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SÉRGIO MIGUEL FRANCO
ICONOGRAFIAS DA METRÓPOLE:
GRAFITEIROS E PIXADORES
REPRESENTANDO
O CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em
Arquitetura e Urbanismo
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PROJETO, ESPAÇO E CULTURA
ORIENTADORA: PROFª. DRª. VERA MARIA PALLAMIN
JUNHO DE 2009
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Franco, Sérgio Miguel
F825i Iconografias da metrópole: grafiteiros e pixadores
representando o contemporâneo / Sérgio Miguel Franco. --São
Paulo, 2009.
175 p. : il.
Dissertação (Mestrado - Área de Concentração: Projeto
Espaço e Cultura) - FAUUSP.
Orientadora: Vera Maria Pallamin
1.Graffiti 2.Arte contemporânea 3.Mercado de arte
4.Arte na paisagem urbana I.Título
CDU 7.036
3
IN MEMORIAN
A Walter Benedito Miguel, que em sua conduta de humildade
pungente me ofertou o aprendizado sobre a sociabilidade do
homem simples.
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AGRADECIMENTOS
Ofereço esta dissertação à Satiko Aramaghi, que na coordenação do projeto pedagógico do CEFAM de Jales, estabeleceu um pro-
grama de cunho republicano que mobilizou em mim a disposição crítica sem intermédio do clichê afetivo. Não poderia dizer que
somos amigos, muito menos que influenciou na minha pesquisa, mas me ofereceu um espelho próspero quando possuía 15 anos
de idade, me abrindo para uma perspectiva de pertencimento ao mundo não baseada restritamente à esfera privada. Sem ela e os
princípios internalizados durante a minha adolescência, permaneceria nos grotões do Estado de São Paulo, numa região em que
vigora o provincianismo arcaico.
Todavia, o produto discursivo aqui produzido não se apresentaria sem a dedicação e o zelo, imprescindíveis, da minha orientadora
Vera Pallamin. Agradeço pela paciência com que leu meu texto, nem sempre satisfatório quanto ao padrão formal da língua; pelos
atendimentos que apontaram os erros estruturais e banais que cometia, sempre nevrálgicos para obter a consistência metodológica;
e por me desafiar a uma posição crítica. Cada frase escrita aqui, fora exponencialmente melhorada, pelos momentos de troca inte-
lectual partilhado com ela. À Vera, o meu agradecimento é duradouro e inalterável.
No processo de construção desta pesquisa, contei ainda, com a generosidade de Sérgio Miceli, que leu atentamente o meu texto
quando era seu aluno na pós-graduação e em seguida na qualificação do mestrado. Sem ele não poderia manejar de forma inventiva
a teoria, e não assimilaria a leitura de Pierre Bourdieu que percorre toda a pesquisa. A privilegiada troca intelectual que partilhei em
suas aulas, e no grupo de estudos de Sociologia da Cultura que se seguiu a elas, foi inestimável para o resultado desta investigação.
Neste grupo, recebi apontamentos pertinentes e incisivos para a minha dissertação, a idéia que absorvi de rebatimentos do grafite no
campo da arte foi uma destas contribuições. Desta maneira, sou grato à Amélia Siegel Corrêa, ao Fabio Cardoso Keinert, ao Fernando
Pinheiro, a Juliana Neves, ao Flávio Moura, e detenho admiração particular por Lilian Alves Sampaio, que foi uma crítica ferina de
meu trabalho e neste processo pude me superar.
Uma das pessoas com quem faço a interlocução intelectual, entusiasta e crítica, não faz parte do âmbito público: trata-se de Daniela
Motisuke. A ela agradeço sem restrições, companheira com quem divido as horas de bonança e de tormenta, e que faz parte da
minha vida afetiva de forma intensa. Sem ela sequer teria entregado esta pesquisa com o cuidado na diagramação visual do trabalho
de que ela foi inteira responsável.
Entretanto, ofereço esta pesquisa principalmente para os grafiteiros e pixadores que dela fizeram parte. Foram eles que me estimula-
ram a pensar nas questões aqui investigadas e por quem detenho profunda admiração. A mobilização de espírito partiu da sensibili-
dade gerada por seus trabalhos. É para eles que sempre olhei quando escrevi este texto, almejando tê-los como interlocutores. Em
especial, agradeço aqueles que me cederam as entrevistas e imagens dos trabalhos: Binho Ribeiro, Celso Gitahy, Daniel Medeiros
(Boleta), Eymard Ribeiro, Jerry Batista (amigo de Niggaz), Paulo Ito, Marcelo Cidade, Rafael (Sustos), Rui Amaral, Spencer Valverde
(Sujo) e Vine (amigo de Niggaz). Sem eles, a pesquisa não possuiria as informações em primeira mão aqui tratadas. Além destes,
sou grato a Arthur Lara, presente na minha qualificação de mestrado, e dedico esta dissertação a todos aqueles com quem travei
contato ao longo da minha incursão neste mundo: Akeni, Caroline Pivetta da Mota, Cela, Cris (OPNI), Ciro, Djan (Cripta), ‘Dinho’,
Gonçalo, ‘Iaco’, José Augusto Capela (Zezão), ‘Ninguém Dorme’, ‘Não’, ‘Nunca’, ‘Onesto’, Pato, Rafael (Pixobomb), Remy Uno
(L’artmada), ‘Rico’, ‘Sliks’, ‘Tinho’, ‘Toddy’ (OPNI) e Val (OPNI).
Sou grato também, aos galeristas e agentes: Alexandre Gabriel (Fortes Vilaça), Baixo Ribeiro (Galeria Choque Cultural), Marcos
Gallon (Galeria Vermelho) e William Baglione (Família Baglione), muito gentis e abertos, sem eles não teria as informações sobre os
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empreendimentos comerciais no mundo da arte.
Além dos grafiteiros, detenho admiração e gratidão pelos fotógrafos que me cederam as imagens da cidade presentes no mestrado:
Choque Fotos, Gal Oppido, Ignacio Aronovich, Louise Chin, Ludovic Carème, e Rogério Canella. Tais imagens permitiram a presença
da metrópole de São Paulo na minha pesquisa e a enxergar para além de um mero suporte.
Aos revisores José Teixeira, Marília Riso e Karina Leitão, os meus sinceros reconhecimentos pelas contribuições nesta pesquisa. Ao
Will Moritz, pela tradução do Resumo. À Alessandra Cestac pela capa desta dissertação, que fomenta os leitores a abri-la.
Desejo ainda consignar meus agradecimentos para Neusa Miguel Centeno Franco, Sérgio Aparecido Franco, Tiago Miguel Franco
e Fernanda Miguel Franco: minha família. Sempre presentes ao longo da vida para me dedicar afeto e compreensão. E ao Paulo
Motisuke e Maria José Motisuke, da minha família estendida, pelo suporte também ofertado.
Aos amigos e colegas que contribuíram com conversas pertinentes e descontraídas ao longo de todo o período, minha inteira grati-
dão: André, Alan, Alessandra Cestac, Ari Disade, Benjamin Seroussi, Bia Tone, Camila, Carla Zaccagnini, Celine, Cris Cortilio, Cris-
tiano Conebo, Daniel Veloso, Dário, Denis Molino, Derlon Almeida, Eduardo Galli, Emerson, Fernando, François Ghislain, Gonçalo,
Gordo, Guilherme (Fique Vivo), Guilherme Petrella, Heloisa Diniz, Ice Blue, Isa Tsukumo, Janaina, José Baravelli, José Paulo Gouvêa,
Lucas Fretin, Maíra Ramos, Mano Brown, Mariana Zanetti, Marisa Ohashi, Mindu, Pablo Martins, Paraná, Philippe Ariagno, Pródigos
(grupo de Rap), Renata, Roga, Rodrigo, Sébastien Kopp, Rubens Mano, Tatiana Ferraz, Tais Tsukumo, Tatu (Lanchonete e Restaurante
Califórnia), Tiago, Shil, Veridiana, e Vinicius Spira.
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SUMÁRIO
Agradecimentos ...................................................................................................................................................................... 4
Resumo .................................................................................................................................................................................. 8
Resumen ................................................................................................................................................................................ 9
Lista de imagens ................................................................................................................................................................... 10
Introdução ............................................................................................................................................................................. 15
O ensejo de um estranhamento ........................................................................................................................................ 19
Grafite e ‘Pixação’: duas práticas de um mesmo sujeito .................................................................................................... 20
Uma cronologia contada pelos praticantes ........................................................................................................................ 23
Cidade: formadora e formada pelos artistas ...................................................................................................................... 24
Os pioneiros ......................................................................................................................................................................... 27
Nova Iorque, década de 1970 ........................................................................................................................................... 28
Os Pioneiros na virada dos anos 1980 ..............................................................................................................................32
A reivindicação do nome Grafite em litígio ....................................................................................................................... 33
Rebatimento na arte contemporânea: a situação em Nova Iorque ....................................................................................... 38
Old School ............................................................................................................................................................................ 47
A raiz mais próspera ........................................................................................................................................................ 47
Os Gêmeos: lúdicos, divertidos e despretensiosos ........................................................................................................... 49
Tinho: um grafite que faz crítica social .............................................................................................................................. 55
Speto: a ilustração como base da formação ...................................................................................................................... 57
Onesto: o cartoon, personagens que se movimentam pela cidade ..................................................................................... 60
Binho: mestre no gênero hip hop ...................................................................................................................................... 63
Herbert/Cobal e a Família Baglione .................................................................................................................................. 64
New School .......................................................................................................................................................................... 71
A geração do Beco Escola / Aprendiz ............................................................................................................................... 72
A Pixação consolidada .....................................................................................................................................................79
Grafiteiros ........................................................................................................................................................................ 84
“São Paulo É do Grafite?”: a expressão e sua transgressão no território da metrópole e no “Cubo Branco” ........................... 127
“São Paulo É do Grafite”? ............................................................................................................................................... 127
Artistas – grafiteiros e usurpadores ................................................................................................................................ 138
Choque ‘cultural’, e de gestão, no campo da arte ........................................................................................................... 139
Governo: controle e repressão ........................................................................................................................................ 142
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ONGs: servidoras ........................................................................................................................................................... 146
A pixação na Bienal: inserções diversas de 2002 a 2008 ..................................................................................................... 149
Preâmbulo metodológico ............................................................................................................................................... 149
Pixadores na bienal: da despretensão ao rebatimento inescapável ................................................................................... 150
Conclusão .......................................................................................................................................................................... 163
Bibliografia ......................................................................................................................................................................... 169
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RESUMO
Esta pesquisa aborda a produção de grafite da década de 1970 aos anos 2000, e a pixação entre o seu surgimento (anos 1980) e
a atualidade. Concernente ao grafite, o trabalho debruça-se sobre o gérmen da expressão na Nova Iorque da década de 1970 para
chegar à metrópole de São Paulo. No que tange à pixação, circunscreve-a na metrópole de São Paulo por acreditar que seja endêmica
deste espaço. Busca analisar as problemáticas que mobilizaram os agentes do campo da arte durante este período, e a consonância
do grafite e da pixação com este âmbito mais vasto que àquele partilhado estritamente pelos interventores urbanos. Numa busca
pelo nomos engendrador, esta dissertação apresenta os pressupostos técnicos, processuais e comportamentais formulados pelos
integrantes do grafite e da pixação, e exigidos para que estas práticas sejam consideradas enquanto tais. Mas, diferente de um recorte
restrito, investiga a comunhão subjacente entre ambas: tidas como distintas, porém praticadas, muitas vezes, pelo mesmo sujeito.
Ao final conclui que, ao serem integradas, constituem um conjunto de experiências formativas relevantes para o artista que possui,
na cidade, seu tema e suporte.
Nossas análises desdobram-se em três grandes gerações de artistas. A Pioneira, que tem em Alex Vallauri o grande expoente; a Old
School, mais encontrada com a gênese da expressão do grafite; e a New School, que acrescentou uma estilização abstrata às inter-
venções urbanas. Em cada uma destas gerações, pontuamos as obras e as biografias de alguns artistas, que permitem explorarmos
as trajetórias, os estilos particulares e as regiões limítrofes desta produção artística.
Nestas gerações de artistas, examinamos ainda, as lutas travadas no interior do campo, bem como os embates provenientes da par-
ticipação de instituições não-governamentais, órgãos governamentais e galerias de arte, na assimilação e no rechaço da produção.
No que diz respeito a estas relações, será analisada a presença da pixação nas Bienais de Arte de São Paulo (edições de 2002, 2004,
2006 e 2008), detendo-se na ambivalência, entre recusa e absorção, que existe sobre a prática.
Palavras Chaves: Grafite, Arte contemporânea, Mercado de arte, Arte na paisagem urbana.
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RESUMEN
Esta investigación aborda la producción de grafiti desde la década de 1970 hasta los primeros años del nuevo milenio y la “pixação”
(pintada) entre su surgimiento (años de 1980) y la actualidad. En lo que concierne al grafiti, el trabajo se enfoca en el germen de
esta expresión en la Nueva York de la década de 1970, emprendiendo un recorrido que termina en la metrópolis de São Paulo. A su
vez, la “pixação” (pintada) se circunscribe a la metrópolis de São Paulo, puesto que el autor reconoce su carácter endémico en este
espacio. El trabajo busca analizar las problemáticas que han movilizado durante este periodo histórico a los agentes de la esfera de
las artes visuales y la consonancia del grafiti y la “pixação” (pintada) con este ámbito artístico, que se revela más amplio que aquel
compartido estrictamente por los interventores urbanos. En una búsqueda por el nomos engendrador, esta disertación presenta los
supuestos técnicos, procedimentales y comportamentales formulados por los integrantes del grafiti y de la “pixação” (pintada) y
exigidos para que estas prácticas se consideren como tales. Sin embargo, a diferencia de un recorte más restrictivo, investiga la
comunión subyacente entre ambas: consideradas normalmente como distintas, no obstante, practicadas muchas veces por el mismo
sujeto. Finalmente, se concluye que, al ser integradas, constituyen un conjunto de experiencias formativas relevantes para el artista
cuyo tema y soporte es la ciudad.
Nuestros análisis se extienden a tres grandes generaciones de artistas. La pionera, que tiene en Alex Vallauri a su gran exponente; la
Old School, que se encuentra más en la génesis de la expresión del grafiti; y la New School, que ha añadido una estilización abs-
tracta a las intervenciones urbanas. En cada una de estas generaciones, señalamos las obras y biografías de algunos artistas que nos
permiten explorar las trayectorias, los estilos particulares y las zonas limítrofes de esta producción artística.
Examinamos aún en estas generaciones las luchas que ocurren al interior del ámbito, así como los embates provenientes de la
participación de instituciones no gubernamentales, órganos gubernamentales y galerías de arte en la asimilación y en el rechazo de
la producción. En lo que atañe a estas relaciones, se analizará la presencia de la “pixação” (pintada) en las Bienales de Arte de São
Paulo (ediciones de 2002, 2004, 2006 y 2008), concentrándose en la ambivalencia entre el rechazo y la asimilación que se observa
sobre esta práctica.
Key Words: Grafiti, Arte contemporánea, Mercado de arte, Arte en el paisaje urbano.
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LISTA DE IMAGENS
Imagem 1: Panorâmica de São Paulo - Foto de Gal Oppido, 2009 ..............................................................................................................15
Imagem 2: Exposição “Street Art”, Tate Modern, Londres, 2008 .................................................................................................................18
Imagem 3: Cartaz da 25ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, 2002 ................................................................................................18
Imagem 4: Fabrice Gygi, 2002. “Vigie” ....................................................................................................................................................18
Imagem 5: Stayhigh 149. Imagem do artista e suas tags ...........................................................................................................................21
Imagem 6: pixadores descendo pela empena cega de um edifício com equipamento precário. Foto de Choque Fotos ..............................22
Imagem 7: Moinho Santo Antonio com silo pixado pelos grupos da grife RGS. Foto de Gal Oppido, 1999 ..................................................22
Imagem 8: Ernest Pignon-Ernest, 1978. “Rimbaud dans Paris” ..................................................................................................................29
Imagem 9: Michael Halsband, Nova Iorque, 10 jul 1985. “Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat”...............................................................44
Imagem 10: Jean Michel Basquiat, 1982. “Dos Cabezas” ..........................................................................................................................44
Imagem 11: Jean Michel Basquiat, 1983. “Mona Lisa” ..............................................................................................................................44
Imagem 12: Andy Warhol & Jean Michel Basquiat, 1984-85. “Monster Meat” ...........................................................................................44
Imagem 13: Andy Warhol. 1984. “David”. Exposição The New Portrait ....................................................................................................... 45
Imagem 14: Os Gêmeos, 2009. Exposição “Street Art”, Tate Modern, Londre, 2008. ..................................................................................46
Imagem 15: Os Gêmeos, s/d. (Catálogo exposição Vertigem, 2009) ..........................................................................................................49
Imagem 16: Os Gêmeos, s/d. (Catálogo exposição Vertigem, 2009) ..........................................................................................................49
Imagem 17: Os Gêmeos, s/d. (Catálogo exposição Vertigem, 2009) ..........................................................................................................50
Imagem 18: Os Gêmeos, s/d. (Catálogo exposição Vertigem, 2009) ..........................................................................................................50
Imagem 19: Os Gêmeos, s/d. (Catálogo exposição Vertigem, 2009) ..........................................................................................................51
Imagem 20: Os Gêmeos, s/d. (Catálogo exposição Vertigem, 2009) ..........................................................................................................51
Imagem 21: Os Gêmeos, 2008. Painel ligação Leste-Oeste, São Paulo ......................................................................................................54
Imagem 22: Bomb de Tinho (Fonte: MANCO e NEELON, 2005) .................................................................................................................55
Imagem 23: Tinho, 2008. Óleo sobre tela ..................................................................................................................................................56
Imagem 24: Tinho, 2008. Exposição Brazilian Street Art ............................................................................................................................. 56
Imagem 25: Tinho, s/d. Painel no Clube Municipal do Jd. São Paulo .........................................................................................................56
Imagem 26: Speto, s/d. Decoração ...........................................................................................................................................................58
Imagem 27: Speto, 2007. Exposição no Memorial da América Latina, São Paulo ..............................................................
.........................58
Imagem 28: Speto, s/d. Grafite..................................................................................................................................................................59
Imagem 29: Onesto, s/d. Scketchbook ......................................................................................................................................................61
Imagem 30: Onesto, s/d. Ônibus ...............................................................................................................................................................61
Imagem 31: Onesto, 2009. Dormentes ......................................................................................................................................................62
Imagem 32: Onesto, s/d. Grafite na Rua da Consolação .............................................................................................................................62
Imagem 33: Herbert, 2008. Exposição Transfer ..........................................................................................................................................65
Imagem 34: Herbert, 2008. Exposição Transfer ..........................................................................................................................................65
Imagem 35: Ludovic Carème, 2009. Ensaio Fotográfico ............................................................................................................................66
Imagem 36: Ludovic Carème, 2009. Ensaio Fotográfico ............................................................................................................................66
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Imagem 37: Painel coletivo (Herbert, Os Gêmeos, Vitché), 1999 ...............................................................................................................67
Imagem 38: Herbert, 2008. Intervenção em Copenhagem, Dinamarca .......................................................................................................68
Imagem 39: Herbert, 2008. Intervenção em Copenhagem, Dinamarca .......................................................................................................68
Imagem 40: Herbert, 2005. “Acima de mim”, Sâo Paulo ...........................................................................................................................69
Imagem 41: Herbert, s/d. Intervenção em escada, São Paulo .....................................................................................................................69
Imagem 42: Herbert, 2008. Intervenção em Lisboa, Portugal .....................................................................................................................69
Imagem 43: Folheto de divulgação Grafite no Bank Boston, 2003 ..............................................................................................................73
Imagem 44: Painel coletivo, 2005. Beco do Batman, Vila Madalena, São Paulo .........................................................................................74
Imagem 45: Folheto de divulgação Grafite no Bank Boston, 2003 ..............................................................................................................77
Imagem 46: Pixo do grupo Tumulos, 2006 ................................................................................................................................................80
Imagem 47: Pixadores em ação em edifícios da região central, São Paulo, 2007 ........................................................................................83
Imagem 48: Pixadores em ação em edifícios da região central, São Paulo, 2007 ........................................................................................83
Imagem 49: Pixadores em ação em edifícios da região central, São Paulo, 2007 ........................................................................................83
Imagem 50: Boleta, 2006. Pássaro ............................................................................................................................................................85
Imagem 51: Pixo “Lixomania”, s/d. Elevado Costa e Silva (Minhocão), São Paulo ......................................................................................86
Imagem 52: House of Érika Palomino, São Paulo, 2006 .............................................................................................................................87
Imagem 52.1: Alessandra Cestac, 2006. “Nua na rua”. Foto de João Wainer .............................................................................................87
Imagem 53: Boleta, 2009. “O inferno é aqui” ............................................................................................................................................89
Imagem 54: Boleta, 2007. Grafite no Morro do Pavão, Rio de Janeiro ........................................................................................................90
Imagem 55: Boleta, 2006. Grafite na cracolândia, São Paulo .....................................................................................................................90
Imagem 56: Spencer, 2001. Diário do artista .............................................................................................................................................93
Imagem 57: Spencer, 2005. Grafite na Vila Buarque, São Paulo .................................................................................................................94
Imagem 58: Spencer, 2006. Desenho a nanquim ......................................................................................................................................94
Imagem 59: Spencer, 2005. Grafite em pilar do Elevado Costa e Silva (Minhocão), São Paulo ...................................................................94
Imagem 60: Spencer, 2005. Grafite na Vila Buarque, São Paulo .................................................................................................................95
Imagem 61: Spencer, 2005. Carrinho de catador, São Paulo ......................................................................................................................96
Imagem 62: Castilho da Rua Apa, São Paulo. Foto de Gal Oppido, 2009 ...................................................................................................96
Imagem 63: Spencer, 2005. Grafite no Castelinho da Rua Apa, São Paulo ..................................................................................................97
Imagem 64: Spencer, 2005. Desenho a nanquim ......................................................................................................................................98
Imagem 65: Spencer, 2005. Grafite na Rua da Consolação, São Paulo .......................................................................................................99
Imagem 66: Spencer, 2006. Desenho a nanquim ....................................................................................................................................100
Imagem 67: Tela de Paulo Ito. Cenário do filme “Crime Delicado”, Beto Brant, 2004 ...............................................................................102
Imagem 68: Paulo Ito, s/d. Ito urban wear ................................................................................................................................................103
Imagem 69: Egon Schiele, 1913. “Der Tänzer” .............................................................................................
...........................................103
Imagem 70: Egon Schiele, 1910. “Mutter und Kind” ...............................................................................................................................103
Imagem 71: Paulo Ito, s/d. “Minha mão é magra mesmo!” ......................................................................................................................104
Imagem 72: Paulo Ito, 2007. Grafite em Belo Horizonte ...........................................................................................................................105
Imagem 73: Paulo Ito, 2007. Grafite em São Paulo ..................................................................................................................................105
Imagem 74: Paulo Ito, 2004. Série das placas de propaganda imobiliária ................................................................................................106
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Imagem 75: Paulo Ito, 2004. Série das placas de propaganda imobiliária ................................................................................................106
Imagem 76: Paulo Ito, s/d. Grafite na Avenida Sumaré .............................................................................................................................107
Imagem 77: Edifício São Vito, Avenida do Estado, São Paulo. Foto de Ignacio Aronovich, 2004 ...............................................................108
Imagem 78: Paulo Ito, 2008. Exposição Nova Veneza ..............................................................................................................................109
Imagem 79: Paulo Ito, 2008. Exposição Nova Veneza ..............................................................................................................................110
Imagem 80: Niggaz, 2002. Grafite no Beco Escola, Vila Madalena, São Paulo ..........................................................................................112
Imagem 81: Niggaz, s/d. Grafite ..............................................................................................................................................................114
Imagem 82: Painel coletivo, Avenida Paulo VI (muro Instituto Goethe), São Paulo, 2001 ..........................................................................116
Imagem 83: Painel coletivo, Avenida Paulo VI (muro Instituto Goethe), São Paulo, s/d .............................................................................116
Imagem 84: Detalhe de grafite de Niggaz (painel coletivo, Avenida Paulo VI, São Paulo, 2001) ................................................................116
Imagem 85: Zezão, 2004. Intervenção na Marginal Tietê, córrego Carandirú, São Paulo ............................................................................118
Imagem 86: Zezão, 2004. Intervenção na extinta Casa de Detenção do Carandirú, São Paulo ....................................................................118
Imagem 87: Zezão, 2004. Intervenção na extinta Casa de Detenção do Carandirú, São Paulo ....................................................................119
Imagem 88: Zezão, 2006. Exposição Choque Cultural na Fortes Vilaça, São Paulo ....................................................................................119
Imagem 89: Edifício Prestes Maia, São Paulo. Foto de Rogério Canella, 2009 ..........................................................................................120
Imagem 90: Zezão, 2007. “Ruínas da Matarazzo” ....................................................................................................................................122
Imagem 91: Zezão, 2006. Antiga residência da Princesa Isabel ................................................................................................................122
Imagem 92: Zezão, 2008. Catacombes de Paris, França ..........................................................................................................................123
Imagem 93: Zezão, 2006. Subterrâneos de São Paulo..............................................................................................................................123
Imagem 94: Zezão, 2003. Zona Norte, São Paulo .....................................................................................................................................124
Imagem 95: Zezão, s/d. Pinacoteca do Estado, São Paulo ........................................................................................................................124
Imagem 96: Zezão, 2003. “Color Floids”. Evento RE.Impressões, Funarte, São Paulo ..............................................................................124
Imagem 97: Funarte, São Paulo. Prédio em reforma. ...............................................................................................................................124
Imagem 98: Os Gêmeos, 2005. Exposição Cavaleiro Marginal, Galeria Deitch Project, Nova Iorque. Folder ..............................................129
Imagem 99: Os Gêmeos, 2006. Exposição O Peixe que comia estrelas cadentes, Galeria Fortes Vilaça, São Paulo ...................................131
Imagem 100: Os Gêmeos, s/d. Catálogo da Exposição Vertigem, Museu Niemeyer, Curitiba ....................................................................132
Imagem 101: Capa da Revista Graffiti - Arte e Cultura de Rua, nº 38, 2007 ..............................................................................................136
Imagem 102: Folheto de divulgação Graffiti Arte na Paulista (frente).........................................................................................................136
Imagem 103: Folheto de divulgação Graffiti Arte na Paulista (verso) .........................................................................................................136
Imagem 104: Zezão, 2006. Exposição Choque Cultural na Fortes Vilaça. São Paulo ..................................................................................143
Imagem 105: Rui Amaral, s/d. Grafite no túnel da Avenida Paulista, São Paulo .........................................................................................145
Imagem 106: Mauricio Ianês, 2008. “Sem título - A bondade de estranhos”. 28ª Bienal de Arte, São Paulo .............................................160
Imagem 107: Marcelo Cidade, 2006. “Escadinha na Bienal”. 27ª Bienal de Arte, São Paulo ....................................................................160
Imagem 108: Marcelo Cidade, 2006. “Fogo amigo”. 27ª Bienal de Arte, São Paulo .................................................................................160
Imagem 109: Marcelo Cidade, 2006. “Câmeras de vigilância de papel”. 27ª Bienal de Arte, São Paulo ...................................................160
Imagem 110: Ataque dos pixadores à Faculdade de Belas Artes, São Paulo, 2008 ...................................................................................161
Imagem 111: Ataque dos pixadores à 28ª Bienal de Arte, São Paulo, 2008 ..............................................................................................161
Imagem 112: Ataque dos pixadores à Galeria Choque Cultural, São Paulo, 2008 .....................................................................................161
Imagem 113: Esra Ersen, 2006. “Reabilitação”. 27ª Bienal de Arte, São Paulo, 2006 ..............................................................................161
Imagem 114: Shepard Fairey, 2008. Cartaz da campanha política de Barack Obama ................................................................................166
Imagem 115: Marcelo Cidade, 2008. “Espaço Entre”. ARCO, 2008. Madri, Espanha ................................................................................166
Imagem 116: Piero Manzoni, 1961. “Merde d’artiste”. Coleção particular, Milão, Itália ............................................................................167
1 3
Créditos capa
Panorâmicas de São Paulo III e IV. Fotos de Gal Oppido, 2009
Grafites de Herbert, Zezão, Boleta, Paulo Ito e Onesto
Arte: Alessandra Cestac
Imagem da folha de rosto: desenho de Spencer Valverde, 2005
1 4
1 5
Imagem 1: Panomâmica do centro de São Paulo, com seu local de fundação [Pátio do Colégio] no centro. Foto de Gal Oppido, 19/05/2009.
INTRODUÇÃO
“Hei São Paulo,
terra de arranha céu
a garoa rasga a cara
é a Torre de Babel”
Mano Brown.
São Paulo será a maior metrópole da América em 2025. Segundo projeções da ONU, terá 21,4 milhões de habitantes nesse futuro
próximo, caindo do quarto para o quinto lugar no ranking das maiores cidades do mundo – superando, porém, a Cidade do México
e Nova York, que são hoje a segunda e a terceira mais populosas. Mas no que isto se relaciona com a arte? Na aparência, nada.
Se, no entanto, pudermos contar a história desta última (arte) paralelamente à história do lugar que a suporta (cidade), poderemos
pensar em suas interdependências, em suas influências mútuas e nas transformações marcantes que uma esfera pode exercer sobre
a outra. No caso de São Paulo, o que veremos será a velocidade instalada pela modernidade numa rapidez mais que vertiginosa – a
característica atribuída aos tempos modernos, tais como vistos do século XIX. Velocidade que corresponde ao seu crescimento, à
sua escala, impondo outra temporalidade, e, conforme a visão que se tinha naqueles tempos de busca do progresso, aos homens
hercúleos, que se adaptam ao tempo de Mercúrio, sem possuírem sua genealogia divina. E, entre estes homens, um grupo especial
deles, os artistas, metamorfoseia o tempo para que ele possa durar, da mesma forma que a câmara obscura registra o instante im-
perceptível a olho nu, mas agarrado por um simples clique.
1 6
Para além dessas condições, às quais seus habitantes se adaptam, São Paulo condiciona-os a uma outra coisa: viver na crise, de for-
ma que se encontre um equilíbrio tênue entre o sublime e o desesperador, fazendo, por fim, da necessidade, virtude. Neste sentido, a
queda das bolsas, o abalo do poderio econômico do mercado financeiro e a iminência de uma recessão global não necessariamente
promovem a estagnação de uma metrópole, e tornam-se para seus habitantes apenas facetas do processo, muito mais amplo, do tour
de force da contemporaneidade, em que as posições encontram-se desestabilizadas e o futuro, a serviço do imponderável.
Dessa maneira, esta dissertação não fará prognósticos, seja a respeito da arte, seja a respeito da cidade, mas vai apresentar um
conjunto de artistas que se mostram sensíveis a mudanças; não do mercado financeiro, mas da sociedade que o alimenta e da arte
que conquista o espaço urbano independentemente dos lugares que a comercializam. Sobre isto, serve de parâmetro esta formulação
de Nietzsche:
“A grande falta de fantasia de que sofre [o homem cotidiano] faz com que não possa sentir-se dentro de
outros seres e, por isso, ele toma parte o menos possível em seu destino e sofrimento. [...] [porém entre
aqueles que vêem] em tudo o que [fazem] a falta de finalidade última do homem, seu próprio agir adquire a
seus olhos o caráter do esbanjamento. Mas sentir-se, como humanidade (e não somente como indivíduo), tão
esbanjado como vemos a florescência isolada ser esbanjada pela natureza, é um sentimento acima de todos os
sentimentos. – Mas quem é capaz dele? Certamente apenas um poeta: e poetas sabem sempre consolar-se”.
(NIETZSCHE, 1999, p.76. Itálico no original)
1
Nesta dissertação estamos substituindo o “poeta” da frase de Nietzsche pela figura dos grafiteiros e pixadores, pois estes sabem viver
em meio à crise e fazer dela matéria-prima para suas obras, sublimando as angústias e lidando com o instável como uma contingên-
cia habitual da vida. Em São Paulo, eles fazem mais do que isso, eles dominam a escala do imponderável. Diante desta disposição,
eles se percebem como participantes da humanidade (ainda que esta, como afirma Nietzsche, não tenha finalidade última), mais do
que como meros indivíduos habitantes da metrópole.
São Paulo impõe essas condições a seus habitantes. O historiador da arte Giulio Carlo Argan dizia que na cidade moderna o indivíduo
foi reduzido a um átomo na massa.
“Eliminando-se o valor do ego que lhe é correspondente, elimina-se o valor da história de que o ego é o
protagonista; eliminando-se o ego como sujeito, elimina-se o objeto [em que ele atua], a natureza. [...] [segundo
Argan,] a realidade não é mais dada em escala humana, isto é, na medida em que pode ser concebida, pensada,
compreendida pelo homem, mas na medida em que não pode e não deve ser pensada, e sim apenas dominada
ou sofrida, objeto de êxito ou de um malogro; na dimensão, portanto, do infinitamente grande e do infinitamente
pequeno, do superior e do inferior” (ARGAN, 1998).
Estes artistas, todavia, não se enquadram perfeitamente no perfil do cidadão comum da cidade moderna. Resolveram dominar a
metrópole de uma forma simbólica, conhecer sua escala e tentar dar forma ao incomensurável. Nesta dissertação vamos conhecer
vários dos mecanismos utilizados para este empreendimento, que pode ser considerado uma façanha, procurando descrever em
palavras as obras que traduzem essa busca de domínio.
Para além da descrição dessa tarefa dos artistas, a dissertação almeja dar a conhecer essa nova família de atos estéticos, configura-
ções notáveis da experiência de desbravar a metrópole e sua selva de concreto. Obras que sugerem novos modos de sentir e induzem
novas formas de subjetividade política.
Para Jacques Rancière (2005), cujas formulações são outro de nossos parâmetros, a política ocupa-se do que se vê e do que se pode
dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do
tempo. Vendo-o sob esse prisma, consideramos que o trabalho desses artistas é dizer, com suas imagens, algo sobre esses espaços
paulistanos e seus possíveis.
1
NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano, 1º Vol., 1878.
Aforismo § 33: “Erro sobre a vida necessário à vida”. In NIETZSCHE,
1999.
1 7
Dessa maneira, tais “sentires” e modos de ser são visualizados no espaço público e nos personagens dessa metrópole, apontando
condições e sujeitos que podem criar mecanismos propiciadores do florescimento de algo como a arete dos gregos, de um embate
de superação que faz da contribuição para a expressão artística um alvo.
A palavra grega arete poderia ser entendida como excelência, aspecto atualmente escasso de uma esfera privada que se enclausura
e de uma esfera pública que segrega, as quais impedem a diversidade e o encontro com o estranho, constituindo tendências para os
segmentos mais abastados da cidade de São Paulo. Os empreendimentos dos artistas travam neste contexto um combate simbólico
ao objetivo dos setores mais enclausurados e enclausurantes da cidade.
São Paulo não é estática, nem poderíamos dizer que o que os artistas fazem seja uma tendência, mas eles põem em ação, com seu
trabalho, vetores de força contra o ímpeto segregacionista projetado sobre o espaço público, e mostram os ganhos de uma livre e
ampliada circulação pela cidade.
Tributária desses possíveis do tempo e numa contracorrente dos enclaves fortificados, São Paulo sempre foi o centro urbano que
mais fascinou e acolheu os imigrantes e migrantes do país, estando constantemente aberta ao fluxo dos estranhos e diferentes.
Absorvendo os homens em busca da mobilidade social, da vida que se abre em perspectivas diversas, e das oportunidades logradas
ou malogradas de um estrangeiro. Desta maneira, é o espaço da diversidade, da transformação social, do encontro com o novo, do
deslumbramento e da desilusão correlata de todo sujeito que se joga no mundo com o espírito de aventura e de arriscar a sorte.
Possui em seu gérmen a história de bandeirantes que ajudaram a desbravar o Brasil, sendo a base da colonização de um país que
tem extensão continental. E da década de 1930 aos dias de hoje acolhe os herdeiros desses ancestrais longínquos, juntamente com
pessoas vindas da maioria das regiões e países. Na morfologia social dos artistas pesquisados encontraremos descendentes de
pernambucanos, baianos, argentinos, além de gente com outras e variadas origens, que compõem a periferia da cidade. Não sem
conflitos, tem prevalecido o amalgamamento, embora haja ímpetos de apartamento segregacionista e mecanismos de diferenciação
social.
Nesse contexto, o projeto desta pesquisa propõe-se a tratar de um novo ciclo pelo qual passa a cidade de São Paulo, mas que
não deixa de atualizar esta condição em relação ao passado que criou o cosmopolita das metrópoles modernas. De acordo com
o emprego francês do termo, registrado em 1723, cosmopolita é um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à
diversidade, que está à vontade em situações sem nenhum paralelo com aquilo que lhe é familiar. Por causa dos novos hábitos de
estar em público, o cosmopolita tornou-se o homem público perfeito, que criou um sentido para sua vida fora do domínio tirânico
da privacidade.
No significado ideal do público, o caráter objetivo da ação dilatou-se em relação aos estados emocionais subjetivos dos agentes, e
assim o sentido da participação passou dos interesses privados para os interesses encontrados no substrato comum da sociedade.
Dessa maneira, “público” veio a significar uma vida que se passa fora do âmbito da família e dos amigos íntimos. Na região pública,
grupos sociais complexos e díspares teriam de entrar em contato inelutavelmente, e estariam tranquilos com esta contingência. Hoje
não encontramos esta disposição na maioria, mas a vemos em alguns dos artistas presentes nesta pesquisa, os quais possuem a
sensibilidade necessária para abordar esses fenômenos complexos que se passam no espírito de uma sociedade e projetam-se nas
características do urbano.
Como toda transformação artística não acontece de forma abrupta, serão apresentados trabalhos que não têm a pretensão de ser
vanguardistas, apenas vêm de gerações que se sucedem, trazendo contribuições singelas, na forma e na técnica, para dar conta do
novo. No regime estético das artes, este projeto contrapõe-se à historicidade que opõe o tradicional e o moderno, pois acredita que
o futuro da arte não cessa de pôr em cena o passado. São artistas que ocupam um espaço na arte contemporânea, mas, para além
deste circuito, construíram suas histórias no espaço urbano, absorvendo a experiência fornecida por ele e retribuindo com interven-
ções que caracterizaram a estética urbana.
1 8
Recentemente, artistas oriundos desse espaço (Os Gêmeos e Nunca) ocuparam as fachadas da Tate Modern (Londres) com perso-
nagens gigantes que dialogam com a fisionomia do cidadão desses centros globalizados, são camelôs, índios tomando chá das 17
h, sujeitos miscigenados de diversas culturas. Neste sentido, as obras dos artistas aqui abordados não se restringirão a falar de São
Paulo.
Imagem 2: Exposição “Street Art”, Tate Modern, Londres, 2008. Intervenções dos artistas Faile (EUA), JR (França), Sixeart (Espanha), Os Gêmeos
(Brasil), Nunca (Brasil) e Blu (Itália). Fonte: http://www.creativereview.co.uk/cr-blog/2008/may/not-so-street. Acessado em janeiro/2009.
Richard Sennett (1998), olhando para o século XVIII, vê na contemporaneidade um declínio do homem público. Tomando como
ponto de partida o contexto parisiense e londrino de surgimento da metrópole moderna, Sennett não reconhece a mesma tendência
de disposição pública na Nova York da década de 1970. Entende esta disposição como uma valorização do encontro com o estranho,
e uma promoção de comportamentos que, além de procurarem o comum da coletividade, criam um jogo de representação no qual
o que aparece é mais importante do que saber a verdade do sentimento.
Os olhos de Sennett (1998), contudo, estavam cegos para a efervescência artística da Factory de Andy Warhol, do SoHo, do Greenwi-
ch Village, das festas do Studio 54, da música do Velvet Underground, dos grafites de Jean Michel Basquiat e Keith Haring, e para
toda a contratendência que se alimentava do que a sociedade majoritária desprezava.
Do mesmo modo, a São Paulo contemporânea não tem, nas regiões em que se inscreve a ação do grafite e da pixação, uma re-
presentação totalizante da cidade, mas um aspecto admirável à disposição presente na capacidade de representar, na dimensão
1 9
teatral que favorece a civilidade essencial para esses encontros com os desconhecidos. Naturalmente, os artistas estão lá para estes
empreendimentos e os tornam evidentes para enfrentar a visão predominante naqueles setores da sociedade que almejam viver nos
guetos dos condomínios fechados.
Esses artistas agregam em comum a incrível capacidade de dominar sua escala e mover-se com uma disposição próxima do homem
público ideal, mas fogem de qualquer estereótipo caricato produzido por historiadores preocupados apenas com a cronologia, em
suas tentativas de chegar a uma tipologia do paulistano.
Na seleção desses artistas, um dos critérios de escolha foi recolhê-los de distintos segmentos, buscando-se visadas diversas sobre
o mesmo tema e encontrando o que partilham, embora este comum seja de experiências diferentes. Neste sentido, esta seleção
não é amostral, tal como fazem as pesquisas de mercado, e sim uma “visão em paralaxe” (tomando emprestado de Slavoj Žyžek
(2008) esse conceito, que se remete ao materialismo dialético e ao idealismo hegeliano), na medida em que parte de um ponto e se
completa no encontro com o outro que ocupa a posição oposta. No Dicionário Houaiss, paralaxe é o deslocamento aparente de um
objeto quando se muda o ponto de observação. A cidade aparece aqui de distintas formas, as quais são subsidiárias da perspectiva
em que se olha, mas se completam quando se reúnem.
De forma correlata a essa diversidade de visadas, encontramos distintos suportes expressivos entre os artistas: Zezão privilegia a
fotografia; Boleta, Sujo, Niggaz, Paulo Ito, focam no grafite. De forma menos enfática, Zezão apropria-se da vídeo-arte e da instalação.
Como semelhança, todos subordinam os conceitos às imagens e ao homem que as vê, por efeito, nada do que é pensado precisa
de bula. Levam ao pé-da-letra a assertiva de Merleau Ponty (1992) de que a “expressão artística (...) avança obliquamente, nunca
vai diretamente aos fins e aos conceitos. Aquilo que buscamos muito deliberadamente, não conseguimos obter, mas as idéias e os
valores não faltarão a quem souber, em sua vida meditante, liberar-lhes a fonte espontânea.”
O ENSEJO DE UM ESTRANHAMENTO
Esta pesquisa de mestrado iniciou-se em 2006, tendo, entretanto, partido de nossa experiência como pesquisador na 25ª Bienal,
denominada “Iconografia da Metrópole”, em 2002, momento em que travamos contato com dois dos ensejos para esta investigação.
O primeiro refere-se ao estranhamento dos interventores urbanos (pixadores e grafiteiros) em relação à produção artística do circuito
da arte contemporânea. No caso da 25ª Bienal, a temática da metrópole, espaço em que estes atuam, era o foco do evento, mas da
metrópole eles só reconheceram ali a guarita de segurança presente enquanto obra do artista suíço Fabrice Gigy (título da obra: Vigie.
Dimensões: 1200x600x600). Por outro lado, admiraram a obra de Gil Vicente, mas diziam que ela se referia aos dramas dos playboys.
E o segundo ensejo relaciona-se à ausência da produção destes interventores, de gênero mais popular e majoritariamente presentes
na cidade, na 25ª Bienal, um evento supostamente abrangente, nas palavras do curador Alfons Hug. O questionamento desta au-
sência foi ainda maior porque, no discurso do curador, fica formulada a pergunta sobre como os artistas lidam com o problema da
escala: “Como a obra de arte concorre com as dimensões metropolitanas?” Complementada por esta outra: “Que resposta a arte dá
à pobreza, à violência e à exclusão social nas metrópoles?” (BIENAL, 2002). Aspectos que, veremos, estão entre os paradigmas das
intervenções urbanas.
Nesses dois ensejos, apresenta-se para nós uma discussão sobre a recepção estética, e, mais precisamente, sobre como o gosto
é fruto de uma reprodução social estreitamente ligada às vinculações de classe. O gosto reproduz heranças, formações familiares
e escolares, que nada possuem de disposição espontânea, mas que, para alguns segmentos dotados de maior acúmulo de capital
cultural, assumem um caráter de naturalidade, que revela ascendência sobre os demais. Muitas vezes baseado num princípio nobre
de garantir autonomia e liberdade para a criação dos artistas de vanguarda, e para a fruição daqueles que respeitam e acompanham as
problemáticas estabelecidas pelo campo, disfarça a tônica dominante desde a época em que tinham vigência os cânones emanados
Imagem 3: Cartaz da 25ª Bienal
Internacional de Arte de São Paulo (2002)
Imagem 4: Fabrice Gygi, 2002. Vigie. torre
de metal mecanizada, guarita e refletores.
1200 x 600 x 600
2 0
das Academias de Belas Artes, dos gêneros altos e baixos da linguagem artística.
O gosto para alguns é uma relação desinteressada regida pela liberdade presente no campo da arte. Neste caso, as pessoas gostam
de algo porque o artista, com esse algo, as tocou em seus espíritos com uma forma surpreendente. Se nos baseássemos neste prin-
cípio, diríamos que os grafiteiros e pixadores tiveram aquele estranhamento porque seus espíritos estão embotados para a percepção
dos valores simbólicos presentes em exposições como as Bienais.
O que a dissertação procurará apresentar, entretanto, são os condicionamentos sociais presentes no julgamento estético, e, ao longo
dos períodos analisados, o confronto entre duas formas de produção e apreciação. Uma, presente num campo mais amplo da arte,
chamada “contemporânea”, e outra mais específica, de uma produção em movimento chamada “grafite” e “pixação”, as quais se
vêm impondo como uma forma particular de representação do contemporâneo enquanto período histórico, e não de modo restrito
como denominação de movimentos e produções artísticas.
GRAFITE E ‘PIXAÇÃO
2
: DUAS PRÁTICAS DE UM MESMO SUJEITO
Uma das primeiras dificuldades desta pesquisa foi estabelecer o recorte. Seria possível falar de dois suportes expressivos distintos,
o grafite e a pixação, e circunscrever a análise a apenas um deles, mas percebemos que, se o fizéssemos, perderíamos um ponto
fundamental da reflexão: a comunhão subterrânea que eles possuem, tanto na história da prática como nas interdependências pro-
cessuais para interferirem na cidade.
Tendo como referência a Nova York da década de 1970, um dos germens da expressão do grafite, e ao compararmos essas inscrições
com o que ocorre hoje, percebemos que as aproximações formais daqueles traços e procedimentos são muito mais extensas com
a pixação do que com o grafite atual, tanto em Nova York como em São Paulo. O que foi denominado grafite nessa época era um
conjunto de letras retas, escritas preferencialmente com tinta preta.
Posteriormente apareceram as tags, mais próximas de uma assinatura, e esta fatura inicial caiu em desuso. Faz sentido, porém, para
as discussões internas ao campo, que se remeta aos primórdios para reivindicarem uma ligação da pixação com o grafite no aspecto
formal. A economia de traços para a fatura da intervenção certamente influencia o grafite primordial da mesma forma que a pixação,
pois ambos demandam agilidade para que seja exercida uma prática ilegal.
Um segundo aspecto é relacionado diretamente à ilegalidade: no Brasil as duas práticas (grafite e pixação) foram se distinguindo
formalmente, o que fez com que a coibição recaísse com mais força sobre a pixação. Ainda que ambas permaneçam ilegais, os
grafiteiros têm melhor aceitação para sua prática. No caso de Nova York, a ilegalidade e a coibição recaem com a mesma intensidade
sobre qualquer intervenção urbana, não importa a forma.
O aspecto mais motivador para abarcar o grafite e a pixação nesta pesquisa é, contudo, o fato de que seus praticantes transitam pelas
duas expressões, praticando-as concomitantemente, ou não. Este trânsito fomenta contaminações de toda espécie, podendo o artista
repeli-las ou absorvê-las. No caso de Marcelo Cidade, estas contaminações são associadas à trajetória do artista em direção à con-
quista de “radicalidade”, fazendo dessa experiência um elemento transgressivo positivado. No caso de Zezão, elas são cuidadosa-
mente escamoteadas para que ele ganhe relevo enquanto artista, sem contar que ele nega a prática dos “rolês”
3
de pixo (atualmente,
situa essa experiência como uma fase importante, porém, localizada no passado). Para além desses aspectos, a experiência com a
cidade é determinada pelas contribuições da pixação à vida desses dois artistas, aspecto este que nenhum deles nega.
Sucintamente, a pixação caracteriza-se como uma prática de grupo. Dificilmente seus agentes atuam sozinhos, mas, na fatura da obra
principal, é apenas um nome que identifica o grupo. Além do nome do grupo, sempre recebendo maior relevo e abrangência, fazem
2
A grafia “pixação”, com “x”, em vez de “pichação”, com “ch”, é
aqui utilizada por corresponder a uma caracterização da expressão a
ela atribuída por seus praticantes.
3
Percursos pela cidade nos quais os pixadores realizam a prática.
2 1
Imagem 5: Stayhigh 149. Imagem do artista Stayhigh 149 e suas tags. E ainda a inscrição da data do início de suas
atividades relacionadas à prática (“started 1969”). Fonte: GANZ e MANCO, 2004, p. 34.
2 2
Imagem 7: Moinho Santo Antonio com silo pixado pelos grupos da grife RGS. Foto de Gal Oppido.
Fonte: OPPIDO, 1999, p. 213
Imagem 6: pixadores descendo pela empena cega de um edifício com equipamento precário.
Por esta imagem podemos observar os procedimentos que utilizam para pixarem em lugares
arriscados. Tal mecanismo foi empregado para acessarem os silos dos Moinhos Matarazzo na Barra
Fundo. Foto de Choque Fotos, 17 fev 2007.
2 3
parte das inscrições as iniciais dos agentes que a realizaram e o ano em que ocorreu. Quando falece ou está preso um membro do
grupo, os agentes também põem seu nome junto com o deles na fatura da intervenção, associados ao ano da morte ou ao item do
Código Penal que o levou à cadeia. Outra parte da inscrição, não obrigatória, é a vinculação a um colegiado de grupos, ou “grife”, na
linguagem da pixação. Um nome ou pseudônimo isolado, entretanto, para a manifestação, não é pixação. Neste sentido, JUNECA e
PESSOINHA, alguns dos primeiros a invadir a cidade na década de 1980 com ditas pixações, ou CÃO FILA KM 16, uma propaganda
comum, não seriam caracterizados como pixo, tal como se conforma a manifestação hoje.
A pixação, todavia, não se restringe a esse aspecto. Normalmente, cada grupo que inicia a prática deve criar, respeitando as icono-
grafias da pixação, um alfabeto, o qual servirá como elemento de identificação. Quando um grupo usa letras de alfabetos de grupos
consolidados em sua pixação, tal apropriação pode causar conflitos entre estes e no interior da manifestação. Com o alfabeto pronto,
o grupo ganha respeito entre seus pares, de acordo com a extensão das intervenções que realiza pela cidade: quanto mais distantes
do bairro de origem dos praticantes, quanto maior o número de pixos e quanto mais difícil de burlar a segurança, maior será o ganho
simbólico. Um grupo que não sai das imediações de seu bairro não obtém prestígio na pixação.
No que tange à formação social de seus praticantes, ela é majoritariamente periférica, de bairros pobres da Região Metropolitana de
São Paulo. Mas não existe nenhuma restrição à entrada de membros de outras origens, como Marcelo Cidade, habitante de um bairro
rico da cidade. Na questão de gênero, são predominantemente garotos, mas existe a participação de meninas nos grupos, havendo
grupos integralmente femininos. É raríssimo um grupo gay, ou que tenha membros que assumam a homossexualidade.
Concernente ao grafite, encontramos uma formação social mais diversificada, havendo maior incidência de membros da classe
média, pois a prática requer maior investimento financeiro, uma vez que as tintas são caras (R$ 14,00 a lata) e nessa prática elas são
usadas em maior quantidade (em média, utilizam-se 10 latas por painel) do que para realizar um pixo (uma lata é o suficiente para
fazer vários pixos). Por sua vez, o investimento plástico é maior, e são acolhidos pela sociedade por sua dimensão decorativa. De
modo correlato a este aporte, ocorre uma diversidade formal maior do que a que se passa na pixação. A liberdade para fazer-se um
grafite é muito maior, e o espaço que o grafite paulistano ocupou na cena internacional deu-se justamente pelas possibilidades de
experimentação e assimilação iconográfica que efetivou.
UMA CRONOLOGIA CONTADA PELOS PRATICANTES
Esta dissertação estrutura-se em cinco capítulos, seguindo os três primeiros uma sequência cronológica que respeita o período de
surgimento de cada geração. São eles: “Os Pioneiros” (final dos anos 1970 e início dos anos 1980), “Old School” (década de 1990
e início dos anos 2000) e “New School” (anos 2000 até hoje). O quarto capítulo, “São Paulo é do grafite?”, trata o grafite como
expressão e transgressão no território da metrópole e no chamado “cubo branco”, e o quinto capítulo, “A Pixação na Bienal: Inserções
Diversas de 2002 a 2008”, debruça-se sobre a pixação. Podem ser considerados como apenas momentos de emergência distintos,
tanto das gerações como de cada uma das expressões. O grafite não esteve presente nas últimas Bienais, mas teve espaço no início
dos anos 1980, com a primeira geração, enquanto a pixação, sabendo-se potente e malquista por esse universo, emergira de forma
agressiva, impondo-se no espaço da Bienal em 2008.
Tal encadeamento de capítulos respeita a cronologia interna do grafite e da pixação, e condiz com a ordem em que os próprios
praticantes distribuíram os eventos. Com exceção, todavia, do terceiro capítulo (“New School”) e do quinto (“A Pixação na Bienal:
Inserções Diversas de 2002 a 2008”), o conjunto dos capítulos focará no grafite, pois a pixação permanece quase imutável quanto à
forma e às práticas: não mudou os padrões de fatura da obra, nem as regras e os comportamentos dos grupos, enquanto no grafite
tudo foi alterado, principalmente por passar a ter o mercado, seja publicitário ou das galerias de arte, como parceiro e alvo.
2 4
No entendimento desses modos de produção estética, chamados grafite e pixação, abundam confusões decorrentes de análises que
se detiveram em recortes estreitos. Desta maneira, a pesquisa estendeu-se pelo período que vai dos anos 1980 aos dias atuais, pro-
curando realizar uma análise das distintas gerações, de modo que se promovam suas especificidades, se possa dar conta dos passos
miúdos percorridos pelos antecessores, ao mesmo tempo em que observe como os produtores mais recentes se detêm em novas
problemáticas do campo da arte. Veremos que estas gerações não são estanques, apresentam relações internas entre os grupos do
mesmo período e entre eles e os anteriores, e estão envolvidas num jogo de disputa árdua pelo espaço e pela visibilidade na cidade
e no mercado de arte. Isto envolve galerias e exposições, que não constam em pesquisas anteriores.
CIDADE: FORMADORA E FORMADA PELOS ARTISTAS
As pesquisas acadêmicas sobre o grafite e a pixação não são inexistentes, no entanto, de modo geral, verificamos, além da escassez,
uma ausência de estudos realizados no âmbito da pós-graduação (mestrados e doutorados) que integrem ambas as práticas na mes-
ma abordagem. As pesquisas existentes apenas os relacionam, deixando de lado o entendimento de que ambas fazem seu aprendiza-
do no mesmo espaço público coletivizado, são interdependentes e integradas
4
. Deste modo, a abordagem desta pesquisa tem como
objetivo fazer emergir o espaço público, investigando sua relação com as iconografias da metrópole e com a cultura contemporânea,
retirando-o da posição de mero suporte para as obras, condição em que se vê simplesmente subordinado às práticas artísticas. Ou,
então, verificando nos grafiteiros e pixadores a falta de habilidade em lidar de forma dialógica com o espaço de que se apropriam.
As intervenções do grafite e da pixação em São Paulo, assim como suas especificidades, serão analisadas com base nas práticas de
um grupo de artistas, selecionados por agregarem elementos que, no conjunto, permitem uma visada ampla do contexto contempo-
râneo paulistano relacionado a essas práticas.
São eles:
Sujo (Spencer Valverde), um pixador e grafiteiro que não entrou no circuito das galerias de arte, mas possui uma potência expressiva
e uma trajetória de vida extremamente interessantes para entendermos os fatores que atraem os jovens da cidade para essas mani-
festações, bem como para compreendermos em que medida o mercado da arte não está direcionado por interesses relacionados à
substância da obra, e sim a seu potencial comercial.
Paulo Ito, um grafiteiro e ilustrador que absorveu referências eruditas da arte moderna para a criação de suas intervenções urbanas.
Em sua última obra, “Nova Veneza”, agregou a pixação, a fotografia e a ilustração, usando o recurso do trompe-l’œil, para realizar
uma obra surrealista, mostrando uma São Paulo inundada. Ele também se dedica a trabalhar a imagem do corpo feminino e da sen-
sualidade, criando uma poética do sublime que enriquece visualmente a cidade. Condensa experiências de sedução que a metrópole
disponibiliza ou apenas insinua, movendo o transeunte para cenários idílicos. Sua grande contribuição, porém, conforme procura-
mos apontar nesta pesquisa, é revelar as tensões levantadas pelas problemáticas tidas como pertinentes e legítimas no campo da
arte. Caso estivesse no início do século XX, seria um artista sintonizado com o seu tempo, mas, por estar no século XXI, no meio da
tendência conceitual que vigora na arte contemporânea, sua obra perde o impacto que poderia trazer.
Boleta, um grafiteiro e pixador que representa um dos principais ícones da expressão em São Paulo, por inserir uma tendência abs-
trata na manifestação do grafite, absorver as referências da tatuagem, ampliando-as para a escala da metrópole, e ainda criar novas
formas de inserção insidiosa para a pixação. Sua trajetória também é um bom exemplo para revelar tanto o aspecto democrático da
expressão, como o aspecto excludente dos modelos vigentes de comercialização.
Zezão, um grafiteiro e fotógrafo que representa, ao lado de Boleta, um dos casos interessantes de sintonia entre o grafite e a pixação.
Sua obra de grafite é ainda um desdobramento de sua experiência como pixador em busca de lugares de exposição. Na raridade do
lugar em que realiza sua intervenção, encontrou seu fator de singularidade, elemento caro a um campo de produção com milhares
4
No levantamento bibliográfico realizado, também não encontramos
pesquisas situadas na área do Urbanismo. Ao todo foram localizados
12 estudos, que aconteceram entre 1987 e 2008, sendo 3 na área das
Artes Plásticas, 3 na área da Psicologia, 3 na área da Antropologia, 2
na área da Educação e 1 na área da Comunicação e Semiótica. É dian-
te dessa lacuna que encontramos uma oportunidade de abordagem
com o instrumental teórico-metodológico do Urbanismo.
2 5
de participantes. Vindo de uma formação não-escolar, Ele ainda constitui um exemplo de sucesso na trajetória de qualquer artista,
com diversas exposições internacionais vindo de uma formação não-escolar.
Niggaz, um grafiteiro e ilustrador que retoma a experiência romântica na virada do século XXI. Este exímio desenhista conquistou
espaço no seio de sua geração por deter esta habilidade cara a toda expressão artística. O interesse por ele, porém, acaba advindo
também da trajetória trágica de um artista oriundo da periferia da cidade, que percorreu as grandes distâncias que o levaram ao
seio da classe média paulistana, mas esbarrou em dificuldades de compreensão no universo familiar e no uso de entorpecentes. A
procura por estados alterados da mente afigurou-se para ele como uma alternativa de conforto diante de um ambiente estranho em
que seus valores não encontravam correspondência.
Diante desse conjunto, acreditamos que poderemos discutir a cultura contemporânea presente na metrópole paulistana por meio
de sua manifestação nas obras desses artistas, buscando entender o “campo”, alguns de seus principais atores, os modos e as
contradições aí presentes.
2 6
2 7
OS PIONEIROS
Voltar às origens é uma prática corrente, na história de qualquer área, para identificar os autênticos, que preservam a tradição engen-
dradora, e os impostores, que pervertem o sentido primeiro da expressão. No que tange ao grafite, este aspecto não foge ao corri-
queiro, ainda que o questionamento não seja muito vigente, pela ausência de uma reflexão crítica acumulada no debate do campo.
O início de qualquer campo, invariavelmente, é fruto de uma constituição arbitrária, sem razão sólida, que se tornou razoável ao longo
do tempo. Deste ponto em diante, para Bourdieu, torna-se lei, nomos. “Tendo-se aceitado o ponto de vista constitutivo de um campo,
torna-se completamente inviável assumir a seu respeito um ponto de vista externo” (BOURDIEU, 2001, p. 117). Desta maneira, o que
poderia parecer completamente ininteligível para um banqueiro, como o investimento do artista numa produção sem fins lucrativos
imediatos, converte-se em capital simbólico, de grande valor para o campo artístico, e seus agentes passam a acumular prestígio
em seu interior por praticá-lo. Fora dele, por sua vez, permanecem incompreendidos, até que ocorra uma segunda transformação,
a que tenta traduzir esses valores em cifras propriamente econômicas. Mas, ainda assim, nem sempre ocorre esta homologia entre
simbólico e econômico, e, no campo da arte, uma ação interessada puramente no dinheiro, por vezes é tida como contrária a seus
pressupostos. Esse móvel do jogo, entre outros, constitui o indiscutível do campo, para que as discussões emaranhem-se em outros
patamares, suspendendo os objetivos da existência ordinária em favor de novos interesses, suscitados e produzidos pelo próprio
jogo.
Entretanto, essa concordância entre o nomos e a ilusio que lhe é correspondente não significa uma adesão incondicional ao estabe-
lecido do campo, é apenas o ponto tácito de onde se parte num debate. Portanto, é a exigência para adentrar no campo, e, dentro
dele, perscrutar as possibilidades de novas tomadas de posição. Uma vez reconhecidos pelo campo como dotados de posições
pertinentes e sensatas, os adversários tornam-se cúmplices em seu interior, e delimitam o espectro das discussões e ações pensá-
veis, sejam elas inexistentes ou em vigor, e ainda estabelecem o que é uma intrusão absurda, deslocada, ingênua, amadora, ou uma
inovação subversiva do heresiarca. No caso do grafite e seu rebatimento no campo da arte, acontece o mesmo. Tanto com aqueles
que pretendam ser grafiteiros, como com os grafiteiros que pretendam ser artistas.
2 8
Entre a gama de regras para caracterizar o grafite em seu primórdio, duas permanecem com mais importância enquanto constituin-
tes da expressão: estar na rua, seja de forma consentida ou não pelo proprietário do espaço alvo da intervenção, e ser regida pela
disposição dos artistas em realizá-la, sem passar por uma encomenda. Dentro da galeria, deixa de ser grafite, disseram Os Gêmeos,
grafiteiros de prestígio que ingressaram no comércio de obras com essa origem nas instituições que lhes dizem respeito. Fora desse
aspecto mais abrangente e permissivo da regra fundadora, dentro de segmentos mais ortodoxos da expressão, a transgressão é
também elemento constitutivo de fundamental importância, pois é ela que gera a força motriz para a expansão e disseminação da
prática, uma vez que a maioria dos espaços da cidade, e os que dão mais destaque e visibilidade, dificilmente são autorizados para a
intervenção, exigindo radicalidade de seus autores. Tributária desta regra é a própria morfologia social dos praticantes, na maioria pe-
riféricos, marginais no campo da produção cultural, ainda que quantitativamente sejam mais expressivos. Majoritariamente dotados
de poucas técnicas plásticas e conhecimentos do campo da arte para formular suas obras, os iniciantes dificilmente as desenvolve-
riam se tivessem que contar com autorizações, nem chegariam ao número de praticantes com que contam. Além desses nomos, de
estar na rua, fazendo algo sem encomenda, e de ser transgressivo, um quarto aparece com menor exigência de verificação: o uso da
tinta spray, que garante agilidade para a prática e um traço característico.
Tomando a Nova York da década de 1970 como marco inicial, engendrador do nomos do grafite– aspecto referendado por todos
os grafiteiros desta pesquisa –, não poderíamos acolher os pioneiros das intervenções urbanas em São Paulo enquanto grafiteiros.
Das regras fundadoras, respeitam apenas duas: estavam na rua, ainda que de forma incipiente, e eram levemente transgressores,
por realizarem a prática sem a necessidade da autorização. Mas, na fatura da obra, utilizavam outra técnica: o stencil
5
. Entretanto,
reivindicavam essa titularidade informal de “grafiteiros”, e a seguir discutiremos do que se tratava no caso. Não cabe aqui questionar
as regras constituintes do campo, a forma de produzir essas crenças e a validade delas, pois seria um desmonte ímpio de uma ilusão
fundamental ao jogo inscrito no campo dos grafiteiros. Para eles, vale a pena jogar o jogo, e a nós, que olhamos de fora, cabe levar
a sério suas disposições, se quisermos entendê-los.
Dessa maneira, o que havia surgido na metrópole norte-americana nomeado como grafite? Quais eram suas contingências e con-
textos que contribuíram para que emergisse de forma tão incisiva na paisagem urbana? Dois dos autores principais no estudo dessa
temática apresentam esses dados e conflitam quanto à interpretação de seu sentido: Jean Baudrillard (1979) e Richard Sennett
(1990).
NOVA IORQUE, DÉCADA DE 1970
Uma cidade que se expande horizontal e verticalmente à imagem do próprio sistema econômico, compartimentando e separando
no espaço os distintos grupos sociais que a compõem e desmantelando a sociabilidade entre os diferentes na esfera pública da
sociedade. Tal é Nova York, uma cidade que segrega e cria os guetos que se configuram por raças e classes homogêneas. Neles, as
classes sociais mais baixas estão apartadas do acesso aos meios de pleno desenvolvimento humano, ao mesmo tempo em que são
estimuladas ao consumo das mercadorias cuja produção obedece a planos formulados dentro de modelos diretores. Estes modelos
conectam a todos no mesmo sistema, a vontade irresistível de possuir os objetos mais ostensivos atinge a maioria, embora cada
qual esteja restrito a uma faixa de consumo, orientada pelo poder aquisitivo de sua classe. O código que estabelece os liames entre
eles é produzido de modo centralizado, é monopolizado pelas formas de produção de sentido ofertadas pela televisão e as grandes
mídias. Nesse território, a sociabilidade histórica que acontecia na fábrica, no bairro e na classe desapareceu. Esta cidade obteve a
fragmentação necessária para abolir as formas do passado, a tal ponto que a indústria, local da produção das mercadorias, a comu-
nidade, local do convívio cotidiano e da dependência recíproca, e as associações operárias, locais da percepção da força coletiva,
já não favoreciam uma identificação massiva e uma coesão social que outrora permitiram as lutas e as revoluções. Esta descrição é
construída por Baudrillard (1979) para contextualizar o surgimento do grafite e tratá-lo como uma insurreição pelos signos contra a
5
Stencil, do inglês, é o ato de reproduzir por meio de uma matriz, no
caso, uma máscara sobre a qual se projeta.
2 9
semiologia urbano-industrial da metrópole nova-iorquina.
Diante desse quadro, outras formas de sociabilidade e solidariedade vão se estabelecendo, centradas em grupos juvenis, gangues,
turmas, membros da mesma faixa etária ou etnia. No seio dessas organizações totêmicas surgem os grafites e uma nova maneira de
pertencer ao coletivo na metrópole de então. A fidelidade já não se dá em relação a uma proposição política ou ideológica, mas à
exclusividade radical do clã. Desta maneira, não existe a defesa do nome contra o anonimato do indivíduo na metrópole, não existe
uma reivindicação de identidade e de liberdade pessoal, como poderia dizer o pensamento liberal que marca a sociedade norte-
americana, pois o que se escreve nos grafites são os nomes dos grupos, muitas vezes retirados de personagens dos quadrinhos e
da cultura pop, e os números dizem respeito às quadras que eles dominam. Assim sendo, são defendidas identidades coletivas nos
grafites, que, por sua vez, constrangem seus membros a agir segundo regras próprias. Ainda que ofereçam a fraternidade almejada,
estes aspectos são, contudo, limitadores das liberdades individuais.
Numa perspectiva humanista burguesa, os grafites poderiam ser um efeito da insatisfação do sujeito perante a insignificância de sua
escala diante do incomensurável da metrópole. Mas, dentro de uma gangue, não existe distância no reconhecimento, as relações
que aí se efetivam são próximas e cotidianas, não almejam ter uma representatividade passível de comparação com a escala da
metrópole. Ninguém romperá com a obscuridade de si na multidão, mas terá o sentido de sua existência satisfeito pelo investimento
de sentido do grupo. Se o cenário fosse maio de 68, tais escritas poderiam ter uma mensagem ou conteúdo, mas elas não foram
estruturadas com este propósito. Tal vazio poderia ser um defeito, mas, para Baudrillard (1979), é ele que confere força ao grafite.
“E não é por acaso a ofensiva total sobre a forma ser acompanhada de uma recessão de conteúdos. O que vem de uma espécie de
intuição revolucionária – a de que a ideologia profunda já não funciona no nível dos significados políticos, mas no dos significantes
e de que aí o sistema é vulnerável e deve ser desmantelado” (BAUDRILLARD, 1979, p. 38).
Segundo Baudrillard (1979), esses grafites iniciaram a ocupação da paisagem urbana numa data precisa: a primavera de 1972,
começando pelas paredes, muros e cercas dos guetos e terminando por apoderar-se do metrô, dos ônibus, dos trens, e mesmo
dos monumentos. Para Sennett (1990), a data do surgimento é anterior, porém mais imprecisa, por volta de 1970, mas, do mesmo
modo que Baudrillard (1979), identifica seus autores entre os jovens negros e porto-riquenhos dos guetos nova-iorquinos. Mas as
semelhanças de suas interpretações encerram-se nesses termos, a começar pelo fato de que Sennett (1990), um americano, iden-
tifica como grafite os stencils da década de 1960 em Paris. Enquanto, para Baudrillard (1979), um francês, esses são fenômenos
inteiramente distintos. Neste sentido, Baudrillard (1979) tem toda a razão: formalmente eles são muito diferentes. A começar pela
figuratividade presente nos stencils de Paris (Imagem 8, nesta página) e ausente nos primeiros grafites nova-iorquinos (Imagem 5, p.
19). Depois, pela técnica, são instrumentos e procedimentos que não coincidem: se no stencil é necessária a construção prévia de
uma máscara sobre a qual se lançará o jato de tinta, no grafite nova-iorquino a pintura não utiliza outros materiais além da tinta spray
e das canetas de feltro com 2 polegadas.
No que tange à visão de Sennett sobre os grafiteiros nova-iorquinos, também existe um temor: ele os vê como delinquentes, e, em
sua avaliação, a deles “é uma escrita das classes inferiores que diz: nós existimos, estamos em toda parte. E ainda, vocês outros são
nada: nós escrevemos sobre vocês” (SENNETT, 1990, p. 207). Para ele, existe uma relação de poder, em que o objeto estético é uma
dominação daquele que faz sobre os olhos daqueles que apreciam passivamente essas criações. “O grafite de uma rua de Nova York
reflete este relacionamento de poder: as paredes do ‘Eu’ dominaram o outro, que não teve nenhuma escolha em seu fazer, que não
pôde participar de sua formulação, que pôde somente se submeter sem nenhum senão” (SENNETT, 1990, p. 209). É desta forma,
uma imposição do “Eu” em detrimento do “Isto”, sem a mediação de uma correlação entre o concreto e o incerto presente no objeto
estético, que convida o outro à interação.
Sennett (1990), todavia, nem sequer compreendeu que nas práticas dos grafiteiros nova-iorquinos aconteciam imposições do “Nós”
como identidade coletiva, em vez do “Eu”. Faz, porém, todo o sentido a posição que ele assume, quando relacionada ao Declínio do
homem público, uma de suas principais obras, publicada em 1977, pois, com base nestes posicionamentos anteriores, podemos
Imagem 8: Ernest Pignon-Ernest, 1978. Rimbaud dans
Paris
3 0
dizer que, se compreendesse que eram defesas do “Nós”, de comunidades ou de guetos, como acontece com Baudrillard (1979),
igualmente se posicionaria com reticências. Para Sennett (1998), na modernidade do século XX, houve a falência nefasta do cos-
mopolita tal como surgira no século XVIII.
A Nova York da década de 1970 não fomentava um modelo de homem que se movimentava despreocupadamente em meio à diver-
sidade, que estava à vontade em situações sem nenhum paralelo com aquilo que lhe é familiar. Esse homem moderno se retraíra da
ampla vida pública que surgira nas primeiras metrópoles ocidentais, quando existia um modelo de interação pautado por uma certa
distância do “eu”, de sua história imediata, de suas circunstâncias e de suas necessidades, para buscar refúgio em interações da
vida íntima, entre iguais e fraternos. Contemporaneamente, estar em meio à multidão passou a significar um mal, porque aí se estava
entre estranhos. “A fim de apagar essa estranheza, tenta-se tornar a escala da experiência humana íntima e local: ou seja, torna-se
o território local moralmente sagrado. É a celebração do gueto” (SENNETT, 1998, p. 359). Para tal projeto, planejadores urbanos,
inspirados no trabalho de Camillo Sitte na Viena de fins do século XIX, “comprometeram-se a construir e preservar o território da
comunidade na cidade como um objetivo social” (SENNETT, 1998, p 358). Esta disposição de encerrar-se, porém, na comunidade,
especialmente nos condomínios de classe média, tira da pessoa a chance de enriquecer suas percepções com a diversidade. A
experiência dentro de um ambiente homogêneo, social e culturalmente, retira a oportunidade dos homens de aprender a mais valiosa
de todas as lições humanas: a habilidade para pôr em questão as condições já estabelecidas de suas vidas.
Os grafites, em meio a esse contexto, foram a forma dos jovens situarem-se na metrópole sem se subordinarem às linguagens (se-
miologias) vigentes, como descrito por Baudrillard (1979), e não se circunscreverem aos territórios dos guetos, mas comportamen-
talmente eles não diferiram de habitantes urbanos tais como saídos do modelo apresentado por Sennett (1998). Nesse ambiente da
comunidade moderna, permanecem atomizados, mesmo enquanto grupos, estabelecem conexões baseadas nos símbolos instáveis
do impulso e da intenção, perderam a possibilidade de laços impessoais com os habitantes que não façam parte de sua origem
sócio-cultural, baseando-se nos poderes expressivos de um jogo partilhado pela maioria.
Esse jogo de representação requer civilidade, convenções e rituais de interação, certa distância do “eu”, da intimidade, que se
encontram em desuso por serem considerados aspectos formais, áridos e falsos da interação. “A habilidade de ser expressivo está
cortada num nível fundamental, porque a pessoa tenta fazer com que as suas aparências representem aquilo que ela é, para unirmos a
questão da expressão efetiva à questão da autenticidade da expressão” (SENNETT, 1998, p. 327). Entretanto, para Baudrillard (1979),
na medida em que esses grafiteiros encontram-se organizados em clãs, estariam realizando rituais de passagem para ingressar
nesses grupos e exercer suas habilidades expressivas nas intervenções urbanas, não existindo a demanda para que essa expressão
seja identificada com o caráter íntimo de cada um, existia da mesma forma que ocorre com os pixadores, uma subordinação do
individual pelo comunitário.
No entanto, o restante da sociedade continuava caminhando de acordo com os padrões descritos por Sennett (1998). E, na política
do período, o pessoal e o íntimo são considerados critérios de confiabilidade e legitimidade para a presença na esfera pública, de
uma forma não muito distante do que ocorre no Brasil, o representante político precisava antes de qualquer aspecto, representar
um caráter moralmente admirável, e demonstrar intimidade com o eleitor, uma dimensão do populismo presente na América Latina.
Neste processo, ofertam-se condições para um culto à personalidade entre os representantes da população na arena pública, o mé-
rito de seus programas políticos fica a segundo plano e o publicitário da campanha eleitoral trabalha sobre ele da mesma maneira
que pensa numa marca. Para além dos guetos, a busca pela defesa do local e seu quinhão também favoreceu uma despolitização
da sociedade, os sujeitos se mobilizam para defender questões particulares, qualquer aspecto que não interfira diretamente sobre
o território comunal perde o interesse dos habitantes e as questões de ordem societária, que interferem numa escala maior do país,
se dissipam. Segundo Sennett, enquanto as estruturas efetivas do poder convergem na direção do global, a crença nas relações
humanas diretas em escala intimista, associada ao comportamento gregário da comunidade e do local, nos seduz e nos desvia da
compreensão das realidades do poder. “O resultado disso é que as forças de dominação ou a iniqüidade permanecem inatacadas”
(SENNETT, 1998, p. 414).
3 1
Dessa maneira, seja o “Eu”, da intimidade, do âmbito privado, de uma subjetividade narcisista, incapaz de realizar os jogos da re-
presentação e propiciar uma geografia pública, ou o “Nós”, da comunidade, dos interesses gregários e da exclusão dos forasteiros
estranhos, ambos formam o caráter do homem que sofre as contingências da tirania da intimidade. Esse homem que sempre está
em busca de relações próximas, confiáveis, e de personalidades políticas, em vez de programas políticos, que vive num gueto,
de condomínio fechado ou de um bairro degradado, significa para Sennett (1998) o declínio do homem público característico da
metrópole dos séculos XVIII e XIX, um homem que caminhava na multidão multifacetada despreocupadamente, que via no rosto
desconhecido uma possibilidade de interação em vez de um perigo iminente, dada uma geografia pública constituída e a civilidade
que lhe é correspondente.
Para o grafiteiro nova-iorquino, essa problemática não chega a mobilizar suas preocupações, mas oferece sentido a uma presença
agressiva na paisagem urbana diante de uma Nova York construída por uma política liberal que favorece o dinheiro. Afinal, não existia
uma arena pública satisfatória; o grafiteiro não dominou esse entendimento de Sennett e muito menos as práticas do homem público
ideal. Sua presença no espaço público atual não poderia encontrar referências no cosmopolita do século XVIII. Ele foi seduzido por
uma presença impositiva com seus grafites, e pela participação em gangs que possibilitavam uma circulação amplificada pela cida-
de, as quais utilizavam códigos próprios de significação. Embora fosse oriundo de guetos, não reduziu o território de suas práticas
a eles.
No caso dos grafiteiros nova-iorquinos, não é uma causa pública que eles levantam, como foi apontada por alguns dos autores dos
stencils da década de 1960 em Paris. No entanto, também não levam cartas de amor ou questões estritamente pessoais em sua
atitude. Nessa ausência de uma causa, em que Sennett (1990) vê um problema, Baudrillard (1979) vê uma solução no nível do
significante que atingiu todo o sistema e as relações de dominação simbólica.
Na conclusão de O declínio do homem público, Sennett (1998) posiciona-se contra as forças da dominação e da iniqüidade, com que
Baudrillard (1979), é claro, também se revolta, vendo, contudo, este problema, entre outros aspectos, como um efeito do fomento à
dimensão comunitária na vida das cidades. No entanto, Sennett (1998) não dá ênfase à distinção entre as contingências das comuni-
dades que formam os guetos de onde os grafiteiros provêm e as características substanciais dos bairros de classe média. São casas
distintas as que habitam os que provêm de uma ou outra dessas áreas, e os jovens provenientes das segundas não tiveram a iniciativa
formulada pelos primeiros. Nem sequer tiveram a atitude dos jovens do maio de 1968 em Paris ou dos artistas do stencil, que, ainda
que não tivessem a mesma quantidade de adeptos, foram capazes de levar adiante uma causa pública que marcou e transformou os
comportamentos em um período da história.
Entre os autores contemporâneos estudados nesta pesquisa, como Tristan Manco e Nicholas Ganz (2004), também existe coinci-
dência com a descrição de Sennett (1990) e Baudrillard (1979). Ainda que sem o aprofundamento das discussões que estes autores
empreenderam, eles concordam que o grafite é uma ação oriunda de artistas de origens latino e afro-americanas, dos bairros degra-
dados de Nova York e Filadélfia, como TAKI 183, JULIO 204 ou CAT 161
6
, os quais começaram a pintar seus nomes nas paredes e
nas estações do metrô na década de 1970. Para esses autores mais recentes, esses jovens encontraram no contexto da cidade uma
estrutura muito fértil para criar suas intervenções. Viram bairros muito decaídos, como o Harlem, ao lado do glamour da Broadway,
conviveram com muitas culturas e classes sociais, tiveram um olhar para a cidade, percorrendo-a como um todo. Com esse reper-
tório de experiências, lançaram um bombardeio de jatos de spray, que rapidamente se apoderou da cidade como espaço da escrita,
rivalizando com a publicidade na ocupação da paisagem urbana e tomando de assalto o espaço visual do cidadão. Com o tempo,
também ocuparam os trens, o principal meio de transporte da população mais pobre, onde milhares de pessoas viam suas obras
cotidianamente. Na década de 1980, menos de uma década depois de seu surgimento, afirmava-se que na cidade de Nova York não
havia um só trem que não tivesse sido pintado ao menos uma vez (GANZ e MANCO, 2004, p. 9). Foi neste período que a influência do
grafite norte-americano, associada ao hip hop
7
, fortaleceu sua difusão no resto do mundo, tanto na Europa como na América Latina.
E foi num período anterior a essa difusão que ocorreu um rebatimento forte no contexto da arte contemporânea.
6
Esta assinatura representa a abreviação do nome do grupo com o
número da quadra em que o autor mora.
7
O grafite surgira associado ao hip hop, movimento cultural norte-
americano que incluía outras formas de expressão, como a música
do rap, a dança do break, e os MC´s das festas célebres dos guetos
nova-iorquinos.
3 2
OS PIONEIROS NA VIRADA DOS ANOS 1980
Para compreender a emergência do grafite
8
em São Paulo, remetemo-nos à Nova York no início dos anos 1970, cidade e período
considerados por diversos autores (BAUDRILLARD, 1979; CHASTANET, 2007) como o berço da expressão. Atentamos ainda aos
próprios grafiteiros, que enxergam Nova York como referência inescapável. A partir desta base, procuraremos investigar as relações
entre os grafiteiros tidos como pioneiros em São Paulo e a tradição nova-iorquina, analisando em que situações houve rebatimentos
e em quais não houve, bem como de que forma se deram estes rebatimentos em gerações mais contemporâneas nossas, chamadas
aqui de “Old School” e “New School”, cuja produção vem ganhando projeção internacional.
São Paulo, no final da década de 1970, vivia um contexto nefasto para qualquer manifestação pública. Era o período da ditadura
militar, que assolava as intenções e ações de artistas e militantes de causas que implicassem uma posição contrária a esse governo
autoritário no país. Este dado é significativo para entendermos a pouca abrangência da intervenção artística na cidade nesse momen-
to, em especial do grafite, que começava então a emergir. No contexto nova-iorquino, os jovens grafiteiros também não eram bem
recebidos pela municipalidade, mas não tinham de enfrentar ameaças reais e fantasmas, como os produzidos pela ditadura brasileira,
para se manifestarem no espaço público.
As primeiras manifestações do grafite paulistano poderiam ter assumido grande audácia, caso pusessem em questão o contexto po-
lítico autoritário e suas conseqüências, sinistras para seus autores, desde que pudessem trabalhar algum conteúdo de contestação.
Na dissertação de Arthur Lara (1996) foram identificados três tipos de autores de grafite e/ou pichação
9
nesse período inicial: (i) os
estudantes universitários que escreviam “Abaixo a Ditadura”, (ii) os jovens dos bairros da Lapa e do Alto de Pinheiros que escreviam
frases como “Gonha Mó Breu” e (iii) os escritores de publicidade, como “Cão Fila km 26”. As ações dos dois últimos não envolviam
nenhuma contestação, correndo riscos mais significativos apenas os primeiros. Embora houvesse ditadura, os artistas que vivencia-
ram esse período, e cujo trabalho e ponto de vista abordamos na pesquisa de mestrado, surpreendentemente não citaram a repressão
como um impedimento para a prática do grafite ou razão para serem arrastados aos porões do DOI-Codi.
10
Rui Amaral, um dos jovens artistas do Alto de Pinheiros entrevistados no âmbito desta pesquisa
11
, diz-nos que começou a pintar
com 15 anos de idade, em 1976. Formava um grupo com o amigo Alberto, lançando pelas paredes do bairro o nome “Patrulha
Canábica”, com uma máscara de stencil da folha da maconha, inspirando-se num livro sobre esta técnica que o amigo trouxera dos
Estados Unidos. Sobre o grafite tal como surgira nos Estados Unidos, ligado ao gênero do hip hop, o artista diz que sua introdução
em São Paulo deu-se paralelamente, trazido por artistas como Gêmeos, Binho, Alex Hornest e Speto, membros de uma geração
contemporânea chamada “Old School”, que começou a pintar suas letras grandes, ou throw ups, na linguagem do hip hop, somente
a partir de 1987, período posterior ao da geração pioneira de que Rui Amaral faz parte.
Quanto à abrangência do território da metrópole em que atuavam os artistas do Alto de Pinheiros, Rui Amaral mostrou, sobre um
mapa da cidade, que inicialmente não saíam da Zona Oeste, região dos bairros onde moravam. Diferentemente, a geração contem-
porânea da Old School, que sucedeu à de Rui, passou a abranger toda a cidade com o grafite do gênero do hip hop; uma atitude
favorecida pela participação dos grafiteiros na cena cultural que reunia jovens da periferia no Largo de São Bento no início da década
de 1980. Tais encontros motivavam relações com pessoas de vários bairros mais afastados, levando estes artistas a uma circulação
em regiões da cidade que ultrapassaram o raio da Zona Oeste.
Por outro lado, Rui Amaral e outros artistas de sua geração seguiram o caminho natural de um jovem de classe média: entraram na
universidade – Rui, na Faap, um dos templos de formação de artistas plásticos das últimas décadas – e desdobraram o grafite em
um investimento plástico maior, transcendendo o hip hop, no qual estavam encerrados, ainda que só inicialmente, os grafiteiros da
Old School. A geração pioneira absorveu também as referências da performance e de outros manifestos e práticas comumente apren-
didas numa formação artística universitária, atuando na rua, encarada como um grande ateliê. Nessas iniciativas formavam grupos,
como o Tupi-não-dá, por onde passaram Rui Amaral, Zé Carratu, John Howard, Jaime Prades, Carlos Delfino e Ciro Cozzolino.
8
O termo aparece em Nova York com a grafia “graffiti”, incorporando
a referência italiana à palavra; no entanto, utilizaremos aqui a forma
“grafite”, já dicionarizada na língua portuguesa.
9
Nesta dissertação utilizamos a grafia “pixação”. Lara (1996), no
entanto, utiliza “pichação”, referindo-se às definições dadas pelos
grafiteiros da primeira geração.
10
Órgão da ditadura militar responsável por torturas praticadas nos
presos políticos.
11
Entrevista concedida ao autor em junho de 2007.
3 3
Além desse grupo, surgira outra vertente, esta vinda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e da ECA-USP, com artistas
que valorizavam o trabalho gráfico, como Carlos Matuck, desta última escola. Nenhum desses grupos, porém, sustentou-se por
muito tempo. Como ocorre no caminho de uma carreira artística, seus membros construíram trajetórias independentes, abandonando
a ação coletiva na rua, enquanto os grafiteiros das gerações nossas contemporâneas, da Old School e da New School, mantêm a
prática de pintar juntos na rua, apesar de alguns terem conquistado o espaço institucional, também se projetando individualmente.
Dessa maneira, vemos no Brasil da virada da década de 1970 para a de 1980 a existência de pessoas que protestavam contra a
ditadura militar, ao mesmo tempo em que havia aqueles que simplesmente ocupavam a paisagem urbana com inscrições poéticas,
como era o caso de Alex Vallauri, do grupo Tupi-não-dá, de Rui Amaral, de Waldemar Zaidler, de Carlos Matuck e de Hudinilso
Junior (todos com origem na classe média e com formação universitária). Esta cena ocorria antes mesmo da chegada da referência
do grafite nova-iorquino. Mas, ao reivindicarem para si o nome de “grafiteiros”, estes artistas considerados pioneiros encontraram
resistências da parte de quem pesquisou a especificidade do grafite tal como surgira em Nova York.
A REIVINDICAÇÃO DO NOME GRAFITE EM LITÍGIO
Vale destacar a crítica formulada no final da década de 1970 pelo tradutor do ensaio “Kool Killer ou a insurreição pelos signos”, de
Baudrillard (1976)
12
, que detalhou a prática do grafite tanto em Nova York como em São Paulo. Segundo esse tradutor,
“os graffitis estão em São Paulo, mas basta ler Kool Killer com um mínimo de atenção para perceber que
os graffitis nova-iorquinos (assim como as inscrições do Maio de 68 francês) não podem ser assimilados
aos paulistas, tais as diferenças sociais e culturais que separam as respectivas cidades onde eclodem ou
eclodiram” (MESQUITA, 1979, p. 42).
Depois, o tradutor parte para uma crítica direta:
“Publicações culturais à cata de fatos novos que confirmem uma ansiosa e ansiada abertura não hesitam em
ver nas alegres inscrições dos bairros de classe média paulista uma ‘rebelião dos muros’ (que talvez culmine
numa insurreição geral de portas e janelas). Independente de eventuais ‘boas intenções’ para com o novo, é fato
que tais aventuras teóricas redundam numa verdadeira análise cultural mistificante, contribuindo para reduzir
e descaracterizar (inclusive pelo exagero da importância atribuída) um fenômeno importante, ao menos como
sintoma. [...] Em São Paulo, maio de 1979, cumpre procurar a especificidade (ou falta de) dos graffitis paulistas.
E mais: cumpre analisar as próprias análises dos graffitis, pelo seu poder revelador de certas posturas culturais”
(MESQUITA, 1979, p. 42-3).
13
Embora críticas como a de Mesquita (1979) tenham surgido numa revista do meio universitário paulistano, não impediram a difusão
e a influência dos artistas pioneiros – também universitários –, muito menos a atribuição do nome “grafite” àquilo que praticavam.
Essa geração de grafiteiros de origem universitária formou muitos outros herdeiros, que continuaram a atuar com as técnicas do
stencil, à mão livre com o spray e com técnicas das artes gráficas. Entre eles se destaca Celso Gitahy, formado pela Faculdade de
Belas Artes em São Paulo, o qual continua na cena da cidade e tornou-se um dos principais defensores desse gênero de intervenção
urbana com o stencil. Cheio de contradições, porém, e mudando de posição em relação à pixação: ao ministrar um curso de grafite
na ONG Cidade Escola Aprendiz em 2001, ele disse que a pixação é uma ação prejudicial para a cidade, na medida em que resulta
de uma atuação agressiva com o meio urbano. Em outro momento, passou a defendê-la, associado-a ao stencil, quando esta foi
absorvida como arte pela exposição “Pixo Logo Existo”, em outubro de 2006, na Pinacoteca do Estado.
Por ocasião dessa exposição, Gitahy dirá que os pixadores mantêm “a essência transgressora do grafite, que está perdendo força”
(VAZQUEZ, 2008). No contexto desta fala, a geração nossa contemporânea da New School, que o sucedeu, representada por Zezão,
12
O texto original de Baudrillard integra a obra “L’échange symbolique
et la mort”. Paris: Éditions Gallimard, coleção Bibliothéque dês
Sciences Humaines, 1976. Há duas traduções do texto para o
portugês, uma de Fernando Mesquista, publicada na revista Cine-
Olho nº 5/6 jun/jul/ago, 1979; e outra de Maria Stela Gonçalves
e Adail Ubirajara Sobral, constante do livro “A troca simbólica e a
morte”. São Paulo: Loyola, 1996.
13
A revista Cine-Olho, em que foi publicado o ensaio traduzido,
tendo sido fundada no Rio de Janeiro, por membros do Cineclube
da PUC (CAC), transferiu-se para São Paulo em 1977, passando a
ser vinculada aos cineclubistas da FAU-USP e da ECA-USP, mesma
escola na qual surgiu o grupo 3nós3 e Carlos Matuck.
3 4
Boleta, Titi Freak, Nunca, Highraff e outros, ganhava espaço em galerias de arte e espaços institucionalizados da cidade – como no
caso da exposição na Galeria Fortes Vilaça, realizada em março de 2006 (antecipando a exposição “Pixo Logo Existo”) com Zezão,
Nunca e Highraff – de uma forma muito parecida com a que marcou a geração pioneira. A despeito da relevância do apontamento de
Gitahy, a nosso ver, existe um embate nesse cenário, demarcado pela ausência do stencil entre as técnicas predominantes dos con-
temporâneos, bem como pelo fato de os pioneiros não serem convidados para receber parte dos louros proporcionados atualmente
pelas galerias. Ainda que realizem exposições no período, os lugares que ocupam não conferem a mesma consagração galgada
pelos grafiteiros contemporâneos.
Outro aspecto contraditório é a própria inconstância da posição do discurso de Celso Gitahy, no mesmo ano em que fez a exposição
“Pixo, Logo Existo”, defendendo a expressão da pixação contra o grafite, escreveu um artigo em que trata a pichação como inflamação
e o grafite como cura:
“Embora toda a polêmica sobre a pichação, propriedade privada e graffiti, sinto-me compelido a comparar a
origem de tais linguagens em São Paulo com uma grande gastrite que a cidade contraiu, em que a inflamação,
em vez de ser nas paredes mucosas do estômago, seria nos muros e espaços públicos da cidade. Toda
inflamação serviu, e continua servindo, para sinalizar o organismo sobre algum tipo de disfunção ou distúrbio
vindo do meio externo. Vou ainda mais longe: o graffiti não seria somente a inflamação que apresenta o sintoma
de uma urbanidade corrompida e banalizada pelos diversos meios contemporâneos, mas também o próprio
bálsamo curativo apresentando a própria arte nas ruas, e para todos.” (POATO, 2006, p. 48-49).
Outro elemento contraditório que pode ser observado nessa associação inusitada entre grafiteiros do stencil e pixadores é a própria
relação entre grafiteiros e pixadores, apontada pela pesquisa de Artur Lara (1996) como cheia de conflitos. Esse autor diz que os dois
grupos são “cheios de rivalidades internas, e que há dificuldades de relacionamento entre eles e o resto da população, bem como de
aproximação interna entre os vários grupos de grafiteiros e pixadores entre si” (LARA, 1996, p. 144). É de estranhar, então, que de
repente os grafiteiros preteridos pelo mercado da arte tenham resolvido todas as suas pendências com os pixadores para manter-se
na disputa pelo espaço institucional. Além desse elemento, na entrevista e nos documento analisados no âmbito desta pesquisa,
Celso Gitahy não pontua que os grafiteiros Zezão e Boleta (membros da geração atual) também são pixadores atuantes do grupo
Vício, e não apenas grafiteiros absorvidos pelo mercado.
Ao mesmo tempo, uma questão emblemática relacionada à origem do grafite em São Paulo vincula-se à eleição daquele que seria
o pioneiro, tanto pela geração dos artistas dos anos 1980 como por parte dos autores que abordaram o fenômeno. Mas o fato é que
o início da história artística daquele precursor não guardava muitas semelhanças com o grafite tal qual surgira no contexto nova-
iorquino. O nome dele é conhecido por todos: Alex Vallauri. Sua biografia também: filho de um industrial judeu italiano, nasceu em
Asmara em 1949, na Eritréia (que à época do nascimento de Alex pertencia à Etiópia), e circulou pelo mundo, passando pela Europa,
Estados Unidos e Argentina. Chegando ao Brasil em 1965 com sua família, foi absorvido pela atmosfera da desigualdade social do
país, suas questões e sua beleza. Passou então a desenvolver um trabalho de xilogravura sobre as prostitutas de Santos, cidade onde
morava antes de vir para São Paulo estudar Comunicação Social e Artes Plásticas na Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap) – a
mesma escola de Rui Amaral e uma das principais formadoras da cena artística brasileira. Segundo o artista, começara a intervir na
cidade em 1978, momento em que existiam muitas pichações políticas e poéticas, mas faltavam trabalhos de ordem visual, desta
maneira, acrescentou um elemento novo ao repertório iconográfico da arte urbana paulistana quando desenvolveu um trabalho de
símbolos sem textos.
Ainda que o trabalho de Vallauri não guardasse, porém, muitas semelhanças formais com o grafite, tanto nas técnicas como nos
procedimentos, em 1983 realiza uma exposição chamada “Graffiti em Nova York”, no Café Paris (no bairro do Butantã, em São Pau-
lo), reduto dos universitários da USP no início da década de 1980. Em texto sobre a exposição, a organizadora do evento diz: “Alex
Vallauri convida a nos dispor a decifrar e interpretar algo sobre a vida e os costumes dos habitantes de uma grande metrópole” (VAS-
SÃO, 1983)
14
. As obras mostradas nessa ocasião eram fotocópias coloridas à mão, mostrando personagens que estavam presentes
14
Material encontrado no acervo da Bienal Internacional de São Pau-
lo.
3 5
nas ruas, e um audiovisual de suas intervenções e das de Keith Haring em Nova York. O estilo de tudo o que se via era o da Pop Art e
o do kitsch, nas palavras do artista, distante da pintura de Jean Michel Basquiat – que passara a fazer parte do universo da arte con-
temporânea, vindo do grafite – ou das letras do grafite do gênero hip hop nova-iorquino. Ainda assim, o audiovisual apresentava Nova
York, cidade em que emergira o grafite, e focalizava a rua como um elemento inescapável, de onde o artista recolhia seu repertório e
à qual retribuía com intervenções em stencil.
Recorrentemente, nos textos que abordaram a trajetória do artista, encontramos a frase que afirma ter Vallauri entrado no museu,
vindo da rua, sem perder a vitalidade de suas intervenções sobre o muro da cidade. Tais textos negligenciam o fato de que seus
trabalhos com stencil só apareceram na rua a partir de 1978, e ele entrara no museu antes de estar na rua. Ao mesmo tempo, esses
textos reconhecem que a fonte de sua matéria-prima era a rua. Entre os autores desses textos, destacamos Fabio Magalhães, que
o convidou para uma exposição na Pinacoteca chamada “Muros de São Paulo”, em 1981, e Maria Cecília França Lourenço, que o
integrou na exposição “Proposta para os Anos 80: Normal e Acima”, em 1984.
Esses detalhes, porém, não impediram que ele fosse homenageado um ano depois de sua morte com a escolha de seu aniversário,
27 de março, como o Dia Nacional do Grafite, e isso indica que ele tinha currículo para intitular-se grafiteiro. Numa entrevista con-
cedida ao Jornal da Tarde
15
, contudo, por ocasião da inauguração da exposição “Mural Grafite”, na Galeria São Paulo, ele dizia: “Em
um ano e meio de Nova York, onde fui me especializar em graffiti, consegui trazer algo de novo para o Brasil: incorporar os móveis
e utensílios domésticos ao repertório já existente e dar humor às coisas, valorizando sempre o kitsch que eu adoro”. Nesta frase o
artista demonstra a falta de especificidade do que identifica como grafite, associando elementos que não faziam parte da expressão,
mesmo em Nova York, como os móveis e utensílios do cotidiano de uma casa. Estes são dados específicos de sua obra, e não da
expressão do grafite; Vallauri não precisaria invocar o grafite para falar sobre estes aspectos. O dado mais emblemático dessa sua
declaração, porém, é ele afirmar que fora especializar-se em grafite na cidade de Nova York, não levando em consideração que o
grafite consiste em uma manifestação que não exige um currículo formal para constituir-se, e impõe-se pela transgressão, como uma
forma de pintura não-autorizada. Fica difícil concluir que pudesse existir uma especialização em grafite.
A frase acima é significativa para entendermos como foi o processo de introdução do grafite no Brasil. O grafite de Nova York no final
da década de 1970 vinha na esteira de uma tendência internacional que projetava artistas em galerias importantes do circuito da
arte contemporânea, entre eles, Jean Michel Basquiat e Keith Haring. Sua chegada ao Brasil se dá pelas referências trazidas por Alex
Vallauri, um dos poucos artistas de sua geração que tinha trânsito internacional, independentemente das exposições de seu trabalho
como artista, como no caso da experiência em Nova York, citada acima, que diz respeito a um curso de artes gráficas que fez no Pratt
Institute. Por poder circular e ter um contato direto com a expressão nova-iorquina, conquistou autoridade para falar sobre o que era
ou deixava de ser o grafite, mas nunca falou da especificidade do que realizava, distinguindo-se e identificando semelhanças em
relação aos primórdios invocados.
Ainda sobre a vinda do grafite para o Brasil, a Bienal Internacional de São Paulo também assume papel importante como referência
nacional, e também para elevar o status dessa linguagem. Na cronologia dos fatos, constatamos a presença do grafite nas primei-
ras Bienais da década de 1980, com Kenny Scharf e Keith Haring (17ª Bienal de São Paulo, 1983). Este evento coincidiu com um
momento sintomático, imediatamente posterior à consagração de Jean Michel Basquiat, que, numa carreira meteórica, chegou à
Documenta de Kassel – um dos principais eventos da arte contemporânea em nível internacional –, em 1982, como o artista mais
jovem daquela edição.
Somente depois da relevância internacional atribuída à expressão do grafite, a 18ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1985,
acolhe a obra “Festa na Casa da Rainha do Frango Assado”, de Alex Vallauri, trazendo para um espaço autorizado a tradicional in-
tervenção do artista que acontecia pelas ruas de São Paulo. Essa obra foi considerada ainda como uma instalação, modalidade que
ganhara relevância nas classificações da arte contemporânea, tendo a geladeira e o fogão que figuravam na composição da obra
permanecido no acervo do MAC-USP. Além disso, fizeram parte da cenografia da exposição “Street Art”, no MAC-Ibirapuera (de
15
O graffiti, dos muros da cidade para uma luxuosa galeria. Jornal da
Tarde. São Paulo, 20 dez 1983.
3 6
novembro de 2007 a janeiro de 2008).
Dessa maneira, a trajetória de Vallauri foi distinta daquela dos representantes dessa linguagem consagrados contemporaneamente.
Antes de ser grafiteiro, Vallauri era gravador, participando de sua primeira exposição coletiva no “Salão de Arte Jovem de Santos”,
em 1968, antes mesmo de entrar na faculdade. Depois participou de três Bienais de São Paulo. Em sua primeira Bienal, em 1971
(11ª edição), apresentou uma obra dentro do gênero da pintura, mas, nessa ocasião, faltara-lhe o posicionamento crítico diante do
quadro político vigente no período. Por outro lado, artistas consagrados, como Max Bill, Alexander Calder, Henry Moore e Pablo
Picasso, boicotaram o evento, e, além de negarem-se a participar, também publicaram na imprensa norte-americana uma carta de
repúdio à perseguição movida pela ditadura militar ao escritor e crítico Mário Pedrosa. Picasso, que teve uma importante mostra na 2ª
Bienal, também recusou a homenagem a seus 90 anos, que a edição pretendia fazer. Na segunda participação de Vallauri na Bienal,
em 1977 (14ª edição), o artista realizou uma obra de videoarte, atendendo a expansão dos suportes da expressão artística de então,
mas perdendo a oportunidade de inserir-se no tema “os muros como suporte da arte”, que se apresentava como eixo curatorial e
se encaixaria melhor dentro de suas pretensões de grafiteiro. Na terceira participação do artista na Bienal, em 1981 (16ª edição),
apresentou uma obra de mail art
16
, que viria a aproximar sua produção artística do gênero do grafite e fornecer-lhe um mecanismo de
divulgação para seu trabalho de intervenção urbana. Antes desta ocasião, em 1979, carimbou a “bota” da “rainha do frango assado”,
obra presente na rua, em cartões postais da cidade de São Paulo que foram enviados para importantes jornalistas e meios de comu-
nicação. Ainda que tenha realizado o trabalho sem se identificar, favoreceu a curiosidade dos que tentaram perscrutar a associação
de seu nome a sua expressão presente na rua.
Diante desse quadro complexo de distinções entre as práticas dos pioneiros e dos contemporâneos, podemos entender que Alex
Vallauri teve uma trajetória associada ao manejo das tradições instaladas no ambiente da arte contemporânea, mudando de lingua-
gem quando a vanguarda apontava o gênero e o suporte privilegiado. Pela cronologia de sua carreira, fica evidente que o grafite não
fazia parte de seu repertório desde o princípio, e sim foi incorporado quando se tornou uma boa e conveniente opção, já assinalada
no contexto internacional. Como ocupou uma posição satisfatória nas instituições de consagração da arte antes de adotar esta
expressão, não foi o grafite, sozinho e enquanto prática de vanguarda, que construiu sua posição nesse campo, foi, em vez disso, o
manejo a que nos referimos acima. Embora ele tenha dado notoriedade ao grafite, isto só ocorreu no Brasil, já que são outros artistas
que na maioria das vezes representam o país nas exposições estrangeiras.
Escrevendo no ano seguinte, Mesquita (1979) questionou a reivindicação da condição de grafiteiro por parte dos praticantes que se
destacavam no período. Mas, no caso de Vallauri, a biografia tem papel primordial para entendermos a tomada de posição do artista.
Ele só começou a fazer grafites em espaços públicos de São Paulo em 1978, momento da eclosão da expressão em Nova York.
Depois disso, no início de 1980, Vallauri vai viver justamente em Nova York, aproveitando a oportunidade proporcionada pelo curso
de artes gráficas que foi fazer no Pratt Institute para conhecer de perto do que se tratava essa nova linguagem, quando manejada por
artistas de formação universitária, como Keith Haring. Ao final, Vallauri aparece com o grafite na Bienal de 1985, recolhendo os frutos
de sua trajetória nesta linguagem dentro de uma instituição importante.
Todavia, parte da disposição de Vallauri de assimilar o kitsch, a imagem banal da cultura de massa, e desenvolver procedimentos
de reprodutibilidade de imagens fotomecânicas, e por fim conferir destaque para a dimensão figurativa, também pode ser verificada
como tendência na arte brasileira entre as décadas de 1970 e 1980. Tadeu Chiarelli (2008), contrapondo-se a posição de Roberto
Pontual de que haveria uma oposição entre estas décadas, vai dizer que a Geração de 1980 vai seguir a trajetória da Pop Art, trans-
formando imagens absolutamente banais em “belas artes”, e neste procedimento absorve questões conceituais. Em especial Leda
Catunda, pelos tecidos populares estampados, suporte sobre o qual realiza suas pinturas, Alfredo Nicolaiewsky pelas fotos recolhidas
de revistas homoeróticas associadas a imagens de salas decoradas da classe média, e Caetano de Almeida pelas pinturas repro-
duzindo imagens fotomecânicas. A crítica de Tadeu Chiarelli (2008) também visava não diminuir a Geração de 1980 em função de
suas escolhas, uma vez que esta fizera um empreendimento numa linguagem figurativa sobre o suporte do quadro, tido como gênero
menor pela Arte Conceitual. Tais procedimentos eram visualizados pela Arte Conceitual como uma continuidade técnica em relação
16
Arte realizada com base no envio das obras pelo correio.
3 7
à Arte Moderna, onde vigorava o expressionismo, a habilidade manual e uma crítica sobre a substância e o conteúdo da intenção do
artista na própria obra. Para determinados segmentos do campo da arte do período, o que se valorizava era um signo dentro de uma
rede comunicacional onde a designação fazia a obra existir, sem sequer demandar sua realização, o conceito assumira uma dimen-
são esmagadora que prescindia de todos os demais aspectos da criação. Desta maneira, visando mostrar o conceito tornado obra,
Chiarelli (2008) afirma que na Geração de 1980 “desenvolveram produções que em nenhum momento deixaram de ser críticas, quer
em relação ao sistema de arte, quer ao próprio sistema de poder socialmente instituído.” (CHIARELLI, 2008, p. 375).
A posição de Chiarelli nunca esteve isolada, muito menos faltaram exemplos para verificar esta presença da figuração no campo
da arte na década de 1970. Neste caminho, Tatiana Ferraz (2006), coadunando com a idéia de que haveria continuidade mais do
que ruptura para caracterizar a geração de artistas surgidos na década de 1980, vai apresentar em sua dissertação de mestrado a
intitulada “Nova Figuração” (termo cunhado pelo crítico francês Michel Ragon), na qual se materializava uma produção artística cuja
figura aparecia no contexto urbano. Segundo a autora, como na Pop Art, esta produção realizava uma apropriação de linguagens da
comunicação de massa. Entre os artistas brasileiros que se destacavam neste gênero durante o período da década de 1970 marcam
presença: Nelson Leirner, Rubens Gerchman (que realizara o importante quadro “Lindonéia: a Gioconda do subúrbio”), Wesley Duke
Lee (que compunha portentosas instalações com estas referências), Carlos Vergara, Antonio Henrique Amaral, Waldemar Cordeiro,
Glauco Rodrigues, Antônio Dias, João Câmara, José Resende e Siron Franco.
Contudo, José Resende se sobressai dentre os membros desta geração que atuou com a figuração na década de 1970, pois realizou
uma intervenção urbana propriamente dita, ampliando a relação com a cidade ao colocar uma obra escultural em contato direto com
o pedestre da Praça da Sé. Esta ocasião se deu em 1978 com a obra arrasadora do Metrô Paulistano no lugar em questão. Como
contraponto à destruição arquitetônica, em especial do Edifício Santa Helena, reduto de artistas da geração Modernista, foi aberta
a oportunidade para um empreendimento incisivo na paisagem da cidade, da qual José Resende apropriou-se realizando a obra
“Sem Título”. Tal obra permitia perscrutar as possibilidades de interação com o público diverso que circula cotidianamente pelo
lugar. Para o artista, é só com a relação cotidiana do homem com a obra no espaço que se constitui a condição de pública para a
escultura (RESENDE, 1999 apud FERRAZ, 2006, p. 133)
17
. Desta maneira, este artista, inscrito no circuito da Arte Contemporânea,
reforça a posição assumida pelos grafiteiros de que a relação com um público fora dos espaços institucionalizados era vital para o
revigoramento da expressão artística em sentido amplo. Entretanto, esta possibilidade, diferentemente do grafite, passava por um
apoio difícil de obter junto ao Governo que administra as obras em espaço público. Não por acaso, a obra de Resende é um objeto
isolado na produção do período.
A crítica de arte Aracy Amaral (2006) também acrescenta uma análise coincidente com a de Chiarelli (2008) e Ferraz (2006) sobre
a Geração de 1980 (da qual se dedica a investigar Leda Catunda), mas diferentemente deles vai notar a presença dos grafiteiros pio-
neiros. Abordando a nova pintura entre os artistas da década de 1980, fala de Rodrigo Andrade como um sujeito que se aproximou do
grafite de Jean Michel Basquiat pelo gestual desestruturado, e acrescenta que Rodrigo Andrade é “um tipo de grafite diverso daquele
realizado por Carlos Matuck, Waldemar Zaidler ou Alex Vallauri entre nós, artistas que já passaram de personagens ‘marginais’ a ‘ar-
tistas’, levando para dentro das galerias suas figuras inspiradas nos mass media, mas com um encanto singular ao ocupar as paredes
de interiores” (AMARAL, 2006, p. 145-146). Portanto, se Vallauri se inspirou nesta tendência de assimilação do grafite, certamente
não estava sozinho, e talvez nem tenha feito a absorção melhor resolvida para reconhecermos sua filiação de grafiteiro, ou, por outro
lado, não tenha incorporado os elementos almejados pelo mercado de arte quando acolheram Basquiat. Pois o grafite dito pioneiro no
Brasil, distinguia-se dos pressupostos da expressão, e Basquiat entrou na galeria com uma proposta diferente da que se apresentava
na rua como grafite. Tais elementos também revelam o desconhecimento de Amaral (2006) sobre o próprio nomos do grafite.
Desta maneira, a demanda atendida por Alex Vallauri não se restringia a sua disposição, mas principalmente a um anseio instalado
em todo campo da arte do período em que atuou na cidade. Coincidentemente, seus trabalhos de grafite só surgirão em 1978, mo-
mento nevrálgico para os artistas em questão presentes no campo da arte brasileira.
17
“somente o convívio, um processo lento de relação, poderá criar,
para as esculturas, esta condição de bem público”. (RESENDE, 1999
apud FERRAZ, 2006, p. 133 - entrevista José Resende a Lúcia Carnei-
ro e Ileana Pradilha. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999, p.14).
3 8
RENATIMENTO NA ARTE CONTEMPORÂNEA: A SITUAÇÃO EM NOVA IORQUE
Para demarcar as diferenças entre o grafite e as demais expressões que também se assentavam na rua, Baudrillard (1979) afirma
que em maio de 1968 os muros eram apenas suporte e a linguagem utilizada, era a tradicional. Não havia construção de uma lin-
guagem nova, uma insurreição pelos signos, contribuindo para que não houvesse repressão ou repintura sistemática das frases de
conteúdo político. “A prova disso está no fato de que a administração foi sutil o suficiente para não apagar as inscrições ou repintar
os muros: foram os slogans políticos de massa e os cartazes que se encarregaram disso” (BAUDRILLARD, 1979, p. 38). Além das
circunstâncias do maio de 1968 e de tudo o que elas implicaram, esse autor também distinguiu o grafite da ofensiva de Jerry Rubin
e da contracultura americana contra a televisão, a qual não inovou nos suportes (metrô, estações e cartazes) e foi igualmente ineficaz
para alterar o meio propriamente dito. Tais movimentos não se equiparam em número de adeptos e em quantidade de intervenções
ao grafite nova-iorquino da década de 1970. Esta expressão não precisou de massas organizadas nem de consciência política para
ter um efeito infinitamente maior no tempo (ocupa a cidade da década de 1970 aos dias atuais e continua vigorosa em sua presença)
e no espaço (está presente nas principais cidades dos cinco continentes).
Entre as intervenções presentes na década de 1970, Baudrillard (1979) distinguiu ainda outro fenômeno, os City Walls nova-iorqui-
nos, os quais não passavam de pinturas murais realizadas nas empenas cegas dos edifícios, sendo financiadas pelo Departamento
de Cultura da Prefeitura de Nova York e pela Fundação Rockefeller, que não tinham, portanto, o menor traço de insubordinação.
Demarcadas as diferenças, Baudrillard (1979) vai dizer que a abordagem estética do grafite é uma redução, tributária da cultura domi-
nante. Sobre uma outra forma de arte do período, realizada pelos mesmos grupos sociais do grafite, mas que tinha caráter figurativo,
explorando a iconografia da cultura negra, e transmitindo mensagens de paz ou com temas revolucionários, esse autor afirma que,
justamente porque nela os motivos visuais eram abordados como belos ou feios, e isso denotava que aí o critério estético poderia
ser usado, deixando de ter assim, só por isso, o caráter selvagem e insubordinado do grafite. Desta forma, fica claro que Baudrillard
(1979) rechaçava esta abordagem, mas esse rebatimento na análise estética que o grafite fomentou não pode simplesmente ser iden-
tificado como um aspecto da cultura dominante, as questões que ele levou para este mundo não eram restritas a ele, dizem respeito
ao comum do tempo em que surgiram, e, mais ainda, são oriundas de um grupo que não era dominante na cultura, engendrando a
glória de uma verdade do banal. Neste sentido, faz-se urgente uma análise também estética da expressão.
Quais eram, porém, as artes vigentes no período, para além das intervenções urbanas do grafite? Como estava organizado o campo
e quais eram as problemáticas que absorviam os praticantes no momento anterior à emergência do grafite?
Durante a emergência do grafite na década de 1970, estavam presentes, enquanto práticas e procedimentos artísticos, mas princi-
palmente como concorrentes, o minimalismo, o conceitualismo, a Arte Processual, a Earth Art, a Land Art e a performance. Num
período anterior, fornecendo as bases para as problemáticas em questão, faziam parte do panorama: a Pop Art, a Assemblage, o novo
realismo, os happenings e o abstracionismo post-painterly. Tal classificação de movimentos e eventos é feita por Archer (2001),
coincidindo também com a apresentada por Cauquelin (2005), que se baseia na mesma disposição cronológica de fatos. Nos itens
abaixo, trataremos daqueles que possuem algumas das características associadas ao grafite. E investigaremos como o grafite poderia
desdobrar-se em rebatimentos nas problemáticas da arte do período.
POP ART VERSUS NOVO REALISMO
Uma década antes de surgir o grafite, nos idos dos anos 1960, os americanos consolidavam seu espaço com a Pop Art, rivalizan-
do com a Europa e os centros tradicionais da arte em Paris e Londres. O termo não era novo, já vinha sendo usado pelos artistas
britânicos Richard Hamilton, Eduardo Paolozzi, Nigel Henderson e Peter Blake, que o criaram nos idos dos anos 1950. A realidade
social de que eles tratavam era, porém, norte-americana. Para Archer (2001), esses artistas estavam observando a quinta-essência
deste mundo e transpondo para as telas esse espírito. No entanto, trabalhavam com uma matéria-prima com a qual não tinham tanta
3 9
intimidade, o que tornava o resultado da fatura mais distanciado e reflexivo. Por isso, o crítico Thomas Hess denominou-os livrescos,
e suas ações, as de um bibliotecário. Os artistas ligados ao Royal College of Art de Londres absorvem essa crítica e começam a
produzir um trabalho mais intimamente ligado às temáticas e ao tratamento necessário à cultura norte-americana. Entre eles, surge
o americano Kitaj, mas o montante maior continua sendo londrino: David Hockney, Richard Smith, Peter Philips. Como característica
de seus trabalhos, existe a figuratividade selecionada dos meios de comunicação e das ruas.
Foram, contudo, Andy Warhol e sua Factory (empresa concebida como um consórcio que se instalou em 1962 num loft do SoHo,
bairro de Nova York frequentado e habitado por artistas no período) que tiveram o papel preponderante para demarcar as principais
características do que se convencionou chamar Pop Art. Para Cauquelin (2005), Warhol foi o porta-voz lúcido e satírico da sociedade
de consumo, e sua obra teve a qualidade de não se pretender de fora, como algo transcendente, mas situou-se dentro do sistema
mercantil, ao mesmo tempo em que o criticava pela sua própria exibição, promovendo uma superexposição, saturando as redes de
comunicação que faziam da informação um fato. Diferentemente dos outros artistas da Pop Art, ele foi o empreendedor de um nome,
de uma marca, tal qual um publicitário, o que ele era de formação: em suas palavras, um artista/homem de negócios. Ele dominava
o processo não somente da fatura da obra, mas do sistema, do campo que a tratava enquanto arte. E sua principal crítica foi dizer que
este também era mediado como negócio, sem alimentar a pretensão da peça única, do belo e do gosto refinado, que a estética criara
para distinguir o campo da arte do mundo dos negócios movido primordialmente pela busca do lucro.
Em comum com o grafite, a Pop Art extraiu temas da banalidade urbana dos Estados Unidos. A diferença em relação ao grafite é que,
em vez de voltar contra a própria sociedade o consumismo e as formas publicitárias, criou uma forma própria alheia aos códigos
dominantes, mas, assim que passou a ser figurativa, incluiu o quadrinho, o cartoon e seus personagens como aspecto recorrente.
Lichteinstein, antes dos grafiteiros, levara esses quadrinhos ao pedestal de arte culta, com telas em grande formato produzidas na
linguagem da cultura visual da massa. No caso deste artista, havia também a recusa do expressivo que caracterizara o expressionis-
mo abstrato de Jackson Pollock, artista que marcara o período anterior ao Pop. No caso dos grafiteiros, a própria vertiginosidade da
fatura impedia uma obra bem acabada, e nelas o expressivo e o traço nervoso do artista estavam presentes de forma inalienável.
Na história da Pop Art, um evento significativo também ajudou na projeção internacional das obras e artistas desse movimento. Em
1962 o Museu de Arte Moderna de Nova York realizou um simpósio em torno da seguinte questão: um imaginário tão disseminado,
persistente e compulsivo da cultura de massa dos Estados Unidos tinha de ser notado pelos artistas. Embora esse aspecto tenha
sido observado primeiro no exterior, foram os artistas da casa que melhor realizaram-no. Depois desse fato, em 1964 o habilidoso
galerista nova-iorquino Leo Castelli publica um anúncio, na renomada revista Art International, dizendo que alguns artistas de seu
país, Jasper Johns, Robert Rauschenberg e outros, os quais haviam estabelecido algumas das características americanas da Pop
Art, estavam expondo na Documenta de Kassel, na Bienal de Veneza, em Londres e Paris. Depois destes acontecimentos, Annette
Michelson, uma crítica americana residente em Paris, proclama, na mesma revista em que se manifestou Leo Castelli, que a arte da
América tinha uma superioridade em relação à arte européia do período. Estas afirmações deflagraram uma acirrada disputa, com
intervenções de ambos os lados. Entretanto, aos olhos dos críticos de hoje, a posição de Castelli e Michelson poderia ser ratificada,
ainda que esses críticos atuais não estejam diretamente ligados aos dividendos gerados pela Pop Art.
Nesse sentido, Cauquelin (2005) desenvolverá uma análise apresentando as problemáticas engendradas pela arte contemporânea
e os “embreantes”
18
dessas transformações. Para ela, são três as figuras principais: Marcel Duchamp, Andy Warhol e Leo Castelli.
Deixando de lado os novos realistas surgidos na França, na corrente da arte associada a Pierre Restany, um francês que almejou
contrapor-se ao Pop dos norte-americanos com a mesma temática do banal e do urbano. Segundo Restany (1979), as obras dos
artistas que vinham na esteira de seu manifesto artístico, em especial, a de Raymond Hains, mostravam uma preocupação de “recu-
perar poeticamente as formas mais correntes de explosão das linguagens visuais organizadas: manifestos, publicidade, mass media
(RESTANY, 1979, p. 30). A obra principal de Hains, até mesmo, era uma colagem com os cartazes rasgados das ruas de Paris, uma
obra que se dizia herdeira da tradição dadaísta das colagens de Schwitters, porém, como disse Restany (1979) no segundo manifesto
do grupo, em 1961, “quarenta graus acima de Dada”.
18
A autora apresenta esse termo como aquele que descreve uma
mudança significativa desencadeada no contexto da arte contempo-
rânea. Essa palavra provém do francês embrayer, idealizar, imaginar,
dar idéia de, mas também embrear, engatar uma marcha.
4 0
Por sua vez, embora Cauquelin (2005) não se deixe absorver por uma questão de nacionalidade, e situe Warhol acima de Restany,
este último estava imbuído da idéia de demarcar o campo da arte do período com seus manifestos e críticas, e, mesmo depois
de ver o eixo da hegemonia pender para o Pop dos americanos, continuou reafirmando sua posição como precursor. Segundo ele,
César, um outro artista que se associava a seus manifestos, lançava luz sobre o exato alcance do novo realismo, “não mais enquanto
grupo histórico, liquidador do informal e precursor da Pop Art, mas enquanto filosofia geral da visão, assumida simultaneamente por
alguns dos maiores artistas de hoje” (RESTANY, 1979, p. 60). Tal declaração escrita data do ano de 1970, momento em que César
participava de uma exposição no Centro Internacional de Arte Contemporânea de Paris, e, principalmente, mostrava a pretensão
mal fundamentada de ser a vanguarda de um empreendimento que deu mais certo do que o seu próprio. Segundo Archer (2001), a
diferença de denominação entre o novo realismo e o Pop era uma tática do primeiro para abarcar o segundo dentro de si, e dizer que
pouco havia mudado, resistindo assim à proeminência da pintura americana, que fazia os pratos da balança inverter-se, retirando a
superioridade que Paris vinha mantendo até aquele período.
BASQUIAT ACOLHIDO PELO VENCEDOR DA DISPUTA
Diante do quadro de manifestações artísticas que vai da década de 1960 à virada para a década de 1970, e dessa disputa entre ame-
ricanos e europeus, a arte contemporânea norte-americana vê-se numa encruzilhada: enquanto seus artistas estavam preocupados
com o encadeamento de suas realizações numa história linear da arte, onde o debate sobre as problemáticas eram cada vez mais
hermético, do outro lado, podia-se testemunhar o distanciamento de seu espectador. A partir desse ponto, passou a ser muito im-
portante para a arte estabelecer conexões com seu contexto, partilhar a visão comum da sociedade. Desta forma, no início da década
de 1970 passaram a surgir associações de artistas, os quais começaram a deixar de lado o caráter individualista de sua condição, e
as temáticas passaram a atender demandas políticas cada vez mais abrangentes e urgentes para o período.
Nesse processo de expansão dos horizontes possíveis, foram-se entrelaçando relações entre arte e política, e daí surge Hans Haacke,
com um duplo enfrentamento: de um lado, criava intervenções artísticas (obras) que apresentavam severas críticas ao sistema eco-
nômico e, de outro, expunha um discurso que se inseria no processo de difusão rejeitando o enfoque formalista da prática artística
(aspecto personificado por Clement Greenberg) que desenvolviam análises que buscavam o estilo dominante. Entre as obras mais
emblemáticas dele vigorou Schapolsky et al. Os bens imobiliários de Nova York (1971). Nela ele fotografa os cortiços e apresenta
os seus proprietários, reunindo informações sobre a exploração imobiliária das comunidades afro-americanas e porto-riquenhas da
cidade. A obra foi incluída numa exposição do Guggenheim em abril de 1971, mas imediatamente retirada com a demissão de seu
curador, na justificativa das autoridades, constou que ela “ultrapassara os limites de aceitabilidade para uma dimensão política em
arte” (WOOD, 2002, p. 70). Futuramente, numa exposição realizada pela Serpentine Gallery e pelo Victoria & Albert Museum em
Londres, ele é descrito como “um dos artistas conceituais mais eminentes do mundo.” (WOOD, 2002, p. 71). O efeito da crítica
social de seu trabalho obtivera pleno sucesso no mundo da arte.
Entretanto, no início da década de 1970, ele não estava sozinho, o próprio campo expandido da arte era partidário da posição de
Haacke, e além deste aspecto, todos os movimentos apontados nesta pesquisa continuavam a vigorar, impedindo que se afirmasse
a existência de um estilo dominante ou que um grupo enfeixasse sozinho as tendências da arte. O modelo de crítica de Clement
Greenberg não mais fazia efeito, era impossível encerrar o período dentro de uma única apreensão, e se existisse uma apreensão os
artistas não se restringiam a ela, transitando por diversos segmentos, notadamente, Haacke realizava obras que ora se inseriam na
arte conceitual, ora na arte pública. Segundo a crítica de arte Rosalind Krauss (1977 apud ACHER, 2001), era o fim da especificidade
das linguagens artísticas apregoadas pela modernidade; a arte agora misturava todos os meios.
O segundo passo empreendido na arte nessa década foi no sentido da busca por alternativas de locais de exposição em relação às
galerias. Os artistas almejavam uma platéia mais ampla e diversificada. Ao mesmo tempo, apropriaram-se de oportunidades ofertadas
pelas modificações do espaço urbano, onde a vivência com o coletivo e o público estava eclipsada. Desde então, as ações podem
4 1
ser específicas, para tratar de questões e temas de interesse não necessariamente irrepreensível. E elas já não tinham a demanda
de ser universais ou realizar algo para todos. Partindo desta particularidade, puderam ser temporárias, e neste passo caminhar para
a desmaterialização do objeto artístico, tal processo é visualizado nos seguintes segmentos: site specific work, environmental art,
happening, body art, instalações e arte conceitual.
O espaço público torna-se o foco da ação artística, mas não se restringe às praças públicas e seus monumentos; ocupa lugares
indiscretos, marginais, não tradicionais. Consolida-se então a arte pública, que, antes do início da década de 1970, estava mais
próxima de monumentos à barbárie, como nomeou Walter Benjamin (1994). E nessas obras os vencedores contavam suas façanhas,
a exemplo do que ocorre no Arco do Triunfo em Paris, em que existe uma placa que homenageia os combatentes responsáveis pela
vitória dos franceses na Indochina. A arte pública configurava-se até então em monumentos erigidos em praças públicas. Mas,
segundo Pallamin (1994), “em meio à atmosfera de mutação e flexibilidade características da paisagem pública atual, a presença
de objetos duráveis expressando permanência/perpetuidade tem dado lugar a manifestações do efêmero e do surpreendente”. Um
dos principais artistas do movimento é a dupla Christo e Jean Claude, com intervenções efêmeras, muitas vezes críticas ao próprio
monumento e sua simbologia.
Paralelamente ao dilema de ampliar ou não o público, surge o desafio da sustentabilidade da ação artística. Assim, o mecanismo
encontrado para viabilizá-la economicamente foi apropriar-se da força do coletivo para pressionar as entidades em prol da abertura
de financiamentos públicos. Esta fonte também não estava, todavia, livre de condicionamentos, e também manifestava suas idios-
sincrasias de ordem ideológica: embora as fontes fossem públicas, elas eram direcionadas pelos grupos políticos que estavam no
poder.
A saída para o artista era diversificar suas fontes de sustentação e suas formas de vida. Entre as tentativas de mudança de formas
de vida, surge a iniciativa de um grupo liderado por Gordon Matta-Clark (1943-78), que ocupa um prédio em 1971, no bairro do
SoHo em Nova York, buscando uma forma de viabilizar-se economicamente sem patrocínios. Este artista formara-se na Sorbonne
(Paris) e trouxera a referência dos situacionistas e de Guy Debord para a realidade artística norte-americana. Na ocupação que inti-
tulou “Food”, ele e seu grupo remodelam o espaço, criam ateliês, moradia, e um restaurante. Depois de estabelecidos, Matta-Clark
começa novos empreendimentos, realizando o que chamou de “Anarquiteturas”, grandes intervenções em construções nas quais o
papel do artista consistia em retirar materiais e cortar espaços, pavimentos, e tudo o que desse evidência aos aspectos históricos do
cotidiano banal de um edifício simples. Neste sentido, também atingia a política, revelando a exaustão do uso capitalista do espaço.
Esse artista também fora convidado para participar da Bienal de São Paulo de 1971 (11ª edição), mas, coerente com sua postura
política, boicotou o evento, diferentemente de Vallauri.
O que, todavia, nos interessa nesse artista é que ele vai realizar um acolhimento interessante do grafite. Como seu empreendimento
tinha o mesmo caráter coletivo de um grupo de grafiteiros, ele convidou estes artistas a realizarem uma fotoglifia: um painel de
grandes dimensões com as fotografias dos grafites ao longo de um trem de Nova York, construindo, assim, uma narrativa que, dife-
rentemente das manifestações que estavam no trem, era estática e estava inteira diante dos olhos do espectador, que de outro modo
só poderia vê-la em partes ou de forma fugaz. Como outros pesquisadores do período, esse artista também concordava que levar o
grafite para uma galeria retira toda a sua insubordinação característica.
No entanto, logo que ocorreu o boom do grafite em Nova York, datado por Baudrillard no entorno de 1972, surgiram outras iniciativas
artísticas que pretendiam apropriar-se de sua força criativa e assimilar seus praticantes. Afinal, ele atendera a diversas problemáticas
presentes na arte contemporânea do período: ampliação do número dos espectadores, criação de um espaço alternativo ao espaço
da galeria (Land Art), efemeridade e desmaterialização do objeto artístico (instalação e arte conceitual), realização de uma obra fruto
de organização coletiva (situacionismo e site specific), construção de uma linguagem (tal qual pretendia a arte conceitual). Ainda
que lhe faltasse a dimensão política presente na mensagem da arte pública e no trabalho dos situacionistas, isto não tornava sua
expressão menos artística. Porém, um aspecto destoa de todos os demais, os grafiteiros buscavam algo alternativo, mas não eram
4 2
refratários a inserção no mercado das galerias, possuíam clareza de que a maior crítica era fruto da ausência deles nos espaços em
questão e não porque queriam abolir o sistema das galerias vigentes. Eles ainda faziam obras que não possuíam meios técnicos para
durar, mas ser efêmero era algo para ser superado e não promulgar como condição conceitual da obra. Por fim, o espaço público
era tido meramente como suporte, não existia uma reflexão sobre suas contingências, neste sentido, pela sua dimensão utilitária,
sempre permaneceram nele e foram hegemônicos na sua ocupação, em vez de ficarem reféns da burocracia que incide sobre ele para
poderem intervir. No entanto, deixaram escapar entre os dedos a possibilidade de exercerem uma reflexão que viesse a se inserir na
discursividade sobre a arte do período, e a atitude predominante utilitária, e de rechaço ao conceito, ratifica o desprezo de determi-
nados segmentos do campo da arte contemporânea pela produção.
A primeira absorção do grafite foi, sintomaticamente, realizada pela corrente pictural da arte moderna. Seus participantes estavam
dizendo, com isso, que o grafite seria fruto de “um fenômeno antropologicamente autêntico, sincrônico com a realidade urbana
americana, particularmente a de Nova York, mas também de uma memória cultural ligada à Europa, disso [resultando] a produção da
liberdade expressiva, mas também de linguagens que, de qualquer modo, podemos reencontrar nas vanguardas históricas européias”
(OLIVA, 1998, p. 24). Assim sendo, surgia para os grafiteiros a oportunidade de estudar as relações com a história da arte, estabe-
lecendo laços com pessoas e instituições que poderiam favorecer a transposição de sua arte vinda das superfícies desgastadas da
cidade para a assepsia do tecido branco da tela. Como empreendedor desta passagem, aparece Hugo Martinez, sociólogo do City
College que, para organizá-la, criou o clube UGA (American Graffiti Artist), em 1972. Sua intenção manifesta era “canalizar o talento
e a energia desses jovens em graffitis de ‘belas artes’, com o objetivo, dizia, de ‘orientar o trabalho deles para superfícies legítimas’”
(STEWART, 1998, p. 47). Esse talento, porém, perdeu frescor e carga emotiva, como reconheceu Jack Stewart, ainda que o próprio
Martinez acreditasse que a rebelião dos grafiteiros pudesse ser exteriorizada. Como efeito, o clube dissolveu-se em 1974, tendo
realizado exposições ao longo dos Estados Unidos e durado apenas dois anos.
Depois desse empreendimento, surgiu, em 1974 mesmo, pela iniciativa de Jack Pellinger, a organização NOGA (Nation Graffiti
Artist), na qual se tentou um processo distinto. Conseguiu-se a autorização da prefeitura para ocupar um galpão reunindo todos os
grafiteiros interessados em passar suas obras para as telas, e não apenas os eleitos pelo mentor do projeto, como ocorria com a
UGA. Logo após a realização dessas iniciativas, a própria imprensa ficou mobilizada pelo assunto. Norman Mailer produziu um ensaio
importante, aclamado pela mídia, The Faith of Graffiti (N.Y. Praeger Publishers), mas, devido ao desconhecimento que Mailer tinha
do meio dos grafiteiros, deixou de fora alguns dos principais artistas da ocasião. Seu livro foi classificado como toy book – livro de
iniciante que não fez nada de significativo para o meio da produção, segundo os grafiteiros consagrados. Não importava que desse
uma contribuição para o reconhecimento da produção por parte de um público culto, nem que introduzisse o grafite na história da
arte. Segundo os writers
19
, deveria respeitar o entendimento dos autores sobre sua própria produção.
Correlato ao indeferimento das demandas dos grafiteiros, ou à falta de compreensão de Mailer do que interessava aos grafiteiros de
Nova York num texto, existia o problema da própria inserção na galeria ou no museu, a qual significava para eles a passagem a um
lugar em que faltava o espírito de desafio. Segundo Becker (1998, p. 72), o primeiro impulso deles não era a busca da legitimação
pela história da arte, não tinham incorporado o habitus deste campo. Para a ingenuidade do historiador da arte, poderia parecer dile-
tantismo liberatório, ou habilidade artesanal, mas, para o grafiteiro, era uma questão de expressão em voz alta no espaço público, e
não uma tentativa de fazer parte do campo da arte.
Uma vez apresentada essa possibilidade, o próprio campo dos grafiteiros sofreu severas modificações, e a participação nos dividen-
dos gerados por essa porta aberta do mercado passou a ser interessante, interferindo na dinâmica dos grupos e nas relações dos
artistas. Mobilizando em alguns o rompimento com a identidade e o passado e em outros, advindos de uma formação mais escolari-
zada, manifestando a reivindicação daquela estética das ruas. No que concerne a esses artistas formados pelas faculdades de Belas
Artes, sua absorção pelo mercado de arte enquanto grafiteiros, invariavelmente, suscitava reações acaloradas entre os praticantes
da expressão surgidos do contexto urbano, como a de Daze (grafiteiro que fora iniciado na prática pelos precursores nova-iorquinos,
em 1976), que se mostrou ressentido em relação à incorporação de Keith Haring pelos media (nas palavras do artista) anteriormente
19
Denominação que os grafiteiros utilizam para se identificarem.
4 3
à dele.
Diante desse contexto, uma disputa que se restringia a ocupar o espaço urbano tornou-se cada vez mais complexa em função de
uma disputa pela ocupação dos espaços legitimados da arte. Sendo estes últimos indiferentes e mesmo negligentes em relação aos
méritos demonstrados pelos grafiteiros diante daqueles que se consagraram por pintar por toda a cidade. O poder de atuação dos
grafiteiros certamente interferiu no universo da arte contemporânea, porém, ainda não conseguiu influir nos direcionamentos do mer-
cado da arte, e nas escolhas que os agentes deste realizam, muitas vezes em detrimento da dinâmica da produção presente na rua.
Nesse ínterim, foram apenas poucos expoentes dessa linguagem que conquistaram o espaço do circuito institucional da arte, no-
tadamente Jean Michel Basquiat e Keith Haring, detentores de maior capital social e cultural entre os praticantes. Neste contexto, o
caso mais significativo para entendermos os requisitos determinantes para o sucesso do empreendimento artístico no circuito da
arte contemporânea foi o de Basquiat. Comungava com os primeiros grafiteiros a condição de ser negro e possuir origens étnicas
similares, era filho de mãe porto-riquenha e pai haitiano, mas sua família era de classe média, e teve uma boa formação escolar,
tendo acesso até mesmo a escola especial para superdotados. Enfrentava o preconceito, mas não partilhava das mesmas privações
socioeconômicas. Em relação aos outros grafiteiros, também se diferenciava por ter desde cedo o incentivo familiar, que o nutria
com livros de arte, em especial os dos artistas do Renascimento, referência que aparece em suas obras e sobre a qual trabalha Andy
Warhol para descrever o artista. Mesmo com todos estes atributos, e com o embalo do sucesso, como negro, sempre foi um outsider.
Enfrentava dificuldade para pegar um táxi no aeroporto depois de um vôo de Concorder entre Paris e Nova York
20
. Tal preconceito
influenciava a renovação contínua de seus fantasmas, auxiliada pelos efeitos das drogas que os potencializavam. Em relação aos
entorpecentes, tinha o acesso facilitado pelo dinheiro que suas obras rendiam e pela disposição dos galeristas a fomentar sua produ-
ção. Neste processo, jamais teve uma crise de inspiração que fizesse estagnar sua produção artística. Seus trabalhos eram almejados
justamente por esse conteúdo crítico e irrequieto que fluía em seu traço nervoso. Em sua pintura, a falta de técnica era vista como
qualidade. Por estas e outras características, seu trabalho consolidara-se na América branca como a principal voz dos negros nas
artes plásticas, e não simplesmente por ter sido grafiteiro.
A partir da absorção e consagração de Basquiat pelo circuito da arte contemporânea, a relação dele com o grafite torna-se ambi-
valente. Embora tenha surgido como praticante da expressão, ausentou-se da rua e mudou de nome artístico muito rapidamente,
e ainda substituiu o espaço urbano pelo ateliê como lugar de realização da obra. Com a passagem de Basquiat para um âmbito de
maior rendimento simbólico, a expressão do grafite beneficiou-se, porém, de uma maior divulgação gerada por ele, da mesma forma
que Basquiat beneficiara-se dela para conhecer a Nova York dos desfavorecidos e ter matéria-prima para representar as agruras de
seu tempo.
Basquiat teve capital social e, consequentemente, cultural para sobressair em relação aos demais, era muito próximo de Andy Warhol
(um dos principais envolvidos nas problemáticas legítimas da arte contemporânea), teve uma obra coletiva com ele, e laços profun-
dos, cuja quebra gerou uma crise insuperável quando Warhol morreu. Um outro fator não menos importante para a valorização da
obra de Basquiat foi o falecimento muito cedo (Basquiat morreu com apenas 27 anos). Por fim, teve o preço de suas obras alçado a
níveis próximos dos 300 mil dólares, quando teve, apenas um ano depois, o mesmo destino que Warhol.
20
Seu amigo grafiteiro Fred Braithwaite disse que, “como negro, foi
sempre um outsider, mesmo depois que estava viajando de Concor-
de, podia ter dificuldade em conseguir um táxi”. Ver Catálogo da Ex-
posição Jean-Michel Basquiat. Recife (PE): Museu de Arte Moderna
Aloísio Magalhães, 1998. Ver também o artigo “O grito é evidente, ou:
introdução geral a Basquiat”, de Olívio Tavares, integrante do mesmo
catálogo.
4 4
Imagem 12: Andy Warhol & Jean Michel Basquiat, 1984-85. “Monster
Meat”. Polímero sintético e pintura silkscreen sobre tela. 261.6 x 259.1 cm
Imagem 11: Jean Michel Basquiat, 1983. “Mona Lisa”. Óleo
sobre tela. 97.79 x 120.01 cm
Imagem 9: Michael Halsband. “Andy Warhol e Jean-Michel
Basquiat”. Fotografia, Nova Iorque, 10 jul 1985.
Imagem 10: Jean Michel Basquiat, 1982. “Dos Cabezas”. Óleo sobre
tela. 100 X 99 cm
4 5
Imagem 13: Andy Warhol. 1984. “David”. Exposição The New Portrait. Imagem de Jean
Michel Basquiat na mesma disposição da escultura David de Michelangelo.
4 6
Imagem 14: Os Gêmeos, 2009. Exposição “Street Art”, Tate Modern, Londre, 2008. Fonte: Museu Oscar
Niemeyer, 2009.
4 7
OLD SCHOOL
A RAIZ MAIS PRÓSPERA
Na produção do grafite, como em qualquer outra relacionada ao campo da arte, se reproduz uma regra que confere aos mais longevos
na prática o prestígio de guardiães da tradição, fruto do acúmulo de bagagens históricas e de minúcias técnicas que influenciam
no domínio de certa representação do que seria o tradicional e inalienável da expressão. Este tradicional, todavia, que um dia
foi ruptura contra o estabelecido, naturalmente passa de embreante iconoclasta à reprodução do mesmo. Os guardiães, diante de
uma posição confortável no campo, mais do que mudança, defendem o tradicional contra as rupturas de toda espécie, ciosos que
são dos benefícios da posição destacada e das ameaças a que são suscetíveis quando surgem rupturas bem construídas, que dão
continuidade ao que realizaram um dia.
Entretanto, sozinha, essa longevidade, na prática, não garante o domínio e a possibilidade de emitir opiniões válidas e respeitadas
no campo em que atuam. Existe um jogo subjacente, insidioso, de qualificação e desqualificação, que move os agentes no interior
do campo, ora desautorizando-os e desestabilizando-os na hierarquia das relevâncias, ora autorizando-os e alçando-os a novas
posições mais lucrativas na ordem simbólica e na economia da prática. Neste sentido, a consagração do agente não está relacionada
restritamente ao tempo, e sim à capacidade de exercer a última grande ruptura reconhecida e legitimada por todos os participantes do
campo da produção (artistas, críticos, galeristas e marchands), jogando ainda, com a visibilidade do que se diz, demarcando o pio-
neirismo da ação e a persuasão sobre suas razões para romper, buscando ser reconhecido enquanto autor da proeza. É esta ruptura e
seu agente que estabelecem o ponto comum, sobre o qual exigem conhecimento e reconhecimento como plausível, de onde devem
partir todos os pretendentes para adentrar e dar prosseguimento à produção e, quem sabe, marcar época. Neste sentido, a matriz da
Old School, de início, não produziu necessariamente uma ruptura na prática do grafite, mas, ao incorporar a tradição identificada na
matriz originária de forma mais coerente com os pressupostos da expressão, fez uma exigência de coerência para com a história do
campo e do termo, e por esta razão esteve à frente dos “pioneiros” Alex Vallauri e Rui Amaral.
Por estarmos no Brasil, um lugar à margem do cenário internacional da produção de grafite na década de 1980, em que o conhe-
4 8
cimento sobre a prática não era aspecto difundido e arraigado na sociedade, aqueles que reivindicavam a condição de grafiteiros
não necessariamente passavam por questionamentos sobre a pertinência de suas pretensões. Na década de 1980, ainda não havia
referências para servir de balizas. Desta maneira, foi um grupo que tinha informações parcas, relacionadas aos aspectos formais
visualizados em livros de fotografias das obras nova-iorquinas e à convivência com grupos de hip hop, que melhor incorporou a
prática do grafite e ofereceu o contraponto aos ditos “pioneiros”.
Sob certos aspectos, os integrantes da “Old School”, diametralmente opostos a Alex Vallauri, em relação ao qual eram menos
munidos de capital cultural e econômico, nem sequer viajaram para Nova York, como fez este artista assim que houve o boom da
expressão. Diferentemente dele, não acumularam um repertório abrangente de história da arte para situar o grafite nesse campo mais
amplo chamado arte contemporânea. Mas os membros da Old School identificaram suas especificidades e as praticaram, mesmo
sem a experiência concreta de ver os grafites de Nova York nos anos de formação.
Os capitais cultural e econômico não bastam para o empreendimento no meio do grafite. Com raras exceções, vemos nas biografias
dos artistas a ausência deste quesito como elemento determinante. Ao mesmo tempo, observa-se que a geração de Alex Vallauri e
Rui Amaral ficou distante do caráter formal da expressão, por mais que o acesso a ela não estivesse fechado nem dificultado pelos
recursos materiais. Rui Amaral, buscando a referência do grafite, encontrou-a num artista que não era necessariamente grafiteiro
na concepção dos pais da expressão: tratava-se de Keith Haring, com quem manteve contato direto e realizou intervenções urbanas
quando da passagem deste pela 17ª Bienal de São Paulo (1983). Aqui se destaca uma das principais características do grafite: ele
requisita uma produção árdua durante um longo período, passando pelo desenho, pelo domínio do spray (deve-se conquistar a mi-
núcia de controlar a pressão da lata e a abertura do jato de tinta sem nenhum regulador acoplado ao objeto) e, principalmente, pela
quantidade de intervenções na cidade; não basta pintar como os precursores e guardiães da expressão, o prestígio se faz ao longo
do tempo, e não pontualmente.
Posteriormente, esse grupo de grafiteiros da Old School passou por uma segunda separação dos pioneiros, e uma primeira ruptura
com o grafite nova-iorquino, ao absorverem a cultura popular brasileira na fatura da obra, distinguindo-se, então, duplamente de Alex
Vallauri e de Rui Amaral. A Old School, por trabalhar melhor o suporte formal inicial relacionado ao universo do hip hop, por possuir
maior presença na paisagem urbana, e dado um contexto mais favorável para se expressar (fora do período da ditadura militar) e ainda
incorporar os ícones da cultura popular, seja a brasileira, seja a americana vinculada aos quadrinhos e cartoons, hoje é tida como a
mais influente, estabelecendo os fundamentos de certa contemporaneidade paulistana.
A raiz da Old School é muito citada pelos artistas presentes no âmbito desta pesquisa. Isto revela algo notado em outros campos de
atuação, em que o tempo do investimento na carreira artística gradativamente acarreta maiores e melhores oportunidades de divulga-
ção, desenvolvimento técnico na fatura das obras e ganhos simbólicos. Os artistas desta geração aqui apresentados têm em média
20 anos de atuação na paisagem urbana e continuam nesse espaço ainda hoje. Consequentemente, são nomes fáceis de serem
notados por quem grafita e são referências inescapáveis para quem quer entrar no meio do grafite. Cada qual possui um traço e uma
composição plástica singular, fruto de uma individualização árdua, por sua vez produzida em função de distinções e caminhos novos
encontrados ao longo de inúmeras intervenções nos espaços de destaque da cidade. O nome “Old School”, com a escolha da grafia
em inglês, também apresenta a vinculação ao grafite nova-iorquino, distinguindo-se da referência técnica e cultural dos pioneiros.
“Old School”, no uso adotado no contexto paulistano, é a velha escola, são os pais da expressão no Brasil para as gerações presentes
e vindouras. É referência importante para adentrar nos debates e nas práticas do campo do grafite.
Entre os elementos contextuais que facilitaram a absorção do grafite, o que mais se destaca é a cultura do hip hop. Na década de
1980 ela chegara à cidade com muita força. Os jovens reuniam-se no Largo de São Bento e no Pentágono da Praça Roosevelt para
dançar break, fazer grafite, escutar rap, e ver os MCs fazerem seus versos. Na época, era clara a tendência de absorver a cultura
importada dos Estados Unidos, e, para tanto, num período em que até pouco antes o controle político da sociedade dava-se por meio
de uma ditadura militar, era necessária uma disposição juvenil sem consciência crítica sobre estas implicações.
4 9
Esta consciência permanecia entre os estudantes universitários, seio de onde eclodira a geração pioneira dos grafiteiros. Os espaços
do Centro da cidade (Largo de São Bento e Praça Roosevelt) em que se praticava a cultura do hip hop também serviam para os
praticantes de cada bairro reconhecerem que não estavam sozinhos. Assim foram sendo construídas as redes de sociabilidade para
estes jovens percorrerem a metrópole a partir dos “points
21
do Centro, tendência que posteriormente foi assimilada e consolidada
pela pixação. Distintamente de hoje, naquela época o grafite estava completamente integrado ao hip hop, em todas as dimensões
dessa cultura, de tal forma que as pessoas que hoje se destacam na música, como o DJ Hum, também faziam grafite, e Os Gêmeos,
referência atual do grafite, faziam rap e break. Havia, um trânsito entre as linguagens, permitindo experimentações para todos que
participavam do hip hop. Esta cena foi longeva, até o início da década de 1990 ainda vigorava. Dentre os grafiteiros que participaram
dela, cabe destacar Os Gêmeos, Speto, Rooney, Onesto, Bad, Def Kid, Zelão, Guerra das Cores, Tota, Bonga, Kase, Vitché, Marrom,
Binho, Herbert, Tinho e Rip.
Como ocorre dentro de qualquer geração, contudo, não foram todos que se projetaram, e, mesmo entre aqueles que obtiveram um
espaço no campo, alguns preservaram e mantiveram a mesma estética presente no hip hop, enquanto outros romperam com ela.
Dentre os que a mantiveram, abordaremos o trabalho de Binho e, dentre os que ganharam evidência realizando um desdobramento
da referência do hip hop em outras formas plásticas, analisaremos o trabalho dos Gêmeos, de Herbert, Tinho, Speto e Onesto.
OS GÊMEOS: LÚDICOS, DIVERTIDOS E DESPRETENCIOSOS
No caso dos grafiteiros contemporâneos, dos Gêmeos em especial, a trajetória começou pela rua. Não se trata de artistas profissio-
nais, que iniciaram galgando posições no circuito de consagração. Os Gêmeos ocuparam a paisagem da cidade desde a década de
1980, frequentando os points do hip hop (Largo de São Bento) e da pixação (Ladeira da Memória, Praça da Estação do Metrô do Paraí-
so e Centro Cultural São Paulo). Nos 1990 e 2000, circularam pela Europa no circuito do grafite, e foram então absorvidos pela Deitch
Gallery (importante instituição de Nova York que representa a obra de Jean Michel Basquiat) com a exposição “Cavaleiro Marginal”,
que aconteceu em março de 2005, tendo sido noticiada pelo The New York Times. Diferentemente de Vallauri, para eles está correto
afirmar que vieram da rua para o museu, já que tiveram vinte anos de ação na rua antes da entrada num espaço institucionalizado da
arte. A partir do reconhecimento internacional, depois da apresentação deles na Deitch Gallery, surgiu o convite, em 2006, para uma
exposição na Galeria Fortes Vilaça. É preciso registrar que a Deitch Gallery é uma galeria irmã da Fortes Vilaça, dentro das conexões
subjacentes da rede instalada pela arte contemporânea.
Em junho de 2008, Os Gêmeos conquistaram uma oportunidade rara no circuito internacional, participando da exposição “Street
Art”, da Tate Modern, em Londres, sem, porém, deixar de realizar intervenções nas ruas de São Paulo, aspecto negligenciado entre
alguns dos artistas da geração dos pioneiros, como Carlos Matuck. Uma crítica do Le Monde chamou a atenção para as contradições
dessa ocupação:
“Do outro lado da Millennium Bridge [defronte ao painel dos artistas], a cidade está grogue, mas é deleitada
pela iniciativa da Tate Modern, sua dançarina. Após tudo, aquilo faz lustros para os gerentes de ‘hedge funds’ e
outros pequenos gênios do dinheiro que colecionam esses artistas vindos da marginalidade urbana, margem da
margem, signo de uma explosão de uma economia capitalista de especulação”. (ROCHE, 2008)
Em seguida afirma:
“No Soho, na Hoxton ou no Brick Lane, abundam as galerias especializadas nessa arte menor que se tem
tornado tendência. Os shows são feitos a janelinhas fechadas. Em fevereiro, a casa londrina Bonham organizou
a primeira venda de ocasião de obras de graffiti, que bateram valores recordes”. (IBIDEM)
De fato, esses artistas estão atendendo a interesses especulativos de um grupo pouco preocupado com as questões ligadas aos
21
Locais de encontro dos praticantes dessas intervenções, os mesmos
em que ocorria a cena cultural a que nos referimos anteriormente.
Imagens 15 e 16: Os Gêmeos, s/d. Catálogo da Exposição
“Vertigem”, Curitiba, out 2008. Fonte: Museu Niemeyer, 2009.
5 0
lugares de onde provêm. Nas fotos das intervenções dos Gêmeos nas ruas, esta realidade é apresentada: são senhoras vivendo na
rua na companhia de um cão, pedintes sobre a bandeira do Brasil, uma foto de crianças dormindo na rua com um grafite ao fundo
de um personagem segurando a bandeira do país que perde a inscrição “Ordem e progresso”; são famílias inteiras em condições
degradantes, todos, provavelmente, recolhidos de suas vivências no bairro do Cambuci. No entanto, se existe alguma crítica social no
grafite, ela é inócua para esses compradores, e, no limite, a linguagem do grafite tornado comércio, no suporte do quadro, assume
um lado meramente decorativo neste contexto.
Dessa maneira, os artistas comprazem-se com a função primordialmente decorativa em suas exposições inscritas no ambiente da
galeria. Utilizam-se, neste contexto, de elementos populares: são as fotos pintadas, referência presente no quadro “Mauria, Esmeral-
da, Pomela, Naciacimento, Valdelios”, e no quadro “Cleidilson e Asvania”. Estilizam-se os ícones de representação popular e da vida
precária, presentes numa porta pintada, em que figura uma mulher com uma criança no colo e outra agarrada na perna, no quadro
“La familia” e também no quadro “The chicken of golden egg”.
Se os grafites estão, porém, sendo engolidos sem discernimento, para a multiplicidade de sabores e sentidos que carregam, da mes-
ma forma que ocorreu com outras vanguardas em relação ao mercado das galerias, cabe discutir as diferenças dos desdobramentos
dessas produções, pois o grafite continua na rua, apesar deste aspecto comercial a que serve, e parte desses artistas respeita o seu
nomos engendrador.
Foi, até mesmo, o conjunto de uma obra presente na paisagem urbana que foi lograda com a oportunidade gerada pela Tate Mo-
dern para os Gêmeos. Eles vinham realizando personagens de escala gigantesca (tal qual o presente na Tate) desde 2002, quando
fizeram um painel para as Olimpíadas de Atenas em que figura um sujeito de cueca, todo tatuado, com elementos que remetem à
Grécia. Em seguida, em 2005, pintaram um personagem de proporções correlatas na cidade de Heerlen (Holanda), utilizando-se
de um elemento recorrente na composição: a iconografia da cultura popular brasileira. Em 2006, na cidade de Tilburg (Holanda),
trabalharam personagens comuns na trajetória dos artistas: os grafiteiros. Só então ocuparam a fachada da Tate, com um camelô nu
de falo portentoso.
Dessa maneira, o crítico do Le Monde exclama: “Lugar para a arte da rua! Os puristas da arte contemporânea como os simples visi-
tantes são recrutados neste conto de fadas, teatro dos estilos e laboratório do futuro” (ROCHE, 2008). Talvez este jornalista não tenha
lido a crítica anterior que Os Gêmeos receberam de Fábio Cypriano, por ocasião da exposição da Fortes Villaça, mas certamente
acertou ao alfinetar “os puristas da arte contemporânea”. Os Gêmeos, contudo, querem vender, os preços que alcançaram para suas
obras (140 mil dólares) motivam-nos a procurar atender ao gosto do freguês e, consequentemente, possibilitar a manutenção desse
padrão de vida: como dito pelo crítico, estão vivendo um “conto de fadas”. Esse universo onírico dos contos de fada também está
presente na iconografia representada em seus painéis: um dos irmãos é casado com Nina, uma grafiteira que pinta fadas no estilo
dos mangás, com grandes olhos.
Portanto, a consagração da dupla dos Gêmeos não é aleatória. Fruto de uma iniciativa presente desde suas adolescências no tradi-
cional bairro do Cambuci, estes irmãos univitelinos desdobraram-se em grandes artistas formados pela rua e pelo desenho. A rua
fez a parte relacionada ao conteúdo: segundo eles, o que os move mesmo é a pintura na rua, precisam deste contato. Céticos quanto
ao isolamento do ateliê, dizem gostar da abordagem do transeunte, das conversas travadas com os homens comuns, e até da polícia
que os interrompe para verificar se são os famosos artistas. Tudo influencia no resultado, e, sem isso, a obra não emerge com força
simbólica, aglutinadora da diversidade e da imponderabilidade do espaço público. Por sua vez, o desenho manifesta-se como o
anteprojeto, a visualização prévia do que se almeja realizar, mas estando sempre aberto às texturas incorrigíveis da parede e às tes-
situras e cruzamentos suscitados pelo espaço cotidiano da metrópole. É ainda no desenho que se expressou a ligação indestrutível
entre Os Gêmeos, em que se consolidaram como unos, amalgamaram-se como a mesma coisa em algo externalizado, cruzando as
linhas da vida na obra da arte. Seu pai vai dizer que descobriu o talento deles nas linhas que cruzaram num desenho: “Quando eram
pequenos, dei a eles uma folha de papel. Começaram a desenhar, um por cima, o outro por baixo. No meio do desenho, os traços se
Imagens 17 e 18: Os Gêmeos, s/d. Catálogo da Exposição
“Vertigem”, Curitiba, out 2008. Fonte: Museu Niemeyer, 2009.
5 1
encontraram – ficou lindo. Os meninos sempre se falaram pouco. Eles se entendem pelo olhar” (WIANER, 2005)
Mas, para além dessa bula que influenciou Os Gêmeos para se consagrarem como artistas, existia todo um contexto que os mobilizou
ainda adolescentes para tal empreendimento. Este ambiente foi o do hip hop instalado no Largo de São Bento na década de 1980, o
qual não só os introduzira no universo do grafite, como também lhes fornecera o instrumental linguístico, formal e de conteúdos que
viria a estar presente em suas primeiras incursões nas intervenções urbanas. Como garotos, eram suscetíveis às celebrizações de
astros do universo juvenil, admiraram assim artistas transgressores do grafite, que ofereciam um espelho pródigo para radicalizarem
as intervenções no espaço público. Mas, antes do grafite, fizeram incursões no break e no rap.
22
Entre os aspectos que os influenciaram, figura com vigor a pintura dos trens. O bairro em que moravam fica próximo das grandes
estações da cidade, Luz e Brás, e do pátio de manobras do Pari. Desta maneira, influenciados pelo destaque que ocupam as interven-
ções nos trens para o contexto de Nova York, estes lugares foram seu alvo inicial. Uma de suas recentes pinturas, “Nova York 2008”,
trata especificamente deste assunto.
22
Fato este lembrado por Ice Blue, dos Racionais MCs, numa ocasião
que estávamos no estúdio de gravação no mesmo momento que
eles.
Imagem 19: Os Gêmeos, s/d. Catálogo da Exposição “Vertigem”,
Curitiba, out 2008. Fonte: Museu Niemeyer, 2009.
Imagem 20: Os Gêmeos, s/d. Catálogo da Exposição “Vertigem”, Curitiba, out 2008. Fonte: Museu Niemeyer, 2009.
5 2
Um grupo de quatro jovens está nos túneis do metrô da cidade, uma inscrição, “New York City Subway”, na parede revela onde estão:
eles invadiram aquele espaço. Mas um dos membros aparece destacado, não se sabe qual será sua intenção, o que se vê é um trem
vindo em sua direção enquanto ele está agachado olhando fixamente para ele. Não existe uma saída plausível, já que no trilho da sua
esquerda também existe outro trem vindo na mesma direção, e num terceiro trilho da composição do mesmo lado já passa um trem
em velocidade. E, caso ele deseje sair pela direita, existe um corrimão entre ele e a plataforma. Os companheiros ficam atônitos,
um aponta para o desfecho trágico, outro entrega as bagagens com as tintas para um terceiro membro e fica com a mão em riste,
chamando a ação para si. Parece que partirá em socorro do amigo, mas o espaço entre o amigo e o trem é equivalente ao que existe
entre ele e o amigo. São sete dormentes para que possa chegar ao amigo, e dez os dormentes que o trem percorrerá para atingi-lo.
Na composição da pintura, o amigo potencialmente suicida ocupa o centro; de seu lado esquerdo, faróis vermelhos acesos parecem
chamar a atenção não só do grupo, mas do espectador do quadro.
Falta ao quadro, todavia, o manejo correto da perspectiva e da luz, não existe um claro-escuro em degradê, e as cores utilizadas
saturam a visão. Este conjunto de procedimentos técnicos desfoca o interesse que poderia haver no desfecho trágico. Está ausente
a penumbra característica do ambiente em que estavam, o espaço é iluminado como se fosse dia, falta a economia cromática, os
tecidos das roupas que as figuras vestiam não eram suficientemente discretos para elas passarem despercebidas no contexto daquela
ação; enfim, faltou estudo. A pintura traz a mesma composição de uma intervenção na rua, e, por sua vez, seria mais persuasiva no
suporte do muro do que enfeitando uma casa burguesa. Portanto, este quadro revela dois aspectos pouco profícuos: o déficit no
domínio da técnica da pintura e de toda a história a que está condicionado o suporte do quadro; e a pouca reflexão sobre a transição
da rua para a galeria, ainda mais em se tratando de um fato caro ao grafiteiro, o risco de vida a que se submete para se expressar de
forma transgressiva.
O fato narrado no quadro é uma possibilidade plausível para esses jovens. Só contam com a solidariedade do grupo, em meio a uma
metrópole desumana na calada da noite, e é com o grupo que se sentem seguros para enfrentar o risco de vida, que, por sua vez, gera
a adrenalina alimentadora da expressão. A relação é ambivalente, de atração e desespero diante do perigo. No Brasil, poucos aspec-
tos se distinguem do contexto de Nova York, com a diferença de que o maior risco é ofertado pela própria polícia ferroviária.
23
O grupo é uma demanda nevrálgica para a prática do grafite, tanto para os praticantes burlarem os sistemas de segurança dos lugares
que adentram, como para se protegerem e aprenderem as técnicas da expressão. Os Gêmeos, quando iniciaram no grafite, também
tiveram tutores que orientaram seu trabalho. Entre eles, especialmente Speto (36 anos), filho de artistas plásticos e detentor de um
repertório mais abrangente de referências visuais. Dele receberam o conselho para a definição de um estilo. Nas palavras dos Gê-
meos, “pega tudo que você admira em outros artistas, mais aquilo que está dentro de vocês, bate tudo num liquidificador, que desta
mistura começa a amadurecer o seu estilo”
24
. Depois, estes artistas emendam, dizendo que seu estilo é algo muito natural, que
surge com espontaneidade. Tratam essa construção como uma criatura incriada e, no fundo, sonegam suas referências. Justificam o
processo como algo imanente a todo ser humano:
“acho que estilo no traço, você nasce com ele, você pode aperfeiçoá-lo ou matar toda aquela coisa inocente no
seu traço, em busca de um estilo perfeito, nosso estilo hoje é uma mistura de tudo que a gente gosta, desde
pequeno levamos a sério desenhar, aprender, e é engraçado que nos chegamos até aqui para ver que estilo é
uma coisa que você já nasce com ela”.
25
Se falta, contudo, sofisticação no discurso para apresentar o fundamento de seu estilo, não dá para dizer o mesmo sobre a fatura de
sua obra no espaço urbano. Sendo estilo o que desenvolvem, ou não, é nele em que aparece a potência da expressão.
Pessoas descrevendo apaixonadamente o trabalho da dupla também não faltam. Marcia Fortes e Alexandre Gabriel, na ocasião da
exposição “O Peixe que Comia Estrelas Cadentes”, que aconteceu na Galeria Fortes Vilaça, que dirigem, disseram:
“De linhagem claramente fantástica e algo surrealista, a iconografia d’Os Gêmeos pertence a uma tradição
que inclui Hieronymus Bosch, Dorothea Tanning, e os simbolistas vitorianos, Gustav Klimt, Frida Kahlo, os
23
Em uma ocasião, o grafiteiro X (ele pediu sigilo do nome) foi preso,
e os policiais o torturaram. Para não serem denunciados, apresentaram
o nome de sua filha e disseram que ela seria a próxima vítima. Para
não o encontrarem novamente no mesmo lugar, ainda sentenciaram
que seria um sujeito morto caso se repetisse tal circunstância.
Provavelmente não estavam mentindo.
24
Disponível no site Lost Art: http://www.lost.art.br/osgemeos_
interview_01.htm. Consultado em janeiro de 2009.
25
Disponível no site Lost Art: http://www.lost.art.br/osgemeos_
interview_01.htm. Consultado em janeiro de 2009.
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muralistas mexicanos, e muitos de seus contemporâneos, como Chris Offili, Takashi Murakami e AVAF (Assume
Vivid Astro Focus)”.
No entanto, faltam análises que identifiquem essa gramática visual em sua singularidade, para só então serem estabelecidas as
aproximações possíveis com esse universo de surrealismo, mundo fantástico e adjacências. Os ícones que utilizam podem ser
únicos, mas essa constatação só seria possível se houvesse estudos comparativos entre o seu trabalho e essas tradições instaladas
na história da arte ocidental, para, aí sim, verificar-se tal correspondência.
A metrópole contemporânea é a morada dos anônimos, dos sem-rosto, dos comuns, da civilidade, o que faz os sentimentos torna-
rem-se discretos e o outro tornar-se impassível diante do apelo do estranho. Na obra dos Gêmeos a expressividade está ausente das
faces de seus representados. Estes grafiteiros não estão mobilizados pela miséria humana, mas sim por seu potencial de estilização
no registro da arte. Por sua vez, falta-lhes a condução ética na utilização dessa temática, de modo que pudessem imprimir uma
transformação estética coerente com o conteúdo trabalhado por eles. Nota-se a ausência de uma postura crítica dos Gêmeos, que
se irradia pelos demais aspectos de sua obra. Um dos fatos mais determinantes desta postura deu-se com nitidez na relação com a
municipalidade de São Paulo.
Em 24 de junho de 2007, uma reportagem da Revista da Folha tratou da política sistemática adotada pela municipalidade de São
Paulo de apagar os grafites das ruas paulistanas. Na matéria, a acusação partiu dos grafiteiros, e tomou proporção ao mostrar como
alvo do governo municipal, entre muitos outros, a obra dos Gêmeos, que viram seus trabalhos cobertos de cinza. Estes se revoltaram,
ainda mais porque voltavam de um trabalho feito na Escócia, onde pintaram um castelo datado de 1200. Segundo a reportagem, num
intervalo de quatro meses, a ação de apagar repetiu-se sete vezes. O subprefeito da Sé, Andrea Matarazzo, responsável pelo Cidade
Limpa, nome do programa em questão, e pela indicação dos locais a serem pintados de cinza, retrucou dizendo que “não existe uma
política ou iniciativa [por parte da administração municipal] para cobertura de grafites; há sim uma rotina de limpeza da cidade”.
Depois emendou afirmando que “não sabemos o valor do grafite, e imagino que ninguém na prefeitura saiba”.
26
Mesmo diante dos debates que se seguiram, a prefeitura não mudou sua ação, e em julho de 2008 pintou por cima de um dos murais
mais significativos da dupla, feito em companhia de outros artistas de sua geração (Herbert, Vitché) e de sua família (Nunca e Nina).
Este trabalho cobria uma longa extensão de muro (680 metros quadrados) e demorou três meses para ser realizado entre a Avenida
23 de Maio e a Ligação Leste–Oeste. Desta vez a prefeitura reconheceu ter sido um equívoco a repintura, pois a obra apagada fora
autorizada e financiada pela municipalidade em 2002. Por ironia, no mês do apagamento, esses artistas estavam pintando as facha-
das da Galeria Tate Modern de frente para o rio Tamisa, em Londres.
Entretanto, o prefeito Gilberto Kassab não ficou ao largo dessa história na ocasião: chamou os artistas para uma conversa, que ocor-
reu no dia 16 de julho de 2008, e comprometeu-se a rever os alvos de sua política de cobrir de cinza para limpar a paisagem. Andrea
Matarazzo (responsável pelo Programa Cidade Limpa) pediu uma lista dos locais onde se encontravam os trabalhos dos grafiteiros,
para que essas obras não fossem apagadas. Em dezembro do mesmo ano, o prefeito Kassab apareceu para a inauguração da obra
que encomendou para ocupar o lugar da antiga, a qual foi custeada pela Associação Comercial de São Paulo, no valor de 200 mil
reais (mas que não incluía Herbert e Vitché, artistas presentes no primeiro painel).
No desfecho desse imbróglio, todos saíram satisfeitos, e provavelmente foi aceita a retratação do prefeito sem maiores problemas.
No entanto, onde ficou a postura crítica dos grafiteiros, que antecedia a retratação? Era só uma questão de autorizações e reconheci-
mento de valores da parte da prefeitura? Os artistas requisitaram autorizações para todo o campo da produção de grafite, ou apenas
para os seus próprios e os de seus amigos? Por que parte dos artistas presentes no painel de 2002 não estava presente no painel de
2008? Uma vez autorizada e encomendada a obra com um contrato que previa remuneração para os artistas, a criação da obra foi livre
para realizar uma crítica ao processo empreendido pela prefeitura? Tais questões permanecem sem resposta, mas a única centelha
de irreverência observada é um burro pintando de cinza: um detalhe do painel de dezembro.
26
WAINER, João. “Guerra do spray”. Revista da Folha, suplemento do
jornal Folha de S.Paulo, 24 jun 2007, p. 13 e 14.
5 4
Por sua vez, os artistas dizem fazer, e podemos observá-la no painel, uma crítica de caráter ecológico ao cotidiano da metrópole.
São arvores sendo queimadas para acender um charuto, esgoto, solidão e romantismo, críticas lúdicas ao desmatamento. Mas falta
coragem para tocar nos assuntos nevrálgicos da metrópole e da política contemporânea, como o programa higienista do prefeito
Kassab, que visa a afastar a população pobre do Centro da cidade, e por tabela alguns dos personagens presentes nas obras dos
Gêmeos, coragem esta que certamente possuíam, quando faziam suas obras não autorizadas de início de carreira.
Nesse sentido procede a reticência que o meio da arte contemporânea faz aos grafiteiros. Comparados a Hans Haacke, mostram-se
muito distantes de empreender uma ação crítica no meio da arte e da cidade. Este artista alemão radicado nos Estados Unidos rea-
lizou, na VIII Documenta de Kassel de 1987, uma obra em que associa dois dos patrocinadores do evento, Daimler-Benz e Deutsche
Bank, ao regime pária do apartheid da África do Sul, uma vez que o financiamento deles também se dirigia a esse regime marcado
pelo preconceito racial. Em relação aos Gêmeos, esse artista guarda poucas semelhanças. A presença na Tate Modern e a temática
da cidade com a arte pública demarcam a grande lacuna entre a produção dos grafiteiros, o posicionamento crítico e coerente e a
posição transgressiva que julgam possuir.
Imagem 21: Os Gêmeos, 2008. Painel na Avenida Ligação Leste-Oeste, com participação de Nina, Nunca, Finok e Zefix. Foto de Louise Chin
& Ignacio Aronovich, 2008. Fonte: http://www.lost.art.br/muralsp2.htm.
Para além desses aspectos relacionados diretamente às obras dos artistas, um outro se faz notar, sendo porém pouco discutido:
relaciona-se ao processo que levou Os Gêmeos a uma inserção portentosa no circuito internacional das instituições de arte. Diferen-
temente da maioria de sua geração, eles tiveram o apoio de uma produtora reconhecida e premiada pelo campo da arte brasileiro,
5 5
a Art Unlimited, que foi responsável pela coordenação e gerência internacional da 23ª, 24ª e 25ª edições da Bienal de Artes de São
Paulo, respectivamente em 1996, 1998 e 2002. Tal empresa é formada por europeus, residentes no Brasil, que tiveram presença
significativa na Bienal: Pieter Thomas Tjobes (holandês), Yannick Bourguignon (francesa) e Tânia Mils (anglo-brasileira). Este grupo
detém no país, quase de forma excepcional, uma extensa rede de contatos com os grandes museus europeus. Seu capital social
certamente fez a diferença na recente projeção dos Gêmeos, por mais que as primeiras incursões da dupla em território europeu
tenham ocorrido no circuito do grafite, com a hospedagem deles em casas de grafiteiros que conheceram depois do primeiro painel,
em 23 de maio de 1999. A partir desse contato com a Art Unlimited, o processo profissionalizou-se, e foram acessados lugares de
consagração que não são franqueados à quase totalidade dos grafiteiros brasileiros.
TINHO: UM GRAFITE QUE FAZ CRÍTICA SOCIAL
O posicionamento crítico em relação aos problemas sociais vislumbrados no espaço urbano é um dilema para esse artista, aspecto
que o distingue de sua geração, que tem nos Gêmeos a grande referência. Começara em 1984, e, em comum com os mais destaca-
dos da expressão, aventurava-se pela metrópole na adolescência. A pixação, diferentemente do que ocorreu com sua geração, foi o
que promoveu a primeira incursão do artista. Depois ainda fez máscaras de grafite (técnica de stencil art), presentes nos pioneiros,
mas não gostava de reproduzir sempre a mesma imagem. Esta disposição impulsionou-o a fazer desenhos diretamente sobre a
parede, com o spray: eram seus primeiros bombs. Não se restringiu, porém, ao processo de formação escolar que o Ensino Médio
técnico poderia oferecer (o que marca a experiência dos Gêmeos e de Herbert Baglione [Cobal]). Foi o único de sua geração que,
como Alex Vallauri e Rui Amaral, frequentou e se formou em Artes Plásticas na Faap.
Nascido em 1970, começou a pintar aos 13 anos de idade. Absorvendo uma característica dos anos 1980, frequentou a cena de skate
da cidade, esporte que pratica desde os 9 anos. Foi este esporte uma das contribuições definidoras de seu posicionamento com
o ambiente urbano. Com ele, tornou-se um explorador das grandes cidades, atrás de uma relação mais íntima com sua geografia,
Imagem 22: Bomb de Tinho, com o rolinho ao lado fazendo referência à técnica de pintura com látex característica do grafite paulistano.
Fonte: MANCO & NEELON, Lost Art. Graffiti Brazil. Londres: Thames & Hudson, 2005.
5 6
arquitetura e superfície, seja andando de skate, fazendo grafite ou simplesmente “flanando”, numa citação que ele faz de Walter
Benjamin. Junto do skate também absorveu a cultura punk, que também emergira no período. Graças a isso, assimilou as letras retas
que fazem parte tanto da pixação como das capas dos discos punk.
Na exposição realizada na galeria POP em São Paulo (14/08/2008), podemos observar, já no convite para o evento, o conjunto de
suas motivações: ao lado de uma criança cheirando cola encontramos os skatistas explorando a metrópole. A relação mais íntima
com a metrópole impulsiona o olhar para as problemáticas do espaço público, as mazelas humanas, e, na concepção do artista,
o descaso e o abandono a que são submetidos os miseráveis que habitam as ruas: crianças de rua, mendigos etc. Neste sentido,
embora seja um aspecto citado pelo artista, não podemos encontrar correspondência dessa disposição de circular criticamente
pela cidade com a atitude contemplativa do flâneur. Este protótipo do homem no século XIX estava em busca de outros aspectos da
metrópole e sua história, o que é bem diferente do que fazem o skatista, o punk, o pixador ou o grafiteiro.
Imagem 25: Tinho, s/d. Painel no Clube Municipal do Jardim São Paulo (Zona Norte).
Imagem 23: Tinho, 2008. Óleo sobre tela. Imagem usada em convite de exposição na galeria
Rojo®artspace São Paulo / Pop, 2008.
Imagem 24: Tinho, 2008. Exposição Brazilian Street Art. Comemoração dos 180
anos das relações comerciais entre o Brasil e a Russia. Moscou, Russia.
5 7
Como mencionado pelos Gêmeos e por Binho, Tinho também teve uma referência forte no processo de formação ofertado pelas
conversas e visitas que fazia a Speto, e, principalmente, pelos dias que passava desenhando em sua casa. Este contato chamou sua
atenção para a diversidade técnica e estilística que poderia desenvolver em suas intervenções urbanas e para o empenho no desenho
como forma de desenvolver sua obra.
Influenciado pelo investimento de tempo e energia que fez ao longo de sua carreira artística, vai dizer que, para se conquistar respeito
na cena da cidade, existem dois caminhos, um mais fácil e econômico, estruturado na quantidade das intervenções, e outro em que
é necessário mais do que bombardear a cidade com as ações ilegais de pixação e de bomb (letras do grafite hip hop). Neste último,
a produção é fruto de dedicação, estudo e disciplina. Tributária do partido que tomou pelo segundo caminho foi a temática e a força
expressiva que alcançou, criando uma obra que de modo algum se resume ao caráter decorativo, os personagens que aparecem em
seus trabalhos possuem rostos sofridos, e concentram no olhar uma dimensão de sentimento dificilmente encontrada nas obras dos
artistas de sua geração.
Embora não o escolha como alvo de seu discurso, Tinho vai se contrapor à idéia de Baudrillard relativa à força de uma recessão de
conteúdos. Para ele, os grafiteiros
“poderiam usar os bombs para bombardear, na cabeça dos transeuntes, suas ideias e pensamentos a respeito
do que acham estar errado, ou o que pode ser mudado em favor de um mundo mais igualitário. Ou, ainda,
fazer interferências ou puro bomb em caminhões, outdoors e lojas de empresas que estejam destruindo o meio
ambiente, ou explorando crianças na fabricação de seus produtos; como uma manifestação contra empresas
exploradoras e que visam apenas o lucro e o crescimento da própria empresa sem se importar com as pessoas
que fazem e/ou compram seus produtos” (TINHO, 2006, p. 85).
Com esta frase, ele se declara favorável a uma arte engajada, não expressão de uma ideologia dominante, seja de esquerda ou de
direita, mas de um posicionamento crítico da realidade que explora em sua obra. Relativamente a esta questão, Os Gêmeos foram
financiados pela Nike numa exposição que ocorreu em Venice Beach, no estado da Califórnia (Nike Blue House, 7 de abril de 2005),
na qual reproduzem uma favela, customizam um tênis e apresentam sua obra, mas não se perguntam sobre o trabalho exploratório
que esta marca promove no Sudeste Asiático.
Tinho, por sua vez, ao tomar posse daquilo que ao mesmo tempo é de todos e não é de ninguém, como as imagens de sofrimento
que abundam na metrópole, e utilizando-se de seus contornos e superfícies, socializa seu pensamento em forma de arte, ideologia
e modo de viver. Como os dadaístas, e seus sucessores, os novos realistas, vai coletando papéis e imagens reais e imaginárias que
são registradas em seus diários visuais, o que resulta em colagens, desenhos, pinturas e projetos de instalação. Mas, sem escapar
da contradição de ser incorporado numa exposição da Galeria Fortes Vilaça (“Choque Cultural na Fortes Vilaça”, em 18 de março de
2006), que antecedeu a primeira grande exposição dos Gêmeos na cidade de São Paulo (“O Peixe que Comia Estrelas Cadentes”,
em 28 de julho de 2006). Eles passaram pelo mesmo espaço de consagração, mas com status distinto. Não por acaso, Os Gêmeos
estavam com melhores condições e estrutura ofertada pela galeria e tiveram um público mais expressivo, bem como venderam todas
as telas, pelo valor de 30 mil dólares cada.
SPETO: A ILUSTRAÇÃO COMO BASE DA FORMAÇÃO
A trajetória de Speto caracteriza-se como a história de um ilustrador. Vindo de uma família de artistas, que desenvolveu o desenho
de forma significativa, com um grande espectro de referências visuais e de elementos de história da arte, o que o levou a trabalhar
nos estúdios de Maurício de Souza (marco importante dos quadrinhos no país, com a Turma da Mônica), logo no início de sua ca-
minhada. Associados a este percurso, estiveram presentes a pixação, o skate, o hip hop do Largo de São Bento e, na mesma postura
5 8
Imagem 26: Speto, s/d. Decoração.
Fonte: http://www.speto.com.br/swfs/home.swf. Acessado em fevereiro de 2004.
Imagem 27: Speto, 2007. Exposição no Memorial da América Latina. Fotografia do autor, 7/1/2007.
5 9
de Tinho, a disciplina. Obteve um repertório de experiências importantes que a metrópole oferecia aos jovens, e soube levá-las para
o desenho que desenvolveu. Nem sequer finalizou o Ensino Médio, porém, e diz que, em função da qualidade do ensino, o que valeu
foi sua experiência de vida. Segundo ele, “a pessoa tem que aprender a ouvir e a saber questionar para aprender”.
27
Hoje com 37 anos, o artista consolidou-se depois de 20 anos de intervenções urbanas e outras atividades para onde desdobrou o
trabalho do desenho. Entre os membros de sua geração foi o que mais conquistou espaço em atividades publicitárias. Ofertou seu
serviço de ilustrador e interventor urbano para diversas marcas, customizando um hotel em Copenhague, na Dinamarca, para lança-
mento de um veículo (Project Fox da Volkswagen em 2005)
28
, participando de campanhas de lançamento de cerveja (fez a campanha
da Brahma na Europa e nos Estados Unidos), e ainda desenhando para as revistas destinadas ao público jovem, como Fluir, Venice,
Simples, Vip, Vogue RG, além da Trip, e por fim realizando capas de discos e cenografia de palco para os Raimundos, Charlie Brown
Jr., Ira!, Nação Zumb, Planet Hemp, Rappa, Elba Ramalho.
No entanto, o que vale destacar em sua obra é a assimilação de um traço inspirado nas impressões da xilogravura. Como ilustrador
familiarizou-se com a literatura de cordel e incorporou o estilo das ilustrações desse gênero de publicações, em geral, xilogravuras,
para desdobrá-lo num traço de tinta spray. Não se resumiu a este instrumento, porém, incorporando o pincel, o rolinho, e a tinta látex
utilizada para cobertura das paredes. Esta estilização absorveu, todavia, principalmente a forma, excluindo as temáticas tradicionais
da expressão, permitindo uma absorção de seu trabalho pelo mercado da decoração de interiores, o que lhe rendeu bons ganhos.
Além dessa vertente, também apontou problemáticas encontradas na desigualdade social da metrópole, o que mostra um repertório
de preocupações em comum com Tinho. Mas, da mesma forma que os Gêmeos, ao absorver o popular em seu estilo, não fez outra
coisa senão adaptá-lo ao gosto burguês. Faltou-lhe a expressividade tensa que os olhos dos personagens de Tinho possuem. Tal
fatura da obra do Speto esvazia o conteúdo que dá força à literatura de cordel, que é, para além de uma xilogravura, um meio de
Imagem 28: Speto, s/d. Grafite.
Fonte: http://www.speto.com.br/swfs/home.swf. Acessado em fevereiro de 2004.
27
Entrevista concedida à revista Real Hip Hop. Fonte: http://www.
brazil-brasil.com/content/view/502/111/. Acessado em abril de
2009.
28
Referência disponível em http://www.hotelfox.dk/rooms/407.html.
Acessado em junho de 2009.
6 0
comunicação e expressão popular de grande circulação no Nordeste. Esse meio facilitou a divulgação da voz dos humildes, que, por
sua vez, ironizaram os coronéis, os poderosos e sua opressão num contexto político por vezes autoritário.
No entanto, a forma como Speto trabalhou a temática popular foi mais autêntica do que a dos Gêmeos. Mostrou-se mais dedicado
ao estudo do universo popular ao incorporá-lo em seu estilo, assimilando este universo de maneira mais ampla e identificando sua
obra às fontes que lhe servem de inspiração.
Diante desse repertório de produção, podemos dizer que sua trajetória, embora menos abrangente nas intervenções urbanas que a de
seus contemporâneos, alcançou uma qualidade dificilmente observada na produção dos grafiteiros de sua geração e das gerações
vindouras. Pela sua disposição de não se encerrar no universo formal do hip hop, também foi o pioneiro nesse impulso para explorar
um repertório autenticamente nacional na produção brasileira de grafite. Não por acaso é tido como referência inescapável, tendo
contribuído na formação dos Gêmeos, de Tinho e de Binho.
Para além desses aspectos, foi um dos primeiros grafiteiros desbravadores do mercado publicitário, permitindo à expressão uma
fonte de renda que garantiu a profissionalização e uma condição em que a dedicação voltada para a criação artística tornou-se
possível. Embora este aspecto esteja marcado por uma liberdade condicionada à venda de produtos, ele gerou o capital econômico
necessário à sustentabilidade dos artistas.
ONESTO: O CARTOON, PERSONAGENS QUE SE MOVIMENTAM PELA CIDADE
Esse paulistano nascido em 1972 é um dos artistas da geração Old School que melhor incorporaram a referência do cartoon presente
no grafite. Seus personagens movimentando-se pela cidade como se estivessem no history board de um filme. Se fotografássemos
as imagens de suas intervenções, e as puséssemos em movimento, teríamos um desenho animado que utiliza como suporte a
metrópole em vez do papel. Tal característica distingue-o de todos os seus contemporâneos. No grafite de gênero hip hop o cartoon
oferece a base para a criação dos personagens que estão presentes no repertório de imagens. E, já na Pop Art de Roy Lichstenstein
vemos sua primeira aparição num contexto de gênero alto da arte contemporânea. Mas, em Onesto, temos a criação de algo novo,
tanto na figuração de um personagem autêntico, como no suporte de uma paisagem urbana que traz outra escala para o cartoon.
Em relação a seu repertórios visual, porém, cita Marcelo Grasmann, de quem absorveu o imaginário fantástico e as iconografias da
fauna grotesca.
Como todos deste capítulo, começou pelo gênero do hip hop, o que reforça a opinião de Binho sobre a condição majoritária deste
estilo. Mas sua trajetória iniciou-se em 1992, um pouco mais tardiamente que a dos demais grafiteiros considerados Old School.
Como elemento que o distingue da maioria dos grafiteiros no âmbito de sua geração, foi um jovem que cresceu na periferia paulis-
tana, tendo no Centro da cidade uma referência para encontrar os praticantes desta expressão.
Os demais artistas analisados dessa geração, embora não tenham origem ‘abastada’, caracterizados como de classe média baixa,
não passaram pelas privações de quando se vive num contexto socioeconômico de periferia metropolitana. Mas, tendo esse aspecto
em comum com Os Gêmeos, Onesto estudou na Escola Técnica Carlos de Campos, importante instituição de ensino do Brás que
forma profissionais das artes gráficas, e onde o artista absorveu o conhecimento para a produção de fanzines e livros artesanais, para
construir seu discurso. Ele também se assemelha a Tinho e a Speto, por participar da pixação, lançando o codinome ‘Stok’.
Além desse aspecto, encontramos em sua estratégia de inserção no campo do grafite e da arte uma análise estudada das oportu-
nidades. Onesto não partiu pelo caminho da saturação, com uma quantidade expressiva de intervenções. Primeiro desenvolveu um
sketchbook, em que aperfeiçoou seu desenho. Assimilou suas experiências urbanas, e trabalhou exaustivamente sua obra para só
então criar uma intervenção que pudesse ser reconhecida como única e exclusivamente dele. A cidade, por consequência, acolheu
6 1
Imagem 29: Onesto, s/d. Scketchbook.
Fonte: http://www.alexhornest.blogspot.com/. Acessado em 11 de
março de 2009.
Imagem 30: Alex Hornest, s/d. Imagem de ônibus.
Fonte: http://www.alexhornest.blogspot.com. Acessado em 11 de março
de 2009.
6 2
Imagem 31: Onesto, 2007. Dormentes. “Tercer Asalto”. Grafite. Bogotá, Colômbia. Foto do artista.
Fonte: http://www.alexhornest.com. Acessado em 05 de junho de 2009.
Imagem 32: Onesto, s/d. Grafite na Rua da Consolação, São Paulo.
6 3
sua obra. Seus grafites possuem uma durabilidade dificilmente encontrada entre seus parceiros e concorrentes.
O que mais espanta, contudo, em sua disposição e organização produtiva é a clareza que possui sobre o processo que empreende.
Mesmo para divulgar sua obra pela Internet, realizou dois mecanismos: no primeiro apresenta seu sketchbook, em que revela suas
inspirações em belas fotografias
29
, e no segundo divulga o resultado que o trabalho artístico lhe possibilitou.
30
A experiência urbana em sua obra também ganha relevo com essa forma de promover a visibilidade de seu trabalho. Ele revela suas
fontes, aponta o caminho para os que quiserem empreendê-la e afirma positivamente a importância de uma circulação ampliada pela
metrópole. Numa dessas construções ele põe um ônibus para um dos recônditos da cidade, numa linha que rasga a extensão da
metrópole de São Paulo entre o Centro e a Zona Sul, começando na divisa de Diadema, passando pelo Terminal de Santo Amaro, no
Largo 13, e terminando na Praça da República. Junto do ônibus, há crianças em situação de rua pegando carona no pára-choque do
veículo. No início da linha um prédio abandonado que foi utilizado como folha de papel pela pixação, numa iconografia que revela
o começo do processo de formação de um interventor urbano por meio desta prática. A postura em relação à sua criação também
não poderia ser mais digna: ele diz que usufrui o que não lhe pertence, que a cidade está aí para ser usada, apropriada, reinventada
e continuar o seu curso promovido pela coletividade que a habita.
“Após anos de clausura, anonimato, estudos e pesquisas adquirindo forças e personalidade para se mostrar por
completo e enfrentar o caos, as alegrias, as tormentas, as ilusões e desilusões criadas pelo dia a dia ao qual
tanto amo. Finalmente estou pronto para usufruir e desfrutar de tudo aquilo que não me pertence”.
31
BINHO: MESTRE NO GÊNERO HIP HOP
Esse artista é tratado como a grande referência do grafite paulistano, por incorporar de maneira sólida todo o repertório formal do
hip hop. Além deste aspecto, foi um prodígio no desenho, tendo vencido, já aos 12 anos, um concurso, entre as escolas públicas
estaduais, que o premiou com uma bolsa de estudos numa escola de quadrinhos. A partir deste momento, foi assistente de arte e
sempre trabalhou com todos os recursos que a técnica do desenho poderia lhe oferecer.
O início de sua trajetória é ainda um dos mais antigos: aos 13 anos de idade dançava break e aparecia no Largo de São Bento de
forma esporádica, começando na prática do grafite concomitantemente com a chegada da cultura hip hop na cidade. A transgressão
também foi um traço de sua caminhada, mas apenas no início, quando todos os muros eram ilegais, e a expressão não usufruía
da aceitação de hoje. Nesses primórdios, não encontrava referência nos pioneiros, os quais, segundo ele, encerravam-se na Vila
Madalena, mas observava a cena punk, a cena dos pixadores, e principalmente a cena do grafite do gênero hip hop. Em relação à
regularidade de suas intervenções, diz que em 1984 pintava uma vez por mês, em 1985, uma vez por semana, e hoje, quando sua
condição econômica o favorece e seu desenho se consolidou, pinta todos os dias que pode.
Binho, assim como Tinho, também possui como referência Os Gêmeos e Speto. Pintou na Avenida Lins de Vasconcelos no Cambuci
ao lado dos primeiros, no ano de 1985, e frequentou a casa de Speto, quando iniciou na prática. Coincidentemente, também apre-
senta a mesma ausência de crítica encontrada nos Gêmeos. Foi um dos promotores da ação de repintura do túnel da Paulista (Graffiti
Art na Paulista, uma homenagem aos 100 anos da imigração japonesa no Brasil, 28/1/2007), fomentada pela prefeitura no mesmo
momento em que o prefeito promovia o apagamento sistemático dos grafites pela cidade, com o Programa Cidade Limpa. Na capa
da revista, editada por ele, que abordou este evento (Graffiti: Arte e Cultura de Rua, nº 38, 2007), expõe o próprio prefeito Kassab
realizando um escrito com spray que dizia: “Isto que é arte”.
Este aspecto só revela a disposição de assimilação do artista, o qual perscrutou todas as possibilidades de geração de renda para o
grafite, na perspectiva de atingir a sustentabilidade econômica para seus praticantes. Neste sentido, da mesma forma que Speto, Bi-
nho foi um engendrador do percurso em distintos meios para o grafite: os painéis públicos fomentados pela prefeitura, a publicidade
e a galeria de arte. No entanto, ressente-se de que a galeria foca na produção de um gênero distinto do praticado por ele, ainda que
29
Verificar no site http://www.alexhornest.blogspot.com. Acessado
em 23 de fevereiro de 2009.
30
Verificar em http://www.alexhornest.com. Acessodo em 11 de maio
de 2009.
31
Disponível em http://www.alexhornest.blogspot.com. Acessado em
23 de fevereiro de 2009.
6 4
70% da produção de São Paulo sejam do gênero hip hop
32
e apenas 30% da produção fujam deste caráter, poucos que praticam de
acordo com a raiz do hip hop conquistaram espaço neste segmento. Segundo Binho Ribeiro, os artistas que hoje estão nas galerias
usaram o espaço público para se projetar e, assim que ocuparam este espaço, pararam de pintar nas ruas. Por sua vez, a galeria,
que de certa forma se aproveitou da formação e do espaço conquistado pelo hip hop, nunca estendeu o convite aos grafiteiros deste
gênero.
Indagado sobre as diferenças de sua obra em distintos espaços, ele vai dizer que “na rua é vontade sem conceito”, na publicidade
seu desenho é eclético, “fazendo o que o cliente pede e expandindo o seu know how”, e na galeria vai ser influenciado pelo seu
espírito, o que permite que brotem as referências da cultura japonesa que admira, fazendo emergir o seu conceito, os temas que quer
desenvolver na obra, e caracterizando seu trabalho como o de uma esponja que absorve o que está a seu redor.
HERBERT/COBAL E A FAMÍLIA BAGLIONE
Herbert foi um dos artistas que cresceram vendo os trabalhos dos Gêmeos no bairro do Cambuci. Fazia, numa escola técnica da
região, um curso insólito para sua atividade de hoje: o de torneiro mecânico. Esta escola, entretanto, não foi banal em seu currículo,
funcionava em período integral e oferecia disciplinas optativas de pintura e desenho. Foi por elas que aperfeiçoou as habilidades de
artista visual. Em comum com sua geração, é proveniente de uma família de classe média baixa, e, em função dessa origem, não
tinha dada, como possibilidade apresentada pelo contexto privado, a vida de artista que escolheu e, hoje, lhe garante a manutenção
de seu padrão de vida. A sustentação desta opção foi fruto de o grafite ter sido absorvido pelas artes gráficas, área em que exerceu
a atividade de ilustrador.
Em relação aos demais expoentes da Old School, possui a distinção de não ter passado pelo gênero do hip hop. Ele não gostava
de nada relacionado ao movimento, e, entre as opções que se apresentavam nos primórdios de sua trajetória, no final da década
de 1980, escolheu o punk rock, sua iconografia, suas questões comportamentais. O nome “Cobal”, que utiliza nas intervenções
urbanas, vem desse posicionamento. Porém, ao analisarmos as suas letras, pouco as diferenciamos dos bombs no estilo do hip hop.
Coincidentemente a Tinho, Speto e Onesto, fez as primeiras incursões nas intervenções urbanas com a pixação, da qual participou
junto com o irmão William Baglione.
Foi essa relação fraterna e indissolúvel entre irmãos que facilitou a construção da trajetória do artista Herbert Baglione, vulgo Cobal.
E permitiu ao irmão, que não era artista de trajetória, criar a Família Baglione. William faz questão de frisar que seu projeto não
é puramente econômico, neste grupo familiar do qual faz parte Tinho. Diz que não possui contrato com nenhum dos artistas que
representa como agente: a relação se estabelece porque se amam, sem pieguice ou pejorativismo, daí o nome família. Sua história
pessoal está relacionada ao comércio exterior, área em que era analista de crédito, e nela recebia um salário que lhe possibilitava
uma vida confortável, mas largou tudo para estudar Oceanografia na Austrália. Depois do sonho, que não levou adiante, voltou ao
Brasil e resolver potencializar a carreira do irmão com os conhecimentos que adquirira em meios por onde poucos artistas transitam.
Neste sentido, lançou mão de técnicas de mercado importantíssimas para a construção e a projeção da visibilidade dos artistas que
representa. Seria o próprio Andy Warhol com a formação de publicitário, se também fosse artista.
Entre as estratégias utilizadas para a valorização dos artistas e, ao mesmo tempo, facilitar seu trabalho, quis distanciar-se da palavra
“grafite”, pois, segundo ele, “a rua cobra caro”, sendo que o evento na Galeria Choque Cultural, de invasão dos pixadores
33
que
atropelaram os trabalhos dos artistas, relaciona-se a esta reivindicação sem substância da parte da galeria. Em sua concepção, tal
galeria pretendeu representar a arte urbana, mas os agentes dessa manifestação não se sentiram representados. Associando a mer-
cantilização da produção a esta falta de legitimidade para tratar do tema no espaço de uma galeria, os pixadores resolveram chocar
seu proprietário. William ainda acrescentou que não quer restringir-se aos termos “grafite” e “street art”, porque acredita que nesses
32
Informação ofertada por Binho Ribeiro, em entrevista concedida ao
autor em 20 de junho de 2007.
33
Este assunto será discorrido no capítulo “A Pixação na Bienal: In-
serções Diversas de 2002 a 2008”, desta dissertação.
6 5
Imagens 33 e 34: Herbert, 2008. Exposição Transfer. Espaço Cultural Santander, Porto Alegre, 12 de junho de 2008.
Foto: Flávio Samelo. FONTE: http://herbertbaglione.blogspot.com/2008_07_01_archive.html.
6 6
Imagens 35 e 36: Ludovic Carème, abril de 2009. Ensaio com personagens da região da Rua Augusta e centro de São Paulo. Inédito.
Em se tratando do conteúdo da obra, o que encontramos nas imagens de Herbert é a sociedade de consumo no seu auge, onde o
gozo é a porta do extravasamento para o acúmulo do fast-food presente na vida contemporânea. A obra na página anterior (imagens
33 e 34) mostra um homem com o falo em riste e êxtase. Sobre o falo, homens e mulheres em estado letárgico, absorvidos pelo ato
campos as possibilidades são menores. Já no termo “arte” elas se ampliam, e o fato de Herbert ter participado da exposição “Still
on and none the wiser” (2007) no Von der Heydt Museum (Wuppertal – Alemanha), de onde emergiu o grupo Fluxus
34
, relaciona-se
a esse fator.
O William Baglione apenas não se questionara que o grupo Fluxus surgira como uma crítica às galerias, e que se exprimia principal-
mente por performance e happenings e, neste sentido, absolutamente oposto ao que ele faz e ao que seu irmão utiliza como suporte
de sua obra. Porém, a ocupação das posições de prestígio no mundo da arte não segue sequer o seu conteúdo imanente, uma vez
que depois de conquistado o lugar de destaque, tende-se a conservá-lo, não importando se existe consonância, ou não, das obras
ali apresentadas com as obras que alçaram a posição em que figura. A possibilidade da venda é o que suporta o endereço e garante
o negócio. A arte, como nos outros assuntos presentes no capitalismo, funciona por este mecanismo.
Todavia, Herbert Baglione é um artista preocupado com a consonância do conteúdo de sua obra em relação ao seu tempo. Do mesmo
modo que foi o grupo Fluxus na sua época. Segundo o artista:
“Acho importante ver se o trabalho está apresentando alguma coisa interessante, de relevante, se está
questionando ou dialogando, por mais que a arte seja contemplativa. É igual a comer um arroz com feijão, você
tá comendo de verdade, é diferente de fast food, né? E na arte, principalmente na street art, você vê muito fast
food, essa história de repetição e o escambau. O quanto isso acrescenta para a arte em si? É uma pergunta que
todo artista deveria se fazer. (...)
Os personagens gordos se relacionam ao nosso tempo, onde o homem mais absorve do que libera, ser obeso
é isso. E o gozo é a saída.” (BALGIONE, 2008)
34
O grupo Fluxus foi atuante nas décadas de 1960 e 1970. “Valori-
zando a criação coletiva, esses artistas integravam diferentes lingua-
gens como música, cinema e dança, se manifestando principalmente
através de performances, happenings, instalações, entre outros su-
portes inovadores para a época. O Fluxus foi criado em 1961, em
Wiesbaden, na Alemanha, durante o Festival Internacional de Música,
sob a liderança de George Maciunas. Era integrado por artistas de vá-
rias partes do mundo, como os alemães Joseph Beuys e Wolf Vostell,
o coreano Nam June Paik, o francês Bem Vautier, e japonesa Yoko
Ono, além de outros representantes destes países ou dos países nór-
dicos.” Informação disponível em http://www.macvirtual.usp.br/mac/
templates/projetos/seculoxx/modulo5/fluxus.html. Acessado em 5 de
junho de 2009.
6 7
Correlato ao conjunto de artistas presentes na pesquisa, os irmãos Baglione afirmam que o grafite começou com Binho, Tinho e os
Gêmeos, num gênero do Hip Hop. Depois, a produção se expandiu para os gêneros do cartoon, da ilustração, do punk rock etc. Mas,
para a geração Old School, a primeira grande oportunidade veio em 1999, com um painel na Avenida 23 de Maio, na altura do Centro
Cultural São Paulo. Nesta ocasião, participaram: Os Gêmeos, Nina, Herbert e Vitché. Inclusive, o processo de internacionalização do
grafite brasileiro foi fruto deste encontro, que contou com artistas alemães consagrados: Codeak (Hildesheim), Loomit (Munchen),
Daim (Hamburg), Tasek (Hamburg). Em seguida, as viagens ao exterior foram mediadas por hospedagens nas casas destes artistas,
com eles os grafiteiros brasileiros obtiveram um posto do outro lado do Atlântico para participarem de eventos de grafite.
Todavia, nem todos puderam explorar esta oportunidade. Os Gêmeos foram os únicos a prospectar as possibilidades de divulgação
no exterior, acessando um reconhecimento que foi fundamental para os trabalhos que se seguiram. Como notado pelo seu galerista
Alexandre Gabriel (Galeria Fortes Vilaça), eles puderam entrar nas galerias do exterior e ganhar legitimidade antes de passar pelo
mesmo processo no Brasil, restando a ele a tarefa de reimportá-los. Neste sentido, Os Gêmeos foram os desbravadores do campo da
arte internacional para o grafite brasileiro.
Os rendimentos dos capitais culturais acumulados são desiguais, o que mostra a relevância do capital social para a trajetória artística.
Os Gêmeos souberam explorar suficientemente todas as conexões que estiveram em seu alcance. Talvez, o ambiente onde este fator
é mais determinante seja o do grafite, visto os talentos desiguais que se projetam na cena artística por deterem melhores redes de
sociabilidade. A baixa profissionalização da atividade é outro elemento que prejudica o estabelecimento de uma meritocracia, que
permitiria que as posições mais lucrativas fossem ocupadas por artistas de qualidade elevada. Nina, esposa de um dos Gêmeos,
é um exemplo relevante deste problema. Seus trabalhos não estão equiparados ao dos Gêmeos, mas são vendidos na mesma ga-
leria com preços similares. Tal aspecto revela um exemplo que se repete; os grupos de grafiteiros funcionam como famílias, desta
maneira, eles não podem, nem devem agir segundo o critério da excelência, são laços de afeto - amo, segundo William Baglione
-, que mobiliza a união e os trabalhos. Neste sentido, as críticas de Sennet (1998) podem ser pertinentes. Tais relações de afeto
são contaminações arriscadas no mundo da ação/trabalho, suscetível à tirania da intimidade. Numa família há uma preocupação de
ordem sentimental que suplanta uma atividade destinada ao mundo, ao espaço público. Diametralmente oposta a esta posição, está
uma atitude de Marcelo Cidade que, no extremo de uma preocupação restrita à hierarquia do campo da arte e vendo-se ao lado de
artistas desiguais quanto aos preços praticados pelo mercado
35
, resolveu não participar de uma exposição na França que irá ocorrer
em setembro de 2009.
Imagem 37: Herbert, Os Gêmeos, Nina e Vitché, Codeak, Loomit, Daim e Tasek, 1999.
Foto de Louise Chin & Ignacio Aronovich, outubro de 2001.
sexual. O personagem deitado conduz a cena que remete a corpos hipnotizados por uma orgia.
A obra deste artista é profundamente ilustrativa, enseja um ritual profano da qual a arte faz a mise en scène. Exponenciada desta
maneira, faz um registro da androginia contemporânea: corpos sem definições rígidas que transitam por todas as possibilidades do
prazer.
35
Informação obtida pessoalmente com o artista. O curador da
exposição é o autor desta dissertação.
6 8
Imagem 38: Herbert, agosto de 2008. Cobertura de Edifício em Copenhagen,
Dinamarca.
Imagem 39: Herbert, 2008. Mulher Copenhagen.
6 9
Imagem 40: Herbert, 2005. “Acima de mim” (Teto de Casa).
Imagem 41: Herbert, s/d. Escada em SãoPaulo.
Imagem 42: Herbert, maio de 2008. Lisboa.
Fonte das imagens 38 a 42: http://herbertbaglione.blogspot.
com.
7 0
Sobre a arte contemporânea - a linguagem explorada por Marcelo Cidade - Herbert afirma:
“O papel da arte contemporânea é ser também descartável... virar lixo? R: Por que não?! Se pessoas e seus
efeitos estão se tornando descartáveis, uma coisa puxa a outra.” (BALGIONE, 2008)
Desta forma, Herbert simboliza de maneira distinta a efemeridade da obra - vista como positiva pelas problemáticas da arte con-
temporânea -, almejada por meio do suporte da instalação e da performance. Em contraposição, Marcelo Cidade, ocasionalmente,
projeta sua criação sobre um suporte durável (desenhos, quadros, esculturas, etc), mas tem na performance seu foco, onde obtêm
maior rendimento simbólico. Nesta linguagem, Cidade atinge os discursos que conferem valorização simbólica específica, colocan-
do-se entre aqueles que estão embrenhados na pesquisa destas experimentações, que, por sua vez ocupam posições de prestígio
por enunciar tais discursos. Desta maneira, a enunciação de Herbert revela que desconhece as problemáticas presentes na arte
contemporânea. Conjuminando sua postura com o fato de expor no mesmo Museu – que seu irmão reconhece como importante na
história da arte – em que expôs o grupo Fluxus e Joseph Beuys, o mentor intelectual da performance, denota-se que Herbert busca o
argumento de autoridade baseando-se em sua presença em espaços consagrados. Porém, diferente de uma galeria que se preocupa
apenas com o potencial decorativo da arte, seu agente William Baglione afirma: “o artista faz publicidade para ganhar dinheiro, mas
no campo da arte vendida em galeria, não quer fazer quadro para combinar com o sofá”
36
. Neste sentido, talvez ele possa orientar
seus artistas para também refletirem sobre o cunho conceitual presente no debate sobre a arte contemporânea, e quem sabe traba-
lharem com as linguagens que agregam maior valorização simbólica específica. Conteúdos e criatividade certamente não faltariam
aos seus artistas para este empreendimento.
Entretanto, este agente de arte, travou um dialogo com a curadora Daniela Labra
37
da exposição Fabulosas Desordens afirmando que
se não pagasse o que pedia para seu irmão, não facilitaria a participação dele no evento. Tal postura revela que desconhecia que a
valorização simbólica possibilitada neste contexto seria maior do que aquela ofertada pelas galerias por onde ele comercializa as
obras do irmão até aquele período (março de 2007). Willian não entendia que a valorização simbólica nem sempre tem uma tradu-
ção no valor econômico direto, e ela seria fundamental numa valorização econômica de longo prazo. Apenas depois que seu irmão
Herbert passou por terrenos de grande fertilidade simbólica, percebeu tal funcionamento, que somente paulatinamente, entrega seus
mecanismos.
Vale notar que o maior mérito de Herbert Baglione é uma presença singular na paisagem urbana. Ele, mais do que Os Gêmeos, soube
estabelecer um diálogo mais efetivo com o relevo urbano: usando personagens de cores negras e brancas que aderem nas superfí-
cies desgastadas da arquitetura e dos espaços da cidade. Todavia, este mérito não desloca as posições de ambos na hierarquia do
mercado. Esta instância funciona por regras próprias, que deixam de lado méritos de toda espécie, principalmente aqueles legados
pelo espaço urbano. Atualmente, o elemento que contribuiria de maneira mais decisiva, seria o uso intensivo da publicidade, tal qual
se dá com as mercadorias presentes no mundo do consumo, saturando as redes de comunicação com os trabalhos de seus artistas.
Visto que o artista é crítico do consumismo, poderia utilizar o veneno da saturação contra quem o produz.
36
Informação obtida em conversa informal com William Baglione, em
25 de fevereiro de 2009.
37
Informação obtida em conversa informal com Daniela Labra, durante
a Exposição “Fabulosas Desordens”, em 15 de março de 2007.
7 1
NEW SCHOOL
O nome New School não possui precisão absoluta para identificar este grupo. Funciona como contraponto à Old School; se existe
uma velha escola e estes surgiram depois, são identificados como ‘nova escola’. Diante de trajetórias que são igualmente longas,
para os praticantes da expressão que iniciaram recentemente, os artistas apresentados aqui também podem ser considerados velha
escola.
Do mesmo modo que houve um recorte na Old School, de onde ficaram de fora nomes importantes, nesta geração New School
também não abordaremos todos os praticantes. O recorte da análise se pautou principalmente por alguns dos artistas que passaram
por uma instituição que foi decisiva na divulgação da expressão e por artistas que possuem trajetórias e técnicas distintas para reali-
zarem suas intervenções urbanas. Diante desta preocupação em apresentar caminhos muitas vezes dissonantes, reunimos ao grupo
um artista que ficou à margem do campo apesar das qualidades que agrega: Spencer Valverde – Sujo; outro artista que agregou ao
grafite a linguagem visual presente na tatuagem: Daniel Medeiros – Boleta; um ilustrador de características eruditas que vê no grafite
uma saída para a pintura diante do massacre que o mercado lhe imputou: Paulo Ito; Um artista romântico que faleceu no auge de sua
produção: Alexandre da Hora – Niggaz. E para visualizarmos uma possibilidade de consagração no campo da arte, um artista que
obteve sucesso no seu empreendimento: José Augusto Capela: Zezão.
Diante desta diversidade de carreiras artísticas, bem ou mal sucedidas, pretendemos abarcar os limites e possibilidades que este
campo das intervenções urbanas encerra.
Na estrutura deste capítulo também abordaremos a pixação, elemento definidor na formação destes sujeitos e na conseqüente influ-
ência nas suas experiências com a cidade. Nele ainda, trataremos das características desta manifestação, e dos elementos que se
deram neste período que ratificaram sua consolidação na paisagem urbana.
7 2
A GERAÇÃO DO BECO ESCOLA / APRENDIZ
Esta geração passou por um cruzamento que foi muito promissor para ambas as partes: de um lado uma organização não governa-
mental que pretendia desenvolver projetos de intervenções urbanas na Vila Madalena, um bairro de classe média da cidade, e de
outro os grafiteiros, não necessariamente pauperizados, mas carentes de sprays para realizarem seus trabalhos.
A instituição de que falamos é a Cidade Escola Aprendiz, hoje uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), mas
em seu princípio enquadrava-se como uma associação da sociedade civil preocupada com os dilemas de seu bairro. Foi impulsio-
nada por Gilberto Dimenstein, um jornalista e diretor do Jornal Folha de São Paulo, e conquistou espaço na mídia por seus projetos
educacionais envolvendo alunos de escolas públicas e privadas em programas de comunicação com diversas mídias: oficinas de
site, rádio e intervenções urbanas com painéis de azulejos (projeto 100 Muros).
Contudo, a principal característica que devemos notar é que ela faz parte de um princípio liberal de que a sociedade civil e as empre-
sas privadas devem substituir o Estado em algumas de suas atribuições. Permitindo que a sociedade seja direcionada, administrada
e avaliada por organizações de gênero comunitário, onde as empresas arcam com parte dos investimentos sociais. Neste sentido,
impõem às demandas públicas, critérios alheios ao princípio republicano, e recorrentemente confundem assistencialismo com po-
líticas públicas de longa duração para democratizar serviços fundamentais à sociedade, como a saúde e a educação. Tais aspectos
podem ser visualizados nos projetos de curta duração e forte investimento na publicidade que o Aprendiz realiza. No seu funciona-
mento atual, não aceita verbas diretas vindas do Estado (Município, Governos Estadual e Federal). Diante deste quadro, atualmente,
num contexto de crise do mercado financeiro e recessão na economia do país, enfrenta dificuldades em dar continuidade aos seus
empreendimentos por falta de financiamento privado, pois como era de se esperar, a empresa visa lucro e o social é a primeira verba
a se cortar diante de apertos econômicos.
Sua fundação data de 1997, mas o grafite surgiu para ela como proposta apenas em 1999, a instituição visualizou esta possibilidade
pelo ensejo de uma reclamação de Mazu e de Rafael (Highraff), grafiteiros que participam desta geração intitulada New School e que
formavam o grupo NOIS. A reclamação se pautou pela ação empreendida pelo projeto “100 Muros”, o qual se sobrepora aos grafites
que eles vinham realizando na Vila Madalena. O projeto 100 Muros havia apagado os grafites e criado painéis de azulejos sobre as
obras destes artistas, causando uma indignação corriqueira contra o “atropelo”.
A abordagem do grafite feita pelo Aprendiz surgira no curso deste conflito. Desta maneira, a instituição convidou Eymard para tentar
conduzir este empreendimento, na época artista plástico e hoje também grafiteiro. Como é de se esperar diante de um grupo com
disposições insubordinadas, e mesmo transgressivo, a abordagem não poderia ser em vistas da domesticação. Portanto, os laços
partiram de uma preocupação em estabelecer a igualdade e atender às demandas decididas coletivamente pelo grupo de grafiteiros.
Segundo Eymard (2008), era “uma instância de observação com os caras para procurar entender e construir o que poderiam ser
projetos de grafite”
38
.
A primeira atividade do grupo do Aprendiz foi estabelecer uma reunião semanal com os grafiteiros para realizarem as ações pensadas.
Depois de duas reuniões já iniciaram o processo das intervenções, pintando no Beco da Rua Belmiro Braga, que se tornou a referên-
cia para toda a geração da época. Mas desde o princípio, os grafiteiros queriam perscrutar os interesses da instituição: indagavam
se ela possuía finalidade política e se queria ganhar visibilidade com as ações que eles realizavam – aspecto este que procedia.
Uma tônica dominante entre os artistas era colocar na balança se as tintas spray de que tanto precisavam não ficariam caras demais
pela vinculação ao Aprendiz e ao seu idealizador e presidente Gilberto Dimenstein. Ele já possuía visibilidade midiática no período,
escrevia duas colunas semanais na Folha de São Paulo, no Caderno Cotidiano, sendo uma delas no Domingo, dia de maior tiragem
do jornal. E ainda, possuía um programa na rádio CBN. Portanto, ele era a figura em mais evidência da instituição, num eventual
sucesso dela seria o principal beneficiado. Pela parte da instituição, era fornecida a legitimidade prática para ele falar em defesa dos
princípios liberais em que acredita, dando-lhes aspectos positivos de responsabilidade social. Os grafiteiros, por sua vez, eram um
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Entrevista concedida ao autor em 07 de março de 2008.
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forte elemento para ele registrar na paisagem da cidade sua marca. O tom dominante de seu discurso sobre estes artistas sempre
soou pelo viés social, a arte aparecia como caráter acessório.
No que concerne às obras que estes grafiteiros fizeram, vemos que reafirmaram a raiz nova-iorquina, coincidindo com o processo
que se deu com a Old School realizando os tradicionais trow ups do Hip Hop. Queriam cobrir o maior espaço possível com o que
tinham, e este desenho de letras era econômico com os materiais. Depois perceberam que a oferta de material era suficiente para
novos empreendimentos estéticos, que absorveriam um número maior de spray. Assim sendo, na segunda pintura do Beco (local em
que agregava intervenções de todos os artistas que freqüentavam a instituição), passaram a apresentar os personagens figurativos
que já desenvolviam, mas o processo ainda era desordenado, não havia uma obra coletiva como a que se consolidou na pintura do
Bank Boston em 2003 (imagem 43, ao lado).
Todavia, o processo desenvolvido pela instituição não bastaria se esta se encerrasse entre os grafiteiros desta geração. Neste sentido,
foram contatados os grafiteiros das gerações anteriores para participarem das pinturas nos Becos da Vila Madalena. Assim, Eymard
Ribeiro conversou com o Celso Gitahy e o Carlos Matuck, grafiteiros da ‘stencil art’ e pioneiros ao lado de Vallauri, os quais já haviam
consolidado a Vila Madalena como lugar de grafite e que haviam pintado o Beco do Batman, logo atrás da Escola da Rua (primeira
sede do programa ligado ao grafite do Aprendiz), na década anterior. Porém, este grupo de grafiteiros não era a referência para esta
geração. A fonte de admiração e inspiração estava localizada na geração dos Gêmeos, Vitché, Nina e Herbert (Cobal), imediatamente
anteriores a eles nas intervenções pela cidade. Desta maneira, estes membros do grafite, com os quais a New School não possuía
relações, mas já admirava pelo que havia pela cidade, vincularam-se ao projeto na realização da pintura completa do Beco da Rua
Belmiro Braga. Entre estes apareceram Os Gêmeos, que segundo Eymard, realizaram o painel mais bonito que já esteve presente
naquele espaço.
O Aprendiz acreditava que a troca entre as gerações seria interessante, e embora o primeiro grande encontro tenha acontecido em
2000, foi em 1999, com a presença dos Gêmeos, que se consolidou o nome da instituição na tradição do grafite. A difusão do projeto
entre os grafiteiros e a participação deles também fora veloz, de setembro a novembro de 1999 o grupo que se reunia no Beco Escola
chegara a mais de 100 pessoas de toda a cidade. A partir daí, a prefeitura de São Paulo se interessou pelo assunto, aproximou-se
da iniciativa e começou a esboçar uma política para o grafite através do Alexandre Youssef (coordenador de programas voltados à
juventude) – o que poderia ser um parceiro indesejado se o Gilberto Dimenstein desejasse fazer valer seus princípios liberais. Em
2001 fizeram o muro do Goethe, com um grande painel que articulou de forma orgânica, com distintos estilos e um número razoável
de artistas. Em seguida, multiplicaram as intervenções de grafite durante três anos. Em 2003 fizeram o evento “São Paulo Capital
do Grafite” que se expandiu por toda a cidade, e começaram as tensões pela pretensão de definirem o que era o “bom” grafite. Este
grupo passou a se colocar como os guardiões da inovação mais recente no campo, e desejavam ser reconhecidos enquanto tais.
Segundo Eymard Ribeiro (2008), diziam que os que estavam de fora do grupo do Aprendiz eram “toys” (sic), um bando de “prego”
(sic), enfim, queriam fazer uma ruptura com o passado e se reinstalarem no campo em defesa do que acrescentaram à tradição do
grafite. Deste ponto em diante, acabaram “com ‘a parada’ dos grandes encontros” (RIBEIRO, E., 2008).
No que tange à formação que se deu no Aprendiz, houve aspectos singulares e significativos para a constituição do que os grafiteiros
apresentaram como inovador. Primeiro criou-se o hábito da leitura e disponibilizaram-se muitos livros de arte sobre a mesa das
reuniões. Neste ato aparentemente banal possibilitou-se o acesso a um material caro para o repertório de imagens dos artistas. Em
seguida, ministraram-se aulas de história da arte com um professor provocador, na acepção de Eymard, o qual criava constantes
atritos realizando críticas severas sobre o trabalho dos grafiteiros. Este professor também saíra desgastado da relação com o grupo
e encerrou as aulas, mas acrescentou a semente da crítica que certamente fora utilizada pelos membros da New School para a des-
qualificação dos grafiteiros que não faziam parte do grupo “eleito” como “o melhor”.
Neste momento, todos já apresentavam tensões entre si. O Zezão estava se desvinculando da linguagem do Hip Hop, pintava com
diversos materiais, aproveitava o escorrimento na composição da obra, e como possuía a participação no Vício no currículo (im-
Imagem 43: Frente do folheto de divulgação da
intervenção na fachada no Bank Boston (2003). Foto
de Marcio Scavone.
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portante grupo de pixação), era digno de respeito dentro do grupo dos grafiteiros. Por possuir legitimidade, suas inovações foram
melhor recebidas por todos; foi um engendrador dos novos padrões. Como a tendência para a abstração aparecia em vários artistas,
muitos passaram a explorar a superfície da intervenção de modo a imergirem parte de suas obras nos trabalhos circundantes, e este
processo promoveu obras coletivas como não tinha se visto até então. Houve um trabalho de interseção que não havia antes deste
grupo, eles se fundiram. Estava criada e consolidada uma forma nova.
Imagem 44: Beco do Batman, fundos da Escola da Rua. Artistas: Boleta, Zezão, Highgraff. Foto do autor, 13 out 2005.
Neste grafite (imagem 44), encontramos o processo de interseção dos artistas. Criaram um fundo comum com cores quentes (ver-
melho e vinho) e frias (verde), e ainda com linhas negras, brancas, amarelas e verdes que percorrem a extensão do painel. Depois,
alocaram suas obras abstratas com derivações das cores do fundo: o Boleta usou o verde, o azul e o amarelo, num setor de fundo
vermelho escuro; o Zezão ocupou o lugar diametralmente oposto de Boleta, com esfumaçados em azul, violeta, amarelo e verde; e
o Highraff, num contraponto ao escorrido do Boleta que desafia a gravidade, fez uma forma abstrata de círculos semelhantes ao ‘9’
escorrendo para baixo. Neste painel também está presente uma personagem à sua esquerda, mas é predominantemente abstrato,
este trabalho desenvolveu uma interação entre as obras que não havia na produção do grafite de gênero Hip Hop.
O painel coletivo que poderia consolidar o grupo e reafirmar os seus laços, apenas promoveu disputas internas que dificultaram a
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coesão de grupo, pois o sucesso do empreendimento também promovia conflitos pela definição dos artistas que recolheriam os
frutos que apareceriam em função do resultado desta criação. Em certa ocasião, Edemar Cid Ferreira, na época importante mecenas
da arte, havia prometido que levaria o grupo para Nova Iorque. O assunto fora ensejado em 2001, mas, depois do atentado às Torres
Gêmeas em 11 de setembro do mesmo ano, o processo foi abortado pela dificuldade gerada com a desestruturação da cidade em
função da catástrofe. Antes disso, Eymard já se deparara com a difícil tarefa de escolher quem iria, o que certamente promoveria
atritos entre os preteridos. Mesmo sendo uma boa oportunidade para o grupo, Eymard disse que gostou do cancelamento por não
ter mais este conflito para resolver.
Entretanto, os trabalhos profissionais e o envolvimento de grandes empresas no financiamento da instituição se multiplicaram ao
longo dos anos seguintes. Gilberto Dimenstein, por sua vez, encontrara sucesso na prática de sua ideologia liberal, ratificando o seu
discurso e seus princípios com o êxito dos projetos de grafite. Elenco alguns destes empreendimentos, que se fizeram notados: um
painel na Avenida Paulista em parceria com o Instituto Itaú Cultural; um painel na feira Agrobusines de São Paulo; painéis no hall de
entrada de Loft no Itaim Bibi, projetado pelo arquiteto João Armentano em 2004; a reedição do projeto “Galeria a céu aberto” em
parceria com o Grupo Pão de Açucar e com apoio da Racional Engenharia e da Colorgin; cenário para desfile da Triton na São Paulo
Fashion Week 2003; painéis para campanha da Nike 2003, sobre a importância da “pelada” na formação do jogador de futebol bra-
sileiro; painéis na Fábrica da Unilever; painéis no evento “Faça Mais do Rexona” (Unilever) no Ibirapuera; confecção de 10 telas de
grafite para a Puma Sport produzir 10 estampas para tênis, bolsas e camisetas, com lançamento na Semana de Moda de São Paulo
2004; 30 outdoors para Ellus; cenário do estande da Siemmens em evento no Rio de Janeiro; performance e pintura de painéis no
evento Motomix, realizado no Jockey Clube de São Paulo.
Embora a instituição Aprendiz tenha provido material e acesso a trabalhos profissionais para os grafiteiros, não viabilizou um plano
econômico para o grupo. Os lucros financeiros, que mantinham uma estrutura vasta com muitos profissionais, voltavam-se apenas
para a ONG e os ganhos simbólicos para o Gilberto Dimenstein. Relativo a estes rendimentos, Eymard vai defender a instituição,
dizendo que “tinha muita coisa adolescente no processo, começou a surgir dinheiro na história e aí tudo ficou complicado (sic)”
(RIBEIRO E., 2008). Eymard não possui clareza sobre a natureza dos conflitos, deixou de notar que foram gerados porque os grafi-
teiros perceberam que a partilha dos lucros fora desproporcional. Os artistas ficaram com uma parte irrisória, o valor das tintas era
insignificante perante os 10 mil reais mensais que o Pão de Açúcar oferecia para o Beco Escola – para citar um dos exemplos pos-
síveis. Ao mesmo tempo, este valor não era suficiente para manter o Beco Escola. Fora este aspecto, a liberdade estava eclipsada, o
mercado que atendiam era rei nas suas vontades, subordinando a criatividade dos artistas a interesses restritos que não reconheciam
as contribuições que os grafiteiros legavam para o campo da arte. Os trabalhos comerciais focavam em grafites figurativos, o que
contribuiu para que o Niggaz pegasse todos os trabalhos por ser um bom ilustrador e possuir técnica diferenciada no grupo. Deste
aspecto, surgiram conflitos internos, por ele não possuir o mesmo status que outros membros do grupo.
Este fôra um período de poucos ganhos simbólicos para os empreendedores das inovações formais, nenhuma das empresas queria
o trabalho do Zezão porque era abstrato; sua grande qualidade até então não era deglutível para o mercado existente. O ramo que
gerava dinheiro exigia definição de briefing
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, e se a firma era de pneus, esta queria o desenho de um carro. O mercado era publi-
citário, e como o intermediador era uma organização não-governamental, os clientes possuíam dois objetivos pouco relacionados
ao universo da arte: um era ajudar os pobres e outro era se associar ao Gilberto Dimenstein, que poderia alavancar a marca já que
possuía visibilidade como importante jornalista.
Para minimizar as dificuldades relacionais e tentar aumentar a transparência entre o grupo e a instituição, foi criado um trânsito livre
entre as pessoas. Existia proximidade entre os grafiteiros e dirigentes da instituição. Segundo Eymard Ribeiro (2008) “todo mundo
trocava idéia com o Gilberto [Dimenstein], não tinha jogo escondido, ele sempre estava na Escola da Rua. A nossa coordenadora era
a Célia Pecci e ela era uma pessoa de militância mesmo. Guerreira que sempre defendeu o lado dos caras (sic)”.
O Aprendiz não possuía com o grupo um trabalho de interesse comum, e mesmo dentro do grupo de grafiteiros os interesses eram
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Nome dado pelas empresas de publicidade aos critérios e conteúdos
que exigiam num trabalho.
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conflitantes. No período imediato destes conflitos, a instituição estabelecera um contato com Paul Singer para montar uma coope-
rativa, mas não conseguiram levar o projeto adiante em função desta ausência de unidade nos propósitos do grupo. Para Eymard
Ribeiro (2008), “a idéia da cooperativa era que estavam aparecendo vários trabalhos e para o Aprendiz não era confortável ter uma
agência. No modelo do Aprendiz existia uma porcentagem administrativa para gerirem o trabalho, em torno de 15%, mas queriam
abdicar deste trabalho e desta porcentagem, colocando a inteira responsabilidade na mão dos artistas”.
Como o projeto da cooperativa não se efetivou, em 2004 Gilberto Dimenstein conversou com o Baixo Ribeiro para viabilizar outro
modelo de desenvolvimento profissional que pudesse gerar sustentabilidade econômica para o grupo. Desta vez, acertadamente,
escolheu um ator que possuía uma inserção no campo da arte. Neste período, Baixo Ribeiro havia inaugurado a galeria de arte Cho-
que Cultural, focada na arte dos grafiteiros, ilustradores e tatuadores, com a qual estruturava um negócio com o capital cultural que
possui por ser casado com a Mariana Martins, filha do artista plástico Aldemir Martins. Assim, Baixo criou um plano de negócios para
o grupo dos grafiteiros que, segundo Eymard Ribeiro (2008), era “muito bom, por sinal ”. Neste plano ele absorveria os grafiteiros
que se encontravam no Aprendiz e gerenciaria todos os negócios relacionados ao assunto. Porém, Gilberto Dimenstein não deu
prosseguimento para se consolidar a parceria e as ações permaneceram estagnadas.
Sobre isto, Eymard Ribeiro afirmou:
“Gilberto também estava cansado das críticas e da imaturidade dos grafiteiros, que não assumiam suas
posições abertamente. Sendo o grafite ligado a uma contravenção, nele, muitas vezes existe um comportamento
irreverente, como pegar tintas e desaparecer. Se o grafiteiro não é nem um pouco contraventor, o grupo o
discrimina. Paulo Ito enfrentou parte deste preconceito por não focar numa intervenção ilegal, e ainda, porque
em seu trabalho incorpora várias técnicas, da pistola ao pincel, e para o grupo, o grafite deveria ser feito
com spray. Sem se ter o domínio do spray não se é grafiteiro. Na época isso tinha um cunho ideológico que
constituía o grupo, embora hoje isto tenha perdido intensidade. Em função destas dificuldades, Paulo Ito criou
o grupo Toscs com o Arthur, ambos formados por faculdades de Artes Plásticas, e passaram a realizar vários
grafites pela rua, porém trazendo um repertório maior de técnicas para a intervenção urbana: jogavam tinta na
parede de uma infinidade de formas, o que marcou a produção do período.” (RIBEIRO E., 2008)
O discurso de Eymard coloca em questão dois aspectos: um diretamente relacionado à possibilidade de institucionalização e profis-
sionalização da expressão, contra a qual o grupo de grafiteiros se opunha em função dos ganhos desiguais, ainda que eles também
desejassem conquistar a sustentabilidade econômica através da prática; e o aspecto recorrente de se definir o que seria a ‘verdadeira’
forma e técnica da expressão e o que ficaria de fora – o que excluiria o Paulo Ito justamente pelos elementos que ele trouxe para o
grupo e que o demarcam como singular. Tais comportamentos se mostraram contraproducentes para a própria expressão, uma vez
que os avanços, relacionados à sustentabilidade e às técnicas, são fundamentais para consolidar este grupo como representativo em
relação ao que vinha sendo construído até então.
Um destes exemplos é notado na trajetória de Zezão: ele não tinha o foco no desenho, nem nos personagens, e viu neste grupo uma
grande oportunidade para absorver referências e construir um trabalho diferenciado. Por um lado, pôde se dedicar à criação arstica
e profissões mais rentáveis do que a de motoboy e, por outro lado, pôde, com a abertura às novas técnicas, criar seu estilo abstrato,
que ele dominou mais do que qualquer outro no grupo. Depois de consolidar sua técnica, Zezão associou-se a Eymard e a Marllus,
criando o grupo Abstract Crew´s. No curso destes desdobramentos, os demais grafiteiros, mais tradicionais quanto às técnicas, pas-
saram a reconhecer e valorizar o trabalho abstrato. A partir desta legitimidade conquistada pela presença do Zezão, e da ampliação
do número dos trabalhos dos Toscs na paisagem da cidade, todos os inovadores foram envolvidos de forma mais efetiva na cena do
grafite, e o próprio grupo mais ortodoxo que só usava o spray, absorveu estes novos recursos plásticos.
No que diz respeito à constituição do estilo abstrato, encontramos um grande representante em Boleta, mas este não possuía a
mesma regularidade que Zezão nos encontros do Aprendiz, e constituíra sua iconografia sob influencia do universo das tatuagens.
Desta maneira, não podemos associar a criação do estilo abstrato no grafite única e exclusivamente pela formação que se deu na
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instituição. O processo todo fôra espontâneo, e segundo Eymard Ribeiro (2008), “o Aprendiz apenas provia o espaço e o material,
não havia um processo dirigido da instituição, havia muita liberdade”.
O auge dos empreendimentos da instituição neste campo do grafite, como citado anteriormente, foi a ação na agência do Bank Bos-
ton da Avenida Paulista. Na ocasião do 449º aniversário da cidade de São Paulo (dia 25 de janeiro de 2003) foram reunidos todos os
grafiteiros que possuíam um estilo abstrato, para cobrirem com suas pinturas um casarão em estilo neoclássico tardio, um ícone da
elite que habitou a avenida no início do século XX. Entretanto, o apelo do projeto não poderia ser mais equivocado: em vez de demar-
carem a diferenciação formal que se estabelecia naquela obra e o caráter coletivo de sua criação, que não era comum ao universo
do grafite, resolveram dizer que estavam promovendo a inclusão social dos jovens, denotando um projeto de caráter assistencial e
não de promoção da potência presente nestes artistas. Ao lado do casarão, o outdoor que dizia “Bank Boston simplesmente primeira
classe” fora substituído pelos dizeres “Um presente para São Paulo: arte e inclusão social na agência Trianon”. E, se não bastasse
este engano, a partilha dos rendimentos gerados pela ação também fora significativamente desproporcional. Segundo Eymard Ribei-
ro (2008), foram investidos montantes próximos a 350 mil reais na ação, entre a fatura do trabalho e a compra de espaço em jornais
e revistas para divulgá-lo, além disso, estima-se que o espaço midiático pelo qual se irradiou gratuitamente era equivalente a 500
mil reais. Mas para cada grafiteiro foram pagos 2.500,00 reais, somando 17.500,00 reais destinados exclusivamente para os autores
da ação, ou o equivalente a 0,714% de seu custo para cada grafiteiro.
Imagem 45: parte do folheto de divulgação da intervenção na fachada do Bank Boston (2003). Fotos de Marcio Scavone.
Outro elemento que causou dissabores neste projeto de pintura foi a escolha do fotógrafo Marcio Scavone para registrar o evento,
amigo pessoal do presidente do Bank Boston. Na época, sua participação foi uma condição para o patrocínio acontecer, permitindo-
se uma ingerência no campo da arte da parte de um profissional do campo financeiro. O resultado das fotos não foi ruim, tendo sido
pertinente para captar a ação. Porém, o trabalho do fotógrafo se estendeu na realização de um livro chamado “A cidade ilustrada
(Alice Publishing Editora Ltda, São Paulo, 2004), do qual ele foi única e exclusivamente o autor, registrando as intervenções do pro-
jeto “São Paulo Capital do Graffiti”, sob coordenação de Alexandre Youssef (Coordenador da Juventude, Prefeitura de São Paulo) e da
instituição Cidade Escola Aprendiz. Neste último trabalho o resultado foi desastroso: salvo raras exceções, as fotos não conseguiram
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dar relevo para o grafite e seus autores. As imagens se ativeram a planos fechados nos detalhes, com a ausência da inserção urbana
dos trabalhos, resultando em um conjunto dissonante, de um fotógrafo que fazia sua primeira incursão aos recônditos da cidade. No
entanto, embora tal resultado possua demérito, o Marcio Scavone é um fotógrafo consagrado, com trabalhos importantes no registro
de personalidades e participação no livro de celebridades da Louis Vuitton (Rebonds, Paris, 1998). Talvez, se tivesse sido convidado
para fazer retratos dos artistas o resultado teria sido outro.
Este trabalho no Bank Boston rendeu uma crítica de arte de Guy Amado, ensaísta da Revista Número (AMADO, 2005, p. 11-13). O
título do ensaio já é sugestivo o suficiente sobre o tom de sua análise: “Griffiti” ou a transgressão domesticada. O crítico foi preciso
em apontar uma tendência de cooptação da expressão neste empreendimento, porém não soube olhar para a forma plástica nova que
se estabelecia naquele edifício destinado aos clientes de “primeira classe”. Desta maneira, sua interpretação foi que o trabalho:
“resultou em uma pintura-grafitagem efetuada num registro ainda próximo ao grafite tradicional, mas de feições
anódinas e transparecendo franca artificialidade, em sua fisionomia excessivamente rebuscada, denotando um
sensível descompasso em relação a visceralidade do código original da linguagem, caracteristicamente mais
“seco” e despojado [em muito devido ao caráter fugaz de sua execução, muitas vezes levada a cabo em ações
furtivas] .” (AMADO, 2005, p. 12)
De fato o que se via ali não era um grafite de estilo nova-iorquino, nem feito às pressas na calada da noite (o que resultaria em pouco
rebuscamento). Era simplesmente a libertação da demanda de representação figurativa, empreendida por toda a arte moderna do
século XX, chegando a estes artistas. E ainda, se tomássemos o caso de Dinho, não poderíamos dizer que se tratava de uma coopta-
ção completa. Este artista iniciou sua intervenção colocando frases que poderiam ser identificadas por um leitor pouco habituado ao
grafite ou à pixação, entre elas: povo, pobreza etc. Porém, elas poderiam agredir o gosto desavisado dos clientes, e lhe foi solicitado
que permanecesse no estilo abstrato e apagasse tais palavras. Assim sendo, ele fez uso do estilo cifrado das letras da pixação e
escreveu: “pilantropia do caralho deste banco de bosta” (sic). Dinho passou uma mensagem a contragosto do sistema, usou um
símbolo da elite presente naquela agência, para passar uma mensagem para a própria iniciativa que permitiu a ele realizar aquele
trabalho. Era também a primeira inserção subversiva de um grafiteiro entre os empreendimentos que passaram pelo Aprendiz.
Entre sucessos e dificuldades desta geração vinculada ao Aprendiz, depois do “São Paulo Capital do Grafite”, Eymard se retirou da
relação com o grupo pelo desgaste dos conflitos ocorridos ao longo de sua trajetória de educador. Tais desgastes antecederam este
projeto. Entre inúmeras ocorrências, o maior conflito foi com o grafiteiro ‘Não’, na época auto-intitulado “Crime”. Segundo Eymard
Ribeiro (2008)
40
, no período em que ocorreu o conflito, “ele chegou a pagar para as pessoas levarem ele para pintar um trem, que
garantiria status na cena do grafite ”. O grafiteiro ‘Não’ desejava ganhar legitimidade, queria realizar num espaço curto de tempo o
maior número de ações relacionadas aos critérios de consagração da expressão, ainda mais porque era visto como um “toy” (sic),
sem muito respeito dentro do grupo. Diante deste quadro, certo dia pintou sobre o trabalho de outras pessoas que se encontravam no
beco da Rua Belmiro Braga (local identificado como fruto da ação do Aprendiz), e ao ser indagado pela sua atitude, foi desrespeitoso
ao extremo. Pautou-se na crítica que existia sobre a instituição e na característica transgressiva imanente à expressão, e invocou
Eymard para tomar uma atitude diante de seu “atropelo” (sic). No curso desta discussão apanhou de Eymard, que lhe quebrou um
dente com um soco. Este foi um dos conflitos que desgastou a presença de Eymard no grupo. Na seqüência, a instituição determinou
seu afastamento do trabalho, ainda mais depois que ‘Não’ o processou judicialmente. Somente depois de um acordo judicial ele
pôde retornar ao Aprendiz.
Os conflitos, que não se resumem ao caso do ‘Não’, encerraram a relação do Aprendiz com o grafite. Hoje, Eymard Ribeiro não é mais
um funcionário da instituição. Embora não fosse a sua disposição, enquanto educador e profissional do terceiro setor, domesticar os
grafiteiros, alguns destes últimos sequer reconheceram isto, bem como não deram crédito para os aspectos positivos que colheram
desta relação, os quais se traduziram em rendimentos para sua incursão no mercado das galerias. A instituição, por sua vez, reconhe-
ceu a condição insubordinada dos grafiteiros como um aspecto inalienável e encerrou a relação com os que passaram por ela.
40
Entrevista concedida ao autor em 07 de março de 2008.
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A saída de Eymard não ocorreu em função dos conflitos. A instituição simplesmente não conseguiu levantar os recursos para os
projetos que desenvolvia e não teve como mantê-lo, perdendo um profissional que teve 10 anos dedicados ao lugar. Tal característica
coloca por terra a pretensão de funcionamento segundo uma economia liberal, segundo a qual, as empresas e a iniciativa privada
dariam conta deste tipo de empreendimento e da sua conseqüente responsabilidade social.
A PIXAÇÃO CONSOLIDADA
O final dos anos 1990, período em que ocorreu a emersão deste grupo, também é marcado por um traço distintivo em relação às
demais épocas analisadas por esta pesquisa. Foi durante estes anos que a pixação se consolidou na metrópole, aumentando sig-
nificativamente o número de praticantes e constituindo uma organização que demarcava os procedimentos para se fazer parte da
expressão. Enquanto ato de lançar tinta na parede não possuía nada de novo, mas enquanto reunião de mecanismos comuns a toda
uma geração de jovens periféricos da metrópole, foi um fenômeno absolutamente singular.
Todavia, esta organização não se traduzia numa institucionalização da expressão, como pretendeu a instituição Cidade Escola Apren-
diz. Bastava simplesmente definir os valores, as técnicas, os estilos e as maneiras de se fazer tidas como eficazes e verdadeiros
pelo conjunto dos praticantes. Durante esta fase de solidificação da expressão, não existia uma instituição que definia os critérios
destinados à crença dos artistas. Ocorria, simplesmente, uma reunião com regularidade semanal dos grupos juvenis que buscavam
trocar suas experiências e façanhas e que, neste processo, foram reconhecendo os elementos de que partilhavam, apesar de suas
distintas localizações na cidade.
Diante de seu poder de atração e da crença na sua pertinência para os jovens da metrópole, ela tornou-se referência inescapável para
qualquer sujeito que desejava adentrar no universo das intervenções urbanas.
Antes de Eymard Ribeiro finalizar a sua experiência no Aprendiz, ele também realizou um projeto que fixou pixações em azulejos
alocados nos muros do cemitério São Paulo, localizado na Rua Cardeal Arco Verde. Segundo o educador:
“(...) está foi a grande surpresa, “porque já havia me desgastado nas relações com os grafiteiros e imaginava
que o terreno da pixação fosse ainda mais difícil para colocar a mão, mas aconteceu justamente o contrário.
Chamei o ‘Dino’
41
, que tinha respeito no meio, e foram aparecendo os pixadores, primeiros os locais, depois
os de mais longe, e em 50 sessões foram pintando os azulejos que hoje estão nas paredes do cemitério. Os
encontros eram muito mais para trocarem as experiências radicais pelas quais passaram na cidade, num tom de
divertimento em busca da adrenalina, do que quaisquer outros. Por mais que pudesse haver um tom de protesto
e crítica social na manifestação este não era o foco. Havia uma dimensão muito lúdica no processo. As histórias
eram muito diversas, e entre elas a de um pixador que pegou um trabalho de porteiro para liberar o acesso para
os amigos fazerem o pixo, outros que pegavam o trabalho de entregador de pizza para realizar o mesmo, e ainda
um que resolveu sair com uma menina pela qual não nutria muita atração somente para fazer um pixo em seu
prédio. Existe uma irmandade na pixação que é menos vaidosa, eles não desqualificam os trabalhos dos outros
segundo critérios estéticos. A diversidade estilística é muito menor, havendo pouca abertura para grandes
diferenciações.” (RIBEIRO, E., 2008)
42
O PROTESTO FAZ PARTE
Entretanto, em alguns destes pixadores existe uma dimensão do protesto muito mais efetiva do que no grafite: Tatei do grupo Túmulos
é um destes exemplos.
Na ocasião do assassinato do coronel da Policia Militar Ubiratan Guimarães
43
(10 de setembro de 2006) os grupos “Túmulos” e “Os
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Nome de um pixador.
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Entrevista concedida ao autor em 7 de março de 2008.
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Caso amplamente noticiado pela mídia, sobre o assassinato do
coronel responsável pelas ordens que resultaram no massacre de 111
presos no Complexo Penitenciário do Carandiru.
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Bixo Vivo” (sic) lançaram, na parede em frente ao edifício onde habitava e em que foi morto, a seguinte frase: “Aqui se faz, aqui se
paga”. Imediatamente, a mídia que fez a cobertura do evento divulgou a imagem da pixação e promoveu, ainda que a contragosto,
a consagração do grupo no meio da manifestação. O coronel era visto, majoritariamente, como “persona non grata” pelos jovens
da periferia. E o assunto não se encerrava com a crueldade de sua ação, ainda fôra eleito deputado estadual com o número 111 90,
em referência ao assassinato em massa, que comandara, dos 111 detentos no presídio do Carandiru, no curso de uma rebelião em
1992.
Diante do resultado produtivo deste tipo de pixação, e da repercussão interna do feito, que trouxe grande “ibope” na terminologia da
manifestação, estes grupos ficaram atentos a novos escândalos para lançarem novas frases de efeito.
Um dos elementos que facilitou esta manifestação deve-se ao fato de que os pixadores detêm um vasto mapeamento da cidade,
esta foi a condição para eles terem chegado ao local do crime concomitantemente à mídia. Foi possível porque além de conhece-
rem a cidade eles puderam acionar quem possui os endereços dos famosos. Determinados segmentos da sociedade necessitam
dos serviços de motoboy, e esta rede de profissionais realiza um mapeamento destas localidades no ato de seu serviço. Por sua
vez, os pixadores também estão conectados com a rede dos motoboys. Eles mesmos são muitas vezes profissionais deste ramo,
assim sendo, está dada a possibilidade de chegarem rápido em qualquer lugar da cidade. Mas as estratégias não se encerram neste
mapeamento: também usam terno para driblar a desconfiança e sobem “a caráter” em edifícios da região da Avenida Paulista para
realizarem suas pixações.
O rol de estímulos também não se encerra nos famosos. Na seqüência do caso do coronel Ubiratan, estes jovens se manifestaram
em Osasco, nas portas de uma padaria que mandou prender seu balconista por roubar 4 bifes. Nesta ocasião, a frase foi: “Cadeia é
só para pobre. P. Neves, Lalau, soltos” (ALVES, M., 2007). Demandaram, sobretudo, justiça. Em seguida, se manifestaram no caso do
assassinato da menina Isabela, noticiado como o caso dos Nardoni, e antes do coronel Ubiratan, no caso de Suzane Von Richthofen,
que assassinou os pais.
SEMÂNTICA, DISTINÇÕES COM O GRAFITE, E OS ASPECTOS PRIMORDIAIS
Embora a pixação e o grafite tenham a mesma ação, no caso do pixador ela ocorre dentro de um grupo pelo qual deve ser aceito
pelo líder, e a tipografia utilizada é predeterminada, para que além do nome, tenham na forma um mecanismo de identificação. Neste
processo, a própria leitura é eclipsada por um investimento plástico, tornando-a acessível apenas para aqueles que adentraram no
circuito da pixação e passaram a ter intimidade com os seus códigos de leitura. Embora pareçam indecifráveis para a maioria da
população, qualquer adolescente que frequenta o point passa a dominar sua leitura rapidamente, pois se trata da mesma língua por-
tuguesa que todos aprenderam na escola, a sua diferença é possuir um investimento na estilização maior, como também era o caso
das letras dos escribas nos monastérios medievais.
Na sua composição, a pixação de São Paulo desdobra-se em três elementos: a “grife”, representada, geralmente, por um emblema
que identifica uma associação de grupos; o “pixo”, nome dado ao grupo de pixadores; e, de forma abreviada, o nome, ou o apelido,
dos indivíduos que integram aquele grupo e que estavam presentes no momento da ação. Além desta composição também podem
aparecer no conjunto da inscrição o ano da pixação, e os adjetivos: “em paz”, caso o nome se refira a alguém falecido, e um número
referente a um artigo do código penal caso o pixador esteja preso: “157” (assalto à mão armada). Estes adendos dão perenidade à
presença do sujeito na cidade mesmo com sua ausência da rua, marcam o tempo e a longevidade de suas trajetórias no contexto
urbano e conferem status aos seus praticantes. Por meio destas características, os grupos presentes há mais tempo na cidade e que
alcançaram os espaços mais difíceis são consagrados pelos seus pares, e ainda mais exigentes para acolherem novos membros.
Além disso, o conjunto da inscrição caracteriza a dimensão coletiva da prática, suas associações e a abrangência de sua influência
ao longo do tempo e do espaço. Pela própria composição da inscrição, percebe-se que o ícone relativo ao nome do sujeito, ao
individual, é o elemento menor no conjunto da inscrição.
Imagem 46: Pixo dos grupos “Túmulos” e “Os Bixo Vivo”. Fonte:
Folha Imagem. www1.folha.uol.com.br/cotidiano, 11 set 2006.
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De modo geral, ainda que desconhecida nas suas especificidades, a pixação sempre foi abertamente rechaçada pela maioria da po-
pulação. Com a sua ascensão e abrangência, no início da década de 1980, atraiu posturas repressivas do poder público e da polícia,
e a indignação generalizada por todos os estratos da sociedade, com ataques de todas as mídias (televisão, rádio e jornais). Ao
mesmo tempo, houve uma diferenciação de tratamento em relação ao grafite que acontecia no período, o qual também era vítima de
incompreensão no início e marcadamente transgressivo. Este, contudo, foi muito valorizado assim que entrou na Bienal Internacional
de São Paulo em 1981, com as obras de Keith Haring. O grafite, inclusive, foi absorvido em diversos âmbitos como mecanismo para
frear a pixação: foi utilizado para pintura das portas de metal e muros residenciais como forma de impedir sua presença; foi ensinado
em ONG para os jovens preterirem a pixação; transformou-se em política pública de governos que o incentivaram; foi integrado pela
publicidade para atingir o público jovem e tratado como arte, enquanto que o pixo era tido como vandalismo. Mas no contexto da arte
as opiniões são distintas: há quem veja beleza na estilização de alguns pixos, e como a única expressão que mantêm a resistência
característica dos primórdios do grafite de Nova Iorque.
Todavia, pixação e grafite são práticas que não possuem necessariamente contraposições ou incompatibilidades. Muitos de seus
praticantes transitam pelas duas expressões com tranqüilidade e não as tratam como formas que evoluem de um estado a outro. Em-
bora haja no grafite um investimento plástico maior, seu processo é interno, sem rupturas com a prática anterior. Ele demanda uma
iniciativa do sujeito com o seu desenho, sendo que o grafiteiro não precisa abolir as outras práticas possíveis de intervir na cidade
para ser considerado enquanto tal. Para o pixador, existe um crime capital: negar o seu passado e criticar a pixação como um meio
inferior de se expressar em comparação ao grafite. Juneca, um dos primeiros pixadores da cidade, foi vitima desta sentença depois
de começar a fazer grafites, mudar de discurso e ser cooptado pela prefeitura, a qual o premiou por sua iniciativa com uma viagem
para a França concedida pelo Consulado Geral da França em São Paulo no período de realização do evento “São Paulo Capital do
Grafite” em 2003.
Porém, o que mais interessa nesta pesquisa é o mecanismo característico da pixação de São Paulo, que permitiu aos seus praticantes
conhecerem a escala da metrópole em que atuam. Coisa inimaginável para os outros habitantes da cidade, habituados aos enclaves
que cresceram no período. Para Alexandre Pereira, “os pixadores têm uma forma muito particular de vivenciar a cidade. Apesar de
serem acusados de sujá-la e de torná-la mais feia, eles a conhecem como poucos e circulam pelos mais diferentes lugares. Eles
percorrem todas as regiões, da periferia ao centro” (PEREIRA, 2005, p. 34-5). Neste sentido, não são territorializados como acontecia
com os grafiteiros dos primórdios de Nova Iorque, que usavam a expressão para demarcar o domínio de seu lugar, o que fez com
que se restringissem a este na maioria dos casos. Em contraposição, os pixadores, através das alianças no entorno das grifes e dos
encontros regulares com todos os praticantes da cidade nos points, impediram uma atitude de repelir os forasteiros dos seus bairros
de origem. Muito pelo contrário, convidar o forasteiro tornou-se uma iniciativa para dar notoriedade ao grupo e ganhar respeito dos
demais. Neste processo, a sociabilidade dos pixadores é amplificada em relação a dos demais cidadãos. Freqüentar o point central
também tornou o encontro com o estranho uma oportunidade e não um risco. Segundo Alexandre Pereira, “no Point da Vergueiro,
pixadores de diversas quebradas
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da cidade, muitas vezes, não se conhecem, mas se reconhecem enquanto portadores de deter-
minados símbolos e códigos de pertencimento” (Ibidem, p. 34-5). Desta forma, para ordenarem estas relações encontraram códigos
que fomentaram a interação e o reconhecimento diante de um desconhecido. Ainda, sendo o centro da cidade o lugar de fixação
dos points e de encontro entre todos, este passou a ser o espaço, em especial, para conquistar notoriedade, transformando-se no
principal alvo das pixações.
As regras de pertencimento aos grupos de pixadores, em contraposição às gangues norte-americanas das quais emergiram os
grafiteiros, também são distintas. Primeiramente, porque são menos rígidas e não incluem a violência como ritual de inclusão ou
obrigação de prática quando acontecem os conflitos. Segundo, porque operam um código de conduta que não se restringe a eles,
mas a todos os circuitos de relações das periferias paulistanas, como a torcida do Corinthians, as agremiações do futebol de várzea,
os motoboys, e mesmo a rede da criminalidade. Tal código é conhecido como LHP: Lealdade, Humildade e Procedimento. Lealdade
às pessoas que compõem o grupo, mas não obrigações. Humildade como comedimento e não como subserviência. E procedimento
como operação inteligente do código, usando-o de acordo com o contexto. Neste sentido, deve-se ser humilde desde que não se
44
Denominação dos pixadores para definir o bairro de origem.
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sofra uma humilhação, deve-se ser leal desde que não haja traições.
Para além destes aspectos, a pixação fornece aos seus membros uma dimensão histórica de pertencimento à cidade. Suas inscri-
ções registram suas passagens e trajetórias e o tempo em que participaram do complexo espaço urbano da metrópole. É uma ação
que registra a presença do indivíduo na cidade, átomo perante a escala do incomensurável da grande São Paulo. Elas oferecem
uma resistência à invisibilidade social que enfrentam ao fazerem parte de algo praticamente inatingível para quem os evita e os
inferioriza, e que só podem conhecer essa escala da cidade se a sobrevoam de helicóptero. Entretanto, a pixação não retira o sujeito
necessariamente do anonimato, apenas oferece sentido para sua existência entre aqueles que, como ele, aprenderam a circular entre
os ‘enclaves fortificados’ e a periferia que os circunda. Certamente poucos pixadores conhecem pessoalmente o Di e o Tchencho,
nomes consagrados da pixação, mas saberiam de sua existência pela notoriedade de suas ações, ações estas que mostraram as
falhas do sistema de controle da pretensa segurança total que oferecem os condomínios de luxo.
A pixação não é apenas emissora de um “eu existo”, mas ativa para estes jovens como uma oportunidade de escapar do enclausura-
mento dos guetos de toda espécie. É a afirmação de que alguns sujeitos não possuem medo de andar pela cidade. E se a violência
da polícia os reprime, integram esta dificuldade no processo dizendo que: “Pixar é adrenalina, tomar geral
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faz parte”
46
.
Esta oportunidade gerada pela pixação não está colocada apenas para os jovens das classes baixas. Quando os jovens de outras
classes sociais também conseguem operar com maestria os códigos de conduta da periferia, podem ser aceitos e bem recebidos
enquanto pixadores, pois esta é a principal identidade considerada por aqueles que participam da expressão. Desta maneira, Marcelo
Cidade, um jovem de classe média alta, encontrou um lugar nesta prática, pixando o codinome ATEU.
Porém, este não é um exemplo generalizável no meio da pixação, mas são possibilidades instaladas na realidade e mobilizadas pela
capacidade inventiva com que os sujeitos lidam com a regra. Justamente pela sua capacidade criativa, e pelo acesso singular tanto
à pixação como ao curso de Artes Plásticas na FAAP, Marcelo Cidade pôde realizar um empreendimento que lhe rendeu frutos num
contexto institucionalizado da arte. Mas, embora este pixador tenha entrando no circuito da Arte Contemporânea nos últimos anos,
a sua herança ligada à experiência de pixador teve que ser transmutada para uma tradição instalada na história da arte das últimas
décadas, fazendo da performance e da instalação o suporte necessário para expressar o que ela já dizia pela pixação. Porém, nesta
passagem a um meio social que continuava a ter a mesma percepção comumente tida sobre a pixação (salvo raras exceções, como
a curadora da XXVII Bienal Internacional de São Paulo, Lisette Lagnado), omitiu sua identidade de pixador e fomentou a identidade de
artista, ainda que reconheça, numa entrevista
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concedida ao autor desta dissertação, que o universo da pixação é o celeiro de sua
matéria-prima, ao qual sempre volta para recolher novas idéias para os seus empreendimentos conceituais na Arte Contemporânea.
Segundo Marcelo Cidade, a pixação é performance por excelência: quando um jovem da periferia atravessa a cidade e subverte o
sistema de segurança de um edifício para realizar sua inscrição nele, está realizando uma grande performance.
CONDUTAS DE PIXADOR
Para o pixador de São Paulo, não existe lugar que não possa ser perscrutado por suas andanças. Os subterrâneos, os ‘picos’ mais
altos das edificações e das paragens de onde se observa a cidade. A cidade não é um labirinto. Nela, ele lança-se a uma investigação
contemplativa ou interventora, não se perde. O pixador provém das classes sociais mais baixas, e ainda que em seus grupos haja
membros de outras classes, estes se adequam ao comportamento ditado pela periferia. O pixador se aventura, coloca-se em risco
de vida para realizar sua intervenção, sempre está em estado de alerta, não possui ar contemplativo.
Ele busca, na paisagem da cidade, as pixações realizadas e em potencial e, nos nomes dos pixos uma pessoa, um grupo de amigos,
seus aliados na grife. A multidão assombra o pixador, mas não como um perigo, um risco, apenas como apagamento, da mesma
forma que sofre na sua invisibilidade social enquanto jovem da periferia.
O pixador não encontra conforto na rua, pois esta lhe oferece riscos quando está praticando sua expressão, para ele é lugar de nin-
45
Gíria para definir a abordagem policial ostensiva.
46
Entrevista concedida ao autor, pelos pixadores/grafiteiros Sujo e
Roy, no Capão Redondo, em 17 de abril de 2002.
47
Entrevista concedida ao autor em 28 de março de 2008.
8 3
Imagens 47, 48 e 49: Pixadores em ação em edifícios da região central. Fotos de Choque Fotos, 2007.
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guém, mas passa a ser ‘dele’, na medida em que inscreve seu pixo nos muros.
Para o pixador, a cidade é suporte, ele transforma sua paisagem e ‘caracteriza’ sua feição com a sua iniciativa. Hoje, São Paulo não
consegue se definir sem considerar este elemento como constitutivo de sua imagem. O pixador jamais está passivo diante da cidade.
Pode-se dizer que o pixador também é conduzido para outros tempos, mas desde que estes tempos não excedam a existência de
seus amigos e dos notáveis da pixação.
A maconha, para o pixador, age como um calmante diante da tensão por que passam em meio ao risco. É usada ao longo de toda
a ação. A maconha dificulta o estado de atenção requerido pelas práticas do pixador, da mesma forma que o haxixe dificulta a con-
centração necessária à prática da escrita, mas ele não precisa se concentrar em um texto, mas sim, na proporção e na escala do seu
trabalho.
O pixador também vive num espaço banalizado, mas na sua iniciativa oferece saturação para a paisagem urbana, reiterando a bana-
lização. A atitude do pixador já parte do desencantamento.
O pixador faz estratégias, vive entre a euforia e o desespero do risco da morte.
OS GRAFITEIROS
BOLETA: O VÓRTICE DA SENSIBILIDADE ESPACIAL
Este artista
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de 31 anos, proveniente da Sapopemba, um bairro de classe média baixa da zona leste paulistana, é um dos expoentes
da New School. Ele é significativo para esta pesquisa por dois aspectos principais: primeiro, porque é admirado entre a sua geração
de grafiteiros, por realizar um empreendimento abstrato que demarcou uma diferença significativa em relação à geração Old School,
a qual se restringiu ao figurativo; segundo, porque sua trajetória percorre todo o campo do grafite.
A influência que ele exerce para toda a geração de grafiteiros de que faz parte se dá pelo desprendimento dos ícones dominantes do
conjunto da produção. Ele não cria imagens, seja na rua ou na tela, que se vinculariam ao Hip Hop, ao figurativo ou ao popular. Dentro
da expressão abstrata, da qual ele se aproximaria, seu estilo é marcado pela iconografia da tatuagem, com cores fortes, contraste
bem estruturado, e uma saturação de ornamentos delicados, oferecendo uma representação altamente psicodélica. Seu trabalho é
considerado como um dissolvedor das imagens. Nele, identificam-se ícones de caveiras, bocas, corações, pássaros, flores e olhos,
mas o elemento lisérgico desconstrói e liquidifica a representação original.
Na imagem ao lado, vemos seu processo de criação: uma composição de contrastes entre cores quentes (vermelho, amarelo) e frias
(azul escuro e azul claro), com o lilás intermediando os tons, por ser composto por ambos. O desenho recorre ao vórtice, absorvendo
o entorno, e dentro dele, imagens que remetem à figura de um pássaro, uma boca e um olho, elementos que assimilam o mundo.
De um modo geral, podemos dizer que a boca se alimenta, que o olho é a janela da alma e o espelho do mundo e que o pássaro
representa a liberdade. Porém, tudo é transitivo, se dissolve diante do fogo logo abaixo, é o estado metamorfo da figura, a qual, num
próximo grafite, assumirá novas formas.
Boleta conquistou um espaço no mercado da arte, mas não dominou as habilidades necessárias nem a disposição de subordinação
requerida pelas galerias de arte. Neste sentido, não teve a mesma desenvoltura que Zezão (seu amigo e companheiro do grupo de
pixação “Vício”) na comercialização de sua obra. Porém, tentou caminhos de comercialização alternativos: foi dono de uma das
primeiras galerias de grafite, a Grafiteria, e co-curador de uma exposição junto com Fabio Magalhães (Street Art 2006).
48
Seu nome verdadeiro é Daniel Medeiros.
8 5
Em comum com a sua geração, foi iniciado nas intervenções urbanas pela pixação. Por volta de 1991, formou um grupo com o Padre,
pixador de respeito em seu bairro, e a ele deram o nome de Vício: palavra apropriada para o contexto adolescente, bem como para
a prática da pixação, tida como viciante e envolta pelo uso de entorpecentes. Nesta prática, conquistou credibilidade e chamou a
atenção dos grafiteiros consolidados, dentre muitos fatores, porque trouxe um elemento novo, com a exploração dos meios televisi-
vos para sua divulgação. Tal processo se deu porque reconheceu uma regularidade de enquadramentos das câmeras da TV Globo na
cobertura da corrida de São Silvestre (evento que acontece anualmente, em 31 de dezembro). Assim, apropriou-se dos espaços da
cidade para realizar um uso insidioso: nos três dias anteriores ao evento, realizou pixações posicionadas para serem veiculadas pela
TV (imagem 51, p. 84). Esta prática, que se irradiou entre outros pixadores, fez com que a TV mudasse de enquadramento a cada ano
para evitar a publicidade gratuita que promovia para os pixadores.
Boleta foi o organizador do primeiro livro nacional relacionado ao assunto da pixação, chamado “Ttsss... a grande arte da pixação em
São Paulo, Brasil” (São Paulo, Editora do Bispo, 2006). Nele, apresenta seu caderno com as assinaturas dos pixadores consagrados e
fotos destes sujeitos e suas obras, feitas por João Wainer. Tal livro foi lançado em 31 de janeiro de 2006, em vernissagem na “House
of Erika Palomino”
49
, numa tentativa de aproximar o universo da moda ao repertório da arte urbana. No entanto, para este evento os
pixadores não foram devidamente convidados, mas apareceram de surpresa na festa para se apropriarem de todos os espaços do lu-
gar realizando suas intervenções (imagem 52, p. 85, revela tal ação). O dia foi repleto de desconfortos, tanto dos pixadores cobrando
Boleta por ter se associado a uma figura da moda que certamente os desprezaria em outras circunstâncias, como pela proprietária do
espaço que não sabia como proceder diante da invasão. Nesta ocasião também estava presente a obra da Alessandra Cestac, com a
qual o Boleta realizou uma performance na qual ficou nu como a artista.
Imagem 50: Boleta, 2006. Sem título. Foto do artista, 05 jul 2006.
49
Érika Palomino é uma socialite influente na sociedade paulistana.
Foi colunista da ‘Noite Ilustrada’ do Jornal Folha de São Paulo, du-
rante 17 anos, e atua como consultora de moda e editora de revistas
relacionadas ao assunto. Informações disponíveis em: http://www.
ericapalomino.com.br/erika2006/quem_somos.php.
8 6
50
Percursos pela cidade para realizar pixações.
51
O nome deste grupo não poderá ser informado por exigência de
seus membros.
Cestac, que aparece na esquerda da imagem, fez uma colagem de si com expressão de espanto e recolhimento. A composição de
sua imagem com a pixação foi fortuita, porém, está em sintonia com a expressão da sociedade em relação à pixação. A artista não
assume uma posição conservadora sobre a manifestação que ocorreu no evento, entretanto, representa com precisão a reação da
sociedade a esta expressão. O caráter de tal expressão não permite uma reação distinta, pois soa como agressão e autoritarismo, na
medida em que se apodera do espaço alheio impositivamente, talvez como resposta a uma atitude difusa e correlata da sociedade.
Todavia, os desentendimentos com o meio da moda advinham de outras tentativas de assimilação. No desfile da Triton na São Paulo
Fashion Week de 2003, o diretor de arte do evento solicitou uma cenografia com pixações e envolveu o Aprendiz na intermediação.
Boleta foi convidado para o trabalho e realizou pixações de todos os grupos com que fizera “rolês
50
”, incluindo o falecido DI. O diretor
de arte também fotografou vários pixos, imprimiu o trabalho e o estampou na passarela. Na sequência deste ato, um dos funcionários
da limpeza que conhecia um membro de um importante grupo de pixadores
51
, viu a imagem do pixo deste e perguntou para o amigo
se fôra ele que realizara. Estava dado o conflito, pois, naquele ambiente, os jovens da periferia, que eram os autores das pixações,
jamais seriam acolhidos de bom grado. Boleta foi cobrado pelo pixador por sua atividade, que lhe rendera meros 300 reais. Este,
jamais entendera que Boleta não era o vilão da história, mas possuía razão no argumento de que era um contra-senso se dispor a tal
trabalho num ambiente em que os pixadores sofreriam preconceito social.
Entretanto, no que concerne à importância da pixação na trajetória de Boleta, há um traço definidor: foi através dela que chegou ao
Imagem 51: Pixação do grupo ‘Lixomania’, feita no Elevado Costa e Silva (Minhocão) para ser veiculada pela cobertura da corrida de São
Silvestre. Fonte: CHASTANET, 2007, p. 177.
8 7
Imagem 52: Festa de lançamento na “House of Érika Palomino”. Foto de Boleta, 31 jan 2006.
grafite. Em função dos “rolês” que realizara a partir de 1991 nas linhas de trem, teve o primeiro contato com as tags (assinaturas em
estilo Hip Hop) e os grafites de trow up (letras em estilo Hip Hop). Neste período, não havia internet nem revista que divulgasse a
expressão. A única fonte de informação era os trabalhos de Onesto e dos Gêmeos (artistas da geração Old School). Em 1994, Boleta
foi apresentado aos Gêmeos, que o convidaram para realizar intervenções conjuntas no bairro do Cambuci (por tê-los encontrando
anteriormente no ‘point’ de pixação da Vergueiro). Neste contato, Boleta afirma que aprendeu a pintar o trow up. Os Gêmeos agiam
como professores, ensinando os procedimentos técnicos para realizar as letras do bomb e do trow up. Em seguida, conheceu Cobal
(Herbert) e William (seu irmão). Esta iniciativa se deu porque faziam pixação e gostariam de uma “folhinha”
52
assinada por Boleta,
pois o Vício era um grupo então consagrado na pixação.
Por intermédio destes contatos, que foram se desdobrando em aproximações com os membros de toda geração Old School, conhe-
ceu Tinho, um dos principais grafiteiros que o influenciaram. O aprendizado gerado por este contato foi de que deveria sair da refe-
rência puramente norte-americana do trow up. Neste período, Tinho era um dos poucos grafiteiros que traziam elementos plásticos
inovadores, ao assimilar a pintura, as colagens e o universo das artes visuais.
Assim, Boleta foi desconstruindo as letras que realizava de trow up e, na dissolução delas, foi encontrando o seu estilo, passível de
ser reconhecido pelos outros grafiteiros como uma das primeiras obras abstratas de grafite.
52
Os pixadores possuem pastas onde recolhem as folhas de papel
com assinaturas dos pixadores da cidade, por meio delas passam a
reconhecer os autores dos pixos da cidade.
Imagem 52.1: Alessandra Cestac, 2006. “Nua na rua”. Foto de João
Wainer.
8 8
Concomitantemente a este processo de dissolução das letras do Hip Hop, aproximou-se do Studio de tatuagem Black Boll, onde
seu irmão trabalhava e pelo qual passaram tatuadores consagrados nesta arte: Marcio Duarte, Arthur, Tetê, Pica-pau. Este local foi a
segunda grande escola para o seu processo de criação. Acompanhado de seu irmão, permanecia durante longas tardes no Studio,
absorvendo técnicas de pintura e a iconografia do psicodélico. Desta maneira, reafirmou o sentido do Vício, seu grupo de pixação. As
imagens que criara eram representações de alucinações visuais advindas de experiências com substâncias lisérgicas e alucinógenas.
A abstração da realidade foi uma desconstrução dada pela alteração dos sentidos, a loucura dos sentidos transtornados trouxera a
imagem que ele fixou na paisagem urbana. Quando o Studio Black Boll fechou, Boleta iniciou a transferência desta referência para
as paredes, inserindo esta temática no seu desenho, reconhecida pelos elementos psicodélicos, a distorção e o escorrido. Ele
desdobrou as técnicas da pintura para uma adaptação à parede, reconhecendo, por sua vez, que sem este instrumento técnico não
poderia realizar sua obra.
Este aprendizado ocorreu na mesma época em que participou do Aprendiz. Segundo o artista, ela “foi importante para aglutinar os
praticantes de grafite num ponto de encontro, surgido como uma alternativa ao Cambuci dos Gêmeos” (MEDEIROS, 2008)
53
. Antes
do Aprendiz, o grafiteiro só aprendia se fosse aceito para participar de um “rolê” com um grafiteiro reconhecido, como o Cobal e
Os Gêmeos. Com o Aprendiz o processo se democratizou, principalmente pela oferta de material que dava suporte à expressão dos
artistas. Assim, a Vila Madalena passou a ser repintada, cobrindo uma extensão maior de muros do que os Pioneiros, substituindo-se
os grafites em stencil que vigoravam no lugar. A instituição oferecera muita tinta para pintar, aspecto importante para a sua expressão,
já que até hoje, depois de ter o trabalho consolidado, Boleta ainda enfrenta dificuldade financeira para adquirir latas de spray.
Outros elementos reconhecidos por Boleta como contribuição do Aprendiz foram as qualidades agregadas pelo espaço e pela ins-
tituição, com grande número de muros, e oferta de oportunidades de trabalho, tanto para dar aula de grafite como para atender ao
mercado publicitário. Antes disso, só surgiam oportunidades para Os Gêmeos, Herbert, Speto, os grafiteiros consolidados da Old
School.
Por sua vez, Boleta diz que o “Aprendiz não era reconhecido com tanta intensidade e extensão antes de 2000 e só passou a ter desta-
que na mídia através do grafite. Com isso, os grafiteiros conquistaram visibilidade e deste ponto em diante aumentaram a quantidade
de patrocinadores. O Bank Boston foi o auge, momento em que Siron Franco foi convidado para ser curador do trabalho e Márcio
Scavone para fotografá-lo. Esta ocasião gerou a maior mídia que a instituição já conquistara.” (MEDEIROS, 2008)
Para Boleta, “hoje o Aprendiz não possui importância na cena do grafite. Perdeu toda a credibilidade, principalmente pelos artistas
que estavam na instituição e o abandonaram” (IBIDEM). Na exposição da Fortes Vilaça de 2006, o valor da obra de Highraff (um
dos artistas que pintou por 2.500 reais no Bank Boston) chegou a 16 mil reais. No entanto, no momento do evento no Bank Boston,
o grafite ainda não tinha sua comercialização consolidada e, certamente, a visibilidade gerada pelo projeto também rendera novas
oportunidades para os artistas, tornando a ação mais interessante por este fator do que pelo rendimento direto que ela possibilitara.
Colocados na balança, vemos que além da marca Bank Boston era o trabalho dos artistas que estava no foco da divulgação e certa-
mente conquistaram rendimentos posteriores por esta visibilidade.
Na sequência do trabalho realizado no Bank Boston, do qual também participou, Boleta montou a galeria Grafiteria com Jey para
disputar o mercado com a Choque Cultural. Segundo ele “o Baixo [proprietário da galeria Choque Cultural] não queria pagar o que
os trabalhos mereciam” (IBIDEM). Para contrapor-se, praticou uma porcentagem de 35% do valor da obra para a galeria, em vez dos
50% a 70% praticados pela Choque Cultural. A primeira exposição da Grafiteria teve um cunho de divulgação do grande número de
grafiteiros presentes na cena e da própria galeria. Foi feita a exposição “100 latas”, em que cada artista convidado pintava uma lata
de spray. Com esta iniciativa, tentaram quebrar o monopólio da Choque Cultural, mas não conseguiram se sustentar por um longo
período e fecharam o empreendimento depois de 2 anos.
Neste período, também surgiu para Boleta a primeira oportunidade efetiva de iniciar uma carreira internacional. O galerista Jona-
53
Entrevista concedida ao autor em 30 de maio de 2008.
8 9
than Levine, de Nova Iorque, procurara Baixo Ribeiro para que este lhe apresentasse Boleta (Baixo deixou as diferenças de lado e
estabelecera o contato com o artista). O galerista norte-americano prometera levá-lo para uma exposição em Nova Iorque, em sua
galeria. Este projeto se efetivou em 17 de fevereiro de 2007, na exposição “Ruas de São Paulo”, na Jonathan LeVine Gallery, com a
participação dos membros da Old School, Onesto e Speto, e da nova geração, com Titi Freak, Fefê Talavera, Zezão, Kboco, Highraff
e Boleta
54
.
Ainda assim, Boleta não se vinculou à Choque Cultural e, hoje, não atinge os mesmos valores para as suas obras que alcançaram os
representados por ela: uma obra do Titi Freak alcançara o valor de 30 mil reais na Feira SP Arte de 2009 e, a de Speto, 23 mil reais.
Enquanto que a obra “O Inferno é aqui”, de Boleta, alcança o preço de 8 mil reais. Não é um valor pequeno, mas comparativamente,
não chegou ao mesmo resultado que artistas de menos prestígio na arte urbana, como Titi Freak. Portanto, ocupa um espaço desigual
no mercado da arte em relação aos seus contemporâneos. Da mesma forma que Tinho e Herbert foram importantes para Boleta e
sua geração, na iniciativa de se desvincular do Hip Hop, ele fôra importante para a geração do Aprendiz, trazendo um elemento mais
livre, fora do universo representado até então. Mas esta influência interna ao campo do grafite não se traduz necessariamente em
recompensas econômicas.
Diante do caminho alternativo que escolheu, no dia 30 de maio de 2008, ocasião em que concedeu a entrevista que faz parte desta
pesquisa, disse: “vivo no veneno (sic), ganhando pouco, mas evolui já que não sou mais metalúrgico, trabalho que me desgastava
demais para ganhar apenas um salário mínimo” (MEDEIROS, 2008). Boleta foi co-curador da exposição “Street Art”, no Museu
de Arte Contemporânea da USP, 17 de janeiro de 2007. Tal iniciativa foi produtiva para a consolidação da expressão enquanto arte,
possibilitando as certificações dos especialistas para ratificar a qualidade. Porém, mostra-se também contraproducente pelo fato de
Boleta não ter elaborado a passagem da rua para um ambiente institucional. Em seus trabalhos ali exibidos, explorou simplesmente
a forma num suporte estranho à técnica desenvolvida na rua.
Quando Boleta é indagado sobre uma definição de grafite, afirma:“ é o tradicional ilegal que rolava em Nova Iorque. Para muita gente
o que rola na Vila Madalena [onde ele se situa] foi muralismo. Na Galeria jamais é grafite. Para muita gente, em função da trans-
gressão associada à prática, apenas a pixação seria próxima do grafite. Para a Galeria, só se leva o estilo, é impossível de levar (sic)
a atitude presente na rua. Não tem atitude, é fácil, produzida em ateliê com tempo e sossego” (IBIDEM). Percorrendo a trajetória de
Boleta, percebe-se o quanto grafite e pixação são indissociáveis, e contribuintes para o seu processo de criação. Ao mesmo tempo,
encontra-se uma lacuna de pensamento quando o artista relega à margem a reflexão sobre a passagem da rua para a galeria. Boleta se
compraz em dizer que não é possível levar o grafite para a galeria, mas é o seu desenho presente na rua que foi para aí transposto.
No que tange a sua experiência na rua, Boleta afirma que esta lhe forneceu os procedimentos e condutas para poder circular nos
lugares tidos como perigosos. Ele procura retribuir estes lugares com obras que apresentam o caráter inspirado por sua vivência ali.
Dois destes resultados foram as intervenções na cracolândia paulistana e no Morro do Pavão, Rio de Janeiro. Na primeira, tentou
desenvolver um trabalho bonito [segundo o autor], mas o espírito do lugar o levara para uma obra que absorvera seu entorno, com
cores sóbrias, caveiras, cachimbos de crack, ícones da morte e da tristeza diante da destruição humana que circundava a fatura da
sua obra. Não foi possível fazer diferente. A cracolândia, na região central da cidade, é povoada por usuários de crack que, parecidos
com zumbis, vivem escravos do vício.
No Morro do Pavão, havia homens com metralhadoras, mas havia também crianças brincando e isto o influenciara para realizar um
trabalho bonito [segundo o autor]. Pretendera lutar contra a tendência depressiva diante de um ambiente violento.
Com esta singularidade de inserções, Boleta fez de lugares insólitos e quase inacessíveis o espaço para divulgação de sua obra.
Agindo como um vórtice, absorveu os elementos principais destes ambientes. Sua atitude revela ainda uma passagem da necessi-
dade para virtude: se o sistema da arte não abre as portas para um artista metalúrgico, os lugares que ele escolheu para se fazer ver
foram estes, que engendram uma dificuldade e tornam sua obra absolutamente rara.
Imagem 53: Boleta, 2009. “O Inferno é aqui”. Spray sobre tela.
1,20 m X 1,20 m. Exposição Coletiva de Boleta e Ndrua, Matilha
Cultural, São Paulo, maio de 2009. Imagem cedida pelo artista.
54
Link da exposição: http://www.jonathanlevinegallery.
com/?method=Exhibit.ExhibitDescriptionPast&ExhibitID=4E2EF6E
2-115B-5562-AA710CEC87AB1621. Acessado em 20 de maio de
2009.
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Imagem 55: Boleta, 2006. Grafite na Cracolândia, São Paulo. Foto do artista, 25 abr 2006.
Imagem 54: Boleta, 2007. Grafite no Morro do Pavão, Rio de Janeiro. Foto do artista, 25 set 2007.
9 1
Entretanto, esta decisão não se pautou exclusivamente pelos fatores acima citados. Iniciou-se em fábricas abandonadas [prática para
a qual convidou o Zezão], porque nelas era mais fácil atuar, mais tranqüilo, diferente da rua. Estes lugares lhe forneciam o mesmo
ambiente que um artista encontra num ateliê. Na época em que realizava seus primeiros grafites, a polícia reprimia a prática: os
policiais pintavam toda a pessoa, além de baterem nela. Estas circunstâncias de repressão, chamadas de “veneno” (sic) na acepção
do autor, foram enfrentadas por Boleta mais de dez vezes. O ‘pixo’ foi a raiz que lhe ensinara a driblá-las, sem a qual não acredita que
fosse possível a realização dos demais trabalhos.
Observando suas inovações formais que integram a iconografia das tatoos e da abstração, sua carreira de interdependência entre
pixação e grafite, e os lugares da cidade que escolheu para intervir, denotamos que Boleta tornou-se um exemplo sui generis de sua
geração e representante imprescindível para tratar do grafite paulistano. Neste sentido, ele não é apenas o vórtice que engole o seu
entorno, mas também sintetiza a história do grafite na cidade.
SPENCER VALVERDE “SUJO”: A POTÊNCIA FORA DO JOGO
Este artista, de 23 anos, nasceu na cidade de João Alfredo, agreste do Estado de Pernambuco. É caçula de uma família de três irmãos.
Seus pais vieram para São Paulo na década de 1980, como tantos outros da região Nordeste em busca de melhores condições de
vida e trabalho. Grosso modo, ele é um membro das famílias humildes representadas pelos desenhos e intervenções dos Gêmeos.
Foram seduzidos pela reputação da metrópole em oferecer uma vida de oportunidades e mobilidade social, mas não necessariamen-
te encontraram esta condição na cidade. Entre as diversas profissões ocupadas pelo seu pai, a de zelador exerceu por mais tempo.
Trabalhava no Restaurante Salt & Pepper da Rua Oscar Freite, localidade próxima das lojas de luxo que atendem a elite econômica,
morando nos fundos do estabelecimento com a família. Foi neste contexto, de enorme contraste entre a sua origem e as das pessoas
que seu pai servia, que o artista cresceu. Como num ambiente de corte, viveu a invisibilidade social formulada pela máxima distância
social, na máxima proximidade espacial, expressa por não se sentir sequer enxergado habitando o mesmo lugar.
Desta maneira, foi na pixação que encontrou uma forma de manifestar sua existência. A partir dos 13 anos de idade, lançou seus
primeiros traços na escola Marina Cintra e foi convidado por Boca para fazer parte do grupo Bereta, do qual era líder. Como não
possuía dinheiro, seu cotidiano era trabalhar como guardador de carros (flanelinha) nas ruas do bairro, juntar 10 reais, comprar uma
lata de spray e marcar sua presença no mundo.
Diante deste quadro vivenciado por Spencer e sua família, seu pai permaneceu ligado à terra de origem, para qual voltou com uma
regularidade parca, para manifestar certa ascensão social entre os conterrâneos e se reencontrar com a dignidade de direito. A me-
trópole não fora generosa com ele, e ele não poderia estabelecer laços simbólicos coesos com ela. Hoje, por sua vez, está em João
Alfredo (PE), num pedaço de terra onde almeja a tranqüilidade que não obteve em São Paulo.
A trajetória de Spencer é marcada por este dado, tanto como pelo traço trágico das frustrações presentes em muitos daqueles que se
jogam no mundo com o espírito da aventura e da sorte, dentre os quais sua família faz parte. Entre os dramas que viveu, foi colocado
como suspeito de seqüestro relâmpago de uma adolescente pela coordenadora pedagógica do Programa Aprendiz Comgás (vincula-
do à Cidade Escola Aprendiz e ao departamento de marketing social da empresa Comgás), do qual ambos participavam. O argumento
que embasava a suspeita era de que ele estava apaixonado por ela e, por não ser correspondido, agira de forma violenta, visto que
ele havia prometido bater num outro adolescente porque este a namorou. Enfim, apenas suspeitas. Porém, qual a motivação delas?
Como as pessoas identificam um potencial seqüestrador? Os condicionamentos criados pela classe de que provém a coordenadora
pedagógica certamente ofereceram os mecanismos de distinção social para ela encontrar seus argumentos. Em seguida, apareceram
as relações com o pai, que, com argumentos fúteis, lhe dizia que estava desonrando a família, causando vergonha de tê-lo como
filho. Spencer também adquiriu consciência da falta de perspectivas e da perda de um interlocutor para exprimir suas angústias e
9 2
sofrimentos, pois seu amigo de pixação Nê, que dividia com ele certa revolta contra o mundo, morrera na ponte da Avenida Sumaré
no mesmo mês em que ele se frustrava com a pessoa amada.
São estas experiências que farão sua educação sentimental, que criarão uma sensibilidade apurada para o sofrimento humano, que
lhe permitirão o reconhecimento do vínculo intrínseco entre infelicidade individual e infelicidade geral. Ao mesmo tempo em que
darão à sua personalidade a rigidez e a flexibilidade necessárias para continuar se expressando. Numa poesia de João Cabral de Melo
Neto, ele seria o cabra que teve a educação pela pedra.
Educação pela Pedra
João Cabral de Melo Neto
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
Este traço ele comunga com seus pais, “uma pedra de nascença” que “entranha a alma”. Logo em sua chegada à metrópole, a
violência doméstica lhe tirou parte da sensibilidade auditiva, seguida do afeto de sua mãe, que fugiu de seu pai e das agruras que
passava numa cultura marcada pelo machismo. Ela deixou um vazio na casa e na alma de seu filho. Hoje, depois de 10 anos sem
vê-la, Spencer reencontrou-a e a levou para morar consigo. Graças à rigidez da pedra, do que se aproveita a contrapelo, da aridez da
vida pauperizada de toda sua genealogia, foi sempre influenciado a continuar existindo. Enfrentando um monstro a cada dia e, por
vezes, dando a volta por cima.
Na linguagem da psicologia, Spencer é um resiliente, resistente ao choque por ser elástico. Porém, dentro das crises vividas por ele
na fase da adolescência, um aspecto esclarecedor foi o seu desinteresse pela terapia psicológica. Ele não acreditava na resolução de
seu conflito dentro de um dispositivo de adaptação à ordem estabelecida. Dizia que só escutá-lo não adiantaria, pois seus dramas
tinham uma relação direta com a realidade, e que muito menos eles seriam apaziguados, em se tratando de um pai violento que se
recusava a qualquer profissional que intermediasse a relação com o filho. Diante deste caminho solitário e resistente, o que vemos
no caráter do Spencer é um núcleo duro, inefável para todos aqueles que lhe desferiram um golpe. Sempre retornando ao equilíbrio
depois de um evento trágico. Dentre os elementos que criaram este caráter, vigora a expressão artística como extravasamento do
sofrimento. Foi através de um desenho expressando os conflitos familiares (2001), quando o artista possuía 17 anos, que o pesqui-
9 3
sador desta dissertação obteve o primeiro contato com o artista
55
. Em entrevista realizada com Spencer, ele aborda os estímulos
para sua criação
56
:
Este desenho surgiu em uma fase difícil que estava vivendo. Nele pus tudo para fora. Não queria me submeter
a nada, nem condicionar o meu traço ao gosto dos outros. O que me motivava para estar vivo era colocar para
fora o que sentia. Neste período frágil e delicado pelo que passei foi a válvula de escape. Fazia porque vinha do
coração, me sentia sozinho, o mundo se tornava maior do que eu imaginava, vivia entre milhares de pessoas e
não enxergar nada, da mesma maneira que não era enxergado.
Outro fator trágico no mesmo período foi a morte do meu amigo Nê. Suporam (sic) suicídio, suporam (sic) que
ele fora jogado de cima da ponte do metrô Sumarê, mas o fato era um só: a vida de uma pessoa como ele, numa
condição próxima da minha, não possuía muito valor na sociedade em que vivemos.
Imagem 56: Spencer, maio 2001. Diário do artista, em que ele desenhava os acontecimentos cotidianos de sua
vida. Fonte: cedido pelo artista.
55
Ocasião esta em que Spencer era membro do Programa Aprendiz-
Comgás onde aprendia a desenvolver projetos sócio-culturais.
56
Entrevista concedida ao autor em 29 de maio de 2008.
Neste desenho (imagem 56) estão presentes seu pai e sua madrasta. Era um período que sua mãe estava distante e ele, sem notícia
de seu paradeiro. Os conflitos que vira ocorrer tantas vezes entre sua mãe e seu pai, se repetiram com a mulher atual. “Quando a união
vira guerra”: dois corpos nus enforcados, com as genitálias em evidência e desproporção. Um alerta para o casal, dito por uma “boca
imunda”. O sentimento de inferioridade dito por um “Sujo” não correspondia à proporção da plausibilidade do que dizia. A coragem
de representá-los na nudez e de assassiná-los simbolicamente revela uma pulsão de morte que poderia se voltar contra ele, para a
sua disposição suicida, mas que, na medida em que é expressa, permite uma compreensão do sentimento e o apazigua.
9 4
No entanto, estes versos intensos, e talvez vulgares, poderiam ser ditos por qualquer adolescente revoltado contra os pais, mas não
era o caso, eles se aplicavam para uma experiência que se repetia. A agudeza das palavras, o traço tremido associado a uma caligrafia
bem executada, revelaram uma sensibilidade poética que, do inevitável ou insuportavelmente feio, fez transparecer o significativo. A
arte agiu como sublimadora.
Para Spencer, as obras de intervenções urbanas e os desenhos, invariavelmente, são processados pelo mesmo mecanismo. Uma
experiência difícil, um sofrimento humano percebido, uma expressão vigorosa dada por um traço conectado com a alma. Nele não
existe a possibilidade da decoração, pelo menos enquanto a matéria-prima for o que a metrópole ofereceu de existência traumática.
Suas intervenções, por sua vez, quase invariavelmente estão conectadas com as pessoas do entorno deste lugar. A mulher ao lado
foi uma intervenção na região da Vila Buarque, em que ocorre a prostituição. A noite figura no fundo vermelho com os edifícios em
preto, o fogo segue com um traço amarelo para dar contraste. O corpo é revestido pelas roupas íntimas roxas, cor do luto. O branco é
a cor do corpo, pálido por uma existência noturna. No braço uma tatuagem indecifrável numa caligrafia única. Nos olhos o amarelo,
iluminados pela lua. No rosto o anonimato, feição que repete em outros desenhos. A mulher ao lado é mais uma, ou qualquer uma
para quem requisita o seu serviço. Profissional do sexo, nos olhos morais do artista uma perdida no inferno. É uma figura aterradora,
distante da sensualidade que lhe serve como instrumento de trabalho.
Como acontece entre os demais grafiteiros, é no desenho que o artista exerce sua habilidade criativa. Também ao lado (imagem 58),
temos uma das mulheres que se associam a intervenção da Vila Buarque, onde aparece o mesmo rosto, o mesmo fogo, e num mo-
vimento sensual de “pole dance”, o dinheiro enchendo a mão. Neste período, seguindo a trajetória do pai, trabalhou como faxineiro
num edifício de Quitinetes da Rua Dr. Cesário Motta Jr. (bairro da Vila Buarque), habitado por prostitutas e travestis da região. Foi
neste local que encontrava cotidianamente sua inspiração.
Imagem 58: Spencer, janeiro de 2006. Nanquim sobre
papel de algodão. 210mmx297mm. Desenho cedido pelo
artista.
Imagem 59: Spencer, 2005. Grafite nos pilares do Elevado Costa e Silva (Minhocão) na altura
do Largo do Arouche. Inscrição “O rádio diz em uma canção de amor que você existe”. Foto do
artista, 19 out 2005.
Imagem 57: Spencer, 2005. Grafite na Vila Buarque, São
Paulo. Foto do artista.
Neste grafite da prostituta com roupa verde, Spencer parece se comover com a solidão partilhada por ela. Mobilizado pela revolta
contra o absurdo do mundo, parece não se sentir sozinho na sua condição de isolamento e invisibilidade social, reconhece nos
habitantes da metrópole a mesma circunstância opressiva. Por mais que permaneça apartado destas mulheres na tarefa de faxineiro
das áreas comuns de um edifício de solitários, sua sensibilidade absorve intensamente este entorno.
9 5
Contudo, o universo representado por Spencer não se restringe às prostitutas. A imagem abaixo é uma representação dele mesmo em
suas viagens à cidade natal. Como de costume, leva consigo uma fotografia de si para entregar aos familiares, porém, o rosto que se
repete no grafite não é o dele, e sim o do personagem que imprime na cidade. Este personagem lhe permite tomar parte nos destinos
de desilusão que a metrópole oferece, ora aparecendo nas prostitutas, ora aparecendo nos catadores de material reciclável, ora sendo
ele mesmo. Os olhos estão vazados apenas por uma linha, não sabemos se estão cerrados ou se são um espelho onde nos vemos
no olhar do outro. O rosto é marcado por duas cicratizes parecidas, mas não simétricas. A boca e o queixo se desfazem incapazes de
se expressarem pelo som, revelam que o dito está na plástica do desenho e não no que pode ser falado. Spencer escolheu o suporte
da imagem e não do discurso para expressar seu sentimento.
Imagem 60: Spencer, 2005. Grafite na Vila Buarque, em que Spencer assinou o codinome Danger. Foto do artista, 11 nov 2005.
A seguir, temos mais duas imagens destas personas em que o artista se projeta. A primeira é um carrinho de catador, afirmando a
exclusão que ele também sente na pele. Este grafite também dá relevo ao caráter não-hipócrita de seus representados, numa tenta-
tiva de dar ensejo à nobreza de espírito presente na própria capacidade de sobrevivência e superação da sua invisibilidade social.
Spencer não pode mais mentir, nem expressar-se e fazer-se ver, senão com todo seu sentimento. É uma atitude romântica de fazer
da necessidade, virtude.
9 6
Imagem 61: Spencer, 2005. Carrinho de catador de material reciclável com grafite de Spencer. Foto do artista, 04 mar 2005.
Imagem 62: Castelinho da Rua Apa (esq. Av. São João), visto de cima do Minhocão. Foto de Gal Oppido, 19 abr 2009.
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A foto do castelinho da Rua Apa (imagem 62) mostra um dos lugares ao redor do qual Spencer habitou e sobre o qual fez uma inter-
venção. Sua imponência e abandono seduzem os grafiteiros a descobrirem o que se passou nesta casa que guarda uma história trági-
ca. Na noite de 12 de maio de 1937, três membros de uma abastada e tradicional família de São Paulo foram encontrados mortos em
circunstâncias desconhecidas. As vítimas: os advogados Álvaro e Armando Cézar dos Reis e a mãe deles, Maria Cândida Guimarães
dos Reis. Até hoje, o caso, que ficou conhecido como “O Crime do Castelinho da Rua Apa”, permanece irresolvido. Como a família
não possuía herdeiros diretos, a casa passou a ser propriedade da União depois do ocorrido e permaneceu desabitada desde 1971,
não devido aos possíveis fantasmas, mas como conseqüencia da construção do Minhocão que tornou o endereço desvalorizado.
O imóvel, inspirado nos castelos medievais, foi projetado e construído em 1912 por arquitetos franceses, um traço da disposição
daquela elite em marcar sua distinção, associando-se a uma tradição européia. Por sua vez, este caráter medieval contribuiu para
selar a casa com o estigma de assombrada. A sacada principal com um pórtico em arco e duas órbitas superiores remetem à imagem
de uma caveira: ela afasta os supersticiosos e abre caminho para os que possuem espírito aventureiro. Spencer foi um destes, mas,
diferentemente da maioria, fez ali uma inscrição do mal que pressentiu na casa. Colocou Hitler com a mesma face de seu persona-
gem e a data de 25 de janeiro de 1945, que fora o dia da retirada de sua última ofensiva durante a 2ª Guerra, implicando na perda de
800 unidades da sua frota de blindados e em 100 mil soldados fora de combate, entre mortos e feridos.
Imagem 63: Spencer, 2005. Grafite de Hitler associando os assassinatos que ocorreram na casa ao mesmo sadismo encontrado
neste genocida. Castelinho da Rua Apa. Foto do artista, 10 out 2005.
Apresentar-se abatido também é uma imagem recorrente nos seus desenhos, como figura seu personagem jogado no espaço, caindo
como um suicida (imagem 64). Porém, na ponta de sua caneta de nanquim a linha aparece com uma precisão maior que no seu
manejo de spray. O traço firme e a proporcionalidade bem estudada revelam a habilidade técnica de uma artista autodidata. Seu
talento mostra-se ansioso por oportunidade.
9 8
Imagem 64: Spencer, 10 dez 2005. Nanquim sobre papel de algodão. 210 x 297mm. Desenho cedido pelo artista.
9 9
Todavia, nas obras de grafite falta o mesmo virtuosismo, ou então, revelam que a rua interfere na fatura da obra. Neste personagem
ele faz um contorno em verde que dá destaque à figura em relação ao fundo da pintura, mas perde a inserção da linha negra que
exerceria esta função. A articulação do braço também não ocupa a posição ideal em relação ao corpo. Porém, estes dados são
menores se comparados ao conteúdo. A frase: “liberdade de poder amar quem você ama mesmo que não ame você” se dirige à
menina que lançou sobre ele a suspeita do seqüestro-relâmpago. Tal menina ainda disse que não poderia sequer ser amada por ele
porque ele era pobre (materialmente falando). Passados quatro anos do ocorrido, a questão pulsava em seu espírito e ele foi capaz
de expressá-la. Segundo o artista, seu “traço é nervoso e sem bom acabamento. Deve ser tremido porque não vive a vida certinha”
(VALVERDE, 2008)
57
. Não segue a estética perfeccionista porque “Picasso não usava borracha. Saiu um traço torto porque tinha que
ser torto” (Ibidem).
Imagem 65: Spencer, 2005. Grafite na Rua da Consolação, próximo à Universidade Mackenzie. Inscrição: “liberdade de poder amar quem você
ama mesmo que não ame você”. Foto do artista, 10 jun 2005.
O caráter romântico atualiza-se na obra de Spencer, tudo que expressa vincula-se a uma experiência vivida e intensamente sentida.
Tal disposição também o impulsiona a representar seu personagem com a armadura de um cantor romântico, talvez piegas, que sem-
pre escutou em casa: Paulo Sérgio
58
. Na imagem seguinte (imagem66), vemos a maestria como realiza um desenho deste cantor.
O cabelo freneticamente riscado para dar conta de todos os fios, o paletó decorado com um “X” que remete à cicatriz que leva no
rosto, o coração com espinhos à sua esquerda.
Todavia, os méritos de Spencer não se resumem ao desenho. Dentro da pixação se fez notar por pixar o alto da torre do Centro de
Cultura Judaíca, ao lado do metrô Sumarê. No período, o prédio estava em construção e hoje, provavelmente, o sistema de segurança
57
Entrevista concedida ao autor em 29 de maio de 2008.
58
O cantor Paulo Sérgio também comunga com a família de Spencer
a condição de migrante. Vindo de Alegre, estado do Espírito Santo,
conheceu o sucesso musical e a tristeza da metrópole paulistana,
onde veio a falecer em 29 de julho de 1980.
100
Imagem 66: Spencer, 1 fev 2006. Nanquim sobre papel de algodão. 210 x 297 mm. Desenho cedido pelo artista.
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impediria a ação, dado que procura se prevenir de atentados terroristas que possam ter como alvo a comunidade judaica, porém, o
lugar é de grande evidência por sua localização na cidade e trouxe certa consagração para ele e seu amigo Roy, enquanto permane-
ceu na fachada. Depois deste ato, ele foi procurado por uma pessoa (a qual não se identificou) que lhe propôs lançar versos de cunho
político no mesmo local mediante um pagamento em dinheiro. No entanto, ele não deu prosseguimento a esta possibilidade. O alvo
interessou na medida em que possuía visibilidade na paisagem urbana, sua representação na cidade, mas um ataque à comunidade
judaica não fazia parte do escopo das intenções de Spencer. Hoje, ele pratica Krav Maga, a arte marcial do exército israelense. Isto
confirma a posição de Baudrillard, de que a recessão de conteúdos facilita para que a manifestação do grafite seja apropriada para
finalidades diversas, expandindo naturalmente o número de praticantes.
Contudo, foi a pixação que lhe trouxe também os maiores prejuízos. Foi preso ao pixar o metrô quando era adolescente e seu pai
intensificou a violência contra ele; recentemente, foi julgado e punido com prestação de serviços à comunidade por realizar uma
intervenção ao lado de ‘Não’ no painel da Avenida 23 de Maio (local onde, hoje, vigora a obra dos Gêmeos). Na ocasião, quando
o painel foi pintado de cinza pela municipalidade, ele e seu amigo realizaram um ‘bomb’ sobre ele, mas a polícia apareceu e os
enquadrou, resultando num processo penal.
Na pixação se deu sua sociabilidade com a metrópole. Por meio dela, conheceu pessoas que passaram por dificuldades parecidas às
suas, diminuiu sua sensação de isolamento na imensidão da multidão. Nas noites que passou na rua pixando, sempre foi surpreen-
dido por novos acontecimentos. Nenhuma instituição de ensino lhe daria este aprendizado e não poderia adquirir estas experiências
de outro modo. Com a pixação conheceu a cidade e a extensão do território que ela ocupa. O pai, enquanto migrante de uma cidade
pequena, temia que ele se perdesse na cidade, restringiu sua circulação enquanto pode, mas não conseguiu controlá-lo.
Spencer, ou “Sujo” para a pixação, reúne algumas das habilidades possíveis para dar força expressiva às suas obras no campo da
arte: sensibilidade apurada, traço fluido em sintonia com o sentimento, personalidade atormentada por uma experiência de sofri-
mento por sua distinção, abertura de espírito para absorção de referências artísticas estranhas ao seu universo social, disposição de
se universalizar através do reconhecimento de suas questões nas obras de artistas eruditos: leu Kafka e viu no livro A Metamorfose
o mesmo sentimento que teve na posição social que ocupa. Contudo, todas estas disposições tornam-se insuficientes para adentrar
no mercado da arte e nos circuitos de legitimação das instituições da arte contemporânea. Neste artista, a discussão sobre o capital
social assume sua faceta mais drástica, sendo filho de um migrante humilde, não reuniu as condições requeridas para a interação
num ambiente majoritariamente composto por classes sociais que o desprezavam.
Hoje trabalha como gerente de uma loja de tintas na Galeria do Rock, endereço por onde circulam os grafiteiros da cidade. Neste
local, do qual ‘Não’ é proprietário, vende as mercadorias e os instrumentos de trabalho de sua geração. Permanece em contato com
todos, conhece cada novo grafiteiro que surge na paisagem da cidade, mas não necessariamente é convidado para participar dos
empreendimentos mais lucrativos do mercado de arte ofertados para pessoas de sua geração. Seu futuro não esta encerrado nesta
tarefa, mas certamente não dispõe dos mesmos capitais que os demais para investir em sua carreira artística e ocupar novas posi-
ções nesta cadeia produtiva.
A importância da análise da obra de Spencer no conjunto desta dissertação se dá por este fator. Nele, fica explícito que o valor sim-
bólico e artístico de uma obra, sozinhos, não garante uma inserção no campo da arte e que, uma vez inserida, a obra não possui cor-
respondência no valor de mercado. A construção da crença de um valor puramente econômico não passa pelo artista, mas por todo o
campo da produção. Esta discussão não pode ser marginalizada e, ganha evidência neste caso, principalmente quando observamos
que Spencer vai mais a fundo na temática do popular que projetou os Gêmeos. Ao mesmo tempo, ele não é um artista desconhecido,
apenas não dispõe dos instrumentos essenciais para conquistar uma posição no mercado da arte: visibilidade midiática, galeria de
renome como representante e assessoria cultural de uma produtora de circulação internacional.
O continente é mais importante do que o conteúdo; esta é a característica da arte contemporânea e do grafite, desde a década de
102
1970 aos anos 2000. É a exposição, seja na rua ou na galeria, que carrega a significação: para o funcionamento da arte atual, isto
é arte e não a obra. Neste ínterim, Raymond Moulin (1986 apud CAUQUELIN, 2005, p. 65-66) introduz dados novos que adensam
a ‘complexidade’ para o manejo do campo: a intervenção dos poderes públicos e do Estado-Providência, que sustentam os artistas
dos países desenvolvidos; e a consideração de um tempo ‘curto’, animado pela velocidade aumentada do mercado, que conduz ao
imediatismo. Hoje, o artista não precisa construir uma trajetória que passe necessariamente pelos lugares consolidados, mas precisa
saturar a rede de comunicação.
Para Anne Cauquelin (2005):
(...) se desejamos permanecer na análise do mercado contemporâneo, devemos levar em conta justamente a
lei da comunicação. Que exclui qualquer ‘intenção’ da parte dos atores, e privilegiar o continente, ou seja, seus
papéis e seus lugares, em vez de seus conteúdos intencionais.
Os grafiteiros construíram sua própria comunicação, sua rede, e seus valores na paisagem urbana. Saturam com um signo que
se repete, mas em meio à prevalecência do mundo virtual, impresso e televisivo, como mecanismo de publicidade, inovaram por
apropriarem-se da cidade, do real. Spencer, por sua vez, não passou por nenhum destes processos. Desta maneira, a sua dificuldade
para ser reconhecido vai além do capital social.
Imagem 67: Telas de Paulo Ito presentes na cenografia do filme ‘Crime Delicado’ de Beto Brant, 2004. Foto cedida pelo artista.
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PAULO ITO: A ERUDIÇÃO FORA DO LUGAR
Paulo Ito (o desenho ao lado é seu auto-retrato) é filho de um professor universitário que leciona no Instituto de Física da USP e
de uma arquiteta. Durante sua adolescência e juventude foi morador do Alto de Pinheiros, bairro de classe média alta da cidade.
Hoje, mora sozinho numa casa/ateliê no bairro da Pompéia. Diferente da maioria dos grafiteiros da geração New School, procede
de uma formação universitária de uma importante instituição de ensino do país (estudou Artes Plásticas na Unicamp) e não passou
por privações econômicas. Além de grafiteiro, exerce a atividade de ilustrador: desenvolvida para os livros de poesia “Mausoléu
e “Agonia” de João Miguel Moreira Auto, e para o livro infantil “O herói de Damião: a descoberta da capoeira” de Isa Lotito. Ainda,
participou da cenografia para a peça ‘BR3’ do grupo Teatro da Vertigem, pintando nas margens do Rio Pinheiros, e fez telas para o
filme ‘Crime Delicado’ de Beto Brant. Em comum com sua geração, manifesta seu virtuosismo no desenho, base de suas criações
que se projetaram no papel, na tela e na cidade.
Este artista acumulou um capital cultural significativo (viagens ao exterior, formação acadêmica, habilidade técnica e força expres-
siva), porém não se inseriu no mercado artístico com a mesma amplitude que Zezão, pois não trabalhou com o mesmo afinco na
visibilidade midiática. A sua reclusão dificultou a leitura de sua obra, por mais que o conteúdo dela seja ainda mais abrangente e
significativo do que a de outros grafiteiros consagrados: Os Gêmeos, para citar um exemplo, não alcançam Paulo Ito no domínio da
pintura, da perspectiva e do desenho.
Imagem 69: Egon Schiele, 1913. “Der Tänzer”. Lápis
e aquarela sobre papel. 47,8 × 31,9 cm. Fonte: http://
commons.wikimedia.org/wiki/File:Egon_Schiele_011.jpg
Imagem 70: Egon Schiele, 1910. “Mutter und
Kind”. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/
File:Schiele_-_Mutter_und_Kind_-_1910.jpg
Imagem 68: Paulo Ito, s/d. Ito urban wear
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Entretanto, a disposição de Paulo Ito em criar um trabalho na rua não se restringia ao potencial encontrado neste lugar, associado
ao ambiente urbano estava uma barreira árdua para ser transposta e se inserir nas galerias de arte. Inicialmente, realizou telas, onde
manifestou grande domínio técnico e apuro formal, porém, estava num suporte desprivilegiado. Todo o campo da arte de seu tempo
esta voltado para a instalação, para a performance e para a vídeo-arte, suportes estes que não objetivam o desenho como princípio
fundante da criação artística. Conseqüentemente, seu talento não pôde ser percebido. Embora ele conhecesse todos os suportes
hegemônicos, o desafio de se inserir nos moldes, de expressar-se e expor-se segundo a maneira contemporânea, não mobilizou o
artista.
Segundo o Paulo Ito, seu carro-chefe é a pintura, o grafite surgiu como um instrumento. Diante desta condição acessória em que ele
coloca a expressão, uma parcela dos grafiteiros não o considera como tal, pois além da posição de importância, sua atividade não
envolve vandalismo, aspecto visto como inalienável do grafite. Por sua vez, a pretensão de Ito é fugir do lugar-comum, mais do que
seguir uma tradição, seja ela do grafite ou da arte contemporânea. Quanto à tradição da pintura, ele a trata com bons olhos, pois foi
ela que lhe ofereceu a referência para sua obra. Considera-se retrô por assimilar o expressionismo de Gustav Klint e Egon Schiele.
Nas telas do filme ‘Crime Delicado’, incorpora o mesmo movimento e deformação dos personagens que estão presentes nas pinturas
e desenhos de Schiele.
Para este artista, a tradição é uma questão de contexto, no qual a arte acadêmica é representada atualmente pela FAAP-Faculdade
Armando Alvarez Penteado, lugar em que se formam a maioria dos artistas consagrados pela arte contemporânea. Manifesta ainda
que a arte dita conceitual, em que vigora o suporte da performance e da instalação, é uma tendência existente há mais de 100 anos,
enquanto que a tradição da pintura moderna possui mais de 500 anos de acúmulo. O grafite veio para recuperar sua importância na
atualidade diante do massacre da arte conceitual.
Paulo Ito preocupou-se em compreender como funciona esta ‘academia’: reconhece seus valores, a forma em que se dá a sua
visibilidade e os elementos que foram relevantes para a história da arte. Ele vê neles aspectos positivos, sobre os quais a arte, dita
alternativa, dos grafiteiros, sequer se questiona. Mas, diz também que o inverso é recíproco: a arte conceitual da academia contem-
porânea não enxerga os elementos positivos presentes no grafite. Descrevendo os aspectos positivos de ambas afirma que:
Os caras da arte conceitual trabalham com valores simbólicos, pesquisam materiais, diversificam as técnicas e
possuem questões que não são explícitas; enquanto que o grafite se preocupa com uma pintura simples: partem
da imagem em si, onde a representação bidimensional é o foco.
Na arte conceitual existe uma busca pelo novo muito incisiva, enquanto que no grafite, embora haja evolução
constante, não existem saltos gigantescos (ITO, 2007)
59
.
Deliberadamente, Ito escolheu o caminho que segue. Partindo da disposição de pintar mulheres, deslocou-as do suporte da tela
para a rua. Reconhecendo que era um tema suficientemente explorado ao longo da história da arte, principalmente pelos pintores,
resolveu inseri-lo num terreno que não o explorara: a rua. Os grafiteiros também pintam mulheres, mas estas não são as personagens
predominantes em seu rol de representações, quando surgem figuras femininas, falta-lhes a sensualidade e os gestos presentes
na obra de Ito. Desta maneira, o artista tornou profícua sua trajetória na criação de mulheres que seduzem os transeuntes das ruas
paulistanas.
Xico Sá, que escreve no Jornal Folha de São Paulo e na Revista Trip, foi um dos seduzidos pelas mulheres do Paulo Ito. Abaixo segue
um trecho de seu arrebatamento:
Mirem-se no exemplo das mulheres de Paulo Ito, elas já estiveram nas ruas, lendo mistérios e linhas da vida
como gueixas ciganas suspensas nos muros, elas são andarilhas que decifram o caos da metrópole pela leitura
da borra do asfalto que gruda nos pés descalços e na sola dos sapatos, elas sacam a leseira melancólica de
quem vive o pânico diário (SÁ, maio 2007).
Imagem 71: Paulo Ito, s/d. “minha mão é magra
mesmo!”
59
Entrevista concedida ao autor em 10 de julho de 2007.
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O trabalho na rua foi sua grande escola, ainda que tenha se iniciado nela depois de formado. Hoje, ela é o lugar onde mais possui
prazer em realizar a prática artística. Nela, encontra mais liberdade. Embora a tela também permita esta condição, na rua sua arte não
é produto, não se vende, ela é puramente obra.
O que atrai Paulo Ito é esta possibilidade de recepção pública que a rua oferece. Xico Sá conhecia suas mulheres de antemão, foi
mobilizado por elas e estas o levaram a escrever um texto para a exposição do artista. Para além deste público que garante ganhos
simbólicos, a obra presente na rua se relaciona com a cidade e os diversos estratos sociais assíduos no espaço urbano público. Tal
fator não acontece na arte conceitual exposta nas galerias consagradas do campo da arte contemporânea. As galerias estão voltadas
para experimentações restritas, para a compreensão de poucos iniciados na linguagem.
Entretanto, o artista não confunde a intenção de acompanhar o público com o nivelar por baixo (argumento passível de ser utili-
zado pelo público da arte conceitual quando estes se referem ao grafite). Sua preocupação é que sua obra faça sentido no campo
visual. Entre seus trabalhos de cunho crítico, realizou uma série em placas de propaganda de imóveis. No processo empreendido,
apropriava-se de palavras que conferiam o sentido almejado e cobria as demais, conferindo um significado contrário ao original. Em
se tratando de um produto que servira à especulação imobiliária, realizou uma tática insidiosa que se reverteu contra as empresas
por meio da ironia fina.
Na tela da direita (imagem 75), vemos um cão, logo abaixo a frase “obras em ritmo acelerado” e, em seguida, um desenho represen-
tando um sinônimo da palavra obra, associado a defecar. Na tela da esquerda (imagem 74), o autor entrega o suporte utilizado, vemos
Imagem 72: Paulo Ito, 21 abr 2007. Belo Horizonte. Tamanho
natural. Foto do artista.
Imagem 73: Paulo Ito, 24 out 2007. Vila Anglo, São Paulo.
Tamanho natural. Foto do artista.
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com transparência o logo da ‘Camargo Dias Imóveis’, e o rosto construído a partir da ausência do branco. A economia cromática
neste trabalho revela o domínio da pintura, na qual o fundo é um dos principais elementos da composição.
Nestes trabalhos o lugar de exposição também foi a rua: levou-os para a feira de artesanato da Pompéia, em vez de expô-los numa
galeria. No procedimento da venda, uma informalidade que buscava criticar os mecanismos e preços da galeria de arte. Colocou as
obras sobre o capô do automóvel e uma placa com preço de uma promoção: o público levava 2 peças por 10 reais. Disse que muitos
ficaram chocados e não necessariamente compreenderam a crítica ao mundo das galerias, mas teve 13 das 15 obras vendidas.
Posteriormente, o mesmo procedimento técnico foi utilizado para as intervenções na cidade. Foi uma resposta que ofereceu à recla-
mação dos grafiteiros de que as tintas eram caras. Nesta atitude, demarcou uma característica técnica da produção nacional, em que
a tinta látex é amplamente apropriada, e uma relação com a cor que confere identidade a uma cidade poluída: o cinza.
Andei ouvindo artistas se lamentando por falta de material para produzir, devido a dificuldades financeiras.
De fato, vejo que às vezes parece um milagre que haja no Brasil uma quantidade expressiva de grafites.
Quem estuda um pouco o grafite no mundo sabe que no Brasil não se usa apenas o Spray, mas também tinta
normal para paredes, muito mais acessível. Nasce daí uma brasilidade no sentido da nossa originalidade.
Contemplando essas constatações, passei a usar apenas o elemento que considerei mais básico para pintar:
a tinta branca. Cheguei a me perguntar de que maneira se poderia pintar dessa forma se a maioria dos muros
são pretensamente brancos? Para meu deleite bizarro foi uma satisfação constatar que em São Paulo, devido
Imagens 74 e 75: Paulo Ito, 2004. Série das placas de propaganda imobiliária. Foto ao artista.
107
Imagem 76: Paulo Ito, s/d. Grafite na Avenida Sumaré, no quintal dos fundos da casa. Foto do artista.
60
ITO, Paulo. Texto enviado ao autor. São Paulo, 26 de julho de 2004.
à poluição, o branco logo perece, dando lugar ao cinza. Imaginei ainda uma série de teorias sobre o pintar em
branco, mas não pretendo aqui me estender. (ITO, 2004)
60
As produções mais recentes de Paulo Ito discutem a política urbana e a condição ambiental da metrópole. Nova Veneza é a obra
cabal deste processo. Num universo surreal, inundou uma metrópole com as características de São Paulo. Tal cidade absurda está
dominada por uma política preocupada restritamente em atender as demandas privadas da iniciativa empresarial. Entre as ações
governamentais está presente uma demolição como uma solução para revitalizar uma área. O edifício ‘Treme-treme’ (do bairro Nova
Veneza), que virá abaixo, por sua vez, é habitado pela população de baixa renda, num paralelo à política do prefeito Kassab em de-
molir o edifício São Vito no centro de São Paulo.
O problema ambiental que assola a cidade imaginada por Ito é a dengue e contra ele são utilizados aviões pulverizadores que tornam
o ar irrespirável. Entre os noticiários da TV, a informação de que a cidade chega aos 42º. Em seguida, o repórter diz que o navio
responsável pelo abastecimento da cidade foi vítima de um atentado que trocou o líquido de seu reservatório pelos esgotos do bairro
Nova Veneza. Neste fato, outro paralelo com São Paulo, a represa de Guarapiranga, de onde a cidade retira a água para ser tratada e
distribuída pela metrópole, é também o lugar aonde chegam esgotos clandestinos de seus habitantes.
O enredo desta história encerra-se com a explosão do navio lotado do gás butano proveniente dos esgotos. O lugar da explosão
chama-se bairro dos ‘Três Poderes’ e a ação fora vista como ato terrorista.
Na criação de Nova Veneza, Paulo Ito também agregou inovações formais. A exposição deste trabalho, realizada na Coletivo Galeria
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(localizada na Rua dos Pinheiros, 493), incluiu telas, colagens e fotos de grafites, reunindo os diversos suportes por onde se projetam
as intervenções urbanas. Porém, nela surgiu um elemento técnico ausente nos grafites da cidade: a perspectiva. Na imagem ao lado
(imagem 78), observamos um grafite com dois jovens pixando, presente num muro baixo da cidade. No desenho, os personagens
possuem sombras e seus corpos parecem se movimentar de maneira precisa e coerente com a mobilidade humana. Neste ato, o
artista registrou o procedimento empreendido pela manifestação da pixação, mas foi além, colocou-os em sintonia com a metró-
Imagem 77: Edifício São Vito na Avenida do Estado, São Paulo. No topo do prédio, vemos os grafites dos Gêmeos e de Ise. Foto de Ignacio
Aronovich, 2004.
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pole ao trazer uma perspectiva que leva ao fundo da imagem. A sua esquerda, há uma linha demarcada por uma rua alagada e duas
colunas de edifícios paralelos, as quais se encerram no skyline
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da metrópole. Tal imagem sintetiza a posição em que se dispõe o
pixador para realizar sua visada sobre o contexto urbano. Revela que é privilegiado por obtê-la, pois, passo a passo, apropria-se da
escala praticamente desconhecida pela maioria dos habitantes da cidade. Tal visada pode ser realizada pelos habitantes dos andares
mais altos e pelos visitantes dos arranha-céus de São Paulo, mas não se estende para os lugares não-autorizados percorridos pelos
pixadores. Reunindo-se os pontos a que chegam nos diversos bairros da cidade, assimilam a escala da metrópole. Acima deles,
apenas os helicópteros podem oferecer visão mais ampla. Caroline Pivetta da Mota, a pixadora presa no contexto da intervenção na
28ª Bienal (2008), disse que busca justamente esta visada da cidade. Nesta posição ela encontra silêncio, paz e a beleza da metró-
pole (CAPRIGLIONE, 2008)
62
.
Contudo, este não foi o único elemento acrescentado na composição plástica do grafite. Além dele, emergiu o trompe l´oeil: uma
técnica artística que cria ilusão ótica através da perspectiva, mostrando objetos ou formas que não existem realmente. Tal procedi-
mento foi vastamente utilizado nos afrescos presentes nos domos das igrejas da arquitetura barroca e é observado desde Pompéia,
no período dominado pelo Império Romano. Atualmente, aparecem em grafites em Quebec, no Canadá. No caso de Paulo Ito, foi
desenhado, num muro da cidade de São Paulo, um casal em ato sexual suspenso sobre a cama (imagem 79). A cama se estendendo
pelo chão rente à parede e o lustre logo acima criam a ilusão da composição. Porém, à direita do grafite, ele entrega que nos enganou,
com copos reais dispostos ao lado da cama. Nesta apropriação, ele fez o resgate dos acúmulos picturais abarcados pela história da
Imagem 78: Paulo Ito, 2008. Fotografia de grafite de Paulo Ito, que integrou a Exposição “Nova Veneza”, Coletivo Galeria, São Paulo, julho
2008. Foto de Pablo Souza.
61
Linhas no horizonte onde se vê a volumetria dos prédios que
conferem a característica vertical para São Paulo.
62
“Eu gostava da dissimulação. De passar pela portaria, o porteiro me
perguntar onde eu iria, eu despistá-lo e entrar, subir até o ponto mais
alto, abrir a porta ou a janela e, lá em cima, olhar o céu, sentir o vento,
ver a cidade de longe, em paz e em silêncio. É lindo. Deixava a minha
vida muito mais contente”, Coroline Pivetta da Mota. (CAPRIGLIONE,
2008).
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Imagem 79: Paulo Ito, 2008. Fotografia de grafite de Paulo Ito, que integrou a Exposição “Nova Veneza”,
Coletivo Galeria, São Paulo, julho 2008. Foto de Pablo Souza.
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arte ocidental.
Todavia, a trajetória de Paulo Ito e os acúmulos técnicos e culturais que ele assimilou não trazem uma posição de destaque para a sua
obra no campo da arte. Na cena do grafite e da arte contemporânea, se o artista não maneja as questões engendradoras e predomi-
nantes, e não se subordina às orientações do mercado, ele não obtém reconhecimento dos consagradores institucionais. Ainda que
a realidade da metrópole esteja presente, e novas formas apareçam, sua obra fica marginal no campo da arte, aguardando análises
que a contraponham a um espectro mais amplo de referências da história da arte. No caso do grafite, este aspecto é prejudicado
sobremaneira, pois não existe uma crítica cultural constituída sobre a produção e está inserido restritamente num mercado focado na
decoração. Como veremos adiante, as principais galerias que o comercializam ainda não se preocuparam em elaborar a passagem
do grafite para a história da arte ocidental e, ao receberem a produção em suas instalações, preocuparam-se apenas com a venda.
O conteúdo trabalhado por Paulo Ito, no qual predomina a realidade da metrópole contemporânea, não necessariamente transformou
sua obra numa arte relevante para o seu tempo. Do mesmo modo que se deu com ampla gama de artistas impressionistas, guarda a
característica de poder ser revelado no futuro. Esperamos apenas, que não seja póstuma.
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Imagem 80: Niggaz, 2002. Painel no Beco do Aprendiz, Vila Madalena, São Paulo. Foto do autor, 03 jan 2007.
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NIGGAZ: AS DISTÂNCIAS INSTRANSPONÍVEIS
Alexandre Luis da Hora Silva, Niggaz, para o campo do grafite, faleceu aos 21 anos, em 29 de abril de 2003, nas águas da Represa
Billings. O interesse por este artista não passa simplesmente por sua obra, mas por sua trajetória. Por meio dela, emergem caracte-
rísticas importantes de uma vida na metrópole, vista e vivida por um sujeito oriundo da sua margem: Jardim Eliana (Grajaú – Zona
Sul), na periferia da cidade, lugar onde cresceu. O grafite surgiu para ele como instrumento de construção de um caminho para
outras paragens, lugares distantes e cheios de barreiras, por onde seus amigos de bairro não se imaginavam antes dele ultrapassar
os obstáculos reais e simbólicos que levavam até eles.
A nave espacial que ele fez no beco da Rua Belmiro Braga (Vila Madalena), no projeto Beco Escola coordenado pelo Aprendiz, foi
a síntese deste processo. A nave está a caminho de algum lugar imaginário, um outro mundo, para tanto é bem equipada para a
viagem: cheia de dispositivos, botões, teclados de um computador central, monitores de controle etc. Mas o comandante desta nave
não a move por livre e espontânea vontade, nas suas costas há um homem com um revolver na mão, ameaçando-o enquanto ele
observa um monitor na sua lateral. Ele também segura o manche e tecla nos equipamentos da nave, parece dominar um processo
complexo para colocá-la na rota de sua viagem. Junto da cabine ele é auxiliado por uma mulher, a co-pilota de sua jornada. O destino
que seguem não podemos saber, apenas podemos supor que talvez não possua retorno.
O destino possível desta viagem do artista tratava-se imaginariamente da boemia na Vila Madalena. Ela era muito sedutora para um
jovem periférico e tornou-se uma referência para um possível paraíso terrestre. A distância foi se aprofundando entre o ambiente
familiar e o ambiente que lhe acolhera naquele bairro, onde vigorava uma moral inteiramente outra daquela que lhe formara. Em
muitas outras aventuras pelo bairro em que se situa o Aprendiz, sem dinheiro para voltar para casa, nem amigos para o acolherem,
passava as noites em claro esperando o primeiro ônibus. A distância foi o elemento mais marcante em sua vida de trânsito entre a
Vila Madalena e o Grajaú, no extremo sul da cidade. As drogas surgiam neste contexto para diminuir os efeitos desta transposição
entre os dois lugares, ora para mantê-lo acordado e atento, ora para retirar sua consciência e levá-lo para paraísos artificiais. A rua
apresentava, assim, o que havia de pernicioso para o artista, um alento para passar mais uma noite em claro e que seria cobrado
demasiadamente caro dentro de pouco tempo.
A distância assumia muitos significados na vida de Niggaz. Primeiro, num sentido efetivo de distância geográfica, depois, de convívio
social (entre a classe média e a periferia pobre) e por fim de conduta, com a necessidade de praticar uma regra completamente es-
tranha a tudo aquilo que vivera até então (entre a conduta dos fiéis Testemunhas de Jeová e a conduta libertina da noite paulistana).
No seu núcleo de convivência inicial, entre os amigos do Grajaú, Niggaz não entrara em contato com álcool, cigarro ou maconha.
Tudo que absorveu em matéria de alucinógenos, fora na Vila Madalena. Seu amigo Jerry diz que quando ficou depressivo em função
de uma desilusão amorosa, não havia nada disso que houvera para Niggaz, o que foi um fator muito positivo para ele. As drogas
potencializavam tudo, inclusive o que havia de ruim.
Uma das principais características de Niggaz era ser romântico. As experiências sentimentais intensas sempre povoaram sua traje-
tória, recorrentemente aparecia com o desenho de uma mulher pela qual se apaixonara e os amigos apaixonavam-se por derivação,
através de seu trabalho. A mulher ao seu lado na nave do painel do ‘Beco’ é o elemento que lhe dava estímulos para transpor as
distâncias, que o acompanhava na viagem e lhe fornecia o afeto e a compreensão para diminuir as turbulências de sua vida, foi ela
também que lhe trouxe uma das maiores desilusões.
Todavia, o que vale notar é que Niggaz possuía grande domínio técnico, como o comandante da nave nas suas atribuições. No
seu painel de grafite do ‘Beco’ podemos observá-lo pela composição que criou num espaço bidimensional: dos quatro monitores
presentes, três servem de espelho para os personagens, dando impressão de profundidade num ambiente fechado. Nas roupas dos
tripulantes encontramos um jogo de claro/escuro, sombras, uma bela composição de cores e um degradê que confere movimento.
Na roupa do algoz que porta a arma, uma distinção, seu paletó está aberto. Durante toda a sua infância foram os quadrinhos e os
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desenhos animados da TV que lhe forneceram o repertório que aparece em seus personagens.
Niggaz dominava o desenho, no papel desenvolvia qualquer figura. Por meio dos trabalhos publicitários que apareciam no Aprendiz,
passou a ganhar dinheiro como nunca havia obtido. Porém, seu pai não acreditava na profissão de artista, apenas reconhecia como
trabalho o que ele próprio fazia, tinha internalizado que aquele não era um lugar para o filho. Conseqüentemente, o artista presente
em Niggaz não possuía a menor ressonância na família. O reconhecimento de sua arte existia apenas fora do núcleo familiar. Ela
era incapaz de visualizar o talento do filho para esta oportunidade gerada pelo Aprendiz. Além disso, aqueles que partilhavam laços
consangüíneos, seus pais e dois irmãos, eram fiéis da religião Testemunhas de Jeová, grupo que segue o Antigo Testamento da Bíblia
e é reconhecida pelo grande rigor na conduta. Nela, as mulheres não podem usar batom, vestir calças, e os fiéis não podem assistir
à televisão (para citar poucos dos elementos prescritos pela religião). Neste sentido, tanto o repertório imagético que Niggaz criava
quanto a sua conduta afeita à boemia, de modo algum suscitaria aceitação da família. Nos seus últimos momentos, ficava de dois a
três dias sem voltar para casa, pois a família impunha horários rígidos a serem cumpridos, que quando burlados geravam grandes
conflitos e desentendimentos.
O painel do ‘Beco’ guarda outra peculiaridade: depois do seu falecimento seus amigos se incumbiram de restaurá-lo regularmente.
Mauro e Jerry, grafiteiros que vieram da mesma região de origem do Niggaz, e foram estimulados por ele a se introduzirem no mundo
da arte, prestam esta homenagem para que sua memória permaneça viva. Principalmente pelas circunstâncias em que se deu a sua
morte.
Ele estava no auge de sua produção quando ocorreu o fato trágico e, no entorno do mistério que envolve sua noite derradeira,
especula-se que o artista suicidou-se. Os amigos mais próximos acreditam ser pouco provável, dada a imensa distância que transpôs
e o espaço que conquistou do outro lado da cidade entre os bairros mais abastados, tal fato fora uma proeza e ele estava feliz por
realizá-la. Porém, seus amigos não se questionam que neste fato imponderável e inescapável, ele pode ter construído toda a sua
expressão. Analisando seus grafites, podemos visualizar sua disposição em sair deste mundo.
Imagem 81: Niggaz, s/d. Grafite. Fonte e ano desconhecidos.
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Na obra acima, onde seu personagem está no topo de um edifício. Novamente vemos a iminência de sair deste mundo. Carrega um
foguete nas costas e uma auréola na cabeça, da sua direita um anjo parece vir em sua direção, não se sabe se para impedi-lo ou para
encontrá-lo no caminho do céu. Ele não olha para o anjo, está cabisbaixo, pensativo com a cidade diante de si. Internalizou uma mo-
ral rígida que lhe apresentava um mundo bem diferente do que encontrou na Vila Madalena, ao mesmo tempo em que lhe prometia
um paraíso no Céu. Tributária deste aspecto é a sua disciplina, desenhava horas a fio durante toda a sua infância. Os mecanismos da
religião para oferecer sentido simbólico à sua existência, contrapostos a uma experiência de pobreza material e ausência de equi-
pamentos públicos satisfatórios na região, saneamento básico, boas escolas e atendimento médico digno, impulsionavam o artista
a esperar por uma vida melhor em outro lugar, depois do Juízo Final. A própria religião, por meio da revista ‘Sentinela’ que os fiéis
distribuem aos domingos pela manhã, disponibilizava enorme riqueza de imagens idílicas de uma realidade meramente imaginada.
Foi esta mesma religião que, depois da morte de Niggaz, motivou seu pai a queimar todo o seu acervo pessoal de cadernos, dese-
nhos e pinturas criados pelo artista, pois, diferentemente da revista ‘Sentinela’, os temas que apareciam em suas obras representa-
vam os aspectos sofridos de uma existência na metrópole. Felizmente, o artista havia requisitado para seu amigo Akeni guardar parte
de seu material, pensando em preservar sua memória.
Exclusão e diferenciação eram outros elementos que lhe ofereciam barreiras, quando Niggaz estava na Vila Madalena. Dizia que
era mandado recorrentemente para o paredão (em alusão ao programa de reality show Big Brother da TV Globo) pelos grafiteiros do
Aprendiz, mas sempre era apoiado por Akeni, um jovem oriundo da mesma região da cidade. Highraff, um grafiteiro de classe média,
ajudava Niggaz ao mesmo tempo em que fazia chacota, característica de um universo juvenil e ambivalente. No entanto, todos os
grafiteiros presentes no Aprendiz admiravam sua técnica, dominava o spray e o desenho. Neste processo, ensinava Highraff a dese-
nhar e ele o ensinava a montar um “portfolio”.
Ele foi o primeiro grafiteiro que chegou à Vila Madalena vindo de uma origem social mais baixa, também o primeiro que fez estes gra-
fiteiros de classe média circularem pela periferia. Quando então, além de reconhecerem as distâncias que ele ultrapassara, passaram
a valorizar a sua disposição em transpô-las. Porém, sempre houve querelas, em que Highraff dizia que Niggaz copiava Os Gêmeos.
Em certa ocasião, Dinho questionara Highraff dizendo que este fizera o mesmo procedimento de cópia. Como Highraff se esquivara
do assunto, então Dinho buscou um livro e mostrou que o desenho dele era idêntico ao encontrado na imagem da publicação. Por
sua vez, Niggaz falava que deveriam se influenciar pelos bons, não tinha reticências em manifestar suas fontes. Mas a relação com
Highraff era multifacetada, nas situações em que Niggaz passava por dificuldades na noite da Vila Madalena era para ele que ligava
em busca de socorro. Em um evento especial ele foi chamado para salvar a vida de Niggaz que estava sendo perseguido por homens
armados em Parelheiros.
No último muro do projeto “100 muros” da instituição Aprendiz (realizado em 2001), observamos novamente este personagem
prestes a se desgarrar do mundo. Ele se agarra à espiral de mosaicos do painel enquanto é sugado por uma força centrípeta. Sua
indumentária revela que ele utiliza equipamentos de astronauta, desta vez com uma máscara que lhe fornece o oxigênio. Neste painel
ele está ao lado das obras de Zezão, Paulo Ito, Dinho, Ciro, Highraff, Tim.
Nesta recorrência de personagens prestes a sair deste mundo, Niggaz pode ter anunciado o seu fim com a obra de arte e, mais do
que isso, representou um dilema partilhado com Zezão e Spencer na relação com a ONG Cidade Escola Aprendiz, um ambiente
pretensioso de fraternidade que repete a distinção social presente na classe média paulistana. Depois que saiu de seu bairro, num
caminho sem retorno, não possuía outro lugar para que o acolhesse com afeto.
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Imagem 82: Painel coletivo na Av. Paulo VI, no encontro com a Av. Henrique Schaumann, no muro de fundos do Instituto Goethe, São Paulo, 2001.
Técnicas: mosaico e grafite. Foto de Lucila Wroblewski. Fonte: KLOTZEL, 2003.
Imagem 84: Detalhe do grafite de Niggaz. Fonte: KLOTZEL,
2003.
Imagem 83: Painel do muro do Goethe com um grafite refeito preservando o desenho de Niggaz.
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ZEZÃO: O SUBTERRÂNEO
Este artista desvendou a parte suja e escondida da metrópole, fez o paulistano olhar para o que passa por debaixo de seus pés,
produzido pela sua existência na cidade. Ele revela o traço natural e animal que o homem da civilização tentou controlar, mas não
conseguiu resolver. A sua São Paulo é a do subterrâneo, para o qual se voltou num período de auto-análise e fez emergir uma cons-
ciência de si e do espaço urbano.
O momento em que desceu ao subsolo foi uma etapa de sua vida marcada pelo sofrimento e a depressão, sua mãe falecera durante
ela. Nesta época, sua profissão era motoboy, exaustiva e pouco recompensadora economicamente. Na sua habitação, partilhava o
espaço com a esposa, a sogra e uma quantidade razoável de gatos e cachorros que recolhia da rua para que fossem tratados com
mais dignidade. Ainda que tivesse despertado para a expressão artística, esta não era uma opção para a qual poderia entregar-se
única e exclusivamente, sua renda ainda não permitia a dedicação que conquistou nos dias atuais.
Zezão começou a trabalhar com 13 anos de idade. Filho primogênito de mãe portuguesa, que exerceu, durante toda a sua vida, a
profissão de doméstica, e que lhe concedeu dois irmãos. Cresceu em casas pequenas de operários no bairro de Pari, local na região
central de São Paulo que possui inúmeras fábricas que marcaram a primeira industrialização da metrópole. Neste núcleo familiar in-
ternalizou a disciplina do trabalho e a responsabilidade de ser provedor. Sua mãe separou-se do pai alcoólatra e violento, acarretando
para ela e para ele uma disposição da qual não podiam abdicar: sustentar economicamente a casa e seus familiares. Neste sentido,
a disposição para o sacrifício está presente na trajetória do artista de forma inalienável, pois sua mãe se sacrificara para sustentar os
filhos. Na vida de Zezão, o sacrifício adquire valor simbólico de altruísmo, superação de limites e comprometimento com aqueles
que ama. Seu sucesso integra-se neste repertório como reconhecimento pela entrega que teve em relação a tudo que fez.
Diferentemente de Niggaz, no momento de dificuldade psíquica, Zezão se afastou do uso de entorpecentes, acreditando que estes
apenas enganariam os seus sentidos e potencializariam sua depressão. Possuía inteira razão. Por sua vez, dedicou-se à arte como um
canal por onde pudesse sublimar as experiências tristes pelas quais passava. Elas não podiam ficar contidas sem extravasamento.
Assim, encontrou no subterrâneo o lugar privilegiado para este processo, revelando uma luz sutil (entrando pelas tampas dos buei-
ros) que retira da escuridão a sua hegemonia. Com esta iluminação mostrou as intervenções que faz neste lugar insólito. Está é a
metáfora poderosa de sua obra. Quando contraposta à sua biografia, observamos o gênero humano fazendo da necessidade, virtude.
Zezão projeta o melhor de si neste azul que perdura em ambiente inóspito. Porém, não poderia ser diferente, como num processo
psicanalítico, o caminho é pela introspecção, muitas vezes em silêncio, sozinho com seus fantasmas e o subterrâneo da cidade lhe
fornecia esta possibilidade.
Albert Camus vai encontrar um herói parecido com Zezão no ‘Diário Siberiano’ de Ernest Dwinger. Nele há um tenente alemão que,
“(...) há anos prisioneiro em um campo no qual reinavam o frio e a fome, construíra para si, com teclas de
madeira, um piano silencioso. Lá, naquele amontoado de miséria, em meio a uma multidão esfarrapada, ele
compunha uma estranha música que só ele escutava. Desta forma, lançados ao inferno, misteriosas melodias e
imagens cruéis da beleza esquecida nos trariam sempre, em meio ao crime e à loucura, o eco dessa insurreição
harmoniosa, que comprova ao longo dos séculos a grandeza humana.” (CAMUS, 1999, p. 316)
Diante destes exemplos, podemos depreender que não existe iniciativa de aniquilação que consiga êxito em espíritos deste caráter.
Sujeitos que possuem uma força interior capaz de dizer “nós existimos” em meio à desilusão completa, estes são homens que tri-
lharam caminhos com uma feroz humildade. Suportaram a dor porque fizeram dela matéria-prima para suas criações. O interlocutor
dos artistas neste processo não era o público que possuíam diante de si, e sim o gênero humano em suas infinitas potencialidades.
Legaram, neste sentido, uma obra para a humanidade. O desafio, por sua vez, fora interno e apenas homens com esta disciplina e
comprometimento conseguem fazê-lo. Segundo Camus, encontraram em suas vidas “o tempo da paixão e da criação. Querendo ou
não, o artista não pode ser mais solitário, a não ser no triunfo melancólico que deve a todos os seus pares” (Ibidem, p. 315).
118
Imagem 85: Zezão, 2004. “Flop” na Marginal do Rio Tietê, Córrego
Carandirú. Foto do artista.
Imagem 86: Zezão, 2004. “Flop” na extinta Casa de Detenção do
Carandiru. Foto do artista.
A obra de Zezão apresentou-se principalmente no suporte da fotografia e estetizou o improvável: as galerias pluviais, as margens con-
cretadas do rio Tietê e os espaços abandonados da cidade. Ele sempre explorou novos espaços, entre eles, foi ao extinto presídio do
Carandiru (num momento anterior à sua implosão
63
em que estava aberto à visitação pública), neste que foi o local do massacre dos
111 presos e de inúmeros outros infortúnios e atrocidades. Partindo deste espaço, percorreu o subterrâneo do córrego do Carandiru
até o rio Tietê, trilhando o caminho por onde escoou o sangue dos corpos destes presos. Estes caminhos carregados de sofrimento
se fizeram notar pela obra de Zezão, no insuportável ele fez transparecer o significativo.
Todavia, sua trajetória não começa com este material árduo para ser tratado, mas iniciou-se em 1995 com o grafite
64
. Ao lado de
Binho, membro da Old School, realizou os primeiros trabalhos inseridos no gênero do Hip Hop. Logo em seguida, fez seus ‘rolês’
com Tinho, com quem partilhara a preocupação com as problemáticas da pobreza e da desigualdade social. Como repertório de
referências, também diz que o filme do Basquiat (direção de Julian Schnabel, 1996) lhe marcou, ao qual assistiu em 1998. Duran-
te este período, se dispôs a ousar, utilizando novas técnicas e realizando os primeiros trabalhos abstratos. Tais experimentações
desdobraram-se na identidade que seu trabalho consolidou em 2001: o ‘flop’ (intervenção em azul que pinta com rolinho de pintura
e tinta látex) é o resultado cabal deste processo. Porém, existem outras intervenções de características mais abstratas, onde ele funde
diversas cores com jatos de spray que se assemelham a uma fumaça. Coincidentemente, foi este trabalho colorido que cobriu uma
parede da Galeria Fortes Vilaça na exposição ‘Choque Cultural na Fortes Vilaça’ (2006). Os ‘flop´s’ expostos na ocasião estavam no
suporte da fotografia e na entrada da galeria; a criação que veio do subterrâneo deveria permanecer fora do cubo branco.
63
A implosão do edifício aconteceu em 17 de julho de 2005, as
intervenções do Zezão ocorreram em 18 de agosto de 2004. Fonte:
imagens cedidas pelo artista.
64
Informações obtidas em palestra conferida pelo artista na Exposição
“Fabulosas Desordens” (Centro Cultural da Caixa Econômica Federal,
Rio de Janeiro), em 13 de março 03 de 2007.
119
A pixação também fez parte de sua história. Desde os 15 anos de idade andava de skate e pixava de forma aleatória, mas em 1998,
quando explorava as fábricas abandonadas para realizar suas intervenções, encontrou o trabalho de Boleta (líder do grupo Vício) e
em seguida abordou-o para manifestar sua admiração e a coincidência por estarem intervindo nos mesmos espaços. Segundo o ar-
tista, a aproximação se dera, entre outros fatores, porque ele era motoboy e Boleta era metalúrgico. Portanto, provenientes da mesma
classe social. Partindo destas semelhanças, o entrosamento transformou-se em amizade e numa parceria que perdurou por diversos
‘rolês’, Boleta o incluiu no grupo Vicio. Zezão realizou pixações no metrô e nas linhas de trens metropolitanos que o consagraram na
manifestação. Porém, esta fase se encerrou em 2001.
A conjunção destas experiências, do grafite e da pixação, lhe possibilitaram uma compreensão ímpar no campo das intervenções
urbanas sobre as características e contribuições de cada uma destas possibilidades. Para ele, a metrópole funciona numa tempo-
ralidade vertiginosa, onde tudo se transforma numa velocidade absurda que impede a presença duradoura de sua obra na cidade.
Assim, aceita como condição a efemeridade no trabalho de grafite. O registro é o único elemento que guarda sua obra e a fotografia
o principal instrumento da memória. Entende que a pixação é feita para durar, e sua permanência se dá porque a cidade vai sendo
abandonada. Segundo o artista:
Eu acho que a cidade vive uma transformação que (...) é diário (sic), você passa numa rua hoje, amanhã já
construíram um shopping, arrancaram aquela parede sem razão aparente. Quando você vê, o político atropelou
o seu trabalho com propaganda eleitoral... E a cidade é assim, uma mutação constante. Então eu aprendi
que o grafite é uma arte efêmera. Quando eu faço um trabalho hoje, quero documentar, registrar isso... Mas
podem derrubar a parede, apagá-lo, fazer o que quiserem. Eu acho que são conceitos diferentes da ideologia
da pixação, que é uma coisa pra ficar ali, para eternizar. E eu acho que a pixação nesse lugar é mais uma vez
para estar apontando alguma coisa, sei lá, um protesto... alguma coisa que está ali em abandono, entendeu?
O pixador não quer pintar uma parede que está branca, porque amanhã vai lá alguém e apaga. Acho que é um
negócio de apontar os lugares doentes, que o cara já sabe: ‘eu vou pixar aqui porque vai ficar da ‘véia’
65
.
O abandono e a transformação contínua, denotados pelas intervenções de Zezão, fazem com que Paulo Mendes da Rocha diga que o
artista revela a degenerescência do urbano. Para o arquiteto, a cidade que temos é fruto de “um desastre provocado metodicamente
por uma ideologia que é a especulação sobre o território” (ROCHA, 2009)
66
. Zezão conviveu com este desastre durante toda a sua
Imagem 87: Zezão, 2004. “Flop” na
extinta Casa de Detenção do Carandirú. Foto
do artista.
Imagem 88: Zezão, 2006. Painel. Exposição “Choque Cultural na
Fortes Vilaça”. Foto do artista.
65
Palavra da pixação que significa que a intervenção irá durar, ficar
antiga.
66
Entrevista concedida ao autor no dia 12 de maio de 2009.
120
Imagem 89: Fundos do Edifício Prestes Maia. Foto de Rogério Canella, 15 jun 2009.
121
existência. Dos aspectos materiais do abandono de regiões inteiras da cidade, passou a tratar da degradação humana decorrente
dele. Os moradores de rua, os habitantes desafortunados da cidade, são também temática a que se dedica. No seu bairro de origem
não podia se amealhar desta preocupação, pois nele se deu um desastre comum a outras zonas industriais abandonadas.
O encontro do arquiteto com Zezão nas suas disposições críticas também pode ser observado pela obra do fotógrafo Rogério Canella,
que registrou uma agenda
67
de pixadores em consonância com um prédio desocupado pela especulação imobiliária. Trata-se do
edifício Prestes Maia, vítima de uma reintegração de posse que adensou a população desabrigada da cidade. As circunstâncias desta
desocupação são ainda mais aterradoras quando se sabe que ela se deu num momento em que seu proprietário devia para a prefei-
tura o valor de 5 milhões de reais por não ter pago o IPTU, montante este superior ao valor do edifício. Na janela do quinto andar
da coluna direita do edifício está presente o grupo ‘Túmulos’, cientes que são de que sua intervenção irá durar naquele lugar. O pixo
já está num estágio de apagamento, denotando sua longevidade, as plantas crescem por entre as janelas e uma máquina revela que
logo em frente será erguida uma obra pública do metrô que valorizará a localização do prédio. O espaço está em estado de transição.
Mas a pixação está lá para demarcar uma presença etérea de sujeitos marginalizados e, neste sentido, ela é sintoma de uma cidade
que serve à especulação imobiliária, relegando ao abandono seus espaços até o momento em que esses se tornem lucrativos.
Agora, que os artistas entrem aí, como quem entra numa caverna e a pinte, é uma manifestação de uma cultura
popular, inclusive regenerada. Fala-se em ‘cultura popular’, já se vem com o agogô. Não é nada disso! É muito
mais forte. Não é assim para se desfrutar... É uma tragédia! Esses são grandes artistas que explicitam a tragédia.
Mais ou menos conscientes, ou não, mas pelas emoções... Como muito do que foi feito no mundo. Isso é muito
forte. Sob este aspecto. Agora, achar que é ‘gracinha’... De jeito nenhum! (ROCHA, 2009).
Paulo Mendes da Rocha possui uma posição certeira sobre o sentido destas manifestações e crítica em relação à recepção delas
como elemento decorativo, como uma ‘gracinha’. Desta maneira, vai falar que, embora revelem um desastre, uma tragédia, irão se
degenerar quando a promovermos.
Porém, qual seria um caminho coerente com este conteúdo crítico, em se tratando de artistas com a origem social de Zezão? Ele
deveria permanecer como motoboy, morando em condições precárias que certamente encurtariam sua vida? Este dilema ainda não
está resolvido e o próprio mercado da arte ainda não explorou suficientemente todo o potencial comercial desta produção. Por mais
que se restrinja a este aspecto, ofereceu uma oportunidade de sustentabilidade para a carreira artística dos grafiteiros. Resta saber se
parte deste conteúdo permanecerá na obra ou se o seu uso decorativo irá aniquilar sua força transgressiva.
Sobre a razão da obra de Zezão estar nos subterrâneos, Paulo Mendes da Rocha (2009) dirá que, na medida em que lhe sobrou este
espaço para intervir, seu suporte urbano revela que este é o lugar que a sociedade reservou aos de sua classe para se expressarem.
Todo artista almeja um espaço para se apresentar, mas para as pessoas de sua origem social não estão abertas as portas consolida-
das de divulgação da arte. O engano do arquiteto é que este fato insólito levou a obra do artista para dentro das galerias e, dentre os
artistas da geração New School, ele é um dos que obtiveram maior circulação internacional e valorização da obra.
Atualmente, o artista transita por técnicas diversas, apropriando-se da fotografia como suporte principal da obra e explorando outros
materiais encontrados na rua (placas de proibições, metais corroídos, lonas etc.). A importância deste artista reside na revelação da
morte do urbano, quando pinta em locais poara onde poucos olham - por serem inacessíveis ou marginais. Leva a arte e o público
para os lugares relegados da cidade. Do mesmo modo, fomenta a discussão sobre o espaço público metropolitano de São Paulo
como território de ninguém, ou espaço para ser apropriado privadamente pelos proprietários de toda espécie. Seu trabalho permite
explorarmos o debate sobre resistência e cooptação, assim como pensarmos em que medida são praticados estes conceitos em
função da posição ocupada e do lugar de realização: publicidade, galeria de arte e cidade.
Quando as intervenções estão na cidade, Zezão, inegavelmente, permanece crítico, mostra as ruínas residuais que sobraram das
elites que passaram por São Paulo. Correlato às obras dos subterrâneos, lança um azul sutil que contrasta com a decadência. No
67
Termo utilizado pela pixação para descrever uma superfície com
pixações antigas de vários grupos.
122
primeiro caso, a falência de um modelo industrial formulado por um empresário italiano que apoiou o fascismo de Musolini em seu
país de origem. No segundo caso, a mulher que assinou a lei áurea, que institucionalizando o fim da escravidão, mas não incluiu na
sociedade a população negra através de boas condições de trabalho.
Conscientemente ou não, ele acertou o alvo. Estes casos são emblemáticos para a história do desenvolvimento do Brasil. O artista
os deixou explícitos com sua obra. Como no caso apontado pela fotografia de Rogério Canella de um edifício tomado pela degene-
rescência no bairro da Luz, estes espaços da metrópole são transitivos. Parte da região da Barra Funda, onde se localizam as fábricas
de Matarazzo, hoje está em estado de abandono esperando a valorização imobiliária num local central, potencialmente lucrativo. E
a casa da Princesa Isabel, em processo de tombamento pelo Condephat (Conselho responsável pelo patrimônio histórico do Estado
de São Paulo), localizada no bairro dos Campos Elíseos (endereço que fora ocupado pela elite cafeeira no início do século XX), hoje
oferece risco de desabamento para as 25 famílias que a habitam em regime de cortiço (LAGE, 2005). Mas, igualmente, aguarda a
valorização almejada para a região da Luz.
Para Paulo Mendes da Rocha (2009):
O discurso do grafiteiro é o da indignação sobre a estupidez! Esse é o meu entender da coisa. É por isso que
tem força. A urgência de você dizer é que faz desse modo explícito.
O arquiteto não possuía a localização das intervenções para dar o seu veredicto. Mas sua frase é apropriada para descrever estes
casos apresentados pela obra de Zezão. No entanto, reiterando sua outra posição, diz que, quando vai para a galeria:
Aí virou mercado. Mercadoria. Já não estou interessado. A grande virtude do aparecimento, a graça, por isso que
está aí no mundo inteiro, dessa forma chamada “grafite”, é a ocupação do espaço. Se você já a concebeu num
estilo de pintar na parede... Já não é um grafite. É tão antigo quanto pintar as paredes das cavernas (ROCHA,
2009).
O arquiteto concorda inteiramente com o nomos engendrador da expressão: grafite deve ser feito sobre o interdito, nos espaços não
autorizados, de forma transgressiva. Quando sai disso, não é mais grafite. Zezão, por sua vez, permanece nestes interditos quando
Imagem 91: Zezão, 2006. “Flop” na antiga residência da Princesa Isabel. Foto
do artista.
Imagem 90: Zezão, 2007. “Flop” em ruínas de antiga fábrica
Matarazzo.
123
acompanha suas exposições internacionais. Conciliando com o lado comercial, abdica do tempo de descanso para explorar outros
subterrâneos das cidades do mundo. Na imagem acima (imagem 92), vemos uma intervenção nas catacumbas de Paris, um local
ao qual se tem acesso de forma clandestina e que guarda as memórias de vários levantes sociais que ocorreram ao longo da história
da cidade.
Por sua vez, nas imagens seguintes, está o processo inverso deste grafite de conteúdo crítico. É o ‘flop’ caminhando em direção à
Pinacoteca do Estado de São Paulo, num momento anterior à inserção do artista no mercado das galerias de arte. Esta intervenção
revela que Zezão almejava conciliar as duas práticas ao longo de sua carreira e, mais do que isso, precisava das duas para poder
criar. Precisava daquela presente na rua, para não perder sua origem e a fonte de sua inspiração, e daquela presente nos espaços
institucionais, para poder se sustentar como artista.
Neste processo criativo, Zezão saiu do azul presente nos bueiros para o multicolorido, passando da calçada para a parede. Foi uma
ascensão de seu trabalho. Em seguida, ele também explorou a interação com os jogos de luz no evento ‘RE.Impressões’, realizado na
Funarte – Fundação Nacional de Artes (São Paulo) em 2003. Na obra ‘color floids’ ele utiliza tintas spray luminosas na escuridão e
lança uma luz negra sobre elas. Neste processo ele investiga a iluminação, realiza experimentações decorrentes de um procedimento
que explora na penumbra dos subterrâneos. Posteriormente, foi realizada uma reforma no espaço da Funarte que demoliu o edifício
original e, desta maneira, o artista foi registrar sua intervenção num contexto em que ficava mais adequada, dado o conjunto da sua
obra que intervem em situações de degradação e destruição.
Tais aspectos são reflexões que se pode fazer por meio da obra de Zezão. Não é um discurso gratuito, nem visa justificar sua presença
nas galerias. Mas entendê-la como contraditória, da mesma forma que outras expressões artísticas que foram insidiosas de início
Imagem 92: Zezão, 2008. Grafite nas Catacombes de Paris.
Foto do artista.
Imagem 93: Zezão, 2006. Grafite nos subterrâneos de São Paulo. Foto do
artista.
124
Imagem 94: Zezão, 2003. Grafite na zona norte de São Paulo. Foto
do artista
Imagem 95: Zezão, s/d. “Flop”. Bueiro em frente da Pinacoteca do
Estado, São Paulo. Foto do artista.
Imagem 96: Zezão, 2003. “Color Floids”. Evento “RE.impressões”,
Funarte, São Paulo. Foto do artista.
Imagem 97: Prédio da Funarte - SP sendo demolido, ainda com
as intervenções realizadas para o evento “RE.impressões”. Foto do
artista, 2003.
125
e depois passaram a ser cooptadas pelo mercado. Nada está imune à comercialização, muito menos artistas de origem popular,
que não podem se dar ao luxo de viver pura e simplesmente para a arte. A galeria Choque Cultural, que comercializa as telas e as
fotografias de Zezão, é uma peça fundamental para este jogo da arte; garante a ele a possibilidade de uma vida digna por meio da
venda de seus trabalhos, mesmo que com finalidade decorativa.
No encerramento da entrevista com Paulo Mendes da Rocha, ele se comprazerá com esta condição, segundo o arquiteto:
(...) se você disser que é só um quadro e que vale uma fortuna... Põe na Sothebys... Já degenerou. Mas tudo
bem. A proibição não é necessária, como um patrulhamento. Mas já não tem valor. Eu tenho a impressão, por
um absurdo, que se Picasso pudesse ser eterno, já não teria valor. Se ele pintasse dez quadros por mês, deveria
valer uns trinta dólares cada um... Mas como nunca mais vai se ter Picasso (ROCHA, 2009).
Para a profissão de arquiteto está colocado o mesmo dilema:
Você não vai mudar de lugar uma cidade como a de São Paulo. Ela se fará sobre si mesma. Demolições, novas
construções, uma nova espacialidade... Você vê, entre outros escândalos, a verticalização na Avenida Paulista,
alguns palacetes enormes, outros pequeninos. Aí vieram os prédios sobre os palacetes e a verticalização se
transformou numa espécie de “Exército de Brancaleone”... Tem um anão gordo, um magro e comprido... Ridículo!
Nenhum arquiteto pode fazer a “cidade ideal”, mas você pode evitar certos desastres (ROCHA, 2009).
A manifestação do grafite de Zezão se projeta neste espaço cheio de desastres, onde o arquiteto não consegue realizar o ideal. Porém,
o artista apresenta na cidade outra possibilidade, segundo Paulo Mendes da Rocha, numa réplica ao comportamento da busca pela
segurança e pelo conforto do automóvel, uma pessoa diz:
“vocês estão bestas, não estão vendo tudo isso?!”. “Eu pinto na sua parede, você nem sabe onde moro. Sou
livre!”. É muito melhor. Pode ser que o chamado “pobre” passe a ser, pouco a pouco, invejável... É o dono da
Cidade (ROCHA, 2009).
Zezão oferece um exemplo invejável para o habitante mais afeito à banalidade do enclausuramento, seja do automóvel ou do condo-
mínio fechado. Ele os critica de forma implícita e, insidiosamente, passa a conta do quadro vendido (ainda que com fins de embele-
zamento para o apartamento novo) para continuar intervindo na metrópole e explicitando sua degenerescência.
Pelo fruto do trabalho, que muitos imigrantes como a sua mãe vieram buscar na metrópole, ele conquistou uma vida digna. Hoje,
mora na Serra da Cantareira para ter um contraponto ao desastre ambiental da metrópole e reconhecer uma qualidade ausente da
cidade. Ele não vai para os espaços degradados nem revela a pobreza para promovê-los. E sim para atentar para problemas comuns
a todos os habitantes de São Paulo. A sua mãe já sofrera o suficiente para ele entender a indignidade em que são colocados os
trabalhadores da cidade, agora lhe é de direito o tempo da colheita que sua generosidade irá partilhar.
126
127
“SÃO PAULO É DO GRAFITE?”
A EXPRESSÃO E SUA TRANSGRESSÃO NO TERRITÓRIO DA METRÓPOLE E NO
CUBO BRANCO
“SÃO PAULO É DO GRAFITE”?
Publicada em agosto de 2006 no jornal O Estado de S. Paulo, uma matéria afirmava em seu título: “São Paulo é do grafite” (MANSO,
2006). O repórter começa sua argumentação pela descrição de um “atropelo”
68
, que tomou de assalto 200 metros de muro no túnel
de ligação entre a Avenida Paulista e a Avenida Doutor Arnaldo. Tal ação foi realizada sobre as reproduções de 50 quadros de pintores
modernistas
69
, desenvolvidas em 2004 pela técnica de aerografia por jovens participantes de um projeto social da ONG Revolucio-
narte (CARVALHO & MENA, 2004). Segundo Almir Resende Pessoa, coordenador do projeto citado na matéria, a proposta era de
“resgate da arte brasileira”, pois “tem gente que conhece Da Vinci e Van Gogh e nunca viu um trabalho de Portinari e de Tarsila”.
Para ele, quando finalizado, em 2004, o resultado do projeto teria sido “lindo”.
Ratificando o título da reportagem de Manso (2006), os atropeladores dos quadros dizem que São Paulo é do grafite, e que esses
espaços públicos não podem ser domesticados por pinturas comportadas. “Não temos nada contra eles [os jovens da ONG]. Mas
a Paulista é um espaço tradicional do grafite e queríamos retomá-lo. O trabalho social pode ser feito em outros muros” (MANSO,
2006), nas palavras de Drop, grafiteiro do KDR (Kontrole Das Ruas) e artista plástico. A proeza teve maior proporção quando o filho
do artista plástico Gilberto Salvador, que usa o codinome ‘Não’ nas intervenções, relatou em entrevista
70
que a polícia os abordou ao
final da ação, mas não sabia exatamente o que eles haviam feito. Em função do tamanho do atropelo, os policiais não conseguiram,
de início, enxergá-lo por inteiro, todavia, quando tomaram consciência da dimensão do trabalho, resolveram dispensar os interven-
tores, para não arcarem com a consequência de não terem visto a ação anteriormente, uma vez que ela durara 8 horas. Segundo
‘Não’, tal ação foi pensada para ser vista pelos passageiros dos carros e ônibus em trânsito pelo local, ficando pouco perceptível
para quem olha da calçada.
Essa não era a primeira ocasião que ‘Não’ causara tensões por seus “atropelos”: quando participava das atividades da ONG Cidade
Escola Aprendiz, em 2001, passara uma brocha encharcada de tinta sobre as obras dos grafiteiros que pintaram o Beco Escola, local
na Rua Belmiro Braga, no bairro da Vila Madalena, onde a instituição desenvolvia suas ações. Já na 26ª Bienal Internacional de Arte
de São Paulo, em 2004, conquistou notoriedade nos jornais por ter realizado um pixo
71
nas instalações dos artistas Jorge Pardo e
68
Denominação para o ato de pintar sobre uma intervenção de outro
autor.
69
“Abapuru”, de Tarsila do Amaral; “Retirantes”, de Candido Portinari,
entre outros.
70
Em entrevista concedida ao autor em setembro de 2007.
71
Como mencionamos anteriormente, utilizamos a palavra “pixo”
com a grafia propositalmente errada, ao contrário do que prevê a
norma da ortografia, para preservar a forma que os praticantes da
pixação a utilizam.
128
Mike Nelson. Nessa ocasião pôde trazer a público suas intenções em entrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo, afirmando que
aquilo não era um protesto, tampouco vandalismo, já que não retirava a utilidade da coisa (da obra do artista), mas era arte de rua.
Nas palavras de ‘Não’:
“Meu ‘pixo’ é uma arte de rua. Lá [na Bienal], não pude trabalhar direito porque tive de ser rápido, ou teria feito
certinho, com as letras encaixadas no estilo, uma carinha louca e uma frase para as pessoas entenderem por
que eu estava fazendo aquilo”. (NÃO apud MENA, 2004)
A intervenção no túnel da Avenida Paulista, todavia, foi distinta, e talvez mais ousada. As reproduções dos quadros modernistas já
tinham sido “pixadas” logo que foram feitas em 2004 e, em 2006, ‘Não’ estava chamando para si uma insatisfação geral, tanto do
campo da arte
72
como do meio dos grafiteiros que ocupavam o túnel de forma sistemática desde a década de 1980.
No campo da arte, tomamos como referência a fala de dois representantes. O primeiro, Paulo Portela, coordenador do serviço educa-
tivo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), afirmou que o resultado do projeto “é horroroso, é um desserviço”, pois “o que está
não é Portinari, não é Volpi, não tem fidelidade, não tem nada a ver com a obra original. Muita gente que não conhece pode começar
a conhecer de modo errado”. Nossa segunda referência, Ana Mae Barbosa, professora aposentada da Escola de Comunicação e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA-USP), de forma menos insatisfeita, apontou: “cópias não estimulam ninguém a se interessar por
arte, mas ajudam a população a conviver com o modernismo” (BARBOSA apud CARVALHO & MENA, 2004).
E, por sua vez, entre os grafiteiros que se manifestaram logo que houve o “atropelo” menos ostensivo em 2004, Grow afirmou: “eu e
toda uma galera já combinamos e vamos atropelar aquilo tudo. Vamos bombar”. Seu ponto de vista foi ratificado por Ricardo Vicca-
rio, lembrando que “muita gente foi presa quando fazia grafites ali. Não tem essa de projeto da prefeitura. A cidade é de todo mundo
e a rua é a nossa galeria” (GROW apud CARVALHO & MENA, 2004).
Diante dessas manifestações e num contexto em que o grafiteiro NÃO ganhava espaço na mídia com sua pixação na Bienal – a
reportagem sobre a Bienal foi publicada 3 dias antes daquela sobre o túnel –, ficava claro o momento, ou “a deixa”, de quando o
projeto do “atropelo” de 2006 foi confabulado. Ou seja, tanto pelo campo da arte como por alguns grafiteiros, estava dado o aval
para a insubordinação contra uma arte comportada que se pretendia “linda” e que ocupava o túnel da Avenida Paulista. Ao mesmo
tempo, essa ação não foi bem recebida por toda a sociedade, o que pode ser notado no título da primeira reportagem sobre o túnel,
em 2004: “Obras que imitam quadros modernistas foram pichadas; intervenção da prefeitura no espaço provoca protesto. Guerra do
grafite mancha túnel da Paulista” (CARVALHO & MENA, 2004). Assim sendo, apesar dos jovens da ONG Revolucionarte terem refeito
tais pinturas modernistas no ano de 2004, após o primeiro “atropelo”, menos de 2 anos depois, o túnel havia sido reconquistado
pela proeza de ‘Não’.
Depois de apresentar o conflito entre poder público, grafiteiros e ONGs gerado pela intervenção de 2006, Manso (2006) disse na
reportagem: “Os protestos dos grafiteiros não poderiam ter acontecido em um momento mais oportuno para a categoria. A cena
de arte de rua paulistana tem mais de 20 anos de história, mas vive seu hype [pico] e atrai a curiosidade em diferentes países do
mundo”. Nesta frase, o repórter entendeu que a legitimidade da manifestação é subsidiada por acontecimentos na história da arte,
que absorveu a produção, acontecimentos que oferecem posições segundo o acúmulo de um passado e do choque de um presente.
Mas, considerando uma manifestação que não era necessariamente um choque, deu continuidade ao argumento de que “São Paulo
é do grafite”, apresentando como evidência disso o sucesso internacional dos irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo, mais conhecidos
como Os Gêmeos. Os irmãos começaram grafitando os muros do bairro do Cambuci e passam por uma temporada de sucesso em
galerias de Nova York, Tóquio, Paris e Milão – na ocasião, Os Gêmeos também abriam uma exposição na Galeria Fortes Vilaça
73
–,
mas nunca realizaram uma proeza, em matéria de transgressão, comparada à de ‘Não’. Além disso, Manso também fala de livros
publicados a respeito e do reconhecimento do poder público em relação à legitimidade das posições dos grafiteiros.
Anteriormente à exposição dos Gêmeos e aos acontecimentos do túnel da Avenida Paulista, a Galeria Fortes Vilaça acolheu obras
72
O campo da arte é entendido como o espaço das relações objetivas
entre os agentes e as instituições da arte, as quais são constitutivas
da estrutura do campo e orientam as lutas visando a conservá-la ou
transformá-la.
73
Exposição “O peixe que comia estrelas cadentes”, ocorrida entre 01
de junho e 01 de julho de 2006.
129
Imagem 98: Os Gêmeos, 2005. Exposição “Cavaleiro Marginal”, Galeria Deitch Project, Nova Iorque, março de 2005. Poster de divulgação
da exposição.
de outros artistas, também considerados grafiteiros
74
e representados pela Galeria Choque Cultural, essa última direcionada à street
art
75
. Alexandre Gabriel (2006)
76
, diretor artístico da Fortes Vilaça, disse que apenas se percebeu a necessidade desses eventos
porque uma galeria “irmã”, a Deitch Project, de Nova York (que comercializa obras de Basquiat, entre outros), havia incluído Os
Gêmeos no circuito da arte contemporânea. Seguindo este estímulo, a Fortes Villaça procurou Baixo Ribeiro (proprietário da Choque
Cultural), que conhecia melhor o campo da produção do grafite, para realizar uma exposição paralela, levando os artistas da Fortes
para expor na Choque, e vice-versa. Afirmou, ainda, que não se tratava de uma exposição sobre o grafite, uma vez que esta palavra
não sintetizava o que se expusera na Galeria, mas sim sobre a pintura. Segundo Gabriel, existe uma admiração pela obra figurativa
dos grafiteiros, que tem estreitas relações com a pintura desenvolvida pela arte contemporânea. Embora exista uma crise da pintura
e um predomínio do gênero da instalação, isso não significa que aconteça uma negação da primeira. O problema não é a tela, ela é
apenas um pedaço do espaço da representação.
Alexandre Gabriel (2006) acredita que os grafiteiros foram pouco transgressores no “Cubo Branco”
77
, demonstrando preocupação
com a comercialização de suas obras, mais do que a própria Galeria. Diante deste ímpeto incipiente de transgressão, Gabriel orientou
Zezão, um dos artistas, para que fizesse uma intervenção no bueiro em frente à Fortes Vilaça e expusesse fotos de seus flops
78
nas
galerias pluviais, dissuadindo-o de reproduzir o bueiro sobre um recorte de MDF (condensado de madeira), como pretendia inicial-
mente. Por outro lado, o próprio diretor artístico afirmou que os critérios relacionados ao “Cubo Branco” estavam interessados na
74
Zezão, Titi, TInho, Fefe Talavera, Andrei Muller, Highraff e Renan
Cruz.
75
Como existe uma restrição do meio dos grafiteiros para a utilização
do termo “grafite” para quem não possui uma ampla inserção na rua,
a estratégia da galeria é atribuir o nome street art, ou “arte de rua”,
para ampliar os gêneros e estilos, tocar na temática presente no grafite
e não fazer exigências quanto ao histórico do artista no meio urbano.
76
Em entrevista cedida ao autor em abril de 2006.
77
A expressão “Cubo Branco” é utilizada como sinônimo de galeria
na arte contemporânea, não por acaso a Galeria Fortes Vilaça é uma
construção que se assemelha a essa forma.
78
Como vimos no capítulo anterior, flop é a denominação que o artista
atribui a uma intervenção particular que ele desenvolveu com a forma
de linhas e círculos com as cores azul-claro e azul-turquesa.
130
elaboração plástica desses artistas, independentemente da referência da rua. Como resultado dessa demanda da Galeria, a maioria
dos trabalhos da exposição foi realizada sobre o suporte da tela e mesmo do MDF, mas, no caso de Zezão, sem a referência explícita
da rua ou restringindo-se à tela, o trabalho perdia muito do que poderia legar.
Além disso, quando indagado sobre os critérios considerados no processo de determinação dos preços das obras, respondeu: “os
valores [artísticos] atribuídos às obras são subjetivos, e os valores econômicos aleatórios”, desvencilhando-se de uma discussão
mais aprofundada sobre os processos de comercialização, ou mesmo assumindo a banalidade dessas determinações. Ainda que não
tenha explicitado as regras da comercialização, quando indagado sobre se a Fortes Vilaça promoveria a circulação internacional dos
artistas de grafite, como ocorre com os outros artistas representados por ela, Gabriel (2006) disse que levaria apenas Os Gêmeos
para a 27ª ARCO
79
(Feria Internacional de Arte Contemporáneo) de Madri, em fevereiro de 2008. Notadamente, divulgar um artista
internacionalmente seria muito caro para a Galeria, e apenas esta dupla sustentaria economicamente tal empreendimento.
Dessa maneira, a fala de Gabriel sobre Zezão, ao mesmo tempo em que escamoteia os interesses principais de uma galeria, como se
essa não manifestasse, de forma pungente, a preocupação econômica, também revela o desconhecimento do artista sobre o habitus
deste novo campo em que ele se iniciava. Primeiro, como condição de classe social e desejo de inserção, Zezão não incorporara a
(aparente) despreocupação com a comercialização; segundo, como efeito da desigual distribuição do capital cultural, ele não sabia
das transgressões historicamente acumuladas pelo “Cubo Branco”, as quais requeriam uma obra mais audaz, crítica em relação
ao próprio espaço, a exemplo do “Embrulhamento” que Christo e Jeanne-Claude fizeram com o Museu de Arte Contemporânea de
Chicago em 1969; da “galeria vazia”, como fizera Yves Klein com a Galerie Iris Clert em 1958; ou ainda, da obra “Pleno”, de Arman,
que, em 1960 encheu a Galeria Iris Clert de lixo, detritos e sucatas, impedindo a entrada dos visitantes.
Nesses processos de releitura do passado do campo da arte, Iran do Espírito Santo, artista representado pela Fortes Vilaça, abriu
uma exposição nesta Galeria com o mesmo “conceito” de Yves Klein, cobrindo as paredes com um dégradé de 52 tons de cinza.
Argumentando a respeito da obra, o artista diz: “Ocupar a galeria com esse vácuo é minha maneira de refletir sobre a produção de
objetos para um mercado voraz. É como se tivesse embargado o espaço” (ESPÍRITO SANTO apud MARTÍ, 2008). Esta postura assu-
me, entretanto, aspectos contraditórios e, só possíveis graças à posição privilegiada que ocupa no circuito da arte contemporânea:
segundo a mesma reportagem (MARTÍ, 2008), foram vendidas 7 obras suas na 27ª ARCO, em período correlato à exposição dos
cinzas no vazio – e uma delas alcançou a cifra de 60 mil dólares. E, embora os compradores não possam embrulhar a obra dos cinzas
e levá-la para casa, ele pode repeti-la mediante convite, e pagamento, onde for necessário.
Independentemente da denominação “grafite”, que Gabriel não desejava associar a sua exposição, foram os grafiteiros Os Gêmeos
que trouxeram o maior público recebido pela Galeria até aquele momento (mais de 50 mil). Da mesma forma que Crash (grafiteiro
de Nova York), o qual afirmava, em 1982, sobre seu trabalho na rua, que “nenhum outro artista no mundo tem condições de ser visto
por tanta gente em um só dia” (CRASH apud STEWART, 1998, p. 45), Os Gêmeos já podem dizer que nenhuma outra obra de arte
contemporânea presente na Galeria Fortes Vilaça foi tão vista pelo público.
Ainda assim, ao pôr sua rede de relacionamentos em contato com a exposição, a Galeria fomentou aproximações entre curadores
e instituições, dando oportunidade a que novas exposições fossem montadas, as quais não se furtaram ao grafite. A instituição
favoreceu o reconhecimento da produção desses artistas por Emanuel Araújo (diretor do Museu Afro Brasileiro), que foi cocurador
em 2006 da exposição “Território Ocupado”, abordando o grafite; e contribuiu para a admiração de Fábio Magalhães, cocurador da
exposição “Street art – do graffiti à pintura”, ocorrida em janeiro de 2008 em parceria com Vittorio Sgarbi, secretário da Cultura de
Milão e criador do projeto. Pode-se notar que foi o capital social da Fortes Vilaça o fator determinante dessa passagem da rua para
o espaço institucional da arte, muito mais do que a presença das obras no espaço urbano ou as qualidades imanentes a cada uma
delas, mesmo porque nem todos os artistas da primeira exposição tinham obras no espaço urbano, como Andrei Muller, ou as tinham
de forma incipiente, como Fefe Talavera. Por sua vez, no pronunciamento das autoridades presentes na inauguração da Exposição
Street art – do graffiti à pintura”, Fábio Magalhães disse que o cocurador da parte brasileira da exposição foi Boleta, aspecto não
79
A ARCO é uma das principais feiras internacionais de arte
contemporânea existentes e um evento comparado em importância
às Bienais de Veneza e de São Paulo, e à Documenta de Kassel.
131
Imagem 99: Os Gêmeos, junho de 2006. Exposição “O Peixe que Comia Estrelas Cadentes”, Galeria Fortes Vilaça, São Paulo, 2006. É notável
a fila para entrar na exposição. Fotografia de arquivo da Galeria Fortes Vilaça.
abordado pelas reportagens que trataram do evento. E, da mesma forma que a influência do capital social da Fortes Vilaça condicio-
nou o acesso a esses desdobramentos, o capital social de Boleta condicionou as apresentações dos artistas presentes nesse evento,
pois nenhum dos artistas da curadoria estava distante, nas relações de amizade, deste curador não citado.
Nesse sentido, a audaciosa intervenção de ‘Não’ e o choque correspondente não necessariamente lhe deram acesso à Galeria. Embo-
ra tenha conquistado visibilidade na cidade e na mídia impressa, ainda não foi convidado a participar do circuito das instituições da
arte contemporânea, nem participou das exposições que ocorreram ao longo do período abordado por esta pesquisa, que incluíram
o grafite e a arte urbana entre suas temáticas. No entanto, sua intervenção apresenta um sentido político e estético que está abraçado
pelas problemáticas contemporâneas do urbano e da arte. O que lhe falta é o interesse e a oportunidade, mediada pelos capitais
(sociais e culturais) de que dispõe, para inserir-se nessas lutas e marcar uma posição nessa estrutura.
Segundo Bourdieu,
“o processo pelo qual as obras são levadas é o produto da luta interna entre aqueles que, em razão da posição
dominante (temporalmente) que ocupam o campo (em virtude de seu capital específico), tendem à conservação,
132
ou seja, à defesa da rotina e da rotinização, do banal e da banalização, em uma palavra, da ordem simbólica
estabelecida, e aqueles que estão inclinados à ruptura herética, à crítica das formas estabelecidas, à subversão
dos modelos em vigor, e ao retorno à pureza das origens” (BOURDIEU, 2002, p. 234).
No caso de ‘Não’ e mesmo no de Zezão, falta tal compreensão da estrutura do campo da arte para estabelecerem uma posição lúcida
no campo, encontrarem o espaço dos possíveis para suas transgressões e realizarem a superação das alternativas, pois, como disse
Bourdieu:
Imagem 100: Os Gêmeos, s/d. Catálogo da Exposição “Vertigem”, Curitiba, out 2008. Fonte: Museu Niemeyer, 2009.
133
“a orientação da mudança depende do estado do sistema das possibilidades (conceituais, estilísticas, etc.)
herdadas da história: são elas que definem o que é possível e impossível de pensar ou de fazer em um momento
dado em um campo determinado; mas não é menos certo que ela depende também dos interesses (com
frequência inteiramente desinteressados, segundo os cânones da existência ordinária) que orientam os agentes,
em função de sua posição na estrutura social do campo de produção, para tal ou qual dos possíveis propostos
ou, mais exatamente, para uma região do espaço dos possíveis homóloga à que ocupam no espaço das posições
artísticas” (BOURDIEU, 2002, p. 235).
Na estrutura da distribuição do reconhecimento e do capital específico, concedidos pelo grande público e pelos grafiteiros, Os
Gêmeos gozam de prestígio e acúmulo privilegiado, mas lhes falta tocar nas problemáticas pertinentes e de interesse do campo da
arte contemporânea. Este fato configura-se no lugar legado à obra dos Gêmeos na ARCO 2008: em vez de estarem no stand principal
da Galeria Fortes Vilaça e contarem com subsídios estatais, encontram-se num evento da programação paralela, “não-oficial”, loca-
lizado na Galeria Pilar Parro & Romero. Outros artistas brasileiros também estavam nessa programação paralela “não oficial”, como
foi o caso de Regina Silveira, porém, a Galeria Metta, em que ela se inseriu, comercializa obras de nomes consagrados, como Joan
Miró, Antoni Tàpies e Anselm Kiefer, equivalendo em posição, no que diz respeito à hierarquia das instituições. Consequentemente,
ocupar um lugar marginal nessa ocasião, na qual as atenções internacionais voltaram-se para a arte brasileira (o Brasil foi o país ho-
menageado na ARCO 2008), mobilizando todo o campo da arte para os jogos estabelecidos naquele lugar de consagração artística e
econômica, significa simplesmente que a arte dos Gêmeos não assume um desafio legítimo, o qual exige uma inovação relacionada
à história do campo. Assim sendo, ficaram fora do projeto curatorial do Ministério da Cultura brasileiro (Minc) e estiveram ausentes
dos destaques promovidos pelos textos e palestras dos especialistas do campo da arte. Além disso, não apareceu nenhuma menção
à palavra “grafite” nos textos do site oficial do Minc que tratou da ARCO 2008, bem como do próprio site oficial da ARCO 2008.
No entanto, resta saber se ser legítimo para o campo da arte significa o mesmo que ser legítimo para a sociedade. A obra dos Gê-
meos, ainda que estes não tenham usufruído dos recursos institucionais desse evento internacional, mobilizou o grande público e
a mídia espanhola, e apareceu como representante legítima das questões simbólicas relacionadas a São Paulo, local de origem da
dupla e lugar estratégico no universo das representações relacionadas à identidade brasileira na ARCO 2008. Desta forma, cabe a
indagação sobre se a própria identificação de questões legítimas para o campo da arte não esteja truncada para a compreensão da
maioria da sociedade, o grande público. Se a arte contemporânea é apenas para os iniciados, trata-se de uma arte hermética, e nesse
contexto a posição dos Gêmeos é entendida como uma forma de manter um diálogo com este receptor da obra (grande público)
muito mais do que com o próprio campo.
Tal posição também não significa complacência com o estado das coisas ou ausência de espírito crítico, já que muitas das obras
desses artistas absorvem críticas sociais e políticas, facilmente compreendidas pelo público por possuírem uma linguagem figurati-
va. E a atitude displicente dos Gêmeos e seu desinteresse pelas questões legítimas do campo assumem o caráter de questionamento
do próprio distanciamento do campo da arte em relação aos meios possíveis de recepção das obras. Mas também significam uma
incapacidade de dialogar com o campo com base na linguagem praticada nele.
A Galeria Fortes Vilaça, que se consagrou no campo institucional da arte por promover a produção de vanguarda da arte brasileira,
apesar de assumir esta posição e da postura indiferente às questões legítimas do campo da arte por parte dos Gêmeos, não deixou
de absorver a produção destes últimos, pois, neste caso, a rentabilidade econômica prescindiu da questão conceitual.
Para o artista, compreender e trabalhar com as questões sofisticadas desse universo da arte contemporânea por si só não faz a obra
ser absorvida pelo mercado ou pelas instituições da arte. O caminho passa pelas escolas, de que a grande maioria deles está exclu-
ída, e pela sociabilidade correspondente à elite econômica que as frequenta. Neste sentido, o caminho dos Gêmeos foi possibilitado
pelo potencial do capital econômico gerado pela própria obra, já que eles não precisaram participar desse universo de formação
social e cultural e não foram aclamados incondicionalmente por este ambiente. O acúmulo de capital simbólico específico demanda
uma inserção e um reconhecimento dentro de relações sociais consolidadas que eles jamais tiveram. Diante dessa entrada avassa-
134
ladora, sem que o artista utilizasse as armas vigentes no campo, o repórter Cypriano (2006) diz:
No caso dos Gêmeos, que já alcançaram sucesso no mercado americano, onde o exótico costuma ter espaço
garantido, o resultado de sua primeira individual no Brasil é uma produção que está longe de entender a arte
como uma instância de conhecimento e exercício de linguagem. O puro entretenimento, por mais bem realizado
que ele possa ser, merece locais mais adequados do que uma galeria de arte contemporânea. O que se vê na
Fortes Villaça estaria mais ajustado a um desfile de escola de samba.
Antes de (des)qualificá-los como exóticos, o jornalista diz que a obra opera por um apelo fácil e espetacularizado, que distancia o
público da arte contemporânea das questões relevantes que a produção e a linguagem enfrentam. Emenda ainda que a exposição
dos Gêmeos representa uma cilada para a Galeria, soando incompatível com os nomes consagrados que ela apresenta e com as
obras sofisticadas que expõe. Cita, a esse propósito, Iran do Espírito Santo, que “choveu no molhado” com “os cinzas no vazio”, se
comparado a Yves Klein: ambos se distinguem em gênero e grau do que é feito pelos grafiteiros.
Se é, contudo, uma cilada expor algo que foge ao lugar-comum da Galeria, resta saber o que é esse projeto e como foi elaborado pela
Fortes Vilaça. Ele foi construído almejando-se uma posição de vanguarda que acolhesse e divulgasse internacionalmente a produção
da arte contemporânea brasileira, porém, contando com a conjunção de capitais sociais, econômicos e culturais acumulados e
herdados graças à origem social de Marco Antonio Vilaça. Tal origem fez, até mesmo, com que surgissem prêmios com o seu nome,
dados a artistas pelas instituições públicas da cultura (Funarte/Minc) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI/Sesi), ação
esta mobilizada por sua família, da qual fazem parte vários juristas, em função de sua morte trágica. Seu pai, Marcos Vinícius Vilaça,
foi ministro do Tribunal de Contas da União e presidente da Academia Brasileira de Letras, detendo, desta forma, acúmulo portentoso
de capitais políticos, culturais e econômicos. Este aspecto mostrou, desde o princípio, que o capital econômico correspondente ao
valor das obras expostas na Galeria equiparava-se ao capital simbólico específico
80
, este último adquirido entre os pares-concorrentes
no campo da arte contemporânea.
Ser vanguarda, realizar uma produção restrita ao campo e ter a preocupação de produzir “arte pela arte”, com grande autonomia, não
deixou o artista representado pela Fortes Vilaça numa situação de pouca rentabilidade, na verdade, ele não precisou preocupar-se
com este último quesito. A aquisição das obras pelos colecionadores de arte também respeita as relações estabelecidas pelos crité-
rios de classe, entre as quais figuram os compromissos com aqueles que se consegue trazer para as vernissages. Para as exposições,
sem os vínculos de amizade consolidados no convívio da elite que consome arte, não existe divulgação e aquisição de obras nos
valores praticados pela Galeria. Assim, diferentemente do que é apontado por Bourdieu (2002) em seu estudo sobre a vanguarda
literária do século XIX, ser assimilado pela burguesia, apresentar sinais de consagração, prêmios e honras, não vai contra o caráter
de vanguarda e a aquisição de capital simbólico específico do campo da arte contemporânea neste caso brasileiro.
O caso Zezão guarda semelhanças com o dos Gêmeos. Ele goza de visibilidade midiática, aparecendo no programa de Jô Soares e
participando de coisas do gênero, dada a condição insólita de seu empreendimento, que é pintar nas galerias pluviais da cidade e
nas margens do rio Tietê. Obteve também reconhecimento de seus pares-concorrentes por ter percorrido uma trajetória que passou
pela insubordinação máxima, ligada à pixação no Metrô, lugar de maior dificuldade e de grande consagração para tal prática. Tais ca-
pitais, adquiridos ao longo de mais de 15 anos pintando na rua, facilitaram suas relações com a rede de comercialização das galerias
de arte e a inserção nas instituições museológicas. Da mesma forma que Os Gêmeos, porém, não lhe interessam as problemáticas
legítimas do campo da arte, pois ele acredita que cumpre sua função de artista e exibe legitimidade por continuar realizando seus
projetos na rua. Nos espaços institucionais, restringe-se a comercializar seu trabalho e garantir sua sustentabilidade econômica,
aspecto impossível de ser negligenciado em quem possui sua origem social e ainda pretenda ser artista.
Tais aspectos demarcam dois campos distintos, grafite e arte contemporânea: embora ambos estejam relacionados à arte, em cada
um deles vigoram critérios próprios, nos quais os sujeitos que participam acreditam nos méritos dos argumentos discutidos de forma
apaixonada. Ainda que pareçam banais para quem esteja olhando de fora, o comprometimento coletivo em relação aos critérios in-
80
Conceito de Pierre Bourdieu, que procura captar o reconhecimento
simbólico passível de ser compreendido apenas entre os pares-
concorrentes que assumiram os mesmos desafios de superação
apontados pelo campo específico em que atuam. Neste sentido, esse
capital pode ser absorvido e entendido apenas entre os integrados
ao campo.
135
ternos cria a illusio necessária ao funcionamento do jogo, da rotina, “das coisas que se faz e que se faz porque se fazem e na verdade
sempre se fez assim” (BOURDIEU, 2001, p. 124).
No caso do ‘Não’, mesmo que sua atitude seja objetivamente crítica em relação à arte contemporânea, seu posicionamento é externo,
sem nunca se debruçar sobre a plausibilidade dos argumentos em relação aos critérios de quem participa do campo. Desta forma,
quando fez sua intervenção na instalação de Jorge Pardo e Mike Nelson na 26ª Bienal, não obteve o efeito alcançado pela intervenção
do túnel da Paulista, que mobilizou todo o campo dos grafiteiros, das ONGs e do governo para um debate. Já entre os grafiteiros, ele
conseguiu que sua crítica fosse entendida e bem recebida, mas sem efeito produtivo dentro do campo da arte contemporânea.
Embora a crítica institucional seja um critério importante para a valorização do artista dentro da arte contemporânea, ele não a con-
seguiu realizar de acordo com as regras do jogo, por meio da própria obra como lugar das lutas simbólicas. Ao final, seu ataque não
favoreceu uma reflexão do campo da arte, nem levou a que o artista vilipendiado se sentisse atingido pela desqualificação de ‘Não’,
o qual não acredita que muitas das obras presentes nas Bienais sejam arte. Interferir no trabalho alheio só reforçou o caráter infantil
atribuído a sua transgressão. Não por acaso, não foi inserido num campo em que seu potencial crítico teria sido muito valorizado.
O repórter que disse “São Paulo é do grafite” não acompanhou, contudo, esse desenrolar, nem tinha as problemáticas inerentes ao
campo da arte entre as suas preocupações e, provavelmente, não teve acesso, para reforçar seu argumento, às questões que estamos
abordando. Além das referências apresentadas no início deste trabalho, a reportagem considerou apenas o prestígio concedido ao
grafite brasileiro pelo recente livro Graffiti Brazil, escrito pelos ingleses Tristan Manco, Caleb Neelon, Ignacio Aronovich e Louise Chin
(os dois últimos, integrantes do grupo Lost Art) e lançado pela reconhecida editora Thames & Hudson de Londres, em 2005, com
grande repercussão na Europa.
Ao mencionar essa obra, o repórter esqueceu que o grafite já estava em ascensão fora do Brasil havia muito tempo, o que pode ser
comprovado pela boa comercialização da produção bibliográfica sobre o grafite em vários países do mundo. No ano de 2002, da
mesma editora de Graffiti Brazil, figurava, com mais de 3,5 mil exemplares
81
, o livro Stencil Graffiti, de Tristan Manco, em 3º lugar
entre os livros de arte mais vendidos no Reino Unido. Em 2007, num momento posterior à reportagem analisada, o livro Wall and
Piece, de Banksy (editado pela Century), ocupou o primeiro lugar, com mais de 10 mil exemplares vendidos (WHITFORD, 2007), es-
tando ainda o livro Graffiti World: Street Art from Five Continents, de Nicholas Ganz e Tristan Manco (editado pela Thames & Hudson),
na 5ª posição entre os best-sellers dos livros de arte, com mais de 3,6 mil cópias vendidas.
O argumento da reportagem de Manso (2006) também incluía a publicação made in Brasil “O grafitti na cidade de São Paulo e sua
vertente no Brasil”, do Núcleo e Laboratório Interdisciplinar do Imaginário e Memória (Nime/Labi), órgão do Instituto de Psicologia
(IP) da USP, com organização do pesquisador Sérgio Poato (2006). No entanto, este livro nacional não teve boa repercussão no meio
do grafite, por errar na autoria dos grafites e tratar a pixação como um problema relacionado ao contexto familiar de seus praticantes.
O autor da reportagem não se deteve neste pormenor, parecendo entender que o capital simbólico acumulado em outros campos
que não o da arte, e, principalmente, o proveniente do campo intelectual de uma universidade consagrada, também oferece selos de
qualidade para a idéia que se quer vender.
Ao final, o título da reportagem de Manso (2006) construiu sua persuasão com base na posição do governo municipal de São Paulo
representada pela opinião do coordenador da Juventude, Guilherme Coelho, que afirmou: “Com a decisão [de rever a utilização do
espaço pelas obras de aerografia, depois de intensos debates] sobre a Paulista, a Prefeitura reconhece a legitimidade desta cena que
hoje só encontra paralelo em cidades como Nova York, Berlim e Barcelona”. Em função disso, a Prefeitura chamou alguns grafiteiros,
ONGs e representantes do governo para debater o ocorrido no túnel da Paulista, evento que fundamentou a decisão de realizar outro
painel coordenado por Binho Ribeiro, representante da geração Old School de grafiteiros, que absorveu a referência do hip hop. A
execução do painel, por sua vez, não teve plena liberdade, já que previamente foi definida uma temática estranha ao universo da
maioria dos grafiteiros – o centenário da imigração japonesa –, condicionando obras heteróclitas. Adequado a esta exigência, o
81
The Sunday Times. “Art: Bestsellers 2002”. 24 de novembro de
2002.
136
Imagem 101: Capa do número 38 da revista Graffiti – Arte e
Cultura de Rua (2007), editada por Binho Ribeiro.
Imagem 102 e 103: Folheto de divulgação do evento coordenado por Binho no túnel da Avenida Paulista. Na foto está presente a intervenção
anterior realizada pelo ‘Não’. Frente e verso do folheto
painel conseguiu permanecer no local até o momento presente, junho de 2009, tendo, na ocasião de sua realização, contado com
a presença do prefeito Gilberto Kassab. Este último, por sua vez, também figurou na capa da revista Graffiti – Arte e Cultura de Rua
(número 38, de 2007), por prestigiar o evento, ao mesmo tempo em que promove a pintura sistemática de todos os grafites que estão
na rua, em favor do Programa Cidade Limpa. É preciso registrar que tal revista é ainda produzida pelo próprio Binho Ribeiro.
Diante desse contexto, em que sentido poderíamos dizer que “São Paulo é do grafite”? Como poderíamos atribuir tamanha apro-
priação da cidade a uma única manifestação artística? Segundo Argan (1998, p. 73), “a cidade favorece a arte, é a própria arte, [...]
ela não é apenas um invólucro ou uma concentração de produtos artísticos, mas um produto artístico ela mesma”
82
. Aplicando, por
analogia, esta observação a São Paulo, poderíamos dizer que não seria o grafite enquanto arte que se apropriaria da cidade, mas São
Paulo mesma, enquanto um imenso produto artístico, teria no grafite um dos elementos que lhe dariam essa condição. Este enten-
dimento de Argan (1998) tem, porém, como referência a cidade ideal concebida no Renascimento. Sobre a cidade contemporânea,
suas reflexões vão na direção de apreender a transformação do produto artístico em produto industrial. Para o autor, este conceito só
se delineia de forma clara depois que há a superação da estética idealista do século XVIII e da historiografia que lhe é correspondente,
a qual, até então, via a obra de arte como uma soma de componentes concentrada numa pessoa ou numa época.
No que se refere ao Renascimento, os grafiteiros estrangeiros já o tomam como parâmetro de comparação. No filme Bomb It
83
, diri-
gido por Jon Reiss, um grafiteiro americano usou o termo para afirmar que o maior movimento artístico da história da humanidade é
o grafite, em detrimento deste mesmo Renascimento. Antes ainda, um dos maiores representante do grafite, Jean Michel Basquiat,
realizou obras de releitura do David, de Michelangelo, e da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Em outra circunstância, um artigo do
jornal The Times, de Londres, publicou a opinião de um historiador da arte, segundo o qual Michelangelo é o maior grafiteiro de
todos os tempos (OWEN, 2003).
84
De fato, a ocorrência dessas manifestações durante os últimos 30 anos foi muito mais abrangente no território do globo terrestre do
que a do Renascimento em seus 3 séculos principais.
85
Não se podem, todavia, comparar coisas tão distintas. No Renascimento
houve patrocinadores do porte de um Império, como o foram também a Igreja Católica e os potentados florentinos e venezianos, que
82
Argan (1998) parafraseia Lewis Mumford nessa frase.
83
REISS, Jon (2006). Informação disponível em www.bombit-
themovie.com.
84
“Vincenzo Sansonetti, an art historian, said that the Michelangelo
sketches showed that he was ‘the greatest graffiti artist of all time’.”
(OWEN, 2003).
85
Baseando-nos, para essa consideração temporal da Renascença,
nas concepções do historiador da arte alemão Erwin Panofsky (1981)
em seu livro Renascimento e Renascimentos na arte ocidental.
137
assentaram alguns dos liames da enorme expansão comercial da época, quando o poder se fazia representar pelas obras notáveis
de artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo. Ações diametralmente opostas às pretendidas pelo artista grafiteiro, que surgiu
num contexto de insubordinação plena e reação violenta na relação com os poderosos de nosso tempo. Ainda que pintar nus na
Capela Sistina tenha significado certa transgressão, essa opção artística não se confunde com a atitude de pintar sem ser convidado
– característica dos grafiteiros contemporâneos.
Além desse aspecto estrutural, a própria forma e os procedimentos artísticos não poderiam ser mais divergentes. No que comungam,
além de pintarem sobre a parede, o artista plástico Luiz Paulo Baravelli (2003)
86
aponta um aspecto importante para a consolidação
do trabalho dos grafiteiros: “O pacto estético que eles conquistaram na cidade de forma tácita e continuada com toda a população
e as autoridades”. E depois indaga: “Como foi que Ouro Preto e Veneza se tornaram tão bonitas? Só me ocorre um pacto tácito e
continuado entre toda a população e as autoridades – um pacto estético. A impressão em Veneza é que a cidade não tem um prefeito,
mas um cenógrafo”. Mas Baravelli (2003) chama a atenção para a contradição vivida por eles entre a conquista e o rechaço do pú-
blico: “O grafiteiro é rejeitado pela população em dois níveis: um ético, ao invadir propriedades particulares, e outro estético: impor
publicamente uma linguagem e uma iconografia pessoais” (BARAVELLI, 2003). Assim sendo, diante desse desejo de apropriação da
cidade, da parte de quem realiza o grafite, surgem as resistências da parte da sociedade que o recebe à força. Este pacto estético de
que fala Baravelli não é tácito em toda parte. Antes da ocupação das paredes do túnel da Paulista pelos quadros modernistas, quando
a ONG Cidade Escola Aprendiz e a Prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, realizavam o projeto “São Paulo Capital do
Grafite”, oferecendo a pintura do túnel com liberdade temática e estilística aos grafiteiros, o editorial do jornal Estadão – o mesmo
que veiculou a matéria de Manso – disse:
“A passagem de nível que une as Avenidas Doutor Arnaldo e Paulista, sob a Rua da Consolação, transformou-se
em albergue noturno. Além disso, o mau gosto se impõe na área: a Prefeitura incentivou grafiteiros, pretensos
‘artistas populares’, a apresentar suas ‘obras’ ali, ‘decorando’ os muros com pinturas grotescas. Sem dúvida,
não é o visual adequado para um cartão-postal de São Paulo”.
87
Se os grafites são considerados grotescos, inadequados para a avenida que é considerada um dos cartões-postais da cidade, o que
é dito então sobre a pixação? Outro articulista importante desse jornal, professor aposentado do Departamento de Sociologia da
FFLCH-USP, escreve uma matéria para rechaçar tal intervenção, bem como afirmar as distinções desta prática em relação à de um
artista que apresenta como grafiteiro:
“Nenhum de nós confundirá a linguagem visual de Alexandre Orion com as pichações, as palavras ilegíveis e sem
sentido que machucam os olhos e os sentimentos dos moradores da cidade. A pichação é fascista, totalitária,
intolerante. Quem consegue ler aqueles rabiscos vê apenas palavras de poder e prepotência, privatização visual
do horizonte público, arame farpado da visão de todos. É a escrita dos sem-palavra, a expressão enigmática da
alienação dos muitos jovens que foram privados da própria língua e da própria inteligência. A linguagem de
rabiscos não emancipa o outro nem humaniza o pichador. Na sua melancólica pobreza é um clamor por justiça,
direitos, igualdade. O pichador é uma vítima que quer falar, mas não sabe o que dizer.
Há no desencontro entre pichadores e grafiteiros uma guerra e um confronto de mentalidades. Estes tentando
transformar lugares abandonados e arruinados da cidade em lugares da palavra com sentido, da crítica visual do
abandono. Aqueles tentando destruir a possibilidade da expressão visual da crítica, ocupando com a mudez dos
rabiscos o espaço que poderia ser da eloquência de imagens e palavras” (MARTINS, 2006).
A eloquência de José de Sousa Martins tende a confirmar a distinção entre as práticas da pixação e do grafite, e trabalha com a am-
biguidade da manifestação das primeiras, ao mesmo tempo em que entende o pixador como uma vítima, por não ter o domínio sobre
a linguagem das imagens e das palavras para se expressar, e a atitude do pixador como “um clamor por justiça, direitos, igualdade”,
dizendo que a pixação é “fascista, totalitária e intolerante”. O terreno da compreensão destas manifestações e de seus praticantes
fica, entretanto, nebuloso quando se descobre que muitos dos pixadores também realizam grafites, e que grafiteiros de sucesso como
Zezão passaram pela pixação. Para o sujeito que faz estas intervenções, não existe contradição entre ambas, e não se poderia dizer
86
Em entrevista conceduda à Revista Trip, nº 110/maio 2003.
Baravelli é arquiteto, desenhista, pintor, gravador e escultor. Leciona
desenho na Escola Superior de Desenho Industrial de Ribeirão Preto
(SP), no Curso Universitário e no Instituto de Artes e Decoração, em
São Paulo. Mas é, principalmente, um pintor consagrado na década
de 70, consagração da qual recolhe frutos até hoje nos bons valores
alcançados por suas obras.
87
A reação da Paulista. Editoriais. O Estado de São Paulo. São Paulo,
23 jul 2003.
138
que há um “desencontro entre pichadores e grafiteiros”, muito menos “uma guerra e um confronto de mentalidades”, ou uma falta
de domínio sobre a linguagem das imagens ou impedimento de acesso a esta.
Para além do contexto nacional, quando se vai aos primórdios dessa expressão em Nova York, descobrimos que os primeiros gra-
fites, as tags
88
, foram realizados, majoritariamente, por grupos de classes sociais idênticas, jovens de bairros pobres da cidade.
Mas tanto lá quanto cá, esses grupos não são homogêneos, já que tanto Jean Michel Basquiat quanto o ‘Não’ são de classe média,
condição distinta da maioria dos pixadores. Ao mesmo tempo, tanto ‘Não’ quanto outros jovens de classe média que adentraram a
pixação, embora possam ter sido acolhidos pelo meio, não têm a mesma desenvoltura na interação e na prática dos comportamentos
socialmente valorizados pelos pixadores. Da parte de ‘Não’, houve um demérito logo de início, por este utilizar o codinome Crime
sem ter passado pela experiência correspondente à palavra. Desta maneira, essas exceções não ferem o argumento de que existem
condicionamentos sociais para a prática insidiosa da pixação
89
. E ainda mais quando descobrimos, em entrevista com um membro
consagrado da pixação, que ‘Não’ foi rechaçado no meio da pixação por ter atropelado o trabalho dos jovens da ONG Revolucionarte.
Sua atitude, embora admirada pela maioria, feriu o lema da “Lealdade, humildade e procedimento”
90
, comportamentos estes que
são fundamentais para a economia orgânica da prática. A atitude de ‘Não’, se difundida, favorecerá a desestabilização do respeito
para com sua intervenção no espaço da cidade e permitirá que esta seja também atropelada, e, num sentido mais amplo, promoverá
o conflito entre os grupos e as grifes
91
de pixadores.
Diante desse quadro de sobreposição de códigos sociais distintos, que gerem a ocupação da paisagem urbana por grafiteiros e
pixadores, a proposição do título da reportagem “mote” assume proporções complexas de serem constatadas. Quem manda na
cidade? Certamente existe um equilíbrio tênue que permite a presença de todos, mas aí já não seria possível afirmar que “São Paulo
é do grafite”, mas sim da pixação, por esta cobrir um território maior da cidade, ter mais praticantes – cerca de 5 mil
92
– e atropelar
sistematicamente aqueles que ferem o código de ocupação da paisagem estabelecido por eles, fato este que ocorre mesmo em
relação a artistas que se dizem pixadores, como foi o caso de Juneca na década de 90. Mas a afirmação da reportagem continua
motivadora para o entendimento das disputas travadas no território urbano entre artistas (grafiteiros e pixadores), governo (gestor do
espaço urbano) e organizações não-governamentais prestadoras de serviço à governamentabilidade
93
. Nesse sentido, esta pesquisa
não visa necessariamente a responder afirmativa ou negativamente à proposição, mas apresentar o contexto na cidade de São Paulo
em que ela foi formulada, os acontecimentos que a motivaram e os atores envolvidos na questão.
ARTISTAS – GRAFITEIROS E USURPADORES
Em relação aos artistas (grafiteiros e/ou pixadores), existe uma disputa interna ao campo entre aqueles que reivindicam o título de
autênticos produtores, de um lado, e os grafiteiros que possuem apenas a “carteirinha do clube”, de outro. Ser autêntico, para o
campo do grafite, significa uma ampla quantidade de trabalhos presentes no espaço urbano, e não a beleza plástica ou a temática
da rua, observada pelas galerias de arte. Ser autêntico, para a pixação, significa participar e lançar
94
o nome de um grupo, e não de
um indivíduo, e, para alcançar status e consagração, colocar tal nome nos lugares mais altos e mais difíceis da cidade. Pela maior
resistência que sofrem e por não transmutarem suas formas para objetos passíveis de comercialização, porém, ainda não consolida-
ram a passagem que será descrita por este capítulo. Embora tenha havido uma exposição, que ocorreu na Pinacoteca do Estado em
outubro de 2006, intitulada “Pixo, Logo Existo”, e a incorporação de sua tipografia por desfiles de moda na São Paulo Fashion Week,
ainda não se firmou um espaço em que possam vender tal produção.
Dessa maneira, na passagem de um campo (rua) ao outro (galeria), os grafiteiros geralmente questionam os felizardos que não
passaram pelo “rolê”
95
e que absorvem os frutos da comercialização, sem terem no currículo as agruras da repressão policial e que
puderam dedicar-se a uma prática que possui finalidade nela mesma, enfim, sem terem tido o trabalho de consolidar o grafite na
paisagem urbana. Esses grafiteiros também se revoltam contra os galeristas que não respeitam os valores da rua que marcam os
88
Termo atribuído à assinatura pelos grafiteiros de Nova York.
89
Informação obtida em entrevista concedida ao autor por um pixador
que requisitou sigilo do nome.
90
Assunto desenvolvido no capítulo “Old School” desta pesquisa.
91
“Grife”, na pixação, significa uma associação de grupos.
92
“Segundo levantamento realizado pela prefeitura em 2003, pelo
menos 5.000 pichadores atuam em São Paulo” (SOARES, 2006).
93
Conceito formulado por Michel Foucault para descrever o problema
da população como questão do governo: relação entre segurança,
população e governo. Com a palavra “governamentabilidade”, o
autor diz três coisas: 1) o conjunto constituído pelas instituições,
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem
exercer essa forma bastante específica e complexa de poder que tem
por alvo a população, por forma principal de saber a economia política
e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança;
2) a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente,
durante muito tempo, à preeminência desse tipo de poder, que se pode
chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina, etc.
– e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos
de governo e de um conjunto de saberes; e por fim, 3) o resultado do
processo por meio do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se
tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco
governamentabilizado (FOUCAULT, 1999).
94
“Lançar”, para os pixadores, significa escrever o nome de seu
grupo.
95
Passeios em grupo pela cidade para pintar e/ou pixar.
139
trabalhos transferidos para a galeria, e com o fato de as posições galgadas na rua não corresponderem àquelas presentes no campo
da arte que absorveu sua produção.
Esse aspecto aproxima-se de alguns dos apresentados por Bourdieu (2002) sobre a formação e dissolução dos grupos de vanguarda.
Segundo ele, os ocupantes das posições dominantes são muito homogêneos, enquanto os ocupantes das posições de vanguarda,
que são definidas, sobretudo negativamente, pela oposição às posições dominantes, acolhem, na fase de “acumulação inicial do
capital simbólico”, artistas muito diferentes por suas origens e disposições. Determinando, assim, que a forte solidariedade afetiva
e a coesão pela negatividade, característica dos outsiders e vanguardeiros, transformem-se em conflito e crise interna, assim que
acontece um reconhecimento externo, cujos lucros simbólicos geralmente vão para uma pequena parte, se não para um só.
No caso dos grafiteiros, porém, as críticas aos integrados e ao próprio sistema dominante da arte sustentam-se em razões consis-
tentes e objetivas, elas almejam o próprio fortalecimento da produção. Negligenciá-las seria promover uma retroatividade para a
produção presente na cidade. Artistas orientados exclusivamente pelo mercado tendem a não contribuir para a manutenção da obra
em seu lugar de origem, bem como para a difusão da produção na parte da sociedade que não frequenta museus e galerias, e, con-
sequentemente, também passam por um distanciamento de experiências significativas que interferem na composição da obra. Desta
forma, Os Gêmeos, justamente porque mantêm e ampliam o espaço ocupado pela sua obra na cidade (principalmente em momentos
próximos de suas exposições nas instituições da arte), são pouco questionados entre os grafiteiros de seu grupo ou “panela”
96
, e
mesmo pelos de fora, por adentrarem o terreno da consagração comercial das galerias.
No entanto, uma das estratégias adotadas pelos grafiteiros, Zezão e Os Gêmeos entre eles, é afirmar-se artista, em detrimento da
identidade de grafiteiro nas ocasiões de estabelecimento de relações com as instituições consagradas da arte. Alegam que o grafite
não goza do mesmo status que a arte em sentido amplo, e que a palavra “grafite” limita as oportunidades de inserção e de valori-
zação da obra. Aqueles que entram nas galerias reclamam que não têm o mesmo status dos outros que não passaram pelo grafite e
resolvem pôr tal identidade de lado para conseguir uma melhor inserção. Não assumem a luta do grafite como arte de mesmo status,
apenas mudam os nomes que atribuem ao que realizam, pois fora desse universo sabem que o grafite sofre resistência. Jogam com
a identidade também quando o assunto é pixação: se passaram por esta prática, ocultam esse passado para facilitar a aceitação.
Apesar de se encontrarem atitudes visando a escamotear a identidade transgressora, ainda existe uma disputa externa ao terreno
do grafite, em busca da consagração para a manifestação no terreno da história da arte e das instituições que a constroem, que,
geralmente, deixa muita coisa de fora do espectro das considerações. Mesmo que esta disputa externa pela consagração não seja
generalizável, está presente tendencialmente entre aqueles que passaram por uma formação universitária, tanto no Brasil como nos
Estados Unidos. Buscando isso, mas sem passar pela formação universitária, Daze (membro da geração de grafiteiros que veio
depois de Basquiat e Keith Haring), em uma palestra proferida por ocasião da exposição “Fabulosas Desordens” (Centro Cultural da
Caixa Econômica Federal, Rio de Janeiro, em março de 2007)
97
, disse que a produção dos autênticos grafiteiros teve de passar por
um caminho mais difícil para inserir-se no mercado da arte contemporânea, pois estes não tinham uma linguagem deglutível para a
mídia, faltavam-lhes os instrumentos adquiridos por Keith Haring, tanto o capital cultural como o social.
CHOQUECULTURAL’, E DE GESTÃO, NO CAMPO DA ARTE
Dentre as instituições de comercialização e consagração do grafite, uma delas ganha destaque pelo sucesso do empreendimento,
trata-se da Galeria Choque Cultural, de propriedade do casal Baixo Ribeiro e Mariana Martins. Advindos de uma relação familiar com
o artista plástico da geração modernista Aldemir Martins [pai de Mariana], tido como intuitivo, e do campo da moda jovem, em
que trabalhavam como estilistas, desenvolveram o projeto da galeria em vistas de eliminar o intermediário da marca de roupa – que
encomendava estampas para os grafiteiros e tatuadores –, para que os artistas pudessem vender suas criações diretamente para o
96
Expressão usada pelos grafiteiros para definir um grupo fechado
que sempre privilegia seus membros, em detrimento da qualidade de
bons artistas que estão fora do grupo.
97
Estivemos presente na referida palestra, portanto, estas são
informações registradas em anotações pessoais.
140
consumidor. Eliminaram um intermediário e criaram o seu espaço nesta lacuna.
Neste empreendimento, vislumbraram um novo público com potencial para o colecionismo, o qual já adquiria mercadorias custo-
mizadas por artistas para colecionar (tênis, camisetas, brinquedos, etc), e uma produção que não participava do mercado da arte
contemporânea, mais hermético e pouco decorativo, segundo eles. Criaram, assim, a galeria que formou tanto os artistas como os
novos colecionadores, os quais estavam ausentes do mercado corrente.
Para Baixo Ribeiro (2008)
98
, o grafite se relaciona com a moda jovem. As primeiras colaborações aconteceram já em 1996, e se
estendem até hoje, fazendo parte da iconografia comportamental de todo jovem metropolitano.
IIndagado sobre as características desta manifestação, seu potencial transformador e suas contribuições para a arte de hoje afirma:
“as revoluções não são feitas por artistas geniais, o que faz acontecer é uma mudança de audiência, de público. A audiência de hoje
é muito restrita. O colecionismo é restrito a uma elite muito pequena, que por natureza consome pouco. Assim não existe espaço
para muitos artistas. Por isto, queremos formar novos colecionadores”. Sua aposta é ainda de que a sua geração de colecionadores/
clientes aumente seu poder aquisitivo e venham a aumentar os lucros da galeria. Ele não possui pudores em relação ao dinheiro,
posiciona-se como comerciante, faz suas exposições no exterior desde que sejam viáveis economicamente e procura galeristas
com o mesmo perfil: não faz exigências quanto ao conteúdo que se vende e se este se corresponde ao de seus artistas. Declarou,
inclusive, que deseja “sucesso e dinheiro” (RIBEIRO, 2008). Não existe demérito nesta posição, afinal Andy Warhol já deixara claro,
a partir da década de 1960 com a Pop Art, de que a arte é um mercado como outros e de que o artista era um homem de negócios.
Deste artista homem de negócios também absorve outra estratégia, a de que a publicidade é mais importante que a crítica: sature a
rede com as informações que seu público virá.
Porém, Baixo não quer qualquer dinheiro, afirma que “não queremos um modelo que privilegie demais a arte como investimento
financeiro. Eu não gosto do modelo da decoração, mas quanto mais é investidor menos a obra esta na parede” (RIBEIRO, 2008). Suas
orientações não se direcionam para marcar época com seus artistas, não oferece garantias de valorização para um agente financeiro
preocupado com o rendimento futuro de seus investimentos na arte. A decoração, por mais que não seja a palavra adequada para se
identificar, torna-se o lugar possível.
Baixo menospreza a importância da formação universitária na construção da trajetória de seus artistas e o conseqüente capital cultu-
ral que agrega. Acredita que “a academia forma um bom teórico e um bom artista conceitual, mas não consegue formar e lidar com
uma artista mais visceral, mais intuitivo. Acreditamos que o artista não vem da escola, quanto mais radical e profundo, mais difícil
de ser enxergado” (RIBEIRO, 2008). Segundo ele, a geração de artistas de sua galeria é “formada pela relação mestre/aprendiz: “a
tatuagem e o grafite são escolas de arte: um ensina o outro” (RIBEIRO, 2008).
Entretanto, este galerista não apresenta como ele direciona seus artistas e sua conseqüente formação. Abdicando de tratar das
questões conceituais presentes na história da arte, resigna-se com a incompreensão dos artistas em relação funcionamento do
campo e das problemáticas vigentes. Assim, a formação que permitiria um posicionamento mais elaborado em relação ao campo é
escamoteada, por mais que ela pudesse ser crítica ao estado das coisas. Consola-se com a possibilidade de atender o mercado que
criou. Focando-se neste lado econômico, orienta seus artistas para que façam telas grandes porque estas são compatíveis com casas
maiores e, conseqüentemente, com clientes mais ricos. Embora não manifeste na entrevista concedida ao pesquisador, objetiva,
sem pudores, o caráter decorativo na arte quando faz a recomendação acima. O argumento do tamanho, todavia, poderia ser pautado
pela consonância em relação à escala do grafite na cidade, mas isto viria apenas se estivesse voltado para a produção do campo dos
grafiteiros – ao qual não se reduz à galeria.
Além desta interferência na produção das obras, também direciona os artistas para que façam exposições apenas com figuras pro-
eminentes, as quais agregariam maior valor simbólico. Este direcionamento contrapõe-se ao caráter notado por ele da importante
relação mestre/discípulo presente no grafite, pois um artista bem posicionado na hierarquia do mercado [um possível professor]
98
Entrevista concedida ao autor em 20 de março de 2008.
141
não poderia estar ao lado de um artista iniciante [aprendiz]. Levando-se com exatidão a orientação de Baixo para o artista não fazer
obras ao lado de artistas menores, fomenta-se o distanciamento de seus companheiros presentes nas ruas. Tal disposição promove
nos artistas representados por ele um apartamento do campo do grafite, convergindo para uma diminuição das obras presentes no
espaço urbano. O artista é forçado a produzir para vender, mais do que para explorar sua criação em consonância com a cidade. Para
o galerista “a presença na rua não é um aspecto definidor, não acho que isto seja nenhum um pouco importante” (RIBEIRO, 2008).
Diante do posicionamento reticente em relação à arte conceitual, Baixo foi indagado sobre a razão de se associar à galeria Fortes
Villaça, representante de artistas deste cunho. Diante deste questionamento, ele manifestou o prestígio que esta lhe legou: “somos
gratos à Fortes porque ela transferiu uma credibilidade muito grande. Os nossos colecionadores foram até eles e os deles vieram até
nós. A garotada comprou. A troca do público foi muito rica, misturamos as gerações e as épocas” (RIBEIRO, 2008). Depois afirmou
que eles não faziam parte da mesma maneira deste gênero conceitual da arte: “A Fortes é a que menos pende para o radicalismo da
arte conceitual. O Vik Muniz, a Beatriz Milhazes e a Adriana Varejão são artistas que emocionam, não são simplesmente conceituais.
Vêm mais do coração do que da cabeça” (RIBEIRO, 2008).
Porém, as contradições do dono da Choque Cultural não se encerram neste fato. Ele emenda no seu discurso que “o pioneirismo
da Choque tem ha ver com um novo modelo de relacionamento da galeria com o artista e com o público. Apresentamos de forma
mais pessoal, muito sem referência. Quem vem na minha galeria não é o perfil tradicional que vai ao cubo branco”. Ele não se deu
conta que a Fortes Vilaça é precisamente um cubo branco e que seus clientes foram até ela. Desta maneira, podemos afirmar que o
seu empreendimento obteve sucesso, mas não necessariamente pelas suas características, e sim pelo prestígio que obteve com a
associação a uma galeria que ocupa o topo da consagração entre as galerias nacionais.
Por sua vez, Alexandre Gabriel (2008)
99
, Diretor Artístico da Galeria Fortes Vilaça, endossou a opinião de Baixo Ribeiro sobre o gra-
fite. Gabriel (2008) acredita que a manifestação do grafite não foi nenhum um pouco relevante em suas escolhas. Estava interessado
em artistas novos, nos quais a transgressão que poderia ser atribuída a eles sequer foi notada. Eram pintores como outros, com
técnicas novas, mas de modo algum associadas a sua experiência com o espaço urbano. No caso dos Gêmeos, a razão fora a mesma
acrescida do fato que estavam em evidência internacionalmente, simplesmente re-importaram os artistas. Alexandre não havia, até
então, sequer reconhecido seus trabalhos presentes na rua. No caso da parceria com a Galeria Choque Cultural, segundo ele, “não
estávamos fazendo uma exposição de um movimento, procuramos realizar uma troca com a galeria” (GABRIEL, 2008).
Estas afirmações das galerias [Fortes Vilaça e Choque Cultural] mostram que a pretensão transgressiva do grafiteiro foi irrelevante.
Os comerciantes destes espaços estavam imbuídos por outras preocupações: puramente comerciais. Segundo Alexandre Gabriel,
Os Gêmeos foram assimilados porque “vinham de uma trajetória grande e importante, mas ninguém teve coragem de fazer o in-
vestimento que fizemos” (GABRIEL, 2008). Para ele, tudo se resume a um investimento financeiro e seu retorno lucrativo. Mesmo
o público portentoso fora visto como um problema, mais do que um mérito para a galeria. O diretor desta instituição afirmou que
seus clientes tiveram que ver as obras em horários especiais, fora do período de visitação, já que a quantidade de pessoas prestando
uma ‘homenagem’ aos artistas atrapalhara seus negócios. E, no “último dia [da exposição] quase [tivemos] que chamar a polícia.
As pessoas me xingavam porque quis fechar a galeria no seu horário de hábito” (GABRIEL, 2008). Para este comerciante, o povo era
interessante apenas na medida em que poderia ser representado pelo trabalho dos Gêmeos. Desta maneira sentenciou: “estamos
num mercado aquecido e aberto ao novo, mas nunca vi uma obra que tenha marcado o “local” como a deles. É muito característico
o que eles produzem, muito ligado a cultura popular, a uma tradição latina de muralismo” (GABRIEL, 2008).
Todavia, estas galerias não estavam interessadas em apresentar o campo da arte e suas problemáticas para estes artistas. No caso
da Fortes Vilaça, o ‘povo’ era necessário desde que fosse apresentado pelo intermédio da pintura, e a palavra grafite não teve a
menor relevância nas escolhas dos artistas que estiveram presentes em suas exposições. Alexandre Gabriel não associou a produção
pictural dos grafiteiros a suas experiências singulares com a cidade, seja na técnica ou na temática. Quando participaram da ARCO
em 2008, por estarem temerosos pela falta de consonância da proposta dos Gêmeos em relação ao suporte e à linguagem vigente,
99
Entrevista concedida ao autor em 18 de março de 2008.
142
resolveram colocá-los numa galeria meramente comercial para realizarem uma exposição de ocasião. No caso da Choque Cultural,
decidiram construir seu mercado alheio ao perfil do colecionador atendido pela Arte Contemporânea. Sendo um público novo, em
construção, não precisavam entrar em concorrência com as demais galerias do mercado, muito menos compreenderem como fun-
cionava o campo da arte do período. Nas duas posições, a tônica comercial domina. Falta-lhes o experimentalismo que a Galeria
Vermelho possui, falta-lhes a generosidade para estudar e acolher outros artistas da produção de grafite, falta-lhes uma orientação
crítica para seus artistas adquirirem parâmetros coesos a fim de se lançarem no debate presente no campo da arte.
Diante deste quadro, o processo se encaminha meramente para comercializar o grafite. E o grafite passa ao largo do que poderia ser
uma tomada de posição em relação ao campo da arte.
Ao mesmo tempo, a possibilidade econômica apresentada por eles foi calorosamente recebida. Os artistas viram nas galerias uma
grande oportunidade de comercializarem suas obras e garantirem sua sustentabilidade. Todo o campo do grafite se mobilizou para
explorar esta alternativa. O mercado se aqueceu, acolheu a produção e, cada vez mais, se expande, demandando a criação dos grafi-
teiros. Conseqüentemente, o próprio campo dos grafiteiros sofreu severas modificações e a participação nos dividendos gerados por
essa porta aberta das galerias tornou-se o alvo principal. A dinâmica dos grupos e das relações entre eles modificou-se. Amigos de
‘longa data’ se afastaram por razões que procedem e outras menos aceitáveis. Uma das centelhas destes conflitos pode ser observa-
do no balde de tinta jogado na intervenção de Zezão, feita no bueiro em frente à Fortes Vilaça, que foi provavelmente derramado por
um grafiteiro que ficara de fora da seleção da Galeria.
Sob estas influências, a presença dos grafites na rua se alterou, dado o aumento da demanda comercial que passou a ocupar maior
tempo na vida daqueles artistas que conseguiram ocupar uma posição no mercado. O trabalho dos grafiteiros também mudou,
tornando-se mais repetitivo quando eram acolhidos pelos colecionadores. Diante desse contexto, uma disputa, que se restringia a
ocupar o espaço urbano, tornou-se mais complexa graças a uma disputa pela ocupação dos espaços legitimados da arte. Sendo
que estes últimos são indiferentes e mesmo negligentes em relação aos méritos legados pelos grafiteiros para aqueles que se con-
sagraram por pintar por toda a cidade. O poder de atuação dos grafiteiros certamente interferiu no universo da arte contemporânea,
porém, ainda não conseguiu interferir nos direcionamentos do mercado da arte e nas escolhas que estes acarretam, muitas vezes em
detrimento da dinâmica da própria produção presente na rua.
GOVERNO: CONTROLE E REPRESSÃO
O governo é um dos atores mais importantes e potentes nas relações estabelecidas pela conquista do espaço urbano por parte
das manifestações do grafite e da pixação. Ele está presente, porém, como relação inescapável e etérea de todo aquele que age
no contexto urbano, não necessariamente definido como sujeito personalizável com quem se estabelece um contrato, ou uma luta
manifesta, mas como um conjunto de leis e dispositivos que regem o controle do território e direcionam nele toda a população.
No caso de São Paulo, ele faz-se notar inicialmente pela ausência de iniciativa para conter a escalada das estatísticas de violência
urbana que assolam invariavelmente as classes mais baixas, ainda que a percepção desse problema e o medo dele decorrente sejam
mais pungentes entre as classes mais altas. Tais características, associadas ao aumento da pobreza, à falta de infra-estrutura urbana
nas periferias e ao crescimento da violência policial, são o pano de fundo das décadas de 80 e 90, quando emergiu com mais ênfase
a produção dos grafiteiros e pixadores da cidade.
Segundo Teresa Caldeira, este período marca a consolidação dos “enclaves fortificados”, espaços privatizados, fechados e mo-
nitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho das elites. “Esses espaços encontram no medo da violência uma das suas
justificativas e vêm atraindo cada vez mais aqueles que preferem abandonar a tradicional esfera pública das ruas para os pobres, os
143
Imagem 104: Zezão, 2006. Exposição “Choque Cultural na Fortes Vilaça”, Galeria Fortes Vilaça, São Paulo, abril
2006. Foto do artista. Intervenção realizada para inauguração da exposição. A tinta de cor vinho foi derramada por
pessoa desconhecida 2 dias antes da abertura.
144
‘marginais’ e os sem-teto” (CALDEIRA, 1997, p. 155). Nesse sentido, os pixadores e grafiteiros ocuparam esse espaço supostamen-
te abandonado: são os aventureiros da metrópole contemporânea, que, à maneira do flâneur, circulam pela cidade e narram suas
transformações. Diferentemente deste personagem pequeno-burguês do século XIX europeu, entretanto, os aventureiros de agora não
possuem a mesma tranquilidade para perder-se pela cidade, nem são majoritariamente da mesma classe social, mas seguem ocu-
pando o espaço público abandonado pelas elites. Assim sendo, oferecem uma resposta à ausência destas últimas da arena pública
da sociedade e à presença nefasta do governo na forma de violência policial.
O túnel da Paulista, ocupado posteriormente por ‘Não’, começou a ser objeto das intervenções nesse período abordado por Caldeira
(1997). Inicialmente, o autor dessas obras da década de 80 também sofreu repressão policial por sua iniciativa, mas, como fruto da
consolidação da manifestação na paisagem urbana, hoje goza de uma autorização do governo (carta concedida pelo Departamento
de Patrimônio Histórico da Prefeitura) para a manutenção de seu trabalho naquele espaço
100
. Rui Amaral, o autor dessas primeiras
intervenções, não tem o perfil dos grafiteiros e pixadores que hoje ocupam a paisagem de São Paulo, mas absorveu as influências de
Alex Vallauri e da formação artística que teve na Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap). Assim, a chegada do grafite à cidade
teve a marca da história acumulada pela expressão na arte contemporânea. Desta maneira, os trabalhos de Rui Amaral aproximam-se
mais das obras de Keith Haring do que do hip hop.
A expressão do grafite só começou a expandir-se por toda a cidade quando sujeitos de outras origens sociais e culturais assumiram
a tarefa transgressiva que o grafite representa. A circulação dos grafiteiros e pixadores e a correspondente inserção no espaço urbano
das gerações posteriores a Rui Amaral
101
têm uma importância muito superior a desses primeiros grafiteiros. Estes se restringiram a
ocupar os bairros de suas classes correspondentes, mais centrais, mais concentrados e menores do que a periferia, lugar de origem
dos atuais autores. Além da menor ocupação do território, enfrentaram condições mais favoráveis para as intervenções, principal-
mente porque a violência policial não opera nos bairros ricos da cidade da forma com que age usualmente nas periferias pobres.
Apesar dessas diferenças, todas as gerações de grafiteiros enfrentaram governos que reprimiram sua expressão. De início, existia
ainda o fantasma dos porões da ditadura militar, onde se praticavam as mais nefastas torturas contra os presos políticos. Como os
policiais herdeiros desta tradição continuavam na ativa, dependendo do conteúdo da intervenção, o risco de seu autor parar nas
câmaras do DOI-Codi (polícia especial dos governos da ditadura) era muito plausível. Depois da anistia aos presos políticos, que
voltaram ao Brasil no início da década de 80, este perigo não era tão real, porém, os governos continuavam autoritários, como foi
o de Jânio Quadros na prefeitura, o qual impôs severas multas aos grafiteiros e apagou as obras anteriormente autorizadas por ele.
Este fato pôde ser observado em 1986, quando um trabalho encomendado como mural permanente para a Marquise do Ibirapuera,
realizado por Maurício Villaça, Hudinilson Junior e Alex Vallauri, foi todo repintado pelo mesmo governo que o encomendara no ano
anterior.
Nenhuma das administrações públicas foi, contudo, capaz de mobilizar aqui dispositivos tão sofisticados quanto os que vigoram
na Europa e nos Estados Unidos. O que foi feito em nosso contexto consistiu em jogar com ações que apoiam, ao mesmo tempo
que reprimem e apagam as expressões dos grafiteiros. No governo da Marta Suplicy (2000 a 2004), houve o Programa Belezura,
que apagou várias obras, e o projeto São Paulo Capital do Grafite, que promoveu painéis por toda a cidade. No atual governo, da
gestão Serra/Kassab (2005 a 2009), ao mesmo tempo em que houve o apoio à pintura do túnel em homenagem aos 100 anos da
Imigração Japonesa, foi lançado o Programa Cidade Limpa, que sistematicamente pinta de cinza todos os grafites presentes nas vias
públicas.
No tocante ao governo, os dispositivos eficazes são observados em função do contexto, nos países em que existe uma grande preo-
cupação com a eficiência dos sistemas de segurança instalados na cidade (mais fortemente arraigados em tempos de caça aos ter-
roristas – ou “às bruxas”). Nesses lugares, as inserções subversivas dos grafites favorecem a percepção da falibilidade da segurança
dos espaços públicos, o que levou o Reino Unido, os Estados Unidos e a França a criarem uma polícia especial para a “caça” aos
grafiteiros. Coibi-los tem como resultado deter a difusão do conhecimento e das práticas de como burlar a segurança, contribuindo
100
O lugar exato que ele ocupa fica ao lado das intervenções de
‘Não’.
101
Esta informação foi concedida pelo artista em entrevista ao autor,
o qual solicitou a Rui Amaral que mostrasse no mapa da cidade
onde estavam suas obras, e depois este mapa foi comparado ao dos
pixadores e dos demais grafiteiros presentes nesta pesquisa.
145
para a uniformização dos padrões de ocupação da paisagem urbana e o combate ao vandalismo.
O grafite contemporâneo surge, entretanto, com força no metrô de Nova York e nas ruas do Harlem. Os trens constituíram um espaço
de intervenção primordial e que faz parte do processo de iniciação do grafiteiro. Porém, tais táticas insidiosas são vistas pelo governo
como uma questão de segurança pública, disciplinamento de vândalos e soberania sobre o espaço público, e, para reprimi-las, a
polícia investiga os estilos e as caligrafias de seus autores, visando a catalogá-los e capturá-los.
No Brasil, não enfrentamos ameaças terroristas, nem tivemos jamais um controle sistemático do espaço público. Desta maneira,
Imagem 105: Rui Amaral, s/d. Grafite no túnel da Avenida Paulista. Fotografia de Rui Amaral. Fonte: MANCO, et. all, 2005, p. 12.
146
embora possa existir esta demanda de monitoramento e coibição de práticas insidiosas, nunca houve por aqui os mesmos investi-
mentos, dispositivos e aparatos de que gozam os países mencionados acima. De todo modo, a supressão dos grafites nunca ocorreu.
Ao contrário, coibi-los apenas sofisticou suas táticas, deixando-as ainda mais insidiosas, e valorizou adicionalmente aqueles que as
exercem nos países em que os espaços são mais ostensivamente vigiados pelos olhos do poder. Atualmente, a repressão influencia
até mesmo a própria rentabilidade dos trabalhos: hoje, o maior valor de venda é de Banksy, artista inglês que nunca revelou sua iden-
tidade oficialmente, chegando a 208.100 libras (aproximadamente 753.000 reais) no dia 13 de janeiro de 2008 (ALBERGE, 2008).
O mais surpreendente é que o trabalho não foi uma tela, e sim um pedaço de muro de uma casa em Bristol, na Inglaterra, pintado de
forma não autorizada. Este aspecto confirma a posição de Foucault segundo a qual o poder se estabelece na relação, tornando a frase
“onde existe poder, existe resistência” (FOUCAULT, 1999, p. 240) eficaz para o entendimento desse jogo que também se apresenta,
embora de forma mais tênue, no Brasil.
ONGS: SERVIDORAS
Por fim, entre os atores envolvidos nos conflitos de onde emergiu a formulação da afirmação “São Paulo é do grafite”, temos as
ONGs, as quais vivem a contradição de se dizerem organizações não governamentais, prestando porém serviços ao governo. Seu
principal objetivo é tornar os sujeitos governáveis por meio de sua própria liberdade, pretendendo conduzir o pixador transgressor à
condição de artista grafiteiro, mais bem integrado à sociedade e realizando painéis autorizados pela municipalidade. Sem respeitar,
todavia, as regras internas ao campo da arte, nem garantir uma entrada plena ali, o que dá a seu projeto o caráter de uma falsa pro-
messa de salvar vidas de um caminho desviante.
Neste sentido, no Brasil, a governamentabilidade
102
é fomentada em grande medida pelas práticas das ONGs, que, ainda que não
tenham a eficácia desejada, contribuem para a formulação dos discursos e das práticas que amenizam a imagem do grafite, em
detrimento da pixação, e constroem processos educativos para tornar dóceis os corpos e as mentes desses jovens artistas. Não
por acaso, a primeira insurgência de ‘Não’ foi contra a ONG Cidade Escola Aprendiz, quando “atropelou” o Beco Escola, e a mais
significativa delas revelou de forma enfática a falibilidade da segurança pública, dada a incompetência policial na abordagem que foi
feita ao final do “atropelo” do túnel da Paulista. O contexto em que vivemos na cidade de São Paulo é, contudo, outro em relação aos
países do Primeiro Mundo. Por mais que exista uma percepção de insegurança entre as classes sociais mais altas, o fator alegado
para a repressão aos grafites e pixações não é a preocupação com o terrorismo, mas a demanda da sociedade brasileira por coerção
ao vândalo e por uma paisagem urbana pasteurizada, aspectos estes que são também demandados pelos cidadãos dos Estados
Unidos ou da Europa, com o adendo do receio ao terrorismo.
Igualmente ao que acontece com os dividendos oferecidos pelas galerias de arte, existem, no entanto, benefícios gerados pelas
ONGs que atraem os grafiteiros. O principal deles é o acesso a tintas para poderem praticar a expressão. Mas também há outros,
de ordem simbólica, como o reconhecimento da positividade da manifestação, para poderem pintar com mais aceitação e menos
repressão. Em alguns casos, eles também buscam a mediação das ONGs para uma inserção no mercado publicitário, que absorveu
o grafite, antes mesmo das galerias, tanto para a utilização em campanhas de apelo ao consumidor jovem, como para a pintura de
outdoors (em momento anterior ao Cidade Limpa, que proibiu esta prática).
Apesar desses benefícios, os grafiteiros também rechaçam a forma com que são abordados pelas ONGs, principalmente quando
estas instituições capitalizam a imagem dos artistas, dizendo que estão promovendo a “inclusão social” ou retirando os jovens do
caminho das drogas. Caso exemplar deu-se com Zezão. Segundo Alves, R. (2004, p. 23), “Zezão sentia-se triste, depressivo e revol-
tado. Usava cada vez mais entorpecentes para tentar esquecer seus problemas e descontava sua ira nos muros”. Foi nessa ocasião
que ele descobriu as galerias subterrâneas e começou a realizar uma espécie de terapia pintando nestes locais. Depois dessas inter-
venções, ele conquistou visibilidade, e, nesse processo, tornou-se arte-educador do Aprendiz. “Quando isso aconteceu, ele já estava
102
Termo formulado por Foucault. Cf. nota 93.
147
recuperado e reestruturado emocionalmente” (ALVES, R., 2004, p. 24). Rubem Alves ainda emenda uma frase dita por Zezão: “Antes
grafite era só ideologia. Hoje, graças ao Aprendiz, é o meu ganha-pão” (ZEZÃO, 2003 apud ALVES, R., 2004, p. 24). O que Rubem
Alves não mencionou é que Zezão ministrou apenas uma oficina na instituição e que o recurso proveniente dela era insuficiente para
cobrir as despesas, ainda que parcas, de seu orçamento mensal. Diante deste quadro, cresceu a revolta de Zezão pelo fato de o autor
da matéria apresentá-lo como usuário de entorpecentes, que mudou de vida pela influência do Aprendiz.
Por essa abordagem, é graças ao gênero de discurso promovido por Rubem Alves (2004) que a instituição consegue captar recursos
na iniciativa privada e nos governos para desenvolver seus projetos e alcançar sua sustentabilidade econômica. Fazem, assim, uso da
filantropia para alterar a imagem de empresas e governos, revestindo-a de ares de fraternidade. Reforçando, por sua vez, a imagem de
carência, em vez de potência, do público atendido por suas ações. No caso dos grafiteiros, inevitavelmente emergiu um sentimento
de revolta contra esse tipo de uso, mas, depois de Zezão e de outros que se emanciparam dos laços com a ONG, surgiram novos
adeptos para seus programas de “inclusão social”.
148
149
A PIXAÇÃO NA BIENAL
INSERÇÕES DIVERSAS DE 2002 A 2008
PREÂMBULO METODOLÓGICO
Contra a pretensão totalizante, Roger Bastide dizia que só podemos iluminar uma das faces de uma escultura, que, por natureza, é
tridimensional. Neste sentido, devemos reconhecer de onde parte nosso olhar, apresentar nossa perspectiva para a enunciação do
que vemos, e assumir nossas possibilidades contingentes. Nossa posição nos restringe, porém dá corpo ao que falamos, revela
nossas motivações e singulariza nosso discurso diante da diversidade de visadas possíveis em relação aos fatos apresentados.
Dessa maneira, esta pesquisa possui um recorte no tempo (1978 a 2008) e no espaço (São Paulo), definido posteriormente ao
momento em que o pesquisador foi tocado pelo objeto apresentado ao longo desta dissertação; tal circunstância deu-se em 2002 e
repetiu-se em 2008. No momento inicial, nem todas as questões estavam claras para o pesquisador, nem eram apresentadas para a
sociedade segundo os desdobramentos recentes que ocorreram na 28ª Bienal Internacional de Artes de São Paulo (de 2008), como
o amplo debate sobre a prisão da pixadora que se estendeu por 54 dias. Ainda em 2002, não se configurava nossa disposição de
realizar uma dissertação de mestrado sobre o assunto (o que veio a ser absorvido para um empreendimento acadêmico a partir de
2006) com a mesma motivação: contribuir com uma investigação sobre o suporte expressivo em que opera um grande número de
jovens, que vão de pixadores a grafiteiros, relacionando estas obras à vida numa metrópole do presente.
O objeto desta pesquisa está diretamente tangenciado por este aspecto. Se a restringíssemos a uma única modalidade, seja o grafite
ou a pixação, perderíamos os sujeitos que transitam pelas duas expressões, absorvendo de cada qual aquilo que lhes é relevante para
a trajetória enquanto artistas pela cidade.
Diante desse interesse, neste trabalho também vigora uma metodologia pouco ortodoxa, que acredita numa interação veemente com
os sujeitos em pesquisa, em vista de conseguir encontrar os atores que detêm um acúmulo maior de informações sobre o campo,
conquistar intimidade e acessar dados restritos. Este benefício construiu-se com base em nossa relação como pesquisador, em nos-
so trabalho na ONG Cidade Escola Aprendiz, de 2001 a 2005. Por esse lugar circulava a geração de artistas objeto deste mestrado.
Em tal ocasião, conhecemos pessoalmente cinco dos seis artistas focados por esta pesquisa, ultrapassando os limites de um contato
puramente profissional e acadêmico. Tornamo-nos amigo de alguns e, fora do espectro do trabalho, contribuímos de forma voluntária
150
na escrita de projetos culturais e exposições que os envolviam.
Nesse sentido, o olhar do pesquisador não é um olhar distanciado dos agentes, nem se situa além deles. É principalmente o olhar
de um narrador que confronta visadas distintas dos agentes e sobre eles. Partilhamos com eles as experiências que estarão regis-
tradas nesta dissertação, pois, como interiorano em São Paulo, passamos a conhecer melhor a cidade depois desse contato. Esta
metodologia, portanto, é resultado de uma posição que não acredita na possibilidade de fazer uma crítica postando-se em um lugar
exterior.
O ponto de partida, quando fomos tocados pelo objeto, ocorreu em 2002, época em que estudávamos Ciências Sociais e realizá-
vamos um estudo etnográfico sobre a pixação paulistana, numa disciplina do curso de Antropologia
103
. Além de interagir com os
pixadores, resolvemos convidá-los para uma visita a uma exposição que abordava o mesmo tema no qual se inseriam as expressões
de tais sujeitos: as “Iconografias Metropolitanas”, título da 25ª Bienal Internacional de São Paulo. Na ocasião, fomos acompanhados
por um colega de curso, que participava do grupo de trabalho da disciplina (Pablo Martins), e por um amigo (Lucas Fretin), que
filmou a visita, com o intuito de realizar um vídeo sobre pixação numa pesquisa de iniciação científica vinculada ao Laboratório de
Antropologia Visual da USP (Lisa).
Por meio desse confronto, o grupo de estudantes observou três interações/fruições distintas: a dos pixadores com as obras da Bienal,
a dos pixadores com a câmara que os filmava, e a da instituição com estes habitantes privilegiados da metrópole. Também enten-
deu que a unidade do sistema dá-se na luta entre os agentes do campo da arte, entre aqueles que estão absorvidos pelas disputas
inscritas naquele lugar e que são reconhecidos como legítimos para empreendê-la. A ação dos pixadores em questão não procurava
inserir-se no campo da arte, diferentemente dos pixadores da 28ª Bienal, em 2008, mas, uma vez acontecendo, os rebatimentos
foram inescapáveis para uma investigação sobre as relações que estes detinham com o campo da arte contemporânea.
PIXADORES NA BIENAL: DA DESPRETENSÃO AO REBATIMENTO INESCAPÁVEL
Perante a ausência do objetivo de marcar presença no mundo da arte, o grupo de pixadores na Bienal de São Paulo de 2002 estava
carente de preparo anterior e visibilidade midiática para levantar o debate. Por sua vez, no caso dos pixadores que invadiram a Bienal
em 2008, houve preparo e convocatória. Já tinham causado furor nas parcelas mais conservadoras da sociedade com ações orques-
tradas em lugares de visibilidade, distribuindo convites impressos e pela Internet, chamando mais pixadores para “atacar” a Bienal.
Tal chamado fora proferido por um membro em evidência – Rafael Augustaitiz, “Pixobomb”. O discurso deste líder e da pixadora
presa – Caroline Piveta, do grupo “Sustos” – afirma que seu objetivo é tratar a pixação como arte, por meio da intervenção na Bienal.
Como resposta a esta iniciativa, a Bienal reservara uma punição exemplar, possível de ser observada no tratamento dado a Caroline,
que completou 54 dias presa no dia 19 de dezembro de 2008.
As interações/fruições observadas no trabalho de Etnografia de 2002 e no ataque de 2008 podem ser sucintamente assim caracteri-
zadas: i) em relação aos pixadores diante das obras da Bienal – estranhamento por uma expressão artística sobre a qual não detêm
os códigos de significação, manifestando, consequentemente, desinteresse pelo incompreendido; ii) em relação aos pixadores e
a câmara – deslumbramento e desejo de visibilidade, foco principal do dia para exibição de suas performances; iii) em relação à
instituição diante dos pixadores: vigilância, recomendações e códigos de conduta para uma interação no espaço.
Ao final do evento de 2002, num desfecho parecido com o que ocorreu com Caroline, os jovens pediram para serem filmados en-
quanto pixavam a torre de ventilação, em frente ao prédio da Bienal, do túnel que existe embaixo do Parque do Ibirapuera, passando
do enquadramento da câmara para um enquadramento policial. No entanto, todos eram menores de idade (o que dificultava os pro-
cedimentos judiciais), estavam acompanhados por estudantes (os quais eram de outra classe social, diferente da dos pixadores, ma-
103
Tal disciplina chama-se “Pesquisa de Campo em Antropologia”,
ministrada pelo professor Vagner Gonçalves da Silva. O curso foi
realizado na FFLCH-USP.
151
joritariamente provenientes da periferia, o que impedia uma atuação violenta da polícia), a gravação não levaria a performance para
o YouTube
104
, e a ação não ocorreu dentro do prédio da Bienal (um patrimônio histórico tombado pelo Conpresp e Condephaat)
105
;
fatos que permitiram sua liberação sem maior alarde e sem a violência corriqueira que sofreriam em outras circunstâncias (se esti-
vessem desacompanhados dos estudantes de classe média, que recebem tratamento diferenciado), nas quais seriam pintados com
seus sprays.
A circunstância histórica foi, todavia, o elemento mais decisivo para esse desfecho aparentemente tranquilo para os pixadores em
2002. Os agentes do campo da arte não haviam sido convocados para o embate, a questão não se tornara pública, e a defesa por
parte da instituição não carecia de envolver maiores energias. Por sua vez, em 2008, no caso de Caroline, a performance dos pixa-
dores ganhara visibilidade anterior, graças às ações empreendidas e orquestradas por Rafael Augustaitiz, o qual armara dois ataques
para pôr em questão a dimensão artística da expressão, bem como os desdobramentos recentes da arte de rua.
Primeiro, este pixador, intitulado “Pixobomb”, fez seu Trabalho de Conclusão de Curso de Artes Plásticas com um bombardeio
106
de
sua faculdade (Centro Universitário Belas Artes), levantando um debate recorrente na sociedade – também proposto pela curadora
da Bienal anterior (27ª), Lisette Lagnado –, segundo o qual a pixação pode ser arte.
107
Como segundo passo, questionou a passagem
do grafite da rua para a galeria, atacando um dos principais locais de comércio desta expressão em São Paulo, a Galeria Choque
Cultural. Por fim, levou a expressão para dentro de um dos templos de consagração da arte contemporânea: a Bienal. Nestas três
instituições – Centro Universitário Belas Artes, Galeria Choque Cultural e Bienal – abarcou os principais espaços de formação, sus-
tentação simbólica e material, legitimação e problematização da arte.
As armas da pixação para enfrentar essa luta, entretanto, não eram legítimas para o jogo da arte contemporânea: vieram de fora do
campo e estavam associadas à violência. Diante deste fato, a resposta foi brutal, foram utilizados todos os mecanismos judiciais para
a punição da Caroline Piveta. E, num requinte de sadismo, ela foi visitada na delegacia por um funcionário da segurança, quando, en-
tão, este lhe desferiu impropérios
108
e fez valer a palavra da curadora Ana Paula Cohen, que havia dito: “Nós sabemos que eles estão
convocando gente da periferia da cidade para fazer isso, e essas pessoas não sabem o que elas vão encontrar” (CYPRIANO, 2008).
Em que medida, contudo, a pixação realizada na Bienal era, ou não era, arte? Ela se aproximaria da performance, modalidade ex-
pressiva utilizada por Maurício Ianês para permanecer nu durante um longo período no mesmo andar das pixações? Lembrando que,
ao tal performer, não se aplica a infração, advinda de seu ato ser caracterizado como obsceno, o que seria cabível, se não estivesse
antes enquadrado como artista. A curadoria da Bienal não havia feito um convite a que fossem apresentadas propostas para o espaço
do segundo andar
109
, intitulado “Planta Livre”? O Jornal da Bienal não fizera uma convocatória para uma conversa tendo o mote de
que “todo o mundo é artista, mas apenas os artistas sabem disso” (Jornal da 28ª Bienal nº 1, 24 de outubro de 2008, p. 22)
110
e que,
“contra todos os impedimentos, o que foi dito deve sempre ser feito”? (Jornal da 28ª Bienal nº 2, 30 de outubro de 2008, p. 22)
111
Enfim, o campo estava aberto para imposturas e impostores, e as ações dos pixadores promoveram um rebatimento da expressão no
campo da arte que ocupou longos debates entre os especialistas.
A educadora Tatiana (formada pelo Centro Universitário Belas Artes, no qual estudou Rafael Augustaitiz), que atendia o público da
28ª Bienal
112
, disse em conversa conosco que os pixadores fizeram uma bonita performance. Em menos de 3 minutos, mais de 20
pessoas saíram pintando o primeiro e o segundo andar da Bienal, pulando as rampas de acesso projetadas por Oscar Niemeyer com
movimentos impressionantes. Depois, escutaram-se vidros quebrados e o público aplaudindo a intervenção. No entanto, Tatiana
incomodou-se com o soco no estômago que a supervisora dos educadores recebeu quando saiu gritando para acionar a segurança.
Seu incômodo, porém, não se restringia aos pixadores. Disse que o tédio imperou ao longo do evento, ainda que este fosse coerente
com a proposta curatorial. Quanto ao público, ele entrava em contato com ela apenas para manifestar o incômodo e reclamar da
Bienal.
No que tange à performance, enquanto modalidade artística, é tida como uma ação inspirada pelo teatro, podendo combinar ele-
104
Site onde são postados vídeos amadores e que recebe grande
visitação.
105
O Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico,
Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) foi criado
pela Lei nº 10.032, de 27 de dezembro de 1985, como um órgão
colegiado de assessoramento cultural ligado à estrutura da Secretaria
Municipal de Cultura, e tem como finalidade deliberar sobre o
tombamento de bens móveis e imóveis, formular diretrizes que visem
à preservação e à valorização dos bens culturais, e fiscalizar o uso
apropriado destes bens, arbitrando e aplicando as sanções previstas
na forma da legislação em vigor. A Lei nº 10.247, de 22.10.1968
criou o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico (Condephaat), cuja finalidade é proteger, valorizar
e divulgar o patrimônio cultural no estado de São Paulo.
106
Nome dado pelos pixadores ao ataque a um espaço com muitos
integrantes.
107
“por que a sociedade considera grafite uma forma de arte e nega
esse status à pichação? ‘Essa discussão é datada’, diz a curadora e
crítica Lisette Lagnado, para quem há tanto pichações interessantes
como grafites horríveis”. Cf. Pioneiro, Juneca age atualmente como
grafiteiro. Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, 30 jun 2003.
108
Esta informação foi obtida em conversa com Rafael Vieira Camargo
Martins, do grupo “Sustos” (no dia 19 de dezembro de 2008), o
qual fez visitas regulares a Caroline Piveta, sua parceira de grupo,
na prisão.
109
Na mesma ocasião em que falava das ameaças dos pixadores, a
curadora Ana Paula Cohen dizia: “O vazio foi mal entendido desde o
início. Com ele, queremos discutir o princípio da arquitetura moderna
no pavilhão e, como ele está aberto, propostas podem surgir”.
(CYPRIANO, 2008 a).
110
Convocatória feita para ocorrer no dia 26 de outubro de 2008, às
16 h na praça do andar térreo do prédio da Bienal.
111
Convocatória feita para ocorrer no dia 1º de novembro de 2008, às
16 h na praça do andar térreo do prédio da Bienal.
112
Esta conversa foi travada numa visita do pesquisador à 28ª Bienal,
em 5 de dezembro de 2008, na véspera do encerramento do evento.
152
mentos da encenação, da música e das artes visuais, na condição de ser transitória e estar relacionada ao tempo e ao espaço em
que ocorre. Por possuir um “roteiro” previamente definido, é passível de ser reproduzida, porém nunca inteiramente, já que está rela-
cionada ao lugar sempre móvel da história. Esta modalidade tem ainda outra limitação: depende da fotografia e do relatório para ser
divulgada a pessoas que não a presenciaram. De modo correlato ao que ocorreu na disciplina cursada por nós, utiliza a antropologia
como um ferramental teórico para suas criações.
A performance surgira entre o final da década de 1960 e o início da de 1970, momento distante da atualidade, mas tinha então como
propósito o mesmo caráter atual encontrado na pixação quando esta atacou a Galeria Choque Cultural: negar o potencial de venda
dos objetos artísticos. Desta forma, ações pertencentes a este contexto dos primórdios forneciam força à expressão, uma vez que a
problemática do campo punha em voga formulações que ofereciam contrapontos aos dogmas da economia capitalista de mercado.
Por sua vez, esse aspecto é pouco presente na contemporaneidade: hoje já é possível comercializar a performance por meio dos
registros em que ela é guardada, e mesmo os pixadores enfrentam uma contradição por venderem as fotos e os vídeos em que fixam
suas ações em imagens. Maurício Ianês, por exemplo, teve o registro de suas performances adquirido pelo Centro Nacional de Arte
e Cultura Georges Pompidou (Paris, França), em cujo acervo foi recentemente incluído, o que garantiu a valorização simbólica e co-
mercial do artista. E, depois da evidência conquistada por sua performance na 28ª Bienal, ele foi beneficiado por muitas solicitações
de aquisição da obra.
Entre os artistas mais controversos da performance, encontra-se o austríaco Rudolf Schwarzkogler. Ele buscou no ritual uma defesa
ou maneira de superar a fragmentação do eu, e, junto de um grupo de acionistas vienenses (grupo formado em 1965 por ele, Otto
Mühl, Hermann Nitsch e Günter Brus), fez uma investida contra o corpo, quebrando normas sociais e tabus visando a chocar o
espectador, para retirá-lo do estado de apatia. Estes sujeitos acreditavam, ainda, que o artista deveria ser um messias que guiaria o
homem para a salvação. Entre as obras vinculadas a este propósito, Schwarzkogler fez uma em especial em que usou a agudeza de
uma mutilação para fazer uma crítica à dissolução do “eu” na sociedade de então. Ele chamou de ritual a própria dissolução de seu
corpo. Segundo o crítico Robert Hughes, ele era o “Vincent Van Gogh da Body Art”, que “procedeu, centímetro por centímetro, à
amputação de seu próprio pênis, enquanto um fotógrafo registrava o ato como evento artístico”
113
(ARCHER, 2005, p. 111).
Tal evento foi posteriormente questionado quanto a sua veracidade, mas o artista de fato encerrara sua vida pouco tempo depois. Não
podemos deixar de notar, entretanto, que o artista não entendeu o significado de passagem ligado ao ritual, não o compreendeu como
marcação de uma mudança na identidade que tinha indissoluvelmente uma conexão com o comum da comunidade e da cultura
que lhe dizia respeito. Por mais que os rituais pudessem envolver mutilações e o sentido de morte de um período da vida, não se
confundiam jamais com o cessar da existência biológica num sentido restritamente individual.
O suicídio, em sociedades tradicionais, poderia ser ritualizado, como ocorre no harakiri dos samurais japoneses, mas os procedi-
mentos e sentidos deste ato eram profundamente detalhados e partilhados pelos seus comuns, conferindo um significado coletivo
de honra a seu praticante, o que não ocorreria se fosse realizado fora dos padrões.
Por outro lado, no caso da pixadora presa, a detenção também fora partilhada por um sentido coletivo de martírio: assim que saiu
da prisão, ela disse que pagara pelas práticas dos pixadores que suscitaram ódio na sociedade
114
. Para si, pagara pelos pecados
dos outros e sentira-se como uma mártir, que fizera, com seu ato, a sociedade escutar todo um segmento de indivíduos intitulados
pixadores. Quem partilhara, porém, da compreensão do sentido da ação de Schwarzkogler? Certamente apenas os artistas de seu
grupo, e os iniciados nos códigos de significação da arte contemporânea, os quais viam na mutilação uma forma de horrorizar para
tocar o espectador comum em relação a outras questões da sociedade em que viviam.
No que tange a essa obra, por mais que a subjetividade seja fragmentada na sociedade contemporânea, não será mediante um ritual,
partilhado apenas por um grupo restrito, que ela será recomposta em sua integridade, muito menos isso vai chocar a sociedade a
ponto de mobilizá-la para mudanças relacionadas às atrocidades cometidas pelos estados em guerra.
113
Esse trabalho foi exposto na Documenta de Kassel, em 1972. A
fotografia da ação, tida como documento incontestável da performance
ocorrida em 1969, deu origem ao maior mito da body art: o da suposta
castração do vienense, realizada enquanto ato artístico. A lenda em
torno do artista - que teria tanto se castrado quanto cometido suicídio
em nome da arte - é, no entanto, completamente falsa. Nem o artista
se suicidara por razões artísticas, nem a automutilação existira, nem
o modelo da foto havia sido Schwarzkogler: o artista simplesmente
montara uma cena (um jovem seminu – o modelo Heinz Cibulka –
com uma bandagem cobrindo um fictício ferimento entre as pernas)
e a fotografou. Observadores da foto exposta na Documenta de 1972,
crendo estar diante do registro verdadeiro de uma castração realmente
ocorrida, encarregaram-se de propagar a história. O artista, porém, é
tido como suicida, vítima de uma depressão que o levou a cair da
janela do apartamento em que habitava. Cf. SILVA, Priscilla Ramos. O
ataque ao corpo na body art. Disponível em http://www.iar.unicamp.
br/extensao/aperfartesvisuais/priscilla01.pdf. Acessado em 12/2008.
A autora é mestranda em Artes do Instituto de Artes da Unicamp e
bolsista da Fapesp.
114
Entrevista realizada por telefone em 24 de dezembro de 2008.
153
O artista mártir, idéia romântica do século XIX, só faz sentido em relações diretas entre o evento e a causa, e a Guerra do Vietnã, foco
das críticas humanistas e artísticas que vigoravam no período, é por demais distante do ato em si dos acionistas vienenses. Van
Gogh também foi um suicida, segundo Antonin Artaud, um “suicidado” pela sociedade e particularmente pelo regime de exceção de
um hospício ao qual foi encerrado pelo doutor Gachet. Ele não teve muitas alternativas, nem estava sob um regime de livre arbítrio,
como Schwarzkogler.
Günter Brus, um dos membros do grupo de acionistas vienenses, realizou uma performance que se aproximou da pixação em seu
efeito, e passou pela criminalização, tal como aquela da qual foi vitima a pixadora da Bienal. Na obra Art and Revolution, realizada na
Universidade de Viena em 1968, despiu-se, feriu-se no peito e nas coxas, urinou e bebeu sua urina, defecou e espalhou suas fezes
pelo corpo, e pôs-se a masturbar-se cantando o Hino Nacional austríaco em um auditório cheio de estudantes. Preso imediatamente
por difamar um símbolo do Estado, Brus teve de exilar-se em Berlim para escapar de uma sentença de seis meses de detenção, sen-
do perdoado pelo governo de seu país apenas dez anos após o ocorrido. Mas estes problemas certamente foram superados graças
ao capital simbólico acumulado por entrar para a história da arte com este ato.
Entre os artistas europeus, porém, Joseph Beuys foi além dos acionistas vienenses, sem mutilar-se ou masturbar-se em público. Ele
fomentou a performance, dando-lhe credibilidade por estreitar sua prática de forma reflexiva em relação às problemáticas legítimas
do campo artístico e da política do período. Associado à performance, vinculava a mesma frase publicada pelo Jornal da Bienal,
dizendo que todos são artistas, mas só os artistas sabem disso (Jornal da Bienal nº, 24 de outubro de 2008). Diferentemente de uma
viagem ao interior e à subjetividade do período, as performances de Beuys estavam interessadas nas associações diretas a questões
das esferas social e política, ele fabricava nelas as condições para chocar a moral vigente. Visava, desta maneira, a reconectar a arte
com a vida num sentido plenamente político, mas, diferentemente dos anteriores, tocava apenas no que a estética e a política pode-
riam partilhar. Na arte, Beuys via um meio de comunicar seus questionamentos acerca das premissas básicas da cultura dominante.
Neste sentido, compreendia que o artista deveria hostilizar a sociedade para mostrar-se comprometido com ela, assim entendia esse
antagonismo, de que Arendt (1981) também falava, no livro A condição humana.
Tais problemáticas artísticas podem também ser observadas na obra Coiote, “Eu gosto da América e a América gosta de mim”
(1974). Nela, Beuys enrolou-se com feltro, um dos principais materiais que caracterizam sua obra, foi transportado de ambulância
diretamente do aeroporto para a galeria de René Block em Nova York, e lá passou cinco dias enclausurado na companhia de um
coiote, voltando ao final pelos mesmos procedimentos com os quais chegou. Esta ocasião foi precedida por um convite, declinado,
para realizar uma obra nos Estados Unidos, e diante deste fato ironizou o país que era o alvo das principais críticas do período, por
ser o algoz na Guerra do Vietnã. Ao final, o artista poderia dizer que não pisou os pés em solo americano, e, ainda assim, fora para
lá representar o papel deste país diante do mundo, mas não precisou, sua obra já dizia tudo.
Beuys preocupava-se com a comunicação de suas questões, e nisto estava distante do rol dos artistas do período, em que os concei-
tos eram propostos para ficar além de sua verificação na obra. Nessa época, sob a égide da arte conceitual, Sol LeWitt dizia, “idéias
em si podem ser uma obra de arte; estão em uma cadeia de desenvolvimento e podem finalmente encontrar alguma forma, [...] [mas]
nem todas as idéias precisam ser concretizadas” (LEWITT, 1969). Este artista dizia ainda que, “na arte conceitual, a idéia ou conceito
é o aspecto mais importante da obra. Quando um artista se utiliza de uma forma conceitual de em arte, isso significa que todas as
decisões e planejamento são feitos de antemão, e a execução é um assunto perfunctório” (WOOD, 2002, p. 38).
Tal sentença põe em evidência a ordem de importância entre a idéia e sua expressão, e neste sentido diminui a relevância da co-
municação numa obra propriamente dita. Diante desse contexto, no que concerne a Beuys, a comunicação é salientada, ficando
manifestado, entre outras coisas, que o artista é o transmissor de uma mensagem, mas nem por isso sua audiência deveria passar
incólume, como mera receptora dentro de uma linguagem banal: ela sempre foi desafiada a entender no que consistia sua arte.
Ainda que seus espectadores sejam excluídos, tendo de observar sua obra do lado de fora da galeria – momento em que Beuys
realizara uma performance na qual dizia que uma lebre morta o entendia melhor do que os homens (Como explicar imagens a uma
154
lebre morta, 1965) –, estes foram absorvidos pelo empreendimento da compreensão de uma arte que surgira com novos códigos de
significação. Mas, para Beuys, não basta passar a mensagem, é necessário que ela seja crítica. Em suas palavras, pensar é esculpir,
e “a escultura deve sempre questionar obstinadamente as premissas básicas da cultura dominante. [...] Somente a arte torna a vida
possível” (ARCHER, 2005, p. 115).
Esse partido crítico, também foi empreendido em São Paulo, mas fora da galeria. O Grupo 3 de Fevereiro realizou uma obra de claro
dissenso, na qual se “questionam representações socioculturais e padrões morais que resultam em discriminação e desvalorização”
(PALLAMIN, 2007, p. 186). Uma das obras que fez essa autora chegar a esta conclusão é Zumbi somos nós. Nela o Grupo 3 de
Fevereiro levou três bandeiras gigantes para serem expostas em três jogos de futebol, um na Copa da Libertadores da América e dois
no Campeonato Brasileiro. Tais frases diziam: “Brasil Negro Salve”, “Onde Estão os Negros?”, e “Zumbi Somos Nós”.
Fruto de uma negociação com as torcidas organizadas de futebol, essa performance levou para os canais de televisão que acom-
panhavam o campeonato e para a massa presente nos estádios frases desconfortáveis, porém urgentes para uma reflexão a respeito
do racismo no país. Se considerarmos a esquiva da pecha de preconceituoso arraigada na cultura brasileira, fruto de uma crença
falaciosa de que vigoraria a igualdade racial no país, as frases do Grupo 3 de fevereiro não atingiriam a sociedade de forma tão
incisiva. A ocasião da exibição destes dizeres, entretanto, fora justamente precedida por um conflito que apresentava o contrário
desta ausência de discriminação. No curso do mesmo campeonato, um jogador estrangeiro (Leandro Desábato, do Quilmes, time
argentino) passara dois dias presos por proferir ofensas racistas a um adversário negro
115
(Grafite, jogador do São Paulo F.C.), e
este fato suscitara pronunciamentos que requisitavam uma condescendência da lei para o contexto do futebol, em que palavras de
baixo escalão e ânimos exaltados eram de praxe.
116
E, da parte da mídia brasileira, o editorial do jornal Folha de S.Paulo dissera
que o jogador argentino estava sofrendo a ação judicial como um bode expiatório, fruto da rivalidade histórica no futebol entre os
brasileiros e os argentinos.
117
Diante desses desdobramentos relacionados à aplicação justa da lei, e da conseqüente reverberação na mídia impressa, que oscilou
entre o elogio e a dúvida sobre a desmedida intensidade da punição, a ação do Grupo 3 de Fevereiro foi absolutamente insidiosa. O
grupo usou a mídia que cobre os espetáculos do futebol, a qual havia apresentado opiniões controversas sobre este assunto, para
veicular uma mensagem, cujo conteúdo tinha um teor contrário, que não estaria presente no debate. Neste sentido, aproximaram-
se dos pixadores que, conhecendo as tomadas da TV na cobertura da Corrida de São Silvestre (realizada na virada do ano pela TV
Globo), realizam suas intervenções em lugares estratégicos para serem veiculadas a contragosto.
No início do ensaio de Pallamin, ela cita uma frase de Merleau-Ponty que condensa muito do significado da performance e das
intervenções que ocorreram em São Paulo: “É verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo”.
Os múltiplos deslocamentos que os artistas fizeram ao longo dos exemplos aqui tratados são, deste modo, uma orientação a nosso
olhar. Acionam de forma incisiva nossa compreensão sobre o que estava velado, fazendo-nos ver por um simples e intenso movi-
mento no espaço numa situação ideal. É, todavia, nos espaços abertos da metrópole que esses movimentos no espaço adquirem o
caráter de “enfrentamento de contradições e interesses conflituosos que neles ocorrem” (PALLAMIN, 2007, p. 186).
Dessa maneira, as ações de pixação, independentemente de serem tratadas como atos performáticos, ocorrem num espaço privi-
legiado para enfrentamentos contra os modos de controle que incidem no meio urbano, e tornam-se elas mesmas dispositivos que
desafiam a pretensão do poder. Uma das máximas que vigoram entre os pixadores é que a melhor intervenção é aquela que garante a
máxima visibilidade na paisagem urbana, com a mínima exposição de seus autores. A que todos veem, mas que ninguém veja quem
fez e de que modo foi feita.
Assim sendo, os atos de Caroline e de Rafael Augustaitiz, por permitirem que seus autores tenham sido vistos, e, ainda, por não
serem mais ágeis que os dispositivos do poder de prontidão para agarrá-los, não conferiu necessariamente consagração dentro de
seu meio de origem, a pixação paulistana. Mas o que foi um demérito para a pixação garantiu um elemento para o enquadramento
da expressão enquanto performance, uma vez que esta requisita o registro para ser reconhecida.
115
Tal fato ocorreu num jogo pela Taça Libertadores da América, em
13 de abril de 2005.
116
Diego Maradona disse: “No calor da partida, qualquer coisa pode
ser dita” (SILVA, C., 2005).
117
Racismo em Campo. Folha de S.Paulo, Editoriais. Sâo Paulo, 15/
abr 2005.
155
Por sua vez, diante desses fatos tratados como arte – o suicídio de Schwarzkogler, o onanismo de Günter Brus, a nudez de Maurício
Ianês, as performances de Beuys e do Grupo 3 de Fevereiro num espaço/tempo crítico e parte deles ter sido tocada pelo dispositivo
jurídico –, vemos, ao mesmo tempo, que não podemos escapar das malhas do poder, mas este poder não pode anular todas as
possibilidades de exercermos certa resistência crítica.
O poder se dá na relação, e a diferença entre os criminalizados e os isentos desta interferência jurídica é a própria habilidade em
manejar o jogo de ataque e de esquiva dos dispositivos punitivos que as instituições possuem. Mas, uma vez acionados, esses
dispositivos também podem servir para aumentar a evidência das questões e propor o debate como uma questão que extravasa o
campo da arte, conectando-a com a política e a sociedade que lhe dizem respeito.
Tais eventos, nos quais a performance se imiscui, são amplos o suficiente para que ela seja entendida como um campo expandido
de possibilidades. Do suicídio à crítica bem aplicada, tudo é considerado arte, desde que nomeado pelo artista e seus críticos,
e validada pelas instituições que compõem o campo. É neste lugar que são estabelecidas as relações e as regras do jogo, entre
aqueles que reconhecem o ponto de vista fundador e com ele concordam, não aceitando que dele façam parte aqueles que não
compreenderem os códigos sociais internos ao campo da produção e as problemáticas que lhes dizem respeito. De modo correlato
a este fator, consideramos que
“o produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que
produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo que a obra
de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é reconhecida, ou seja, socialmente instituída
como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estética necessária para conhecer
e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também
a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra” (BOURDIEU, 2002, p. 259).
Segundo Silva, P. (2007), “o procedimento apropriativo (gesto que atribui valor artístico a um objeto por seu simples deslocamento
para o campo da arte) decreta, irremediavelmente, a possibilidade de transformação de qualquer coisa em arte”. Os pixadores, cons-
cientemente ou não, fizeram tal deslocamento, por mais que na origem e no bojo da expressão não exista o alvo de situar a pixação
enquanto arte.
Passa-se com a pixação o mesmo procedimento apropriativo desenvolvido pelo mundo da arte, não partindo, contudo, a iniciativa
de agentes reconhecidos enquanto artistas pelo campo. O pixador que fez um bombardeio da expressão em sua conclusão de curso
foi expulso por esta atitude. Faltaram a seu autor as prerrogativas requeridas pelo campo da arte, mas, como vemos ao longo desta
dissertação, havia todo um contexto favorável para essa iniciativa, a qual ainda está em litígio, o que pode fazer dela um ato perfor-
mático vinculado à história da arte recente, fruto de iniciantes transgressivos da tradição instalada no momento.
Entre 2002 e 2006, como sintoma de uma iniciativa em gestação, surgiram obras que envolveram alguns aspectos relacionados à
pixação ocorrendo dentro da Bienal. Na primeira ocasião, em 2002, na 25ª Bienal, os pixadores apagaram todas as inscrições que
havia numa sala reservada aos visitantes, para ali deixarem uma marca de suas passagens pelo evento, e o fizeram de forma mais en-
fática, com letras garrafais. Em 2004, na 26ª Bienal, Diego Salvador, sob o codinome “Não”, interferiu numa obra dos artistas Jorge
Pardo e Mike Nelson, mas estes não pediram punição para o pixador. Em 2006, na 27ª Bienal, a curadoria selecionou três artistas: o
pixador Ateu, que na ocasião se apresentava como Marcelo Cidade, o qual fez três obras dentro da linguagem e das problemáticas da
arte contemporânea; a turca Esra Ersen, que ofereceu jaquetas para os pixadores postarem suas frases; e ainda uma obra de cunho
histórico, com a inclusão de Gordon Matta-Clark, um dos primeiros artistas a trabalharem com os grafiteiros, tidos como próximos
dos pixadores, proximidade que já mostramos ao longo da dissertação. Em 2008, no entanto, a iniciativa “deu à luz”, e a pixação
apresentou-se integralmente, com a linguagem plástica e a atitude transgressiva que lhe dizem respeito, e sem o intermédio de outro
artista ou com um nome referendado pelo campo da arte.
Nessa intervenção de 2008, vemos ainda que a história não se cansa de repetir-se, neste caso com uma frase recorrentemente pixada
156
durante o período em que o Brasil era governado por militares: “Abaixo a ditadura!” Tal frase pode parecer anacrônica para o conjunto
da sociedade, pois não vivemos mais sob este regime, porém, para os mais pobres existe um aspecto da ditadura que permanece:
a ausência do habeas corpus que libertaria a pixadora da prisão em menos tempo, como ocorreu no caso de Daniel Dantas
118
, que
possuía bons advogados a seu serviço. Neste sentido, a frase “abaixo a ditadura”, embora paradoxal, é de extrema pertinência para
esses indivíduos. Falou-se na mesma língua, mas não foram ouvidas tais vozes, revelando-se um diálogo de surdos, por ter-se
tratado, nesse exemplo, de linguagens distintas. A dos pixadores que não reconhece o ponto de vista fundador, e não considera a
questão da ditadura superada, e a do campo da arte, que requisitava a semântica e os procedimentos vigentes na arte contemporânea
para estabelecer o debate sobre a expressão.
Coadunada com essa incompatibilidade de linguagens expressivas fora também a interação entre a monitoria da Bienal e os pixado-
res em sua 25ª edição. Naquela experiência, o que era uma “explosão da vida” para Spencer Tunick (autor da obra em que se via uma
multidão inerte e nua) lembrava um assassínio em massa, como ocorrera no Carandiru, para o pixador Tico, que, por sua vez, teve o
irmão assassinado por ser adicto de drogas. Na linguagem empreendida pela monitoria, a posição apresentada era a do artista.
Essas posições opostas a respeito da obra, antes de manifestarem incompatibilidade de sentimentos e sensações, tratam de uma
distinta formação cultural dos indivíduos, os quais enunciaram coisas diferentes por possuírem bagagens irreconciliáveis, as quais
criam, cada qual à sua maneira, as disposições de espírito e os significados possíveis de serem atribuídos a uma obra de arte.
Para a arte conceitual, todavia, a problemática da linguagem não era um aspecto relegado a segundo plano. Seus artistas e defensores
absorveram a obra de Ferdinand de Saussure, importante teórico da linguística, por intermédio dos conceitos de Roland Barthes (no
qual também se inspirou Lisette Lagnado para fazer a curadoria da 27ª Bienal) relacionados à semiologia e semiótica. Segundo Paul
Wood, “a terminologia de ‘significantes’ e ‘significados’, ‘signos’, semiótica tornou-se a língua franca do debate cultural” (WOOD,
2002, p. 52). Como efeito disso, Wood afirma que é necessário reconhecer que a arte não é simplesmente um sistema independente
de significação, que ela é tributária de uma prática social, e “a gama de possíveis significados a sua disposição em qualquer tempo
e período é circunscrita por um contexto histórico” (WOOD, 2002, p. 15). E isto já tem história! Em 1963, um ensaio publicado na
revista Anthology, do grupo Fluxus, nos diz: “uma vez que ‘os conceitos’ são estritamente vinculados à linguagem, a arte conceitual
é um tipo de arte na qual o material é a linguagem” (Henry Flynt apud WOOD, 2002, p. 8).
Este dado implica a necessidade de formação dos espectadores para a fruição de obras de arte de cunho eminentemente conceitual.
O conhecimento do “estado da arte” do campo é que torna os sujeitos aptos a reconhecer as contribuições dos artistas para o univer-
so da arte. Desta maneira, não é de estranhar que os pixadores tenham passado ao largo da compreensão dos significados das obras,
mesmo que estas não sejam vinculadas à arte conceitual, como a foto de Tunick, e, consequentemente, das práticas relacionadas
aos modos de ser e estar na 25ª e na 28ª Bienal.
No que concerne à 27ª Bienal, vemos novamente um embate de linguagens e percursos formativos. Ainda que esta exposição tenha
incluído no catálogo do evento de um texto de Teresa Caldeira sobre a pixação, o qual se deteve sobre os chamados “enclaves fortifi-
cados”, subvertidos pelos praticantes, e tenha apresentado obras envolvendo a expressão, o procedimento curatorial, de apropriar-se
da prática, privilegiou intermediários (Esra Ersen) e agentes que dominam a linguagem que vigora na arte contemporânea, como é o
caso de Ateu (Marcelo Cidade), o qual se formou na Faap.
Assim sendo, o foco foi apresentar o pixo num suporte expressivo deglutível pelo meio, embora feito de forma ilegítima e fora dos pa-
drões aceitáveis e compreensíveis pelos pixadores. Neste sentido, a finalidade da inclusão foi a mesma que pode ter um pesquisador
acadêmico enclausurado nos muros da cidade erudita, neste caso, uma curadora apresentando-a para o campo da arte contemporâ-
nea, e levando a seus leitores uma apreensão de seu objeto. Este objeto, porém, nem sempre absorve o que foi dito sobre ele.
Mas esse hábito não era de estranhar, em se tratando da instituição Bienal. Ela é desde o princípio uma organização da elite cultural
e econômica brasileira. Ao longo dos jornais da 28ª edição, foi apresentada parte significativa de seus patronos e mentores, em
118
Daniel Dantas foi preso por crimes de lavagem de dinheiro e
corrupção, mas ficou apenas 3 dias preso, contra os 54 da pixadora.
Este fato foi lembrado pelo ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, na 11ª Conferência Nacional dos
Direitos Humanos. Cf. Ministro cita Dantas ao criticar prisão de
pixadora. Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano. São Paulo, 16 dez
2008.
157
várias épocas: Ciccillo Matarazzo (1898-1977), industrial de um dos mais importantes conglomerados do país (fundou o Museu de
Arte Moderna e da Bienal, e ainda o Teatro Brasileiro de Comédia, fomentou a criação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, foi
comissário do Brasil na Bienal de Veneza, e possui o título de doutor honoris causa concedido pela USP); Mário Pedrosa (1900-81),
diretor artístico da 6ª edição da Bienal (filho de família de latifundiários de Pernambuco e crítico de arte de renome internacional);
Maria Martins (1900-1973), escultora e fundadora da instituição (filha de político mineiro, casada com diplomata, amante de Marcel
Duchamp, afilhada de Euclides da Cunha, amiga de Clarice Lispector, Gilberto Freyre e André Breton); Yolanda Penteado (1903-
1983), grande articuladora para o financiamento da Bienal, do MAM-SP e do Masp (filha de família quatrocentona paulista, acostu-
mada a ambientes aristocráticos, foi casada com o industrial Ciccillo Matarazzo e, ainda, amiga de Henry Moore, Brancusi, Léger e
Di Cavalcanti); Lourival Gomes Machado (1918-1967), diretor artístico da 1ª Bienal (professor de Ciências Políticas da FFLCH-USP,
e de História da Arte da FAU-USP, da qual foi diretor, foi também diretor de Assuntos Culturais da Unesco em 1962, e atuou como
crítico de arte nos principais jornais do país, tendo sido amigo de Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Décio de Almeida Prado
e Paulo Emílio de Salles Gomes, formando com eles o grupo da revista Clima e convivendo num dos principais círculos intelectuais
brasileiros).
Hoje, talvez não haja patronos desse quilate, nem mesmo curadores com prerrogativas acadêmicas e artísticas comparáveis a essas,
mas o ambiente deliberativo da instituição continua nas mãos e nos hábitos instalados por esses predecessores, e a inclusão deles
no jornal da 28ª Bienal serve para informar a herança que carrega a instituição.
No entanto, o mote desse evento não focava apenas essa elite e sua corte. De 2004 em diante a Bienal tornara-se gratuita, objeti-
vando aumentar a visitação. Esta era uma dupla exigência, primeiramente dos patrocinadores, que, além de abaterem o dinheiro que
empenhavam no evento por renúncia fiscal, gostam de ver suas marcas associadas a um empreendimento cultural, requisitando uma
popularização do evento a serviço da publicidade. Em segundo lugar, o próprio meio da arte estava mobilizado para a democratização
do acesso à arte contemporânea, passando a defender a gratuidade. Fora este dado de caráter explícito, também se instalara uma
problemática no campo da arte na qual a temática do social assumira posição de destaque. Neste sentido, depois do sucesso da 26ª
Bienal (“Território Livre”, 2004), que obteve recorde de público, com a cifra de 917 mil visitantes, em 2006 a 27ª Bienal, denomi-
nada “Como Viver Junto”, tendo a curadoria de Lisette Lagnado, incluiu uma obra que se evadira do espaço da Bienal, para ser vista
na periferia da cidade. Tratava-se do site specific do Jardim Miriam Arte Clube (Jamac), empreendimento coletivo entre uma artista
consagrada – Monica Naddor (presente na 17ª e na 21ª Bienal) – e os habitantes desse bairro, com altos índices de violência.
Este avanço na inclusão de novos públicos não partiu, porém, da iniciativa da elite presente na Bienal. Entre muitos apelos, o mais
incisivo foi o da obra “Vazadores”, de Rubens Mano, na 25ª edição (2002). O artista simplesmente abriu uma porta, no andar térreo,
que poderia ser atravessada pelos visitantes sem terem de pagar o ingresso de R$ 12. Tal obra causou um entrevero com a diretoria
da instituição, que visualizava nela a evasão da renda esperada para um evento de alto custo (R$ 18 milhões). Assim, primeiro a
porta foi vigiada por um segurança, impedindo o sentido original da obra ao controlar o número de passantes, depois foi monitorada
por câmaras que exerciam sobre o vigia o mesmo papel dele diante do público, e, por fim, o artista achou de bom tom retirar sua
participação do evento (ANTENORE, 2002, b).
Apesar das dificuldades, foi um elemento decisivo para levantar o debate sobre a abertura das portas aos grupos sociais que não
estavam familiarizados com as linguagens e discussões presentes na Bienal, e muito menos tinham como pagar para participar. Entre
as reportagens que cobriram o evento, a primeira de Armando Antenore teve destaque como a mais ousada (ANTENORE, 2002, a).
Auxiliado pela legitimidade conferida pelo campo da arte contemporânea, pôde levar sua discussão para várias esferas da sociedade
com uma linguagem passível de compreensão dentro e fora do espectro das instituições da arte.
O efeito irradiador da obra “Vazadores” é difícil de ser determinado com precisão, pois ela não é citada pelas curadorias subsequen-
tes como motivo para a abertura das portas da Bienal, e as forças que agiram neste sentido foram diversas, mas diante desta inclusão
de novos públicos que se seguiu, ela certamente foi visionária. Abrir, contudo, as portas não é tudo, e a 28ª edição amargou um
158
público inferior ao obtido nas três últimas edições
119
, e foi tida como “naufragada” pelo jornalista Fabio Cypriano (2008 b).
Desta maneira, abrir as portas poderia ser uma questão datada, se associada simplesmente à obra do artista, e por si só não garantiu
a grande presença de público almejada pelos patrocinadores. Por outro lado, os curadores ficaram surpresos com o público, pois
supuseram que a Bienal seria rejeitada, mas, nas conversas com os educadores e nos debates, perceberam o contrário. Segundo
eles, o projeto foi acolhido como uma proposta que apresentava uma passagem no tempo com produções dentro dos novos pa-
radigmas, as quais diziam respeito a este instantâneo da metrópole, e os conflitos são adjacentes a esta característica, ainda mais
dentro de uma instituição com forte poder de influência e consagração. O enfrentamento era apenas fruto da insatisfação de sujeitos
deslocados na hierarquia da produção.
Diante desse quadro, a pixação realizou um confronto ao estabelecido, mas, em vez de o evento acolhê-la com o propósito de verifi-
car sua proposta ousada, resolveu desconsiderá-la, até mesmo enquanto pixação. No momento em que a curadora Ana Paula Cohen
avisa que a instituição estava preparada para o ataque dos pixadores, diz que na pixação não se intervém sobre o trabalho alheio, em
outras palavras, não se “atropela”. Faltara-lhe o manejo feliz sobre o imponderável da performance.
Esse desdobramento infeliz da 28ª Bienal mostra, de outro lado, o domínio do tempo e do espaço adquirido por Rubens Mano, que,
como artista e arquiteto, soube se inscrever e se retirar nas ocasiões em que suas questões fariam pleno sentido. Tal inteligência não
se projetou apenas nessa obra. Sob a curadoria de Ivo Mesquita, criou a obra “Contemplação Suspensa” na Pinacoteca do Estado.
Nela, anteriormente à abertura da 28ª Bienal, que no eixo curatorial
120
objetivava promover uma reflexão crítica sobre a instituição
(CYPRIANO, 2008)
121
, pôs o público numa passarela suspensa no alto do octógono do prédio, de modo que este pudesse observar
o edifício da Pinacoteca numa posição privilegiada, e, neste deslocamento do lugar do visitante, o dispôs numa perspectiva crítica
na qual era obrigado a olhar as exposições de cima e com uma visão ampla do espaço. Ainda que sobre um lugar instável e sem a
demanda de uma crítica institucional, nas palavras do curador, esta obra “coloca em xeque o papel mesmo do museu como o lugar
privilegiado da arte e do conhecimento” (MANO, 2008). Um vídeo também integrava a obra: logo abaixo da passarela o visitante po-
deria ver uma tomada aérea contínua da cidade de São Paulo com 1 hora de duração. Este era outro desafio, o de abarcar a extensão
da cidade sob um ponto de vista inacessível para a maioria: em São Paulo, cidade que agrega a terceira maior frota de helicópteros
do mundo, não existe uma perspectiva profunda sem este recurso. Esta obra ainda esteve presente na 28ª Bienal, garantindo um
instantâneo da metrópole pretendido pela curadoria. Para os pixadores, esta visão de cima, mesmo que parcial, na cobertura de um
edifício, é uma sensação almejada, garante paz, silêncio e momentos só deles. Caroline diz que tudo o que eles querem, de lá de
cima, eles conseguem enxergar.
122
Diante desses dois exemplos, dos “Vazadores” e da “Contemplação suspensa”, Mano pôs em obra o que Ivo Mesquita e Ana Paula
Cohen precisaram de um grande evento para mostrar. Se compararmos os efeitos das duas iniciativas, a do artista e a do curador,
também perceberemos que o volume de capital investido não é proporcional ao ganho simbólico.
O efeito da ação dos pixadores também remete a essa mesma incongruência presente em buscar equivalência na transmutação do
capital econômico em capital simbólico. Os pixadores foram tidos como os grandes críticos da Bienal apenas com latas de spray de
R$ 14, e os mentores da última edição almejavam, chegar ao mesmo resultado, no formato de intelectuais e especialistas em debate
ou obras persuasivas sobre a desmaterialização da arte. Mas os curadores preferiram perceber os pixadores como criminosos, sendo
ainda menos habilidosos nas estratégias políticas, figurando na história como aqueles que não souberam tomar o melhor partido
nesta ocorrência, revelando ademais, em consonância com a diretoria, a indisposição em assimilar essa manifestação enquanto
arte.
O curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff, ao ver a pixação, ficou na dúvida se era “estratégia de marketing ou efetiva proposta de
política cultural” (HERKENHOFF, 2008). Depois emendou: “O que Caroline está contribuindo socialmente agora é [com] introduzir
um debate na pasmaceira institucional” (Ibidem). Ao final, disse:
119
Cf. A decadência da Bienal. Folha de S.Paulo, Caderno Ilustrada.
São Paulo, 15 dez 2008.
120
Marcelo Resende, editor chefe do Jornal da Bienal, apresenta a
proposta da edição: “Há crise na democracia, no sistema financeiro
internacional, na moral, na cultura ocidental, na religião, nas
metrópoles, na crítica ou nos recursos ambientais. E há a crise do
circuito de grandes exposições de arte – que se multiplicam a cada
instante, alterando a relação entre artistas, mercado e instituições.
Nessa crise, as bienais sofrem por não entenderem mais a que
servem (são mais de 200, distribuídas em várias partes do planeta)
ou, o lado mais dramático da questão, a quem servem, criando um
regime no qual toda a energia se dirige apenas para uma estratégia
de sobrevivência. A 28ª Bienal de São Paulo – ‘em vivo contato’ –,
sob a curadoria de Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen, pertence a esse
cenário, realiza-se sob esse mesmo contexto. Mas, ao mesmo tempo
em que o integra, coloca-se também na posição de observador e
agente” (Jornal da Bienal nº 1, 24 de outubro de 2008, p. 3).
121
O crítico de arte Paulo Sérgio Duarte, no artigo “Uma Bienal Diet”,
publicado na revista Trópico, afirma que “sabe-se que o partido da
28ª Bienal não foi determinado por um tema do curador, mas por uma
crise institucional de fundo moral e, em decorrência desta, a crise
financeira”. Disponível no site http://p.php.uol.com.br/tropico/html/
textos/3037,1.shl. Acessado em junho de 2009.
122
Informação obtida em entrevista realizada em 16 de janeiro de
2009.
159
“Se o vazio fosse de fato o espaço aberto para discutir a instituição, essa extraordinária grafitagem teria sido
incorporada ao projeto ético e político da 28ª Bienal. A grafitagem já é um dos fatores mais marcantes desta
edição. Com mais repressão, deixará de ser um problema de excessivo rigor penitenciário para se tornar uma
questão para estudos éticos curatoriais e debates estéticos. Se a Fundação Bienal de São Paulo não se cuidar, a
conclusão a que se poderá chegar é a de que o principal problema da Bienal é a 28ª Bienal e a estrutura política
que a sustentou”. (Ibidem)
Diante da autoridade que esse curador da Bienal da Antropofagia exerce no campo da arte, ficam evidentes os prejuízos simbólicos
dos atuais empreendedores do evento.
Por sua vez, no caso dos pixadores, o investimento não foi pequeno: Rafael Augustaitiz perdeu o diploma de curso superior, no caso
do ataque ao Centro Universitário Belas Artes, que lhe conferiria melhores oportunidades de trabalho; Carol dispôs-se a correr o
risco de passar pela prisão e ficar maculada pela presença de antecedentes criminais, repelidos pelos possíveis empregos. No en-
tanto, uma aposta alta e de grandes riscos confere maior lucro em caso de sucesso no final do jogo. Ao terem recusado seu projeto
artístico, tiveram que aumentar a aposta, na certeza de deterem as melhores cartas. Entre elas, uma que surge na sorte oferecida pela
imprensa, como o artigo de Paulo Herkenhoff.
Fica desvelada, nessa relação, a regra segundo a qual quem cria o criador é o campo da arte. O curador faz aqui o papel que foi do
marchand, como descobridor, como criador do criador. Esta autoridade de conferir status de arte à pixação também não está isenta
dos riscos do próprio jogo em que se embrenhou o artista. Ela seria ineficiente, se não fosse fruto de investimentos passados na
constituição do crédito da autoridade, consequência de visualização do futuro de obras de arte que acumularam valor simbólico e
econômico. Caso ela não se constitua enquanto tal, o prejuízo é certo, mas Paulo não está sozinho no campo, nem se posicionou
primeiro. Este crédito está inserido num conjunto de agentes que constituem relações tanto mais preciosas quanto maior for o crédito
de que eles próprios se beneficiam. Para Bourdieu,
“quem faz as reputações não é a influência de fulano ou sicrano, esta ou aquela instituição, nem sequer o
conjunto do que, às vezes, se chama ‘personalidades do mundo das artes e das letras’, mas o campo da
produção como sistema de relações objetivas entre esses agentes ou instituições e espaço das lutas pelo
monopólio do poder de consagração em que, continuamente, se engendram o valor das obras e a crença neste
valor” (BOURDIEU, 2006, p. 25).
O que faltou à curadoria da Bienal foi jogar com malícia no lugar de consagração que ocupavam. Quanto maior é a posição ocupada
na hierarquia do campo, maior é o assédio, a favor e contra, as suas decisões.
Esta dissertação apresentou o funcionamento complexo da pixação e do grafite, e seu rebatimento inescapável no campo da arte,
um processo que vem se desenrolando num período de longa duração (30 anos), e não se apresentou por meio dos modelos das
vanguardas artísticas, com manifestos e rupturas abruptas. Apresentamos o jogo que eles empreendem na cidade e nos espaços
subjacentes da arte. Para Jacques Rancière, a modernidade foi caracterizada por uma revolução estética que promoveu a glória de
qualquer um, a transformação da técnica surgiu para dar conta desta mudança. Com este propósito, foram revogadas as antigas
hierarquias na escala de importância da representação, tornando o banal algo digno de ser notado, para além dos reis que faziam a
história e apareciam nas pinturas. Hoje qualquer um pode ser artista, e tudo pode ser arte, depois que a década de 1960 expandiu o
campo, mas este implícito do discurso não se verificou quando a Bienal, ainda que inspirada nesse período, exigiu um conjunto de
procedimentos e linguagens particulares para esses pixadores anônimos adentrarem o jogo. Nada mais legítimo, se o discurso não
pretendesse estabelecer o contrário. Não por acaso, surgiu a dúvida, naqueles que são reputados na elite da arte contemporânea, de
que o caso da pixadora poderia ser coisa tramada pela instituição.
Em consonância com Rancière, T. J. Clark diz que o processo do modernismo revolucionou por responder a essa inclusão dos
mais pobres nesse cenário, situando, como marco inicial disso, a procissão do quadro “Marat assassinado” (Jacques-Luis David,
160
1793), a qual reverenciava um mártir da liberdade, l’ami du peuple, e possibilitava uma ligação entre os de baixo, “povo”, e os de
cima, “jacobinos”, com objetivos claramente políticos. Nas palavras do autor, “a categoria Povo tinha de ter alguma coisa que a
simbolizasse” (CLARK, 2007, p. 117). Marat agregava esta possibilidade: logo após sua morte 29 cidades e aldeias haviam adotado
o nome do santo mártir, e nelas até mesmo as igrejas retiravam do altar os crucifixos para colocar imagens dele. Neste período, no
bairro que foi habitado pelos engendradores do impressionismo no final do século XIX, o nome “Montmartre” foi substituído por
“Mont-Marat”. O marco nesse caso constituiu-se porque, na fatura do quadro, houve mudanças para dar conta da representação do
popular, e, em sua exposição, a arte fora arrancada dos palácios da Monarquia. Agora, na pixação, o popular quer ser autor, criador
da própria obra, e não apenas tema.
Mas a saída adotada pela Bienal, diante da intencionalidade artística dos pixadores, foi a esquiva. No número do Jornal da Bienal que
sucedeu ao ataque, apoiados num argumento de autoridade de Jean-Luc Godard (RESENDE, 2008, p. 3), responsáveis pela institui-
ção posicionaram-se dizendo que era impossível falar em nome do outro, que poderiam falar sobre o autoritarismo da ação, ou da
adesão ingênua, mas preferiam seguir andando com as incontáveis atividades que inundariam o evento. No entanto, não chamaram
esse outro para falar em nome próprio, senão na delegacia de polícia. Os “homens infames” dos séculos XVII e XVIII também eram
atingidos por esse recurso. Por meio das cartas régias com pedidos de prisão, passavam a existir, ao serem acionados, os dispo-
sitivos do poder. Nelas surgiam palavras grandiloquentes do escrivão régio, dirigiam-se à Majestade para se fazer justiça contra as
infâmias da gente miúda. Evocavam assim o despotismo do monarca absoluto como se fosse um serviço público. Neste processo de
cumplicidade, eram amarrados e seduzidos por um poder execrável, que serviria para coibir as vilanias, mas também para estender
as malhas da violência supostamente legítima sobre uma região cotidiana insignificante. Como efeito, o prejuízo atingindo ambas as
partes, o povo perdeu autonomia na gestão da vida coletiva, e a interferência régia tornou-se ainda mais temida e detestável. No final
do século XVIII, esse ódio voltou-se contra a sacralização divina que existia no entorno do monarca, veio a Revolução na qual Marat
teve um papel de destaque por assumir o lado do povo, e a liberdade foi imposta de tal maneira, que passou-se a dizer “antes morrer
de pé do que viver de joelhos”. No caso da pixação, os efeitos do acionamento do poder, ainda que imponderáveis, também podem
causar revoltas. Se a Bienal reconhecia a máxima de Michel Foucault, de que há “uma indignidade em falar pelos outros”, errou na
escolha dos interlocutores para estabelecer essa escuta do outro.
Imagem 106: Maurício Ianês, 2008. “Sem Título – A Bondade
de Estranhos”. Performance. 28ª Bienal Internacional de São Paulo,
2008.
Imagem 108: Marcelo Cidade,
2006. “Fogo Amigo”. Bloqueador
de sinal de celular. 27ª Bienal
Internacional de Artes, São Paulo.
Imagem 109: Marcelo Cidade, 2006. Câmeras de vigilância
de papel. 27ª Bienal Internacional de Arte, São Paulo, 2006.
Imagem 107: Marcelo Cidade, 2006. “Escadinha na Bienal”. 27ª Bienal Internacional
de Arte, São Paulo.
Imagens das obras de Marcelo Cidade, cedidas pela Galeria Vermelho.
161
Imagem 112: Ataque dos pixadores a Galeria Choque Cultural. Foto de Choque Fotos.
Imagem 111: Ataque dos Pixadores à 28ª Bienal. Pixação do grupo Sustos do qual faz parte Caroline
Pivetta da Mota.
Imagem 110: Ataque dos pixadores à Faculdade Belas Artes.
Imagem 113: Esra Ersen, 2006. “Reabilitação”. Jaquetas de couro com inscrições de pixadores.
Foto do autor.
162
163
CONCLUSÃO
Esta pesquisa vive um dilema de cunho metodológico não superado ao longo da dissertação: trata de um período longo da história
da arte (aproximadamente 30 anos) que não foi suficientemente abarcado em seu âmbito. Ainda que insuficientemente, porém, não
pudemos furtar-nos a ele, por entender que o grafite e a pixação são parte integrante de sua abrangência. Estas manifestações não
podem ser entendidas como um devir imanente, nem serem deslocadas do campo da arte no qual rebatem inescapavelmente. O
dilema expande-se porque foi analisado um fenômeno dinâmico, que a cada dia lança novos acontecimentos que põem por terra as
afirmações anteriores. Desta maneira, dificultam um encerramento conclusivo. No recorte da New School (focada pela pesquisa),
com exceção de um artista falecido, todos participam dos jogos do campo da arte. Embrenharam-se nele apaixonadamente.
No livro de Fiódor Dostoiévski Memórias do subsolo encontramos um personagem que se assemelha à condição contemporânea dos
artistas tratados nesta pesquisa, pela intensidade com que se expressa. Este personagem é um homem imaginário, que na primeira
parte do livro tece considerações sobre as condições do meio em que veio a aparecer. Nela ele se apresenta, explica os fundamentos
para sua existência, seus pensamentos acerca do mundo, da ciência e da realidade em que viveu. E, na segunda parte, relata as suas
memórias. Ao final da primeira parte, diz que a neve molha lá fora, e é para lá que ele vai, não importa que esteja num ambiente
inóspito. Na passagem da primeira para a segunda, ele escreve:
“Estou certo de que a nossa gente de subsolo deve ser mantida à rédea curta. Uma pessoa assim é capaz de
ficar sentada em silêncio durante quarenta anos, mas, quando abre uma passagem e sai para a luz, fica falando,
falando, falando...” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 50)
Os artistas de que tratamos são esses sujeitos que ficaram durante longo tempo reclusos em regiões da importância de um subsolo
no mundo da arte, mantidos “à rédea curta” nos espaços que lhes eram reservados. Quando houve oportunidade para se expandirem
em regiões de maior rendimento simbólico, ocuparam todos os lugares oferecidos, e não pararam de pintar. Portanto, novos dados
serão lançados no jogo.
No que tange aos museus, galerias e instituições culturais que prestaram recentemente atenção nestes artistas, houve uma corrida
164
para alcançá-los. Depois de tanto tempo sem serem notados, enquanto ocupavam a paisagem urbana, seria vergonhoso mantê-los
na marginalidade do campo da arte. Organismos do comércio da arte paulatinamente perceberam seu potencial de venda, ainda que
influenciados por uma rede internacional de galerias que chegaram antes neste mercado. Faltaram, porém, os críticos de plantão à
cata de fatos novos. Neste sentido, os artistas pintaram sem reticências, com o dinheiro que suas obras renderam eles ganharam a
oportunidade de dedicar-se exclusivamente à arte. Com a ausência de reflexão sobre a produção, puderam fazer o que bem enten-
deram. Como dito por Baudrillard, a expressão é um espaço aberto que permite desenvolver conteúdos diversos. A ausência crítica
favorece a que a expressão se democratize e se difunda.
A cidade, por sua vez, permaneceu coadjuvante. Forneceu seus espaços quando ninguém prestava atenção neles, foi divulgadora
dos trabalhos, e ganhou painéis que compõem a paisagem urbana depois que um grupo seleto caiu nas graças do poder governa-
mental da municipalidade. Na opinião do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, foi um jogo maroto do prefeito, que usou o anticorpo
da “doença” representada por grafite e pixação, os quais cobriam a cidade sem obstáculos consistentes, para produzir sua vacina.
Em poucas palavras: escolheu alguns e continuou a apagar os demais. Os próprios grafiteiros fazem da cidade uma coadjuvante: em
suas fotos pessoais de registros dos trabalhos, raramente a cidade aparece com sua dimensão e escala. Salvo algumas exceções,
como o grafiteiro da Old School Herbert/Cobal e Zezão, da New School, apropriam-se pouco da possibilidade de estabelecer uma
relação dialógica com a paisagem urbana.
No que tange à dissertação, ela começa pelas memórias dos acontecimentos na manifestação do grafite. Diferentemente de uma
ficção, ela trata de sujeitos reais, e procurou organizá-los no campo da arte concomitantemente à narração que fez de suas ações.
Primeiro, identifica o artista considerado pioneiro que não poderia ser tratado enquanto tal, quando levamos em conta o nomos
fundador da expressão. Alex Vallauri pode ser um grande artista, mas não um grande grafiteiro. Como, entretanto, o jogo da arte nem
sempre é pautado por argumentos embasados em análises criteriosas, por seu grupo possuir um capital social e cultural relevante,
num momento em que recebia homenagens após sua morte precoce, o dia 27 de março, data em que faleceu, foi escolhido para ser
alçado a Dia do Grafite. O aspecto mórbido sempre foi suficientemente explorado entre os artistas considerados grafiteiros, sendo
o caso de Basquiat apenas o mais evidente. E as galerias de arte, como um dos agentes desse processo, sempre souberam fazer
render esses fatos.
Em seguida, o texto debruçou-se sobre as gerações mais sintonizadas com os elementos fundantes: localizavam-se em Nova York,
na manifestação do hip hop. E aí encontramos um culto ao gênio por vaidade. Os artistas, como os mágicos, não revelam seus tru-
ques de ilusionismo, e, como os sacerdotes, consideram-se privilegiados por uma ligação com o espiritual, mas não podem, pelas
dificuldades que, com técnica e artifícios, conseguem vencer, ser entendidos distintamente dos engenheiros e outros profissionais
do mundo do trabalho. O que realizam é fruto de uma atividade contínua, colocando peça sobre peça, para chegar a um sistema bem
construído. O que faz com que os consideremos gênios é a vaidade humana, que diz: ali não podemos chegar.
No entanto, no mercado da arte, algumas galerias acolhem de muito bom grado os trabalhos que tenham algo único e exclusivo,
que possam ser comercializados de modo restrito por seu estabelecimento. Tais comportamentos fazem com que situemos numa
hierarquia de valores econômicos obras que nem sempre são distintas quanto à qualidade. Quando observamos os demais artistas
dessa geração engendradora da manifestação do grafite, podemos reconhecer que os eleitos não deveriam ser apenas uma dupla.
Muitos outros partilham com eles os mesmos méritos. Alguns nas temáticas, outros no estilo, e todos no desenho.
Os Gêmeos têm uma carreira privilegiada em relação a seus contemporâneos, e só ocuparam a fachada da Tate porque foram au-
xiliados pelas conexões que estabeleceram ao longo da trajetória. Antes desta etapa de maior rendimento simbólico, fizeram uma
exposição para a Nike em Milão, associada, no entanto, ao lançamento de um tênis customizado pela dupla. Este evento foi auxiliado
pela FNazca (agência de publicidade da Nike e de propriedade do grupo Saatchi and Saatchi). Coincidências à parte, este conglo-
merado empresarial é também proprietário da Tate, e possui seu braço financeiro do outro lado do rio Tamisa em Londres, bem em
frente ao painel realizados pelos Gêmeos.
165
A ausência da análise das ligações subjacentes que determinados artistas usufruem contribui nessa mistificação generalizada: a
rede de sociabilidade, os capitais que mobilizam, as assessorias profissionais, os lugares pelos quais passaram e as portas que se
abriram pelas relações anteriores são dados que participam da construção da trajetória de cada grafiteiro. A construção da crença
dos agentes em valores simbólicos de cada obra também participa deste aspecto: quem possui poder de dizer e ser considerado
como enunciador pertinente, onde ele se localiza no campo da arte e por que sua palavra assume ascendência sobre os demais. Para
infortúnio da expressão do grafite, quem tem fiadores para construir a crença nos artistas e nos valores que agregam é principalmente
quem os comercializa, relegando boa parte da produção ao espaço de que nunca saíram: a margem. Pois assim detém os preços que
pratica e o deixa assinalado o caráter de “gênio” para seus escolhidos.
O êxito da Galeria Fortes Vilaça na comercialização dos Gêmeos é o exemplo cabal desse processo. Na Feira SP Arte de 2009, os
valores alcançados por suas obras superaram os de obrasrealizadas por artistas consagrados na história da arte brasileira. Um de
seus quadros vendidos chegou ao montante de 80 mil dólares, e uma instalação na forma de uma cabeça foi comercializada por 140
mil dólares. Enquanto isto, em 29 de maio de 2009, o jornal Folha de S.Paulo noticiava que a arte brasileira batia recordes em leilões
da casa Christie’s de Nova York. Entre os notáveis, Mira Schendel, com a obra “Sem Título”, chegara a 52,5 mil dólares, e Hélio
Oiticica, com a pintura “Metasquema 19”, de 1957-1958, havia obtido o preço de 186,5 mil dólares. Dados os currículos desiguais
entre estes artistas e Os Gêmeos, e o preço equiparado, vê-se que teremos um fenômeno de vendas como fora o de Basquiat para
o caso norte-americano. Em breve, talvez existam por aqui casos como o que ocorreu com Banksy na Inglaterra, quando a parede
de uma casa foi vendida por um preço superior a ela, em função da intervenção do artista. Dado que abundam grafites dos Gêmeos
em casas modestas do bairro do Cambuci, região generosa na quantidade de cortiços, e de onde eles recolhem a temática popular
presente em suas obras, esta pode ser uma boa oportunidade de negócios a serviço também da especulação urbana do território...
Feitas as apresentações da história do grafite paulistano, encontramos uma nova geração crescendo em terreno fértil: a New School.
Uma organização não-governamental entra em campo para treinar os atletas. Oferece tintas com fartura, arranja trabalhos para os
grafiteiros – ou jobs, na linguagem publicitária –, legaliza espaços da cidade para pintarem grandes painéis, reúne os expoentes da
expressão e transforma a Vila Madalena numa galeria a céu aberto. Nada mais generoso. No entanto, os grafiteiros sentem-se des-
prestigiados na partilha dos rendimentos econômicos e simbólicos gerados pelas ações da ONG. Perceberam que, se permaneces-
sem por muito tempo nesse lugar, continuariam como o “público alvo” da “inclusão social”, mas não conquistariam a emancipação
e o reconhecimento de sua qualidade de artistas significativos para o campo da arte.
Participantes da geração New School, de um primeiro desdobramento que distanciou o grafite do gênero do hip hop, passaram para
outros que tornaram as obras abstratas e coletivas. Houve artistas que assimilaram a experiência gerada pela pixação de forma abran-
gente, transformando o pixador num protótipo do artista ideal para o século atual. Eles, mais do que quaisquer outros, abarcaram
a escala da metrópole em suas atividades expressivas. Diante da inserção deste grupo de grafiteiros nas galerias, foi o pixador que
manteve a coerência com o nomos engendrador do grafite, associado à transgressão.
Os artistas que compõem essa geração, como ocorreu na anterior, também ocupam espaços tremendamente desiguais. No recorte
da pesquisa, visualizamos diversas trajetórias: a de um grafiteiro, emblematicamente nomeado “Sujo”, que exerceu a profissão de fa-
xineiro e chegou ao posto de vendedor em loja de tinta spray; a de um grafiteiro que absorveu a linguagem da tatuagem e permaneceu
fora das galerias (ainda que tenha sido a referência principal de sua geração); a de um artista que superou distância, mas padeceu
no auge da trajetória percorrida; a de um artista erudito que não obteve o espaço merecido, por trabalhar no suporte e na linguagem
desprestigiada por sua época; e a do artista que conquistou sucesso fruto da visibilidade que ocupou. A análise de cada artista,
todavia, não é completa, apenas oferece um ensejo para futuros projetos investigatórios. Este conjunto também não abarca todas as
possibilidades do campo, mas explora suas regiões limítrofes. Neste sentido, é um guia que revela as possibilidades instaladas no
campo. Aponta erros e acertos, e atacou as condições perversas de funcionamento do mercado da arte.
Nesse grupo da New School analisamos detidamente Boleta e Zezão: os precursores do gênero abstrato do grafite. E a forma singular
166
com que exploraram novos espaços e suportes da metrópole. Vimos, também, a opinião ferina de Paulo Mendes da Rocha, que apre-
senta a ambivalência dos grafiteiros, entre a manifestação positiva do desastre urbano e a cooptação das galerias. Salutarmente, a
galeria que expôs parte desta geração em Nova York (Jonathan Levine) é a mesma que vende o artista que foi o símbolo da campanha
de Barack Obama para a Presidência dos EUA: Shepard Fairey.
A cidade nesse capítulo apareceu como meio de onde os artistas recolheram suas inspirações, e em todos eles vemos como a obra
está diretamente conectada com a realidade de onde é proveniente. Diferentemente, porém, do narrador das memórias no livro de
Dostoiévski, a realidade não é fruto de um capítulo específico detido numa etapa metafísica da arte: ela simplesmente emerge na obra
dos artistas. Desta maneira, esses sujeitos são testemunhas de seu tempo, da cultura em que estão inseridos, e dos comportamentos
possíveis de estabelecer-se numa metrópole como São Paulo. Por eles, entendemos que a cidade seduziu os brasileiros e os trouxe
para cá em condições desumanas de exploração do trabalho, promoveu comportamentos melancólicos, deixou vidas marcadas
pela desilusão, cabendo aos artistas sublimar suas angústias na expressão artística. Nada de novo no percurso, em se tratando das
metrópoles modernas.
Coerentemente com o encerramento do discurso, os dois capítulos finais fizeram um registro analítico das lutas travadas no campo
da arte: primeiro, entre os grafiteiros, o governo da municipalidade, as galerias e as ONGs; depois, entre os pixadores e a Bienal.
Em relação ao capítulo “São Paulo é do grafite?”, visualizamos como os artistas operam suas disposições e tomadas de posição no
campo da arte. Os Gêmeos não possuem a mesma força expressiva que Basquiat, mas diferentemente dele não abandonaram a rua
abruptamente, mantendo-a como atividade paralela. Os primeiros não levaram em consideração as problemáticas da arte do período.
O segundo agiu restritamente segundo os seus princípios e ainda tratou de temáticas importantes para seu período. A luta dos negros
na sociedade americana foi uma delas. Os primeiros, no máximo, fazem críticas às condições sociais do período, mas não tocam nas
questões políticas de forma incisiva. Suas temáticas são simplesmente oriundas da cultura popular.
Como contraponto, neste capítulo esboçamos o contraste dos Gêmeos com Marcelo Cidade, um artista que também absorveu a
experiência fornecida pelas intervenções urbanas, mas a utilizou num suporte legitimado e em evidência no campo da arte con-
temporânea. Marcelo, porém, é também repleto de contradições: diz que seu trabalho não decora salas, mas a obra, que se tratava
de uma câmara fotográfica digital com arquivos de imagens de pixações, encontra-se numa. Além disso, tratava-se de uma casa
do arquiteto modernista Gregori Warchavchik, a obra estava inscrita numa linda sala com móveis de design. Locada por Benjamin
Seroussi, proprietário da obra, e Facundo Guerra, idealizador e ex-proprietário do Vegas (importante endereço da noite, voltado para
os descolados na Rua Augusta). Facundo, por sua vez, acredita que tal obra é um engodo, mas seu colocatário, filho de uma família
de marchands e galeristas parisienses, reconhece que o valor não está no potencial decorativo, e sim no potencial de venda de tal
mercadoria.
A trajetória de Marcelo Cidade é tangenciada igualmente por um acúmulo ímpar no campo da arte contemporânea. Ele é proveniente
de um laboratório de experimentações – a Galeria Vermelho – em que existe ampla liberdade para suas criações. Tal fator permitiu
que a apropriação da pixação fosse realizada numa linguagem e problemática hegemônica na região da consagração institucional. Na
Arco 2008, sintomaticamente, ocupou um lugar de maior prestígio simbólico que Os Gêmeos.
Quando nos formulamos a questão “São Paulo é do grafite?”, evidenciamos outra: o que os grafiteiros fizeram do espaço público?
Uma privatização para publicização? Tais perguntas não foram respondidas pela dissertação, mas tendem a confirmar a suspeita de
que os grafiteiros buscam o espaço urbano principalmente como lugar de divulgação. Ainda que haja um discurso de que querem
democratizar a arte usando o suporte da cidade, muitos deles abandonaram sua presença no espaço público ou a diminuíram sig-
nificativamente, assim que entraram nas galerias de arte. Neste aspecto, tanto a geração Old School como a New School são muito
parecidas.
No capítulo derradeiro, encontramos as sucessivas investidas dos pixadores na Bienal. Diferentemente do grafite, sua inserção no
Imagem 114: Foto do cartaz desenvolvido por Shepard Fairey
emoldurado e sendo alocado na National Portrait Gallery, do Museu
Smithsonian. A obra de Fairey ficará ao lado dos retratos de JFK, por
Elaine de Kooning, Richard Nixon, por Norman Rockwell, e George
Washington, por Gilbert Stuart.
Imagem 115: Marcelo Cidade, 2008. “Espaço entre”. Portas de
metal e grafite. ARCO 2008, Madri, Espanha. Imagem cedida pela
Galeria Vermelho.
167
circuito institucionalizado da arte não foi mediada por convites ou cooptações. Rafael Augustaitiz – “Pixobomb”, para os pixadores –
fez uso elaborado das problemáticas presentes na arte contemporânea para formular uma intervenção que rendeu um debate extenso,
passando pelo campo jurídico e por pronunciamentos do ministro da Cultura e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos do
governo federal, para, enfim, reverberar no campo da arte.
As ações pensadas e articuladas por ele, diferentemente das da maioria dos praticantes da pixação e do grafite, foram rigorosamente
refletidas – assumem neste sentido uma coerência implícita com a arte conceitual. Os rebatimentos de suas performances, todavia,
não revelam uniformidade nem conciliação, mas principalmente polêmica. Os discursos produzidos com base nelas acaloraram todo
o campo da arte, de tal forma que a 28ª Bienal Internacional de Artes obteve mais mídia para noticiar o escândalo gerado pela inter-
venção dos pixadores do que para tratar de seus conceitos e artistas. A intitulada “Bienal do Vazio”, marcada por amargar um público
pífio, conquistou visibilidade por um erro crasso: não saber conduzir um conflito e ser mandante de uma prisão que se estendeu por
54 dias, superando em tempo qualquer outra detenção de um pixador.
Entre partidários e críticos, talvez quem faça render economicamente tal fato seja uma galeria. Antes da intervenção na Bienal,
os pixadores realizaram um ataque à Galeria Choque Cultural, e esta, por sua vez, depois de anunciar o prejuízo de 15 mil reais e
denunciar seus autores na delegacia, cogitou agora, vender as obras, aparentemente depredadas, pelo dobro do preço, em função
desse adereço transgressivo
123
. Esta é apenas uma suposição, que provavelmente não poderá ser verificada, mas o funcionamento
do mercado da arte é suficientemente ardiloso para promover qualquer coisa à condição de arte. Desde que um artista vendeu merda
enlatada a peso de ouro, para criticar a própria mercantilização da arte, tudo pode acontecer. A obra citada, a propósito, já faz parte
de uma coleção particular.
Os pixadores, de seu lado, também fizeram render simbolicamente esta intervenção e obtiveram êxito. Recentemente, o pixador
Djan, do famoso grupo “Cripta”, que realizou o registro em vídeo da intervenção da pixação na Bienal, foi convidado para integrar
a exposição “Né dans la Rue: Graffiti” (7 de julho a 29 de novembro de 2009) na Fundação Cartier, em Paris. Local que já expôs
Adriana Varejão (em 2005, no Ano da França no Brasil) e Beatriz Milhazes (em exibição atualmente, em junho de 2009), artistas
representadas pela Galeria Fortes Vilaça. Para este evento, a curadoria escolheu os vídeos de Djan, e lhe foi requisitado fazer uma
intervenção nos muros do prédio e na sala da presidência. Por um infortúnio do destino, ele não consegue retirar seu passaporte
justamente porque não cumpriu uma pena de serviços comunitários a que foi condenado por realizar suas pixações. O sucesso de
Djan é a verificação do efeito positivo do escândalo, por mais que ele não possa recolher inteiramente os frutos de sua colheita. Con-
siderando que a Galeria Fortes Vilaça foi um agente determinante para seus artistas conquistarem esta oportunidade, e a Fundação
Cartier é uma instituição relevante para a consagração dos artistas, Djan deu um salto gigantesco, saindo do completo anonimato
diretamente para uma exposição que abarca a história internacional do grafite. Desta maneira, associa a pixação ao grafite, levando
em conta o nomos fundador da expressão.
O conflito move o mundo, e as intervenções urbanas também. A unidade do sistema dá-se na luta, e, quanto maior for a intensidade
dos enfrentamentos contra as manifestações presentes na paisagem urbana, seja o grafite ou a pixação, maior será a visibilidade
gerada para as expressões. A mesma observação vale internamente aos grupos, entre os agentes das obras. As brigas, as disputas
ferinas e cheias de injúrias são produtivas para ambos os lados. Na pixação, as circunstâncias que conferem consagração passaram
da quantidade para a qualidade, vale dizer, a dificuldade, justamente quando a repressão aumentou. Subiram as paredes a serem
escaladas, até chegarem aos arranha-céus influenciados pelas dificuldades ao rés do chão. E agora já sabem que a mídia irá, afoita-
mente, cobrir o evento, preocupada que está com o escândalo.
Depois que grafite e pixação saíram do subsolo, da margem do campo da arte onde eram mantidos “à rédea curta”, ninguém mais
obtém êxito na tentativa de emudecê-los. Considerando que vieram como expressão da cultura popular de uma metrópole do Terceiro
Mundo, podem dizer hoje que são autores, e não simplesmente tema, aspecto que havia se verificado até então na história da arte
ocidental.
Imagem 116: Piero Manzoni, 1961. “Merde d’artiste
n. 20”. Metal, papel e fezes; 4,8 x 6,5. Coleção particular,
Milão. Fonte: WOOD, 2002, p. 21.
123
Informação obtida em uma conversa informal, em que o interlocu-
tor solicitou sigilo do nome.
168
169
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Marcelo Cidade, artista plástico. Entrevista concedida em 28 de março de 2008.
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