Machado, “com a maior sem-cerimônia, [Lobato] pegou o pó-das-fadas que Barrie
inventou para fazer Peter Pan voar, batizou-o com o som da fada Sininho e criou o de
pirlimpimpim, mudando apenas o modo de usar” (MACHADO, 2002, p.127).
Com a inserção desse recurso mágico, a vida no Sítio extrapola seus limites físicos,
permitindo a ida a lugares inusitados, tais como, o País das Fábulas, o Céu, o planeta Marte, o
planeta Saturno, a Via Láctea, a Grécia, Olimpo, a Ilha de Creta, a Ilha de Bikini etc. Apesar
de seu poder, o pó de pirlimpimpim perde sua eficácia ao entrar em contato com o sal, como é
relatado no capítulo “O de pirlimpimpim”, em Reinações de Narizinho: “Com espanto
geral, porém, o pó não fez efeito. Outra dose, e nada. Pirlimpimpim perdera a força...
Molhara-se na água do mar [...] Pirlimpimpim agüenta tudo, menos sal (LOBATO, 1956,
p.309).
Se inicialmente esse recurso é um produto criado pelas fadas, posteriormente,
notamos que o Visconde de Sabugosa se dedica ao estudo e à criação de pós mágicos. Em O
Minotauro (1939), Pedrinho utiliza um elemento mágico muito semelhante ao dado por
Peninha, chamado na ocasião de número 2. Este serve especificamente para promover a
148
locomoção no tempo”, permitindo o deslocamento de um século para outro; enquanto o
de pirlimpimpim serve para a “locomoção no espaço.
Em A chave do tamanho, Emília vai ao laboratório do Visconde e toma uma pitada
de um para ir à Casa das Chaves: “O Visconde, de fato, andava estudando um misterioso
superpó, capaz de maravilhas ainda maiores que o velho de pirlimpimpim(LOBATO,
1988, v.13, p.11). na narrativa “A reinação atômica”, em Histórias diversas, o Visconde
dedica-se à produção do pirlimpimpim, fato que assegura o uso prolongado desse recurso
mágico pelos habitantes do Sítio: “[Dona Benta] foi ter ao laboratório do Visconde, que
estava entretido na fabricação do pó de pirlimpimpim” (LOBATO, 1988, v.15, p.247).
Se normalmente o de pirlimpimpim é usado para promover as viagens
maravilhosas dos habitantes do tio, Emília, com sua postura transgressora, vale-se do
para dar um “sumiço” no advogado e no Sr. Müller, que se dizia dono do Quindim. A boneca
traz “uma pitada de de pirlimpimpim num pires” e os desafia a cheirarem o sem
espirrar; caso conseguissem o rinoceronte era deles. Ambos “tomaram a pitada, sorridentes
e... fiunnn! ninguém nunca soube onde foram parar! Sumiram-se no espaço...” (LOBATO,
1988b, p.85).
Observamos que a incorporação dos pós mágicos e das transformações por encanto
propicia uma maior mobilidade às narrativas de Monteiro Lobato, rompendo com a limitação
espacial e com a cronologia linear. Essa ruptura permite um entrecruzamento do passado e do
presente, como ocorre na viagem das crianças com Dona Benta para a Grécia antiga: “Ao
ouvir tais palavras, Péricles olhou para Fídias com ar de quem não estava entendendo coisa
nenhuma. Era Cristã? Novo Continente? Cristóvão Colombo? [...] Dona Benta entendeu:
estavam a julgá-la de miolo mole” (LOBATO, 1988, v.14, p.123). Ou, ainda, nas aventuras
junto com Hércules: “Minutos depois estava Emília contando a Hércules que no século XX
as damas usavam peles de muitos animais, inclusive de uma tal raposa prateada, que era
raríssima” (LOBATO, 1988, v.14, p.100). Nestes casos, Lobato põe para contracenar
personagens totalmente díspares e, por meio dessa junção, possibilita o conhecimento da
história de uma civilização e conduz o leitor a uma reflexão crítica do desenvolvimento da
humanidade.
Assim, nessa ambientação maravilhosa, as mazelas da sociedade moderna são
desveladas ao pequeno leitor. várias passagens que exemplificam essa forma de Lobato
misturar fantasia e realidade. Em O Minotauro, as personagens fazem uma apreciação
pessimista da modernidade, discutindo os “progressos” dessa civilização: “As ruas, feitas
149
originariamente para os pedestres, foram invadidas pelas máquinas de correr e de empastar o
ar com o fedor da gasolina máquinas tremendamente destruidoras, que fazem mais vítimas
num ano” (LOBATO, 1988, v.12, p.115). Em Emília no país da gramática, em meio ao
passeio maravilhoso pela língua portuguesa, podemos constatar a crítica social: “Era uma
cidade como todas as outras. A gente importante morava no centro e a gente de baixa
condição, ou decrépita, morava nos subúrbios” (LOBATO, 1988, v.6, p.17). Em O poço do
Visconde (1937), notamos a censura à concentração de riqueza: “O dinheiro foi feito para
circular, não para apodrecer nas arcas; mas em vez de gastá-lo egoisticamente conosco,
como fazem os maus ricos, podemos gastá-lo de modo a beneficiar os milhares de
pobrezinhos que nunca tiraram petróleo” (LOBATO, 1988, v.10, p.163). E, em A chave do
tamanho, o que move as ações de Emília é a força devastadora da guerra, que gera intensa
tristeza em Dona Benta:
Não tal, minha filha. A humanidade forma um corpo só. [...] Uma
bomba que cai numa casa em Londres e mata uma avó de lá, como eu, e fere
uma netinha como você ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto
como se caísse aqui. É uma perversidade tão monstruosa, isso de
bombardear inocentes, que tenho medo de não suportar por muito tempo o
horror desta guerra (LOBATO, 1988, v.13, p.10).
Mais do que um simples expediente literário capaz de superar os entraves narrativos,
verificamos que a presença do maravilhoso no universo ficcional lobatiano torna-se uma
maneira de propiciar a inserção de questões densas de modo mais leve, adequando-se ao nível
intelectual do leitor infantil. Percebemos, portanto, que a produção literária de Monteiro
Lobato, de modo semelhante aos contos de fadas de Perrault, incorpora direta ou
indiretamente questões de seu tempo, denunciando as mazelas sociais e as contradições da
natureza humana.
Além dos pós mágicos, muitas situações são resolvidas com o faz-de-conta, recurso
exclusivamente empregado por Emília. Como afirma a boneca, em A reforma da natureza
(1941), “o nosso segredo é o faz-de-conta. Não o que não se consiga quando o processo
aplicado é o faz-de-conta. O nosso grande segredo é esse” (LOBATO, 1988, v.12, p.95-6).
Com esse recurso, a boneca faz coisas extraordinárias, superando os obstáculos que aparecem
no decorrer das aventuras. Em O poço do Visconde, Emília aplica o recurso para superar as
necessidades financeiras para a exploração do petróleo: “Nada mais simples. Aplica-se o ‘faz-
de-conta’ e logo aparece tudo quanto precisamos sondas, verrumas de perfurar, tubos de
encanamentos, tatus perfuradores e até o petróleo! Você bem sabe que não o que resista
ao faz-de-conta” (LOBATO, 1988, v.10, p.61). Sem saber onde armar o “mundéu” para pegar
150
a fera, Emília, em Os doze trabalhos de Hércules II (1944), vale-se de seu recurso mágico:
“‘Faz de conta que é exatamente por aqui que a fera vai passar’. / Hércules nada entendeu
daquilo, e Pedrinho não quis entrar em grandes explanações. Apenas disse que o faz-de-conta
era um sistema infalível, mas aplicável como último recurso” (LOBATO, 1988, v.15,
p.145). Com esse “sistema” que desfaz as dificuldades num passe de mágica, a boneca
modifica toda a natureza, re-criando os animais e as plantas conforme sua lógica; concerta a
bota atrasada do Pequeno Polegar; desencanta as flechas de Hércules, enfim, realiza tantas
proezas que desperta em Narizinho a suspeita de que esse recurso nada mais fosse do que uma
varinha de condão e de que Emília seria, conseqüentemente, uma fada.
– Vovó: ando desconfiada de uma coisa...
– De quê, minha filha?
– Ando cismada de que Emília é uma fada que veio a este mundo sob
forma de boneca e depois virou gente. Tudo em Emília são disfarces aa
vara de condão de todas as fadas.
– Não estou entendendo, minha filha – disse Dona Benta, erguendo os
óculos para a testa.
Pois eu estou; e estou cada vez mais convencida de que o faz-de-
conta de Emília é uma varinha de condão disfarçada. Que diferença entre
o faz-de-conta e uma vara mágica?
[...]
Logo, Emília é uma fada, vovó! Logo, o tal faz-de-conta que ela
tanto usa é uma vara de condão disfarçada...
– Sim, uma vara verbal...
...porque as varas de condão podem ter todas as formas, e não a
de vara – pelo menos eu penso assim (LOBATO, 1988, v.15, p.226).
Fazendo uma análise das atitudes de Emília, Narizinho passa a desconfiar da
verdadeira identidade da boneca. Essa sugestão torna-se instigante na medida em que propõe
uma nova leitura da personagem. Entretanto, mais do que afirmar se Emília realmente é ou
não uma fada, cabe examinar o que essa suposta identidade representa no quadro geral da
literatura, considerando o estereótipo de fada amplamente veiculado nos textos literários.
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Emília é a personagem mais complexa da obra infantil de Monteiro Lobato. Ela
nasce das mãos de Tia Nastácia, feita de retalho
172
e macela. A boneca torna-se o brinquedo
172
A partir do tipo de material do qual a boneca é feita, o retalho, podemos estabelecer uma relação com o
processo criativo de Monteiro Lobato. Assim como Emília é feita da junção de panos, o universo ficcional
lobatiano também é formado pela junção / “assimilação” de diferentes universos ficcionais. Da mesma forma
151
favorito de Narizinho, indo para todas as partes junto com a menina. Num desses passeios,
Emília volta transformada: graças à pílula falante do Dr. Caramujo, passa a expressar-se
verbalmente. A partir da aquisição da fala, o processo de constituição e de evolução da boneca
no espaço do Sítio potencializa-se. Logo seu jeito birrento e interesseiro de ser vem à tona.
Nomeada “Condessa de Três Estrelinhas”, Emília no casamento com Rabicó a
possibilidade de adquirir novos títulos: “A boneca pensou, pensou, e afinal, tentada pela idéia
de começar marquesa e um dia virar princesa, resolveu-se. / Pois quero! (LOBATO, 1957,
p.88). Insatisfeita com o marido, Emília manifesta seu contentamento com a suposta morte do
Rabicó: “Emília, porém, pulou de alegria. Estava viúva! Podia finalmente casar-se com o
Visconde de Sabugosa ou outro fidalgo qualquer” (Idem, p.95). O casamento torna-se apenas
uma possibilidade de possuir maior status e de adquirir tulos da nobreza e, em nenhum
momento, observamos qualquer sentimentalidade por parte da boneca.
Ainda em Reinações de Narizinho, o narrador afirma: “Emília sempre fora
interesseira, mas depois que encasquetou a idéia de tornar-se a boneca mais rica do mundo
(rica de brinquedos), virou uma perfeita cigana, dessas que não fazem nada de graça”
(LOBATO, 1957, p.200). Constantemente, ela pede objetos aos demais moradores do Sítio,
tais como, o alfinete de pombinha, o pito, a canastrinha, o cavalinho de madeira, o vestido
novo de seda etc. Dona de um temperamento forte, a boneca não hesita em mostrar a língua
quando alguém a desagrada: “Emília! gritou Dona Benta. Mais respeito para com os
mais velhos. / Mas Emília não quis saber de nada. Botou meio palmo de língua para o
almirante e se foi pisando duro” (LOBATO, 1988, v.5, p.57). Emília também sabe
dissimular, ou melhor, fazer “arzinho de santa [...] nas ocasiões graves” (Idem, p.64). Em
Peter Pan, logo após cortar a cabeça da sombra de Tia Nastácia, Emília camufla sua ação
apresentando-se como inocente: “Mas quem foi o malvado? / Olhou para a cara de Pedrinho,
de Narizinho, do Visconde e da Emília e não viu em nenhum deles o menor ar de criminoso.
Emília, sobretudo, estava com uma carinha que era só botar num quadro e virava Santa Emília
– de tão inocente (LOBATO, 1988, v.5, p.133).
Para a boneca existe apenas uma lição a ser aprendida enquanto se vive no mundo
dos homens: “Olhe, Visconde, eu estou no mundo dos homens pouco tempo, mas
aprendi a viver. Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser
esperto é tudo. O mundo é dos espertos. Se eu tivesse um filhinho, dava-lhe um conselho:
“Seja esperto, meu filho!” (LOBATO, 1988, v.5, p.76). Essa esperteza de Emília opõe-se ao
como Emília é formada por conjunto de tecidos, a obra infantil de Lobato “se constrói como mosaico de
citações” (KRISTEVA, 1974, p.64).
152
tipo de esperteza que o Visconde representa, pois, enquanto o sabugo de milho detém o
conhecimento científico, a boneca é ardilosa em suas ações. Sua esperteza sobrepõe-se à do
Visconde a ponto de transformá-lo em seu “criado”. Em várias passagens, essa relação
serviçal é explicitada: – “Dona Emília manda, não pede. / [...] – Mas para que isso? – atreveu-
se o sábio a perguntar. / Não é da sua conta, Visconde. Faça o que estou dizendo e não
discuta. (LOBATO, 1957, p.202-3). Nas viagens da turma, é o sabugo quem carrega a
bagagem de Emília: “Visconde, arreie a canastra e faça a conta desta menina. / O embolorado
sábio obedeceu. Arriou a canastrinha, enxugou o suor da testa e fez a conta na areia, com um
pauzinho” (Idem, p.275). Mesmo quando se nega a fazer qualquer tarefa designada por
Emília, o Visconde vê-se encurralado, como ocorre em Memórias de Emília:
E se eu me recusar a escrever? Se eu deixar as Memórias neste
ponto, que é que acontece?
Emília deu uma boa risada.
Bobo! Se fizer isso, pensa que me aperto? Corro com Quindim e
ele me acaba o livro. Bem sabe que o Quindim me obedece em tudo,
cegamente. É inútil, Visconde, lutar contra os espertos. Eles acabam
vencendo sempre. Por isso, abaixe a crista e continue (LOBATO, 1988, v.5,
p.76).
Emília demonstra-se superior e, como afirma o próprio Visconde, ela “tem saídas
para tudo. Não se aperta, não se atrapalha. E em matéria de esperteza, não existe outra no
mundo” (LOBATO, 1988, v.5, p.88). Nesse aspecto, torna-se inevitável a comparação entre o
comportamento da boneca e o do Gato de Botas, em “Le Maître Chat”. O Gato, para ajudar e
compensar seu dono por ter ficado com a menor parte da herança deixada pelo pai, vale-se de
estratégias como a mentira, a coação, a ameaça e o desafio, com o objetivo de assegurar a
promoção social do seu dono, o Marquês de Carabás, e, conseqüentemente, a sua própria
ascensão. Na opinião de Robert Darnton (1986, p.92), o Gato de Botas é a personificação da
astúcia ‘cartesiana’”. Não seria essa também a essência da boneca de pano? Considerando
essa similaridade, não seria possível pensar na Emília como uma versão brasileira do Gato de
Botas, já que ambos representam a esperteza?
A essa “esperteza” de Emília, soma-se a sua “falta de coração”. Em Reinações de
Narizinho, quando o Visconde morre afogado, Emília “demonstrou mais uma vez que não
tinha coração. Em vez de derramar uma lágrima, ou dizer umas palavras tristes, a diabinha
limitou-se a abrir a canastra – para ver se o Visconde não havia furtado alguma coisa!
(LOBATO, 1957, p.304). Com sua postura insensível diante de situações trágicas e com suas
constantes respostas inadequadas, Emília provoca indignação nas demais personagens, como
ocorre, por exemplo, no episódio do rapto de Tia Nastácia:
153
– A pobre! – suspirou Narizinho. – Por onde andará neste momento?
Para mim, o Minotauro a devorou disse Emília. As cozinheiras
devem ter o corpo bem temperado, de tanto que lidam com sal, alho, vinagre,
cebolas. Eu, se fosse antropófaga, só comia cozinheiras.
Narizinho teve vontade de jogá-la aos tubarões (LOBATO, 1988,
v.12, p.105).
A boneca tem uma personalidade complexa, rompendo com a caracterização
dicotômica tão freqüente nos contos de fadas. Sua versatilidade torna-a, aos olhos das demais
personagens, “uma criaturinha incompreensível”. Como reconhece o Visconde, Emília “faz
coisas de louca, e também faz coisas que até espantam a gente, de tão sensatas. Diz asneiras
enormes, e também coisas tão sábias que Dona Benta fica a pensar” (LOBATO, 1988, v.5,
p.88). Esse temperamento volúvel manifesta-se a todo instante, como podemos verificar na
passagem de Reinações de Narizinho, em que a personagem, depois de comportar-se tão
egoisticamente diante a morte do sabugo de milho, chama a atenção de Pedrinho por não se
despedir do Visconde: “Que idéia! Pois o Visconde não morreu, Emília? / Morreu mas
não acabou ainda! replicou a boneca, correndo na direção dele com o resto do Visconde na
mão. – Despeça-se deste toco, que é bem capaz de virar gente outra vez” (Idem, p.312).
Se em determinadas situações a boneca parece não se envolver emotivamente, em
outras, notamos a sua afeição por certas personagens, como transparece na despedida de
Hércules, em Os doze trabalhos de Hércules II: “Pedrinho engasgou no discurso e eu estou
começando a me engasgar. Você, Lelé... e não podendo conter as lágrimas, Emília rompeu
em choro e atirou-se aos braços do herói” (LOBATO, 1988, v.15, p.187). Com esse choro, a
personagem comprova as palavras ditas no livro Memórias de Emília: “quero que saibam que
é uma grande mentira o que anda escrito a respeito do meu coração. Dizem todos que não
tenho coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração que não é de banana. Coisinhas à-
toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça” (LOBATO, 1988, v.5, p.107).
Diante da pergunta “que é que você é?”, Emília define-se: – “Sou a Independência ou
Morte” e, em outra oportunidade, afirma-se uma “Dona Quixotinha”. Emília representa a
liberdade de expressão e de ação, ninguém a “embrulha” ou a governa. Essa é a verdadeira
magia que reina no Sítio do Picapau Amarelo, permitindo às personagens serem o que
realmente são:
Porque para o homem o clima ‘certo’ é um só: o da liberdade. nesse
clima o homem se sente feliz e prospera harmoniosamente. Quando muda o
clima e a liberdade desaparece, vem a tristeza, a aflição, o desespero, e a
decadência. Como dou a vocês a máxima liberdade, todos vivem no maior
contentamento, a inventar e a realizar tremendas aventuras (LOBATO, 1988,
v.12, p.111).
154
Essa liberdade de ação conferida às personagens infantis permite que aflores uma
personalidade complexa na Emília, despertando nos demais a suspeita de sua natureza
sobrenatural. Em Caçadas de Pedrinho, Cléu, namorada de Pedrinho, considera muito
extravagante as ações de Emília: “Repare que neste caso do rinoceronte foi quem fez sempre
o primeiro papel. Foi quem o descobriu, foi quem o amansou, foi quem passou a perna nos
caçadores e os botou daqui para fora a fugirem como veados. Ora, isto é muito para uma
boneca, não acha?
173
(LOBATO, 1988b, p.80). Dona Benta, ao ver todas as proezas de
Emília, suspeita: “Realmente para mim a Emília é alguma fadinha que anda pelo mundo
disfarçada em boneca de pano” (Idem, p.80). Em Reforma da natureza, a menina Rã, ao
contemplar Emília dormindo, pensa consigo: “E se ela continua a evoluir e vira anjo de
verdade, dos de asas, e foge para o céu? Ou se vira fada, como aquela fada Sininho de Peter
Pan? E a imaginação da começou a cabriolar que nem cabritinho novo [...] (LOBATO,
1988, v.12, p.40). A referência explícita à fada Sininho, personagem da obra Peter Pan
(1911), de James Barrie, indica a “filiação” de Lobato dentre as escolhas compossíveis no
intertexto. Ao cogitar essa relação, Lobato delineia o perfil de fada ao qual pretende
assemelhar sua Emília.
Retomando algumas definições do termo fada, constatamos que, na sua maioria,
essas figuras são associadas às mulheres, à beleza e à bondade. Segundo a definição do
Houaiss da língua portuguesa (2001, p.1299), fada seria um “ser imaginário do sexo feminino
a que se atribui poder mágico de influir no destino das pessoas”. De modo similar, Nelly
Novaes Coelho (2003, p.72), afirma que as fadas “tornaram-se conhecidas como seres
fantásticos ou imaginários, de grande beleza, que se apresentavam sob forma de mulher.
Dotadas de virtudes e poderes sobrenaturais, interferem na vida dos homens, para auxiliá-los
em situações-limite, quando já nenhuma solução natural seria possível”. De acordo com
Barbara Vasconcelos, sob as leis do encantamento feérico, as fadas que simbolizam “a
bondade, a graça, a beleza” e, em oposição, encontram-se as bruxas “símbolo da maldade
humana”.
Em Diccionario de las hadas (1976), Katharine Briggs afirma que a palavra fada
“designa uma espécie de seres sobrenaturais ‘de natureza intermediária entre o homem e os
anjos’ [...] diversificados quanto ao tamanho, poderes, duração de vida e atributos morais”
173
Cabe lembrar que é também a boneca quem nomeia o rinoceronte, no episódio narrado em Emília no país da
gramática: “Quindim explicou Emília é o nome que resolvi botar no rinoceronte. [...] Como sempre fui a
botadeira de nomes lá do sítio, resolvo batizar o rinoceronte assim – e pronto!” (LOBATO, 1988, v.6, p.12).
155
(BRIGGS, 2003, p.11, tradução nossa).
174
De acordo com a pesquisadora, “as fadas podem ser
boas ou más, bonitas ou repugnantes, magníficas ou cômicas, entretanto, dentre suas muitas
variações, uma das maiores é a do tamanho” (Idem, p.308, tradução nossa).
175
Neste aspecto do tamanho, Emília enquadra-se perfeitamente, pois, mesmo depois de
sua metamorfose de boneca para gente, sua estatura permaneceu a mesma, quarenta
centímetros. Nas definições mencionadas, verificamos a predominância de uma caracterização
polarizada das fadas. Por outro lado, notamos em James Barrie, uma posição diferenciada na
construção dessa personagem feérica, pois se constata a junção desses pólos. Com esse
procedimento, Barrie torna essas suas personagens ambíguas e volúveis. Como destaca os
psicanalistas, Diana e Mario Corso, a respeito das fadas da Terra do Nunca, elas “são
ciumentas, possessivas e até mesmo capazes de maldades. Sininho não vacila na emboscada
que armou para matar Wendy, nem se sente muito culpada quando Peter a pune por isso”
(CORSO, 2006, p.234).
Dessa maneira, quando imagina a transformação de Emília em uma fada como a
Sininho, toda a caracterização dessa figura é retomada, opondo-se à visão idealizada das fadas
como seres apenas do Bem”. A construção de Emília como uma fada baseia-se, portanto, no
jogo de insinuações, mantendo, por meio da incerteza, o fascínio maravilhoso em torno da
boneca: “Quem sabe se Emília não era realmente uma fada?” (LOBATO, 1988, v.15,
p.228).
176
Ao construir essa possibilidade de leitura sobre Emília, Lobato transcontextualiza
essa figura tão comum da tradição literária e a re-apresenta no contexto nacional. Emília
tornaria-se, sob essa perspectiva, uma fada mais “humanizada”, com necessidades e
sentimentos característicos de humanos. Como podemos observar na leitura das obras de
Monteiro Lobato, a boneca de pano é interesseira, egoísta, malcriada, teimosa, birrenta e
orgulhosa, qualidades que a distanciam do ideal imaginário de uma fada. Contudo, é
exatamente nesse descompasso que incide a inovação de Lobato no âmbito literário nacional,
174
“designa a una especie de esos seres sobrenaturales ‘de naturaleza intermedia entre el hombre y los ángeles’
[…] diversos en cuanto a tamaño, poderes, duración de vida y atributos morales” (BRIGGS, 2003, p.11).
175
“Las hadas pueden ser buenas o malas, hermosas o repugnantes, magníficas o cómicas, pero, entre sus
muchas variaciones, una de las mayores es la del tamaño” (BRIGGS, 2003, p.308).
176
Em Reinações de Narizinho se constata tal sugestão. Certa vespa informa a menina Lúcia sobre
um objeto mágico que andava perdido: “Esse alfinete era uma varinha de condão das mais poderosas”
(LOBATO, 1956, p.220). Narizinho recorda-se do alfinete de pombinha carijó que Emília havia
ganhado de Tia Nastácia e logo pensa que a boneca poderia “virar uma poderosa fada e uma fada
que nunca existiu no mundo: a Fada de Pano” (Idem, p.223).
156
pois, o escritor rompe com a reprodução de um estereótipo, propondo uma imagem de fada
mais complexa e ambígua.
Verificamos, portanto, que Lobato investe genericamente nos contos de fadas, não
para perpetuar um modelo amplamente divulgado, mas para atualizá-lo. Desse modo, quando
Lobato refere-se à renovação das “histórias embolaradas”, o alcance do seu projeto está além
do nível temático, abrangendo também a própria forma dessa modalidade literária.
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A história dos contos de fadas está intimamente ligada com a tradição oral.
Conforme discutido no primeiro capítulo, o “conto de fadas indica o advento de uma forma
literária que se apropria de elementos populares para apresentar valores e comportamentos das
classes aristocrática e burguesa” (CANTON, 1994, p.30). O frontispício da edição original,
reproduzido a seguir, ilustra claramente essa relação entre o popular e o erudito.
No interior de uma casa, junto à lareira, durante à noite, uma senhora, fiando sua lã,
retém a atenção dos ouvintes. Pelo contraste das vestimentas, podemos verificar a distinção
social entre as personagens: a senhora usa um traje mais simples e tem em sua cintura um
avental amarrado; as demais se vestem com maior requinte. Nesse momento familiar, a
representação da interação entre o “popular” e o “erudito”.
A inscrição na porta torna-se peça-chave na leitura do frontispício, na medida em que
faz remissão a “uma personagem dos velhos contos populares, que contava histórias para seus
filhotes fascinados” (COELHO, 2003, p.77). Notamos, na imagem, que a senhora fiandeira,
uma possível ama-de-leite, desempenha a mesma função da mamãe ganso: contar histórias.
Para Coelho, a substituição das personagens “teria resultado por analogia ao costume popular
europeu de as mulheres contarem histórias enquanto fiavam, durante os longos serões ou dias
de invernos” (Idem, p.77). Assumindo uma posição de destaque, o título inscrito na porta
procura enfatizar a origem dos contos que compõem a obra em questão, indicando uma
possível retomada da tradição oral popular. As palavras presentes na dedicatória à sobrinha de
Luís XIV corroboram essa leitura:
Não se de estranhar que uma Criança tenha tido prazer em compor os
Contos desta Coletânea [...] É verdade que estes Contos dão a imagem do
que se passa nas mais humildes Famílias [...] mas a quem melhor convém
conhecer como vivem os Povos, senão às Pessoas a quem o Céu destina
157
conduzi-los? O desejo desse conhecimento levou Heróis, e mesmo Heróis de
vossa Raça, até a palhoças e cabanas para ali ver de perto e por eles
mesmos o que se passava de particular (PERRAULT, 2007, p.81-2, grifos
nossos).
177
Observamos, assim, que tanto por meio da imagem quanto das palavras, o leitor é
conduzido a acreditar na relação direta entre dois tipos de cultura, a “popular” e a “erudita”.
Grande parte dos estudiosos de Contes de ma mère l’oye apóiam-se nessas “pistas” para
legitimar suas pesquisas que, na maior parte das vezes, buscam encontrar as ressonâncias do
popular na versão Perrault. Nessa vertente, destacam-se nomes como o do Baron
Walckenaer,
178
Paul Delarue,
179
Nicole Belmont,
180
Marc Soriano.
181
Apesar de apontar a “remodelagem” feita por Perrault nos contos populares para
adequá-los ao gosto dos freqüentadores dos salões, Robert Darnton (1986, p.24) defende:
“Perrault, mestre do gênero, realmente recolheu seu material da tradição oral do povo (sua
principal fonte, provavelmente, era a babá de seu filho)”. Verificamos, nessa afirmação, uma
aproximação entre a imagem representada no frontispício e a realidade cotidiana vivenciada
por Charles Perrault.
177
“On ne trouvera pas estrange qu’un Enfant ait pris plaisir à composer les Contes de ce Recueil [...] Il est vray
que ces Contes donnent une image de ce qui se passe dans les moindres familles [...] Mais à qui convient-il
mieux de connaistre comment vivent les Peuples, qu’aux Personnes que le Ciel destine à les conduire? Le désir
de cette connoissance a poussé des Herós, et mesme des Herós de vostre Race, jusque dans des buttes et des
cabanes, pour y voir de près et par eux-mesmes ce qui s’y passoit de plus particulier” (PERRAULT, 1948,
p.117-8).
178
Dissertation sur les contes de fées attribués a Perrault et sur l’origine de la féerie. Paris: Librairie de Charles
Gosselin, 1842.
179
Le catalogue raisonné du conte populaire français. Maisonneuve e Larose, 1951.
180
La poétique du conte: essais sur le conte de tradition orale. Paris: Galiimard, 1999.
181
Les contes de Perrault: culture savant et tradition populaire. Paris: Gallimard, 1977.
158
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Imagem disponível no site da Biblioteca Nacional Francesa: http://gallica.bnf.fr
159
Opondo-se à linha que considera Perrault como um “coletor/transcritor” dos contos
populares, críticos como Jacques Barchilon,
183
Marc Fumaroli,
184
Raymonde Robert
185
e Tony
Gheeraert
186
defendem que o escritor francês seria “mais literário do que folclórico”.Para
esses estudiosos, a cultura popular é posta em cena apenas com fins lúdicos, de modo que “a
camponesa do frontispício seria apenas uma ficção, uma reconstrução, e não nos esclareceria
em nada sobre a gênese dos contos, obra composta por um Acadêmico no interior do seu
gabinete” (GHEERAERT, 2008, p.17, tradução nossa).
187
Com base nessas proposições críticas e nas análises dos contos de Perrault,
empreendidas no primeiro capítulo, constatamos que o acadêmico retoma a tradição dos
serões noturnos, re-apresentando as narrativas que circulavam oralmente por entre as classes
menos favorecidas. Por meio da incorporação de aspectos típicos e condizentes com uma
classe social mais elevada, as mensagens dessas histórias aparecem invertidas no novo
contexto dos salões.
Monteiro Lobato, na construção de seu universo ficcional, transcontextualiza essa
cena dos serões para as suas composições. Na guarda de suas obras infantis pela editora
Brasiliense, observamos que o ilustrador capta as intenções de Lobato e elabora uma imagem
semelhante ao frontispício da obra de Perrault (vide figura a seguir). Entre as “ilhas” que
representam diferentes composições que fazem parte do Mundo das Fábulas, um quadro
que reproduz um momento familiar e muito comum no Sítio do Picapau Amarelo: Dona
Benta, sentada ao centro, com um livro na mão, está rodeada por seus netos, Narizinho e
Pedrinho, e pela boneca de pano, Emília. Nessa imagem, diversos aspectos indicam a re-
apresentação daquela cena do frontispício de Perrault nesse novo contexto. Notamos a
mudança das vestimentas, que passam a ser típicas do período da produção da obra; a
iluminação deixa de ser à vela e torna-se elétrica, representada pelo abajour ao fundo; e, do
registro oral, passa-se ao escrito, marcado pela presença do livro.
O serão é a situação em que as personagens se reúnem, normalmente ao toque de Tia
Nastácia “É hora, gente!” –, para ouvir as histórias e adquirir novos conhecimentos em
183
Le conte merveilleux français de 1690 à 1790. Paris, Honoré Champion, 1975.
184
“Les enchantements de l’éloquence: les fées de Charles Perrault ou de la littérature”. In: Le statut de la
littérature. Genève, Droz, 1980, p.153-186.
185
Les contes de fées litteraire en France de la fin du XVIIe. à la fin du XVIIIe. siècle. Paris, Honoré Champion,
2002.
186
De Doré à Perrault. Conferência proferida em 03/01/2008, disponível no endereço: www.lettres.ac-
versailles.fr/article.php3?id_article=782
187
“la paysanne du frontispice ne serait alors qu’une fiction, une reconstruction, et ne nous renseignerait en rien
sur la genèse des contes, oeuvre composée par un Académicien dans le secret de son cabinet” (GHEERAERT,
2003, p.17).
160
conjunto. Essa coletividade é defendida por Dona Benta como uma forma de assegurar a
todos a oportunidade de satisfazer sua necessidade de fantasia. Em Reinações de Narizinho,
percebemos essa postura da matriarca, quando o livro Pinóquio chega ao Sítio pelo correio e
Pedrinho expressa seu desejo de lê-lo sozinho. Imediatamente, sua avó intervém: – “Quem vai
ler o Pinocchio, para que todos ouçam, sou eu, e só lerei três capítulos por dia, de modo que o
livro dure e nosso prazer se prolongue” (LOBATO, 1957, p.166).
Dona Benta, “uma senhora de muita leitura; além de ter uma biblioteca de rias
centenas de livros, ainda recebia, dum livreiro da capital, as novidades mais interessantes do
momento” (LOBATO, 1988, v.4, p.05). Diferentemente da camponesa do frontispício de
Perrault, Dona Benta possui um elevado nível de erudição e suas histórias baseiam-se no seu
contato com os livros, como se observa em Histórias do mundo para as crianças (1933), em
que a matriarca, após a leitura de Child’s history of the world, de V. M. Hillyer, afirma: “A
história do mundo é um verdadeiro romance que pode muito bem ser contado às crianças.
Meninos assim da idade do Pedrinho e de Narizinho estou certa de que hão de gostar e
aproveitar bastante” (Idem, p.05). Preocupada com a boa educação de seus netos, Dona Benta
procura tornar acessível o conteúdo das diversas ciências, fazendo dos serões uma forma de
sociabilizar o conhecimento: –“Tenho aqui um livro de Hendrik van Loon [...]. Já li para
vocês a geografia que ele escreveu e agora vou ler este último livro Histórias das invenções
do homem, o fazedor de milagres” (LOBATO, 1988, v.9, p.09).
Na maioria das vezes, o contato das crianças com os livros é intermediado por Dona
Benta. Primeiramente, ela o livro e, depois, conta a história a sua maneira. Em Reinações
de Narizinho, temos a explicação para essa mediação da avó:
A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase
todos os livros para as crianças são muito sem graça, cheios de termos do
tempo do onça ou usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele
português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava por exemplo,
“lume”, lia “fogo”; onde estava “lareira”, lia “varanda”. E sempre que dava
com um “botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele”, “comeu ele” (LOBATO,
1957, p.199-200, grifo nosso).
Com uma linguagem despojada, Monteiro Lobato expõe ao leitor empírico uma
questão de ordem literária: o academicismo da linguagem empregada nas produções artísticas.
Lobato denuncia esse aspecto da literatura infanto-juvenil da época e propõe, por meio da
priorização do modo de leitura de Dona Benta, uma renovação no tratamento lingüístico
conferido às obras para as crianças. Constantemente, notamos a retomada desse assunto nas
falas das personagens, como declara Emília, em Dom Quixote das crianças: “Quem riscou o
161
segundo a de Saavedra? / Fui eu disse Emília. / Por quê? / Porque sou inimiga pessoal
da tal ortografia velha coroca que complica a vida da gente com coisas inúteis. Se um a diz
tudo, para que dois? (LOBATO, 1988, v.9, p.143-4, grifo nosso).
188
Pedrinho, em Fábulas,
também se opõe ao emprego da forma correta de um termo, sugerida pela gramática
normativa: “Por mais que os gramáticos insistam na forma ‘mostrengo’, o povo diz
“monstrengo”. / [...] Pois eu vou adotar o ‘monstrengo’ resolveu Pedrinho. Acho mais
expressivo” (LOBATO, 1988, v.13, p.173).
Com esse método de leitura de Dona Benta, a turma do Sítio tem a oportunidade de
ter contato com obras clássicas, como Pinóquio, Peter Pan, Dom Quixote de la Mancha, The
tempest. Em algumas aventuras, fica subentendido o conhecimento, por parte das crianças,
dos contos de fadas de Perrault, dos Irmãos Grimm e de Andersen; das Mil-e-uma noites; das
fábulas de La Fontaine; das histórias de Alice de Lewis Carroll; da narrativa de Oscar Wilde;
de Rudyard Kipling; e, até mesmo, das produções da Disney. Além da experiência literária, os
serões possibilitam o contato com outras ciências e teorias, como geografia, física, química,
geologia. Notamos, assim, que a transcontextualização daquela imagem presente no
frontispício de Perrault para o universo do Picapau Amarelo torna-se um recurso empregado
pelo escritor brasileiro para possibilitar a abordagem de assuntos considerados, por muitos
intelectuais, como complexos para a mentalidade infantil.
Em Dom Quixote das crianças, um exemplo nítido da acessibilidade aos clássicos
que a leitura à moda de Dona Benta possibilitava às crianças. Manifestando grande interesse
pela história de Dom Quixote, Emília derruba o volume grosso e pesado da estante de livros.
Dona Benta inicia a leitura da obra, mas, ao perceber que a linguagem era erudita, em alto
estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma”, a boneca logo se desanima: “Ché!
exclamou Emília. Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de
esconder com o Quindim. Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor... Não entendo
essas viscondadas, não...” (LOBATO, 1988, v.9, p.144). A avó, consciente da imaturidade
cultural das crianças para apreciarem “as belezas da forma literária”, decide contar a história
de Dom Quixote com as suas palavras. Diante dessa proposta, a boneca recobra seu interesse:
188
Curiosamente, na narrativa “O centaurinho”, em Histórias diversas, encontramos a definição do que é a
“língua de Emília”: “era uma mistura de português, castelhano, gíria, expressões inglesas como ‘all right’, okay’
e ‘mind your business’ (cuide do seu nariz), tudo misturado com caretas, micagens e gestos de todos os tipos,
pinotes, botamentos de ngua, espirros e até ponta pés. A palavra ‘atenção’, por exemplo, fora substituída por
um ponta pé na canela. (LOBATO, 1988, v.15, p.262).
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163
Isso! berrou Emília. Com palavras suas e de Tia Nastácia e minhas
também e de Narizinho e de Pedrinho e de Rabicó. Os viscondes que
falem arrevesados entre eles. Nós que não somos viscondes nem
viscondessas, queremos estilo clara de ovo, bem transparentinho, que não dê
trabalho para ser entendido. Comece (LOBATO, 1988, v.9, p.145).
A proposta de Emília transcende aquela presente na imagem do frontispício, na qual
um “contador de histórias” e seus “ouvintes”. A boneca propõe a participação ativa do
público ouvinte, auxiliando diretamente na “re-apresentação” da obra. Desse modo, a palavra
de todos pode interferir e fazer parte da história. A limpidez do texto torna-se uma exigência
do público como uma forma de assegurar a compreensão da mensagem que se escuta,
possibilitando as participações.
Em Histórias de Tia Nastácia (1937), uma aproximação maior entre a situação
representada no frontispício da obra francesa e as experiências vivenciadas no Sítio do
Picapau Amarelo, pois quem passa a contar boa parte das histórias é Tia Nastácia. Ela ajuda
Dona Benta a cuidar do Sítio, tornando-se responsável pela alimentação e pelos afazeres
domésticos. Representante de uma classe iletrada, Nastácia acredita nas crendices populares e,
devido às suas limitações em relação à cultura letrada, apresenta dificuldades para
compreender alguns assuntos discutidos pelos habitantes do Sítio. Tudo o que não consegue
entender, ela pensa ser em inglês: – “Pois é este Senhor Visconde que está me bobeando [...] o
‘estrupício’ me aparece de livrinho na mão e começa a mangar comigo, com uma história de
‘seno’ e ‘coseno’ e não sei que história de ‘mangartimos’. Eu estou cansada de dizer que o
sei inglês (LOBATO, 1957, p.228).
Interessado em saber mais sobre o folclore “coisas que o povo sabe por boca, de
um contar para o outro” (LOBATO, 1988, v.11, p.08) –, Pedrinho pede a Tia Nastácia que
narre as histórias que ela conhece. Diferentemente dos serões de Dona Benta, em que se
percebe a complexidade do assunto, os serões de Tia Nastácia contam com narrativas de
forma e conteúdo mais simples. Ao término de cada história, o público manifesta-se, fazendo
uma avaliação crítica do que lhes foi apresentado. Nessas discussões, percebe-se que, devido
a formação literária que receberam, as crianças não vêem graça e nem mesmo sentido nas
histórias populares. um constante confronto entre a simplicidade dos contos da tradição
oral e o trabalho estético dos textos literários: – “Eu também acho muito ingênua essa história
de rei e princesa e botas encantadas disse Narizinho. Depois que li o Peter Pan, fiquei
exigente” (Idem, p.14).
164
Pedrinho, diante da crítica de Emília e Narizinho, aponta a importância do estudo
dessas narrativas sob uma perspectiva histórica: “Pois eu gostei da história disse Pedrinho
porque me a idéia da mentalidade do nosso povo. A gente deve conhecer essas histórias
como um estudo da mentalidade do povo” (LOBATO, 1988, v.11, p.14). Outro aspecto
observado pelas crianças diz respeito às transformações sofridas pelas narrativas ao serem
recontadas: “Tudo está sem nem cabeça. Sabe o que me parece? Parece uma história que
era dum jeito e foi se alterando de um contador para outro, cada vez mais atrapalhada, isto é,
foi perdendo pelo caminho o pé e a cabeça” (Idem, p.20).
Ouvir as histórias de Tia Nastácia permite às crianças compreender o processo
criativo das obras literárias. Ao perceberem a similaridade entre o conto da tradição oral e um
conto escrito, as crianças questionam a verdadeira autoria das histórias. Na ocasião, Dona
Benta explica aos seus netos: “Essas histórias são velhíssimas, e correm todos os países, em
cada terra contadas de um jeito. Os escritores o que fazem é fixar as suas versões, isto é, o
modo como eles entendem que as histórias devem ser contadas” (Idem, p.55). Percebemos,
nessa explicação de Dona Benta, uma elaboração muito parecida com aquela apresentada por
Jack Zipes (1983) concernente à distinção entre “conto popular” (tradição oral) e “contos de
fadas” (forma literária). Além disso, constatamos, nessas palavras, a explicitação da
concepção literária que investe na criação do “novo” a partir da remodelação das formas mais
“velhas”.
Sob o olhar das crianças, as modificações realizadas nas narrativas orais geram
prejuízos à compreensão da história, na medida em que partes são suprimidas e outras são
incorporadas sem zelar pela totalidade do conto. Essa postura crítica contrapõe-se à
ingenuidade popular que se limita à reprodução: “Que é que você entende por pássaros de
pluma, Nastácia? / Não sei, menina respondeu a preta. A história eu ouvi assim e por
isso conto assim” (Idem, p.31). Em O poço do Visconde, Narizinho censura Tia Nastácia por
ter dormido durante todo o serão do Visconde sobre geologia e obtém como resposta: “Pra
que ouvir, menina? Não entendo nada mesmo...” (LOBATO, 1988, v.10, p.19). Observamos o
contraste entre as posturas de Narizinho e de Tia Nastácia, pois enquanto a primeira,
juntamente com Pedrinho e Emília, entusiasma-se com novos conhecimentos, a segunda,
limita-se a suas dificuldades. Verificamos, assim, o incentivo à aprendizagem, à busca do
conhecimento tanto na teoria quanto na prática e severa crítica à preguiça intelectual.
Os serões no Sítio tornam-se uma forma de permitir o contato das crianças com o
popular, com os clássicos e com as produções mais contemporâneas, favorecendo a tomada de
165
uma postura crítica, a percepção das formas literária e o desenvolvimento do gosto literário
pessoal. Em Peter Pan, após a leitura da parte inicial da história do menino que não queria
crescer,
Narizinho observou que as histórias modernas são mais interessantes
que as antigas.
Estou notando isso, vovó disse ela. Nas histórias antigas, de
Grimm, Andersen, Perrault e outros, a coisa é sempre a mesma um rei,
uma rainha, um filho de rei, uma princesa, um urso que vira príncipe, uma
fada. As histórias modernas variam mais. Esta promete ser muito boa. Peter
Pan está com jeito de ser um diabinho levado da breca (LOBATO, 1988, v.5,
p.132).
Questões literárias são discutidas pelas crianças tornando-se uma forma de também
despertar o leitor empírico para esses aspectos constitutivos das obras. Podemos dizer,
portanto, que o antigo costume de reunir-se para “ouvir histórias” é posto a serviço de um
novo projeto literário com vistas a criar novos planos de sentido. Se na obra de Perrault
pretende-se indicar, por meio do frontispício, o retorno à tradição popular na produção de
Lobato, os serões são um meio de associar a aprendizagem à imaginação, tornando acessível à
mentalidade infantil até mesmo os conhecimentos complexos. Essa sua percepção a respeito
do modo como as crianças eram escolarizadas evidencia-se em uma carta a Viana
189
, em 15
de agosto de 1934. Motivado pela recepção de Emília no país da gramática, Lobato declara:
“A minha Emília está realmente um sucesso entre as crianças e os professores. [...] Mas a
crítica de fato não percebeu a significação da obra. Vale como significação de que
caminhos novos para o ensino de matérias abstratas(NUNES, 1986, p.96, grifo do autor).
Apesar de ocupar a posição de editor e de ter uma visão mercadológica do livro, verificamos a
preocupação e a consciência de Monteiro Lobato em relação à aprendizagem e à formação
escolar das crianças. Em suas histórias, evidencia-se a filiação ao didático, ao lúdico, ao
ensino; contudo, percebemos a eficácia de sua proposta pelo apelo à imaginação, à fantasia e
ao sonho. A re-apresentação dos serões, ocasiões que primam pela coletividade, evidencia o
posicionamento de Lobato diante do processo ensino-aprendizagem das crianças brasileiras,
materializando a concepção do escritor de que a junção das ciências com a imaginação
possibilita de maneira mais agradável a formação do pequeno leitor.
189
Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951), membro da Academia Brasileira de Letras. Lobato foi editor e
conselheiro de Viana na publicação de seu primeiro livro Populações meridionais do Brasil (1920). (Cf.
NUNES, 1986, p.299).
166
***
Neste capítulo, o percurso pelas cartas e artigos de Monteiro Lobato permitiu-nos a
compreensão do seu pensamento a respeito da formação literária de um escritor e do processo
criativo de uma obra. Transparente em suas idéias, Lobato aborda diversos assuntos em seus
textos, possibilitando, por meio da atmosfera maravilhosa, a reflexão crítica do pequeno
leitor. Assim, consciente das debilidades dos livros destinados a esse público específico,
Lobato propõe, com a criação do Sítio do Picapau Amarelo e de sua turma, uma re-
apresentação dos contos de fadas, combinando elementos próprios com as características
basilares dessa modalidade literária. Com esse procedimento criativo, baseado no jogo
intertextual, Lobato cria o “novo” a partir do “velho”, rompendo com as barreiras do
conservadorismo vigente na literatura infantil.
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desejo de Monteiro Lobato de ver o Brasil apto a se apresentar junto às demais
nações como um país capaz de produzir uma arte autenticamente sua, de ter a
firmeza de assumir sua essência nacional, assim como “o francês tem coragem de ser francês,
e o inglês a de ser inglês, e o alemão a de ser alemão”, manifesta-se ao longo de toda a sua
produção literária. Expressando o seu inconformismo irreverente em face da ausência de uma
identidade nacional – “Ai! Quando nos virá a esplêndida coragem de sermos nós mesmos [...]
Quando? Quando?” –, o escritor assume, desde a sua juventude, uma posição crítica em
relação à padronização do comportamento e das idéias.
Essa insatisfação com as condições do país impulsiona o seu engajamento nas
questões de seu tempo. Lobato luta pelo petróleo, dedica-se à questão sanitária, combate o uso
inapropriado da terra, opõe-se às queimadas, expande o acesso aos livros e eleva o nível de
sua materialidade por meio de seus empreendimentos editoriais, preocupa-se com a formação
literária das crianças, produzindo uma literatura que estimula a imaginação infantil, enfim,
Lobato procura, de várias maneiras, mostrar à sociedade brasileira a possibilidade de assumir
a sua individualidade e de construir uma identidade com elementos próprios, sem necessitar
“recender a produtos importados”.
Concentrando-nos mais detidamente na atuação de Monteiro Lobato como escritor
de textos para crianças, foi-nos possível observar, no decorrer deste trabalho, a insatisfação do
auitor em relação à inadequação da literatura destinada às crianças em seu tempo. Com um
olhar crítico sobre essas produções, compostas essencialmente por traduções de clássicos
estrangeiros, Lobato denuncia incisivamente as configurações “espinhentas e impenetráveis”
da linguagem empregada nesses livros. Com a intenção de reverter esse quadro negativo no
âmbito cultural brasileiro de sua época, o escritor publica, em 1920, a obra A Menina do
Narizinho Arrebitado, iniciando um novo trajeto da história da literatura infanto-juvenil
brasileira.
Num espaço que se pretende tipicamente nacional, chamado de tio do Picapau
Amarelo, Lobato cria as mais diversificadas aventuras que contam, na maioria das vezes, com
a participação de personagens clássicas da literatura. Essa forma de criação literária,
fundamentada na relação dialógica com outros textos da tradição literária, é considerada por
muitos críticos lobatianos como um aspecto que confere modernidade à sua obra. Apesar da
constante referência a esse procedimento criativo, verificamos, no início de nossa pesquisa, a
ausência de um estudo que tratasse de modo consistente da relação entre a produção de
Lobato e os contos de fadas de Perrault.
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169
Na tentativa de preencher essa lacuna, dedicamo-nos à análise do modo como são
construídas as personagens dos contos de fadas de Perrault e ao exame do processo de
transcontextualização dessas figuras ficcionais para o universo literário de Monteiro Lobato,
com o objetivo de identificar as adaptações e/ou transformações realizadas pelo escritor
brasileiro nas personagens emprestadas de cinco narrativas de Contes de ma mère l’oye.
Num primeiro momento, foi-nos possível tratar da voga dos contos de fadas durante
o reinado de Luís XIV. Seduzidos pelo encanto do “Era uma vez...”, diversos escritores
passam a compor seus contos de fadas uma forma literária fundamentada na apropriação de
elementos populares e empenhada na apresentação de valores e comportamentos da
aristocracia e da burguesia francesas.
Constatamos que a publicação dos contos de fadas de Perrault está inserida num
período em que vigora um movimento literário alicerçado na imitação dos modelos da
antigüidade greco-romana. Defensor dessa volta aos clássicos como forma de criação literária,
Boileau assume o papel de protagonista, configurando-se como líder dos antigos na Querelle
des anciens et des modernes, opondo-se diretamente à Perrault, representante dos
“modernos”, que, por sua vez, rejeita o enaltecimento exagerado do antigo e defende a
valorização do nacional e do maravilhoso judaico-cristão.
É em meio a esse contexto de disputa acadêmica que se a produção da coletânea
Contes de ma mère l’oye (1697), obra que opera uma relativização irônica dos parâmetros
literários amparados na “autoridade” da antigüidade clássica, revelando a consciência de
Perrault quanto à necessidade de estabelecer uma continuidade crítica em relação ao arquivo
literário. Ciente da exigência de reinvenção do gênero, Perrault transfigura os contos
populares em uma “manifestação moderna”, tornando-se o precursor de uma nova tendência
literária que inunda a corte francesa com seres mágicos.
Com as análises dos cinco contos selecionados da obra Contes de ma mère l’oye,
verificamos que os elementos estruturais da narrativa assumem uma configuração
generalizante, conferindo um caráter universalizante às histórias. A despeito dessa forma de
apresentação, os contos de Perrault não deixam de ficcionalizar os problemas relacionados à
realidade histórico-social da França do século XVII. Dessa forma, podemos dizer que
Perrault, homem engajado nas questões de seu tempo, soube problematizar o modo de vida da
sociedade em que estava inserido, sem perder de vista a dimensão universalizante de suas
histórias.
170
Tendo em vista o processo de construção das personagens dos contos de fadas de
Perrault, passamos, à análise das narrativas de Monteiro Lobato. Inicialmente, traçamos um
breve panorama da literatura infanto-juvenil brasileira que antecede às publicações de Lobato,
retomando as principais obras e autores que a caracterizam nesse momento inicial.
Nessas análises, procuramos verificar a maneira como Lobato se posiciona perante a
tradição literária e a forma como assimila e recombina esses elementos com vistas à criação
de uma obra nova. A participação das personagens de Perrault ocorre, essencialmente, em três
livros de Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, O Picapau Amarelo e Histórias diversas.
Nessas obras, Lobato explicita a necessidade de renovação das “histórias emboloradas” por
meio da representação da insatisfação dessas próprias personagens com a mesmice de suas
histórias. A constante referência a esse sentimento constitui não uma maneira de colocar
em prática o projeto lobatiano de renovação literária, mas também um modo de envolver o
leitor e de seduzi-lo a desejar, assim como a turma do Sítio, essa transformação do Reino
Encantado.
Verificamos, portanto, que Lobato não descarta e nem menospreza a tradição literária
infantil, ao contrário, vale-se desse acervo para compor a sua própria obra. Sob essa óptica, as
histórias da tradição são modificadas e suas personagens adquirem novas características. Com
essa atualização, Monteiro Lobato vai além da simples reprodução dessas narrativas,
investindo num processo de recriação fundamentado no “intercâmbio de mundos”, exigindo
do leitor uma leitura capaz de sobrepor “ao prazer do reconhecimento do texto-base o prazer
do desvendamento da metáfora e do símbolo, bem como o arsenal prazer do entendimento da
recriação do conteúdo pela expressão” (DISCINI, 2000, p.257).
Com base nas conclusões obtidas nas análises dos contos de Lobato, empreendemos
uma análise teórica a respeito do procedimento criativo adotado por Monteiro Lobato. Esse
estudo partiu do pressuposto teórico, formulado por Maingueneau (2006, p.163), de que “todo
ato de posicionamento implica um certo percurso do arquivo literário, a redistribuição
implícita ou explícita dos valores vinculados com as marcas legadas por uma tradição”. Para o
desenvolvimento desta proposta, procuramos relacionar os conceitos firmados nas cartas e
artigos escritos por Lobato com os procedimentos criativos explorados em sua ficção, a fim de
delinear o seu “posicionamento” e a sua concepção do fazer literário.
Da leitura desse material, cumpre destacar a ocorrência de expressões tais como
“saber combinar”, “assimilar processos” e coar”, que indicam uma concepção literária
pautada no exercício de tornar próprio o alheio. Por meio da paródia e da execução de novas
171
combinações, Lobato promove uma continuidade crítica da forma dos contos de fadas,
criando uma literatura que “estabelece a diferença no coração da semelhança” (HUTCHEON,
1985, p.19).
A despeito de priorizar a criação do novo a partir de formas velhas, Lobato deixa
transparecer uma plena convicção da necessidade de individualizar o seu estilo literário.
Cansado da condição servil da cultura brasileira, Lobato converte a busca por um estilo
próprio e a oposição à “uniformização” do pensamento no leitmotiv da sua produção literária.
Ao recuperar a tradição dos contos de fadas e ao investir genericamente nessa
modalidade literária, notamos que Lobato recria e re-apresenta os elementos característicos
dessa forma. Inicialmente, analisamos o modo como o recurso do maravilhoso é colocado em
prática na criação das aventuras situadas no Sítio do Picapau Amarelo, propiciando uma
abertura temporal e espacial para a ocorrência de feitos extraordinários no interior das
histórias.
Das incursões no maravilhoso, merece destaque a freqüente utilização do faz-de-
conta por parte de Emília, suscitando suspeitas sobre sua verdadeira identidade e levantando a
hipótese de que a boneca seria uma fada. Ao construir essa possibilidade de leitura sobre a
personagem, Lobato transcontextualiza e reinventa essa figura tão característica da tradição
dos contos de fadas, re-apresentando-a em um contexto literário nacional. Nessa
transposição, Lobato subverte os estereótipos que permeiam a concepção tradicional de uma
figura feérica, apresentando Emília como uma personagem interesseira, egsta, malcriada,
teimosa, birrenta e orgulhosa. Por meio dessa postura subversiva, Lobato inaugura um
procedimento criativo inusitado na literatura infantil brasileira, estabelecendo uma ruptura
com as soluções maniqueístas e superficiais dos modelos tradicionais e propondo, em seu
lugar, a imagem de uma fada marcada pela ambigüidade e pela complexidade.
Finalmente, empreendemos uma apreciação do modo como Lobato recupera em suas
narrativas a tradição dos serões, que é apresentada como uma situação propícia à socialização
do conhecimento. Priorizando a figura de Dona Benta como intermediária do contato das
crianças com a literatura e com as ciências em geral, Lobato viabiliza a possibilidade de o
leitor empírico apreender o processo de construção literária e de aprofundar o seu senso
crítico em relação às questões sociais e políticas de seu tempo. Ao conciliar a fantasia literária
com a transmissão de conhecimentos, o escritor coloca em prática uma técnica agradável de
formação do pequeno leitor.
172
Estabelecendo uma comparação entre a trajetória dos escritores estudados nesse
trabalho, Charles Perrault e Monteiro Lobato, é possível enumerar uma série de confluências
que permeiam as suas atividades criativas. Inicialmente, cumpre salientar a atuação decisiva
que cada autor exerce no campo literário infantil de seu país: Perrault embora não tenha
escrito especificamente para a criança, situa-se num período histórico em que se começa a
firmar uma concepção diferenciada da infância, condenando, no prefácio de seus Contes en
vers, a atitude dos pais de impor aos seus filhos a apreciação de “verdades sólidas e desnudas
de todos os enfeites” e de fazer “com que as engulam” por meio de narrativas aliciantes e
“proporcionais à fraqueza de sua idade” (PERRAULT, 2007, p. 15). Lobato, por sua vez,
institui a necessidade de se adequar a literatura infantil à mentalidade das crianças,
eliminando todas as complicações estilístico-literárias incompreensíveis para “o cerebro ainda
não envenenado das crianças”.
Em segundo lugar, convém destacar o posicionamento crítico que os dois assumem
em relação à tradição literária vigente em sua época, investindo na reinvenção do gênero
infantil e na renovação das histórias por meio da valorização da identidade nacional e dos
recursos próprios do maravilhoso. Ambos os autores manifestaram um nítido
comprometimento com as questões de seu tempo, problematizando, de maneira afinada ao
gosto do leitor infantil, o modo de vida das sociedades em que estavam inseridos.
Enfim, a combinação entre o Sítio do Picapau Amarelo e os Contos da Mamãe Ganso
instaura um processo dialético que opera uma nacionalização dos contos de fadas de Perrault,
ao mesmo tempo em que universaliza a criação ficcional de Lobato, possibilitando uma
convivência ímpar entre as personagens clássicas e as brasileiras.
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______. Mundo da lua e Miscelânea. 11.ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. (Obras completas
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Lobato, v.5).
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Monteiro Lobato, v.5).
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