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Universidade Federal do Ceará
Centro de Humanidades
Programa de Pós-graduação em História
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
O OURO DO MAR
Do surgimento da indústria da pesca da lagosta no Brasil à condição do
pescador artesanal na História do tempo presente(1955-2000).
Uma narrativa sócio-histórico marítima.
Autor: Túlio de Souza Muniz
Fortaleza-CE
2005
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Universidade Federal do Ceará
Centro de Humanidades
Programa de Pós-graduação em História
Túlio de Souza Muniz
O OURO DO MAR
Do surgimento da indústria da pesca da lagosta no Brasil à condição do
pescador artesanal na História do tempo presente (1955-2000).
Uma narrativa sócio-histórico marítima.
Dissertação apresentada como
exigência parcial para obtenção do grau
de mestre em História Social à
comissão julgadora da Universidade
Federal do Ceará, sob orientação do
Prof. Dr. Franck Pierre Gilbert Ribard.
Fortaleza-CE
2005
Túlio de Souza Muniz
1
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O OURO DO MAR
Do surgimento da indústria da pesca da lagosta no Brasil à condição do
pescador artesanal na História do tempo presente (1955-2000).
Uma narrativa sócio-histórico marítima.
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de
mestre em História Social no Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal do Ceará, pela comissão examinadora formada pelos
seguintes professores:
Banca Examinadora.
_________________________________
Prof. Dr. Franck Pierre Gilbert Ribard.
__________________________________
Prof. Dr. Frederico Castro Neves
__________________________________
Profa. Dra. Sílvia Márcia Alves Siqueira
Aprovado em ____ de Dezembro de 2005.
2
MUNIZ, Túlio de Souza. O Ouro do Mar. Do surgimento
da indústria da pesca da lagosta no Brasil à condição
do pescador artesanal na História do tempo presente
(1955-2000).Uma narrativa sócio-histórico marítima. /
Túlio de Souza Muniz – Fortaleza. Dissertação de
Mestrado em História Social – Universidade Federal
3
A Maíra, minha filha, que tem um quê de mar no nome.
A Juarez Muniz e Elza de Souza, meus pais.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos meus professores e professoras do Departamento
de História da UFC, e ao professor Sá Pessoa (História da Arte,
departamento de Arquitetura da UFC) com os quais tive o prazer de
compartilhar as salas de aula durante minha graduação (2000 – 2003) e
mestrado. Em maior ou menor intensidade, todos me ajudaram a chegar às
conclusões que aqui apresento.
Agradeço especialmente aos amigos que tanto me ajudaram nesta
jornada, sobretudo Daniel Lins, Sylvie Delacours Lins, Esther Barbosa e
Sílvia Alves, pelas reflexões afetuosas.
E aos tantos amigos pescadores de Redonda e Barreiras, em Icapuí-
CE, e de Canoa Quebrada e Estevão, em Aracati-CE, que me ajudaram a
entender um pouco melhor o mar de nossas vidas.
5
RESUMO
O OURO DO MAR
Do surgimento da indústria da pesca da lagosta no Brasil à condição do
pescador artesanal na História do tempo presente (1955-2000).
Uma narrativa sócio-histórico marítima.
O presente trabalho trata da condição dos pescadores artesanais na
contemporaneidade, das reapropriações de saberes decorrentes do
confronto entre as modalidades de pesca artesanal e industrial. As
reflexões seguem em torno da historicização da implantação da pesca
industrial no Brasil a partir da pesca da lagosta a partir da década de 1950,
destacando um conflito internacional entre o Brasil e a França na década de
1960 e a relação do pescador artesanal com esses acontecimentos. Por fim
procura-se entender o cotidiano dos pescadores que se defrontam com
alterações de saberes e no meio ambiente provocadas pelos fatos
narrados.
Palavras-chave:
Pesca, História , Memória, Meio-Ambiente
6
The gold of the sea
Of the sprouting of the Fish Industry of the lobster in Brazil to the condition
of the artisan fisherman in the History of the present time (1955-2000).
A maritime narrative historical partner.
The present work deals with the condition of the artisan fishing at the
present, of the apropriate of knowledge originated of the confrontation between
the artisan fishing and the industrial fishing. The reflections follow around the
history of the implantation of industrial fishing in Brazil from the lobster fishing at
1950, standing out an international conflict between Brazil and France in the 1960
and the relation of the artisan fisherman with these events. Finally to look for
understand the daily of the fisherman who confrot with alterations of knowledge
and at the environment provoked by the facts.
Word-key: It fishes, History, Memory, Environment
7
“O arquétipo do homem litorâneo cearense é o jangadeiro. Tal como o
sertanejo, acima de tudo um forte. Em sua jangada, íntima montaria, vai
domando ‘verdes mares bravios’ até desaparecer além do horizonte. Até
voltar dia ou dias depois. Ou não.
Alexandre Barbalho, in Mar de Luz
8
ÍNDICE
Apresentação.......................................................................................Pg. 02
Introdução.............................................................................................Pg. 06
Capítulo I - Anos de Pesca...................................................................Pg.15
1- Antigas e novas relações sócio-econômicas e ambientais.......Pg. 15
2-A ‘descoberta’ do Ouro do Mar...................................................Pg. 22
3-Um americano em Fortaleza...................................................... Pg. 28
Capítulo II - A “Guerra da Lagosta”.....................................................Pg. 39
1-A guerra que não houve...............................................................Pg. 39
2-Xenofobia.....................................................................................Pg. 53
3- Uma guerra de festim..................................................................Pg. 56
4-O Pescador e a Guerra................................................................Pg. 60
5-Piratas Modernos..........................................................................Pg. 61
Capítulo III - Por uma sócio-historiografia marítima.........................Pg. 67
1-História de Pescador....................................................................Pg. 67
2-Mar de ninguém, mas de todos....................................................Pg. 71
3-O novo corpo do pescador...........................................................Pg. 73
4-Com quantos paus se fazia uma jangada....................................Pg. 77
5-Nem tudo que reluz é ouro...........................................................Pg. 90
Conclusão .........................................................................................Pg. 99
Bibliografia........................................................................................Pg. 104
Índice de mapas, tabelas e figuras.................................................Pg. 113
Anexos................................................................................................Pg. 114
9
Apresentação
“À beira-mar. Não tenho desejos de construir uma casa e isso
mesmo contribui para minha felicidade de não ser proprietário.
Mas se a isso fosse forçado, desejaria, tal como certos romanos,
construí-la quase ao mar; agradar-me-ia ter com este belo monstro
alguns segredos em comum”
Nietzsche, “A Gaia Ciência”
O presente trabalho se propõe estudar as alterações e complexidades de
saberes na pesca artesanal de lagosta, priorizando a memória de pescadores em
atividade nas últimas cinco décadas, sobretudo nos municípios de Aracati e
Icapuí, no Ceará, distantes cerca de 150 e 200 quilômetros a leste de Fortaleza,
respectivamente. Os temas que norteiam esta pesquisa de mestrado são: a
contextualização da pesca da lagosta na História do Tempo Presente, sua
inserção numa lógica do mercado capitalista a partir de 1955, e sua relação
como episódio que ficou conhecido como “Guerra da Lagosta”, nos anos 60,
confrontando interesses comerciais, diplomáticos e militares do Brasil e da
França.
Também interessou a este trabalho o estudo relativo à transmissão e
reapropriação dos saberes tradicionais, mas outras possibilidades surgiram com a
pesquisa empírica em si. Um aprofundamento nos arquivos da Biblioteca Pública
Menezes Pimentel foi importante para reforçar a mudança de direção,
incorporando outros elementos sem que fossem abandonadas as intenções
iniciais.
O confronto de fontes orais e escritas comprovou que a indústria da pesca
da lagosta surgiu a partir da década de 1950 por influência de empresários norte-
americanos, particularmente de um personagem emblemático, Davis Morgan,
cuja intervenção foi determinante para vida de milhares de trabalhadores nas
décadas seguintes, quando tiveram de se adaptar a novas lógicas econômicas e
a uma certa reorganização de saberes. Tratou-se ainda de uma atividade que
emergiu no contexto da Guerra Fria por iniciativa de um norte-americano, e por
isso, pelo menos inicialmente, não deixou de ser vista com um certo rancor
nacionalista por parte dos brasileiros, fosse na imprensa liberal ou na
assumidamente comunista.
10
Outro aspecto que surgiu foi a narrativa, na imprensa local, da “Guerra da
Lagosta”. O conflito tem início ainda em 1962, com apreensão de barcos
franceses que pescavam ilegalmente no Brasil e se estende até 1964, quando os
dois governos decidem que o arbítrio da questão ficaria a cargo da Corte
Internacional de Haya (Holanda). Mas o auge da contenda se dá no início de
1963, fazendo emergir, na França, discursos e posturas militaristas e imperialistas
quando o colonialismo dá fortes sinais de decadência. No Brasil, reascendem-se
discursos nacionalistas com traços de xenofobia, e sobrevaloriza-se um discurso
militarista justamente a um ano do golpe de 1964, quando apareceu outro
discurso, o de preservação ambiental, que alertava para necessidade de
regulamentar a pesca da lagosta visando a proteção da espécie que poderia até
mesmo se extinguir rapidamente, como vem acontecendo nos dias atuais.
Neste ponto da pesquisa cabe destacar a possibilidade de abordar o
episódio da “Guerra da Lagosta” a partir de consulta de arquivos locais sem
necessariamente ter que se deslocar para as grandes cidades do Centro-Sul,
embora tenha sido valioso o auxílio da Internet como ferramenta para se evitar
uma interpretação meramente ‘bairrista’ e ‘provinciana’.
Um exame desses temas, aliado ao aprofundamento de leituras de textos
na linha da sócio antropologia marítima e à uma breve retrospectiva da pesca no
Brasil possibilitou a incorporação, na pesquisa, de seu elemento fundamental: a
historicização da pesca da lagosta. O tema, como pretendo demonstrar, está
inserido em diferentes temporalidades, o que também proporciona uma
abordagem dentro do que Pesavento chama de “História do tempo presente”.
Também se faz inevitável uma resumida e breve apresentação a título de
esclarecimento sobre minha proximidade pessoal e afetiva com o estudo que
pretendo apresentar. Tinha 26 anos em 1995, quando vim para o litoral do
“Nordeste”, partindo do interior de Minas, onde nasci e vivia até então. Havia
nove anos trabalhava como jornalista, minha profissão atual, fiquei quatro meses
em Natal e quase que por acaso (se é que há acasos) estabeleci-me em Icapuí,
município do extremo leste do litoral cearense. Lá morei e trabalhei como
assessor de Comunicação da Prefeitura por 18 meses. Nesse período, travei
relações afetivas com um universo de trabalhadores para mim até então
desconhecido: pescadores, principalmente pescadores de lagosta da praia de
11
Redonda. A pesca ainda era farta e a expressão “ouro do mar” para designar a
lagosta era, literalmente, visível.
Em 1997, o vento leste me conduziu de Icapuí a Aracati, onde trabalhei na
mesma função que exerci no município vizinho. A partir de 1998 passei a residir
na vila dos Estevão, vizinha a Canoa Quebrada, distante cerca de 10 quilômetros
de Aracati. Colaborei na implantação de uma rádio comunitária (a Malazartes
FM), construí uma casa, passei a participar das discussões da comunidade e
intensifiquei minhas relações com vários pescadores. E, como diz Caymi, “quem
vem pra beira do mar, ai, nunca mais quer voltar”.
Em 2003 conclui o Bacharelado em História da UFC, e, ao definir um
tema de pesquisa, lembrei-me de uma das minhas primeiras leituras
historiográficas, guiado-me pela sensibilidade de Edward Thompson: “Estou
procurando resgatar o pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do tear
manual ‘obsoleto’, o artesão, o ‘utopista’
1
. Nesse sentido, um intercessor
importante à pesquisa foi Sérgio Buarque de Holanda. Com efeito, escreve ele:
“Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma
classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a
simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos
figurantes mudos que enchem o panorama da História e são muitas
vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros que
apenas escrevem a História”.
2
Procurei então narrar os primeiros anos da pesca de lagosta no Ceará a
partir de pesquisa em arquivos e estatísticas, mas estabelecendo o diálogo
dessas fontes com a história das pessoas comuns. Daí até o ponto em que a
pesquisa chegou atualmente foram necessários vários redirecionamentos
metodológicos e teóricos. A utilização de fontes escritas complementou-se com as
fontes orais, sendo estas de grande importância. Afinal, é ofício do historiador
fazer falar fontes ainda silenciadas, “problematizar a memória”, como lembra a
professora Berenice Abreu de Castro Neves em seu belíssimo "Do Mar ao Museu,
a Saga da Jangada São Pedro"
3
.
1
THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
2
HOLANDA, Sérgio Buarque de, Historia Geral da Civilizaçao Brasileira : A época colonial,Volume
I, in Historia Geral da Civilizaçao Brasileira : Do Descobrimento A Expansão Territorial ,
Editora
Bertrand Brasil,São Paulo,2003.
3
Para ela, a memória "deve estar presente não como um objetivo ou um fim, mas como um objeto
12
Popularmente, “história de pescador” é sinônimo de exagero, lorota,
vantagem, e mesmo mentira. Espero que este trabalho demonstre que, para além
da gaiatice, existe uma História que modificou em muito o cenário do litoral
cearense e brasileiro nas últimas cinco décadas e que está viva na memória e no
cotidiano de seus protagonistas.
a ser problematizado", in NEVES,Berenice Abreu de Castro, Do Mar ao Museu, a Saga da
Jangada São Pedro, Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, Fortaleza, 2001.
13
INTRODUÇÃO
“Para sobreviver, é preciso contar histórias”
Umberto Eco, “A Ilha do Dia Anterior”
O objetivo específico deste trabalho é historicizar o surgimento da indústria
da pesca de lagosta no Ceará para explicar o impacto de uma nova atividade
econômica e social no cotidiano de pescadores do Nordeste brasileiro e de suas
famílias. Isso foi alcançado, sobretudo, a partir da narrativa das pessoas que a
vivenciaram e que por ela foram afetadas mais diretamente: os pescadores de
comunidades litorâneas do interior do Estado do Ceará, particularmente os de
Aracati e Icapuí. No mapa do Ceará, pode-se ver a localização dos principais
municípios litorâneos: a capital, Fortaleza, Aracati e Icapuí (a leste),e Camocim e
Acaraú (ambas a Oeste).
MAPA I – Localização dos principais municípios do litoral do Ceará
(Fonte:http://www.mapas-brasil.com/index.html)
Para tanto, buscou-se contextualizar o estabelecimento preciso dessa
14
indústria (1955) e conectar sua emergência com outros acontecimentos históricos
diretamente relacionados. No decorrer do texto esses acontecimentos serão
representados pela inserção do Brasil num mercado internacional de lógica
industrial-capitalista (através do que se chamou “Guerra da Lagosta”) e pelas
alterações nas comunidades de pescadores diretamente ligadas à pesca
artesanal.
Com a definição desses objetivos e de sua conexão com determinada
bibliografia de história Oral, Ambiental e Social (em diálogo com outras áreas,
como Sociologia, Antropologia, Biologia e Economia, e arquivos de órgãos
públicos como a Sudene, por exemplo), o tema principal desdobrou-se. A
pesquisa progrediu e se evidenciaram aspectos inesperados, como a chegada de
nova tecnologia internacional (que teve importância fundamental na
reorganização de saberes dos pescadores artesanais), o estabelecimento da
pesca de lagosta enquanto indústria capitalista e o conflito entre a França e o
Brasil, motivado pela importância econômica que o crustáceo passou a ter logo
dos primeiros anos da sua exploração em águas nacionais. A partir desses
acontecimentos, esboçou-se um discurso novo, o da necessidade de
preservação do meio ambiente.
A pesquisa preservou o que foi considerado fundamental desde o início:
dar voz aos trabalhadores desse setor. Apesar da sua expressividade numérica
no Ceará, são poucos os estudos que narram a(s) história(s) dos pescadores de
lagosta. Nos lembra Paul Thompson:
"Reconhecendo grupos importantes de pessoas que haviam estado
ignoradas, dá-se início a um processo cumulativo de transformações.
Amplia-se e se enriquece o próprio campo de produção histórica; e ao
mesmo tempo sua mensagem social se modifica. Para ser claro, a
história se torna mais democrática, (...)as testemunhas podem agora
ser convocadas também de entre as classes subalternas, os
desprivilegiados e os derrotados. Isso propicia uma reconstrução mais
realista e mais imparcial do passado, uma contestação ao relato tido
como verdadeiro."
4
Tais narrativas do passado demonstram, sobretudo, o quanto os
costumes e reminiscências coletivas ainda são influentes e determinantes para a
coesão e organização social dos personagens aqui arrolados. O saber-fazer do
15
pescador artesanal não desapareceu e sim permaneceu e se alterou com a
introdução da pesca industrial. Mais uma clara demonstração da resistência de
que os trabalhadores são capazes quando se faz necessária a reapropriação de
saberes e práticas. Tratam-se, simultaneamente, tanto de aspectos da longa
duração quanto da história do cotidiano, temporalidades diferentes, mas não
imbricadas.
Nesse sentido, o contato com nova bibliografia no Mestrado em História
ampliou a reflexão em torno do tema aqui abordado. Posso citar, por exemplo,
Cláudio Batalha, que afirma ser importante não considerar somente os grandes
centros como sendo cenário único de história e da organização dos
trabalhadores, pois não existem apenas categorias de trabalhadores urbanos.
Nas vilas de pescadores e na consulta a arquivos encontramos os protagonistas
desse acontecimento relativamente recente no Brasil (a pesca da lagosta
5
) que
modificou hábitos econômicos e de sociabilidade de uma categoria de
trabalhadores ainda pouco ouvida pela historiografia.
Concordo plenamente com Batalha quando diz que
“A produção dos últimos anos tem demonstrado que o repensar do
movimento da história operária passa por uma série de caminhos e por
novas preocupações. Um deles é o aprofundamento dos estudos
regionais, fugindo dos paradigmas de São Paulo e do Rio’
6
.
Para entender o contexto regional, estabeleceu-se o confronto de
discursos da imprensa cearense sobre a chegada de estrangeiros que
introduziram a indústria da pesca da lagosta dentro da lógica de produção
mercantilista e de acumulação capitalista. Para tanto são transcritas matérias de
um jornal de discurso ‘liberal’ (O POVO), e de outro ‘comunista’ (O DEMOCRATA)
para se ter idéia das semelhanças e diferenças que ambos demonstravam.
A leitura crítica de jornais de matizes ideológicos diferentes tem mostrado
bons resultados na escrita historiográfica, e neste trabalho isso não foi diferente.
Comparar os discursos de O DEMOCRATA e de O POVO não somente confirmou
os relatos colhidos junto às fontes orais, como demonstrou a diversidade de
4
THOMPSON, Paul, A voz do Passado: História Oral, Paz e Terra, São Paulo, 1992.
5
Recente no Brasil, pois nos EUA é praticada pelo menos desde o século XIX.
6
BATALHA, CLAUDIO H.M., Historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências, in
FREITAS, Marcos Cezar, Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo, Contexto, 1998, pg
156.
16
opiniões e posturas diante do estabelecimento da indústria pesqueira. Fazer tal
leitura dos jornais da época é concordar com Capelato:
A análise do ideário e da prática política dos representantes da
imprensa revela a complexidade da luta social. Grupos se aproximam e
se distanciam segundo as conveniências dos momento; seus projetos
se interpenetram, se mesclam e são matizados. Os conflitos
desencadeados para a efetivação de diferentes projetos se inserem
numa luta ainda mais ampla que perpassa a sociedade por inteiro. O
confronto das falas, que exprimem idéias e práticas, permite ao
pesquisador captar, com riqueza de detalhes, o significado da atuação
de diferentes grupos que se orientam por interesses específicos”
7
.
Porém, a leitura do discurso jornalístico deve ser colocada, antes de tudo,
sob o prisma da dúvida. Jornais e jornalistas, de qualquer época, se governam
por opiniões e interesses pessoais ou coletivos pré-estabelecidos. Portanto o que
consta nas páginas de todo e qualquer jornal está quase sempre imbuído do que
Briggs chama de “certas fraquezas fundamentais dos jornais que nos obrigam a
suspeitar bastante do que dizem e utilizá-los com imensa cautela”. O mesmo
Briggs está coberto de razão ao sustentar que os “jornais costumam ser muito
tendenciosos, são tremendamente mal-informados e só abordam uma pequena
parcela da realidade”
8
.
O jornalista não deve ter a pretensão de registrar ou fazer a História com
seu trabalho, pois lhe falta tempo e espaço para reflexões e análises dos recortes
cotidianos do quais trata. E ao historiador cabe ter a sensibilidade de selecionar e
compreender aquilo onde o trabalho jornalístico não é capaz de fazer sozinho. O
jornal é uma valiosa fonte de informação é o jornalista tem de ser cuidadoso ao
produzi-la, pois não escreve apenas para o seu tempo (para o factual, no dizer do
jargão das redações). Ele está produzindo também para interpretações futuras
dos pesquisadores.
Daí a recorrência ao jornal O POVO no segundo capítulo da dissertação
(“A Guerra da Lagosta”), onde narro um fato que trazia em seu bojo também a
mudança de época que enfrentavam os países nele envolvidos. A França
7
CAPELATO, Maria Helena R., Imprensa e História do Brasil, Imprensa oficial e imprensa
contestadora. O jornal como documento. O papel do jornal na História, Editora Contexto/USP, São
Paulo-SP, 1988.
8
Entrevista do historiador social britânico in PALHARES-BURKE, Maria Lucia Garcia, As muitas
faces da História, Editora do IFCH-Unicamp, Campinas(SP), 1996.
17
começava a perder suas colônias na África, como a Argélia, e conseqüentemente
perdia território marítimo onde uma de suas especialidades era a captura da
lagosta. O Brasil vivia um período de efervecência política onde, na “Guerra da
lagosta”, a sobrevalorização dos discursos nacionalista e militarista serviriam a
diversos propósitos e interesses, ainda que implicitamente. Nas leituras de
jornais da época é visível a tentativa do governo João Goulart em consolidar uma
postura de defesa dos interesses nacionais no campo diplomático durante a
“Guerra da Lagosta”, enquanto que os setores militares aproveitam do fato para
passar a imagem de uma potência bélica organizada, coesa e, sobretudo,
confiável perante a opinião pública.
Há um aspecto fundamental que permeia este trabalho: a abordagem da
história da pesca da lagosta dentro do que Pesavento chama de “História do
tempo presente”, onde “ os acontecimentos estão ainda a se desenvolver” e onde
“ o historiador é contemporâneo e, de uma certa forma, testemunha ocular de um
processo que ainda se desdobra e do que não se conhece o término”
9
.
A referida autora sustenta que:
“O método fornece ao historiador meios de controle e verificação,
possibilitando uma maneira de mostrar, com segurança e seriedade, o
caminho percorrido, desde a pergunta formulada à pesquisa de arquivo,
assim como a estratégia pela qual fez a fonte falar, produzindo sentidos
e revelações que ele transformou em texto
10
”.
Partidária da Historia Cultural como instrumento para entendimento do
objeto estudado, Pesavento chama atenção para necessidade de se detectar a
“modalidade identitária” quando se estuda determinada comunidade ou
sociedade. Para ela, a identidade.
“se constrói em torno de elementos de positividade, que agreguem as
pessoas em torno de atributos e características valorizados, que rendam
reconhecimento social a seus detentores. Assumir uma identidade
implica encontrar gratificação com esse endosso. A identidade deve
apresentar um capital simbólico de valoração positiva, deve atrair a
adesão, ir ao encontro das necessidades mais intrínsecas do ser
humano de adaptar-se e ser reconhecido socialmente”
11
.
9
PESAVENTO, Sandra Jatahy, História e História Cultural, Autêntica, Belo Horizonte, 2003.
10
PESAVENTO, Sandra Jatahy, Op. cit.
11
Id. ibidem Mas identidade também deve ser vista como algo que somente seja válido de
18
Aqui vejo diálogo com o conceito da construção do sentimento de
pertencimento, e também um diálogo com o que muito interessa a esta pesquisa:
o fazer-se da categoria dos pescadores. Os argumentos de Pesavento indicam
um caminho para se entender a coesão dessa categoria e onde se pode
encontrar elementos identitários que a une. Algo que Nietzsche explica
considerando o entrosamento cotidiano, ao afirmar que
quando as pessoas viveram juntas por muito tempo, em condições
semelhantes (clima, solo, perigos, necessidade, trabalho) nasce algo
que ‘se entende’, um povo. (...) Quando é maior o perigo, maior é a
necessidade de entrar em acordo, com rapidez e facilidade, quanto ao
que é necessário fazer
12
.
O campo de estudo desta pesquisa foi delimitando nos ambientes de trabalho
dos pescadores das comunidades de Canoa Quebrada e dos Estevão, em
Aracati-CE, e de Redonda, em Icapuí-CE, entendendo que ambiente de trabalho
envolve também a relação do pescador com a natureza, extrapolando assim o
campo de relações econômicas inerente à pesca e à comercialização de seu
produto.
A pesquisa foi conduzida considerando, primeiramente, um estudo de caso
que permita investigar os objetos abordados (o repassar de saberes, a relação
com o meio ambiente, as relações de gêneros e intra-familiares, o corpo etc). Isso
foi feito através de entrevistas e do procedimento de observação participante,
intensificando o convívio cotidiano com as comunidades definidas.
As entrevistas tanto foram semi-estruturadas quanto informais, dada a
amplitude e diversificação dos locais em que a pesquisa se desenvolveu. Tais
procedimentos metodológicos e práticos, na pesquisa de campo, foram
fundamentais para embasar uma escrita historiográfica que também considerou o
contato com nova bibliografia no Mestrado em História da UFC (aulas teóricas).
Priorizei as entrevistas com pessoas que viveram os primeiros anos da pesca
comercial da lagosta (a partir de 1955). Os agentes sociais entrevistados foram:
-Melquíades Pinto Paiva, biólogo, professor aposentado da UFC. A conversa com
Melquíades Pinto Paiva se deu em 11-11-2004, por telefone, pois o professor vive
no Rio de Janeiro há 28 anos. Pinto Paiva é um dos fundadores do Labomar
reafirmação se for voltada para fora, para dialogar com o ‘outro’, com o diferente (Guatari/Rolinik).
12
NIETZSCHE,F., Além do Bem e do Mal, prelúdio a uma filosofia do futuro, Cia. das Letras, São
19
(Laboratório das Ciências do Mar da UFC) .
-Ezequiel Honorato dos Santos, 60 anos, pescador e morador dos Estevão,
recentemente deixou de pescar devido ao desgaste físico.
-Amadeu Pereira da Silva, 56 anos, também pescador e morador dos Estevão,
ainda em atividade.
-Genésio dos Santos Caraça, o ‘Tibiro’, 66 anos, morador de Canoa Quebrada, foi
um dos primeiros a intermediar a compra e venda de lagosta entre pescadores e
exportadores.
-Antonio Madureira, morador da Redonda (Icapuí-CE), 56 anos, era criança
quando a pesca industrial teve início, e tem um relato interessante sobre as
formas de armazenamento e escoamento do pescado.
-Margarida Pereira da Silva, 65 anos, moradora dos Estevão. Em uma conversa
informal, uma breve frase de Margarida chamou atenção pela maneira como uma
mulher via certas extravagâncias cometidas nos primeiros anos da pesca.
-Vicente Viana, 78 anos, morador de Canoa Quebrada. Faleceu em outubro de
2005, poucos dias antes da conclusão deste trabalho. “Sêo” Vicente foi, ao longo
dos últimos anos, um interlocutor importante, sempre disposto a falar sobre outras
épocas em seu bar, em Canoa, onde trabalhou na sua ultima década de vida.
-Luciano Rocha Freire, 52 anos, pescador nascido em Canoa e atualmente
morador dos Estevão. Luciano é um exímio construtor de jangadas e seus relatos
demonstram tanto a permanência de determinados saberes ancestrais
relacionados à pesca artesanal quanto às alterações ambientais mais evidentes
nas últimas décadas. Uma longa entrevista com ele é reproduzida como anexo
desta dissertação.
Os relatos colhidos juntos às fontes orais foram posteriormente cruzados
com a coleta de dados nas fontes escritas. Isso foi importante, sobretudo, para
confirmar e datar com exatidão o surgimento da indústria da pesca da lagosta
(1955), confirmado tanto pelas entrevistas quanto pelos jornais. Assim pode-se
demonstrar que o acontecimento histórico em torno do qual se passa esta
narrativa está relacionado com outros fatos de sua época, bem como estão os
“atores sociais” os “agentes sociais” aqui ouvidos
13
.
Paulo 2001, pp. 182.
13
Utilizo ambas as classificações por considerá-las complementares, sendo válido tanto o
conceito de ator social (caro sobretudo a Touraine) ou seja, aquele que participa de sua própria
20
As fontes orais e as fontes escritas foram confrontadas principalmente nos
dois primeiros capítulos, seguindo considerações que já expus sobre utilização
dos jornais. Quanto à utilização das fontes orais, ela não se deu como algo
meramente ilustrativo ou comprobatório das hipóteses iniciais. Os relatos orais
colhidos e reproduzidos nesta pesquisa serviram também para dar mais sangue e
alma à uma narrativa habitada de momentos que extrapolam a construções um
tanto idealizadas do perfil dos pescadores artesanais.
A escrita fria dos jornais aqui citados muitas vezes negligencia a presença
dos pescadores no estabelecimento da indústria da pesca. Esta é uma tendência
reprovável que vem de uma pseudo-escrita sócio-historiográfica que desde o
século XIX, no Ceará, quase tornou “invisível” as população indígena. É preciso
combater tais abordagens que ocorrem ainda hoje, quando, por exemplo, se
exclui os trabalhadores de certas ‘histórias’ do comércio cearense.
Esta dissertação se divide em três capítulos. Em praticamente todos eles
constam relatos de pescadores que vivem em comunidades e municípios do litoral
cearense. No primeiro capítulo da dissertação (“Anos de Pesca”), resumi o
estabelecimento da pesca com fins de subsistência e o início da indústria
capitalista da pesca da lagosta, que inseriram os pescadores artesanais num
universo de elações até então desconhecido para a maioria deles.
A intenção central do capítulo II é a emergência de um novo discurso que
surge a partir da “Guerra”: o da preservação ambiental visando proteger uma
espécie cuja produção passa, rapidamente, a ter valor agregado. O que se
mostrou ainda mais válido ao longo das últimas cinco décadas, quando a prática
da pesca ilegal e da devastação ambiental afetou (e afeta) diretamente as
populações do litoral. Ainda neste capítulo será analisado o papel que o estado
assume na fiscalização e regulamentação da pesca. A “Guerra da Lagosta”
possibilita compreender que na década de 1960 consolida-se no Brasil o processo
de acumulação capitalista decorrente da pesca industrial com fins de exportação.
Portanto, o que está por traz do conflito é, na verdade, o ingresso deste setor nas
lógicas de disputas comerciais internacionais.
História, quanto o conceito de agente social de Bourdieu, para quem o agente é aquele que faz a
História mas não padece dela, que age na História, não é agido por ela.
21
No terceiro capítulo constam algumas das alterações na cultura e no
trabalho dos pescadores artesanais posteriores à chegada da indústria. A História
Oral é, nesse capítulo, um dos eixos para se entender como os pescadores
reapropriam seus saberes diante de novos contextos. A intenção principal é
dialogar com outras disciplinas, em especial a Sociologia e a Antropologia, para, a
partir do que Diégues chama de “sócio-antropologia maritima”
14
, justificar a
necessidade de uma escrita sócio-historiográfica sobre os pescadores artesanais
de lagosta, onde eles participem diretamente dessa narrativa. Pois ouvir e
considerar o relato direto dos trabalhadores é não negligenciar com a realidade e
a própria vida. É considerar e respeitar a história dos trabalhadores que a
escrevem com suas mãos calejadas e a pele curtida pelo sol ao longo desses
anos de pesca.
14
DIEGUES, Antonio Carlos S., Tradição e Mudança nas Comunidades de Pescadores do Brasil:
Por uma Sócio Antropologia do Mar, in Pesca Artesanal: Tradição e Modernidade , III Encontro de
Ciências Sociais do Mar, Diegues, Antonio Carlos S.(org.),USP, São Paulo, 1989
22
I Capítulo
Anos de pesca
Neste capítulo, a intenção é a de dar voz a personagens vivos que
presenciaram os primeiros anos da pesca da lagosta. Também se tentará
compreender como a imprensa deu atenção à ‘novidade’. As diversas maneiras
como foram lidas as primeiras atividades do norte-americano Davis Morgan no
Ceará serão apresentadas numa comparação entre as notícias publicadas nos
jornais O POVO e O DEMOCRATA nos anos de 1956 e 1957, ambos importantes
periódicos que circulavam em Fortaleza. Ambas as referências (a oral e a escrita)
se completam no sentido de constatar que foi mesmo a partir do estabelecimento
deste americano em Fortaleza que se modificou indelevelmente o cotidiano de
milhares de trabalhadores da pesca e de suas famílias
15
. Antes dessa
abordagem, porém, se faz necessária uma breve cronologia da pesca no Brasil.
1- Antigas e novas relações sócio-econômicas e ambientais
O capitalismo e o comércio no Brasil “nasceram” no litoral. Para os
europeus, a América foi a segunda margem da expansão capitalista. Pela
margem atlântica americana escoaram e transitaram fortunas em forma de
madeira, açúcar, ouro, prata, cachaça e gente escrava. Ah, como Colombo
sonhara usar o ouro americano para retomar Jerusalém, numa Cruzada tardia.
“Território de ninguém”, o mar oceano deixou de ser abismo do mundo
15
Em 2002 existiam no Ceará, segundo o Ibama e o Ministério do Trabalho, cerca de 7.223
pescadores artesanais de lagosta em atividade num extenso litoral (são mais de 500 km). Trata-se
do maior número de pescadores em atividade num único estado, sendo quase a metade dos
pescadores artesanais de todo o país, que somam 15.792 (Ibama,2002). Em 2004 este número
foi superior a 8.600 pescadores
15
. Porém um estudo do Sistema Nacional de Empregos do Ceará
(SINE-DE), de 1989, afirma que em 1989 havia aproximadamente 60 mil pescadores em 18
municípios do Estado. Os números do Ministério do Trabalho são obtidos junto aos cadastros de
pescadores artesanais no Ministério do Trabalho para concessão do Seguro Desemprego no
período de proibição da pesca (janeiro a abril). A lei que regulamenta o Seguro Desemprego para
pescadores está reproduzida nos Anexos.Em 2002, os demais estados que contam com
pescadores artesanais de lagosta cadastrados no Seguro Desemprego são Rio Grande do Norte -
5.402-, Paraíba - 1.603 - , Pernambuco – 808 - , Espírito Santo – 321 - , Alagoas – 135 - e Bahia –
53 (FONTES: O POVO, 04/05/2003, SINE –CE e Delegacia Regional do Trabalho do CE, 2003).
23
eurocéntrico para lhe servir de estrada, caminho, porto seguro. A ‘segunda
margem’ tornou-se então portal de entrada e saída para exploração de riquezas
ao longo de séculos de colonização. O mar, que trouxe a todos os índios
americanos novos inimigos, com poderio material e imaginário para eles
desconhecido; pelo qual populações inteiras de africanos foram desterradas; o
mar, que de escatológico passou à ‘visão do paraíso’ .
Foi também por este mar aberto que se deu a fixação dos primeiros centros
urbanos e de pequenas vilas e localidades de populações mestiças de europeus,
indígenas e africanos, o que levou a uma das primeiras e ininterruptas atividades
econômicas do Brasil: a pesca. A despeito da propalada exuberância da fauna e
da flora nativa descrita por viajantes de então, há quem afirme que um povoado
‘mestiço’ em terra brasileira se mantinha exclusivamente da pesca – uma
localidade próxima à vila de Porto Seguro(BA) , habitado por brancos, negros
escravos e índios no século XVIII
16
. Essa atividade, resultante da necessidade de
sobrevivência e do intercâmbio de técnicas variadas, fez surgir emblemas como a
jangada
17
, combinação das balsas indígenas feitas de troncos de madeira com a
vela latina trazida pelos europeus que, por sua vez, a herdaram dos árabes.
Como onde há governo há controle (ou a intenção de), desde os
primórdios da colônia a produção do pescado era monitorada. Já nos idos de
1534, Duarte Coelho, Capitão hereditário de Pernambuco, baixou norma
decretando que “a décima parte de todo o pescado da Capitania de Pernambuco
ficaria com o Estado Colonial”
18
.
Mas onde controle há também resistência. No século XVII acontece a
revolta de pescadores contra o monopólio da produção de sal, ingrediente crucial
na conservação do pescado. Na região hoje limítrofe entre Ceará e Rio Grande do
Norte, nas ainda vastas salinas instaladas entre os atuais municípios de Macau
16
LIMA, Maria do Céu Formação das Comunidades Pesqueiras Marítimas no Nordeste do Brasil,
in DA SILVA, Maria Cecília Silvestre, Organização e Autonomia da Comunidade de Redonda,
Icapuí(CE) , dissertação de mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente do Programa de Pós
Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente(PRODEMA) da Universidade Federal do Ceará,
mimeo, Fortaleza, 2004.
17
NEVES, Berenice Abreu de Castro, Do Mar ao Museu, a Saga da Jangada São Pedro, Museu do
Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, Fortaleza, 2001A jangada é “derivada das
antigas embarcações indígenas quinhentistas denominadas piperisou igapebas(...). No século XVI,
(...)segundo Câmara Cascudo, é que vai aparecer pela primeira vez a denominação atual”.
18
GAMA, Fernandes, Foral de Pernambuco, ‘Memórias e Histórias da PROVÍNCIA de
Pernambuco , Recife, Arquivo Público Estadual, in DA SILVA Maria Cecília Silvestre, Op. Cit.
24
(RN) e Icapuí (CE), era intenso o contrabando de sal por pescadores que
burlavam a vigilância do Estado colonial visando baratear o custo da própria
produção. “Para o Nordeste, o monopólio do sal foi a mais inútil das leis
portuguesas”, afirmou apropriadamente Câmara Cascudo
19
.
A partir do século XVI foi recorrente a ação estatal no sentido de regular a
atividade dos pescadores. Mas somente no século XIX se deu a diversificação de
trabalho e ganho, propiciada pelo transporte de cargas:
“Na verdade, foram as mudanças na sociedade e na economia
nordestina – com o surto da produção algodoeira, com o aumento
demográfico da população livre, com a ampliação das condições e dos
serviços urbanos etc – que produziram algumas mudanças significativas
nas condições de trabalho dos pescadores, no século XIX”
20
.
Não por acaso vem também do século XIX a primeira listagem oficial de
todos os pescadores brasileiros, quando, em 1846, são criadas as Capitanias dos
Portos e Costas e os Distritos de Pesca. As Colônias de Pescadores surgiriam no
século XX, em 1919, e, assim como os Distritos, tinham como objetivo segregar
os pescadores para que servissem de reserva para Marinha de Guerra, mas
traziam um novo aspecto: reuni-los para melhor controlá-los, atendendo aos
interesses de quem detinha o poder econômico na pesca
21
.
Um fato que ilustra bem como se dá esse tipo de manipulação foi o
episódio conhecido como a saga da jangada São Pedro, quando, em 1941, quatro
pescadores cearenses partiram de Fortaleza para o Rio de Janeiro com intuito de
serem recebidos pelo presidente Getúlio Vargas e reivindicarem melhores
condições sociais para a categoria
22
. Sabe-se que o Diário do ‘Raid’ da Jangada
São Pedro não foi escrito por nenhum dos tripulantes, mas sim por Maria de
Oliveira Holanda, aristocrata filantrópica, então diretora da Associação de São
Pedro da Praia de Iracema, entidade a qual os pescadores eram filiados. Neste
Diário, os pescadores são idealizados como corajosos, bravos, patrióticos, ou
seja, dentro de estereótipos de agrado à ideologia do Estado Novo.
19
CASCUDO, Câmara, Aspectos Geográficos do Ceará Holandês, 1957, in DA SILVA, Maria
Cecília Id. Ibidem.
20
SILVA, Luiz Geraldo (coord.), Os pescadores na história do Brasil , VolI, Colônia e Império,
Recife, Comissão Pastoral dos Pescadores, 1988.
21
DA SILVA, Maria Cecília, Op. Cit.
22
NEVES, Berenice Abreu de Castro, Op. Cit.
25
O que se sabe é que no Diário do Raid “não há, em todo o material
manuscrito, uma crítica ao momento político em que o país estava mergulhado”
23
.
Essas apareceriam somente no que teria sido o “Diário de Bordo” que teria sido
escrito por um dos tripulantes da São Pedro, Manoel Olímpio Meira, o “Jacaré”. O
documento não teve destino conhecido, mas fragmentos seus foram publicados
em jornais da época enquanto os jangadeiros faziam seu percurso. Contrastando
com o “Diário do Raid”, o que sobrou do diário de Jacaré permitiu ao menos
conferir que a viagem não foi harmoniosa e tranqüila como se pretendia na
narrativa de Maria Oliveira Holanda.
Entre as reivindicações dessa primeira viagem encontram-se elementos de
resistência à introdução de novas técnicas de pesca ‘proto-industrial’, como a
utilização de rede de arrasto e uma divisão social que se acentuava, com os
donos de embarcações impondo maior participação no lucro resultante das
pescarias, e com os conseqüentes protestos dos pescadores. Pode-se afirmar
que então já era fundamental a defesa da pesca artesanal e da autonomia dos
pescadores em seu trabalho.
Os jangadeiros da São Pedro realizaram outros dois ‘raids’, em 1953 e
1958, com novas reivindicações de melhoria para o trabalho dos pescadores.
Vários ‘raids’ aconteceram posteriormente ao promovidos pelos jangadeiros da
São Pedro. Aqui cabe destacar o ‘raid’ que, em 1993, realizaram os pescadores
da Prainha do Canto Verde (Beberibne-CE). Eles foram de jangada ao Rio de
Janeiro, mas desta vez as reivindicações não foram apenas de origem trabalhista.
Os pescadores da Prainha tinham a intenção de chamar a atenção das
autoridades e da população em geral para problemas relacionados à devastação
ambiental registrada no mar nas últimas décadas, afetando diretamente seu
trabalho e sobrevivência.
Voltando à breve cronologia de estabelecimento de órgãos reguladores
da atividade dos pescadores, ainda na primeira metade do século XX se dá a
criação da Confederação Nacional dos Pescadores, em 1920, e a criação de um
estatuto único para as Colônias, em 1923. Somente depois dos anos de 1960
surgem novas ações do Estado e dos trabalhadores no sentido de regular a
pesca, notadamente com a criação da Superintendência do Desenvolvimento da
23
Id. Ibidem.
26
Pesca (SUDEPE), em 1962, e do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), em
1970, sendo este último um movimento nacional surgido no bojo das
Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) da Igreja Católica a partir de 1968
24
. O
CPP representava uma novidade: era o primeiro movimento de massa
organizado que pretendia reunir os pescadores sem a tutela do Estado.
Essas entidades, por si só, não explicam nem justificam a existência da
classe dos pescadores, pois, segundo afirma Marco Aurélio Garcia, lembrando
Hobsbawm, “a história das classes trabalhadoras engloba os sindicalizados e os
não-sindicalizados, os politizados e os não-politizados, os que fazem greve e os
que ‘furam’ greve”
25
. Mas essas entidades não deixam de ser importantes, pois
agem como intermediários com outros tipos sociais e com Estado, como diz
Hardman:
“A consciência de classe do proletariado não deve ser buscada numa
abstrata e ideológica operação de separar a ciência e a ideologia , mas,
concreta e materialmente , pode ser apreendida no exame das
instituições criadas pela classe (uniões , ligas, sindicatos, jornais,
partidos etc) e nas relações mantidas por essas diferentes instituições
com as classes dominantes, os setores sociais intermediários e o
Estado.”
26
O surgimento da hoje extinta SUDEPE
27
e do CPP se dão no contexto que
este trabalho pretende estudar: o período compreendido entre 1955 e os anos de
1980, ou seja, a partir do estabelecimento da indústria da pesca da lagosta no
Brasil (sendo o Ceará o Estado precursor) que proporcionou mudanças
significativas na vida das populações litorâneas, quando os problemas
decorrentes da atividade se consolidaram e ainda permanecem.
No caso dos pescadores da lagosta, isso tanto é verdade que basta se
ater a um dos mais freqüentes acontecimentos registrados em localidades
praianas do Ceará para constatá-lo. Mais recentemente a população de
comunidades litorâneas tem arrefecido esta luta, chegando inclusive a queimar
24
DA SILVA, Maria Cecília, Op. Cit.
25
GARCIA, Marco Aurélio, Tradição, Memória e História dos Trabalhadores,in O Direito à
Memória: Patrimônio histórico e Cidadania, Secretaria Municipal de Cultura, São Paulo, 1992.
26
HARDMAN,. Franciso Foot, Nem Pátria Nem Patrão, Editora Unesp, São Paulo 2002, pg. 39.
27
A extinção da Sudepe, nos anos de 1990, não significou a saída do Estado na regulamentação
da pesca, pelo contrário. Hoje a presença governamental se dá via Secretaria Especial de
Aqüicultura e Pesca (SEAP), criada em 2003 com status de Ministério.
27
embarcações apreendidas com equipamento de pesca ilegal
28
, uma prática
trágica que tem raízes na ultimas décadas.
Mas isso será visto a seguir. Antes, para não correr o risco de se limitar a
um anacronismo, é preciso seguir um conselho de Hobsbawm e recorrer ao
“retrovisor histórico” para melhor explicar um marco histórico: o estabelecimento
da pesca industrial de lagosta no Brasil a partir dos anos de 1950. É possível se
afirmar com segurança que a pesca industrial no país somente começa a ser
praticada a partir do advento da pesca da lagosta, nos moldes introduzidos pelo
americano Davis Morgan a partir do Ceará, como se verá mais detalhadamente
neste capítulo, nos itens “A descoberta do Ouro do Mar” e “Um americano em
Fortaleza”.
Veremos que a partir das ações de Morgan se inicia a formação e
acumulação do capitalismo industrial agregado a um novo ramo, a pesca da
lagosta, numa intensidade histórico-temporal que afetaria definitivamente o
trabalho dos pescadores artesanais. Isso será constatado, sobretudo, a partir dos
anos de 1960, quando cerca de duas dezenas de empresas se dedicavam
exclusivamente a esse tipo de pesca e a lagosta figura como importante item de
exportação do Ceará, conforme demonstra tabela a seguir
29
.
Tabela 1 – Produção de lagosta no Ceará e no Nordeste entre 1955 e 1980. A tabela
detalha a produção das duas espécimes de lagosta comercializáveis (p. argus e p.
laevicauda) – Fonte: Labomar-UFC/ Prof. Adauto Fontelene.
28
Aqui vale citar Scott: “As ‘explosões’ nelas mesmas são freqüentemente sinais de que as formas
‘normais’ de lutas de classes estão decrescendo ou entraram em crise”, SCOTT, James C.,
Formas cotidianas da resistência camponesa, Raízes, Campina Grande: UFCG , jan/jun 2002.
29
Conforme também edições de O POVO em 05 e 06-03-1963:
“EXPORTAÇÃO DE LAGOSTA NO CEARÁ RENDEU QUASE UM BILHÃO EM 1962”
“O consumo da lagosta no Ceará é quase nulo, segundo demonstram os dados estatísticos (...)
da Divisão de Caça e Pesca. A produção do crustáceo (explorada por cerca de uma dúzia de
companhias) durante o ano passado atingiu 1:303 quilos, sendo que 1.123.621 foram exportados.
“BRASIL EXPORTOU EM 62 QUASE 62 MILHÕES DE DOLARES EM LAGOSTA: CEARÁ
28
1955 88 29 32 11 120 40
1956 340 113 125 42 465 155
1957 759 253 279 93 1.038 346
1958 948 316 348 116 1.296 432
1959 1.352 451 496 165 1.848 616
1960 2.627 876 964 321 3.591 1.197
1961 3.819 1.273 1.401 467 5.220 1.740
1962 4.543 1.514 1.667 556 6.210 2.070
1963 3.902 1.301 1.432 477 5.334 1.778
1964 3.463 1.154 1.271 424 4.734 1.578
1965 2.567 856 1.124 375 3.691 1.230,33
1966 2.277 759 1.136 379 3.413 1.137,67
1967 2.532 844 746 249 3.278 1.092,67
1968 3.899 1.300 1.928 643 5.827 1.942,33
1969 5.624 1.875 2.612 871 8.236 2.745,33
1970 6.022 2.007 2.798 933 8.820 2.940
1971 5.444 1.815 2.107 702 7.551 2.517
1972 6.650 2.217 2.334 778 8.984 2.994,67
1973 6.412 2.137 1.901 634 8.313 2.771
1974 7.221 2.407 2.496 832 9.717 3.239
1975 4.933 1.644 2.347 782 7.280 2.426,67
1976 4.235 1.412 3.241 1.080 7.476 2.492
1977 6.024 2.008 2.762 921 8.786 2.928,67
1978 6.954 2.318 3.475 1.158 10.429 3.476,33
1979 6.543 2.181 4.020 1.340 10.563 3.521
1980 5.074 1.691 3.370 1.123 8.444 2.814,67
FONTE:
P.ARGUS-CE P. LAEVICAUDA-CE TOTAL-CEANO P.ARGUS-NE P. LAEVICAUDA-NE TOTAL-NE
A tabela acima demonstra que, a partir de 1955, a produção de lagosta no
Nordeste e no Ceará passa de incipiente à consistente devido a organização
industrial do negócio. A tabela 1 deixa claro que de 1955 a 1962 não se registrou
nenhuma queda na produção. A tendência de queda na produção anual somente
se imporia a partir de 1963 (não por acaso, o ano da “Guerra da Lagosta”). A
tendência de queda anual manteria-se, embora oscilante, até 1968, quando
cessaria e voltaria a crescer ano a ano até 1980, registrando quedas
insignificantes entre 1970-1971, 1972-1973, 1974-1975 e 1979-1980.
Melquíades Pinto Paiva sustenta que, “no tocante à pesca marítima, esta
se conservou com características puramente artesanais, num quadro geral de
primitivismo e abandono que até o advento da exploração lagosteira em 1955 e
suas naturais conseqüências”
30
. Paiva, fundador do Labomar (Instituto de
Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará/UFC), é categórico em dizer
que “é bem recente” a pesca industrial de peixes marinhos “em bancos fora da
plataforma continental cearense ou em águas costeiras da parte oriental do
Estado do Maranhão”
31
.
Essa afirmação técnica, além de importante, descortina uma nova era na
relação dos pescadores com o seu mundo do trabalho, até então marcado pela
mediação estatal e pela inexistência de uma lógica de produção industrial
capitalista no dia a dia.
ENTROU COM 2/3”
30
PAIVA Melquiades Pinto, Sobre os recursos pesqueiros do Estado do Ceará , Anuário da
Pesca, São Paulo, 1969
31
PAIVA Melquiades Pinto ,Op. Cit.
29
2-A ‘descoberta’ do “ouro do Mar”
A pesca comercial de lagosta é uma modalidade relativamente recente na
atividade pesqueira do Brasil. Pesquisadores concordam em afirmar que a pesca
da lagosta para fins comerciais teve início, no Ceará, em 1955, "utilizando típicas
embarcações de pesca artesanal do nordeste brasileiro, de baixo rendimento e
raio de ação muito limitado, que operavam usando côvos (manzuás) e gérérés”
32
.
Antes de prosseguir, é preciso frisar que, embora pareça óbvio, a pesca da
lagosta com fins industriais não foi o determinante para o surgimento de técnicas
artesanais de pesca. Essas vêm de bem antes dos anos de 1950, como foi
demonstrado, e antes mesmo do século XX. Mas a alta rentabilidade
proporcionada a partir da pesca industrial da lagosta permitiu que a prática
artesanal se mantivesse e que se alterasse seu caráter de subsistência.
Deve-se também esclarecer como as categorias “pesca artesanal” e
“pesca industrial” são compreendidas neste trabalho. Por artesanal entenda-se a
atividade onde a produção prescinde do uso de todo e qualquer equipamento
mecânico ou automático, como motores de combustão ou guinchos de
recolhimento de material, o que não significa que determinados equipamentos e
técnicas oriundas da prática industrial não se farão presentes. Adoto aqui uma
definição do Sistema Nacional de Emprego (SINE-CE):
“A pesca industrial é caracterizada pela concentração de investimentos
em instalações terrestres, operando com métodos e aparelhagem de
pesca mais modernos, utilizando-se de embarcações com maior
autonomia, cuja grande parte da produção é destinada ao mercado
externo.A pesca artesanal utiliza uma tecnologia bastante rudimentar e
de baixa produtividade, cuja produção varia desde a simples atividade
de subsistência até aquela que sofre o processo de comercialização e é
destinada basicamente ao abastecimento do mercado interno”
33
.
Um exemplo prático desta diferenciação é o do manzuá
34
(ou côvo,
32
PAIVA , Melquíades Pinto(org.), Pescarias experimentais de lagostas com redes de espera no
estado do Ceará, Brasil, Labomar, Fortaleza, 1973.
33
Plano Estadual do Desenvolvimento da Pesca do Ceará,- 1980-1985, SUDEPE, in FELISMINO,
Pedro Henrique de M., MOREIRA, Fernanda Mara Penaforte e SANTOS, João Bosco Feitosa
(elaboradores),A s Condições de Trabalho e as Repercussões na Vida e na Saúde dos
Pescadores do Estado do Ceara, SINE-CE, Fortaleza, 1989.
34
Embora tenha sido introduzido pela pesca idustrial na captura da lagosta, a armadilha se
assemelha a um cesto de palha de origem indígena que tinha esse nome, manzuá Fonte: site
30
espécie de gaiola utilizada para capturar lagosta, conforme figura 1, a seguir),
que surge com o advento da indústria mas que é utilizado também pelos
pescadores artesanais. Se num barco industrial o manzuá é retirado da água pelo
guincho, na pesca artesanal isso se dará pela força braçal.
FIGURA 1 :Pilha de manzuás. Fonte: UFBA
A modalidade artesanal é praticada por pescadores das localidades de
Canoa Quebrada e Estevão, no litoral leste do Ceará, que vivenciaram o período
inicial da pesca comercial da lagosta e, posteriormente, a abandonaram como
atividade prioritária com a chegada do turismo. Histórias narradas por pescadores
e pelos jornais da década de 1950 sobre a ‘descoberta’ do “ouro do mar” (como
é conhecida a lagosta devido aos altos preços de venda que o produto sempre
teve em comparação com outros pescados
35
), revelam aspectos ainda não
abordados pela historiografia, o que é uma das intenções desse trabalho.
Conforme relatos colhidos junto a alguns pescadores e armadores de
pesca, é recorrente a presença do empresário Davis Morgan como sendo o
responsável pela introdução de técnicas que levaram ao que Azevedo, Rivas e
Melo classificam como “pesca empresarial ou industrial (...) com fins de
exportação"
36
.
Afirma um pescador, morador dos Estevão, em Aracati: “O primeiro que apareceu
www.jangadabrasil.com.br.
35
Em 2003, por exemplo, o quilo da lagosta atingiu o valor de USS 26,00 (O POVO , 2003).
36
AZEVEDO, Roberto de, Rivas, Alexandre A. F. e Melo, Rosemeiry, Análise Econômica de
Produção da Pesca Marítima na Região Nordeste do Brasil: Periódo 1980 a 1988 , Labomar,
Fortaleza, 1989/90.
31
comprando lagosta era o Morgan. Ele foi o primeiro comprador de lagosta, foi ele.
Aí depois apareceu as firma, né?”
37
.
Confirma outro pescador, também morador dos Estevão: “Os primeiros
comprador [sic.] foi o Luiz Americano, também chamado Zé Gentil, o Sebastião
Ramos , o Andrade e o Morgan, da Companhia, ele era o dono da firma.Em 56 a
pesca da lagosta era local, a partir de 59 a gente pesca para as companhia”
38
.
Uma versão semelhante aparece no depoimento de um morador de
Canoa Quebrada, um dos primeiros compradores locais de lagosta para revenda
a empresas:
“A lagosta , quem começou a pescar em 56, foi o Erone e o Zé de
Jackson, que pescavam de gêrêrê. Eles vendiam para Antonio de
Adrião, do Córrego dos Rodrigues e ele vendia no Mercado Velho de
Aracati, para consumidor avulso. Depois de quase um ano apareceu um
americano chamado Morgan. De 57 para 58 veio outro americano,
chamado Bill, da Pro Marina. Tinha também o Luiz Guarani, que a gente
chamava de Americano. Ele era de Recife, era o Rei da Lagosta. O Luiz
abriu as praias até o Retirinho [hoje divisa Aracati-Icapuí], botava no
caminhão Ford e levava para Fortaleza direto, isso em 58”
39
.
Davis Morgan era um homem misterioso. Pouco se sabe sobe ele, a não
ser que era militar reformado dos Estados Unidos, empresário do ramo de pesca
em seu país e no Caribe e ainda não foi possível precisar quando de sua chegada
ao Brasil. Sabe-se que aportou no Ceará e logo constatou o potencial então
inexplorado da pesca da lagosta. Conta Melquidades Pinto Paiva, fundador do
Labomar e um dos primeiros a estudar a lagosta e a defender medidas de
proteção ao crustáceo: “Morgan era sujeito misterioso, quase ninguém sabia da
vida dele, ele não se deixava fotografar. Eu vi na realidade uma fotografia, ele era
cheio de macete. Ele nunca abriu a guarda pra ninguém”
40
. De fato, em vão
solicitei, por telefone e pela internet, informações sobre Morgan no consulado dos
EUA, em Recife, e na Embaixada dos EUA em Brasília. A falta de maiores
informações sobre ele não comprometeu o trabalho. Aqui não se pretende fazer
uma biografia de Davis Morgan, o que não significa que este não seria um
trabalho interessante para que se entenda mais sobre o perfil pessoal e
37
Ezequiel Honorato dos Santos, 60 anos.
38
Amadeu Pereira da Silva, 56anos.
39
Genésio dos Santos Caraça, o ‘Tibiro’, 66anos
40
Conversa com Melquiades Pinto Paiva, em 11-11-2004. A conversa foi por telefone .
32
empresarial do homem que teve participação decisiva para o incremento
econômico da indústria da pesca no Ceará.
Esse “sujeito misterioso” foi personagem central da História que modificou
não somente um segmento do mercado, mas também a vida e o cotidiano de
milhares de trabalhadores e de suas famílias. Inicialmente Morgan incentivou
pescadores das localidades de Caponga (Cascavel-CE) e Morro Branco
(Beberibe-CE) a capturarem lagosta
41
, estendendo suas atividades rapidamente
para outros municípios vizinhos, sobretudo Aracati (que na época encampava o
distrito de Icapuí, município emancipado somente em 1985). O americano
incentivou a utilização de um equipamento de pesca tradicional (o géréré
42
, ) na
captura de lagosta, e abastecia de gelo as praias que se dedicavam à pesca de
lagosta, recolhendo o produto num intervalo máximo de dois dias. Na época não
havia energia elétrica nas praias do interior do Ceará e, segundo Antonio
Madureira, morador da Redonda (Icapuí-CE), o gelo era conservado em caixas de
madeira, sendo coberto com serragem para que resistisse por mais tempo sem
descongelar
43
.
Todas as narrativas colhidas nesta pesquisa concordam ao dizer que,
antes da chegada de Morgan, não havia pesca da lagosta em larga escala voltada
ao mercado nacional ou internacional. Antes de 1955 a lagosta também não
aparece nos balanços de itens exportados pelo Ceará, publicados mensalmente
nos jornais da época. Segundo Mélquiades Pinto Paiva , “antes a lagosta não
valia nada. A primeira que estudei comprei na praça Jose de Alencar a 500 réis.
Antes era meia dúzia de sujeito que consumia e comprava na rua. Era usada
como isca para pescar cavala [Scomberomorus cavalla, espécie de peixe comum
no litoral nordestino]”
44
.
Muito diferente do que aconteceria nas décadas seguintes. Pouco mais de
30 anos depois, “em 1988, entre as 25 maiores empresas do Ceará(...)
destacaram-se três empresas de pesca ocupando respectivamente o 6
o
, o 18
o
e
o 23
o
lugares. Tem-se ainda que, no ramo de produção de alimentos, das 48
41
O POVO, 18-08-1956
42
O géréré (ou gêrêrê) é uma espécie de cilindro feito de rede e aros de metal ou madeira.
43
Madureira, 55 anos, conta que ainda não se conhecia o isopor . Segundo ele, a pesca da
lagosta em escala comercial na Redonda foi introduzida por Morgan em 1958. Antes as algostas
eram capturadas ocasionalmente, em redes e anzóis (entrevista com Madureira, 02-11-2004).
44
Entrevista com Melquiades Pinto Paiva, 11.11-2004
33
maiores empresas, 11 se relacionam com a pesca”
45
.
Os pescadores passaram então a lucrar mais do que o costume, o que
gerava novos ganhos. A lagosta ganha definitivamente a denominação de “ouro
do mar”
46
. Também seria pretexto para exploração dos trabalhadores, por parte
de empresários, e de certas extravagâncias por parte dos pescadores. Amadeu
Pereira da Silva, pescador dos Estevão (Aracati-CE) conta que no início da pesca
“o quilo da lagosta era 10 conto de réis, e o pescador ficava com 1 conto por
quilo”, ou seja, apenas 10% do apurado da produção. Ainda assim a afirmativa
leva a crer que era muito mais do que o que se faturava com o peixe.
Nesse sentido dois relatos são significativos. Primeiramente, Genésio
Caraça contou que “as companhia fazia assistencialismo, dava remédio,
transporte para o Aracati. Quando terminava a pesca ninguém tinha nada,
gastava nos cabaré, nas festas”
47
. Uma excentricidade apareceu na fala de uma
moradora dos Estevão: “Tinha um hôme aqui que chega enrolava cigarro em
cédula de dinheiro”
48
. Esses relatos demonstram como a introdução de uma nova
modalidade econômica influenciou o cotidiano das famílias que até então tinham
na pesca uma atividade de subsistência, circunscrita na definição clássica de
“setor primário” da Economia
49
.
Genésio dos Santos, o ‘Tibiro’, revela que o incremento na atividade
econômica também veio a suprir a presença (ou seria melhor dizer a ausência?)
do Estado no que diz respeito à assistência social. Se as companhias forneciam
remédios e transporte para a sede do município e isso permaneceu como
importante na memória do pescador foi porque de fato tratou-se de algo
significativo. Por mais que a memória esteja sujeita a preservar o que foi
desejado e não o que de fato aconteceu, aqui não parece ser este o caso, dadas
às dificuldades materiais a que sempre foram sujeitadas as localidades do interior
45
Quem é quem na economia do Ceará , O POVO, 28/02/88, in FELISMINO, Pedro Henrique de
M., MOREIRA, Fernanda Mara Penaforte e SANTOS, João Bosco Feitosa (elaboradores),id.
Ibidem.
46
Nesta pesquisa (com Amadeu Pereira da Silva, morador dos Estevão, por exemplo) e em
conversas informais com pescadores do litoral de Aracati e Icapuí a afirmação é recorrente e ,
obviamente, inspirou o título deste trabalho.
47
Genésio dos Santos Caraça, o TIBIRO.
48
Margarida Pereira da Silva, 63 anos, moradora dos Estevão.
49
Seriam três os “ setores básicos na economia de um país. O setor primário reúne as atividades
agropecuárias e extrativistas”, do verbete “Setores de Produção”, in SANDRONI, Paulo, Novo
Dicionário de Economia, Ed. Best Seller, São Paulo, 1994
34
do Brasil.
Cabanas também menciona a fartura registrada no início da pesca:
“ Em Canoa Quebrada nunca se pescou tanto,. As praias ficavam
repletas delas, as quais eram vendidas e consumidas de forma pouco
organizada. Época de muita fartura e dinheiro para os canoenses ”
50
.
Um breve e impressionante relato sobre a fartura da época vem de um
antigo pescador de Canoa Quebrada, que passou suas últimas décadas de vida
como dono de bar, Vicente Viana. ‘Sêo’ Vicente contou que “antigamente [leia-
se:antes da pesca em larga escala] se a gente entrasse no mar com uma roupa
branca e passasse as lagosta, elas atacava”
51
.Os relatos expostos até aqui
exigem um parêntese para reflexão. Os pescadores falam de uma época recente,
mas, em seu imaginário, trata-se de um passado distante, as narrativas sobre
essa época de fartura soam nostálgicas. Afinal, falam do “tempo do ouro”, bem
diferente do presente (2005) onde a pesca da lagosta está em franca decadência,
e grande parte dos pescadores das comunidades pesquisadas cessam ou
diminuem o esforço de trabalho meses antes de terminar o período legal de
pesca, compreendido entre maio e dezembro. Isso pode ser entendido
considerando o que se afirmou anteriormente sobre a memória: ela pode sim
indicar e elucidar um fato histórico importante para determinado agrupamento,
mas também pode criar mitos, como às vezes parece ser o caso do “ouro do
mar”. Em conversas com pescadores mais jovens ainda em atividade é nítida a
desilusão com o presente e a incerteza sobre o futuro. Ao ouvir esses relatos de
velhos e jovens pescadores, permeados por diferentes temporalidades, é preciso
concordar com o que Catorga disse em palestra recente: “As sociedades não se
recordam, são os indivíduos que se recordam a si próprios”. Cabe então ao
historiador, ainda segundo Catorga, resolver a questão da “confiança em quem
lembra” para obter o máximo de exatidão no que se está abordando
52
.
Nas histórias de pessoas que vivenciaram o período inicial da indústria da
pesca, é recorrente a narrativa de uma temporalidade que difere completamente
da crise atual por que passa o setor (ver tabelas nos Anexos). Em oposição a um
50
CABANAS, Luiz Carlos, Pequena História de Canoa Quebrada, mimeo, Fortaleza, 1990, pg. 17.
51
Vicente Viana, morador de Canoa Quebrada, faleceu em outubro de 2005, aos 78 anos.
52
CATORGA, Fernando, professor doutor da Universidade de Coimbra palestra proferida em 31-
35
presente cruel para quem vive da pesca de lagosta, percebe-se uma vontade de
fazer prevalecer uma temporalidade de memória positiva, que surgiu a partir do
incremento da pesca industrial iniciado por Davis Morgan em 1955, como se verá
a seguir.
3-Um americano em Fortaleza
Davis Morgan foi o precursor da indústria da pesca da lagosta no Ceará e
no Brasil, mas o fato de ser estrangeiro o prejudicou, em vários sentidos, nos
primeiros anos de sua atividade. Ainda nos anos de 1950 empresas estrangeiras
somente podiam explorar recursos da plataforma continental do Brasil
53
com fins
de pesquisa ou em associação com empresas nacionais. Com base na
Convenção sobre a Plataforma Continental, definida na Conferência de Genebra
sobre o Direito do Mar, em 1958, o governo brasileiro “restringiu a exploração
dos recursos naturais da plataforma continental aos nacionais, e condicionou a
sua exploração por estrangeiros à concessão expressa”
54
.
A ação de um estrangeiro pescando em mares locais não tinha amparo
legal. A reação foi imediata na imprensa. Mesmo em jornais com caráter liberal
como era O POVO, um dos primeiros a fazer referência sobre Davis Morgan,
havia reservas às atividades do americano. Na edição de 18-08-1956, O POVO
saía com a seguinte manchete e matéria:
“PROIBIDO AMERICANO DE PESCAR LAGOSTAS”
“Mr. Morgan já recolheu o ‘Albatroz’ e viajou para o Rio’
“Desde o ano passado , o americano Mr. Morgan vinha explorando a
pesca de lagostas nas praias de cascavel e Beberibe. O produto, na sua
quase totalidade, foi exportado para os Estados Unidos,
proporcionando-lhe bons lucros. Acontece porém que essa pesca era
ilegal, desde que ele apenas tivera licença para realizar pesquisas,
mesmo assim acompanhado por um funcionário da Divisão de Caça e
Pesca do Ceará. Aproveitando-se desse fato, Mr. Morgan realizou uma
pescaria clandestina em alta escala, empregando possante barco a
motor e redes de arrasto, coisa proibida pelo Código de Pesca”.
55
08-2005 em Fortaleza, na UFC.
53
Sobre delimitação da plataforma continental nacional, ver Anexos.
54
LESSA, Antonio Carlos, A Guerra da Lagosta e outras guerras: conflito e cooperação nas
relações França-Brasil(1960-1964), in Cena Internacional, Ano I, Numero 1, UnB,1999.
36
Embora com discrição, O POVO ressalva que Morgan realizava atividade
‘clandestina’ e deixa claro que ele não contava com licença governamental. O
americano de fato vai ao Rio de Janeiro, ainda capital do Brasil, e retorna cerca
de um mês depois com autorização para pesca, segundo o mesmo O POVO, de
22-09-1956:
“VINTE BARCOS PESQUEIROS PARA O CEARÁ”
“Chegará o primeiro ainda em setembro”
“Empreendimento de um americano, já com autorização do governo
brasileiro-Nacionalização após dois anos de atividades no Brasil”
56
.
Primeiramente o jornal faz uma análise conjuntural sobre a importância de
um novo ramo da indústria pesqueira e de um mercado ainda incipiente. Em
seguida, realça as ações de Davis Morgan com maior importância do que a que
fora dispensada um mês antes:
“20 BARCOS PESQUEIROS
Mr. Davis Morgan, sócio-gerente da Pan-América Industrial Associada,
homem que há mais de um ano vem se dedicando à pesca de lagostas
nas praias de Beberibe e Cascavel, em recente estada no Rio, propôs
ao governo brasileiro, através de canais competentes, trazer dos
Estados Unidos para este país vinte barcos pesqueiros. A proposta ,
depois de estudada pela divisão de Caça e Pesca, foi enviada ao
Ministério da Marinha que, antes de se pronunciar, fez várias exigências,
destacando-se, entre outras, a nacionalização dos barcos após dois
anos de permanência no Brasil. Mr. Morgan concordou sem objeção. A
frota, como já dissemos, se comporá de vinte barcos sendo quinze
pesqueiros, com câmaras frigoríficas, e cinco frigoríficos propriamente
ditos. Ainda este mês, chegara a primeira dessas embarcações. O
restante virá seguidamente.”
57
Percebe-se aqui uma clara reviravolta no discurso que antes tendia a
resistência às atividades do americano. Ele continua a ser respeitosamente
chamado de “Mr. Morgan”; é “sócio-gerente” de uma empresa, portanto, ‘legal’. É
“homem que há mais de um ano vem se dedicando à pesca de lagostas”, não
mais o praticante de atividade ‘clandestina’. Como em todas as matérias surgidas
posteriormente em O POVO, Davis Morgan é tratado com simpatia e até uma
certa benevolência. Afinal, trazia o “progresso” para um setor ainda não inserido
nas novas necessidades de uma época próspera e novidades, os anos de 1950,
55
O POVO, 18-08-1956.
56
O POVO, 22-09-1956.
57
Id. ibidem
37
como completa a matéria:
“RAIO DE AÇÃO
Esses modernos e bem equipados barcos terão largo raio de ação,
podendo realizar pescarias em todo o Nordeste, isto é, onde estejam
localizados cardumes das mais diferentes espécies. A base será
Fortaleza, o que não impede que eles, vez por outra, possam aportar em
qualquer outra capital e negociar os peixes apanhados. Nesta cidade,
muito se facilitará o comércio de peixe e Entreposto de Pesca, o qual
será inaugurado ainda neste ano”.
58
Antes de terminado o ano de 1956, O POVO cobria entusiasticamente a
chegada do primeiro dos barcos que comporiam a frota de Mr. Morgan. Na edição
de 08-11-1956, a manchete e matéria de capa anunciam:
“CHEGA AMANHÃ O PRIMEIRO BARCO PESQUEIRO”
Em estaleiros americanos outras 19 unidades - em vista o
barateamento do pescado.”
“É esperado amanhã nesta capital, o primeiro barco pesqueiro da firma
Indústrias Associadas da qual é sócio-gerente Mr. Davis Morgan, o
conhecido americano que pesca lagostas nas praias de Beberibe e
Cascavel. Conforme é do conhecimento público, Mr. Morgan conseguiu
autorização do Governo Brasileiro para explorar a pesca no Ceará. Para
isso adquiriu uma frota de vinte barcos pesqueiros para desenvolver
essa indústria em larga escala. (...) O restante da frota(...) virá logo em
seguida, pois em todos os barcos estão sendo montados modernos
equipamentos em estaleiros americanos”.
59
Pela primeira vez é anunciado concretamente o desenvolvimento “em
larga escala” da nova indústria da pesca da lagosta, que se utilizaria de
“modernos equipamentos” vindos de estaleiros americanos. Pelo menos por parte
da imprensa liberal, Davis Morgan não teria mais tratamento de ‘ilegal’ e
‘clandestino’, mas sim de empreendedor e pioneiro no desenvolvimento de
determinado setor ainda adormecido na região.
Assim a imprensa liberal dá inicio à elaboração e difusão de um discurso
onde o que vigorava era uma interpretação parcial sobre o que seria “moderno” e
onde já se anunciavam mudanças nas relações de trabalho na pesca. Uma
análise mais acurada dessas fontes vai revelar, posteriormente, que, nos jornais
dos anos de 1950 e 1960, é rara e mesmo nula a presença de pescadores
proferindo este ou qualquer outro discurso na definição sobre o que foi a
58
Id. Ibidem.
59
O POVO, 08-11-1956
38
‘modernização’ da pesca na ótica do trabalhador. Talvez isso se deva ao fato de
que, com a pesca industrial, veio também o aprofundamento da divisão do
trabalho da categoria, o fortalecimento da interposição dos negociantes entre os
produtores e o mercado, e as novas funções que passariam a ter a tecnologia.
A melhora na acolhida ao empreendimento de Davis Morgan pode ser
melhor compreendida considerando o contexto em que ela acontece: a década
de 1950. Num livro de Antonio Luiz Macedo e Silva Filho
60
, se constata que
Fortaleza não se diferenciou de outras grandes cidades brasileiras, onde se
iniciava, ainda na primeira metade do século XX, a formação de uma “sociedade
de consumo com todo o seu corolário de sedução e exclusão, conjugando o
desejo de parecer – e quando possível, ser – moderno”. Ainda mais se a
‘modernidade’ , se a ‘novidade’ viesse dos Estados Unidos, que adotam, nos anos
de 1940, a política de aproximação com a América Latina e, em especial, com o
Brasil
.
Ora, Fortaleza foi, ao lado de Natal, uma das bases americanas no
Nordeste brasileiro durante a Segunda Guerra e não são poucos os estudos
sobre este período e a influência da passagem dos militares pela cidade. O
próprio Morgan, pelo pouco que se sabe dele, era militar reformado nos EUA. Mas
como aqui a intenção não é traçar a biografia de Morgan, é melhor se ater a
observações de Silva Filho.
Segundo ele, houve “uma necessidade imperiosa de recorrer aos modelos
e às perspectivas estrangeiros como referendo para erigir o moderno na periferia
do capitalismo”, lugar do Brasil numa época em que a grande indústria apenas
começa a se estabelecer. A chegada de Davis Morgan e do novo aparato
tecnológico que seria o embrionário da pesca industrial no país, e a subseqüente
aceitação do americano e de sua atividade pela parcela liberal da sociedade pode
sim ser entendida no cenário proposto por Silva Filho, onde ainda prevalecia um
certo “estigma do colonizado” no contato com novos referenciais sociais ou
econômicos
61
.
Apesar da referência a Silva Filho, é preciso considerar que Fortaleza era
permeável à influência empresarial estrangeira desde o século XIX, quando se
60
FILHO, Antonio Luiz Macedo Silva e, Paisagens do Consumo:Fortaleza no tempo da Segunda
Grande Guerra, Museu do Ceará/Secretaria Estadual da Cultura e do Desporto, Fortaleza, 2002
61
Id. Ibidem.
39
deu o início do processo de “cosmopolitismo modernizante” (PONTE) na cidade.
“A base desse processo foi a dinamização das relações capitalistas, destacando o
estabelecimento de firmas estrangeiras. Foram tantas que chegaram a possuir, já
no início de 1870, 40% dos estabelecimentos comerciais então existentes”
62
.
Eram, sobretudo, empresas ligadas à exportação de algodão e produtos
agropecuários, mas também a incremento de negócios financeiros e a inovações
tecnológicas, como estradas de ferro e navegação. Entre essas empresas, Ponte
cita a Gradvhol & Filhos, a Boris Freres & Cia (fundada em 1868, com sede em
Paris), Benoit Levy & Dreyfyss, Felix Liabastres & Cia, e os negociantes britânicos
Robert Singlehustr, John Wlliam Studart, Hery Ellery, Alfred Harvey, Richard
Hugges e Chaley Hardy. “A produção historiográfica cearense(...) não tem dúvida
em considerar os empreendedores estrangeiros uma dádiva para a redenção
econômica, como também não olvida o papel exercido por tais grupos na
afirmação do processo civilizatório da Capital”
63
.
Mas se é verdade que nos anos de 1950se deu a consolidação da
moderna sociedade de consumo fortemente influenciada pelo modelo norte-
americano, deve-se considerar que os anos imediatamente seguintes à Segunda
Guerra são também os de emergência da chamada “Guerra Fria”, que por
décadas opôs o “Ocidente”, representado pelo capitalismo, ao “Leste”, tendo a
frente a União Soviética. Essa disputa teve reflexos no estabelecimento da
indústria da pesca da lagosta no Brasil, o que se constatou na pesquisa nas
páginas de O DEMOCRATA, periódico ligado ao Partido Comunista que circulou
em Fortaleza por cerca de 20 anos, até 1960
64
.
Desde o início das atividades de Morgan, O DEMOCRATA veiculou
acirrada campanha contrária ao americano, sob pretexto de estar defendendo
‘interesses nacionais’ contrariados por um ‘gringo’. Em sua edição de 26-06-1957,
numa matéria sobre sessão da Assembléia Legislativa, há o seguinte relato
sobre as atividades de Morgan:
“MORGAN SE COMPLETA: QUASE 800 MIL QUILOS DE LAGOSTA
EM UM ANO”
“O caso da exploração das nossas lagostas pelo americano Mr. Morgan
62
PONTE, Sebastião Rogério, Fortaleza Belle Époque . Reformas Urbanas e Controle Social
1860-1930, Fundação Demócrito Rocha, Fortaleza(CE), 1999.
63
Id. Ibidem.
64
Para saber mais sobre O DEMOCRATA ver dissertação de mestrado Imprensa Maldita-
1947/1948, de Ildefonso Rodrigues, ora em desenvolvimento no depto. de História da UFC.
40
foi também debatido na Assembléia, tendo o deputado Almir Pinto
declarado que somente no ano de 1955, 770 mil quilos de lagosta foram
pescados pelo citado gringo, comprado a preço de banana. Depois de
abordar a questão das possibilidades econômicas da lagosta, concluindo
por afirmar que ela pode ser uma boa fonte de divisas, o deputado
maranguapense apontou a necessidade do governo cuidar do assunto
procurando ele mesmo efetuar a pesca e a distribuição
65
.
Bem ao contrário de O POVO, O DEMOCRATA endossa discursos
defendendo a nacionalização de empresas do ramo pesqueiro e inicia campanha
contra o ‘estrangeiro’ que não deixava de ter uma forte carga xenófoba. Na
matéria seguinte, cerca de um mês depois de iniciada a campanha contra o
americano, O DEMOCRATA recrudesce . Em 25-07-1957 traz a seguinte matéria:
“AMERICANO AMBICIOSO E INCONSCIENTE DEVASTANDO
OS LAGOSTEIROS DO CEARÁ”
“Assume proporções verdadeiramente alarmantes a pesca da lagosta
levada a efeito em nossas praias pelo norte-americano Morgan. Se
providências acauteladoras não forem já e já tomadas pelo governo –
não tenhamos dúvidas!- o preciosos crustáceo desaparecerá fatalmente
do litoral cearense. Passará a ser mais uma espécie extinta. Porque, o
que o referido alienígena vem praticando entre nós não é propriamente
uma exploração pesqueira, como as que se realizam normalmente aqui
e alhures, com observância a medidas tendentes a resguardar a
continuação da espécie. Não! O que Mr. Morgan comete é, antes , uma
prática predatória . Na ânsia de obter lucros cada vez maiores, o gringo
passa acintosamente por cima de todos os regulamentos da Divisão de
Caça e Pesca do Ministério da Agricultura, entidade que estão afetas em
nosso país a regulamentação e fiscalização de tais empreendimentos.
Em Caponga e Morro Branco, (Cascavel) a lagosta é capturada
indiscriminadamente , durante todos os meses do ano, sem que se
observe a época da reprodução . Os espécimes , a princípio apanhados
em armadilhas , passam a sê-lo posteriormente em redes de arrasto ,
maneira indicada para conseguir facilmente o maior número possível ,
embora isso implique numa prática predatória. Desta forma, somente no
ano de 1956 ,foram apanhadas para mais de 800 toneladas daquele
crustáceo. Uma verdadeira devastação.
66
O teor da manchete expõe as intenções de O DEMOCRATA de
desclassificar a atividade empresarial de Davis Morgan e de tornar recorrente
discurso de intervenção governamental numa atividade privada. O ‘gringo’ Morgan
agora é “inconsciente e ambicioso”, os altos índices de produção obtidos por ele
são, ao contrário de “progresso” de um setor econômico, sinal de devastação. No
65
O DEMOCRATA, 26-06-1957.
66
O DEMOCRATA, 25-07-1957.
41
corpo da matéria do jornal reforça-se a acusação de que a prática instituída pelo
americano, embora passasse a ser legal, seria também predatória. Na mesma
matéria, a “denúncia” evidencia o quanto crescera a produção de lagosta e o
investimento tecnológico em menos de dois anos:
“UM ENTREPOSTO E DOIS PONTÕES”
67
“Ao que se alardeia, a pescaria de lagosta em Morro Branco atingiu nos
últimos meses proporções ainda não conhecidas. Mr. Morgan, sedento
de lucros cada vez maiores, estaria disposto a exterminar até o último
espécime existente naquelas praias a tal ponto que o gringo teve que
adquirir a Mormack dois pontões que [a] referida companhia de
navegação mantinha estacionados ao longo do Mucuripe, para o
transporte de lagostas. Segundo informações colhidas pela reportagem
deste jornal [as] ditas embarcações chegam aqui diariamente,
abarrotadas com toneladas e toneladas do pescado.Enquanto isso
fomos encontrar em pleno funcionamento , nas proximidades da antiga
Ponte Metálica, uma entreposta da “Pan-América” de Mr. Morgan, no
qual se achavam a trabalhar quinze homens. Locupleta-se Mr. Morgan ,
enquanto ameaça desaparecer uma fonte de riqueza de nosso litoral,
digna de melhor aproveitamento.”
68
Para concluir, a matéria de O DEMOCRATA de novo recorre à urgência
da intervenção estatal:
Diante dos fatos tão graves, urge, pois, que as autoridades e
associações as quais os caso se acha afeto, adotem enérgicas
providências no sentido de sustar os criminosos planos de Mr. Morgan.
Que o Governo do Estado, a Assembléia, as Colônias de Pescadores ,
entrem imediatamente em ação .
69
Desde o inicio das atividades de Morgan, “O DEMOCRATA” manteve
acirrada campanha contrária. A capa da edição de 25-07-1957 de O
DEMOCRATA, reproduzida na pagina a seguir, demonstra o quanto o jornal
dedica amplo espaço “as matérias onde as atividades de Morgan aparecem como
“maliciosas” e “inconseqüentes”.
67
“Pontões” era balsas usadas para transportar grande quantidade de cargas de uma só vez.
68
O DEMOCRATA, 25-07-1957.
69
Id. Ibidem.
42
Figura 2: capa da edição de 25-07-1957 de O DEMOCRATA
É interessante notar como uma outra manchete da capa acima dá conta do
43
caráter anti-americanista do jornal, motivada pela sua ligação com o Partido
Comunista Brasileiro e que influenciou a campanha contra Morgan. Trata-se da
matéria cuja manchete anuncia “Poderoso monopólio norte-americano avança
sobre a chelita do Nordeste. Uma imensa riqueza nacional em perigo de ser
absorvida pelo truste”. O anunciado da matéria deixa claro o anti-americanismo
característico de uma ideologia aliada à URSS. Mas nas entrelinhas das matérias
de O DEMOCRATA citadas até aqui estavam uma leitura que extrapola o
nacionalismo e a xenofobia. Elas também traziam um discurso que até então não
havia surgido e que ganhou mais destaque a partir dos anos de 1960: a
necessidade de preservação da espécime da lagosta. Embora não constassem
nos jornais balanços mesurando a relação da exploração de lagosta com a
redução de cardumes, já era evidente o prenúncio de escassez. Haverá, neste
trabalho, uma análise posterior sobre a emergência deste discurso ‘ambientalista’,
até por não ser esta a tônica principal de O DEMOCRATA e nem deste capítulo
da dissertação.
Parece claro que mais do que fazer uma defesa ‘ecológica’ ou meramente
nacionalista, a principal motivação de O DEMOCRATA seria influenciada pela
chamada Guerra Fria, que contrapunha os interesses políticos e econômicos da
União Soviética com os dos Estados Unidos, a maior potência econômica e bélica
do Ocidente. A última matéria contrária a Davis Morgan encontrada em O
DEMOCRATA traz trechos emblemáticos sobre esse aspecto e também quanto à
xenofobia, ao medo de tudo que é ‘estrangeiro’, em particular se o ‘de fora’
viesse dos EUA. Em 22-08-1957, O DEMOCRATA saí com a seguinte manchete
e matéria:
‘MR. MORGAN INTRODUZ ILEGALMENTE ESTRANGEIROS PARA
EXPLORA-LOS’
“Multiplicam-se atividades ilícitas do americano das lagostas—surge
agora o de uma família procedente da Argentina” “Novos estrangeiros
continuam entrando ilegalmente no Ceará, trazidos por Mr. Morgan, o
famigerado súdito ianque [grifo meu] em nosso estado vem
cometendo impunemente toda sorte de atividades ilícitas.Segundo
conseguiu apurar a reportâgem deste jornal, referido alienígena em dias
da semana passada providenciou a vinda para Fortaleza, através da
‘Panair do Brasil’, de uma família estrangeira residente em Buenos
Aires. Useiro e vezeiro[grifo meu] em matéria de calotes e falsificações
(ele é suspeito entre outras atividades tais, de receptar contrabandos)
Mr. Morgan tentou até burlar aquela companhia de aviação, procurando
fugir ao pagamento de um adicional que é cobrado nas passagens para
estrangeiros. Pretendia tirar as passagens como sendo para
44
brasileiros(...). “
70
A alcunha de “famigerado súdito ianque” reforça a hipótese de que a
motivação central de O DEMOCRATA em sua campanha contra Morgan era
movida pelo anti-americanismo. Ele, “useiro e vezeiro”, também seria “caloteiro”,
“falsificador” e “contrabandista”. O “alienígena” Davis Morgan também estaria
financiando a entrada de mais “estrangeiros” no Ceará para explorá-los como
supostamente fazia com trabalhadores brasileiros e os recursos naturais
nacionais.
Apesar da campanha acirrada de O DEMOCRATA contra Morgan, não se
registrou nenhum tipo de retaliação ou ingerência governamental nas empresas
do americano ou em outras empresas que surgiram depois do sucesso da Pan-
Americana na exploração de lagosta, muitas ligadas a empresários
estrangeiros. O que houve, de fato, foi a proliferação de empresas do setor nos
anos imediatamente seguintes a 1955. Em 1962, apenas sete anos depois de
Morgan lançar os alicerces da indústria pesqueira, a pesca era feita “em larga
escala por quase vinte companhias diferentes”
71
. Esta mesma notícia de O
POVO dá conta de que a maioria dessas empresas pertencia a “estrangeiros”,
sem dar maiores detalhamentos.
Se o nacionalismo e a xenofobia implícita defendida pelo O DEMOCRATA
não encontraram eco popular nem surtiram efeitos imediatos nos primeiros anos
da pesca da lagosta, o mesmo não aconteceria poucos anos depois, num
acontecimento (a “Guerra da Lagosta”) que contrapôs a França e o Brasil e quase
chegou a um conflito bélico militar. Nesse acontecimento, como veremos no
capítulo II, emerge novamente o discurso ‘ambientalista’, ‘ecológico’ que à época
não tinha tais denominações e que atenderam mais a anseios de empresários do
que de cientistas.
Essas ou outras conotações não esvaziam de sentido uma análise de tema
que se tornou tão atual e que será tratado adiante: a devastação e exploração de
cardumes de lagosta nas últimas cinco décadas e os reflexos negativos para
pescadores artesanais que adotaram a pesca do crustáceo como meio de vida.
70
O DEMOCRATA, 22-08-1957.
71
O POVO, 14-12-1962.
45
Também veremos que Davis Morgan abriu o caminho para a concorrência
ao implantar a indústria da pesca respeitando o que na Economia se chama de
teoria da Localização Industrial. Segundo esta teoria, o fator determinante para
que um setor extrativista se estabeleça com êxito é definido, antes de tudo, pela
“natureza do produto” e por sua exploração em seu local de origem
72
.
Morgan não teve como concorrentes apenas empresas locais. Os europeus
também foram atraídos, vieram disputar mercado e, sobretudo, território de pesca.
É o que se verá no próximo capítulo, onde se reforça ainda mais a tese de que
através de pesca da lagosta o Brasil se inseriu num nicho do capitalismo industrial
internacional onde o país estava ausente, mas que desde o século XIX era
desenvolvido pelos Estados Unidos(notadamente no Estado do Maine) e por
países europeus, sobretudo a França. Ou seja, em países onde tradicionalmente
a lagosta compunha a gastronomia local, ao contrário do Brasil, cujos cidadãos
consumiam pouca ou nenhuma lagosta. A inexistência do consumo interno pode
ser um dos fatores que explicam o ingresso tardio do Brasil no mercado
internacional de pesca de lagosta, mas sem dúvida não é o único. Muitos outros
surgiram, o que ficou ainda mais evidente a partir da “Guerra da Lagosta”.
72
Verbete “Localização Industrial”, in SANDRONI, Paulo, Novo Dicionário de Economia, Ed. Best
Seller, São Paulo, 1994.
46
Capítulo II
A “Guerra da Lagosta”
1- A guerra que não houve
A partir da década de 1960 ficou evidente a importância da pesca da
lagosta dentro do contexto capitalista mundial. E foi justamente nessa década que
surgiram o discurso de preservação ambiental e também os primeiros sinais de
revolta contra a atividade de pescadores clandestinos, sobretudo a partir de 1962
quando se registraram os acontecimentos que levariam, no ano seguinte (1963) à
“Guerra da Lagosta”, um conflito que envolveu o Brasil e a França no litoral do
Nordeste, na área em destaque no mapa abaixo.
MAPA II – Mapa do Brasil com destaque para área do litoral do Nordeste onde se
deram as movimentações militares na “Guerra da Lagosta”. Fonte:
http://www.mapas-brasil.com/index.html.
47
“Os jornais noticiaram amplamente os acontecimentos motivados pela
insistência de navios franceses em freqüentar a plataforma continental
nordestina”
73
. Atraídos pela então farta população de lagosta na costa brasileira,
os franceses reclamaram ao Itamaraty(chancelaria brasileira) vantagens
melhores. “Nessas conversações a parte francesa mostrou-se: contrária à
comercialização de lagostas como importação do Brasil, referindo que os direitos
cobrados na França em tal caso se elevam a 35%, e insatisfeita com a restrição
imposta à eventual participação sua no capital de sociedades mistas de pesca,
que não poderá exceder a 40%”
74
.
A “Guerra da Lagosta” foi além do que diz o lacônico documento da
SUDENE. Tratou-se sim de um conflito econômico, diplomático e militar sem
precedentes na relação do Brasil com a França. Como se viu antes, poucos
anos após o início das atividades de Davis Morgan foi crescente o número de
empresas capitalistas voltadas à pesca da lagosta. Também passou a ser
significativo o capital gerado a partir da exportação da quase totalidade da
produção do crustáceo, visto que o consumo interno era praticamente inexistente.
Isso não só significou o ingresso do Brasil num nicho do mercado capitalista
internacional onde antes o país não figurava como também atraiu atenção de
países produtores de lagosta, sobretudo a França.
Com a “Guerra da Lagosta” emergiram discursos xenófobos e nacionalistas
no Brasil. A “Guerra” não teve relação direta com o golpe militar de 1964, mas
como ocorreu exatamente um ano antes, via-se nele dois aspectos interessantes.
De um lado, a tentativa do governo João Goulart (Jango) de usar o episódio para
demonstrar controle da situação e, de outro, a intenção clara dos militares de
reforçar a confiança da população nas suas tropas.
A França, por sua vez, vivia momento histórico distinto, mas não menos
delicado. Os anos de 1960 representaram o começo do fim do colonialismo
francês. Até 1963, quando a Guerra da Lagosta chega ao auge, a França havia
perdido colônias na África, e, conseqüentemente, áreas marítimas onde explorava
e dominava a pesca.
Segundo o artigo A Guerra da Lagosta e outras guerras: conflito e
73
“Tentativas dos lagosteiros franceses no Nordeste”, Sudene, 1962.
74
Id. Ibidem.
48
cooperação nas relações França-Brasil (1960-1964), de Antonio Carlos Lessa,
“No decorrer de toda a década de cinqüenta, a pesca predatória
realizada no continente africano, sobretudo ao largo das costas do
Senegal, da Guiné e da Mauritânia, onde atuava grande parte da frota
especializada da França, levou ao esgotamento dos bancos lagosteiros
da região. Passando a pesca da lagosta nas costas brasileiras a
apresentar maiores perspectivas, barcos lagosteiros franceses
começaram a vir ao Brasil a partir de 1961 para, sem a necessária
autorização do governo brasileiro explorar a pesca do crustáceo sobre a
plataforma continental brasileira, na faixa que se estende ao largo dos
Estados de Pernambuco até o Ceará”.
75
No inicio de 1961 o governo Francês solicita formalmente ao governo
brasileiro permissão para que três barcos franceses (Gotte, Lopnk Ael e La
Tramontaine) pesquisassem as reservas lagosteiras do nordeste do Brasil. O
Itamaraty apoiou o pedido e conseguiu do governo brasileiro a autorização, desde
que o Comando Naval do Recife incluísse controladores de pesca da Marinha na
tripulação de cada um dos barcos franceses, condição que foi prontamente aceita.
Porém apenas dois barcos se apresentaram (La Tramontine e Olympic, sendo
que este não constava na lista original) e, paralelamente às atividades dos dois
autorizados, vários outros eram vistos pescando em águas nacionais, o que gerou
protestos de políticos do Nordeste e Federações de Pesca e dos Sindicatos de
Armadores
76
. Eles alegavam que, além de estarem pescando sem autorização,
os franceses saqueavam barcos brasileiros e roubavam materiais e produtos da
pesca, como se viu em O POVO:
IDENTIFICADOS OS BARCOS FRANCESES QUE ASSALTAM
PESCADORES CEARENSES - ‘Christine’, ‘Eliane’ e ‘Camaret’ seus
nomes- Indústrias de lagostas ameaçadas
“Dos barcos franceses que vêm atacando os pescadores de lagosta
cearenses, levando manzuás jogados ao mar (inclusive com o resultado
de vários dias de pesca), três já são conhecidos. Tratam-se de
‘Christine’, ‘Eliane’ e ‘Camaret’, barcos de aproximadamente 300
toneladas, dotados de modernos aparelhos e com tripulantes os mais
especializados em pescas internacionais. Esses barcos têm penetrado
em águas territoriais brasileiras e, no Nordeste, vêm causando a maior
apreensão em todos aqueles que se dedicam à pesca no mar.Sua
presença na costa cearense se constitui uma ameaça à própria
sobrevivência das companhias que se dedicam à pesca de lagosta, que
têm naqueles corsários franceses um desigual competidor(...)”.
77
75
LESSA, Antonio Carlos, A Guerra da Lagosta e outras guerras: conflito e cooperação nas
relações França-Brasil(1960-1964) , in Cena Internacional, Ano I, Numero 1, UnB,1999
76
Id. Ibidem.
77
O POVO, 03-08-1962.
49
O ultimo parágrafo da matéria de O POVO é bastante significativo no que
aqui se pretende comprovar: o conflito que se seguiu foi, antes de tudo, uma
disputa econômica, capitalista. Desde o primeiro momento de anúncio da crise,
ficou evidente que a vinda dos franceses era, mais do que ameaça à ‘soberania
nacional’, uma ameaça às empresas que já haviam se estabelecido na indústria
da pesca da lagosta.
Nessa mesma notícia vai aparecer o que neste capítulo também se
pretende priorizar: a emergência do discurso de preservação ambiental, ainda
que este tivesse conotações econômicas.
78
A Marinha passou a patrulhar a costa do nordeste, até que os primeiros
barcos são apreendidos com uso de força
79
. Nos primeiros barcos apreendidos
era claro o contraste da disparidade tecnológica entre a indústria da pesca dos
dois países. Enquanto havia menos de uma década que os armadores brasileiros
tiveram contato com novas tecnologias e onde a maior inovação era a introdução
de câmaras frigoríficas nos barcos, de armadilhas (manzuás) e do guincho para
seu recolhimento, os armadores franceses eram bem mais sofisticados. Seus
barcos eram verdadeiros navios e, além de frigoríficos, tinham viveiros internos
onde a lagosta era mantida viva para assim ser exposta aos consumidores em
restaurantes daquele país. Uma notícia de O POVO esclarece o quanto a frota
nacional tinha tecnologia ainda incipiente se comparada aos franceses:
“OUTROS EXISTEM
Há denúncias de que o número de iates franceses operando na costa do
Ceará seja superior a quatro. As facilidades que encontraram para
desenvolver no nosso litoral o trabalho clandestino e criminoso deu
origem a que outro número esteja atuando numa faixa muito mais ampla,
cobrindo toda a extensão da costa nordestina.Os barcos são dotados de
aparelhagem completa, modernos frigoríficos, além de radares. Seus
tripulantes são altamente especializados neste sistema de pesca.”
80
A reprodução das fotografias dos barcos apreendidos, a seguir, é
significativa para se entender a disparidade tecnológica entre as embarcações
78
“PROGNÓSTICOS PARA A PESCA NO NORDESTE: Se continuar a ação dos barcos
franceses o futuro da exportação de lagosta no NE estará comprometido pela exploração racional
[sic] dos recursos. Os franceses(...) estão tentando adotar rapidamente frente à costa do Nordeste
Brasileiro a mesma política predatória posta em prática na costa de Portugal e da costa africana
(...) , pescando de arrasto sem obedecer nenhuma norma de conservação de recursos.” O POVO,
03-08-1962.
79
“APREENDIDOS OS BARCOS PIRATAS” O POVO, 06-08-1962
80
O POVO 03-08-1963.
50
francesas e as brasileiras.
Figura 3
A pouca nitidez das fotografias se devem ao estado da edição de O
POVO nos arquivos, mas as figuras demonstram o que o potencial dos barcos
de pesca franceses apreendidos, de casco de ferro, era incomparavelmente
superior a dos locais, de madeira. A comparação das embarcações deve ter
suscitado o discurso de que a pesca, no Brasil, ainda era “atrasada” por utilizar
de tecnologia diferente da de seus concorrentes.
Pode-se refletir que, implicitamente, o que preocupava aos armadores
brasileiros era a disparidade entre a qualificação e as diferenças entre
pescadores brasileiros e franceses, estes tendo acesso a equipamento e
tecnologia mais avançada e a outros referenciais de organização e relação
trabalhista. Caso fosse admitida a concorrência, os empresários locais teriam
de mudar um planejamento de investimentos tecnológicos, o que certamente
alteraria a perspectiva de lucro.
Também deve ter preocupado às empresas brasileiras a possibilidade de
contato de seus trabalhadores com pescadores estrangeiros. A relação capital-
trabalho praticada na pesca industrial no Brasil era, muitas vezes, informal, e o
vínculo empregatício era precário, sendo mantido enquanto fosse período de
pesca. Tais práticas eram frutos de uma atividade recente, mas perduraram até
os dias atuais, onde a perspectiva de lucro da empresa ainda se sobrepõe aos
51
direitos e garantias para os trabalhadores
81
.
A “Guerra da Lagosta” foi um conflito econômico, uma disputa de mercado
encarada pelos produtores locais com temor, e essa foi a motivação para que os
capitalistas nacionais e a imprensa liberal exigisse a intervenção do Estado. Este
compareceu logo, e deu outras nuances à “Guerra”.
A pedido do Quaid´Orsay (chancelaria francesa), os barcos são liberados
dois dias depois, sob a condição de que a França impedisse a vinda de novas
embarcações até que “uma fórmula de compromisso fosse acertada”
82
. Nos
meses seguintes a França insistiu que a exploração de lagosta no Brasil fosse
arbitrada por uma Corte Internacional, proposta rechaçada pelo Brasil, que por fim
cassou a licença dos barcos de pesquisa. Ao receber o comunicado oficial do
governo brasileiro sobre a cassação da licença, o governo francês reage
energicamente e decide enviar um navio de guerra (o contratorpedeiro ‘Tartu’)
para resguardar as atividades de seus lagosteiros no nordeste brasileiro. De
econômico e diplomático, o conflito ganha uma nova dimensão, a militar.
O comunicado oficial do governo francês sobre o envio do ‘Tartu’ chega ao
Itamaraty em 21-02-1963, quinta-feira da semana do Carnaval daquele ano. O
embaixador do Brasil em Paris, Carlos Alves de Souza Filho, é orientado a manter
audiência com o presidente francês, general Charles De Gaulle, e tentar demovê-
lo da intenção de se enviar uma belonave ao Brasil. Souza Filho é prontamente
recebido por De Gaulle, que não determina o retorno do navio de guerra, mas
promete “ocupar-se pessoalmente do assunto”
83
.
A reação na imprensa brasileira é imediata, e desde o início da contenda
surgem os primeiros discursos ufanistas por parte dos militares, vangloriando-se
da suposta força e competência das forças armadas brasileiras, como se lia na
manchete de O POVO:
“MINISTRO SUZANO E O CASO DOS BARCOS FRANCESES: A
MARINHA PREPARADA PARA O QUE DER E VIER
O titular da Pasta Naval recebido por almirantes e oficiais- Navios
patrulham as costas e farão com que a decisão do governo brasileiro
81
Fora do ‘’ defeso, as empresas demitem os pescadores que somente são readmitidos quando
do retorno da pesca. FELISMINO, Pedro Henrique de M., MOREIRA, Fernanda Mara Penaforte e
SANTOS, João Bosco Feitosa (elaboradores), A s Condições de Trabalho e as Repercussões na
Vida e na Saúde dos Pescadores do Estado do Ceara, SINE-CE, Fortaleza, 1989.
82
LESSA, Antonio Carlos, Op. Cit.
83
Id. Ibidem .
52
seja respeitada- Jango recebeu com surpresa e pesar a atitude
francesa.”
84
Na mesma edição de O POVO, um articulista do jornal demonstrava como
se dava a reação fora dos círculos institucionais, não sem a carga xenófoba que o
conflito passaria a ter. A chamada do texto de Assis Tavares era implacável e
clamava: “Franceses expulsos antes de liquidarem a nossa lagosta”.
Para o articulista, a liberação de barcos apreendidos era “um desrespeito à
nossa soberania. Mas não apenas neste erro incorreram os franceses. O governo
francês diz que as lagostas encontradas nas costas nordestinas do Brasil são
originárias da França. A lagosta, para eles, representa uma boa fonte de divisas
para a França, que não tem concorrentes na exploração de lagostas no Mercado
Comum Europeu”
85
.
A mobilização das frotas navais brasileira e francesa tem início, como fica
evidente na matéria de 27-02-1963
86
. A edição do dia seguinte de O POVO, de
28-03-1963, é a mais impressionante. Praticamente toda a capa é dedicada à
“Guerra da Lagosta”, mais uma página interna, com matérias emblemáticas do
episódio. A capa dessa edição era significativa e merece ser reproduzida, a
seguir.
Figura 4: Capa da edição de O POVO em 28-03-1963
84
O POVO, 23 e 24-02-1963
85
Id.Ibidem.
86
O POVO, 28-02-1963. A noticia era “ A fragata francesa ‘ Paul Coffeny’, de mil toneladas,
partiu de Dakar segunda-feira em direção ao Nordeste a fim de substituir o contratorpedeiro
‘Tartu’, de 2.750 toneladas. (...) . Apesar do sigilo da Marinha Brasileira, sabe-se que seguriam
para o Nordeste os contratorpedeiros ‘Greehhaulgh’ e ‘Para’. O Ministério da Aeronáutica deslocou
para a segunda Zona Aérea, sediada no Recife, aviões P-16, pertencentes ao 1º Grupo
Embarcado. ”
53
Embora este trabalho recorra frequentemente à reprodução de trechos e
manchetes de jornais, procurou-se fazê-lo destacando as mais importantes entre
os inúmeros textos copilados dos arquivos da Biblioteca Pública Estadual
Menezes Pimentel (Fortaleza-CE). Creio que a figura anterior demonstra bem
isso. Durante os meses de fevereiro e março de 1963 a “Guerra da Lagosta”
aparecia em praticamente todas as capas das edições diárias de O POVO.
Em duas matérias da edição de 28-02-1963 constam os primeiros
movimentos do então presidente João Goulart no sentido de controlar a situação
e demonstrar que era ele o comandante das Forças Armadas
87
. Foi uma reação
87
A matéria era a reprodução clara de uma nota oficial, com os seguintes termos: “O Chanceler
Hermes Lima encontra-se em Brasília para relatar ao presidente João Goulart o desenrolar das
54
áspera de João Goulart que havia poucos dias centralizava todo o poder de
governo na Presidência, depois de cerca de dois anos de regime parlamentarista.
Assim ele entrou no jogo se contrapondo não só aos franceses, mas também aos
militares. O mesmo Goulart que, pouco mais de um ano depois, seria derrubado
do poder pelo mais duradouro (1964-1985) e violento movimento ditatorial que o
Brasil viveu (ver item 3 deste capitulo).
A mesma matéria indica que De Gaulle toma medidas semelhantes às de
Goulart para demonstrar controle da situação e do seu próprio governo. O general
“suspendeu a vinda ao Brasil da delegação de senadores franceses que estava
sendo esperada hoje em Recife, em visita de cortesia”
88
. De fato, uma visita de
representação oficial da França só se daria em 1964, quando o próprio De Gaulle
viria ao Brasil, sendo recebido em Brasília pelo general Castelo Branco, primeiro
dos militares a assumir o poder durante a ditadura. Diplomacia francesa ou um
gesto de apoio à ditadura, sobretudo após o atrito com o governo civil no ano
anterior?
Ainda nesta edição, O POVO especula que os motivos para a deflagração
da “Guerra da Lagosta” extrapolavam o conflito diplomático ou a demonstração
de poderio militar, e que o fator econômico era determinante. Segundo o jornal, “o
interesse do governo francês se deve ao fato de grupo de deputados bretões ter
investido 14 milhões de dólares na pesca da lagosta”
89
.
A suposta iminência de guerra é terreno fértil para que as Forças Armadas
se mostrem como organizadas e com rápido poder de mobilização
90
. A exemplo
da Marinha e da Aeronáutica, o Exercito brasileiro assume o conflito como ‘afronta
aos interesses nacionais’, e também se pronuncia: “Ouvido na manhã de hoje
pela reportagem, o comandante da 10ª Região Militar, general Almério de Castro
negociações Brasil- França com perspectivas de solução que agora vão desde exploração
conjunta da lagosta mediante acordo e sem prejuízo da economia nacional até a ação enérgica da
parte do governo brasileiro junto à ONU e à OEA para impedir qualquer medida de forças por
parte dos franceses.(...) O Presidente da República teve conhecimento pelo ministro da
Aeronáutica de que um avião da FAB em vôo normal de patrulhamento do litoral localizou um
navio de guerra francês (...) a 90 milhas da costa.(...) Sob a presidência do sr. João Goulart, está
reunido hoje o ministério na primeira reunião desde a restauração do regime presidencialista. Uma
fonte do Palácio do Planalto indicou que o litígio franco-brasileiro é o ponto principal da agenda da
reunião.” O POVO, 28-02-1963.
88
O POVO, 28-02-1963.
89
Id. Ibidem.
90
O POVO, de 01-03-1963, estampava: “ ‘EXPECTATIVA NAS UNIDADES MILITARES NO
CEARÁ: MOBILIZAÇÃO GERAL E FÁCIL’.
55
Neves, referindo-se ao rumoroso caso da lagosta(...) afirmou que se preciso for
uma operação terrestre o Exercito estará preparado para agir com todo o seu
dispositivo bélico
91
”.
A disposição do Exército em tomar a frente do movimento seria a mesma
demonstrada em 1964, quando encabeçaria as primeiras ações que culminariam
com o golpe militar. Portanto, não poderia esta arma ficar à margem ou à sombra
das outras no caso da ‘Guerra da Lagosta’.
Diante da reação brasileira, a França não desmobiliza seu efetivo militar
deslocado para o Nordeste e que escoltava seis lagosteiros franceses a cerca de
120 milhas da costa, fora das águas brasileiras
92
. Mas o governo francês
apresenta duas propostas: fazer com que empresários da pesca no Brasil
alugassem barcos bretões e que comprassem a produção desses barcos a
preços reduzidos, além de criar companhias de capital misto franco-brasileiro para
exploração dos recursos no litoral nacional.
O governo brasileiro rechaçou essa proposta por considerar que sua
aceitação seria o mesmo que admitir o direito francês a exploração de recursos
naturais nacionais. Sobretudo tratando-se de um recurso como a lagosta que, nas
edições de 01-03-1963 e de 06-03-1963 de O POVO, aparece com importância
econômica para o Ceará bem maior do que tinha cerca de oito anos antes,
quando de implantação da pesca industrial.
93
Numa dessas matérias aparecem interessantes declarações de
representantes governamentais sobre a necessidade de se estabelecer normas
rígidas para captura e comercialização da lagosta. “O diretor da Divisão de Caça
e Pesca, dr. Sebastião Ramos, acrescentou que um perigo interno (maior do que
podem apresentar os franceses do ponto de vista de exterminar a espécie)
consiste na desobediência das companhias lagosteiras às leis brasileiras – que
capturam o crustáceo do tamanho de um camarão quando a lei determina que o
tamanho mínimo seja de 18 centímetros. ”
94
91
Id. Ibidem.
92
Somente em 1970 o Brasil estende seus limites marítimos para 200 milhas, LESSA , Antonio
Carlos, Op. Cit. Para melhor entender o processo de expansão das águas territoriais nacionais,
ver também ANEXO no final da dissertação.
93
O POVO,05 e 06-03-1963.
94
O POVO, 01-03-1963
56
Novamente se percebe a emergência do discurso ambientalista calcado na
importância econômica do pescado. Essa notícia também dá conta de como a
produção desenfreada de lagosta causou redução nos cardumes nessas ultimas
cinco décadas. Enquanto que em 1963 o tamanho mínimo para captura e
comercialização era de crustáceos com pelos menos 18 cm de cauda, a medida
seria de apenas 13 cm em 2004.
O impasse continua nos dias seguintes, até que surge o primeiro sinal de
que a “Guerra da Lagosta chegaria ao fim. No dia 04 de março o POVO traz
matéria onde se prenunciava a desmobilização de efetivos militares de lado a
lado
95
. Mas a trégua duraria apenas uma semana, até que a França
recrudescesse seu posicionamento e reforçasse sua frota que guardava os
lagosteiros havia mais de 10 dias. Neste pequeno intervalo, outros
acontecimentos misteriosos pululavam na imprensa. O que chamou mais atenção
foi o de ataques de submarinos de nacionalidade desconhecida a barcos
pesqueiros no Rio Grande do Norte. Na edição de 02 e 03-03-de 1963 O POVO
alardeava: “Submarino misterioso nas águas do rio grande do norte - À pique
barco brasileiro”
96
.
A história era mesmo mirabolante, ainda mais porque foi narrada por um
pescador vítima do ataque, e por ter ocorrido alguns dias depois de um outro
submarino ter surgido e desaparecido misteriosamente no Rio Grande do Norte.
Vale a pena reproduzir trecho da matéria por se tratar do único momento em que
de alguma forma aparece, na imprensa, a fala de um pescador narrando um
episódio da Guerra da Lagosta”, pois que foi rara ou mesmo inexistente a
participação direta de pescador no conflito, como se verá adiante. A matéria era a
seguinte:
“BARCO LAGOSTEIRO BRASILEIRO DESTRUÍDO POR SUBMARINO
DESCONHECIDO: NATOL!”
95
Vale a pena reproduzir trecho desta matéria de O POVO,de 04-03-1963: “ ‘BAEPENDI’
DEIXOU FORTALEZA: NORMALIZA-SE A SITUAÇÃO” “Praticamente superado o impasse que
envolveu o Brasil e a França na questão da lagosta, determinou o Ministério da Marinha a
suspensão do dispositivo armado para impedir a penetração de barcos de guerra franceses nas
águas territoriais nordestinas. (...) Como efeito dessa normalização, o contratorpedeiro Baependi ,
que chegou a Fortaleza desde o início da crise, deixou na manhã de hoje o Mucuripe. (...)
Também nos quartéis das unidades militares a situação se normaliza; (...)O embaixador da
França, sr. Jacques Bayens, esteve hoje no Itamarati. Durante cerca de meia hora de palestra foi
reafirmada a disposição em que se acham ambas as partes de encontrar uma solução para as
dificuldades porque atravesam as relações entre o Brasil e a França”.
96
O POVO, 02 e 03-03-1963.
57
NATAL (URGENTE)- Um barco lagosteiro brasileiro foi posto a pique na
noite de ontem por um submarino de nacionalidade desconhecida nas
proximidades do farol da Ponte, nesta capital.
Um sobrevivente contou que às primeiras horas da noite sua
embarcação foi surpreendida no mar por um submarino que emergiu
lançando uma forte luz. (...) Em seguida homens desceram num bote de
borracha, armados de metralhadoras, e o empuraram para o mar.
Enquanto ele nadava para fora, os estrangeiros destruíram seu pequeno
barco lagosteiro e o empurraram para o submarino, que logo submergiu.
Disse ainda o pescador: --“Nada pude entender do que eles falavam”. O
estranho fato está sendo estudado pelas autoridades navais. (...)A
Capitania apura o fato lembrando que é o segundo caso do gênero, pois
o mês passado outro pescador fora abrodado pelo pesqueiro ‘Marselha’,
tendo seu barco sido destruído.”
97
O caso seguiu sem esclarecimento e, nesse período, a imprensa brasileira
aproveitou para fazer um pequeno balanço, não sem toques de nacionalismo e de
ironia. Com a manchete “Nada de novo no ‘front’ da lagosta; o Itamarati espera
notícias de Paris”, uma matéria de O POVO dava conta que era evidente que a
“Guerra da Lagosta” ganhara dimensão nacional. O conflito repercutiu em vários
jornais do país, não se restringindo à imprensa do Nordeste, em cujos mares o
conflito se desenrolava
98
.
O espaço para ufanismo e galhofa durou pouco. Ainda em 07-03-1963 O
POVO anunciava que o conflito não chegara ao fim:
“GOVERNO FRANCÊS RESOLVEU NÃO RETIRAR A FRAGATA ‘
GOFFENNY
RIO,07- (TRANSPRESS)- Notícias chegadas de Paris informam que o
Gabinete francês resolveu não retirar a fragata Paulo Goffenny e os
pesqueiros que se encontram a 110 milhas da costa do Nordeste. Em
Brasília uma fonte da Marinha disse que os pesqueiros franceses estão
sendo abastecidos de víveres e combustíveis em algum ponto da
América do Sul e que foi verificada a movimentação de navios para o
local, o que indica que os franceses pretendem permanecer por tempo
indefinido.”
99
97
O POVO, 02 e 03-03-1963.
98
A notícia completa era: “São os seguintes os comentários dos jornais sobre a ‘guerra da
lagosta’. ‘Estado de São Paulo’: ‘ É o próprio autor que delibera retirar da cena a comédia que
estava montada. Não nos felicitemos(...) porque a retirada dos navios não consegue delir a mágoa
que o ato irrefletido do general De Gaulle nos causou’. De ‘Ultima Hora’: ‘ Não há dúvida de que
ganhamos uma batalha política internacional. As lagostas são nossas’. – ‘A Hora’, de São Paulo: ‘
A guerra da lagosta chega a seu final. Muito riculo , muita vontade de dizer bobagens e ainda de
fazê-las.’. – ‘Diário de Notícias’: ‘Prevaleceu o bom senso reduzindo o incidente a justas
proporções. Houve uma espécie do que se convencionou chamar , humoristicamente entre nós,
de batalha de ‘Itarararé’. – ‘Correio da Manhã’: ‘ Nos corredores do Itamarati línguas maliciosas
diziam que é grande a correria dos empistolados para cavar uma vaguinha na delegação brasileira
que assinará a paz das lagostas em Versalhes”.
99
O POVO, 07-03-1963
58
Esses acontecimentos demonstraram a descordenação do governo
brasileiro. As orientações desencontradas recebidas pelo embaixador Alves de
Souza em Paris neste período fizeram com que ele pronunciasse a célebre frase
“o Brasil não é um país sério”, colhida em entrevista ao jornalista Luiz Edgar de
Andrade, que trabalhava como correspondente do Estado de São Paulo em
Paris. A frase, porém, é atribuída a De Gaulle, segundo sustentou anos depois o
mesmo jornalista.
100
Em vez de findado, o conflito aparentava estar no auge, e continuavam
mobilizados os militares brasileiros. A guerra seria iminente, pelo menos para O
POVO, que afirmava:
“AGRAVA-SE A CRISE FRANCO-BRASILEIRA: TODA A MARINHA
EM RIGOROSA PRONTIDÃO.
1-Governo francês decidiu não atender a exigência do Brasil de retirar o
vaso de guerra ‘Paul Goffeny’ do Nordeste.
2-O Ministro da Informação da França, Mr. Allain Peyrefitte, declarou,
laconicamente, que ficam suspensas negociações acerca do litígio
proveniente das atividades dos lagosteiros franceses em águas
territoriais brasileiras.
3- Toda Marinha de Guerra do Brasil, face ao desenvolvimento da crise,
encontra-se em rigorosa prontidão e seus vasos concentrados em
qualquer emergência.”
101
No dia seguinte, O POVO indicava que mais navios franceses estariam a
caminho
102
. Mas o suposto reforço da mobilização era alarme falso. Ainda antes
de terminar o mês de Março de 1963 terminava também a “Guerra da Lagosta”,
conforme O POVO de 12-03-1963:
“FIM DA ‘GUERRA DA LAGOSTA’
O embaixador da França, sr. Jacques Bayes, deverá viajar esta semana
para Paris.(...) Um porta voz da Embaixada confirmou a retirada dos
barcos franceses do litoral brasileiro.(...) Ao analisar as causas de súbita
mudança de pontos de vista, o jornal ‘Le Monde’ informa que (...) ‘ os
armadores poderiam ter prejuízos financeiros com a manutenção dos
pesqueiros indefinidamente inativos”.
O jornal ‘France Soir’ disse ontem que ‘a guerra da lagosta terminou por
falta de combatentes. E assegurou também que a França perdeu a
batalha, mas não perdeu a guerra.”
103
100
Conforme artigo publicado por Luiz Edgar no Jornal do Brasil de 22-07-2002.
101
O POVO, 08-03-2963
102
O POVO, 09 e 10-03-1963, cuja manchete era “OUTRO BARCO DE GUERRA FRANCÊS
APROXIMA-SE DAS COSTAS DO BRASIL”
103
O POVO 12-03-1963
59
Pelo ‘France Soir’ pode-se ver que a postura nacionalista não se
restringiu à imprensa brasileira. Mas, de fato, a “Guerra da Lagosta” encerrava
seu período de mobilização bélico-militar sem que um tiro fosse disparado. Ainda
em 1963 aparecem outras notícias sobre incursões de barcos francêses no litoral
do Brasil. Em 20-06-1963 O POVO noticiava que
“LAGOSTEIROS FRANCESES VOLTARAM A PESCAR NA COSTA
DO NORDESTE
Recife, 20- (Transpress)- Barcos lagosteiros franceses aportam. Os
barcos entraram ontem em Natal para abastecimento de comandados,
declarando que vieram pescar na costa brasileira via entendimento neste
sentido entre os governos francês e brasileiro. O comandante do distrito
naval deu ordens ao capitão dos Portos para negar passe de saída aos
pescadores, que alias não apresentaram documentos em ordem ao
mesmo tempo que solicitou instruções da Armada.”
104
Os barcos foram retidos na alfândega em Natal, sem maiores
conseqüências ou sem que o conflito fosse retomado, pois os jornais não
noticiaram mais a ‘’Guerra da Lagosta”. Ao que parece, os governos da França e,
sobretudo, do Brasil, trataram de cuidar de problemas internos. A questão da
lagosta foi relevada a um plano de intermediação internacional. Novamente por
iniciativa da França surgiu uma proposta de que a Corte Permanente de
Arbitragem de Haia julgue o caso. O Brasil, talvez até por estar vivendo momento
de convulsão interna, não se manifestou. Encontramos no trabalho de Lessa uma
possível explicação para se entender o desfecho da ‘Guerra da Lagosta’:
“Desde os primeiros momentos da Guerra da Lagosta, em 1963, o Brasil
sustentava dever ser a questão resolvida através de entendimentos
privados entre as empresas dos dois países, seja pela constituição de
companhias mistas, seja pelo arrendamento e ou aquisição de barcos
lagosteiros franceses. A França, por sua vez, considerava que os
entendimentos entre agentes privados deveriam efetivar-se dentro do
quadro de um Acordo Intergovernamental, com o que não concordava o
Itamaraty(...).Com efeito, razões políticas e técnicas impunham que a
pesca da lagosta fosse realizado por firma brasileira e que o resultado
da pesca fosse exportado, e não simplesmente ‘levado’ para a
França.(...). Um primeiro entendimento entre empresas se esboçou
apenas em 1965, sem resultados maiores além do arrendamento de
barcos franceses por firmas de pesca brasileiras.”
105
104
O POVO, 20-06-1963
105
LESSA, Antonio Carlos, Op. Cit.
60
Análise que, mais uma vez, confirma que o conflito teve, prioritariamente,
motivaçôes econômicas.
2- Xenofobia
Se nos anos iniciais da indústria da pesca da lagosta o norte-americano
Davis Morgan sofreu resistência de parte da imprensa (notadamente de O
DEMOCRATA), mas não da população, os franceses e suas representações
diplomáticas não tiveram o mesmo tratamento anos depois, quando da “Guerra
da Lagosta”. Ainda que isolados, foram registrados sinais de revolta desde os
primeiros momentos do conflito, como aparece em uma notícia de O POVO de
28-02-1963:
“FUNCIONÁRIO PICHAVA A EMBAIXADA FRANCESA: PRESO”
RIO(28)- “Já que nossa mocidade não fez, eu fiz. Sou nacionalista e não
poderia deixar passar despercebida esta indigna atitude das autoridades
francesas “ – disse o funcionário aposentado da Aeronáutica Rodrigues
de Carvalho, de 58 anos de idade, casado , residente na Guanabara,
depois de ser preso hoje de manhã ao pichar a fachada da Embaixada
Francesa, na avenida Antonio Carlos(...) Tentou depois fugir mas foi
preso pelo ascensorista do prédio e outro popular que o entregaram à
rádio patrulha. (...) Estava indignado com a atitude da França no caso
das lagostas brasileiras e por não “haver nossas autoridades se
pronunciado a respeito até o momento, resolvi eu próprio, sozinho,
exteriorizar a repulsa do povo brasileiro contra essa desfaçatez francesa.
Sou nacionalista’”
106
.
Esse episódio é emblemático. Primeiro, porque o homem detido era
militar reformado, o que demonstra como ecoou o discurso militarista do conflito,
independentemente da iniciativa governamental. Isso parece evidente no trecho
da matéria onde se lê “e por não ‘haver nossas autoridades se pronunciado a
respeito até o momento, resolvi eu próprio, sozinho, exteriorizar a repulsa do povo
brasileiro contra essa desfaçatez francesa. Sou nacionalista’”.
Segundo, por, paradoxalmente, demonstrar que não houve generalização
do sentimento anti-galiscista. A mesma matéria deixa claro que o revoltado foi
detido “pelo ascensorista do prédio e outro popular que o entregaram à rádio
patrulha”. É o aparecimento desteoutro popularque reforça a hipótese de que
61
a “Guerra da Lagosta”, não foi exatamente um acontecimento de cunho
nacionalista, sentimento que ficou circunscrito na imprensa e no discurso dos
militares e do governo. Mas se a “Guerra da Lagosta” não registrou nenhum
movimento de massa anti-galicista, não deixou de ter mais casos isolados de
protesto. A sede da Aliança Francesa em Campinas, interior do estado de São
Paulo, sofreu um atentado e teve sua fachada pichada no período em que
aconteceu o conflito
107
. “Na madrugada de 1
o
de março, elementos não
identificados explodiram quatro bombas do tipo caseira e cortaram os fios
telefônicos e de eletricidade. Deixaram na parede a inscrição ‘A lagosta é nossa’,
a polícia passou a manter severo policiamento no local”
108
. Em Belo Horizonte
(MG), a polícia protegia o consulado da França “tendo em vista ameaças
recebidas”
109
.
Além do caso do ‘revoltado’ fluminense e do ataque à Aliança Francesa em
Campinas, outro caso inusitado aconteceu em Fortaleza. No dia 04-03-1963, O
POVO trazia a seguinte manchete: Um francês instalado em fortaleza fazia
negócios clandestinos de lagosta”
110
. Tratava-se de um tal Jean Moreau, que
alugara uma casa de propriedade de D. Aisa Silva, na Avenida D. Manoel, 599,
centro de Fortaleza. Segundo O POVO, Moreau
“comprou dois barcos em nome de conhecidos seus (brasileiros) e
passou a pescar lagosta clandestinamente, transferindo o produto para
outros barcos de maior porte provenientes da França que ficavam à
espera fundeados em alto-mar. Tudo ocorreu tão bem para o arrivista
que ele, convencido de que o Brasil era mesmo terra de ninguém, achou
que não devia pagar aluguel a d. Aisa Silva, o que constituiu erro
fatal.”
111
A mesma matéria dá conta de que Moreu também não pagara por um
fogão adquirido no estabelecimento comercial de Moises Pimentel e estaria
refugiado em Paracuru, a100 km a oeste de Fortaleza. Por não pagar o aluguel,
Moreau foi processado por D. Aisa e seus barcos foram apreendidos. O POVO
não deixou de aproveitar o episódio para reforçar a cobrança de atitudes mais
106
O POVO, 28-02-1963.
107
Conforme BRAGA, Cláudio, A Guerra da Lagosta, edição do autor, Rio de Janeiro, 2004.
Cláudio Braga é capitão da Marinha e elaborou um livro compilando documentos militares e
trechos de matérias de jornais sobre a Guerra da Lagosta.
108
Id. ibidem
109
Id ibidem
110
O POVO, 04-03-1963
111
Id. Ibidem.
62
rígidas por parte das autoridades: “Por mais que pareça romanesca essa história,
prova tão somente a ineficiente ação das autoridades no que concerne a
fiscalização na exploração desta fonte de riqueza que é a lagosta.”
112
Havia também reações bem humoradas na imprensa, como demonstra
uma charge de O POVO
113
, quando os franceses alegaram que tinham direito à
lagosta da plataforma continental do Brasil por ser esta, supostamente, originária
da costa francesa. Representando a França, uma mulher com vestes e dotes
corporais entre extravagantes e sensuais, carregada de estereótipos ‘franceses’,
com penteado à Bigitte Bardot, joga a isca para domar uma lagosta ‘nossa’,
brasileira, como demonstra a figura na página a seguir.
FIGURA 5 : charge publicada em O POVO de 04-03-63
A charge , publicada em O POVO 23/24-02-1963, retrata também a
abordagem discriminatória que a imprensa brasileira deu ao episódio da “Guerra
112
Id. Ibidem.
113
Id. Ibidem.
63
da Lagosta”. No desenho, a mulher é caracterizada como o que se chamava, no
Brasil, de ‘sirigaita’, numa intenção clara de rebaixar e ‘desclassificar’ o ‘inimigo’.
A charge ilustra a manchete “Franceses expulsos antes de liquidarem a nossa
lagosta”, da mesma edição, reproduzida a seguir.
FIGURA 6: Capa de O POVO de 23/34-03-1963
3- Uma guerra de festim
Embora não tenha relação direta com o objetivo desta dissertação, uma
brevíssima abordagem da disputa interna de poder entre João Goulart (Jango) e
os militares é inevitável, até mesmo para contribuir com estudos e reflexões
posteriores sobre esse assunto. Desde sua eclosão, a “Guerra da Lagosta”
anunciava-se como um conflito que não chegaria, de fato, a conseqüências
bélicas. Para o Brasil teria sido um desastre, já que sua suposta força naval era
combalida. Encontramos uma prova disso nas reflexões do Almirante Armando
Bitencourt. Segundo ele, naquela época “a marinha não tinha condições de
guerrear, pois, além do mau estado dos equipamentos de bordo somente havia
munições para pouquíssimas horas de combate(...). Passados o fato e o tempo,
hoje vemos que talvez tenha havido um pouco de exagero no tocante ao
64
deslocamento de mais militares navais para a área, apesar das muitas ações
diplomáticas que tentaram evitar o escalonamento da crise a tal ponto”
114
.
Uma leitura destacada de determinadas afirmações de lado a lado
comprova isso. A primeira declaração clara nesse sentido vem do ‘agressor’
francês, conforme constava em O POVO de 28-02-1963:
“DE GAULLE: ‘MEU GOVERNO NÃO É A FAVOR DA GUERRA DA
LAGOSTA”
“PARIS(France Press)- O Gabinete Francês reunido até os primeiros
minutos de hoje sob a presidência do general Charles De Gaulle ,
debateu a resposta brasileira à proposta da França e aprovou instruções
a serem dadas ainda hoje ao Embaixador francês no Brasil a fim de
solucionar, definitivamente, as divergências franco-brasileiras. O Ministro
da Informação declarou na ocasião que seu governo não é favorável à
guerra da lagosta, mas resolutamente pacífico.”
115
Na mesma edição há uma matéria com ponderações de um militar
brasileiro, o capitão dos Portos no Ceará, Hugo Machado, que, segundo O
POVO,
‘declarou que a ordem do Ministério da Marinha para impedir a entrada
dos franceses será cumprida, ‘custe o que custar’. Todos os
comandados estão dispostos a enfrentar a situação da forma como a
mesma se apresentar , em obediência às determinações emanadas pelo
Ministério da Marinha e pela soberania brasileira – “ De forma alguma as
forças militares, aqui sediadas, serão atingidas de surpresa, muito
embora acreditemos que o impasse será superado pacificamente’,
informou o Capitão dos Portos.”
116
Em outra matéria, com a manchete “Esquadra francesa vista entre Dakar
e Nordeste: ministro adverte e fixa responsabilidade”
117
, o próprio comando da
Marinha manifesta previsão de que o conflito não chegaria a conseqüências tão
graves quanto às de uma guerra. Mas a preocupação era maior no discurso da
própria imprensa do que dos militares envolvidos, como deixa claro O POVO na
conclusão da mesma matéria:
“Embora as autoridades navais, com muito bom senso, não informem
estarmos vivendo momento que podem anteceder a um sério incidente
114
BRAGA, Cláudio, A Guerra da Lagosta, edição do autor, Rio de Janeiro, 2004. Cláudio Braga é
capitão da Marinha e elaborou um livro compilando documentos militares e trechos de matérias de
jornais sobre a Guerra da Lagosta.
115
O POVO, 28-02-1963.
116
O POVO, 28-02-1963.
117
Id. Ibidem.
65
militar, podemos observar que a situação se apresenta muito grave,
especialmente para a Armada, que terá sobre seus ombros a missão de
obstar a entrada dos barcos de guerra franceses na costa nacional.”
118
Ficou demonstrado que a capacidade das forças armadas brasileiras era
deliberadamente sobre-valorizada, e não só no círculo militar
. Um potencial que
não chegou a ser testado de fato, visto que a “Guerra da Lagosta”, em termos
bélicos, não passou de um acontecimento de mobilização de tropas e
equipamentos, tendo chegado ao fim sem que um tiro fosse disparado. Foi uma
batalha verborrágica, uma guerra de festim. Mas creio ser importante destacar
que a “Guerra da Lagosta” pode ter servido, para os militares, como ensaio da
mobilização que levaria ao golpe no ano seguinte, ainda que não fosse essa a
intenção.
A análise que faço a seguir fica como contribuição para trabalhos
posteriores que almejem estudar as movimentações de civis e militares num
período imediatamente anterior ao golpe. A “Guerra da Lagosta” foi palco de
confronto entre o já cambaleante governo de João Goulart e os militares que a ele
se contrapuseram. Neste aspecto, aquele ano de 1963 foi emblemático.
Jango assume o poder quando da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e
é por demais conhecido o que se sucedeu nos meses seguintes, no que segue
um brevíssimo resumo. Jânio renuncia a 25 de agosto de 1961, quando Jango
estava em viagem oficial na China. A posse só acontece a 7 de setembro daquele
ano, mas Jango tem seus poderes reduzidos. Os militares somente aceitaram o
ex-ministro do Trabalho de Vargas com a adoção do sistema parlamentarista, que
vigoraria até 6 de janeiro de 1963, quando um plebiscito restabelece os plenos
poderes do presidente. É justamente um mês depois que acontecem as
movimentações militares da França e do Brasil em torno da “Guerra da Lagosta”.
Jango era identificado pelos militares como simpatizante dos regimes
comunistas e, em plena Guerra Fria, defendia entusiasticamente que o Brasil
aprofundasse suas relações com países que não necessariamente se alinhassem
com o bloco capitalista hegemônico. A “Guerra da Lagosta” foi, para Jango, uma
oportunidade de se mostrar diante da opinião pública como governante em pleno
118
Id. Ibidem.
66
exercício de seus poderes. Tanto que desde as primeiras notícias veiculadas
sobre efetivos militares franceses deslocados para o Brasil (como a de O POVO
de 23 de fevereiro de 1963), o presidente demonstra ciência e controle da
situação. E até porque os jornais adotaram um discurso de coesão nacional em
torno do “ataque” francês, Jango não parece ter perdido terreno para os militares
na “Guerra da Lagosta”, muito embora tenha havido a sobrevalorização do
discurso militarista. Até os anos de 1960, historicamente as Forças Armadas
brasileiras sempre atuaram sem planejamento entre si, e durante a “Guerra da
Lagosta” não foi muito diferente.
Houve um momento em que os militares extrapolaram suas funções e, à
revelia do governo, recorreram ao apoio dos EUA. Argumentando um suposto
“pan-americanismo”, o Comando da Marinha brasileira solicitou diretamente ao
embaixador brasileiro em Washington que os EUA cumprissem o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), assinado em 1947, e
declarassem “guerra contra a França, como o Brasil honrou seus compromissos
declarando guerra contra os japoneses na Segunda Guerra Mundial, sem nunca
ter sido agredido por eles”
119
.
Em nada resultou tal insensatez. Os Estados Unidos não esboçaram
nenhum movimento no sentido de intervir na “Guerra da Lagosta”, até porque
envolvia dois países aliados seus. E se vigorava o TIAR, já existia a Organização
Tratado do Atlântico Norte (OTAN), onde a França e os EUA eram aliados
120
.
A “Guerra da Lagosta” teve um momento de trégua entre Jango e os
militares. Em fins de março, o presidente acenou com o diálogo para com a
armada, nomeado o general Amauri Kruel para o Ministério da Guerra e,
posteriormente, para o comando do II Exército, sediado em São Paulo. Ora, Kruel
era militar ‘linha-dura’, anti-comunista, e um ano depois foi um dos líderes do
golpe. Um dia depois de derrubado Jango, a 1º de Abril de 1964, Kruel divulgou
para imprensa um manifesto, onde defendia o golpe e deixava clara sua ideologia
política.
Nem Jango nem os militares ‘ganharam’ sozinhos a “Guerra da Lagosta”. A
batalha entre eles foi terminar somente um ano depois, quando os inimigos não
119
BRAGA, Cláudio, A Guerra da Lagosta, Op. Cit.
120
Id. Ibidem.
67
eram mais o estrangeiro, mas os que outrora freqüentaram os mesmos palácios.
Mas este é outro capítulo da história do Brasil cuja análise mais
aprofundada seria importante em outro momento. Pois aqui cabe entender porque
o pescador foi um personagem ‘invisível’ na narrativa da imprensa sobre a
‘Guerra da Lagosta’, o que será abordado no item a seguir.
4-O pescador e a guerra
É preciso procurar entender como a “Guerra da Lagosta” refletiu no
cotidiano, no trabalho e, sobretudo, na narrativa dos pescadores artesanais de
lagosta. A pesquisa bibliográfica e de campo leva a crer que a motivação da
“Guerra” foi, sobretudo, comercial e capitalista, já que não se registrou nenhuma
alteração no cotidiano de pescadores artesanais que trabalhavam à época.
Também é rara a presença de pescadores em notícias de jornais pesquisados e,
quando ela aparece, é envolta de mistérios, como foi o caso do pescador do Rio
Grande do Norte cujo barco teria sido afundado por um submarino que surgiu não
se soube de onde e muito menos a que país pertencia. A quase ausência do
pescador enquanto personagem da “Guerra da Lagosta” aponta para algumas
hipóteses, e abordarei duas delas.
Aquele não foi o primeiro conflito marítimo de dimensões internacionais no
qual o Brasil se envolveu, e muito menos os pescadores. Cerca de duas décadas
antes, com o ingresso do país na Segunda Guerra Mundial, os pescadores foram
alçados à condição de guardiões da costa. Atendendo ao estilo varguista de
coação e controle social, a Marinha determina, em 1942, que mestres de
embarcações, capatazes e presidentes de colônias de pesca auxiliariam o recém
criado Serviço de Informações Secretas no que se referisse à localização de
submarinos nazistas que assolavam o litoral brasileiro, muito embora esses
pescadores muito pouca ou mesmo nenhuma idéia do que viesse a ser esse tipo
de embarcação inimiga. Na imprensa da época eram muitos os editoriais, artigos
e as matérias jornalísticas ressaltando o valor da “heróica população praieira” na
‘nobre’ tarefa de defesa do litoral, sem que se considerasse a fragilidade de
embarcações a vela diante do poderio bélico dos submarinos alemães.
68
Durante a “Guerra da Lagosta” os pescadores aparecem nos discursos
oficiais e da imprensa como coadjuvantes compulsórios e não como narradores
de uma história que era muito mais um conflito econômico entre nações diferentes
do que uma guerra de fato. Ora, quando da “Guerra da Lagosta”, o Brasil
ingressara havia oito anos na sua era industrial pesqueira, via pesca de lagosta.
Nesse curto período essa indústria atingiu patamares de lucratividade
consideráveis, saltando de uma produção anual de 40 toneladas para 1.778
toneladas de caudas congeladas de lagosta para exportação (Labomar). O
número de empresas que exploravam a pesca, no Ceará, era superior a 12, bem
maior do que oito anos antes, quando o estabelecimento de empresas do gênero
era incipiente. Neste cenário, o discurso nacionalista servia mais para resguardar
os interesses de um grupo econômico específico do que os de toda a população e
dos pescadores em geral. Nesse sentido chega a ser emblemática a inclusão da
imagem de um jangadeiro na cédula de cinco cruzeiros (a “cédula do índio”,
conforme a revista Nossa História, março/2005), emitida a partir de 1961, com a
intenção de homenagear a diversidade nacional brasileira em comunhão com a
natureza. Não tivesse atingido a pesca os patamares que alcançou, o
‘homenageado' seria o jangadeiro?
A “Guerra da lagosta” foi o primeiro episódio na história da pesca a
evidenciar a pirataria no setor. Nas décadas seguintes a dos anos de 1960
freqüentemente se registrou a presença de estrangeiros pescando ilegalmente no
litoral brasileiro, sobretudo na captura de peixes
121
. No setor lagosteiro, a pesca
ilegal deixou de ser praticada por estrangeiros, mas não por brasileiros, que
sofisticaram a prática e lhe deram inclusive contornos criminosos, como veremos
no item a seguir.
5-Piratas modernos
“Com os ratos é preciso ter familiaridade, se desejamos correr os mares”
Umberto Eco, “A Ilha do Dia Anterior”
Até aqui se viu como a pesca industrial alterou a dinâmica do mundo do
trabalho do pescador artesanal, introduzindo inclusive, dentre tantos outros
69
elementos, leituras diferenciadas sobre o aspecto ilegal e clandestino da pesca.
Nos anos de 1950 o americano Davis Morgan chegou a receber a alcunha de
“clandestino” por pescar sem licença, imagem desconstruída em seguida, apesar
dos ataques de O DEMOCRATA ao “famigerado súdito ianque”. Nos anos de
1960, com a “Guerra da Lagosta”, o ‘clandestino’ e ‘ilegal’ seria visto como ‘pirata’,
na figura dos franceses. Ao longo das ultimas décadas as leituras sobre a pesca
ilegal de lagosta ganhou novos contornos, e transformou-se ao ponto de
personificar-se, hoje, na pesca de mergulho, que trouxe novos riscos para o
pescador-mergulhador e é motivo de revoltas nas comunidades, como será
analisado neste item.
A pesca da lagosta mudou consideravelmente o tempo de trabalho e o
tempo cultural dos pescadores. A possibilidade de se produzir mais em menor
tempo trouxe vários prejuízos aos trabalhadores, levando inclusive à incidência
de casos de morte com a introdução de técnicas ilegais, como a pesca de
mergulho, onde um pescador pode permanecer por cinco horas a até 80m de
profundidade respirando através de uma mangueira alimentada de uma mistura
de oxigênio com nitrogênio. A falta de equipamentos seguros provoca várias
mortes, porque
"além da profundidade, o ritmo dos mergulhos aumenta a gravidade da
situação. Devem ocorrer no máximo, uma ou duas vezes ao dia,
seguidos de período de descanso adequados. No litoral do Rio Grande
do Norte são feitos mais de dez mergulhos diários. A freqüência é
determinada pela necessidade de captura da lagosta, nunca pela
segurança do mergulhador. O método [pesca com compressor] mostrou-
se mais produtivo e mais barato do que as armadilhas chamadas de
covos. A conseqüência desse esforço excessivo em um período curto
de tempo é o aumento do risco de acidentes, especialmente na
descompressão, que é feita de maneira rápida , sem o respeito aos
tempos de subida. Além disso, a prática leva à exaustão, à prostração,
gerando dificuldades respiratória e confusão mental, podendo ocasionar
o óbito"
122
.
O compressor surge nos anos 70 e, ainda hoje, é largamente utilizado,
embora ilegal. São freqüentes os relatos, na imprensa e nas entrevistas desta
pesquisa, sobre o ódio que a utilização de compressor desperta no pescador
121
Ver matéria jornalística reproduzida no Anexo IV.
122
"Risco de Morte : auditor aponta perigos para pescadores de lagosta no RN", Consultor
Jurídico, revista do Movimento do Ministério Público Democrático, 28/04/2003
70
artesanal
123
. Embora recorrente, o relato mais contundente com o qual me
deparei nesta pesquisa foi o de Luciano Rocha Freire, morador dos Estevão:
“Rapaz, o compressor.... Quando vem, vem acabando com tudo. Se
acabar o compressor a gente ainda vai vê lagosta ainda, mas se não
acabar o compressor não vai ter. A gente que é pescador pega seis,
sete,cinco lagosta, e o compressor não, ele cerca tudo. E você deve
saber que adonde tem gente véi[velha] não tem gente só véi, tem os
minino também. Arrasta tudo e deixa que quando chega em cima o
peso dos grande já mata os pequeno, e lagosta é uma coisa muito fraca
pra morrer e, mesmo que quêra soltar, não adianta mais. É uma coisa
que atrapalha demais”.
O pescador recorre à representação de seu cotidiano para narrar a
devastação que a pesca de compressor causa no recolhimento inapropriado de
um cardume de lagosta ao recolhê-lo. O confinamento de seres de uma mesma
espécie em ambiente de dimensões reduzidas aparece para Luciano Freire
como o cenário de uma cela superlotada, asfixiante e esmagadora.
O mais notório acontecimento de revolta contra o compressor já
registrado se deu na Redonda, em Icapuí, em junho de 1989, quando “um clima
de guerra rondava a então pacata comunidade(...). Cansados de esperar
providências das autoridades competentes, os pescadores resolveram expulsar
do mar os escafandristas que faziam uma devassa na lagosta(...). Naquela noite
mais de 70 homens deixaram a praia armados para render os predadores. A
guerra em alto-mar teve o saldo de quatro feridos e um morto a bala. No dia 8 de
dezembro de 1990 os escafandristas dão o troco e matam o pescador Simião, da
Redonda”
124
.
O conflito na Redonda foi emblemático. A partir desse episódio os
habitantes desta localidade passaram a ser referência na organização comunitária
no combate à pesca predatória. Inclusive no presente, quando a única
embarcação que fiscaliza o mar na Redonda e proximidades foi adquirido pelos
pescadores e é mantido em convênio com órgãos públicos.
123
Como consta em algumas manchetes de jornais de Fortaleza onde o assunto foi tratado de
maneira mais contundente: “Pescadores denunciam pesca irregular”, O POVO, 09/06/2003;
“Sindipesca diz que governo perdeu o controle” , O POVO, 07/09/2003; “Crise no setor aumenta
inadimplência” , Diário do Nordeste, (3/7/2003); “BALBINO Pescadores denunciam ação dos
clandestinos”, Diario do Nordeste(23/7/2003).
124
A luta dos povos do mar, in revista Universidade Pública, ano III, numero 09, UFC, dezembro
2001 /janeiro 2002.
71
Cabe compreender a proximidade dos movimentos de insatisfação e
revolta, na comunidade de Redonda, na perspectiva colocada por Charles
Feitosa
125
: uma revolta problemática tanto por ter caráter negativo (“rejeição da
autoridade, oposição a um poder etc”), como reativo, “que pode levar à destruição
dos outros e até de si mesmo”.
As atuais revoltas da população litorânea dependente diretamente da
pesca de lagosta estão impregnadas de um niilismo contemporâneo que é a
tradução do desencanto com as “soluções” mediadas pela via institucional. Esta
já não responde à demanda efetiva dessa população que, privada de sua fonte de
renda e sustento, vê no “outro” (no pescador ilegal, no Estado etc) o agente de
seu infortúnio e, como tal, passível de ser destruído. As revoltas são sinais de
reação ao desgaste de uma ordem pré-estabelecida, mas impotente.
Para além do niilismo, contudo, há espaço para se pensar o que se passa
entre a população pesqueira e também o que pode ser visto como “resistência”,
que seria, na definição de Feitosa, “uma forma especial de enfrentar o poder, de
dizer não e sim, de agir conforme a liberdade, de lidar com a morte e com os
muros da política”
126
. Se é verdade que eclodem revoltas ocasionais e
localizadas, se constata, sobremaneira, a presença de movimentos organizados
que buscam resistir dentro da perspectiva de “liberdade finita”, uma liberdade “que
não deve ser confundida com uma simples passividade, que pressupõe uma certa
serenidade”
127
. “Serenidade”, característica comum de pescador que detém o
que Feitosa chama de “sabedoria do surfista”, aquele que é capaz de se safar da
onda niilista contemporânea por saber improvisar, por saber utilizar da força que a
onda lhe impõe em benefício próprio.
Um dos aspectos primordiais na análise do presente quesito é tentar
perceber a fronteira possível entre a resistência passiva, niilista, a resistência do
desesperado, e a resistência ativa do ator ou agente social. De fato, creio que um
aprofundamento da experiência empírica, ancorada no conhecimento e prática
teórica, poder-se-á melhor compreender de que modo os pescadores de
125
FEITOSA, Charles, Revolução, revolta e resistência, V Simpósio Internacional de Filosofia
Nietzsche e Deleuze- Arte e Resistência , promovido pelo LEPS(Laboratório de Estudos e
Pesquisas da Subjetividade) da UFC, Fortaleza, mimeo, 2004.
126
Id. Ibidem.
127
Id. Ibidem.
72
Redonda, em caso de crise ou deslealdade (roubo de lagosta), inventam saídas
não niilistas, porém carregadas de exigências éticas e políticas. Cabe averiguar
os usos e abusos da resistência ou da revolta local, em detrimento ou não da
violência sem direção do desesperado.
Voltando ao uso de compressor: é nessa atividade que se vê mais
claramente como o capital maltrata e subjuga, além do pescador, o trabalhador-
mergulhador na indústria da pesca. O equipamento, geralmente, é tosco, cheio
de ‘gambiarras’, no dizer popular. Trata-se de um pequeno motor ligado por uma
mangueira a um botijão de gás (que faz o papel de câmara de compressão) que
expele o ar para o mergulhador através de outra mangueira, de saída, sendo o
fluxo controlado por válvulas improvisadas. Além de se submeter aos riscos
naturais do mergulho (encontro com tubarões, rompimento da mangueira, pressão
submarina etc), o pescador tem um suprimento de ar de pouca ou nenhuma
qualidade.
A “guerra” dos pescadores contra o compressor é a revolta de
trabalhadores contra um equipamento que altera prejudicialmente sua atividade.
Essa “guerra” ainda é atual. Ela se justifica ainda mais porque a escassez da
lagosta gera acontecimentos totalmente imprevistos e conflitos que merecem
nossa atenção, no presente e num futuro não muito distante. A atuação oficial
beira a omissão, e, ao contrário da mobilização militar na época da “Guerra da
Lagosta”, inexplicavelmente não se sabe porque a Marinha brasileira não mobiliza
seu efetivo e atua com vigor em defesa dos pescadores artesanais.
E se de início a pesca ilegal se restringia ao mergulho, ela tem, atualmente,
aspectos mais sofisticados. Recentemente começaram a surgir indícios de
contrabando de lagosta miúda e de verdadeiras máfias atuando no setor,
promovendo assassinatos de envolvidos e acusações recíprocas entre
empresários. Por sua vez, esses empresários são os mesmos que tentam desviar
o foco para a pesca artesanal, alegando que esta seria a causadora de todos os
problemas, inclusive os criminosos, o que não é comprovado por investigações do
Ministério Público e da polícia. Na verdade, são complicações provocadas
diretamente pela pesca industrial, com as quais a pesca artesanal convive num
universo cada vez mais complexo e imbricado.
A exposição dos primórdios dessa modalidade de pesca, da consolidação
73
do capitalismo industrial ligado à pesca industrial e das conseqüências de tudo
isso na vida do pescador artesanal servem, neste trabalho, para introduzir uma
abordagem a um ponto crucial da pesquisa: uma escrita sócio-historiográfica da
categoria dos pescadores artesanais de lagosta, que se verá no Capítulo III.
74
CAPÍTULO III
POR UMA SÓCIO-HISTORIOGRAFIA MARÍTIMA
1-História de pescador
Diante do exposto até aqui, é possível perceber o que Diégues chamou de
“processo de transformação da economia pesqueira tradicional pela ação das
indústrias pesqueiras”
128
, possibilitando leituras abrangentes dentro do que esse
autor veio a chamar de “sócio-antropologia matrítima”. Nessa categoria, pode-se e
deve-se considerar outros aspectos relacionados diretamente com a História, e
também com a construção de um novo discurso de territorialidade marítima até
então inexistente no cotidiano dos pescadores, além de novas relações na
exploração do trabalho pelo capital mercantilista.
Como se viu, a pesca da lagosta voltada ao mercado capitalista é
implantada a partir de 1955
129
. Ao longo das últimas cinco décadas, os
pescadores artesanais de lagosta lidam com o enfrentamento de adversidades
que vão além da natureza. São inseridos “de cima para baixo” num sistema que
exige readaptações constantes de suas práticas tradicionais
130
para que possam
continuar existindo enquanto trabalhadores autônomos, ou seja, não sujeitos
128
DIEGUES, Antonio Carlos S, Tradição e Mudança nas Comunidades de Pescadores do Brasil:
Por uma Sócio Antropologia do Mar, in Pesca Artesanal: Tradição e Modernidade, III Encontro de
Ciências Sociais do Mar, DIEGUES, Antonio Carlos S.(org.),USP, São Paulo, 1989.
129
Como comprovamos, foi o americano Davis Morgan o responsável pela introdução de
técnicas que levaram ao que Rivas e Melo classificam como "pesca empresarial ou industrial(...)
com fins de exportação” (ver AZEVEDO, Roberto de, RIVAS, Alexandre A. F. e MELO,
Rosemeiry, Analise Econômica de Produção da Pesca Marítima na Região Nordeste do Brasil:
Período 1980 a 1988 , Labomar, Fortaleza, 1989/90).
130
Aqui vale abrir um parêntese para Habermas: “ A superioridade do modo de produção
capitalista sobre os modos de produção do passado tem um duplo fundamento: a instalação de
um mecanismo econômico que assegure a longo prazo a propagação dos subsistemas do agir
racional com-respeito-a-fins e a criação de uma legitimação econômica , em nome da qual o
sistema de dominação pode ser adaptado a novas exigências de racionalização desses
subsistemas em progresso. É esse processo de adaptação que Max Weber concebe como
‘racionalização’. Nesse processo podemos distinguir duas tendências , uma racionalização ‘ de
baixo para cima’ e uma outra ‘ de cima para baixo’ “. IN HABERMAS, Jürgen. Ciência e Técnica
como “Ideologia”. In: Os Pensadores. Vol. XLVIII. São Paulo: Abril, 1975, pp 316.
75
totalmente à lógica do mercado e da indústria. Pois a introdução de novas
tecnologias não eliminou o trabalho do pescador artesanal, aquele que ainda hoje
singra os mares dependendo do vento e não do motor de combustão, da rede
tecida por ele mesmo, na embarcação de madeira que ele talhou com suas
próprias mãos ou as de um companheiro, não numa forja donde saem os barcos
industriais.
Este pescador é o que aqui mais interessa, um sujeito histórico que
sobrevive à ‘modernidade’ convivendo com ela, que ainda conserva uma
autonomia relativa frente ao mercado capitalista, autonomia herdada dos seus
ancestrais e ainda repassada geração a geração. O que nos possibilita classificar
os pescadores como “sujeitos autônomos” da História de acordo com o que
afirma Sader:
“Sujeito autônomo não é aquele (pura criação voluntarista) que seria
livre de todas as determinações externas, mas aquele que é capaz de
reelaborá-las em função daquilo que define como sua vontade. Se a
noção de sujeito está associada à possibilidade de autonomia, é pela
dimensão do imaginário como capacidade de dar-se algo além daquilo
que está dado”.
131
Mas essa autonomia não está somente no fazer-se e refazer-se da classe.
Ela se reflete em vários outros aspectos, como um relativo controle do tempo de
trabalho, porque se trata de trabalho diretamente associado à natureza, que nos
remete a Thompson quando ele afirma a importância de observar
“o condicionamento essencial em diferentes notações de tempo gerados
por diferentes situações de trabalho , e sua relação com os ritmos
‘naturais’. É óbvio que os caçadores devem aproveitar certas horas da
noite para colocar as suas armadilhas. Os pescadores e os navegantes
devem integrar as suas vidas com as marés(...); e isso parece natural e
compreensível para os pescadores ou navegadores: a compulsão é
própria da natureza.”
132
Aspectos dessa autonomia podem ser encontrados também no domínio
da técnica. Nietzsche disse que “uma profissão é a espinha dorsal da vida”, algo
que se torna mais forte para os pescadores artesanais, pois, como diz Hogaart,
eles
131
SADER, Eder, Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos
trabalhadores da grande São Paulo. 1970-1980, São Paulo, Paz e Terra, 1992.
76
“mantêm uma reminiscência do antigo orgulho do artesão. Não faz talvez
tenção de mudar de emprego, mas sabe que pode a todo momento
agarrar nos seus instrumentos de trabalho e ir-se embora. Os pais que
tentam olhar pelo futuro dos filhos fazem o possível por os colocar como
aprendizes numa oficina”.
133
Esta autonomia foi conquistada não só pela manutenção e reapropriação
de saberes, mas também ao longo de décadas de luta por conquista de direitos,
onde rebeliões são registradas com freqüência, seja na luta contra a especulação
imobiliária, seja contra a pesca predatória. Em suma, pela necessidade mesmo
de sobrevivência.
Para compreender melhor o que quero dizer sem enveredar pela
idealização ou por um discurso messiânico e “politicamente correto” que sublima
a ‘união de um povo’, recorro a Sérgio Buarque de Holanda. Segundo ele, é
preciso atentar para um viés antropológico ao analisar ações comuns que levam a
determinadas uniões. “Tanto a competição como a cooperação são
comportamentos orientados(...) para um objetivo material comum: é sua relação
com esse objetivo o que mantém os indivíduos respectivamente separados ou
unidos ente si”
134
. Ou seja, as revoltas coletivas das comunidades de pescadores
são determinadas por acontecimentos circunstanciais, e não por movimentos
coordenados ou pré-concebidos por uma ideologia comum, pois há na pesca
tanto o caráter de cooperação quanto o de competição apontados por Sérgio
Buarque. Para o pescador artesanal, a luta pela manutenção das condições de
trabalho que são as mesmas para um outro pescador, significa, antes de tudo,
manter o seu quinhão de negociação na relação capital-trabalho, da qual ele não
está livre. ‘
De fato, há um emaranhado de relações hierárquicas entre os pescadores.
As diferenças começam no próprio barco, onde geralmente um mestre comanda a
pescaria e terá direito a uma parte diferenciada da produção. O pescador que
detém o material (linha, anzol, armadilhas, isca) terá um percentual maior da
produção. O dono da embarcação, que nem sempre é o mestre, e quem banca a
132
THOMPSON, EP, Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial, in Costumes em
Comum. pg 271.
133
HOGGART, Richard, ‘Nós’ e ‘ Eles’ ,in OLIVEIRA, Paulo de Sales(org.), O lúdico na Cultura
Solidária, São Paulo, HUCITEC,2001, pp. 178.
134
HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil, Companhia das Letras, São Paulo(SP), 2001,
pg.60.
77
alimentação tem também sua parcela específica de ganho.
Mais do que mero local de trabalho, o barco e o mar são lugares de
desenvolvimento de uma ética onde todos têm funções pré-estabelecidas e que
devem ser respeitadas. Um exemplo prático disso é a partilha dos peixes que
pode ser observada na chegada de toda jangada numa praia. Para um
observador desavisado é complicado entender os critérios de um pescador na
separação dos peixes que são retirados de um mesmo samburá. É que cada um
dos peixes tem uma marca característica feita por quem o pegou, seja um corte
ou furo em determinada parte do corpo, seja uma barbatana ou ferrão quebrados.
Isso permite que um pescador manuseie a produção do outro sem que haja
fraude ou enganação. Esta é uma ilustração aparentemente banal, mas prática,
sobre a ética entre os pescadores.
A situação fica mais complicada a partir da chegada do barco à praia. Aí
entram relações de trabalho que não dependem mais somente da mesma
categoria (a dos pescadores artesanais). Entram em cena outros agentes
capitalistas. O primeiro é o ‘marchand’(negociante, em francês), que compra o
peixe ali mesmo na praia e o leva para um cliente seu já estabelecido (um
restaurante, um revendedor). Muitas vezes o pescador está subordinado ao
‘marchand’, comprometendo-se em fornecer sua produção exclusivamente a
determinado intermediador por ter recebido pagamento antecipado deste, em
material de pesca, dinheiro ou isca. Cria-se assim uma relação de subordinação
do pescador ao ‘marchand’, porque o trabalhador não pode vender sua produção
a um terceiro, ainda que receba oferta melhor.
Posteriormente, no caso da venda de lagosta ou de grande quantidade de
peixe, a relação do pescador com o mercado capitalista é complexa. Esses
produtos têm de ser conservados em gelo até que atinjam um estoque razoável
que justifique o transporte para grandes centros consumidores ou exportadores.
Essa conservação é feita num frigorífico, que pode pertencer a um ex-pescador
(geralmente um patriarca de família de pescadores que não tem mais condições
físicas de ir ao mar), ou a associações comunitárias ou a representantes
comerciais dos exportadores. As empresas que exportam a lagosta ou distribuem
para o mercado interno estão no extremo oposto ao ocupado pelo pescador num
esquema de produção organizado dentro da lógica capitalista. O pescador de
78
lagosta é um dos que abastecem a essas empresas, mas não tem nenhuma
gerência sobre a exportação e muito menos participação nos lucros da venda final
do produto.
Tudo isso leva o pescador artesanal a lidar com uma estrutura capitalista
com a qual não defronta, por exemplo, o pescador industrial. Este geralmente tem
carteira assinada pela empresa onde pesca embarcado por dias, semanas,
contando com equipamentos modernos como radares e guinchos e não lida com
agentes que escoarão a produção do seu trabalho para os exportadores. Por isso
é importante para o pescador artesanal, manter seu ‘capital cultural’. O
conhecimento que ele detém sobre técnicas de pesca e sobre a natureza será o
que lhe permitirá continuar trabalhando e existindo. Disso resultam as revoltas
que assistimos em comunidades dependentes da pesca artesanal quando da
apreensão de barcos clandestinos. Mais do que estarem lutando para que
determinada lei ou regulamentação seja cumprida, essas pessoas estão lutando
pelo seu direito ao trabalho, pela sua própria sobrevivência.
2- Mar de ninguém , mar de todos
A pesca industrial impôs a necessidade de se rediscutir a territorialidade
marítima. Se até o advento da pesca industrial os trabalhadores na pesca
encaravam o mar como “um bem ‘comum’, de livre acesso” (Diegues), tal visão
tenderia a mudar. Dentro do contexto da pesca industrial, o deslocamento para o
mar, local de trabalho, não dependeria mais apenas dos recursos próprios dos
pescadores e de elementos da natureza (o vento, o clima, a época do ano etc). A
partir de então o pescador recorreria a novas tecnologias, novas armadilhas,
novas iscas. O mar, que antes era “de todos e de ninguém, o que expressa uma
noção de territorialidade bastante singular, assentada na infinitude, na imensidão
do espaço e na ausência de propriedade”
135
, torna-se então território de
competição, de disputa, de conquista de espaço privado, de constante
demarcação de lugares onde fosse maior a incidência de cardumes .
135
OLIVEIRA, Lúcia Helena, Espaço e Territorialidade no Universo da Pesca artesanal”,
in DIEGUES, Antonio Carlos S. Op. Cit.
79
Constatação por demais problemática, pois, no mar, considerados os
parâmetros tradicionais da pesca artesanal, “a territorialidade produtiva, as
pedras, o espaço de cada bote são ideais sociais e elementos fundamentais aos
pactos e às noções de honra e de maritimidade que se somam aos elementos
outros que constituem a pesca”
136
. Com o advento da pesca industrial, aumentou
o fluxo de embarcações e, conseqüentemente, de trabalhadores no mar. Se o mar
já não era um deserto para quem dele sobrevivia, ficou ainda mais povoado.
A partir dos anos de 1950 passou a existir todo um esquema organizado de
exploração de mão-de-obra e dos recursos naturais. A tecnologia aparece como
um novo determinante de territorialidade, pois amplia a perspectiva de
permanência no mar, possibilita atingir maiores profundidades, o que obriga ao
pescador artesanal a aumentar seu esforço de trabalho com a ‘concorrência’ que
não se limitava mais a de trabalhadores como ele, que antes contavam apenas
com os próprios braços e com os fatores naturais.
Se antes os únicos marcos fixos no mar eram as estrelas ou acidentes
geográficos naturais (pedras, bancos de areia, recifes e corais), a tecnologia
impõe novas sinalizações que seriam seguidas e apropriadas por todos, como,
por exemplo, as armadilhas fixas (manzuás) que podem ficar por dias seguidos
num mesmo local. Com a pesca industrial, o mar, se ainda continuava ‘sem dono’,
passou a ter novas leis e regras definidas e impostas pelo capitalismo.
Apesar dessa consideração, é verdade também que os pescadores
artesanais não prescindiram de seu saber-fazer com a introdução de métodos
industriais. Afinal, o que Maldonado chama de “questão da imprevisibilidade da
produção” faz com que um saber tradicional tenha relevância e importância em se
tratando de pesca, pois “a resposta humana a aparentes obstáculos à produção
se expressa em termos de tradições marítimas constituídas no ser e no fazer das
sociedades pesqueiras”.
137
Houve também uma “complementaridade entre as duas formas de
produção [a artesanal e a industrial] com a subordinação da produção artesanal a
136
MALDONADO, Simone C., A Caminho das Pedras: percepção e utilização do espaço na pesca
simples , in DIEGUES, Antonio Carlos S., Op. Cit.
137
Idem.
80
capitalista”
138
. Porém Diégues ressalva que
“essa articulação parece ser transitória pois leva a um aumento do
esforço de pesca normalmente sobre uma espécie de alto valor de
mercado e à desorganização da cadeia alimentar, o empobrecimento
ecológico e uma pobreza ainda maior dos pescadores artesanais,
quando a pesca não se torna mais rentável segundo os padrões
capitalistas.
139
Exatamente o que ocorre com a categoria objeto deste estudo: a dos
pescadores artesanais de lagosta. Eles, que se confrontam incessantemente com
o processo de “modernização e pilhagem da natureza” iniciado nos anos de
1960 e que “acentuou-se nas décadas subseqüentes numa violência nunca
dantes constadas neste país”
140
.
3-O novo corpo do pescador
A partir dos anos de 1950 e 1960, os pescadores artesanais travaram suas
guerras particulares para se adaptarem à nova modalidade e para reorganizarem
seus hábitos, seus saberes e suas relações com a natureza, a começar do próprio
corpo.
Como bem observou Roy Porter, “o corpo é uma presença suprimida,
muito freqüentemente ignorada ou esquecida” pela historiografia e outras áreas
do saber, o corpo “encarado como um foco para a resistência e a crítica populares
dos significados oficiais”. Os homens não são apenas seus corpos, mas o corpo
não pode ser negligenciado na análise histórica, pois “os aspectos físicos podem
oferecer um índice mais confiável do que os salários para o estabelecimento das
alterações no padrão real de vida”
141
.
Tais conceitos podem ser aplicados aos pescadores. Se compararmos
imagens atuais com as fotografias de Chico Albuquerque realizadas até os anos
de 1950, retratando os pescadores em atividade no Mucuripe, em Fortaleza-
138
DIEGUES, Antonio Carlos S, Tradição e Mudança nas Comunidades de Pescadores do Brasil:
Por uma Sócio Antropologia do Mar , Op. Cit.
139
Id. Ibidem
140
Id.Ibidem.
141
PORTER, Roy, História do Corpo”, in BURKE, Peter(Org.), A Escrita da História, Unesp, São
Paulo ,1992.
81
CE, o sinal de mudança mais evidente está no vestuário. Outrora os pescadores
usavam camisas de mangas longas e calças de algodão cru com o chapéu de
couro ou de palha de abas largas. São poucos os que aparecem nas fotos de
Albuquerque sem essa indumentária, ao contrário do que se vê nas praias ou nas
fotos de hoje. A perda de costumes assim traz conseqüências negativas para a
saúde do trabalhador.
142
Ao se proteger cada vez menos do sol, o pescador está mais sujeito às
doenças da pele. O sol também causa outro problema de saúde freqüente entre
pescadores: deficiência visual, principalmente catarata. Com a vista falha, o
pescador tem dificuldade para localizar cardumes ou pedras onde jogar seu anzol
ou suas armadilhas. Também lhe dificulta a localização de referências que lhe
servem de baliza com a qual determina o rumo a ser seguido. Geralmente os
pescadores alinham sua embarcação com dois marcos fixos em terras (postes,
casas, árvores, dunas, arbustos...), tanto na ida quanto na volta, para orientar o
rumo que seguirão no mar para localizar seus manzuás e cangalhas, para desviar
de pedras e para voltar ao local onde habituam fundear seus botes ou recolher
suas jangadas na praia.
Nem todos os pescadores optaram pela lagosta como atividade prioritária,
como é o caso de Ezequiel Honorato dos Santos: “Pesquei lagosta muita não. Na
época mesmo assim, que começaram assim, pesquei pouco, pescava mais era
peixe. Não dava para mim não, saí fora, as armadilha pra mim não tinha
produção”
143
.
Abandonar a pesca da lagosta como atividade prioritária não significa que
Ezequiel deixou de pescar e de estar sujeito aos mesmos males que acometem
seus colegas. Até o ano de 2001, ele ia ao mar freqüentemente para pescar
peixe. Diminuiu essa intensidade a partir de 2002, alegando “vista cansada”. Não
raro, o corpo do pescador artesanal é marcado, esculpido pelo esforço físico
característico de seu trabalho, pela pele que pouco a pouco vai se ressecando
curtida ao sol, com as rugas precoces provocadas pelo forçar da vista. Ezequiel é
mais um exemplo vivo do que é capaz a “máquina de moer gente” (Darcy Ribeiro)
que foi e é o Brasil para o trabalhador braçal e artesanal.
142
SANTANA, Thiago(org), Mar de Luz-Litoral do Ceará,Tempo d´Imagem, Fortaleza, 2000
143
Ezequiel Honorato, pescador dos Estevão.
82
Também a saúde da população dependente da pesca está estreitamente
relacionada com o volume da produção, como mostra, por exemplo, a taxa
mortalidade infantil de algumas localidades. Em 1991, em Redonda, à época sem
recursos médico-hospitalares sofisticados, 10 crianças com menos de um ano
morreram no período de suspensão da pesca. Reflexo de um quadro geral em
Icapuí, onde, em 1991, 17 dos 28 óbitos de crianças com menos de um ano
ocorreram no defeso
144
.
Nesse contexto, é esclarecedora a conclusão de um trabalho do Sistema
Nacional de Emprego (SINE) do Ceará, de 1989. Sobre a saúde dos pescadores,
o relatório da equipe do SINE sustenta que
“sabe-se que essa categoria continua sofrendo sérios riscos de doenças e
acidentes no desenvolvimento de suas funções. Isso foi denunciado pela
Federação e pelo Sindicato da categoria.(...) O representante da categoria
denunciou a existência das seguintes enfermidades: cegueira, insolação,
desidratação, queimaduras, traumatismo, doenças na coluna, doença
mental, quedas, varizes, hérnia, calosidades, doenças de pele, distúrbios
de audição, intoxicação, lombalgia, entre outras; afora o risco de
afogamento, sempre fatal”
145
.
Apontar para aspectos relacionados à saúde dos pescadores é importante
também para esta narrativa historiográfica. Pois, para os pescadores, o tempo de
capacidade de produção é determinado antes de tudo pelo o que pode o corpo,
corpo que fala, que tem memória.
O corpo do pescador possibilita também análises subjetivas. Há quase
sempre um comportamento tranqüilo por parte dos pescadores artesanais.
Característica de quem realiza um rito de trabalho contemplativo,
necessariamente observando a natureza? Seria resultado de um ‘corpo sem
órgãos (Lins)’, que ao se diluir e se ampliar no interagir com os tantos ‘orgãos’ de
uma jangada ou bote a vela perde “uma ontologia centrada no identitário, no uno,
no absoluto”
146
? Não seria o pescador agenciado por um “devir-água”, “devir-
144
“Pesca proibida, mortalidade em alta”, Jornal do Brasil, 19-01-1992, in ANDRADE, Odorico
Monteiro e GOYA, Neusa, Sistemas Locais de Saúde em Municípios de pequeno porte: a resposta
de Icapuí, Cidadania, Fortaleza, 1992.
145
In As Condições de Trabalho e as Repercussões na Vida e na Saúde dos Pescadores do
Estado do Ceara, FELISMINO, Pedro Henrique de M., MOREIRA, Fernanda Mara Penaforte e
SANTOS, João Bosco Feitosa (elaboradores), SINE-CE, Fortaleza, 1989.
146
LINS, Daniel Soares, ANTONIN ARTAUD, o Artesão do Corpo sem órgãos, Relume Dumará,
Rio de Janeiro, 2000.
83
jangada”, “devir natureza”
147
? Por mais que prevaleça um entendimento de que
estas questões subjetivas interessem mais à Sociologia e à Antropologia do que à
História, é sempre bom lembrar que ‘viajar é preciso’.
Aqui não é o caso de maiores aprofundamentos a respeito, mas insisto que
são necessárias abordagens futuras sobre a ampliação do desejo de consumo
que a pesca da lagosta possibilitou para populações praianas, onde itens como
televisão, antenas parabólicas e veículos automotores (sobretudo motocicletas)
passaram a povoar o imaginário coletivo. Só assim se pode compreender porque
no ano de 2003, de ‘boa pesca’, uma revendedora de motos de Russas-CE,
vendeu 60 motocicletas em apenas uma semana na Redonda, em Icapuí-CE.
Às vezes, extrapolar a percepção sensorial pode sim ajudar a compreender
o que nem sempre é visível às análises ‘objetivas’. É interessante, por exemplo,
considerar uma alteração corporal generalizada a partir do estabelecimento da
pesca industrial de lagosta, mudança esta que, para a população, viria pela
gastronomia. A produção intensa de lagosta trouxe novos hábitos alimentares da
população cearense. Praticamente todos os entrevistados neste trabalho
contaram que, até a introdução da pesca empresarial, o pescador usava a
lagosta como isca para pegar outros peixes no anzol. Só depois a lagosta teria
passado a constar no cardápio regional.
Genésio dos Santos Caraça, o ´Tibiro´, 64 anos, morador de Canoa
Quebrada, confirma a informação, relatando algo parecido: “Antes de 56, 55,
ninguém nem comia [lagosta], dizia que fazia mal. A pesca era de peixe, que a
gente vendia pros marchand”
148
. Fato confirmado no relato de Vicente Viana,
outro pescador que presenciou o início da pesca. Segundo ele, “vinha tanta
lagosta no anzol que a gente rebolava [jogava fora] e achava rin [ruim] porque
não era peixe”
149
.
Neste ponto a adaptação foi tanta que, além da lagosta ter sido incluída na
gastronomia local, as famílias de pescadores passaram a apreciar a parte do
crustáceo que tem menos carne e de onde ela é mais difícil de ser extraída: a
147
“Devir: termo relativo à economia do desejo. Os fluxos de desejo procedem por afetos e
devires, independentemente do fato de que possam ser ou não calcados sobre pessoas, sobre
imagens, sobre identificações”, in GUATTARI, Felix, E ROLNIK,Suely, Micropolítica, Cartografias
Do Desejo, Vozes, Petrópolis, 1996.
148
Genésio Caraça, o TIBIRO, de Canoa Quebrada.
84
cabeça. A alegação popular generalizada é de que na cabeça se concentra a
gordura da lagosta, bastante saborosa quando misturada com farinha de
mandioca, mas um outro aspecto tem de ser considerado. A cabeça da lagosta
não tem valor comercial na indústria da pesca, e pode ser consumida nas praias
sem prejuízo para o orçamento do pescador.
indícios de que não somente os hábitos da população praiana se
modificaram. No auge da “Guerra da Lagosta” uma notícia de O POVO ironiza a
adaptação alimentar do brasileiro ao crustáceo:
“SIMPLES QUESTÃO PSICOLÓGICA
TODO MUNDO AGORA QUER COMER LAGOSTA: ATÉ O
PRESIDENTE JANGO”
“Observadores acreditam que a ‘guerra da lagosta’ , tão ativa no
noticiáio dos jornais, venha contribuir para o aumento do consumo
interno do crustáceo. Presentemente, enquanto se mobilizam as forças
armadas para proteger o crustáceo ‘pivot’ da ‘guerra’, a população civil,
pelo menos nesta capital, revida a ação belicosa dos franceses com uma
boa pedida , nos restaurantes, de uma lagosta ao molho de sua
preferência.Isso é fruto de simples sugestão. Até o presidente da
República, segundo as agências noticiosas, está preferindo jantar
lagosta.”
150
Desconsiderando o tom de galhofa da notícia acima, confirma-se o
que as entrevistas demonstraram: a lagosta não era prato típico no Ceará nem no
Brasil. O que ajuda a entender porque não houve envolvimento de massa quando
da “Guerra da Lagosta”. A introdução da lagosta na nossa gastronomia foi um
dos resultados da pesca industrial na cultura local, mas não foi o único nem o
principal. Alterações ainda mais significativas viriam no campo de saberes dos
pescadores artesanais. Algumas dessas mudanças serão tratadas no item a
seguir.
4- Com quantos paus se fazia uma jangada
“Um dos primeiros atos dos marinheiros portugueses que alcançaram a costa sobrecarregada de
floresta do continente sul-americano foi derrubar uma árvore. Do tronco desse sacrifício ao
machado de aço, confeccionaram uma cruz rústica.”
Warren Dean, “A Ferro e a Fogo”
149
Vicente Viana de Oliveira, 78 anos, de Canoa Quebrada.
150
O POVO, 01-03-1963.
85
A pesca industrial da lagosta introduz uma dimensão específica na pesca
artesanal, alterando significativamente o cotidiano dos pescadores, seus
referenciais no mar, seu tempo de trabalho e as formas de comercialização do
pescado. Os pescadores tiveram que fazer valer ainda mais seu conhecimento da
natureza, seu conhecimento da territorialidade marítima, em suma, fazer valer de
sua “capacidade cognitiva” (Maldonado, 1989) para dar prosseguimento a seu
trabalho diante da ‘articulação com a empresa capitalista (Diéges)’que se impôs a
partir de 1955.
Uma das maiores mudanças nos hábitos dos pescadores com o advento da
indústria da pesca da lagosta foi na sua relação com a natureza, o que nos
remete a amplos diálogos, principalmente com a História Ambiental. Eram das
matas e das florestas (e de certa maneira ainda o é) que os pescadores obtinham
matéria-prima para a confecção de seu material de trabalho, a começar pelas
embarcações. Creio que não seria equivocado dizer que os pescadores do
século XX são também personagens importantes da História de Além-Mar,
exemplos vivos de seu maior desafio: “O desafio da História de além-mar é
apresentar uma forma moderna de história mundial”
151
.
Devemos a uma obra recente de História Ambiental
152
uma importante
reflexão sobre a relação do homem com a floresta no continente americano após
a chegada dos europeus. Perscrutando o que chama de “período fundador da
crítica ambiental brasileira”, José Augusto Pádua demonstra como, a partir do
século XIX, o discurso preservacionista do meio ambiente por muito tempo oscilou
entre o seguinte dualismo: de um lado, o conformismo diante da destruição
“inevitável” da paisagem para que houvesse “progresso”, e de outro, a devastação
encarada não como avanço social e econômico do país, mas como sinal de
atraso
153
.
Essa dicotomia, dentro do que Pádua chamou de “preocupação intelectual
com a degradação do ambiente”, imperou até recentemente no Brasil. Reflexões
como as de José Augusto Pádua nos levam a crer que é impossível (ou, no
mínimo, negligente) abordar estudos históricos que envolvam qualquer tipo de
151
WESSELING,Henk, “História de Além-Mar” , BURKE, Peter(Org.), A Escrita da História,
Unesp, São Paulo ,1992.pg 105.
152
PADUA, José Augusto, Um Sopro de Destruição, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002.
153
Id. Ibidem.
86
atividade industrial (aqui, no caso, a pesca) sem estabelecer parâmetros com a
História Ambiental.
A História Ambiental nos ensinou que, na relação da população brasileira com
a flora e na produção historiográfica nacional, por muito tempo prevaleceu o
discurso que omitiu ou legitimou a ação devastadora do homem. Seja nas
evidências apresentadas por José Augusto Pádua, seja na prática ainda hoje
popular de limpar a terra com fogo (a coivara) ou seja na tendência que vem da
ocupação portuguesa de construir com a natureza uma relação de medo e
enfrentamento
154
.
No que diz respeito aos pescadores, as mudanças se refletem em vários
aspectos, sobretudo nas alterações no seu local de trabalho
(o mar) ou no relativo controle do tempo de trabalho. Pois se trata de trabalho
diretamente associado à natureza, o que nos remete a Thompson quando ele
afirma a importância de se observar
“o condicionamento essencial em diferentes notações de tempo geradas
por diferentes situações de trabalho , e sua relação com os ritmos
‘naturais’. É óbvio que os caçadores devem aproveitar certas horas da
noite para colocar as suas armadilhas. Os pescadores e os navegantes
devem integrar as suas vidas com as marés(...); e isso parece natural e
compreensível para os pescadores ou navegadores: a compulsão é
própria da natureza.”
155
Trabalhar no mar não é o mesmo que trabalhar num escritório cercado por
computadores ou numa fábrica interagindo com máquinas robóticas. É estar
rodeado de natureza, o que “compreende não só os animais e vegetais (...), mas
154
Nesse sentido é interessante notar que, no folclore brasileiro, a mata é a morada de seres
demoníacos e sobrenaturais, geralmente relacionados com o mal: o saci, a mula sem cabeça, o
curupira(ou caipora), o lobisomem etc. A explicação para essa tendência porde ser a interpretação
de Dean para as primeiras tentativas de dominão jesuíta sobre os povos indígenas, que
passava necessariamente pela quebra de confiança no poder dos pajés, profundos conhecedores
da natureza. “ Os jesuítas combatiam os cultos dos tupis para destruir a força de seus
competidores, os curandeiros, que exaltavam as virtudes da virilidade e bravura(...). Os jesuítas
desejavam também afirmar a separação entre o divino e o natural. Optaram por identificar o deus
cristão com um espírito remoto e sem culto, Tupã, o trovejador, e aviltaram os espíritos da floresta
, que caracterizavam, indiscriminadamente, como diabos. Assim a Mata Atlântica se tornou a
morada do diabo, uma metáfora conveniente para aqueles que a receavam e pretendiam eliminá-
la”. DEAN, Warren, A Ferro e a Fogo: A História e a devastação da Mata Atlântica brasileira , Cia.
Das Letras, São Paulo, 1998.
155
THOMPSON, EP, Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial, in Costumes em
Comum. pg 271.
87
também fenômenos e substâncias, como a chuva e a água do mar”
156
.
Não é casualidade o trabalho no mar ser considerado como atividade das mais
insalubres, no mesmo patamar que o trabalho em minas subterrâneas
157
. Para
sobreviver ao e no mar, o pescador artesanal tem de interagir com ele, saber
reinventá-lo no mesmo ritmo que o fazem as ondas, pois o mar, “além de
constituir um espaço de sobrevivência, representa também lugar de uma
cultura”
158
. De fato, mantém-se assim uma cultura tradicional: o repassar, de
geração a geração, “do domínio do saber-fazer e do conhecer que forma o cerne
da ‘profissão’(...), domínio de um conjunto de conhecimentos e técnicas que
permitem ao pescador se reproduzir enquanto tal”
159
.
Para o pescador artesanal, estar no mar tem duplo significado de estar “com”
e “sobre” a natureza. Ele não apenas navega a água do mar, ele o faz utilizando-
se de uma embarcação de madeira, muitas vezes construída por ele próprio.
Senão com a mesma matéria prima de cinco décadas atrás, com outro material,
mas sempre tendo a madeira como base.
Relatos de pescadores confirmam a predominância das jangadas feitas a
partir dos troncos de uma árvore, a piúba
160
, entre as embarcações utilizadas
pelos pescadores até os anos de 1960. Madeira leve e de grande porte, a piúba
tinha seus troncos trabalhados pelos carpinteiros de maneira que se pudesse com
eles montar uma jangada. Relatos de dois pescadores ouvidos durante a
pesquisa dão conta da complexidade para se adquirir a madeira e para se
construir uma jangada.
156
SILVA, Gláucia Oliveira da, “Água, vida e pensamento: um estudo de cosmovisão entre
trabalhadores da pesca”, in DIEGUES Antonio Carlos S.(org.) Pesca Artesanal: Tradição e
Modernidade, III Encontro de Ciências Sociais do Mar, ,USP, São Paulo, 1989.
157
Ministério do Trabalho, 2002.
158
MALDONADO, Simone C., “A Caminho das Pedras: percepção e utilização do espaço na
pesca simples”, in DIEGUES, Antonio Carlos S, id.Ibidem.
159
DIEGUES, Antonio Carlos S, id. Ibidem.
160
A procura pelo nome científico da piúba foi uma saga. Segundo o precioso auxilio de Eugênio
Arantes de Melo, responsável pela página
www.arvores.brasil.nom.br , “nem sempre é fácil
identificar uma espécie apenas por um nome popular, os quais variam muito conforme a região. O
nome Piuva ou Piuba é aplicado a varias espécies de Ipês(Tabebuia ochracea, T vellosoi, , T
serratifolia,.T impetiginosa), dependendo da região, especialmente àqueles do cerrado ou do
nordeste, com casca grossa e talvez por isto mais fáceis de flutuar”. Mas um esclarecimento mais
convincente veio do professor Edilberto Rocha Silveira, da UFC. Segundo ele, Renato Braga,
afirma o seguinte: “Piúba= Pau de jangada - Apeiba tibourbou Aubl. (Apeiba cimbalanea Arr.
Cam.), da família das Tiliáceas. Com este nome é conhecida, em Fortaleza-Ce Cordia tetandra
Aubl., da família das Boragináceas”.
88
Vicente Viana afirmou que a jangada era de piúba, e tinha a piúba do Norte,
que vinha de Belém, e a do Sul, que a gente trazia de Recife”. Mais detalhado
ainda é o relato de Luciano Rocha Freire, 50 anos, pescador nascido em Canoa
Quebrada e atualmente morador dos Estevão:
“Meu pai pegava de Manaus, o navio trazia até Fortaleza. De Fortaleza
pra cá vinha de caminhão. Nesse tempo para passar era cancela
[fiscalização] , pra passar pagava um bom dinheiro. Aí vinha pra
Majorlândia [praia vizinha a Canoa Quebrada, que conta com acesso
terrestre a Aracati desde os anos 50]. A gente pegava uma jangadinha
pequena, chegava lá amarrava seis pau, sete, oito. Amarrava, fazia uma
balsa (a gente chamava uma balsa). Chegava aqui encostava. Quando a
maré enchia a gente vinha rolando os pau grande, pesado. Aí a gente
botava no ombro pro rapaz [carpinteiro] e ali mesmo [na praia] ele
construía a jangada(...).A jangada de piúba era toda torneada, não tinha
prego nem ferro não. Eu ia mais meu pai lá pros mato buscá uns mói
de de pau-ferro pra trazer, que era os torno, de tornear. Aí, pra furar, era
difícil” .
O relato de Luciano Rocha Freire (e tantas outras contribuições prestativas
suas que constam neste trabalho) demonstra a permanência de uma técnica que
não desapareceu: o saber de confeccionar sua própria jangada. Embora a
embarcação dos tempos atuais não seja mais a mesma que a usada há 50, 40
anos atrás, conserva ainda uma característica impar: é feita à mão, assim como
grandes barcos ou qualquer outro tipo de embarcação de madeira. O que
preserva nos pescadores de hoje (como nos de outrora) as indeléveis mãos
calejadas cuja brutalidade aparente traz consigo o dom divino que possibilita o
homem ‘caminhar’ sobre as águas.
A partir dos anos 1960-1970 novos tipos de embarcações começam a
prevalecer, mostrando, entre outras coisas, a capacidade de adaptação dos
trabalhadores a novas necessidades. Surgem as bateiras (pequenos botes) e
botes de tábua, grandes barcos de madeira e ferro e também jangadas de tábua e
isopor. Cabe reproduzir, na figura a seguir os diferentes tipos de embarcações
utilizados hoje para se ter uma idéia do que aqui se aborda.
89
FIGURA 7: alguns tipos de embarcações . Fonte: Labomar-UFC
Havia problemas em utilizar a piúba: a construção da jangada, que exigia
perícia e especialidade, e a pouca durabilidade da embarcação.
Segundo pescadores entrevitados, a jangada de píuba resistia , no máximo, por
dois anos. Com as dificuldades de se conseguir a madeira contrastando com o
crescente mercado da pesca de lagosta
161
, surgem as jangadas de tábua e
isopor, conforme narra Luciano Rocha Freire, ele mesmo um exímio construtor
desse tipo de embarcação hoje:
“Uma jangada grande era uma faixa de que: uns oito paus. Durava, mas
legal mesmo era um ano, viu? Agora, pesava, viu? Agora tinha uma
qualidade de madeira que era também piúba, mas era madeira do Sul.
Era maneirinha, era leve, não era grossa que nem era essa outra.
161
Conforme tabela elaborada pelo Labomar, em 1965 foram pescadas 2,5 toneladas de lagosta,
numero que chegou a 6,2 toneladas em 1969. Ver SANTOS s, Edison Pereira dos, Curvas de
rendimento de lagostas no estado do Ceará(Brasil), mimeo, Labomar/UFC, Fortaleza, 1973.
90
O isopor, que eu me lembro, acho que faz mais ou menos 20 anos. A
piúba era mais difícil, mais dificuldade. Foi aparecendo isopor e aí fômo
testá vê se dava certo. Aí deu certo e aí continuamô, né?”
A relação direta com a natureza também ficou mais distante no que diz
respeito à utilização de outros equipamentos de pesca, além das embarcações .
O melhor exemplo pode ser encontrado nas armadilhas usadas para captura da
lagosta. No início eram os prosaicos géréres, feitos a partir de redes
confeccionadas pelos próprios pescadores, entremanhadas numa sucessão de
aros ou com apenas um aro feito de cipós, comumente encontrados nas matas
da região de Canoa Quebrada. Segundo Vicente Viana, quando a pesca de
lagosta tomou maiores dimensões o géréré continuou sendo utilizado, mas os
aros de cipó são substituídos por outros, de arame de aço. A figura a seguir
monstra um géréré de um aro feito de madeira.
FIGURA 8: Géréré de um aro (Fonte: UFBA)
Utiliza-se o géréré colocando-se isca na haste no centro do saco. Quando os
crustáceos entram são então suspensos e ficam presos. Como se percebe, o
próprio géréré tomou outras características, readaptado que foi pela adoção de
aros feitos de arame, o metal assumindo o lugar da madeira neste tipo de
equipamento, que passa a ter mais resistência e durabilidade. Mas a piúba, assim
como outros tipos de madeira, já não estaria escasseando após séculos (ou, no
mínimo, décadas) de extrativismo?
Afirmar isso não significa dizer que, além de eventuais dificuldades de
obtenção de matéria prima, os pescadores passaram a ser simples dependentes
de novos materiais. Pode-se dizer que se repetiu com os pescadores artesanais o
91
que aconteceu no contato dos índios com os instrumentos de metal: produziriam
mais em menor tempo e viram suas ferramentas de trabalho durarem mais
162
.
Mas o que aqui interessa é, sobretudo, uma discussão sobre o sentido da
tradição, nos termos que Diégues propõe:
“A introdução de determinadas tecnologias pode alterar certos aspectos
de produção e da vida social de comunidades de pescadores artesanais
sem que se modifiquem os elementos fundamentais da pequena
produção mercantil(...). A questão da tradição deve ser analisada dentro
do que constitui de um lado a pequena produção mercantil na pesca e
de outro a sua transformação possível na produção capitalista
caracterizada pela separação do produtor direto de seu objeto e meios
de produção, realizada através do capital e pela introdução das relações
de trabalho capitalista”
163
.
Como gente que “trabalha, come e dorme, gera filhos e saberes
variados”
164
, os pescadores de lagosta adaptam suas tradições, suas técnicas e
equipamentos a novas necessidades. Esse conhecimento técnico aparece como
determinante na importância que a pesca de lagosta viria a ter para esses
trabalhadores. Seu trabalho não desapareceu, mas alterou-se e exigiu uma
readaptação de equipamentos a partir de conhecimento pré-existente para a nova
alternativa que surgia
165
. Afinal, é preciso concordar com Goody, segundo quem
“toda sociedade enfrenta o problema de ter que passar seus bens e valores para
a próxima geração, e há certamente modos diferentes de fazê-lo”
166
.
Durante a pesquisa que levou a este trabalho, tornou-se necessário (e
mesmo inevitável) atentar para o "saber fazer", para as "maneiras de fazer" que
"constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço
organizado pelas técnicas de produção sócio-cultural"
167
. A relação do homem
162
Para maiores esclarecimentos sobre a relação dos índios com esses equipamentos ver
CLASTRES, Pierre , A Sociedade Contra o Estado, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1988.
163
DIEGUES, Antonio Carlos S.(org.), Op. Cit.
164
LINHARES, Maria Yelda, História Agrária, in CARDOSO, Ciro, e VAINFAS, Ronaldo (orgs.),
Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia, Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1997.
165
“Samper chama a atenção para o fato de que, quanto às inovações técnicas, a adoção de uma
nova ferramenta, embora já conhecida em outro momento, dependerá de vários fatores, inclusive
da existência ou não de ocupações alternativas para a força de trabalho e, sobretudo, ‘ da
avaliação que se faça das vantagens e riscos de sua adoção’”. LINHARES, Maria Yelda,id.
ibidem..
166
Entrevista in PALLARES-BURKE, Maria Lucia Garcia, As muitas faces da História, Editora do
IFCH-Unicamp, 1996, pg. 38.
167
“Os utensílios são marcados por usos de modo mais lato, indicam portanto uma historicidade
social na qual os sistemas de representação ou procedimentos de fabricação não aparecem mais
só como quadros normativos mas como instrumentos manipuláveis por usuários”. CERTEAU,
Michel de 1996, in SILVA FILHO,,Antonio Luiz Macedo, Paisagens do Consumo, Fortaleza no
92
com novas técnicas e novos objetos deve sempre ser elemento de estudo, pois
"o processo tecnológico subtrai-se, habitualmente, à apreensão dos sentidos.
Pode-se concluir, portanto, pelo aumento de intermediação entre corpo e os
resultados de suas intervenções"
168
.
Também se deve ressaltar a importância que os objetos conferem à
significação social do trabalho. Eles “não só respondem a funções utilitárias mas,
em última instância, classificam as pessoas e geram critérios e condições para as
relações sociais”
169
. Bezerra de Meneses lembra que “no museu, os objetos se
transformam em documentos, isto é, objetos que assumem como papel principal
o de fornecer informação”
170
.
Creio que uma vila de pescadores como as citadas neste trabalho, onde
persistem técnicas artesanais, podem ser vistas como verdadeiros ‘museus vivos’,
e não só pelo olhar treinado do historiador. Caminhando por lugares como estes,
encontramos peças de jangadas, em pequenos montes de serragem resultante da
confecção de cangalhas. Os objetos cruzam o caminho das pessoas o tempo todo
e são o resultado direto da ação e da presença humana nesses locais, são
“vetores de significação e valor que os grupos sociais produzem e
constantemente modificam”
171
. Nas vilas de pescadores, assim como nas vilas
operárias urbanas, tropeça-se na História a cada passo. Nesses agrupamentos
humanos, demasiado humanos,
“o saber pescar é algo que se produz e se
acumula culturalmente (...). Esse saber socialmente produzido, transmitido pelos
mais velhos e mediatizado pela experiência particular do pescador, não se traduz
no mero manejo dos equipamentos de pesca, mas nos conhecimentos das
condições de sua utilização – no domínio do espaço”
172
.
Um dos resultados da pesquisa foi entender como as modificações nos
espaços físico e social incidiram nas relações de trabalho e na autonomia do
pescador artesanal. Como já foi demonstrado, com as novas técnicas vieram
Tempo da Segunda Guerra, Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará,
Fortaleza, 2002.
168
MENEZES, Bezerra de, in SILVA FILHO,Antonio Luiz Macedo, Fortaleza, Imagens da Cidade,
Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, Fortaleza, 2001 , pg. 52
169
MENESES, Ulpiano Bezerra de, Museus Históricos:da celebração à consciência histórica, in
Como Explorar um Museu Histórico, Museu Paulista/Univesidade de São Paulo, São Paulo 1994.
170
Id. ibidem
171
Id. ibidem
172
OLIVEIRA, Lucia Helena, Op. Cit.
93
também novas regras, novos tipos de isca, novos "aparelhos-de-pesca”. A
introdução da pesca comercial insere os pescadores num novo mercado e numa
nova atividade, eminentemente capitalista. Nesse sentido, são vários os relatos
sobre as modificações e a diversificação nas relações econômicas e nas técnicas
de pesca de lagosta, conforme Guimarães e Fontenele Filho
173
:
"A pesca de lagosta, como atividade extrativa, industrial e
comercial(exportadora), se enquadra nos setores primário, secundário e
terciário da economia. No setor primário incorre nos custos operacionais
com a construção de barcos e aparelhos-de-pesca, e pagamento de mão-
de-obra; no setor secundário incorre em custos com mão-de-obra,
equipamentos e instalações físicas; e no setor terciário, aufere receita com
a venda dos produtos, para ressarcimento das despesas realizados nos
dois outros setores” .
A pesca industrial não eliminou o trabalho dos pescadores artesanais, que,
segundo dados recentes, detêm metade da frota em atividade no Ceará
174
. Na
verdade, os pescadores passaram por um exercício de (re)apropriação de
saberes existentes antes mesmo da introdução de máquinas e novos
equipamentos com a pesca da lagosta. Um exemplo: se a indústria trouxe o côvo,
ou manzuá, feito de tela de arame de aço envolvendo uma armação de madeira,
os pescadores o readaptaram na cangalha, que tem duas bocas (o côvo tem
apenas uma) e cuja tela é feita de náilon. A cangalha pode ser totalmente
confeccionada pelos próprios pescadores, que coletam madeira (geralmente pau-
ferro
175
) nas matas e tecem eles mesmos a rede da armadilha.
Mais uma vez recorro ao testemunho do perspicaz Luciano Freire para
ilustrar como o saber-fazer de um pescador não desapareceu com o surgimento
da indústria:
“Eu faço minhas jangadas e ninguém nunca me ensinou, eu também
nunca pedi para ninguém me ensinar. Eu só de olhar eu vi e aí eu
mesmo faço. Minhas rede de pescaria nunca ninguém me ensinou a
173
FONTENELES-FILHO, Antonio Adauto, e GUIMARÃES, Maria Socorro Sobra, Diagnósticos
da situação econômica da indústria lagosteira no Estado do Ceará, Labomar, Fortaleza, 2000
174
"A frota lagosteira no Ceará é composta por cerca de 2.000 embarcações, desde pequenos
botes a remo a lanchas com casco de ferro. As embarcações artesanais(movidas a remo e velas)
representam 49,1% dessa frota, enquanto que as motorizadas representam 50,9% , das quais
apenas 2,7% têm casco de ferro. A maioria das embarcações (84,5%) mede até 12m de
comprimento total e se concentra nos municípios de Aracati, Beberibe, Trairi e Acarú, destacando-
se o município de Icapuí com 20% das embarcações lagosteiras do Estado" , CASTRO E SILVA,
Sonia Maria Martins de, e Rocha, Carlos Arthur Sobreira, Embarcações, Aparelhos e Métodos de
Pesca Utilizados nas Pescarias de Lagosta no Estado do Ceará , Labomar- Ufc, Fortaleza, 1999.
175
Nome científico:Caesalpineae ferrea .
94
remendar, eu vi fazer e eu mesmo fiz, quem remenda sou eu .Outra
coisa que aprendi: tem gente que aprende fazendo, eu aprendi
desmanchando. Sabe o que foi? Amarrar o anzol, encastoá que nóis
chama. Eu achei uma veiz um anzol e , aí, cê sabe, minino é muito
curioso, aí eu fui, olhei, olhei, observei bem, deixei, vi como é que era,
né? Aí fui desenrolei tudo para ver como é que era. Aí eu fiquei: então
se eu for fazer esse trabalho agora eu faço. Aí fui fazer e deu certo. Não
foi fazendo, foi desmanchando.”
176
O desmanchar de Luciano Freire também pode ser traduzido e entendido
como permanência mas também reapropriação do saber tradicional. Ele, quando
criança (e como tantos outros meninos daquele e deste tempo) aprendeu
brincando, trabalhando e dominando a natureza. Atos que constroem o trabalho
cotidiano como a dimensão social e “constitutiva fundamental da vida, ao mesmo
tempo em que permitem e realimentam uma reflexão contínua acerca da teoria
como princípio organizativo do conhecimento”
177
. Ainda mais se consideramos
como parte importante desse aprendizado o brincar, que, para os pescadores, se
reflete no lazer. É interessante, por exemplo, uma comparação do tempo de
trabalho e de lazer da cidade com o tempo do pescador.
Compulsoriamente, o pescador de lagosta deve paralisar suas atividades
durante o defeso (o paradeiro), entre janeiro e abril. Por ser produção sazonal, a
pesca de lagosta se assemelha a produção na agricultura. O paradeiro é também
o tempo de confeccionar novos equipamentos (principalmente manzuás e
cangalhas), reformar e pintar as embarcações. Estabelece-se uma temporalidade
diferente, a de ficar em terra. Conseqüentemente, tempo de ficar mais próximo do
lar, da família, dos amigos, do futebol à beira-mar. Ainda que não signifique total
ausência de atividades relacionadas à pesca de lagosta, o paradeiro é um
interlúdio, uma pausa.
É possível também considerar uma “classificação filosófica do
brinquedo”(Benjamin
178
). É comum em algumas comunidades a realização de
‘regatinhas’, onde as embarcações que competem são réplicas em miniaturas das
embarcações de verdade. O que parece mera brincadeira traz uma
176
Luciano Rocha Freire, pescador e construtor de jangadas nascido em Canoa Quebrada e
morador dos Estevão.
177
O trecho entre aspas foi extraído do texto Trabalhos e Migrações, do folder de divulgação da
seleção 2004 do Mestrado em História do Departamento de História da UFC.
178
BENJAMIN, Walter, História Cultural do Brinquedo, in Magia e Técnica, Arte e Política, Obras
Escolhidas, volume 1, Editora Brasiliense, 1996. Benjamin historiciza o brinquedo, que, a partir do
95
representação de realidade. As miniaturas geralmente são confeccionadas por
pescadores adultos que as fazem de presente para seus filhos, não sem
importantes simbolismos e significações sociais. As crianças desde cedo se
familiarizam com o que pode vir a ser seu instrumento de trabalho no futuro, algo
como o incentivo que se faz às meninas para brincar de casinha ou de boneca.
São brincadeiras sérias, domesticam as crianças para papéis sociais que, se
supõe, exercerão no futuro: a menina ‘será’ mãe ou dona-de-casa, o menino
‘será’ o chefe da família , o que exerce trabalho fora do lar, seja pescador,
motorista (meninos brincam de carrinho?), policial ou militar. Prossegue Benjamin:
“Mesmo quando não imita os utensílios dos adultos, o brinquedo é uma
confrontação – não tanto da criança com o adulto, como deste com a
criança. Não são os adultos que dão em primeiro lugar os brinquedos às
crianças?(...) O brinquedo infantil não atesta a existência de uma vida
autônoma e segredada, mas é um diálogo mudo, baseado em signos,
entre a criança e o povo”
179
.
O tempo de trabalho do pescador está mais próximo do seu "tempo
cultural" do que o dos trabalhadores urbanos. Tem-se clareza disso ao se
assistir a uma das tradicionais regatas de jangadas ou botes a pano que
praticamente toda comunidade praiana realiza pelo menos uma vez por ano
180
.
Assim como a população sertaneja se diverte domando, nas vaquejadas, o
mesmo gado que tange no pasto (em que pese a atual espetacularização desses
eventos), os pescadores exibem-se orgulhosos em competições onde sua perícia
pode ser admirada por todo um público assistente. O esporte é incorporado pelos
pescadores como atividade afinada ao trabalho. Para um pescador, conduzir a
embarcação numa regata é um acontecimento. Algo bastante diferente do dia-a-
dia de sua árdua jornada, que geralmente consiste em partir de madrugada para o
mar, longe dos olhares cotidianos, e retornar desgastado no final do dia. Qual
trabalhador urbano utiliza-se de seu instrumento de trabalho também para o
lazer?
São em momentos assim que "as pessoas talvez tenham de reaprender
século XIX , para além das coorporações artesanais , é produzido também pela indústria.
179
BENJAMIN, Walter, Op. Cit.
180
Atentei para isso em 1996 , em Redonda (Icapuí-CE).Me impressionou o interesse com que
alguns amigos pescadores assistiam, pela televisão, as disputas de vela nas Olimpíadas.
96
algumas artes de viver que foram perdidas na revolução industrial”
181
, entre
trabalhadores muitas vezes vistos como ‘desqualificados’, ‘analfabetos’ e
‘ignorantes’, quando não se utilizam adjetivos mais pejorativos (como
‘preguiçosos’ e ‘vagabundos’) para se referir ao pescador . Ao contrário de muitas
categorias de trabalhadores urbanos, os pescadores sabem “como preencher os
interstícios de seu dia com relações sociais e pessoais mais enriquecedoras e
descompromissadas, como derrubar mais uma vez as barreiras entre o trabalho e
a vida"
182
.
“Vida” não deve ser desassociada do processo de aprendizado do
pescador artesanal. Isso seria desconsiderar um aspecto interessante do
repassar de saberes que esta pesquisa aborda. A atividade pesqueira, o
conhecimento dos marcos marítimos, das épocas do ano, das melhores
condições para captura da espécie, são elementos, dentre outros, aprendidos no
cotidiano, fora de uma estrutura formal de ensino
183
. Para a imensa população
que habita nos locais como os aqui apresentados, pescar não é algo que se
aprende na escola, e sim no convívio com os pais, amigos, vizinhos. A pesquisa
do SINE-CE citada anteriormente comprova um cenário que é comum às
comunidades de pescadores. Mais de 62% dos entrevistados pela equipe do
SINE informaram que aprenderam a pescar com os próprios pais, e mais de 25 %
disseram que aprenderam com outros companheiros.
Essa pesquisa do SINE-CE foi concluída há mais de 15 anos (1989) e
concluiu que tratava-se de uma forma de aprendizado comum “nos países onde o
índice de analfabetismo é alto” Em que pese a implantação de políticas públicas
de ensino nos últimos anos, quando ampliou-se o acesso à educação básica , o
analfabetismo ainda é grande entre os pescadores artesanais. Assim são
reduzidas as perspectivas de encontrar trabalho em outras atividades que não a
pesca, o que leva ao fortalecimento do laço com os mais velhos e a continuidade
do processo tradicional de aprendizagem
184
. Um conhecimento do qual os
181
THOMPSON, E.P., Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional, São
Paulo, Cia. das Letras, 1998
182
Id. Ibidem.
183
Claro que aqui não se trata de desconsiderar a importância de pesquisas e do ensino
acadêmicos desenvolvidos pela Engenharia de Pesca e pela Oceanografia.
184
62,34% dos pescadores entrevistados pelo SINE-CE , seja na pesca artesanal seja na
industrial, informaram que aprenderam a pescar com parentes. 10.39% aprenderam sozinhos e
25,97% disseram que aprenderam com companheiros. Apenas 0,65% foram treinados por
97
pescadores têm de se valer não apenas para sobreviver, mas também para
enfrentar as adversidades a que estão sujeitos a cada temporada de pesca,
sobretudo com as oscilações de produção registradas no setor lagosteiro nos
últimos anos.
5- Nem tudo que reluz é ouro.
Os primeiros anos de pesca de lagosta registraram altas ininterruptas (ver
tabelas 1 e 2 nos Anexos). Segundo a Sudene, a produção de lagosta para
exportação em Fortaleza e no Recife saltou de 40 toneladas para 6.210 toneladas
somente entre 1955 e 1962
185
. Nada parecido com o cenário atual, quando as
estatísticas apontam para mais uma grande crise no setor
186
. Crise anunciada
ainda na década de 1960, quando ocorreria a primeira grande escassez de
lagosta que se daria em 1965, e seria uma constante a partir da década de 1980
conforme ,demonstra tabela a seguir.
Tabela 2: Produção de lagosta no Ceará e no Nordeste entre 1981 e 2000. A
tabela detalha a produção das duas espécimes de lagosta comercializáveis
(p. argus e p. laevicauda) – Fonte: Labomar-UFC/ Prof. Adauto Fontelene.
0
1981 6.401 2.134 2.902 967 9.303 3.101
5
1982 6.906 2.302 2.340 780 9.246 3.082
6
1983 3.755 1.252 1.519 506 5.274 1.758
2
1984 6.527 2.176 2.330 777 8.857 2.952,33
6
1985 5.940 1.980 1.614 538 7.554 2.518
7
1986 3.868 1.289 1.506 502 5.374 1.791,33
0
1987 5.354 1.785 1.578 526 6.932 2.310,67
0
1988 5.570 1.857 2.585 862 8.155 2.718,33
8
1989 6.143 2.048 1.460 487 7.603 2.534,33
8
1990 6.901 2.300 2.301 767 9.202 3.067,33
3
1991 8.248 2.749 2.750 917 10.998 3.667
7
1992 7.191 2.397 1.797 599 8.988 2.996
7
1993 6.585 2.195 1.302 434 7.887 2.629
3
1994 6.468 2.156 1.941 647 8.409 2.803
3
1995 8.107 2.702 1.431 477 9.538 3.179,33
0
1996 7.753 2.584 1.057 352 8.810 2.936,67
7
1997 5.351 1.784 729 243 6.080 2.026,67
7
1998 4.069 1.356 1.317 439 5.386 1.795,33
1999 3.773 1.258 1.223 408 4.996 1.665,33
9
2000 4.173 1.391 1.351 450 5.524 1.841,33
P. LAEVICAUDA-CEP.ARGUS-CE TOTAL-CEANO P.ARGUS-NE P. LAEVICAUDA-NE TOTAL-NE
empresas e 0,65% fizeram algum curso especifico. FELISMINO, Pedro Henrique de M.,
MOREIRA, Fernanda Mara Penaforte e SANTOS, João Bosco Feitosa, Op. Cit.
185
Ver tabelas nos anexos.
186
“ Pesca tem produção ameaçada”, anuncia O POVO de 7 de setembro de 2003, apontando
para uma queda de 7.8t em 91 para 4,2t em 96. Para 2003 espera-se uma produção ainda menor.
Em contrapartida, o preço do quilo saltou de US$ 19,7 em 1991 para US$ 25,6 em 2000.
98
Conforme a tabela, nas décadas de 1980 e 1990 e relação de queda com o
aumento na produção anual é inconstante, provavelmente reflexo de problemas
como pesca predatória, redução de cardumes, aumento na frota pesqueira, entre
outros. Ainda conforme a tabela, percebe-se que a oscilação da produção
acentua-se nos anos de 1990. Se em 1991 registrou-se a maior produção desde o
estabelecimento da indústria da pesca no NE(10,9 t) , a década terminará com
uma produção(5,5t) menor do que a de 1962 (6,2t)
187
.
A redução dos cardumes de lagosta com o início da exploração foi tão
evidente que exigiu intervenção do Estado. A partir de 1975 o governo federal
regulamenta o período de interrupção da pesca de lagosta entre Janeiro e Maio, o
"defeso" (ou "paradeiro", no linguajar dos pescadores), causando impacto na
atividade dos pescadores, provocando ociosidade
188
.
A necessidade de se regulamentar a pesca era cogitada pela
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) ainda nos anos
de 1960, prevendo limites de tamanho para captura, proteção para reprodução
das espécies de valor comercial (Panulirus argus e Panulirus laevicauda) e
registro de barcos e pescadores, entre outros itens
189
. Posteriormente a
implantação do defeso, veio a inclusão dos pescadores no seguro-desemprego, a
partir do estudo do SINE-CE do final dos anos de 1980, determinando o
pagamento de um salário mínimo por cada mês sem trabalho.
Se a regulamentação efetiva da pesca só vem nos anos de 1970, ela não
deixou de ser assunto ainda nos anos de 1960. Em 1962 o Ministério da
Agricultura baixa uma portaria determinando a suspensão da pesca entre os
meses de fevereiro e maio a partir daquele ano. Mas a determinação foi
invalidada, conforme notícia veiculada em O POVO de 15-02-1962:
“PERMITIDA A PESCA DA LAGOSTA ATÉ 15 DE MAIO”
“Foi suspensa a portaria 70 do Ministério da Agricultura que proibia a
pesca da lagosta entre o dia de hoje e o dia 15 de maio(...). A medida
187
FONTE: Labomar/ Prof. Adauto Fontele - 2005
188
"Um dos maiores problemas levantados pelo setor produtivo tem sido o desemprego gerado
por essa medida administrativa, uma vez que poucos pescadores desenvolvem outra atividade
nesse período", in CASTRO E SILVA, Sonia Maria Martins de, e ROCHA, Carlos Arthur Sobreira,
Embarcações, Aparelhos e Métodos de Pesca Utilizados nas Pescarias de Lagosta no Estado do
Ceará , Labomar- Ufc, Fortaleza, 1999.
189
Coelho, Petrônio A., Bases para regulamentação da pesca da lagosta, Boletim Estatístico de
Pesca, SUDENE, 1962.
99
beneficiou a mais de mil pescadores cearenses, que ficariam privados
do seu meio de subsistência, bem como a própria economia cearense,
que perderia cerca de 300 milhões de .....por movimentos.”
190
O professor Melquíades Pinto Paiva então já chamava atenção para o
assunto, segundo chamada de O POVO de 21-02-1962: “Técnica: não é possível
deixar sem regulamentação a pesca da lagosta - Carta do dr. Melquíades Pinto
Paiva , diretor da Estação de Biologia Marinha da Universidade”
191
.
No final do ano de 1962 uma rara matéria, de iniciativa do jornal O POVO,
reforçava o tema:
“LAGOSTA TENDE A DESAPARECER DAS ÁGUAS DO CEARÁ”
A pesca da lagosta em águas cearenses agora está sendo feita da
maneira mais primitiva possível do ponto de vista de proteger o
espécime a fim de evitar seu desaparecimento . A Divisão de Caça e
Pesca que fiscaliza a exploração do crustáceo está completamente
desaparelhada para exercer seu trabalho. Enquanto isso a pesca é feita
em larga escala por quase vinte companhias diferentes. Como se sabe
o comércio da lagosta é feito preferencialmente por estrangeiros.
Para dar uma idéia da ineficiente ação da Divisão de Caça e Pesca,
basta dizer que nesta época do ano não dispõe de qualquer estimativa
ou dados sobre a exploração e a exportação do crustáceo. Há algum
tempo atrás a Divisão de Caça e Pesca ensaiou a compra de barcos
para fiscais e portarias proibindo a pesca da lagosta na época da
desova. A portaria não está mais em vigência e possivelmente não
será mais renovada por desinteresse e pressão das firmas de pesca e
os barcos não serão adquiridos, conforme soubemos. Os técnicos mais
autorizados são de opinião que se persistirem os métodos atuais a
lagosta desaparecerá definitivamente das águas do Ceará”
192
.
Porém o lobby das empresas pesqueiras era muito forte naquele
momento, e a pesca seguiu sem regulamentação por mais de uma década. O
próprio professor Melquíades Paiva conta que a luta pela regulamentação foi
difícil. Precursor da luta pela defesa da espécie, o professor Melquíades Paiva
vive no Rio de Janeiro desde 1976 e acabou se tornando uma espécie de
“exilado” por suas posições, conforme ele mesmo relatou:
“Saí daí [de Fortaleza] inclusive por que arranjei muita inimizade por
causa disso. Muito lagosteiro não gosta de mim por causa disso. Eu tive
muito atrito. Não foram poucos não e principalmente depois da
introdução da rede de caçoeira. Os lagosteiros não me perdoavam, não
190
O POVO, 15-02-1962
191
O POVO, 21-02-1962 [ OBS: não há microfilmagem da página onde estaria a carta].
192
O POVO, 14-12-1962.
100
me deixavam em paz. Eles faziam bandalheiras e eu avisava a Marinha.
Quem introduziu a rede foram os grandes. Produzi relatório para Sudepe
e disseram que eu era comunista, era contra empresa privada. Nos
relatórios eu mostro a desgraça da pesca, por volta do final dos anos
1960”.
193
Ao longo das ultimas décadas, o discurso e a prática preservacionistas
foram incorporados, em maior ou menor escala, tanto por órgãos públicos quanto
por movimentos organizados de pescadores, mas não sem que fossem travadas
outras “guerras” e sem que os problemas desaparecessem, tornando-se cada vez
maiores e mais variados.
Um exemplo disso é que, sem lagosta os pescadores são levados a outra
modalidade de pesca que, para ser rentável tanto quanto a do crustáceo, pode
ameaçar de extinção outras espécies. Vale citar o caso da pesca de camarão com
rede de arrasto, proibida, mas largamente praticada. Esse tipo de pesca captura
camarão marinho usando um tipo de rede (a caçoeira) que raspa o fundo do mar
e, além do camarão, traz corais, pedras, peixes pequenos e tartarugas. Isso tem
feito com que tanto o camarão quanto outras espécies diminuam ano a ano. “Há
cinco anos a gente colocava a rede no mar e quando ia apanhar, dentro de quatro
horas, tirava até 100 quilos de pescado. Hoje a gente não tira cinco quilos”,
reclamava o pescador José Marques dos Santos, da praia de Taíba, em Caucaia-
CE, na região metropolitana de Fortaleza. Faz coro com ele o pescador e vizinho
Francisco Aurélio Gabriel: “ A gente tinha o camarão branco, o lagostim, os peixes
miúdos e muitos outros frutos do mar, criados no banco de corais da Taíba. Hoje
não temos quase nada e o pouco que resta a rede de arrasto está destruindo”
194
.
O camarão, a partir da década de 1990 do século XX, ganha pouco a
pouco o prestígio da lagosta na pauta de exportações do Nordeste
. 195
Alastra-se,
no litoral do PI, RN e CE, os criatórios de camarão em cativeiro, que somavam
mais de 250 somente no Ceará em 2002 (Ibama), e causam problemas sérios no
meio ambiente, pois geralmente são instalados em área de mangue ou de matas
ciliar, provocando desmatamento. O trabalho nos viveiros trouxe novas técnicas e,
193
Entrevista com Melquiades Pinto Paiva.
194
“Diminuição do pescado: Pesca predatória destrói criatórios naturais”, jornal Diário do Nordeste,
Fortaleza, 30/07/03.
195
Só no Ceará, de janeiro a setembro de 2003, o camarão de cativeiro rendeu mais R$ 50
milhões e já era o segundo item na pauta de exportação (jornal O Povo, out/2003).
101
até 2003, pelo menos um trabalhador havia morrido devido ao manuseio de
produtos químicos sem a devida proteção, segundo a Delegacia Regional do
Trabalho e a Secretaria Estadual de Saúde do Ceará.
Estima-se que a indústria da pesca, somente na atividade artesanal,
envolva cerca de 600 mil trabalhadores em todo o Brasil
196
e está em constante
alteração, seja no que diz respeito à legislação trabalhista seja no que se refere
ao seu impacto ambiental. Hoje o cenário de atividades ligadas à pesca se
redesenha rapidamente. Fluxos migratórios surgem (ou ressurgem, são
redefinidos) na medida em que a população de determinada espécie marítima
diminui ou que a devastação ambiental atinge níveis críticos.
Este é o caso da população do Cumbe, comunidade centenária distante
cerca de 14 km de Aracati-CE. O Cumbe já foi santuário ecológico às margens
do estuário do rio Jaguaribe. Hoje é um dos lugares onde mais proliferaram
viveiros de camarão a partir dos anos de 1990. Tendo na captura de caranguejos
uma de suas fontes de renda, os trabalhadores do Cumbe, nosanos, são
obrigados a se deslocar para Areia Branca, no Rio Grande do Norte, há cerca de
150 km de distância. A partir de uma alta mortalidade de caranguejos ocorrida
em 2001, os caranguejos praticamente deixaram de existir no estuário. Por
enquanto, análises químicas da água não apontaram para qualquer relação com
a criação de camarão, apesar da sabedoria popular dos pescadores atribuir o
sumiço do caranguejo aos produtos químicos utilizados para conserva do
camarão “despescado”.
De fato, a migração aparece para pescadores de comunidades tradicionais
como solução forçada para o descontentamento da família daqueles pescadores
com o seu local de origem. A pesquisa do SINE-CE realizada com pescadores em
Fortaleza (1989) concluiu que mais de 55% dos entrevistados na capital tinham
sua origem no interior do Estado, e que 67% destes “migraram pela insatisfação
com o local de origem e, sobretudo, na busca de melhores condições de vida”
197
.
O turismo também aparece co-relacionado à atividade dos pescadores
196
Dados da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca do governo federal, no jornal Diário do
Nordeste, “Medida pretende diminuir registros falsos: Ceará será o 2
o
a recadastrar pescadores”,
18/07/2005.
197
FELISMINO, Pedro Henrique de M., MOREIRA, Fernanda Mara Penaforte e SANTOS, João
Bosco Feitosa ,Op.Cit.
102
artesanais. A partir da segunda metade dos anos 70, houve "a progressiva
diminuição dos estoques [de lagosta] e a queda de produtividade. Esse fato,
associado ao fim da política de incentivos fiscais ao setor pesqueiro industrial, em
1977, elevou os custos produtivos e fez com que diversas empresas passassem
de produtoras a compradoras. As empresas concentraram suas atividades no
beneficiamento e na comercialização do produto para o mercado externo,
financiando a pesca da lagosta pelo setor pesqueiro artesanal"
198
.
Essa primeira grande crise da pesca coincide com a época (final dos anos
de 1970) a partir da qual se acentua o fluxo turístico (nacional e internacional)
para praias brasileiras. Os pescadores passaram a dedicar parte do tempo em
que não estão pescando a passeios de jangada com turistas. Atividade rentável (o
preço atual é de cerca de R$ 10,00 por pessoa) e que exige esforço bem menor
do que o desprendido numa jornada de pesca.
O turismo viria a ser agente transformador na história de várias localidades
litorâneas a partir dos anos 70, alterando relevos e comportamentos. Entre essas
praias figura Canoa Quebrada, “Itaparica, Alcântara, Porto Seguro, Arembepe,
Ilha do Mel, que já não estão tão seguras quanto à sua privacidade, a sua
identidade cultural”
199
.
Há muitas outras questões co-relacionadas à indústria da pesca da lagosta
aguardando respostas. Por exemplo: Freitas chama atenção para necessidade de
se ouvir as mulheres
200
. Seria interessante indagar qual passou a ser o papel das
mulheres, a partir do contato com a nova indústria, se de alguma forma isso não
alterou a “política do macho, da dominação masculina”
,
pois “o que permanece
lamentavelmente ignorado é a história do machismo e da masculinidade (muito
tipicamente assumida como normal e por isso, normativa, não problemática) ”
201
.
Cada vez mais as mulheres buscam inserção direta na produção
pesqueira, ainda que não seja com a lagosta, como, por exemplo, as
198
“A luta dos povos do mar”, revista Universidade Pública, ano III, nº 09, UFC, dezembro 2001.
199
CABANAS, Luiz Carlos, Pequena História de Canoa Quebrada, edição do autor, Fortaleza,
1990.
200
"É interessante observar como homens e mulheres contam suas histórias de maneiras
diferentes. Geralmente, os homens utilizam-se da voz ativa; as mulheres, da voz passiva."
FREITAS, Sonia Maria, História Oral, Possibilidades e Procedimentos , Humanitas/Fflch-USP, São
Paulo ,2002. pg 70 .
201
LINS, Daniel Soares, " Lampião, o homem que amava as mulheres" , Anna Blume, São Paulo,
1997
103
marisqueiras de Fortim(CE), há alguns anos já reunidas em uma associação e
hoje membros decisivos na Colônia de Pescadores local
202
. Mais uma vez recorro
ao trabalho do SINE-CE para compreender o porque dessa busca de espaço para
mulheres na pesca. Muitas vezes dependentes do trabalho dos maridos para
manter a casa, as mulheres de pescadores geralmente têm pouca qualificação
profissional para exercerem atividades extra-domiciliar. Embora seja comum elas
se valerem de saberes tradicionais relacionados à tecelagem manual (renda e
labirinto) para ganharem seu próprio dinheiro, trata-se de uma renda
complementar.
Quando ficam viúvas “aquelas mulheres que apenas esperavam seus
homens do mar e que administravam a família apoiada na ausência/presença do
marido, vêem-se sozinhas, obrigadas a trabalhar para sustentar a família (...). Por
não terem instrução, recorrem às atividades de faxineira, lavadeira, serviço
doméstico e até à prostituição, para não verem seus filhos morrerem de fome”
203
.
Mais do que uma solução para sobrevivência, em caso de viuvez, a pesca se lhes
apresenta como oportunidade de manter a dignidade perante suas famílias e suas
comunidades.
Nesses espaços se percebe ainda que há diferenças econômicas e de poder
local entre famílias diferentes, estabelecendo-se uma hierarquia mínima entre
elas. Tais diferenças não são evidenciadas, mas é nelas que está a relação de
poder, de dependência dos membros de uma família aos de outra. O fato é que
há oposições gritantes entre famílias que ascenderam ao poder político-
econômico (seja na representação oficial – Câmara Municipal, Prefeitura etc -,
seja na dita representação comunitária – associações, igrejas) e as famílias que
não o fizeram. Os micro-poderes emergem, embora dissimulados no não-dito.
Também são percebidas diferenças intra-familiares, ou seja, entre membros
da mesma família, onde a ascensão econômica e a melhoria de vida pode não se
dar uniformemente para todos os membros. O que não deixa de ser intrigante
considerando que não raro há famílias que se organizam como pequenas
202
A esse respeito ver dissertação de mestrado Mulheres do Mangue. Memória e Cotidiano das
Marisqueiras, Fortim-CE, de Gustava Bezerril Cavalcate, no Programa de Pós Graduação do
Departamento de História da UFC, 2003. Ver também Uma Pescadora Rara No Litoral do Ceará,
vídeo de autoria de Sidneia Luzia da Silva, apresentado no XX Cine Ceará. Sidnéia Luzia da Silva
é de Redonda e durante anos exerceu a pesca como profissão.
203
FELISMINO, Pedro Henrique de M., MOREIRA, Fernanda Mara Penaforte e SANTOS, João
104
empresas, onde vários irmãos pescam sob os auspícios de um patriarca que não
tem mais condições (ou mesmo necessidade) de ir ao mar, sendo este o
responsável pela remuneração, armazenamento e escoamento do resultado do
trabalho daqueles.
São aspectos que merecem atenção especial de um olhar “de fora”, do
“outro”, pois, conforme o Bourdieu,
“o pesquisador, ao mesmo tempo mais modesto e mais ambicioso do que
o curioso por exotismos, objetiva apreender estruturas e mecanismos que,
ainda que por razões diferentes, escapam tanto ao olhar nativo quanto ao
olhar estrangeiro, tais como os princípios de construção do espaço social
ou os mecanismos de reprodução desse espaço”
204
.
Creio que a prática do historiador deve se atentar para aspectos amplos
como os citados acima, pois se trata de um esforço no sentido de se definir uma
“ecosofia”, conceito que segundo Guatarri, envolve ética pessoal e meio ambiente
interagindo com o sistema econômico, para se confrontar à globalização, tão
apropriadamente chamada por este autor de Capitalismo Mundial Integrado
(CMI)
205
. Assim conduzidas, a pesquisa pode apontar para as novas (e também
antigas, mas desconhecidas) "cartografias do desejo" (Rolnik) escritas a partir
desses anos de pesca.
Termos e práticas mercadológicas como “diversificação da pesca” e
“reordenamento do setor lagosteiro” estão associados mais à lógica capitalista do
que à realidade de populações praianas. Estas exigem respostas imediatas para
continuarem trabalhando e sobrevivendo. Pois, para o capitalismo, a natureza
seria ‘inesgotável’, uma inverdade conforme vêm demonstrando os
desmatamentos em terra e a devastação dos mares. A constante redução dos
cardumes de lagosta, o aumento na atividade da pesca ilegal e o empobrecimento
visível das comunidades de pescadores do setor são sinais evidentes de que uma
desorganização se instalou no cotidiano desses trabalhadores, e tal processo tem
de ser amplamente analisado e compreendido para que sejam encontradas
alternativas a ele.
Diferentes, mas não menos grave que as batalhas do passado, estes são
Bosco Feitosa ,Op.Cit.
204
BOURDIEU, Pierre, Razões Práticas – Sobre a teoria das ações, Editora Papirus, Campinas-
SP, 1995. pg 15
105
alguns termos da guerra que vem sendo travada pelos povos do mar e que sem
dúvida trará desdobramentos que merecem atenção constante não só de
sociólogos ou biólogos, mas também dos historiadores.
205
GUATARRI, Felix, As três ecologias, Papirus, São Paulo, 1990.
106
CONCLUSÃO
Creio ter obtido êxito quanto a responder as muitas questões levantadas
nesta pesquisa. O primeiro capitulo deste trabalho comprovou suas hipóteses
iniciais: a indústria da pesca da lagosta foi introduzida no Brasil a partir de 1955 e
alterou definitivamente o cotidiano, os saberes, os hábitos e o meio ambiente de
uma população composta por milhares de famílias de pescadores. Sobretudo por
dar início ao processo de acumulação de capital a partir da organização de uma
atividade que antes seguia basicamente regras tradicionais e cuja produção
atendia a demandas localizadas. As entrevistas com alguns desses pescadores e
outros atores sociais que viveram naquele período vieram no sentido de confirmar
a pesquisa de arquivo, o que não deixou dúvidas quanto a este aspecto, ou seja,
a datação exata do início da pesca da lagosta com fins comerciais.
Também foi importante a confrontação dos discursos de jornais de linhas
ideológicas diferentes para entender que a instalação de uma modalidade nova
no mercado capitalista nacional não se deu consensualmente. Nas páginas de O
DEMOCRATA pode-se ver que os primeiros passos do americano Davis Morgan
causaram uma reação inesperada. O que se anunciava em jornais liberais (em O
POVO, por exemplo) como ‘progresso’ da pesca, é tido pelo jornal comunista
como mais uma frente de exploração dos trabalhadores brasileiros pelo
capitalismo internacional.
Não se trata aqui de endossar ou julgar o pensamento dos editores de O
DEMOCRATA, mas sim de evidenciar que nem todas as novidades que surgiram
nos anos de 1950 foram absorvidas uniformemente por todos os segmentos da
sociedade. Com a pesca da lagosta não foi diferente.
O segundo capítulo, ao abordar a “Guerra da Lagosta”, possibilitou
evidenciar três aspectos. Primeiro, demonstrar que tratou-se da inserção definitiva
de pescadores e de empresários brasileiros num mercado capitalista internacional
do qual eles estavam ausentes. Segundo, foi possível narrar o episódio
priorizando a leitura da imprensa local, através dos arquivos da Biblioteca Pública
Menezes Pimentel, e, terceiro, pôde-se contextualizar o conflito com outros
acontecimentos simultâneos, como o declínio do colonialismo internacional e o
107
final do governo de João Goulart, interrompido pelo golpe militar de 1964.
A consulta aos arquivos locais foi importante para esse capítulo. Boa parte
dos exemplares de O POVO se encontra micro-filmada na Biblioteca Estadual e,
embora o estado das máquinas leitoras deixe a desejar, o resultado foi
compensador. É claro que o trabalho seria mais completo se contivesse outras
fontes, jornais de outros estados e mesmo jornais da França, mas isso
dependeria de investimentos financeiros e de tempo e recursos que, infelizmente,
nos faltam para fazer pesquisa no Brasil (no que é valiosa a disposição pessoal e
o acompanhamento prestimoso dos nossos orientadores). Mas priorizar a leitura
de O POVO sobre a “Guerra da Lagosta” não significou desprezar outras fontes
só pelo fato de estarem distantes.
Hoje a Internet nos possibilita acesso a fontes que estão arquivadas a
milhares de quilômetros do local da pesquisa, mas esta também é uma consulta
que exige critérios e seleção para que não nos deixemos seduzir pelo simples
gesto de “copiar” e “colar” que o hiper-texto proporciona. Por exemplo, ao buscar
as palavras chaves “Guerra da Lagosta”, mas de 100 referências surgiram, e foi
preciso analisá-las com cuidado. Muitas eram nebulosas, outras parciais (artigos
de militares, por exemplo), outras carregadas de xenofobia, e muitas se tratavam
de artigos não científicos que narravam ou citavam a “Guerra” de forma
caricatural. De todas elas, apenas uma referência teve importância para este
trabalho, o tão citado artigo de Antonio Carlos Lessa
206
.
Por fim, o terceiro e último capítulo surgiu da complementação de
hipóteses levantadas inicialmente e do resultado de pesquisa de campo e leituras
incorporadas no decorrer da pós-graduação. O fato de ter sido orientado por um
antropólogo doutor em História (Franck Ribard) possibilitou uma transversalização
bibliográfica e de diálogos que não teriam acontecido apenas com
acompanhamento de outras disciplinas ou pesquisas em arquivos e trabalho de
campo.
Creio que a intenção mais importante desse capítulo foi alcançada, e
nela está contida a hipótese central de todo o trabalho: demonstrar que é
possível compreender historicamente a permanência e alteração de saberes da
206
LESSA, Antonio Carlos, A Guerra da Lagosta e Outras Guerras: Conflito e Cooperação Nas
Relações França-Brasil(1960-1964) , in Cena Internacional, Ano I, Número 1, UNB,1999.
108
pesca artesanal em confronto com a modalidade industrial A partir do conceito
de sócio-antropologia marítima, de Antonio Carlos Diégues, em comparação e
complementação com os diálogos travados com muitos pescadores ao longo
desses últimos anos, evidencia-se a História de uma categoria de trabalhadores
que por vezes aparece envolta pelo manto mítico da aventura. Com freqüência
vemos abordagens, em pesquisas “acadêmicas” ou na mídia, que satisfazem
muito mais ao que Bourdieu chama de “curiosidade pelo exotismo”
207
do que a
busca de singularidades que possibilitem compreender os diferentes momentos
históricos por que passam esses trabalhadores.
É importante ressaltar que foram tratados alguns dos muitos aspectos que
a história da pesca de lagosta propicia. Entre eles, destaca-se o potencial
interdisciplinar (o que passou a ser tão caro e importante à historiografia a partir
dos Analles), possibilitando diálogos entre a História Oral, a História Ambiental e
a “história do tempo presente”. Creio que muitas hipóteses aqui levantadas,
relacionadas com o turismo, o meio ambiente, com questões de gênero e a
identificação dos pescadores com a classe trabalhadora poderão ser
aprofundadas a partir desta pesquisa. Coloco a seguir alguns exemplos dessa
transversalidade possível entre assuntos proporcionados pela abordagem da
história do tempo presente dos pescadores, a começar pela análise da
permanência das crenças populares e do papel da religião.
Numa palestra proferida em Fortaleza em 2002, o professor José Gil,
sociólogo e antropólogo, ao abordar o sentimento de inveja nas sociedades,
afirmou que “jamais a ciência e a tecnologia da idade moderna foram capazes de
erradicar a magia e a feitiçaria das práticas culturais da sociedade”. O que diz o
pensador português é instigante, sobretudo se pensarmos nas comunidades que
vivem ainda em contato direto com a natureza. Nessas persistem sistemas
ancestrais de crenças e de curandeirismo, marcas de outras temporalidades onde
o acesso a tratamento médico e a remédios era raro ou mesmo impraticável.
Benzedeiras, raizeiros e outras categorias de “sábios populares” continuam
praticando antigos conhecimentos aos quais recorrem as comunidades
tradicionais quando se confrontam com “anomalias e contradições” (GEERTZ) às
207
BOURDIEU, Pierre, Razões Práticas. Sobre a teoria das Ações, Papirus Editora, Campinas,
1995.
109
quais não são dadas respostas objetivas no plano material.
Isso me interessa por concordar que, atrás de aparentes superstições, há
muito de sabedoria popular. Nas praias do interior do Ceará isso não é diferente,
os praticantes desses saberes estão vivos e atuantes, muitas vezes gozando de
prestígio tanto quanto as autoridades legais ou eclesiásticas. Localizar e
entrevistar detentores desses saberes ainda é possível de ser feito, e este seria
um objeto interessante para outra pesquisa.
Também caberia investigar até que ponto as diferentes crenças religiosas
determinam o ritmo de trabalho em comunidades como a Redonda, onde a
presença protestante é marcante, o que impõe diferenças que devem ser
consideradas e investigadas. Os católicos, por exemplo, não saem ao mar em
dias “santos”, como São Pedro (29 de junho) ou Nossa Senhora dos Navegantes
(08 de dezembro), paralisação que não existe entre os pescadores protestantes.
O catolicismo também propicia uma certa ritualização da saída para o
trabalho. No amanhecer do dia 1
o
de Maio de 2004, reabertura dos trabalhados
na pesca de lagosta, um coro de dezenas de mulheres faz ecoar, em procissão
pela vila, um hino católico tradicional cujo refrão diz
“Senhor, tu me olhastes nos olhos/ A sorrir, pronunciastes meu
‘nome/ Na praia, eu larguei o meu barco/ Junto a ti, buscarei outro
mar”.
208
A procissão antecedeu um café da manhã comunitário que reuniu
praticamente toda a vila de Redonda. Terminado o café coletivo, dezenas de
jangadas transportaram, para os botes, os pescadores e seus aparelhos de
pesca, iscas, víveres, repetindo uma rotina que se estabelece a partir de maio e
se estende até o final do ano. É importante, neste contexto, perceber a eficácia da
sabedoria espontânea, das crenças, dos simbolismos aparentes, mas plenos de
significados. São questões relacionadas mais às Ciências Sociais do que à
História, mas isso não impede que seja estabelecido o diálogo interdisciplinar.
208
O hino se chama “A Barca”, e a letra completa é:”Tu te abeiraste da praia/Não buscaste nem
sábios, nem ricos,/Somente queres que eu te siga/Senhor, tu me olhastes nos olhos/A sorrir
pronunciastes meu nome/Lá na praia eu larguei o meu barco/Junto a ti buscarei outro mar/Tu
sabes bem que em meu barco/ Eu não tenho nem espada, nem ouro/ Somente redes e o meu
trabalho/ Tu minhas mãos solicitas/ Meu cansaço que a outros descanse/ Amor que almejas
seguir amando/ Tu pescador de outros lagos/ânsia eterna de almas que esperam/Bondoso amigo
que assim me chamas.” Agradeço ao amigo Rosivaldo Pereira de Melo, colega na graduação, pela
letra de “A Barca”.
110
A figura do pescador, do jangadeiro, é indiscriminadamente utilizada para
promoção de eventos de qualquer natureza que ocorra na região litorânea,
sobretudo em Fortaleza. A jangada está no escudo da bandeira do Estado do
Ceará, como se o pescador fosse constituinte de um referencial identitário
comum à toda a população. A figura ou silhueta da vela da jangada adorna
desde estampas de roupas a congressos médicos, ou de Engenharia, ou de
Direito etc. Porém, distante da imagem do “herói” que “domina” a natureza,
encontramos a realidade nem sempre idílica de homens e mulheres que se
fazem valer de sua capacidade de conhecer e retraduzir um cotidiano que eles
sabem ser inconstante e mutável como é o mar com o qual convivem.
Neste trabalho, falo de pessoas que, no seu cotidiano, sempre exercem
prudência, no exato sentido de um aforisma de Nietzsche que leva esse nome,
“Prudência”:
“Não é bom viajar nesta região,/ E se possuis espírito, vela
dobradamente / Vão te atrair, te amar, a ponto de te dilacerarem: / são
espíritos exaltados e portanto, falta-lhes – sempre – o espírito”
209
.
Pois somente assim, evitando a mitificação, a folclorização e a
idealização da categoria “pescador”, é que se pode entender sua real condição
nos dias de hoje.
209
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, “A Gaia Ciência”, Hemus Editora, São Paulo , 1981.
111
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Jornal O DEMOCRATA. Anos:1956, 1957, 1958.
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2002.
-Jornal O LEME , jornal do Sindicato dos Armadores de Pesca do Ceará. 2005.
Filmes
-“Uma Pescadora Rara no Litoral do Ceará”, Sidneia Luzia da Silva, vídeo
apresentado no XX Cine Ceará. Sidnéia Luzia da Silva é de Redonda e durante
anos exerceu a pesca como profissão.
-“Canoa Veloz”, Tibico Brasil , curta metragem em 16mm apresentado no XX Cine
Ceará, Fortaleza, 2005.
-“Vilas Volantes”, de Alexandre Veras, curta metragem em 16mm apresentado no
XX Cine Ceará, Fortaleza, 2005.
-“Cidadão Jacaré”, de Firmino Holanda e Petrus Cariri, documentário exibido na
TV Cultura, 2005.
120
ÍNDICE DE MAPAS, TABELAS E FIGURAS (por ordem de inserção no texto)
-MAPA I – Localização dos principais municípios do litoral do Ceará
(Fonte:
http://www.mapas-brasil.com/index.html ........................................ pg.06
-Tabela 1 – Produção de lagosta no Ceará e no Nordeste entre 1955 e 1980. A tabela
detalha a produção das duas espécimes de lagosta comercializáveis (p. argus e p.
laevicauda) – Fonte: Labomar-UFC/ Prof. Adauto Fontelene.......................pg 21
-FIGURA 1 :Pilha de manzuás. Fonte: UFBA...............................................pg.23
-Figura 2: capa da edição de 25-07-1957 de O DEMOCRATA....................pg. 35
-MAPA II – Mapa do Brasil com destaque para área do litoral do Nordeste onde se deram
as movimentações militares na “Guerra da Lagosta”. Fonte:
http://www.mapas-
brasil.com/index.html. ....................................................................................pg 39
-Figura 3: Barcos apreendidos, fotos em O POVO de 03-08-1963...............pg. 43.
-Figura 4: Capa da edição de O POVO em 28-03-1963 ............................pg 46
-FIGURA 5 : charge publicada em O POVO de 04-03-63............................ pg. 56
-FIGURA 6: Capa de O POVO de 23/34-03-1963....................................... pg. 56
-FIGURA 7: alguns tipos de embarcações . Fonte: Labomar-UFC.............. pg. 82
-FIGURA 8: Géréré de um aro (Fonte: UFBA) ..............................................pg. 83
-Tabela 2: Produção de lagosta no Ceará e no Nordeste entre 1981 e 2000. A tabela
detalha a produção das duas espécimes de lagosta comercializáveis (p. argus e p.
laevicauda) – Fonte: Labomar-UFC/ Prof. Adauto Fontelene........................ Pg. 90
121
ANEXOS
ANEXO I
Entrevista com Luciano Rocha Freire, 50 anos, morador dos Estevão,
pescador e construtor de jangadas, gravada e transcrita pelo autor da
pesquisa no segundo semestre de 2002, nos Estevão(aracati-CE)
Pergunta- Você pesca desde quando?
Luciano Rocha Freire-Eu pesco desde os 9 anos, comecei a pescar com meu
pai. Deixei até de estudar. Nesse tempo é difícil aí eu estudava particular, meu
irmão pagava para mim.Ele pagava com pesca, ele pescava.
Eu, menino, prestava muita atenção nas coisa, mas no tempo da lagosta (meu
pai tinha jangada), eu e minha irmã....No tempo que meu pai pescava tinha muita
jangada, nesse tempo era só jangada, né? Aí, o que eu fazia: eu e minha irmã, a
gente ia pros mato buscar lenha para jangada levar para o mar. Nóis , nesse
tempo era barrica, e a água nóis botava quando era de manhã assim uma hora
dessas [eram 11h da manhã] já tinha mais ou menos quase todo mundo no seco
já, porque ia num dia e voltava no outro e quem fornecia a lenha e a água pra
jangada do meu pai era eu e ela e quando chegava o pescador pegava assim
cinco, seis, lagosta, pegava e botava pra gente, pagava o serviço pra nóis.
A gente vendia a lagosta, pegava o dinheiro e dava pra mãe da gente, não ficava
com o dinheiro porque era minino e não sabia, não precisava de dinheiro.
Me lembro que o pessoal pegava a lenha, a água e cozinhava as cabeça. Muitas
vezes, fazia o que, sobrava, fazia o que: enterrava, cavava um buracão, jogava
dentro e enterrava. Pegava muito.
E nesse tempo era dois por um, duas lagosta valia por um. E não era lagosta
pequena não. E a compra deles era dois por um.
P-E era jangada de que?
LRF- De piúba, era jangada de piúba
122
P- E era madeira daqui?
LRF – Não rapaz, meu pai pegava de Manaus, o navio trazia até Fortaleza, né?
Aí de Fortaleza pra cá vinha de caminhão. Aí vinha para Majorlandia. Aí nesse
tempo para passar era cancela, pra passar pagava um bom dinheiro. A gente
pegava uma jangada pequena, chegava lá amarrava seis pau, sete, oito,
amarrava e fazia uma balsa, a gente chamava uma balsa. Chegava aqui
encostava, aí quando a maré enchia, agente vinha bolando os pau grande,
pesado. Aí a gente colocava no ombro, pro rapaz, e ali mesmo ele construía a
jangada.
P- Você aprendeu assim?
LRF- A fazer jangada? Não nesse tempo dessas eu nunca fiz, quem fez foi
Raimundo, meu irmão. Meu pai pagava pra fazer aí Raimundo foi olhando, logo
aprendeu e feiz. Agora era jangadinha pequenininha
P- E com quantos se fazia uma jangada?
LRF-Uma jangada grande? Era uma faixa de que? Uns oito pau...
P- E quanto tempo durava.
LRF- Durava mais legal mesmo era um ano. Mas pesava, viu? Agora tinha uma
qualidade de madeira que era também piúba mas era madeira do Sul. Essa era
maneirinha, era leve, mas não era grossa que nem essa outra. E meu pai falava
que só só emendava os pau e os boi arrastava aquilo de dentro da mata ate
chegá.
P- E quando passaram a utilizar isopor?
LRF- Que eu me lembre, acho que mais ou menos 20 anos.
P- Pó que não usaram mais piuba?
123
LRF- Porque era mais difícil, mais dificuldade. Foi aparecendo isopor e aí fomo
testá vê se dava certo. Aí deu certo e continuamô. A piúba era toda torneada, não
era prego nem ferro não, era torno. Eu ia mais meu pai lá pros mato buscá uns
mói de pau, de pau-ferro, pra tazer, quer era os torno , de torneá. Aí pra furar era
difícil.
P- E quando chegaram as lanchas?
LRF- Depois que começou as lancha aí foi o destroço de lagosta. Mais ou menos
o que? Uns 18 anos mais ou menos. A jangada ia e voltava e a lancha ia e ficava
lá. Eu pesquei muito, passava até de 15 dias lá mas o total mesmo era de 12 dias
a viagem completa. A lancha chega e não respeita o barco, não respeita ninguém,
leva o material...
Nesse tempo a embarcação a pano , da jangada, ainda usava gêrêrê, e aí era
mais difícil e lagosta morria. Cada pescador daquele ia com dois gerere, era so
gerere, não tinha negócio de cangaia não, levava gerere e trazia. Fazia de fio, a
rede de fio, e o arco grande e tinha gente que dizia que no puxar vinha, cinqüenta,
sessenta lagosta. E as vezes não vinha porque ele [lagosta] é ligeiro, e é aberto o
gerere, é aberto por cima.
P- E as lanchas usavam guincho.
LRF- Tinha umas que tinha guinhco. Aí nóis pescava o quê? Com mais ou
menOS 300 côvo. Nesse tempo era covo. Um navio grande era seis pessoas, era
o motorista e quatro para trabalhar e o cozinheiro. Dependendo do tamanho da
embarcação, se for de deis metro pra riba, aí leva mais.
P- E o compressor?
LRF- Rapaz, o compressor.... Quando vem, vem acabando com tudo. Se acabar
o compressor a gente ainda vai vê lagosta ainda, mas se não acabar o
compressor não vai ter. A gente que é pescador pega seis, sete,cinco lagosta, e
o compressor não, ele cerca tudo. E você deve saber que adonde tem gente
véi[velha] não tem gente só véi, tem os minino também. Arrasta tudo e deixa que
124
quando chega em cima o peso dos grande já mata os pequeno, e lagosta é uma
coisa muito fraca pra morrer e, mesmo que quêra soltar, não adianta mais. É uma
coisa que atrapalha demais. O ano passado deram um combate bom, mas aí
abandonaram e quando abandona o pessoal do Rio Grande do Norte chegou,
quem tá invadindo é o pessoa do Rio Grande do Norte.
P- Pescando embarcado, ia muito distante?
LRF- Não, só no mar daqui, tem muito que sai fora, vai para Recife, isso aí os
barco grande, aí eles vão pra fora. Mas antigamente não precisava não, era
lagostim demais aqui mesmo, mesmo com muito barco mas todo mundo pegava.
A pescaria, pra levar o pescador pra frente, é o lagostim, a pescaria é a lagosta.
Se for pro mar e trazer cem quilo de peixe e vender a treis real dá 300 real.
Dadonde você vê que se pega quatro quilo de lagostim mesmo, se você pega, da
300 real, porque tão paganda até oitenta e dois real [preço do quilo em setembro
2003]. Você vê: um tantinho de lagosta é tanto dinheiro quando uma ruma de
peixe. É muita coisa, né?
P- Sempre foi essa diferença?
LRF- Toda vida, lagosta nunca chegou no preço do peixe não, nunca, não tem
nem condição. Agora, no tempo que era dois por um eu não sei como era o preço,
sei que meu pai tinha jangada e tinha um que era nativo, o Sebastião, tinha o
Morgam. Nesse tempo era bom demais, era ir e vir, ia no dia e voltava no mesmo
dia e quando não era ia hoje e voltava amanhã. Eu era tão pequeno nesse tempo
que eu e minha irmã, nóis ia buscar, nóis trazia assim, nóis era pequeno e não
tinha condição de nóis trazê duas lata d´água, nóis trazia, nóis duas, uma só.
Botava um pau e botava no ombro e aí nóis trazia pra encher uma barrica, né,
que não levava nem duas lata de água. Aí nóis trazia uma lata cheia ou senão
menos que cheia, a gente pegava mais ou menos uma lata e meia e a gente se
baseava, mas sempre sobrava um pouco. E pagava também porque a água
quando nóis pegava na bomba, nóis pagava né? Nesse tempo era bomba.
P- Vinha gente de fora para pescar?
125
LRF- Vinha, mas era pescador também. A jangada não era legal e mandava
chamar o carpina, mandava ajeitá o calço. Aí depois que Raimundo meu irmão
aprendeu quem fazia muito era ele. Aí, se sabe, a gente, minino, gosta muito de
ta observando as coisa. É que nem eu: Eu faço minhas jangadas e ninguém
nunca me ensinou, eu também nunca pedi para ninguém me ensinar. Eu só de
olhar eu vi e aí eu mesmo faço. Minhas rede de pescaria nunca ninguém me
ensinou a remendar, eu vi fazer e eu mesmo fiz, quem remenda sou eu .Outra
coisa que aprendi: tem gente que aprende fazendo, eu aprendi desmanchando.
Sabe o que foi? Amarrar o anzol, encastoá que nóis chama. Eu achei uma veiz
um anzol e , aí, cê sabe, minino é muito curioso, aí eu fui, olhei, olhei, observei
bem, deixei, vi como é que era, né? Aí fui desenrolei tudo para ver como é que
era. Aí eu fiquei: então se eu for fazer esse trabalho agora eu faço. Aí fui fazer e
deu certo. Não foi fazendo, foi desmanchando. Também tem uma coisa: tem
muito pescador aqui que não faiz nada, não sabe pra onde é que vai, tem gente
que sabe fazer a rede mas não sabe remendá
Anexo II
Trecho de conversa informal com Genésio dos Santos Craça, o
´Tibiro´, 64 anos, morador de Canoa Quebrada, um dos primeiros
compradores de lagosta, reproduzida a partir de anotações do autor desta
pesquisa.
“ A lagosta , quem começou a pescar em 56, foi o Erone e o Zé de Jackson, que
pescavam de gereré. Eles vendiam para Antonio de Adrião, do Córrego dos
Rodrigues e ele vendia no Mercado Velho de Aracati, para consumidor avulso.
Depois de quase um ano apareceu um americano chamado Morgan. De 57 para
58 veio outro americano, chamado Bill, da Pro Marina. Tinha também o Luiz
Guarani, que a gente chamava de Americano. Ele era de Recife, era o Rei da
Lagosta. O Luiz abriu as praias até o Retirinho [hoje divisa Aracati-Icapuí], botava
no caminhão Ford e levava para Fortaleza direto, isso em 58.
Em 59 abriram um frigorífico no Aracati, no Ubiraci, na esquina do Marilac
[hospital] com a Fábrica [Santa Tereza]. Até essa época a lagosta daqui ia de
126
jumento para Majorlandia e de lá ia para Aracati. Em 59 veio um jipe 54, do Chico
Velho, que recolhia a lagosta de Canoa a Redonda e levava para Majorlandia.
Antes de 56, 55, ninguém nem comia [lagosta] , dizia que fazia mal. A pesca era
de peixe, que a gente vendia pros marchan. Em 59 veio a Companhia , a Pro
Marina. Em 62 veio o Luiz Gentil, da Ipesserra. Lembro que eu comprei 20 e
tantas mil lagostas. No começo de fevereiro veio o ministro para Majorlandia, num
domingo. Quando foi de 12 horas , terminada a festa, veio o Neudo carregado de
lagosta. No dia seguinte todo mundo foi pescar. O Ministro veio para a festa
lagosta, o paradeiro é mais recente. .
A vida do pescador melhorou muito. A pesca de gerere foi até 63,64, aí chegou
as lanchas. Em 63 fracassou, desapareceu. Os pescador foram embora quase
tudim, aí a pesca caiu de uma vez, veio dar de novo agora.
Na Redonda tinha os ´samango´, a lagosta preta, listrada, ´soldado´. Lá toda vida
deu lagosta, nunca fracassou. Em Canoa caiu porque em 66, 67, metade dos
pescador foram embora. Redonda ficou direto e Canoa Quebrada voltou de dois
anos para cá. Em 70 deu a safra maior do mundo, de lá pra cá fracassou. Aqui na
praia hoje tem pouca gente. Tem gente de Aracati, de Redonda, de Diogo Lopes
[praia de Macau-RN].
Em 63 a lagosta era 10 conto o quilo. Primeiro a pesca era de gerere, depois veio
o manzuá em 66, 67, e depois a rede. A cangaia veio de outros país, do
estrangeiro mesmo. As companhia fazia assistencialismo, dava remédio,
transporte para o Aracati. Quando terminava a pesca ninguém tinha nada,
gastava nos cabaré, nas festas...” .
ANEXO III
Relato sobre progressão da política nacional na delimitação do território
marítimo brasileiro".(Fonte:www.brasilpordentro.hpg.ig.com.br/mar).
MAR TERRITORIAL
O limite internacionalmente admitido para a soberania de qualquer país
127
sobre as águas de seu litoral foi até bem pouco tempo, um tiro de canhão, ou
seja, 3 milhas marítimas. A Conferência Sobre o Direito do Mar, reunida em
Genebra em 1958, ampliou essa faixa, deixando a cada governo a faculdade de
fixar a extensão de sua conveniência, contanto que não ultrapassasse 12 milhas.
No Brasil, o interesse pelos recursos do mar começou em 1951, quando Getúlio
Vargas declarou "integrada ao território nacional a plataforma submarina, a parte
correspondente ao território continental e insular do Brasil". Os motivos para este
ato baseavam-se no fato de a exploração e aproveitamento das riquezas naturais
encontradas na plataforma serem cada dia maiores e de vários estados
americanos já terem reinvidicado esse direito de domínio, jurisdição ou soberania
(Estados Unidos e México, em 1945; Argentina, 1946; Chile e Peru, 1947). Além
disso, a intensificação da pesca em águas territoriais e alto-mar provocava leis
nacionais e convenções internacionais para regular esse exercício. Exceto alguns
movimentos internos e isolados, o Brasil não colocou em discussão a extensão de
seu mar territorial além das 3 milhas convencionais até 22 de setembro de 1966,
quando o presidente Castelo Branco enviou ao Congresso projeto de decreto-lei
ampliando para 6 milhas as águas oceânicas nacionais, com a finalidade principal
de proteger as atividades pesqueiras. Apesar de o decreto ter sido sancionado em
14 de novembro de 1966, diversos barcos estrangeiros continuaram extraindo
grande quantidade de pescado e produtos do mar da plataforma continental
brasileira, despertando a opinião pública para a necessidade de ampliar ainda
mais a faixa marítima nacional. Com a adoção do limite de 200 milhas pela
Argentina, o Brasil anunciou que não reconheceria esse direito. Entretanto, logo
foi assinado acordo multilateral entre os dois países e o Uruguai, estabelecendo a
faixa de 200 milhas e garantindo, também, o respeito mútuo pelas 6 milhas de
soberania nacional de cada um deles. O aparecimento no Rio Grande do Sul de
barcos pesquieors soviéticos capazes de aprisionar grandes quantidades de
pescado levou o deputado gaúcho Flores Soares, em 1967, a pedir urgência para
a tramitação, no Congresso, da lei que ampliava para 100 milhas o nosso território
marítimo, e por mais 100 a área de direito exclusivo de pesca. Neste mesmo ano,
surgiu o projeto de lei complementar apresentado pelo deputado Osmar Dutra,
que definia e delimitava a plataforma submarina: "1. O leito do mar e o subsolo
das regiões submarinas adjacentes a costa sob as águas do mar territorial e da
zona contígua e fora destes, até a profundidade em que se puder aproveitar os
128
recursos naturais aí existentes; 2. O leito do mar e o subsolo das regiões
análogas, adjacentes às costas das ilhas oceânicas". Com os pronunciamentos
dos membros do Congresso e dos representantes do Itamaraty nos organismos
internacionais, a plataforma submarina passou a ser a principal questão do
momento. Desta forma, ao mesmo tempo que ocorria no Rio de Janeiro a sessão
do comitê da ONU sobre a utilização pacífica dos recursos do fundo dos mares e
oceanos, o presidente Costa e Silva baixava decreto-lei dispondo sobre a
exploração e pesquisa na plataforma submarina do Brasil, inclusive desfazendo
as dúvidas sobre este termo: "As expressões "plataforma submarina", "plataforma
continental&quoat; e "plataforma continental submarina" são equivalentes para
exprimir o objeto do presente decreto". Entretanto, faltava definir ainda os limites
do mar territorial brasileiro e, pouco depois, em 25 de abril de 1969, o presidente,
através do ato número 5, decretou que o mar territorial do Brasil compreendia
todas as águas que banham o litoral do país. Essa situação permaneceu até 25
de março de 1970, quando o presidente Medici baixou decreto-lei alterando o mar
territorial para 200 milhas. O govêrno, ao expor seus motivos, ressaltou: "Pelo
exame das razões apresentadas, verifica-se que, além do problema de ordem
econômica representado pela necessidade de defesa do potencial biológico
marinho brasileiro, foi dada especial ênfase ao aspecto político da questão. A
adoção de uma solução coincidente com a que tende a prevalecer em toda a
América Latina é julgada de grande conveniência, pois ensejará a formação de
uma frente única latino-americana, no trato de questões afins, nos organismos e
conferências internacionais”.
ANEXO IV
A matéria Barcos chineses invadem a Amazônia em busca de
camarão, publicada no jornal Estado de São Paulo de 09-08-2000, que
ilustra bem a atualidade problemática da ação de barcos clandestinos de
outros países em água brasileiras.
129
A invasão dos barcos chineses em águas territoriais brasileiras, além de
desrespeitosa às convenções internacionais, significa uma "concorrência desleal",
dizem os pescadores
Belém - O Sindicato das Indústrias de Pesca dos Estados do Pará e Amapá
denunciou ao Ministério do Meio Ambiente a invasão de grandes barcos chineses
na Amazônia, para a pesca clandestina de camarão. "É uma situação de extrema
gravidade e as autoridades brasileiras precisam tomar urgentes providências",
afirmou o presidente do sindicato, Ivanildo Pontes.
De acordo com ofícios entregues ao comandante do IV Distrito Naval em Belém,
vice-almirante José Antônio Castro Leal, ao delegado do Ministério da Agricultura
no Pará, Antônio D´Ávila de Souza Neves, e ao superintendente regional do
Ibama, Paulo Contente, a invasão dos barcos chineses em águas territoriais
brasileiras, além de desrespeitosa às convenções internacionais, significa uma
"concorrência desleal com os empresários nacionais, que pagam seus impostos e
geram emprego na região".
A pesca ilegal do camarão está sendo feita por quatro navios-fábricas de bandeira
chinesa, no litoral norte. Essas embarcações de grande porte são equipadas com
instalações industriais para o armazenamento de dezenas de toneladas de
camarão. Para pescar na costa do Pará e Amapá, os chineses entram
clandestinamente pela Guiana Francesa.
Ivanildo Pontes informou que os barcos chineses estavam operando a 2º 10´ de
latitude e 48º35´ de longitude, exatamente onde se achavam as embarcações
nacionais. Nessas coordenadas, segundo confirmação de oficiais da Marinha, a
profundidade do oceano varia entre 35 e 40 metros. "A pesca nessa profundidade
é feita somente por barcos brasileiros, pois não temos equipamentos e nem
experiência para capturar o camarão em águas mais profundas".
Já os barcos chineses e de outras nacionalidades que atuam na pesca em águas
territoriais brasileiras, com licença especial do Ministério da Agricultura, têm
autorização para operar em profundidade acima de 200 metros. "Mas eles
ignoram solenemente esse limite e preferem pescar onde operam os brasileiros",
criticou Pontes.
130
ANEXO V
Lei Federal, 10.779, mais recente regulamentação do seguro desemprego
para pescadores artesanais.
LEI N o 10.779, DE 25 DE NOVEMBRO DE 2003
Dispõe sobre a concessão do benefício de seguro desemprego, durante o período de
defeso, ao pescador profissional que exerce a atividade pesqueira de forma artesanal.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1 o O pescador profissional que exerça sua atividade de forma artesanal,
individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de
parceiros, fará jus ao benefício de seguro-desemprego, no valor de um salário-mínimo
mensal, durante o período de defeso de atividade pesqueira para a preservação da
espécie.
§ 1 o Entende-se como regime de economia familiar o trabalho dos membros da mesma
família, indispensável à própria subsistência e exercido em condições de mútua
dependência e colaboração, sem a utilização de empregados.
§ 2 o O período de defeso de atividade pesqueira é o fixado pelo Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em relação à espécie
marinha, fluvial ou lacustre a cuja captura o pescador se dedique.
Art. 2 o Para se habilitar ao benefício, o pescador deverá apresentar ao órgão
competente do Ministério do Trabalho e Emprego os seguintes documentos:
I registro de pescador profissional devidamente atualizado, emitido pela Secretaria
Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República, com antecedência mínima
de um ano da data do início do defeso;
II comprovante de inscrição no Instituto Nacional do Seguro Social - INSS como
pescador, e do pagamento da contribuição previdenciária;
III comprovante de que não está em gozo de nenhum benefício de prestação continuada
da Previdência ou da Assistência Social, exceto auxílio acidente e pensão por morte; e
IV atestado da Colônia de Pescadores a que esteja filiado, com jurisdição sobre a área
onde atue o pescador artesanal, que comprove:
a) o exercício da profissão, na forma do art. l o desta Lei;
b) que se dedicou à pesca, em caráter ininterrupto, durante o período compreendido
131
entre o defeso anterior e o em curso; e
c) que não dispõe de outra fonte de renda diversa da decorrente da atividade pesqueira.
Parágrafo único. O Ministério do Trabalho e Emprego poderá, quando julgar necessário,
exigir outros documentos para a habilitação do benefício.
Art. 3 o Sem prejuízo das sanções civis e penais cabíveis, todo aquele que fornecer ou
beneficiar-se de atestado falso para o fim de obtenção do benefício de que trata esta Lei
estará sujeito:
I a demissão do cargo que ocupa, se servidor público;
II a suspensão de sua atividade, com cancelamento do seu registro, por dois anos, se
pescador profissional.
Art. 4 o O benefício de que trata esta Lei será cancelado nas seguintes hipóteses:
I início de atividade remunerada;
II início de percepção de outra renda;
III morte do beneficiário;
IV desrespeito ao período de defeso; ou
V comprovação de falsidade nas informações prestadas para a obtenção do benefício.
Art. 5 o O benefício do seguro-desemprego a que se refere esta Lei será pago à conta do
Fundo de Amparo ao Trabalhador FAT, instituído pela Lei n o 7.998, de 11 de janeiro de
1990.
Art. 6 o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 7 o Fica revogada a Lei nº 8.287, de 20 de dezembro de 1991.
Brasília, 25 de novembro de 2003; 182 o da Independência e 115 o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Jacques Wagner
132
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