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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
TECENDO VIDAS
Cultura e Trabalho das Rendeiras da Prainha de Aquiraz-Ce
Terezinha Bandeira Pimentel Drumond
Fortaleza
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
TECENDO VIDAS
Cultura e Trabalho das Rendeiras da Prainha de Aquiraz-Ce
Terezinha Bandeira Pimentel Drumond
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Ceara UFC,
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em História Social.
FORTALEZA
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
Prof. Dr. Almir Leal de Oliveira – UFC
(Orientador)
_____________________________________
Profª. Dra. Maria Barbosa Dias – UECE
(Membro)
_________________________________
Prof. Dr. Eurípedes Antonio Funes – UFC
(Membro)
FICHA CATALOGRÁFICA
D859t Drumond, Terezinha Bandeira Pimentel.
Tecendo Vidas: cultura e trabalho das rendeiras da Prainha de
Aquiraz-Ce / Terezinha Bandeira Pimentel Drumond. – 2006.
175p. : il. ; 30cm
Dissertação (mestrado) em História Social. Universidade Federal do
Ceará. Fortaleza, 2006. Almir Leal de Oliveira (orientador).
1. Rendeiras e rendeiras Aquiraz (Ce). 2. Renda de bilros
Aquiraz (Ce). I. Universidade federal do Ceará. Mestrado em História
Social. II. Oliveira, Almir Leal de. III. Título.
RESUMO
A presente dissertação analisa a construção, em 1979 do Centro das Rendeiras da
Prainha em Aquiraz-Ce, ressaltando a importância deste fato para a organização e
profissionalização das artesãs da comunidade. Privilegiando as técnicas da
oralidade, somados à investigação da documentação institucional da Associação
das Rendeiras da Prainha, este estudo procurou destacar as culturas tradicionais
da renda de bilros e da pesca como atividades complementares para a
sobrevivência e manutenção das famílias locais. Por fim, o estudo evidencia as
ações políticas das rendeiras na perspectiva da cultura associativa, bem como suas
práticas na criação e manutenção do espaço de trabalho; algo possível,
considerando-se a delimitação do objeto de pesquisa, por meio da produção
historiográfica dedicada à história social do trabalho.
Palavras-chave: cultura, trabalho, artesanato, mulher
ABSTRACT
The present dissertation analyses the construction, in 1979, of the “Centro das
Rendeiras da Prainha” (community located at Aquiraz, Ceará, Brazil), and
emphasizes this fact as a landmark of the local craftwomen’s organization and
professionalization. Focusing on oral techniques, added to the investigation of some
institutional documentation of the “Associação das Rendeiras da Prainha”, this
research aimed to highlight traditional cultures (such as “renda de bilros” and
fishing) as complementary activities to local families’ survival and maintenance.
Finally, this study evidences the rendeiras’ political action in the perspective of
associative culture, as well as their practices in the creation and maintenance of
their place of work; something that is possible once considering the limitation of the
object of study, through historiographic production dedicated to the social history of
labour.
Key words: culture, labour, handicraft, women
SUMÁRIO
Agradecimentos.......................................................................................................I
Introdução – A Imagem da Prainha na imagem da memória.............................03
CAPÍTULO I – PRAINHA DE AQUIRAZ: A HISTÓRIA E SEUS SUJEITOS.........15
1.1 Um Tema para a História...................................................................................15
1.2 Memórias, Imagens e Narrativas da Prainha....................................................19
1.3 Quem São e o que Fazem as Rendeiras da Prainha.........................................36
1.4 Renda de Bilros:Trabalho, Cultura e Tradição...................................................51
CAPÍTULO II – CENTRO DAS RENDEIRAS: TRABALHO E COTIDIANO DAS
RENDEIRAS DA PRINHA........................................................66
2.1 Políticas Públicas e Trabalho Artesanal no Brasil.............................................66
2.1.1 II PLAMEG – atuação das políticas públicas no Ceará...............,............72
2.1.2 A construção do Centro das Rendeiras da Prainha..................................76
2.2 Modo de Vida, Cultura e Trabalho no Centro das Rendeiras............................85
2.2.1 Organização do trabalho: o que mudou?...................................................89
2.2.2Renda de Bilros:de expressão cultural à condição de
mercadoria..................................................................................................97
CAPÍTULO III – TECENDO VIDAS........................................................................108
3.1 Associação das Rendeiras da Prainha: Experiência Social e Organização do
Trabalho............................................................................................................108
Consideração Finais.......................................................................................... .141
Fontes...................................................................................................................146
Bibliografia............................................................................................................157
Agradecimentos
“Tem muita coisa pra contar”. Foi assim que uma das rendeiras
entrevistadas me recepcionou na tarde de terça-feira, do dia 18 de fevereiro de
2003, embaixo de um dos quiosques do Centro das Rendeiras da Prainha, em
Aquiraz. De certo, as páginas de uma dissertação não seriam suficientes para
comportar todas as “muitas coisas” do universo de vida e trabalho das rendeiras e
dos pescadores daquela comunidade.
Várias pessoas contribuíram direta e indiretamente para a realização
deste estudo, outras acreditaram e torceram. Agradecer, sem esquecer nomes, é
tarefa delicada. Aos possíveis e prováveis esquecimentos, próprios da memória,
deixo aqui minhas desculpas.
Agradeço, em primeiro lugar, às rendeiras e aos pescadores que me
concederam entrevistas, pelo carinho, paciência, atenção, interesse e respeito a
este trabalho;
Ao poeta “Amor”, pelos momentos agradáveis e pelas tapiocas
servidas enquanto ouvia e degustava a Prainha através de seus versos;
À rendeira Zenaide Moisés de Sousa, presidente do Centro das
Rendeiras da Prainha (2001-2003), que me possibilitou o aceso à documentação
da Associação das Rendeiras, fontes valiosas e imprescindíveis ao processo de
construção desta narrativa;
Ao Prof. Dr. Almir Leal de Oliveira, orientador, que desde meu
ingresso no Bacharelado em História da Universidade Federal do Ceará acreditou e
incentivou a realização desse trabalho. Obrigada pelas conversas, leituras,
observações, sempre atentas a me conduzir ao foco da questão;
Registro e agradeço o apoio financeiro da Fundação Cearense de
Apoio à Pesquisa - FUNCAP, mediante concessão de bolsa de estudo;
Aos professores Eurípedes Funes e Frank Ribard, pelas sugestões,
indicações e leitura crítica durante o exame de qualificação;
A Rodrigo Alves Ribeiro, pernambucano amigo, companheiro, sempre
presente no percurso e nos percalços mais difíceis desta dissertação. Ao amigo
Rodrigo, obrigada pelo apoio e generosidade em me disponibilizar seu tempo, em
compartilhar das visitas ao Centro das Rendeiras e pelas conversas e reflexões
sobre trabalho, cultura, direitos, deveres e perspectivas das mulheres
trabalhadoras;
À Vilaní Mano, pela amizade sólida, pelos momentos festivos, pela
pessoa alegre e generosa, e por acreditar, incentivar e revisar o texto concluso;
A Moacir Ribeiro, amigo prestativo da Imprensa Universitária, bom
ouvinte e companheiro das taças de vinho na hora da descontração;
Aos professores do mestrado em História Social da UFC que, entre
leituras e reflexões, contribuíram significativamente para o meu crescimento e
amadurecimento acadêmicos;
E também aos colegas do curso Eduardo, Lindercy, Tácito, Egberto,
Emília, Soraia, Camilo, Túlio, Iure, Vagner, Isac e Fábio, pelo convívio e amizade;
À Mônica, pela leitura e incentivo, no início desta pesquisa;
À Regina Jucá, pela paciência em ouvir e pela presteza nos
procedimentos burocráticos;
Aos funcionários da Biblioteca Pública Meneses Pimentel e do Núcleo
de Documentação Cultural - NUDOC da Universidade Federal do Ceará UFC,
que, cientes da importância da busca documental, forneceram informações e
facilitaram aceso a livros e fontes.
Agradeço e dedico esse trabalho:
Ao meu marido Edílson, pela paciência, compreensão,
companheirismo e ajuda nas horas de tensão e ausências.
Aos meus filhos:
Edílson Filho, pela atitude adulta e compreensiva durante o período
em qual este trabalho foi realizado;
Rômulo, pelas palavras de consolo e carinho nas horas confusas;
Felipe, pela resignação durante minhas ausências e por me fazer
sentir o AMOR em todos os momentos da vida.
INTRODUÇÃO
A IMAGEM DA PRAINHA NA IMAGEM DA MEMÓRIA
obras que nos mostram a sala de visita da História, com seus retratos
emoldurados na parede, os móveis de estilo e um belo arranjo para ser
visto. Mas há pesquisas que vão aos fundos da casa, às cozinhas e oficinas,
que esgaravatam os terrenos baldios onde se lançam detritos, àqueles
lugares onde se movem as figuras menores e furtivas.
1
A Prainha da cada de 1970, apresentada na imagem do arquiteto
Nearco Barroso
2
, compõe o quadro que analisa, especula e sugere reconstruir por
intermédio das imagens a memória de algumas cidades do Ceará, com suas
construções e monumentos, vistos pelo artista como imprescindíveis à história do
seu povo.
A imagem, construída pelo traçado firme das linhas do autor, sugere
possibilidades de interpretações, propõe reflexões acerca da modernidade e das
transformações percebidas nos diferentes tipos de construções apresentadas por
ele. Evidencia, também, o princípio da descaracterização do modo de vida de uma
vila de pescadores e rendeiras.
As dumas presentes e silenciosas, o mar calmo e manso, a areia clara
espelho refletor da luz e da intensidade do sol, os coqueiros bailando com a brisa
soprada da praia, a vegetação rasteira, o rio de águas lentas e mornas, o u
aberto com poucas e esparsas nuvens testemunhas de uma natureza intocada
pelo homem, ganham vida nos traços do arquiteto, e nos transmitem a calma e a
quietude da Prainha antiga. Prainha de areias brancas, com poucos ou quase
nenhum resíduo deixado pelos banhistas. Prainha dos barcos, da pesca artesanal e
da renda de bilros, representativo de um modo de vida, que guarda suas
1
BOSI, Ecléia As outras testemunhas. Apud: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Prefácio. Quotidiano
e poder em São Paulo no século XIX. Editora Brasiliense, 1984.
2
O arquiteto Nearco Barroso Guedes de Araújo é natural de Manacapuru, Amazonas. Diplomado
em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Artes e Arquitetura da Universidade Federal do
Ceará, em 1971, ex-professor das disciplinas “Técnicas de Representação e Expressão”, Plástica”
e “Comunicação Visual” do Centro de Arquitetura e Urbanismo CAU da Universidade Federal do
Ceará – UFC e atual consultor de projetos de arquitetura e urbanismo e de artes visuais.
especificidades e tem seu ritmo próprio. Modo de vida que sofre alterações,
indicadas na obra de Nearco, pelas mansões construídas nas dunas, lugar
privilegiado pelo contato com o mar e pela vista da praia.
A imagem da Prainha, que surge das linhas do desenho, não busca
simplesmente restaurar a Prainha da década de 1970. A relação e a disposição
entre as construções que estão no primeiro, no segundo e no terceiro planos
definem o sentido e dão significado àquilo que a memória seleciona para ser
rememorado. É importante sublinhar que a imagem construída pelo artista resulta
da técnica do desenho do qual os traços ganham mais liberdade e fluidez,
possibilitando, assim, a construção da memória.
A cabana detalhada e cuidadosamente posta no primeiro plano do
desenho indica consciente intervenção do autor na seleção da imagem elaborada,
pretendida e guardada em seu campo imagética, quiçá sugestiva de uma época em
que as primeiras mansões anunciavam a chegada de um outro tempo na
comunidade da Prainha. No entanto, buscando organizar e atribuir sentido a um
modo de vida, propositadamente, o autor distancia as moradias rústicas das
mansões, deixando estas confusas e misturadas às dunas, lugar de preferência
dos novos “moradores”.
No jogo da perspectiva (considere-se, nesta ordem, o primeiro, o
segundo e o terceiro planos), o lugar de aparente privilégio das mansões é
relegado pelo artista ao um plano inferior, ou seja, ao terceiro; por outro lado, ele
busca salientar com traços bem definidos a moradia dos habitantes locais aliada à
imagem do barco, que é o instrumento de trabalho deles. Ao pôr em relevo estes
elementos (moradias e barco), o autor define com sua arte o que a memória
seleciona de mais importante para ser lembrado e recordado.
Nesta imagem, a cabana coberta e revestida de palha e o barco
descansando ao lado, bem como as cabanas no segundo plano como que
formassem um cinturão de isolamento, impedindo assim o avanço das mansões, é,
pois, uma tentativa do artista de organizar e preservar um tempo, sentido e vivido
pelos habitantes de uma pequena comunidade. É possível perceber a sintonia
entre o mar e as cabanas vizinhas, amigas e companheiras de vida e de trabalho.
O panorama da Prainha apresentado pelos “rabiscos” do arquiteto
Nearco
3
define com nitidez, nos dois primeiros planos, a importância por ele
atribuída ao modo de vida dos sujeitos não traçados em seu desenho. Por outro
lado, num jogo de linhas e sombras, ele vai aos poucos delineando as formas das
mansões dispersas por sobre as dunas. Nesse jogo da técnica do desenho, o autor
sugere e/ou indica permissão e resistência, como se a natureza pudesse reagir à
invasão das mansões e a qualquer momento as dunas pudessem envolvê-las com
suas areias e logo eliminá-las da paisagem da Prainha.
A exemplo de outras fontes documentais, a imagem não é portadora da
verdade. Ela reflete lacunas e imprecisões, ao mesmo tempo que anuncia em
alguns pontos a intenção implícita de seu autor em deixar registrado seu olhar,
suas preferências e suas lembranças. Para tanto, nos traços que formam a imagem
da Prainha é possível perceber a relação estreita entre homem e natureza. Um
servindo e se deixando servir pelo outro na complexa dialética das relações, das
transformações e das adaptações que aos poucos vão definindo e situando no
espaço sua importância, finalidade e necessidades.
Procurando suprir suas necessidades, o habitante local interfere na
natureza, sem, no entanto, descaracterizá-la, o que o diferencia, por exemplo, dos
turistas e dos visitantes. Quando o homem retira das árvores a madeira para
estruturação de suas moradias e para construção de seus barcos instrumento de
trabalho e a serviço da devoção nas procissões religiosas para conduzir o santo
padroeiro da comunidade, ou quando se vale das palmas dos coqueiros, que
transformadas em palhas, formam o manto de suas casas, está na verdade,
transformando pequenas atitudes e comportamentos em cultura.
O barco, instrumento fundamental na vida e no trabalho dos
pescadores da Prainha antiga, descansando ao lado da palhoça, após a lida em
alto mar, é testemunha dos perigos, das privações e dos acidentes, comuns a essa
profissão. É testemunha do peixe vendido na beira da praia, cujo dinheiro é
essencial à sobrevivência da família. Testemunha também as preocupações e
saudades, sentidas e choradas pelas companheiras que, enquanto os esperam,
3
Vide ARAUJO, Nearco Barroso Guedes de. [et.al] Desenhos – Arquitetura Antiga do Ceará.
Cadernos de Arquitetura Cearense v. 2. Edições IPHAN/UFC, 2002. Dimensões 43X30 cm. 140
páginas. Capa Brochura. Cumpre observar que a imagem apresentada neste apêndice é parte
integrante da obra aqui citada.
tecem os fios na elaboração da renda, garantindo, em suas ausências, o sustento
dos filhos. O barco, palco das alegrias em dia de culto ao santo protetor, das
brincadeiras infantis, da fartura do pescado, é também o barco das tristezas, das
lágrimas e dos sofrimentos das viúvas daqueles levados pelas ondas bravias do
alto mar.
O silêncio da imagem sugerido pela ausência dos sujeitos sociais
peculiares a esse panorama litorâneo suscita questionamento e indagações. Onde
o pescador poderia ter ido após guardar o seu barco, na puxada de palha ao lado
da sua cabana? A sua companheira, quase sempre rendeira, e os filhos onde
estariam? Por fim, por onde andavam os moradores das mansões, os eventuais
banhistas e os compradores do pescado, que não estavam aproveitando o mar, o
sol e a brisa da praia?
O lugar do sujeito social, bem como sua importância para o artista, são
dimensionados pela moradia e pelo instrumento de trabalho. Ler a cultura e ver seu
criador. O homem que edifica a cabana está na cabana. O homem que constrói o
barco está no barco. Assim o barco, construído a partir da necessidade de
sobrevivência, transforma-se em cultura. No entanto, não é o barco em si que
representa a cultura. O que o define como cultura é a atitude, o tratamento, o
sentido e a utilidade atribuídos a ele.
Nessa perspectiva, o barco, instrumento de trabalho, de devoção e,
talvez, de lazer das famílias dos pescadores, envolto e seduzido pela modernidade,
transforma-se em barco de passeio turístico.
Ler as ausências dos sujeitos sociais da Prainha na imagem do artista
é, sobretudo, compreender com que propósito a memória privilegia registrar a
cultura e as ações desses sujeitos, ao mesmo tempo que opta por omiti-los.
É importante observar que a imagem da Prainha construída pelo
traçado das linhas, sombras e formas do arquiteto Nearco representa, pois, um
facho de luz que incide sobre determinada realidade que se pretende lembrar. No
entanto, quem conduz essa luz a determinados aspectos e a desvia para outros, é
o olhar, a interpretação e a subjetividade daquele que faz uma releitura sobre o
panorama sociocultural apresentado (velado): neste particular, o historiador.
Se na memória da imagem artística de Nearco Araújo os sujeitos
sociais da Prainha foram omitidos, na construção interpretativa da história estes
mesmos sujeitos reclamam espaço e voz. Para a historiografia social do trabalho, a
cultura traspassa os limites da descrição, uma vez que o complexo cultural ganha
forma somente por meio dos sentidos e das necessidades dos sujeitos que o
compõe.
Quando em julho de 2002 fiz a primeira visita ao Centro das
Rendeiras da Prainha, situada no município de Aquiraz, no estado do Ceará, dava
início à realização de um antigo desejo, qual seja construir uma narrativa histórica,
cujos sujeitos sociais fossem mulheres. Quem seriam essas mulheres, o que elas
faziam, quais seriam suas histórias de vida e onde encontrá-las, foram indagações
que permaneceriam sem resposta por muito tempo. Tempo de leituras, pesquisas e
reflexões acerca das temáticas trabalho e gênero.
Muitas dessas leituras foram aos poucos me apresentando mulheres
que destoavam do perfil de delicadeza, fragilidade e dependência, atributos
responsáveis pelo suposto confinamento delas ao espaço privado, o da família.
Apresentaram-me também e, sobretudo, mulheres que sobreviviam dos próprios
trabalhos e desenvolviam formas multifacetadas
4
de resistências, e foram, portanto,
capazes de participar da transformação das condições sociais de suas vidas.
Essas leituras, somadas ao eco das lembranças, nas quais inúmeras
vezes minha mãe lamentava-se não usufruir de instrução nem de profissão e, por
estes motivos, submetia-se a cuidar de “casa e de menino”, aliadas também às
minhas vivências de mãe e trabalhadora, foram decisivas no momento de escolher
quais mulheres seriam os atores sociais do meu estudo. Seriam, com certeza,
mulheres-mães, reconhecidamente comuns: as Marias, as Joanas, as Franciscas e
tantas outras que decidiram ser, em um momento preciso de suas vidas, também
trabalhadoras.
Neste sentido, o tema em análise propõe uma reflexão sobre os
papéis históricos das pessoas comuns, ancorada em suas experiências, vivências
de mundo e em seus posicionamentos nas esferas econômica e social. São as
rendeiras da comunidade da Prainha os sujeitos sociais desta investigação.
Mulheres que aprenderam o ofício da renda desde criança e sempre supriram,
ajudaram ou dividiram com os companheiros as despesas domésticas. Construindo
4
DIAS, Maria Odila Leite da Silva, Quotidiano e Poder obra citada, traz uma discussão pertinente
sobre os papéis históricos de mulheres das classes oprimidas, livres, escravas e forras, no processo
de urbanização da cidade de São Paulo. Mulheres que, vivendo na linearidade dos espaços sociais,
na informalidade, eram presenças ostensivas nas cidades.
e reconstruindo os papéis e redefinindo os espaços por lutas próprias, essas
mulheres não se enquadram no discurso da fragilidade e da dependência feminina,
tão necessário e tão oportuno para justificar o domínio masculino. São mulheres
que circulam e se fazem presentes nos mais diversos espaços e realizam múltiplas
atividades para garantir a sobrevivência pessoal e da família.
Neste trabalho, procuro falar o somente das rendeiras e das
respectivas histórias de vida, como também abrir um leque de discussão sobre
trabalho feminino, relações subjetivas, mecanismos e estratégias de sobrevivência
das mulheres trabalhadoras. O Centro das Rendeiras da Prainha foi escolhido não
por se tratar do espaço de um grupo predominante de mulheres trabalhadoras e,
sim, por representar um “exemplo” de mulheres que têm as histórias de vida
pontuadas por lutas e estratégias desenvolvidas dia-a-dia, e pela própria atividade,
“ser rendeira na Prainha”, o que lhes empresta particularidade histórica e social.
A história das rendeiras da Prainha é também a história do Centro
das Rendeiras, misto de oficina e centro comercial, construído em 1979, decorrente
das ações do segundo Plano de Metas do Governo Virgílio Távora, cujo objetivo na
área social era a estruturação de cooperativas e pólos artesanais. Tornou-se o
espaço de produção e venda do artesanato local, principalmente da renda de bilros.
A construção deste Centro considerado como a mais significativa referência de
“profissionalização” das rendeiras da Prainha, representou um marco na vida
dessas mulheres, que lhes proporcionou uma estrutura física centralizadora do
trabalho artesanal, até então realizado em ambiente domiciliar. Como espaço de
trabalho alterou os múltiplos significados e dimensões das rendeiras e de suas
famílias.
O Centro das Rendeiras localiza-se em posição estratégica, na
passagem dos banhistas para o mar. Outrora era uma construção rústica com
estrutura de carnaúba, coberta por palha de coqueiro. Os balcões eram feitos de
esteira e trança de palha e, por cima, onde ficam as peças expostas, era de tábua.
A aparência física do Centro compunha, pois, o quadro da Prainha antiga, de casas
de palha, cujo material de construção era retirado da natureza.
Hoje reformado, feito basicamente de alvenaria e coberto por telhas
do tipo colonial, perdeu a aparência rústica, porém mantém a mesma
funcionalidade. O Centro é composto por sete quiosques de cinco balcões, com
capacidade total para 70 (setenta) rendeiras, que cada balcão oferece espaço
para abrigar os produtos de duas artesãs. também um espaço físico de uso
comunitário, onde se guardam produtos destinados à comercialização. As rendeiras
quase sempre chegam por volta das onze horas e encerram as atividades
aproximadamente às dezoito horas.
Além da renda de bilros, que é o principal produto, são
comercializadas peças em crochê, labirinto, filé, palhetão, ponto cruz, ponto cheio,
e em bordado manual e industrial. Todos estes artigos são compostos por variadas
cores e fios (grossos, finos, brancos, coloridos.). A diversidade visual e material não
afeta a delicadeza nem a beleza das mercadorias dispostas em balcões ou em
cabides presos por barbantes ao telhado dos quiosques.
Para um olhar mais atento é possível ver o emaranhado de tradições
e de culturas representadas na variedade de modelos, tamanhos, cores e formas
das peças comercializadas. Ora bailando ao ritmo do vento que sopra da praia, ora
descasando em cima dos balcões à espera de compradores, de admiradores,
talvez, essas peças representam um saber-fazer que constitui a história de quem
as produz.
As mulheres que comercializam no Centro das Rendeiras são de fato
e por tradição rendeiras. Algumas, mais habilidosas, com mais disponibilidade de
tempo e/ou mais envolvidas comercialmente com a atividade que lhes garante o
sustento da família, aprenderam a confeccionar outros tipos de mercadorias para
obterem mais lucros. Isto não as impedem de comprar peças prontas, a exemplo
das demais que, com o mesmo propósito de oferecer variedade à clientela,
revendem peças fabricadas por outras artesãs da comunidade e das localidades
vizinhas.
Assim posto, o Centro das Rendeiras da Prainha deu suporte à nossa
pesquisa. Buscamos averiguar o porquê de sua criação, como se concretizou, que
mudanças financeiras foram decorrentes da prática comercial, mas, sobretudo,
procuramos documentar as transformações inerentes à vida, à sobrevivência e à
cultura dessas mulheres trabalhadoras: como se deu sua inserção no mercado
informal de trabalho e como elas, seus companheiros (maridos) e filhos passaram,
a partir deste momento, a se relacionar em família e na comunidade; como o valor
monetário atribuído aos seus artefatos de renda influenciou nos comportamentos,
na organização do trabalho e nas relações entre elas. Procuramos, percebê-las
também e, principalmente, como trabalhadoras, alargando assim seus espaços de
experiências sociais.
Nesta perspectiva, este trabalho está, pois, voltado a olhar e
interpretar essas mulheres como agentes de um processo histórico em que
cotidianamente (re)definem e (re)constroem seus espaços. Sendo assim, é
propósito desta pesquisa somar-se a um vasto leque de discussões e de trabalhos
que têm contribuído para o desvelamento das múltiplas identidades, papéis,
valores, sentimentos e subjetividades intrínsecas às mulheres na condição de
sujeitos históricos que vão se construindo nas relações sociais.
Consciente de que a história não narra o passado, mas constrói um
discurso sobre este, trazendo tanto o olhar quanto a própria subjetividade daquele
que recorta e narra à sua maneira, a matéria da história”
5
, este trabalho aborda a
multiplicidade e a riqueza dos caminhos, das escolhas e das conquistas das
rendeiras inseridas em um processo maior, amplo, complexo e plural, que é o
mundo do trabalho.
No cotidiano do trabalho das rendeiras da Prainha e de seus
companheiros conjugais, os mundos masculino e feminino não se apresentam
estanques. Os papéis, os lugares e os comportamentos são cotidianamente
transformados e/ou refeitos e (re)significados. Portanto, falar das rendeiras é
também falar dos companheiros delas, na maioria, pescadores, e das relações que
se estabelecem entre eles.
A proposta deste trabalho não é priorizar os conflitos, as contradições
e dualidades que permeiam o universo masculino/feminino. A intenção é
compreender o trabalho da renda e da pesca numa perspectiva de
complementaridade, de companheirismo e de sobrevivência dos habitantes da
comunidade da Prainha.
Dessa forma, esta pesquisa se abre para o estudo de como, ao longo
dos anos, as rendeiras da Prainha foram tecendo suas histórias com os fios da
renda, conquistando novos espaços e criando formas particulares de resistência e
organização. Estas rendeiras, e tantas outras mulheres saem do anonimato social
ao povoarem as páginas das investigações históricas, mostrando como foram e são
capazes de serem além de mães e donas-de-casa, trabalhadoras.
5
RAGO, Margareth. As Mulheres na Historiografia Brasileira. In: SÍLVIA, Zélia Lopes da (org).
Cultura e História em debates. São Paulo, 1995.p. 81.
Desde o contato inicial com a documentação: relatos orais; estatuto
de fundação da Associação das Rendeiras da Prainha; Regimento Interno do
Centro; atas de reuniões e das assembléias ordinárias e extraordinárias; relatórios
das atividades diárias do Centro; PLAMEG II Plano de Metas do Governo Virgílio
Távora; dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) sobre
população, economia e sobre o surgimento da cidade de Aquiraz; jornais Diário do
Nordeste (cadernos Regional, Cidade e Turismo) e O Povo (caderno Turismo);
articulada sempre às leituras teóricas, surgiram questionamentos tais como: quem
são essas mulheres, quais as trajetórias seguidas por elas até se tornarem
trabalhadoras, como conquistaram o direito ao trabalho fora de casa e quais as
conseqüências advindas dessa nova realidade, quando o trabalho, outrora
produzido e comercializado quase sempre no espaço do lar, tornou-se público?
Na realização deste estudo, estas indagações se cruzaram constantemente
com outras mais complexas e mais abrangentes. Questionamentos como: qual a
relação entre as políticas públicas do governo Virgilio Távora e a figura
emblemática da então primeira-dama, Luiza Távora? Qual a relação dela com o
trabalho artesanal no Ceará? Em que contexto (década de 1970) a mulher rendeira
assumiu o trabalho fora do lar e como a relação trabalho feminino x autonomia
familiar redefiniram normas, papéis, condutas e conduziram a novas discussões e
novas realidades?
No decorrer da pesquisa, alguns elementos de reflexão ganharam
destaque, outros foram abandonados. Passo a passo, entre uma visita e outra à
Prainha, às comunidades adjacentes e ao Centro das Rendeiras, foi possível definir
melhor os objetivos da pesquisa. Partindo das experiências e das vivências
cotidianas das rendeiras, procurei construir uma narrativa cujo enfoque central é o
trabalho feminino, os mecanismos e estratégias de sobrevivência das mulheres
trabalhadoras da Prainha. Delas, procurei documentar a trajetória de vida,
enfocando a importância do trabalho feminino e suas implicações nas mudanças
socioeconômicas percebidas naquela comunidade.
A preocupação central no primeiro capítulo é apresentar o universo
histórico-cultural da comunidade da Prainha antes de 1979, ano de construção do
Centro das Rendeiras, espaço das ações dos atores sociais desse estudo. Pelos
meandros da memória, das imagens e narrativas dos entrevistados, procurei
documentar o modo de vida das rendeiras da Prainha, as tradições e costumes
construídos e adaptados em conformidade com as necessidades delas. Investiguei,
também, como as mulheres experimentaram a cultura da renda de bilros como
profissão e como lidam com a autonomia financeira decorrente do trabalho.
Busquei percebê-las trabalhadoras e inculí-las entre as inúmeras mulheres
trabalhadoras, registrando suas experiências como sujeitos da própria história.
Procurei perceber, também, e, principalmente, como o trabalho feminino alterou as
relações sociais na comunidade da Prainha.
O segundo capítulo, “Centro das Rendeiras: trabalho e cotidiano das
rendeiras da Prainha” analisa inicialmente a importância da construção do Centro
das Rendeiras, inserido na efervescência de valorização que o artesanato vinha
conquistando institucionalmente. Ressaltando as políticas públicas desenvolvidas a
partir 1950, este capítulo objetiva perceber a construção do Centro como parte do
plano de governo estadual que estimulava a organização das atividades artesanais
das populações de baixa renda. Uma vez instituído o espaço de trabalho “formal”
Centro das Rendeiras da Prainha, observa-se nos depoimentos alterações no
modo de vida e de trabalho das artesãs da comunidade, bem como a
transformação em “mercadorias” dos artefatos de renda culturalmente produzidos.
O último capítulo “Tecendo Vidas” centra a análise na criação da
Associação das Rendeiras da Prainha, fato que ocorreu em 1989, dez anos após a
criação do Centro. Esse momento ímpar na experiência de organização do trabalho
das rendeiras diferencia-se dos demais por caracterizar a legitimação da categoria
e a organização formal do Centro, que ressignificou as ações dessas mulheres em
busca de parcerias na utilização e disputa do espaço de trabalho.
Para a realização desta pesquisa, a História Oral se constituiu numa
fonte riquíssima. Em um trabalho com essas características, as entrevistas com as
rendeiras, os pescadores e antigos moradores da comunidade da Prainha
assumiram grande importância. A propósito, a oralidade é o elemento que
impulsiona, irriga e vida a esta investigação. Muitas questões se colocam para
quem lida com História Oral. É relevante estar atento à relação dialógica que se
estabelece entre pesquisador e entrevistado e, sobretudo, à dimensão social e
dinâmica da memória. Dessa forma, é possível perceber memória como a
reelaboração de um momento social e a representação de um passado que, ao ser
lembrado, evoca a subjetividade do entrevistado.
Para discutir a experiência histórica das rendeiras da Prainha foram
utilizados como fontes de pesquisa os depoimento delas e dos pescadores,
reunidos no total de dezesseis entrevistas, além das informações anotadas no
diário de campo, resultado de observações e conversas informais. As entrevistas
foram realizadas com base num roteiro de perguntas previamente elaboradas,
contendo questões relevantes ao trabalho. À medida que a memória fluía, esse
roteiro era repensado, reelaborado. Ora por minha interferência, ora pela seleção
dos acontecimentos rememorados pelos entrevistados. Durante essa etapa, as
próprias rendeiras e os pescadores indicavam outras pessoas com as quais eu
poderia conversar. Dessa forma, pude entrevistar duas gerações distintas de
rendeiras e perceber que as narrativas falavam de tradições, de culturas, de
saberes, em diferentes temporalidades.
Na Biblioteca Pública Meneses Pimentel, setor Ceará, pude consultar
textos específico sobre artesanato, rendas, trabalhos manuais e o documento do
PLAMEG II – Plano de Metas do Governo Virgílio Távora (1979-83). Por esta
documentação foi possível perceber a construção do Centro das Rendeiras da
Prainha, em 1979, como parte de um processo de organização de cooperativas e
pólos artesanais no Ceará. Pude consultar também os jornais O Povo e Diário do
Nordeste, dos anos de 1984, 1994, 1995, 2000 e 2001. Consultei também na
biblioteca do IBGE textos sobre a cidade de Aquiraz e suas comunidades.
A boa vontade e a gentileza de algumas rendeiras e da presidente do
Centro na época, a Sra. Zenaide Moisés de Sousa, permitiram-me acesso à parte
significativa da documentação da Associação das Rendeiras da Prainha; ao
Estatuto de Fundação da Associação das Rendeiras, ao Regime Interno do Centro,
ao Livro de Atas e Livro de Registro das atividades diárias do Centro das
Rendeiras, sem as quais seria difícil a realização dessa pesquisa. No entanto, é
relevante citar que, por motivo de desentendimentos e conflitos internos,
principalmente no momento de mudança de diretoria do Centro não tive acesso à
outra parte importante da documentação da Associação das Rendeiras da Prainha.
Para além das limitações impostas pelas inconstâncias, lacunas,
silêncios das fontes e dificuldades comuns a toda investigação histórica, esta
narrativa tentou documentar e analisar as rendeiras da Prainha como sujeitos
históricos que se organizam a partir das suas tradições culturais e, assim, tecem
sua relações sociais de vida e de trabalho.
Capítulo I
PRAINHA DE AQUIRAZ: A HISTÓRIA E SEUS SUJEITOS
1.1 Um tema para a História
‘Toda história depende finalmente de seu propósito
social’, e a história oral é a que melhor reconstrói as
particularidades triviais das vidas das pessoas
comuns.
6
Até pouco tempo, uma investigação histórica sobre homens e
mulheres de uma pequena comunidade pesqueira não se justificava. A idéia de que
os registros históricos eram espaços reservados a heróis, e heróis masculinos, e a
seus grandes feitos, não deixavam frestas por onde ecoassem as vozes dos
mortais comuns: homens e mulheres, seres vivos e concretos, inseridos numa
sociedade, participando de um emaranhado de funções, preocupações e atividades
múltiplas, que, salvo a luta pela sobrevivência, não pretenderam nenhuma atitude
heróica.
7
Por um longo período, os registros históricos eram espaços
reservados aos grandes homens e seus feitos heróicos. Os livros, textos e arquivos
encontravam-se abarrotados de figuras ilustres: os “fazedores da história.” Essa
visão elitista que reservava o anonimato ao resto da humanidade, aos poucos
perdeu espaço para uma nova forma do fazer histórico. Ao se interessar pelos
mortais comuns e suas atividades, a História expandiu seus objetivos, formulou
novos problemas, novas abordagens e problematizou novas fontes.
6
THOMPSON. E. P. APUD: PRINS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (org.) A Escrita da
História – Novas perspectivas. São Paulo. Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 192.
7
A Escola dos Annales principalmente representada por Lucien Febvre e Marc Bloch, a parir de
1929, certamente contribuiu na divulgação da chamada “nova história”. Uma história que, segundo
Lucien Febvre, não deveria se interessar pelo “homem abstrato, eterno, de fundo imutável e
perpetuamente idêntico a si mesmo, mas pelos homens sempre tomados no quadro das sociedades
em que são membros, numa época bem determinada; pelos homens dotados de funções múltiplas,
de atividades diversas, de preocupações e de aptidões variadas”. FEBVRE, Lucien. Viver a História:
palavras de iniciação. In: Combates pela História. Ed. Presença, 1989, p. 30.
O estudo sobre a Prainha de Aquiraz, é relevante uma vez que
procura enfocar historicamente as experiências de pessoas comuns, rendeiras e
pescadores, e o modo de se posicionarem como sujeitos ativos na comunidade em
que vivem.
As transformações pelas quais a História passou nas últimas
décadas, debruçando-se sobre temáticas, problemas e fontes até então excluídas
do seu campo de interesse, contribuíram significativamente para que os chamados
“grupos marginalizados”, como as mulheres, a família, os operários e tantos outros,
fossem alçados à condição de sujeito e objeto de estudo. Foi no bojo dessas
transformações que surgiu a História das Mulheres.
Nessa perspectiva, o cotidiano surge como um espaço fértil para o
estudo da cultura, um lugar também de produção, de pluralidade de ações e
tensões que refletem uma política de sobrevivência. Um lugar, enfim, de homens e
mulheres comuns, feitos de carne e osso, de erros e acertos no processo de
construção de suas subjetividades.
A História, portanto, pouco se debruçou sobre a história de pessoas
“menores”
8
. Buscar nos livros e arquivos vestígios da presença e das ações dessas
pessoas constitui-se, pois, numa árdua tarefa. Tarefa que desafia o pesquisador e
lhe indica outros caminhos para utilização de novas fontes. Se a história não é
produto exclusivo dos grandes acontecimentos, ao contrário, ela se constrói no dia
a dia de discretos atores que são a maioria
9
, é preciso, portanto, ouvir a fala
dessas pessoas. Assim sendo, a História Oral se apresenta ao pesquisador como
uma possibilidade de ouvir esses atores sociais, principalmente porque muitas
informações contidas em seus depoimentos não estão depositadas nos arquivos.
8
A expressão “pessoas menores” refere-se à importância histórica que era destinada às pessoas
comuns, na perspectiva da História Oficial. PERROT, Michele de. O livro Os Excluídos da História:
operário, mulheres e prisioneiros, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1998, traz uma discussão
interessante sobre as formas diferenciadas e particularizadas de inserção dos grupos menores nos
registros históricos.
9
DEL PRIORI, Mary. História do cotidiano e da vida privada. In: Domínios da História: ensaios de
teoria e metodologia. FLAMARION, Ciro e VAINFAS, Ronaldo (orgs). Ed. Campus. Rio de Janeiro,
1997. Considere-se que o foco desse estudo (as rendeiras da Prainha) tem uma dinâmica social,
por estarem devidamente situadas no tempo e no espaço: são elas sujeitos históricos. Ao lidar com
as ões das rendeiras devo acrescentar que o papel do historiador implica numa leitura
devidamente construída em torno dos mesmos sujeitos, por meio dos seus fragmentos culturais:
memória (oral), escritos (atas, estatutos, regimes, livros de registros etc.), que especificam e dão
sentidos a essa narrativa.
Elas chegam ate nós através da memória. Neste sentido, a memória constitui
elemento de significativa importância à reconstituição do processo histórico.”
10
Cumpre destacar aqui a participação e a influência do historiador
Edward Palmer Thompson como defensor das fontes orais na história social
moderna, meio pelo qual é possível conhecer, respeitar e compartilhar das
opiniões, experiências e valores dos esquecidos pela “história vista de cima”.
Dessa forma,
A oposição à evidência oral é muito mais fundamentada no sentimento do
que no principio. A geração mais velha de historiadores que ocupam as
cátedras e detêm as rédeas é instintivamente apreensiva em relação ao
advento de um novo método. Isso implica que eles não mais comandem
todas as técnicas de sua profissão. Daí os comentários depreciativos sobre
os jovens que percorrem as ruas com gravadores de fita.
11
Ao relatar suas memórias, as pessoas nos convidam a entrar num
campo rico de vivências e de experiências, chamado “cotidiano”. É o estudo do
cotidiano que nos possibilita perceber como elas constroem, experimentam
12
e
vivenciam as relações sociais. Dessa forma, para analisar o cotidiano da
comunidade da Prainha, na perspectiva de desvelar a multiplicidade das relações e
dos papéis desempenhados por seus moradores, é necessário estar atento às
definições e redefinições que o termo comunidade adquiriu ao longo da História.
Carregada de sentidos, e interpretações, a palavra comunidade foi
definida e cogitada como sendo o lugar onde todos se entendiam e se ajudavam e,
portanto, a solidariedade era conseqüência natural. Entretanto, se analisarmos as
especificidades, diferenças e múltiplas relações que se estabelecem entre as
pessoas que habitam um mesmo lugar, veremos que tais definições não sintetizam
a complexidade do universo “comunidade”.
10
FUNES, Eurípides A. “Nasci nas matas, nunca tive senhor” História e memória dos mocambos
do baixo Amazonas. In: Liberdade por um fio: História dos Quilombolas no Brasil. REIS, João José e
GOMES, Flávio dos Santos (orgs). Ed. Companhia das Letras. São Paulo, 1996. p.468.
11
THOMPSON, E. P. The Voice of the past: Oral History, Oxford, 1978, p.63. In: PRINS, Gwyn. Op.
cit. p.165.
12
Sobre o termo “experiência”, ver THOMPSON, E.P. O Termo Ausente: Experiência. A miséria da
Teoria. Cap. XV. Zaliar, Rio de Janeiro, 1981.
Segundo Paulo Fontes, a tendência de abordar a “comunidade não
apenas como um lugar, mas também como um conjunto de relações sociais”
13
foi
iniciada juntamente com idéias da História Social difundidas pelos historiadores
britânicos da década de 1960.
Essas idéias ampliaram as perspectivas de estudo das classes,
tornando possível ao pesquisador ultrapassar os muros das fábricas e os limites
das relações de trabalho, de maneira que pudesse perceber o operário em outras
esferas da sua vida. Assim sendo, o conceito comunidade passa, a ser refletir não
apenas um simples espaço físico, mas também o vasto cenário sociocultural no
qual as ações e relações sociais se estabelecem.
Para além das definições e dos conceitos do termo comunidade, este
estudo narra a história de vida de homens e mulheres que certamente divergem,
entram em conflitos, mas que, em meio ao antagonismo e às diferenças pessoais,
apresentam objetivos comuns que os unem e os identificam como membros da
comunidade da Prainha. Comunidade nesta narrativa deverá ser entendida como a
conjunção do lugar, das ações e relações tecidas cotidianamente por seus
moradores.
Os tópicos que compõem este capítulo apresentam a comunidade da
Prainha antes da década de 1970, e ressaltam a importância das narrativas de
homens e mulheres que têm as histórias de vida entrelaçadas à história da
comunidade em que vivem. Assim é importante compreender que a comunidade da
Prainha sintetiza, além do espaço, outros elementos como: trabalho, lutas e
relações sociais, cultura, modo de vida, sonhos e anseios dos habitantes.
13
FONTES, Paulo Roberto Ribeiro. Comunidade operária, migração nordestina e lutas sociais: São
Miguel Paulista (1845-1966). Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas, 2002. p.9.
Discutindo alguns historiadores do trabalho em sua tese, Paulo Fontes refere-se à ambigüidade
existente no próprio conceito de comunidade. Segundo esse autor “os historiadores do trabalho
negligencia a longa tradição de controvérsias e debate em torno desta noção, especialmente na
tradição sociológica”. A História do Trabalho, a história da formação da classe operária, o “fazer-se”
segundo Thompson, a partir da década de 60, amplia as perspectiva de estudo e de entendimento
da comunidade. Assim a utilização a-crítica desse conceito é bastante problemática.
1.2 Memórias, imagens e narrativas da Prainha.
Quem conheceu a Prainha muitos anos atrás era uma
Prainha antiga, do pai do pai dos meus pais, pode
observar que hoje está diferente demais.
14
Prainha. Prainha é uma comunidade de aproximadamente dez mil
habitantes
15
, situada na Barra do Catu, rio de águas claras e recortado por
coqueirais, distante 5 km do distrito-sede. Historicamente, apesar de ser vinculada
a Aquiraz
16
, primeira vila da Capitania do Ceará, localizada a 28 quilômetros de
Fortaleza, cuja fundação data do século XVIII, existe pouco ou quase nenhum
registro daquela localidade em períodos remotos, bem como sobre sua população.
A chegada da energia elétrica em 1968 e o melhoramento das vias de
acesso são apontados nas narrativas como fatores importantes e decisivos do
interesse turístico na região
17
, em parte também, pela descoberta das belezas
naturais da Prainha, com bonito cenário composto por mar, rios e coqueirais.
14
O pescador-poeta Paulo Horácio de Brito, conhecido na comunidade com poeta Amor, Foi o
primeiro morador da Prainha que entrevistei, no dia 7 de janeiro de 2003. Em companhia do
funcionário da SEDETUR Secretaria de Turismo de Aquiraz, Paulo Renan cheguei à sua casa,
localizada num “bequinho” charmoso contornado por flores aos lados, na rua principal que dá
acesso ao Centro das Rendeiras. Conhecendo a comunidade e seus habitantes e informado sobre
meus objetivos, Renan levou-me até o poeta Amor”, respeitado na comunidade pela sua memória
“brilhante”, por seus versos e por sua hospitalidade.
15
Essa informação nos foi fornecida pela Secretaria de Ação Social de Aquiraz, porém está incluída
a população das comunidades vizinhas, como por exemplo, a comunidade do Japão, da Tapera, e a
população considerada flutuante. Além dessa população flutuante, que reside em outras cidades e
mantém casas de veraneio, a população sofre variações significativas no período considerado pelo
turismo de alta estação, que compreende os meses de dezembro, janeiro e julho. No mês de
novembro é registrado também um aumento da população local, em decorrência da festa do
padroeiro Nossa Senhora dos Navegantes.
16
Embora de cunho didático, o livro Descobrindo e Construindo Aquiraz: Conhecimentos de
Geografia e História, dos autores Antônio Wellington Lima Cavalcante, Manuel Alves de Sousa e
Maria Jeane Augusta Albino, traz informações pertinente sobre a cidade de Aquiraz, seu espaço
geográfico, lazer e turismo, ressaltando também, sua história como primeira capital do Ceará e suas
manifestações culturais. Para um passeio saudosista na Aquiraz de outrora, bem como as
transformações pelas quais a cidade passou ao longo dos tempos, e um detalhamento minucioso
sobre seus distritos: João de Castro, Camará, Patacas, Tapera, Justiniano de Serpa, Caponga da
Bernarda e Jacauma ver: SANTOS, José Mauricio Câmara. Aquiraz: todos juntos rumo ao novo
milênio. Ed. Aliança. Agosto de 2002.
17
As rendeiras e dos pescadores entrevistados para a realização desse estudo moravam na
Prainha muito antes da chegada da energia elétrica e dos potenciais melhoramentos na região.
Assim como eles, seus pais, avós e bisavós surgem em suas narrativas como moradores antigos da
comunidade. Assim afirma Dona Santa, rendeira,” Quando eu me entendi por gente só tinha duas
casas, a casa do meu pai e o vizinho.
Fonte: Imagem disponível no site: www.aquiraz.ce.gov.br
A partir desse “descobrimento”, o nativo da Prainha passa a compartilhar o cenário
de belezas naturais com os visitantes, os turistas e os moradores das mansões
construídas nas dunas brancas e hospitaleiras. Belezas compartilhadas,
transformadas e testemunhas das mudanças e das permanências percebidas na
comunidade.
A principal atividade econômica na Prainha era a pesca artesanal.
Juntamente com ela desenvolveu-se entre as mulheres há muitas gerações, a
produção de renda de bilros.
A pesca artesanal na Prainha, por muito tempo, garantiu a
sobrevivência das poucas famílias da comunidade. Essa atividade era realizada em
jangadas de piúba, madeira leve, e muitas eram fabricadas pelo próprio pescador.
As jangadas depõem de compartimento abaixo da proa, onde se guarda o pescado.
Sem nenhuma segurança ou conforto, os pescadores ficavam até seis ou sete dias
em alto mar, e retornavam quando consideravam a quantidade, “boa”, do
pescado. Os imprevistos aconteciam, as vezes as pescarias não rendiam, e eles
retornavam para suas famílias com pouco ou nenhum peixe. Entre os imprevistos,
muitos dos pescadores foram vítimas de acidentes graves.
Fonte: Imagem disponível no site:
www.aquiraz.ce.gov.br
Para compreender o universo de vida e de trabalho e os significados
das relações construídas e experimentadas no cotidiano de uma comunidade de
rendeiras e pescadores, procurei seguir os relatos dos depoentes, que me levaram
por caminhos de marcação de tempo e de experiências vividas, rememoradas e
resignificadas nas falas.
Pelas narrativas verifiquei que o “tempo de antigamente” e do
“acontecimento da minha época”, guardados fortemente na memória dos
moradores mais antigos da comunidade, era o tempo da Prainha da lamparina, do
lampião, das festinhas ao som de rádio, das rodas de conversas ao fim do dia e do
bar do Sr. Leôncio.
As memórias e imagens da Prainha construídas pelo pescador Paulo
Horácio de Brito, o conhecido poeta “Amor”, são significativas para exemplificar a
relação dos moradores com o tempo da Prainha “de antigamente”. Em clima de
informalidade, sentada em um tamborete
18
e comendo da tapioca feita por sua
esposa, Maria do “Amor”, escutei dele, por mais de uma hora, um relato poético-
lírico, sobre a história da Prainha:
O povo aqui da Prainha
só vive mais de pescar
ele sai de madrugada
não tem pra quem apelar
alimenta sua família
com os produtos do mar
Rendeira e pescador
Todos moram na Prainha
Um pesca e outra faz renda
Com seu tecido de linha
O pescador sai de manhã
Só vem chegar de tardizinha.
19
O poeta Amor traz em seus versos relatos de um modo de vida de
homens e mulheres que se mantinham (hoje grande parte tem outras
alternativas) basicamente da pesca e da renda, atividades que possuíam
especificidades e ritmos próprios, complementares no sustento da família.
No verso um pesca outra faz renda o poeta Amor nos fornece
informações sobre os papéis desempenhados pela mulher e pelo homem na
sobrevivência e reprodução do modo de vida da família. Provavelmente esta
divisão era imposta pelas peculiaridades próprias do trabalho. Tendo os homens
que enfrentar um trabalho difícil e perigoso em alto mar, fato que exigia dias de
ausências, as mulheres acabaram por assumirem os cuidados com a casa e com
os filhos. Além destes cuidados, as mulheres completavam o orçamento doméstico
com os trabalhos na almofada.
Para além dos combates e dos conflitos que permeiam o universo
masculino/feminino, as atividades tradicionais desenvolvidas na comunidade
Prainha, retratam companheirismo e completaridade na sobrevivência, e no modo
18
Tamborete é um banco feito de madeira sem encosto muito utilizado em comunidades como a
das rendeiras da Prainha.
19
Entre um verso ou outro, o poeta-pescador como prefere ser chamado, falava da sua infância, da
família numerosa, das dificuldades, da falta do gás de cozinha e das suas idas às matas em busca
de lenha para manter o fogo aceso. Falava também sobre a religiosidade de sua mãe, a quem
acompanhava todos os domingos à missa na igreja de Aquiraz e dos siris pescados no rio Maceió,
que supria a falta do peixe em dias de mar revolto. Entrevista realizada em 7 de janeiro de 2003.
de vida e de responsabilidades divididas e assumidas por homens e mulheres no
sustento da casa e nos cuidados com os filhos.
Sentada no tamborete escutando versos, por alguns momentos, tive
dificuldade em saber se o poeta-pescador falava de si próprio ou da Prainha, como
se a história de ambos fosse uma só. Confundiam-se as vivências do poeta às
experiências sociais dos membros da comunidade.
Enquanto recitava seu relato poético, avistei no canto da sala a
almofada da esposa, descansando sobre um, entre outros, tamboretes que
compunha a mobília da casa. Este objeto, aparentemente desprovido de
significados, faz parte do universo da renda de bilros e são testemunhas caladas
deste saber que atravessa gerações. Um, servindo de suporte para a almofada
enquanto a rendeira trama os fios na confecção das peças, outro, de acento para a
artesã, outro ainda, para apoiar aquela almofada que descansa quando a dona está
cuidando da casa, fazendo a comida e acalentado os filhos.
A Prainha foi por muito tempo uma comunidade de rendeiras e
pescadores. Um lugar pequeno, calmo, iluminado por luz de lamparina e que
encerrava a vida noturna por volta das vinte horas. “Donos da Prainha”
20
, eles
construíam suas casas, a maioria de palha e chão batido, à beira da praia. No dizer
do Mestre Sales
Aqui [Prainha] não existia outras pessoas que não fosse daqui, da Prainha.
Não tinha outras pessoas aqui que não fosse pescador
21
No mesmo tom, completa a rendeira Maria Helena.
Não existia essas casas, era casinha de palha, palha de coqueiro. Tudo era
feito de palha de coqueiro. Era bem pertinho do mar, de casa a gente via
a jangada encaiar de manhã.
22
20
A expressão “Donos da Prainha” surge nas narrativas como uma maneira de dizer que todos
pertenciam aquele lugar e que não havia ninguém de fora.
21
O pescador Francisco de Sales Almeida, o Mestre Sales como é conhecido na comunidade
recebeu-me no dia 7 de janeiro de 2003 na sede da Associação dos Pescadores, fundada em 1986,
da qual era o presidente. Falante, com uma boa oratória - talvez adquirida na prática dos cultos
realizados na igreja Assembléia de Deus, que freqüenta desde criança. -, fala da sua infância, da
influência protestante de seus avós maternos, dos divertimentos e das pescarias, arte que aprendeu
ainda menino ensinado pelo avô.
22
A entrevista realizada com a rendeira Maria Helena Caetano Ferreira no dia 25 de novembro de
2005, aconteceu em sua barraca no Centro das Rendeiras, quiosque que ocupa mais de vinte
anos. Relembrando a Prainha da sua infância, falou das poucas casas, da vida calma, “sem luxo”,
De acordo com as narrativas do Mestre Sales e da Dona Helena a
população da Prainha naquela época se resumia praticamente aos pescadores e
respectivas famílias. No tempo rememorado por eles, o mar e as casas eram
vizinhos, e a sobrevivência estava intimamente ligada à natureza.
Compondo o quadro das atividades econômicas da antiga Prainha,
desenvolveram-se na comunidade as agriculturas de subsistência, basicamente do
milho, do feijão e da mandioca. A atividade agrícola praticada possivelmente nos
arredores da pequena vila, denominados “interior” pelo pescador Oliveira, tinha sua
importância na sobrevivência diária das famílias e nas trocas com o pescado. O
intercâmbio comercial entre a Prainha e as localidades vizinhas era muito limitado,
em virtude da falta de transportes e condição das estradas. Em conseqüência
destes motivos os produtos agrícolas produzidos internamente na comunidade
ganhavam significado especial. O Sr. Oliveira anuncia em sua fala essa realidade:
Na minha época, a Prainha, pode-se dizer que tinha muito poucas casas,
né? População pequena. Então aí, aqui naquela época o que tinha era
rendeira, como ainda hoje existe. No interior era, como se diz, agricultura
né? E aqui na Prainha, além das rendeiras, era a pesca.
23
Conversávamos, enquanto eu o observava transformar pequenos
pedaços de madeira em barquinhos de miniatura
24
. Sempre salientando as
dificuldades “daquela época” das pescarias, ele relatava sua visão do que a renda
de bilros, a pesca e a agricultura significavam para a comunidade.
das dificuldades enfrentadas pela família e do aprendizado da renda em meio às brincadeiras de
criança.
23
A entrevista realizada com o pescador José Pereira de Oliveira, em sete de janeiro de 2003, na
varanda da sua casa foi um momento impar. Sua casa outrora construída em barro e hoje
reformada em alvenaria, fica num corredor que aceso ao mar, por trás de duas construções
suntuosas, se comparadas com a dele. Roteiro organizado, pergunta pronta à espera das respostas,
ansiedade, foi assim que me apresentei ao Sr. Oliveira e expliquei o objetivo do meu trabalho,
tentando marcar com ele dia e hora para conversarmos. Ele foi taxativo e firme ao me comunicar
que não tinha muita coisa para contar e que não gostava de perder tempo. O tempo dele agora,
tempo de aposentado, era dedicado à fabricação de miniaturas de jangadinhas de piubá; um
passatempo aprendido na infância. Qual foi minha surpresa quando cheguei à sua casa, no dia e
hora por ele marcada! Não me concebeu a entrevista, como foi um dos entrevistados que mais
falou (por uma hora e meia), parando por interferência da sua esposa que também queria ser
ouvida.
24
Esses barquinhos são replicas quase perfeitas das jangadas que por mais de quarenta anos
representou seu instrumento de trabalho no sustento da família. Fabricados em piúba, uma madeira
leve e de fácil manuseio, ele vai moldando as miniaturas com um pequeno instrumento que se
assemelha a uma faca. Esse aprendizado que na infância caracterizava-se como um lazer de
meninos brincando às margens dos rios representa na atualidade uma ocupação, segundo ele, uma
terapia que lhe rende algum dinheiro.
Miniaturas de barcos de pesca confeccionados pelo pescador
Oliveira. Foto: Terezinha Bandeira, 30 de setembro de 2006.
A mulher da Prainha fazia uns bicos de renda para ajudar em casa”.
Parte do pescado, fruto de dias em alto mar, era vendida ao atravessador, outra
parte era para consumo e a terceira era trocada por farinha. Arroz, pão e manteiga
era luxo. Ao acordar a gente comia um angu feito com café e farinha; o almoço e
jantar era peixe com farinha”.
Para compreender melhor a Prainha dos versos do poeta Amor e das
lembranças do Sr. Oliveira procurei ouvir outros relatos.
Eu morava pertinho, bem pertinho da beira da praia. Hoje eu não moro mais
muito perto né? Porque foi o tempo que começaram os povos de Fortaleza
chegarem e de outros estados né? E daí...o pior que a gente é, eles queriam
pelo menos era mais o lado da praia né? A gente foi saindo né? Quase
expulsos por causa aparecia o dono de terra. Naquela época, a pessoa que
dizia ter uma terra, dizia que era o dono das frentes né? a gente foi
saindo, não tinha como discutir, eles diziam que eram os proprietários.
25
25
Entrevista realizada com Mestre Sales no dia 7 de janeiro de 2003.
A informação mais relevante que se pode perceber no relato do
Mestre Sales, refere-se às transformações que afetaram diretamente a vida de
todos os antigos moradores daquela comunidade. Permitidas ou não, talvez
compartilhadas, essas transformações suscitam lembranças de um tempo em que
eles se sentiam “donos” da Prainha. A beira da praia era o local de sua moradia.
Era também onde a jangada atracava para a venda do peixe; o lugar para os bate-
papos, as conversas sobre as pescarias e as histórias mirabolantes que somente
pescador sabe contar.
Ao recordar a Prainha da infância, o Mestre identifica no presente,
embora resignificado pela dinâmica da sociedade em que vive, com o passado de
homem nativo, vizinho e companheiro do mar na vida e no trabalho. Passado
sugestivo de perdas e de aparente passividade em face dos comportamentos e das
idéias vindas com o povo de Fortaleza […] e de outros estados.” Segundo Alistar
Thompson:
“O processo de recordar é uma das principais formas de nos identificarmos
quando narramos uma história. Ao narrar uma história, identificamos o que
pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no
presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são
representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse
passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e
aspirações atuais. Assim, podemos dizer que nossa identidade molda
nossas reminiscências; quem acreditamos que somos no momento e o que
queremos ser afetam o que julgamos ter sido.”
26
Ao dizer que morava pertinho, bem pertinho do mar” e que na
Prainha “não existia outras pessoas que não fossem daqui”, Mestre Sales refere-se
ao “tempo de antigamente”. Esse tempo apresenta-se também em outros relatos.
Apesar de não ter ficado explícito, provavelmente eles se referem ao período
anterior a 1968, ano da instalação da energia elétrica na Prainha. Embora
resignificado por experiências vividas, esse tempo representa, nos depoimentos, o
da família reunida em torno da mesa, do namoro respeitoso, das casas próximas
ao mar, da pesca artesanal e da vida calma de uma pequena comunidade onde
todos se conheciam.
26
THOMSON, Alistair. Recompondo a Memória: Questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias. In: Ética e História Oral. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-
Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1981, P.57
Através da narrativa do Mestre Sales pude perceber que morar perto
do mar, acordar ouvindo as ondas baterem na praia, são recordações de um
passado que emergem fortemente na construção das memórias da maioria dos
antigos moradores da Prainha. Por outro lado, sair de perto do mar e construir suas
casas longe da praia surge nas narrativas dos entrevistados como grande perda e
indício de muitas mudanças. O depoimento da rendeira Maria Estela corrobora
estas informações:
Era muito diferente isto aqui, porque aqui onde nóis tamos, aqui era água,
aqui era cheio de coqueiro. A gente ia pra praia, passava aqui, a água
levava os coquinhos todinhos. Tinha gente que morava na beira da praia,
em casinha de paia. Não tinha essas casas muitas, não tinha aquele hotel,
não tinha esses apartamentos todinhos não, tinha não.
27
O “diferente” na fala da rendeira Maria Estela está representado na
quantidade das casas, nos apartamentos e no hotel, que por certo não apareciam
na paisagem da Prainha de trinta anos atrás. Ao que tudo indica, essas casas e
apartamentos foram responsáveis pela expulsão das “casinhas de paiada beira da
praia, pelo aumento da população, e pelo surgimento de novos hábitos, costumes e
crenças, exigindo dos moradores locais esforço de adaptação.
A Sra. Maria Estela estabelece grande diferenciação entre a Prainha
passada e a presente. Diferenciação esta reafirmada pela rendeira Raimunda:
“A Prainha aqui era muito diferente. Aqui onde nós estamos (local do Centro
das Rendeiras) era uma lagoa, onde nós estamos. Não tinha quase casa,
era bem pouquinha casa. Era pescador que morava aqui, um povo bem
simples, poucas casas. Não tinha aquelas casa que tem prá acolá, não tinha
energia. Tudo era com luz de lamparina. A energia aqui foi mais ou menos
em 1968, foi cortado muito coqueiro aqui.”
28
27
A entrevista realizada com a rendeira Maria Estela aconteceu embaixo do quiosque que ocupa no
Centro das Rendeiras, no dia 18 de fevereiro de 2003. Muito receptiva e com um sorriso nos lábios
a Dona Estela falou da vinda da sua família para Prainha, quando ainda era criança, do aprendizado
da renda e da vida calma da “Prainha antiga”.
28
A entrevista com Dona Dica foi realizada num banquinho da praça que contorna os quiosques do
Centro das Rendeiras no dia 18 de fevereiro de 2003. Enquanto confeccionava a renda, ela falava
da infância, das brincadeiras de roda e do aprendizado da renda ainda menina. Sempre salientado a
importância do artesanato na sobrevivência das famílias da Prainha, ela relata as dificuldades que
enfrentou no processo de criação da Associação das Rendeiras da Prainha, fato que aconteceu em
1989.
Para Dona Dica, a Prainha dos pescadores e da lamparina era muito
diferente da atual. A diferença está na ausência da lagoa, no número de casas que
antes era bem pouquinha”, nos coqueirais da paisagem local que foram cortados e
no modo de vida dos moradores.
A “Prainha de antigamente” era diferente da atual. As diferenças
relatadas são quase sempre atribuídas à chegada dos turistas, os responsáveis
pelas construções à beira da praia, pelo “crescimento” e diversificação de
atividades e pelas mudanças de hábitos de “um povo bem simples”. No entanto, a
lagoa relembrada pela rendeira Raimunda, foi aterrada para a construção do
espaço de trabalho dos artesãos da comunidade. Assim como o desaparecimento
da lagoa, os coqueiros cortados para a instalação da energia elétrica
representaram benefícios e trouxe melhorias à população. Sobre essas mudanças
afirma Mestre Sales:
Foi aparecendo pessoas fazendo casas, comprando terreno né, fazendo
casas na praia. Antes era casa de pescador. Aqui era uma lagoa (lugar
da sede da Associação dos Pescadores), nesse canto aqui era uma lagoa
né, na época do inverno, mês de maio ninguém conseguia passar por aqui.
Camarão? Aqui? No meio da estrada, era deste tamanho assim, bem
grande.
29
Na opinião do Mestre Sales, as alterações na paisagem da Prainha
aconteceram com a decorrência do fluxo e permanência de pessoas de fora na
comunidade. Por outro prisma, sua fala sugere contradição, quando afirma que a
lagoa aterrada deu lugar à sede da Associação dos pescadores, sem a
interferência direta do turista. Provavelmente tal lagoa compunha o universo das
brincadeiras e dos banhos das crianças da comunidade, e os camarões grandes
capturados no meio da estradafosse um dos itens da alimentação da população
local.
É patente nos versos do poeta “Amor”, a revolta e a preocupação com
as transformações impostas à Prainha pelo “invasor” e com suas interferências no
modo de vida dos pescadores, primeiros habitantes da comunidade:
Não existia uma pessoa para nos orientar.
29
Entrevista realizada com Mestre Sales, em 7 de janeiro de 2003.
Só chegava era turista nesse nosso Ceará.
Vinha aqui na minha praia.
Só tomar banho de mar.
Eram eles advogados, deputados e doutor.
Falando português claro, iludindo o pescador:
“Se eu ficar morando aqui você tem um protetor”.
Depois que fizeram as casas, pescador foi vigiar.
O doutor ilude ele com o resto do jantar.
Tem pescador nessa praia.... deixou até de pescar.
Pois assim tomaram conta da nossa grande Prainha.
Que há muito ela existe, nem é tua e nem é minha,
Porque de todas as praias, ela hoje é a rainha.
Eu chamo é de invasor, invadiu as nossas terras.
E vamos lutar mais tarde pra com eles fazer guerra.
Porque o povo da praia, meu amigo, aqui, já era.
Mas eu só sou um pescador, tenho direito a um lugar,
Para fazer meu barraco perto da beira do mar.
Eu quero ter esse direito, todo mundo vai me dar.
30
Corpo cansado, mente e firmeza na voz ao falar da difícil vida de
pescador e da “Prainha antiga”, que agora existe nas lembranças e em seus
versos saudosos. Versos que falam do pescador-caseiro, que se antes não tinha
patrão e sustentava a família com os produtos do mar, agora “deixou até de
pescar”. Versos que reivindicam morada perto da beira do mar, direito que a
condição de pescador lhe garantia.
Os versos do poeta Amor falam da indignação, talvez, sugestiva de
uma ilusão e/ou desilusão provocada pela chegada “do invasor”. As expectativas
criadas pelos habitantes locais com a chegada do “povo de fora”, assim como, as
novidades e benefícios que o “protetor” poderia lhes proporcionar, diluiram-se em
meio às promessas e ao “resto do jantar”.
Tentando entender melhor as denúncias e reivindicações, centrei
minha atenção na importância por ele atribuída ao mar e às terras da praia. Para
ele, ser da Prainha era antes ser pescador. Ser o povo da praiaé ter direito a um
lugar para construir a morada perto do mar. Um direito ameaçado pelo “invasor”,
aquele que vinha tomar banho de mar e convencer pescador a deixar de
pescar.
30
Entrevista realizada com o poeta Amor em 7 de janeiro de 2003.
Para a rendeira Zenaide o invasor era o italiano, esse pessoal que
vem de longe e tão tomando de conta de tudo, de tudo
31
. E o que é o pescador
sem mar? O povo da praia sem praia?”
O discurso da rendeira Zenaide reflete ambigüidade experimentada
pelas rendeiras. Se por um lado o italiano representava o invasor que se
apropriava, das terras próximas ao mar, por outro oferecia possibilidade de adquirir
as rendas fabricadas pelas mulheres da comunidade, e o peixe pois, às vezes,
como afirma o Sr. Sales a gente cansemos de encalhar aí, e o peixe ficava aí.
Tinha dia que ninguém queria comprar”.
O modo de vida, os laços familiares e de vizinhança, o trabalho, as
sociabilidades, as crenças e o lazer relembrados pelas rendeiras e pelos
pescadores delineiam, aos poucos, o universo da antiga Prainha. Lembranças que
se perdem em meio a outras, como das brincadeiras, das rodas de conversas à
boca da noite, dos namoros, das paqueras e das prosas.
Aqui nessa frente aí, isso (frente ao antigo bar do Sr. Leôncio), era uma
areia bem branquinha. Toda noite, todo pescador se reunia nessa frente,
nessa areia pra conversar, bater papo. Toda noite tava aí, hoje tudo
calçado né, esquentou, como esquentou.“
32
Ao falar das rodas de conversas ao fim da tarde, lazer experimentado
pelos habitantes da “Prainha antiga”, o Sr. Oliveira anuncia mudanças no modo de
vida da comunidade. O tempo da areia bem branquinha é hoje o tempo do asfalto.
As mudanças ambientais registradas na comunidade o testemunhas das
alterações no ritmo de vida da comunidade, nas relações sociais e das pessoas
com os lugares.
Dona Firmina prefere lembrar das festas e das brincadeiras.
Brincadeiras que parecem não mais fazer parte do universo atual das crianças da
Prainha:
Tem muita coisa que a gente se lembra que é bom né? Quando era festa,
as brincadeiras que a gente brincava muito quando era criança, de ciranda
31
Em momento algum durante a entrevista realizada em 14 de janeiro de 2003, a rendeira Zenaide
parou de confeccionar a renda. As lembranças da infância, da família e do aprendizado da renda
foram embaladas ao som dos bilros.
32
Entrevista com o pescador Oliveira, realizada em 7 de janeiro de 2003.
né, pega-pega. No meu tempo tinha pega-pega, agora as crianças brinca
mais não. De roda, brincava muito de roda.
33
É possível perceber nesta fala um tempo em que as brincadeiras,
pelas próprias características roda, ciranda, pega-pega, proporcionavam
liberdade e entrosamento entre as crianças. As imagens de uma Prainha antiga,
onde as brincadeiras aconteciam livremente, e com segurança, nos terreiros,
também são recordadas por da Dona Santa:
A Prainha não tinha energia, mas era boa. Nois ia pra todo canto né? Não
tinha medo. Nois brincava pelos terreiros, as brincadeiras era esconde-
esconde né, cirandinha, tudo nois brincava. Não era como agora, que agora,
menino não brinca menino não brinca, assiste televisão. Nóis brincava,
fazia tudo.
34
A leitura que a rendeira Santa faz da “Prainha de antigamente” indica
alguns pontos para reflexão. “Não ter medo” e “brincar pelos terreiros” são
expressões indicadoras de um tempo supostamente calmo e tranqüilo, cuja
descaracterização é atribuída exclusivamente à chegada do turista. a televisão
surge em suas lembranças como responsável pelas mudanças nas formas de lazer
das crianças e também dos adultos. Provavelmente a televisão
35
na comunidade
passou a atrair a atenção mais do que os bate papos em frente ao bar do Sr.
Leôncio, interferiu nas reuniões familiares à mesa e alterou comportamentos,
atitudes e hábitos dos moradores da Prainha.
A Prainha dos coqueiros, das casinhas de palha, dos lagos, das
brincadeiras, onde “jantava bem cedo, mais ou menos às cinco e meia”
36
era
33
Entrevista com a rendeira Firmina, realizada no Centro das Rendeiras em 26 de novembro de
2005.
34
Dona Santa, como é carinhosamente conhecida na comunidade recebeu-me em sua casa no dia
26 de novembro de 2005, depois da novela “Alma Gêmea” apresentada pela Rede Globo de
televisão, diariamente as dezoito horas. Respeitando sua decisão não ligava o gravador quando
conversávamos embaixo dos quiosques no Centro, segundo ela tinha muito barulho e muita gente
chamando. A entrevista não poderia também interferir no horário da “Serena e do Rafael”,
personagens principais da trama romântica global que tanto a agradava. Assim no dia marcada por
ela e no horário depois da “Serena” foi possível realizar a entrevista.
35
Muitos moradores da Prainha possuíram televisão em suas casas muita tempo depois da
chegada da energia na comunidade. No entanto, as proximidades entre os habitantes e as redes de
amizades possibilitavam à todos o acesso às imagens e novidades trazidas por esse veiculo de
comunicação.
36
Entrevista realizada com pescador Mestre Sales no dia 7 de janeiro de 2003.
também a Prainha do bar do Sr. Leôncio, o mais antigo da comunidade, e dos
bazares de rádio promovidos pelo Sr. Damião:
Não tinha energia né? Não tinha poste, não tinha energia. Mais de noite aqui
na frente não era assim. Ali na frente do Leôncio, o bar do Leôncio é o
primeiro daqui da Prainha, tem quarenta e dois anos o bar do Leôncio. Eu
era mocinha, mocinha, não, eu tinha entre nove e dez anos né? Mas a gente
sentava, ia brincar de “galinha choca”, de roda”, e moça, moça e rapazes
também. A gente se sentava e conversava, tinha muito respeito.
37
A narrativa da rendeira Zenaide nos mostra outras formas de lazer
além das brincadeiras. A falta da energia elétrica não era empecilho para os
encontros, as conversas e talvez as paqueras em frente ao bar do Sr. Leôncio.
Além das brincadeiras e do bar do Sr. Leôncio a vida noturna da
Prainha contava também com os bazares de rádio, e mais tarde de radiadora,
promovidos pelo Sr. Damião, comerciante mais abastado da comunidade. Estes
bazares, na maioria das narrativas, são apontados como opção de lazer. Eram
festas realizadas ao som de rádio e aconteciam embaixo de latada, espécie de
pequeno galpão feito de madeira, sem parede e coberto com palha. Por falta de
damas, homens dançavam com homens. A rendeira Auristela fala dessas festas:
Tinha rádio, fazia bazar de rádio na casa do Sr. Damião, dia de sábado
que eles fazia”
38
A seguir completa a rendeira Maria Helena:
Tinha radiadora, naquele tempo tinha uma radiadora ali. Eles colocavam
naquele coqueiro açulá a radiadora. Tinha festa de rádio, bazar de rádio.
39
A realização desses bazares contava com a ajuda de todos os
participantes. O Sr. Damião
,
dono
da radiadora, arrecadava dinheiro dos
participantes para comprar em Aquiraz a bateria do dio. Para evitar que a bateria
falhasse durante a festa, havia sempre uma de reserva. Tanto os bazares como o
bar do Sr. Leôncio, segundo a maioria dos entrevistados, o único da comunidade,
37
Entrevista realizada com a rendeira Zenaide em 14 de janeiro de 2003.
38
Rendeira desde os sete anos de idade e casada com o pescador Oliveira, a Dona Auristela
participou ativamente no processo de criação do Centro das Rendeiras, e hoje sua filha ocupa o
quiosque, que por muitos anos foi seu espaço de trabalho. Atualmente adoentada o pode mais
dedicar-se aos trabalhos na almofada. Entrevista realizada em 14 de janeiro de 2003.
39
Entrevista realizada com a rendeira Maria Helena no dia 25 de novembro de 2005.
encerravam, as atividades cedo da noite. Os ofícios da pesca e da agricultura
exigiam acordar cedo; antes do sol aparecer, pescador e jangada se
encontravam no mar e, o agricultor, por sua vez, nas roças capinando
e plantando.
Somam-se a essas formas de lazer, a ida à missa todas as semanas,
na igreja de Aquiraz, porque naquela época não havia igreja na Prainha.
Ao falar da religiosidade da mãe e das idas à missa, Dona Firmina
fornece informações importantes sobre a “Prainha antiga”: caminhos difíceis, cheios
de mato, estrada ruim e “tinha parte que era até de bagaço de cana”.
40
Minha mãe era muito católica. em casa todo mundo rezava o terço todo
dia. Minha mãe ia pra missa todos os domingos no Aquiraz, e de pés, e
levava quase todo mundo. Tinha que ir de pés (risos) porque aqui não tinha
igreja né. Agora é perto né? Porque não tem mato, e no tempo que a gente
ia que era mato? A gente fazia (também), a primeira sexta-feira do Coração
de Jesus, que a gente se confessava, na primeira sexta-feira do mês.
41
Essa realidade transformou-se somente quando a igreja da Prainha
42
foi construída. A construção contou com a ajuda de muitas mulheres da
comunidade, entre elas, a mãe da rendeira Firmina: minha mãe trabalhou muito
pra tirar esmola, pra fazer a igreja daqui.”
43
As missas, normalmente realizadas aos
domingos, assim como outras atividades religiosas ( batizados, casamentos, crisma
que aconteciam e acontecem na igreja da Prainha), são celebradas e ministradas
pelo padre da paróquia de Aquiraz, cujo padroeiro é São José do Ribamar
44
.
Outro lazer é a festa de Nossa Senhora dos Navegantes
45
, padroeiro
da Prainha, que ocorre na comunidade todo ano no fim do mês de novembro. As
novenas, as quermesses, as apresentações dos grupos folclóricos (capoeira, dança
do pescador, dança do coco) e do coral da Prainha, a procissão pelo mar finalizada
40
Entrevista realizada com a rendeira Auristela no dia 14 de janeiro de 2003.
41
Entrevista realizada com a rendeira Firmina no dia 26 de novembro de 2005.
42
Não uma data precisa sobre a construção da igreja da Prainha, uma vez que, ela foi sendo
edificada aos poucos e ainda hoje se encontra em processo de acabamento e reforma.
43
Entrevista realizada com a rendeira Firmina, em 26 de novembro de 2005.
44
Diz uma lenda conhecida pela maioria da população mais antiga de Aquiraz que a imagem de
São José do Ribamar apareceu em uma de suas praias e não pode ser conduzida a outra paróquia,
por causa do enorme peso que diziam aumentar a cada passo até tornar-se impossível o transporte.
A imagem ali permaneceu e até hoje é venerada pelo povo que celebram cultos e devoções ao
santo.
45
Nas narrativas realizadas pude perceber que a realização dessa festa é anterior à construção da
Igrejal. No entanto, essa construção desempenha papel importante nos festejos dos devotos de
Nossa Senhora dos Navegantes.
por uma missa num galpão na praia é prestigiada pela população e por muitos
visitantes.
É bonito na praia, tem a procissão pelo mar e tem a missa lá no barracão na
praia. Tem festa, tem novena, tem terço, tem bingo. São nove dias de festa,
é bom.
46
Somada à falta de energia elétrica, a precariedade das estradas e as
dificuldades de transporte contribuíram significativamente para que até os anos de
1970 a comunidade da Prainha mantivesse um certo isolamento da exploração
turística. O peixe era trocado por outros alimentos, principalmente por farinha. Os
trabalhos em renda de bilros eram comercializados de forma esporádica. Essas
relações “comerciais” se transformam à medida que novos atores sociais passam a
fazer parte da comunidade:
Hoje a Prainha....na época que foi no passado pra hoje tem diferença. Existe
uma parte boa, melhor entendeu, por causa do desenvolvimento, mas
também tem o seu lado negativo. Porque naquela época a gente podia
dormir até de porta aberta, não tinha problema nenhum. E a dificuldade de
transporte pra ir pra Fortaleza? Tinha que ir de pés até Aquiraz, ou de pés
até Messejana entendeu, pra pegar ônibus em Messejana, tinha essa
dificuldade. E hoje não. Hoje você sai de casa seis horas da manhã, oito
horas em casa de volta. Tem esse lado positivo, mas tem muito lado
negativo. Ninguém tem mais segurança, você dentro de casa, mas não tá
seguro
47
Essa narrativa mostra que a marcação do tempo pelo pescador
Oliveira vem associada às transformações ocorridas na Prainha. A época que foi
do passado pra hoje tem diferença”. A diferença que divide a Prainha do passado e
do presente se materializa na tranqüilidade de ontem e na insegurança de agora,
nos transportes que ajudaram a encurtar as distâncias e a ganhar tempo. Tempo
que certamente seria bem aproveitado em outras atividades. Se antes era preciso
um dia inteiro para chegar a Fortaleza, agora era possível ir e vir em menos duas
horas. Sobre a importância dos transportes, ele afirma também. Eu não gravo a
46
Entrevista realizada com a rendeira Firmina, em 26 de novembro de 2005.
47
Entrevista realizada com o pescador Oliveira em 7 de janeiro de 2003.
época , mas o desenvolvimento da Prainha eu penso que foi desde que
começaram entrar ônibus aqui”.
O fato “entrar ônibus”
48
na Prainha necessariamente está ligado à
melhoria das estradas que, por sua vez acontece com a chegada da energia. Na
fala do Sr. Oliveira era o desenvolvimento chegando, com sua parte boa, mas
também com seu lado negativo. A palavra “desenvolvimento” é um termo amplo,
vago e de possíveis interpretações. Possivelmente o desenvolvimento a que ele se
refere é a especulação imobiliária, a construção das casas de veraneio, dos hotéis
e pousadas e o crescimento populacional da comunidade.
Nessa perspectiva, a partir da década de 1970, a Prainha foi palco de
mudanças significativas que afetaram diretamente a vida da população. Das
mudanças ocorridas, a chegada da energia, em 1968, foi certamente a mais
marcante e a mais decisiva. Com a cidade iluminada, embora inicialmente poucos
tivessem acesso a esse “luxo”, a vida noturna se diversificou. Surgiram novos
bares, parques e circos chegaram à localidade. Os bazares promovidos pelo Sr.
Damião disputavam com as tertúlias.
49
As distâncias diminuídas pelo ônibus e os caminhos iluminados pela
energia elétrica proporcionaram valorização das terras próximas ao mar e,
conseqüentemente, atraíram interesse imobiliário. Em seus versos o poeta “Amor”
nos fala do corretor que, documentado ou não, apropriava-se das melhores terras
próximas ao mar e as vendia aos turistas do estado e os gringos. Gente que
chegou na praia dizendo que era doutor, e aquele não valia nada, apenas era um
corretor. Cercou tudo e vendeu logo seja por quanto for”
50
. Assim, mansões
foram construídas, muitos pescadores foram expulsos de suas casas, e alguns
deles abandonaram o ofício da pesca para se tornarem caseiros dessas mansões.
Embora a Prainha venha se descaracterizando com as construções
de casas de veraneio nas últimas três décadas, os pescadores ainda utilizam
jangadas em suas pescarias e as mulheres da comunidade continuam se
48
Segundo José Maria mara Santos, o primeiro ônibus a circular em Aquiraz foi o Misto do
Iguape. No entanto, foi somente a partir de 1963 que o sistema de transportes de passageiros se
intensificou com a chegada da Empresa Santa Lúcia. Se esses ônibus chagavam até a Prainha é
um incógnita, visto que, o acesso até a comunidade era muito difícil. Para mais detalhes ver:
Aquiraz: todos juntos ao novo milênio. Op. Cit.
49
Tertúlias eram festas ao som de disco de vinil. Nessas festas geralmente se ouvia musicas
românticas e eram momentos preciosos para uma maior aproximação, para as paqueras e os
namoros.
50
Entrevista realizada com o poeta Amor, em 7 de janeiro de 2003.
dedicando ao artesanato da renda de bilros, ofício que aprenderam desde a
infância.
1.3. Quem São e o que Fazem as Rendeiras da Prainha.
Elas trabalham na sua maioria, sem ordem, sem conforto, sem o menor
tempo necessário, tendo mil coisas que fazer na mesma hora, sentada na
areia, rodeada pelos filhos que as chamam de quanto em vez, das filhas às
quais procuram ensinar a arte desde criança, cercadas quase sempre de
galinhas e animais que criam, deixando por vezes a tarefa que se
empenham para atiçar o fogo, temperar a panela, lavar a roupa da casa,
que sei eu?..... para atender os mil labores de uma dona de casa pobre que
tem que fazer todos os serviços. E estas rendas saem perfeitas e limpas
como se a artista que as tivesse executado tivesse todo o conforto e uma
sala de trabalho convenientemente preparada.
51
Ao difundir um “paradigma indiciário Carlo Ginzburg
52
,” fala-nos de um
método. Nesse método, o historiador é equiparado a um detetive que busca
decifrar um enigma através de vestígios, indícios e fragmentos aparentemente
insignificantes que, sob um olhar menos perspicaz, passariam despercebidos.
A relevância dos relatos orais neste estudo é, sobretudo, valorizar
pistas, indícios, fragmentos e vestígios cuja finalidade é desvelar a história das
rendeiras da Prainha, ressaltando as trajetórias seguidas por elas até se tornarem
trabalhadoras e quais papéis desempenham como sujeitos ativos na sociedade em
que vivem. São mulheres que pelo viés do trabalho “não apenas transformaram a si
mesmo, como transformaram todos à sua volta e ajudaram a traçar o curso da
História.
53
O trabalho de montar, compor, cruzar, revelar o detalhe, dar
relevância ao secundário
54
, tendo como fontes relatos orais desvelou um campo
rico de possibilidades e de novas questões que foram ao longo do trabalho de
51
APUD: MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do Mundo Feminino. História da Vida
Privada no Brasil. Companhia das Letras, vol. 3. cap.5, 1003, p.418.
52
Sobre O Método Indiciário ver: GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. In: - “Sinais: Raízes
de um Paradigma Indiciário São Paulo. Companhia das Letras, 1989.”.
53
COSTA, Emília Viotti. Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue: A Rebelião dos escravos de
Demerara em 1823. São PAULO. Companhia das Letras, 1998. Introdução, p.18.
54
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e Memória Cultural. Coleção “História & Reflexões”. Cap.
IV e V. p. 65
campo ganhando destaque. Enquanto ouvia o relato da Sra. Auristela, da Sra.
Zenaide e de outras rendeiras da Prainha, lembrava-me das palavras da
historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias:
São muitas as dificuldades que se apresentam para os que ousam se
enveredar pelos os estudos das mulheres em sociedade, pois trata-se de
um terreno minado de incertezas, saturado de controvérsias movediças,
pontuado de ambigüidades sutis que é preciso discernir, iluminar,
documentar, mas que resistem a definições.
55
Se o campo é minado de incertezas e controvérsias movediças foi
preciso caminhar com passos leves, ouvir com atenção redobrada as palavras não
escritas, as não faladas. Foi preciso se esgueirar por entre aqueles lugares onde
se movem as figuras menores e furtivas”.
56
, a fim de documentar a multiplicidade
de papéis desempenhados por aquelas mulheres, que desde a infância se
aproximaram do ofício da renda de bilros para ajudar nas despesas da casa. Na
verdade, o aprendizado da arte de tecer os fios na infância era uma realidade muito
comum entre as famílias da comunidade da Prainha:
Eu fazia renda, aprendi com sete anos. Tinha aqui um grupo de americanos,
então essa renda que eu fazia, a pessoa que era encarregada com um
grupo de mulheres que trabalhavam fazendo as colchas, as toalhas finas
sabe? Aí a gente fazia e aquele dinheiro já passava pra minha mãe, aí já era
ajuda pra comprar produtos pra gente, comida. Porque às vezes o papai ia
pro mar
,
vida de pescador é assim, vai pro mar mas o que pega come, às
vezes só tirava mesmo o de comer”
57
A fala da rendeira Zenaide esclarece as dificuldades vividas por sua
família. Possivelmente essa realidade estendia-se à maioria das famílias de
pescadores da comunidade da Prainha. Aprender a renda na infância parecia uma
imposição “natural” em face das adversidades de uma vida de privações. O
dinheiro ganho com as “tirinhas de bico” e as toalhinhas fabricadas entre as
55
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Teoria e Métodos dos Estudos Feministas: Perspectiva Histórica
e Hermenêutica do Cotidiano. In: COSTA, Albertina de Oliveira e BRESCHINI, Cristina (orgs). Uma
Questão de Gênero. Rosa dos Tempos, São Paulo. Fundação Carlos Chagas, 1988, p.39.
56
BOSI, Ecléa. As Outras Testemunhas. Prefácio do livro Quotidiano e Poder, op. cit. p. 03
57
Entrevista realizada com Zenaide, em 14 de janeiro de 2003.
brincadeiras de criança, quando somado ao ganho dos pais, garantia a
sobrevivência da família.
Assim como Dona Zenaide, a rendeira Elizete dividia o tempo de
brincar e ser criança, com o aprendizado da renda:
A gente começa a fazer, a aprender a renda muito cedo, com oito anos eu já
sabia fazer e desde lá que eu faço.
58
No mesmo tom completa a rendeira Maria Helena:
Eu aprendi a fazer renda eu tinha sete anos, com oito eu fazia renda.
minha mãe fez uma almofada, botou os bilros né? eu comecei a fazer o
bico de acabamento. Eu comprava caderno, lápis, eu me vestia naquela
época com as vendas
59
As falas dessas mulheres nos trazem informações as mais diversas.
A primeira diz respeito à idade de começar a trabalhar. A idade das brincadeiras de
bonecas, de roda e das fantasias de criança era também a idade do trabalho, das
obrigações e das responsabilidades. Começar a trabalhar aos sete anos de idade
parece ser uma realidade comum entre as rendeiras da Prainha.
Eu fazia renda e uma senhora comprava, a esposa do Sr. Leôncio. ela
comprava a renda da gente. Então a gente juntava, trabaiava, juntava. A
gente ajudava em casa, era muito menino né? Meu pai era pescador, minha
mãe costurava muita, trabaiava
60
Em sua narrativa, a Dona Firmina revela indícios de que as crianças
foram criadas assumindo desde cedo certas responsabilidades quanto à
sobrevivência da família. Filhas de famílias numerosas essas crianças-rendeiras
iniciava o aprendizado da renda, talvez sem consciência do seu fim, para logo
transformar-se em importante ajuda no orçamento diário da família.
58
A entrevista realizada com a rendeira Elizete, atual presidente da Associação das Rendeiras da
Prainha, aconteceu em seu quiosque no dia 26 de novembro de 2005. Suas lembranças são
marcadas pelas dificuldades vividas por sua família, pelo aprendizado da renda ainda na infância e
pela figura da avó, muito presente em sua vida.
59
Entrevista realizada com a rendeira Maia Helena, em 25 de novembro de 2005.
60
Entrevista realizada com a rendeira Maria Firmina, no dia 26 de novembro de 2005.
Com sete anos de idade eu comecei a trabaiar. Trabaiei muito... às vez eu
fazia a janta deles (filhos), botava eles prá dormir, e o tempo que dava eu
tabaiava. A gente fazia venda aqui mesmo, de porta em porta. Às vez eu
ajuntava e ia vender na berada da praia, dia de domingo que eu ia prá paia.
Botava a caixa na cabeça e ia vender na praia, andava em todo canto, eu ia
vender. O sol quente, às vez até de resguardo, com a caixa na cabeça, eu ia
vender. Às vez eu vendia bem, porque era muito barato, tinha muita gente,
muita gente não conhecia. “
61
Essa fala é praticamente uma síntese da trajetória de muitas
rendeiras da Prainha, que buscavam nos trabalhos com renda de bilros
complementação do orçamento familiar, para melhorar as condições de vida e criar
os filhos. O desconhecimento e os preços baixos dos artefatos de renda são, para
Dona Estela, motivos pelos quais as vendas aconteciam. A referência que ela faz
ao valor monetário quando diz era muito barato sugere consciência do tempo
gasto na confecção das peças, do cansaço e das horas de sono perdidas, bem
como do material utilizado.
Logo em seguida a rendeira Estela fala do tempo do trabalho: o
tempo que dava eu trabaiava”, e das vendas: “a gente vendia aqui mesmo”. Vida e
trabalho se entrelaçam e se confundem. Se por um lado o trabalho não impedia os
cuidados com os filhos, por outro, a família não impossibilitava o trabalho. De um
modo geral, nas classes sociais menos favorecidas todos da família se ajudam
para garantir a sobrevivência do grupo. Numa realidade carente, o trabalho das
meninas-rendeiras certamente era visto como necessário e indispensável.
Para comercializar seu artesanato na praia, provavelmente a Sra.
Estela deixava seu filho recém-nascido com alguém da família ou com alguma
amiga que compartilhava com ela as limitações e as dificuldades de ser mulher,
mãe e dona-de-casa empenhada na complementação da renda familiar. Nem
mesmo o “estar de resguardo”
62
impedia de sair ao sol quente e andar por todo
canto em busca de compradores para as rendas.
Nessa perspectiva, o trabalho na almofada não comprometia as
tarefas domésticas e nem as obrigações e os cuidados com os filhos. Era realizada
61
Entrevista realizada com a rendeira Maria Estela, em 18 de fevereiro de 2003.
62
Resguardo é um termo usado para o período de repouso após o parto. Normalmente esse
período é de 45 dias e a mulher é aconselhada a não fazer esforço, ter uma boa alimentação e
tranqüilidade.
ao longo e ao fim do dia entre uma tarefa ou outra. Eram também, tarefas
compartilhadas em sociedade com amigas e vizinhas.
Nos relatos das rendeiras, as palavras e os seus sentidos família,
casamento, filhos, comunidade, religiosidade, trabalho e dificuldade se misturam e
se confundem como peças de um quebra-cabeça que, aos poucos, vão tomando
forma e retratando o modo de vida de um povo, privado do saber oficial, “quase
abandonados”
63
que, compartilhando as tradições, reinventa o cotidiano num
exercício de se adaptar às condições de vida. As necessidades da dura realidade
dessas mulheres era o que definia os papéis e determinava os espaços. O
cotidiano dessa gente era constantemente refeito num exercício constante na luta
pela sobrevivência.
A mulher da comunidade da Prainha, a rendeira que trabalhava desde
a infância, sempre ajudou nas despesas da casa e na criação dos filhos. O trabalho
feminino para completar a renda familiar ia além da confecção da renda de bilros.
Revelava-se também nas seguintes ações: criar galinhas, vender ovos,
confeccionar e vender flores, pescar, fazer bolos e doces. Muitas vezes, essa
mulher simples garantia com a renda e com outros trabalhos o sustento da casa,
em parte, por falta de um companheiro, ou devido ao vício da bebida, muito comum
entre os pescadores.
Eu criava galinha, vendia ovos... era uma ajuda. Me casei e fiquei
trabalhando. Eu nunca tinha pescado: aí eu aprendi a pescar com a minha
sogra e minha cunhada. Eu mandei fazer um gerere (cesto feito de palha
usado para pesca. Geralmente esses cestos são fabricados pelo próprio
pescador) e nóis ia pescar na barca e fazia comida. Ele(companheiro) ia pro
mar, aí eu... já os peixinhos a gente torrava prá comer com feijão. As vez
deixava prá de tarde, fazer a janta, prá ninguém dormir sem jantar.
64
Segundo Auristela, as mulheres rendeiras da Prainha não se prendiam
aos bilros nem à almofada. Elas realizavam diferentes trabalhos, aprendiam
atividades as mais diversas para ajudar e/ou prover o sustento da família. Quase
sempre, essas atividades eram rotuladas por elas e por seus companheiros como
bico, ajuda e/ou passatempo.
63
Expressão utilizada pelo pescador Francisco de Sales Almeida
referindo-se aos pescadores e às
rendeiras. Entrevista realizada em 7 de janeiro de 2003.
64
Entrevista realizada com a rendeira Auristela, em 14 de janeiro de 2003.
Outros depoimentos corroboram essas informações. As lembranças
de Dona Dica vislumbram a imagem social da Prainha e o compromisso de sua
mãe com a família:
Minha mãe é rendeira, criou a gente com a renda. Ela vendia tijolinho,
cocada pra ajudar.
65
No mesmo tom, a rendeira Zenaide faz menção às atividades da
mulher provedora:
Quando eu me casei, continuei fazendo renda. Já fiz de tudo nessa minha
vida, trabalhei em casa de família, doméstica, trabalhei num hotel fazendo
comida
66
Essas mulheres, embora desempenhassem múltiplas atividades para
ajudar no sustento da casa, não se percebiam como mulheres trabalhadoras, uma
vez que essas atividades eram quase sempre realizadas no espaço do lar,
considerado o espaço de reprodução. Desenvolvidas nessas circunstâncias, não se
constituía, em trabalho na concepção capitalista. De acordo com a reflexão da
historiadora Mary Del Priore é importante destacar:
“A emergência do capitalismo instaura um novo processo de divisão de
trabalho em múltiplos níveis; mas o fundamental é a divisão entre homens e
mulheres, vinculando os primeiros à esfera da produção, da vida pública e
os constituindo “chefes de família”, e fixando as mulheres à esfera
domestica enquanto mães de família”.
67
Por outro lado, as peculiaridades percebidas na comunidade da
Prainha, principalmente quanto à idade de começar a trabalhar, e ao papel de
provedora desempenhado por muitas mulheres, aproxima-nos das palavras da
65
Entrevista realizada com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
66
Entrevista realizada com a rendeira Zenaide, em 14 de janeiro de 2003.
67
Mary Dle Priore. op. cit. p. 268
historiadora Del Priore que, em sua fala, esclarece que a dinâmica social não é
dicotomizada:
Historiadores que têm a família por objeto de estudo vêm percebendo que a
vida privada e o cotidiano familiar são um lugar de produção social das
existências, não podendo ser reduzir a um lugar de reprodução e
manutenção. Ambos, vida privada e cotidiano, são, por conseguinte, teatro
de um processo portador de historicidade.
68
A rendeira trabalhava em casa. Produzia durante a semana para
vender nos fins de semana na praia ou de porta em porta. Algumas tinham
compradores certos. Segundo Auristela, o envolvimento e o compromisso dessas
mulheres com o trabalho em nada afetava os afazeres domésticos e as obrigações
“naturais” de mãe e esposa. O dinheiro ganho, quando somado ao do companheiro,
era bem aceito.
Ajudei a criar meus filhos com a renda, [...]. Foi minha irmã que ensinou,
minha mãe não tinha paciência. Aí eu fazia renda pra vender. Tinha as
pessoas que comprava na minha porta e vendia em Fortaleza no mercado,
o mercado velho. Eu vendia a renda e comprava coisas pra meus filhos.
69
Outros depoimentos corroboram essas informações. A rendeira Estela
nos fala de seu compromisso com a sobrevivência da família:
Ajudo, ajudo em casa, quando ele não tem, eu tenho. Às vez, ele passa a
semana no mar, às vez eu tenho um dinheirinho guardado pra pagar uma
prestação, ai eu tiro pra comer. Se a gente não comer, não pode viver, né?
Tem que comer.
70
68
Idem. p. 268
69
Entrevista realizada com a rendeira Auristela, em 14 de janeiro de 2003.
70
Entrevista realizada com a rendeira Maria Estela, em 18 de fevereiro de 2003.
A rendeira Santa completa:
Ele (o companheiro) ia pro mar não deixava nada, eu tirava aquelas
tirinhas de bico, aí ia vender, aí aquele dinheirinho eu ajudava.
71
As informações contidas nos depoimentos acima anunciam aspectos
interessantes do compromisso e da importância por elas atribuídas à alimentação
da família. O dinheiro ganho com as rendas e guardado para outras necessidades
é a garantia do sustento da casa e da comida na mesa nos dias de ausência do
pescador no mar.
Imensas dificuldades econômicas marcaram a vida das rendeiras e de
seus companheiros, na maioria pescadores. Dificuldades que cotidianamente eram
superadas no mar e na terra. Enquanto os homens se ausentavam e enfrentavam
os desafios em alto mar, em suas jangadas, para garantir o peixe para a família, as
mulheres enfrentavam os desafios de cuidar e alimentar os filhos.
Metaforicamente, a História se manteve por um longo tempo restrito à
“sala de visitas”. É na sala de visitas onde se encontra os melhores móveis, os
tapetes, os mais belos enfeites. Na parede principal, encontram-se os quadros e os
retratos dos homens ilustres da família. Raramente encontramos em meio a esses
retratos, os das mulheres. A elas era destinada uma parede menos visível e menos
iluminada, objetivando mais escondê-las do que mostrá-las. Esta sala se mantinha
arrumada e nada era permitido tirar do lugar.
As mulheres, restritas aos outros cômodos da casa, que abrigavam os
objetos, os móveis e as pessoas menores, sem importância, percorreram longo
caminho e encontraram no Movimento Feminista e na diversidade e abrangência
dos novos temas contemplados pela História Social uma porta pela qual entrariam
na História.
Essa perspectiva de estudar a sociedade, as relações sociais e o
cotidiano
72
de atores até então desconhecidos da historiografia trouxe
71
Entrevista realizada com a rendeira Santa, em 26 de novembro de 2005.
72
“O estudo do cotidiano abarca uma frente ampla de áreas multidisciplinares e envolve uma
estratégia de questionamentos e de critica da cultura”. Sobre o estudo do cotidiano ver: DIAS, Maria
Odila Leite da Silva. Hermenêutica do Quotidiano na Historiografia Contemporânea. Revista Projeto
História. São Paulo, 17, novembro, 2998. Ver também: DE CERTEAU, Michel. A Invenção do
Cotidiano: 1 – Artes de fazer. Petrópolis, vozes. Rio de Janeiro, 1994.
inevitavelmente as mulheres à luz dos novos acontecimentos. Entretanto, os
historiadores sociais defendiam neste momento a idéia de uma identidade coletiva
e homogênea para definir a mulher, ocultando, assim, as múltiplas identidades,
diferenças, necessidades e subjetividades que as classificariam, posteriormente, de
“mulheres”.
É inegável a importância do Movimento Feminista para o surgimento
da História das Mulheres. Embora alicerçado nas dualidades homem/mulher,
dominação/submissão e reafirmando ainda mais o discurso da superioridade
masculina e da opressão sobre a figura feminina, mantendo, por longos anos, no
anonimato todas as formas de resistências, sutilezas e tramas (re)criadas pelas
mulheres para se oporem à autoridade e ao poder legitimado pelo homem, pela
família e pela sociedade, o barulho provocado pelas feministas ecoou entre os
historiadores, provocando a quebra do silêncio no qual foram mantidas por longos
anos.
As mulheres rendeiras da Prainha, a despeito da influência e do
barulho provocado pelas feministas, sempre estiveram presentes, ativas e atuantes
na vida social na comunidade. Ora ajudando e/ou suprindo a necessidade da
família, ora reinventando o cotidiano e criando estratégias informais de
sobrevivência, essas mulheres tinham consciência da importância de suas ações,
da sua capacidade de luta e de transformação das condições sociais de vida, e da
manutenção da dignidade.
Minha ade criação, que criou minha mãe ajudou a criar nóis e ensinou
todo mundo fazer renda. Eu tinha uns dez anos quando comecei fazer
renda, minha mãe juntava as peças de bico e mandava vender. Casei
com dezoito anos. Nóis casemos nóis não tinha nada, não tinha nada, nada,
nada, nada. Aí ele pescava, a gente passou tanta coisa difícil, a gente
passou tanta necessidade. Eu possuí três casas, a primeira era de paia,
toda de paia sabe? Depois possuí uma de taipa, nesse mesmo canto e
agora possuo essa a custa do meu trabaio. Meu sonho era possuir
uma casa de tijolo, aí eu trabaei, trabaei.
73
Dona Santa, como é carinhosamente conhecida na comunidade,
realiza em sua narrativa um apanhado geral sobre a vida, as obrigações, as
dificuldades, as ações, os compromissos e os sonhos da maioria das mulheres
73
Entrevista realizada com a rendeira Santa, em 26 de novembro de 2003.
artesãs da Prainha. Mulheres que, para além da influência feminista e da
invisibilidade dos registros históricos, foram, respeitando suas possibilidades,
tecendo ao longo dos tempos suas redes sociais, escolhendo seus caminhos e
escrevendo sua própria história.
A casa de tijolo tão sonhada e conquistada pela Dona Santa é
representativa do modo de vida, do trabalho e do compromisso da maioria das
artesãs da comunidade e é representativo da segurança, da dignidade e do
conforto que lhes proporcionariam.
Inicialmente a historiografia feminista apresentou a mulher, sem, no
entanto, perceber sua capacidade de luta e transformação. Os estudos da década
de 1980 buscavam justamente suprir essa lacuna e mostrar uma mulher atuante,
ativa, capaz de reinventar o cotidiano, de criar mecanismos e estratégias
informais
74
de sobrevivência, de elaborar variadas formas de resistência à
dominação masculina e à dominação da classe social. Essa mulher atuante,
percebida como sujeito histórico, capaz de participar e de transformar as condições
sociais em que vive, desconstrói mitos e estereótipos
75
criados e difundidos para
justificar sua exclusão das esferas do econômico e do político.
Embora a história oficial as rejeitasse e as definisse como frágeis,
dependentes, emotivas e incapazes, insistindo assim em mantê-las confinadas à
esfera doméstica, registro da presença marcante da mulher da classe popular
trabalhando, dirigindo e/ou provendo o sustento da família. Circulando e se
fazendo presente no espaço público, destinado ao homem, a mulher foi por muito
tempo considerada um corpo estranho quando ultrapassava o limite entre o
privado e o público, ameaçando assim o domínio masculino.
O modelo de família que se baseia nos papéis do homem provedor
do lar e da mulher dona-de-casa experimentou um declínio significativo ao longo da
segunda metade do século XX. O declínio desse padrão familiar reflete as
profundas transformações que ocorreram na esfera do privado, na nova estrutura e
organização familiar e nas relações de gênero. Este declínio alargou as
74
O livro Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX de DIAS, Maria Odila Leite da Silva, obra
citada nesse estudo, traz uma discussão pertinente sobre mecanismos e estratégias informais de
sobrevivências de mulheres pobres, escravas e forras sobrevivendo do artesanato caseiro e do
pequeno comércio ambulante no processo de urbanização de São Paulo.
75
Por muito tempo os mitos e estereótipos criados e difundidos pelas diferenças biológicas e pelos
elementos culturais, sociais, políticos e econômicos influenciaram e até determinaram papéis e
comportamento diferenciados para homens e mulheres.
possibilidades das mulheres, que foram lentamente tecendo suas histórias de vida,
buscando sempre novos espaços e novas formas de resistências e, assim, exigindo
sair do anonimato da História e ter direito à dignidade, à liberdade de serem, além
de mães, e dona-de-casa, trabalhadoras, profissionais reconhecidas e respeitadas.
Embora essa não fosse a realidade das rendeiras da Prainha e das
classes sociais menos favorecida, acostumou-se a pensar no homem como
responsável pela manutenção da casa e a mulher, pelos cuidados para com a
família.
Embalada ao som dos bilros escutei da rendeira Zenaide a história
inversa dos papéis de prover e cuidar.
A minha mãe fazia renda, sustentou os filhos com a renda. Meu pai não
tinha nem como reclamar, porque a mamãe sustentava mais a casa do que
o próprio pai.
76
Ao que tudo indica, essa situação era vivida por muitas famílias da
Prainha. A rendeira Zenaide ao rememorar o tempo da sua infância, fala do
trabalho realizado por sua mãe e do compromisso para com o sustento dos filhos.
Conscientes ou não dos papéis que desempenhavam, e das limitações impostas
pelas suas condições sociais, essas mulheres rompiam padrões de normalidades,
questionavam as regras e os espaços preestabelecidos e predeterminados, em
parte, por um discurso social do “lar feliz, onde a mulher é apresentada como
rainha”
77
.
Uma rainha sem castelo nem súditos, que dava graças a Deus chegar
de noite, porque de dia todo mundo fazia suas coisas em casa, lavava roupa,
cuidava da casa, botava água da cacimba pra casa, pra beber, porque a gente não
tinha muita água. Agora a gente tem bomba, motor né? E tinha a almofada pra
fazer.
78
“Chegar de noite” na fala acima representa um momento de descanso
e de lazer. No caso da Prainha, um lazer em frente ao bar do Leôncio, onde
aconteciam os bate-papos, as rodas de conversas, as paqueras e os namoros.
“Botar água” surge na maioria das narrativas como uma tarefa árdua e
necessária, visto que não havia água potável, senão retirada das cacimbas ou dos
76
Entrevista realizada com a rendeira Zenaide, em 14 de janeiro de 2003.
77
MALUF, Marina e MOTT, Maria Lucia. Recônditos do Mundo Feminino. op. cit.
78
Entrevista realizada com a rendeira Zenaide, em 14 de janeiro de 2003.
rios. Esse trabalho era realizado geralmente pelas mulheres que, desmistificando o
discurso da fragilidade feminina, andavam longos percursos com baldes de água
na cabeça. Essa água era utilizada para beber e lavar os utensílios domésticos. As
roupas eram lavadas na beira do rio.
Além do trabalho, lavar roupa na beira do rio representava um
momento de lazer, de companheirismo e de formação de sociabilidades. Essa
tarefa era realizada quase sempre em pequenos grupos. Enquanto a roupa estava
sendo lavada, havia sempre alguém preparando a comida, que podia ser panelada,
buchada, feijoada, peixada etc. As crianças menores tomavam banho de rio,
brincavam e brigavam, enquanto os mais velhos pescavam garantindo assim o “de
comer” amanhã.
As conversas fluíam. Entre uma peça ou outra de roupa lavada, as
informações e as novidades eram contadas. O tempo passava e ao final do dia a
tarefa fora realizada.
Eu fazia renda, renda estreita, eu vendia, eu ajudava a comprar minha
farda de estudar, papel. Esse homem que me comprava a renda se
chamava Canoa, o apelido dele. eu fazia a renda, quando completava a
peça ele comprava. De manhã, trabalhava. Primeiro eu ajudava aguar as
plantas, botava água de beber que era de uma cacimba que nóis cavava,
varria o terreiro, eu ia trabalhar na almofada com minha prima, ficava em
frente a casa.
79
A rotina descrita por Dona Auristela o difere muita da rotina da
maioria das rendeiras da comunidade da Prainha, uma vez que elas eram e são
responsáveis pelos cuidados com a casa e com a alimentação da família. O dia
para essas mulheres parecia se estender para além das vinte e quatro horas,
tantas eram as atividades realizadas por elas.
Obedecendo ao um ritmo ditado por regras e convenções, os laços
familiares, de vizinhança e de sociabilidade foram acontecendo e dando contornos
nítidos aos sujeitos e aos lugares. Os espaços foram sendo construídos e os
papéis definidos. Construídos e definidos por mulheres que muito antes de se
unirem a um companheiro e formar uma família, tinham a obrigação e a
responsabilidade de contribuírem para as despesas da casa. Dessa forma, o
79
Entrevista realizada com a rendeira Auristela, em 14 de janeiro de 2003.
casamento significava trabalhar mais e ter mais responsabilidades, como afirma a
rendeira Dica:
Eu toda vida fiz renda depressa, eu faço essa renda, eu emendo trabalhos,
colchas, toalhas. quando casei continuei fazendo a renda; foi que eu
fiz pra ajudar a fazer a casa, a criar os meninos, é que a gente trabalha.
80
As rendas fabricadas no espaço do lar, não obedeciam a horário certo,
eram feitas em meio às atividades corriqueiras de dona-de-casa. As vendas eram
realizadas geralmente na comunidade para os poucos compradores que as
revendiam, de porta em porta, ou aos domingos na orla marítima. Essas vendas
por suas próprias características não davam margem a fidelidade entre rendeira e
comprador, uma vez que não eram os clientes que as procuravam, eram elas que
iam até os compradores.
Fazer a renda durante a semana e sair para vender aos domingos
fazia parte da rotina da maioria das mulheres artesãs da Prainha, visto que não
tinham lugar certo para exporem seus produtos. Os poucos momentos de
ausências que as vendas exigiam não geravam conflitos nem cobranças do
companheiro. Assim, o domingo, dia de descanso e lazer para a maioria das
pessoas representava para a rendeira Auristela e suas companheiras mais um dia
de trabalho. Além das vendas que fazia durante a semana, o domingo era
promessa de bons negócios, principalmente pelo aumento dos banhistas que
buscavam lazer nas areias da Prainha.
Quando eu acabava de almoçar aqui, dia de domingo botava uma caixa na
cabeça e ia mais as outras né? Andar nas casas dos ricos vender, nóis
fazia às vez boas vendas.
81
Domingo, logo após o almoço em família, por volta das treze horas, a
Sra. Auristela e suas companheiras se reuniam no “terreiro” da sua casa. A rotina
de mais um dia de trabalho se repete. Caixas de papelão na cabeça contendo o
trabalho de toda uma semana, deixam para trás a casa arrumada, a louça limpa, o
80
Entrevista com a Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
81
Entrevista realizada com a rendeira Auristela, em 14 de janeiro de 2003.
marido e os filhos alimentados e saem para vender suas rendas na praia, ou de
porta em porta, nas “casas dos ricos”.
82
A narrativa da rendeira Firmina anuncia
essa realidade:
Antes disso aqui (Centro das Rendeiras), o pessoal vendiam na praia.
Botava na caixinha e ia vender na praia
83
Completa a rendeira Estela:
Eu vendia renda na praia, né, andava em todo canto, eu ia vender. O sol
quente, às vez até de resguardo, quinze dias de resguardo com a caixa na
cabeça, ia vender. Não vendia nem só minha, vendia das outras também.
84
Um fator importante observado entre as rendeiras é a rede de
solidariedade que se estabeleceu entre elas. Quando alguma estava
impossibilitada de sair para vender seus produtos, havia sempre alguma disposta a
fazê-lo. Embora o peso da caixa que levava na cabeça aumentasse, jamais
deixavam de ajudar umas as outras. Essa ajuda estendia-se também às
encomendas que elas recebiam e às vendas realizadas na casa da própria
rendeira, como afirma Dona Auristela:
Tinha muitas pessoas aqui que trabalhava [com renda], aí eu cedia a linha
pra elas fazer pra mim levar[para vender]. Minha casa era muito visitada, eu
tinha muito trabaio aqui, meu e das outras [...] elas [rendeiras] trazia os
trabaios pra minha casa, eu não fazia questão de mostrar pra vender.
85
Essa ajuda da qual nos fala as rendeiras Estela e Auristela, assim
como a rede de solidariedade, a infância, a adolescência, o namoro e o casamento
na comunidade da Prainha, possivelmente obedeceram a uma rotina comum a
todas as comunidades pequenas, uma vez que as mulheres das camadas
populares estão mais presentes no espaço público, são mais abertas ao convívio
82
Expressão usada pelas rendeiras para falar das poucas pessoas de posse que havia na
comunidade. Geralmente essas pessoas eram de fora e tinham casas de veraneio na Prainha.
83
Entrevista realizada com a rendeira Firmina, em 26 de novembro de 2005.
84
Entrevista realizada com a rendeira Maria Estela, em 18 de fevereiro de 2003.
85
Entrevista com a rendeira Auristela, em 14 de janeiro de 2003.
com a vizinhança, com o grupo de trabalho e de lazer, uma relação mais
independente, uma comunicação mais autêntica, impregnada de significados.
As condições das estradas e a falta de transportes contribuíram
significativamente para que o intercâmbio entre a Prainha e outras localidades
fosse extremamente precárias até os anos 1970, fato que justificava as estratégias
de vendas realizadas pelas rendeiras da comunidade.
1.4. Renda de Bilros: Trabalho, Cultura, Tradição.
Na medida em que o processo se repete, tem-se a possibilidade de se falar
sobre tradição, entendida, aqui, como prática e justificativa do artesanato
que se mantém, variando ou não, como algo de interesse do grupo e como
elemento em que se define uma determinada linha de atividade econômica.
86
À semelhança de outras mulheres, as rendeiras da comunidade da
Prainha são responsáveis pelos cuidados com os filhos e pela lida diária.
Acordavam cedo, varriam o terreiro, cuidavam da casa e da alimentação da família
e, entre uma atividade ou outra, sentavam no chão, próximas à porta, para
aproveitarem a luz natural e confeccionarem a renda. Fazia-se renda enquanto
cuidava-se da casa e o menino dormia, nas horas de folga depois do jantar, até
onde o cansaço permitisse, uma vez que normalmente eram as primeiras que
acordavam e as últimas que se recolhiam.
A cultura da renda de bilros é, segundo relatos das próprias rendeiras,
uma prática desenvolvida pelas mulheres da Prainha bastante tempo. Na
realidade, as raízes desta atividade, vista essencialmente como feminina, é tão
antiga que a memória não pode situar, a ponto de serem lançadas na imprecisão
de um tempo, traduzida no presente por expressões do tipo: Ah faz tempo que na
Prainha tem rendeira”.
86
ALMEIDA, Luiz Sávio de. As Ceramistas Indígenas do São Francisco. Revista Estudos
Avançados, 17 (49), 2003, p.256.
Essa expressão “faz tempo” nos leva ao remoto aparecimento da
renda de bilros, justificada às vezes por antigas lendas cheias de imaginação e de
romantismo.
Conta-se que, em Veneza, certo pescador partiu para uma longa viagem
aos mares orientais. Mas antes da partida, confiara sua noiva um ramo de
coral delicadamente cortado. Para encher o vácuo de sua solidão infinda,
teria a jovem procurado imitar com a agulha, num rendilhado linho, a
preciosa lembrança. Entretanto, não o conseguia porque a complexidade do
desenho dificultava-lhe a tarefa. Então, tomando os fios entre as próprias
mãos, entrelaçou-os e os dispôs de tal maneira que teceu, sem o auxilio da
agulha, as malhas e o desenho ornamental. O amor e a saudade teriam
produzido a renda maravilhosa.
87
Por outro lado, completa Herman Lima:
A lenda flamenga é em torno duma alga. A bordadora é de Antuérpia. O
noivo partiu para longe, deixando-lhe também de lembrança uma erva
marinha estranhamente recortada. Os dias de ausência sucedem-se; o bem
amado não regressa. Para encher as horas, a rapariga põe-se a copiar à
agulha, sem outro desenho e sem tecido de suporte, a alga maravilhosa.
88
Lendas à parte, há entre os autores que trabalham com essa temática
divergências quanto à origem da renda de bilros e à sua chegada ao Brasil. Para
Maria Luiza Pinto de Mendonça:
A referência histórica mais antiga que se conhece às rendas de bilros está
em documento de partilha, feita em Milão, de duas irmãs, em 1543, onde se
fala, no italiano da época, em uma “binda lavrorata a poncto de dói fuxi per
uno lenzolo” (uma faixa trabalhada a ponta de doze bilros para bordar um
lençol). Noutro documento, conservado na Biblioteca Real de Munique, a
referência que a renda de bilros foi introduzida na Alemanha no ano de 1536
por negociantes provenientes da Itália e de Veneza.
89
87
MENDONÇA, Maria Luiza Pinto de. Algumas Considerações sobre Rendas e Rendeira do
Nordeste. Separata do Boletim do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará, 1961, p.85
88
LIMA Herman. Rendeiras: Imagens do Ceará. Cadernos de Cultura. Ministério da Educação e
Cultura – serviço de documentação. P.85
89
DE MENDONÇA, Maria Luiza Pinto de. Op.cit. pp.46-47
Segundo Valdelice Carneiro Girão “nunca se poderá afirmar, com
segurança, o país originário dessa atividade artesanal”
90
. No entanto, quanto à sua
chegada ao Brasil afirma:
A carência de bibliografia não nos permite apurar quando teve início esse
artesanato entre nós. É-nos permitido, porém, afirmar, com relativa
segurança, que a renda foi trazida por mulheres portuguesas, vindas com
suas famílias da mãe-pátria, onde tradicionalmente se dedicavam a esse
mister. Veio aculturar-se e difundir-se entre nós, nas zonas do litoral e do
sertão, e, através da mulher do povo, tornou-se uma cultura de folk”. Em
inícios do século XVII, adquiriu essa arte feição nitidamente nacional, que
até hoje se conserva e se faz notar pelos nomes dados aos seus diferentes
tipos. A região por excelência das rendas de bilros, no Brasil, é o Nordeste,
mais particularmente o litoral e o sertão do Ceará.
91
O primeiro estudo sobre a verificação e a distribuição geográfica da
renda de bilros no espaço brasileiro se deve ao casal Luísa e Artur Ramos.
Segundo o casal, na região Nordeste concentra-se o maior foco de produção desse
artefato, mais precisamente no Ceará e Alagoas. No entanto nos estados de
Pernambuco, Paraíba, Piauí e Rio Grande do Norte foram encontrados também
produção da renda de bilros, porém de forma menos expressiva. Esse estudo está
divido em duas partes: Coleção Luísa Ramos e Coleção Rendas do Ceará. Esse
trabalho:
Representa um estudo da renda nos municípios cearenses, feito em
contato com a rendeira, aprendendo com ela os segredos da arte, suas
características mais importantes no campo folclórico, sua semelhança com
as de
outras regiões brasileiras, e mesmo estrangeiras, assim como os
motivos de sua decadência.
92
Na coleção Arthur Ramos pertencente ao Museu Arthur Ramos em
Fortaleza consta amostra das variadas rendas de bilros e dos utensílios utilizados
em sua confecção. Coletadas e reunidas pela sua esposa Luisa Ramos, dessa
90
GIRÃO, Valdelice Carneiro. A Renda de Bilros e seus Artífices. Trabalho de pesquisa realizado
pela Conservadora do Museu do Instituto de Antropologia da Universidade Federal do Ceará, 1966,
p. 4
91
GIRÃO. Valdelice Carneiro. Renda de Bilros. Coleção do Museu Arthur Ramos. Edições da
Universidade Federal do Ceará, 1984. p.5
92
GIRÃO, Valdelice Carneiro. Rendas de Bilros. op. cit. P.5
coleção resultou o livro A Rendas de Bilros e sua Aculturação no Brasil”, escrito
em parceria com o seu marido e antropólogo Arthur Ramos, obra que só foi
publicada em 1948, ano de sua morte.
A primeira parte dessa coleção compreende o material de rendas
antigas, reunido por Luísa Ramos, e consta de amostras de renda de bilros da
maioria dos estados brasileiros e de alguns países estrangeiros; a segunda parte
contém amostras de produção mais recentes.
O foco neste item não é discutir as origens da renda de bilros
93
na
Prainha e nem tampouco no Ceará. O objetivo aqui é, sobretudo, compreender a
maneira como as mulheres artesãs da Prainha pensam o artesanato, renda de
bilro, como uma atividade de sobrevivência e como um saber passado pela tradição
de uma geração à outra. Um saber que guarda suas especificidades estabelece os
laços sociais e, desse modo, garante a continuidade dos comportamentos e dos
modos de vida que constituem uma cultura.
Produzir a renda de bilros, ou renda de almofada
94
, como é
popularmente conhecida no Ceará, requer esforço físico
95
, concentração e
habilidade. Sentadas no chão ou em pequenos bancos de madeira conhecidos
como tamborete, tendo à sua frente a almofada, essa mulheres artesãs
confeccionam a renda obedecendo a um modelo produzido em pequenos pedaços
de papelões
96
, ou simplesmente deixam a imaginação e a criatividade fluírem e
93
A bibliografia sobre a renda de bilros é muito restrita. Para um maior aprofundamento obre o tema
ver: DE MENDONÇA, Maria Luiza Pinto. “Algumas considerações sobre Rendas e Rendeiras do
Nordeste”. Separata do Boletim do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará, 1961.
GIRÃO, Valdelice Carneiro. Rendas e Bordados do Ceará. Separata de O Ceará, edição,
Fortaleza, 1965, A Renda de Bilros e seus Artífices. Trabalho de pesquisa realizado pela
conservadora do Museu do Instituto de Antropologia da Universidade Federal do Ceará, 1966,
Rendas de Bilros. Coleção do Museu Artur Ramos. Editora UFC, 1984; LIMA, Hermam. Rendeiras:
imagens do Ceará. Cadernos de Cultura. Ministério da Educação e Cultura. Serviço de
documentação; Revista Brasileira de Folclore. Ano III 6, 1963, SALES, Vicente Juarimbu.
Rendas. In: LODY, Raul Giovenni da Mata, Artesanato Brasileiro. Funarte, 1986.
94
Geralmente as almofadas são cilíndricas ou arredondadas, variando as dimensões conforme a
região e o tipo de renda a ser produzida. São confeccionadas de qualquer tecido, dependendo
apenas das posses da rendeira. Medem aproximadamente 80 centímetros, e suas extremidades são
costuradas formando um saco oco. Esses sacos são cheios de capim, palhas de bananeiras ou
outros materiais disponíveis.
95
Há relatos de rendeiras que após muitos anos de trabalhos na almofada, ficaram doentes com
problemas de coluna, de vista e dores nas pernas.
96
O papelão é também conhecido como pique. É um cartão grosso onde é perfurado o modelo da
renda a ser confeccionada. Esse modelo pode ser copiado de outro papelão, de revistas, livros ou
pode ser criado pela rendeira. Esse cartão pode ser feito de qualquer papelão e o seu tamanho
varia de acordo com o modelo da renda. Muitas vezes o papelão é picado pela rendeira que vai
executar a renda, mas existem rendeiras especializadas na tarefa. Modificam modelos, criam novos
criam peças belíssimas, que são utilizadas como adornos nas roupas ou nos
móveis e utensílios da casa.
As conversas e as entrevistas que realizei foram embaladas ao ritmo
descompassado produzido pelos bilros
97
. A habilidade com que as rendeiras
manejavam estes pequenos pedaços de madeiras, denominados bilros, conduzindo
um emaranhado de fios, é uma visão agradável para quem teve a oportunidade
de presenciá-las em atividade.
Não raro, o discurso tradicional apresenta os trabalhos manuais,
trabalhos esses que exigiam muita habilidade e paciência
98
, como atividade
habitual, pacata, intermediária de outros afazeres, essencialmente integrada ao
“modus vivendi” feminino”.
99
Esses trabalhos eram atividades realizadas no lar e considerados
úteis e importantes, principalmente porque supriam as necessidades da família e
preenchiam o tempo “ocioso” das mulheres. Esses trabalhos vistos pela
historiografia tradicional como agradáveis ocupações femininas, apresentavam-se
como um fator positivo para a economia da família e a possibilidade de um ganho
extra, um requisito necessário a um bom casamento
100
.
Com ou sem intenção de ser “prendada” e assim arranjar um bom
casamento, provavelmente muitas mulheres ao se dedicarem aos trabalhos
manuais deram vazão à imaginação e à criatividade, transformando essas
ocupações em momentos de lazer, sociabilidade e convívio com os vizinhos,
amigos e com a comunidade. Momentos esses que lhes permitiam fugir da lida
e são verdadeiras guardiãs desse saber. Algumas guardam esses papelões como verdadeiros
tesouros.
97
Os bilros são os instrumentos que conduzem os fios para formar a renda. São pequenos, feitos de
madeira, com uma esfera no final (cabeça do bilro), para evitar que o fio escorregue. Podem ser
feitos de duas peças ou inteiriços, de uma peça só. Ao ser movimentados essas peças produzem
um som agradável.
98
O fato de o trabalho exigir muita habilidade e paciência era, portanto atribuído a mulher. Essa
concepção do estereotipo de docilidade natural da mulher estava presente na historiografia
tradicional como uma maneira de limitar a atuação da mulher às atividades domésticas ou àquelas
que o exigisse racionalidade, visto que, a mulher era mais emoção. Sobre essa temática ver:
NOVAIS Fernando A. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras. Vol.3,
cap. 5, 1993.
99
DE MENDONÇA. Maria Luiza Pinto. op. cit. P.39..
100
Até pouco tempo atrás o casamento era a opção mais inteligente para a mulher. Desde criança, a
mulher era educada para ser esposa, dona-de-casa e mãe em tempo integral. Os trabalhos manuais
faziam parte dos predicados necessários a um bom casamento. Essas atividades transmitiam
recato, que eram realizados no lar, diminuía as despesas e evitava desperdícios com compras
desnecessários. Ver: MALUF, Maria e MOTTA, Maria cia. Recônditos do Mundo Feminino.
História da Vida Privada no Brasil. Companhia das Letras. Vol. 3 cap. São Paulo, 1993.
diária dos serviços domésticos e dos problemas do dia-a-dia. Sobre essa realidade
afirma Zenaide.
Às
vezes a almofada da gente era a psicóloga da gente e continua sendo
porque [...] às vezes a gente com um poblema quer desabafar [então] a
gente encontra, até as respostas [no som] do barulho dos bilros né? Aqui
[na almofada] a gente se perde, enterte a mente da gente, depois a gente
encontra a solução pro poblema.
101
“Se perder” ao som provocado pelos bilros certamente não lhe
garantia a solução para os problemas, que provavelmente envolvia família, dinheiro
e trabalho. Por outro lado, esses momentos de envolvimento e de intimidade com a
almofada, somados aos belíssimos trabalhos produzidos pelas suas mãos,
possivelmente tornavam os problemas mais simples e mais ceis de serem
resolvidos.
A oralidade é o caminho privilegiado para registrar a experiência
dessas mulheres, pouco letradas, mas que guardam o aprendizado de uma
atividade que ensinam mostrando como se faz, ou ensina fazer fazendo ou
aprendem de olhar.
A gente aprende mais é no olho e quando traz aquilo no sangue né,
porque é uma coisa que, como se fosse uma herança”.....”Eu aprendi vendo
mais minha avó fazer. Minha avó, ela teve mais paciência de deixar em
mexer na almofada dela, nos bilros do que a minha mãe. Minha avó, quando
ela não tava na almofada eu ia lá mexer e ela não dizia nada.
102
Em seu depoimento, a rendeira Elizete nos fala como acontece o
aprendizado da renda, ressaltando a importância do apoio da família. No seu caso,
a avó foi a pessoa que lhe ensinou a arte e os segredos do fazer renda. Mas esse
aprendizado representa para ela “quase uma conseqüência”, pois ser filha e neta
de rendeira é “trazer no sangue” um aprendizado que representa também uma
herança.
Eu queria aprender a renda, ela (mãe) dizia que não, ela achava eu era
muito criança, eu tinha sete anos. Quando ela saía, eu ia mexer nos bilros
dela. Então, eu peguei um coco verde, peguei um caixãozinho de doce, fiz a
101
Entrevista realizada com a rendeira Zenaide, em 14 de janeiro de 2003.
102
Entrevista realizada coma rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
almofada, peguei os palitos de coqueiros e os coquinhos que eu tinha e fiz
os bilros. eu roubava linha dela, escondida né? Ía pra detrás da porta, e
ela trabalhando do outro lado, eu ía perto dela olhava o que ela estava
fazendo, chegava na minha almofada e fazia. que a minha tinha uma
dificuldade muito grande porque eu tinha que enfiar o espinho e bater né, no
coco, aí quebrava o espinho. Eu aprendi a fazer renda assim
103
.
Como vimos no depoimento acima, o fazer renda, o aprendizado e
tudo que representa a experiência vivida e transmitida a outras gerações passam
pela observação e o treino, que representam saberes acumulados no cotidiano e
nas lutas pela sobrevivência. Esse aprendizado pode ser feito não apenas pelo
discurso, mas por rituais, gestos ou outras formas de expressão de uma
determinada cultura.
Nessa perspectiva, a tradição familiar tem enorme peso no processo
de aprendizagem da renda. Pertencer a uma família de artistas, ou crescer em
meio artesanal é geralmente condicionante não de dar continuidade à categoria,
mas manter os vínculos afetivos, a memória, as trocas simbólicas e os elos de
solidariedade, necessários à sobrevivência cotidiana de cada artesã.
Quando a rendeira Zenaide fala dos bilros, do coco e do caixãozinho
de doce que se transforma em almofada, dos palitos de coqueiros e dos espinhos,
ela nos revela aspectos interessantes e peculiares de uma cultura vivenciada dia-a-
dia pelas meninas-rendeiras da Prainha:
Eu aprendi a fazer renda assim: nessa época a gente aprendia assim. Tinha
os coquinhos, os coquinhos caíam do coqueiro, porque tinha muitos, e a
gente fazia a almofada daquele coquinho maior, os pequenininhos a gente
fazia essa cabecinha de bilros, e os palitos a gente enfiava nos bilros. A
gente fazia assim, até de caçoar, aqueles cascos de caranguejos, e foi
assim que eu aprendi a fazer renda.
104
Dona Dica refere-se a um tempo em que o aprendizado da renda
estava intimamente ligado ao processo de produção dos instrumentos de trabalho,
e estes eram confeccionados com os materiais disponíveis na paisagem local.
Confeccionar a almofada, os bilros, fazia parte de um ritual de iniciação comum
entre as meninas-mulheres daquela comunidade.
A época por ela referida era a época da “Prainha antiga”, dos
coqueirais e de muitos coquinhos. Em meio aos banhos nos rios e às brincadeiras
103
Entrevista realizada com a rendeira Zenaide, em 14 de janeiro de 2003.
104
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
de crianças, muitos desses coquinhos eram transformados pelas mãos hábeis
dessas meninas-rendeiras em almofadas e bilros, onde elas confeccionavam suas
primeiras rendas. Nesse universo das brincadeiras e do aprendizado da renda não
havia resistências das mulheres da comunidade em deixar suas filhas aprenderem
o ofício da renda, muito embora algumas delas fizessem restrições à pouca idade,
talvez, sugestiva das dificuldades em manusear dos bilros.
A minha primeira almofada foi de coco, coco verde, com os palitos de palha
do coqueiro. Os coquinhos que caíam, aqueles coquinhos pequenininhos
com os palitos enfiados eram os bilros, e a linha, era o resto da linha que
minha avó dava sobe? Aí eu fui aprendendo, aí foi onde eu comecei.
105
Outros depoimentos corroboram com essas afirmações.
Eu aprendi a fazer renda era com coco, coco do coqueiro, o coco maior, e
os bilros era os pequenininhos e esses paus era os palitos. Pegava aqueles
fundos de rede e puxava os fiapos e enrolava, e os espinhos era os palitos
de coco. Aí eu fui aprendendo a renda
assim
106
As respostas mais comuns quando indagadas sobre quem as ensinou
a fazer a renda eram: Eu aprendi com minha mãe, que aprendeu com a mãe dela
e eu aprendi brincando com minhas amigas”. Essas mulheres esquecem o
desconforto do espaço (ora reduzido, ora o apropriado) e da posição
constantemente sentadas (no chão ou em pequenos bancos de madeira) e criam
nas almofadas peças belíssimas como roupas, toalhas, paninhos, saídas de banho,
colchas de cama etc.
O aprendizado do feitio durante a infância revela aspectos
interessantes sobre as brincadeiras com os próprios objetos utilizados na
confecção da renda.
Nóis brincava, nóis ia pra debaixo dos coqueiros, porque tinha muito
coqueiro, agora não tem mais, porque foi cortado. Aí nóis ia pra debaixo dos
coqueiros, pegava os coquinhos, amarrava umas pernas de linha, assim no
pau, botava uns palitos enfiados dentro dos coquinhos, amarrava umas
pernas de linha e enfiava um bocado de espinhos nos coquinhos e ia
105
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
106
Entrevista com a rendeira Maria Helena, em 25 de novembro de 2005.
trabaiar. Aí pra fazer a barata, aí a minha mãe é que ensinava a nóis, mas o
trocado mesmo, nóis é que aprendemos mesmo.”
107
Nesse processo de aprendizagem e transmissão da renda, a tradição
familiar interfere de forma quase que determinante. Pertencer a uma família de
rendeiras certamente influenciou a “menina” Estela a aprender o ofício. Esse
aprendizado realizado entre as brincadeiras de criança é reforçado pelos
ensinamentos da mãe. Fazer a “barata”
108
significava um passo mais difícil após o
“trocado”
109
. Nesse momento, o saber guardado pela mãe, que aprendeu com mãe
dela, é posto em prática e passado a outras gerações.
Provavelmente a rendeira Estela, assim como as suas companheiras
aprenderam o trocado, que se constitui basicamente na troca dos bilros por três
movimentos: o de cruzar os fios torcê-los e traçá-los, em suas almofadas feitas com
o coco e com os bilros de palitos de coqueiros.
O coco, muito comum nas zonas litorâneas, surge nas narrativas
como elemento central no processo de confecção das primeiras almofadas das
meninas rendeiras da Prainha. Esse aprendizado era motivo de diversão e
acontecia em meio às brincadeiras, o que demonstra o caráter “livre” de se
aprender o ofício da renda.
Todas as rendas têm um ponto inicial, o trocado, dele se origina a
imensa variedade de pontos que compõem o universo da renda de bilros origina-se
do trocado. Os pontos mais conhecidos são: trança, traça, tijolinho, pano, ponto
solto, cordão, filó, coentro e grade. Os nomes dados a esses pontos podem variar
de uma localidade para outra. Por exemplo: no Ceará, a traça é conhecida por
barata ou baratinha; em Santa Catarina por bananinha e em Sergipe por palma.
À proporção que a rendeira faz a renda, a renda faz a rendeira,
deixando claro que esse processo de autoconstrução é uma via de mão dupla, e
que essas mulheres, enquanto responsáveis por suas próprias ações, realmente
se tornam autoras de seus próprios conceitos; isto é, tomam a responsabilidade
pelo que sua própria cultura passa a ter feito com elas”.
110
107
Entrevista com a rendeira Maria Estela, em 18 de fevereiro de 2003.
108
Aqui no Ceará, “Barata” é o nome dado à trança, um dos pontos que brota do trocado dos bilros.
109
O trocado é o ponto básico da renda, a qualidade deste ponto depende da habilidade da rendeira
e da linha utilizada. Do entrelaçamento dos bilros surge uma variedade de cruzados e torcidos que
são conhecidos por pontos, como a trança, traça tijolo etc.
110
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zaahar, 1990, cap.5, p.189.
O baixo custo para produzir a renda é um forte aliado dessas
mulheres, visto que parte dos materiais necessários à sua fabricação são retirados
da paisagem local, e os instrumentos de trabalho (almofada, bilros, espinhos) o
normalmente confeccionados por elas.
Quanto ao fio, matéria-prima sica para o fabrico da renda, este era
comprado. Entre as rendeiras entrevistadas nenhuma produzia o fio para o
consumo. Elas adquiriam em Aquiraz, em Fortaleza ou compravam de eventuais
vendedores que vinham oferecer na Prainha. O baixo custo para confeccionar a
renda é explicada com detalhes:
Na semana que eu já sabia fazer renda, eu ia fazer na almofada dela. Ela
chegou, perguntou a todo mundo quem tinha feito na almofada dela.
Ninguém....todo mundo tinha medo de apanhar né, aí eu disse ‘fui eu que
fiz, fui eu mamãe que fiz’. ela achou bonito, aí me disse: “então,
amanhã vamos fazer sua almofada”. pegou fez a almofada para mim,
foi mais eu nas bananeiras, tirou as palhas, fez o paninho pra mim fazer
minha primeira almofada. Aí eu comecei a fazer minha renda.
111
nesse processo de transmissão da cultura da renda, saberes que
são próprios a cada um. As rendeiras normalmente não faziam seus próprios
desenhos no papelão.
Nessa época quem fazia o papelão era Maria Caetana, que morreu. Às
vez, a gente mandava ela pinicar os desenhos, ela pinicava. Eu tenho é
muito papelão que ela pinicou. Ela morreu, mas eu tenho é muito papelão
que ela pinicou.
112
As palavras da Dona Estela anunciam indícios de uma organização
informal e/ou espontânea e divisão cultural do trabalho realizado por essas
mulheres. Na época descrita por ela, a Sra. Maria Caetana fazia o papelão. Ela era
a guardiã desse saber e, quase todas as rendeiras mandavam-na pinicar os
desenhos.
Como a Dona Maria Caetana aprendeu a fazer o papelão e quem a
ensinou foram indagações que permaneceriam sem resposta, pois muito antes do
início dessa pesquisa ela havia falecido. No entanto, em meios às conversas e
111
Entrevista realizada com a rendeira Zenaide, em 14 de janeiro de 2003.
112
Entrevista com a rendeira Maria Estela, em 18 de fevereiro de 2003.
às entrevistas, obtive informações das companheiras de renda que na família dela
era por tradição todas as mulheres saberem fazer o papelão. Esses papelões eram
protegidos e guardados como verdadeiros tesouros.
No papelão, que é também conhecido por “pique”, o desenho guia os
pontos da renda que se pretende confeccionar. Cada papelão contém um desenho.
Guardados e colecionados pelas rendeiras podem ser utilizados por muitos anos, e
muitos estão nas mãos de algumas famílias gerações. Normalmente o papelão
novo é reproduzido de um antigo, quando danificado, ou criado ou cópia de
tecidos, revistas ou roupas já prontas.
Dentre as rendeiras entrevistadas somente a Sra. Elizabete
confecciona o papelão para uso próprio; as outras compram-no dela. O ganho
financeiro dessa vendas é pouco significativo, uma vez que os preços dos modelos
variam de um a cinco reais e uma papelão geralmente é usado por muito tempo.
Sobre essa arte de fazer o papelão ela afirma:
Aprendi o papelão assim. Eu vejo um desenho, eu copio. Eu desenho, crio
ou copio de outro papelão. Se alguém pedir pra eu desenhar, eu desenho,
mesmo que traga só o tamanho e tudo, eu crio.
113
A narrativa de Dona Dica reforça esse indício de uma relativa
organização do trabalho.
Eu enchia, emendava trabalhos, fazia colcha, toalha, assim, para outras
sebe? Elas faz as aplicações, faz 60, 70 e manda emendar toalhas, sabe?
Aí eu fazia esse trabalho mais a minha mãe.
114
Além de confeccionar renda, ensinada pela mãe, Dona Dica realizava
o trabalho de emendar as aplicações
115
para formar peças maiores como toalhas
113
Entrevista com a rendeira Elizabete, realizada em 25 de novembro de 2005, constituiu-se num
desafio. A Dona Elizabete falava pouco e quase sempre respondia às minhas indagações com
monossílabos, o que era necessário insistir, instigar e repetir as perguntas diversas vezes. Ao final,
depois de muita conversa, ela falou da infância, da renda de bilros, ofício vivenciado pelas mulheres
da sua família há gerações, e do papelão, arte que aprendeu sozinha e a diferencias das demais.
114
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
115
As rendas são fabricadas de várias formas: o METRO (bicos ou pontas usadas para margear os
tecidos e entremeios), em QUADROS (compondo quadros de diversos tamanhos que depois de
prontos, são costurados e formam toalhas de mesa de tamanhos variados, cochas de cama,
toalhinhas, guardanapos etc.), APLICAÇÕES (que podem ser em forma de flores, folhas corações,
leques) e servem para enfeitar tecidos, roupas ou emendados se transformam em peças maiores,
como toalhas de mesa, colchas de cama e peças do vestiário feminino, INTERIÇAS (uma peça,
de mesa, colchas de cama. Essa habilidade o se estendia a muitas, fato que lhe
garantia uma relativa admiração e respeito por parte das companheiras.
Nessa organização estavam presentes a solidariedade e o
companheirismo. Quando alguma rendeira recebia encomendas, na maioria das
vezes, dividia o trabalho para que outras também ganhassem. Quando iam à busca
dos compradores na orla marítima levavam os produtos das companheiras que
estivessem impossibilitadas de sair.
Veio uma moça de Londrina, ela me deu o tamanho do sutiã e disse
‘eu quero assim, assim’, ficou lindo, lindo esse sutiã, com umas continhas
aqui, outras continhas aqui. eu vou mandar pra ela, pra Londrina. ela
vai encomendar mais outras coisas, a gente pra quem quiser fazer
também.
116
É interessante notar o envolvimento entre a rendeira e a almofada,
seu instrumento de trabalho. uma relação de intimidade, companheirismo e
cumplicidade, muito bem descrita na citação a seguir:
Algumas rendeiras costumam escrever nos bilros a sua vida íntima; noutro,
o dia do batismo... em um terceiro, o nome do noivo, num, outro, ainda a
data do casamento. E assim por diante, de modo que estas almofadas se
tornam ainda mais estimadas pelas rendeiras, principalmente as que
relatam todas as passagens tristes e felizes da vida íntima destas, num
verdadeiro jornal sagrado,
117
Refletir sobre as experiências dessas mulheres, que no espaço do lar
desenvolveram um trabalho, ganharam dinheiro e adquiriram uma certa autonomia,
é, sobretudo, buscar compreendê-las como sujeitos historicamente construídos em
suas relações sociais. Esta busca remete-nos ao conceito de Experiência Social,
em Thompson:
Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo
não como sujeitos autônomos “indivíduos livres “, mas como pessoas que
experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como
necessidades e interesses como
antagonismos, e
em
seguida “tratam” essa
considerada por muitas rendeiras como difíceis de fazer); pode ser utilizados como aplique no
decote de camisolas, blusas, vestidos e roupas de crianças. Sobre tipos de rendas e aplicações ver:
Revista Brasileira de Folclore, ano II n° 6, 1963.
116
Entrevista com a rendeira Elizabete, em 25 de novembro de 2005.
117
Apud: MALUF, Marina e Mott. op. cit, p.418.
experiência em sua consciência e sua cultura das mais complexas maneiras
e em seguida agem, por sua vez, sobre sua situação determinada.
118
Dessa forma a renda de bilros, tradicionalmente ensinada pelas
mães às meninas-mulheres rendeiras da Prainha, influenciou no processo de
construção e orientação, uma vez que assumiram desde cedo muitas
responsabilidades. Nesse processo de auto e (re)construção, fizeram do
aprendizado da renda uma profissão, um meio de vida, que com os recursos
adquiridos da venda dos produtos dividem e/ou sustentam as despesas da casa,
financiam a escola dos filhos, constroem e reformam suas casas.
Na perspectiva do universo das rendeiras da Prainha, é importante
perceber a cultura da renda de bilros como expressão das formas materiais e não-
materiais pelas quais elas criam e recriam, fazem e refazem, elaboram e
reelaboram o cotidiano, através dos trabalhos com as mãos. Trabalhos estes que,
vendidos informalmente, garantiam a sobrevivência da família.
A relação entre trabalho, cotidiano e o meio está explicitada na
própria nomenclatura dos trabalhos e, em geral, reflete o universo cultural das
rendeiras: “palha de coqueiro”, “peixinho”, “pé de pinto”, “tijolo”, “meia lua”, “bico de
pato”, “pata de caranguejo”, entre outros.
No universo cultural da Prainha, onde a renda e pesca se
completam, seja no modo de vida, na sobrevivência da família, nos costumes e
tradições, Dona Dica fala de um tempo de coisas simples e dos trabalhos
realizados na almofada.
Naquele tempo não tinha essas coisas né? De fazer arroz, macarrão, não
tinha essas coisas né? Era botar o peixe no fogo, a gente vinha e se
sentava na almofada dela, começava a trabalhar, e trabalhava também
nos coquinhos.
119
A distância entre a Prainha e as comunidades vizinhas, o difícil
acesso dificultado pela quantidade de mato nas estradas, feitas de bucha de coco,
de palha de coqueiro e palha de cana
120
e a raridade de transportes
possivelmente motivavam o encarecimento e a demora na chegada do “arroz” e do
118
THMPSON, E.P. A Miséria da Teoria. Op. cit,p.13
119
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
120
Entrevista realizada com a rendeira Maria Helena, em 25 de novembro de 2005.
“macarrão” à mesa dos moradores da comunidade. Talvez por tais motivos, estes
alimentos se constituíssem num “luxo” a que poucos tinham acesso.
“Essas coisas” das quais nos fala a Dona Dica revelam, além do
entrelaçamento das culturas da renda e da pesca, um modo de vida que vem
lentamente se alterando. As palavras da rendeira Zenaide oferecem-nos indícios
dessas alterações.
Quando a gente é criança, a gente é filha de pescador e filha de rendeira, a
gente....a primeira coisa que faz, os meninos aprende a pesca né? Hoje
não, hoje tá tudo mudado. Eu tenho uma filha, ela sabe fazer renda, mas ela
não quer fazer renda pra meio de vida.
121
No tempo rememorado pela Sra. Zenaide, ser filho de pescador e de
rendeira tinha um peso significativo no momento de escolher um ofício ou
profissão. Provavelmente, as escolhas eram limitadas e as possibilidades
profissionais fora do universo familiar, reduzidas.
A pesca e a renda sempre estiveram presentes no cotidiano da
comunidade da Prainha, garantindo a sobrevivência da população. Essa realidade
descrita pela rendeira Zenaide transforma-se. À medida que a Prainha se insere no
mercado turístico, a população cresce, diversificam-se as oportunidades para as
novas gerações, que não vêem mais na renda e na pesca as únicas alternativas de
trabalho.
Na verdade, a produção de renda de bilros na Prainha se manteve
por muito tempo restrita ao espaço do lar, em meio aos afazeres domésticos, como
esclarecem algumas das narrativas citadas na pesquisa. A atividade da renda
somente ultrapassava os limites do privado nos raros momentos de venda na orla
marítima ou de porta em porta. o obedecendo a horários, a padrões, a formas e
a tamanhos preestabelecidos, as artesãs detinham a autonomia da própria
produção.
O tempo de elaboração, assim como as cores, modelos, formas e
tamanhos de cada peça refletiam o tempo disponível, a criatividade, o gosto e as
escolhas de quem a fabricou. Assim, trabalho e cultura representavam um modo de
vida, cujo ritmo era ditado pelas próprias artistas da renda.
121
Entrevista com a rendeira Zenaide, em 14 de janeiro de 2003.
O ritmo na produção e nas vendas informais dos artefatos de renda
de bilros, bem como o ritmo da comunidade da Prainha como um todo, sofreram
transformações significativas, a partir de 1979, com a construção do Centro das
Rendeiras. A construção deste Centro interferiu de forma decisiva no universo de
vida e de trabalho das mulheres artesãs, porque provocou alterações diversas nas
relações familiares, e alargou as possibilidades de atuação delas na esfera pública.
A intervenção das políticas blicas estaduais, na organização, produção e venda
dos artefatos em renda, foi relevante para o processo de transformação das
relações de compra e venda, bem como para importância desses produtos como
bens de consumo no mercado turístico.
As transformações e conseqüências advindas da criação do Centro
das Rendeiras e das influências das políticas públicas no trabalho e no cotidiano da
comunidade da Prainha serão objetos de análise no segundo capitulo.
CAPÍTULO II
“CENTRO DAS RENDEIRAS”: TRABALHO E COTIDIANO DAS RENDEIRAS DA
PRAINHA
O artesanato em geral e, em particular, a renda de bilros tem sido
objeto de estudo de folcloristas, sociólogos e antropólogos
122
, por se caracterizar
em atividade coletiva, representativa do local de origem, de cunho popular,
chegando a identificar-se com o folclore e com o mundo simbólico que o rodeia.
Também tem sido tema de estudo nas esferas governamentais representadas, por
instituições ligadas à preservação cultural, como a Fundação Nacional do Arte
(FUNARTE), ou mesmo por órgãos superiores da administração federal, como o
Ministério do Trabalho. Esses estudos revelam uma preocupação além de cultural,
socioeconômica.
Portanto, as atividades artesanais passaram a despertar também o
interesse de alguns setores econômicos da sociedade, do turismo, por exemplo. De
produto das manifestações culturais, como expressão folclórica ou de arte popular,
passa a ser percebido como opção para melhoria de vida de populações de baixa
renda.
Nesta perspectiva, este capítulo pretende abordar um panorama das
políticas públicas de fomento às atividades artesanais no Brasil e no Ceará, o que
propiciou a construção do Centro das Rendeiras da Prainha, e assim, ressaltar as
importantes transformações ocorridas naquela comunidade.
2.1 Políticas Públicas e Trabalho Artesanal no Brasil.
122
O trabalho de Arthur Ramos Renda de Bilros e sua Aculturação no Brasil, publicado em 1948,
ano da sua morte, é pioneiro do ponto de vista antropológico. A Coleção de Rendas Luisa Ramos,
que motivou o livro compreende renda de bilros do Brasil e de outros países. Luisa Ramos, mulher
do antropólogo Arthur Ramos, é também co-autora do livro: Renda de Bilros Coleção Arthur
Ramos, de Valdelice Carneiro Girão, já mencionado nesta pesquisa.
A começar das primeiras décadas do século XX, foi se configurando
no Brasil um modelo de desenvolvimento industrializante. Novos conceitos, novas
idéias, e formas de produção relegaram o artesanato ao plano das atividades
marginais, forçando o deslocamento de suas questões para a área do folclore.
Possivelmente essa realidade colaborou para que os primeiros estudos sobre
renda de bilros tenham sido realizados por folcloristas
123
.
Somente a partir de 1950 os olhares do governo voltaram-se para o
trabalho artesanal quando, então, foi incluído no planejamento econômico do Brasil
e passou a integrar projetos e discussões regionais, que tinham por objetivo
incrementar o desenvolvimento econômico onde essas atividades resistiram ao
esquecimento e à falta de investimentos.
A criação do Instituto de Pesquisa e Treinamento do Artesanato
(IPTA)
124
em 1957, na Bahia, foi a primeira experiência concreta de projeto
direcionado ao artesanato. Embora o IPTA tenha encerrado as atividades três anos
após sua criação, esta experiência foi positiva e parece ter influenciado outras
tentativas nesse campo.
Para o Nordeste
125
, região com grande concentração de artesãos, o
incentivo ao artesanato representava, nesta perspectiva, um meio de equilíbrio
econômico-social, uma vez que, as atividades artesanais absorviam a mão-de-obra
de baixa qualificação. Essa preocupação estava explícita na mensagem
presidencial, de outubro de 1951, que justificava a criação do Banco do Nordeste.
Não se pode desprezar, numa região subdesenvolvida, com população
abundante e com longa tradição de indústrias locais e domésticas, o amparo
123
Estudos desenvolvidos por pesquisadores do folclore como Francisco de Paula Leite Oiticica A
Arte da Renda no Nordeste (1967), assim como outros, demonstram a estreita ligação entre
artesanato, folclore e antropologia.
124
O Instituto de Pesquisa e Treinamento do Artesanato (IPTA) foi criado com a finalidade de
realizar estudos e pesquisa sobre o trabalho artesanal no Estado, suas condições técnicas e
econômicas. Desenvolver projetos e elaborar planos que viabilizassem melhores condições de
trabalho para os artesãos, assim como o escoamento dos produtos artesanais, eram preocupações
primordiais desse programa. LIMA, Antônio Aquilino de Macedo e AZEVEDO, Ivanildo Mendes. O
Artesanato Nordestino: Características e Problemática Atual. Fortaleza, BND/ ARTENE, 1982.
Estudos Econômicos e Sociais, v. 14.
125
No Nordeste do Brasil, ainda hoje encontra-se uma grande quantidade de artesãos. Pesquisa
realizada pelo BNB em 1957, se fazia uma estimativa de haver na Região 83.600 artesãos,
sendo que 75% encontravam-se no Ceará, 21% na Bahia, 2% no Piauí e os restantes 2% nos
Estados de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Paraíba e Rio Grande do Norte” Para informações mais
detalhadas ver: LIMA, Antônio Aquilino de Macedo e AEVEDO, Ivanildo Mendes, obra já citada.
financeiro aos pequenos produtores a elas ligados. A organização desse
esparso recurso econômico tem importância não desprezível para ampliar
as oportunidades de emprego, sobretudo de mulheres, de que é legendária
a indústria das rendas do Nordeste, mas também dos homens nas épocas
de paradeiro e crise e no tempo de lazer, propiciando assim um meio,
frequentemente despercebido das estatísticas, de elevação dos níveis de
vida.
126
O BNB (Banco do Nordeste do Brasil) e a SUDENE
(Superintendência de Desenvolvimento para o Nordeste) desempenharam papéis
fundamentais na introdução de programas para estimular as atividades artesanais
no país. No âmbito regional e estadual, estes órgãos enfatizam a importância
destas atividades, proporcionando o surgimento de centros e pólos artesanais.
As primeiras ações se concretizaram após pesquisa realizada pelo
BNB, em 1957, sobre o artesanato regional (Aspectos Econômicos do Artesanato
Nordestino), que deu suporte à criação do I Plano Diretor
127
da SUDENE,
elaborado em 1960, cujo objetivo era reconhecer as necessidades e assistência
técnica e financeira ao numeroso grupo dos produtores artesanais. O programa
apresentado pelo I Plano Diretor deveria:
Objetivar a melhoria dos padrões artísticos, o treinamento de aprendizes,
orientação técnica para melhoria de rendimento dos processos adotados,
adequação ao mercado, financiamento e garantia de preços. Com uma
melhoria de acabamento artístico dos produtos e uma orientação técnica na
confecção dos mesmos, dirigida de acordo com as preferências dos
consumidores, tornar-se-ia possível a instalação de grandes bazares para a
venda de produtos nos principais centros consumidores do País.
128
126
LIMA, Antônio Aquilino de Macedo e AZEVEDO, Ivanildo Mendes. O Artesanato Nordestino:
características e problemática atual. Fortaleza, BNB/ARTENE, 1982. p.103.
127
Entendo que a importância do I Plano Diretor, elaborado na década de 1960, justifica-se por ser
representativo de ações mais direcionadas e preocupadas com o planejamento e desenvolvimento
das atividades artesanais no Nordeste. As ões desenvolvidas pela SUDENE compreendem
também; o II Plano Diretor (1963-1965); o III Plano Diretor (1966-1968) e o IV Plano Diretor (1969-
1973). É importante ressaltar que no período correspondente ao II Plano Diretor a ARTENE
(Artesanato do Nordeste S.A) se firmou como órgão responsável pela assistência, organização e
incentivos às atividades artesanais. É necessário também sublinhar a substituição, em 1972, do IV
Plano Diretor pelo Plano de Desenvolvimento do Nordeste (PDA), bem como o desinteresse da
SUDENE pelas atividades desenvolvidas pela ARTENE, uma vez que este órgão não estava
desempenhando e nem atingindo os meios para os quais foi criado.
128
Antônio Aquilino de Macedo Lima e Ivanilton Mendes de Azevedo, op. cit ,p 105. Esses autores
eram economistas do Banco do Nordeste do Brasil. Esta publicação de 1982 é da série Estudos
Econômicos e Sociais v.14, do Ministério do Interior Banco do Nordeste do Brasil S.A. - Escritório
Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste ETENE. Preparada e catalogada pelo setor de
Documentação e Biblioteca do BNB.
A SUDENE, na perspectiva de firmar seus objetivos e promover o
desenvolvimento do artesanato, através do I Plano Diretor propôs a criação e
incorporação da ARTENE (Artesanato do Nordeste- S. A), uma sociedade de
economia mista, dotando-a de recursos financeiros necessários. A ARTENE
desempenhou papel fundamental no apoio às atividades artesanais, sobretudo no
Nordeste, até ser substituído, EM 1977 pelo Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato - PNDA. Entre os principais objetivos da ARTENE,
podemos citar:
Estimular a criação de cooperativas artesanais, promovendo a venda dos
seus produtos; efetuar estudos de mercado nas praças nacionais e
estrangeiras; realizar exposições, mostras e concursos de produtos
artesanais; prestar assistência técnica e administrativa, inclusive
proporcionar meios de aprendizagem e treinamento; instalar e manter
agências, filiais, sucursais e depósitos em qualquer parte do território
nacional ou no estrangeiro.
129
Embora incipientes e de frágil organização, os primeiros programas
contribuiriam de forma decisiva para que, o artesanato renascesse e os artesãos, à
margem da economia e da sociedade por muito tempo, conquistassem maior
espaço, envolvidos que foram pelo processo de crescimento e desenvolvimento
urbanos.
A partir de 1975, o Ministério do Trabalho passou a liderar as
atividades artesanais. O Programa de Desenvolvimento do Artesanato (PNDA),
criado em 1977, deu a essas atividades outra dimensão. A criação de uma política
governamental direcionada à valorização do artesanato, o PNDA, foi de certa forma
influenciado pela experiência gaúcha. No período entre 1964 e 1966, quando
Arnaldo Pietro ocupava a Secretaria do Trabalho deste Estado e Jorge Alberto
Furtado era presidente da Fundação Gaúcha do Trabalho, foi realizado
cadastramento dos artesãos atuantes do Rio Grande do Sul, bem como ocorreram
vários encontros da categoria. Nesses encontros eram realizados:
Levantamento de problemas e debates acerca das soluções viáveis,
promovidos cursos para formação e aperfeiçoamento de artesãos e
129
Idem p.114.
patrocinadas Feiras de Artesanato, além de adotadas uma série de outras
medidas práticas no sentido consolidar o Artesanato na economia gaúcha,
situando-o, adequadamente, no sistema social do trabalho.
130
A experiência gaúcha expandida 1974, quando Arnaldo Pietro
assumiu o Ministério do Trabalho, e Jorge Furtado, a Secretaria Geral, viabilizou a
criação de um projeto de abrangência nacional, cuja idéias e proposições
constituíram a razão de ter sido convocado o Primeiro Encontro de Artesanato, em
1975 e, depois, um Segundo Encontro, em 1977”
131
. O objetivo central desses
encontros era pesquisar a realidade do artesanato no âmbito nacional e estimular
incentivos estaduais julgados promissoras nessa área”
132
.
Das sugestões e das proposições resultantes desses encontros surgiu
o decreto 80.098/77, que iria institucionalizar o Programa Nacional do Artesanato
(PNDA), assinado pelo então Presidente de República, Ernesto Geisel, em 8 de
agosto de 1977. O PNDA foi criado com a finalidade de coordenar as iniciativas
que visassem a promoção do artesão e a produção e comercialização do
artesanato brasileiro”.
133
O mesmo instituto legal que criou o Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato (PNDA), organizou a Comissão Consultiva do
Artesanato, envolvendo dez representantes dos seguintes órgãos: Ministério do
Trabalho, Ministério do Interior, Ministério da Indústria e Comércio, Ministério da
Educação e Cultura, Ministério da Fazenda, Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), Empresa Brasileira de Turismo (EMRATUR), Serviço
Social da Indústria (SESI) e Serviço Social do Comércio (SESC).
O objetivo da Comissão era definir as diretrizes e o programa de ação,
fixar as normas e resoluções para o bom desenvolvimento do PNDA e estabelecer
as áreas que seriam por ele abrangidas. Assim, foram analisadas várias questões
como:
130
PEREIRA, Carlos José da Costa. Artesanato definições e evolução: ação do Ministério do
Trabalho; Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato, Brasília, MTB, 1979, p. 116
131
Idem.
132
O II Plano de Metas Governamentais do governo Virgílio Távora – II PLAMEG, p. 182.
133
Idem.
A inexistência de um organismo coordenador e disciplinador da atividade
artesanal; carência de diretrizes adequadas que instruam, no seu todo, as
ações executivas nos seus fins essenciais, tecnológicos, culturais, sociais,
econômicos e legais; insuficiência de apoio a projetos de assistência técnica
e econômica; desconhecimento ou inexistência de instrumentos leais
regulamentadores das implicações trabalhistas; ausência de políticas e
sistemas em termos de mercadologia; aviltamento da mão-de-obra artesanal
pela presença de intermediários interessados na desvalorização do produto;
falta de critérios adequados para conhecimento do artesanato etc.
134
Buscando justificar a implantação do Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato (PNDA), Arnaldo Prieto, como Ministro do Trabalho
(1974-1979), afirmava que:
A criação de um mecanismo orientador, no caso do Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato, se justifica sob dois aspectos básicos:
aspecto social, ou seja, aquele que tem como objetivo o desenvolvimento
do homem e melhoria de suas condições de vida, e o aspecto econômico,
ou seja, aquele voltado para a rentabilidade econômica do setor na
composição da riqueza nacional.
135
O trabalho desenvolvido pelo Governo Federal através do Ministério
do Trabalho tratava da problemática socioeconômica. O livro de José Carlos da
Costa Pereira (Artesanato definições e evolução: ação do MTB PNDA),
publicado em 1979, apresenta um estudo sobre as questões que envolvem o
artesanato brasileiro, procurando conceituá-lo, definí-lo e classificá-lo, especulando
sobre seu futuro na sociedade atual e buscando uma nova política que estabeleça
o conceito de artesanato e quem é artesão. Neste trabalho em que detalha a
criação e as propostas do PNDA, José Carlos aborda a história do artesanato,
abrangendo a indústria familiar ou doméstica, o trabalho autônomo, o mestre e o
ofício, a empresa, a manufatura e a fábrica. Fala também sobre atividades
artesanais dos povos da antiguidade (Egito, Babilônia, Grécia e Itália), do
artesanato na Idade Média e das Corporações de Ofícios.
Com relação ao cenário brasileiro, o autor descreve desde o
ambiente colonial à formação da mão-de-obra, passando pela organização dos
134
PEREIRA, Carlos José da Costa. op. cit. p.117
135
Idem. p.131.
ofícios artesanais até à transição do artesanato brasileiro. Ao falar do artesanato
na atualidade, ele procura conceituá-lo, definí-lo e conhecer a realidade, na
perspectiva de justificar a ampliação de uma política governamental.
Em decorrência da criação do Programa de Desenvolvimento do
Artesanato (PNDA) e da Comissão Consultiva do Artesanato, desencadearam-se,
nos estados, ações que viabilizaram o desenvolvimento de programas em todo
país. Segundo Costa Pereira, até o final do ano de 1978, 16 Estados tinham
aderido ao PNDA através de convênios, elaborados com o Ministério do Trabalho,
além de outras ações integradas com os diversos órgãos que compõem a
Comissão Consultiva do Programa.”
136
De modo geral, os artesãos cearenses começam a sentir os efeitos
das ações dos órgãos fomentadores das atividades artesanais no estado, a partir
de 1979, no governo Virgílio Távora. A recém criada FUNSESCE Fundação dos
Serviços Sociais do Estado do Ceará, comandada pela primeira-dama, Luíza
Távora, passou a gerenciar, desenvolver e incentivar essas atividades artesanais,
inclusive promovendo a criação de centros e pólos em todo o estado.
2.1.1 II PLAMEG – Atuação das Políticas Públicas no Ceará.
O Cea sempre se destacou como um dos grandes produtores de
artesanato do país. A atividade é fonte de sobrevivência de significativa parcela da
população de baixa renda, sendo reconhecida como expressão da identidade
cultural e por sua importância no sistema econômico do estado.
As políticas desenvolvidas pelo BNB e SUDENE, iniciadas na década
de 1950 destacaram a importância da atividade artesanal no Ceará. No entanto,
desde a década de 1970 que o artesanato cearense testemunhou um incentivo
jamais visto. A comercialização de rendas e bordados antes restrita ao Mercado
Central de Fortaleza
137
, expandiu-se pelos bairros da cidade, concentrando-se
principalmente na Avenida Monsenhor Tabosa.
138
136
Idem. p..118
137
O Mercado Central de Fortaleza foi por muito tempo o principal centro de comercialização dos
produtos artesanais do Ceará. eram vendidas, (e continua sendo) as rendas, os bordados, os
Nos anos de 1970, a ação de fomento às atividades artesanais era
exercida pelo Departamento de Artesanato e Turismo da Secretaria de Indústria e
Comércio. Assim sendo, através da Empresa Cearense de Turismo (ENCETUR),
foi elaborado, em 1975, o Primeiro Plano Piloto do Artesanato Cearense. Em 1976,
apoiado pela Secretaria de Planejamento do Estado, pelo INCRA e pela SUDENE,
deu-se início ao Programa Integrado do Desenvolvimento Artesanal (PIDART).
139
Foi também desta década, a fundação da Associação Brasileira de
Artesãos seção Ceará, em 1975, e a realização da ENXANOR Exposição do
Artesanato no Nordeste, sediada por quatro anos consecutivos em Fortaleza. Além
disto, foi inaugurado o “Centro de Turismo, instalado na velha cadeia pública de
Fortaleza, e com a quase totalidade de suas salas ocupadas por lojas de
artesanato”.
140
Nesta perspectiva, a Secretaria de Indústria e Comércio, articulada
com o INCRA, deu os primeiros passos para montar no Ceará a estrutura de
produção e comercialização do nosso artesanato em moldes cooperativistas. As
atividades de treinamento, promoção e comercialização foi o primeiro esforço do
governo estadual nesse setor.
Essa iniciativa justificava-se, em parte, pela importância atribuída ao
artesanato como uma atividade econômica, e também porque Segundo pesquisa
realizada pela SUDENE na época, o estado do Ceará configurava-se como um dos
maiores produtores de artesanato do Brasil, 75% das artesãs nordestinas seriam
cearenses”.
141
No final da década de 1970, as diretrizes do Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato (PNDA) foram implantadas pela Fundação dos
Serviços Sociais do Estado do Ceará (FUNSESCE)
142
, criada em 1979, pelo
artigos em madeira, palha, cerâmica e outros artigos típicos da cultura plural que caracterizam a
região Nordeste.
138
A Avenida Monsenhor Tabosa, antiga Rua do Seminário, passou a ser referência para quem
queria adquirir produtos artesanais. Foram construídas lojas de requintes especializadas em
produtos artesanais locais. Nesta rua está situada também o Palácio da Microempresa do Serviço
Brasileiro de apoio à Micro e Pequena Empresas (SEBRAE), que suporte econômico às
pequenas empresas do Estado.
139
PLAMEG II, op. cit, p.183
140
SAMPAIO, Dorian. Anuário do Ceará. O Ceará nos anos 70. p103
141
BARREIRA, Maria Holanda. Perfil do artesão cearense. In: HOLANDA, Violeta. op.cit.,, p.67
142
A FUNSESCE era subordinada ao Governo Estadual e atuava através da Coordenadoria de
Desenvolvimento do Artesanato (CEDART).
governador Virgílio Távora e administrada por Luiza Távora. Dessa forma, no
Ceará toda a ação de fomento ao artesanato passou a ser de responsabilidade
desta fundação.
Segundo a FUNSESCE, no ano de 1979, existiam 24.927 artesãos
cadastrados. Nesse mesmo ano foram “treinados 111 monitores e mais de 30
pessoas destinadas à gerência de cooperativas”
143
. havia, portanto, uma
preocupação, a exemplo das políticas nacionais, com a atividade artesanal no
Ceará. A FUNSESCE recebia recursos do Programa Intensivo de Preparação de
Mão-de-Obra do Ministério do Trabalho (PIPMO), da Fundação de
Desenvolvimento do Ceará (FDC) e da Legião Brasileira de Assistência (LBA),
sendo, porém, os recursos vindos do PNDA
144
mais significativos. Tais recursos
viabilizavam a construção de centros artesanais, e investimento nos existentes.
Os centros em sua totalidade se apresentavam como possibilidades concretas de
novas cooperativas. Foi deste período a construção do Centro das Rendeiras
145
da
Prainha, em Aquiraz.
Foi também de responsabilidade da FUNSESCE a criação da Central
de Artesanato (CEART) que, será analisada no capítulo três. Ela, que nasceu ainda
no fim dos anos de 1970 e foi inaugurada em 1981, caracterizava-se como espaço
de venda, exposição e oficinas de trabalhos artesanais produzidos no Ceará.
Na prática, os artesãos cearenses se beneficiaram dessas ações
governamentais, a partir de 1979, quando o governador Virgílio Távora, apoiado
pelo Governo Federal através do Programa Nacional de Desenvolvimento do
Artesanato (PNDA), elaborou, sob a coordenação de Luiz de Gonzaga Fonseca
Mota, o II Plano de Metas Governamentais do Estado do Ceará. O II PLAMEG
146
143
LIMA, Antônio Aquilino de Macedo e Azevedo.. op. cit p.121.
144
No ano de 1978 foi elaborado um projeto de solicitação de recursos do PNDA no montante de 6
bilhões. Por sugestão da própria coordenadoria do PNDA, tal projeto deveria ser reformulado e,
assim obter um montante maior.
145
No ano de 1982 havia além do Centro das Rendeiras da Prainha, o Centro Artesanal São Vicente
de Paula, no Bairro do Pirambu (Fortaleza); o Centro Artesanal São Vicente de Paula, em Aracati; o
Centro Artesanal Feiticeiro, em Jaguaribe; o Centro Artesanal de São Gonçalo do Amarante (Centro
Social Urbano); e o Centro Artesanal Nosso Lar, em Camocim.
146
O II PLAMEG abrangia todas as áreas administrativas do Estado e determinavam as diretrizes de
atuação do Governo. Nesta perspectiva, o artesanato como atividade economicamente promissora,
fazia parte dos objetivos e prioridades desse Plano Governamental que se consolidava por três
documentos básicos. O primeiro era o Diagnóstico Socioeconômico do Estado, “compreendendo a
análise dos componentes econômicos e sociais do Ceará, inclusive a participação do poder público
em cada um deles.Em seguida seria a Programação que estabelecia as ações diretas a cargo do
Governo Estadual e as indiretas em que o poder público age como incentivador ou até mesmo,
catalisador.” Por último um Diagnóstico e Proposições do Setor Público, destinado basicamente à
para um período de cinco anos, 1979-1983, cobrindo, portanto todo o Governo do
Cel. Virgílio Távora e um ano do seguinte, a exemplo da sistemática que vinha
sendo seguida em planos semelhantes
147
.
Procurando justificar o II PLAMEG, afirma o coordenador do Plano,
Gonzaga da Fonseca Mota:
Na elaboração do Plano, procurou-se desenvolver um trabalho
fundamentado na identificação dos problemas e das reais potencialidades
do estado, evitando-se, assim, idéias preconcebidas ou uma abordagem de
cunho nitidamente emocional. Ademais, deu-se ênfase à maior participação
possível das Comunidades e dos Grupos de opinião do estado, através de
um processo de consultas e negociações, como forma de se obter diretrizes
e instrumentos de ação compatíveis com as reais necessidades estaduais.
148
Inserido em um plano maior, o fomento ao artesanato cearense
complementa as discussões políticas e econômicas do estado. As verbas para o
artesanato do II PLAMEG, antes administradas pela Secretaria da Indústria e
Comércio, passam à administração da recém-criada FUNSESCE (Fundação de
Serviços Sociais do Estado do Ceará), a qual agregava todas as atribuições de
Serviço Social, Ação Comunitária e Artesanato.
Conhecer a produção artesanal do Ceará, nas mais variadas
expressões, os municípios de origem, as formas de comercialização e,
principalmente, os reais obstáculos ao seu desenvolvimento, foram as
preocupações primordiais dos órgãos públicos estaduais voltados ao incentivo
deste setor econômico.
Cientes dos verdadeiros empecilhos à ampliação das atividades
artesanais no Estado, diante da importância que vinham assumindo nos estados e
no país nos últimos anos, as atenções voltaram-se para o artesanato e para o
artesão. O estado, com o apoio do PNDA, desenvolveu uma política de
estruturação e pólos artesanais.
futura equipe do Governo, contemplando modificações para a melhoria e aperfeiçoamento dos
métodos e processos inerentes à maquina administrativa estadual.” Para maiores detalhes, ver a
Apresentação do II PLAMEG.
147
PLAMEG II. Apresentação. Op;cit, p.9
148
Idem.
A fala da rendeira Olenir nos fornece informações sobre as
negociações que antecederam à construção do Centro das Rendeiras, da Prainha,
em 1979. Segundo ela, este Centro foi o primeiro a ser construído, inaugurando no
Ceará a estruturação de centros artesanais a que o estado se propunha.
Tinha a FUNSESCE, né? Que veio a Dona Luiza Távora, né? Encomenda
aqueles técnicos dela vêm aqui. Então compraram esse espaço, esse
terreno que foi cedido. Aqui tinha tipo um sítio, era um cercado da Dona Ana
Câmara e do Sr. Jorge Amaro Câmara. Dona Luiza Távora através da
FUNSESCE veio aqui para comprar. E depois é que foi criado a CEART,
porque aqui é a primeira Associação, nós somos ainda mais antiga que a
CEART.
149
A interferência do Estado no universo de trabalho das rendeiras da
Prainha transformou seus produtos em bens de consumo no mercado turístico. A
importância da construção do Centro para as artesãs da renda e para toda a
comunidade, será analisada detalhadamente nos tópicos seguintes.
2.1.2 A Construção do Centro das Rendeiras da Prainha
Com os recursos do Programa Nacional de Desenvolvimento do
Artesanato (PNDA), o governo Virgílio Távora (PLAMEG II), através da
FUNSESCE, criou em 1979, o Centro Artesanal da Prainha, com o objetivo de
valorizar o artesanato local, melhorar a renda das artesãs, diminuir a atuação do
atravessador e ampliar as faixas de mercado para os produtos em renda de bilros.
Nesse momento, nada foi mais expressivo que a atuação da primeira dama Luiza
Távora, inclusive homenageada pelo próprio nome do local, Centro das Rendeiras
149
Entrevista realizada com a rendeira Olenir, em 25 de novembro de 2005.
Luiza Távora. À frente da FUNSESCE, ela fundou o primeiro Centro de Atividades
Artesanais no Ceará.
150
Foto: Imagem parcial do Centro das Rendeiras da Prainha. Terezinha
Bandeira, 30 de setembro de 2006.
A construção do Centro das Rendeiras Luiza Távora, na Prainha,
certamente não foi influenciada e tampouco determinada pela participação direta de
nenhuma das rendeiras que ocupam seus quiosques desde a inauguração em
agosto de 1979. Na verdade, um conjunto de acontecimentos favoreceram à
construção desse Centro: a abertura da Prainha para a atividade turística,
principalmente após a chegada da energia elétrica em 1968 e dos transportes, que
intensificaram a procura pelas belíssimas rendas produzidas pelas mulheres da
150
Em nenhum documento escrito encontrei referência sobre o Centro das Rendeiras da Prainha ser
o primeiro do Ceará. No entanto, em quase todas as entrevistas realizadas, as rendeiras se referem
a essa informação como verdadeira.
comunidade; o momento histórico-político de interferência do Estado nas atividades
artesanais e a coincidência de Luiza vora hospedar-se na Prainha na casa do
cunhado Milton Morais Távora, o que favoreceu a aproximação dela com as
rendeiras.
Intensificaram-se também nesse período as feiras e eventos regionais e
interestaduais de artesanatos. Aos artesãos eram disponibilizados transportes e
hospedagem para várias regiões do país, causando um impacto significativo nas
vendas. Além de vender os produtos que levavam prontos, as rendeiras
confeccionavam as rendas ao vivo, numa demonstração de habilidade e
valorização do artesanato cearense.
Embora as ações implantadas por esse programa de incentivo ao
artesanato incorporassem um caráter assistencialista, a criação do Centro das
Rendeiras da Prainha provocou transformações, trouxe mudanças e melhorou a
vida das artesãs e de todos moradores daquela comunidade. Segundo a rendeira
Zenaide:
O Centro melhorou muito a vida da gente, porque a gente não tinha nada.
Aqui quem fez foi a Dona Luiza Távora, que era a primeira dama do estado.
Ela falou que ia fazer alguma coisa pra gente e fez um projeto. Não era
assim, era de palha e carnaúba, depois outro projeto melhorou o Centro. Foi
muito bom porque ela fez isso pra todas as rendeiras.
151
Mais à frente reinteira:
A nossa vida melhorou. A renda de bilros deu uma melhoria de vida para
todas nós, não só a renda de bilros, o local do nosso trabalho também.
Graças a Deus nós temos esse lugar aqui. Daqui nós tiramos o sustento de
nossos filhos e de nossa família. Tem vez, tem época que é muito ruim, mas
sempre a gente vende. Mas graças a Deus eu adoro, eu tenho orgulho de
fazer minha renda.
152
151
Foram realizadas duas entrevistas com a rendeira Zenaide Moisés de Sousa, nos dias 14 de
janeiro e 18 de fevereiro de 2003, na Prainha. Rendeira desde os sete anos, a Sra. Zenaide
participou do processo de construção do Centro das Rendeiras da Prainha e foi líder por oito anos.
152
.Idem.
Pelas narrativas fica evidente que a construção do Centro trouxe
melhorias de vida para as rendeiras, excluiu em parte a figura do atravessador,
garantiu maior lucro e contribuiu significativamente para o desenvolvimento da
comunidade da Prainha como um todo.
Na verdade, o atravessador o desapareceu, mas passou a se
apresentar com outra roupagem, como guia de ônibus de turismo e bugueiro. Os
guias turísticos
153
e os bugueiros
154
faziam parte desses “novos” personagens que
iam surgindo e/ou ganhando visibilidade em meio às novas relações sociais que se
estabeleceram com e em torno do Centro.
Com lugar certo para expor os produtos, fica para trás o tempo de
muitas dificuldades. Tempo este em que era muito difícil de vender, muito difícil
mesmo. A gente andava vendendo....aí... ‘eu não quero’, ‘eu não quero não’... ia na
casa da outra.....’eu não quero’... aí nóis vendia pelo preço que eles queriam”.
155
Para a rendeira Helena, as dificuldades terminam quando elas
conquistam o local de trabalho. Naquela época (construção do Centro das
Rendeiras) que eu vim pra cá, eu ganhei muito dinheiro. Melhorou a vida de todo
mundo. A comunidade toda se beneficiou com a construção do Centro”.
156
Não raro, o nome de Dona Luiza Távora surge nas narrativas como a
responsável pela construção do Centro e, portanto, pelo fim das dificuldades
enfrentadas pelas rendeiras para venderem seus produtos. A rendeira Olenir faz
uma leitura sobre as ações da então primeira dama:
A Dona Luiza Távora se hospedava aqui na Prainha na casa do cunhado
dela, o Sr. Milton Moraes Távora. Ela vendo as rendeiras com aquela
necessidade, com as caixas na cabeça, ela teve pena, né? Teve delas.
Ela achava aquilo humilhante. Ela resolveu criar o Centro das Rendeiras,
153
Os guias turísticos determinavam uma comissão de 10% sobre todas as mercadorias vendidas, o
que ocasionou muitas confusões e sérios conflitos. Algumas rendeiras entrevistadas afirmam que
esses conflitos foram responsáveis pela expulsão dos ônibus de turistas que vinham com muita
freqüência fazer compras no Centro, principalmente da década de 1980.
154
Os bugueiros eram proprietários de buges que agiam e ainda agem como guias turísticos. Pega
os turistas nos hotéis e nas pousadas e os levam para os quiosques do Centro. A ação dos
buguieros gera conflitos, pois muitos deles privilegiam os quiosques das rendeiras da família,
causando descontentamento entre o grupo.
155
Entrevista realizada com a rendeira Maria Helena, em 25 de novembro de 2005.
156
Idem.
quando o Virgílio Távora era governador, né? Ela era a primeira dama,
então ela criou o Centro das Rendeiras.
157
No mesmo tom completa a rendeira Dica:
O Centro, quem fez foi a Luiza Távora. O pessoal vendia na praia. Na
década de 60 ficou muito ruim, a gente deixou até de fazer renda. Aí a Dona
Luiza Távora disse que ia fazer esse Centro pra gente ter aonde vender,
ela fez.
158
De acordo com as narrativas, Luiza Távora “deu” o Centro para as
rendeiras da Prainha porque tinha “pena” de vê-las andarem ao sol quente,
carregando caixas pesadas, cheias de produtos, na cabeça. Esta visão expressa
um caráter emblemático e matriarcal (mães das artesãs) à atuação e às ações
empreendidas por Luiza Távora, como administradora da FUNSESCE: “Ela ajudava
a gente bastante, comprava nossas rendas. Ela fez uma bolsa junto com os ricos
da marca dela, ajeitou o dinheiro e fez as barracas. Era só cinco, depois ela
arranjou mais dinheiro e fez mais”.
159
A fala da rendeira Auristela nos permite
inferir que, antes da criação do Centro das Rendeiras, Luiza vora conhecia os
trabalhos em renda de bilros das mulheres da comunidade da Prainha, bem como
as dificuldades e limitações relacionadas à venda dos produtos. À frente da
administração da FUNSESCE, a ela foi mais oportuno e viável “criar” nesta
comunidade um espaço onde as rendeiras, reunidas, confeccionassem e
vendessem suas rendas diretamente aos consumidores e revendedores.
A exemplo dos trabalhos manuais desenvolvidos pelas mulheres ao
longo da História, que ora servia de entretenimento e recato, ora de ajuda no
orçamento doméstico, a renda, antes da existência do Centro das Rendeiras, era
confeccionada ao decorrer e ao fim do dia e não atrapalhava as atividades
domésticas, e nem comprometia os cuidados com o marido e os filhos. Cumpridas
as tarefas rotineiras, as rendeiras da vizinhança se reuniam nos arredores da casa
de uma delas para confeccionarem a renda. Enquanto trabalhavam, conversavam,
157
Entrevista com a rendeira Olenir, em 25 de novembro de 2005.
158
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
159
Entrevista com a rendeira Auristela, em 14 de janeiro de 2003.
trocavam confidências e contavam as novidades. No entanto, havia algumas que
preferiam trabalhar na almofada, à noite, após ter servido o jantar, lavado a louça e
colocado os filhos para dormirem.
Tradicionalmente este trabalho era realizado no espaço do lar, entre
os afazeres domésticos, cujos produtos eram informalmente vendidos de porta em
porta ou aos poucos compradores locais, que os revendiam principalmente no
mercado de Fortaleza.
O pessoal vendia nas casas, né? Aqui tinha muita compradeira. Nezinha,
Joana do Damião, finado Telvino, esse era o pessoal que comprava a nossa
renda, do meu tempo, 40, 50 até 60, esse era o pessoal que
comprava.Tinha também o mercado em Fortaleza, o mercado velho que foi
derrubado. tinha muito compradeira. A mamãe ia vender. Nóis fazia e a
mamãe ia vender no mercado.
160
A fala da Dona Dica revela outras possibilidades de vendas.
Dependendo das condições, as próprias rendeiras podiam se deslocar e fazer as
vendas diretamente no mercado de Fortaleza, eliminando assim o atravessador e
garantindo maior lucro. Somam-se a estas estratégias de vendas, as saídas aos
domingos pela orla marítima da Prainha. Levando os produtos em caixas de
papelão na cabeça, elas anunciavam os preços e os tipos da renda. Suas vozes
misturavam-se às dos banhistas e às dos vendedores ambulantes, característicos
da beira da praia, e ainda, aos chamados das mães, sempre atentas às voltas com
os filhos.
Até 1979 este era o cenário comercial do artesanato da Prainha,
quando então foi construído e inaugurado em agosto do mesmo ano, o Centro das
Rendeiras misto de oficina caseira e centro comercial, que veio a estabelecer um
novo tempo para as mulheres artesãs e para todos os moradores daquela
comunidade.
Foi muito bonito (a inauguração do Centro). A população, ela ficou toda
muito contente quando isso aconteceu, porque a Prainha que nunca tinha
tido uma praça, a partir daquele dia também ia ter uma praça, além do
160
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
Centro das Rendeiras né? Além de ter um local para as rendeiras ficar, era
uma praça bonita para a localidade da Prainha. Aqui a gente tinha uma
televisão, aqui no Centro onde todo mundo assistia sentado nos bancos de
carnaúba. Tudo muito bem talhado, envernizado. Tinha um parquinho das
crianças. Antes era um jardizinho bonitinho hoje não existe mais o jardim.
161
A narrativa da rendeira Elizete, que nasceu e sempre morou na
Prainha, indica-nos alguns pontos para discussão. O Centro, além de espaço de
trabalho, passa a representar o lugar de lazer e sociabilidade para toda a
comunidade. Possivelmente, as rodas de conversas, as paqueras, os bate-papos,
as pequenas reuniões de amigos, as rifas e os bingos aconteciam na Praça do
Centro.
também, em sua narrativa, uma denúncia do abandono. A
manutenção do Centro, que deveria contar com o apoio da prefeitura de Aquiraz e
da FUNSENSE e com o zelo e cuidado exercido pelas rendeiras, deixou de ser
feita com o tempo.
O Centro das Rendeiras da Prainha foi construído no lugar de uma
lagoa e encontra-se numa localização estratégica, na passagem dos banhistas
para a praia. Inicialmente era formado por cinco quiosques um deles destinado à
venda de lanches, todos feitos de palha de carnaúba, de esteiras de palha e
cobertos com palha de coqueiro, produtos encontrados na região.
161
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
Foto: Imagem do interior de um dos sete quiosques do Centro das
Rendeiras da Prainha. Rodrigo Alves Ribeiro, 30 de setembro de 2006.
Os quiosques são contornados por um balcão onde são expostas as
peças à venda, que também ficam pendurados em cabides presos na estrutura do
teto. Bailando ao som das ondas do mar e acariciadas pela brisa que vem da praia,
as rendas esperam pacientemente seus admiradores. Na parte interna dos balcões
existem algumas subdivisões para guardar os equipamentos de trabalhos e alguns
objetos pessoais das rendeiras.
A mobília do Centro se restringe a alguns poucos assentos de
madeiras sem encostos, conhecidos como “tamboretes”, utilizados para apoiar as
almofadas na hora de tramar os fios. No entanto, a maioria das rendeiras prefere
trabalhar sentada no chão em pequenos grupos de duas ou três. Para evitar que
as rendas se sujem, elas estendem um pano no chão e sentam-se sobre ele.
Raramente trabalham sozinhas. Moram quase sempre nas proximidades do Centro.
A existência do quarto de uso comunitário, onde elas guardam seus produtos ao
fim do dia e os retira no dia
seguinte, facilita a ida e vinda das rendeiras, que
chegam por volta das dez horas e encerram as atividades às dezoito horas.
A bem da verdade, início e término das atividades e os preços dos
produtos não são fixados com rigor. Cada uma faz (respeitando os limites) sua hora
de chegada e saída. Assim como a hora, os preços o diferenciados. Observei,
nessa variação de preços, certo tino comercial mais aguçado em umas e em outras
não.
A jornada de trabalho caracterizava-se também como momentos de
lazer e de sociabilidades. Enquanto tramavam os fios na feitura da renda, elas
contavam as novidades, as fofocas, falavam das novelas, da falta de compradores
e dos mais variados assuntos.
Através da FUNSESCE, órgão responsável pela criação do Centro, foi
estruturado uma liderança para a administração interna do espaço de trabalho. Na
prática, a administração ficava a cargo das rendeiras. Era escolhida uma líder por
votação. Somente as ocupantes dos quiosques podiam votar. Ao final de um ano
era realizada nova eleição, que referendaria um novo mandato para a líder em
exercício ou a escolha de uma outra.
Por conta de ser cada um por si houve a necessidade de criação dessa
pessoa que gerenciasse o Centro né? começou. Foi exatamente a
FUNSESCE que começou a ter líder, vice-líder, como se fosse a diretoria de
uma Associação, mas sem nada documentado.
162
Pela fala da rendeira Elizete, a liderança
163
foi criada para manter a
ordem e a organização necessária ao bom funcionamento do Centro. As
obrigações de líder iam desde a manutenção da limpeza do Centro à administração
dos conflitos internos.
Após dois anos de funcionamento, o Centro foi reformado e foram
construídos mais dois quiosques o destinado à venda de lanche foi retirado. No
total, o Centro comporta setenta rendeiras e, existem normas e regras para
assegurar o ingresso e a ocupação dos quiosques por uma nova artesã. Essas
normas e regras foram estabelecidas no Regime Interno, quando o Centro passou
a ser administrado pela Associação das Rendeiras, objeto de análise do terceiro
capítulo.
Reconstruídos em alvenaria e cobertos com telha, os quiosques
perderam a aparência rústica e artesanal que tanto agradava às rendeiras.
Processo similar aconteceu com as casas dos pescadores, que eram feitas de
palha e chão batido. Sobre essa transformação afirma a rendeira Elizete:
162
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
163
A primeira líder do Centro das Rendeiras foi Lúcia Conceição Moisés.
A estrutura dele (Centro) não era essa né? O formato dos quiosques era o
mesmo, que era todo rústico, todo no artesanato mesmo. Era carnaúba,
palha, sabe? E esteira. Os balcões eram feitos de esteira e em cima era
tábua, bem talhada, bem bonita mesmo, sabe?
164
Em seguida completa a rendeira Maria Helena:
Esses quiosques eram feitos de palha de carnaubeira. Os balcões era de
carnaúba, a alvenaria de baixo era de esteira. Ele era todo artesanato. Não
tinha nada de alvenaria, só artesanato.
165
Dona Elizete e a Dona Helena, ao relatarem as transformações
ocorridas na estrutura física do Centro, revelaram também indícios de
descaracterização do universo cultural em que vivem. Em alguns momentos suas
narrativas pareciam queixas, em outros, saudade do tempo em que construídos
artesanalmente, os quiosques agradavam aos olhos delas próprias e dos turistas.
Além da renda de bilros, que é o principal produto, podemos encontrar
também peças em crochê, labirinto, filé, palhetão, ponto cruz, ponto cheio, bordado
à mão e o bordado à máquina. Todos estes produtos enriquecidos com as mais
variadas cores e fios (grossos, finos, brancos, coloridos....). A diversidade de cores
e fios não afeta a delicadeza nem a beleza dos produtos comercializados no
Centro. Todas elas são rendeiras. Algumas fabricam também outros produtos
demandados pela freguesia. Outras compram de terceiros tais peças para revendê-
las.
A construção do Centro das Rendeiras da Prainha possibilitou às
mulheres daquela comunidade “romperem” com o universo do espaço doméstico e
assumirem o trabalho fora de casa.
Na verdade, o trabalho sempre esteve presente na vida das rendeiras
da Prainha. Ora fazendo renda entre os afazeres domésticos, ora pescando, ora
fazendo bolos e doces para aumentar o orçamento da família, essas mulheres
trilharam por caminhos, onde vida e trabalho se confundiam. O espaço de trabalho
para essas mulheres representou novas possibilidades e alargou o campo de
atuação delas, uma vez que, o universo doméstico da renda de bilros adentra ao
164
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
165
Entrevista com a rendeira Maria Helena, em 25 de novembro de 2005.
espaço público, modificando e alterando as relações sociais e interferindo de forma
decisiva na vida de todos na comunidade.
Nesta perspectiva, a expressão “eu faço renda percorreu um longo
caminho, superou difíceis obstáculos e transformou-se no “eu sou rendeira”, e
como me afirmou a Dona Dica, “tem muita coisa pra contar”.
2.2 Modo de Vida, Cultura e Trabalho no Centro das Rendeiras.
Sentada à sombra de um dos quiosques do Centro das Rendeiras,
ouvi relatos de experiências, de vivências e de situações as mais diversas, que
hoje fazem parte de uma memória guardada e lembrada num misto de saudade e
orgulho.
Iniciadas no aprendizado da renda por volta dos sete anos de idade,
elas rememoram o universo onde vida e trabalho se confundiam e se entrelaçavam
na tessitura das relações sociais que compõem suas histórias de vida. Histórias
que se transformam após a conquista do espaço de trabalho.
A construção do Centro das Rendeiras – espaço de produção e venda
do artesanato local, principalmente da renda de bilros, em 1979, representou além
de uma conquista e um marco na vida das mulheres rendeiras da Prainha, o
deslocamento de uma atividade que era realizada em ambiente domiciliar para uma
estrutura única de trabalho. Esse fato trouxe consigo múltiplos significados deu
uma nova dimensão à vida dessas mulheres, oficializou o trabalho delas fora do
universo doméstico e transformou os artefatos de renda em produtos, ao lhes
atribuir valor de troca na perspectiva mercadológica.
O Centro alterou a organização do trabalho, interferiu e modificou as
relações sociais, alargou as possibilidades de vendas e melhorou a vida de todos.
Nessa perspectiva, passou a representar, além do local de trabalho, uma referência
para toda a comunidade, principalmente porque contribuiu para inclusão da Prainha
no roteiro turístico do Ceará.
O Centro também delimitou o surgimento de dois grupos distintos de
rendeiras: as que comercializam, ocupando os quiosques, e as que
comercializam indiretamente com o Centro. Dessas, algumas deixam seus
produtos para serem vendidos por outras, numa relação de amizade; outras
preferem vendê-los diretamente às rendeiras do Centro, e outras ainda mantêm as
vendas por encomendas ou informalmente aos eventuais compradores locais como
aconteciam no tempo de suas mães e avós.
A narrativa da rendeira Estela indica como essas relações comerciais
acontecia:
Eu tenho outras duas (filhas) que sabem fazer (renda), elas trabalham
mesmo em casa. Às vez elas me dão pra vender. Vem gente de fora, as vez
vender a gente aqui, toalhinha de bandeja, as vez, os porta copo, um
caminho de mesa, uma toalha.Vem vender aqui a nóis, mas renda. Uma
peça de bico, uma camiseta, uma saia de renda, tudinho a gente compra.
Porque o trabaio da gente é renda né? Aí a gente compra, a gente tendo o
dinheiro. Eu compro, às vez eu tendo o dinheiro eu compro.
166
Comprar peças prontas de suas filhas ou de “gente de foraé uma
estratégia utilizada pela maioria das rendeiras para manter seus balcões sortidos,
ajudar outras rendeiras, ampliar as relações comerciais através do Centro e utilizar
o tempo de produção, economizado na compras das peças prontas, em outras
atividades.
O trabalho no Centro, o trabalho em casa e a própria lida diária
envolvem as rendeiras em diversas funções e, principalmente, em complexas redes
de relações. Nada foi mais significativo na vida das mulheres rendeiras da Prainha
do que a “conquista” do espaço de trabalho. Esse espaço provocou transformações
que iam muito além do aumento das vendas e do conforto de não sair para vender
de porta em porta.
O Centro marcou um momento de ruptura e inaugurou na vida dessas
mulheres e de todos na comunidade um tempo diferenciada para a família e para o
trabalho. Essa temporalidade, em que vida e trabalho não se confundiam mais,
refletiu-se em nova estrutura e organização familiar. Espaços e comportamentos
definidos e determinados diluem-se em meio às novas funções da mulher. Essa
nova mulher acrescenta às suas obrigações domésticas de mãe e dona-de-casa, a
de trabalhadora, profissional da renda com horários a cumprir. Horários
166
Entrevista com a rendeira Maria Estela, em 18 de fevereiro de 2003.
influenciados, modificados e adaptados de acordo com a baixa e a alta estação de
vendas, quando o fluxo de turistas à comunidade representa a garantia de bons
negócios.
167
Embora o Centro não apresente o rigor de uma fábrica, com
cobranças de horários e cartão de ponto, existiam e existem responsabilidades e
regras a ser cumpridas e aceitas, o que significava trabalhar fora do espaço do lar e
permanecer determinadas horas ausentes da família.
As diferenças entre as operárias da renda e as operárias das
fábricas
168
são tantas e tão complexa que seria difícil e desnecessário enumerá-las
aqui. No entanto, o que as aproxima é o ser mulher e trabalhadora
169
, condições
que por si revelam imposições, normas e papéis determinados e definidos no
tempo e no espaço. No tocante a estes aspectos é necessário estar atento às
diferenças e às especificidades e ter a clareza de que as mulheres trabalhadoras
da Prainha se definem por condições sociais, culturais e econômicas próprias e que
não podem ser compreendidas com base em generalizações e parâmetros de
conceitos morais e comportamentais.
O Centro como espaço de trabalho, ampliou o campo de atuação das
rendeiras mulher-trabalhadora, valorizou os produtos da renda numa perspectiva
mercadológica e lhes possibilitou a entrada delas em cena para desempenharem o
papel principal no palco do trabalho, da História e da vida. No entanto, o ingresso
das mulheres artesãs no cenário trabalhista da Prainha somente foi possível
porque a cortina se fechou para alguns atores principais que se mantiveram por
muito tempo, em cartaz nos palcos da História. Assim afirma Thompson:
167
Os meses de janeiro, julho e dezembro são considerados pelos órgãos agenciadores do turismo
e pelas rendeiras como os mais promissores para as vendas, e caracteriza-se como a alta estação.
Neste período a Prainha recebe muitos turistas seduzidos pelo sol e belezas da praia, aumentando
assim a movimentação nos quiosques e garantindo bons negócios para todos.
168
Sobre a inserção da mulher na força de trabalho, ver: BRUMER, Anita. O Sexo da Ocupação:
Considerações teóricas sobre a inserção da mão de obra feminina na força de trabalho. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais, 1988. V.3 Nº 8
169
O texto de Elizabete Rodrigues da Silva As Charuteiras no Palco da Vida reflete sobre a
inserção da mão de obra feminina nas fábricas de charutos na Bahia, nas primeiras décadas do
século XX, ressaltando as dificuldades e as incertezas de ser mãe e trabalhadora inuma realidade
que não se propôs reconhecer as mulheres como sujeitos economicamente ativos. Segundo a
autora “Em 1955 a Fábrica de Charutos Suerdieck de Maragogipe, empregava 2.052 trabalhadores,
sendo que 70% eram mulheres e o setor de charutaria formado por um grupo predominantemente
feminino”, p. 166. Para uma leitura mais aprofundada ver SARDE, Nberg. CÉLIA, Maria Bacellar.,
VANIN, Iole Macedo e ARAS, Lima Maria Brandão (orgs)- Fazendo Gênero na Historiografia Baiana,
Núcleos de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher. NEIM, Mestrado em História, FFCH/UFBA,
2001.
À medida que alguns atores principais da história políticos, pensadores,
empresários, generais retiram-se da nossa atenção, um imenso elenco de
suporte que suponhamos ser composto de simples figurantes, força sua
entrada em cena.
170
O que mudou na vida dessas mulheres que pelo viés do trabalho
passaram de figurantes ao papel principal na história de suas vidas? O que
significou para elas produzirem e/ou comercializarem seus produtos no Centro?
Como as relações foram sendo tecidas? Como suas experiências no espaço de
trabalho e em torno dele foram sendo construídas e alargadas? Estes
questionamentos, assim como o “fazer a renda no espaço doméstico” e o “ser
rendeira no Centro”, englobam um universo de significados, de vivências e de
experiências do exercício de se fazer rendeira cotidianamente.
2.2.1 Organização do Trabalho: o que mudou?
Poucos antes das dezoito horas, Dona Estela arruma seu material de
trabalho, recolhe as peças de sobre o balcão e retira as que estão penduradas no
teto do quiosque. Parte desse material fica guardado no quarto de uso comunitário;
leva para casa somente a almofada e aquela peça por terminar que espera
pacientemente na almofada, presa por espinhos de mandacaru
171
. Antes de deixar
o Centro, olha para trás e verifica se não esqueceu alguma peça, linha, ou bilro.
Certifica-se que tudo está arrumado, para então deixar o local de trabalho rumo à
sua casa. Às vezes o filho dela vem ajudá-la com o peso da almofada, outras vezes
ela realiza sozinha essa tarefa.
A rotina de um dia de trabalho, entretanto, esta longe de terminar. Ao
chegar à casa por volta das dezoito horas, encosta a almofada no chão e vai
“cuidar da vida”.
170
THOMPSON, E.P. As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos. Campinas-SP Editora
UNICAMP, 2001. Folclore, Antropologia e História Social. P. 254
171
Os espinhos de mandacaru são partes do universo da renda desde o tempo das mães e das
avós das rendeiras da Prainha. Esses espinhos eram normalmente coletados nas matas pelas
próprias rendeiras, mas, hoje, dada à dificuldade de encontrá-los, existem pessoas que os colhem e
vendem às mulheres do Centro e às demais rendeiras.
Eu venho pra (Centro) depois que eu faço o almoço. eu faço o
almoço, eu almoço em casa. As vez eu trago pra almoçar, boto o almoço
tudinho, deixo tudo botado, venho pro cá, aí vou me bora seis horas.
Eu chego lá, só tomo banho depois que eu faço tudo. Quando eu chego seis
horas, a primeira coisa que eu faço, boto a almofada no chão e vou cuidar
da vida. As vez eu deixo o peixe, o feijão encaminhado e vou cuidar da
mistura e ajeitar a janta.
172
“Cuidar da vida” para a rendeira Estela é antes de tudo, fazer o jantar.
Certamente terminado o momento da família reunida à mesa, cada um segue com
a sua rotina. O marido, evangélico
173
desde criança, veste-se “adequadamente” e
vai para o culto, tarefa que se repete cotidianamente; os filhos quase sempre ficam
em casa vendo televisão, ou nos arredores de casa às voltas com os vizinhos.
Espinhos de Mandacaru utilizados na confecção da renda.
Foto: Rodrigo Alves Ribeiro, 30 de setembro de 2006.
172
Entrevista realizada com a rendeira Maria Estela, em 18 de fevereiro de 2003.
173
A rendeira Estela é casada com o pescador Francisco de Sales Almeida, o Mestre Sales, como é
conhecido na comunidade. Criado pelos avós maternos, recebeu influência protestante da
Assembléia de Deus. Todas as noites, numa rotina que se repete há mais de quarenta anos, após o
jantar ele vai ao culto.
Na verdade, é muito comum em comunidades pequenas, os laços estreitos de
amizade, de trocas, de favores e de empréstimos, numa relação de ajuda e
companheirismo.
Dona Estela, responsável pelas tarefas da casa, certamente ao
levantar-se da mesa recolhe a louça para ser lavada, varre as migalhas caídas
embaixo da mesa, deixa tudo arrumado e depois toma banho. Possivelmente,
após ao banho, ela apanha a almofada do chão, recomeça aquela peça inacabada
e permanece tramando os fios, embalada pelo som dos bilros, até o cansaço
vencê-la.
A experiência de vida e de trabalho da rendeira Estela, que aprendeu
a fazer a renda desde menina, foi marcada ao compasso dos bilros. A sua
experiência se confunde e se mistura às experiências de suas companheiras
Auristela, Maria, Helena, Raimunda e tantas outras rendeiras daquela comunidade,
que construíram suas histórias de vida com a trama dos fios da renda.
Estes novos hábitos passaram a se estabelecer no cotidiano das
rendeiras após a construção do Centro, quando a renda passou a ser
confeccionada não somente no espaço do lar e a mulher, mãe dona-de-casa veio a
assumir uma rotina de trabalho fora do universo doméstico.
No entanto, a preocupação e o compromisso dessas mulheres para
com a família, bem como para com as “obrigações” domésticas, não foram
modificados pela rotina de trabalho. Isso está expresso no “fazer o almoço e deixar
tudo botado” antes de ir para o Centro, e na preocupação em preparar o jantar logo
que retorna do trabalho. O que aconteceu foi uma reorganização dos horários e das
tarefas por elas realizadas, o que levou a um ampliação de suas jornadas de
trabalho. Normalmente elas o as primeiras que acordam e as últimas que se
recolhem.
O trabalho, antes realizado em casa entre os afazeres domésticos, e
as eventuais ausências para vender os produtos seriam substituído por uma rotina
diária envolvendo hora de saída e de chegada. Além da responsabilidade com as
vendas locais, havia também as feiras e os eventos em outras cidades e estados,
os quais exigiam a presença da mulher rendeira.
A professora Tânia, e também rendeira por tradição, que é filha e
neta de rendeira, relata em seu depoimento algumas situações novas enfrentadas
pelas mulheres após a construção do Centro.
Depois que aconteceu a fundação do Centro das Rendeiras, que a mulher
não passou mais a sair no período de férias ou nos fins-de-semana e
sim, passou assim a ser uma rotina mesmo, diária, do cotidiano e quando a
mulher casada, mãe de filhos tinha uma feira em outro Estado, tinha que ir
com outras rendeiras, havia brigas, discussões e ciúme de seus
companheiros.
174
Oficializada essa rotina de trabalho, as ausências eram sentidas e
cobradas pelo companheiro, em alguns casos, como abandono do lar.
Meu marido dizia que eu tinha trocado a família pelo Centro. Ele estranhava,
ele achava ruim, dizia que eu vivia muito aqui porque eu não perdia um
seminário, uma reunião, nada. ele dizia que faltava em casa pra vim pro
Centro.
175
A Dona Olenir descreveu em poucas palavras a nova realidade
assumida pela maioria das rendeiras da Prainha, que tinham conquistado lugar no
Centro. O estranhamento do marido dela, provavelmente era o mesmo da maioria
dos pescadores daquela comunidade que viam suas companheiras saírem para
trabalhar. Não era a atividade que causava estranhamento, uma vez que elas
confeccionavam renda de bilros desde criança, era o fato de este trabalho ser
realizado fora do espaço do lar.
O pescador acostumado a vê-la quase sempre em casa ocupada, ora
com os afazeres domésticos e com os filhos, ora com a almofada, possivelmente
encontrou dificuldade em se adaptar à nova realidade, em que o tempo do trabalho
não era mais o mesmo tempo do lar, nem da família. Dessa forma, para a maioria
desses homens estar no trabalho era faltar em casa.
Discussões, conflitos e tensões passaram a fazer parte o dia-a-dia da
rendeira. O marido e/ou companheiro, antes oficialmente o provedor do lar,
encontrava dificuldade em conviver e aceitar essa nova mulher.
174
Entrevista realizada com Tânia Moisés de Sousa, em 22 de março de 2003.
175
Entrevista com a rendeira Olenir, em 25 de novembro de 2005.
O pescador, ele sempre é muito ciumento né? Eu vi passagens assim... de
algumas pessoas, de dentro de casa, de cobranças. Não que ele (marido)
viesse aqui proibir, ou alguma deixasse de vim vender por proibição do
marido. Na época que começou, até que eles gostavam porque melhorou e
muito a vida, a condição de vida de algumas pessoas. Mas o pescador, ele
é muito desconfiado. O ciúme sempre existiu.
176
É muito comum ouvir de outras rendeiras narrativas iguais a essa da
Dona Elizete. Embora o dinheiro ganho por essas mulheres provesse o sustento da
casa, as cobranças geravam conflitos familiares. Cobranças de abandono do lar
não se justificavam principalmente porque, a mulher, ao ausentar-se, deixava
sempre uma parenta próxima à família, cuidando de todos da casa.
Por outro lado, os conflitos não visavam impedir a companheira de
trabalhar, nem disputar com ela poder aquisitivo que, muitas vezes, superava o do
homem. O que existia e continua existindo, porém com menor intensidade, era o
ciúme, o medo e a insegurança ante o universo de relações e novas situações que
se apresentavam para a mulher.
A saída diária para trabalhar, bem como a participação das rendeiras
em feiras e eventos fora da Prainha, geravam desconforto e desconfiança nos
companheiros. Casados muitos anos, estavam acostumados a tê-las sempre
por perto arrumando a casa, lavando, passando e cuidando da alimentação da
família. Por outro lado, não havia, disputa pelo papel de chefe da família, nem pelo
de provedor do lar, uma vez que as mulheres sempre contribuíram
economicamente em casa.
Na verdade, renda e pesca na Prainha eram duas atividades que se
completavam culturalmente e economicamente. Nas desconfianças, brigas e
conflitos passados e atuais, quase sempre o ciúme era motivo gerador.
Num contexto geral, o Centro foi positivo pra rendeiras e pra toda a
comunidade como um todo, porque não? Porque elas tiveram a
oportunidade de ter uma local respeitável certo? Digno ta entendendo? Do
trabalho delas. Foi assim em termos de dignidade da mulher rendeira, foi
uma homenagem linda, uma grande, enorme conquista. Havia no início
muito preconceito e alguns conflitos familiares, porque o pescador é um
176
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 3005.
homem rústico, tem suas qualidades como homem, como homem do mar,
que é uma profissão muito digna, difícil e perigosa, mas que também no
aspecto social, na sua cultura, sua esposa sair de casa para prover o
sustento da família, isso tocava a índole machista dele, né? Pra ele, como
ele ficaria perante os amigos, os colegas né? Foi assim. Tinha algumas que
era uma verdadeira batalha até pra sair de casa, trabalhar. Deixava já o
almoço pronto antes de sair.
177
Discussões, brigas, conflitos. Fragmentos de histórias de vida
relatados por Tânia, na época da criação do Centro, uma menina de doze anos.
Filha de rendeira, ela acompanhava sua mãe ao local de trabalho. Tânia relembra
histórias de força e perseverança dessas mulheres simples, pobres e culturalmente
marginalizadas que, por meio do artesanato, conseguiram ingressar no mercado de
trabalho informal e/ou informal e, dessa forma, se posicionaram como mulheres
trabalhadoras, como sujeitos históricos. Mulheres que travavam verdadeiras
batalhas diárias para sair de casa. Era preciso deixar o almoço pronto, a roupa
lavada, a casa arrumada. Com pouco ou quase nenhum estudo, venceram a
batalha do preconceito, impuseram aos companheiros o direito delas de sair de
casa para trabalhar, de poder sonhar com uma profissão, de ter uma vida melhor,
de colocar seus filhos na escola.
Ao assumir lugar no Centro, a mulher estava consciente dos desafios
e das batalhas a serem vencidas. Desafios e batalhas que se materializavam nas
tarefas domésticas a serem administradas porque continuavam sob sua
responsabilidade, no ciúme e na insegurança do companheiro. Somem-se a isto as
próprias inquietações a cerca do papel de ser boa mãe, boa dona-de-casa e boa
esposa. Uma vez que sempre trabalhou em casa, dividindo-se entre os cuidados
com a casa e com os filhos, essas inquietações se desdobrariam em dúvidas e
incertezas. Conseguiria ela administrar tantas funções sem se deixar dominar por
sentimentos de remorso e descaso, de está ou não abandonando o lar?
As ações da mulher trabalhadora, como um sujeito (individual ou
coletivo), que se propõe finalidades claras e distintas, e que põe suas ações como
177
Entrevista com Tânia Moisés de Sousa, em 22 de março de 2003.
meios permitindo atingi-las
178
, revelam dentro de um repertório de possibilidades
suas condições materiais, culturais e afetivas; revelam, também, como interage,
pensa e age sobre o mundo, transformando-se e transformando todos a sua volta.
Na verdade, a luta das mulheres pela conquista de espaços e de
autonomia revela um “fazer-se” permanente e mutável. Esse “fazer-se” representa
a instituição de uma nova realidade, de um novo mundo e de um novo modo de
existência social-histórica”.
179
Embora o universo que compõe a renda de bilros continue, com
características domésticas e o espaço de trabalho se assemelhe e se apresente
como extensão da casa, visto que muitas levavam os filhos pequenos para o
Centro das Rendeiras e algumas crianças tenham passado os primeiros anos de
vida embaladas embaixo dos quiosques, foi através do Centro que a renda de bilro
conquistou efetivamente o espaço público.
Eu trazia meu filho. eu crie um filho amarrando a rede aqui, naquela barraca,
de um pano pro outro. O menino novinho que eu tinha, pra poder eu vim
vender aqui. Eu trazia ele pra cá, meu menino, com o mingau feito.
Novinho...trazia uma rede, amarrava segurado nas barracas.
180
A fala da rendeira Helena anuncia as estratégias por ela utilizadas
para vencer cotidianamente as dificuldades de ser mãe e ao mesmo tempo se
firmar como trabalhadora e por este caminho assegurar a sobtevivência. Essa
realidade estendia-se à maioria das rendeiras daquela comunidade. Para garantir
seu lugar no Centro e, consequentemente, boas vendas e melhoria de vida, a Dona
Helena não se curvava às dificuldades impostas pela responsabilidade de um filho
pequeno. Foi certamente com as vendas que ela garantia a sobrevivência e a
escolaridade do filho e dos outros membros da família.
Na verdade, a fronteira entre público e privado é muito tênue. Uma
vez que as rendeiras da Prainha, a exemplo das demais mulheres dos segmentos
populares, sempre trabalharam para garantir a própria sobrevivência e a de sua
178
CASTORIADIS, Cornelius. Introdução: A Questão da História do Movimento Operário. A
experiência do movimento operário. Brasiliense, 1985, p.64.
179
IDEM, p.44/45.
180
Entrevista com a rendeira Maria Helena em 25 de novembro de 2005.
família, elas circulavam e se faziam presentes no espaço público, desempenhando
as mais variadas atividades. Nesta perspectiva destaca-se o livro de Maria Odila
Leite da Silva Dias, Cotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. Neste estudo a
historiadora relevância à força, à perseverança e à resistência de mulheres
pobres, chefes de famílias, sobrevivendo na informalidade do artesanato doméstico
e do comércio ambulante. Vivendo na linearidade das relações sociais, a autora
ressalta ainda a capacidade dessas mulheres de reinventar o cotidiano e de
elaborar formas multifacetadas para resistirem e sobreviverem apoiadas às redes
de solidariedade e de vizinhança, utilizando-se das brechas existentes e/ou
construídas nos sistemas sociais.
O espaço de trabalho foi para as mulheres da comunidade da Prainha
um instrumento de conquista da profissão. Respeitando o próprio campo de
possibilidades e driblando as dificuldades, elas foram se fazendo rendeiras,
conquistando seus espaços, relativa autonomia, respeito e admiração dos
companheiros. Respeito exemplificado na fala do Pescador Oliveira quando se
refere à Dona Auristela, sua companheira mais de trinta anos: “ela era muito
esperta. Ela trabalhava na renda, ela pescava aculá no rio, ela vendia ovos, ela
vendia renda fora. Ela andou por aí por fora, pelas cidades grandes.”
181
É inegável o respeito e a admiração do pescador Oliveira pela
“esperteza” da rendeira Auristela. Essa admiração, no entanto, não se estende às
tarefas domésticas desempenhadas por ela. Esperta porque fazia renda, pescava e
vendia ovos e não porque cuidava da casa, lavava, passava e cozinhava. Isto se
explica, em parte, porque “as mulheres devem atender às necessidades dos outros,
ser responsável pelo bem-estar de sua família, pela felicidade e sucesso de seus
filhos”.
182
Essa realidade transformou-se a partir da década de 1970,
183
momento em que surgiu um conjunto de estudos preocupados em encontrar os
rastros da presença das mulheres no cotidiano da vida social. No entanto, o mesmo
181
Entrevista com o pescador Oliveira, em 14 de janeiro de 2003.
182
COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. Tecendo por Trás dos Panos. São Paulo. Editora Rocco, 1994.
p.59.
183
Sobre esses estudos que buscam os rastros das mulheres na vida social ver: RAGO, Margareth.
As Mulheres na Historiografia Brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes (org) Cultura e História em Debate.
São Paulo, 1995; DEL PRIORE, Mary História do Cotidiano e da Vida Privada; SOIHET, Raquel,
História das Mulheres In: CIRO, Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da História:
ensaios de teoria e metodologia, Rio de Janeiro, Campus, 1997.
discurso social que se encarregou de incorporar o papel de trabalhadora à
identidade feminina e, até certo ponto, questionou a maternidade e o
enclausuramento da mulher no lar, continua a atribuir a ela os encargos com a casa
e com os filhos.
A cada de 1970 para as rendeiras da Prainha tem um significado
que vai além do discurso social e dos estudos sobre as mulheres. Distante dessa
realidade acadêmica, essas mulheres construíram suas histórias de vida através do
trabalho desenvolvido cotidianamente, garantindo, assim, a sua sobrevivência e da
família.
Bem antes da conquista do espaço de trabalho, ajudavam em casa
com o “dinheirinho” que ganhavam, como elas afirmam. Após a construção do
Centro muitas delas assumiram a responsabilidade quase total pela manutenção da
casa e a educação dos filhos, como verdadeiros chefes de famílias. Dona Helena
nos fala da sua realidade:
Criei meus filhos daqui e ainda crio. Eu trabalho, ajudo a comprar o de
comer na minha casa, eu vivo daqui. O Centro ajudou a melhorar a vida de
todo mundo.
184
Na verdade, mulheres provendo o sustento da família e chefiando
domicílios apareceu como um fenômeno na sociedade brasileira, especialmente
no século XIX”
185
. Segundo Paulo Eduardo Teixeira, numa realidade social em que
o poder masculino era legitimado pela família patriarcal, mulheres destoavam do
imaginário social, época em que “predominavam os senhores de escravos e seus
casarões”.
186
Este autor trata da temática das mulheres chefes de família, na
perspectiva da história do povoamento da Capitania de São Paulo, ocorrida em
1765.
A seu modo a rendeira Zenaide quando diz “a minha mãe sustentava
mais a casa do que o próprio pai” está se referido à realidade compartilhada por
184
Entrevista com a rendeira Maria Helena, em 25 de novembro de 2005.
185
TEXEIRA, Paulo Eduardo. O Outro Lado da Família Brasileira. Campinas, São Paulo. Editora da
UNICAMP, 20004, p.27.
186
Idem. p.27
rendeiras da Prainha e por muitas mulheres ao longo da História, principalmente as
dos segmentos populares.
2.2.2 Renda de Birros: De Expressão Cultural à Condição de Mercadoria.
À primeira vista, o trabalho das rendeiras da Prainha, parece um labor
feminino que ao longo dos anos sobreviveu às transformações pelas quais as
sociedades vêm passando. Mas, sob olhar mais atento, é possível perceber novas
e antigas práticas que ora se aproximam e ora se distanciam no cotidiano das
profissionais da renda. Mulheres que, a exemplo de suas mães e avós, ensinaram
às filhas, desde o trocado dos fios à fabricação dos instrumentos de trabalho, mas
também aprenderam que “uma cultura não pode sobreviver se não se renova”
187
.
Por ser transmitido pela tradição oral, passado de geração a geração,
a cultura da renda de bilros tem origens ainda um tanto obscuras, apesar das
inúmeras tentativas históricas de estabelecer o marco de chegada e
desenvolvimento no Brasil.
187
JUNIOR, M. Diegues. Cultura e Comunidade. Revista Brasileira de Folclore. Ano XIV. 41,
maio/agosto 1976. p.8
Demonstrativo da técnica de confecção da renda de bilros. Foto:
Terezinha Bandeira, 30 de setembro de 2006.
A renda de bilros, introduzida na Prainha, foi afeiçoando-se ao lugar e
às pessoas, adaptando-se ao ambiente e tornando-se a expressão cultural da
comunidade. Desde o tempo de suas avós e mães as mulheres criam e recriam
com as mãos este saber manual passando-o às gerações futuras, o qual
caracteriza o modo de vida de seu povo.
Um exemplo dessa adaptação são os nomes das peças produzidas
por elas como: peixinho, palha de coqueiro, de pinto, tijolo, pata de caranguejo
etc. São, portanto, nomes que expressam a realidade concreta e o cotidiano das
rendeiras e pescadores daquela comunidade. Assim, ser rendeira na Prainha não
significa o mesmo que ser rendeira no Iguape, em Aracati ou em Santa Catarina.
Cada região guarda especificidades e diferenças.
No livro Coroas de Glórias, Lágrimas de Sangue: a rebelião dos
escravos de Demerara em 1823, a historiadora Emilia Viotti da Costa chama a
atenção para o cuidado que se deve ter ao trabalhar com categorias. Segundo a
autora, é preciso estar atento para perceber que as categorias são construídas
historicamente e não essências imutáveis e primordiais das quais se possam
deduzir as idéias e o comportamento das pessoas
188
. Ser rendeira na Prainha,
produzir e comercializar no Centro das Rendeiras com apoio e parceria do Estado
tem significado diferente de ser rendeira quarenta anos quando a produção era
exclusivamente doméstica e as vendas muito raras.
A exemplo de outras manifestação culturais ou folclóricas, a renda é
dinâmica, adapta-se ou modela-se às novas exigências. As influências externas
são sentidas com maior determinação após a construção do Centro das Rendeiras
e das interferências do Estado implementadas pela CEART - Central de
Artesanato. Assim, a cultura da renda entrou em contato com um universo mais
amplo, a ganhou novos admiradores, novos compradores e diferentes utilidades.
A CEART (Central de Artesanato) foi criada no final dos anos de 1970,
por incentivo de Luiza vora. Inaugurada em agosto de 1981, dois anos após a
construção do Centro das Rendeiras, a sede da CEART ocupou o espaço antigo do
Palácio do Plácido
189
, localizado na Aldeota, bairro nobre da capital cearense.
Os incentivos governamentais representados na Prainha pela CEART
objetivavam, sobretudo, induzir, incentivar e centralizar a produção dos artefatos de
renda de bilros, aperfeiçoando a mão-de-obra e padronizando a feitura dos
produtos, para satisfazer o mercado turístico.
As estratégias de intervenção estabelecidas pela CEART pautavam-
se, portanto, no ciclo completo produção, comercialização e consumo. Equipes
especializadas visitavam o Centro das Rendeiras, promovendo, através de cursos,
oficinas, treinamentos e palestras, incentivo à novas criações, bem como um
aprimoramento das técnicas de produção.
Ao promover a capacitação das artesãs os cursos e demais atividades
procuravam introduzir novos designs, cores e padrões para melhorar a qualidade e
aceitabilidade dos produtos comercializados. Para tais propósitos eram tomadas
188
VIOTTI, Emília da Costa. Coroas de Glórias, Lágrimas de Sangue: a rebelião dos escravos em
Demerara em 1823. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p.15.
189
O Palácio do Plácido era a “antiga residência do casal Plácido de Carvalho, no bairro aldeota,
demolido na década de 70”. In: FLEURY, Catherine Arruda Ellwanger. Renda de Bilros, Renda da
Terra, Renda do Ceará. A expressão artística de um povo. São Paulo: Annablume. Fortaleza:
Secult, 2002. p.191.
medidas como: ajuda de custo para aquisição de matéria-prima principalmente do
fio, para participações em feiras e eventos fora da comunidade, bem como para
garantir a presença de técnicos em controle de qualidade e de pessoas
capacitadas em relações humanas e técnicas de vendas.
O design, e a padronização dos trabalhos das rendeiras consistiam
em estratégias de melhoramentos do produto final, voltado ao mercado externo. Os
treinamentos visavam, portanto, obedecer a padrões de exigências, inclusive para
estabelecer diferença com os artefatos produzidos sem nenhuma orientação.
Se antes as rendeiras se restringiam basicamente a produzir toalhas,
paninhos de bandeja e portas-copo para serem vendidos esporadicamente aos
eventuais compradores e revendedores locais, como foi citado anteriormente, a
partir da construção do Centro e das ações da CEART, elas passaram a
produzirem biquínis, bijuterias e peças completas do vestuário feminino. Nessa
união entre tradição e modernidade surgem novos e interessantes produtos.
O trabalho da CEART é um trabalho diferenciado, um trabalho de qualidade,
diversificado. Porque quanto melhor o trabalho, mais vendável, até porque
tem que diversificar. Nós temos uma imensidade de diversificações de
trabalhos aqui, mas nós temos que atender o mercado, a exigência do
mercado. É juntar a cultura com a exigência do mercado, é a modernização.
190
Na avaliação da Dona Olenir, a atuação da CEART quanto à
exigência na qualidade dos produtos a serem comercializados garantia
diversificação e melhoria no acabamento das peças por elas produzidas, interferia
na mesmice da peças encontradas sobre os balcões do Centro e unia a tradição de
um saber milenar à modernidade, imposta pelo mercado consumidor.
A sociedade transforma-se, e a transformação vai atingindo todos os
valores culturais. É necessário estar atento às inovações e transformações da
cultura da renda, para desse modo perceber como ela se manifesta pela recriação
de novos modelos e pelas novas formas de utilização.
190
Entrevista com a rendeira Olenir, em 25 de novembro de 2005.
De modo geral, a realidade na comunidade da Prainha, após a
construção do Centro, vinha lentamente se transformando. As transformações
aconteciam, em parte, pela interferência externa, com a chegada de turistas e
banhistas que, em busca de sol e mar entravam em contato com a arte das
mulheres da comunidade e, também, pelos anseios e necessidades internas do
grupo.
Além do grupo familiar, elas passaram a pertencer também ao grupo
de rendeiras do Centro. As relações sociais que se estabeleceram no espaço de
trabalho, e vindo de novos personagens à Prainha, ampliaram o campo de atuação
dessas mulheres, diversificaram suas atividades e modificaram-lhe o
comportamento.
A interferência do Estado nesse processo de estruturação de pólos e
centros artesanais provocou alterações significativas na produção, comercialização
e o consumo das rendas da Prainha, os quais imprimiram outras características à
sistemática de trabalho e às relações sociais daquela comunidade. A noção de
valor material e monetário atribuído às peças de renda alterou substancialmente as
relações sociais entre os integrantes do grupo, assim com a relação pessoal de
cada uma com o trabalho.
Na produção doméstica destinada a atender as necessidades
imediatas da família, como por exemplo, vender uns biquinhos para comprar a
mistura”
191
, as artesãs detinham autonomia quanto ao tempo de produção e ao que
deveriam produzir. Embora, o objetivo final fosse a venda para ajudar nas
despesas domésticas, não havia nesse momento clareza quanto ao valor
monetário das peças produzidas entre as tarefas rotineiras de uma dona-de-casa.
Essas peças simbolizavam um aprendizado que se perpetuava pela tradição e
garantiam ajuda à sobrevivência diária da família.
Naquela época, que eu vinha pra (centro), nóis vendia muito, vinha de
dez, vinte ônibus de turistas. Eu ainda tava fazendo o café minha amiga
vinha me chamar, que os ônibus já tava. A gente pegava era as caixas e
rasgava, aí não ficava nenhum trabaio. Era muito turistas.
192
191
Em muitas narrativas ouvir essa expressão. Nessa perspectiva, a produção nesse momento
visava a suprir as necessidades imediatas da alimentação diária da família.
192
Entrevista com a rendera Maria Helena, em 25 de novembro de 2005.
Dona Helena rendera filha e neta de rendeira, faz um relato sobre o
início das atividades no Centro, fornecendo-nos muitas informações. Primeiro sobre
o companheirismo que existia entre elas, exemplificada pela atitude da amiga que
ia chamá-la logo cedo para não perder as vendas; em seguida, sobre as mudanças
que ocorreram nas vendas, no ganho monetário e no modo de vida.
As vendas aumentaram ao ponto da oferta “quase” não suprir a
procura, pois, segundo ela não sobrava nenhum trabaio”. Mas essa nova realidade
que se instalou no cotidiano das rendeiras, alterara-lhe o modo de vida. O café
matinal, provavelmente saboreado com calma e em companhia da família é
interrompido pela chegada dos novos compradores. Dessa forma, elas passaram a
obedecer à lógica mercadológica e a cumprir horários.
Quando a renda de bilros passa a ser produzida também
193
no espaço
público (Centro), e entra em contato com o mundo do consumo, a ter valor de troca
como mercadoria, a criação que, antes era relativamente livre, passa a obedecer a
um ritmo de produção.
Mesmo nesse período de intervenções externas, é possível perceber
relativa autonomia das rendeiras, que ora obedecia a lógica da produção, ora a da
criação. Muitas rendeiras que ocupavam os quiosques do Centro criavam
dificuldades e empecilhos quanto a produzirem em série as “encomendas” que
recebiam da CEART ou de compradores particulares.
A rendeira Olenir nos esclarece com essas encomendas aconteciam.
Você tem que se comprometer a um tipo de trabalho, por exemplo, ela (CEART)
vai querer um trabalho x, em cor tal. Você tem que fazer aquilo que ela (ceart) pede
e não o que você quer fazer.”
194
Muitas rendeiras resistiam a produzir modelos e
padrões e em cores por elas considerados difíceis, feios e esquisitos, e a cumprir
prazos de entregas. Uma vez que, o tempo do trabalho estava entrelaçado à vida
familiar, os prazos interferiam diretamente no dia-a-dia dessas mulheres.
193
É importante deixar bem claro que a renda de bilros em momento algum deixou de ser produzida
no espaço do lar, entre as atividades domésticas, mesmo depois da construção do Centro das
Rendeiras.
194
Entrevista com a rendeira Olenir em 25 de novembro de 2005.
Quando começou era a FUNSESCE, era o governo do estado que
gerenciava. Eu até acho que na época existia assim um melhor
acompanhamento sabe? Por ser o governo do estado, por ser também o
primeiro local de artesanato a ser criado. Então a preocupação estava
em tono do Centro das Rendeiras. Aí era muito bem assistidas as rendeiras,
muito bem assistidas mesmo. Existia elas que viajam por conta própria, pra
vender artesanato em outros locais do Brasil, em outros Estados. Era,
digamos que era a época das vacas gordas, sabe? Uma época muito boa
pra rendeiras e pro artesanato local”
195
Embora essa resistência provocasse um entrave na relação entre
elas e a CEART, 1980 foi, para estas mulheres, a década de ouro. Nas palavras da
rendeira Elizete foi o tempo das vacas gordas”. Após a construção do Centro e
com todo apoio que elas recebiam, as vendas aumentaram e a vida de muitas
rendeiras e das famílias melhorou. Na verdade, sendo o Centro um
empreendimento pioneiro graças a importância que o artesanato local vinha
ganhando nacionalmente, a Prainha tornou-se roteiro turístico obrigatório para os
que queriam levar para suas cidades peças de rendas de bilros produzidas pelas
mãos hábeis das rendeiras cearenses.
A época de ouro, descrita pela rendeira Elizete, em virtude da boa
assistência concedida pelo Estado às rendeiras, e das vendas em abundancia com
a chegada dos ônibus de turistas, representou a curto prazo melhoria financeira
para as envolvidas comercialmente com o Centro. Um exemplo disto foram as
reformas das casas, quase todas em palha ou taipa, para casas de alvenaria. As
palavras da rendeira Raimunda reafirmam esse momento vivido por elas, naquela
época era boa, tinha muito turista e a gente vendia bastante. O Centro aqui foi
muito bom de venda.”
196
Com o fluxo de turistas, o Centro passou a funcionar como ponto de
produção e comercialização dos artefatos de renda e, posteriormente, de outros,
como artigos em madeira, em telha, garrafinhas de areia colorida etc. A partir desse
momento ampliou-se a inserção dos trabalhos das rendeiras na esfera pública,
195
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
196
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
reduzindo a atuação do atravessador, e aumentando o número das que
comercializavam seus próprios produtos.
A procura desenfreada pelos artefatos de renda exigia produção ágil e
interferiu diretamente no tempo de trabalho. Essa realidade impôs nova
organização do trabalho e da produção, o que mobilizou rendeiras das
comunidades vizinhas como, por exemplo, do Tapera e do Japão. Inseridas no
mercado capitalista, elas passam a obedecer às exigências quanto à mercadoria a
ser produzida e ao tempo gasto, uma vez que os produtos deveriam está prontos
sobre os balcões, a espera do comprador.
Se o ritmo de produção mudou, interviu diretamente no processo de
criação das rendeiras. Esse ritmo, antes regulado pela vida familiar, passa a ser
ditado pela procura dos banhistas, dos ônibus de turistas e pela alta estação. As
rendas ganham outros espaços, invadem outros ambientes e entra em contato com
outras culturas através das mãos de novos admiradores.
No entanto, as exigências das encomendas realizadas pela Ceart
quanto à padronização dos modelos, cores, fios e tamanhos desencadeiam um
movimento avesso no Centro. De um lado, as rendeiras buscavam o apoio da
CEART, em termos de incentivos, cursos, ajuda financeira para participação em
feiras e eventos fora da comunidade e compra de linha, do outro lado elas criavam
restrições quanto a obedecerem as normas estipuladas para as vendas e as
confecções das peças.
Ante às necessidades cotidianas do grupo, muitas delas resistiam em
levar seus produtos para serem vendidos nas lojas da CEART. Segundo elas, as
vendas em consignação não lhes forneciam nenhuma garantia, a mercadoria ficava
muito tempo parada, sem vendas, e elas viviam de ganhos diários.
Sobre as relações comerciais com a CEART, afirma a rendeira
Auristela: Na Ceart eu deixava também trabaio, mais depois, a gente é pobre
precisa de vender, e ficava e não vendia.
197
. Completa a rendeira Helena: A
Ceart? Eu já vendi, eu já fiz, já fiz pra lá sabe? Mais eu não vou fazer mais não
198
Antes do Centro, quando as vendas aconteciam esporadicamente,
não havia uma sistematização da produção. Essas mulheres criavam suas peças
197
Entrevista com a rendeira Auristela, em 14 de janeiro de 2003.
198
Entrevista com a rendeira Helena, em 25 de novembro de 2005.
objetivando a venda, mas o ritmo era ditado pela vida familiar, pelos cuidados com
os filhos e com a casa. Havia, portanto, um distanciamento do mercado de trocas e
da individualização do trabalho. Nesse período havia uma relação mais
harmoniosa, um companheirismo que vai se alterando quando os produtos entram
no mercado de consumo, como um produto de grande procura pelos turistas.
Assim, à medida que o Estado interferiu de forma decisiva na
produção artesanal, com a construção do Centro, ampliaram-se as vendas e
aumentava também a disputa entre as rendeiras pelo próprio espaço. A liderança
foi estabelecida principalmente para controlar as disputas e os conflitos internos.
Sobre esse tempo, afirma a rendeira Helena:
Era nóis mesmos, nóis mesmo, não
tinha líder. Era muito diferente naquele tempo”.
Uma vez construído e inaugurado, o Centro contava com quarenta
rendeiras, ou seja, todos os quiosques foram ocupados pelas artesãs. O quinto
quiosque foi destinado à venda de lanches.
O Centro ficou sob a responsabilidade das próprias rendeiras, tendo,
portanto, a FUNSESCE como órgão de apoio para orientá-las e, assim, evitar
desentendimentos, disputas e conflitos internos. No entanto, a ação desse órgão
não foi suficiente para evitar as desavenças e o desgaste nas relações entre as
mulheres da comunidade.
Nas entrevistas realizadas com as rendeiras, não ficou muito claro
quando foi instituída a liderança no Centro, no entanto, os motivos pelos quais foi
necessária e urgente essa liderança eram recorrentes em quase todas as
narrativas. A rendeira Elizete faz um relato sobre esses motivos.
Existe uma coisa chamada concorrência e uma coisa chamada posse né?
Porque aqui é o Centro das rendeiras, não é da rendeira, é das rendeiras.
Mas muitas rendeiras pensam que Centro é seu ‘eu faço isso porque eu
quero porque é meu, eu vou brigar porque é meu, eu vou discutir porque é
meu’. (Assim), por conta de ser cada uma por si, havia a necessidade de
criação dessa pessoa que gerenciasse o Centro né? começou. Foi
exatamente com a Funsesce que começou, a líder, a vice-líder. Era como se
fosse a diretoria de um, associação, que sem nada que fixasse, como
uma papelada, como uma coisa que registrasse, que deixasse registrado.
Não era nada documentado. Eu não lembro bem se era um ano, dois anos
ou se era mais de dois anos, eu lembro que era bastante tempo. Depois
havia uma nova eleição, as vez permanecia até a mesma sabe? O pessoal
achava por bem continuar a mesma ou então mudava.
199
Ao ser instituído o sistema de liderança
200
na Organização Social do
Centro, ficou determinado que a líder escolhida ficaria no cargo por dois anos. A
substituição seria ao final desse período, podendo a líder permanecer ou não no
cargo, dependendo do seu desempenho. A primeira líder do Centro das Rendeiras
foi Luzia Conceição Moisés.
Em linhas gerais, a líder desempenhava o papel de organizadora, de
conselheira e mediadora das relações internas no Centro. Uma vez que o espaço
de trabalho delas não era legalizado, o havia da liderança compromisso nem
responsabilidade em representar o grupo, suas ações restringiam-se basicamente
à limpeza e organização interna do Centro.
O artesanato da renda como atividade de sobrevivência, como um
saber passado pela tradição de uma geração a outra está permeado de
continuidades e mudanças, que se misturam no dia-a-dia das rendeiras da Prainha.
Continuidade e mudanças próprias não somente da dinâmica da cultura, mas
também das exigências do mercado e da ação do homem.
A todas essas transformações e adaptações pelas quais as rendeiras
passaram, ainda hoje detém todas as etapas desse aprendizado, passado pela
tradição, na fabricação das peças. Embora elas comprem peças feitas de amigas,
de membros da família ou de rendeiras de comunidades vizinhas para suprir a
procura, elas não deixam de participar de todas as etapas da produção, desde a
fabricação dos objetos de trabalho que aprenderam a fazer com suas mães e avós,
até o acabamento final e à venda das peças. Essa participação revela uma
resistência, uma relativa autonomia em relação ao saber que garante a
sobrevivência de muitas famílias.
As rendeiras certamente enfrentaram tensões e contradições próprias
da passagem de um ofício artesanal, produzido domesticamente, com o intuito de
199
Entrevista coma a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
200
A primeira liderança aconteceu por indicação da Assistente Social da CEART e não por votação.
ajudar no sustento da família, para um produto que ganha preço como mercadoria
de consumo.
Essa tensão que se na prática de um ofício que se destina a
atender as necessidades internas de um grupo e passa a ser exposto no mercado
de troca para ser comercializado, acontece, sobretudo, a partir dos anos de 1970,
quando os efeitos do planejamento estatal sobre o trabalho artesanal se fizeram
presente e a indústria cultural passa a transformar bens de cultura em mercadoria.
A instalação do Centro de Rendeiras, sem dúvida alguma,
proporcionou às mulheres artesãs da Prainha aumento significativo da participação
delas no processo de comercialização dos artefatos de renda e conseqüente
intervenção técnica no processo de estruturação do trabalho da categoria. No
entanto, a longo prazo, não proporcionou a essas trabalhadoras o reconhecimento,
nem a elevação real do padrão de vida.
Conflitos internos, proliferação de centros artesanais e resistências
em se adequar às exigências da CEART, foram alguns dos motivos que levaram à
queda das vendas, e a conseqüente procura pela legalização do espaço de
trabalho..
A Associação das Rendeiras da Prainha, criada em 1989, dez anos
após a fundação do Centro constituiu-se, portanto, numa tentativa de buscar junto
aos órgãos públicos atenção, parcerias e incentivos financeiros que revertessem
esse quadro de “quase” abandono em que o Centro se encontrava após a ausência
dos compradores.
CAPÍTULO III
TECENDO VIDAS
3.1 Associação das Rendeiras da Prainha: Experiência Social e Organização
do Trabalho
Renda de Bilros: objeto expressivo que adquiriu através da história
características diversas, adaptando-se e transformando-se, sem, contudo, perder
utilidade como fator econômico, seu caráter decorativo e ornamental, persistindo
até hoje seu uso no vestuário, principalmente, no feminino, na ornamentação da
casa e na roupa de cama.
Entre a tradição e o progresso, os trabalhos executados pelas mãos
hábeis das rendeiras da Prainha, contam a história de mulheres que, ao tecer os
fios da renda na feitura das peças, foram tecendo também relações sociais,
construindo dia-a-dia suas histórias de vida e de trabalho. Mulheres que se
organizaram mediante a existência do Centro das Rendeiras e buscaram
coletivamente, desenvolver múltiplas estratégias para perpetuar esse saber, que
sobreviveu e se reproduz, representando uma atividade de inequívoca importância
econômica para muitas famílias da comunidade.
Histórias de almofadas, outrora descansando à sombra de uma
árvore, nas salas ou portas entreabertas e nos terreiros das casinhas de palha, de
onde se podia ouvir a música produzida pela dança dos bilros no entrelaçamento
dos fios. Música testemunha dos bate-papos, das cantigas e das prosas que
certamente amenizavam as dificuldades de quem tomara para si a obrigação de
cuidar da casa e alimentar os filhos.
Histórias de almofadas que invadiram outros espaços, romperam a
barreira entre o público e o privado, conquistaram outros admiradores,
resignificaram seu valor mercadológico e resistiram às transformações e à
concorrência imposta pelo moderno.
Peça em processo de elaboração sobre o desenho no papelão. Foto:
Rodrigo Alves Ribeiro, 30 de setembro de 2006.
O trabalho das rendeiras da Prainha, a exemplo de outras atividades
artesanais
201
no estado do Ceará, sobreviveu às transformações que ocorreram no
Brasil nas primeiras décadas do século XX, momento do processo industrializante
no país e da euforia do “novo”.
O artesanato, então, conotado com a idéia simplista de um manualismo
empírico, não constitui fator ou função a ser efetivamente incorporada ao
nosso modelo econômico. Ficou relegado ao plano das atividades
marginais, constituindo tema do folclore ou campo para o diletantismo
assistencial às chamadas classes menos favorecidas não raro
estigmatizado como trabalho de presidiários ou atividades de hippies. O
ciclo da industrialização não o contemplou como instituto social e nem
econômico, omitindo-o dos esquemas de estímulos econômicos creditícios e
201
As loiceiras em Limoeiro do Norte, os trabalhos em palha em Aracati, as rendeiras do Iguape são
exemplos de grupos que vem resistindo às transformações que tendem a mecanizar até as relações
sociais.
nos planos de desenvolvimento global, como não o considerou na esfera
jurídica de trabalho.
202
Essa realidade, da qual nos fala o autor, transforma-se somente a
partir da década de 1950. Como foi explicitado no capítulo anterior, foi somente a
partir dessa década que surgiram as primeiras políticas públicas voltadas para o
reordenamento da produção artesanal brasileira.
O Centro das Rendeiras da Prainha, criado em 1979, período da
efervescência do apoio às atividades artesanais no Estado, é testemunha de um
saber que sobrevive, transforma-se e vem ao longo dos anos sendo transmitido
pela oralidade de geração em geração. A resistência e/ou transformação desse
saber manifesta-se pela recriação e/ou reformulação de modelos, cores, fios e
tamanhos, pois, é isto que enriquece a cultura, uma vez que, cultura estática é
cultura morta, inexistente”.
203
As rendeiras da Prainha, envolvidas com os novos ensinamentos e
novidades trazidas pelos cursos ministrados especialmente pela CEART, entraram
em contato com o glamour e o imediatismo do mundo da moda. Na perspectiva de
manter esta cultura de caráter tradicional e familiar e representa suporte econômico
para a sobrevivência do grupo, elas vão aceitando e adaptando suas peças aos
novos gostos e às novas exigências. Sem perceber, talvez sem a real dimensão
dessas mudanças, vão transformando o conceito de costume em conceito de
moda.
Se a cultura para se perpetuar carece de mudança e de renovação, o
mudar e o renovar para as rendeiras da Prainha direcionam para o senso
profissional, que é indicado pela necessidade de atender às exigências reclamadas
pelo mercado.
202
PEREIRA... Op.cit p. 71 O livro Artesanato Definições e Evolução: ão do Mtb PNDA do
professor José Carlos da Costa Pereira, obra citada, faz parte da coleção XI Planejamento e
Assuntos Gerais e foi publicada pelo Ministério do Trabalho, Brasília em 1979. Entre suas
experiências na área do artesanato podemos citar: Professor de História do Artesanato e de História
da Arte Brasileira no Curso de Artes Aplicada do SENAI (1952-1954); Diretor Executivo do Instituto
de Pesquisas e Treinamento do Artesanato (IPTA), da Bahia (1958-1960); Coordenador do
Programa de Assistência ao Artesanato Brasileiro (PAAB) do MEC, do qual foi organizador,
implantando sua fase experimental (1961); Diretor Técnico do “Artesanato do Nordeste S.A”
(ARTENE) subsidiária da SUDENE(1964-1966); Assessor do Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato(PNDA), requisitado pelo Ministério do Trabalho ao SENAI, entre
outros.
203
JUNIOR, M. Diegues... op.cit. p. 08
Os cursos determinavam o tipo de linha e as cores que deveriam ser
usadas nas peças, como afirma a rendeira Olenir:
Cada trabalho tem um “q”, se você vai trabalhar com roupa feminina, você
vai trabalhar com linha fina, um trabalho mais delicado... é também na
questão de cores. Não é que a gente não saiba combinar, é que as vezes
não fica bem, então se você vai fazer um trabalho pra sala, o pessoal quer
usar rosa, rosa não se usa em sala, se usa em quarto, porque a gente fez
um curso de designer, de coloração e tem que estudar quais cores que
usa.”
204
As determinações desses cursos, somadas às exigências do mercado
turístico, foram e continuam sendo os responsáveis diretos pelas alterações nos
produtos comercializados no Centro. Embora as rendeiras manifestem relativa
resistência a se adequar aos modelos, cores e padrões exigidos pelos cursos e
pela procura externa, observam-se hoje nos balcões dos quiosques uma variedade
de peças como: biquínis, bijuterias, apliques para blusas femininas, bolsas e
brincos, todos fabricados cuidadosamente seguindo a lógica das combinações de
cores e modelos, que refletem mais a preferência do cliente do que o gosto e a
criatividade da artesã.
Uma vez surgido o senso profissional, lidar com a dinâmica do
mercado requer reformulações de práticas até então convencionadas. O labor
artesanal confrontado com a racionalização da técnica do fazer renda, foi
paulatinamente exigindo das artesãs da comunidade visão organizacional do
trabalho. Algo o percebido por elas antes da criação da Associação das
Rendeiras da Prainha.
É pertinente esclarecer que antes da construção do Centro das
Rendeiras da Prainha, quando as vendas eram realizadas prioritariamente através
dos revendedores locais como a Sra. Joana, a Dona Ricardina, a Dona Lurdes e
Sr. Etelvino, havia a intervenção e/ou exigência dos compradores. As rendeiras que
se prontificavam a atender determinadas encomendas não estavam livres das
preferências de cores, modelos, tamanhos e linhas, exigidas pelos clientes,
representados pelos atravessadores.
Tendo como base os ensinamentos de suas mães e avós, essas
mulheres produzem as mais diversas e modernas peças, obedecendo aos pontos
204
Entrevista coma a rendeira Olenir, em 25 de novembro de 2005.
básicos aprendidos na infância. Dessa forma, tradição e modernidade se
confundem e estão presentes nos antigos e novos modelos das peças
comercializadas no Centro das Rendeiras.
Todas as rendas têm um ponto inicial o trocado, que consiste em
três momentos principais: cruzar os fios, torcê-los e traçá-los. O trocado é, pois, o
movimento ritmado dos bilros, e se caracteriza com ponto inicial do emaranhado de
cruzados e torcidos, denominados pontos. A qualidade da renda depende da
habilidade e da experiência da rendeira, e também da qualidade da linha utilizada.
Desse emaranhado de fios conduzidos pelos bilros surge a trança,
técnica básica na feitura de todos os outros pontos, que no Ceará é conhecido por
“barata” ou “baratinha”. Essa denominação se justifica pela semelhança do ponto
com um microleptidoptro conhecido, a traça comum que nas roupas e
papéis”.
205
Ultrapassando as terras cearenses, este ponto recebe nomenclatura
variada como bananinha, em Santa Catarina; tijolo, em Alagoas e sapinho em
Sergipe etc.
As rendas apresentam-se, pois, como o testemunho de um passado
presente, embora com novas características que o tempo lhe dá”.
206
As novas
peças produzidas pelas rendeiras, notadamente àquelas ligadas ao prazer estético,
à delicadeza e ao caráter ornamental como os biquínis, apliques para roupas finas
e bijuterias, conservam características de ensinamentos que, transformados em
saber pelas mãos das rendeiras da Prainha, constituem-se numa cultura
sobrevivente e testemunha do modo de vida de um povo.
O trabalho artesanal sempre esteve presente nas sociedades através
dos tempos, caracterizando-se como uma atividade informal, de sobrevivência e de
cunho doméstico. Avaliar e classificar estas atividades como “informal” reflete a
visão de quem as qualifica segundo a perspectiva capitalista das relações do
205
DE MENDONÇA.. op.cit, p. 66. O texto: Algumas Considerações sobre Rendas e Rendeiras do
Nordeste, da antropóloga Maria Luiza Pinto de Mendonça, publicado pela Imprensa Universitária do
Ceará, em 1961, obra já citada faz parte da Separata do Boletim da Universidade do Ceará.
Constitui-se num texto didático, que pontua as origem das atividades peculiares aos homens e
atividades próprias às mulheres. Para falar da renda de bilros no Brasil e no Ceará, a autora faz um
passeio pelas origens dessa atividade, enfocando lendas e contos que narram de forma poética seu
surgimento. Chegando ao Brasil pelas mãos das mulheres portuguesas, essa arte adaptou-se ao
clima e às especificidades de cada região, encontrando terreno fértil principalmente no litoral, e
também no sertão. Em seguida a autora lista o material necessário à fabricação da renda,
detalhando os bilros, as almofadas, os papelões, as linhas utilizadas, as nomenclaturas, próprias a
cada região. Por fim cita o folclore da renda dentro da literatura, segundo ela ainda não devidamente
estudado.
206
JUNIOR, M Diegues. Op. cit. p.09
trabalho. Segundo José Carlos Costa, na obra citada, Artesanato Definições e
Evolução: Ação do Mtb - PNDA:
As mais remotas manifestações do Artesanato como sistema de produção
podem ser encontradas entre os povos primitivos, quando a divisão do
trabalho facilitou o desenvolvimento de habilidades operativas e gerou um
processo empírico de adestramento ocupacional. Então, surgem os grupos
que mais se destacam no desempenho de atividades específicas como a
cerâmica, a modelagem, a fabricação de armas, a construção de canoas
etc.Todo o sistema de produção do homem primitivo se enquadra na
categoria de indústria doméstica, pois o indivíduo estava preso à família e a
comunidade doméstica era o núcleo da estrutura econômica o clã
econômico. O trabalho se distribuía pelas comunidades e algumas delas se
especializavam em certos tipos de produtos.
207
As artes manuais e o saber transmitido às gerações mediante à
oralidade garantiram a sobrevivência e reprodução/ transmissão social de um
ofício, representativo do modo de vida de uma parcela significativa das sociedades.
Nas cidades, o trabalho artesanal amenizava as tensões sociais, absorvendo a
mão-de-obra excedente no sistema industrial. Nas zonas litorâneas ou no sertão,
sujeito as variações climáticas, os ganhos adquiridos através da atividade artesanal
completavam a renda familiar, geralmente escassa, e amenizavam as dificuldades
da sobrevivência diária.
Para compreender o cotidiano de comunidades que vivem das
atividades artesanais, é preciso estar atento a peculiaridades a condições cio-
históricas. No caso das rendeiras da Prainha, estar atento às peculiaridades é,
sobretudo, mergulhar no dia-a-dia delas para perceber como vivem, trabalham,
experimentam e vivenciam as relações sociais e, assim, entender como e porque
decisões são tomadas e caminhos são escolhidos.
Para seguir os caminhos escolhidos, superar dificuldades e entraves,
como queda nas vendas, falta de turistas, concorrência com outros pólos
artesanais e conflitos internos, as rendeiras da Prainha organizaram-se em
Associação.
Considerar o campo de possibilidades apresentado às rendeiras
antes e durante a institucionalização do trabalho por elas exercido na qualidade de
associadas é perceber a inquietude dessas mulheres frente à falta de qualificação e
207
PEREIRA, José Carlos da costa... op. cit .p.21
à conquista efetiva de um conhecimento específico e necessário à superação dos
problemas de ordem social e econômico.
Na busca por qualificação, as rendeiras procuram sanar questões de
cunho social, a exemplo dos conflitos internos que impossibilitavam o espírito
cooperativista (uma ordem prevista pela Associação), e os de caráter econômico
constatados na ausência dos compradores e concorrência com outros pólos
artesanais.
As palavras da Dona Dica fornecem informações sobre queda nas
vendas.
Naquela época (início das atividades no Centro em 1979) era boa, tinha
muito turista, a gente vendia bastante, mas hoje, não tem mais turista não.
Hoje tem em todo canto (lugar para vende renda de bilros). Na época que
nós, que aqui foi fundado, não tinha em canto nenhum, esse foi o primeiro.
Aí depois daqui fizeram no Iguape, depois do Iguape, na Tapera começaram
a vender, depois da Tapera botaram na Beira-Mar, você sabe? Quando
só tem um canto tem muita venda, né?
208
Quando Dona Dica fala da queda nas vendas, relaciona-a à falta de
turista na Prainha, uma vez que a proliferação de centros artesanais afastou os
compradores do Centro das Rendeiras. A relação entre Prainha, Centro das
Rendeiras e turista, percebida na narrativa acima, reflete ambigüidade. O turista,
antes qualificado como “invasor”, responsável pela descaracterização da
comunidade, pela construção de mansões à beira da praia, com costumes e
hábitos diferentes e “estranhos”, representava, agora, personagem principal nas
vendas internas do Centro das Rendeiras e o elo com o mercado externo.
No final da década de 1980, a ampliação dos pólos de venda
artesanais em todo o Ceará, os conflitos internos e as brigas
209
, inclusive
presenciadas por turistas, e a escassez de recursos financeiros promoveram uma
queda acentuada nas vendas, e o Centro das Rendeiras da Prainha conheceu
momentos difíceis. Os conflitos, parcialmente responsáveis pela desestruturação e
a desunião do grupo de rendeiras que comercializavam no Centro, marcam as
208
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
209
Na maioria das narrativas que realizei na comunidade da Prainha, ouvir relatos de brigas sérias,
inclusive com ameaças explícitas, que ocorreram no Centro logo após a sua construção. Algumas
dessas brigas entre as rendeiras foram presenciadas pelos turistas, o que para muitos delas
justificou, em parte, o comprometimento da imagem do Centro e o afastamento do turista.
disputas por espaço de trabalho e por liderança. Marca também e, notadamente,
um momento caracterizado pela concorrência e por “atropelo”
210
na corrida por
compradores, bem como o afastamento do apoio técnico-administrativo
experimentado por elas no momento da conquista do espaço de trabalho, o que
comprometeu o espírito coletivo de quando o Centro das Rendeiras foi criado.
Vender e manter as vendas implica obedecer a uma ordem que exigia
das rendeiras espaço, infra-estrutura, habilidades com os turistas, assim como a
resolução dos conflitos interpessoais.
O impacto gerado na rotina das artesãs proporcionado pela conquista
do espaço físico do trabalho, Centro das Rendeiras é refletido no papel social
exercido por elas na comunidade. Este espaço é carregado de peso simbólico,
porque sugere alterações comportamentais e de apresentação social. O primeiro
indica aproximação da mulher-mãe com as regras do trabalho fora de casa, o
segundo, por sua vez, confere a esta mulher o status de “profissional da renda”.
No afã de conquistar vendas imediatas, envolvidas pela crença do
turista endinheirado, as rendeiras envolveram-se em situações de disputas e
intrigas internas pela atenção dos compradores, pouco ou nada refletiram acerca
da importância da infra-estrutura e da qualificação profissional, fundamentais para a
manutenção da clientela e dos ganhos.
As narrativas abaixo nos permitem perceber um pouco dessa
realidade e da inversão de valor relacionado ao turista, elemento fundamental na
vida do Centro. Para a rendeira Auristela, o cenário comercial da Prainha era o
seguinte:
[
O] Ônibus encostava em frente às barracas. Era muita gente, apuremo
muito dinheiro
211
. A rendeira Santa completa:
Ali [centro] era muito bom, vinha
muito turista. O que mais nóis precisa ali é turista pra comprar o trabaio da gente.
212
Por fim a rendeira Elizabete ressalta a importância dos turistas para a
vida comercial do Centro afirmando:
A gente quer que melhore, traga os turista,
que é muito pouco.”
213
210
Durante as entrevistas e as conversas informais essa expressão “atropelo” surgia como que
justificando alguns conflitos que, segundo a maioria delas deixaram uma marca, uma nódoa na
imagem do Centro. Algumas se sentiam atropeladas por suas companheiras na hora de vender
seus produtos, e muitas vezes perdiam a venda.
211
Entrevista com a rendeira Auristela realizada em sua casa no dia 14 de janeiro de 2003.
212
Entrevista coma a rendeira Santa, realizada em sua casa no dia 26 de novembro de 2005.
213
Entrevista realizada com a rendeira Elizabete no quiosque em que trabalha, no dia 25 de
novembro de 2005. Ao falar da arte de fazer o papelão, segundo ela aprendida sozinha, a partir de
reprodução e adaptação de papelões antigos, bem como de copias retiradas de desenhos, sua
Apesar de o Centro das Rendeiras da Prainha, apresentar-se como
espaço de organização do trabalho dos artesãos da comunidade, os mecanismos
de organização e reorganização do trabalho dessas mulheres remontam ao tempo
de suas mães e avós, quando elas se reuniam em grupos para confeccionar e
vender seus produtos.
Organização e/ou costume salientado na fala rendeira Auristela “eu ia
trabalhar com minha prima, em frente à casa, trabalhava junta
214
, e reforçado
pelas palavras da rendeira Firmina; “o pessoal vendia na praia, botava tudo na
caixinha e ia vender na praia
215
Assim, os produtos em renda de bilros
confeccionados ao longo da semana, em meio às atividades domésticas, bem
como suas vendas, não se constituía numa tarefa solitária.
A Central de Artesanato Luiza Távora, atuava neste setor junto às
rendeiras da Prainha, desde 1981, quando de sua criação. Era propósito da
CEART dar apoio, gerenciar e desenvolver políticas de melhoramento dos produtos
comercializados no Centro. De modo geral, as políticas de assistências
desenvolvidas justificavam-se, em particular por seu envolvimento com as
atividades artesanais no Estado, e tinham como propósito final a qualificação dos
produtos disponibilizados ao promissor mercado turístico do momento.
A CEART - Central de Artesanato Luiza Távora, inaugurada no final
de 1980, era uma edificação toda construída em carnaubeira, abrangendo além das
lojas, um restaurante de “comidas típicas” e oficinas onde os artesões podiam
trabalhar na produção e comercialização de suas peças.
A exemplo do Centro das Rendeiras, construído em 1979, a
CEART
216
era uma construção rústica e artesanal, cuja estrutura de carnaubeira
comprometida por cupins, necessitava de reforma geral. Em sua nova estrutura, o
restaurante foi substituído por um espaço de vendas e nas antigas lojas funcionam
a administração, o setor de cadastro para novos artesãos, oficinas, inclusive para
narrativa é acrescida do orgulho em sua voz e em seus gestos, quando mostra as balsas, as roupas
e as rendas produzidas com papelões de sua autoria.
214
Entrevista realizada com a rendeira Auristela, em14 de janeiro de 2003.
215
Entrevista com a rendeira Firmina, em26 de novembro de 2005.
216
Muitas dessas informações foram colhidas na CEART durante visitas realizadas, e em conversa
com as rendeiras que participavam de palestras, cursos e oficinas realizadas pelos técnicos deste
orgão. Para um melhor detalhamento sobre a estrutura antiga e nova da CEART ver: FLEURY,
Catherine Arruda Ellwanger. op.cit. p. 188
demonstração ao vivo das habilidades dos interessados em ter seus produtos
expostos na CEART
217
, e um espaço para reunião, cursos e oficinas.
A conquista do espaço de trabalho e todas as implicações peculiares
às atividades desenvolvidas em grupo, bem como o contato direto com o turista,
impuseram às rendeiras da Prainha um aprendizado adquirido à custa da
convivência diária e da busca pela qualificação. Os cursos, oficinas e palestras
ministradas pela CEART apresentavam-se, pois como possibilidade de
qualificação, diversidade, novidade, conquistas, obrigações e respeito aos artefatos
em renda e às relações interpessoais.
O setor de comercialização e de design da CEART mantém
funcionários treinados e encarregados de contactarem com artesões, quando
houver necessidade de orientação. É também da responsabilidade desse setor os
cursos, oficinas e palestras que são ministradas nos centros artesanais que
mantém relações comerciais com a CEART.
.A narrativa da rendeira Olenir esclarece um pouco sobre as ações
desse setor e das intervenções desses técnicos, o que caracterizava segundo ela a
diferença nas peças produzidas sob essa orientação.
Nós tamos criando agora, entende? Um grupo de produção, para produzir
um trabalho especial para a CEART, Porque agora nós fizemos tipo um
projeto piloto né? Fizemos um curso que tinha vinte e cinco artesãs. Quando
terminou, terminou vinte e três, das vinte e três, eu acho que no máximo
dez estão produzindo do jeito que a Ceart quer, que é um padrão de
qualidade, cor, medida, design né?”
218
Entretanto, as artesãs da Prainha, detentoras do saber fazer renda e
da autonomia no modo de trabalhar, impuseram resistência em se adequar à
política de trabalho da CEART. A resistência era manifestada ao tipo de
capacitação (modelos, cores, padrões e tamanhos), e ao sistema de
comercialização (regime de consignação), incompatível com a fragilidade
econômica do grupo. As ações comerciais do Centro voltaram-se para o mercado
local, cuja clientela é formada basicamente por banhistas de fins-de-semana e por
turistas hóspedes do complexo hoteleiro circunvizinho. Adotaram esta postura
contrária aos interesses da CEART porque, embora estivessem inseridas na
perspectiva capitalista e seus produtos expostos no mercado de troca, os ganhos
217
A nova sede da CEART funciona no mesmo local, na Avenida Santos Dumont, 1589, Aldeota.
218
Entrevista com a rendeira Olenir, em25 de novembro de 2005.
diários eram utilizados para suprir as necessidades imediatas de suas famílias. A
rendeira Zenaide fala dessa realidade.
A CEART às vez até ajuda a gente aqui, que pra gente trabalhar com a
CEART não certo, porque custa muito o dinheiro vim para nossa mão.
Hoje a gente vai na bodega e compra um quilo de frango de três reais e
sessenta centavos, quando for amanhã ele de quatro reais, e a gente
bota os trabalhos na CEART, quando é um mês é que chega dinheiro, antão
não dá certo pra nós aqui.
219
Algumas questões podem ser discutidas diante da entrevista da
rendeira Zenaide. Ao falar do preço do frango e da demora do dinheiro chegar às
suas mãos, ela nos põe em frente a pelo menos dois problemas enfrentados pela
maioria dos trabalhadores: o processo inflacionário no país e a desvalorização da
moeda, que atinge em especial as camadas mais carentes da população.
Somada a essa desvalorização monetária, podemos perceber
também uma obstinação em manter o costume de ir à “bodega” todos os dias,
rotina própria das pequenas comunidades. Costume que se caracteriza como uma
resistência em se adequar aos moldes de comercialização da CEART.
A rendeira Olenir contra-argumenta com suas companheiras,
ressaltando o modo de trabalhar da CEART.
A CEART trabalha em consignação né? Nóis deixamos o produto, que
não deixamos de produzir, são as rendeiras que não se acostumam
com o
jeito da CEART. Elas querem assim: na hora que entregar o produto,
receber. Elas não sabem que aqueles produtos, mesmo que sejam vendidos
na hora que chega lá, vai pra uma conta grande, a conta do Estado. Depois
daquela conta grande, vai pagando os órgãos tudinho, e quando vem para
CEART a parte dela, ela vai ainda passar um cheque pra os artesãos. É isso
que elas não se acostumam.
220
“Não se acostumar com o jeito da Ceart trabalhar”, como afirma a
rendeira Olenir, suscita resistência a não perder a autonomia da sistemática de
produção, e, principalmente, não perder o controle do que ganha e gasta
diariamente, uma vez que a realidade das rendeiras da Prainha não condizia com a
219
Entrevista com a rendeira Zenaide, em 18 de fevereiro de 2003.
220
Entrevista com a rendeira Olenir, em 25 de novembro de 2005.
lógica mercadológica. Produzir, chegar ao produto final, vendê-lo, lucrar e respeitar
custos e benefícios, etapas próprias da dialética do mercado o combinavam com
as condições materiais das artesãs da renda. Responsáveis pelo complemento
e/ou sustento da família, essa mulheres viviam e vivem dos ganhos diários, o que
impossibilitavam manter seus produtos parados sobre os balcões das lojas da
CEART, em regime de consignação.
Ouvindo as falas das rendeiras, conversando com elas, observando e
participando de diálogos e ações travadas no espaço de trabalho e no próprio
cotidiano, pude perceber contradições no posicionamento resistente e/ou de
rejeição às relações comerciais delas com a CEART.
A CEART, ao mesmo tempo que significava apoio financeiro em forma
de cursos, oficinas e palestras, cujos objetivos eram qualificar as rendeiras,
garantindo, a qualidade dos produtos comercializados nos quiosques, ajudá-las na
administração de seus trabalhos e nas relações pessoais, como afirma a rendeira
Helena tinha cursos, teve cursos, teve muitos cursos. Teve cursos de relações
humanas, teve muito curso mesmo, de administração,”
221
por outro lado, fazia
imposições que resultavam em perda da autonomia quanto o que produzir e o
tempo de produção e a invasão de novos modelos e cores que desagradavam à
maioria das rendeiras.
Esta rejeição em trabalhar nos moldes da CEART, a queda nas
vendas, os desentendimentos internos e a falta de apoio institucional levaram as
rendeiras, no fim da década de 1980, a se unirem e se organizarem para
salvaguardar a estabilidade do trabalho, os benefícios da profissão e protegerem-
se da concorrência. Dessa forma, viabilizando apoio financeiro e objetivando
ampliar e melhorar as condições de trabalho, elas criaram a Associação das
Rendeiras da Prainha.
No dia primeiro de novembro de 1989, dez anos após a construção do
Centro, as rendeiras reuniram-se no Centro das Rendeiras da Prainha Aquiraz,
com a finalidade de fundarem uma entidade, com personalidade jurídica própria,
filantrópica, sem fins lucrativos, objetivando unir os esforços das rendeiras que
atuam nesta área de Aquiraz
222
. Participaram dessa solenidade quarenta e nove
rendeiras associadas, ocasião em que foi lido o termo abaixo transcrito:
221
Entrevista com a rendeira Maria Helena, em 25 de novembro de 2005.
222
Ata de fundação da Associação das Rendeiras da Prainha. Folha 1
TERMO DE ABERTURA DO LIVRO DE ATAS
Serve o presente livro, com 200(duzentas) folhas tipograficamente
numeradas e de 01 a 200(um a duzentos), para fim de registrar a presença
dos sócios fundadores da Associação das Rendeiras da Prainha, para lavrar
a ata da Assembléia de Fundação, bem como as atas das reuniões
ordinárias extraordinárias da Associação, cuja Diretoria Provisória será
presidida pelo membro abaixo assinado.
Fortaleza, 1º de novembro de 1989
Raimunda de Sousa Cunha
Presidente da Comissão Provisória
223
A certidão de registro da Associação das rendeiras da Prainha
esclarece a finalidade de sua criação.
A Associação das Rendeiras da Prainha é uma sociedade civil, sem fins
lucrativos, com sede e fórum na cidade de Aquiraz, fundada em 1º de
novembro de 1989. Tendo por finalidade a promoção humana através de
aprimoramento, coordenação, proteção e divulgação do artesanato regional
desenvolver atividades sociais, culturais e de trabalho com valorização da
pessoa humana como um todo; bem como realizar atividades que
possibilitem o aprendizado, o aprimoramento do artesanato através de
cursos, escolas, exposição, festas ou quaisquer outras iniciativas. È
administrada por uma Diretoria e um Conselho Fiscal, cabendo ao
presidente a representação ativa, passiva, judicial e extrajudicial com
relação a terceiros.
224
A rendeira Raimunda de Sousa Cunha, conhecida na comunidade
como D. Dica, foi a responsável direta pela criação da Associação das Rendeiras
da Prainha, tornando-se em seguida, a primeira presidente.
A primeira presidente fui eu, fui eu que fundei. Teve primeira a dos
pescadores (Associação). A dos pescador começou mais ou menos em 86,
223
A rendeira Raimunda de Sousa Cunha, assim com o restante da diretoria só poderia tomar posse
oficialmente após termino do processo de fundação da Associação, constituindo-se nesse momento
como Comissão Provisória.
224
Certidão de registro da Associação das Rendeiras da Prainha. Essa certidão consta no Livro A
do Registro de Pessoas Jurídicas desta Comarca, folha 105, número de ordem 98. Cartório
Florêncio, Ofício, Aquiraz-Ce. Alcione Martins Florêncio era a tabeliã oficial do registro de imóveis
e de títulos e documentos da comarca e cidade de Aquiraz.
as rendeiras queriam ser sócias dos pescador, mas não era certo,
rendeira ser sócia da Associação dos pescador. Aí eu disse ‘vou fazer essa
Associação’. umas dizia que eu não fazia. eu conheci uma senhora,
ela era empregada da LBA, o nome dela era até Ilka, em Fortaleza, onde
era a LBA, na Piedade, hoje não é mais.Aí ela disse que eu podia ir que ela
tinha uma conhecida que ia mandar me ajudar, que era a Dona Terezinha
da LBA, eu lutei e fiz sozinha. as rendeiras tinha carterinha de artesãs
e pagava cinqüenta centavos por mês, era a caixinha.
225
No entanto, é relevante citar a participação da rendeira Maria Cleide,
afilhada da Dona Dica, como colaboradora direta nesse processo de legalização da
categoria.
Entrei aqui já tinha o Centro. Nóis duas (refere-se a ela e Dona Dica)
fizemos mungunzá. Logo quando chegou uma senhora amiga dela
mandando nóis fazer uma associação, porque de primeiro era líder.
uma senhora amiga dela disse que era melhor fazer uma associação, pra ter
os recursos, pra vim os recursos. ela foi, ela me convidou pra nóis fazer
muncunzar. a gente fazia o muncunzar, vendia e ela juntava o dinheiro
pra poder passar os papel no cartório né? Precisa de dinheiro, essas coisas
tudo precisa de dinheiro, e eu sempre ajudei ela. nóis fomos fazer a
associação e eu era a tesoureira.
226
A LBA (Legião Brasileira de Assistência), era um dos órgãos que
fomentava as atividades artesanais. A FUNSESCE desenvolveu pesquisas e
cursos de treinamentos destinados à gerência de cooperativas. Os recursos
financeiros chegavam, portanto, de vários órgãos, e entre eles estava a LBA. Em
1979, ano de criação do Centro das Rendeiras da Prainha, a ajuda financeira da
LBA representou 2,9%
227
do total das arrecadações.
No ano seguinte, em 1980, a LBA novamente entrou com recursos
financeiros para apoiar os projetos da FUNSESCE, para criar novas cooperativas a
partir de núcleos artesanais existentes e, entre eles, o Centro das Rendeiras. Para
este ano o fomento destinado pela LBA às atividades artesanais no Ceará,
representou 5,4% do total arrecadado.
Embora a Associação das Rendeiras da Prainha tenha sido criada
com o apoio de uma funcionária da LBA, e este órgão participasse dos fomentos às
225
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
226
Entrevista com a rendeira Maria Cleide, em 30 de setembro de 2006.
227
Para ver mais sobre esses órgãos que fomentava as atividades artesanais no Ceará e sobre
esses dados percentuais ver: O Artesanato Nordestino: características e problemática atual. op. cit ,
p.121,122
atividades artesanais no estado, sua atuação era indireta, não havendo, portanto,
nenhuma intervenção na organização, no funcionamento e nos gastos iniciais com
a legalização desse espaço de trabalho.
Por ser o Centro das Rendeiras da Prainha uma experiência pioneira
de organização das atividades artesanais no Ceará, constituiu-se, pois, numa porta
aberta às ações da FUNSESCE no apoio à legalização da atividade dessas
artesãs.
Para entender a participação das rendeiras Raimunda de Sousa
Cunha e Maria Cleide no processo de criação da Associação das Rendeiras da
Prainha, é necessário relacionar as ações de ambas a um conjunto de
acontecimentos favoráveis: a existência da Associação dos Pescadores, a queda
nas vendas, a falta de apoio institucional, a desorganização interna, o que levou ao
afastamento do turista, e a “coincidência” do encontro e do “conselho” da
funcionária da LBA, amiga da rendeira Dica.
A Associação das Rendeiras inaugurou, portanto, para as artesãs da
comunidade da Prainha, um tempo político. Amparadas legalmente, elas passaram
a reivindicar ajuda financeira para o melhoramento das instalações do Centro, para
compra de linha, matéria-prima básica para o trabalho com renda, para projetos e
cursos. Inaugurou, também, um tempo de disputas acirradas pelo espaço de
trabalho e pela liderança do Centro e da Associação.
A legalização da categoria das rendeiras por intermédio da
Associação, era instrumento pelo qual tornou legítima as suas reivindicações.
Trouxe também alterações na administração do Centro e nas responsabilidades
atribuídas à presidente. A substituição da líder pela presidente foi significativa da
valorização e das disputas políticas pelo espaço de trabalho, das obrigações e dos
compromissos assumidos à frente de uma Associação, cujo objetivo era
transformar as feições domésticas do Centro num espaço das ações e das
conquista das trabalhadoras da renda.
Sobre a ação de Dona Dica na criação da Associação, afirma a
rendeira Elizete.
Em 1989 foi criado a Associação e tudo foi legalizado. A Associação, ela
entrou como um suporte para buscar o que era legal para as rendeiras né?
A gente sentiu necessidade de criar a Associação, por conta dessas coisas
que aconteciam. A gente ficava meio que no suspense, a gente não sabia
que tava hoje aqui, e amanhã talvez não, então a gente sentiu a
necessidade de criar a Associação das Rendeiras. E te digo que isso tudo
veio mais da parte de uma rendeira chamada Raimunda de Sousa, é a Dona
Dica. Ela trabalhou, e ela praticamente sozinha, ou totalmente sozinha, ela
procurou e conseguiu. eu estava aqui e sou uma das sócias
fundadoras da Associação
228
Dentre essas “coisas que aconteciam”, como fala a rendeira Elizete,
foi uma disputa provocada pela Prefeitura de Aquiraz envolvendo os comerciantes
e rendeiras da Prainha, quanto à ocupação dos quiosques do Centro das
Rendeiras em sistema de rodízio. Este fato fez nascer o temor pela perda do
espaço de trabalho e influenciou na criação da Associação das Rendeiras como
medida para resguardar o direito exclusivo de uso e ocupação daquele espaço.
Para a rendeira Olenir a Associação nasceu com a responsabilidade
de administrar os conflitos internos, responder juridicamente pelo grupo, além de
buscar parcerias, incentivos e cursos que viabilizassem a melhoria dos trabalhos
comercializados no Centro.
Com a necessidade de liderança né? Para administrar os conflitos, e até
porque pra necessidade de angariar alguma coisa e pra ter força, nóis
criamos a Associação, pra ser uma entidade, como se diz, de cunho jurídico
né? Que tivesse a oportunidade de arranjar a implantação de uma
organização melhor, pra que as rendeiras ficassem agrupadas, então nóis
criamos a Associação. Foi essa a necessidade, e com isso as rendeiras se
sustentam, ajudam seus maridos, seus filhos.
229
Frente à fragilidade do poder da líder do Centro anterior à
Associação, que, na maioria das vezes só fazia o que as rendeiras queriam e não o
que era melhor para o grupo, ela justifica:
A função da presidente tem mais encargos né? Porque a líder são coisas
simples, não tinha, você não respondia juridicamente pela a Associação. Na
Associação você tem que responder pelo grupo, pela a Associação
juridicamente.
230
Por outro lado, a rendeira Elizete completa:
228
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro 2005.
229
Entrevista com a rendeira Olenir, em25 de novembro de 2005.
230
Idem.
Quando era a líder, a líder, ela mandava entre aspas, ela dirigia entre aspas,
porque na realidade a líder só fazia na maioria das vezes o que as rendeiras
queriam. E com a Associação continua a mesma coisa, mas só que a
presidente tem que ter mais pulso para frear certas atitudes das rendeiras
em prol do bem de todas, porque se isso não for feito, pra que serve a
Associação né?
231
Após a criação da Associação, os recursos financeiros começaram a
fluir com maior freqüência, justificando seu objetivo principal, qual seja, angariar
fundos, criar parcerias, fazer projetos que viabilizassem, desde a melhoria da
estrutura física do Centro, até o retorno dos turistas e o aumento nas vendas.
A fundadora da Associação Dona Dica, nos fala das suas primeiras
ações como presidente.
Existe a Associação prá projeto, fazer projeto. Aí não tinha aonde colocar os
bancos, nem as almofadas, nem as caixas, colocava no banheiro,
quando ia lavar o banheiro jogava os bancos e quebrava né? Aí, a primeira
coisa que eu fiz com três meses de Associação, tudo certo, tudo
legalizado foi esse quartinho ali. Eu fui na Ceart e eles deram um
projeto de cento e cinqüenta cruzeiros, e fizemos aquele quartinho. Aí
depois, um ano, eu recebi outro projeto para fazer as reformas dessas
colunas, que não era coluna assim, era carnaúba. Aí eu recebi outro projeto
para reforma dos quiosques todinho, depois ainda veio outro para
terminar de fazer a praça.
232
A atuação da presidente, assim como a própria Associação sugere
mudanças no comportamento das rendeiras, na organização do trabalho, na busca
de apoio institucional, no compromisso delas com a atividade desenvolvida pelo
grupo e a preocupação com o espaço de trabalho, que a partir desse momento
adquire um significado especial.
Assim, a criação de projetos, a construção do “quartinho”, a reforma
nos quiosques e a construção da praça, representaram, pois, ações de uma
diretoria que aos poucos vai adquirindo experiência, para administrar o espaço de
trabalho, numa perspectiva de vê-lo se desenvolver e assim promover o
crescimento e o reconhecimento da categoria.
231
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
232
Entrevista com a rendeira Dica, em 18 de fevereiro de 2003.
A partir de 1989, com a criação da Associação, o Centro das
Rendeiras da Prainha passou a ser administrado por uma diretoria composta pela:
presidente, vice-presidente, primeira-secretária, segunda-secretária, primeira-
tesoureira e segunda-tesoureira, para o mandato de dois anos. Ao final desse
período é convocada nova assembléia geral ordinária para a escolha, por votação
pessoal e secreta de nova diretoria, podendo a presidente ser reeleita, dependendo
de suas realizações e do bom relacionamento com as associadas.
Essas eleições eram registradas em atas, e algumas delas presidida
por uma funcionária da CEART. A presença dessa funcionária justificava-se pela
necessidade de um controle maior no momento da apuração, visto que, em
algumas eleições para a escolha da nova diretoria houve falhas na contagem dos
votos, ou seja, não coincidiam com a quantidade de assinaturas das rendeiras
votantes.
As atas eram escritas manualmente e contavam com as assinaturas
da nova diretoria, do conselho fiscal e de todas as rendeiras associadas que
participaram do processo eleitoral.
A eleição da diretoria para o biênio 1999 a 2000 diferenciou-se das
demais. Normalmente duas rendeiras disputavam o cargo de presidente, mas
naquele ano apresentaram-se quatro candidatas, o que indicava uma crescente
disputa política pelo espaço.
A partir daquela eleição mais mudanças ocorreram no processo de
escolha da diretoria da Associação. A escolha para presidente, cargo superior da
Diretoria assemelhava-se a campanhas eleitorais, com panfletos, promessas,
compromissos assumidos e histórias que denegriram a imagem da adversária. Um
exemplo disto foi a última, realizada em 2004, na qual se envolveram-se até
políticos vinculados à prefeitura de Aquiraz.
A eleição de 2004 foi, porque, embora existisse no Centro das
Rendeiras uma disputa declarada pelo poder, naquela ocasião ficaram esclarecidas
a abrangência e a proporção do pleito. Segundo relatos das rendeiras, foi uma
disputa eleitoral propriamente dita. Além de promessas e de envolvimento de
pessoas externas ao Centro, houve distribuição de panfletos, cujo conteúdo era
carregado de ameaças intimidadoras.
O momento atual no Centro das Rendeiras caracteriza-se por um
impasse entre a diretoria da Associação, representada na pessoa da presidente, a
rendeira Elizete, e o poder público em Aquiraz, representado pela prefeita do
município. Ao Centro das Rendeiras, foram destinados recursos financeiros
provenientes do Governo Federal, para uma reforma geral nos quiosques. Para a
maioria das rendeiras, esses recursos significavam melhoria na infra-estrutura e a
possibilidade do retorno dos turistas.
No entanto, na perspectiva da prefeita de Aquiraz, para que esses
recursos chegassem à Associação, o terreno onde está construído o Centro, até
então não documentado, necessitava ser reconhecido como terreno da prefeitura.
Por outro lado, segundo em informações colhidas pelas rendeiras junto ao
patrimônio da União
233
, o terreno do Centro pode ser registrado em nome da
Associação, o que lhes trariam maior autonomia quanto à administração do espaço
de trabalho e barraria consequentemente a interferência de qualquer órgão externo.
Buscando essa autonomia, a rendeira Elizete, atual presidente da
Associação, representa o grupo de rendeiras que comercializam no Centro, e suas
atribuições vão além dos cuidados, da manutenção e da busca de parcerias. Entre
suas atribuições podemos citar:
a) Supervisionar e auxiliar no desenvolvimento das atividades das artesãs
do Centro e o atendimento as normas deste regimento. b) Manter a ordem e
o bom relacionamento entre as artesãs ocupantes dos quiosques do Centro.
c) Articular-se com a Central de Artesanato do Ceará CEART para
resolução de problemas referentes a produção e comercialização de
artesanato. d) Articular-se com as artesãs para a resolução de problemas
pessoais que estejam interferindo no desenvolvimento e as atividades do
Centro das Rendeiras. e) Fornecer a CEART as informações referentes as
atividades do centro. f) Solicitar e acompanhar a orientação dos técnicos da
CEART ou de outros órgãos interessados. g) Acompanhar, auxiliar e
controlar a participação das artesãs do Centro em atividade de promoção de
vendas. h) Realizar outras atividades de comercialização e de
desenvolvimento do artesanato.
234
233
Em respeito à decisão da rendeira Elizete, atual presidente da Associação das Rendeiras da
Prainha, não foram gravados trechos das entrevistas realizadas nos dias 26 de novembro de 2005 e
30 de setembro de 2006. Trechos importantes que tratam do impasse enfrentado pelo grupo de
rendeiras, na luta pela posse do terreno onde o Centro esconstruído. Procurando garantir seus
direitos, elas entraram em contato com o Patrimônio da União, de onde obtiveram informações
decisivas e preciosas para o futuro do espaço de trabalho delas. Segundo resposta do Patrimônio
da União, o terreno onde o Centro foi construído 27 anos pode ser registrado em nome da
Associação das Rendeiras da Prainha.
234
Regime Interno do Centro das Rendeiras. Capítulo II. Da Administração do Centro. Art. 3º.
empenho da presidente e de toda a diretoria em cumprir as
determinações acima listadas. No entanto, o individualismo, a indisciplina, a
resistência em se adequar à cultura cooperativista, bem como as dificuldades em
mudar hábitos e costumes adquiridos ao longo da vida, provocam entraves e
muitas vezes, desestabilizam e desestruturam pontos fundamentais da
administração do Centro.
O Estatuto de fundação da Associação das Rendeiras da Prainha
determinava: a finalidade, sua administração, as obrigações e compromissos dos
membros da diretoria e de todas as associadas, e também os direitos, deveres e
poderes da presidente como: convocar assembléia geral ordinária e
extraordinária
235
, e também o conselho administrativo e conselho fiscal
236
.
O Conselho Fiscal foi criado com o objetivo de se reunir cada três
meses para apresentar as contas e fiscalizar as ações da diretoria. No entanto,
dependendo das atividades diárias e das desconfianças das rendeiras quanto às
contas, esse Conselho pode ser convocado a qualquer hora. Isso acontecia,
sobretudo, quando o Centro recebia cursos, pois era necessária uma maior
fiscalização do material usado e não usado, das peças produzidas, das rendeiras
envolvidas e dos ganhos provenientes da produção. As peças produzidas durante
os cursos eram vendidas e os lucros, a exemplo das sobras de material, eram
divididos entre as rendeiras participantes. Era de competência do Conselho Fiscal:
Fiscalizar as despesas realizadas pela Diretoria; convocar a Diretoria para
apresentar as contas e o balanço anual da entidade; emitir parecer sobre
contas e o balanço apresentado pela Diretoria; convocar a Assembléia Geral
sempre que houver dúvidas sobre contas apresentadas pela Diretoria ou
que esta se negue a prestar os esclarecimentos solicitados e devidos.
237
O Estatuto determinava que as decisões que envolvessem o grupo
deveriam ser tomadas em Assembléias, com a participação da maioria; e ainda que
o mandato da presidente seria de dois anos, podendo ser reeleita se fizesse um
bom trabalho. Assim afirma a rendeira Elizete:
235
A Assembléia Geral Ordinária era convocada para eleger a nova diretoria a cada dois anos e a
Assembléia Extraordinária para votação aberta sobre assuntos gerais.
236
O Conselho Fiscal composto por três membros efetivos e três suplentes, é eleito em Assembléia
Geral, concomitantemente com a Diretoria para o mandato de dois anos.
237
Estatuto da Associação das Rendeiras da Prainha. Capítulo VI – Do Conselho Fiscal. Artigo 26.p.
05
Faz-se assembléia. Tudo a gente decide em assembléia. A proposta da
Associação é fazer de comum acordo com a maioria, que é a assembléia
geral, né? Quando a gente não consegue na Ordinária, vem uma
Extraordinária e isso envolve todas as rendeiras né, no processo. é
tomado certos tipos de atitudes com a aprovação da maioria.
238
De acordo com o depoimento acima, a Diretoria procurava respeitar
as especificidades que permeiam o universo da cultura cooperativista, respeitando
a decisão da maioria e pondo em prática o que realmente seria melhor para o
grupo.
Para eleger a nova diretoria e esta tomar posse era preciso a
presença de mais de 50% das rendeiras associadas, podendo votar as que não
comercializava no Centro. A rendeira Elizabete, por exemplo, por muito tempo não
comercializou pessoalmente no Centro. Apenas levava seus produtos para ser
vendidos por sua mãe. O espaço que hoje ela ocupa foi “herança” materna. Mesmo
assim sempre participou do processo decisório no Centro: “Participei, todas que
tem (eleição) eu participo, sempre fui sócia. Quando eu não estava aqui, eu era
sócia, eu vinha votar.”
Baseado no Estatuto de Fundação da Associação foi criado o Regime
Interno do Centro, que deveria obedecer aos preceitos do Estatuto. Segundo esse
regime, o objetivo básico do Centro das rendeiras da Prainha era concentrar as
rendeiras em um determinado local onde elas pudessem: Produzir renda de bilro,
demonstrar ao vivo a realização de seu trabalho, expor as peças artesanais de sua
autoria, vender as peças artesanais de sua autoria diretamente ao consumidor.”
239
A partir da criação do Regime Interno, o Centro como uma instituição
legalizada, tomou para si a responsabilidade de fazer cumprir os objetivos pelos
quais foi instituído. A finalidade era tornar o espaço de trabalho um ambiente onde
florescessem a cultura da renda, o companheirismo, as relações pessoais e o
respeito mútuo.
No entanto, a ata da Assembléia para a aprovação do novo Regime
Interno
240
, realizada em 10 de junho de 2002, na gestão da presidente Francisca
238
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
239
Regime Interno da Associação das Rendeiras da Prainha. Capítulo I – Da Finalidade.
240
A documentação da Associação das Rendeiras da Prainha fica sempre aos cuidados da diretoria.
Quando iniciei a pesquisa, a presidente em exercício era a rendeira Zenaide Moisés de Sousa,
responsável por uma parte significativa das fontes as quais tive acesso. No entanto, com relação ao
Regime Interno do Centro ficou uma lacuna; e o antigo Regime Interno? Uma vez que a Associação
Olenir, é sugestiva da ineficácia do anterior, uma vez que o fechamento dessa ata
afirma: com a aprovação do novo regimento interno esperamos que a Associação
encontre o desenvolvimento comercial e o caminho da fraternidade e da paz”.
241
.
Essas palavras de encerramento sugerem que a Centro enfrentava problemas
financeiros, conflitos e desavenças internas que comprometiam o ganho monetário
e o bom relacionamento do grupo. Segundo esta ata diariamente participam do
cenário interno do Centro no máximo de trinta e cinco a quarenta artesãs da
exposição nos quiosques”.
242
O novo Regime Interno instituído e aprovado pela maioria das
rendeiras associadas é composto de sete capítulos que tratam respectivamente:
“da finalidade do Centro”; “da administração”; “da ocupação dos quiosques”; “da
produção artesanal”; “da venda do produto artesanal”; “do afastamento das artesãs
ocupantes dos quiosques” e “das disposições gerais”. Segundo esse regime, a
administração do Centro passa a ser feito através do Conselho Administrativo da
Associação das Rendeiras da Prainha.
Os capítulos que compõem o Regime Interno
243
foram pensados na
perspectiva de que, articulados entre si, dessem conta da administração do
universo da renda de bilros produzida e comercializada no espaço do Centro das
Rendeiras.
foi criada em 1989, e o novo regime interno foi aprovado somente em 2002, o Centro por treze anos
foi regido sob as normas do antigo regime. Como comparar antigo e novo regime, como perceber as
mudanças e com quais propósitos elas foram articuladas não pude responder, visto que não tive
acesso a essa documentação O período de eleição e de substituição de Diretoria no Centro
constitui-se, em sua maioria, momentos de conflitos, desentendimentos e disputas pessoais, o que
pode suscitar perdas, descasos e omissão no momento de repassar às mãos da nova diretoria a
documentação da Associação.
241
Ata da segunda chamada para a aprovação do Regime Interno do Centro das Rendeiras da
Prainha. Essa aprovação somente aconteceu numa segunda tentativa, pois, na primeira Assembléia
convocada para tal propósito, não compareceram rendeiras suficientes para efetivar a votação.
242
Idem.
243
A pesquisa histórica, se comparada a uma aventura é testemunha de momentos inesquecíveis e
hilários. Entrar em contato com a documentação da Associação foi relativamente fácil, difícil foi tirar
as cópias. Primeiro porque na Prainha não existia nenhum maquina de xérox (hoje já tem), sendo
necessário se deslocar até Aquiraz. Segundo, porque a Dona Zenaide, presidente e responsável
pela documentação não podia deixar que eu sozinha levasse esses documentos. Essa atitude
suscitaria falação e críticas por parte de suas companheiras, e ela pretendia ser reeleita à
presidência da Associação. Para resolver esse impasse, ela marcou o dia e a hora e foi comigo à
Aquiraz, levando ela própria os livros para que eu pudesse tirar as tão sonhadas copias. A situação,
de cuidado e de “medo” por parte dela causou-se em determinado momento um mal estar, como se
eu estivesse fazendo algo ilegal e a qualquer momento fosse descoberta. Em contato com essa
documentação pude perceber entre seus capítulos, artigos, parágrafos e linhas, uma tentativa de
resolver as desavenças e os conflitos internos, que estavam refletindo nas vendas por elas
promovidas.
O primeiro capítulo, que trata da finalidade, não deixa espaço para
nenhuma outra artesã, senão rendeiras. Estas deveriam produzir e comercializar
seus produtos prioritariamente no Centro, salvo os momentos das idas às feiras e
eventos fora da comunidade. Essa atitude possibilitaria a essas mulheres uma
maior autonomia sobre os seus produtos e um relativo afastamento da figura do
atravessador.
A administração do Centro explicitado no capítulo dois, trata da
normatização do trabalho, da postura, do comportamento e dos relacionamentos
internos e externos. Trata, também, da possibilidade concreta de ampliação dos
conhecimentos e dos espaços de atuação das artesãs, através de cursos, feiras e
eventos fora do universo da Prainha. Assim como, também determina a relação
direta do Centro com a CERAT para resolver problemas pessoais que estejam
interferindo no desenvolvimento e as atividades do Centro das Rendeiras”.
244
Além
disso, prever que as rendeiras considerem a orientação dos técnicos da CEART
ou de outros órgãos interessados”
245
em assistir as atividades do Centro.
As exigências para dispor um dos quiosques, ressaltado no terceiro
capítulo, são claras e objetivas. As rendeiras deveriam, portanto, preencher
requisitos considerados indispensáveis como:
Fazer renda de bilro, ser portadora da carteira de artesã emitida pela
CEART, ser residente na comunidade da Prainha município de Aquiraz, não
ter acesso a nenhum local de exposição e venda de artesanato na Prainha,
ser associada e estar em dia com suas obrigações com a Associação das
Rendeiras da Prainha
246
.
Essas exigências protegiam as rendeiras da comunidade e
valorizavam como artesãs. Por outro lado, impunham a elas limitações, fidelidades
e compromissos como, por exemplo, o ingresso aos quiosques estava
condicionado ao período considerado de baixa estação, que compreendem os
meses de fevereiro a junho e de agosto a novembro. Estava condicionado,
também, ao consentimento do Conselho Administrativo e ao limite da capacidade
de cada quiosque, como afirma a rendeira Elizete: nós temos nosso regime
interno, a alta e a baixa estação, e pra que ela (rendeira) entre no Centro das
244
Regime Interno do Centro das Rendeiras da Prainha. Capítulo II - Da Administração do Centro.
Arti. 3º item D.
245
Idem. Item F.
246
Regime Interno do Centro das Rendeiras da Prainha. Capítulo III – Da Ocupação dos Quiosques.
Rendeiras, mesmo sendo sócia, tem que entrar na baixa estação”.
247
Para o
ingresso nos quiosques não havia necessidade de pagamento, uma vez que todas
as associadas possuem carteira de artesão e pagam o valor de um real por mês.
Ao relatar sua entrada no Centro, a rendeira Elizabete reafirma as
exigências das quais nos fala sua companheira:
Eu me associai, quando passou mais ou menos um ano, a presidente
disse que quando eu fosse entrar era na época da baixa estação né? Tinha
que esperar a baixa estação pra eu poder entrar, aí eu entrei.
248
Essas determinações e/ou exigência, nada inocentes e
despretensiosas, mostram como o Centro estava em sintonia com o universo do
turismo, caracterizado pela alta estação, momento em que a Prainha, assim como
todo o litoral cearense, recebiam e recebem muitos visitantes. Dessa forma, as
rendeiras mais antigas, representadas pela diretoria da Associação, vetavam a
entrada de novas artesãs nesse período, pois significava concorrência e quedas
em suas vendas.
O Centro das Rendeiras da Prainha é, por excelência, um espaço de
produção e venda de produtos artesanais. Logo, peças de origem industrial não
podem ser comercializadas nesse espaço. Essa determinação sugere, portanto, a
preservação das características do espaço de trabalho das artesãs, bem como a
preservação da cultura da renda.
O Regime Interno é, sem vida alguma, um instrumento de
organização e disciplinamento do trabalho e das relações pessoais e sociais das
artesãs da renda que comercializam no Centro. No entanto, as determinações, as
cobranças, os limites e as punições que passeiam pelos seus capítulos e artigos
são passíveis de infrações, desobediências e interpretações. Possivelmente essas
infrações e/ou desobediências são próprias do universo das redes de
solidariedades desenvolvidas por essas mulheres, representativo do modo de vida
de muitas comunidades pequenas.
O artigo oito do capítulo cinco que trata das vendas do produto
artesanal afirma: os produtos expostos à venda nos quiosques do Centro das
247
Entrevista com a rendeira Elizete, em 26 de novembro de 2005.
248
Entrevista com a rendeira Elizabete, em25 de novembro de 2005.
Rendeiras Luiza Távora deverão ser de autoria das ocupantes dos mesmos e
demais associados.”
249
Dialogando com essa fala, a rendeira Zenaide afirma:
Nós temos um grupo de bordadeiras, digamos de Aquiraz né? Aquele
grupo de bordadeira, ela borda o ponto “X”, ela vem aqui, traz as peças
sobe?A gente ajuda, linha, às vezes a fazenda, elas fazem aqueles
trabalhos. Quando não é assim, elas traz os produtos delas e pra gente
vender. O preço que a gente vende, só tira a comissão de 10%, que a gente
dá o bugueiro.
250
É possível perceber na narrativa acima, o modo de vida, a
solidariedade e o companheirismo burlando as normas, resistindo à normatização e
à organização social do trabalho. Por trás desse companheirismo e solidariedade
pode haver interesse no ganho monetário e na diversificação dos produtos
oferecidos nos quiosques. Interesse que não necessariamente desqualifica o modo
de vida característico de pequenas comunidades, onde as trocas, os favores, os
empréstimos e os apadrinhamentos compõem as cores de uma aquarela peculiar e
diferente dos quadros representativos das grandes cidades.
O capítulo seis que trata do afastamento das artesãs ocupantes dos
quiosques é outro exemplo de interpretações e/ou resistências das rendeiras em se
adequar às normatizações peculiares ao universo do trabalho organizado. Desde a
criação do Centro, em 1979, não foi registrado o afastamento de nenhuma artesã
dos quiosques. Foi registrada, sim, a entrada de novas associadas, a troca de
lugares de mães para filhas e de avós para netas. Essa realidade é representativa
da tolerância, do respeito às individualidades e da tentativa de resolver conflitos
internos, evitando assim a expulsão ou as punições mais severas.
Os artigos décimo terceiro e décimo quarto do capítulo final do
Regime Interno são sugestivos de análise, principalmente porque revelam
possibilidades ltiplas de apropriação pelas artesãs. O artigo décimo terceiro diz:
249
Regime Interno do Centro das Rendeiras da Prainha. Capítulo V - Da Venda do Produto
Artesanal.
250
Entrevista com a rendeira Zenaide, em 18 de fevereiro de 2003.
O Centro das Rendeiras Luiza vora será aberto ao público das 9:00 hs às
17:00hs de segunda a domingo, inclusive feriado”.
251
Embora o Regime Interno seja sugestivo de sistematização e rigor ao
horário de trabalho, na prática, as rendeiras “impõem” ou têm liberdade de fazerem
seus próprios horários. Horários estes ditados muitas vezes pelos afazeres
domésticos e os cuidados com os filhos. No entanto, elas não devem ausentar-se
do Centro por mais de três dias, sem uma justificativa ou sem mandar uma amiga
ou parenta para ocupar o seu lugar no quiosque. Não sendo cumprida essas
exigências possibilidade de ser considerada abandono, o que possibilitaria a
entrada de uma nova associada e um processo de espera pelo período da baixa
estação para o seu retorno.
As exigências contidas no artigo décimo quarto referentes aos
uniformes e crachás, assemelhando-se a um código de postura, a rigor nunca
foram compridos, basta chegar a quiosques e vê-las trajando roupas comuns, às
vezes surradas pelo tempo e sem nenhuma identificação. As Marias, as Helenas,
as Franciscas, e tantas outras que ocupam o espaço do Centro, são conhecidas
como rendeiras da Prainha mais de trinta anos e, possivelmente, acham
desnecessária uma identificação pendurada em suas roupas. Muito embora a
identificação por meio de crachás é considerada pelo Regime Interno como um
recurso relevante nas relações comercial rendeiras versus turistas.
Compõe, também, do regime interno a prestação de contas feita pela
diretoria, cujo conselho fiscal se responsabilizava em verificar se tudo estava de
acordo com as normas estabelecidas. Essas prestações de contas eram
geralmente sobre a venda de linhas, arrecadações da caixinha, o pagamento da
associação e a limpeza do Centro.
As atas consultadas, notadamente àquelas que tratam das prestações
de conta sobre a linha, revelam lacunas e imprecisões sobre o envolvimento do
Centro no fornecimento e comercialização dessa matéria-prima imprescindível ao
processo de feitura da renda, junto às rendeiras do Centro e da comunidade
252
.
Essas imprecisões referem-se também ao término dessa atividade, visto que na
251
Regime Interno. Capítulo VII – Das Disposições Gerais.
252
Essa decisão de vender a linha também para as rendeiras da comunidade que não
comercializavam no centro está registrada na ata do dia 14 de novembro de 1990.
atualidade essa prática não é percebida no cotidiano das atividades das rendeiras
no Centro.
O governo, não lembro se era [FUNSESCE], porque eu não sei ler. Eu sei
que eu recebi um projeto, fomos ajeitar as barracas, eu trabaiava com
a linha. Nesse tempo não era Associação, era líder no centro. Eu trabaiei
com a linha três anos e seis mês. Eu fui líder nesse centro. Então eu fui ser
líder. Recebi um pouco de dinheiro e de pra eu vinha trabaiado. Eu
recebi o dinheiro pra comprar linha e vual prá fazer camisola. Eu vendia
(linha) as mesmas rendeiras do centro e algumas lá de fora, mas aqui
mesmo da Prainha. Então deixava o nome delas, o dia que era pra pagar, aí
com o dinheiro comprava mais linha. Digamos, se eu vendesse hoje dois
quilos de linha, amanhã eu ia comprar os dois quilos novamente, e eu ia
levando minha vida
253
A fala da rendeira Enedina revela que a atuação do centro na
comercialização da linha se antes da criação da Associação, portanto, antes da
legalização da categoria. Mesmo não lembrando do órgão responsável pela ajuda
em dinheiro que elas recebiam a rendeira Enedina sabe que veio do governo e
sabe também, da importância dessa ajuda no dia-a-dia delas como trabalhadoras.
Essa comercialização no Centro era importante por vários motivos,
entre eles, a possibilidade de comprar fiado quando elas não tivessem dinheiro; a
falta de uma loja nos arredores que vendesse a linha; a autonomia do centro, que
podendo comprar em quantidade, negociava, preço e qualidade e o capital de giro
que essa atividade proporcionou ao Centro e posteriormente à Associação.
Corroborando a narrativa da rendeira Enedina e ressaltando sua
importante participação no processo de comercialização da linha no Centro, declara
a rendeira Elizete:
Isso foi antes da Associação, mas eu não tenho bem lembrança, mas eu
acredito que ela [linha] tenha vindo até Associação né, que veio por mãos
da Enedina, que foi a pessoa que mais, é.... fez com que essa linha, é
continuasse. Veio o projeto, da FUNSESCE, a fundo perdido né, que vinha o
projeto, a gente ganhava o material. Nunca vinha em espécie, vinha em
matéria-prima, aí a gente ganhava, mas não tinha que pagar. A gente
vendia a linha e ficava como se fosse um capital de giro da Associação, que
infelizmente não foi pra frente.
254
253
Entrevista com a rendeira Enedina, em 30 de setembro de 2006.
254
Entrevista com a rendeira Elizete, em 30 de setembro de 2006.
A rendeira Cleide completa:
existia essa linha aqui. A tesoureira tomava de conta da linha, mas
também tinha outras rendeiras. Essa linha foi uma doação do fundo perdido
do Governo Federal, a gente vendia e comprava de novo. Quando a
gente tava com o estoque já pouco, aí aquele dinheiro que tava junto,
comprava outras pra nunca morrer né?
255
A linha que chegava por intermédio de projetos governamentais
transformou-se em capital de giro, acompanhou e assistiu o processo de
legitimação da categoria com a criação da Associação das Rendeiras da Prainha e
testemunhou um capítulo na vida do Centro pontuado por desavenças,
desconfianças e conflitos. Capítulo que se encerra com descompromisos e perdas
exemplificadas pela rendeira Enedina quando diz: hoje nóis procura um cabelo de
linha pra comprar aqui no centro, não tem”.
256
Sobre o fim da comercialização da linha no Centro das Rendeiras
afirma a rendeira Elizete:
A linha deixou se der vendida. Na época, era a fundo perdido, a gente não ia
ter que pagar (a linha), então na mentalidade de muitas rendeiras era: cada
uma tinha que ficar com a sua parte. Então teve muito prejuízo, porque
muita gente comprou e não pagou. Aconteciam muitas brigas, até que foi
decidido numa reunião que tinha que acabar com a linha sabe? Por motivo
que fez gente chorar, fez gente sair daqui e não voltar sabe? Então acharam
todo mundo por bem, de comum acordo que devia que ser rachado, nem
que cada uma ganhasse um novelo de linha, mas aquela linha tinha que ser
rachada. Então foi um doce engano, porque no final é, todo mundo ganhou
linha, mas que não colocaram nada prá frente. A linha acabou realmente por
conta da ambição.
257
Como se vê, o fim da comercialização da linha no Centro demonstra
despreparo das rendeiras em relação à cultura cooperativista, ou “talvez” inocência
em não perceber a importância em o grupo administrar essa matéria-prima, cujo
objetivo era gerar dinheiro que seria convertido novamente em linha para o uso de
todas (na Associação). Perpassa, em particular, pela atitude individualista tomada
por algumas rendeiras e principalmente pela falta de um apoio cnico-
255
Entrevista com a rendeira Maria Cleide, em 30 de setembro de 2006.
256
Entrevista com a rendeira Enedina, em 30 de setembro de 2006.
257
Entrevista com a rendeira Elizete, em 30 de setembro de 2006.
administrativo
258
dos responsáveis pelas verbas a fundo perdido disponibilizadas
pelo Governo Federal.
Com base nessas atas pudemos perceber certa indisciplina, talvez
resistências, por parte de algumas rendeiras em cumprir as determinações
tomadas nas reuniões e logo registradas. Um exemplo é a ata de sete de janeiro de
1991, que definia e determinava punições como:
Quem não lavar o banheiro no dia, fica 8 dias de suspensão; quem ficar 6
meses fora do Centro só poderá retornar nos períodos de inscrição (Março e
Agosto); quem não pagar a caixinha e a Associação fica fora do centro; a
taxa da associação e caixinha será R$ 20,00; a rendeira que agredir a outra
terá uma suspensão de 15 dias; retorno de uma rendeira ausente ao centro.
Ficou discutido que se ela sai não terá mais volta.
259
Nessas reuniões, além de prestar conta, elas discutiam também sobre
projetos e cursos que o Centro recebia. Um exemplo, é a ata da assembléia
extraordinária de novembro de 2001, em que que as rendeiras receberam os
técnicos do IBRAES (Instituo Brasileiro de Desenvolvimento Tecnológico,
Educacional e Associativo). O objetivo desta visita era repassar às rendeiras
informações sobre o Projeto de Desenvolvimento de Gestão Solidária e Coletiva
260
,
da qual a Associação das Rendeiras da Prainha foi contemplada com um
financiamento de recursos para a compra de matéria-prima (linha e tecido). No
entanto para receber esses financiamentos, as artesãs deveriam está cumprindo as
determinações da Assembléia Geral, de novembro de 2000. Entre essas
determinações constavam uso do uniforme, etiquetas, embalagens etc.
Cumpre destacar que as atas, em geral contêm informações variadas
acerca dos procedimentos do Centro das Rendeiras. Atas, por sua vez, paginadas
em livro pautado, e escritas manualmente por associadas (quando no exercício de
secretária), e assinadas pela presidente em exercício. Anote-se, a propósito, que
as atas correspondentes aos anos de 1990 a 1992 obedecem as características
acima citadas. Muito embora, a ata de 1989 dedicada à institucionalização da
258
Acerca desse assunto, seria fundamental o acompanhamento de profissionais como: assistente
social, psicólogos, técnicos em relações humanas, turismólogo etc.
259
Ata de reunião do dia sete de janeiro e 1991
260
Esse projeto fazia parte de um seminário promovido pelo Banco do Nordeste.
Associação, encontre-se datilografada e autenticada no Cartório Florêncio, 2º ofício
de Aquiraz – Ceará, autenticada em 09 de agosto de 2004.
A ata que registrou a assembléia extraordinária de novembro de 2001
evidencia as ações da Ceart e da IBRAES objetivando organizar, sistematizar e
padronizar os trabalhos produzidos no Centro das Rendeiras. Entre os assuntos
discutidos estavam:
Padronização dos produtos, utilização de etiquetas de identificação dos
produtos, adoção de embalagens, uniformes e crachás, exposição e
confecção de novos produtos artesanais no Centro das Rendeiras,
contribuição mensal, crianças no horário de trabalho, participação em
reuniões mensais etc.
261
Poucas dessas determinações foram cumpridas pelas rendeiras.
Basta chegar aos quiosques para vê-las sem uniformes e sem crachás, bem como
a presença de criança no Centro. Tudo isto leva-nos a pensar se realmente esse
apoio financeiro chegou às mãos da Diretoria da Associação
262
.
Com ou sem esses recursos financeiros, o certo é que a criação da
Associação das Rendeiras da Prainha foi uma tentativa de melhorar o
desenvolvimento comercial do Centro, diversificar e qualificar os produtos
oferecidos nos quiosques, e revitalizar as vendas. As parcerias foram importantes
estratégias utilizadas pelas rendeiras, pois representavam possibilidades concretas
e imediatas de vendas. Assim afirma a rendeira Olenir:
O que a gente tem que fazer para superar as quedas nas vendas e o pouco
turista? Parcerias, diálogos com pessoas, diálogos com entidades, diálogos
com associações né? Então nós criamos uma parceria com os bugueiros.
Essa parceria não foi nem assinada em cartório, ela foi só feita verbalmente.
Redigimos um termo só como modelo, mas não chegamos a assinar, e essa
parceria rende até hoje, mesmo não tendo sido assinada. Eles vão pra
praia, traz o turista até aqui.
263
261
Ata de Assembléia Geral Extraordinária de 11 de novembro de 2000.
262
Se elas tiveram ou não acesso a esse financiamento ficará uma interrogação, visto não
ter tido acesso às atas das assembléias realizadas após essa data, com razão de
desentendimentos internos, no processo de substituição da Diretoria.
263
Entrevista com a rendeira Olenir, em 25 de novembro de 2006.
Diferente do atravessador, que comprava os produtos diretamente das
rendeiras e os revendiam com grande margem de lucro, estes integram o
contingente dos “novos” personagens sociais que vão surgindo e/ou ganhando
visibilidade no ambiente de comercialização da renda e do turismo de sol e mar.
Apesar de ser bem aceita esta parceria e os bugueiro serem
responsáveis por parcela significativa das vendas, a ação deles propicia uma rede
de beneficiamentos às rendeiras pertencentes às famílias deles gerando intrigas,
conflitos e quebra da unicidade a que o Centro se propõe.
As palavras de nia esclarecem um pouco sobre o papel dos
bugueiros.
Outra questão hoje em dia é o bugueiro, a comissão. Há um monopólio.
O filho da rendeira que trabalha com os bugueiros (dizem)’tem que ir pra tal
barraca’ entendeu? O turista fica concentrado só numa barraca.”
264
A comissão da qual Tânia fala é um valor que o buguiero recebe das
ocupantes dos quiosques por cada peça vendida. Não raro aconteciam atritos entre
as rendeiras e os bugueiros quanto ao valor a ser pago. Nem sempre elas
respeitavam o valor estipulado, por outro lado os bugueiros às vezes queriam além
do combinado.
Outra parceria que vem se desenvolvendo entre as rendeiras envolve
os barraqueiros que comercializam na orla marítima da Prainha. Essas parcerias
caracterizam-se por certo distanciamento, pois, diferentemente do bugueiro que
levam os turistas para os quiosques, os donos das barracas indicam aos
freqüentadores onde e o que encontrar do artesanato local. Nesta parceria existem
também beneficiamentos, preferências e relações de amizade entre os
barraqueiros e as rendeiras que têm filhos ou filhas trabalhando nas barracas.
O que mudou na vida e na atividade artesanal das rendeiras da
comunidade da Prainha após a organização social do trabalho através da
Associação, e como as intervenções das políticas institucionais e as parcerias
contribuíram para o crescimento e a valorização do trabalho delas, são indagações
que este estudo não poderá responder.
A ampliação comercial que favoreceu o processo de mercantilização
não dos produtos, mas das próprias relações sociais entre as rendeiras, não
significou a longo prazo melhorias nas condições de vida e na sobrevivência
264
Entrevista com Tânia, em 22 de março de 2003.
dessas artesãs, uma vez que elas estão entre os setores menos favorecidos da
classe trabalhadora cearense, e não têm sequer o direito a aposentadoria, seja por
tempo de serviço, seja por invalidez, visto que o trabalho minucioso dessas artesãs
provoca perda da visão e problemas de coluna e de articulação. Portanto, o
reconhecimento social do trabalho delas como cidadãs está distante do prestígio
cultural que a “mulher rendeira cearense” adquiriu.
Muito embora não seja perceptível a expressão cidadania no dizer
cotidiano das rendeiras, suas práticas apontam para procura de valorização dos
direitos com o fim de resguardar conquistas e, ao mesmo tempo, conservá-las. Ter
a Associação como fruto da prática cidadã e mantê-la sólida implica em constante
superação de problemas e de necessidades comuns ao exercício do ser rendeira
Em meio às ações e reivindicações, aos desejos e conflitos, as
rendeiras da Prainha descobriram que a cultura política seria o caminho indicado à
consolidação e manutenção do espaço, fundamental à prática do fazer renda e do
ser rendeira. Essa prática vai além do espaço físico e do valor do trabalho, a
exemplo da rendeira Zenaide, membro da Associação dos Moradores da Prainha,
que organizou e arrecadou na comunidade patrocínios para realizar um projeto que
visa manter a cultura do Reisado, cujo objetivo é informar e divulgar a história do
reisado e criar um grupo que represente e divulgue a Prainha: fato que alude os
usos políticos demarcados no Centro das Rendeiras da Prainha.
Reivindicar e cumprir obrigações implica na execução da lógica
cidadã. Uma lógica, acrescente-se, nem sempre acessível às comunidades
distantes da instrução formal. Entretanto, ressalte-se, a educação formal não é
sinônimo de esclarecimento ou estímulo às mudanças. No caso das rendeiras da
Prainha, o que indicou o suporte para concretização da cidadania foi a inquietude
que as caracteriza: mulheres-mães que perceberam na possibilidade da mudança o
fio condutor necessário à abertura de horizontes e à ampliação de perspectivas.
FONTES
JORNAIS:
Diário do Nordeste.
- Caderno Regional, primeira página. 13 de fevereiro de 2001
- Caderno Cidade, p. 24. 15 de outubro de 1995.
- Caderno Turismo, p. 04. 07 de julho de 2000.
O Povo.
- Caderno Turismo. 28 de agosto de 1994.
- Caderno Turismo. 05 de julho de 2001.
OUTRAS FONTES
II PLAMEG – Pano de Metas do Governo Virgílio Távora (1979-1983).
Textos coletados no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Estatuto de fundação da Associação das Rendeiras da Prainha
Regime Interno do Centro das Rendeiras
Atas das Assembléias Gerais Ordinárias e Extraordinárias da
Associação das Rendeiras da Prainha
Livro de registro diário das atividades do Centro das Rendeiras
ENTREVISTAS
1.1 Paulo Horácio de Brito (“poeta Amor” – 07 de janeiro de 2003)
1.2 Francisco de Sales Almeida – (07 de janeiro de 2003)
1.3 José Pereira de Oliveira – (14 de janeiro de 2003)
1.4 Auristela da Costa Oliveira – (14 de janeiro de 2003)
1.5 Zenaide Moisés de Sousa – (14 de janeiro e 18 de fevereiro de 2003)
1.6 Maria Estela Carvalho de Almeida (18 de fevereiro de 2003)
1.7 Raimunda de Sousa Cunha (Dona Dica) (18 de fevereiro de 2003)
1.8 Tânia Moisés de Sousa – (22 de março de 2003)
1.9 Francisca Olenir da Silva Vieira – (25 de novembro de 2005)
1.10 Elizabete de Castro – (25 de novembro de 2005)
1.11 Maria Helena Caetano Ferreira – (25 de novembro de 2005)
1.12 Maria Firmina Brito de Sousa – (26 de novembro de 2005)
1.13 Elizete Caetano Ferreira – (26 de novembro de 2005 e 30 de setembro de
2006)
1.14 Maria Cunha Henrique (Dona Santa) – (26 de novembro de 2005)
1.15 Enedina Carneiro – (30 de setembro de 2006)
1.16 Maria Cleide dos Santos da Costa (30 de setembro de 2006)
PERFIL DOS ENTREVISTADOS
ENTREVISTA Nº. 01 – Paulo Horácio de Brito
O poeta e pescador Paulo Horácio de Brito nasceu na Prainha. Filho de Horário
Marcelino de Brito, pescador, e de Rita de Paulo Brito, rendeira e costureira.
Membro de uma das maiores famílias da Prainha, tinha nove irmãos, dos quais
todos os homens eram pescadores e as mulheres rendeiras. Católico praticante, o
Sr. Paulo de Brito, conhecido na comunidade da Prainha como poeta “Amor”, fala
com carinho e saudades das sextas-feiras em que acompanhava a mãe à missa.
Casou-se aos dezessete anos com Maria Firmino de Brito, rendeira. Dessa união
nasceram doze filhos, porém nenhum seguiu a profissão do pai. Homem simples
de mente privilegiada, só lamenta não ter conseguido dar estudo aos filhos. Retrata
em seus versos a Prainha de ontem e de hoje, sua vida pacata, as festinhas à luz
de lamparina, as rodas de conversas. Estas boas lembranças misturam-se e
diluem-se em meio às dificuldades que os pescadores enfrentavam no mar. Época
de muito trabalho e pouca comida. As mudanças, a invasão dos turistas, o
progresso chegando e obrigando o pescador a abandonar o mar para tornar-se
caseiro das mansões são fatos lembrados com tristeza.
ENTREVISTA Nº. 02– Francisco de Sales Almeida
Francisco de Sales Almeida, pescador, nasceu na Prainha. Filho de Isaías de
Almeida, fabricante de jangada, e de Francisca Ferreira, rendeira. Foi criado pelos
avós maternos, Matias dos Anjos, pescador, e Laura dos Anjos, rendeira. Deles
recebeu a influência protestante da Assembléia de Deus e o incentivo para os
estudos (cursou até a série). De uma família numerosa, aprendeu o ofício da
pesca aos quinze anos, ensinado pelo avô materno. Desde então, ajudava no
sustento da casa. Os seus irmãos pouco estudaram. Alguns são pescadores e
outras são rendeiras. Num convívio familiar harmonioso, o Sr. Sales passou a
infância e juventude na Prainha. Dividia seu tempo com a pesca, os amigos e os
bazares de rádio promovidos pelo Sr. Damião, antigo comerciante da comunidade
da Prainha. Casou-se com Maria Estela, rendeira. Dessa união nasceram doze
filhos. Foi do mar que tirou o sustento da família. Dos seus filhos, somente dois
herdaram a profissão do pai. O trabalho de sua esposa no Centro das Rendeiras e
suas ausências em casa não eram motivos para brigas e desentendimentos.
Atualmente com sessenta e seis anos, o Mestre Sales, como é chamado, continua
pescando. Divide seu tempo entre a Associação dos Pescadores, do qual é
presidente, a família, o mar e a igreja. Relembra com saudade a Prainha de ontem.
Fala da vida sofrida dos pescadores, das mudanças, das novas técnicas tomando o
lugar da pesca artesanal.
ENTREVISTA Nº 03 – José Pereira de Oliveira
José Pereira de Oliveira, pescador, nasceu na Prainha. Filho de Alexandre de
Oliveira, pescador, e de Maria Edvirges Oliveira, rendeira. De uma família de dez
irmãos, aos quatorze anos, por necessidade abandonou os estudos para se tornar
pescador. Educou os filhos com o dinheiro da pesca, porém incentivou-os a ter
outras profissões. Inicia sua vida de casado numa casinha à beira mar, porém
sempre contou com a ajuda de sua esposa, a senhora Auristela, rendeira desde os
sete anos. Além de fazer renda, ela criava galinha, vendia ovos e flores e pescava
para aumentar o orçamento doméstico. O Sr. Oliveira deixa claro o respeito e a
admiração que tem pelo trabalho da esposa, embora reclame suas ausências. Sem
constrangimentos, afirma que em muitos momentos ela ganhou mais dinheiro do
que ele. Os trinta e cinco anos de pescaria são relembrados com emoção e
tristeza. As dificuldades, os acidentes, o frio e a desvalorização do trabalho de
pescador são motivos de dolorosas reclamações. De bom restou a família dele,
os amigos e o mar de onde tirou a sobrevivência. Católico, devoto de Nossa
Senhora dos Navegantes, faz questão de acompanhar todo ano, no mês de
novembro, a festa, as novenas, as quermesses, a procissão e a missa. Hoje
aposentado por invalidez, o Sr. Oliveira resgatou uma brincadeira de criança:
distrai-se e ganha uns trocados fazendo jangadinhas de piúba.
ENTREVISTA Nº 04 – Auristela da Costa Oliveira
Auristela da Costa Oliveira, rendeira, nasceu no Sítio Tapera, localidade da
Prainha. Filha natural de Silvestre Vidal de Araújo, agricultor, e de Maria José da
Costa, rendeira. Sua infância e juventude foram marcadas pelos passeios, compras
e divertimentos na Prainha. Aprendeu a fazer renda aos sete anos e com o que
ganhava pagava suas despesas escolares. Ao casar-se com o Sr. Oliveira,
pescador, mudou-se definitivamente para a Prainha. Com a obrigação de ajudar
nas despesas domésticas, a criar e educar treze filhos, a rotina da Sra. Auristela
era cansativa. Cuidava da casa, dos filhos, do marido e, nos intervalos dos
afazeres domésticos, fazia renda durante toda a semana para vender na praia aos
domingos, ou então, de porta em porta. Além disso, pescava, criava galinha, vendia
ovos e flores. Lembra da Prainha com saudade. A vida calma, a sua casa à beira
mar, as rodas de conversas, as paqueras, e os bazares de rádio que o Sr. Damião
organizava. A construção do Centro das Rendeiras, em 1979, proporcionou
melhoria de vida. Essa melhoria representou em alguns momentos ganhar mais
dinheiro do que o marido. Porém, jamais incentivou suas filhas a herdarem sua
profissão. Somente uma tornou-se rendeira e hoje ocupa seu lugar no Centro.
ENTREVISTA Nº 05 – Zenaide Moisés de Sousa
Zenaide Moisés de Sousa, rendeira, nasceu na Prainha. É filha de Francisco Rosa,
pescador, e de Maria da Conceição Moisés, rendeira. O pai, católico pouco
praticante, trabalhava na pesca para sustentar a família e o vício da bebida. A
infância da Sra. Zenaide é marcada pelas imagens fortes das brigas e bebedeiras
do pai. Aprendeu a fazer renda sozinha aos sete anos, catando coquinhos, numa
brincadeira de criança. Conquistou o respeito da mãe e tornou-se a mais nova
rendeira da família. Junto a esse aprendizado veio a responsabilidade de ajudar
nas despesas da casa. Passou sua infância entre os trabalhos com a renda e as
brincadeiras de roda, numa Prainha calma, sem energia que, segundo ela era dos
pescadores. O marido, auxiliar de pedreiro, não assumiu o compromisso de ajudá-
la na criação dos três filhos. Depois de casada continuou morando com a família.
Ao todo eram vinte e três pessoas numa casa de três cômodos. Para sobreviver, a
Sra. Zenaide trabalhou também como empregada doméstica e cozinheira. As
melhorias na vida de sua família são atribuídas à criação do Centro das Rendeiras,
do qual foi presidenta por oito anos. Além das melhorias que buscou para o Centro,
trouxe também para a Prainha o Projeto Capacitação Solidária, um trabalho com
adolescentes, que objetivava o resgate da cultura da renda entre os jovens. Como
rendeira viajou para feiras e eventos em outros estados e países, divulgando e
expandindo a renda cearense.
ENTREVISTA Nº 06 – Maria Estela Carvalho de Almeida
Maria Estela Carvalho de Almeida, rendeira, nasceu em Cascavel. Filha de Antônio
José de Carvalho, agricultor, e de Maria Francisca da Silva Carvalho, chapeleira,
que aprendeu a ser rendeira depois que se mudou para a Prainha, com a família,
em 1950, aos cinco anos de idade, obrigada pela seca. Deparou-se com uma
Prainha bem diferente da atual, “tímida”, sem energia nem vida noturna, de poucos
habitantes com suas casa à beira do mar. Uma família numerosa. Muitas
dificuldades. Tudo o que aprendeu foi a vida que ensinou. Nunca freqüentou
escola. Aprendeu a fazer renda aos sete anos enquanto brincava com as amigas.
Sua mãe ajudou no aperfeiçoamento e finalização das peças. Fazia renda por
encomenda ou simplesmente vendia a quem procurasse. Casa-se com o Sr. Sales,
pescador, e dessa união nasceram quatorze filhos. Relembra das dificuldades, da
casinha de palha em que morava. Fazia renda durante a semana entre os afazeres
domésticos, e vendia aos domingos na praia ou então de porta em porta. Todo o
dinheiro ganho com a renda gastava nas despesas da casa. Católica pouco
praticante mantém um bom relacionamento com seu marido, evangélico fervoroso.
Quando fala em melhoria de vida atribui à criação do Centro das Rendeiras. Foi daí
que pôde reformar sua casa e colocar seus filhos para estudar.
ENTREVISTA Nº 07 – Raimunda de Sousa Cunha
Raimunda de Sousa Cunha (Dica), rendeira, nasceu na Prainha. Filha natural de
Ermegildo da Câmara, agricultor, e de Maria Luíza de Sousa, rendeira. O
descompromisso do pai, que tinha outra família, obrigou sua mãe a enfrentar o
desafio de criar sozinhas as duas filhas. Aprendeu a fazer renda sozinha, ainda
criança. Era a única opção de ganhar dinheiro. Passou sua infância e adolescência
na Prainha, lembrada com saudade e carinho. Lugar pequeno de gente simples. As
festinhas ao som da radiadora do Sr. Damião, a roda de conversas no fim da tarde,
os bazares de rádio, melhor do que a Prainha de hoje. Casou-se aos dezoito anos
com Edílson Caetano, pescador. Lembra das dificuldades de alimentar e educar
dez filhos com o dinheiro da pesca e da renda. Católica, a Sra. Dica fala com
alegria da festa da padroeira Nossa Senhora dos Navegantes. Neste período a
Prainha se alegra e recebe muitos visitantes. A criação do Centro das Rendeiras
representou uma grande melhoria de vida. Com lugar certo para vender seus
produtos, o dinheiro chegava mais cil e com isso pôde reformar a casa e
contribuir mais efetivamente nas despesas domésticas. Após dez anos da criação
do Centro, a Sra. Dica, juntamente com outras rendeiras e uma funcionária da LBA,
fundaram a Associação das Rendeiras, que passou a desempenhar o papel de
buscar recursos para realizar projetos que visassem a melhoria do Centro e,
conseqüentemente, a melhoria na vida de todas as rendeiras. Foi a primeira
presidente da Associação.
ENTREVISTA Nº 08 – Tânia Moisés de Sousa
Tânia Moisés de Sousa nasceu na Prainha. É filha e neta de rendeira e pescador.
Cursou Pedagogia, com habilitação em Geografia e História pela UVA, em Aquiraz.
Trabalha na Junta Militar fazendo os alistamentos e foi responsável pelo Censo
2000 de Aquiraz. Trabalhou no projeto de Capacitação Solidária realizado pelo
Centro das Rendeiras, um trabalho pioneiro com jovens e adolescentes numa
tentativa de resgatar a cultura local (renda de bilros) e registrar a trajetória de vida
das rendeiras, as primeiras que lutaram pelo direito a trabalhar e ter uma profissão.
Filha de Luiza Conceição Moisés, a primeira líder do Centro das Rendeiras, Tânia
era uma das crianças que acompanhava a e ao local de trabalho. Discussões,
brigas, conflitos, pedaços de histórias de vida foram presenciados por Tânia, na
época com doze anos. Relembra da infância, das dificuldades e da perseverança
de sua e que, sem companheiro, criou as filhas sozinhas com o dinheiro da
renda. Fala da criação do Centro como um grande benefício, uma homenagem,
uma valorização à dignidade das artesãs. O Centro trouxe, portanto, melhoria de
vida, e também o início de novos conflitos e novas tensões, pelo fato da mulher
passar a ter uma rotina de trabalho fora de casa. Mesmo envolvida com outros
trabalhos e profissões, Tânia faz questão de estar na Prainha e participar da vida e
da cultura da comunidade.. Procura participar de projetos que visam a valorização
da mulher rendeira.
ENTREVISTA 09 – Maria Firmina Brito de Sousa
Maria Firmina Brito de Sousa, rendeira, nasceu na Prainha. Filha de Horácio
Marcelino de Brito, pescador. e de Rita de Paula Brito, rendeira. Além de ser
rendeira, sua mãe era também bordadeira, costureira e fazia crochê. De família
católica de nove irmãos, os homens tornaram-se pescadores, e as mulheres,
rendeiras. Costumava ir à missa todos os domingos. Rezava o terço e participava
da Irmandade do Coração de Jesus, indo toda primeira Sexta-Feira do mês à Igreja
se confessar. Ao falar da infância, relembra das dificuldades e das multas
atividades desenvolvidas pela mãe para ajudar no orçamento doméstico. Essas
lembranças misturam-se a outras como as brincadeiras de roda, de pega-pega, as
festas ao som do rádio e os bate-papos numa Prainha calma, de poucos
moradores. Aprendeu a fazer renda aos dez anos ensinada pela mãe. Com o
dinheiro ganho ajudava nas despesas da casa e comprava roupa nova para as
festas de natal, de fim de ano e da padroeira da comunidade, Nossa Senhora dos
Navegantes. Passou uma temporada morando em Fortaleza após seu casamento.
Ao ficar viúva retorna para Prainha e desde 1985 tem seu lugar no Centro das
Rendeiras.
ENTREVISTA 10 – Francisca Olenir Vieira
Francisca Olenir Vieira, nasceu na Prainha. Filha de pescador e de rendeira
aprendeu o ofício da renda muito cedo, aos sete anos, e assim ajudava no
orçamento doméstico. Fala da Prainha como uma comunidade de rendeiras e de
pescadores, ressaltando a importância da renda de bilros para o sustento da casa e
da educação dos filhos. Com a obrigação de ajudar a criar quatro filhos, a Sra.
Olenir não se intimidava com as cobranças do marido pedreiro, cuja renda não lhe
permitia suprir as necessidades da família, o que o obrigava a aceitar a ajuda da
esposa. Atribui melhoria à vida sacrificada das rendeiras à construção do Centro
das Rendeiras em agosto de 1979. Cita também as melhorias trazidas pela a
Associação das Rendeiras, com a vinda de cursos, projetos, parcerias e
transformações pelas quais os trabalhos com renda vem passando. Segundo a
rendeira Olenir, é preciso unir o moderno, para atender as exigências do mercado,
com a cultura.”
ENTREVISTA 11- Elizabete de Castro
Elizabete de Castro, rendeira, nasceu na Prainha. Filha de Francisco Soares de
Castro, pescador, e de Maria de Castro, rendeira. Aprendeu a fazer renda aos onze
anos vendo sua mãe trabalhar na almofada. Desde então comprava suas
“coisinhas” de uso pessoal. Ao falar da Prainha da sua infância, relembra do bar do
Sr. Leôncio, das brincadeiras, da vida calma, onde podia sair a qualquer hora,
porque quase não tinha violência. Divorciada e com quatro filhos para criar, a Dona
Elizabete trabalhava em casa e a sua mãe levava para vender no Centro das
Rendeiras. recentemente conquistou seu lugar no Centro. Entretanto, sempre
participou da votação para presidente, visto que, é associada desde sua fundação.
Essa situação, no entanto, não abrandava seus elogios e a sua certeza de que o
Centro trouxe melhoria de vida para todas que sobrevivem do artesanato da renda.
ENTREVISTA 12 – Maria Helena Caetano Ferreira
Maria Helena Caetano Ferreira, rendeira, nasceu na Prainha. Filha de Raimundo
Caetano, agricultor, e de Maria do Carmo Caetano, rendeira. Relembra a Prainha
calma da sua infância, com poucas casas, de palha aterradas com barro, dos
bazares de rádio, das dificuldades para estudar, das distâncias e da falta de
energia. Aprendeu a fazer a renda com sete anos numa almofada feita de coco em
meio as brincadeiras de criança. Aos oito anos possuía sua própria almofadas e
ganhava para ajudar em casa e a comprar seus “vestidinhos” e “chinelas”. Casou
bem jovem e, a exemplo da mãe, que criou os filhos com a renda, contribuiu da
mesma forma para ajudar na criação e educação dos filhos. Participou da criação
do Centro das Rendeiras e, desde então, tem o seu lugar garantido. A venda antes
realizada de porta em porta ou na orla marítima, requeria esforço físico das
rendeiras: o Centro resolveu este problema e representou segundo sua opinião,
melhoria para toda a comunidade.
ENTREVISTA 13 – Elizete Caetano Ferreira.
Elizete Caetano Ferreira, rendeira, nasceu na Prainha. Filha de Francisco Sobrinho
Caetano, agricultor, e de Francisca Ferreira Caetano, rendeira. Família de onze
irmãos, a Sra. Elizete fala da infância e das dificuldades de viver do artesanato.
Lembra das brincadeiras de roda e das festinhas. Não esquece das dificuldades
dos pais para alimentar os filhos, e dos dias em que ficaram sem comida por falta
do peixe. Tudo isto impeciu que estudasse quando criança, fato que aconteceu
recentemente em 2002, através do supletivo e 2° graus. Aprendeu a fazer renda
aos oito anos olhando a mãe e a avó fazerem. Aos dez anos já possuía sua própria
almofada e, a renda que produzia sua avó revendia. Entretanto, somente com
quatorze anos assume a responsabilidade de ajudar no sustento da casa. Sem um
companheiro, a Sra. Elizete cria sozinha seu filho e um sobrinho com o dinheiro
ganho com a renda de bilros. Acompanhou a construção do Centro e participou da
inauguração, descrito por Elizete como um dia muito especial. Ficou guardado na
memória: a grande festa, os discursos e os fogos de artifícios que anunciavam um
novo tempo para as rendeiras da Prainha. Sócia-fundadora da Associação das
Rendeiras e atual presidente do Centro, a Sra. Elizete fala da importância desse
espaço para as mulheres artesãs da comunidade, e das dificuldades, próprias de
qualquer administração.
ENTREVISTA14 – Maria Cunha Henrique
Maria Henrique Cunha (Dona Santa), rendeira, nasceu na Prainha. Filha de Luiz
Caetano da Cunha, pescador, e de Maria Gomes de Sousa, rendeira. Ressalta a
inocência das brincadeiras e a tranqüilidade da “Prainha antiga”, de poucas casas,
sem energia onde se podia ir pra todo canto”. De família numerosa de vinte e três
irmãos, só sete se criaram, dos quais todas as mulheres são rendeiras, e os
homens, pescadores. Aprendeu a fazer renda aos dez anos ensinada pela avó. O
dinheiro ganho com as primeiras rendas ajudava em casa e comprava vestidos
para as festas de fim de ano. Casou aos dezoito anos e enfrentou, numa casinha
de palha, depois de taipa com o marido pescador, as dificuldades de criar seis
filhos com o dinheiro da pesca e da renda. O trabalho com a renda permitiu-lhe
realizar o sonho de possuir uma casa de alvenaria, fato que ocorreu oito anos.
Embora não tenha participado do processo de construção do Centro das
Rendeiras, e só tenha se associado sete anos depois, a Dona Santa fala da
importância que esse espaço de trabalho representou na vida de sua família e na
construção da casa em que reside.
ENTREVISTA Nº 15 – ENEDINA CARNEIRO
Enedina Carneiro nasceu na Prainha, em 1939. Além de ser rendeira, é também,
cozinheira. Filha do pescador, Raimundo Nonato Carneiro e da rendeira Maria
Moisés do Nascimento. Aprendeu a fazer a renda de bilros desde os sete anos de
idade e, a partir desse momento, ajudava nas despesas da casa. Assim como
muitas das companheiras, vendia seus produtos na orla marítima, com as caixas de
papelões na cabeça ou aos poucos revendedores locais. Participou ativamente do
processo de construção do Centro das Rendeiras, do qual foi líder e responsável
pela comercialização da linha, recebida em doação pelo Governo Federal.
Atualmente com 67 anos de idade e 60 de profissão, continua a produzir seus
artefatos e pode ser encontrada diariamente no quiosque que ocupa 27 anos.
Ora conversando e relembrando da infância na Prainha calma e tranqüila, de
poucas casas, e de seus habitantes, pescadores e rendeiras, ora fazendo suas
peças, à espera dos compradores, ela é testemunha da importância da cultura da
renda para a sobrevivência das artesãs da comunidade.
ENTREVISTA Nº 16 – MARIA CLEIDE DOS SANTOS DA COSTA
Maria Cleide dos Santos da Costa nasceu na Prainha. Filha de Maria dos Santos
da Cunha, rendeira e José Euclides da Cunha, pescador. Seguindo uma tradição
familiar, aprendeu a fazer renda ainda criança, ajudando desde esse momento nas
despesas da casa. Não participou do processo de criação do Centro das
Rendeiras, porém comercializa nesse espaço bastante tempo. Por outro lado,
participou juntamente com a sua madrinha, a rendeira Raimunda de Sousa Cunha
(Dona Dica), do processo de criação da Associação das Rendeiras da Prainha,
inclusive fazendo mungun para vender e com o dinheiro registrar a papelada
para legalização da categoria. A rendeira Maria Cleide foi oficialmente a primeira
tesoureira da Associação das Rendeiras da Prainha e, por muito tempo, foi
responsável pela comercialização da linha no espaço do Centro.
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