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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Festas de negros em Fortaleza
Territórios, sociabilidades e reelaborações (1871-1900)
FÊTES DE NOIRS À FORTALEZA
Territoires, sociabilités et réélaborations (1871-1900)
Janote Pires Marques
Fortaleza – CE
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
Festas de negros em Fortaleza
Territórios, sociabilidades e reelaborações (1871-1900)
FÊTES DE NOIRS À FORTALEZA
Territoires, sociabilités et réélaborations (1871-1900)
Janote Pires Marques
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção de grau de Mestre em História
Social à Comissão Julgadora da Universidade
Federal do Ceará UFC, sob a orientação do
Prof. Dr. Franck Pierre Gilbert Ribard.
Fortaleza – CE
2008
2
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M318f Marques, Janote Pires
Festas de negros em Fortaleza: territórios, sociabilidades e
reelaborações (1871-1900) / Janote Pires Marques; Franck Pierre
Gilbert Ribard (orientador). 2008.
225f. : il. ; 30 cm
Orientador: Prof. Dr. Franck Pierre Gilbert Ribard.
Dissertação (Mestrado) em História Social. Universidade Federal
do Ceará. Departamento de História, Fortaleza, 2008.
1. Manifestações culturais Fortaleza (CE) Séc. XIX. 2. Negros
Festas Fortaleza (CE) Séc. XIX. 3. Negros Danças Fortaleza
(CE) Séc. XIX. I. Ribard, Franck Pierre Gilbert. II. Universidade
Federal do Ceará. Departamento de História. Mestrado em História
Social. III. Título
CDD 306.0899608131
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
Festas de negros em Fortaleza
Territórios, sociabilidades e reelaborações (1871-1900)
Janote Pires Marques
Esta dissertação foi julgada e aprovada, em sua forma final,
pelo orientador e demais membros da banca examinadora,
composta pelos professores:
____________________________________
Prof. Dr. Franck Pierre Gilbert Ribard - UFC
(Orientador)
____________________________________
Prof. Dr. Eurípedes Antônio Funes - UFC
_______________________________________
Prof. Dr. Antonio Otaviano Vieira Júnior – UFPA
_______________________________________
Prof. Dr. Almir Leal de Oliveira – UFC (Suplente)
Fortaleza – CE
2008
4
Para Ana e Laura
5
Agradecimentos
Agradecer é reconhecer um benefício recebido. E tenho recebido
muitas coisas boas ao longo desses últimos três anos e alguns meses,
contando o tempo de preparação para o ingresso no Mestrado em História
Social da UFC.
É bem verdade que foi preciso enfrentar muitas dificuldades. Mas, é a
vida... Nada mais justo, portanto, que expressar esse sentimento de gratidão
escrevendo os nomes daqueles que tanto contribuíram para que eu chegasse a
esse momento que, de certa forma, coroa o fim de mais uma etapa profissional
e mesmo pessoal.
Assim, agradeço inicialmente ao meu orientador, Dr. Franck Ribard,
que tem sido um grande aliado nessa caminhada, desde os tempos do “projeto
de pesquisa” para a seleção no programa de pós-graduação, sugerindo rumos
e abordagens para a empresa a qual me propunha. como aluno do
mestrado, pude contar com suas valiosas orientações por meio das quais foi
possível “corrigir” equívocos e melhorar a qualidade da pesquisa. Além disso,
gostaria de agradecer por me receber em sua casa para orientações, por vezes
aos sábados e feriados (meus horários livres no trabalho, Colégio, nem sempre
coincidiam com os seus, na Universidade), tendo assim que se abster de
horários de convivência com esposa e filhos.
Ao Dr. Eurípedes Antônio Funes, que foi o “co-orientador” dessa
pesquisa, agradeço pelas orientações e pelas lições recebidas durante uma
das disciplinas do curso e, particularmente, na banca de qualificação. Suas
sugestões e seu aguçado senso crítico, especialmente nesse último momento,
foram decisivos para um ajuste no rumo que esse trabalho tomou.
Ao Dr. Almir Leal de Oliveira, por suas tantas contribuições no
decorrer desta pesquisa e que foram dadas tanto como professor em uma das
disciplinas cursadas, bem como durante a banca de qualificação, em que seus
comentários sobre os textos escritos me motivaram a valorizar os pontos
fortes da pesquisa e a repensar algumas deficiências que ora se
apresentavam.
A todos os professores do Mestrado em História Social, além dos já
citados, e, particularmente, àqueles que ministraram disciplinas durante o
6
curso: Dra. Adelaide Gonçalves, Dr. Francisco Régis Lopes, Dr. Frederico de
Castro Neves, Dr. João Ernani Furtado Filho, Dra. Kênia Souza Rios e Dra.
Marilda Santana da Silva.
Aos companheiros de turma do mestrado, que vieram de várias partes
do Ceará e do Brasil, e dos quais, ao longo do curso, recebi incentivos, idéias,
fontes e informações que contribuíram para esta pesquisa.
Aos funcionários do Departamento de História, particularmente à Regina
e à Sílvia, da secretaria do Mestrado, e ao Augusto e à Elineuza da Biblioteca
do NUDOC.
Aos funcionários da Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel,
particularmente à Gertrudes Sales e a João Elmadan, do Setor de Microfilmes,
e à Madalena Figueiredo, do Setor de Raros.
Ao Arquivo Público do Estado do Ceará, à seus funcionários e
freqüentadores, valendo destacar a presença do professor André Frota, ilustre
figura, sempre solícito com todos os pesquisadores indicando-lhes fontes,
bibliografias e, particularmente no meu caso, dirimindo “dúvidas paleográficas”
nas transcrições de documentos.
À arquiteta Cláudia Lira, por seu sofisticado conhecimento em
computação gráfica, tornando possível a confecção dos mapas da cidade de
Fortaleza de fins do século XIX.
A todos que fomentam a cultura negra em Fortaleza e no Ceará,
particularmente ao músico e pesquisador Calé Alencar, com quem tive a
oportunidade de ter várias conversas e do qual recebi muitas referências e
sugestões para o estudo das festas de negros em Fortaleza.
Agradeço, ainda, o apoio institucional do Colégio Militar de Fortaleza,
permitindo-me liberações nos horários de expediente a fim de freqüentar as
aulas no mestrado e para efetuar pesquisas em arquivos da cidade.
Finalmente, gostaria de agradecer a todos os autores e autoras
citados neste trabalho e que certamente contribuíram direta ou indiretamente
para a sua existência. Cabe então ressaltar que, embora por vezes se utilize a
primeira pessoa do singular na escrita dos textos que virão logo a seguir, esta
pesquisa, em seus eventuais méritos é, de certa forma, uma obra coletiva...
7
Resumo
Nas últimas décadas do século XIX, Fortaleza passou por grandes transformações
urbanas, sociais e políticas. Nesse contexto, as manifestações culturais festivas negras
que ocorriam na cidade sofreram perseguições, preconceitos e tentativas de cerceamento.
Para resistir, essa cultura negra revelou constantes reelaborações e ressignificações a
partir das vivências dos sujeitos que atuavam nessas festas. Esta pesquisa trata mais
especificamente de algumas dessas práticas culturais negras, como as coroações de reis
negros na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Fortaleza, os
autos de rei congo que eram encenados nas praças e terrenos murados, os sambas e os
maracatus que existiam em vários pontos na capital da Província/Estado do Ceará. Além
disso, a proposta é tentar perceber as diversas dimensões presentes nessas festas de
negros, ampliando, portanto, a visão de que eram apenas diversões e buscando percebê-
las também como espaços de sociabilidades e de reelaborações culturais, bem como
poderosos instrumentos dos negros para a conquista de territórios físicos e simbólicos na
cidade.
Palavras-chave: festas de negros, Irmandade do Rosário, congos, sambas, maracatus,
reelaboração cultural, sociabilidades, territórios.
Résumé
Au cours des dernières décennies du XIXe siècle, la ville de Fortaleza est passée par de
grandes transformations urbaines, sociales et politiques. Dans ce contexte, les
manifestations culturelles des noirs qui avaient lieu dans la ville furent l´objet de
persécutions, de préjugés et de tentatives de cantonnement. Pour résister, cette culture
noire s´est adaptée constammnent, révélant, au travers des expérience des sujets
participant à ces fêtes, de nouvelles significations et des réélaborations. Cette recherche
traite plus spécifiquement de certaines de ces pratiques culturelles des noirs, comme les
couronnements des rois noirs dans la Confrérie de Notre Dame du Rosaire des Hommes
Noirs de Fortaleza, les autos du Roi de Congo qui étaient representés sur les places et les
terrains murés, les sambas et les maracatus qui existaient dans plusieurs endroits de la
capitale de la Province/Etat du Ceará. En outre, la proposition est d'essayer de
comprendre les différentes dimensions présentes dans ces fêtes des noirs, allant au-delà d
´une vison qui les aborderait à peine comme divertissement, cherchant à les percevoir
comme espaces de sociabilités et de réélaborations culturelles et aussi comme instruments
puissants de conquête, par les noirs, de territoires physiques et symboliques dans la ville.
Mots-clés: fêtes des noirs, Confrérie du Rosaire, congos, sambas, maracatus, culture
noire, sociabilité, territoires.
8
Lista de ilustrações
Fig. 1 - Mapa do plano da cidade de Fortaleza na segunda metade do
século XIX ....................................................................................................p. 82
Fig. 2 - Detalhe do mapa do plano da cidade de Fortaleza na segunda
metade do século XIX ..................................................................................p. 83
Fig. 3 Mapa com a localização geográfica das festas do Rosário,
congos, sambas e maracatus em Fortaleza ..................................... .........p. 177
Lista de siglas e abreviaturas
ACM Academia Cearense de
Letras
APEC Arquivo Público do Estado
do Ceará
B.
m
- Batalhão
BPGMP Biblioteca Pública
Governador Menezes Pimentel
BPM – Batalhão de Polícia Militar
D – Dom
distr.
o
- distrito
Exma - Excelentíssima
F.
o
- Filho
J.
o
- João
legalm.
te
-
legalmente
Mor.
ra
- Moreira
n. ou nº. – número
NUDOC Núcleo de
Documentação Cultural (UFC)
N. S. – Nossa Senhora
P – Praça
RIC Revista do Instituto Histórico
– Ceará
RM – Região Militar
rs - réis
S.
a
- Silva
s.d – sem data.
S.Exc. – Sua Excelência
SHEAF Sala de História
Eclesiástica da Arquidiocese de
Fortaleza
S.S. – Sua Santidade/Santíssimo
Typ. – Tipografia
UFC – Universidade Federal do
Ceará
Vm.
ce
– Vossa Mercê
9
Sumário
Introdução...................................................................................................p. 11
Capítulo 1 – Negros no Ceará: discursos, experiências e festas..........p. 26
1.1 - Abolição, patriotismo e preconceito contra o negro............................p. 29
1.2 - Resistências, trabalho e costumes dos negros...................................p. 49
1.3- Festas de negros na dinâmica socioespacial de Fortaleza..................p. 70
Capítulo 2 Irmandade, congos e sambas: controle, transgressão e
sociabilidades.............................................................................................p. 93
2.1 – A irmandade do Rosário dos Homens Pretos.....................................p. 95
2.1.1 - A festa negra na Irmandade do Rosário de Fortaleza.................p. 104
2.1.2 - O enfraquecimento da Irmandade do Rosário de Fortaleza........p. 113
2.2 - Autos de rei congo e outras encenações populares............................p. 123
2.3 – Samba: “nota obrigatória das alegrias do povo”.................................p. 147
Capítulo 3 “Para os pretos plebeus, maracatu e samba”: reelaboração
cultural e (re)apresentação do sagrado...................................................p. 170
3.1 – A reelaboração das festas e a circularidade de seus atores..............p. 172
3.2 – A corte negra em Fortaleza: irmandade, congos e maracatus...........p. 190
Considerações finais................................................................................ p. 208
Fontes.........................................................................................................p. 212
Bibliografia.................................................................................................p. 219
10
Introdução
“Um ruido confuso chegou-me aos ouvidos. Era o batuque dos
Congos. No silencio da noite, interrompido de subito por aquella algazarra,
abandonei, automaticamente, a leitura e o meu espirito voou para o passado
distante...”. Esse é um trecho de uma interessante crônica publicada num
antigo jornal fortalezense, na qual o autor lembra de seus tempos de juventude,
quando “dava a vida por esses divertimentos populares”, como os congos, os
fandangos, as pastorinhas, os maracatus, o bumba-meu-boi, que eram “a
alegria da petizada”.
1
Nosso cronista escreve ainda que, ao ouvir a música dos congos,
lembrou-se de um desses grupos que se apresentavam num terreno murado,
no primeiro quarteirão da Rua Senador Pompeu, e também se recordou de
uma passagem peculiar dos congos que “dançaram” certa noite na Rua da Boa
Vista, no trecho compreendido entre a Praça do Ferreira e a Rua de São
Bernardo.
2
Para nos dirigimos logo á noitinha. O João Lopes morava, então,
naquella casa de esquina, onde o bonde do matadouro fazia a
curva. A’s 8 horas, deu signal o batuque, e começo a representação,
sob a direcção do Xavier, um preto manetta, que os Congos
popularizaram.
3
Nos congos (ou autos de rei congo), encenavam-se passagens da
história africana, particularmente as guerras congo-angolanas, e, a certa altura
da apresentação, havia a cena da morte do filho do Rei do Congo: o “prinspo”
(Príncipe) Sueno. Entretanto, não parecem ter sido apenas os atos em si que
marcaram tanto a vida do cronista, mas, sim, certos aspectos como a maneira
criativa com que os atores dos congos recriavam a história africana em solo
cearense.
1
Cf. Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel (BPGMP), Núcleo de Microfilmagem.
Jornal A Republica. Fortaleza, 10 jan. 1911, p. 1, rolo nº. 112.
2
Rua da Boa Vista é a atual Rua Floriano Peixoto (Cf. GIRÃO, Raimundo. Geografia estética
de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará. 1959, p. 188) e a Rua de São
Bernardo é a atual Rua Pedro Pereira (Cf. MENEZES, Antonio Bezerra de. Descrição da
cidade de Fortaleza. Fortaleza: Edições UFC, 1992, p. 169). Cf. mapas nas páginas 82-83.
3
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 10 jan. 1911, p. 1, rolo nº.
112.
11
Nesse caso, o “batuque dos congos” trouxe ao pensamento do
cronista morador de Fortaleza uma cena inusitada: o príncipe caía morto
pelos inimigos, mas, “bem no meio do trilho”. Nisso, o trem apontou na esquina
e o Xavier, que fazia o papel do embaixador da Rainha Ginga, “exclama com
enfhase, numa vozinha esganiçada e energica: - Alevanta-te prinspo, e vai
morrer na coxia, senão o bonde te mata. Bons tempos aquelles! – C.”.
4
Essa passagem é um indício da criatividade característica dos congos.
Além disso, também aponta a existência de práticas festivas capazes de
expressar uma cultura negra que marcava a “memória” de seus tantos
freqüentadores, bem como de se constituírem em espaços de sociabilidade e
de ocuparem ruas importantes numa época em que a cidade passava por
intensas transformações físicas, sociais e mesmo políticas.
A Fortaleza das últimas décadas do século XIX se reurbanizava e
parte de sua elite política se agitava com idéias como abolicionismo, civismo e
republicanismo. Nesse contexto, outro munícipe fez publicar uma crônica
lamentando o desaparecimento dos congos, do bumba-meu-boi, dos
fandangos e outras “festas tradicionaes que o povo se incumbia de crear” e que
eram a alegria dos citadinos. “Tudo vai desaparecendo com o patriotismo
nacional”.
5
Mas, essas festas o desapareceram. Ao que parece foram
ressignificadas. E, pela intensidade com que ficaram gravadas no espírito
desses e de outros cronistas/memorialistas que serão citados no decorrer do
presente trabalho, as “festas tradicionais” – ou festas de negros, como optei por
denominá-las, certamente foram práticas importantes na vida social dos
munícipes da capital do Ceará, e algumas também se constituíram em
importantes instrumentos para os negros se afirmarem como sujeitos da
história.
Mais especificamente, entretanto, através desta pesquisa, propõe-se o
estudo das “festas de negros em Fortaleza”, nas últimas décadas do século
4
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 10 jan. 1911, p. 1, rolo nº.
112. (“Coxia” era palavra utilizada, em fins do século XIX, como sinônimo de calçada ou
sarjeta). Cf. GIRÃO, Raimundo. Vocabulário popular cearense. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1967, p. 97; CAMINHA, Adolfo. A normalista. Texto integral cotejado
com a edição de 1893. 12 ed. Rio de Janeiro: Ática, 1998, p. 125.
5
Jornal O Pão...da Padaria Espiritual. Fortaleza, 24 dez. 1896. Edição fac-similar. Fortaleza: Edições
UFC/Academia Cearense de Letras/Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1982, p. 3.
12
XIX, particularmente os sambas, os congos (ou autos de rei congo), as
coroações de reis e rainhas negros na Irmandade do Rosário dos Homens
Pretos, os maracatus, além de outros ajuntamentos de caráter festivo
vivenciados por negros.
Porém, mais do que tentar apreender os significados dessas
manifestações onde atuavam os negros, e mesmo explicar um passado por
intermédio de certas práticas culturais, a abordagem que aqui se pretende é a
de perceber, nesses ajuntamentos festivos, formas de cultura e de
sociabilidades, podendo ser entendidos em rios sentidos. Nesse caminho,
surgem questões como: o que eram essas “festas de negros”, onde elas
aconteciam, por que houve várias modalidades de reelaborações por seus
sujeitos, como se constituíram em instrumentos de conquista de espaços
físicos e simbólicos na cidade pelos negros?
Aparentemente essas festas podiam servir para aliviar sofrimentos e
tensões, constituindo-se ao mesmo tempo em espaços onde os negros se
encontravam, trocavam idéias, faziam acordos. Momentos de diversão,
instrumentos de enfrentamento do poder oficial, fontes de transgressão das
normas provinciais eram dimensões que provavelmente também se
entrecruzavam nessas reuniões com música, cantos, danças, comidas,
bebidas, adereços e roupas especiais.
Com efeito, é preciso considerar que tais práticas não ocorriam
dissociadas das realidades nas quais seus sujeitos estavam inseridos. Para
enfrentar o preconceito ou mesmo para atrair o público em geral, muitas vezes
era preciso reinventar a festa, mantendo certas raízes africanas, mas, ao
mesmo tempo, permitindo inúmeras reelaborações a partir de elementos
presentes no contexto social do momento.
Nesse sentido, reis negros eram eleitos e coroados numa irmandade
(Nossa Senhora do Rosário), originalmente criada em um país de brancos
Portugal, mas que, por outro lado, foi reapropriada pelos negros, que lhe deram
uma configuração própria. nos autos de rei congo, além de cantorias
referentes às guerras congo-angolanas, também eram cantadas as
experiências cotidianas, bem como quadras de crítica social. Ainda,
autoridades e gentes da “elite” (em zonas urbanas e rurais) eventualmente
13
participavam de sambas manifestações festivas tantas vezes relacionadas a
desordens pela própria polícia.
Assim, palco para uma cultura negra, constantes trocas culturais
(ainda que por uma questão de sobrevivência das manifestações), interações
entre os participantes, bem como para múltiplas (re)interpretações do viver em
sociedade, as festas aqui abordadas eram de negros e não exclusivamente
dos negros. E, ao que parece, eram as diferenças e as singularidades contidas
nas relações entre cativos e senhores, empregados (ou criados) e patrões,
brancos e negros, indivíduos de origem humilde e pessoas oriundas da elite,
entre todos os participantes, enfim, que permitiam às festas de negros serem
ambiente intensamente favorável às sociabilidades território onde
basicamente se lida com as interações, no dizer de Gilberto Velho.
6
Vale ressaltar que “cultura” é pensada aqui a partir das noções
levantadas por Raymond Williams e Edward P. Thompson, ou seja, não como
algo estático ou dentro de uma idéia “folclórica” e cristalizada, sem
possibilidades de mudanças ou de admissão de novos elementos. A cultura
pode existir a partir da prática de pessoas, em um determinado contexto, sendo
preciso pensar significados culturais e como eles são (re)construídos dentro
das relações sociais em que acontecem as vivências dos sujeitos. Em sua
crítica ao termo “cultura”, “por tender a nos empurrar no sentido de uma noção
holística ou ultraconsensual”, Thompson defende não haver uma cultura pura,
pela própria capacidade de os sujeitos reagirem e reinterpretarem os códigos
culturais. Lembra, ainda, que:
[...] ‘cultura’ é um termo emaranhado, que, ao reunir tantas atividades
e atributos em um feixe, pode na verdade confundir ou ocultar
distinções que precisam ser feitas. Se necessário desfazer o feixe
e examinar com mais cuidado os seus componentes: ritos, modos
simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissão do
costume, sob formas historicamente específicas das relações sociais
do trabalho.
7
Ademais, “cultura” é entendida nesse trabalho como anti-hegemônica,
ou seja, opondo-se à idéia de uma “elite” capaz de impor unilateralmente
6
Cf. VELHO, Gilberto. Entrevista. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 28,
2001).
7
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 22.
14
significados, valores e crenças aos negros. As influências ocorriam
mutuamente. Assim, a hegemonia aparece como:
[...] todo um conjunto de práticas e expectativas sobre a totalidade da
vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de
nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e
valores constitutivo e constituidor que, ao serem experimentados
como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente.
8
Permeando todas essas questões, estava o contexto de reurbanização
pela qual passava Fortaleza nas últimas décadas do século XIX. Abertura de
avenidas, alinhamento de ruas, construção de prédios públicos foram obras
projetadas e coordenadas pelo engenheiro Adolfo Herbster, no decorrer das
décadas de 1870 e 1880. Certamente eram mudanças necessárias para uma
capital que crescia, mas, pouco interessantes aos munícipes mais humildes
que habitavam a região do centro, à medida que foram obrigados a deixar suas
casas e irem para regiões periféricas, ou então se concentrarem em pontos
próximos ao centro, mas sem receberem benefícios da reforma urbana.
Era o caso do Morro do Moinho
9
, onde se aglomeravam várias famílias
pobres, como a de Pedro Nonato, liberto que havia imigrado de Itapipoca, era
“exímio tocador de berimbau” e cantador de desafios
10
. Em tal contexto
socioespacial, não apenas essas pessoas eram afetadas pela reurbanização
de Fortaleza, mas a cultura que era praticada por elas como os congos, os
sambas, os maracatus. Nesse sentido é que Eric Hobsbawm chama a atenção
para “a influência das dinâmicas urbanas sobre as mudanças ocorridas nas
artes”.
11
Com efeito, a fim de escrever sobre “Festas de negros em Fortaleza”,
parece-me viável tratar do tema dividindo-o em três capítulos que se distribuem
da seguinte forma:
No primeiro capítulo, “Negros no Ceará: discursos, experiências e
festas, inicio a análise tentando evidenciar a invisibilidade do negro (cativo ou
8
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 113.
9
Área entre a Estação (Ferroviária) Central de Fortaleza (atual Estação Professor João Felipe)
e o mar; próxima ao que seria hoje o Bairro Arraial Moura Brasil. Cf. mapas, páginas. 82-83.
10
MOTA, Leonardo. Cantadores. Poesia e linguagem do sertão cearense. 2. ed. Rio de
Janeiro: Editora A Noite, 1953, p. 85.
11
HOBSBAWM, Eric J. História social do jazz. Trad. Angela Noronha. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990, p. 176.
15
livre) promovida por setores da elite cearense nas últimas décadas do século
XIX. Nesse caminho, no tópico inicial (Abolição, patriotismo e preconceito
contra o negro), penso ser válido tratar da questão, marcada por um discurso
em que os negros foram colocados na posição de ausentes nas lutas pela
liberdade. Além disso, as próprias festas abolicionistas e republicanas
disputavam espaços com as festas negras. Ademais, é importante tentar
perceber os efeitos dessas questões na construção (preconceituosa) da
imagem do negro e de sua cultura no Ceará.
Como contraponto, no tópico 1.2 (Resistência, trabalho e costumes
dos negros), analiso a presença do negro no Ceará, e mais especificamente
em Fortaleza, destacando suas iniciativas quanto às manifestações festivas,
mas sem desconectá-las do mundo onde os negros (livres ou cativos) viviam.
Assim, também são analisadas outras práticas culturais (costumes), bem como
os tipos de trabalho (ocupações) exercidos cotidianamente, tentando destacar
a transição definitiva do trabalho escravo para o livre na capital do Ceará. Ao
praticarem suas festas, os negros deixavam o espaço do trabalho, mas não o
universo do trabalhador.
Encerrando o primeiro capítulo está o tópico 1.3 (Festas de negros na
dinâmica socioespacial de Fortaleza), em que fecho mais o foco na capital da
Província/Estado do Ceará, propondo a discussão do que era uma “festa de
negros” a partir do contexto social vivenciado por esses sujeitos, com destaque
para o processo de reurbanização pelo qual passava Fortaleza nas últimas
décadas do século XIX. A partir disso, procuro evidenciar o argumento,
presente ao longo desta pesquisa, das festas de negros como instrumento de
conquista de (in)determinados espaços na cidade.
No segundo capítulo, “Irmandades, congos e sambas: controle,
transgressão e sociabilidades”, trato mais especificamente de três
manifestações festivas negras que se destacaram na segunda metade do
século XIX e início do XX.
No tópico 2.1 (A Irmandade do Rosário dos Homens Pretos), discuto a
festa de coroação de reis negros na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos de Fortaleza, procurando fazer uma abordagem que
procura entender as apropriações pelos negros de um modelo de confraria
elaborado em Portugal. Além disso, outro aspecto é o processo que motivou o
16
enfraquecimento da Irmandade do Rosário em Fortaleza. Para tanto, são
analisadas questões como a romanização do clero local, a atuação das
Conferências Vicentinas e, também, as tentativas de tomada do patrimônio
material da irmandade, à medida que a área a ela pertencente se valorizava
com o crescimento urbano de Fortaleza.
No tópico 2.2 (Autos de rei congo e outras encenações populares),
analiso as apresentações de congos que ocorriam em praças e terrenos
baldios de Fortaleza; alguns fatores que levaram ao confinamento dessas
práticas a determinados espaços da cidade e as vantagens (cobrança de
ingresso para se assistir às encenações) que disso espertamente tiraram seus
atores, bem como, a capacidade dos congos em reelaborar uma cultura de
raízes africanas em Fortaleza.
No tópico 2.3 (Samba: nota obrigatória das alegrias do povo), procuro
entender o que eram os sambas que ocorriam nas casas ou nas ruas e que,
em geral, eram considerados pela polícia reuniões onde predominavam
desordens. Nesse contexto, os sambas aparecem como instrumentos de
transgressão, mas, também, como espaços privilegiados para a expressão de
sociabilidades variadas.
De certa forma, essas festas de negros aparecem
compartimentalizadas nesses três tópicos do segundo capítulo; porém, o intuito
é aprofundar o estudo sobre cada uma delas. Entretanto, faz-se necessário
destacar que havia interações entre irmãos do Rosário, atores dos autos de rei
congo, praticantes de sambas, bem como o trânsito desses sujeitos pelos
diversos espaços festivos.
Nesse sentido, no capítulo trêsPara os pretos plebeus, maracatu e
samba”: reelaboração cultural e (re)apresentação do sagrado -, o primeiro
tópico (A reelaboração das festas e a circularidade de seus atores) traz
articulações dos elementos anteriores, o entrecruzamento das dimensões da
festa de Nossa Senhora do Rosário, dos autos de rei congo e dos sambas,
destacando a circularidade dos sujeitos freqüentadores dessas festas que, ao
se constituírem em espaços de trocas, de intercâmbio e de criação, permitiam
a perenidade da cultura negra na cidade. Dessa forma, mudava-se para
permanecer.
17
No terceiro capítulo ainda, e finalizando a dissertação, está o tópico
3.2 (A corte negra em Fortaleza: irmandade, congos e maracatus), tratando das
cortes de reis negros, presentes tanto na Irmandade dos Homens Pretos,
quanto nos congos e nos maracatus. O objetivo não é encontrar nos maracatus
fortalezenses uma ancestralidade local (e original) ou vê-los como simples
continuidade dos congos ou dos reis que eram coroados nas antigas
irmandades do Rosário. A intenção é retomar alguns elementos que foram
tratados na dissertação e, a partir daí, colocar em relevo como certas
permanências e mudanças preparam um terreno fértil para a formação de
“novos” grupos de maracatus em Fortaleza.
Assim, se Raimundo Feitosa
12
e alguns amigos “fundaram” um
maracatu (Az de Ouro), em pleno século XX, era porque muita gente na
cidade estava familiarizada com o cortejo de reis negros, ou seja, existia um
conhecimento comum dessa prática dentro da sociedade onde ela passa a
ocorrer. Enfim, haveria já uma espécie de “consistência cultural”.
13
Quanto ao recorte temporal (1871-1900), inicia-se no ano em que foi
manuscrito o último compromisso da Irmandade dos Homens Pretos da Igreja
de Nossa Senhora do Rosário de Fortaleza. Em relação ao compromisso
anterior, modificações interessantes, estando uma delas diretamente ligada
à questão das festas tratadas neste trabalho. É que neste documento não mais
se prevê a eleição e a coroação de reis negros no âmbito da Irmandade.
Havendo uma circularidade dos sujeitos presentes nos congos,
sambas, maracatus e coroações de reis negros na Irmandade do Rosário, é
plausível considerar como marco inicial o “fim” oficial dessa festa de coroação,
não apenas por ter sido a única dessas festas autorizada por Lei
14
, mas,
também, pela tendência de os “irmãos” emigrarem para aquelas outras
manifestações festivas negras, à medida que a Irmandade como espaço de
12
Cf. Entrevista com Raimundo Alves Feitosa (Raimundo Alves Feitosa, fundador do Maracatu Az de
ouro. In: Jornal O Povo, Fortaleza, 13 maio 1995).
13
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 2. ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 17.
14
O compromisso manuscrito em 1871 encontra-se sob guarda do Arquivo Público do Estado
do Ceará (APEC). Fundo Palácio Episcopal do Ceará. Ala 03, estante 47, caixa 02. Esse
compromisso foi transformado na Lei Provincial nº. 1538, de 23 de agosto de 1873. Cf.
Colleção de leis, resoluções e regulamentos promulgados pela Assemblèa Legislativa
Provincial do Ceará no anno de 1873. Fortaleza: Typographia Constitucional, 1874, p. 43-
52.
18
cultura e de sociabilidade sofria maior controle por parte do poder público e da
Igreja.
Note-se que essa importante alteração no estatuto da Irmandade
enquadrava-se num momento em que ganhava corpo o conservadorismo
católico, a romanização, o trabalho social das Conferências Vicentinas, bem
como a repressão às manifestações festivas de matrizes africanas.
Paralelamente, foi por esses tempos que Fortaleza se “modernizava”
com bondes de tração animal, iluminação (a gás carbono) de alguns
logradouros, cemitérios (em áreas mais afastadas), biblioteca pública, jornais,
clubes de lazer (destinados à elite), sociedades abolicionistas, entidades
intelectuais, colégios (para rapazes e para moças), Escola Militar, fábricas de
tecidos, caixas postais, estradas de ferro, telégrafo, telefone, Passeio Público,
entre outros sinais de “progresso”.
15
Esse “fluxo modernizador” fora afetado pela grave seca de 1877-1879
que, além de desestruturar a vida social e a economia do Ceará, provocou um
intenso êxodo rural para a capital e levou à grande mortandade por fome ou/e
doença (varíola) dos retirantes que se amontoavam no “Asylo de mendicidade”
ou em abarracamentos providenciados pelo governo, todos na “periferia” de
Fortaleza.
16
O caos social desse período forçou uma discussão sobre os
problemas deixados pela seca ou agravados por ela, propiciando um ambiente
de atuação intelectual envolvido em leituras sociais mais amplas
compreendendo inclusive a superação da escravidão e cada vez mais
veiculadas por jornais, revistas científicas e literárias.
15
Sobre a cidade de Fortaleza na segunda metade do século XIX, ver textos de Sebastião
Rogério Ponte (A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle) e de Celeste
Cordeiro (O Ceará na segunda metade do século XIX). In: SOUZA, Simone (Org.). Uma
nova história do Ceará, 3. ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.
16
Entretanto, vale destacar que foi justamente por meio da exploração da mão-de-obra de
milhares de retirantes, que se executaram várias obras, como a abertura e calçamento de
ruas, a construção de prédios públicos e outras edificações que, de certa forma,
“caracterizavam” a chamada “modernização” de Fortaleza. Sobre a seca de 1877-1879, ver
Frederico de Castro Neves (A seca na história do Ceará. In: SOUZA, op. cit., 2004; e A
multidão e a história. Saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000); sobre o “Asylo de mendicidade”, que foi construído pelos retirantes da seca
a fim de servir-lhes de abrigo, ver Janote Pires Marques (O Casarão do Outeiro. Memórias e
ilustrações. Fortaleza: ABC, 2007).
19
O pensamento abolicionista no Ceará incorporou em sua elaboração
da sociedade os referenciais de leituras positivistas de Comte
(estágios de evolução social) e as leituras mesológicas de Buckle
(superação da natureza pelo homem). Ampliou uma análise da
sociedade que até então se limitava às relações do desenvolvimento
provincial com as categorias correntes de civilização e progresso.
17
Importa destacar que, nas últimas décadas do século XIX,
manifestações festivas de negros não eram bem vistas tanto pela Igreja que
assumia um caráter conservador impedindo a eleição e coroação de reis
negros na Irmandade do Rosário de Fortaleza, como pelo governo local
restringindo as encenações dos autos de rei congo a praças e terrenos
cercados, bem como reprimindo sambas e outros ajuntamentos festivos que
pudessem atentar contra a “ordem”, a “moral” e os “bons costumes” dos
munícipes.
Com o advento da República, em 1889, ressaltavam-se a ordem, o
progresso e as festas cívicas, ao passo que as práticas festivas negras
continuavam sendo vistas como focos de violência e desordens, ou ainda como
resquícios de barbárie e atraso resultantes da forma de governo monárquica. A
questão é que, apesar de tudo, as festas de negros continuaram a ocorrer em
Fortaleza, e isso provavelmente se relaciona com a condição de que essas
manifestações particularmente os congos, sambas e maracatus serem
espaços de cultura e de sociabilidade onde havia considerável margem para
(re)criações, por vezes tendo as próprias experiências sociais vividas pelos
seus componentes como matéria-prima.
Nos últimos anos do século XIX, essas manifestações festivas
existiam em Fortaleza enquanto práticas culturais absorvidas pela população
em geral, particularmente na época do Carnaval, período em que desfilavam
grupos de maracatus vindos dos “subúrbios”
18
, intensificavam-se as reuniões
em sambas e, ainda, quando apareciam brincantes “fantasiados” de
personagens dos congos.
17
OLIVEIRA, Almir Leal de. O Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará.
Memória, representação e pensamento social (1887-1914). Tese de doutorado. São Paulo:
PUC, 2001, p. 49.
18
Segundo Gustavo Barroso (Ideas e palavras. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro
& Maurillo, 1917, p. 207), os maracatus que existiam em Fortaleza traziam o nome do
“arrabalde onde se originou ou do individuo que mais contribuiu para a sua formação:
Maracatú do Outeiro, da Apertada Hora, da rua de São Cosme, do Morro do Moinho, do
Manoel Conrado”.
20
Certamente, as festas de negros continuaram sendo feitas no culo
XX e, pode-se afirmar, sem dúvida, que ainda existem intensamente em
Fortaleza. Mas, acredito que até 1900 é possível percebê-las como importantes
espaços sociais dos negros privilegiados aqui , apesar de posições
contrárias da Igreja e do Estado (imperial ou republicano). Além disso, na
virada do culo XIX, os congos haviam se constituído em uma espécie de
amálgama de diversas práticas negras.
O recorte temporal (1871-1900) aborda, portanto, um período em que
as manifestações festivas de negros coroações de reis na Irmandade do
Rosário, autos de rei congo, sambas, maracatus , se constituíam em
importantes territórios de reelaborações culturais e de diversas práticas de
sociabilidades, afetadas de forma mais intensa pelas mudanças sociais e
políticas ocorridas em Fortaleza e no Brasil nas últimas décadas do XIX.
No que se refere aos acervos trabalhados, destaco o Arquivo Público
do Estado do Ceará (APEC), onde pesquisei nos fundos: “Executivo
Provincial”, particularmente a série sobre ofícios que eram destinados ao bispo
diocesano, a outras autoridades, funcionários e eclesiásticos; e “Palácio
Episcopal do Ceará”, no qual é possível encontrar manuscritos de vários
compromissos de irmandades de negros no Ceará, inclusive o compromisso da
Irmandade do Rosário dos Homens Pretos da Capital (Fortaleza), elaborado
durante o ano de 1871, virando lei no ano de 1873.
Esses compromissos eram transformados em leis e publicados
juntamente com outras normas em compilações anuais promovidas pelo
governo provincial
19
. No entanto, é importante a análise dos manuscritos
porque trazem algumas informações que foram suprimidas quando da sua
forma de lei. Com efeito, comparar os estatutos da irmandade em dois
momentos (antes e depois da sua legalização) permite encontrar alguns
indícios que apontam, por exemplo, as tentativas de controle, por parte do
Estado e da Igreja, sobre essas organizações onde predominavam os negros.
Ainda considerando o Arquivo Público do Ceará, outro fundo
importante para este trabalho foi o da “Secretaria de Polícia do Ceará”,
contendo ofícios, rol de culpados, termos de audiência, relatórios e livros de
19
Essas “coleções” de leis que eram publicadas anualmente pelo governo do Ceará estão
disponíveis para consulta no Setor de Raros da Biblioteca Pública Governador Menezes
Pimentel.
21
requerimento e despachos também conhecidos como “Livros da porta da
cadeia”, justamente por ficarem na entrada da cadeia pública (nesses livros é
que se registravam, por exemplo, as autorizações para as apresentações em
público).
Embora seja uma documentação ampla e diversa em que os registros
sobre festas de negros aparecem de forma esparsa, é possível perceber,
nessas fontes “da polícia”, tentativas de controle social, bem como, vislumbrar
espaços onde ocorriam as festas e os personagens que as freqüentavam.
No acervo da Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel
(BPGMP), foi pesquisada a legislação provincial e do início da era republicana
cearense, disponível em forma impressa no “Setor de Obras Raras”. estão
códigos de posturas municipais, estatutos das irmandades do Rosário no
Ceará e outras normas.
É um conjunto legislativo que permite perceber a organização dos
negros em confrarias, mas, também, a tentativa do controle estatal sobre o
cotidiano da população, incluindo-se negros cativos que eram negados
enquanto pessoas (escravos); mas, antagonicamente, à medida que eram
referidos nos códigos, é possível perceber os cativos não como elementos
passivos na sociedade escravista, mas como seres humanos capazes de terem
atitudes e vontade próprias. As posturas proibiam “reuniões de escravos,
batuques e sambas”
20
, o que não quer dizer que esses ajuntamentos
deixassem de ocorrer.
no “Núcleo de Microfilmagem” da Biblioteca Pública, pesquisei os
vários jornais fortalezenses disponíveis, como o Libertador
21
e o A Republica,
priorizando os meses de outubro, dezembro e janeiro, pois era o período das
festas da Irmandade do Rosário, das encenações de rei congo, do reisado e de
20
Essas proibições eram recorrentes nos códigos de posturas de diversos municípios
cearenses, como se poderá constatar nas citações feitas ao longo desta dissertação.
21
O jornal Libertador era órgão da “Sociedade Cearense Libertadora” e teve sua publicação
iniciada em de janeiro de 1881. Em 1886, o jornal deixou de ser órgão da “Sociedade
Cearense Libertadora” e, em 1887, passou a trazer como subtítulo Diário da Tarde. O
Libertador, bem como o Estado do Ceará, em virtude de acordo estabelecido entre o Centro
Republicano e a União Republicana, saiu de circulação em abril de 1892, aparecendo em
seu lugar o jornal A Republica, órgão de um novo partido (Federalista) que reunia aquelas
duas agremiações políticas. Cf. Jornal Libertador. Fortaleza, jan. 1881. In: Jornal
Libertador. Edição fac-similar dos 20 primeiros exemplares. Fortaleza: Secretaria de
Cultura, Turismo e Desporto do Ceará, 1988.; NOBRE, Geraldo. Introdução à história do
jornalismo cearense. Edição fac-similar. Fortaleza: NUDOC/Secretaria de Cultura do Estado
do Ceará/Arquivo Público do Ceará, 2006.
22
outras festas ligadas às celebrações natalinas e que se constituíam em
espaços para práticas culturais negras. Além desse período, os meses de
fevereiro e de março também foram pesquisados nas semanas em que os
mesmos tiveram carnaval, a fim de se tentar perceber possíveis deslocamentos
dessas manifestações festivas negras para espaços e momentos em que eram
mais tolerados.
Com o objetivo de obter informações que também tratassem dos
negros na situação de cativos, investiguei mais especificamente os jornais
Cearense, Gazeta do Norte e Pedro II, pesquisando todos os meses dos três
primeiros anos da década de 1880 (quando disponíveis), buscando anúncios
de fuga de escravos que pudessem trazer indícios sobre o mundo desses
sujeitos não apenas no se referisse a divertimentos, mas, também, de outros
costumes e de suas ocupações, cujas descrições normalmente estavam
presentes nessas publicações.
Quanto aos anúncios de fuga de escravos anteriores à década de
1880, achei por bem partir dos trabalhos realizados por Eduardo Campos e
Oswaldo Riedel, e que trazem transcrições de centenas desses anúncios
publicados em jornais de Fortaleza e de outras cidades do Ceará. Além disso,
também considerei o trabalho de Gilberto Freyre no trato (pioneiro) desse tipo
de fonte.
22
A idéia é tentar perceber que, da mesma forma que os negros livres e
libertos, os cativos participavam das reuniões festivas fora dos seus espaços
de trabalho, mas não fora do mundo laboral, o que certamente passava por
uma constante negociação com os senhores.
No acervo do Seminário da Prainha (Sala de História Eclesiástica da
Arquidiocese de Fortaleza - SHEAF) pesquisei o fundo “Registro de Provisões”,
onde estão arquivados manuscritos de compromissos de confrarias de negros
no Ceará; em especial o da Irmandade dos Homens Pretos de Fortaleza,
elaborado no ano de 1840 e que vigorou até meados do ano de 1873.
22
Cf. CAMPOS, Eduardo. Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. Fortaleza:
Secretaria de Cultura e Desporto, 1982; RIEDEL, Oswaldo de Oliveira. Perspectiva
antropológica do escravo no Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1988. FREYRE, Gilberto. O
escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Recife: Imprensa Universitária,
1963.
23
Também foram importantes os escritos dos memorialistas, os relatos
de viajantes e outras obras de época que, apesar de muitas vezes serem um
olhar de fora carregado de preconceito, descreveram diversas manifestações
festivas “populares” e ajudaram nesse estudo sobre festas de negros. Nesse
contexto, estão os trabalhos de Gustavo Barroso, Otacílio de Azevedo, João
Brígido, José Carvalho, Freire Alemão Cisneiros, João Nogueira, Manuel de
Oliveira Paiva, Raimundo de Menezes, Paulino Nogueira, Rodolfo Theophilo,
Antônio Bezerra de Menezes, além de outros contemporâneos que escreveram
sobre Fortaleza e sobre o Ceará do século XIX e início do XX.
Quanto ao aporte teórico utilizado ao longo da dissertação, procuro
dialogar com rios autores com os quais tomei contato, particularmente
durante as disciplinas que foram cursadas no Mestrado em História Social da
Universidade Federal do Ceará (UFC), a fim de melhor discutir o significado de
algumas palavras que aparecem nos textos desta pesquisa. Assim, sem
intenção de estabelecer “conceitos”, pareceu-me imprescindível refletir sobre o
sentido de expressões como “festas”, “festas de negros”, “cultura”,
“reelaboração cultural”, “sociabilidades”, “liberdade”, “resistência”, “identidade”,
“territórios”, dentre outras.
Neste sentido, foram incorporadas a esse trabalho propostas teóricas,
como os entendimentos de “cultura” discutidos por Raymond Williams e
Edward Thompson, de “circularidade cultural” elaborado por Carlo Ginzburg (a
partir de Mikhail Bakhtin), o significado de “tática” e de “estratégia” de Michel de
Certeau, a idéia de “resistência” defendida por Eduardo Silva e João José Reis,
as ltiplas dimensões da “liberdade” pensadas por Marcus de Carvalho e por
Sidney Chalhoub, a importância das “interações” para as sociabilidades
segundo Gilberto Velho, as reflexões sobre “folguedos populares” feitas por
Edison Carneiro, as discussões sobre “festas” de Jean Duvignaud e Norberto
Guarinello.
Ainda quanto à bibliografia, procurei considerar artigos, dissertações,
teses e livros que pudessem me ajudar no estudo sobre festas de negros em
Fortaleza. As pesquisas feitas por professores e alunos do programa de pós-
graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará foram de
grande valia.
24
A respeito, vale inicialmente destacar os trabalhos de Franck Ribard
(etnicidade, identidade e festa), Eurípedes Funes (sobre o negro cearense),
Almir Leal de Oliveira (pensamento social em fins do século XIX e,
particularmente, seu trabalho sobre o Instituto Histórico do Ceará), Raimundo
Nonato de Souza (sobre as Irmandades do Rosário em Sobral e na povoação
da Lapa), José Hilário Ferreira Sobrinho (tráfico interprovincial de escravos), de
Antonio Vilamarque de Sousa (sobre os discursos identitários do negro no
Ceará), e outros mais que muito me ajudaram ao longo deste trabalho sobre
“festas de negros em Fortaleza”.
Igualmente, pesquisas publicadas nas demais localidades sobre
festas, negros, abolicionismo, irmandades, congos, sambas, maracatus e
outros temas se constituem numa miscelânea de publicações que certamente
contribuíram para uma reflexão das manifestações festivas negras em terras
locais.
Ainda para auxiliar na percepção do espaço ocupado pelas festas,
foram confeccionados de acordo com diversas fontes (citadas ao longo do
texto) e das plantas da cidade de Fortaleza produzidas pelo engenheiro Adolfo
Herbster nos anos de 1875 e de 1888 três mapas que contêm nomes de
ruas, avenidas, praças, bairros e construções contemporâneas ao recorte
temporal aqui tratado, bem como a localização das “festas de negros em
Fortaleza”. O objetivo é contribuir para uma outra leitura da geografia da cidade
a partir dessas práticas culturais negras que, por sua vez, permitiam aos seus
sujeitos circularem e definirem os lugares onde ocorriam as festas.
Os textos (e mapas) a seguir, portanto, partem do que aqui foi exposto
e vieram a lume num ir e vir constante da escrita às fontes e vice-versa,
constituindo-se em exercício de compreensão das questões propostas, de
percepção das formas de cultura, de sociabilidades e de conquistas de
territórios na cidade, presentes nas festas de negros em Fortaleza.
25
Capítulo 1
Negros no Ceará: discursos, experiências e festas
Em fevereiro de 1890, o governo do Ceará baixou um Decreto,
inspirado em “intuitos patrioticos e “recordações gloriosas”, declarando
feriados e dias de festa o 25 de Março, “destinado á commemoração da
redempção dos captivos, pela vontade do povo cearense”, e o 16 de
Novembro, destinado á commemoração da proclamação da República no
Ceará”.
23
Quem assinava o documento era João Cordeiro, governador interino e
um dos fundadores da Sociedade Cearense Libertadora. Durante as
campanhas abolicionistas no Ceará, os membros dessa e de outras
associações “libertadoras” assumiram o papel de líderes promotores de uma
evolução social na província a ser materializada na “redenção” dos escravos
cearenses.
De certa forma, o Decreto resumiu o que fora o discurso abolicionista
no Ceará, em que a liberdade para os escravos foi encarada por uma “elite”
política e intelectual como questão de patriotismo. Ao mesmo tempo, os
abolicionistas assumiram o papel de “heróis cívicos” que promoviam a
“salvação”, ou seja, a redenção dos cativos, vistos como sujeitos inertes no
processo emancipatório.
Outro aspecto é que uma data abolicionista e outra republicana estão
citadas nesse mesmo Decreto, lembrando a tendência dos abolicionistas em
promoverem a associação de idéias como liberdade (para os escravos),
progresso, civismo e republicanismo, muitas vezes visando atacar políticos
adversários ou/e mesmo combater a forma de governo monárquica. Ao que
parece, para os abolicionistas em geral, a “libertação” era importante, mas nem
tanto os “libertados”. Nesse contexto, promoveram a ausência do negro nas
campanhas pela abolição criando a representação de um escravo passivo e
carente de lideranças.
23
Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel (BPGMP). Setor de Obras Raras. Decreto
nº. 5, de 28 de fevereiro de 1890. In: Colleção de Decretos e Leis do Estado do Ceará.
(1889-1892). s.d., p. 7.
26
Tal discurso viria a se alinhar com o dos primeiros intelectuais do
Instituto Histórico do Ceará, para os quais foi pequeno o número de escravos
na região, sendo pouca a importância do negro na vida social cearense.
Ante o exposto, o “abolicionismo” é uma passagem obrigatória neste
trabalho, não para fazer uma correspondência direta entre as categorias
“negro” e “escravo” ou porque se quer associar sistematicamente o negro à
escravidão; fazer isso seria uma “lógica perversa”, como alerta Eurípedes
Antônio Funes
24
. O que se pretende é perceber a pouca valorização do negro e
a construção de um discurso em que o negro era sujeito ausente da história.
Além do mais, nas últimas décadas do século XIX, abolicionistas,
intelectuais e políticos por vezes deixaram transparecer seu preconceito contra
os negros ao se atacarem na imprensa utilizando referências à cultura de
matriz africana para tentarem ridicularizar seus adversários. Em razão disso,
Francisco de Paula Pessoa era ironicamente chamado de “Xico preto”,
Rodrigues Júnior de “preto velho”, João Brígido de “africano Calunga”. a
eleição perdida por João Cordeiro foi o “samba de 8 de abril que virou alma”
25
.
Em contrapartida à visão abolicionista do escravo como sujeito
passivo à espera de alforria estava sua luta por uma liberdade cujo sentido não
se limitava em livrar-se dos senhores. Embora na década de 1870 fosse
pequena a porcentagem
26
de trabalhadores escravos em Fortaleza, é preciso
considerar que essa “minoria” precisava criar, cotidianamente, táticas de
resistência e alternativas de vida em que se pudessem satisfazer os próprios
desejos, incluindo-se aí a vontade de freqüentar festas e outros divertimentos.
A liberdade para esses sujeitos era, entretanto, um processo de
conquistas, e resistir não significava suportar, mas, sim, lutar contra a
dominação imposta. Ademais, relacionava-se com a negação (ou
ressignificação) dos valores da cultura que se pretendia “hegemônica”.
Também é importante levar em conta que, independentemente de os
negros participantes dessas festas serem livres ou cativos, eram sempre
trabalhadores nas mais diversas “ocupações”. Nesse sentido, as manifestações
24
FUNES, Eurípedes Antônio. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone (Org.). Uma nova
história do Ceará, 3. ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004. p. 103.
25
Refere-se à eleição de 8 de abril de 1891, para governador do Estado. BPGMP, Núcleo de
Microfilmagem. Cf. Jornal O Combate. Fortaleza, 9 abr. 1891, p. 2, rolo nº. 75-A.
26
Segundo Pedro Alberto de Oliveira Silva (História da escravidão no Ceará: das origens à
extinção. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002), em 1872, esse número era de 6%.
27
festivas negras não ocorriam totalmente desvinculadas do mundo do trabalho,
seja porque daí é que vinham recursos para a festa, pela negociação com
senhores/patrões ou ainda porque as vivências laborais podiam ser encenadas
e cantadas nas festas.
Além disso, as festas de negros em Fortaleza nas últimas décadas do
século XIX ocorriam em meio a transformações políticas, sociais e urbanas,
cujos agentes muitas vezes consideravam preconceituosamente os negros e
seus costumes, em geral vistos como fontes de desordens. Nesse
encadeamento de convivências, tensões e mudanças, as festas eram espaços
para a resistência de uma cultura negra que se permitia a um constante
(re)criar.
Nesse contexto (interativo) é que ocorriam as coroações de reis
negros na irmandade do Rosário, os autos de rei congo, os sambas, os
maracatus e outros divertimentos de negros. Eram festas e espaços para
sociabilidades, que envolviam pessoas de todos os tipos, inclusive da “elite”,
seja participando das “brincadeiras” ou, mais comumente, no papel de
repressora dessas manifestações.
Entretanto, as “festas de negros” existiam como instrumentos para a
ocupação de espaços públicos e privados na cidade.
Ao Intendente do distr.
o
- Segundo participou-me o Intendente do
distrito, em data de hontem o guarda civico do distrito Pedro
Mor.
ra
, em um samba á rua do Imperador, na madrugada dia anterior,
tomara parte de um conflito de que resultou ser ferido gravemente
Ermogenes Barros da S.
a
por um individuo conhecido por Sapira, que
não poude ser preso em flagrante delicto. O que lhe communico
para, tomando conhecimento do ocorrido, punir u referido guarda
como merecer. Dr. J.
o
dos Reis de S. Santos F.
o
27
O guarda Moreira, Ermógenes, Sapira e outros eram sujeitos
freqüentadores de uma prática cultural de influências africanas, mas vista
com desconfiança pelas autoridades, mesmo no ano da Abolição no Ceará.
Apesar de tudo, manifestações negras, como o samba, resistiam e ocorriam
inclusive em ruas e outras áreas centrais da cidade.
27
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de officios a diversas autoridades. 4
mar. 1884. Ala 02, estante 27, livro nº. 264, fl. 128 v e fl. 128-129.
28
1.1 – Abolição, Patriotismo e Preconceito Contra o Negro
O movimento abolicionista cearense tomou corpo principalmente nas
décadas de 1870 e 1880 e, aos olhos de uma “elite” política e intelectual,
constituía-se num dos episódios mais importantes daqueles fins do século XIX,
período em que o país passava por importante transição social e política,
marcada pela extinção do trabalho escravo e culminada com a mudança na
forma de governo de Monarquia para República.
No que se refere ao fim do trabalho cativo no Império, os cearenses
tiveram iniciativas precursoras, como a do político Pedro Pereira da Silva
Guimarães ao apresentar à Câmara dos Deputados, em 22 de março de 1852,
uma proposta para a “libertação do ventre escravo”.
28
Não obstante, foi com a fundação de sociedades abolicionistas que o
Ceará, ou melhor, a elite cearense ganhou relevo. Segundo Raimundo Girão
29
,
a primeira sociedade libertadora no Ceará teria sido a de Baturité, organizada
em 25 de maio de 1870 e instalada em junho do mesmo ano. a Sociedade
Manumissora Sobralense foi fundada em 25 de junho de 1870, sendo que
nesse dia um grande número de pessoas teria se reunido no paço da Câmara
Municipal, fazendo a instalação oficial dessa sociedade sobralense e libertando
algumas meninas. Em 1879, criou-se em Fortaleza a sociedade abolicionista
“Perseverança e Porvir”, cuja data de fundação (28 de setembro)
homenageava o oitavo aniversário da Lei do Ventre Livre.
Mas, o núcleo gravitacional do abolicionismo na província chamou-se
Sociedade Cearense Libertadora, criada em 8 de dezembro de 1880, e em
torno da qual orbitavam outras sociedades, na capital e no interior. A
“Libertadora” teve como principal órgão de divulgação o jornal Libertador,
fundado em 1881, sendo seu principal objetivo apoiar a luta abolicionista.
É importante, porém, destacar outra sociedade libertadora: o Centro
Abolicionista, também sediada em Fortaleza e fundada a 19 de dezembro de
1882 e, que de certa forma, rivalizava com a Cearense Libertadora, pois
enquanto esta defendia a abolição total e imediata, aquela queria uma abolição
28
STUDART, Guilherme (Barão de). Datas e factos para a História do Ceará. Tomo II. Fac-
Símile - edição de 1896. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 149.
29
Cf. GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. Fortaleza: Editora A. Batista Fontenele, 1956, p.
58-66.
29
mais lenta, seguindo as leis do país “de modo a evitar-se quaesquer
perturbações de ordem moral ou economica no seio da familia ou da
sociedade”.
30
O posicionamento do Centro Abolicionista como um grupo disposto a
promover o fim do trabalho cativo dentro da ordem e sem desrespeitar as leis
fica evidente no anúncio sobre sua festa de fundação, em que, “alem do
concurso extraordinario de pessoas das diversas classes notou-se nessa festa
abolicionista a mais perfeita cordialidade devida ao accordo de ideias e a
puresa das intenções de que se achavam possuidos todos os fundadores do
Centro Abolicionista”.
31
De qualquer forma, embora ambas as sociedades declarassem guerra
à escravidão, variavam nas estratégias para chegarem ao objetivo: o “Centro”
queria a liberdade do escravo pela ordem jurídica, enquanto a “Libertadora”
queria “pelos meios revolucionários”.
32
A rivalidade entre os abolicionistas foi terreno fértil para uma série de
atritos entre eles, o que pode ser ilustrado através do ocorrido em 6 de janeiro
de 1883, na cerimônia de instalação de uma sociedade abolicionista composta
apenas por mulheres: a Sociedade das Cearenses Libertadoras.
Durante a solenidade, o abolicionista fluminense José do Patrocínio
defensor da abolição imediata acabou atacando os membros do Centro
Abolicionista colocando em dúvida a atuação destes. Quando terminou o
discurso, o Barão de Studart pediu a palavra e desabafou com revolta, atirando
sobre a mesa presidida pela sobralense Maria Thomasia vinte e nove cartas
de alforria que levara para solenizar o ato, como de costume, dizendo
indignado, que era assim que o Centro respondia a insultos.
33
Nessas festas promovidas “em nome da liberdade”, os discursos
abolicionistas eram carregados de matizes patrióticos e progressistas, bem
como o argumento de que a extinção do trabalho cativo era necessária para a
inserção do país no cenário das nações liberais. Veja-se, como exemplo, parte
de um discurso publicado no jornal Libertador:
30
STUDART, Guilherme. Datas e factos para a História do Ceará. op. cit., p. 299.
31
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Gazeta do Norte. Fortaleza, 21 dez. 1882, p.3,
rolo nº. 301.
32
Júlio César da Fonseca Filho apud GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. op. cit., p. 142.
33
Esse fato ficou bastante conhecido, sendo relembrado ainda anos mais tarde. Ver: BPGMP,
Hemeroteca. Jornal O Nordeste. Fortaleza, 24 maio 1934, p. 14.
30
Abaixo a escravidão. Concidadãos! Em meio das grandes ideias que
nobilitam nosso seculo, uma grande vergonha faz ainda corar a
nossa querida patria. E’ a vergonha da escravidão! (...) é tempo que
desappareça do meio de nós esta infamia que retarda o nosso
progresso e nos distancia do lugar que compete-nos no congresso
das nações. (...) Enquanto a liberdade não congraçar-nos no mesmo
amplexo, como irmãos que somos perante Deus e a humanidade,
perante a civilisação e o progresso, seremos um povo sem
autonomia, sem consciencia de nosso valor, por quanto amesquinha
a nossa grandeza, as instituições liberaes que nos governam (...).
Está mais do que provado que só o trabalho livre é que ennobrece, e
não aquelle que augmenta a fortuna publica, amontoada á custa de
lagrimas e do sangue dos desgraçados.
34
Percebe-se nas entrelinhas uma crítica ao Estado imperial, que
enriquecia às custas de “desgraçados” escravos. Com efeito, “a Abolição
representaria um fato concreto de evolução positiva da sociedade, portanto
adquirindo significado especial de regeneração. Nesse momento, a Nação
definir-se-ia como nova, racional, civilizada, positiva e progressista.
35
Além de encararem a escravidão como uma vergonha para o Brasil,
ao longo de sua campanha os abolicionistas constantemente defendiam que
um escravo, ao ser libertado, tornava-se mais um cidadão para a pátria. Na
prática, porém, os negros libertos não tinham qualquer tipo de amparo
público ou privado ficando confinados à própria sorte, dificultando em muito
exercerem um papel de “cidadãos”.
Completa hoje um anno de existencia a heroica Sociedade Cearense
Libertadora. Nascida sob os auspicios da immaculada virgem mãe do
louro sonhador de Galiléa (...) A Sociedade Cearense Libertadora
tem restituido mais cidadãos a patria, do que todas as sociedades
que para o mesmo fim se têm constituido no Imperio.
36
Ao se colocarem como promotores de uma evolução social a ser
materializada na Abolição, os abolicionistas assumiam o papel de “heróis”
abençoados por uma sacralidade branca, refletindo assim, uma mentalidade da
elite intelectual cearense daqueles tempos.
34
Jornal Libertador. Fortaleza, 15 jan. 1881, p. 1. Edição Fac-Similar. Fortaleza: Secretaria de
Cultura, Turismo e Desporto do Ceará, 1988.
35
OLIVEIRA, Almir Leal de. O Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará.
Memória, representação e pensamento social (1887-1914). Tese de doutorado. São Paulo:
PUC, 2001, p. 86.
36
Jornal Libertador. Fortaleza, 8 dez. 1881, p. 1. Edição Fac-Similar. op. cit.
31
Nas últimas décadas do XIX, boa parte da intelectualidade brasileira
estava empenhada em definir o “caráter” do povo brasileiro em bases que iam
do étnico ao biológico
37
. Predominava, no entanto, a idéia de que a mistura
“racial” de europeus, africanos e indígenas seria empecilho para a formação de
uma identidade nacional e mesmo para o progresso da nação brasileira.
38
Ao que parece, o Ceará não ficou isento desse contexto, muito por
força dos abolicionistas ou/e dos historiadores do Instituto Histórico, Geográfico
e Antropológico do Ceará. Sobre esses estudiosos, Almir Leal de Oliveira
defende que o modelo mais bem acabado de abordagem racista foi o
elaborado por Joaquim Catunda (propunha a superação desse caráter étnico
como forma de atingir a evolução da sociedade); já Paulino Nogueira descartou
a mistura de índios e negros no Ceará, reafirmando uma tese recorrente em
outros historiadores do Instituto Histórico do Ceará, quanto à particularidade
local de a mestiçagem ser restrita a brancos e índios.
39
Ao não valorizar a presença de traços culturais africanos e mesmo
excluir o elemento negro na formação étnica local, o pensamento de Paulino
Nogueira garantia “uma especificidade positiva para o caráter cearense”.
40
Nesse sentido, Mozart Soriano Aderaldo
41
iria afirmar que o Ceará
representaria “uma clareira na confusão racial do Brasil”. Vai-se cristalizando,
assim, a explicação corrente para a existência de uma população branca ou até
mesmo mestiça, e para a qual seria mínima a participação do negro no
processo histórico cearense. Tal pensamento, segundo Antonio Vilamarque,
acabou se tornando uma tradição local até os anos oitenta do século XX.
42
37
Cf. RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 2. ed. Revisão e prefácio de Homero Pires.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935; ROMERO, Sílvio. O Brasil social e outros
estudos sociológicos. Brasília: Senado Federal, 2001.
38
“A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à
nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante
abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros de seus
turiferários, de se constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo”.
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. op. cit., p. 7.
39
Ainda de acordo com Almir Leal, Paulino Nogueira foi influenciado pelo pensamento de
Adolfo Varnhagen e de Cândido Mendes, descrevendo os índios sem cabelos no rosto e de
pele vermelha, ao mesmo tempo em que rejeitou a definição de Von Martius, que considerava
os caboclos como descendentes de índios e negros. Cf. OLIVEIRA, Almir Leal de. O Instituto
Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará. op. cit., p. 119.
40
Id., Ibid., p, 120.
41
Apud Almir Leal de Oliveira, Ibid., p. 119.
42
Cf. SOUSA, Antonio Vilamarque Carnaúba de. Da “Negrada Negada” a Negritude
Fragmentada. O Movimento Negro e os discursos identitários sobre o negro no Ceará (1982-
1995). Dissertação de mestrado. Fortaleza. UFC. 2006, p. 65.
32
Diante desse contexto, portanto, se por um lado a Sociedade
Cearense Libertadora conseguia promover uma quantidade razoável de
libertações (em seu primeiro ano de funcionamento registrou a manumissão de
379 escravos), por outro lado, percebe-se nos diversos discursos abolicionistas
que a grande maioria destacava o movimento libertador em si mesmo, pouca
importância dando aos libertos, suas necessidades e anseios – individuais e/ou
coletivos.
Apoiado em argumentos de “patriotismo” e “progresso”, o movimento
abolicionista convergiu para a elevação de uma causa a abolição , em que o
negro escravo não era o fim, mas o meio pelo qual se glorificaria a luta pela
liberdade, personificada na figura dos libertadores.
Mas, cada época tem suas lutas e lutar pelo fim do trabalho escravo
certamente era considerado um importante papel a ser exercido por aqueles
homens e mulheres cearenses. Ao que parece, eles realmente acreditavam na
força de suas idéias, não apenas para o Ceará, mas para todo o Brasil.
Em 24 de maio de 1883, na “libertação dos escravos em Fortaleza”,
muitos foram os discursos nesse sentido, como o de Maria Thomasia, proferido
no salão nobre da Assembléia Provincial:
Na metropole do abolicionismo ja não ha senhores nem escravos (...)
Está escripto que o Ceará ha de ser a alavanca de 12 milhões de
vontades, e a minha maior ambição antes de comparecer ao tribunal
da justiça indefectivel de Deus é poder dizer: Da escravidão, em
minha patria, ficaram apenas documentos involtos na poeira dos
archivos, como restos permanentes e uma iniquidade que ja foi! Viva
o livre municipio da Fortaleza!
43
É marcante a defesa de que o abolicionismo cearense seria a chama a
alumiar o Império, conscientizando os senhores a libertarem seus cativos.
Fortaleza aparece como heróica metrópole abolicionista e o Ceará como
exemplo a ser seguido por todos os brasileiros. Outro aspecto destacado era
que o 24 de Maio, “festa de redempção dos captivos da Fortaleza”, ocorreu na
“maior regularidade e mais perfeita ordem”, exaltando “de modo inequivoco o
patriotismo dos habitantes” da capital, como ressaltou em discurso o
43
Academia Cearense de Letras (ACM). Jornal Libertador. Fortaleza, 31 maio 1883, p. 3.
33
comendador e vice-presidente da província Antonio Theodorico da Costa, que
presidira a reunião.
44
Percebe-se a importância dada pelas autoridades a uma abolição
ordeira, gradual e pacífica. A liberdade aparece como presente, uma caridade
ou obrigação. Quanto ao elemento servil que comparecia à festa da redenção,
o papel que lhe era reservado era apenas o de receber a carta de alforria e
assim “materializar” a glória do movimento abolicionista.
Embora houvesse escravos que soubessem ler e escrever
45
,
desconhecem-se discursos de libertos publicados em jornais, o que de alguma
forma poderia expressar suas idéias e sentimentos naquele momento e,
principalmente, a própria atuação do negro livre ou liberto no processo
abolicionista.
Quando da Abolição na província do Ceará, em 25 março de 1884
(data em homenagem à Constituição Imperial, o que de certa forma aponta a
tendência legalista dos abolicionistas), novamente os discursos e artigos
publicados nos jornais concentram-se em temas como glória, patriotismo e
homenagens. A letra e voz do negro liberto não aparecem.
Transcrever na íntegra todos esses textos a fim de amparar o que aqui
está sendo argumentado é desnecessário, pois os próprios títulos dos artigos já
resumem o que vem a seguir. Vejam-se como exemplos, algumas designações
de artigos publicados no jornal Libertador, em 25 de março de 1884:
“Homenagem á Sociedade Cearense Libertadora; “Homenagem ao povo
cearense”; “Homenagem aos libertadores, ousados paladinos”; “Gloria ao
Ceará”; “Salve o 25 de Março”; “Le Jour de Gloire et arrivé”; “Salve, cidadãos
cearenses!”; “Aos grandes homens”.
46
Também nas festas libertadoras, reiteradamente ressaltavam-se
valores como a santidade, a popularidade e a grandeza da causa, como
transparecem nas convocações (publicadas em jornais) para a festa do 25 de
44
Confira o discurso na íntegra em: STUDART, Guilherme (Barão de). Datas e factos para a
História do Ceará, op. cit., p. 312-314.
45
Havia também escravos “letrados”, como João Samango, lembrado em artigo no Jornal
Libertador (Fortaleza, 07 jan. 1889. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem, rolo nº. 227).
46
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 25 mar. 1884, p. 2, 3 e 4,
rolo nº. 127-A.
34
Março, onde se anunciava que as festas eram “em honra a uma causa santa”,
e conclamavam o povo para a “celebração de suas nobres conquistas”.
47
Durante as comemorações do 25 de Março de 1884, houve salva de
canhão, marcha cívica, missa na catedral, homenagens a autoridades e
abolicionistas. Mais uma vez, no entanto, o negro foi colocado à sombra do
movimento abolicionista. Parece que a exceção foi a presença de Inês Maria
da Anunciação, mulher negra representante dos libertos durante o desfile de
encerramento da festa.
Tarde cedo começaram os aprestos do desfile que encerraria tantas
demonstrações de patriotismo e calor por causa tão enobrecedora.
Carros triunfais, aos sons do hino da ‘Libertadora’, a gente nas ruas,
o sorriso nas mentes, tudo era claridade naquela tarde de pesadas
nuvens e trovões reboantes de um inverno que se denunciava
promissor. O carro principal (...) era franjado de nuvens, adornado de
escudos com o nome dos 58 municípios cearenses, deslumbrante de
galas, sobrepujado de troféus. (...) Ornavam-no três belas jovens (...)
caracterizando a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade:
respectivamente, Maria de Morais, de irradiante simpatia,
empunhando uma espada como quem vinga uma afronta e reivindica
um direito; Inês Maria da Anunciação, negra, mas formosa como a
filha de Jerusalém, centralizando os aplausos na mais autêntica
encarnação da raça redimida; e Amélia Vieira Teófilo que, com porte
e majestade de uma deusa, desfraldava aos ventos o estandarte da
República do Equador e parecia imprimir no coração do povo o
heroísmo de seus mártires.
48
No entanto, é preciso considerar que, se oficialmente houve a
presença de uma negra na festa maior da abolição cearense, o discurso
supracitado deixa transparecer o preconceito Inês é formosa, apesar de
negra –, e a visão abolicionista do negro como elemento passivo Inês
encarna a “raça” que foi libertada (e não a que se libertou). uma mulher
branca, Amélia Teófilo, “com porte e majestade de uma deusa”, empunhava o
estandarte da Confederação do Equador, trazendo para a festa a homenagem
aos revolucionários de 1824 e ratificando a idéia de que os “mártires”
cearenses que lutaram contra o Império foram “heróis” ao serem executados
numa praça que, justamente por conta disso, viria a ser denominada “Praça
47
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 20 mar. 1884, p. 1, rolo
nº. 127-A.
48
Essa transcrição foi publicada por Raimundo Girão (A Abolição no Ceará. op. cit., p. 188) a
partir do jornal Libertador sem, no entanto, citar a data do respectivo periódico.
35
dos Mártires”. Em contrapartida, escravos que foram executados no mesmo
local por lutarem pela própria liberdade nunca tiveram tal reconhecimento.
49
Para o movimento abolicionista, portanto, a festa era importante
porque nela é que o povo aparecia para assistir (e reconhecer) a glória dos
feitos escolhidos para serem representados. A festa abolicionista e os espaços
onde ocorriam (ou percorriam) transmutavam-se em palco onde se
apresentavam as sociedades abolicionistas, em tribuna para poetas e
oradores, em palanque para políticos. Ao cativo era negado aparecer, o que
certamente contribuirá para seu não-reconhecimento como sujeito. De qualquer
forma, a espetacularização do abolicionismo fomentou a adesão ao movimento.
A própria imprensa que publicava anúncios de fuga de escravos aos poucos
deixou de fazê-lo.
50
No jornal Libertador, denunciavam-se os “negreiros” que publicavam
anúncios de fuga de escravo, considerados humilhantes para “o carater e o brio
nacional”, bem como se atacavam os comerciantes que propunham a venda de
escravos: “Paga-se muito bem quem nos fornecer a lista completa de todos os
negociantes de escravos, corretores e demais tyrannos”.
51
Nesse contexto de denúncias, o movimento abolicionista pressionava
os senhores para que libertassem seus cativos. Quando se dava uma alforria,
publicava-se no jornal o nome do liberto e um elogio ao “libertador”. Entre
tantos casos, estão o de Canuto, libertado pelo seu senhor, generoso
cavalheiro; e o de Joana, Gregório e Francisca “remidos generosamente do
49
O padre Mororó, os coronéis Pessoa Anta, Feliciano Carapinima e Francisco Ibiapina, bem
como outros revolucionários foram executados no antigo Campo da Pólvora que, por conta
disso, mudaria o nome para Praça dos Mártires (Cf. os nomes e as ordens de execução em:
STUDART, Guilherme (Barão de). Datas e factos para a História do Ceará, p. 36-41). Esse
mesmo sítio, à época das campanhas abolicionistas viria a ser denominado Praça do Passeio
Público que, inclusive, tornou-se espaço para reuniões daqueles que defendiam a abolição. O
mesmo local servira para a execução de vários escravos, como José, “por ter matado seu
senhor com um tiro(Id. Ibid., p. 115); provavelmente um dos casos de maior divulgação foi o
dos “pretos da Laura”, Constantino, João-mina, Hilario, Benedicto, Antonio e Bento”,
enforcados por deflagrarem um motim na embarcação “Laura Segunda”, em 1839, que
realizava navegação de cabotagem entre Maranhão e Pernambuco (BPGMP, Núcleo de
Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 22 out. 1889, p. 2, rolo nº. 213).
50
Veja-se o caso do jornal “Cearense”: “Pela liberdade. De ora em diante o ‘Cearense’ não
publicará mais em suas columnas annuncio algum relativo a fugidos e captura de escravos.
Fiquem pois privinidos os interessados, a fim de não tenhão razão de queixa pela recusa que,
neste sentido, lhe asseguramos. Abriremos porem espaço franco e generoso a todo e
qualquer negocio relativo á manumissões”. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal
Cearense. Fortaleza, 3 out. 1880, p. 2, rolo nº. 23.
51
Jornal Libertador. Fortaleza, 15 jan. 1881, p 10. Edição Fac-Similar. op. cit.
36
captiveiro pelo seu benemerito senhor (...) a quem enviamos os nossos votos
de appreço pela sua nobre acção, digna de louvor e de imitação”.
52
Por outro lado, muitas Cartas de Liberdade eram dadas com
restrições; sob condição, por exemplo, de ressarcir parte da alforria ou
continuar servindo a familiares do ex-senhor. De qualquer forma, nos primeiros
anos da cada de 1880, o movimento abolicionista cearense tomou corpo até
chegar ao 25 de março de 1884 e a província passou a ser cognominada
“Terra da Luz”, expressão atribuída a José do Patrocínio para se referir ao
Ceará por sua “iluminadora” liderança e exemplo a ser seguido na luta
abolicionista no Império brasileiro.
No entanto, apesar da manumissão oficial de todos os cativos
cearenses, descobriu-se depois que ainda havia escravos na província, mais
especificamente na região de Milagres
53
, o que não foi suficiente para apagar a
crença dos abolicionistas em sua própria glória. Durante os anos que se
seguiram à abolição continuou-se na defesa do triunfo de uma idéia, o que
pode ser notado nas comemorações ocorridas nos anos seguintes às datas
importantes para o movimento abolicionista.
Os textos publicados na edição comemorativa do “Libertador” de 25 de
março de 1886 novamente ressaltam um caráter cívico, patriótico e glorioso do
movimento, como denotam os títulos dos artigos: “Gloria ao Povo Cearense”;
“Patria Livre”; “O Grande Dia”; “Anniversario Glorioso”; “Gravemos em nossos
peitos essa data explendorosa como Symbolo de nosso civismo (...)”.
54
Assim, homenageavam-se o civismo dos abolicionistas, as sociedades
libertadoras, os políticos (como Joaquim Nabuco e Satyro Dias), mas não havia
qualquer referência à atuação dos libertos na luta pela liberdade. No correr do
tempo, os negros vão cada vez mais ficando à sombra do abolicionismo em
comparação aos brancos, reiteradamente homenageados por sua iniciativa e
liderança no processo da libertação. O Ceará é cognominado “Terra da Luz”
52
Jornal Libertador. Fortaleza, 24 jun. 1881, p. 3. Edição Fac-Similar. op. cit.
53
“Escravidão em Milagres (...) Em Milagres não há, não pode haver escravos, em virtude da
decretação solemne do povo e do governo e por força da lei de 19 de outubro de 1883.
Entretanto 194 individuos continuam illegalmente escravisados, apesar das constantes e
reiteradas reclamações da imprensa, porque a administração publica conserva-se indifferente
á sorte desses infelizes, que não têm chefe partidário para advogar a causa de seu direito
conspurcado, de sua liberdade supprimida violentamente”. BPGMP, cleo de
Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 20 out. 1886, p. 2, rolo nº. 252.
54
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 25 mar. 1886, p. 1, rolo nº.
251.
37
por ser a primeira província do Império do Brasil a libertar seus escravos. Mas,
quem eram esses escravos?
Talvez quase não aparecessem porque o movimento abolicionista foi
caracterizadamente de uma elite branca, interessante para os cativos apenas
porque ali estava mais uma possibilidade de se tornarem livres, mas que pouco
lhes dava espaço para serem reconhecidos como sujeitos atuantes no
processo da Abolição e muito menos poderem expressar suas identidades
negras. Além da alforria, era preciso buscar outras alternativas para ser livre e
o exercício da liberdade nem sempre estava na manumissão. Fugas, famílias,
festas, irmandades, encenações de congos, reuniões em sambas e tantas
outras (particip)ações constituíam diversos lócus onde os negros (cativos e
livres) apareciam como sujeitos da história.
Ainda considerando a camuflagem do cativo dentro do movimento
abolicionista, que se colocar em relevo o preconceito que se desenvolveu
contra o ente escravo, e, também, contra o próprio negro. Segundo Yaco
Fernandes, houve no Ceará uma atitude de desprezo contra os africanos e
seus descendentes, materializada, por exemplo, em provérbios, ditos, cantigas
e desafios em que os negros levam a pior.
55
Para Fernandes, as sociedades libertadoras no Ceará eram integradas
por literatos entusiasmados, burgueses ingênuos e algumas senhoras “à frente
de seu tempo”, que compunham agremiações diversivas e filantrópicas as
quais assumiam um caráter de farsa, cuja única desculpa era a seriedade dos
protagonistas. Referindo-se aos “libertadores” afirma, de forma polêmica:
[...] se reúnem em salas forradas de preto; na mesa da presidência
ostenta-se a clássica e desmoralizada caveira; os conspiradores
puxam punhais da cava do colete e, cravando-os dramaticamente na
mesa, proferem juramentos sanguinários e tremendos, que a gente
desconfia sejam copiados dos livros - como o resto. Depois disso,
declamam poesias, fazem discursos, bebem café e vão para casa,
no passo furtivo e patético dos vilões de melodrama. Talvez
dormindo tenham pesadelos, e isso será o maior perigo que jamais
correrão nas suas pacatas vidas de carbonários tartarinescos.
56
55
Xiquexique é pau de espinho/Umburana é pau de abêia/Gravata de boi é Canga/Palitó de
negro é peia”. FERNANDES, Yaco. Notícia do povo cearense. Fortaleza: Imprensa
Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1977, p. 174-175.
56
Id., Ibid., p. 179.
38
Quanto às alforrias conseguidas pelos abolicionistas, Yaco Fernandes
afirma ironicamente que se consumavam em “festas emocionantes” nas quais
se libertavam “alguns escravos próprios, dos parentes e amigos” e onde surgia
o ensejo de luta contra o governo. A finalidade do movimento seria secundária:
“importantes são os perigos fantásticos, os discursos empolados e
preferentemente ofensivos, as possibilidades de conflito com o governo”.
57
Outro ponto memorável do movimento abolicionista é a greve dos
jangadeiros ocorrida no início de 1881, tempo em que o embarque e o
desembarque (inclusive de escravos) no porto da Fortaleza se faziam em
jangadas. Daí surgiu a célebre frase “No porto do Ceará não se embarca mais
escravos!”, publicada no jornal Libertador em 7 de fevereiro de 1881, que
também registra: “Não se sabe mesmo quem primeiro a proferisse”.
58
Yaco Fernandes defende que os jangadeiros aceitaram a greve
proposta pelos abolicionistas por estarem desgostosos com o controle estatal
nas praias, declarando “por intermédio de um deles chamado ‘Dragão do Mar’:
‘Neste porto não se embarcam mais escravos’. Muitas outras coisas bonitas
disse ainda o ‘Dragão do Mar’, mas devemos atribuí-las antes aos redatores
dos jornais e pasquins antiescravagistas. Para Fernandes, portanto, ocorreu o
que ele denomina de “farsa dos libertadores” e que, além disso, o preconceito
contra o negro continua, pois após a libertação dos escravos, “não se muda
uma vírgula sequer a atitude dos mestiços, frente os conterrâneos de sangue
africano. Passada a embriagues verbal, tudo continua como antes: muito
barulho por coisa nenhuma”.
59
Após a abolição, a figura do negro como indivíduo capaz de ações
próprias ainda inexiste para a elite cearense que, além disso, constrói imagens
pejorativas do negro ou de suas práticas culturais e as utiliza para atacar
ironicamente adversários políticos em contendas que aparecem fartamente nos
periódicos da época, particularmente em época de eleições. Nesse contexto,
os jornais Cearense, o Pedro II, o Libertador, o Gazeta de Noticias, o A
Republica, o Unitario, dentre outros, constituíam-se em importantes palcos para
57
Id., Ibid., p. 180.
58
Jornal Libertador. Fortaleza, 7 fev. 1881, p 3. Edição Fac-Similar. op. cit.
59
Cf. FERNANDES, Yaco. Notícia do povo cearense. op. cit., p. 180-182.
39
enfrentamentos de grupos rivais que se alternavam ou buscavam o poder,
muitas vezes utilizando a “bandeira abolicionista” para atingir tal objetivo.
60
No Libertador, argumentava-se que os enfrentamentos políticos
estariam mais entre abolicionistas e “negreiros” (antigos escravagistas) do que
entre liberais e conservadores
61
. Ao que parece, no entanto, foi a facção liberal
que sofreu os maiores achaques. Na verdade, o alvo preferido foram os
chamados “liberais paulas” (mais especificamente Vicente Alves de Paula e
Antônio Joaquim Rodrigues Júnior), que tinham conseguido sucessivas vitórias
eleitorais na década de 1880.
62
Os próprios abolicionistas atacando adversários políticos que
denominavam “negreiros” mostravam seu preconceito contra o negro ao
chamarem, em tons pejorativos, um senador (Francisco de Paula Pessoa) de
“Xico Preto”
63
. Antônio Rodrigues Júnior também sofria vários ataques dos
abolicionistas que tentavam desmoralizá-lo associando os “liberais paulas” a
negros e/ou a suas práticas festivas.
Em 1883, quando comemorava uma vitória eleitoral, o Conselheiro
Rodrigues Júnior promoveu uma passeata por pontos próximos ao palácio do
governo, como a feira e o jornal Cearense órgão dos “liberais paulas”. O
jornal Libertador publicou textos referindo-se ironicamente às comemorações
da “victoria do Rodrigão”.
No dia de sexta feira, dia aziago e de jejum para nos os catholicos
quando se inteirou a victoria do Rodrigão, cujo numero 134 oitava
por noves fora o ministraço negreiro; nesse dia, os miranhas
especies de gringos sahiram em passeiatas no systhema maracatú
60
Sobre as orientações políticas dos jornais publicados no Ceará, ver: NOBRE, Geraldo.
Introdução à história do jornalismo cearense. Edição fac-similar. Fortaleza:
NUDOC/Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/Arquivo Público do Ceará, 2006.
61
“Avisinha-se a grande lucta eleitoral (...). Liberaes e conservadores, abolicionistas e
negreiros, todos disputam um lugar no Congresso Nacional (...). Pouco nos importa o matriz
politico dos que ambicionam a gloria de representar a provincia. Para nós é tão bom um
conservador como um liberal. A questão é ser abolicionista (...). O Ceará tendo redimido seus
escravos, acceitou o compromisso solemne de fazer-se representar por homens adiantados,
patriotas (...). Uma provincia livre não pode mandar ao parlamento soldados do esclavagismo.
(...) Reflitam sobre essa verdade os nossos concidadãos e saibam todos liberais e
conservadores honrar os seus poderes, conduzindo-se no pleito futuro de modo a enobrecer
mais ainda o nosso glorioso passado”. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador.
Fortaleza, 03 out. 1884, p. 2, rolo nº. 127-A.
62
Cf. BPGMP, cleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 03 out. 1884, p. 3, nº.
rolo 127-A. Cf. edições de 4 e de 6 de outubro do mesmo ano.
63
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, out. 1884, p. 2, rolo nº.
127-A.
40
importado pelo Dr. Paulinha homem dado as danças rasteiras. Ao
sahir da passeiata o Tenente Espingarda velha disse: vamos pela
feira, pra mode ajuntar canaia. Pucharam o sequito composto dos
esfalfados muzicos da policia e do onze, e mais uns empregados e
uma troça da brava gente (...).
64
A passeata em comemoração à vitória do político Rodrigues Júnior
teria, então, seguido lentamente em filas duplas com seus componentes
dançando e cantando, ou seja, de acordo com o sistema dos maracatus. No
entanto, dois pontos importantes se colocam nesse registro.
O primeiro deles é que se destaca a contribuição de Francisco de
Paula Pessoa para a existência, em Fortaleza, do maracatu dança
considerada de raiz africana banto
65
. O segundo aspecto é que,
independentemente dessa informação ser ou não verdadeira, associava-se o
maracatu a um tipo de dança reprovável e de baixo nível (rasteira), o que, de
certa forma, corrobora um olhar preconceituoso de muitos abolicionistas,
considerando que os maracatus existentes na cidade eram manifestações que
traziam vários aspectos da cultura negra (música, dança, indumentária, história
da África congo-angolana, presença de reis congos) e eram instrumentos para
a conquista de certos lugares na cidade (sedes dos maracatus geralmente
em áreas consideradas “subúrbios”; percursos percorridos por esses grupos
que incluíam ruas do centro da cidade; áreas onde os maracatus “dançavam”
por exemplo, a frente da Igreja do Rosário). Nessa mesma descrição da
passeata, ironizava-se o evento, por utilizar a dinâmica dos maracatus.
Seguiu a passeiata e ao passar na feira nova um estudante disse
admirado: esta é que é a passeiata? Ora, ora isso, isto é canalha.
Bocca que tal diceste!...Foi abotoado e seria esquartejado si dona
Prudencia não se mettesse entre elle e o major fiscal da passeiata!
Na botica imperial fallou o Viriatinho de Cascavel. Poucas e boas
dice elle azabumbando-se. Ainda se fez ouvir um reverendo vigario
Antonino. Apenas apresentou o exordio de um sermão inedicto.
Esteve na altura de um vigario... encommendado. Assim ficou
abençoado o maracatú de sexta-feira e segundo dia de festa.
66
64
BPGMP. Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 6 ago. 1883, p 2, rolo nº.
189.
65
Cf. GUERRA-PEIXE,sar. Maracatus do Recife. 2. ed. Recife: Irmãos Vitale, Fundação de
Cultura da Cidade do Recife, 1981, p. 28.
66
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 6 ago. 1883, p 3, rolo nº.
189.
41
Segundo publicado no Libertador, quando Francisco de Paula Pessoa
recebeu, no “escriptorio do zabumba”
67
, o convite para que ele e sua família
participassem da reunião no palácio do governo pela reeleição de Rodrigues
Júnior, reagiu dançando e cantando “coplas de Araúna”:
O Rodrigão poz um ovo, Araúna,
Pera não ir descansar, Araúna,
No palacio da botica, Araúna,
Preto véo vai dançar, Araúna
(...)
Branco me arrêgala ôlho, Ai - oê
Mais a sinhá presidente, Araúna
Já me mandou convidá , Araúna
Por sê preto infuluente, Araúna
No pandeiro e maracá, Araúna
Chô, inchô, inchô, Araúna
Preto veio vai dançá (...).
68
Os versos transcritos foram inventados apropriadamente para fazer
uma crítica ao Conselheiro Rodrigues. No entanto, eram uma adaptação a um
tipo de canto amplamente utilizado pelos grupos de congos e por sujeitos de
outras práticas negras existentes em Fortaleza. Certas expressões, inseridas
com tom de desprezo nos cantos, como “preto veio”, referência à figura
sagrada do “Preto Velho” presente em cultos religiosos afro-brasileiros, mais
uma vez deixam transparecer o desdém pela cultura dos negros.
Ainda considerando as comemorações pela vitória política do
Conselheiro Rodrigues, outro registro contemporâneo ao fato aponta a
intolerância contra práticas festivas negras, como o “samba” promovido por
populares na Praça do Ferreira.
67
“Zabumba” era uma referência pejorativa ao jornal Cearense, órgão político dos “liberais
paulas”, sendo citada constantemente no Libertador: “O Zabumba rompe amanhã contra a
sabia e honestissima administração do Exmo. Sr. Dr. Carlos Ottoni !!! Preparem-se, pois, os
leitores do pasquim ripardo para ler essa exposição de motivos do diplomado ex-ministro da
guerra e o orelhudo Rodrigues Junior”. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador.
Fortaleza, 22 set. 1884, p. 2, rolo nº. 127-A; “Zabumba” também podia significar um tipo de
bebida alcoólica: “Depois dos bailes - O zabumba fez mais uma victima. Foi presa a ordem do
delegado de polícia Rosa Maria da Conceição por briga... O zabumba que entrou nos couros
da pobre mulher; persuadiu-a que era valente e podia brigar". BPGMP, Núcleo de
Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 8 ago. 1883, p. 2, rolo nº. 127-A.
68
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 6 ago. 1883, p. 3, rolo nº.
189.
42
Sessão Importante. Reuniram-se ontem ao meio dia na praça do
ferreira todos os trabalhadores da rua do Major Facundo, afim de
tratarem de negocios concernentes ao prodigioso triumpho da
pessoa ou coisa do Sr. Rodrigão. A sessão foi presidida pelo Sr.
Barão de << Manuel Torto >> o qual depois de cantar o << Papagaio
no couco >> , manifestou o desejo de se fazer um samba igual ao de
palacio no melhor palacete do alto da pimenta. Em seguida teve a
palavra o Sr. Carvalho Cayanna; orador da sociedade, que disse a
respeito cobras e lagartas: e concluiu convidando seus
companheiros de sessão para tocarem um rojão na viola do Raphael,
o que foi acceito por unanimidade de votos; e desta maneira foi
encerrada a sessão. O secretario.
69
Provavelmente o “samba no palácio” não ocorreu, mas o da Praça do
Ferreira, sim. O fato é que o samba reunião em que predominavam negros
aparece para certos políticos como espaço onde impera a confusão.
Além disso, as comemorações da vitória do Conselheiro Rodrigues eram
denominadas “sambas”, tendenciosamente associados à bebida e à
transgressão, e reprimidos pela polícia.
70
Quando o Rodrigues Junior perdeu a eleição de de dezembro de
1884, o jornal Libertador, em plena campanha abolicionista, publicou quadras
imitando os cantos dos autos de rei congo, que encenavam nas praças e
terrenos baldios de Fortaleza as guerras congo-angolanas ocorridas na África
do século XVI:
Para os Congos e Bumba-meu-boi:
Don Rodriga não morreu
Elle foi pera Ipú;
Noticia que o fio deu
Elle esta comendo imbu.
Don Rodriga foi p’ras guerra
Don Rodriga não vem mais;
Foi no sertão fazer terra,
Visitar os seus curraes.
Don Rodriga se encontrou-se
Com seu sinhô Theodorêto
Mas porém, logo borrou-se
De sarará virou preto (...).
71
69
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 8 ago. 1883, p. 3, rolo nº.
189.
70
“Nos sambas Rodriguezes Hontem foram recolhidos, a ordem do delegado de policia,
Maria Joaquina da Conceição e Maria Antonia da Conceição, ambas pela predilecção da
botija do zabumba”. BPGMP. Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 7 ago.
1883, p. 2, rolo nº. 189.
71
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 9 dez. 1884, p. 3, rolo nº.
127-A
43
Ao afirmar que Rodrigues (Dom Rodriga) foi para a guerra e não vem
mais (perdeu as eleições), o autor dos versos faz uma comparação com o
Príncipe Sueno (filho do Rei do Congo) morto nos conflitos congo-angolanos.
Para zombar do político derrotado, as quadras foram distorcidas de forma que
Rodrigues Junior é “acusado” de sarará ladrão que vira preto e Francisco de
Paula (Xico Preto) desanima com a situação.
Outras publicações ironizavam liberais e conservadores, como a sátira
escrita por um cidadão chamado Ridelis denominada “Tirando os reis - Um
pesadelo”; um sonho extravagante em que ele via autoridades locais
participando de práticas festivas populares como congos, pastorinhas, bumba-
meu-boi, fandangos, festa de reis e outras. O Barão de Ibiapaba, chefe dos
“conservadores graudos”, surgia vestido com calções amarelos e usando um
diadema na cabeça simbolizando o rei mago (negro) Baltasar.
72
No sonho de Ridelis, também aparecia um liberal, “vestido a
phantasia, largas pantalonas azuis, jaquet verde, cobrindo-lhe os hombros,
numa tunica carmesina, fez sua entrada no salão”; era o Conselheiro
Rodrigues fantasiado de Mateus, personagem do bumba-meu-boi. Em seguida,
“ao som de maracás”, entrava no salão do palácio do governo “o Xico de Paula,
acompanhado de sua rapaseada, trajando todos saiotes brancos e corpetes
encarnados”. Cantavam: “Oh! pretinhos do Congo / O que vens buscar? /
Nosso rei Cariongo / Para festejar”.
73
O alvo agora é o político liberal Francisco de Paula que, para ser
ridicularizado pelo autor do relato, aparece caracterizado de personagem dos
autos de rei congo, prática festiva do gosto dos negros cearenses, e que nesse
período segunda metade da década de 1880 sofria forte repressão do
chefe de polícia de Fortaleza.
Com efeito, quando esses textos ficcionistas – inserindo a elite política
cearense em papéis nas práticas festivas negras –- eram publicados,
acabavam expondo liberais e conservadores como alvo de chacotas, mas,
também, mostravam o preconceito contra certas manifestações culturais, como
os sambas, autos dos congos, maracatus, e outras tidas como inferiores e
pouco respeitadas pelos que disputavam o poder. Apesar de tudo, percebe-se
72
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 6 Jan. 1887, p. 2, rolo
nº. 202.
73
Loc. cit.
44
a intensidade e (re)conhecimento dessas práticas negras na cidade, caso
contrário, não seriam usadas ainda que de forma deturpada para se atingir
adversários políticos.
É importante lembrar que aquele foi o tempo do abolicionismo e o
Ceará passava a ser conhecido como “Terra da Luz”. No entanto, o fato de
haver defensores do fim do trabalho escravo no Brasil não significava que
aceitassem o negro como indivíduo capaz de fazer a história, de ressignificar o
mundo em que vivia e de possuir uma cultura própria.
Mesmo após a Lei Áurea e no período republicano, a figura do negro
ainda era utilizada publicamente para atingir adversários políticos. É o que se
percebe através do jornal A Republica que publicou uma série de textos contra
João Brígido (cognominado pejorativamente de “João Calunga”).
Chronica - Todo mundo sabe até onde chega a pretensão de João
Calunga no que se prende com seu grande preparo em assumptos
historicos e philologicos. Desconhecendo-os por completo, delles diz,
entretanto, com uma segurança e uma empatia de que não
disporiam mestres na matteria. (...) Aqui, pois, das orlas dos verdes
mares ninguem guarda illusões sobre o valor do intellecto, da historia
e da grammatica do preto velho. (...) Começa mentindo á sua propria
maneira de falar, que chama do sul, e descamba, depois, no terreno
das mais grosseiras invencionices sobre o modo particular de
expressar-se o filho ingennuo da terra de Iracema (...) João Calunga,
o africano mais ignorante e boçal que pastou no vasto campo do
jornalismo indigena!? (...) Jacy Ubrejado.
74
Note-se que a crônica, tentando atingir João Brígido, compara sua
oratória a de um Preto Velho (entidade dos cultos afro-brasileiros), substitui seu
sobrenome por Calunga (símbolo sagrado africano ligado à passagem da vida
para a morte) e lhe atribui a identidade de filho “ingennuo”, ou seja, escravo
nascido liberto. A utilização desses elementos tal como aparecem no texto é
mais uma marca do preconceito, não contra um indivíduo exatamente, mas,
contra a etnia negra.
Em contrapartida ao uso pejorativo da imagem do negro e de sua
cultura, predominou o uso da imagem heróica e patriótica dos abolicionistas.
74
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 13 jan. 1908, p. 2, rolo nº.
317.
45
Talvez por isso, sua “vitória” (em 1884) seria constantemente lembrada em
prosa e verso, aparecendo os “libertadeiros”
75
, como fortes, audazes e dignos.
Com o evento de 13 de maio de 1888, mais uma vez o que se registra
são as comemorações em torno dos feitos dos abolicionistas “que, em porfiada
luta, nunca cederam um passo do terreno que tão dignamente conquistaram”
76
.
Note-se que, de acordo com o discurso, a liberdade foi conquistada não pelos
escravos, mas pelos abolicionistas.
Do Ceará partio o movimento propulsor da abolição, que acaba de
receber a consagração legislativa. Demos o impulso que rompeu a
primeira malha por onde se esgotou, em menos de cinco annos a
nodoa secular. Caminhamos adiante da Lei, não como anarchistas,
mas como precursores da evolução que acaba de completar-se. O
regozijo indiscuptivel que desde o dia 13 se traduz em festas
benditas, é, pois o epilogo igno de um grande drama e de um grande
povo.
77
O destaque se não somente ao fato de os abolicionistas terem se
adiantado à Lei Áurea promovendo a libertação dos escravos cearenses em
1884, mas, de terem feito isto não como anarquistas, ou seja, dentro da ordem
e sem provocar quaisquer tipos de convulsões sociais na província.
Na festa pela “redenção dos cativos” no Brasil, houve em Fortaleza,
salva de canhão e passeata abolicionista até o Passeio Público. O presidente
da província promoveu um sarau com a participação das “melhores classes” da
população cearense a fim de mostrar sua satisfação com o ocorrido.
Na noite de antes d’hontem (15) realisou-se em palacio um sarao,
que, pelo exmo presidente da provincia foi offerecido ás melhores
classes da população cearense, em regosijo pela abolição dos
escravos. (...) Havia uma enorme profusão de manjares, vinhos
finissimos e licores. S. Exc. tomou parte nas danças e juntamente
75
“AOS LIBERTADEIROS: Eram uma legião, poucos, mas fortes / Intrépidos, briosos,
destemidos / da liberdade os magicos transportes / seus corações enchiam. Os gemidos / do
irmão escravo alli repercutiam / como um plangente echo de masmorra / e os generosos
peitos lhes fremiam / quando despertos da lethal madorra / que a patria triste, attonita,
aviltava / oh! a decuria nunca trepidava / em dar combate aos batalhões negreiros, / e
venceram por fim. Jamais a historia / nos factos inscreveu igual victoria! / Salve! Salve! / Oh
heroes libertadeiros. / UM CUPIM”. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador.
Fortaleza, 9 dez. 1889, p. 2, rolo nº. 213.
76
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Gazeta do Norte. Fortaleza, 14 maio 1888, p. 1,
rolo nº. 331.
77
BPGMP, cleo de Microfilmagem. Jornal Pedro II. Fortaleza, 17 maio 1888, p. 3, rolo nº.
327.
46
com a exma. familia tratava a todos com a lhaneza e cortezia que se
pode esperar de uma fina educação.
78
Na educada e contida festa do palácio provincial, vinhos finos e
maravilhosas iguarias. Também houve danças nas quais o próprio presidente
Caio Prado tomou parte. Será que algum negro liberto ou nascido livre
participou dessa comemoração, sem ser como trabalhador, ou seja,
preparando e servindo a comida?
O fato é que ao longo das campanhas abolicionistas, pontuadas pelas
festas promovidas pelos “libertadores” em datas que marcaram vitórias do
movimento (24 de maio, 25 de março, 13 de maio), o negro, em geral, aparece
somente para justificar o ajuntamento em torno de uma causa “gloriosa” e
“patriótica”: a libertação.
Se os jornais contemporâneos aos fatos não registram a particip(ação)
do negro nas chamadas festas da “libertação”, autoridades administrativas e
órgãos oficiais parecem seguir essa mesma linha de manter os negros
ausentes no processo da Abolição.
é de amplo conhecimento, que houve mesmo iniciativas como a do
ministro da Fazenda, Rui Barbosa, em eliminar os arquivos referentes à
escravidão no Brasil, ainda que por motivos de caráter pecuniário a fim de
evitar pedidos de indenização por parte de ex-proprietários de escravos. De
qualquer forma, tal atitude foi vista pelos “libertadores” como mais um ato de
patriotismo, de devoção aos interesses públicos.
Isso pode ser ilustrado com a publicação do seguinte telegrama de
João Clapp (da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro) destinado ao
abolicionista cearense João Cordeiro:
Archivo Negro O nosso illustre chefe e amigo João Cordeiro
recebeu hoje o seguinte telegramma: “Rio, 19 de Dezembro. João
Cordeiro. Por ordem do Dr. Ruy Barbosa e em sua presença
começamos hoje a cremação publica do archivo negro da
escravidão. Salve o grande patriota Ministro da Fazenda. João
Clapp”.
79
78
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Gazeta do Norte. Fortaleza, 17 maio 1888, p.1,
rolo nº. 331.
79
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 19 dez. 1890. p. 2, rolo nº.
203.
47
É de se notar que a cremação de documentos ocorria com data e hora
marcada, na presença de autoridades e do povo, ao mesmo tempo em que se
tentava dar um caráter cívico ao ato. Assim, a queima de arquivos
transformava-se num ritual de purificação através do qual se promovia a
catarse da nação brasileira. Além do mais, incinerar arquivos não foi apenas
um ato de ocultação, mas, também, um sinal de que, para a elite política (agora
republicana), não era importante conhecer os que tinham sido escravizados.
Não se sabe se no Ceará houve queima de documentos sobre a
escravidão na província. Ao que parece, pouco foi o interesse das autoridades
da época em preservar esse material. Mas, certamente, existiu um
abolicionismo que ressaltou o papel glorioso e patriótico dos brancos em
detrimento da participação dos negros na conquista de uma liberdade que por
tantas vezes transcendeu a carta de alforria.
Para a elite política e letrada, o negro aparecia como sujeito inerte,
incapaz de reagir contra a escravidão e dado a práticas culturais condenáveis.
Além do mais, suas encenações de autos de rei congo eram ridicularizadas,
suas reuniões em sambas eram entendidas como sinônimos de confusões e
seus desfiles de maracatus eram vistos como danças rasteiras.
É importante, pois, perceber essa imagem estereotipada e
preconceituosa em relação ao negro, numa época de movimento abolicionista/
patriótico, para, então, tentar fazer-lhe um contraponto através das festas
negras que, para seus sujeitos, eram diversão, mas, também, instrumentos de
conquista de espaços físicos e simbólicos na cidade.
Talvez por isso, por aqueles tempos, apesar do preconceito e mesmo
da “concorrência” das festas cívicas e abolicionistas, ocorriam coroações de
reis negros nas irmandades do Rosário, autos de rei congo (nas ruas, praças e
terrenos baldios), reisados, maracatus, reuniões em sambas e outras tantas
práticas festivas que constituíam não apenas instrumentos para exercício de
liberdade, experiências sociais e conquistas de territórios na cidade, mas,
também, manifestações culturais através das quais os negros – cativos, libertos
ou nascidos livres – se projetavam como sujeitos da história na “Terra da Luz”.
48
1.2 – Resistências, Trabalho e Costumes dos Negros
Gonçalo era escravo de ganho de Joaquim da Silva Santiago e vivia
nos fundos da casa, num quarto que também lhe servia de tenda de trabalho,
próximo ao quintal. Tinha um costume deplorável aos olhos de seu senhor:
bebia cachaça. E “(...) em todos os instantes danou-se a embebedar-se de
maneira que, em saindo a rua bêbado nada mais fazia a todo aquele dia”.
80
Ao deixar de ser um trabalhador produtivo, o “malvado escravo”
Gonçalo tornara-se a “comadre” das moléstias que atacavam o adoentado
Joaquim. Mas, foi quando se atreveu a comprometer a segurança da casa que
o cativo despertou a ira de seu senhor.
Acontecia o seguinte: além de beber durante o dia, Gonçalo
costumava sair à noite “para os seus divertimentos, provavelmente em
sambas nos subúrbios de Fortaleza. Como a casa ficava trancada no período
noturno, teve o “atrevimento de arranjar duas chaves e com elas abria todas as
noites uma porta e um portão, e punha-se na rua em convivencia, ou metia
dentro a quem bem parecia”.
81
Em certa madrugada do mês de maio, Gonçalo bebeu tanto que não
acordou para sua primeira atividade diária: buscar água de beber para a família
de Joaquim. Saindo atrasado para cumprir tal serviço esqueceu as chaves “em
cima da banca em que trabalhava”. Justamente nesse momento, seu senhor
resolvera fiscalizar-lhe o quarto. Encontrou as duas chaves e um vidro utilizado
para armazenar aguardente.
Gonçalo, chegando com o balde de água e vendo um moleque da
casa a lavar o tal vidro, percebeu que Joaquim havia andado pela tenda
(quarto). Apressou-se para apanhar as chaves e como não as encontrou tentou
fugir a fim de safar-se do castigo. Na porta da rua, a filha de Joaquim tentou
impedir-lhe a saída. Gonçalo não hesitou em “puxá-la pelo braço para arredá-la
da porta por força”
82
. Foi finalmente detido por um colono e dois negros que
consertavam uma casa vizinha.
80
Carta de Joaquim da Silva Santiago ao Pe. José Martiniano de Alencar. Ciará, 21 maio 1844.
In: Revista do Instituto do Ceará. Tomo Especial, 1984, p. 94.
81
Id., Ibid., p. 95.
82
Id., Ibid., p. 95.
49
Na Casa de Correção, Joaquim ordenou que lhe dessem 50 açoites
por nove dias na forma da Lei, o que inicialmente não foi cumprido, pois “mal
se davam umas chicotadas no negro. Mesmo após recorrer ao chefe de
Polícia da cidade, o castigo foi efetivado depois de ameaça ao Diretor da
Casa de Correção de se “mandar um Cirurgião todos os dias para examinar o
estado do negro, não se era surrado, como mesmo para ver quando devia
parar com os açoites”.
83
No entanto, passados alguns dias o próprio Joaquim, com receio de
vingança e querendo se livrar de algum “caso mais funesto, mandou cessar o
castigo pensando que não devia mais servir-se “com tal demônio”,
providenciando para que Gonçalo nunca mais entrasse em sua casa.
Essa pequena passagem possui vários indícios de sociabilidade do
negro em Fortaleza. Além disso, demonstra que, longe de ser um elemento
passivo e estático, o cativo muitas vezes encontrava formas de resistência ao
controle do senhor, particularmente na exploração do trabalho.
Mas, a resistência não estava apenas em deixar de trabalhar por estar
bêbado. Para sair à noite e divertir-se, Gonçalo ousadamente providenciou
cópias de chaves da casa de seu senhor. Nas ruas, convivia com outras
pessoas e trazia companhias para dentro de casa. Ao ser descoberto, não
titubeou em usar a força contra a filha do senhor que tentou impedir-lhe a
saída.
Se enganar e agredir os senhores eram demonstrações de que o
cativo não aceitava passivamente a condição social que lhe era imposta,
encontrar-se com outras pessoas para diversões aponta práticas sociais
amplamente transgressoras frente às normas de então.
Considerando os diversos códigos de posturas que, ao longo do
século XIX, tentavam regular a vida dos munícipes da Capital, há que se
destacar os artigos prevendo procedimentos para trabalhadores, cuja
desobediência poderia gerar prejuízos a seus “senhores” ou patrões. Uma
leitura dos códigos permite perceber que era recorrente nas normas
fortalezenses a tentativa de controle sobre o exercício de ofícios e sobre atos
que os legisladores consideravam ruidosos e/ou imorais.
84
83
Id., Ibid., p. 95-96.
84
Por força da hierarquia legislativa, os municípios brasileiros seguiam determinações vindas
da Corte, especialmente da Lei (Imperial) de de outubro de 1828, elaborada para tentar
50
As posturas de 1835 previam, por exemplo, que os carregadores de
feixes de lenha, capim ou outra carga qualquer deveriam apregoar o objeto que
estavam conduzindo (na cabeça ou nos ombros) a fim de que as pessoas
pudessem desviar-se. Detalhe é que se o carregador fosse escravo e o
gritasse “óia o capim”, “óia os paus”, ou outro “delicioso pregão”, poderia ficar
um dia preso, caso seu senhor não pagasse a multa de 320 réis pela infração.
85
o extenso código de posturas de Fortaleza, de 1865, além de
prever multa aos comerciantes que permitissem jogos ou reuniões de cativos,
proibia aos escravos venderem “qualquer objecto” sem a autorização escrita de
seu senhor. Também proibia gritos e “vozerias” que incomodassem os
habitantes, bem como determinava que os munícipes deveriam andar vestidos
“honestamente, vestindo pelo menos camisa e calça” sem deixar à vista partes
do corpo que ofendessem a “moralidade publica”. Para tudo isso, previam-se
multas. Se o multado fosse escravo, o responsável pelo pagamento era o seu
senhor.
86
Com o crescimento da cidade, aumentaram as publicações de artigos
tratando principalmente sobre edificações (construções), transporte de gêneros
pelas estradas, ruas e praças da cidade, tráfico de animais, venda de alimentos
e de água, uso de pesos e medidas, dentre outras regulamentações sobre as
mais diversas atividades dos munícipes. No que se referia aos costumes e às
sociabilidades, no entanto, a partir da década de 1870 parece que as normas
organizar (“dar forma”) às câmaras municipais, apontado suas atribuições e o processo para
a eleição de seus membros. Por outro lado, os municípios também tinham certa liberdade
para legislarem de acordo com suas peculiaridades, como se pode perceber comparando as
instruções imperiais com os artigos e códigos locais (no caso, Fortaleza). No que se refere às
chamadas “Posturas Policiaes”, o Artigo 66 da Lei de 1828 orientava e determinava: “(...) §
Sobre vozerias nas ruas em horas de silencio, injurias e obscenidades contra a moral publica;
(...) § 12 Poderão autorizar espetaculos publicos nas ruas, praças e arraiaes uma vez que
não ofendam a moral publica, mediante alguma modica gratificação para as rendas do
Conselho, que fixarão por suas posturas”. Cf. Lei de de outubro de 1828. In:
<http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio> (Acesso em: 31 out. 07)
85
O digo de posturas de 1835 foi transcrito na íntegra por Eduardo Campos. As expressões
que aparecem grifadas nesse parágrafo foram escritas por Eduardo Campos no estudo que
fez sobre o supracitado código. Cf. CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro. A Fortaleza
provincial: rural e urbana. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto, 1988, p. 59;
Sobre a cidade de Fortaleza, na primeira metade do século XIX e a construção da “Casa de
Correção”, ver: VIEIRA JR., Antonio Otaviano. Entre o futuro e o passado: aspectos urbanos
de Fortaleza (1799-1850). Fortaleza: Museu do Ceará, 2005, p.p. 68-76.
86
Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel (BPGMP). Setor de Obras Raras.
Resolução nº. 1162, de 03 de agosto de 1865. Approvando as posturas da camara municipal
da cidade da Fortaleza, contendo sete secções e cento e quarenta e quatro artigos. In:
Colleção de Leis da Provincia do Ceará no anno de 1865. Fortaleza: Typ Cearense, 1865,
p. 62-83.
51
assumiram um caráter mais “conservador”, atingindo principalmente a gente
mais humilde da cidade, incluindo-se os trabalhadores na condição de
cativos. Veja-se o seguinte artigo das posturas do ano de 1870:
Art. 72. E’ prohibida a reunião de escravos, filhos familias, famulos
ou creados nas lojas, tavernas e calçadas, por mais de 15 minutos,
para qualquer fim; sob pena de 20$000 rs. de multa ao dono da
casa, em que se fizer a reunião.
87
Interessante é que em 1879, quando houve nova reformulação e
ampliação no código de posturas de Fortaleza, a determinação de proibir
reuniões de escravos e criados (muitos deles ex-escravos) para qualquer fim
continuava a existir, realçando-a, no entanto, como um ato contra a lei, ao
colocá-la no capítulo denominado “Jogos e reuniões illicitas”.
88
Percebe-se, particularmente na década de 1870, a intenção de um
maior controle social e também “moral” sobre a população, provocada não
apenas pelo crescimento da cidade, mas por outros fatores como a idéia de
“modernidade” presente na intelectualidade fortalezense e a atuação de um
clero romanizado (conservador em relação aos costumes). Também devem ser
consideradas as intensas migrações em direção a Fortaleza, provocadas pela
seca de 1877-79 que, segundo “denúncias” de jornais da época, provocaram o
aumento de casos de roubos, vadiagem e prostituição.
89
Uma das iniciativas das autoridades de Fortaleza para coibir atos
considerados de “desordem” pública foram os “termos de bem viver”, em que
os “transgressores” assumiam o compromisso junto ao delegado de não
reincidirem na perturbação da ordem pública.
Termo de bem viver
87
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1365, de 20 de novembro de 1870. Approva o
codigo de posturas da camara municipal desta capital. In: Colleção de Leis da Provincia do
Ceará no anno de 1870. Fortaleza: Typ Cearense, 1870, p. 79.
88
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1818, de 1º de fevereiro de 1879. Approvando
o codigo de posturas da camara municipal da Fortaleza. In: Colleção de actos legislativos
da Provincia do Ceará promulgados pela respectiva Assemblèa no anno de 1879.
Fortaleza: Typographia Brazileira, 1879, p. 121.
89
Sobre as migrações provocadas pela seca de 1877 e suas implicações para a capital do
Ceará, ver NEVES, Frederico de. A multidão e a história. Saques e outras ações de massa no
Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Governo do Estado do Ceará. 2000; e ______. A
seca no Ceará. In: SOUZA, Simone (Org.). Uma nova história do Ceará, 3. ed. Fortaleza:
Edições Demócrito Rocha, 2004.
52
[...] Felismina Maria das Neves (...) accusada encommodadora de
ordem e sucego publico (...) que a mesma accusada assignasse
termo de bem viver, afim de que não mais perturbe a ordem e a
moralidade publica sujeitando-se a multa de trinta mil reis e a trinta
dias de prisão na cadeia publica desta Capital no caso digne quebrar
o referido termo [...].
90
Outros tantos casos ficaram registrados nesses termos, por exemplo:
“Manoel (...) disordeiro por habito”, “João Castro Oliveira, vulgo banda-forra,
(...) ébrio por habito e turbulento”, ou, ainda, Maria Fernandes, Maria Francisca,
Maria Joana e Josefina Maria acusadas de praticarem “quotidianamente
immoralidades” na ladeira da Misericórdia motivadas pelo consumo de
aguardente. Todos de origem humilde, alguns provavelmente ex-escravos, com
hábitos que iam de encontro à política de disciplinamento então promovida pela
administração municipal, particularmente em áreas mais valorizadas, como a
do Passeio Público, ladeado, vale lembrar, pela subida da Misericórdia. Não foi
possível confirmar se os acusados respeitaram seus “compromissos”
assinados nos “termos de bem viver”. De qualquer forma, é possível perceber
que as ações dessas pessoas forçavam as autoridades a uma negociação.
Ainda nesse contexto de controle, também estava uma espécie de
coerção exercida pelas posturas para que os senhores controlassem seus
escravos. Embora estes não fossem responsáveis legais, muitas vezes eram
presos por infrações aos códigos.
Por outro lado, isso sempre implicava em prejuízo para o “dono”, que
tinha de optar entre pagar a multa ou deixar sua “força de trabalho” na cadeia.
A possibilidade de transgressão e do conseqüente prejuízo aos senhores,
podia gerar uma tensão nas negociações diárias entre senhores e escravos.
Disso poderiam decorrer atitudes mais flexíveis ou mais austeras por parte dos
senhores. E, como resistência a esse último posicionamento, muitos cativos
fugiam.
De qualquer forma, se negros na condição de escravos eram referidos
nos códigos é porque certamente os tinham violado anteriormente;
“transgressões” aos olhos dos legisladores, mas que para os cativos podiam se
constituir em atitudes de sujeitos com decisões próprias, capazes mesmo de
refletir suas individualidades. Esse posicionamento dos negros escravos como
90
APEC. Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Termos de bem viver. 20 nov. 1881. Ala 03,
estante 46, caixa 40, livro nº. 17.
53
indivíduos com vontades e quereres próprios também pode ser percebido nos
anúncios de fuga, publicados pelos senhores em jornais de grande circulação
na cidade.
Ha oito dias desappareceu da casa do abaixo assignado em escravo
de nome Matheus, com 25 annos de idade, mulato claro, cor pallida.
Sem motivo algum para fugir, visto que era lhe livre andar e trabalhar
na rua quando lhe parecia; suspeita-se que tenha acostado a algum
abarracamento onde tenha deparado algum conhecido (...).
Fortaleza, 9 de janeiro de 1880. Fenelon Bomilcar da Silva.
91
Matheus não tinha motivo algum para fugir? Parece que somente na
visão “paternalista”
92
de um senhor que se considerava bondoso e, por
conseguinte, surpreso com a fuga de um escravo que era livre para se deslocar
e trabalhar (para quem?) na cidade. Essa expectativa do senhor de que o
cativo lhe devia submissão e obediência era constantemente frustrada por
atitudes “inesperadas” dos escravos.
Considerando que Matheus se instalara em algum abarracamento de
retirantes da seca onde tinha conhecidos (pessoas com as quais travara
contatos anteriores), o caso exemplificaria como o cativo podia, a qualquer
momento, tomar decisões alheias à vontade de seu “dono”, bem como tecer
relações sociais muito além da casa do senhor, com pessoas livres ou não (nos
abarracamentos também havia escravos fugidos vindos de outros lugares).
Múltiplos olhares são possíveis através dos anúncios de fuga. Gilberto
Freyre, pioneiro utilizando esse “material [anúncios] nos quais dormia sono
leve, à espera de quem os despertasse, variada multidão de homens, de
mulheres e de crianças com suas mil e uma diferenças de caráter não
antropofísico como antropocultural”
93
, aponta que no Brasil as descrições dos
cativos podiam trazer indícios de procedência e/ou de determinados costumes
africanos, destacando, por exemplo, casos de escravos com dentes limados,
dentes extraídos (banguelas), com tatuagens, e outras “marcas de nação” no
corpo indicadoras de “culturas africanas”.
91
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 11 jan. 1880, p. 4, rolo nº.
23.
92
A idéia de “paternalismo” aparece aqui de acordo com Eugene Genovese (A terra prometida.
O mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998).
93
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Recife:
Imprensa Universitária, 1963, p. 53.
54
No Ceará, estudos têm sido feitos a partir anúncios de fuga,
destacando-se o de Eduardo Campos
94
que faz um levantamento (cronológico)
desses anúncios publicados em jornais cearenses, entre 1839 e 1880, e
analisa algumas características do relacionamento entre escravos e senhores;
e o livro de Oswaldo Riedel
95
, que amplia as pesquisas de Eduardo Campos,
enfatizando o “aspecto antropológico do escravo”.
No entanto, o enfoque principal do presente trabalho não é a busca de
possíveis origens étnicas a partir das descrições, embora em alguns momentos
isso possa ser considerado para ilustrar a presença (e influência) de uma
cultura de matriz africana no Ceará. O que pretendo é, a partir de fontes como
os anúncios de fuga de escravos, analisar indícios da participação do negro
(escravo, liberto, nascido livre) na vida social fortalezense, incluindo-se sua
luta por liberdade e reconhecimento.
Analisando-se os anúncios publicados em jornais, é possível notar
características físicas e comportamentais, bem como formas de exploração e
de violência praticadas contra esses negros. Além disso, percebem-se formas
de resistência, indícios de sociabilidades provocadas pelos cativos e também
as várias dimensões que “o ser livre” poderia assumir para tais sujeitos. Assim,
as fugas tinham variados motivos: o excesso de castigos, a separação da
família principalmente com a intensificação do tráfico interprovincial
96
, um
senhor que cancelava a alforria dada, a busca, enfim, por espaços onde se
pudessem exercer múltiplas dimensões da liberdade.
No Ceará, a propriedade escrava esteve em grande parte distribuída
em inúmeras pequenas e médias propriedades e o comércio de gente terminou
sendo um liame entre os mais diversos segmentos sociais. A escravidão
94
CAMPOS, Eduardo. Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. Fortaleza:
Secretaria de Cultura e Desporto, 1982.
95
RIEDEL, Oswaldo de Oliveira. Perspectiva antropológica do escravo no Ceará. Fortaleza:
Edições UFC, 1988.
96
O comércio interno de pessoas dentro do Império cresceu consideravelmente com a Lei
Eusébio de Queiroz, promulgada em 1850, e que efetivamente reprimiu o tráfico negreiro da
África para o Brasil, fazendo iniciar uma nova etapa do escravismo no país: o chamado tráfico
interprovincial, em que as províncias do nordeste, em dificuldades econômicas
particularmente em épocas de seca -, vendiam seus escravos para as províncias do sudeste.
Ver: FERREIRA SOBRINHO, José Hilário. Amarú mabirá. Catirina, minha nêga, Teu senhor
quer te vender, Pero Rio de Janeiro, Pera nunca mais te . O tráfico interprovincial de
escravos no Ceará. Dissertação de mestrado em História Social. Universidade Federal do
Ceará. Fortaleza, 2005; e SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. História da escravidão no Ceará:
das origens à extinção. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002.
55
envolvia as vítimas, os algozes e todos os demais agentes sociais.
Normalmente utilizados em atividades domésticas ou de ganho, os cativos
geralmente ficavam mais “próximos” aos senhores e senhoras, o que não lhes
garantia um tratamento mais ameno.
A agressividade contra o elemento cativo cearense fica evidente nas
descrições físicas dos “fujões”, em que são referenciadas marcas de relho,
queimaduras, cicatrizes, feridas e outros sinais de sevícias ao que parece
bastante comuns, pois sua inexistência também identificava essas pessoas,
como apontam os casos de Victal, “sem signaes de castigo”
97
, de Florencio e
de Onesto que tinham “costas limpas”.
98
A ira dos senhores (e das senhoras) também provocou casos célebres
publicados em jornais, como o da menina Henriqueta, em 1874, morta pelo
excesso de “castigo a fogo” imposto por sua senhora, uma rica proprietária do
“lugar das Damas”, atualmente, bairro de Fortaleza.
99
Interessante notar que alguns anúncios informavam sobre escravos
que fugiam para onde estava o antigo senhor, como foi o caso de Marianna,
que fugira de Fortaleza para Imperatriz “onde mora seu antigo senhor”
100
. Isso
provavelmente ocorria não porque o “novo” senhor fosse pior, mas porque no
local de origem provavelmente havia amigos, parentes e pessoas com as quais
essa escrava tinha laços sociais que considerava importantes. Assim, fugia-se
não para voltar ao ex-senhor, mas sim para uma comunidade onde se havia
vivido até então.
Quanto à possibilidade de ser vendido para o “sul” do país por conta
do tráfico interprovincial, ainda na década de 1870 era um temor constante
para cativos cearenses e suas famílias, como a escrava Benedita, que se
desesperou ao ter a filha vendida pelos ex-senhores a um novo proprietário
residente no Rio de Janeiro. Não podendo acompanhá-la e não suportando a
dor da separação, Benedita fora-se para “morrer por este mundo”.
101
97
Jornal Cearense. Fortaleza, 12 mar. 1876. In: CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro.
Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. op. cit., p 135.
98
Jornal Cearense. Fortaleza, 7 abr. 1878. In: CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro.
Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. op.cit., p. 26.
99
Sobre o caso da escrava Henriqueta, ver: CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro. Revelações
da condição de vida dos cativos do Ceará. op. cit., p. 48-52.
100
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Pedro II. Fortaleza, 22 mar. 1872, p. 4, rolo 304.
101
Jornal Cearense, 25 fev. 1877. In: CAMPOS, Eduardo. Revelações da condição de vida dos
cativos do Ceará. op. cit., p. 137.
56
É possível que a ameaça de venda para outra província fosse usada
como forma de coerção e de controle, além de povoar o imaginário dos negros
cativos ou mesmo livres, o que se refletia nas cantigas entoadas no bumba-
meu-boi, nos autos de rei congo, e noutras práticas festivas negras, como
exemplifica o estribilho do canto “Amarú mambirá”:
Catirina, minha nêga,
Amarú mambirá.
Teu senhor quer te vender,
Amarú mambirá.
Pero Rio de Janeiro
Amarú mambirá.
Pera nunca mais te vê.
102
Por outro lado, esse comércio provavelmente sofria ingerência dos
cativos. Sidney Chalhoub, em estudo tratando dos significados da liberdade
para os negros no Rio de Janeiro, argumenta que os escravos tinham suas
próprias concepções sobre o cativeiro, em que as relações afetivas mereciam
algum tipo de consideração e os castigos físicos precisavam ser moderados e
aplicados por “motivo justo”. Além disso, Chalhoub propõe que havia visões
escravas que transformavam as transações de compra e venda de negros em
situações muito mais complexas que a simples troca de mercado, ou seja,
haveria maneiras de os cativos manifestarem sua opinião no momento decisivo
da venda.
103
De qualquer forma, o tráfico interprovincial e outras situações
contrárias aos cativos também afetavam negros libertos e nascidos livres,
que muitos tinham parentes em situação cativa. Vários escravos, ao serem
obrigados a deixar seus locais de origem e suas famílias, reagiram atacando os
novos senhores, as casas de comissões, provocando brigas e desordens que
impedissem sua ida para as fazendas de café localizadas no sudeste do Brasil
102
Gustavo Barroso (Ao som da viola. ed. correta e aumentada. Rio de Janeiro: Departamento
de Imprensa Nacional, 1949, p. 194) cita esses versos como sendo do bumba-meu-boi (ou
Boi Surubim); José Tupinambá da Frota (História de Sobral. 2ª. ed. Fortaleza: Editora
Henriqueta Galeno, 1974, p. 531) transcreve tais versos, com pequenas variações,
associando-os à festa de coroação de um Rei Congo na Irmandade do Rosário dos Homens
Pretos de Sobral.
103
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 26-7.
57
imperial. Essa visão vai de encontro ao discurso abolicionista cearense em que
os escravos em geral aparecem como sujeitos passivos que precisavam de
“libertadores” brancos para “redimi-los” do cativeiro.
A essa ausência do negro no processo abolicionista se contrapõe um
escravo que cotidianamente negocia. A partir dessas constantes negociações
era que os negros cativos conquistavam espaços de autonomia na sociedade
escravista. Nesse sentido é que Eduardo Silva defende que a negociação era
uma forma de resistência do negro.
104
Há que se ressaltar, também, que os negros (cativos e libertos) não se
enquadravam no estereótipo abolicionista de serem indivíduos pacíficos
incapazes de atos violentos, vítimas “infelizes” do sistema escravista, pobres
“desgraçados” resignados com um destino cativo e dependentes das
sociedades libertadoras.
105
Veja-se os casos dos escravos Francisco,
Benedicto, André, Marcos e Antonio presos por cometerem homicídio; do
escravo Raymundo Pretinho preso por crime de “ferimentos leves”; do liberto
Alexandre, preso por crime de “ferimentos graves”; do liberto Antonio, preso por
agredir e ferir um recruta do Exército.
106
Um caso que ganhou notoriedade em Fortaleza foi o assassinato de
Maria Rosa, uma retirante da seca:
Maria Rosa da Conceição é o nome de uma orphã de 15 annos de
idade, filha da viuva Bonifacia Maria da Conceição, natural de
Lavras, que forçada pela fome, vieram em peregrinação, cobertas de
andrajos e crestadas pelo ardente sol, ate esta cidade em procura de
esmola do governo. Pelas 7 horas da manhã do dia 28 do passado
estas duas infelizes retirantes se dirigiram a um cercado velho a vista
d'esta cidade, em procura de lenhas, quando amarraram seus feixes
foram surprehendidas por um negro, que se achava armado de faca
e espingarda, escravo de um abastado proprietario e influencia
politica. Tomada a lenha, imploram essas infelizes que lh'a cedesse,
para adquirirem n'esse dia o alimento necessario, e o perverso negro
104
A idéia de “resistência” aparece aqui de acordo com Eduardo Silva. In: SILVA, Eduardo;
REIS, João José. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
105
A palavra “desgraçado” aparece como desventurado, desamparado (Ver: Jornal Libertador.
Fortaleza, 15 jan. 1881, p. 1. Edição fac-similar. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e
Desporto do Ceará, 1988); já a expressão “infeliz”, para se referir ao negro cativo como vítima
passiva e pacífica da sociedade escravista, era comum nos discursos e artigos de
abolicionistas (Ver: Jornal Libertador. Fortaleza, 7 fev. 1881, p. 8; 17 fev 1881, p. 7; 3 mar.
1881. p. 5, 7 e 8; 23 maio 1881, p. 3; e outras datas. Edição fac-similar, op. cit.).
106
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Fundo Secretaria de Polícia do Ceará.
Movimento de crimes cometidos na Província do Ceará (1871-1873). Ala 03, estante 44, livro
nº. 394, fls. 3, 4, 5, 7, 8, 9, 15,17.
58
pretendeu dar-lhe, porem por instinctos sensuais cedeu, procurando
então empregar a sedução acariciando a heroica Maria, que
conseguiu apoderar-se da espingarda e com ella defender-se da
brutal agressão. Apparecendo algumas pessoas em socorro de
Maria, esta sacode para um lado e ao retirar-se é pelas costas ferida
com o tiro que lhe desfecha traiçoeiramente esse negro assassino.
Maria, agonizante e banhada em sangue, é conduzida para uma
choupana, enquanto o impavido malvado segue caminho seguro
para casa de seu senhor!...
107
Essa notícia publicada no jornal traz alguns elementos que permitem
vislumbrar as possibilidades de trânsito dos cativos em Fortaleza e de se
relacionar, muitas vezes de forma conflituosa, com os demais sujeitos sociais
da cidade. Não obstante a descrição um tanto emotiva de “negro perverso” e
“retirante heróica” feita pelo indignado autor da denúncia, é preciso considerar
que o crime não fora apenas de sedução e de homicídio, mas também do porte
ilegal de armas.
De acordo com as posturas vigentes em Fortaleza
108
, o uso de armas
ofensivas (pistola, clavinote, espingarda, espada, florete, facão, faca de ponta e
cacete) era controlado pela polícia e proibido para cativos. Porém, um escravo
de senhor rico e de influência política transitava livremente e armado, não
cumpria as normas, cometia crimes e seguia seguro para a casa de seu “dono”,
o que de certa forma aponta que a liberdade nem sempre se restringia à posse
da carta de alforria. Certamente era preciso que o senhor tivesse muita
“confiança” para permitir um escravo armado dentro de casa.
Contrapondo-se ao discurso abolicionista de que os cativos eram
figuras passivas e inertes na luta pela liberdade, também estavam as ações
civis de liberdade movidas por negros (cativos e libertos), através do Tribunal
da Relação de Fortaleza, a partir de 1874. Camila Pagliúca, em sua pesquisa
sobre processos de ações de liberdade, comenta casos de escravos que
alegavam ser livres por viverem nessa condição e independentes de seus
senhores.
109
107
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal O Retirante, 23 jan. 1878, p. 2, rolo nº. 36.
108
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1365, de 20 de novembro de 1870. Approva
o codigo de posturas da camara municipal desta capital. In: Colleção de Leis da Provincia
do Ceará no anno de 1870. op. cit., p. 79.
109
Cf. PAGLIUCA, Camila. Motivos para ser livre. Os caminhos dos escravos e libertos em
busca da liberdade através das ações de liberdade do Tribunal de Apelação de Fortaleza
(1874-1884). Monografia de graduação. UFC, Fortaleza, 2004.
59
O que se vai percebendo, portanto, é que as vivências dos escravos
iam muito além de um relacionamento dicotomizado entre senhores e cativos,
em que estes ficariam reduzidos apenas a rebeldes ou a submissos. Como
explica Eduardo Silva, os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo.
Parece que na maior parte do tempo a maioria dos cativos situava-se em uma
zona de indefinição entre um pólo e outro; um dia aparentemente acomodado e
passivo; no dia seguinte, a depender das circunstâncias, podia se revoltar e
mesmo ter atitudes violentas, contra os senhores ou contra outras pessoas
com as quais convivia cotidianamente ou não.
110
No que se refere ao relacionamento senhor/escravo, Eduardo Silva
chama a atenção para a forma polarizada como a questão muitas vezes é
tratada. É justamente entre esses dois pólos rebeldia/submissão – que
estaria, então, o “heroísmo prosaico de cada dia”
111
, ou seja, que os escravos
viviam seu dia-a-dia da melhor maneira que podiam. Assim, a negociação (na
qual o conflito estava sempre presente) era inerente ao relacionamento. Em
contato com os senhores e outros sujeitos sociais, os cativos estavam
constantemente negociando para conseguir seus objetivos. Mais que lutar
abertamente contra o sistema escravista, os escravos negociavam.
Negociar e/ou fugir eram, portanto, duas das muitas faces da
resistência. Nos casos de fuga, para evitar ou dificultar a captura, usavam-se
vários artifícios: troca de nomes, fazer-se passar por forro ou por retirante
(emigrante) da seca, convencer alguém a abrigá-lo, fingir-se de doido, entre
outros. Nesse contexto de autodefesa, de resistência, de desenvolvimento de
uma inteligência criativa é que Robert Slenes afirma a necessidade dos
escravos em se tornarem “mestres da dissimulação”.
112
É possível notar que os negros (cativos ou livres) astuciosamente
elaboravam uma série de táticas para transitarem dentro do espaço
teoricamente controlado pelos senhores, patrões ou Estado e, embora
representassem o papel dos “mais fracos”, não aceitavam o que era
estabelecido nas fronteiras de um determinado lugar, buscando criar
110
SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito. op. cit.; p. 9-15.
111
Id., Ibid., p. 14.
112
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. In: Revista
USP, São Paulo, Trimestral, 1991-1992. p. 49.
60
alternativas para sobreviverem e mesmo subverterem o sistema estabelecido
pelos “mais fortes”. Nesse texto, portanto, “tática” significa:
[...] ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio
[...] Ela opera golpe por golpe, lance por lance, aproveita as
“ocasiões” e dela depende, sem base para estocar benefícios,
aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se
conserva. Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade (...)
Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares
vão abrindo na vigilância do poder proprietário. vai caçar. Cria ali
surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É a astúcia. Em
suma, a tática é a arte do fraco.
113
Essas “táticas” de resistência (e sobrevivência) eram largamente
utilizadas por escravos em fuga, como o da preta Florinda, de 19 anos, “bonita
figura”, que fugiu de Fortaleza e viajou por várias cidades levantando esmolas
para comprar a alforria
114
; de Ambrosio, que se dizia chamar João Francisco e
estava amocambado com outros companheiros
115
; de Jacintha, de “falla
descansada” e que se passava por retirante nos “arrabaldes” de Fortaleza
116
.
Nesse contexto de relações sociais tecidas nas brechas do sistema
escravista a fuga se transmutava em liberdade. Mas, mesmo conseguindo
sucesso nessa empreitada, continuava-se sendo negro e vivendo em uma
sociedade que lhe era hostil. Sendo assim, a liberdade não estava somente em
livrar-se dos senhores; tinha que ser conquistada a cada dia. Era preciso criar,
cotidianamente, alternativas de vida em que se pudesse satisfazer os próprios
quereres e desejos, fruindo, assim, uma liberdade.
Mas, o que poderia significar a liberdade para o cativo vivente na
sociedade escravista do século XIX? Tentando esclarecer o sentido que da
palavra “liberdade”, vale trazer o estudo feito pelo professor Marcus Carvalho.
A liberdade é um processo de conquistas, que podem ser ou não
alcançadas durante o correr de uma vida. É o desdobramento de um
113
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p.
100-101.
114
Jornal Cearense. Fortaleza, 18 mar. 1877. In: RIEDEL, Oswaldo de Oliveira. Perspectiva
antropológica do escravo no Ceará. op. cit., p.163.
115
Jornal Cearense. Fortaleza, 24 maio 1877. In: RIEDEL, Oswaldo de Oliveira. Perspectiva
antropológica do escravo no Ceará. op. cit., p. 165.
116
Jornal Cearense. Fortaleza, 15 nov. 1877. In: CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro.
Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. op. cit.,, p. 141-142.
61
conjunto de direitos que podem ser adquiridos, ou perdidos, um a um
com o tempo. É, portanto, um caminho a ser percorrido, e não uma
situação estática e definitiva. Não existe, portanto, liberdade
absoluta. E, mesmo no caso de sua mais radical ausência, resta
sempre uma escolha final, entre a vida e a morte. É por causa dessa
historicidade, que o conceito de liberdade é dinâmico, mutável com o
tempo e espaço.
117
Essa liberdade como um processo de conquistas aplicava-se também
aos libertos, que muitas vezes desconfiavam das emancipações, pois não
raramente eram canceladas ou implicavam em condições, como a obrigação
de servir ao ex-senhor até o fim de seus dias.
118
Além do mais, os “libertadores” faziam questão de ressaltar seu ato
como ação benemérita, filantrópica ou ainda como instrumento para “solenizar”
o cumprimento de certos sacramentos cristãos. Foi o que aconteceu com
Joanna, libertada por ocasião do casamento da filha do senhor
119
, e com José,
liberto no dia do batizado do primogênito do senhor
120
. Note-se que esse tipo
de alforria se dava bem antes das campanhas empreendidas pelas
sociedades abolicionistas; estas apenas intensificaram a “espetacularização”
da liberdade.
Vale lembrar que não havia preocupação quanto ao destino dos
negros libertos, ou seja, de como eles como eles agiriam na condição de
homens e mulheres livres. Isso influenciou as relações mantidas entre libertos
e ex-senhores. Não seria estranho pensar que a liberta Joana ficara
trabalhando (como criada) para a filha do antigo senhor.
É importante destacar que nessa transição (e coexistência) do
trabalho cativo para o livre em Fortaleza, permaneceu a tentativa de controle
sobre o trabalho do negro. Antes da Abolição, isso estava colocado claramente
nas posturas da cidade, como se pode ilustrar com o artigo 85 do digo de
1879, onde se proibia “Comprar qualquer objecto de natureza ou valor a
117
CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade. Rotinas e rupturas do escravismo no Recife,
1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2001, p. 214.
118
Quanto à libertação de escravos mediante condições em Fortaleza, ver: ALENCAR, Alênio
Carlos Noronha. Nódoas da escravidão. Senhores, escravos e libertandos em Fortaleza
(1850-1884). Dissertação de mestrado em História Social. Pontifícia Universidade Católica
(capítulo três). São Paulo, 2004.
119
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Pedro II. Fortaleza, 11 fev. 1872, p. 2, rolo nº.
304.
120
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Constituição. Fortaleza, 2 fev. 1882, p. 2, rolo nº.
315.
62
escravo, criado e filhos-familia, sem que mostrem autorisação escripta de seu
senhor, amo, pai ou tutor”.
121
Essa legislação provavelmente foi uma reação provocada pelos
senhores, amos e patrões, pois seus escravos, servos e empregados podiam
“negociar” livremente pelas ruas e superfaturar os preços, angariando assim
uma receita que certamente não seria de todo repassada aos senhores ou
patrões. A astúcia dos negros em cotidianamente transpor os limites
oficialmente impostos permitia, por exemplo, acumular recursos para gastos no
consumo de coisas de interesse próprio, em divertimentos, na compra de jóias
na Irmandade do Rosário, dentre muitas outras opções.
Cumpre ressaltar que o trabalho cativo transpassava a sociedade
fortalezense. Eram trabalhadores domésticos, carpinteiros, marceneiros,
pedreiros, pintores, ferreiros, carreiros, sapateiros, alfaiates, entre tantas outras
ocupações, especializadas ou não, das quais dependiam os senhores. Como
escreve Eurípedes Funes, “na cidade, o trabalho escravo ajudava na
composição das rendas da família do senhor, não apenas pelo seu valor, mas
como escravo de aluguel, como escravo de ganho e até como prostitutas”.
122
Por outro lado, eram atividades muitas vezes exercidas longe dos
olhos dos senhores, permitindo a esses trabalhadores negros não apenas
reterem parte da renda conseguida, mas, também, ampliar seu espaço de
relações sociais, muitas vezes atuando solidariamente, como fez um cativo que
era açougueiro no mercado público de Fortaleza e deu abrigo em sua casa à
escrava Maria, que estava grávida “e em mez pouco mais ou menos de dar à
luz”.
123
Considerando que a fuga ocorreu antes da promulgação da Lei do
Ventre Livre
124
, é plausível supor que um dos motivos para a fuga de Maria foi
garantir a liberdade para o filho. Detalhe é que o escravo que a abrigou não
121
Resolução nº. 1818, de de fevereiro de 1879. Approvando o codigo de posturas da
camara municipal da Fortaleza. In: Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará
promulgados pela respectiva Assemblèa no anno de 1879. op. cit., p. 115.
122
FUNES, Eurípedes Antônio. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone (Org.). Uma nova
história do Ceará, 3. ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004. p. 115.
123
Jornal Cearense. Fortaleza, 10 set.1871. In: CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro.
Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura e
Desporto. 1982, p. 130.
124
A Lei nº. 2040 (Lei do Ventre Livre) foi sancionada em 28 de setembro de 1871. Cf.
BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos políticos da História do Brasil. Brasília:
Senado Federal, 2004. Edição em CD-ROM.
63
habitava na casa de seu senhor; tem-se aqui mais um indício da independência
conquistada pelo elemento cativo em Fortaleza.
Com o crescimento do trabalho livre na capital permaneceram as
tentativas de controle sobre a mão-de-obra negra na cidade. Nesse período de
transição, principalmente na década de 1870 até os primeiros anos da cada
seguinte, informações que apontam como os ex-senhores se empenhavam
para continuar explorando o trabalho dos negros, particularmente dos
trabalhadores domésticos. De certa forma, o próprio movimento abolicionista
contribuiu para isso levando em conta que seu objetivo era tão-somente a
manumissão e não o destino daqueles homens e mulheres libertos. E, como
visto, a liberdade ia muito além de uma carta de alforria.
[...] Eugenia Joaquina da Conceição, minha ex escrava, continua a
residir em minha casa, como creada, gratuitamente, por tempo
indeterminado. Fortaleza, 11 de Julho de 1887.
João Luiz Rangel.
125
O registro acima foi transcrito do livro denominado “Matrícula de
criados”, no qual os contratos firmados sobre serviços domésticos deveriam ser
transcritos. É possível perceber que alguns ex-senhores continuaram fazendo
uso da força de trabalho de ex-escravos sem remunerá-los.
Ainda nesse contexto de passagem da mão-de-obra cativa para a
livre, observa-se que os anúncios de “aluguel” passaram a especificar a
condição do trabalhador (escravo ou livre), como se pode perceber no jornal
Cearense, que publicava: “Preciza-se de um criado escravo (...)”
126
; e, também,
“Criada offerece-se uma livre, moça, para o serviço interno de qualquer
familia (...)”.
127
É importante ressaltar que, se os libertos e os negros nascidos livres
sofriam tentativas de exploração trabalhista por parte de ex-senhores ou
patrões, também reagiam a isso. Veja-se o caso de Thereza Maria de Jesus
que de 1883 a meados de 1887 prestou “serviços gratuitamente” à Benedita
Francisco de Oliveira, ao que tudo indica, sua ex-senhora. Nesse ínterim,
125
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Matricula de creados. 11 jul. 1887. Ala 02,
estante 27, livro nº. 71, fl. 3v.
126
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 7 set. 1879, p. 1, rolo nº. 94.
127
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 17 set. 1879, p. 4, rolo nº.
94.
64
certamente buscou propostas de trabalho que fossem mais interessantes e
conseguiu seu objetivo. Em julho de 1887, acertou um contrato de serviço na
casa de João da Silva Villar, onde atuaria como cozinheira e receberia uma
quantia de dez mil réis por mês.
128
De forma similar ao cativo, o trabalhador negro livre também tinha que
negociar, conquistar cotidianamente um espaço maior de liberdade e atuação,
criar táticas para desviar-se da exploração e da agressividade dos patrões ou
“amos”. Veja-se a denúncia de violência contra duas criadas na casa de
Octaviano da Silva Machado:
Candida (...) 12 para 13 annos de idade (...) disse que era maltratada
pela mulher de Octaviano (...) Não tem o corpo da infeliz uma
pollegada onde não haja sicatriz velha ou nova! O vestido com que
fugiu está a largar os pedaços (...)
Maria (...) 22 annos de idade (...) tem, alem de muitas sicatrizes
antigas, um olho perdido em conseqüência de pancadas que lhe deu
seu proprio amo (...).
129
Note-se que Candida e Maria traziam cicatrizes antigas denotando que
tempos sofriam agressões dos donos da casa. Não seriam essas criadas
ex-escravas? É plausível pensar que esse foi mais um caso em que o liberto
ficou na “dependência” do antigo senhor por conta de uma Abolição que pouco
se preocupou com o destino dos libertos.
Ao que parece, a fuga permaneceu sendo uma das formas de os
negros (mesmo aqueles na condição de livres) continuarem resistindo à
exploração da sua força de trabalho.
Creadas - Fugio da rua 24 de Maio caza n. 104 uma criada de nome
Maria, parda, idade de 14 annos, trajando saia e cazaco branco com
signaes seguintes: cabello cortado, dentes limados, conduzindo um
anel de ouro com a inicial A sobre uma pedra e mais objectos,
sapatos novos de couro, cazado e saia de riscado, meias
encarnadas, cuja criada foi tirada por uma cozinheira da mesma caza
que também fugio e tem os signaes seguintes: chama-se Sabina, côr
quase negra, gorda com um filho de 4 annos, de nome Antonio;
pede-se as auctoridades policiaes apprehensão das referidas criadas
a fim de se obter os objectos roubados.
130
128
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Matricula de creados. 5 jul. 1887. Ala 02,
estante 27, livro nº. 71, fl. 1.
129
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 06 dez. 1886, p. 2, rolo nº.
252.
65
Facilmente se observa na transcrição acima que a “denúncia” da fuga
das criadas era feita nos mesmos moldes dos anúncios de fuga de escravos
publicados nos jornais fortalezenses ainda no início da década de 1880,
apontando a continuidade da exploração do negro, bem como a dificuldade dos
patrões em reconhecerem os trabalhadores negros como homens e mulheres
livres e capazes de possuírem bens. Será que as criadas realmente “roubaram”
aqueles objetos?
Ademais, percebe-se que os criados, da mesma forma que os cativos,
também mantinham costumes de raízes africanas, como o fazia Maria ao limar
os dentes. Outrossim, permanecia a solidariedade de se buscar em conjunto
melhores condições de vida. Interessante ressaltar, ainda que por simples
ironia promovida pela coincidência, que Maria, Sabina e Antonio eram negros
“fugidos” de uma casa localizada num logradouro Rua 24 de Maio cuja
denominação homenageava a “libertação” dos escravos na capital do Ceará!
Nessa transição da mão-de-obra cativa para livre, o número de
trabalhadores negros cativos diminuiu até ser oficialmente extinto em Fortaleza
(24 de maio de 1883), no Ceará (25 de março de 1884) e no Brasil (13 de maio
de 1888). Entretanto, isso decorreu muito mais pela pressão capitalista por
trabalho assalariado e pelas ações de resistência e de conquista de liberdade
praticadas pelos próprios cativos do que pelas campanhas de abolicionistas
que se proclamavam “redentores”, “libertadores” e “patriotas”.
Foi, portanto, diante dessa alforria cambaleante que muitos negros
não fugiram, mas, também, viram nas atividades festivas uma forma de
resistência e um desdobramento da liberdade. “Nos festejos e batuques, os
cativos expressavam e compartilhavam vários aspectos dos fragmentos da
liberdade que lhes era possível ainda dentro do cativeiro. Eram momentos em
que eles pertenciam a sua comunidade”.
131
130
BPGMP,cleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 28 set. 1889, p. 2, rolo nº.
213.
131
CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade. Rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-
1850. op. cit., p. 253.
66
Como uma das respostas à exploração de sua força de trabalho, os
negros cativos ou livres fizeram de seus divertimentos não apenas um
momento para extravasarem as tensões acumuladas no cotidiano, mas,
principalmente, espaços para resistência, identidade, cultura e sociabilidades.
Com efeito, as festas de negros, como as coroações de reis na
Irmandade do Rosário, as encenações dos congos, os sambas, os maracatus,
entre outras manifestações, eram costumes com os quais os negros
conquistavam espaços numa cidade que passava por grandes transformações
urbanas, por sua vez coordenadas por uma elite política, econômica e
intelectual voltada para idéias de “progresso” e de “civilidade” e pouco disposta
a reconhecer que uma cultura afro-brasileira era praticada em Fortaleza.
Nesse contexto, as práticas culturais negras eram percebidas de
forma preconceituosa por essa mesma elite. Por exemplo, a criada Maria
(aquela que fugiu da Rua 24 de Maio) limava os dentes à moda benguela
132
e
procedimentos desse tipo eram vistos como o que se poderia chamar de
“estranhos hábitos”; por outro, lado foi justamente dessa elite que surgiram
descrições e estudos sobre congos e maracatus em Fortaleza; percebidos, no
entanto, como “resíduos do passado”.
133
O “maracatú” é mais apavorador do que grotesco. Ao avista-lo, os
meninos correm, gritando com medo, escondendo-se nas casas (...).
Na vida brasileira, vão morrendo vagarosamente todas as tradições
da escravidão. Foi-se o rei do Congo e desapareceram “reisados” e
“candombles”. O “cordão” e o “maracatu” serão, talvez, as ultimas
que desaparecerão porque o enthusiasmo carnavalesco do poviléu
ainda lhe dará vida nos ultimos estertores da raça que o produzio e
que a communidade dia a dia absorve.
134
132
Muitos escravos, embarcados no porto africano de Benguela, tinham o costume de arrancar,
separar ou limar os dentes incisivos. Segundo Câmara Cascudo (Made in África - pesquisas
e notas. 5ª. ed. São Paulo: Global, 2001, p. 161), isso poderia decorrer de uma festa de
iniciação, luto ou punição; e os dentes eram limados em ponta de adaga ou afastados
colocando um triângulo no vértice das gengivas.
133
Tomo emprestadas as expressões (que estão entre aspas) de Edward Thompson que,
escrevendo sobre como o “costume” se manifestou na cultura dos trabalhadores ingleses do
século XVIII e parte do XIX, percebeu que havia um “hiato profundo” entre a “cultura patrícia”
e a da “plebe”, ou seja, uma grande dificuldade de entendimento entre esses dois grupos.
Além disso, apesar da dificuldade que a elite tinha de entender os costumes do povo, foi das
“camadas superiores” da sociedade inglesa que surgiram estudos sobre a cultura do povo,
cujos costumes, porém, eram entendidos como “estranhos hábitos” e como “resíduos do
passado”. Cf. THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura
popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
134
BARROSO, Gustavo. Ideas e palavras. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro &
Maurillo, 1917, p. 206-207.
67
A transcrição é parte de um relato de Gustavo Barroso sobre práticas
culturais negras em Fortaleza, em fins do século XIX. Certamente, essas
descrições feitas pelos memorialistas trazem pistas importantes para a análise
dessas práticas. Mas, além disso, também permitem perceber que o tipo de
leitura que a elite fazia sobre os costumes dos negros (incluindo aí suas festas)
transitava entre o preconceito, o estranhamento, a nostalgia e a
responsabilidade de se registrarem as manifestações das “raças inferiores”
135
,
condenadas ao desaparecimento e ao esquecimento.
Nas últimas décadas do século XIX, grandes mudanças sociais,
econômicas e políticas estavam ocorrendo em Fortaleza (e no Brasil),
incluindo-se a reurbanização da capital do Ceará, que promovia o
afastamento da população mais pobre (boa parte dela negra) das áreas
urbanas consideradas mais nobres; e isso certamente interferia na cultura
negra praticada na cidade.
Nesse quadro de “modernidade” similar ao de outras capitais
brasileiras, onde o projeto de emancipação dos escravos não previu a
integração da população negra à sociedade, Nicolau Sevcenko defende que
“não apenas os negros e seus descendentes são excluídos da cena pública,
mas também todo o conjunto de suas festas, rituais e práticas habituais são
postos na ilegalidade”.
136
Percebe-se que, em Fortaleza, foram os casos do fim da coroação de
reis negros na Irmandade do Rosário, dos cerceamentos aos autos de rei
congo (pressionados a se apresentarem apenas em praças e terrenos
murados), bem como das perseguições a outras manifestações negras que
ocorriam em várias partes da cidade.
135
“As raças inferiores, que formam o substracto da nossa arraia miuda vão se diluindo na
formação da nacionalidade sem deixar um traço de sua passagem. Sem palavra escripta e
sem meios que a liberdade dá, encerrados numa sociedade que os digere pouco e pouco,
extranhos quasi a ella, mas nella se integrando, não legarão aos vindouros um documento de
sua vida mesquinha, nem um dolmen, nem uma pedra sepulcral, nem uma pagina. Para que
delas se perpetue alguma coisa é necessario que os coevos registrem uma a uma as suas
manifestações de toda a espécie. BARROSO, Gustavo. Ideas e palavras. op. cit., p. 205-206.
136
SEVCENKO, Nicolau. Modernidade, cultura popular e táticas de preservação na alvorada
republicana. In: Revista de História. n. 148. São Paulo: Humanitas /FFLCH/USP, 2003, p.
207.
68
Os sambas, por exemplo, eram vistos pela polícia como sinônimos de
confusão e seus freqüentadores muitas vezes olhados como desordeiros,
bêbados e desocupados; para seus participantes, no entanto, essas práticas
culturais se constituíam em espaços de diversão, de pertencimento a um
grupo, de sociabilidades. E isso era autoria não de “vagabundos”, como
naturalmente se registrava na documentação criminal, mas, sim, de
trabalhadores que exerciam ofícios em diversas instâncias da sociedade
fortalezense.
Nesse sentido, os costumes incluindo as festas não podem ser
entendidos de forma dissociada da vida coletiva e do mundo do trabalho, até
porque propiciavam aos trabalhadores negros instrumentos para enfrentarem
as mudanças impostas e que, em geral, pouco lhes eram interessantes.
Ante o exposto, percebe-se que fugas, negociações, assassinatos,
artimanhas, embriaguez, certamente foram táticas que deram formas à
resistência. Mas, além disso, as festas também foram poderosos instrumentos
para o negro (r)existir, apesar de tudo.
Enquanto os “libertadores” espetacularizavam as concessões de carta
de alforria e promoviam cerimônias abolicionistas e cívicas, os cativos
trabalhavam e conseguiam acumular recursos para comprar sua liberdade,
mas também para fazer festas que se constituíam em espaços onde os negros
(cativos e livres) se reuniam, praticavam uma cultura afro-brasileira,
estabeleciam comunicações com os demais atores sociais, ocupavam
territórios na cidade e, principalmente, mantinham-se como sujeitos capazes de
fazer história.
69
1.3 – Festas de Negros na Dinâmica Socioespacial de Fortaleza
Certamente, festa é uma palavra que pode ser aplicada a uma larga
gama de práticas sociais. Sob um olhar etimológico, é vocábulo de origem
latina e pode representar uma solenidade religiosa ou civil em comemoração a
um fato importante; divertimento; função pública ou particular.
137
Partindo da idéia que a festa é um ato coletivo que permite uma série
de interpretações, tentarei inicialmente esclarecer qual o sentido da expressão
“festas de negros” utilizada neste trabalho, sem deter-me numa discussão
bibliográfica, mas ao mesmo tempo utilizando como apoio reflexões feitas por
autores que trataram do tema de forma geral ou específica.
Noberto Luiz Guarinello, no artigo “Festa, trabalho e cotidiano”, discute
o que é uma festa, o para chegar a uma conceituação, mas tentando
perceber algumas características normalmente presentes na festa, como a
preparação, a participação, a interrupção do tempo social, a articulação em
torno de um objeto focal e a questão da produção social.
138
Começando por esse caminho, mas sem o compromisso de não tomar
desvios, tentarei discutir porque as coroações de reis negros na Irmandade do
Rosário, os autos de rei congo, os sambas, dentre outras manifestações
culturais, eram o que denomino aqui de “festas de negros” e, a partir daí, tentar
perceber o que essas práticas festivas poderiam significar para seus
participantes e como essas “festas” foram instrumentos para a ocupação de
espaços públicos e privados na cidade.
No caso da festa da Irmandade de Nossa Senhora dos Rosário, em
que ocorria a coroação de rei e rainhas negros eleitos pelos seus confrades, os
preparos para as festividades incluíam desde os cuidados com a comida e a
bebida, passando pela contratação de músicos, ao arranjo de indumentárias
e acessórios. Isso contribuía para que a posse dos novos “empregados” eleitos
(incluindo-se os cargos reais) fosse um momento de caráter festivo em que
os negros afirmavam-se socialmente.
137
Cf. LELLO, José; LELLO, Edgar. Lello Universal. Dicionário enciclopédico luso-brasileiro em 4
volumes. Porto: Lello & Irmão Editores, s./d., p. 993.
138
Cf. GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa, trabalho e cotidiano. In: JANCSÓ, István; KANTOR,
Iris (orgs.). Festa: cultura e sociedade na América Portuguesa. vol. II, São Paulo: Hucitec:
Editora da USP: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001, p. 971-972.
70
Numa descrição deixada por João Brigido, é possível perceber o
destaque para o vestir-se do corpo, com roupas e adereços coloridos.
Havia reunião solemne da confraria, apparecendo enfeitados machos
e femeas. Presidia o rei, e assentavão-se todos em cadeiras de
espaldar com tampos de sóla, bordada, às vezes, bem bonitas. A
negraria rababú ocupava bancos de madeira, formando côrte ás
damas aderessadas de collares de contas vermelhas, grandes
brincos de pedras verdes e azúes, em metal dourado, annéis de
tambáque, e outros enfeites, entre os quaes sobresahião as fitas das
quaes um carretel custava meia pataca!
139
É lido destacar que a pompa indumentária contribuía para dar um
tom formal à cerimônia de coroação e ajudava a destacar esses negros do
restante dos presentes, fossem eles a “negraria rababú”, como denomina
Brígido de forma preconceituosa, e que ocupava os bancos de madeira ou os
brancos de várias origens sociais que compareciam ao ato da coroação.
Mas, além disso, também é importante pensar sobre como esses
homens e mulheres negros que faziam parte da “corte” conseguiam tantas
roupas e adereços destinados a ocasiões especiais. Ao que parece, estava
um campo amplo para sociabilidades que se iniciavam bem antes da festa,
considerando que em geral os negros tinham que “negociar” o empréstimo
desse material com os senhores, patrões ou conhecidos.
Quanto aos adornos, o brilho das pedras, metais
140
e fitas era outro
chamariz de olhares para um momento da festa em que uma cultura negra
estava em relevo. Todo esse preparo fazia com que os movimentos dessa
espécie de nobreza negra fossem mais intensamente apreendidos pelos que
assistiam ao evento. Nesse sentido, Jean Duvignaud destaca que o olhar que
assiste não é passivo e absorve símbolos. “Os gestos realizados à nossa frente
139
BRIGIDO, João. O Ceará (Lado comico) - Ad Ridendum. Algumas chronicas e episodios.
Fortaleza: Louis Cholowieçki, 1899, p. 119-120.
140
A título de esclarecimento, “anéis de tambaque ou tambaca” eram confeccionados com um
metal composto da mistura de cobre e zinco, dando à peça uma cor semelhante ao ouro – era
o chamado “ouro falso”. Não se pode deixar de observar, no entanto, a curiosa coincidência
de que ‘tambaque’ também significava o “batuque de negros” que precedia o cortejo do rei e
da rainha do Rosário, seguido de um jantar com muita comida e bebida. Cf. LELLO, José;
LELLO, Edgar. Lello Universal. op. cit.,p. 974; Renato Almeida apud CASCUDO, Luís da
Câmara (1898-1986). Dicionário de folclore brasileiro. 11 ed. revista, atualizada e ilustrada.
São Paulo: Global, 2002, p. 663.
71
são signos que terminamos por absorver, porque a nossa própria percepção se
transmuda em apropriação”.
141
Ainda segundo João Brigido
142
, a coroação dos reis negros no Rosário
era um tempo de gala e, ao mesmo tempo, de batuques. Dançava-se o
carrega-em-baixo todos os dias da festa, ao som da música de caixas e
pandeiros. Comia-se muito doce-de-folha, alguns homens tomavam vinho e
para as damas – licor. Mas, a grande maioria dos participantes da festa bebia o
aluá.
Danças, músicas, cantorias, comidas e bebidas são elementos que
apontam a presença de raízes africanas na festa. É o caso do aluá que,
segundo Nei Lopes
143
, é palavra originária da língua quimbundo uálua. Sobre
a origem desse vocábulo, Câmara Cascudo escreve que “é originário do
africano, muito usado no Candomblé do Brasil”.
144
“Aluá” é antiga fórmula africana e, no Brasil, era feito com ingredientes
disponíveis encontrados no ambiente em que viviam africanos e descendentes,
sendo plausível considerar que cada um desses participantes contribuía
trazendo componentes da receita. Com efeito, a fabricação dessa bebida era
mais um instrumento de solidariedade entre os negros.
No Ceará, o aluá normalmente era feito à base de milho e, para
fabricá-lo, geralmente fazia-se o seguinte: torrava-se uma parte do milho, mas
não a ponto de fazer o grão rebentar com o calor do fogo (pipoca); reservava-
se outra quantidade igual de milho ao natural. Depois, tudo era colocado em
um vaso de barro com água e um pouquinho de sal fino. Deixava-se fermentar
por alguns dias (mexendo com colher de pau a cada 24 horas) até que essa
mistura adquirisse um sabor ácido e amargo. A fim de apressar esse processo,
normalmente era adicionado açúcar bruto (mascavo) ou mesmo pedacinhos de
rapadura. Ao final, coava-se tudo e punha-se açúcar a gosto. Os mais
exigentes davam um toque especial acrescentando rodelas de lima.
145
141
DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Fortaleza: Edições UFC, 1983, p. 62.
142
Id, Ibid., p. 119.
143
LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003, p, 27.
144
CASCUDO, Luís da Câmara (1898-1986). Dicionário de folclore brasileiro. op. cit., p. 14.
145
Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004,
p. 780-781; GIRÃO, Raimundo. Vocabulário popular cearense. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1967, p. 39-40.
72
O trabalho no preparo de bebidas, comidas, roupas e tudo o mais que
fosse ser consumido e utilizado nos festejos do Rosário certamente criava a
necessidade de vínculos, relacionamentos, parcerias, diversos tipos de
sociabilidade, enfim, entre os participantes da festa, antes mesmo desta
acontecer. É possível perceber, portanto, que a participação, outro elemento
importante para a festa, começava antecipadamente, seja no planejamento, na
ajuda ao custeio, no preparo de alimentos e bebidas, na organização do local
geralmente uma casa alugada ou cedida que iria abrigar os irmãos, músicos,
dançarinos, convidados, enfim, toda a gente que se reunia para “festejar” a
coroação dos reis negros.
O rei e rainha, por sua vez, eram o objeto focal da festa pelo fato de
funcionarem como pólo de agregação e como símbolo de uma identidade
negra
146
, o que não quer dizer que a participação dos outros sujeitos fosse
menos importante, pois era por meio do coletivo que se dava a suspensão das
atividades diárias. Para que no “Dia de Reis” acontecesse a coroação era
preciso o envolvimento de irmãos e simpatizantes da Irmandade do Rosário.
Vale esclarecer que essa prática cultural da coroação de reis negros
pela Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Fortaleza era a reelabora-
ção de antigas cerimônias reais de coroação do Rei do Congo, na África. Nes-
se contexto, portanto, dava-se a comemoração, ou seja, se relembrava (memo-
rava) juntamente (com) outras pessoas, e, também, havia a produção social de
uma identidade negra, por sua vez compartilhada entre todos os participantes
da festa do Rosário.
No caso dos autos de rei congo que eram encenados nas praças e
terrenos baldios de Fortaleza, os elementos que os caracterizavam como “festa
de negros” são relativamente similares aos da festa de coroação de reis negros
na Irmandade do Rosário
147
, até porque havia um constante diálogo entre
146
A palavra “negro(a)(s)” utilizada nesta pesquisa, como nome ou adjetivo, segue a noção
proposta por Franck Ribard, ou seja, “não como categorias designando conjuntos
populacionais homogêneos meramente marcados pelas idéias de raça ou de cor e sim muito
mais como referenciais definindo categorias identitárias alimentadas de maneira interna e
externa à própria comunidade e associadas a valores e representações que mudam seguindo
os contextos históricos situacionais”. Cf. RIBARD, Franck. Memória, identidade e oralidade:
considerações em torno do carnaval negro na Bahia (1974-1993). In: Trajetos. Revista do
programa de s-graduação em História Social da UFC. v. 2. n. 3. dez. 2002. Fortaleza:
Departamento de História da UFC, 2002, p. 136.
147
A coroação de um rei e de uma rainha negros existiu oficialmente na Irmandade do Rosário
de Fortaleza até meados de 1873, ano em que a confraria teve seus estatutos modificados e
73
essas práticas festivas, e destas com outras manifestações da cultura negra
em Fortaleza, como os sambas e os maracatus.
Importa destacar que as apresentações públicas dos “congos”
ocorriam em Fortaleza desde a época em que ainda existiam reis e rainhas
negros na Irmandade do Rosário da Capital, o que aponta a possibilidade da
existência de mais de um “rei congo” na cidade.
Antes da apresentação era preciso que o “diretor” do congo se
dirigisse à cadeia pública de Fortaleza e solicitasse por escrito através do “Livro
da Porta da Cadeia” a autorização para apresentar-se. O delegado analisava o
pedido, que geralmente era deferido, devendo, no entanto, o responsável pelo
“folguedo” pagar uma taxa, depois recebia uma autorização manuscrita com as
datas previstas para a apresentação. Veja-se, a seguir, um exemplo dessa
solicitação.
Benedicto Antonio de Moraes requerendo licencia para aprezentar
em publico o folguedo = Congo = desde o dia 24 deste até o dia 20
de Janeiro vindouro. Despacho. Pagos direitos fiscaes volte.
148
Por esse tempo, ainda não havia maiores restrições quanto aos locais
de apresentação, desde que se pagassem as taxas e fosse autorizado pela
polícia. Geralmente, os congos dançavam em frente à Igreja do Rosário de
Fortaleza e depois se dirigiam a determinadas casas de famílias, onde
encenavam reminiscências da história africana e, também, recebiam em troca
alimentos, bebidas e até mesmo algum dinheiro.
149
Entretanto, a associação de festas populares à baderna e à desordem,
bem como o preconceito contra práticas de raízes africanas (congos, sambas,
bumba-meu-boi), motivaram a iniciativa pessoal de alguns chefes de polícia
(muitas vezes pressionados por parte da elite local), para reprimirem tais
manifestações. Foi o caso de Joaquim Pauleta de Bastos Oliveira. Nomeado
transformados em uma nova Lei. Cf. BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1538, de
23 de agosto de 1873 (Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosario da
Capital). In: Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará promulgados pela
respectiva Assemblèa no anno de 1873. Fortaleza: Typographia Constitucional, 1874. .
148
APEC (Arquivo Público do Estado do Ceará), Fundo Secretaria de Polícia do Ceará.
Lançamento de requerimentos e despachos. 23 dez. 1868. Ala 03, estante 44, livro 02, fl 14 v.
149
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. 2. ed. Fortaleza: Edições UFC, 1980, p. 3.
74
para chefe de polícia
150
do Ceará, em setembro de 1885, passou a exigir dos
delegados e subdelegados da província um “profundo respeito a lei” a fim de
garantirem o bem estar das respectivas localidades, a manutenção da ordem
pública, a segurança individual da propriedade, prevenir e reprimir crimes.
Sobre tudo isso o Dr. Pauleta exigia “pontualmente o conhecimento de
qualquer ocurrencia com declaração das providencias tomadas”.
151
Assim, gradativamente, os congos passaram a sofrer maior controle
por parte da polícia. Além disso, as posturas municipais da era republicana
ratificaram certas políticas de repressão implementadas ainda nos tempos
provinciais, contribuindo para restringir as apresentações dos autos de rei
congo a praças e a terrenos baldios cercados.
152
Por outro lado, tal determinação acabou favorecendo a cobrança de
ingressos e motivando uma maior “espetacularização” dos congos em
Fortaleza, o que provavelmente influenciou o planejamento da festa, afinal,
para que os munícipes comparecessem às apresentações era preciso criar
certa “estrutura” que incluía a participação de atores, músicos, dançarinos, e o
uso de indumentárias e acessórios, além de providências para a cobrança de
ingressos e da divulgação do evento através de anúncios em jornais.
Segundo Gustavo Barroso, na Fortaleza das últimas décadas do XIX,
havia pelo menos dois grupos “famosos” que apresentavam os autos de rei
congo. Um deles era coordenado por João Ribeiro e costumava se exibir num
terreno baldio da Rua Major Facundo, nas proximidades da Praça do Carmo.
Outro era o do João Gorgulho, “preto corpulento e espaventoso, açougueiro do
Mercado Municipal” e que se apresentava na Praça de Pelotas. João Gorgulho
fazia o papel de embaixador da Rainha Ginga e herdara o comando desse
congo de um ex-escravo chamado Firmino que, por sua vez, representara por
muitos anos o papel de Príncipe Sueno – filho do Rei do Congo.
153
150
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de officios a diversas auctoridades
da Província do Ceará. 16 set. 1885. Ala 02, estante 27, livro nº. 264, fl. 188 v.
151
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de officios aos delegados. 7 out.
1885. Ala 03, estante 44, livro nº. 336, fl. 10 v e 11.
152
Críticas à tentativa de controle sobre divertimentos em locais públicos em Fortaleza, imposta
pelo código intendencial de 1891, foram publicadas no Jornal Cearense, nos dias 15, 17, 18,
21, 22, de janeiro de 1891 (BPGMP, Núcleo de Microfilmagem, rolo nº. 41)
153
Cf. BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. ed. correta e aumentada. Rio de Janeiro:
Departamento de Imprensa Nacional, 1949, p. 170. (Ver mapas nas páginas 82-83).
75
O caso de João Gorgulho é um exemplo de como o mundo do trabalho
e a festa se interligavam. Num período, Gorgulho cortava carne no Mercado,
noutro, figurava como um dos principais atores num dos autos de rei congo.
Mas, todo tempo, Gorgulho era (re)conhecido como uma figura que
representava um costume negro na cidade. Ademais, a direção desse grupo
foi-lhe transmitida por um escravo, Firmino, o que aponta como essa cultura
negra passava das mãos de trabalhadores cativos para os livres num período
em que o Brasil deixava de ser Monarquia para se tornar República.
Ligado, pois, a essa questão da cultura, também é possível perceber
nos congos uma identidade negra, o apenas pela referência a personagens
e costumes africanos que eram “reinventados” em Fortaleza, mas porque nas
quadras cantadas durante as encenações estavam elementos que refletiam as
vivências dos negros em terras locais. Os versos cantados nos congos eram
instrumentos através dos quais se evidenciavam diversos campos de
sociabilidades. Veja-se o caso da “mulata bonita” esperta vendedora de
camarão (filha de Pai João), que parece não se deixar cair nos galanteios de
um suposto cliente.
Secretário: Minha mulata bonita,
Diga o que há nesta função,
Araraí.
Coro: Sou filha de pai João,
Sou filha de pai João.
Secretário: Minha mulata bonita,
Quanto custa um camarão?
Araraí.
Coro: Um camarão é um tostão.
154
Além de referirem-se a um importante espaço social do negro em Fortaleza – o
trabalho neste caso o das negras que vendiam camarão pelas ruas, os cantos
supracitados trazem a figura de Pai João, que representava o negro velho escravo,
contador de “histórias” através das quais se perpetuavam supostos traços psicológicos
dos negros, muitas vezes referentes a comportamentos de resistência contra a
escravidão. Assim, nos “contos” de Pai João, o negro aparece como astucioso e
brincalhão.
155
154
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 190-191.
155
Cf. CASCUDO, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro. op. cit., p. 467.
76
Considerando a questão do tempo em que ocorria a festa, as
apresentações de congos, assim como as festividades de coroação de reis
negros na Irmandade do Rosário, aconteciam, em boa parte das últimas
décadas do século XIX, entre meados de dezembro e início de janeiro, no que
se poderia denominar de ciclo natalino.
156
Certamente havia a suspensão temporária das atividades diárias dos
participantes dessas práticas festivas, sem no entanto desligar-se totalmente
do cotidiano desses sujeitos que não deixavam, por exemplo, o trabalho por
todo esse período. Será que o negro Gorgulho ficava um mês sem comparecer
ao Mercado Público? Provavelmente não. E o antigo “dono” desse congo
Firmino não deixava de ser cativo no momento da festa. Havia, sim, mais
espaço para exercer sua liberdade, marcar presença na sociedade e praticar
uma cultura permeada de africanidade.
Além disso, os sujeitos e suas diversas dimensões sociais trabalho,
relacionamentos amorosos, divertimentos - estavam conectados, o que aponta
uma outra “característica” que dava aos congos (e à coroação de reis negros
no Rosário) um caráter de festa: o ajuntamento no entorno do evento. Muitos
iam assistir ao “espetáculo”; outros, porém, permaneciam do lado de fora do
cercado, onde também se ouvia a música e os cantos dos congos,
encontravam-se pessoas e se compravam bebida e comida, muitas vezes
vendidas por negros cativos (escravos de ganho) ou livres. Otacílio de
Azevedo, ao lembrar dos tempos em que freqüentava os congos em Fortaleza,
escreve que na frente do lugar “onde se realizava o pagode, ia-se beber e tirar
o gosto com caranguejo e comentar os fatos e feitos da festividade. Mesas e
cadeiras eram atulhadas pela comida e pelos fregueses”.
157
Ao chamar de “pagode” o ajuntamento que se dava em torno das
apresentações dos autos de rei congo, Azevedo deixa uma interessante pista
sobre a ligação dessas festas com outras manifestações culturais negras,
considerando que pagode era sinônimo de samba.
158
156
As coroações de reis negros na Irmandade do Rosário também aconteciam em outubro. O
deslocamento da festa para os meses de dezembro e janeiro será abordado no capítulo 2.
157
AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza Descalça. 2. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC,
1992, p. 63.
158
Cf. ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA. Popular, erudita e folclórica. 2. ed. revista e
atualizada. São Paulo: Publifolha, 1988, p. 704; CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore
brasileiro. op. cit., p. 614.
77
Certamente “samba” é um termo complexo e, como prática festiva,
permite várias abordagens. Mas, como se verá na discussão apresentada no
capítulo seguinte, os “sambas” foram outros importantes espaços para a
manifestação da cultura e das sociabilidades do negro no Ceará. De uma forma
geral, entretanto, é possível adiantar que samba não se restringia a um gênero
de música. Era uma espécie de coletivo da musicalidade nordestina. Havia
espaço para cantos e danças afro-brasileiros, mas, também, para a presença
de gente de diversos tipos e origens sociais, música de variados instrumentos
(pandeiro, caixas, tambores, zabumba, triângulo, sanfona, viola), para comida,
bebida e outros elementos da festa.
Também se pode perceber a interligação das diversas práticas
festivas negras e seus sujeitos quando ocorria, por exemplo, a presença de
cantadores (sambistas) negros (livres ou cativos) ou brancos. A quadra a
seguir, criativa e carregada de crítica social, vale ressaltar, era cantada tanto
nos autos de rei congo que se apresentavam em Fortaleza quanto nos sambas
que se faziam em várias localidades do Ceará:
Os branquinhos vão dizendo
Que todo negro é ladrão.
Os branquinhos também roubam
Com sua pena na mão.
159
Por outro lado, é possível ver os sambas como “festas de negros”
independentemente de estarem ou não ligados a outras práticas, como os
congos. É bem verdade que o preconceito contra o samba era ainda mais
intenso. Normalmente associados à bebida, barulho e violência, os sambas
eram reprimidos pela polícia. Para as autoridades pouco interessava o caráter
social ou de diversão que a reunião pudesse ter. O chefe de polícia da capital,
nos anos de 1885 e 1886, logo que foi nomeado para o cargo, distribuiu um
ofício chamando a atenção de delegados e subdelegados:
159
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 176. Há, em várias publicações cearenses
de fins doculo XIX, referências a “sambas” em que aparecem versos similares. Cf. PAIVA,
Manoel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. 2. ed. São Paulo: Ática, 1981; MOTA, Leonardo.
Cantadores. Poesia e linguagem do sertão cearense. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora A Noite,
1953; CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. 3. ed. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1967.
78
Fortaleza - Chamo a sua atenção para a frequencia dos factos
criminozos que se dão em sambas, renovo-lhe as recomendações
desta chefia de policia no sentido de serem efficazmente prohibido
taes divertimentos salvo o caso de prévia licença. Joaquim Pauleta
Bastos de Oliveira.
160
Devido ao empenho de Joaquim Pauleta em reprimir os sambas,
parece que tais reuniões diminuíram um pouco em Fortaleza e regiões
adjacentes durante a sua chefatura. A partir de 1887, no entanto, os relatórios
de polícia tornam a registrar a preocupação em não consentir “sambas e outros
ajuntamentos de que possam resultar algum conflito.”
161
Um aspecto a se considerar é que a persistência dos sambas em
diversos locais da cidade devia-se à adesão de variados tipos de indivíduos.
Embora fosse uma prática festiva de matiz negra, o samba também era espaço
aberto para a inserção de novos elementos (cantorias) e para a participação de
outros sujeitos que não necessariamente os negros (escravos ou livres).
Ao que parece, em Fortaleza, boa parte dos sambas ocorriam nas
residências. Pelo menos é o que se registrou mais nas fontes que predominam
nessa parte do trabalho: relatórios policiais, jornais e memorialistas. Isso não
quer dizer que os sambas ocorressem pouco nos espaços públicos. Uma
hipótese para o pouco registro desses “sambas de rua” seria que eles
aconteceriam de forma efêmera e não muito planejada, quando
ocasionalmente se reuniam alguns “sambistas” numa rua, beco ou outro local
preestabelecido ou não; isso até que a aproximação da polícia provocasse o
esvaziamento da reunião. Ninguém era preso, até por causa da astúcia dos
sambistas, e, portanto, não se registrava a ocorrência.
Porém, os sambas que ocorriam em casas geralmente eram
precedidos de uma preparação que providenciasse músicos, comidas, bebidas.
Por vezes tinham suas motivações num evento social, que podia ser desde um
batizado
162
até mesmo a coroação de um rei negro na Irmandade do Rosário
163
;
160
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de Officios aos delegados de policia.
03 nov. 1885. Ala 03, estante 44, livro nº. 336, fl. 18 v.
161
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de Officios aos subdelegados de
policia. 02 dez. 1887. Ala 02, estante 44, livro 339, fl. 21.
162
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 04 nov. 1884, p. 2, rolo nº.
127-A.
163
Cf. crônica relembrando os sambas que ocorriam após a coroação de reis negros na
Irmandade do Rosário de Fortaleza. In: BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal
Libertador. Fortaleza, 07 jan. 1889, p. 2, rolo nº. 227.
79
o que de certa forma marcava diferentes dimensões da interrupção do tempo
social para a realização da “festa” e dava diversos sentidos aos sambas.
que se considerar, porém, que havia muitas reuniões em casas pelo samba em
si e pela multiplicidade de significados que poderia assumir para seus
freqüentadores: divertimento, identificação com um grupo, contatos sociais,
etc...
Independentemente das motivações do samba, após várias horas de
danças e cantos geralmente acompanhados do consumo de cachaça, era
natural os ânimos se alterarem e daí surgirem conflitos que, por força do fato,
eram registrados pela polícia. Veja-se o caso de um samba ocorrido no Cocó:
De 11 para 12 horas da noite, em um samba, no lugar do Cocó, do
termo desta capital, Manoel Sebastião deu uma facada em Antonio
Cajaseira, que falleceu 4 horas depois no hospital da santa Casa de
Misericórdia, para onde fora transportado immediatamente. O
delegado de policia procedeu ao corpo de delicto e trata do inquerito
policial e de diligenciar na forma da lei a prisão do culpado.
164
Na festa em que a polícia via “desordem” havia solidariedade. Antonio
Cajaseira levou uma facada, mas foi socorrido pelos companheiros sambistas
que prontamente o levaram para o hospital percorrendo uma distância
considerável, boa parte por caminhos que, na época, não passavam de trilhas.
Ante o exposto até aqui, é possível perceber que as coroações de reis
negros na Irmandade do Rosário, os autos de rei congo apresentados nas
praças e terrenos baldios, os sambas que ocorriam em diversos locais de
Fortaleza eram o que denomino “festas de negros”, constituindo-se ricos
espaços para cultura, sociabilidades e práticas identitárias negras na cidade.
Certamente, cada uma dessas manifestações tinha suas peculiaridades e
podia assumir vários significados para seus freqüentadores. Um samba para os
negros certamente tinha um sentido bastante diferente do que para a polícia.
Igualmente, havia um diálogo entre essas manifestações culturais negras, por
sua vez relativamente abertas à participação dos demais sujeitos sociais que
de alguma forma entravam em contato com elas.
164
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 15 jan. 1884, p. 2, rolo nº.
29.
80
Buscando operar nessa amplitude, optei pela abstenção do artigo
definido na expressão “festas de negros” a fim de apontar que eram
manifestações culturais que refletiam dinâmicas identitárias
165
negras no Ceará,
mas que ao mesmo tempo permitiam interações, talvez até como tática de
sobrevivência. Com efeito, escrever sobre “festas de negros” não é considerar
apenas estes, mas, também, aqueles “reconhecidos” como sendo brancos ou
de outras “cores” e que participavam dessas práticas festivas.
É importante considerar, ainda, que no recorte temporal aqui tratado,
essas “festas de negros” aconteciam em uma cidade que passava por grandes
transformações sociais e físicas. Nas últimas décadas do século XIX, Fortaleza
se “modernizava” em diversos setores: transporte, comunicação, fábricas,
clubes de lazer, entidades intelectuais, Passeio Público, enfim, uma série de
equipamentos privados e públicos que para a elite fortalezense eram sinais de
“progresso”, mas que pouco favorecia a vida de boa parte dos munícipes,
particularmente aqueles mais pobres e que habitavam áreas periféricas.
166
Além disso, o discurso de higienização da cidade, as migrações
provocadas pelas secas, o processo de “romanização” do clero cearense,
também foram outros aspectos que permeavam a vida na Fortaleza de fins do
XIX e fomentavam o controle sobre determinadas práticas culturais como as
festas de negros ou, então, concorriam com elas, como foram as festas
abolicionistas e, depois, as republicanas, que se pretendiam “civilizadas”.
Nesse contexto socioespacial, que certamente influenciou os
comportamentos de seus habitantes inclusive no campo dos divertimentos –,
é que se deu esse projeto de “modernização” de Fortaleza, incluindo-se o
plano urbanístico elaborado nas cadas de 1870 e 1880 por Adolfo Herbster
tentando sistematizar a expansão da cidade através do alinhamento de suas
ruas e da abertura de novas avenidas.
167
165
Entendendo “identidade” aqui na concepção dinâmica (pode ser transformada na interação
de indivíduos ou de grupos sociais) proposta por Fredrik Barth (Os grupos étnicos e suas
fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade.
São Paulo: UNESP, 1998).
166
Sobre a cidade de Fortaleza na segunda metade do século XIX, ver textos de Sebastião
Rogério Ponte (A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle) e de Celeste Cordeiro
(O Ceará na segunda metade do século XIX). In: SOUZA, Simone (Org.). Uma nova história
do Ceará, op. cit.
167
Cf. CASTRO, José Liberal de. Contribuição de Adolfo Herbster à forma urbana da cidade da
Fortaleza. In: Revista do Instituto Histórico do Ceará. Fortaleza, 1994, p. 43-90.
81
82
83
Analisando os mapas acima, percebe-se que a maior parte dos
prédios e equipamentos públicos ficava entre os “Boulevards” do Livramento,
do Imperador e da Conceição. Nessa área geográfica, portanto, os espaços
eram mais intensamente “disputados” entre as autoridades e os praticantes de
uma cultura negra numa Fortaleza que se expandia e se reurbanizava.
Com efeito, os códigos de posturas de Fortaleza aprovados nesse
período refletiam a tentativa das autoridades em normatizar e controlar esses
espaços. Daí a lógica de que o código aprovado em 1879 iniciasse com vinte e
um artigos regulando as edificações em Fortaleza.
Art. - As ruas e travessas da cidade e povoações do municipio
terão a direcção e largura indicadas na planta respectiva, ou
determinada pela camara; observando-se o mais perfeito
alinhamento e conveniente nivelamento.
Art. - Nenhuma edificação de casas ainda mesmo de taipa ou
palha, nem construcção de cercas, começará no espaço
comprehendido na planta da cidade e na das povoações, sem
preceder alinhamento, assim como o nivelamento para as casas de
alvenaria.
168
Sendo essas posturas elaboradas pelos representantes de uma “elite”
política, econômica e intelectual, refletiam o entendimento próprio desse grupo
sobre as necessidades das intervenções urbanas, que pouco favoreciam as
camadas mais pobres da população e, até mesmo as excluíam do perímetro da
“planta” da cidade quando não havia condições de se construir casas no
padrão previsto pelas normas municipais. Estas, certamente, preocupavam-se
mais com os traçados das ruas e as aparências (externas) das casas do que
com o destino daqueles que foram expropriados pela reurbanização.
No caso das habitações, as posturas tratavam mais da “padronização”
das fachadas das casas do que de aspectos internos. Essa era uma diferença
importante para os inquilinos, particularmente de casas mais simples, como foi
o caso de muitos negros que, após o fim do trabalho escravo, preferiram não
ficar coabitando com os ex-senhores, na condição de “criados livres”.
168
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1818, de de fevereiro de 1879.
Approvando o codigo de posturas da camara municipal da Fortaleza. In: Colleção de Leis da
Provincia do Ceará no anno de 1879. Fortaleza: Typographia Cearense, 1879. (Pelo Art. 2, da
Resolução 1682, de 02 de setembro de 1875, a proibição de construções de casas de palha
ou de taipa dentro do quadro limitado pelas ruas do Pajehú, Livramento e Boulevard do
Imperador”, ou seja, da “planta” da cidade, que existia desde 1875). Cf. mapas, p.p. 82-83.
84
Em 1882, o jornal fortalezense Constituição publicou um interessante
artigo que reconhecia o esforço da Câmara em dar regularidade às novas
construções, mas, também, denunciava a existência das “casas cachimbo” e
chamava a atenção para o bem-estar “da classe pobre, victima dos senhorios
pouco amestrados na arte de edificar, ou demasiado poupões para sacrificar
alguns reaes ao commodo de seus inquilinos”.
169
[...] Ruas inteiras ha na cidade, que bem merecerão o nome de
purgatorio. Casas baixas ou prolongadas na parte anterior até que os
caibros toquem o chão; corredores estreitos que mal dão passagem
ás columnas de ar; compartimentos escuros, sem nenhuma
ventilação; ladrilhos de tijolo sedimentoso e fraquissimo que se
desfaz sob os pes dos transeuntes, impregnando de o ambiente;
fogãos para lenha collocados ao barlavento; eis o que se vê, ainda
nas ruas melhores da cidade. Sobre tudo merece condemnação
desde já, o que se chama uma casa caximbo, d’essas que se
edificão para os pobres. Considere-se uma pequena casa, construida
no plano indicado, e cuja fachada olha para o occidente. De uma a
seis horas da tarde, o sol infundindo seus raios na frente principal, e
imnnundando-lhe o tecto, converte o recinto habitado numa
verdadeira fornalha, em quanto a fumaça impellida pelo vento leste,
faz das portas da rua a sua chaminè, si é que tem-nas abertas os
martyres da usura senhoril (...).
170
Outrossim, ao longo desse código de 1879, há rios exemplos de
uma maior preocupação em reprimir as chamadas “obscenidades e offensas a
moral”, mas que na prática, prejudicavam apenas os costumes da parte mais
humilde da população, como a proibição aos munícipes de banharem-se
(durante o dia) na lagoa do Garrote (atual Parque da Criança), no Pajeú, no
veio d’água que corria na Rua do Poço ou em outros lugares expostos ao olhar
dos “viandantes” ou de quem estivesse nas casas.
Ainda de acordo com o código citado, os moradores de Fortaleza não
podiam aparecer na janela das próprias casas “de modo deshonesto, offensivo
ao pejo” de modo a serem vistos por quem passasse na rua epodiam andar
pelas ruas vestidos “decentemente”, ou seja, com camisa e calça “sendo
aquela por dentro desta”.
171
169
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Constituição. Fortaleza, 16 fev. 1882, p. 1.
170
Locus cit.
171
Cf. capítulo segundo (Bulhas, voserias, obscenidades e offensas á moral) da Resolução nº.
1818, de 1º de fevereiro de 1879. op. cit.
85
Quanto ao campo dos divertimentos, ao se permitirem apenas os
jogos denominados “voltarete, boston, solo, Wisth, espadilha, bilhar, damas,
dominó, e gamão”
172
, percebe-se mais uma vez a influência de uma “civilidade”
européia em detrimento de outros costumes. E, por esse tempo, publicavam-se
anúncios de fuga de escravos que podiam ser identificados pelo “vício” de
jogarem cacete, faca e outros “jogos”. Não que se esperasse o reconhecimento
desses jogos pelos legisladores locais; mas, ao excluírem quaisquer outros
além dos supracitados, as posturas ratificavam mais uma tentativa das
autoridades em promover a ausência do negro como sujeito produtor de cultura
na sociedade fortalezense.
Foi, pois, nesse contexto de controle e de reorganização espacial da
capital, que as festas de negros iam de encontro ao projeto de uma elite
defensora do “progresso”, da “civilização”, da “moralidade”. Daí a tentativa de
pôr fim à coroação de reis negros na Irmandade do Rosário de Fortaleza, de
restringir as apresentações de rei congo às praças e aos terrenos baldios, bem
como de controlar os sambas que ocorriam em vários pontos da cidade.
Talvez esteja na reação a esse contexto uma das razões dessas
festas de negros para seus freqüentadores. Diante da exploração do trabalho
(livre ou cativo), das insatisfatórias condições de moradia, da falta de
reconhecimento social e cultural, faziam-se festas; não por mera diversão ou
apenas para “extravasar tensões”, mas para negar as regulamentações
impostas e mesmo destruí-las, no sentido pensado por Jean Duvignaud.
Ela (a festa) destrói ou abole, em sua vigência, as representações, os
códigos, as normas por meio dos quais as sociedades se defendem
contra a agressão natural. Ela contempla, com estupor e alegria, o
acasalamento do deus com o homem, do “Eu” e do “Super-ego”, em
uma exaltação na qual todos os sinais aceitos são falsificados,
confundidos, destruídos.
173
A festa constituía-se, pois, uma forma de resistência. Para os negros
cativos, a festa era espaço para fruírem uma liberdade, para se mostrarem
172
Cf. capítulo sexto (Jogos e reuniões illicitas) da Resolução nº. 1818, de de fevereiro de
1879. op. cit.; essa proibição vigorava em Fortaleza há vários anos. Cf. BPGMP, Setor de
Obras Raras. Resolução nº. 1356, de 3 de novembro de 1870. Approva posturas da camara
municipal da Fortaleza (ver artigo 4º). In: Colleção de Leis da Provincia do Ceará no anno de
1870. Fortaleza: Typ. Cearense, 1870.
173
DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. op. cit., p. 69.
86
como atores não-passivos diante das tentativas de reificação por parte dos
senhores e, apesar de tudo, existirem como sujeitos capazes de criarem sua
cultura, como faziam os cativos sambistas ao fugirem para cantar, tocar ou
dançar em sambas, desafiando os senhores, as posturas e a polícia. Como
defende João José Reis, para o escravo sobreviver foi preciso muita luta. “E se
viver é lutar, sobreviver e ainda criar uma cultura com expressão de liberdade
que a cultura negra possui, é lutar dobrado”.
174
Obviamente que a resistência podia assumir uma infinidade de formas
simbolizadas nas festas, que eram espaços para trocar idéias, tecer acordos,
fazer críticas sociais através das letras das músicas. Por outro lado, a
possibilidade de essas festas terem ido além de uma motivação racional de
resistência dos negros contra uma sociedade opressora e preconceituosa em
relação à cultura negra que era praticada na cidade.
Precisar-se-ia, portanto, considerar a posição do “corpo” nessas festas
de negros, o que levaria a uma ampla discussão de questões que iriam desde
o uso do próprio corpo e a maneira como ele era vestido e calçado para
“alcançar certa distinção no seio de seu grupo e mesmo da sociedade como
um todo”
175
até as proposições na linha de Merleau-Ponty
176
que reflete sobre a
maneira como o corpo se coloca no mundo e exerce uma linguagem
(inteligente, mas não necessariamente racionalizada). Mas, apesar dos
múltiplos significados (interligados, vale ressaltar) que poderiam assumir para
seus atores, essas festas de negros foram instrumentos para a ocupação e
apropriação de espaços em Fortaleza.
Essas diferentes dimensões ilustram como as festas de negros eram
territórios onde os grupos sociais criavam representações e redes relacionais
por intermédio de suas práticas culturais, produzindo significados por meio de
símbolos pertencentes a suas culturas, ou se apropriando de outros em um
processo dinâmico de ressignificação.
177
174
REIS, João José. Resistência escrava na Bahia. Poderemos brincar, folgar e cantar...: o
protesto escravo na América. Revista Afro-Ásia, n, 14, 1983, p.p. 108.
175
SCARANO, Julita. Cotidiano e solidariedade. Vida diária da gente de cor nas Minas Gerais,
século XVIII. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 108.
176
Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas.
Tradução de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1990; ______. Textos
escolhidos. Tradução e notas de Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
177
A idéia de “espaço” aparece aqui numa linha bastante próxima à pensada por Ricardo
Moreno ao tratar dos sambas e das congadas no Brasil. Cf. MELO, Ricardo Moreno. Sambas
e congadas. O papel da música na construção de um espaço social para o negro no Brasil.
87
De acordo com Michel de Certeau, “espaço é um lugar praticado.
Assim, a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em
espaço por pedestres”
178
. Dessa forma, é plausível considerar que lugares
“controlados” (como praças, ruas, terrenos, Igreja do Rosário e adjacências)
pelas autoridades e que eram objetos da reurbanização pela qual passava
Fortaleza em fins do século XIX se transformassem em espaços apropriados
pelos que praticavam uma cultura negra na cidade.
Na Praça de Pelotas, durante o período natalino, havia uma parte
cercada que se tornava território dos congos, impregnado de símbolos e
imagens que remetiam a uma África distante; ali os congos assumiam o
controle e praticavam uma cultura afro-brasileira em Fortaleza. A festa não
apenas tornava o espaço da praça território dos congos, mas permitia que
através dela a territorialidade fosse efetivamente exercida.
Por outro lado, a conquista desse território
179
não se dava sem a
disputa com outros sujeitos ou grupos sociais, como aqueles que atacavam as
propriedades dos moradores da Praça de Pelotas
180
ou um grupo de rapazes
que tinha “o habito de arremessar pedras e areia contra os carros de
passageiros por occasião da passagem dos trens”
181
na estação (de bondes)
de Pelotas ou, ainda, disputar com os “desordeiros, os quaes vivem
2004. Disponível em http://br.monografias.com/trabalhos/sambas-e-congadas/sambas-e-
congadas.shtml (Acesso em 14 dez. 2007).
178
Certeau faz uma distinção entre lugar” e “espaço” e defende que “Lugar” é a ordem que
coloca os elementos considerados uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar
“próprio” e distinto que o define, expressando a estabilidade, o controle, a impossibilidade de
múltiplas interpretações. o “Espaço” existe sempre que se consideram vetores de direção,
quantidades de velocidade e a variável tempo; é animado pelo conjunto de movimentos que
se desdobram num cruzamento de móveis, constituindo-se num lugar praticado. CERTEAU,
Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 201-202.
179
As noções de “território”, como segmento do espaço, via de regra delimitado, que resulta da
apropriação e controle por parte de um determinado agente social; e de “territorialidade”,
como a forma (ação) de controle do território, aparecem aqui a partir de: ROSENDHAL, Zeny.
Espaço e religião. Uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996; SILVA,
Elizete Américo e SOUZA, Maria Salete de. Espaços públicos e territorialidades no centro de
Fortaleza; e SILVA, José Borzacchiello da. Fortaleza, a metrópole sertaneja do litoral. In:
SILVA, José Borzacchiello da, etc...Litoral e Sertão, natureza e sociedade no nordeste
brasileiro. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2006. Ressalto, porém, que abordarei mais o
caráter “cultural” do território.
180
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de Officios a diversas autoridades. 2
jun. 1890. Ala 02, estante 27, livro nº. 265, fl. 34.
181
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de Officios a diversas autoridades. 14
out. 1890. Ala 02, estante 27, livro nº. 265, fl. 56.
88
diariamente embriagados, na Estação Pelotas (...). Não vivem embriagados
como armados de facca e cacete, a insultar a quem passa em seu sucego”.
182
Vê-se que a estação de trens construída na Praça de Pelotas teve
várias “apropriações” pelos munícipes. E, ao que parece, os congos souberam
reverter a seu favor a implementação dos transportes no contexto da expansão
urbana de Fortaleza. Apesar de a praça ficar relativamente afastada do centro,
o desenvolvimento dos meios de transporte
183
possibilitava às pessoas de
várias partes da cidade o acesso facilitado ao local das apresentações dos
autos de rei congo.
Por outro lado, algumas áreas, ainda que um pouco mais próximas
fisicamente do centro, demoraram a ser “urbanizadas” e contempladas com
transportes por bondes. Foi o caso da região do Outeiro, no lado leste da
cidade. Nessa zona estavam o Seminário da Prainha e o Colégio dos
Educandos (atual Colégio da Imaculada Conceição). Mas, a dificuldade na
ultrapassagem do riacho Pajeú acabou retardando sua ocupação, “problema”
aos poucos superado com a reorganização espacial proposta, em 1875, por
Adolfo Herbster, na “Planta da cidade da Fortaleza e subúrbios”.
184
Mesmo assim, ainda em fins da década de 1870, a área era
considerada “subúrbio” como indica sua destinação para retirantes da seca
através da construção do Asilo de Mendicidade (atual Colégio Militar de
Fortaleza) e da criação dos abarracamentos da Aldeota e do Pajeú
185
.
Num momento em que através das reformas urbanas e dos códigos
de postura as autoridades buscavam “enquadrar” a cidade e seus habitantes,
talvez esse “isolamento” favorecesse a prática de sambas que, como visto,
eram olhados pela polícia como espaços de “desordem”.
DESORDENS
182
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 7 dez. 1883, p. 3, rolo nº.
189.
183
Segundo Antônio Bezerra de Menezes (Descrição da cidade de Fortaleza. Fortaleza:
Edições UFC, 1992, p. 39), a companhia de trens (bondes) que fazia a linha de Pelotas era a
“Ferro Carril Cearense”, inaugurada em junho de 1879. Em 1895, essa Companhia possuía
mais de 11 quilômetros de linha e servia a diversos pontos da cidade e “arrabaldes”.
184
Cf. CASTRO, José Liberal de. Contribuição de Adolfo Herbster à forma urbana da cidade da
Fortaleza. In: Revista do Instituto Histórico do Ceará. Fortaleza, 1994, p. 67.
185
Havia treze “abarracamentos” em Fortaleza, em 1878. Cf. Falla com que o exmo sr. dr. José
Julio de Albuquerque Barros, presidente da provincia do Ceará, abriu a sessão da 24ª
legislatura da Assembléa Provincial no dia 1 de novembro de 1878. Fortaleza: Typ. Brasileira,
1879. Disponível em http://www.crl.edu/content/brazil/cea.htm. (Acesso em: 14 dez. 2007)
89
No domingo a tarde no Alto do Pajehú houve um grande rolo entre
varias praças do 15º de Infantaria, as quaes se achavam em um
samba, onde são frequentes as desordens. Da lucta resultou o
ferimento grave de um soldado. O criminoso fugiu e occultou-se no
sitio de Elias Ferreira Gomes. O Sr. Joaquim Nogueira chamou 2
praças que passavam para prenderem-no, mas elles reccusaram-se.
Felizmente nessa occasião tambem passava o cabo da policia Abel
Rodrigues Pimentel, que ajudado por 4 emigrantes conseguirão a
captura do delinquente. O Sr. Comandante do 15 apenas teve
conhecimento do facto e expediu uma força commandadea por um
official a fim de prender os desordeiros, porem todos se tinham
dispersado. Em casa d’esse Bento Rodrigues ha constantemente
samba.
186
Na briga entre os praças do batalhão de infantaria do Exército, um
deles saiu gravemente ferido. Interessante que foi preciso a ajuda de quatro
retirantes da seca para capturar o agressor, que dois outros soldados que
“passavam” pelo local se recusaram a prendê-lo. Será por que também eram
sambistas? Teriam, então, sido solidários com o soldado fugido?
Provavelmente sim. De qualquer forma, o registro indica o “território” da festa:
era a casa de Bento Rodrigues, no Alto do Pajeú, onde constantemente havia
samba, provavelmente aos domingos, dia de folga dos soldados.
Perto dali, no Outeiro, também se registraram sambas e, novamente,
por conta da alteração provocada por praças do Exército, como reclamava o
delegado da capital ao comandante do Batalhão de Infantaria, solicitando-lhe
providências referentes “ao procedimento que tiveram diversas praças do
batalhão de vosso commando com relação a um samba hontem no oiteiro.
187
Em vista de boa parte das referências aos sambas estarem nas fontes
policiais, e elas registravam os sambas quando neles ocorriam as
“desordens”, aparentemente fica mais em relevo a dimensão do conflito, o que
não quer dizer que a violência fosse regra nessas reuniões que aconteciam
quase sempre sem deixar registros.
A reincidência dessas festas de negros parece ter influenciado
diversos escritores cearenses do século XIX. Adolfo Caminha, por exemplo,
186
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 9 ago. 1877, p. 3, rolo nº.
84.
187
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de Officios a diversas auctoridades.
11 jan. 1890. Ala 02, estante 27, livro nº. 265, fl. 9 v.
90
que descreve um personagem o alferes Coutinho como acostumado a
freqüentar todas as festas em Fortaleza, incluindo os “sambas do Outeiro”.
188
Assim, os sambas ocorriam em vários outros locais da cidade, tanto
no perímetro central como nos “subúrbios”, considerando a especificação
espacial dada na planta desenhada por Herbster, em 1875. É plausível pensar
que, à medida que Fortaleza se expandia, outros espaços eram “apropriados”
por essas festas de negros. Veja-se o caso do samba registrado em
Parangabuçu:
PARTE DA POLICIA - (...) O delegado de policia remeteu á
auctoridade competente o inquerito policial a que procedeu contra
José Pereira de Britto, por ter assassinado no dia 12 de corrente de
tres para quatro horas da madrugada José Barbosa, em um samba
no Parangabuçú, suburbios d’esta cidade. (...).
189
A festa aí foi longa. Certamente começara ao anoitecer e ia pela
madrugada quando houve o infortúnio do assassinato. Mas, chama a atenção
que o Porangabuçu (uso aqui a grafia dos mapas atuais) era uma área mais
afastada do centro o que aponta a capacidade de os negros circularem pela
cidade. Além disso, essa prática cultural podia-se mostrar capaz de congregar
diversos atores sociais. Nesse caso, não apenas do Porangabuçu, mas
também de outras zonas urbanas, até porque, nesse tempo as linhas de bonde
interligavam vários bairros da cidade e a Companhia Ferro-Carril da Parangaba
fazia uma linha que passava ao largo da Lagoa do Porangabuçu.
190
De certa forma, portanto, os sambas e outras festas de negros
exerciam um papel não muito aceito pelas autoridades, vale lembrar –, de
mostrar uma outra geografia da cidade; não aquela da mera reurbanização, do
rígido alinhamento de casas e ruas, da suburbanização dos pobres, mas
aquela em que as práticas culturais negras também eram instrumentos para se
constituírem em espaços próprios na cidade.
Considerando que os sambas, os congos, as coroações de reis negros
na Irmandade do Rosário ocorriam (por vezes interligados) em diversos locais
188
CAMINHA, Adolfo. A normalista. Texto integral cotejado com a edição de 1893. 12 ed. Rio
de Janeiro: Ática, 1998, p. 100.
189
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 22 dez. 1898, p. 4, rolo
nº. 319.
190
Cf. nota de Raimundo Girão. In: MENEZES, Antônio Bezerra de. Descrição da cidade de
Fortaleza. op. cit., p. 193-194.
91
de Fortaleza, durante boa parte do calendário anual, e envolviam um número
considerável de pessoas, pode-se perceber que, através dessas festas,
conquistavam-se territórios (ainda que temporariamente), afirmava-se uma
identidade negra (constantemente reelaborada) e se permitia a congregação de
diversos sujeitos históricos na cidade.
A força dessas práticas culturais negras fez com que elas
transpassassem a dinâmica socioespacial da Fortaleza de fins do XIX,
transcorressem o século seguinte e permanecessem na cidade. Entretanto, o
crescimento urbano da capital e o preconceito contra práticas culturais negras
continuaram “afastando” as festas de negros para os “subúrbios” da cidade.
Foi o que ocorreu com os congos que, nas primeiras décadas do XX, tinham
como um de seus principais locais de apresentação a Praça dos Coelhos. Para
ali afluíam negros, trabalhadores, os mais diversos sujeitos sociais, enfim.
A propósito de uma instigante coincidência: a denominação “Praça dos
Coelhos” era porque ficava na Rua dos Coelhos, onde praticamente todas as
ruas de sentido Norte-Sul terminavam
191
. Algum tempo depois, virou Rua
Domingos Olímpio, espaço onde os maracatus que trazem a corte do rei
congo como destaque se apresentam anualmente. No período carnavalesco,
nessa rua, antiga Rua dos Coelhos, novamente uma festa de negros conquista
seu território. Mas, se os espaços eram mudados, a disposição da polícia em
manter a “ordem” parece ter continuado a mesma de outros tempos, como se
percebe nas prisões do ferreiro Francisco Marques, preso por “embriaguez nos
congos da Praça dos Coelhos” e do lavrador de José de Lima Uchôa, preso por
“embriaguez nos congos da Praça dos Coelhos”.
192
Finalizando, apesar de tudo, as festas de negros perseveravam em
Fortaleza, ao mesmo tempo em que eram constantemente ressignificadas,
como se verá nos próximos capítulos, mas sempre afirmando uma cultura
negra e se constituindo em instrumentos para a apropriação de novos
territórios na cidade.
191
FILHO, Rogaciano Leite. A história do Ceará passa por esta rua. Fortaleza: Fundação
Demócrito Rocha, 1988, p. 148.
192
APEC, Fundo Governo do Estado do Ceará. Rol de culpados. 18 dez. 1915. Ala 03, estante
46, caixa 02, livro nº. 07, p. 292.
92
Capítulo 2
Irmandade, congos e sambas: controle, transgressão e
sociabilidades
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da
Capital provavelmente foi o espaço de maior organização social dos negros em
Fortaleza na segunda metade do culo XIX. Seus estatutos eram elaborados
pelos próprios irmãos (pretos, pardos, mulatos, cativos, libertos, livres) e
estabeleciam práticas que eram do interesse dos negros, sendo transformados
em Lei pela Assembléia Provincial.
Considerando que também havia irmãos na condição de escravos, era
importante a existência legal da confraria
193
para reconhecer uma identidade
aos negros cativos. Isso transparecia de forma mais intensa quando cargos
importantes, como o de rei e de rainha, eram reservados a escravos, indicando
uma espécie de inversão hierárquica dentro da ordem escravista e apontando
mais uma possibilidade de projeção do negro na sociedade em que vivia.
Nesse contexto, Eduardo Silva defende que instituições como as irmandades
eram frutos de uma enorme negociação política por autonomia e
reconhecimento social. É nessa micropolítica que o escravo tenta fazer a vida
e, portanto, a história”.
194
Brancos também participavam dessas confrarias de “homens pretos”.
No Ceará, algumas mesas (grupos de irmãos que exerciam os cargos
principais nas irmandades) tinham homens e mulheres brancos ocupando
posições como a de tesoureiro ou procurador. Longe de representar uma
espécie de “paternalismo”, isso se dava por motivações pessoais e o se
193
Utilizarei a palavra “confraria” como sinônimo de “irmandade” considerando que nos próprios
compromissos elaborados pelos membros dessas organizações, em Fortaleza, havia o uso
alternado desses dois nomes com o mesmo significado. Cf. Biblioteca Pública Governador
Menezes Pimentel (BPGMP), Setor de Obras Raras. Resolução nº. 209, de de setembro
de 1840 (Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosario dos Homens Pretos de
Fortaleza). In: BARROSO, José Liberato. Compilação das Leis Provinciais do Ceará. Rio
de Janeiro: Typographia Universal Laemment, 1863; BPGMP, Setor de Obras Raras.
Resolução nº. 1538, de 23 de agosto de 1873 (Compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosario da Capital). In: Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará
promulgados pela respectiva Assemblèa no anno de 1873. Fortaleza: Typographia
Constitucional, 1874.
194
SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 21.
93
constituía uma subordinação dos negros, justamente porque a maioria destes
irmãos eram pessoas livres. Além do mais, os brancos ocupavam os cargos
por “devoção” e não podiam votar ou ser votados, o que limitava sua influência
nos rumos da Irmandade.
Entre as diversas atividades da confraria, destacava-se a festa de
coroação de reis negros realizada anualmente, constituindo-se numa ação
coletiva para onde normalmente convergiam os mais variados sentidos e
sentimentos humanos, naturalmente favorecendo um ambiente para “excessos”
vistos com reprovação pela Igreja, particularmente no período “romanizador”.
A coincidência do rei negro coroado na irmandade do Rosário com o
chamado Rei Congo é outro aspecto importante a ser abordado porque permite
o reconhecimento de que as irmandades não eram simples espaços de
acomodação. A festa homenageava Nossa Senhora, mas, ao mesmo tempo,
celebrava uma manifestação ancestral africana materializada na eleição e
coroação de reis negros (congos). Nesse momento, a Irmandade de negros
também era o espaço praticado, no dizer de Michel de Certeau
195
, onde
ocorriam as instabilidades, os desdobramentos, onde as vivências eram
ponteadas pelas circunstâncias, pelos conflitos e acordos.
Como reação a essa forma de os negros ocuparem o espaço, o
cerceamento da festa era uma tentativa constante, seja pela previsão em
compromissos (no caso dos reis das irmandades coroados dentro do templo
católico), seja na obrigação de dirigir-se à cadeia pública a fim de pedir
autorização ao delegado (no caso dos congos, bumba-meu-boi e outros
“folguedos” que se apresentavam nas ruas de Fortaleza). Esses eram
posicionamentos da Igreja e do Estado frente às festas de negros, o que não
quer dizer que o controle ocorresse efetivamente.
Embora essas várias práticas tivessem elementos e sujeitos comuns,
havia também certas diferenciações que davam uma “identidade” a cada uma
delas. Se na festa da Irmandade dos Homens Pretos o reconhecimento social e
o sentimento de solidariedade eram evidenciados, os autos de rei congo
assumiam certo caráter comercial, pois os freqüentadores pagavam ingresso
para assistir às encenações. Por outro lado, isso não impossibilitava as
relações de sociabilidades entre os sujeitos que freqüentavam os congos e
195
Cf. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 202.
94
muito menos afastava tais manifestações de uma representação cultural de
fortes raízes africanas.
Ressaltem-se, também, as diferentes dimensões que se destacavam
nessas manifestações festivas negras. Enquanto os sambas, para a polícia,
representavam transgressão e eram praticados às ocultas ou em casas
localizadas nos “subúrbios”, os autos de rei congo e as irmandades queriam
ser vistos, divulgando suas festas em anúncios publicados em jornais. Eram
especificidades que certamente influenciavam na constituição de cada uma
dessas manifestações.
Nesse capítulo, portanto, são estudadas três festas de negros
(coroação de reis negros na Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, autos
de rei congo e sambas), de certa forma compartimentalizadas, mas justamente
pelo intuito de aprofundar a análise de aspectos mais particulares a cada uma
delas, buscando percebê-las como espaços de cultura, de sociabilidades, bem
como de instrumentos para a conquista de territórios na cidade. A circularidade
dos sujeitos e espaços dessas festas será discutida de forma mais detalhada
no último capítulo.
2.1 – A Irmandade do Rosário dos Homens Pretos
As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
foram constituídas em várias cidades do Ceará. Fortaleza, Aracati, Sobral,
Quixeramobim, Barbalha, Icó, Crato, Lapa (povoação pertencente à freguesia
de Sobral) tiveram suas confrarias de negros. Era uma tendência que ocorria
por quase todo o Brasil desde a chegada dos primeiros africanos a terras
brasileiras, o que levanta a questão sobre possíveis fatores que teriam levado
essas confrarias a terem ampla aceitação entre os negros.
Nesse sentido, é importante fazer um breve recuo no tempo a fim de
perceber como o Rosário foi-se tornando conhecido e aceito, particularmente
pelos africanos e seus descendentes em outras partes do mundo além da
África. A intenção aqui não é “contar” a história das irmandades do Rosário,
mas, sim, destacar – ainda que brevemente – a emergência delas em Portugal,
na África, no Brasil e no Ceará e, a partir daí, perceber a finalidade que a
95
Irmandade do Rosário tinha dentro da Igreja Católica, bem como sua
ressignificação pelos irmãos (negros) que faziam parte dessas confrarias.
Uma hipótese para explicar a “popularidade” do Rosário é a de
Antônia Quintão
196
, segundo a qual o papa Inocêncio III convocou uma
cruzada, no século XIII, liderada por Simão de Monfort (amigo de Domingos de
Gusmão, que rezou à Nossa Senhora pedindo-lhe vitória) contra “inimigos” da
cristandade (albigenses), no sul da França. Como o êxito dos cristãos foi
atribuído à Maria, Simão mandou erigir uma capela dedicada a Nossa Senhora
do Rosário.
197
Três culos depois, os cristãos venceram os turcos em Lepanto,
antiga cidade portuária ao sul da Grécia, libertando-se na ocasião mais de 20
mil escravos. A vitória dos cristãos (católicos) sobre os turcos (muçulmanos)
teria ocorrido graças à intercessão da Virgem Maria, em resposta aos rosários
(orações) a ela oferecidos. Para comemorar o feito cristão, o papa Pio V
autorizou a festa à “Nossa Senhora da Vitória” em todas as igrejas que
tivessem um altar do rosário. A festa deveria ser comemorada anualmente no
primeiro sábado de outubro, época em que se deu a batalha de Lepanto. “Em
1573, o papa Gregório XIII mudou o nome da festa para Nossa Senhora do
Rosário, reforçando o rosário como arma de vitória, e transferiu a festa para o
primeiro domingo de outubro.”
198
Essa ligação entre vitórias militares, libertação de cativos e Nossa
Senhora do Rosário parece à Antônia Quintão a que melhor ajuda a entender a
sua aceitação entre os escravos. Seu culto foi divulgado pelos dominicanos,
que também popularizaram a recitação do terço – um rosário que era composto
196
QUINTÃO, Antonia Aparecida. vem o meu parente. As irmandades de pretos e pardos
no Rio de Janeiro e em Pernambuco (século XVIII). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2002,
p.79.
197
Provavelmente, a primeira confraria do Rosário teve como sede o Convento de São
Domingos, em Lisboa, ainda no século XV, sendo o nome desse convento referente a
Domingos de Gusmão, religioso que viveu entre os séculos XII e XIII, ao qual teria aparecido
a Virgem Maria e ensinado-lhe um método de oração através de um colar de contas (rosário).
A partir de Portugal, as irmandades do Rosário teriam se espalhado por outros continentes,
como a África e a América. Segundo o padre Serafim Leite, “já em 1586, foram instituídas
pelos jesuítas, irmandades de Nossa Senhora do Rosário com o fim de promover a piedade e
a instrução religiosa de índios e negros”. Serafim Leite apud SOUZA, Marina de Mello e. Reis
Negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte:
EDUFMG, 2002, p. 187.
198
SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. Viagens do Rosário entre a Velha Cristandade e o
Além-Mar. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, nº. 2, 2001, p. 5.
96
de 150 Ave-Marias divididas em quinze dezenas, sendo cada uma delas
precedida do Pai-Nosso.
Segundo Roger Bastide, o culto a Nossa Senhora do Rosário, criado
por Domingos de Gusmão, estava em desuso e foi restabelecido justamente no
momento em que os dominicanos enviaram seus primeiros missionários para a
África, o que explicaria a sua introdução e generalização progressiva no grupo
de negros escravizados.
199
Partindo de Portugal, portanto, impulsionadas pelo espírito contra-
reformista dos missionários, as confrarias de Nossa Senhora do Rosário foram
levadas para a África, particularmente para a região de Angola, de onde foram
trazidos muitos africanos para o Brasil.
José Ramos Tinhorão destaca, porém, a “tendência sempre revelada
pelos negros africanos de procurar aproximações simbólicas com sua religião
nas exterioridades do catolicismo”, e aponta uma possível ligação com o orixá
Ifá, por intermédio do qual se consultava o destino atirando soltas ou unidas
uma espécie de rosário constituído por nozes de uma palmeira chamada Okpê-
lifá. Além disso, os antigos rosários não seriam formados por esferas polidas e
iguais, mas por pequenas rosas esculpidas em madeira. Dessa forma, haveria
certa similaridade do rosário com o aspecto das pequenas cascas de madeira
ou nozes da árvore africana que constituíam o chamado “rosário de Ifá”, às
vezes usados pelos sacerdotes africanos em volta do pescoço, como se fosse
um colar.
200
Ao que parece, portanto, os negros sempre tiveram seu próprio
entendimento do que era o Rosário, bem como da confraria que levava tal
nome, independentemente de estarem na África, em Portugal ou no lado
ocidental do Atlântico.
Assim, os negros criaram suas confrarias por todo o Brasil
201
onde,
segundo Edison Carneiro, a devoção a Nossa Senhora do Rosário teve seu
esplendor no século XVIII “florindo em capelas, igrejas e Irmandades, onde
199
Cf. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. SP: Pioneira, 1971, p. 163.
200
TINHORÃO, José Ramos. Os negros em Portugal. Lisboa: Caminhos, 1988, p. 126-127.
201
Provavelmente, a primeira Irmandade do Rosário no Brasil foi criada por escravos em
Pernambuco, no ano de 1552. Cf. Antonio Pires apud Gilberto Freyre, Casa-Grande e
Senzala. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 178; QUINTÃO, Antonia Aparecida. vem o meu
parente. op. cit., p. 76; TINHORÃO, José Ramos. Os sons negros no Brasil. Cantos, danças,
folguedos: origens. São Paulo: Art Editora, 1988, p. 97.
97
quer que o negro fosse parcela ponderável da população”, sendo que “as
primeiras confrarias do Rosário compunham-se exclusivamente de negros
vindos de Angola, os mais numerosos das cidades de então”.
202
No caso da cidade de Fortaleza, a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos existiu oficialmente durante quase todo o século
XIX. No entanto, antigos relatos, como o de Antônio Bezerra de Menezes,
indicam a existência da capela do Rosário e a ocorrência de reuniões de
negros já no século anterior.
É constante a tradição de que um preto africano pelos anos de 1730
em diante erigiu uma capelinha a Nossa Senhora do Rosário, no
local em que se acha hoje a desse nome, a qual ficava um pouco
afastada da vila. Esta era, como toda construção daqueles tempos,
de taipa e de palha. Nela rezavam os pretos seus terços, novenas e
outros atos de devoção.
203
Independentemente do ano exato do surgimento de uma confraria de
negros em Fortaleza, nota-se que a relação entre a Igreja e a confraria sempre
foi permeada pela tentativa de controle daquela sobre esta. Os documentos
(compromissos) elaborados pela Irmandade do Rosário “da Capital” apontam
que para a confraria funcionar legalmente, os irmãos eram obrigados a
providenciar uma espécie de estatuto contendo direitos e deveres dos
confrades, organização geral da confraria, disposições sobre as contribuições,
bem como sobre as eleições para os diversos cargos, provisões para as
festividades e enterramentos, especificações sobre o uso de livros de registros,
dentre outros aspectos.
Depois de manuscritos esses compromissos eram submetidos ao
“Promotor do juizo ecclesiastico”, que deveria dar o “termo de vista”, ou seja,
seu parecer sobre o documento, onde ficava registrado se o estatuto da
irmandade não trazia “causa alguma contra os bons costumes, Doutrina da
Santa Igreja, sua Sagrada disciplina e direitos Episcopais e Parochiais”.
204
202
CARNEIRO, Edison. Ladinos e crioulos. Estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1964, p. 87.
203
MENEZES, Antônio Bezerra de. Descrição da cidade de Fortaleza. Fortaleza: Edições UFC,
1992, p. 162.
204
Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Fundo Palácio Episcopal do Ceará.
Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos Homens Pretos da
Capital (1871). Ala 03, estante 47, caixa 02.
98
Na verdade, essa tentativa de controle se estendia a todas as
irmandades religiosas, como se percebe através de ofícios enviados aos
vigários da província do Ceará cobrando informações a respeito dessas
organizações e se estavam legalmente constituídas, ou seja, se possuíam
compromissos aprovados pelas autoridades eclesiásticas e legislativas.
Tendo de prestar a Assemblea Legislativa Provincial na sua proxima
reunião, informação acerca do estado das Matrizes d’esta Provincia,
afim de que ella habilite o governo com os meios convenientes para
prover as necessidades mais urgentes, cumpre que Vm.
ce
forneça-
me esclarecimentos precisos e circunstanciados sobre os seguintes
pontos: (...) Existem na freguesia irmandades religiosas? Quantas?
Os seus compromissos estão legalm.
te
approvados?
205
Com a aprovação do “poder espiritual”, ou seja, a assinatura do Bispo
diocesano, o compromisso seguia para a etapa seguinte: ser transformado em
lei pela Assembléia Legislativa. A partir daí a irmandade poderia funcionar
oficialmente. No caso da confraria de negros que existiu na Igreja do Rosário
de Fortaleza, dois compromissos conhecidos
206
, elaborados nos anos de
1840 e de 1871.
É importante esclarecer que a Irmandade do Rosário de Fortaleza era
composta, essencialmente, por negros cativos, libertos ou nascidos livres –,
ficando esses sujeitos evidentes logo no primeiro artigo de seus estatutos.
Permitia-se a entrada de pessoas de outra cor, mas apenas por devoção, ou
seja, normalmente não podiam votar ou ser votados e, nesse caso, não teriam
poder de decisão nos rumos da confraria. Sobre a composição da Irmandade:
Art. 1. A irmandade de Nossa Senhora do Rosario desta
cidade, e seu termo, é composta de homens pretos de ambos os
sexos, tanto forros como escravos, e se outras pessoas de
differentes qualidades quizerem ser admittidas nesta irmandade
serão aceitas, porém por devoção.
207
205
APEC. Fundo Executivo Provincial. Officios dirigidos ao bispo diocesano... (Circular aos
vigarios). 17 jun. 1864. Ala 02, estante 25, livro nº. 169, fl. 7.
206
O compromisso manuscrito em 1840 encontra-se na Sala de História Eclesiástica da
Arquidiocese de Fortaleza (SHEAF) e foi transformado em Lei Provincial nº. 209, de de
setembro de 1840, revogado pela Resolução 230, de 12 de janeiro de 1841 e, finalmente,
restaurado pela Lei Provincial nº 345, de 18 de julho de 1845. O compromisso manuscrito em
1871 foi transformado em Lei Provincial nº. 1538, de 23 de agosto de 1873.
207
Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel (BPGMP), Setor de Obras Raras.
Resolução nº. 209, de 1º de setembro de 1840, op. cit.
99
Ao se tornarem “filhos” de Nossa Senhora do Rosário, os negros se
permitiam assumir uma identidade reconhecida tanto pela Igreja quanto pelo
Estado. No caso dos cativos, normalmente vistos pelos senhores como “peças”
que podiam ser vendidas a qualquer tempo, o tornar-se “irmão” era mais uma
forma de assumirem a condição (humana) de sujeitos na sociedade escravista
onde estavam inseridos.
No compromisso elaborado em 1871, acrescenta-se que os irmãos
teriam de apresentar “bom comportamento” e professar a “religião catolica.
Considerando que nesse período ocorria a “romanização” da Igreja como se
verá ainda neste tópico –, o conservadorismo católico fica em relevo com a
exigência (óbvia) de os irmãos professarem o catolicismo, e parece querer
lembrar aos “homens pretos” da Irmandade do Rosário da cidade de Fortaleza
a intenção original que levou à fundação das primeiras irmandades do Rosário,
em Portugal.
De qualquer forma, mulheres e homens negros certamente tinham na
confraria um espaço importante para (con)vivências, onde se geravam
cotidianamente formas de sociabilidades. O próprio procedimento para
ingresso na irmandade indica algum tipo de relacionamento entre esses
sujeitos e o grau de autonomia da Irmandade na escolha de seus membros.
Em Fortaleza, o bastava ser negro e pagar a anuidade para ser
aceito na confraria. Era preciso ainda ser eleito – secretamente. Assim previa o
artigo 44, do compromisso de 1871.
Para se admittir qualquer pessoa como irmão desta confraria, se
procederá em meza a votação por excrutinio secreto, e contando as
sedulas sim ou - não -, vencerá afinal a maioria relativa. O
mesmo se praticará quando se tratar da eliminação de algum
irmão.
208
O irmão ou irmã admitido também dava de entrada uma jóia de no
mínimo dois mil réis e passava a pagar uma anuidade de mil is. Também
existia a possibilidade de remissão. Quem pagasse trinta mil is de uma
vez ficava dispensado de futuras contribuições. Além disso, previa-se que os
irmãos impedidos de continuarem pagando suas anuidades por “estado de
208
APEC. Fundo Palácio Episcopal do Ceará. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa
Senhora do Rosario dos Homens Pretos da Capital (1871). op. cit.
100
pobreza” seriam isentos desse dever “tendo não obstante mesmo direito que
os demais irmãos”.
209
É marcante, nesse documento citado, o caráter de solidariedade
presente na confraria. Além disso, um indício que entre os negros de
Fortaleza havia diferenças em termos de poder aquisitivo, bem como a
possibilidade de instabilidade nas finanças dos mesmos. De qualquer forma, a
confraria se propunha a amparar os irmãos mais necessitados.
Por outro lado, independentemente da condição de entrada, havia
certo cuidado ao selecionar novos membros, o que provavelmente se
relacionava com a liberdade de ação no espaço da irmandade, em que, quase
sempre longe dos senhores ou de alguma forma de coerção policial, os atos de
transgressão podiam aflorar mais facilmente e levar a algum tipo de conflito
entre “irmãos”.
Essas possibilidades de tensões internas podem ser sentidas no artigo
terceiro do compromisso da Irmandade do Rosário de Fortaleza, em que
estava previsto que o irmão perderia tal condição se adquirisse maus
costumes, fosse condenado a pena infamante ou praticasse “actos revoltantes
dentro da Igreja”.
210
Ainda de acordo com esse compromisso, cabia ao zelador
da Irmandade cargo reservado a pessoa “religiosa e diligente” - fazer o papel
de polícia dentro da Igreja do Rosário, “mandando retirar os que se
comportarem mal e perturbarem os officios divinos”.
211
Além disso, os irmãos passavam por um processo de seleção, de
certa forma rígido, não apenas por serem eleitos, mas porque, antes disso,
eram indicados pelos “mordomos” a quem competia “fazer qualquer indicação
verbal ou por inscripto” e “propor novos irmãos e a eliminação de alguns
existentes, que tiverem perdido a qualidade de sel-o”.
212
Entretanto, longe de representarem um papel submisso, os confrades
não se enquadravam no estereótipo de irmão ordeiro, bem comportado e
resignado com seu destino de trabalhador (livre ou cativo) cristão, como era
esperado pela Igreja, instituição que incorporava os discursos do trabalho como
instrumento de dignidade e de enobrecimento do homem, e de que a pobreza
209
Ibid., artigos 27 a 31.
210
Ibid., artigo 3º.
211
Ibid., artigo 25.
212
Ibid., artigo 24.
101
não era desonra
213
, o que, de certa forma, alinhava-se com o que as classes
dirigentes defendiam para a sociedade brasileira como um todo e com a própria
ideologia republicana de ordem e de progresso presente nas últimas décadas
do século XIX.
Mas, se pertencer à Irmandade do Rosário possibilitava a
solidariedade e certos “confortos” materiais, como o auxílio na doença, apoio
na pobreza e ajuda na compra de alforrias, ser irmão também se ligava à
necessidade de garantir uma boa morte, incluindo-se aí o ritual fúnebre católico
e muitas vezes um local para enterramento nos arredores ou até mesmo dentro
da igreja
214
, no caso daqueles que ocupavam certos cargos na mesa como o de
rei e de rainha, o que se constituía um privilégio, pois significava uma maior
aproximação com a Santa, bem como um melhor destino na vida além-túmulo.
Por outro lado, essa hierarquização dos sepultamentos dentro da Igreja e
mesmo a disputa de espaços de enterramento “grades acima” com brancos
influentes na sociedade, provavelmente passavam por uma ressignificação por
parte dos negros.
De acordo com João José Reis, o culto aos mortos tinha grande
relevância entre os africanos e, para os angolanos, os espíritos ancestrais
chegavam mesmo a influir mais no dia-a-dia que as próprias divindades.
Comparados aos portugueses, “os africanos, de um modo geral, tinham meios
rituais mais complexos de comunicação com os mortos”.
215
Não obstante a posição hierárquica, na Irmandade dos Homens Pretos
de Fortaleza, cabia ao zelador tocar os sinos quando falecia algum irmão. No
dia do enterro, todos eram obrigados a acompanhar o esquife (pertencente à
Irmandade) no qual o morto era levado a a sepultura. À frente do préstito,
levava-se uma cruz.
213
Cf. Encíclica Rerum Novarum. 15 maio 1891. Disponível em: http://www.vatican.va (Acesso
em 15 dez. 2007).
214
De acordo com relatório gentilmente cedido pela historiadora Paula Virgínia Pinheiro Batista
sobre escavações arqueológicas realizadas no ano de 2002 na área da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário de Fortaleza, observaram-se esqueletos tanto na área externa como na
parte interna da Igreja. Neste último caso, foram encontrados vestígios de enterramento no
transepto e no altar-mor.
215
Cf. REIS, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 90.
102
Para cada irmão ou irmã falecido, rezavam-se três missas por sua
alma e “todos os mezes, em um sabbado, se celebrará uma missa resada
pelos irmãos vivos e defuntos com a esmolla de costume”.
216
Entretanto, elementos simbólicos católicos, como a cruz, poderiam ser
interpretados pelos irmãos negros com uma dimensão diferente da pensada
pela Igreja. Segundo Marina de Mello e Souza, a cruz seria um exemplo da
“dupla leitura” do mundo feita por portugueses e africanos. Para os bacongos,
por exemplo, remeteria à idéia da vida como um ciclo contínuo.
O desenho da cruz indica o ciclo básico da vida, pensado a partir dos
quatro pontos percorridos pelo sol, no seu movimento circular e
contínuo: o nascimento, quando desponta no horizonte; a
maturidade, quando alcança o mais alto ponto no céu; a morte,
quando se põe, do outro lado do horizonte; e a existência no mundo
dos mortos, quando está no lo oposto, iluminando o mundo
invisível, do qual segue seu trajeto circular para começar novo
ciclo.
217
De acordo com estudos feitos por Robert Slenes, esses quatro
“momentos” do sol (passando pelo mundo dos vivos e dos mortos) que compõe
um traçado oval contendo uma cruz “grega” [ + ] faziam parte um sistema de
referências culturais centrado no conceito de “kalunga”, palavra que expressa
etimologicamente “a terra dos mortos”.
218
É preciso considerar, portanto, a possibilidade de os irmãos negros se
apropriarem dos elementos simbólicos no âmbito da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário, incluindo-se aí a questão dos enterramentos e as formas
diferenciadas de culto aos mortos e, que no caso das práticas culturais de
raízes africanas ligava-se não propriamente à missa, mas ao que acontecia do
lado de fora da Igreja, em manifestações acompanhadas de música, cantos e
danças.
216
APEC. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos Homens
Pretos da Capital (1871), op. cit., artigos 25, 32, 33, 34 e 35.
217
SOUZA, Marina de Mello e. Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. In:
Tempo, Rio de Janeiro, nº 11, v. 6, julho, 2001, p. 178.
218
Cf. SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. In:
Revista USP, São Paulo, Trimestral, 1991-1992. p. 63.
103
2.1.1 – A Festa Negra na Irmandade do Rosário de Fortaleza
Dentre os vários eventos promovidos pela Irmandade o que melhor
manifestava a força dos irmãos era a festa. Se os enterramentos ocupavam um
lugar dentro e fora (procissões) da Igreja, as festividades iam além, pelo fato de
levarem para as ruas sons, ritmos, danças e cores que atraíam muita gente da
cidade.
Além disso, a “identidade” de irmão do Rosário era gerada não apenas
pela oposição e mesmo enfrentamento entre os negros (cativos e mesmo
libertos e livres) e a sociedade escravista que os oprimia, mas pelas tensões
internas entre a própria Irmandade e os demais irmãos. O foco da resistência
negra não estava apenas em controlar ou ter o cargo de rei, juiz, tesoureiro ou
outras funções na mesa, mas também no aspecto festivo, com seus cantos,
danças, comidas, bebidas e demais elementos da festa.
De um modo geral, os compromissos das irmandades definiam que a
festa deveria ser realizada com pompa e solenidade em homenagem à Nossa
Senhora do Rosário. Entretanto, nessa festividade da padroeira aparecem
alguns elementos que apontam a irmandade como espaço de autonomia,
cultura e sociabilidade dos negros. Com efeito, a irmandade passa a sofrer,
principalmente a partir da década de 1870, a pressão para dissociar a confraria
do culto à santa (Nossa Senhora do Rosário).
Nesse contexto de se usar a festa do Rosário para exercer as
sociabilidades, está a extrapolação do tempo dessa prática cultural. Embora a
festa estivesse prevista para o primeiro domingo de outubro, as reuniões
preparativas começavam semanas antes e nelas os irmãos discutiam
propostas, acertavam detalhes e planejavam a arrecadação de fundos para
custear o evento, ainda que o estatuto da irmandade previsse que as despesas
fossem por conta dos rendimentos da confraria, incluindo o apoio dos irmãos
que ocupavam os cargos principais, ou seja, rei, rainha, juiz, juíza, escrivão e
escrivã.
219
que se considerar, ainda, que o próprio deslocamento da festa
para o ciclo natalino, com o ápice em 6 de janeiro (Dia de Reis), foi outra forma
219
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 209, de de setembro de 1840
(Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosario dos Homens Pretos de
Fortaleza) In: BARROSO, José Liberato. Compilação..., op. cit.
104
de os negros reapropriarem a festa do Rosário, no caso levando-a para uma
data que os irmãos entendiam mais propícia para a festividade, angariando a
adesão de participantes que não necessariamente eram pessoas da
irmandade.
De qualquer forma, os diversos cargos eram ocupados por negros
eleitos anualmente entre os demais irmãos e compunham a chamada “mesa.
De acordo com o compromisso de 1840 da Irmandade do Rosário de Fortaleza,
a eleição era feita na manhã do dia da festa. Já o compromisso de 1871 alterou
essa previsão, passando a convocar a “assemblea geral dos irmãos” para o
domingo anterior ao da festa. De acordo com o artigo sexto:
Reunidos no consistorio da Igreja todos os irmãos ou pelo menos
doze, sob presidencia do juiz, em exercicio ou de quem suas veses
fizer, hirá cada irmão, ao passo que for sendo chamado, depositando
em uma urna a sua sedula, que deverá conter os nomes dos
empregados a eleger.
220
Após a eleição, lavrava-se uma ata do ocorrido. No domingo seguinte
ao da festividade, cabia à antiga mesa dar posse aos novos empregados
escolhidos. Estes deveriam, dentro de duas semanas, nomear uma comissão
de treze pessoas para examinar as contas do tesoureiro relativas ao ano
findo.
221
Nota-se que, apesar dessas eleições acontecerem no âmbito da Igreja
e de haver um aumento de controle sobre a irmandade, particularmente a partir
da década de 1870, o padre nem sempre acompanhava todas essas
atividades. Na verdade, a função do pároco não é citada nos compromissos
referentes à Irmandade do Rosário de Fortaleza. Sua presença certa era
somente quando ia rezar missa de enterramento e outros sufrágios ou na
coroação dos reis negros eleitos pelos irmãos.
Analisando os termos elaborados pela Irmandade de Nossa Senhora
dos Homens Pretos de Fortaleza, fica evidente o grau de sua autonomia, pois
os próprios irmãos elegiam seus representantes e promoviam uma fiscalização
sobre os bens da confraria. Além disso, também é possível perceber que em
220
APEC. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos Homens
Pretos da Capital (1871), op. cit.
221
APEC. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos Homens
Pretos da Capital (1871), op. cit., artigos 5º, 6º, 7º, 10 e 11.
105
boa parte do ano os irmãos estavam voltados para os preparativos da festa
anual, quando acontecia um evento peculiar que parece caracterizar a confraria
como espaço identitário de matriz africana: a eleição e coroação de um rei e de
uma rainha negros.
Quase sempre as irmandades existentes nas igrejas de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos previam em seus compromissos a
eleição para os cargos de reis e de rainhas, além de direitos e deveres
inerentes aos mesmos. É o caso do compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário de Quixeramobim, em que, no artigo segundo, constava:
“haverão nesta irmandade rei e rainha...” e no artigo quarto: o irmão ou irmã
que for eleito rei ou rainha poderá servir por um anno (...) e pagará de jóia
tres mil réis.
222
Um aspecto que chama a atenção era a diferença entre os valores das
anuidades, o que de certa forma aponta uma hierarquia entre os irmãos, mas,
também, suscita a questão de como os negros particularmente os cativos
faziam para pagar as jóias que davam acesso aos cargos na mesa.
Certamente tinham que criar uma série de táticas para acumular esse
montante. Ao que parece, muitos senhores foram “enganados” por seus
espertos escravos de ganho; outros devem ter cedido aos convincentes apelos
de alguns cativos, apoiando-lhes na compra da jóia; enfim, é preciso considerar
que para reunir o dinheiro necessário, o escravo precisava negociar com os
senhores e outros sujeitos, o que gerava mais um campo para as
sociabilidades.
Dentre os cargos na confraria, ser rei ou rainha custava mais caro,
normalmente o dobro do cargo de juiz, por exemplo. Particularmente no caso
da irmandade de Quixeramobim, enquanto os outros irmãos pagavam
anuidade de trezentos e vinte réis, a “nobreza” tinha que contribuir com um
valor quase dez vezes maior. em em Fortaleza, o rei e a rainha da
Irmandade pagavam uma jóia (valor para ser admitido) superior a doze vezes
ao da entrada de um irmão comum.
222
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução n
°
. 678, de 16 de Outubro de 1854
(Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosario da cidade de Quixeramobim). In:
BARROSO José de Liberato. Compilação das Leis Provinciaes do Ceará. Rio de Janeiro:
Tipographia Universal de Laemment, 1863.
106
Art. 4 - O irmão que fôr eleito rei, e a irmã que fôr eleita rainha,
pagará cada um uma joia de oito mil reis, o juiz quatro mil reis, o
escrivão dous mil reis, cada mordomo mil reis, a juiza dous mil reis, a
escrivã mil reis; cada mordoma quinhentos reis, e isto mesmo
pagarão os que entrarem por devoção. A entrada de cada irmão será
de seiscentos e quarenta reis; e os annuaes trezentos e vinte reis.
223
Essa considerável diferença entre a Corte e os demais irmãos não
impedia um negro cativo de ser rei ou rainha; além disso, o esforço para se
ocupar tais cargos se justificava diante dos privilégios e atribuições que esses
reis e rainhas negros tinham e mesmo do reconhecimento pela sociedade
escravista na qual se inseria a irmandade, particularmente nos momentos
festivos em que a confraria participava ativamente, ou seja, primeiro domingo
de outubro ou no mês de dezembro (próximo ao Natal ou ainda no Dia de Reis,
em janeiro), sendo estes últimos períodos alternativos caso surgissem
inconvenientes que impedissem a execução da festa no dia oficialmente
previsto no compromisso.
Das festividades - Art 36. Na primeira dominga de Outubro de cada
anno se fará, com a devida pompa e solemnidade, a festa de N. S.
do Rozario; e quando por algum incoveniente não possa ter lugar
nesse dia, a meza transferirá para a primeira oitava do natal, ouvindo
o Parocho da freguesia.
224
Vale destacar que havia outros momentos (Natal e/ou Dia de Reis) e
espaços (Igreja Matriz) em que os negros realizavam suas festividades, como
se percebe através da informação publicada no jornal fortalezense Tribuna
Catholica, dando notícia que no dia 6 de janeiro ocorrera, “na cathedral” da
cidade, a festa que os “pretos” costumavam anualmente fazer, com missa,
cantos e música
225
, o que aponta possíveis desdobramentos de um costume
antes restrito ao mês de outubro, além de indicar que os irmãos do Rosário não
necessariamente ficavam limitados à igreja sede de sua confraria.
Ora, fazer uma festa de negros dentro de outra igreja que não a do
Rosário, não seria mais um indício de como práticas culturais negras eram
223
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 209, de de setembro de 1840
(Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosario dos Homens Pretos de
Fortaleza). In: BARROSO, José Liberato. Compilação ..., op. cit.
224
APEC. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do RosArio dos Homens
Pretos da Capital (1871), op. cit.
225
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Tribuna Catholica, 10 jan. 1869, p. 3, rolo nº. 91.
107
instrumentos para a conquista de territórios (Igreja Matriz) não oficialmente
reconhecidos como dos negros?
É bem verdade, porém, que o costume era a coroação de reis negros
na Igreja do Rosário. Uma passagem escrita por João Brigido no final do século
XIX ilustra, com ironia, uma dessas festas no âmbito da Irmandade do Rosário.
Mas, sua descrição deixa transparecer a autonomia dos confrades e mesmo o
poder da realeza negra, cuja chegada à Igreja do Rosário era anunciada com
toques de sinos e rufar de instumentos musicais (caixas). De acordo com esse
memorialista, havia o costume que permitia ao rei “um dos negros mais
influentes” o poder de libertar um preso. a rainha e sua comitiva eram
esperadas à porta da Igreja do Rosário pelo padre e outras autoridades
eclesiásticas com uma vasilha contendo água benta (caldeirinha) e hissope
226
a
fim de se abençoar a chegada da nobreza negra.
Os negros eram autonomos, uma vez por anno, - dia de Reis.
Um dos mais influentes envergava o manto, punha corôa e tomava o
sceptro, exercendo a realeza de papelão. A rainha e a côrte o
seguião á egreja do Rosario, e havia rufos de caixa, e repiques de
sino. O vigario, com o clero, vinha receber a comitiva, à porta da
egreja, de hysope e caldeirinha. Nesse dia, a pragmatica concedia
muitas regalias aos pretos, e não era uso apanharem. Ao contrario, o
Rei do Rosario tinha até a prerrogativa, concedida pela justiça, de
soltar um preso!
227
Apesar de João Brígido ver os reis negros como “realeza de
papelão”, a sua própria descrição permite que o fato seja percebido por outra
ótica: a de um negro (in)vestido de realeza, que se desloca em comitiva até a
cadeia, abre a cela e solta um preso; ou ainda a perspectiva de negros (e
brancos) que assistiam à cena de um rei negro (geralmente escravo) com
poder de dar a liberdade. Aí, certamente não estava um “rei de papel”, mas um
sujeito histórico capaz de inverter ainda que temporariamente a hierarquia
social. Pode-se perceber, ainda, o envolvimento de diversos tipos de sujeitos
na recepção da corte, cujo rei negro tinha o “poder” de dar a liberdade.
226
“Varinha de madeira com pêlos numa extremidade ou oca nos orifícios, que serve nas
igrejas para fazer aspersões de água benta”. Cf. LELLO, José; LELLO, Edgar. Lello Universal.
Dicionário enciclopédico luso-brasileiro em 4 volumes. v. 2. Porto: Lello & Irmão Editores,
s./d., p. 1232.
227
BRIGIDO, João. O Ceará (Lado comico) - Ad Ridendum. Algumas chronicas e episodios.
Fortaleza: Louis Cholowieçki, 1899, p. 119.
108
A festa, portanto, não era somente uma homenagem à
padroeira, mas, também, uma relação de troca, um espaço conquistado, onde
os negros desenvolviam práticas culturais próprias e assumiam uma posição
central na sociedade na qual viviam.
Por outro lado, a ocupação desse espaço (urbano) através das
festas de coroações não ocorria sem tensões e reclamações. Se alguns
habitantes da cidade de Fortaleza apreciavam um pouco de movimento, com
música, dança e bebida, outros tantos protestavam contra esses costumes de
festejar, inclusive dentro da igreja.
É incrível a facilidade com que se desrespeitam a Lei do silêncio de
1824 nesta provincia. Principalmente em dias de domingo (...). Tudo
isso se harmoniza admiravelmente com a profanação geral a que
tem chegado nossos templos preparados exatamente como casas de
bailes, o como casa do senhor. E não lhes falta nem os lustres de
cristal e a música fortemente ritimada pela retumbante batida das
caixas e zabumbas...Estúpida folia herdada dos tempos semi-
bárbaros da antiga colônia.
228
Essa crítica foi publicada num jornal católico, que se intitulava
órgão da “Associação de Instruções Religiosas de Fortaleza”, e demonstra,
desde o fim da década de 1860, um olhar de estranhamento alinhado com a
Igreja em perceber as festas como instrumentos de profanação e como
diversões grosseiras. Para os irmãos negros, certamente eram outros os
entendimentos da festa, e os “excessos” eram a vivência intensa daquele
momento.
Podia ser que essa festa de negros, ritmada com “retumbante
batida das caixas e zabumbas”, realmente incomodasse... Mas isso não fazia
parte da festa? Além do mais, é preciso considerar a participação de não-
irmãos nas coroações de reis negros. Paralelamente à festa do Rosário
ocorriam, por exemplo, congos e sambas (ou “batuques de viola”), práticas
festivas negras proibidas ou que deveriam solicitar autorização da polícia para
acontecer, como procedeu Benedicto, solicitando licença para apresentar seus
congos em público, entre fins de dezembro e início de janeiro.
229
228
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Tribuna Catholica, 11 ago. 1868, p. 3, rolo nº.
91.
229
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Lançamento de requerimentos e despachos.
23 dez. 1868. Ala 03, estante 44, livro 02, fl 14 v.
109
Em geral os congos se apresentavam em Fortaleza no período
natalino avançando a o Dia de Reis. Por outro lado, praticantes e
freqüentadores de congos e outros “brinquedos” sofriam tentativas de controle.
Isso está explícito em uma comunicação feita no mês de dezembro, do Chefe
de Polícia ao delegado de Fortaleza.
Ao delegado da Capital - Faça Vossa Mercê recolher a cadeia
publica os individuos que representarem os brinquedos - boi e
congos - se forem encontrados a qualquer hora dentro das ruas
desta cidade acima das confrontações do quartel de linha e beco
de São Bernardo. O Chefe de Policia.
230
Ora, sendo também o período natalino época de práticas festivas
negras outras, além das que ocorriam no âmbito da Igreja do Rosário, é
plausível considerar a mistura desses sujeitos e de seus espaços. A festa da
Irmandade não se restringia à Igreja, ao mesmo tempo que em frente desta
também se apresentavam os congos, o que era comum nas cidades onde
havia confrarias de negros.
231
Na festa de coração o negro era rei não somente de um espaço mas
também de uma espécie de território cultural; recebia reverências e era a
referência, pois para ele e sua corte real é que se voltavam os olhares, seja
dos “súditos” da irmandade, seja da gente da cidade. No caso de uma nobreza
cativa talvez isso valesse tanto quanto uma alforria e, de certa forma,
representava um momento de inversão simbólica da hierarquia na sociedade
escravista da qual forçosamente eram parte. Por vezes, somente cativos
podiam ser coroados reis e rainhas. No Crato, o compromisso de 1870 previa
dois núcleos: um composto por “homens e mulheres livres de todas as cores” e
outro composto apenas por “pretos escravos, com licença de seus senhores, e
dentre eles se comporá séqüito régio”.
232
230
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Lançamento de requerimentos e despachos.
27 dez. 1869. Ala 03, estante 44, livro 03, fl 77.
231
Ver: FROTA, José Tupinambá da. História de Sobral. ed. Fortaleza: Editora Henriqueta
Galeno, 1974, p. 530; MENEZES, Paulo Elpídio de. O Crato de meu tempo. 2. ed. Fortaleza:
Edições UFC, 1985, p. 26-29; PINHEIRO, Irineu Nogueira. Efemérides do Cariri. Fortaleza:
Imprensa Universitária do Ceará, 1963, p. 534-535.
232
o artigo desse compromisso previa que: “O sequito regio se comporá dos seguintes
empregados: rei, rainha, dous mestres de campo, um arauto e duas açafatas, que terão por
obrigação acompanhar a rainha. A eleição do rei e rainha pertencerá de direito ao segundo
núcleo da irmandade; os mestres de campos e arauto serão escolhidos pelo rei; o lugar das
alçafatas será conferido pela rainha, á quem lhe convier, d’entre as irmãs escravas”. Cf.
110
Mas, a solenidade de coroação de reis negros escravos também
indicaria uma espécie de reconhecimento dos preceitos católicos? Rodolfo
Theophilo conta que os “negros tinham essas majestades que de cetro e coroa
se apresentavam acompanhadas de todos os cativos de Fortaleza, no Dia de
Reis, na capela do Rosário a assistir a sua missa votiva”.
233
Missa votiva era uma oferenda a Deus feita pelos reis negros eleitos,
expressando, portanto, sua adesão (ou mesmo submissão) à Igreja. Por esse
olhar, estariam desempenhando o papel que lhes conferiu Nina Rodrigues,
para o qual as irmandades eram formas de controle social e as eleições dos
reis do Rosário artifícios dos senhores para controlar as comunidades de
origem africana e garantir a ordem.
234
o parece ter sido o caso em Fortaleza, onde boa parte dos irmãos
eram negros e negras livres, havendo ainda a possibilidade da participação de
irmãos de “outra cor (...) por devoção”
235
. O coroar-se rei na capital do Ceará
era mais a vivência de um momento verdadeiro de visibilidade social de um
pequeno grupo composto basicamente pelo rei, rainha, juiz, escrivão,
tesoureiro, procurador, mordomos, enfim, os “empregados da mesa”.
No entanto, esse grupo não tinha pelo menos oficialmente função
de controle sobre os demais negros. Ocupar um cargo hierárquico dentro da
Irmandade não gerava direito de dar ordens a cativos na cidade. Havia, sim,
um reconhecimento dessas figuras em torno das quais se dava a festa da
coroação, o que promovia a junção de gente variada; desde brancos
simpáticos à confraria até adeptos de outras práticas festivas negras, como
congos, sambas, maracatus, bumba-meu-boi.
Assim,
APEC, Fundo Palácio Episcopal do Ceará. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa
Senhora do Rosario dos Homens Pretos do Crato (1870). Ala 03, estante 47, caixa 02.
233
THEOPHILO, Rodolfo. O paroara. Apresentação de Otacílio Colares. Fortaleza: Secretaria
de Cultura, Desporto e Promoção Social, Fortaleza, 1974, p. 38.
234
Cf. RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 2. ed. Revisão e prefácio de Homero Pires.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. (No entanto, apesar de ver as irmandades
como forma de controle social, Nina Rodrigues defendeu a existência da ilusão da
catequese”, ou seja, atraz da ‘religião oficial’, subsistiram fortes elementos das religiões e
cultos que os negros trouxeram da África RODRIGUES, Nina apud RAMOS, Arthur
(Aculturação negra no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 7).
235
APEC. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos Homens
Pretos da Capital (1871), op. cit., artigo 2º.
111
As irmandades eram lugares de convivência entre os poderes
públicos, privados e eclesiásticos e os grupos de africanos e seus
descendentes, a despeito dos inúmeros atritos existentes no seu
interior (...) configuravam-se (...) espaços de junção (...) entre
escravos, forros, negros livres, e os senhores e administradores da
sociedade colonial, sendo especialmente propícios para o
desenvolvimento de produtos culturais resultantes do encontro
desses diversos grupos.
236
Com efeito, se os negros fossem eles cativos ou livres
acompanhavam a missa e a festa de coroação, era mais porque ali se
constituía espaço para encontro de gente voltada a práticas culturais festivas
de raízes africanas, como os congos. Daí muitos negros se fazerem presentes
ao evento, pois, ainda que não pertencessem à irmandade, poderiam assistir à
coroação de um companheiro que também era “Rei Congo”, muitas vezes o
“dono” de um dos “folguedos” de mesmo nome, que se apresentavam em
praças e terrenos baldios da cidade, representando cenas da história africana.
Em geral os negros organizadores dos congos eram conhecidos na
cidade e isso podia ajudar na sua eleição para rei da irmandade, considerando
sua capacidade de agregar pessoas, arrecadar contribuições, ter contato com
autoridades ainda que fosse o delegado para quem solicitava autorização
para suas apresentações.
Portanto, o Rei (Congo) da irmandade não participava somente na
hora da festa; também podia estar presente desde a feitura do estatuto que iria
reger a confraria. É o que se percebe no compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário da povoação da Lapa, na freguesia de Sobral, onde, ao
final, aparecem os signatários do documento. Entre as assinaturas está a
seguinte: “A rogo do Rei Congo Cosme Alves Albuquerque”.
237
Vale destacar que o negro Cosme era analfabeto, sendo sua
assinatura a rogo, ou seja, alguém assinava por ele, denominando-o
naturalmente “rei congo”, o que aponta certa normalidade nesse tratamento e,
portanto, na inserção da imagem de um monarca negro no cotidiano de uma
sociedade escravista. Essa aceitação corrobora-se ao ser analisada pela ótica
236
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista. op. cit., p. 233.
237
APEC, Fundo Palácio Episcopal do Ceará. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa
Senhora do Rosario dos Homens Pretos da povoação da Lapa (1868). Ala 03, estante 47,
caixa 02.
112
jurídica, onde é comum na assinatura a rogo “que seja feita na presença de,
pelo menos, duas testemunhas”.
238
Portanto, a presença dos reis congos nas irmandades do Rosário dos
Homens Pretos indica que essas confrarias não eram simples espaços de
acomodação onde os negros aceitavam passivamente as influências culturais
dos senhores. Cultuava-se Nossa Senhora, mas, ao mesmo tempo, abria-se a
porta da igreja para personagens que entre os negros da cidade simbolizavam
uma manifestação ancestral africana.
A partir do que foi colocado, uma questão que desponta é a ligação
entre a Irmandade do Rosário como espaço (re)inventado pelos irmãos
(“homens pretos”) incluindo-se a festa comandada pelos reis negros
(congos) –, e os motivos que levaram à decadência dessa instituição, apesar
de ela ter sido um instrumento de resistência de negros cativos e/ou livres na
sociedade na qual estavam inseridos.
2.1.2 – O Enfraquecimento da Irmandade do Rosário de Fortaleza
Ao que parece, um fator importante que contribuiu para o
enfraquecimento dessas organizações foi uma crítica sistemática da Igreja às
práticas religiosas das confrarias, que representavam, vale lembrar, um
catolicismo leigo mas, também, oficial, que as irmandades funcionavam
seguindo estatutos transformados em leis provinciais.
Vale ressaltar, no entanto, que os compromissos legalizavam a
irmandade, mas não os rituais que acabavam se desenrolando através da
festa; e esta era olhada com preconceito pela Igreja. Nesse sentido, o
“processo de romanização”, política empreendida pela elite eclesiástica
imperial tentando reformar a vida religiosa católica, afetou o catolicismo
praticado por descendentes de africanos. Além do mais, sendo um movimento
reformador que pretendia tornar o catolicismo no Brasil mais ligado às diretrizes
de Roma, ou seja, à autoridade do papa; envolveu um crescente número de
238
NÁUFEL, José. Novo Dicionário Jurídico Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
134.
113
bispos em defesa de uma maior autonomia do poder espiritual perante as
autoridades imperiais e o poder dos leigos reunidos em irmandades.
239
Em tal contexto, uma festa de coroação de reis negros dentro da Igreja
do Rosário era vista como “desvio” das práticas católicas, levando à retirada
dos cargos de rei e rainha na Irmandade do Rosário dos Homens Pretos da
Capital, durante a reformulação do compromisso na década de 1870.
De acordo com o pensamento católico conservador
240
, o
comportamento dos irmãos fora da Igreja do Rosário também poderia ser
reprovável. Rodolfo Theophilo, lembrando-se do tempo em que assistia à missa
dominical na Igreja do Rosário de Fortaleza, relata que no dia 6 de janeiro (Dia
de Reis) havia missa com a presença do rei, rainha e sua corte.
O rei era um preto já idoso, de manto, sceptro e corôa. A rainha, uma
escrava, meio velha, acompanhada de duas damas de honor. Na
Capela-mór estava armado o throno, em que se deviam sentar suas
majestades. Logo que chegava o rei com sua corte, entrava a missa,
que era cantada, com repiques de sinos e foguetes. (...) Acabada a
missa, sahia o cortejo real de cidade a fóra a o palacio, em que
passava o resto do dia a comer, beber, a dansar, festejando as
poucas horas de liberdade que todos os annos lhe concediam os
senhores da terra que primeiro libertou os seus escravos.
241
Certamente era inaceitável, sob a ótica conservadora católica, uma
missa com a presença de reis negros encenando uma figura monárquica
africana –, seguida de um barulhento cortejo da realeza negra pelas ruas da
cidade, indo para uma casa (palácio) onde aconteceria uma festa com comida,
bebida, música e danças de matrizes africanas.
Segundo Eduardo Campos, quem detectou esses momentos
mescladamente “religiosos e profanos” na festa da Irmandade do Rosário, na
década de 1870, foi João Severiano da Fonseca, que colheu “impressões de
nossa gente, para a obra que fez publicar, anotando entre outras coisas a
seguinte:
239
Segundo Ronaldo Vainfas, a romanização “Requereu um grande investimento na formação
moral e intelectual do clero, que substituiria o antigo, liberal e regalista e tido como
despreparado, para, através dele, formar católicos no modelo da Igreja tridentina (seguindo
as determinações do antigo Concílio de Trento, 1543-63)”. Cf. VAINFAS, Ronaldo (Org.).
Dicionário do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 660-661.
240
Também conhecido como “ultramontanismo”, teve no Seminário da Prainha, em Fortaleza,
seu grande foco irradiador no Ceará. Cf. MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. O trono e o
altar. As vicissitudes do tradicionalismo no Ceará (1817-1978). Fortaleza: BNB, 1992, p. 94.
241
THEOPHILO, Rodolfo. Scenas e Typos. Fortaleza: Typ. Minerva, 1919, p. 35-36.
114
São um mixtofório do ritual dos africanos: mascarados, bandos,
simulacros de combates, representações de mistérios, etc... tudo
entremeado de cantos e dançados que se sucedem com poucos
intervalos durante dias e às vezes semanas; percorrendo os festeiros
as ruas desde antes do amanhecer até à noite, sempre cantando e
dançando, indo buscar às casas, – um por um, todos os principais da
festa, juízes e juízas, mordomos e aias, etc...
242
Em meados da década de 1870, todos os atos e funções na
Irmandade do Rosário da capital passaram a ser presididos pelo juiz (ou juízes)
da confraria. Embora, a eleição e a coroação rei e rainha negros dentro da
irmandade tenha sido suprimida do novo compromisso, a corte negra continuou
marcando presença na festa do Rosário.
Tem-se um reflexo da “romanização”, mas, também, indícios (na
fonte supracitada) da resistência de elementos negros, como os “simulacros de
combates” nas festividades, ou seja, a representação de uma nobreza africana
através dos congos (encenavam antigas guerras africanas entre o Rei do
Congo e a Rainha de Angola). Além disso, essa função chegava a durar dias,
tempo no qual os negros ocupavam ruas e praças, dançando e cantando a sua
história, enfim, conquistando lugares diversos na cidade através da festa, e
isso ia de encontro aos preceitos conservadores da Igreja.
Ainda ligado ao aspecto da “romanização”, outro fator que contribuiu
para o enfraquecimento das confrarias em Fortaleza foi o apoio dado pela
Igreja às Conferências Vicentinas
243
, associações religiosas organizadas de
acordo com as diretrizes dos padres lazaristas franceses e que, de certa forma,
242
FONSECA, João Severiano, 1881, p. 136 apud CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro. As
irmandades religiosas do Cea provincial. Apontamentos para sua história. Fortaleza:
Secretaria da Cultura e Desporto, 1980, p. 38.
243
Fundada em Paris a 23 de abril de 1833 por um grupo de jovens universitários liderados por
Frederico Ozanam a organização adotou São Vicente de Paulo (1581-1660) como patrono,
inspirando-se no pensamento e na obra daquele santo, conhecido como o Pai da Caridade
pela sua dedicação ao serviço dos pobres e dos mais necessitados. A primeira Conferência
de São Vicente de Paulo no Ceará foi fundada na cidade de Aracati, em 8 de dezembro de
1879, sob invocação de São Francisco de Assis; no ano de 1882 foram criadas Conferências
Vicentinas em Fortaleza, no Crato, em Baturité e outra em Aracati; em 1883, surgiu a de
Barbalha; no ano de 1884, em Pereiro, Jaguaribe Mirim, Icó, Limoreiro, Arronches e outra no
Crato; no ano de 1885, em Sobral, Trairi, Juazeiro, Quixadá, Uruburetama, Iguatu; Redenção
(Acarape), Pereiro, Palma; no ano de 1886, em Messejana, Sobral, Baturité, Morada Nova,
Jardim, Goianinha e Maranguape; no ano de 1887, em Cachoeira, Araripe (Brejo Seco),
Cascavel; no ano de 1888, em Maranguape, Aquiraz, Juazeiro, Aurora (Venda) e Pacoti
(Pendencia). Cf. STUDART, Guilherme (Barão de). Datas e factos para a História do Ceará.
Tomo II. Fac-Símile edição de 1896. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p.
268, 292, 293, 291, 308, 321, 331, 332, p. 334, 335, 336, 340, 341, 343, 345, 352, 354, 355,
356, 364.
115
atuaram substituindo as irmandades no trabalho social em várias áreas: saúde,
solidariedade, apoio a enterramentos. Vale lembrar que a prática da caridade
“a rainha das virtudes” segundo a Encíclica Rerum Novarum
244
, alinhava-se
com a doutrina conservadora da Igreja.
Das dezenas das organizações vicentinas no Ceará, quase sempre
fundadas sob a invocação de um santo ou santa, somente uma – a de Sobral
fazia referência à Nossa Senhora do Rosário, entidade sob cuja égide os
negros tempos realizavam festas reprováveis aos olhos dos católicos
conservadores ou/e à intelectualidade cearense. Geralmente compostas por
grupos pequenos e atuantes, a partir da década de 1880 as Conferências
Vicentinas atuaram intensamente na capital
245
do Ceará, em parte por conta da
aproximação com setores da elite intelectual. Foi o caso da fundação da
“Conferencia de S. Vicente de Paulo sob a invocação do Sagrado Coração de
Jesus. (...) Tendo tido por presidentes o Dr. Guilherme Studart (1885), Antônio
Bezerra de Menezes (1888) e o Dr. Antônio Epaminondas da Frota (1889)”.
246
Ao passo em que se desenvolvia o trabalho social voluntário (e de
caráter caritativo) vicentino, crescia a dificuldade dos irmãos na arrecadação de
esmolas (vistas como práticas indesejadas no espaço público) para atos das
irmandades em Fortaleza. Em 1881, na tentativa de limitar a coleta de esmolas
na cidade, o bispo D. Luís Antônio dos Santos determinou o seguinte:
Não se deve ser tolerado o abuso que se vem introduzindo nesta
Capital de julgar-se qualquer devoto autorizado a pedir esmolas
pelas ruas, figurando-se pertencer a confrarias que não existem,
chamo a atenção do Reverendo Cura da que permita que em
sua freguesia, peçam esmolas revestidos de opas e usando de
bolsas individuos que pertençam a confrarias cujos compromissos
foram aprovados canonicamente, não podendo ter cada irmandade
mais de uma bolsa percorrendo as ruas nos limites de sua
freguesia.
247
244
Cf. Encíclica Rerum Novarum. 15 maio 1891. op. cit.
245
Em Fortaleza foram fundadas várias conferências de São Vicente de Paulo: em 1882,
fundou-se a primeira conferência vicentina sob a invocação de São José; em 1883, sob a
invocação de São Luiz; em 1884, sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo; em 1885,
surgiram várias, sob as invocações do Sagrado Coração de Jesus, de São Benedito, do
Santíssimo Coração de Maria, da Imaculada Conceição; em 1887, sob a invocação de São
Tomás de Aquino; em 1888, sob a invocação de São Leão. Cf. STUDART, Guilherme. Datas
e factos para a História do Ceará. op. cit., p. 294, 308, 331, 336, 337, 354, 355.
246
STUDART, Guilherme. Datas e factos para a História do Ceará. op. cit., p, 336.
247
SHEAF. Fundo Registro de Provisões. Officios diversos do bispo as auctoridades
diocesanas. 27 ago. 1881. Livro 137, fl. 39.
116
Há que se considerar que o costume de se recolher donativos se
relacionava ao modelo lusitano dos festejos, mas, também, ao mundo
sociocultural centro-africano; no Ceará, seria plausível pensar numa identidade
étnica banto ligada ao costume de se coletar esmolas destinadas aos reis
negros. Marina de Mello e Souza entende que a tradição de se enviar tributos
aos reis e chefes tribais na África Centro-Ocidental foi incorporada à festa
religiosa (do Rosário), “durante a qual relações internas à comunidade negra
eram simbolizadas e laços sociais reforçados”.
248
De qualquer forma, um dos reflexos dessa inibição das esmolas como
fonte de recursos foi a inconstância nas missas de Natal no Rosário e até
mesmo sua suspensão
249
. Em meados da década de 1880, mesmo no mês
(outubro) dedicado à Nossa Senhora do Rosário, passaram a rarear as missas
e novenas realizadas na sede da confraria. Tais homenagens, realizadas em
igrejas de outras denominações
250
, de certa forma, apontam a tendência de
separação entre culto à santa e a Irmandade do Rosário. O enfraquecimento e
mesmo situação de abandono das irmandades, bem como o apoio do Clero às
Conferências Vicentinas o informados através de uma Circular do bispo D.
Joaquim respondendo à consulta do representante de Roma no Brasil:
Ao Internuncio Apostolico no Brasil, em 31 de Abril de 1890.
Palácio Episcopal de Fortaleza. Em satisfação ao exigido por V. Ex.
Rv., na circular de 30 do corrente mez tenho a honra de informar que
o estado actual das irmandades e confrarias desta diocese não tem
importancia alguma, pois que acham-se quase em todas em
abandono e como que de fato dissolvidas. Nenhuma delas possui
bens de subido valor, e por isso não poderão mover qualquer
questão. As associações religiosas que mais florescem nesta
diocese, animadas pelo Bispo Diocesano e pelo clero, são as
conferencias de São Vicente de Paulo, que procuram viver em
harmonia com os ensinamentos catholicos.
251
248
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista. op. cit., p. 211.
249
“Missa do Rosario - Previne-se aos devotos desta capital, que não havera missa de natal na
egreja do Rosario, por que so poderia haver correndo a bolsa ás esmolas, como sempre se
fez, pois foi prohibido pelo delegado e o Sr. Bispo, a pedido do capellão Macahyba, que deixa
dizer a missa de sua obrigação para dizer no Allagadiço, como é de costume pois há quatro
annos e capellão e ainda não celebrou uma missa de natal como os outros capellões. (...).
Um irmão”. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 23 dez. 1887, p.
3, rolo nº. 202.
250
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Cf. Jornal Pedro II. Fortaleza, 02 out. 1887, n. 79, p.
1, rolo nº. 325 e Jornal Cearense. Fortaleza, 30 set. 1888. p 1, rolo nº. 32 (comemorações do
mês do Rosário, na Igreja Sagrado Coração de Jesus); Jornal Cearense. Fortaleza, 01 out.
1890, p. 1, rolo nº. 35 (comemorações do mês do Rosário, na Igreja da Prainha).
251
Officio ao Internuncio Apostolico do Brasil. In: RODRIGUES, Carlos Moisés da Silva. No
tempo das irmandades. Cultura, identidade e resistência nas irmandades religiosas do
117
No entanto, mesmo com a diminuição do número de irmãos, sofrendo
o controle eclesiástico conservador e praticamente sem poder coletar esmolas,
a Irmandade do Rosário de Fortaleza ainda possuía instalações, prédios para
foros (aluguéis) e terrenos que, com o crescimento urbanístico da capital
cearense nas décadas finais do século XIX, passaram a ser cada vez mais
valorizados. Por outro lado, isso acabaria levando ao envolvimento da confraria
em várias contendas a fim de conservar tais bens.
Foi o caso da disputa deflagrada em outubro de 1890, quando o
comendador Francisco Coelho da Fonseca
252
, pretendendo anexar algumas
propriedades da Irmandade do Rosário, solicitou ao Juízo da Provedoria
253
a
nomeação de um procurador para representá-la no litígio. Suspeitosamente,
escolheu-se como procurador, Francisco Nunes, empregado de uma casa
comercial pertencente ao genro do comendador Coelho.
Ora, segundo o estatuto da Irmandade, confeccionado na época do
Império, cabia exclusivamente aos confrades o direito de elegerem seus
procuradores. Já o regime republicano se abstém da responsabilidade sobre as
confrarias, passando-as diretamente aos bispos. Dessa forma, o juiz provedor
nunca teve competência para nomear cargos que ocupavam a mesa das
confrarias.
O resultado das negociações entre procurador e comendador se
pode deduzir. Sobre tais irregularidades praticadas contra o patrimônio da
Irmandade do Rosário de Fortaleza, o jornal Libertador publicou a irônica
denúncia:
Patrimonio de N. Senhora do Rosario
Ceará (1864-1900). Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica, São Paulo,
2005, p. 69.
252
Possuía a distinção honorífica de “comendador”, era comerciante, antigo proprietário de
escravos e possuía influência política junto às autoridades da antiga Assembléia Provincial.
Cf. Carlos Moisés Rodrigues (No tempo das irmandades, op. cit., p. 237, 238), que, ao
estudar essa questão da disputa, defende a hipótese de que o interesse de Francisco Coelho
da Fonseca estava além das terras; haveria na irmandade ex-escravos sobre os quais o
comendador queria manter o controle, ainda que usando laços patrimonialistas.
253
Órgão responsável pela tomada de prestação de contas que deveriam ser feitas pelos
tesoureiros das irmandades. Com o advento da República, as irmandades não mais
precisavam da autorização do Governo para funcionar, passando a responder diretamente
aos bispos –tanto no espiritual como no temporal” - das respectivas localidades onde essas
confrarias estavam instaladas. A função do juiz da provedoria passou ser apenas o simples
registro dessas irmandades. Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Verdade.
Fortaleza, 5 out. 1890, p. 5, rolo nº. 90.
118
é conhecida a demarcação por meio da qual o comendador
Francisco Coelho conseguiu fazer um excellente acordo com a Santa
sendo ella em tudo representada pelo Sr. Francisco, empregado da
casa commercial do Sr. Luiz Cunha, genro do comendador Coelho,
como se tem lido no Libertador. O negocio foi o melhor possivel
porque as terras são as mais desejadas e N. Senhora do Rosario
pode perder ou diminuir seu patrimonio (...).
A Moralidade.
254
Aparentemente, o apoio do Libertador à irmandade em defesa de seu
patrimônio se dava por conta da “moralidade”, de se fazer valer os direitos dos
cidadãos (irmãos do Rosário). Por outro lado, que se considerar o interesse
político de alguns redatores, como João Brígido (antigo liberal pompeu), que
aproveitavam a contenda para criticar o governo local naqueles tempos de
transição do Império para a República.
Importante destacar que os irmãos do Rosário reagiram contra tais
negociações não autorizadas, divulgando seu posicionamento também em
outros jornais, como o católico A Verdade, e ratificando o que estava previsto
nos estatutos, ou seja, que a mesa da confraria de Nossa Senhora do Rosário
de Fortaleza era a “unica e exclusiva administradora dos bens do patrimonio da
mesma”.
255
Declarava-se ainda:
Que pelo artigo 20 § 3 do seu compromisso ao thesoureiro, de
sua exclusiva eleição, cabe arrecadar amigavel ou judicialmente as
dividas de fôros e rendas do patrimonio de Nossa Senhora do
Rosario e da irmandade.
Que por consequencia não consentira que o Sr. Francisco Nunes
ou qualquer outro procurador nomeado pelo juizo da provedoria
arrecade somma alguma a esse titulo, pois não tem caracter legal.
Que não reconhece, outro sim, o acto pelo qual dito Sr. Nunes fez
em juizo um accordo com o Sr. Francisco Coelho da Fonseca,
cedendo lhe terras do patrimonio de Nossa Senhora, visto que a
mesa regedora é quem é apta para tratar de assumptos taes, e
quando fosse alguem por ella, seria um preposto de sua escolha,
alem de que dito Nunes para o caso expresso desse convenio tinha
a inhabilitação e impedimento legal de ser empregado de um genro
do dito commendador Coelho.
256
254
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 08 out. 1890, p. 3, rolo nº.
203.
255
Esta provisão estava no compromisso manuscrito em 1871, e que foi transformado na Lei
Provincial nº. 1538, de 23 de agosto de 1873. Cf. BPGMP, Setor de Obras Raras Colleção de
actos legislativos da Provincia do Ceará promulgados pela respectiva Assemblèa no
anno de 1873. Fortaleza: Typographia Constitucional, 1874.
256
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Verdade. Fortaleza, 12 out. 1890, n. 12, p. 4,
rolo nº. 90. Esse mesmo texto foi publicado em 6 out. 1890, no jornal “Libertador”. No dia
seguinte, outra publicação ratificando que somente os componentes eleitos para a mesa
119
Nessa confusão de interpretações legislativas, o governo estadual
nomeou uma comissão a fim de se chegar a uma solução sobre a área em
litígio. Considerando as dificuldades em estabelecer os marcos limítrofes das
terras da Irmandade, e que estas se misturavam com construções que
pertenceriam ao comendador, o engenheiro (Adolfo Herbster) membro da
comissão percebendo a dificuldade de se enquadrar aquele espaço em um
plano cartesiano propôs a substituição da antiga linha divisória por outra em
“zig-zag”, contornando os quarteirões “edificados ou por edificar” de forma que
isso seria de “grande vantagem para ambas as partes”.
257
Entretanto, a Irmandade do Rosário teve seu patrimônio lesado,
perdendo, ainda, alguns foros (aluguéis). Além disso, o comendador Francisco
Coelho levantou a questão de que seriam distintos os patrimônios da Santa
(Nossa Senhora) e o da irmandade cujos bens se reduziriam “a uma capela no
sentido juridico do vocabulo (...) e a pretensão da Irmandade a administração
do patrimonio é tão exorbitante que se torna risivel”.
258
Ao que parece, o enfraquecimento da confraria era estratégia para a
desapropriação de seus bens. Nesse contexto, Edison Carneiro defende que o
enfraquecimento das irmandades do Rosário esteve ligado à evolução urbana,
que, por sua vez, gerava outras dimensões sociais onde atuavam os negros. E
isso valia tanto para os escravos que trabalhavam como “negros de ganho” e
que se distanciavam dos senhores, criando oportunidades para se tornarem
elementos participantes da vida nas cidades; como para os negros livres, que
tinham nas cidades múltiplos caminhos para a ascensão social, ainda que
“misturando-se às camadas pobres das cidades e participando, ombro a
ombro, do seu incerto destino”.
259
Além disso, como destaca Hugo Fragoso, estudando a Igreja Católica
no Brasil da segunda metade do XIX, a Igreja em sua relação com o povo
poderiam administrar os bens da confraria e que os irmãos desconheciam o acordo entre
Francisco Coelho e Francisco Nunes. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador.
Fortaleza, 7 out. 1890, p. 3, rolo nº. 203.
257
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 11 out. 1890, p. 3, rolo nº.
203.
258
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 14 out. 1890, p. 3, rolo nº.
203.
259
CARNEIRO, Edison. Ladinos e crioulos. Estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1964, p. 90.
120
continuava predominantemente uma “Igreja dos brancos” e a concepção de
“Povo de Deus” acompanhava o conceito de “gente brasileira” que ainda era
fundamentalmente “gente branca”.
260
E, de outro lado, o processo de ‘romanização’ da Igreja envolve
também um aspecto de ‘europeização’ da instituição eclesiástica,
com a conseqüente rejeição, em grande parte, dos valores culturais
negros e indígenas. Podemos dizer que, no interior da Igreja, negros
e índios não conquistaram ainda plenamente o título de ‘Povo de
Deus’. Os negros, embora se desenvolva pouco a pouco a
consciência de sua ‘brasilidade’, continuam ainda dentro da Igreja
com uma certa marca de oriundos de um ‘povo infiel’.
261
Assim, as manifestações culturais negras da Irmandade do Rosário
tendiam a ser esvaziadas pelo “processo romanizador” e as perdas
patrimoniais dos irmãos não preocupavam a Igreja por não implicarem em
prejuízos materiais à instituição. É nesse contexto, portanto, onde predominava
a rejeição da Igreja em relação à cultura negra que, a partir da década de 1870
(fim da eleição de reis e rainhas que comandavam as festividades na
confraria), diminuiu o interesse dos negros pela Irmandade do Rosário da
Capital.
Por outro lado, o fim da coroação não impediu que os irmãos
continuassem organizando práticas festivas (fora do espaço da Irmandade) que
refletissem manifestações culturais negras. Era o caso do “preto Joaquim
Xavier, procurador
262
da Irmandade do Rosário e embaixador
263
de um dos
autos de rei congo que se apresentavam em Fortaleza, como se anunciava em
jornais, divulgando os principais atores (Joaquim Xavier, por exemplo), bem
como, “preços e horas de costume”
264
260
FRAGOSO, Hugo. A Igreja na formação do Estado liberal. In: BEOZZO, José Oscar (Org.).
História Geral da Igreja na América Latina. Tomo II/2, 3. ed. Petrópolis: Edições Paulinas,
1992, p. 144.
261
FRAGOSO, Hugo. A Igreja na formação do Estado liberal, op. cit., p. 144.
262
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 3 jan. 1890, p. 2, rolo nº.
201.
263
Cf. NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. 2. ed. Fortaleza: Edições UFC/PMF, 1980,
p. 128.
264
BPGMP, cleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 8 jan. 1890, p. 2, rolo nº.
35.
121
Ao ser colocado como personagem de destaque nos congos, Xavier
representava uma possibilidade de o negro exercer suas práticas culturais em
outro espaço que não o da irmandade. Além disso, nota-se a capacidade de
trânsito social desses sujeitos históricos. Em um momento, Joaquim Xavier
representava os interesses da irmandade perante a Igreja ou ao Estado; noutro
exercia um papel importante nos autos de rei congo, não como um dos
atores principais, mas, também na organização do evento (preparo do local;
autorização da polícia; divulgação em jornais; cobrança de ingressos).
Enfim, ante o exposto, é possível perceber que vários fatores o
conservadorismo católico, a “romanização”, a atuação das Conferências
Vicentinas, o preconceito contra manifestações festivas de matriz africana, a
ambição em tomar o patrimônio da irmandade que se valorizava com o
crescimento urbano de Fortaleza, um Estado republicano pouco interessado no
negro, contribuíram para o enfraquecimento da Irmandade de Nossa Rosário
enquanto espaço para a cultura e para a sociabilidade dos negros em
Fortaleza.
Apesar de tudo, persistia uma cultura festiva negra na cidade, onde
novos espaços eram criados ou ampliados de forma que muitos irmãos e ex-
irmãos migraram de vez para manifestações em outras áreas públicas (congos
em praças e terrenos baldios) e privadas (sambas em casas) da cidade.
Se não mais havia a coroação de reis e rainhas dentro da Igreja do
Rosário, na frente da mesma é que os negros também dançavam e cantavam
no Dia de Reis ou noutras datas escolhidas.
Não por coincidência, nas últimas décadas do século XIX surgem
grandes encenações dos autos de rei congo em Fortaleza. Uma diferença é
que agora os negros não pagavam jóias e anuidades para terem um rei, sua
corte e sua história. Ao contrário, cobravam para que o povo da cidade
assistisse às suas apresentações.
122
2.2 - Autos de Rei Congo e Outras Encenações Populares
Aninha Gata foi uma das últimas rainhas negras da Irmandade
do Rosário de Fortaleza. Era proprietária de uma pequena quitanda na Rua das
Flores, entre as ruas Major Facundo e Boa Vista. O apelido “Gata”, na verdade,
vinha de sua zanga com as provocações dos moleques que “miavam” perto
dela. Respondia com desaforos e pedradas. Certa vez, “queixou-se ao então
delegado de polícia da capital, major Pedro de Araújo Sampaio, alegando ter
sido Rainha do Congo e o ser possível sujeitar-se às molecagens da
garotada, sobretudo quando, aos domingos, ia à missa na Sé”.
265
Por conta disso, o delegado mandou posicionar dois soldados
em frente à Igreja com ordem de prender quem molestasse a “negra velha”.
Aninha Gata, sabendo que seu pedido fora atendido, chegou para a missa de
domingo com certo ar de vaidade. A despeito da presença da polícia, a
meninada começou a miar, provocando uma correria dos policiais atrás dos
pequenos transgressores, sob os protestos de Aninha Gata agitando o guarda-
sol e gritando aos policiais: “- prenda!...prenda!”
266
Além da situação cômico/dramática, o que pode ser percebido nessa
passagem são reminiscências sobre um costume de negros em Fortaleza: a
eleição e coroação de reis e rainhas – que por vezes também eram reis congos
no âmbito da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Apesar da extinção
dessa prática na década de 1870, é possível notar que a antiga “corte” negra
ainda mantinha sua majestade. Nos dias da semana, Aninha Gata tinha seu
próprio negócio onde também tecia relações sociais e, aos domingos,
freqüentava a missa na Igreja Matriz da cidade. Em todos esses momentos e
espaços agia com orgulho e solenidade coerentes com sua história de vida, o
que respaldou a reclamação junto à autoridade policial para que tomasse
providências contra o desrespeito a sua figura de rainha negra.
265
BARROSO, Gustavo. À Margem da História do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária do
Ceará, 1962, p. 374. A descrição de Gustavo Barroso se encaixa no início da década de
1880, quando Pedro de Araújo Sampaio exerceu o cargo de delegado de polícia de
Fortaleza. Cf. Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Fundo Secretaria de Polícia do
Ceará. Ala 03, estante 46, caixa 40, livro nº. 17 (Termo de bem viver, 1881); Ala 02, estante
27, livro nº. 264 (Registro de officios a diversas autoridades, 1880-1885).
266
BARROSO, Gustavo. À Margem da História do Ceará, op. cit., p. 374.
123
Ao que parece, foi justamente essa valorização dada pelos negros a
sua própria cultura que possibilitou constantes reelaborações de práticas
festivas em que uma realeza negra estava presente. O fim da festa de
coroação de reis negros no âmbito da confraria do Rosário acabou contribuindo
para ressaltar outros aspectos dessa manifestação cultural, dentre eles a
encenação de antigos eventos ocorridos na África, como as guerras congo-
angolesas. Eram as chamadas “apresentações de congos”.
Acontecia que, durante a coroação de reis negros nas irmandades do
Rosário, os “súditos” iam buscar processionalmente seus reis e rainhas. No
trajeto de ida e volta, o cortejo executava coreografias, jogos de habilidade e
simulação de antigas guerras ocorridas na África, incluindo-se o choque de
armas brancas (espadas). Após a coroação, o cortejo régio regressava às
sedes, casas alugadas ou cedidas, onde havia festa com abundância de
comida e bebida, música, cantorias e danças.
267
Contraditoriamente, fora da Igreja é que a essência da coroação se
colocava em relevo, pois o interesse da maioria dos participantes estava na
festa que o evento envolvia. Talvez por isso, o fim da coroação de reis na
Irmandade tenha favorecido desdobramentos desse costume em préstitos
(desfiles), autos guerreiros e “autos de natividade”
268
que foram incorporando
cantos e danças independentes daquela antiga manifestação cultural dos
irmãos do Rosário.
Os maracatus, como exemplo de préstitos, ressignificaram o enredo
da coroação de reis negros dentro de uma irmandade católica e acrescentaram
ao cortejo novos motivos coreográficos, estandartes, músicas e outros
elementos simbólicos como a “calunga”, que tem como uma de suas principais
dimensões a representação da morte (transição) diferentemente da morte cristã
(espera para a ressurreição), fazendo transparecer um “outro sagrado”, como
se poderá observar melhor no terceiro capítulo deste trabalho.
267
Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário de folclore brasileiro. 11 ed. revista, atualizada e
ilustrada. São Paulo: Global, 2002; MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares no
Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002; TINHORÃO, José Ramos. Os
sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Art Editora, 1988.
268
Essa expressão aparece segundo Edison Carneiro (Folguedos tradicionais. Apresentação de
Vicente Sales. 2. ed. Rio de Janeiro: FUNARTE/INF, 1982, p. 135) para se referir às
encenações anunciadoras do nascimento de Jesus Cristo; o autor também destaca que
pastorinhas, pastoris e pastoral são formas diversas do mesmo “baile hierático” para se
referir a manifestações de caráter sagrado.
124
No que se refere aos autos guerreiros e de natividade, parece haver
certos embaraços nas referências a esses desdobramentos e às
nomenclaturas que eles receberam: congos, congadas, embaixadas, reisados,
guerreiros, pastorinhas, pastoris, ranchos, caboclinhos, fandangos, cheganças,
além de muitas outras denominações que poderiam ser aqui elencadas.
Deve-se considerar ainda que as profusões dessas denominações são
intensamente autônomas e variáveis e, por vezes, desorientam aqueles que se
propõem a estudá-las. Além do mais, a por uma questão de sobrevivência,
são manifestações que facilitam o intercâmbio entre temas, situações e
personagens. Por exemplo, a uma apresentação de reisado podiam se juntar
participantes de um auto de rei congo.
Mário de Andrade observou que os nomes atribuídos aos “folguedos
populares” eram tão reduzidos e repetidos que, freqüentemente, levavam a
confusões e obrigavam os pesquisadores a rodeios e a circunlóquios
dispensáveis sob outras condições. Assim, tentando compreender essas
manifestações culturais elaborou o conceito de “danças dramáticas” para se
referir aos bailados coletivos que obedeciam a um tema tradicional e
característico, bem como respeitavam a execução de certas peças musicais e
coreográficas.
269
Para Edison Carneiro, a expressão “dança dramática” seria enganosa
por se amparar em uma teoria que não tinha a universalidade proposta por
Mário de Andrade. Sem querer diminuir o valor do entendimento empírico
dessas manifestações culturais, mas, justamente para tentar melhor
compreendê-las nas suas mais diversas dimensões, Carneiro propõe uma
sistematização dessas “representações populares” a partir de quatro
“inspirações”: a luta contra o infiel (cavalhadas de mouros e cristãos,
cheganças de mouros, congadas do Centro-Sul), a trágedia do mar (cheganças
de marujos, marujada, nau catarineta), o nascimento de Cristo (reisados,
guerreiros, pastoris) e, por fim, morte-e-ressurreição (congos, cucumbis,
caboclinhos).
270
As três primeiras “inspirações” envolveriam temas de interesse
europeu sendo que, em boa parte, os autos em que se transfiguraram
269
Cf. ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas no Brasil. 3 tomos. São Paulo: Martins Fontes,
1959.
270
Cf. CARNEIRO, Edison. Folguedos tradicionais. op. cit., p. 131-136.
125
chegaram ao Brasil estruturados. A quarta “inspiração” seria dominada por
temas africanos, em parte tornados nacionais. Percebe-se, portanto, a riqueza
e a complexidade dessas manifestações culturais presentes no Brasil.
Nesse tópico, porém, tratar-se-á particularmente da inspiração que
envolve temas africanos, mais especificamente dos congos (ou autos de rei
congo) que eram encenados em praças e terrenos baldios de Fortaleza.
Eventualmente, outras práticas culturais serão abordadas (bumba-meu-boi,
reisado, pastoris, fandangos) por conta de que os sujeitos que atuavam nos
congos por vezes também estavam presentes em outros espaços de
divertimento e festa.
Realizados principalmente no ciclo natalino, o congos eram
anunciados em jornais em que se prometiam “ambiente familiar”, “grande
animação” e “apresentações marcantes”. Embora os anúncios trouxessem a
expressão “congos”, estes eram, na verdade, espécies de encenações de
eventos ocorridos na África dos séculos XVI e XVII, às quais se dará aqui a
denominação de autos, seguindo a terminologia em geral adotada para se
referir a uma forma teatral de enredo popular, com danças, cantos e
determinadas representações, no caso, fatos da história africana.
271
Considerando que neste texto serão feitas várias referências aos
congos como reelaborações de uma cultura de raízes africanas, parece-me
válido abordar brevemente alguns aspectos históricos do Reino do Congo,
particularmente a partir do contato com os europeus e, dentre estes, com os
portugueses, que começaram a chegar às terras centro-ocidentais africanas,
ainda no século XV.
272
Em 1485, o rei do Congo (manicongo) Nzinga a Nkuwa tornou-se
cristão, passando a se chamar D. João I. No mesmo ano, o seu primogênito,
Mbemba Nzinga, converteu-se e, após a morte do pai, foi coroado como D.
271
Sobre definições e aplicações do termo “auto”, ver: CARNEIRO, Edison. Folguedos
tradicionais. 2. ed. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982; CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário
de folclore brasileiro. 11 ed. revista, atualizada e ilustrada. São Paulo: Global, 2002;
TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens.
São Paulo: Art Editora, 1988.
272
Ao que parece os primeiros contatos entre os portugueses e os africanos do Congo
ocorreram a partir de 1483, quando o navegador lusitano Diogo Cão ancorou em Pinda
(Mpinda), na margem sul da embocadura do rio Zaire. “Foi acolhido pelo senhor (mani) de
Sônio (Sonho, Sono, Soio ou Soyo), província a noroeste do reino do Congo. SILVA, Alberto
da Costa e. A manilha e o libambo. A África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2002, p. 362.
126
Afonso I. Durante todo o seu reinado (1506 a 1543) esse manicongo católico
“trabalhou incansavelmente para mudar seu país”, sendo difícil duvidar da
autenticidade da conversão de Mbemba Nzinga, que “usou o cristianismo como
instrumento político para conquistar o poder, nele consolidar-se e ampliá-lo
significativamente”.
273
Assim, D. Afonso I assentou os alicerces para uma dinastia de reis
cristãos na África, o que fez dele, através da tradição oral, um mito, mais tarde
recriado no Brasil não como Rei Afonso I, mas em uma forma mais
generalizante, a de Rei Congo, “fundador de uma nova sociedade, de uma
comunidade negra católica”.
274
Ao longo dos séculos XVI e XVI muitos nobres africanos assumiram o
poder no Congo, onde as sucessões reais acabaram sendo permeadas por
lutas fratricidas, conversões ao catolicismo por interesse político, acordos e
rompimentos com Portugal. Alguns desses eventos parecem ter marcado mais
intensamente a tradição oral africana o que de certa forma refletiu na cultura
dos negros do outro lado do Atlântico ao encenarem os autos de rei congo. É o
caso das guerras que envolveram congoleses, angolanos, holandeses e
portugueses em meados do século XVII, acabando por fornecer boa parte dos
personagens encenados nos “congos”.
Com a União Ibérica e a conseqüente invasão holandesa às colônias
portuguesas no Brasil (Nordeste açucareiro) e na África (Mina, Luanda e outras
áreas fornecedoras de escravos), o Rei do Congo e a Rainha de Angola
(Rainha Ginga) tentaram alternadamente alianças políticas e comerciais ora
com os lusos ora com os flamengos, sofrendo os reveses de cada opção. Após
décadas de conflitos, porém, os africanos bantos que foram trazidos para o
Brasil, trouxeram arraigada em suas memórias uma tradição oral em que o
poderoso Rei Congo aliado dos portugueses fora derrotado pela intrépida
Rainha Ginga – defensora de liberdade para seu povo.
275
Obviamente que ao encenarem essas antigas histórias em terras
brasileiras os africanos e seus descendentes redimensionaram os fatos
273
Cf. SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo. op. cit.,, p. 364-7.
274
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista. História da festa de coroação
de Rei Congo. Belo Horizonte: EDUFMG, 2002, p. 306.
275
Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Made in África (pesquisas e notas). 5
a
ed. São Paulo:
Global, 2001; PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão. Brasília:
Thesaurus, 2000.
127
provocando, ao longo dos anos, certa mutabilidade nos personagens, danças e
cantos presentes nos autos de rei congo. É assim que, nessas encenações, o
herdeiro (Suana) do trono congolês torna-se o Prinspo (Príncipe) Sueno; que
Ginga (Rainha de Angola) chega a confraternizar com o manicongo (Rei do
Congo) ou, ainda, que se cantam não apenas temas bélicos, mas, também,
namoros, saudades, trabalho, tragédias e outras vivências dos negros no
Brasil.
Por outro lado, parece que é justamente essa flexibilidade inerente ao
processo (re)criador que permite a perenidade dessa prática cultural. Nesse
sentido é que os congos “revelam a fidelidade da gente negra às matrizes de
uma cultura que se recusa a desaparecer”.
276
Na Fortaleza das últimas décadas do XIX, havia dois grandes grupos
de congos apresentando-se em espaços conhecidos pelos munícipes: os
congos de João Ribeiro, também chamado de “Pastoris Africanas” e que
funcionavam num terreno baldio da Rua Major Facundo, próximo à Praça do
Livramento (atual Praça do Carmo); e os congos de João Gorgulho, que se
apresentavam na Praça de Pelotas (atual Praça da Faculdade de Direito).
277
Vale esclarecer que as informações sobre os congos pequenos ou
grandes no recorte temporal aqui trabalhado têm registro basicamente em
três tipos de fontes (citadas ao longo deste tópico): os jornais que publicavam
anúncios de apresentações ou/e artigos referentes a essas práticas; os
relatórios de polícia dando conta das alterações provocadas por participantes
dos congos; e as publicações dos memorialistas.
O que se percebe é que os anúncios tentavam atrair o maior número
de pessoas prometendo bom divertimento a preços baixos, bem como a
existência de um ambiente ordeiro e familiar; em contrapartida os registros na
polícia apontam que nem sempre isso acontecia, havendo muitas prisões por
consumo excessivo de bebida associado a desordens nos congos; os artigos
em jornais oscilavam entre a condenação e o apoio aos congos; os
memorialistas descrevem como “eram” os congos em Fortaleza, em geral com
um olhar no qual pesava o preconceito.
276
TINHORÃO, José Ramos. Os sons negros no Brasil. op. cit., p. 109.
277
Cf. BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. Edição em conjunto das obras:
Coração de Menino, Liceu do Ceará e Consulado da China. 2. ed. Fortaleza: Governo do
Estado do Ceará, 1989, p. 232.
128
Conforme a descrição de alguns memorialistas
278
, o cenário onde os
congos se apresentavam era, em geral, composto por um tablado colocado no
centro do terreno ou da praça. Em uma das extremidades colocava-se o trono
real e na outra erguia-se um biombo coberto com panos sob os quais se
ocultavam os personagens que deveriam entrar e sair de cena. À espera do rei,
duas fileiras de soldados-dançarinos, usando camisas coloridas por baixo de
um colete curto, saiotes armados à moda de bailarinas e enfeites de pena na
cabeça. Dirigidos pelo Secretário, faziam evoluções coreográficas
acompanhando com maracás o som da música tocada por instrumentistas
sentados num banco fora do tablado. Dentre os principais personagens
estavam o Rei, que trazia uma coroa brilhante feita de papelão ou de flandres,
usava manto aveludado vermelho, colete e calções coloridos e, na cintura, uma
espada; o Príncipe, que trajava semelhante ao rei, faltando-lhe apenas a coroa;
o Secretário, usando um grande chapéu de abas largas viradas para cima,
ornados com pequenos espelhos que brilhavam à luz do acetileno ou mesmo
de archotes e candeeiros utilizados para clarear a noite. A indumentária do
Embaixador da Rainha Ginga também incluía capa e espada.
Geralmente o auto se iniciava com o Secretário brandindo uma
espada e cantando entre as fileiras de seus comandados:
Ô Pretinhos dos Congos
Pra onde é que vão?
(O Coro, bailando:)
Nós vamo pro Rosário
Festejá a Maria.
Oh, festeja, oh, festeja
Com muita alegria!
279
Tem-se aqui uma referência à Igreja do Rosário, sede da Irmandade
de “Homens Pretos”, onde reis negros eram eleitos e coroados. Após a
278
As descrições do cenário e da indumentária dos personagens dos congos aparecem aqui
são da obra de Gustavo Barroso (Ao som da viola. ed. correta e aumentada. Rio de Janeiro:
Departamento de Imprensa Nacional, 1949), que transcreveu um extenso auto de rei congo
baseado nos cadernos do negro João Gorgulho, diretor de um dos principais congos que se
apresentavam na cidade (segundo Barroso, Gorgulho foi o sucessor do liberto Firmino);
AZEVEDO, Otacílio Fortaleza Descalça. 2. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC,
1992; NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. 2. ed. Fortaleza: Edições UFC/PMF,
1980.
279
Cf. NOGUEIRA, João. Fortaleza velha. op. cit., p. 129-130; BARROSO, Gustavo. Ao som
da viola. op. cit., p. 175.
129
cerimônia, havia danças em frente à Igreja seguida de um cortejo pelas ruas da
cidade. “Como isso fizesse juntar muita gente, interrompesse o trânsito e desse
lugar a pilherias e conflitos, a polícia acabou confinando o auto em terrenos
cercados ou murados.
280
A despeito do impedimento legal do costume de coroar reis na
irmandade
281
, o canto dos congos aponta que o adro da Igreja do Rosário
continuava sendo utilizado como espaço-referência que ali estava parte de
uma tradição cultural dos negros em Fortaleza.
Quanto ao “confinamento” do auto em terrenos cercados, podia ser
interessante para os congos à medida que tal procedimento possibilitava uma
cobrança mais efetiva dos ingressos pagos pelo público que comparecia às
apresentações. Além disso, esses espaços fechados e controlados (pelos
congos) também se constituíam em instrumentos de contraposição a uma
sociedade que, em geral, excluía e marginalizava esses sujeitos e suas
práticas culturais.
Ademais, considerando que a cultura era constantemente reelaborada
partindo do contexto vivido, as ações cerceadoras da polícia viravam matérias-
primas para a criação de novos versos, como aqueles que ironizavam a
necessidade de licença para o funcionamento legal dos congos.
Nossa licença já veio / Ô lelê
Licença em papel selado / Ô lelê
Da Mãe de Deus do Rosário / Ô lelê
Licença do delegado / Ô Lelê
282
Outro aspecto que chama a atenção no auto é o momento da entrada
do monarca negro. Otacílio de Azevedo comenta uma apresentação em que
assistiu a João Gorgulho interpretar o “manicongo”.
Vestido na roupagem de seda colorida, cheia de fitas e
arabescos, minúsculas lantejoulas, vidrilhos e brilhantes pedrarias,
pavoneava-se e aparecia ao público com gestos de um verdadeiro
rei. Seus valetes, de calça de cetim verde, justas ao corpo, colete
280
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 175.
281
Um novo compromisso da Irmandade dos homens pretos da Capital (Lei Provincial nº. 1538,
de 23 de agosto de 1873) extinguiu eleição de reis negros no âmbito dessa Confraria. Cf.
BPGMP, Setor de Obras Raras. Colleção de leis, resoluções e regulamentos promulgados
pela Assemblèa Legislativa Provincial do Ceará no anno de 1873. Fortaleza: Typographia
Constitucional, 1874.
282
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit.,p. 176.
130
violeta, clâmide vermelha caindo sobre os ombros e espadas de
papelão dourado completavam a moldura daquela corte efêmera
mas impressionante. Quando sentado no trono forrado de fofos de
papel de seda salpicado de estrelas, tendo, à guisa de cetro, uma
vara coberta de papel dourado, com um grande “S” na ponta, os pés
metidos numas reiúnas de soldado, descansando num tablado, sobre
um tapete de palha de carnaúba colorida o espetáculo era
mesmo empolgante e todos sentiam-se diminuídos por aquela
grandeza. À cabeça, uma coroa de flandres pintada de cores
diversas dava-lhe um ar diferente, afastando-o do comum dos
mortais...
283
De acordo com Gustavo Barroso
284
, a partir da entrada do Rei Congo
em cena, os cantos eram reforçados com palavras de origem africana, como o
canto “Maracondê! Maracondê! De bambaiê! De bambaiê!”
285
; esta quadra,
ainda segundo Barroso, era o sinal para que os tocadores de pandeiro
começassem o toque; depois da autorização do Rei, seguiam-se danças
acompanhadas por diversas variações musicais.
Certamente muitas dessas palavras foram adulteradas; não obstante,
davam matizes negras ao evento. Por outro lado, a mistura de expressões
africanas desfiguradas e de palavras portuguesas também poderiam contribuir
para dar uma identidade e mesmo um caráter de resistência aos congos
fortalezenses. De qualquer forma, a possibilidade de reelaboração dos cantos e
a incorporação de gêneros musicais diferentes permitiam que essa festa de
negros se mantivesse atualizada e atrativa para o público, sem, no entanto,
perder-se de suas raízes africanas.
Assim, muitos versos eram criados para agradar determinada parcela
do público, que se constituía de representantes dos mais diversos segmentos
sociais. Veja-se o caso das quadras seguintes que denunciavam os “perigos”
283
AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza Descalça. 2. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC,
1992, p. 62-63.
284
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 182.
285
“Maracondê” seria uma palavra recriada a partir de Muaricapendê”, ou seja, “tocadores de
capenda”, um tipo de tambor africano. a palavra “Bambaiê” provavelmente era uma
reapropriação de mbamba”, que no quicongo significa dança, jogo ou divertimento em
círculo Cf. BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit, p. 182; CASCUDO, Câmara.
Dicionário do folclore brasileiro, op. cit., p. 44-45; LOPES, Nei. Novo Dicionário banto do
Brasil, op. cit., p. 36.
131
dos flertes entre os cadetes da “Escola Militar do Ceará”
286
e as senhoritas da
cidade.
Secretário: Senhor Cadete
Da gola encarnada.
Coro: Não namore a moça
Que ela é casada.
Secretário: Senhor Cadete
Da gola azul.
Coro: Não namore a moça
Que ela é do sul.
Secretário: Senhor Cadete
Da gola amarela.
Coro: Não namore a moça
Que ela é donzela.
Secretário: Senhor Cadete
Da gola bem branca.
Coro: Não namore a moça
Que ela é de França.
Secretário: Senhor Cadete
Da gola bem preta.
Coro: Não namore a moça
Que ela é sujeita.
287
Outras quadras iam sendo cantadas pelo Secretário, sempre
alternadas com os refrões do Coro. Eram versos com as mais variadas
inspirações, como os namoros, os espaços da cidade e arredores, ou, ainda,
certos personagens enigmáticos.
Secretário: Maria, teu pai não quer
Que eu converse com você.
Ponha-lhe areia nos olhos
Que cego não pode ver.
Coro: Maria, parte o baralho
Maria, parte o baralho
Quem ama não tem trabalho
Quem ama não tem trabalho
Tra-tra-trá com tra-ri-rá
Tra-tra-trá com tra-ri-rá
Ó Maria Camungá (...)
Secretário: Lá na Praia do Farol
Eu vi a Maria assentada
286
A Escola Militar do Ceará formava oficiais de carreira do Exército e funcionou em Fortaleza
até o ano de 1897. Teve como sedes os prédios da atual 10ª Região Militar e do Colégio
Militar de Fortaleza. Seus alunos denominados “cadetes” vinham de diversas partes do
país e circulavam entre as mais variadas atividades culturais públicas e privadas - na
cidade. Nos seus uniformes de passeio, predominavam o vermelho e o azul. Cf. MARQUES,
Janote Pires. O Casarão do Outeiro. Memórias e ilustrações. Fortaleza: ABC, 2007.
287
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit, p. 186-188.
132
Esperando pelo fresco
Da serena madrugada (...).
288
Nos cantos supracitados, além das referências ao farol do Mucuripe
(Praia do Farol) e ao malicioso artifício para que um namoro acontecesse,
aparece, também, Maria Camun que, segundo Gustavo Barroso, seria a
forma adulterada de “Maria Cabindá ou Maria Cabinda, personagem feminino
tradicional e importante nas antigas Congadas, em vários lugares do Brasil”.
289
Cabinda ou Cambinda seria o indivíduo do povo banto da região de
Cabinda
290
e no Nordeste do Brasil passou a ser a denominação para grupos
de dançadores negros que acabaram dando origem a determinadas
modalidades de maracatus e, dentre estes, alguns cujos componentes se
pintavam de preto.
291
Ainda segundo Barroso, Maria Cabinda aparecia nos “reisados” ao
do Rei Congo, em geral representada por uma boneca de madeira denominada
“calunga” e que era colocada na cabeça de um indivíduo da corte, o qual vestia
longas roupagens a fim de aparentar grande estatura. Para que o condutor
pudesse enxergar, abria-se um orifício logo abaixo do pescoço da “boneca”.
292
É preciso considerar que a presença de um elemento como a
“calunga” indicaria uma outra dimensão da cultura negra nos congos a do
sagrado, relacionando-se à morte além de apontar uma ligação com os
maracatus e com as cambindas, como será abordado no terceiro capítulo
desse trabalho.
Na seqüência do auto, cessavam as danças e começavam as
louvações às pessoas ilustres presentes, às quais o Secretário astuciosamente
atirava o lenço, que geralmente lhe era devolvido com uma gorjeta amarrada
em uma das pontas.
288
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 188-189.
289
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 189.
290
Cabinda vem do quicongo “ka-binda”, ou seja, um topônimo dessa região. Cf. LOPES, Nei.
Novo Dicionário banto do Brasil, op. cit, p. 49.
291
Cf. CASCUDO, Made in África. op. cit., p. 122-123; GUERRA-PEIXE, Maracatus do Recife.
op. cit., p. 28-29. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Folk-lore pernambucano. Subsídios
para a história da poesia popular em Pernambuco. 2. ed. autônoma. Recife: CEPE, 2004.
292
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 189.
133
Secretário: Esta vai para louvar
O Tenente-Coroné.
Coro: Ó lelê, ó lelê,
Ó pretinhos de Guiné.
Secretário: Esta vai para louvar
O Major José Miranda.
Coro: Ó lelê, ó lelê,
Ó pretinhos de Luanda.
293
Ao que parece não podia ser melhor o momento para pedidos extras
de dinheiro. Após dezenas de cantos, os congos se colocavam em silêncio
sinalizando para a platéia a iminência da chegada do embaixador da Rainha
Ginga e o começo da “guerra”. Constituía-se o ínterim ideal para elogios e
cantos específicos a determinados espectadores que, estando em evidência
diante de todo o público, não negariam uma boa contribuição.
A seguir, ouviam-se rumores de passos, vozes e armas numa das
extremidades do terreiro. Era a entrada em cena do Embaixador. O Coro,
então, cantava:
Entra e sobe, Imbaxadô
Vai falá a majestade
E se fizé quarquer tributo
És de sê assassinado
Entra e sobe Imbaxadô
Entra e sobe Imbaxadô
Entra e sobe e vai ao trono
Vai levá tua imbaxada
A D. Henrique Cariongo.
294
Importante considerar que as transcrições de um português inculto e,
por vezes, “africanizado”, feitas por alguns memorialistas para se referirem aos
cantos dos congos, podem ser mais um indício do olhar preconceituoso de
certos autores de verem tais manifestações culturais como práticas exóticas de
negros analfabetos, “diferentes”, portanto, da “elite e do mundo do qual ela
fazia parte. Por outro lado, é plausível considerar que os negros também
293
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 201-202.
294
NOGUEIRA, Fortaleza velha. op. cit., p. 132; Gustavo Barroso apresenta a mesma quadra
com pequenas variações (Cf. BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 204). O Rei
Congo (Cariongo) aparece aqui denominado de D. Henrique, o que provavelmente é
referência a um dos filhos do poderoso rei do Congo Afonso I; D. Henrique foi o mais célebre
padre africano educado em Lisboa, chegando a ser consagrado bispo, em 1518. Cf. BOXER,
C. R. A Igreja e a expansão ibérica. (1440-1770). Lisboa: Edições 70, 1981, p. 15.
134
podiam se apropriar dessa “linguagem” para afirmar uma identidade étnica e
costumes próprios.
Mas, voltando à seqüência do auto, o Rei Congo mandava prender o
Embaixador ao saber que sua proposta era a concessão de territórios
congoleses à Rainha Ginga ou então haveria guerra. O Príncipe Sueno sugeria
ao pai que perdoasse o Embaixador e o mandasse embora, a fim de ir buscar
seu exército para um combate leal e para que se decidisse de vez a questão
entre as monarquias de Angola e do Congo. Em seguida, o Embaixador
angolano era expulso do Congo; não obstante, as quadras que se seguem
mostram-no orgulhoso e confiante em vitórias futuras:
Minha Rainha é grande Rei,
É um gigante de figura:
Cada golpe que ela dá
Um leva pra sepultura.
Minha Rainha é grande Rei,
Com ela não se vai falar,
É Rainha de Matamba
Imperatriz de Cabinda.
295
De acordo com as descrições de Gustavo Barroso, a partir daí,
mudava-se a configuração do auto. As duas filas de dançarinos armavam-se de
umas espadas curtas e se reuniam em formação militar. Um dos filhos do Rei,
que até então se conservara silencioso, desfraldava a bandeira real. O Príncipe
Sueno e o Secretário postavam-se ao seu lado e os três passeavam de um
lado a outro diante das fileiras, enquanto os soldados marcavam passo.
Ocorria, então, uma intensa e prolongada luta, sempre com o
acompanhamento de refrões, continuamente repetidos: “Fogo e mais fogo /
Fogo até morrer / Que este Embaixador / Nós vamos vencer”.
296
Enfim, o exército de D. Henrique perdia a batalha, dispersando-se
derrotado. O desfecho da guerra era, portanto, a vitória do exército da Rainha
Ginga sobre o Rei Congo, que teve seu filho “Príncipe Sueno” preso. O
Embaixador tentava obrigar o Príncipe a ajoelhar-se e a beijar sua bandeira
negra de três estrelas. A recusa levava-o à morte. O Príncipe despedia-se de
295
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 208.
296
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit, p. 216. De acordo com João Nogueira
(Fortaleza velha. op. cit., p. 136), a peleja e a repetição desses refrões duravam tanto tempo
que chegavam a se tornar maçantes.
135
seu irmão, dos oficiais, dos soldados e, finalmente, do público. Depois,
voltando-se para o pai, cantava em tom de tristeza:
Adeus, ó meu querido
Que nunca mais hei de ver.
Carrasco, suspende o golpe.
Para sempre, vou morrer.
297
Encerrando o auto, o Embaixador formava seus soldados em colunas
cerradas, entre as quais seguiam presos o Rei e seus partidários. À frente dos
prisioneiros, partia o Embaixador, cantando vitória. Enquanto as colunas saíam,
esvaziando o terreiro, o coro e todos os demais figurantes do auto do rei congo
cantavam o refrão:
Maracondê é de bambaiê,
Maracondê é de bambaiê,
Maracondê é de bambaiê,
Maracondê é de bambaiê.
298
Conforme Gustavo Barroso e outros memorialistas, eram assim os
autos de rei congo encenados em praças e terrenos baldios da Fortaleza de
fins do século XIX. Parece evidente que os congos cantavam uma África
distante, muitas vezes adulterando nomes e fatos, o sendo isso erro de
interpretação histórica, mas um indicativo de que era a capacidade dos negros
de recriarem um passado que fazia essa cultura de raízes africanas existir do
outro lado do Atlântico.
A partir dessa breve descrição dos autos de rei congo é possível
refletir sobre esse tipo de prática festiva como lócus de cultura e de
sociabilidade em Fortaleza, onde se cantava uma “tradição bélica” africana,
mas, também, relacionamentos amorosos, atividades de trabalho, críticas
sociais, o dia-a-dia, enfim, da sociedade fortalezense na qual os congos
estavam inseridos. Tudo isso servia aos negros como instrumentos para a
conquista de espaços numa cidade que se reurbanizava.
297
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 217.
298
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 218; João Nogueira (Fortaleza velha. op.
cit., p. 137) escreve “Maracondê é de Bumba ê”.
136
Além disso, sendo os congos práticas festivas que promoviam a
reunião de grande número de pessoas, muitas vezes eram vistos com viés
político. Veja-se a seguinte reclamação, que ilustra um desses casos:
INFAMIA - E’ uma infamia fortissima, a local no “Unitario” de 22 do
corrente, affirmando que a Policia ainda não proibiu a confirmação do
brinquedo dos Congos, porque esses funccionam em terreno
alugado ao Ex.
mo
Sr. Dr. Presidente do Estado. O terreno onde
suas funcções os Congos, de que sou director, pertence realmente,
uma parte ao Dr. Nogueira Accioly, outra ao Dr. Lino, ambos esses
cavalheiros, porem, nol-o cederam gratuitamente. Isto posto, é um
dever de gratidão, meu e de meus companheiros, oppor á revoltante
calumnia, formal desmentido, não consentindo que os cães do
“Unitario” tentem mais uma vez morder a mão benfeitora contra a
qual elles hoje investem, por não lhes dar um osso a roêr. Ceará, 23
de janeiro de 1907. O Diretor e Embaixador dos Congos da P. de
Pelotas. Raymundo Evangelista de Sousa.
299
A indignação de Raymundo Evangelista era contra a acusação de que
a polícia permitia a apresentação desse auto de rei congo até uma época
próxima ao Carnaval por interesse financeiro do Presidente do Estado do
Ceará. Detalhe é que a “denúncia” partira de João Brígido (Jornal Unitário),
antigo aliado que se tornara adversário político de Nogueira Accioly.
Não seria estranho pensar na hipótese da aproximação entre congos e
determinados grupos políticos; entretanto, isso provavelmente ocorria não
porque os diretores dos congos comungassem do ideário político da elite, mas,
por verem nessa “aliança” mais um instrumento para abrir caminho para a
prática de uma cultura negra e para a apropriação de espaços (físicos e
simbólicos) na cidade.
Deve-se considerar que estavam em jogo as rendas dos congos,
mas, também, os créditos eleitorais que poderiam advir do apoio a uma prática
festiva freqüentada por um público composto de diversos extratos sociais
fortalezenses. Além disso, procurava-se agradar aos que pagavam para
assistirem às apresentações. Nesse contexto, os autos de rei congo
constituíam-se de permanências que lhes davam um toque de originalidade
(nomes dos principais personagens, determinadas passagens da guerra congo-
angolana, palavras africanas) e mudanças que tornavam o evento mais familiar
299
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 25 jan. 1907, p. 2, rolo
nº. 316.
137
aos espectadores (referências ao cotidiano na cidade de Fortaleza, a
personalidades e a instituições locais).
Ao mesmo tempo, os congos tinham nas suas apresentações mais
possibilidades de serem vistos e de afirmarem uma identidade cultural negra na
cidade. Por outro lado, também existia o preconceito contra uma prática festiva
de negros da qual participavam brancos (como observadores ou como atores)
e que remetia a uma África considerada muitas vezes continente de “costumes
bárbaros”.
Talvez esteja uma motivação para a apresentação dos congos no
período das festas natalinas. Assim como a coroação de reis negros na
Irmandade do Rosário de Fortaleza aos poucos migrou do mês de outubro para
o início de janeiro, os autos de rei congo passaram a ser apresentados em fins
de dezembro a os primeiros dias do ano, destacadamente no “Dia de Reis”.
em fins do século XIX, apareciam também na época do Carnaval.
Considerando que os congos absorviam elementos simbólicos que lhes
pareciam similares e que os costumes de matriz africana eram melhor aceitos
se travestidos de uma “tradição européia”, aos poucos foi ocorrendo uma
associação entre os reis congos e os reis magos, até porque um destes
também era reconhecido como negro ou “escuro”
300
.
Certamente esse foi um processo antigo e lento, porém mais intenso
nas últimas décadas do século XIX, de forma que cada vez mais os congos
passavam a imitar o costume de se pedir óbulos no Dia de Reis, o que não
deixava de ser mais uma tática de resistência contra os que condenavam as
práticas festivas negras.
Ao que parece, o constante cerceamento, particularmente o de caráter
“romanizador”, apenas motivara diversas reelaborações da cultura negra e das
festas de negros. A repressão, instrumentalizada pelo Estado e também pelo
pensamento católico-conservador, não significou, portanto, o fim dos congos
mas sua interação (e, a partir daí, desdobramentos) com outros grupos, como
aqueles que se denominavam “reisados”
301
.
300
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cruzeiro do Norte. Fortaleza, 06 jan. 1913, p.
3, rolo nº. 67.
301
De acordo com Câmara Cascudo (Dicionário do folclore brasileiro. op. cit., p. 152 e 581),
“Reisado” era um auto popular profano-religioso, pertencente ao ciclo natalino, e formado por
um grupo de músicos, cantadores e dançadores que iam de porta em porta anunciar a
chegada do Messias e homenagear os três Reis Magos. Ainda segundo o autor supracitado,
138
Segundo Oswald Barroso, faltava aos diversos reisados uma estrutura
de personagens que lhes dessem a capacidade aglutinadora capaz de
transformar sua junção em um espetáculo único. Com efeito, alguns reisados
tomaram emprestado as cortes de reis negros para estruturar a seqüência de
seus números.
302
Outro exemplo dessas trocas culturais em Fortaleza eram os congos
de João Ribeiro, que o próprio denominava “Pastoris Africanas”, apontando a
mistura de elementos africanos e europeus. Pastoril era a representação da
visita de pastores ao estábulo de Belém, com ofertas, pedidos de bênção,
louvações, cantos e loas.
303
Dessa forma, nesses congos, além da
representação de cenas bélicas africanas, havia referências aos Reis Magos e
a outros aspectos da cultura católica. Em Fortaleza, eram conhecidas as
“Pastoris” ou “Pastorinhas” organizadas pelas irmãs de caridade na Santa
Casa, com as órfãs que recolhiam e educavam. as Pastorinhas da Igreja do
Carmo eram “organizadas em honra ao Natal, Anno Bom e Magos Orientaes”
304
e encenavam sua apresentação em frente a “uma magnifica lapinha,
representando elevados rochedos e uma gruta, feita com muita arte
symbolizando a de Belem, onde nasceu o Messias”.
305
Essa mistura entre congos e pastoris que pode causar certa
estranheza talvez seja mais compreensível diante da consideração de que
os congos eram terrenos férteis para reelaborações culturais e mesmo para a
inserção de práticas que se tornassem interessantes ou de alguma forma
agradassem ao público, ainda que essas “novidades” o fossem
comprometidas com uma “tradição” africana ou mesmo destoassem do sentido
pretendido pela Igreja.
Cumpre observar que as “pastorinhas” presentes nos congos
provavelmente eram uma espécie de caricatura das encenações de caráter
o “reinado [do Congo] democratizou-se em Reisado”; Theo Brandão comenta que em
Alagoas os reisados “sincretizaram” com os congos e enriqueceram sua indumentária (Cf.
BRANDÃO, Theo. Folguedos natalinos de Alagoas. Maceió: Departamento Estadual de
Cultura, 1961, p. 53).
302
Cf. BARROSO, Oswald. Reis de Congo. Fortaleza: Ministério da Cultura, Museu da Imagem
e do Som, 1996, p. 42.
303
Cf. CASCUDO,Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. op. cit., p. 491.
304
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 10 jan. 1901, p. 1, rolo
nº. 318.
305
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 23 dez. 1901, p. 1, rolo
nº. 318.
139
sagrado/católico cujas atoras eram moças consideradas “de família” ou órfãs
educadas por freiras. Nesses “pastoris”, portanto, explorava-se o aspecto
humorístico e não o sacro, como se percebe através do jornal A Navalha, que
denunciava em tom irônico a “animação bonita” (confusão) e as “moças
correctas” presentes nos congos de João Ribeiro.
306
Nesse contexto de encenação com várias “atrações” atuavam diversos
tipos de sujeitos. Era o caso de um indivíduo conhecido por Reis, que fazia o
papel de Secretário nos congos de João Ribeiro, atraindo grande público por
conta de suas piadas no decorrer do auto. Gustavo Barroso conta que:
Três dias após a greve sangrenta de 3 de janeiro, na festa
dos Reis Magos, fui aos Congos do João Ribeiro. Estava muito
tranqüilo, sentado na arquibancada de tábuas de pinho, quando o
Reis teve a desastrada idéia de pilheriar com um desordeiro
contumaz que se achava presente, o famoso João Lopes de Sousa,
vulgo Boca de Sebo, que lhe respondeu com as piores grosserias. O
outro revidou:
- Cala a boca, zonofone!
Uma gargalhada geral. Naquele tempo a expressão estava
em plena voga. O que hoje se chama vitrola aparecera como
fonógrafo, passara a grafofone, transformara-se em gramofone e
afinal fora zonofone. Como os rádios de hoje, os zonofones então
azucrinavam a paciência de todos.
- Cala a boca, zonofone! Repetiu a platéia divertida. O Boca
de Sebo berrou, furioso:
- Zonofone é a mãe que os pariu!
Houve protestos em nome do respeito devido às famílias
presentes. O desordeiro ameaçou os protestadores. A assistência
dividiu-se contra e a favor dele. O pau choveu de todos os lados,
primeiro nos focos de acetilene, cambiantes faiscadores, que se
apagaram, deixando às escuras o teatro da ação. Entrei no sarilho e
levei uma bordoada na cabeça que me atirou ao solo. Na escuridão
da noite trilavam os apitos. A polícia apareceu sob a forma dum
pelotão de guardas cívicos com o tenente Gustavo Rodrigues, um
batoré escuro e prepotente, escanchado num cavalo magro. Ouvi-o
gritar:
- Baixem o flandre!
O chanfalho entrou em cena, a torto e a direito. Escafedi-me,
rolando pelo chão. Ao passar por baixo duma cerca de arame, toda
enramada de melão de o Caetano, um dos estrepes prendeu-se
ao ombro do meu casaco de brim pardo. Forcejei e ela rasgou-me as
roupas e a carne até o osso. Conservo a cicatriz como lembrança
amável das Pastoris Africanas...
307
306
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Navalha. Fortaleza, 21 Nov. 1904, p. 2, rolo nº.
67.
307
BARROSO, Gustavo. Memórias. op. cit., p. 232.
140
Vale esclarecer que a “greve” a qual Barroso se refere foi um conflito
entre policiais e trabalhadores ocorrido em Fortaleza, no ano de 1904, como
reação a lei de serviço militar que instituía o sorteio como critério de
recrutamento para a Armada Nacional (Marinha de Guerra). Tal procedimento
penalizava a população pobre e causou forte reação principalmente entre os
catraieiros (estivadores do porto do Mucuripe). O embate deixou sete mortos,
dezenas de feridos e os moradores fortalezenses abalados.
308
Não obstante esse violento conflito, três dias depois festejava-se o Dia
de Reis, data culminante dessas encenações “populares” em Fortaleza:
congos, fandangos, pastorinhas, bumba-meu-boi, dentre outras. Na transcrição
supracitada referente aos congos de João Ribeiro, percebe-se que os mesmos
era freqüentados por variado tipo de gente; daí a preocupação em divulgar que
o “espetáculo” acontecia em ambiente moralizado e seguro, afinal, as
apresentações visavam o maior número de pessoas/pagantes. Mas, pelo
próprio contexto da festacom bebida, música, ajuntamento de pessoas era
inerente a presença de sujeitos mais animados, ou de “desordeiros” como em
geral denominavam os memorialistas e a própria polícia.
É provável que “desordens” nos congos fossem provocadas por
freqüentadores “embriagados”, como indica o caso de “Florencio Espindola
Americano”, profissão ferreiro, preso por “desordens num brinquedo de Congo
na Rua da Boa Vista”
309
. E, ao que parece, as prisões geravam atitudes de
desacato nos alterados “brincantes”, não apenas porque muitas vezes essas
ações policiais eram arbitrárias e violentas, mas, também, por conta da bebida,
que certamente deixava os “espíritos” mais agitados, como aconteceu com
Francisco Gonçalo, tipógrafo, preso por “embriaguez e insolencia nos
congos”.
310
Entretanto, é possível perceber que as prisões incorriam sobre
aqueles de origem mais simples, moradores de subúrbios de Fortaleza,
trabalhadores nas mais diversas ocupações, que tinham nos congos uma das
poucas possibilidades de divertimentos e de sociabilidades. Por outro lado,
308
Cf. STUDART, Guilherme (Barão de). Datas e factos para a História do Ceará. Tomo III.
Fac-Símile – edição de 1924. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 167.
309
APEC, Fundo Governo do Estado do Ceará. Rol de culpados. 12 dez. 1915. Ala 03,
estante 46, caixa 02, livro nº. 07, p. 283.
310
APEC, Fundo Governo do Estado do Ceará. Rol de culpados. 16 dez. 1915. Ala 03,
estante 46, caixa 02, livro nº. 07, p. 290.
141
parece que as detenções ocorriam para evitar que a festa se transformasse em
tumulto. Assim, os “desordeiros” eram colocados em liberdade no dia seguinte
à prisão. Em vista das constantes “alterações” ocorridas nos Congos, a polícia
os proibiu de encenarem utilizando espadas e facões, que passaram a ser
confeccionados de madeira, uma “desonra” para os componentes do grupo.
311
Nesses registros policiais sobre os autos de rei congo,
aparecem indícios de deslocamentos da corte ao final de suas apresentações.
Veja-se o caso do tecelão José Barbosa, de 26 anos de idade. Ele foi preso, às
nove horas da noite, “por embriaguez e desordens nos congos do Dr.
Gurgulio”
312
, quando essa manifestação chegava a Praça dos Coelhos, local
conhecido pelas apresentações dos congos.
Não obstante certas áreas serem territorializadas pelos congos,
os autos não necessariamente ficavam restritos a praças ou terrenos murados.
Antes e após as encenações, deslocavam-se em cortejo, tendo à frente seu rei
negro, “arrastando” o povaréu pelas ruas centrais da cidade. Não eram, pois,
encenações estáticas no que se referia tanto aos aspectos culturais quanto aos
espaciais. Ao mesmo tempo permitiam o diálogo com sujeitos de outras
práticas festivas, como os bumbas-meu-boi, sambas, maracatus e fandangos.
O bumba-meu-boi também era conhecido em Fortaleza como
“Boi Surubim
313
. Da mesma forma que os congos, fazia-se necessária a
autorização do Chefe de Polícia para se apresentar em blico
314
. A exemplo
dos congos, o boi se apresentava à noite e na época das festas natalinas,
havendo ensaios antecipados do “brinquedo”, de forma que esse espaço para
cultura e sociabilidades existia não apenas entre as duas semanas em média
que iam da véspera do Natal ao Dia de Reis, quando os “brincantes”
percorriam as ruas de Fortaleza.
311
Cf. NOGUEIRA, João. Fortaleza velha. op. cit., p. 128.
312
APEC, Fundo Governo do Estado do Ceará. Rol de culpados. 16 dez. 1915. Ala 03, es-
tante 46, caixa 02, livro nº. 07, p. 290.
313
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 6 nov. 1889, p. 2, rolo nº.
213. Veja-se, também: CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. op. cit., p. 80;
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 219; CARVALHO, Rodrigues de.
Cancioneiros do Norte. 3. ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1967, p. 53.
314
“O doutor Pedro de Albuquerque Autram chefe de policia da provincia concede licença a
Felisberto Gomes para ensaiar o brinquedo denominado boi e para percorrer as ruas desta
capital desde 24 de dezembro do corrente ano até 09 de janeiro do ano vindouro das 08 as
12 horas da noite. Cumpra. Dr Pedro de Albuquerque Autram”. APEC, Fundo Secretaria de
Polícia do Ceará. Registro de officio ao delegado da Capital. 12 out. 1884. Ala 02, estante 44,
livro nº. 345, fl. 133 v.
142
Havendo cobrança de ingressos para assistir às apresentações,
divulgava-se o evento por meio de anúncios, como o publicado no jornal
“Cearense” prometendo para as sete horas da noite, na Estação Central de
bondes, a “dança do boi surubim”, com entrada de “apenas cem réis”.
315
Grosso modo o bumba-meu-boi era uma encenação da morte e
ressurreição de um boi do patrão/senhor, abatido por Pai Francisco
(trabalhador negro/escravo da fazenda) a fim de dar a língua do bicho para sua
companheira Catarina e saciar-lhe o “desejo” de mulher grávida. Porém, esse
espaço, assim como as demais práticas festiva negras, também era bastante
propício para constantes reelaborações, trocas com outras manifestações
culturais, inserções de personagens e cantos referentes às vivências dos
vaqueiros e de outros sujeitos sociais.
316
Rodolfo Theophilo, em seu romance O paroara, publicado em
Fortaleza no ano de 1899, comenta sobre um desses “bois”:
Pelas oito horas da noite saiu o boi do bairro mais canalha da vila.
Os maracás estrugiram e o populacho o seguiu, acompanhado de
duas violas que choramingavam um saudoso baião. Uma guarda
avançada de garotos precedia as figuras alegóricas, que em
compacto bando subiam pela rua principal, onde divertiam por
dinheiro os burgueses abastados. Vinha na frente o caga-pra-ti ou
previlégio, um fantasma de forma humana, esguio, encolhendo-se
até ser anão e estirando-se até ficar da altura de dois homens.
Seguia-o a ema, uma imitação grosseira, mas que dava mais ou
menos uma idéia da ave. No centro do bando vinha o boi, uma ficção
desenvolvida com muito jeito e arte.
317
Constituíndo-se o boi em espaço livre para “invenções”, alí o povo
exercitava sua criatividade, em geral inspirada no meio social e político em que
viviam aqueles brincantes que levavam uma cultura dos “subúrbios” para a
região central e rica (burguesa) da cidade. Vale destacar que na descrição
315
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 3 jan. 1891, p. 1, rolo nº.
41.
316
Essa configuração do ‘boi’ aparece de acordo com Câmara Cascudo (Dicionário do folclore
brasileiro. op. cit., p. 80-81); Edson Carneiro destaca que o boi não representava um drama,
mas uma comédia (CARNEIRO, Edson. Folguedos tradicionais. op. cit, p. 131); vale destacar
ainda a possibilidade de variações, particularmente quanto aos nomes dos personagens.
Eduardo Campos (Estudos do folclore cearense. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará,
1960, p. 27-38) descreve um “boi” que era encenado em Fortaleza no qual Mateus fazia o
personagem do negro que abatia o boi do patrão.
317
THEOPHILO, Rodolfo. O paroara. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção
Social, 1974, p. 51.
143
acima tocadores de viola executando um baião elementos presentes nos
sambas do século XIX apontando mais um indício das interligações entre
diversas práticas festivas negras.
Outra pista dessas interligações são as cantigas que retratam as
experiências dos negros e que aparecem de forma quase idêntica tanto no boi
quanto nos congos. Veja-se como exemplo a quadra a seguir, que retrata
lembranças dos tempos do tráfico interprovincial de escravos.
Catarina, minha negra,
Teu senhor quer te vender,
Para o Rio de Janeiro,
Para eu nunca mais te ver.
318
Outra prática festiva muito freqüente em Fortaleza em fins do século
XIX e início do XX eram os “fandangos”
319
, que também podem ser incluídos
nesse ciclo de autos natalinos. Da mesma forma que nos autos de rei congo e
nos bois, os donos desses “folguedos” mandavam publicar em jornais da
cidade anúncios prometendo “couza nunca vista nesta Capital”
320
, grande
“animação” para as excelentíssimas famílias e para o público em geral
321
, e um
ambiente organizado e “descente”.
322
Os fandangos também abrigavam freqüentadores de outras práticas
festivas e podiam se constituir em espaços de atuação de negros em Fortaleza,
como o cantador Antonio, que foi “denunciado” ao bispo diocesano por seu
318
Gustavo Barroso (Ao som da viola. op. cit., p. 194) cita esses versos como sendo do bumba-
meu-boi; FROTA, José Tupinambá da Frota (História de Sobral. ed. Fortaleza: Editora
Henriqueta Galeno, 1974, p, 531) cita-os ao descrever a coroação de um rei congo
promovida pela Irmandade do Rosário dos homens pretos de Sobral.
319
Eram personagens vestindo fardas de oficiais da Marinha e marinheiros, cantando e
dançando ao som de instrumentos de corda, havendo a presença de mouros que atacam a
nau e são vencidos e batizados” (CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. op.
cit, p. 225). No Ceará, os fandangos também eram conhecidos como “Nau Catarineta
(BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 10 jan. 1890, p. 3, rolo nº.
201) ou Cheganças” (BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 02
nov. 1889, p. 2, rolo nº. 213).
320
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 23 dez. 1887, p. 3, rolo nº.
202.
321
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 23 dez. 1889, p. 3, rolo nº.
213.
322
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 21 dez. 1901, p. 4, rolo
nº. 318.
144
“procedimento incorrecto” em cantar à noite, “ladainhas, hynnos e outros
canticos sacros” nos “profanos” fandangos.
323
Sendo, portanto, o período natalino época de práticas festivas
diversas, é plausível considerar a mistura desses sujeitos e de seus espaços.
Assim, uma festa na Irmandade dos “homens pretos” não se restringia à Igreja
do Rosário, ao mesmo tempo em que na frente desta também se
apresentavam os congos cujos brincantes, por sua vez, iam tecendo relações
em outros grupos como os bois, os reisados, as pastoris, os fandangos.
Ao que parece, essa circularidade dos sujeitos foi uma constante na
história das festas negras em Fortaleza. Veja-se o caso de Raimundo Alves
Feitosa, freqüentador de congos e fundador do Maracatu Az de Ouro, na
década de 1930, para onde transferiu “sua experiência de General de
Fandangos e Fragatas e tirador de reisados”.
324
Por outro lado, tais manifestações foram além do ciclo natalino e
também passaram a existir nos períodos do Carnaval, porque aí era um espaço
de maior liberdade de expressão. No que se referia aos congos, o advento da
República, pouco simpática ao que fosse identificado com o regime anterior,
certamente contribuiu para o seu enfraquecimento. Entretanto, ainda no
Império, a Igreja Católica, particularmente com a “romanização”, reprovava as
festas de eleição de reis negros nas Irmandades do Rosário. Além disso, os
congos, o bumba-meu-boi, sambas e outros divertimentos similares, vinham
sendo reprimidos pela polícia da capital da província do Ceará.
A SEMANA Continua impassivel o firmamento, muito bom
para os poetas que o preferem recamado de estrellas e com os
azues d’Abril. Houve uns choviscos, d’entrudo, suppomos. Ao que
parece a policia de cima prohibiu que deitassem chuvas para cá,
do mesmo modo que a de cá impediu os congos e o bumba-meu-boi.
No caracter de todas as prohibições policiaes, isso é de muito mau
gosto. O delegado de policia do Firmamento é uma autoridade
prevaricadora, violenta, empanturrada de ódios políticos. S.S., para
nós é: tome sequidão, tome canícula; tome desgraça. (...) Com que
agua se há de brincar entrudo esse anno. Com que, com qual?
325
323
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Liberdade. Fortaleza, 24 dez. 1902, p. 2, rolo nº.
67.
324
MILITÃO, João Wanderley Roberto (Pingo de Fortaleza). Maracatu Az de Ouro. 70 anos de
memórias, loas e batuques. Fortaleza: OMNI/Solar, 2007, p. 33.
325
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 14 jan. 1889, p. 2, rolo nº.
227.
145
A transcrição ilustra um bem humorado protesto contra o controle
sobre as festas promovido pelas autoridades em Fortaleza, bem como
“denuncia” que congos e entrudos eram perseguidos pela polícia. Como se
pode ver, os autos de rei congo e outras diversões festivas negras começaram
a sofrer crescentes restrições ainda no Ceará provincial. Talvez por buscarem
espaços permitidos, nas festas do Carnaval de 1887 apareciam alguns
“Prisnpos Suenos”, que desfilavam livremente nas ruas da capital.
326
Enfrentando dificuldades que iam da “concorrência” das festas cívicas
até o preconceito contra os negros e suas práticas culturais, passando ainda
pela questão da reurbanização de Fortaleza que empurrava certas
manifestações para os “subúrbios”, as grandes encenações de autos de rei
congo foram rareando no início do século XX, até porque dependiam em boa
parte da iniciativa e da liderança pessoal de seus diretores (João Gorgulho,
João Ribeiro, Joaquim Xavier, Raymundo Evangelista e outros) para serem
montados. Mas esses homens não eram eternos.
Apesar de tudo, os congos continuaram existindo em diversos
espaços da cidade, ainda que em pequenos grupos, que constantemente
reelaboravam uma cultura negra a partir de suas experiências sociais vividas
cotidianamente. Ao mesmo tempo, os congos permitiam o diálogo com outras
práticas festivas negras existentes na cidade. Era o caso dos sambas,
manifestações presentes não apenas em Fortaleza, mas em outras áreas
(urbanas e rurais) do Ceará
326
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 23 fev. 1887, p. 2, rolo
nº. 202.
146
2.3 – Samba: “Nota Obrigatória das Alegrias do Povo”
Os Silveiras eram uma família de “pardos” residentes no Poço da
Moita, região de Quixeramobim e freqüentemente organizavam sambas aos
quais compareciam gentes da vizinhança. Eram negros e brancos que iam
“apreciar a função”. Quando corria a notícia que os Silveiras iam “vadiar”,
sabia-se que haveria festa boa.
ao cair da noite, ardia a fogueira no terreiro. Os lampiões na
entrada davam ares de novena. Antes do samba, rezava-se o terço, dedicado
ao santo do mês. Se fosse maio, orava-se para Nossa Senhora: “Sois jardim de
graça/Virgem gloriosa/ Sois do Paraíso/A mais linda rosa”.
327
Anunciando o início da função, os cantadores sentavam-se e os
tocadores passavam a afinar as violas, coisa demorada que às vezes irritava
os ouvintes: “- É coisa pa me abusá é quando tocadô pega a afiná a viola!”
Executadas as afinações, o da viola de melhor regra fazia a postura do baião
(peça musical), entrando em seguida a marcar, com o polegar no bordão
(corda que emite notas mais graves), ao passo que com outro dedo passava a
pontear um “sapateado sereno, encrespado de quando em vez por um trecho
vermelho de rasgado”
328
.
O toque (música) produzia nos circunstantes aquele susto que é
sintoma de profundo prazer. Ao mesmo tempo em que os dançarinos faziam
seus primeiros “volteados”, os músicos tocavam o baião, entremeado por
versos, às vezes provocativos, como os transcritos abaixo ironizando tipos
sociais e homenageando uma fazendeira a região:
Todo branco quer ser rico,
Todo mulato é pimpão,
Todo cabra é feiticeiro,
Todo cabloco é ladrão.
Viva Seá Dona Guidinha,
Senhora deste sertão.
329
327
PAIVA, Manoel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. São Paulo: Ática, 1981, p 55.
328
Id., Ibid., p. 56.
329
Id., Ibid., p. 57.
147
Os parágrafos que iniciam esse tópico são escritos a partir da análise
do livro Dona Guidinha do Poço, concluído por Manuel de Oliveira Paiva
330
, no
ano de 1892. Embora seja uma obra de ficção, foi escrita num período
contemporâneo ao recorte temporal aqui tratado e baseada em fatos reais.
Esse diálogo com a literatura é uma forma de ilustrar uma importante prática
festiva de negros: o samba.
Outra passagem do livro exemplifica como era a dança executada no
samba. É quando Tomás, ouvindo o início do toque das violas, faz uma
evolução no terreiro e “atira” na Carolina (Calu), ou seja, “dá-lhe uma
umbigada”, gesto típico dos batuques africanos e que era o convite
“obrigatório” para quem estava assistindo à “função” entrar no círculo.
Tomás, que sentia umas dorezinhas cansadas nos músculos do
pescoço, ficara febril. O jeito era descarregar no sapateado. Bateu
rente no terreiro, com as mãos para trás, avançou para os tocadores,
peneirando, atrás, recuou, atrás, adiante, pisou duro,
estirou os braços para a frente com a cabeça curvada, e, estalando
as castanholas dos seus dedos rijos, fez uma roda de galo que
arrasta a asa e atirou na Carolina.
- Abre a roda! gritou o Secundino.
- Aí, danado! Disseram outros para o Zé Tomás.
- Quero vê, Calu! A pernambucana saiu, empinada para diante,
dando castanholadas para os lados.
- Nada, baião de quatro! - gritou o Torém, saltando em campo e
atirando em uma irmã do dono da casa. Os dois pares fizeram os
seus volteados, trocaram as damas uma pela outra, e repetiram as
mesmas figuras. Ficaram depois as damas, que atiraram em outros
homens.
331
330
Manuel de Oliveira Paiva (1861-1892) nasceu e morreu em Fortaleza. Cursou o Seminário
do Crato (1875) e a Escola Militar do Rio de Janeiro (1881-1883) da qual foi desligado por
motivo de saúde, regressando a Fortaleza. Publicou em periódicos como A Quinzena onde
usava o pseudônimo de Gil-Bert. Fez a revisão do texto de Dona Guidinha do Poço meses
antes de morrer de tuberculose. Para tentar curar-se dessa doença buscara um clima melhor
e fizera algumas passagens pelo sertão cearense, principalmente em Quixeramobim. A fim
de passar o tempo, lia de tudo um pouco, inclusive documentos arquivados no cartório local,
como o processo crime sobre a fazendeira Maria Francisca de Paula Lessa, cúmplice de
crime passional que vitimou seu marido Coronel Abreu em 1853. Foi a inspiração para
escrever o romance. Vale lembrar que na história real a protagonista acabou como mendiga
perambulando pelas ruas de Fortaleza e era um caso conhecido através da tradição oral. Cf.
PAIVA, Manoel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. op. cit.; TINHORÃO, José Ramos. A
província e o Naturalismo. Ed. fac-similar. Fortaleza: NUDOC/Museu do
Ceará/APEC/SECULT, 2006. Eventualmente, o Libertador também publicava notícias sob
Oliveira Paiva (O nosso excellente e presadissimo companheiro de trabalho, Oliveira Paiva,
regressou hoje de sua comissão em Quixadá e a Quixeramobim por onde andou uns bons
meses. Esta forte, bem disposto e de cavaignac e chapeu de couro. Abraçamos o Gil e
damos parabens aos leitores). BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador.
Fortaleza, 28 set. 1889, p. 2, rolo nº. 213.
331
PAIVA, Manoel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. op. cit., p. 56-57.
148
Sendo uma manifestação recorrente tanto na capital quanto no interior
do Ceará, é importante perceber o samba não apenas no mundo urbano, mas,
também, no mundo rural, até porque muitos “sambistas” transitavam entre
esses dois pólos. De certa forma, os sambas ressaltavam essa oposição entre
a visão do homem da cidade (representado no romance de Oliveira Paiva por
Secundino) e dos sertanejos. No caso da Fortaleza das últimas décadas do
século XIX, comandada por uma elite defensora do “progresso”, os sambas
foram vistos pelas autoridades como espaços de transgressão e de atraso.
Os registros de sambas são comuns em diversos tipos de fontes da
segunda metade do século XIX: posturas, relatórios de polícia, jornais, na
literatura cearense, bem como nos primeiros estudos etnográficos que
aparecem na virada do século. Para Rodrigues de Carvalho, que estudou as
danças no nordeste do Brasil, predominavam na região:
[...] a ciranda, S. Gonçalo, maracatu, rolinha-doce-doce, o baião, que
é o mais comum, entre a canalha, e toma diversas modalidades
coreográficas e na arte do canto: o desafio, o martelo, a ligeira, a
embolada, e a carretia, etc. Para falarmos do baião é preciso
conhecermos o samba, instituição que fala bem alto, fotografando o
estágio de civilização do elemento nortista, rudimentar ainda no seu
amálgama etnográfico. Por toda a parte o samba é a nota obrigatória
das alegrias do povo.
332
É discutível o olhar de Carvalho sobre manifestações culturais
populares. Os sambas constituíam-se em nota obrigatória das alegrias do
povo, mas, o por serem divertimentos da “canalha” e, sim, por serem
práticas presentes no campo, nas vilas e nas cidades interior e capital, e
porque nessas reuniões participava o mais variado tipo de gente como o
332
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. 3. ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional
do Livro, 1967, p. 90. [Rodrigues de Carvalho (1867-1935) era paraibano e veio para
Fortaleza, no ano de 1894. Em 1906, diplomou-se pela Faculdade do Direito do Ceará. Seu
trabalho Cancioneiro do Norte teve a primeira edição em 1903. A primeira parte do livro é
dedicada ao que se chama de poesias de diversas origens; a segunda, a décimas; a terceira
parte é dedicada ao registro de notas sobre cantadores populares; na segunda edição (1928)
acrescentou-se uma quarta parte: “Alma Lírica”. Segundo Manuel Diégues Júnior (que
apresenta a edição do livro, aqui citada), o autor explica as diversas manifestações do
“folclore regional”: as festas, as tradições, os desafios, os cantos etc... Depois procura
interpretar o que representa esse material, trazendo uma contribuição que supera, na época,
à de Sílvio Romero; é quando “não procura distinguir o que é originalmente português ou
indígena ou africano, mas acentua a existência de um processo transculturativo nessas
manifestações”.].
149
próprio Rodrigues de Carvalho demonstra em suas pesquisas: negros,
brancos, homens, mulheres, artistas, autoridades, soldados, pescadores,
marinheiros (da Armada ou Marinha de Guerra), matutos, fazendeiros, pobres,
ricos, entre outros personagens.
Além disso, essa prática festiva negra denominada samba
apresentava-se em diferentes sentidos a depender do momento e do espaço
onde ocorria e, ainda, do grupo social predominante na reunião. A fim de
perceber essas diversas dimensões que o “samba” poderia assumir, é
importante tentar entender seu significado etimológico, não para conceituar o
que era um samba, mas, sim, como ponto de partida para vislumbrar a
complexidade que o termo representa.
De acordo com Câmara Cascudo, “samba é um nome angolano e teve
sua ampliação e vulgarização no Brasil”, representando um baile popular de
caráter urbano ou rural, sinônimo de pagode, função, fobó, arrasta-pé, balança-
flandre, forrobodó, fugangá. Além disso, teria origem em antigos batuques (ou
danças de roda), com um solista no meio, incluindo-se a umbigada, ou seja,
“a batida com o umbigo nas danças de roda, como um convite intimatório para
substituir o dançarino solista (...)”.
333
Segundo estudo feito por Nei Lopes
334
, samba é nome genérico de
várias danças brasileiras ou a música que as acompanham, procedendo do
quioco samba (brincar) ou do quicongo sèmba (dança em que um dançarino
bate contra o peito do outro). No umbundo, semba é uma “dança caracterizada
pelo apartamento dos dois dançarinos que se encontram no meio da arena”
335
,
sendo palavra vinda da raiz semba (separar). Assim, o choque e afastamento
dos dançarinos “é nada mais que a umbigada que ainda hoje caracteriza o
samba, em suas formas mais antigas”.
336
Outro sentido levantado por Lopes é que no quimbundo usa-se
“samba” para referir-se à pessoa que vive na intimidade de alguém ou faz parte
de sua família
337
. O autor destaca, ainda, o caráter religioso que o termo pode
trazer, significando uma sacerdotisa nos antigos terreiros bantos
338
. Em todos
333
CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. op. cit., p. 59 e 614.
334
Cf. LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003, p. 197.
335
ALBINO ALVES, 1951 apud LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil, p. 197.
336
LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. op. cit., p. 158.
337
Id., Ibid., p. 198.
338
Loc. cit.
150
os casos, no entanto, a palavra “samba” aparece ligada à família etnolinguística
banto.
O antropólogo Edison Carneiro, estudando as “danças folclóricas no
Brasil” destaca a grande importância do “samba de umbigada, legado dos
negros de Angola”, em que os músicos se dispõem em círculo enquanto, no
centro, um dançarino se movimenta até que, pondo-se diante de algum
parceiro (ou parceira), dá-lhe (ou finge dar) um ligeiro choque de ventre contra
ventre (umbigada) com o que lhe transmite a vez de dançar.
339
Através da pesquisa bibliográfica, percebe-se que os autores
normalmente fazem uma ligação entre o gesto da umbigada presente nos
sambas e sua origem nos chamados batuques africanos. Edison Carneiro
escreveu:
Batuque ou samba? Não há, presentemente, uma palavra de
aceitação universal para designar, em conjunto, as danças populares
nacionais – tecnicamente, bailes – derivadas dos batuques’.
Englobadas, nas notícias mais antigas, sob o nome genérico de
‘batuques’, assim mesmo no plural, nos fins do século XIX
passaram a ser conhecidas como ‘samba’, mas nos nossos dias, a
crescente individuação das suas variedades locais e a voga do
samba carioca tem contrariado essa tendência.
340
A partir de estudos de autores
341
portugueses publicados ainda no
século XIX e que escreveram acerca do “batuque na África”, Edison Carneiro
destaca que seria um erro considerar o batuque como sinônimo de dança
específica, única, mas, uma palavra vulgarizada pelos colonizadores lusitanos
para abarcar diversas danças nativas, incluindo-se o “samba”. Por outro
lado, as descrições deixadas sobre o “batuque” ou a “dança da umbigada”
refletem uma visão eurocêntrica em que essas práticas festivas aparecem
como eróticas e lascivas. Incluía-se o lembamento, cerimônia de casamento
no Congo-Angola na qual danças representavam cenas da vida dos casados,
339
Cf. CARNEIRO, Edson. Folguedos tradicionais. Apresentação de Vicente Sales. 2. ed. Rio
de Janeiro: FUNARTE/INF, 1982, p. 24.
340
Ib., Ibid., p. 27.
341
Alfredo Sarmento (Os Sertões d’África); Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens (De Benguela
Às Terras de Iaca); Ladislau Batalha (Angola; Costumes Angolenses); Dias de Carvalho
(Etnografia e História Tradicional dos Povos de Lunda). Cf. CARNEIRO, Edson. Folguedos
tradicionais. op. cit., p. 28-31.
151
havendo, necessariamente, referências explícitas aos jogos amorosos e atos
sexuais”.
342
A ligação entre o gesto da umbigada e a cerimônia do lembamento
parece estar num “batuque” descrito por Alfredo Sarmento, em que transparece
o olhar moralizante do colonizador:
Entre o gentio do Congo, o batuque [dança de pares] é uma espécie
de pantomina em que o assunto obrigado é sempre a estória de uma
virgem a quem são explicados os prazeres misteriosos que a
esperam, quando o lembamento [casamento nativo] a fizer mudar de
estado, e outras obscenidades que, representadas com a mais
perfeita imitação, são uma prova evidente da depravação que reina
entre os habitantes daquele sertão.
343
No caso brasileiro, da mesma forma se generalizou sob a
denominação de “batuque” a reunião de dançadores de ritmos de origem
africana. Quando tais danças eram pontuadas pelo gesto do semba (umbigada
através da qual se passava a vez de dançar) eram, então, denominadas de
“sambas”.
No Ceará, “batuque” também aparece com diferentes significados,
ligados a sambas ou a outras práticas festivas. Os códigos de posturas de
vários municípios
344
cearenses faziam proibições aos “batuques”. De acordo
com os artigos de postura da cidade de Aracati, de 1874, os batuques e os
sambas aparecem associados à “perturbação da ordem”.
Art. 1º Fica prohibido:
(...) § 4.º Os sambas, batuques de viola, gritos e voserias que
perturbarem o socego publico dentro e nos limites da cidade, depois
das nove horas da noite, sob pena de serem os donos das casas em
que taes motins se praticarem, multados em desesseis mil réis ou
oito dias de prisão e o duplo na reincidencia.
345
342
ALFREDO SARMENTO apud TINHORÃO, José Ramos. Os sons negros no Brasil. Cantos,
danças, folguedos. São Paulo: Art Editora, 1988, p. 47.
343
ALFREDO SARMENTO apud CARNEIRO, Edson. Folguedos tradicionais. op. cit., p. 30.
344
Confiram-se, como exemplos, as posturas de Canindé (Resolução nº. 2005, de 04 de
setembro de 1882, Artigo 61); Sobral (Resolução nº. 1224, de 27 de novembro de 1867,
Artigo 21); Telha (Resolução nº. 1878, de 11 de novembro de 1879, Artigo 17). Cf. BPGMP,
Setor de Obras Raras. (Legislação Impressa).
345
Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel (BPGMP). Setor de Obras Raras.
Resolução nº. 1614, de 21 de agosto de 1874. Manda publicar diversos artigos de posturas
da camara municipal da cidade de Aracaty. In: Colleção de leis, resoluções e
regulamentos da Provincia do Ceará promulgados pela Assemblèa Legislativa no anno
de 1874. Fortaleza: Typographia Constitucional, 1875.
152
Observa-se no parágrafo citado a proibição dessas reuniões por se
julgar que comprometiam o sossego público, mesmo ocorrendo em casas. É
importante perceber que nos batuques não havia apenas músicos e
dançarinos. Lá também estavam as violas e, com efeito, cantadores e
cantorias. Talvez não apenas o som e as vozerias do batuque (ou samba)
incomodassem, mas, também, o que se cantava.
Veja-se o provocativo trecho da cantiga cearense denominada O
Samba, em que é narrada a chegada da polícia exigindo a licença para esse
tipo de reunião. Como não havia a dita autorização, houve briga, a tropa do
batalhão foi agredida e os sambistas foram parar na prisão.
(...)
Não havendo tal licença
Para o povo sambiar,
O sargento comandante,
Mandou todos amarrar.
Choveu pedra, e muito pau
Na tropa do batalhão:
Que sorte, que triste sina,
Foi tudo fazer faxina
Na casa de correção.
346
Macedo de Soares
347
anotou no Ceará, em fins do século XIX,
exemplos da palavra “samba” empregados como sinônimos de dança. Nessa
mesma época, códigos de posturas municipais, artigos e anúncios publicados
em jornais, documentação da Secretaria de Polícia, livros de literatura e de
memorialistas, dentre outras fontes, também registraram, com freqüência e
sentidos diversos, a existência de “sambas” em terras cearenses, tanto na
capital, cidades e vilas do interior, como no campo.
A partir das considerações até agora feitas, pode-se perceber a
complexidade do termo “samba”. No entanto, apesar da multiplicidade de seus
significados no recorte temporal aqui tratado, é possível identificar nos sambas
aspectos como a influência de uma cultura de origem africana (banto) no
Ceará; o samba como espaço de resistência do negro; reuniões em samba
como diversão e transgressão; o samba como laboratório de (re)criação
346
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. op. cit., p. 209.
347
MACEDO SOARES apud CARNEIRO, Edson. Folguedos tradicionais. op. cit., p. 28.
153
cultural em que participam negros (escravos, libertos, nascidos livres) e
brancos oriundos de vários extratos da sociedade cearense.
A fim de perceber os sambas como influência cultural africana no
Ceará é interessante trazer novamente à baila o trabalho do pesquisador
Rodrigues de Carvalho, que descreve detalhadamente como era o local da
reunião e a entrada dos primeiros dançarinos na roda de samba:
No terreiro alguns bancos; tocador de viola (ou tocadores); outro que
vibra uma chave ou moeda de cobre num botijão (quase sempre são
estes tocadores os próprios cantadores). Em roda a massa de
circunstantes: rapazes possantes de camisa anilada, calça de
algodão cru, deixando ver as fitas das ceroulas, chapéu desabado ou
bem erguido sobre a testa, onde flutua banhenta maçaroca de
cabelos. Entre eles, matutas morenas, ardentes e risonhas, chale a
tiracolo e galhinho de manjerona atrás da orelha. Ao gemer do pinho
nas unhas do matuto, sai um moço à roda. Multiplica os passos, do
calcanhar para as pontas dos dedos, desarticula-se, pisa e repisa
firme no solo, apruma-se firme como um boneco de engonço, ora
pulos miudinhos em direção aos tocadores, ora se afasta de costa,
até que, fazendo uma meia volta em piruetas, atira na cabocla de
seus afetos ou na que mais admirou o piso do rojão. Esta, por sua
vez, sai à roda, no começo fingindo acanhamento, depois sapateia
mais forte, sempre num saltitar miudinho, aprumada, saia enfunada;
os braços abertos em compostura de abraço, e os dedos
castanholando. Termina em jeitosa mesura, atirando no cavalheiro
que a tem de substituir.
348
A citação por si mesma pinta um quadro do terreiro onde ocorria o
samba cearense. Não obstante o olhar tendenciosamente sensual do autor, em
que rapazes possantes deixam aparecer as fitas das ceroulas e as risonhas e
ardentes morenas usam uma planta aromática (manjerona) por trás da orelha,
percebe-se o cuidado dos sambistas no preparo de suas vestimentas e
adereços, como o detalhe do chapéu cuidadosamente ajeitado na cabeça. A
preocupação dos freqüentadores com uma boa imagem pessoal indica mais
uma possibilidade do samba como espaço para sociabilidades: a dos encontros
e relacionamentos amorosos.
Quanto aos instrumentos musicais, além da viola, destaca-se o
botijão, que era um vaso de barro, bojudo e curto, com asa, usado como
instrumento de percussão. Era segurado pela asa e no seu gargalo atritava-se
uma chave ou moeda de cobre, que produzia “um som vivo e alegre”. O botijão
348
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. op. cit, p. 90-91.
154
ou botija também “era utilizada pelos negros no calundu (candomblé,
macumba)”
349
.
Pode-se destacar, ainda, que o início do samba era marcado por um
ritual. Antes de o dançarino dar a umbigada na parceira escolhida, prestava
reverência (avançava dançando o miudinho
350
e afastava-se de costas) aos
tocadores. Esse ritual aparece em outras narrativas como a de Manuel de
Oliveira Paiva, em Dona Guidinha do Poço, quando, no samba na casa dos
Silveiras, Tomás primeiramente avança e recua na direção dos tocadores e
só depois “atira” (dá a umbigada) na mulata Calu.
Procedimento similar pode ser observado nas danças em terreiros de
religiões afro-descendentes em que os filhos-de-santo primeiramente
cumprimentam os instrumentos tocados pelos alabês ou ogãs de atabaque, e,
quando incorporados por um orixá (ou outra entidade religiosa
351
) durante a
dança, são conduzidos de costas para uma sala reservada. Certamente esse é
um universo diferenciado, mas que permite perceber o samba não como
referência cultural hermética e sim como manifestação capaz de transcender
vários tipos de festas, inclusive aquelas de caráter sagrado.
No samba descrito por Rodrigues de Carvalho, os negros não apenas
fazem a festa, também se preparam para ela. O momento é de diversão ao
mesmo tempo em que uma cultura é praticada. Em áreas urbanas ou rurais, os
sambas se constituíam espaços onde costumes de matriz africana eram
recriados, como o ritual de reverência aos instrumentos, e mesmo a invenção
destes (botijão). Também, é nos sambas que elementos europeus (como a
viola) são apropriados.
Nesse sentido, José Ramos Tinhorão defende que:
349
ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA. Popular, Erudita e Folclórica. 2. ed. revista e
atualizada. São Paulo: Publifolha, 1988, p. 109.
350
Segundo Renato Almeida: “O miudinho é dança e um dos passos dos sambas. Eu mesmo
tive a ocasião de ver, na Bahia, as mulheres o dançarem em samba-de-roda, de modo
prodigioso. Avançam como se fossem bonecos de mola, com o corpo imóvel e um
movimento quase imperceptível de pés, num ritmo rápido e sempre igual”. In:
ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA. op. cit., p. 523.
351
No caso do Candomblé de Angola, essas entidades são denominadas “inkises”. Cf. COSTA,
José Rodrigues da. Candomblé de Angola. História, etnia, inkises, dialeto litúrgico dos
Kassanjes. 3 ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1996.
155
Com o paralelo crescimento da participação de brancos e mulatos
das camadas baixas das cidades e vilas nesses “batuques de
negros”, começaram a surgir adaptações provocadas pelo
casamento da percussão, da coreografia e do canto responsorial
africano-crioulo com estilos de danças, formas melódicas e novo
instrumental (principalmente a viola), introduzidos pelos herdeiros
nativos da cultura européia.
352
Ligado à herança cultural africana presente e/ou (re)inventada nos
sambas está a questão da resistência do negro escravo ou livre, que lutava por
costumes próprios. Um olhar sobre os anúncios de fuga de escravos
publicados em jornais permite a percepção de laços de solidariedade entre os
negros, bem como sua “identificação” como sambistas, bêbados, tocadores de
viola, cantadores, entre outros supostos estigmas muitas vezes ligados a
práticas festivas. Seriam os casos de Antônio e Joael, que fugiram juntos de
um sítio nas Damas (atualmente, um bairro da capital cearense).
Fugiram das Damas, sitio do tenente-coronel Ignacio Pinto dois
escravos dos seguintes signaes: um, de nome Joael, crioulo, cor
negra, estatura regular, cheio de corpo, dentes alvos, pés grandes,
um olho perdido; outro de nome Antonio, mulato pallido, cabellos
negros e crespos, bons dentes, olhos redondos e vivos, é
frequentador de sambas, bebe aquardente, é prosista e ladino: quem
os aprehender e trouxel-os ao Senhor - á rua Amélia, 185, defronte
da Igreja de São Bernardo - será generosamente recompensado.
353
Além do vínculo de cumplicidade entre os companheiros de fuga,
percebe-se no anúncio supracitado que o esperto (ladino) Antonio facilmente
se destacava: era adepto de sambas, de bebida e era prosista, ou seja,
gostava de uma boa conversa. Ao colocar em relevo as características
pessoais de Antonio na esperança de facilitar sua captura, o senhor anunciante
era forçado a reconhecê-lo como indivíduo com personalidade própria, disposto
a manter seus gostos e valores.
Vários exemplos podem ser localizados em anúncios de fuga de
escravos que povoavam os jornais cearenses. Foram os casos do “tocador de
viola”
Luiz, bom para todo o serviço, especialmente para a cozinha, chegado à
352
TINHORÃO, José Ramos. Os sons negros no Brasil. São Paulo: Art Editora, 1988, p. 46.
353
Jornal Cearense. Fortaleza, 10 set.1871. In: CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro.
Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura e
Desporto. 1982, p. 132.
156
cachaça, e que fugiu de Sobral em direção a Fortaleza
354
; e da “cantadeira de
samba” Margarida, “criola preta”, que trabalhava de foice, machado, enxada,
pescava de tarrafa, trabalhava de sapateira e fazia cachimbos.
355
Nessas descrições feitas pelos senhores de escravos em fuga,
aparece claramente a multiplicidade de ofícios de que os cativos eram
capazes. Entretanto, também se destacam costumes desses negros, como
tocar viola, cantar samba e/ou beber cachaça, como se fosse um contraponto
(negativo) das funções laborais (mostradas como positivas).
Em Fortaleza e outras cidades, a repressão aos sambas e uma
percepção negativa dessas reuniões festivas decorriam, provavelmente, do fato
de estas práticas assumirem um perfil retrógrado perante o olhar de uma
sociedade abolicionista, mas, também, imersa na idéia (européia) de
evolução e de progresso, sem espaço para manifestações de matrizes
africanas, em geral consideradas de caráter “bárbaro”. Nesse contexto é que,
nas décadas de 1870 e 1880, os códigos de posturas que vigeram em
Fortaleza
356
proibiam reuniões de escravos por mais de 15 minutos em lojas,
calçadas e tavernas.
Além disso, as posturas da capital influenciaram as normas no interior
da província. É o que se percebe nos códigos cronologicamente mais atuais de
cidades como Assaré
357
, Limoeiro
358
, Messejana
359
, entre outras, que traziam
artigos praticamente idênticos proibindo o encontro de escravos e de criados
(fâmulos). Em outras cidades os códigos de posturas eram mais específicos,
com artigos proibindo ou regulando reuniões em sambas, batuques de viola e
354
Jornal Cearense. Fortaleza, 1 jul. 1875. In: RIEDEL, Oswaldo de Oliveira. Perspectiva
antropológica do escravo no Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1988, p. 155.
355
Jornal O Commercial. Fortaleza, 5 de janeiro de 1857. In: CAMPOS, Manuel Eduardo
Pinheiro. Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. op., cit., 105.
356
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1365, de 20 de novembro de 1870. In:
Colleção de Leis da Provincia do Ceará no anno de 1870. Fortaleza: Typ Cearense, 1870,
p. 79; e Resolução nº. 1818, de de fevereiro de 1879. In: Colleção de Leis da Provincia
do Ceará no anno de 1878. Fortaleza: Typographia Cearense, 1879, p. 121.
357
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1744, de 5 de setembro de 1876. In:
Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará promulgados pela respectiva
Assemblèa no anno de 1876. Fortaleza: Typographia Constitucional, 1877, p. 87-88.
358
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1820, de de fevereiro de 1879. In:
Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará promulgados pela respectiva
Assemblèa no anno de 1879. Fortaleza: Typographia Brazileira, 1879, p. 142.
359
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução n. 2014, de 11 de setembro de 1882. In:
Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará promulgados pela respectiva
Assemblèa no anno de 1882. Fortaleza: Typ. do Cearense, 1882, p. 68.
157
outras práticas festivas geralmente freqüentadas por negros fossem eles
cativos, libertos ou nascidos livres.
Acarape, por exemplo, aprovou um extenso código de posturas, em
1882, determinando comportamentos dos munícipes e referindo-se à religião, à
moral e aos bons costumes. Proibia gritos e voserias à noite, e as
representações públicas, consideradas indecentes. O artigo 104 das posturas
dessa cidade estabelecia:
São prohibidas as reuniões, que vulgarmente se denominam sambas,
dentro dos limittes da Villa depois de 8 horas da noite sem previa
licença da autoridade policial. O dono da casa, onde se der o samba
incorrerá na multa de 5$000 réis; do mesmo modo os individuos que
tocarem qualquer instrumento nos taes sambas.
360
Interessante observar que o código refere-se aos sambas como coisa
“vulgar” no sentido de assim serem comumente conhecidas essas reuniões
relacionadas à perturbação do sossego na cidade após determinado horário,
no caso citado, oito horas da noite.
Às vezes, o recolhimento noturno da população das cidades e vilas do
Ceará era marcado pelo toque do sino de alguma igreja. Veja-se o caso de
Cascavel
361
, regulamentado pelas posturas de 1876. À exceção de 24 de junho
e de 24 de dezembro, todas as noites o sino tocava às nove horas. Era o sinal
para os lojistas e taberneiros fecharem as portas de seus estabelecimentos. Os
proprietários contraventores sofriam multas de dois mil réis por cada
descumprimento de horário e quem estivesse no recinto poderia ser preso por
vinte e quatro horas. Se fosse menor de idade, criado ou escravo dormia na
cadeia e seus pais, amos ou senhores eram obrigados a pagar a carceragem
dos mesmos.
Por outro lado, os sambas poderiam ser tolerados, desde que
obtivessem antecipadamente a permissão da polícia.
360
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 2022, de 19 de setembro de 1882. In:
Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará promulgados pela respectiva
Assemblèa no anno de 1882. Fortaleza: Typ. do Cearense, 1882, p. 102.
361
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1745, de 5 de setembro de 1876 (Artigos 12,
13 e 14). In: Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará promulgados pela
respectiva Assemblèa no anno de 1876. Fortaleza: Typographia Constitucional, 1877, p.
93.
158
Art. 11. Ficam prohibidos sambas dentro d’esta villa, povoações e seu
municipio. O dono da casa em que elles tiverem lugar será multado
em 4$000 réis, ou cumprirá 4 dias de prisão; ficando, porém, relevado
da multa ou da prisão, aquelle que apresentar licença da policia.
362
Sem a devida autorização policial, a prática do samba era considerada
relativamente grave gerando multas e prisões que normalmente iam de quatro
a oito dias de cadeia. Mas, se a multa incorria apenas sobre o dono da casa
que abrigava o “motim”, todos os outros participantes dessa prática festiva
também sofriam repressão da polícia, particularmente aqueles que estivessem
cantando e/ou tocando instrumentos musicais. Se fossem homens livres os
próprios arcavam com as conseqüências; caso fossem escravos, além da
cadeia teriam de enfrentar a fúria dos senhores.
A leitura desses códigos de posturas municipais indica que os sambas
também se davam em casas onde havia a possibilidade de ocorrerem
legalmente, caso o anfitrião tivesse conseguido uma autorização prévia da
polícia. Apesar de serem proibidos pelos legisladores e reprimidos pela polícia,
os sambas, divertimentos de negros em primeira instância, sempre tiveram em
todos os recantos – urbanos e rurais – da sociedade cearense os mais diversos
tipos de adeptos, incluindo autoridades, por exemplo, o subdelegado de polícia
do Soure (Caucaia).
Soure. Constando–me por informação fidedigna, que em vossa caza
se fazem sambas e reuniões inconvenientes, em uma das quaes
acaba de ser ferido mortalmente Theotonio Vieira, vos scientifico que
considero vosso procedimento incorrecto, como auctoridade e
espero que evitareis accusações tão desagradáveis. Sem perda de
tempo devereis informar quaes as diligencias procedidas com
relação ao facto delictuoso exposto. Aguardo vossa resposta para
providenciar. Samuel F. de Souza Uchoa.
363
De acordo com o caso citado, parece que na casa do subdelegado as
diversões em sambas eram feitas com freqüência e foram “descobertas”
pelo chefe de polícia por conta de uma briga em que foi ferido mortalmente um
dos participantes do divertimento.
362
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1745, de 5 de setembro de 1876 (Artigo 11).
In: Colleção..., op. cit., p. 93.
363
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de officios aos subdelegados de
policia. 9 jun. 1890. Ala 02, estante 44, livro nº. 339, fl. 42.
159
Em outros casos os sambas eram reprimidos o por perturbarem o
sossego, mas, porque representavam uma ameaça à ordem pública ou, pelo
menos, por gerarem certa insegurança nos moradores do município.
Essa visão de que os sambas representavam espaços potenciais de
conflito ocorria tanto na capital e áreas adjacentes, como nas cidades do
interior e mesmo na zona rural cearense, apesar de se constituírem contextos
sociais diferenciados. Em Sobral, por exemplo, chamava-se a atenção da
autoridade policial para a existência de grupos de “desordeiros” que se reuniam
todos os sábados, em Sambas que representavam “uma constante ameaça a
ordem publica”.
364
Anteriormente, já ocorrera a “denúncia” de que entre os desordeiros
desses sambas “figuravam alguns escravos
365
. Embora as posturas
366
da
cidade proibissem os sambas, essas reuniões continuavam a acontecer, sendo
espaços para negros (inclusive escravos) tecerem relações de sociabilidade
que muitas vezes se traduziam em resistência direta ao modus vivendi ditado
pela sociedade da qual faziam parte.
Por outro lado, quando havia o consentimento dos senhores ou
patrões, o samba poderia ressaltar o caráter de “circularidade cultural”
367
presente nesse tipo de ajuntamento festivo. É o que transparece na passagem
narrada pelo botânico fluminense Francisco Freire Alemão, que empreendeu
uma viagem ao nordeste brasileiro para pesquisar a morfologia e a fisiologia
dos vegetais da região, particularmente no Ceará. Pois bem, entre
“carnaubeiras em flor” e “jatobás (...) de pequeno porte”, Freire Alemão também
anotava detalhes da vida social cearense.
368
364
Jornal Sobralense, Sobral, 25 mar. 1877. Cf. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues.
Rosário dos Pretos de Sobral CE. Irmandade e festa (1854-1884). Fortaleza: Edições
NUDOC, 2006, p. 52-53. (O autor cita outros casos de “sambas” ocorridos nessa época, no
município de Sobral).
365
Jornal Sobralense, Sobral, 11 mar. 1877. In: SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues. Rosário
dos Pretos de Sobral. op. cit. p. 52.
366
BPGMP, Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1224, de 27 de novembro de 1867. In:
Colleção de actos legislativos e regulamentos de instrucções da Provincia do Ceará no anno
de 1867. Fortaleza: Typ. de Odorico Colás, 1868.
367
A expressão aparece aqui com o sentido de “influência recíproca entre a cultura das classes
subalternas e a cultura dominante, ver: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O
cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, p. 24.
368
CISNEIROS, Francisco Freire Alemão de. Os manuscritos do botânico Francisco Freire
Alemão de Cisneiros. In: Anais da Biblioteca Nacional, vol 81. 1961, p. 228-9.
160
Foi assim em Pacatuba, onde esteve acompanhado do capitão
Henrique Gonçalves da Justa, que o convidou para assistirem a um “samba de
negros na casa do Senhor Crisanto”. Lá se foram, por volta das oito horas de
uma noite de junho, o capitão e o biólogo, este pensando que ia encontrar uma
“dança de negros em alguma palhoça ou senzala”. Para sua surpresa, ao
chegar ao local do “samba” se deparou com a classe senhorial pacatubana. O
subdelegado de polícia, dois deputados provinciais, outros senhores e
senhoras das famílias principais da cidade lotavam a sala da casa.
No quintal achamos uma grande roda de negros e negras, calculo
em mais de 100, escravos dessas famílias, e das mais de Pacatuba.
Os instrumentos eram tambores, e caquinhos com que
atormentavam os ouvidos, e ainda mais com cantos, algazarras e
vivas. As senhoras chegavam muitas vêzes para a roda, assim como
os homens e assistiam com prazer as danças lúbricas das pretas, e
os saltos grotescos dos negros (...). D. Maria Teófilo era incessante,
e tomou grande interêsse fazendo dançar os seus pretos, e
designando-mos pelos nomes, e estêve por muito tempo com uma
vela na mão para alumiar melhor a cena.
369
A visão da festa em que negros tocam música “de tambores” que
atormenta os ouvidos, dão “saltos grotescos” e dançam de forma “lúbrica” é
mais uma vez um olhar alienígena sobre a cultura negra. De qualquer forma,
pelo relato do biólogo, os “senhores” também participavam da roda, ouvindo,
olhando e mesmo dançando entre negros e negras, como faziam
empolgadamente dona Maria Teófilo e outras senhoras pacatubanas.
É importante destacar que o “samba”, essa diversão que ocorria no
quintal da casa, era invenção de negros e de alguma forma caía no gosto dos
senhores brancos, ou seja, dos que oficialmente impunham o controle e
ditavam as regras de comportamento. Ainda que estes tivessem promovido o
“samba” em caráter excepcional para a recepção a um visitante, certamente
estava um espaço onde o mundo dos escravos transparecia nos senhores e o
negro colocava seus costumes em relevo, atuando como sujeito ativo capaz de
deixar sua marca na sociedade escravista.
Nessas convivências diárias é que as resistências e as sociabilidades
iam se gerando. Eram o lócus onde os negros tinham de sobreviver, no sentido
369
CISNEIROS, Francisco Freire Alemão. Os manuscritos do botânico Francisco Freire Alemão
de Cisneiros, op. cit. p 289.
161
de existirem apesar de tudo, ao mesmo tempo em que criavam uma cultura,
que sofria preconceito, mas que lhes permitia afirmarem-se como sujeitos.
Além da repressão da polícia e do preconceito de boa parte da elite,
os sambistas também enfrentavam o olhar conservador da Igreja, não apenas
porque o samba era espaço para música alegre e de livre expressão corporal,
mas, também por ser reunião em que havia consumo de bebida alcoólica,
prática considerada pouco cristã. É o que ficou registrado nas “Crônicas das
casas de caridade fundadas pelo padre Ibiapina”, em que se clamava contra “o
vicio grosseiro dos bebedores e sambistas”.
370
Em Bananeiras, o padre Ibiapina, que foi uma referência moral nos
sertões cearenses e nordestinos ainda nos anos 1880, ordenou a todos que
tivessem violas que lhas trouxessem, mandando guardá-las para o último dia
de sua missão na cidade. Nesse dia fizeram uma fogueira ao do Cruzeiro, e
em frente posicionaram duas alas de crianças: uma composta por meninas
trazendo nas mãos uma bandejinha com pontas (rendas de vestidos) que
Ibiapina havia pedido às mulheres vaidosas do local; a outra ala era composta
apenas por meninos segurando as violas. Finalmente, no encerramento dessa
festa para celebrar o “triumpho da Virgem Santissima”, e ao som de cantos,
foguetes e repiques de sino, as duas alas se aproximavam do fogo, as meninas
atirando as pontas e os meninos as violas, cantando:
Já morreo o samba
Já vencêo Jesus
Ardão pontas e viólas
Em honra da cruz
Todos os sambistas
Querem têr prazêr
Venhão ao pé da Cruz
Vêr Viólas ardêr.
371
Na verdade, essas encenações eram um ritual de purificação cristã.
Queimar violas ao da cruz simbolizava a purgação dos sambistas e a morte
de uma prática cultural reprovada pela Igreja Católica: o samba, que
incorporava elementos vários como a música de viola, mas, que a priori era
uma prática cultural negra. Nesse contexto, a Igreja justificava sua repreensão
370
HOONAERT, Eduardo. Crônicas das casas de caridade: fundadas pelo Padre Ibiapina.
Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006. p, 85.
371
Id., Ibid., p. 89.
162
aos sambas ligando-os ao vício da bebida e aos cantos profanos dos
sambistas (cantadores), embora nestes cantos se refletisse o “verdadeiro sentir
do povo”, como registrou Rodrigues de Carvalho.
Entre os do samba corre de mão em mão uma xícara em que se
serve a aguardente, a tradicional mandureba cearense Os
cantadores, depois do gole, se afiam e desafiam-se; toda a sorte de
ofensa rimada sai, vestindo a sátira do poeta popular, intérprete do
verdadeiro sentir do povo.
372
Nas últimas décadas do século XIX, movimentos políticos e
intelectuais como a abolição da escravidão, a “romanização” do clero cearense,
a passagem do Império para a República, a separação Estado e da Igreja
foram eventos nos quais o “povo” cantado nos sambas parece ter ficado à
margem do processo. Nesse sentido, o pensamento conservador católico, bem
como os representantes do governo não arrefeceram sua disposição em
reprimir os sambas e de permanecer associando-os a práticas culturalmente
atrasadas ou/e transgressoras. Tentativas de controle continuaram partindo de
diversos setores, como Igreja, chefaturas de polícia e empregadores.
Com a passagem definitiva do trabalho escravo para o livre, os
patrões, em geral, passam a exercer o papel dos antigos senhores na
repreensão ou pelo menos na condenação aos sambas. José Carvalho conta
que em fins do culo XIX um inconformado senhor de engenho (Bentes), ao
ser surpreendido certa madrugada pelo silêncio da “casa de moagem e o não
comparecimento de seus trabalhadores, desabafava:
- Este pobre paiz, nas mãos desses cabras livres, absolutos, sem um
freio, sem o chicote, decididamente vae ao abysmo. É este! É este o
grande bem que nos trouxe a abolição dos escravos! Canalha!
Depois de muito haver fallado, descutido, prognosticado, ouvio o som
de cantigas, de violas, de gritos alegres para os lados da casa do
mestre Felippe. Ah! Compreendera tudo! Estavam no samba!
- Estão bebados! – Estão todos bebados!
- Não havia que saber! Era aquelle o resultado de tal samba tanto
tempo fallado. Estão bebados! – Canalha!
373
372
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. op. cit., p. 91.
373
CARVALHO, José. Perfis sertanejos. Costumes do Ceará. Fac-símile da edição de 1897.
Apresentação de João Ernani Furtado Filho. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da
Cultura do Estado do Ceará, 2002, p. 89.
163
Esses conflitos entre o universo cultural de patrões e de empregados
apontam um papel ativo destes no cultivo de costumes próprios. Se, para um
ex-senhor de escravos, os sambistas eram “canalha” e “bebados”, para os
negros que participavam da “função”, este era um momento de vivências em
que se pode perceber sua construção como sujeitos históricos, não fora do
mundo do trabalho, mas fora do ambiente do trabalho.
Além disso, a bebida mais especificamente a cachaça poderia
significar algo que estava muito além do universo dos senhores/patrões. É
plausível, por exemplo, considerar-se a hipótese de que nos sambas (e em
outras manifestações negras) a aguardente tinha um significado que
transcendia o mundo físico, tocando mesmo o sagrado.
Paulo Dias, em estudo sobre as “comunidades do tambor” no sudeste
do Brasil, destaca o uso ritualístico da cachaça em práticas culturais negras em
que os instrumentos musicais são “purificados” com a cachaça.
Os tocadores ungem também as mãos com a bebida, e servem-se
de um gole. Estabelece-se assim, através da cachaça ritualizada, a
comunhão entre tocador, seu instrumento e os antepassados. (...) A
garrafa é mantida junto dos tambores e delas se servem todos, não
se aceitando bebidas vindas de fora.
374
Ora, se para as autoridades os sambas transmitiam uma mensagem
de transgressão e de bagunça, para seus freqüentadores (os sambistas) essas
reuniões festivas representavam diversão, em que havia bebida, música,
danças e cantos. Ao mesmo tempo, o samba reelaborado pelo negro no
Ceará transformou-se em espaço para diversas dimensões de sociabilidades
que iam desde a simples reunião de pessoas das mais diferentes matizes
sociais, passando por alianças entre cativos fugidos nos tempos da escravidão,
até o cus onde se exercitavam cantadores e tocadores de viola e se praticava
uma cultura de raízes africanas.
Enfrentando tantos desafios, reunindo gente de variado tipo e
apresentando um caráter dinâmico, os sambas foram uma vertente importante
da expressão cultural negro-cearense. Nesse sentido, Edison Carneiro defende
que “a simples presença de danças africanas no Brasil supõe demorado
374
DIAS, Paulo. A outra festa negra. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura
e sociedade na América Portuguesa. vol. II, São Paulo: Hucitec : Editora da USP: Fapesp:
Imprensa Oficial, 2001, p. 883-884.
164
processo de aclimação, com perda de alguns dos seus elementos e aquisição
de outros, novos, sugeridos ou impostos pelo ambiente”.
375
Com efeito, destacam-se nos sambas não apenas os sambistas
dançarinos, mas, também, sambistas tocadores de violas e cantadores. Nesse
“processo de aclimação”, que ocorre paralelamente à transição do trabalho
escravo para o livre no Ceará, houve a participação de negros livres e/ou
cativos. Quanto a estes últimos, novamente os anúncios de fuga de escravos
publicados em jornais dão pistas sobre alguns desses cantadores e tocadores,
como se percebia desde a década de 1870: “Ricardo, cabra fusco, quasi
preto, (...) toma tabaco, e fuma, é cantador e tocador (...)”
376
; “Antonio, cabra
claro (...) muito prosista, e metido a cantador (...)”; “Victal, trigueiro, cabello
muito crespo, sem signaes de castigo, gosta de tocar viola, jogar e beber
aguardente (...) levando em sua companhia uma mulher (...)”.
377
Considerando a hipótese de que Ricardo, Antonio e Victal assumissem
as características que lhes eram atribuídas pelos respectivos anúncios de fuga,
estariam, então, exercendo um papel multiplamente transgressor perante aos
códigos de posturas vigentes: eram escravos fugidos, jogadores, bebedores,
cantadores (sambistas), e Victal ainda levou na fuga uma mulher... Ponderando
que eram tantas as proibições a serem enfrentadas a fim de exercerem sua
personalidade e gostos, percebe-se o grau de importância que tais práticas
tinham na vida dessas pessoas.
Quanto aos cantadores negros livres, seu número foi crescente com o
avançar do tempo em direção ao fim do século XIX. Rodrigues de Carvalho
elenca vários desses personagens que “perambulavam” pelo nordeste
brasileiro, como Rio Preto, Manoel Sambola ou o “preto Caninana, que no
Passeio de Fortaleza, em dias de festa pública tem aliado o regozijo simples do
povo às manifestações do civismo cultuando a cidade”.
378
O negro Caninana cantava versos cívicos e de elogio à história de
Fortaleza, o que certamente agradava aos transeuntes do Passeio Público (ou
Praça dos Mártires). Não estaria mais uma tática de sobrevivência? Num
375
CARNEIRO, Edson. Folguedos populares. op. cit., p. 45.
376
Jornal Gazetilha, Fortaleza, 8 mar. 1870. In: RIEDEL, Oswaldo de Oliveira. Perspectiva
antropológica do escravo no Ceará. op., cit., p. 145.
377
Jornal Cearense. Fortaleza, 1 nov. 1871. In: CAMPOS, Manuel Eduardo Pinheiro.
Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. op., cit., p. 34 e 135.
378
Cf. CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. op. cit., p. 338, 350, 377.
165
tempo em que as migrações muito por causa das secas eram intensas, aos
sambas somava-se à dinâmica das cantorias, com a presença dos cantadores
itinerantes, muitas vezes negros livres ou cativos (alguns em fuga) que vinham
do interior para a capital. Leonardo Mota escreve que “cantadores são os
poetas populares que perambulam pelos sertões, cantando versos próprios ou
alheios”.
379
Nesse sentido, as composições cantadas nos sambas abriam um
leque que ia do preconceito contra o escravo e contra o próprio negro
380
até
outras que tendiam a colocar em relevo as atividades e vivências negras no
Ceará. Veja-se o caso de Pedro Nonato da Cunha, escravo da família Cunha,
de Itapipoca. Depois de liberto, veio residir no Morro do Moinho, em Fortaleza.
As estrofes a seguir, de sua autoria, ilustram como se cantavam as
reminiscências da difícil vida laboral do negro.
No engenho eu môo a cana,
No rodete a mandioca;
Eu tenho o braço pelado
De puxá mocó da loca;
Levo o diabo e não me esqueço
Da vila de Itapipoca!...
(...) Me dizem que eu não trabaio,
Que eu não sustento o meu brio...
Assim mermo preguiçoso
Sustento muié e fio!
No ano que eu não trabaio,
Planto dez quarta de mío,
Quando acaba ainda hái quem diga
Que o nêgo véio é vadio,
Mas eu sou é trem de ferro:
Só corro atrás dos meus trio...
381
Ao que parece a identidade cantada pelo negro Pedro Nonato estava
intrinsecamente ligada a seu passado de trabalhador, do qual se orgulhava,
cumpre ressaltar. Lembranças, migrações, sabedoria, vivências negras enfim,
eram cantadas nos sambas, cujas composições também tinham como mote a
379
MOTA, Leonardo. Cantadores. Poesia e linguagem do sertão cearense. 2. ed. Rio de
Janeiro: Editora A Noite, 1953, p. 9.
380
Um exemplo era Luís Dantas Quesado, branco, paraibano radicado no Ceará, autor das
seguintes glosas: Juazeiro é pau de espinho/Todo o moleque é canalha/Fichu de besta é
cangalha/Bebida de branco é vinho/O pau que risca é graminho/O jantar à noite é ceia/Casa
de preso é cadeia/Homem de força é Sansão/Banho de cabra é facão/Palitó de negro é
peia”. In: MOTA, Leonardo. Cantadores, op. cit.,. p. 116.
381
MOTA, Leonardo. Cantadores, op. cit., p. 86-90.
166
capacidade e a exaltação da criatividade do cantador, como exemplificam os
versos “Rimas em ia”, colhidos por Rodrigues de Carvalho, em Fortaleza, no
ano de 1900.
Fui chamado prá cantá
Na casa do Malaquia.
Minha mãe se lastimava
E meu pai se maldizia,
Minha irmãzinha chorava
E minha avó se aborrecia,
Os bichos do meu terreiro
De pena se entristecia.
Fui cantar só prá mostrá
Quanto um caboclo valia.
Cantei sexta, cantei sabo
E domingo todo dia,
Não cantei segunda-feira
Por que samba não havia.
E o rei mandou me chamá
Prá casar com sua fia,
Me dava prá governá
Oropa, França e Bahia (...).
382
De certa forma, os sambas em suas várias dimensões foram
espaços que contribuíram para o desenvolvimento das cantorias. Muitos outros
exemplos poderiam ser citados, mas, como escreveu Rodrigues de Carvalho:
“Se formos catar e colecionar tudo quando o gênio do povo tem produzido em
poesia, teríamos de editar volumes e volumes”.
383
Embora o samba, manifestação cultural negra em movimento,
permitisse interações culturais, continuava sendo sempre palco para afirmação
identitária como se percebe na composição supracitada em que por meio dos
versos o cantador anuncia que vai mostrar “quanto um caboclo valia”.
Outrossim, mesmo que os sambas sofressem transformações ao
longo da segunda metade do século XIX e chegassem a ser interpretados
como sinônimos de “briga”
384
, continuavam sendo reuniões de pessoas, com
música alegre, danças e bebida.
Independentemente das transmutações dos sambas, os ajuntamentos
festivos com essas denominações continuaram a existir em Fortaleza,
382
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. op. cit., p. 269.
383
Id., Ibid., p. 367.
384
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Charuto. Fortaleza, 28 maio 1904, p. 4, rolo
nº. 67
167
associados, pelas autoridades, à violência e à perturbação da ordem blica;
daí serem continuamente perseguidas pela polícia ou/e denunciadas em
jornais, ainda que em tom discreto como no poema “Um rolo”
385
, publicado em
jornal fortalezense, no ano de 1889, e que conta a história de Julião, “cabra
reimoso”, ou seja, um negro brigão. Apesar de haver muitos brancos
freqüentando os sambas, o negro ainda é colocado preconceituosamente como
personagem que provoca a confusão.
Na documentação da Secretaria de Polícia do Ceará, referente às
ultimas décadas do século XIX, encontram-se diversos casos de violência e
confusões em sambas. Mas, os sambas como espaços de conflitos era a visão
das autoridades; não necessariamente em todas essas reuniões ocorriam
brigas. O que acontece é que, em geral, os registros eram feitos pela polícia e
somente quando havia alterações nessas reuniões que a própria polícia
denominava samba.
É importante considerar que os sambas eram espaços de liberdade e
para onde por vezes se levavam contendas individuais reprimidas em outros
espaços sociais (os quartéis, por exemplo). Não seria o caso dos constantes
atritos entre os praças do 11º Batalhão do Exército? Veja-se o registro do
delegado de polícia de Fortaleza, cobrando “novamente” providências e
punições e, nesse caso, mais especificamente contra um soldado, Raymundo
Caboclo, que havia dado uma cacetada na cabeça de outro praça levando-o à
morte.
Ao Commandante do 11º B.
m
de Infantaria - Tenho a honra de
communicar-vos que, no dia 28 do mez proximo passado, em um
samba que tomaram parte varias praças do Batalhão de vosso
commando, á rua do Pajehú, João Luiz da Silva foi ferido com uma
cacetada na cabeça e falleceu horas depois, constando do inquérito
procedido pelo subdelegado do districto ter sido auctor do crime o
soldado do mesmo batalhão Raymundo Francisco, vulgo Raymundo
Caboclo, que, segundo consta, se acha preso no respectivo
385
Cessou, de chofre, o samba. O Julião/Cabra reimoso, e muito bebido/Atracou-se o
Rufo, um atrevido/Que o havia chamado beberrão/Fechou-se o tempo, roncou forte a
madeira/E viu-se logo sentilar os ferros/Confundiram-se apitos, pragas, berros/E as moças
fugiram de carreira/Subito ouviu-se um brado de terror/Uns urbanos, quaes negros
urubus/Surjiram enjuntando os sabres nus/Tendo a frente o tetrico vapor... SIR WARTON”.
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 10 jan. 1889, p. 3, rolo
nº. 227.
168
quartel. Saúde e Fraternidade. Chefe de Policia. Dr. Sammuel
Felippe de Souza Uchôa.
386
O que se pode perceber, então, é que nas décadas de 1870 a 1890,
aproximadamente, os sambas foram incrementados com novos e diversos
elementos e personagens, configurando-se uma prática festiva em que se
misturavam representantes de vários extratos sociais, com maior ou menor
intensidade a depender do local e ambiente urbano/rural onde o evento ocorria.
Por outro lado, os sambas eram festas de negros, em que se fugia um
pouco do trabalho, teciam-se relações de solidariedade entre escravos e livres,
celebravam-se identidades, ensaiavam-se revoltas, praticavam-se as
conquistas de espaços públicos e privados na cidade, entre outras coisas.
Ao mesmo tempo, foi ocorrendo o processo que Edison Carneiro
denominou “individuação” e o samba cearense passou a ter outros nomes,
como funções, batuques de viola e forrobodó. Quando o samba com o
toque de viola incorporado passou a ser dançado nos salões, foi forçado a
amenizar sua principal característica africana a umbigada. Considerada
“lasciva” pela elite, foi gradativamente substituída por gestos equivalentes,
como mímica ou o simples toque de perna ou de pé.
387
Em Fortaleza e outros municípios, as autoridades viam os sambas
como reuniões em que era potencial a transgressão. No entanto, percebe-se
que para os negros, resistência, sociabilidades e ocupação de espacialidades
na cidade eram aspectos mais intensos que se entrecruzavam e se somavam
nesses sambas.
Enfim, o samba na complexidade de suas dimensões por toda a
parte era “nota obrigatória das alegrias do povo”, como ressaltara Rodrigues de
Carvalho; no entanto, não se constituía em manifestação cristalizada e estática,
mas, sim, permitia-se a um constante reelaborar-se e abria-se à participação
de sujeitos diversos que, por sua vez, circulavam por outras práticas culturais
de matrizes africanas, como os congos e os maracatus.
386
APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de officios a diversas auctoridades.
10 out. 1890. Ala 02, estante 27, livro nº. 265, fl. 56 v.
387
Cf. CARNEIRO, Edson. Folguedos populares, op. cit., p. 53.
169
Capítulo 3
Para os pretos plebeus, maracatu e samba: reelaboração
cultural e (re)apresentação do sagrado
No ano em que o Império brasileiro teria fim, publicou-se uma
interessante crônica num jornal de Fortaleza relembrando a festa que se
costumava fazer anualmente na cidade, juntando maracatus, sambas, congos
e outras manifestações culturais negras; todos sob a liderança dos reis negros
coroados no âmbito da Irmandade do Rosário. Na visão (e palavras) do
cronista, os negros que não pertenciam à corte real, seguiam-na no desfile pela
cidade: “Para os pretos plebeus, maracatú e samba”.
388
Esse era o olhar do cronista, ao que parece simpatizante dessas
manifestações, mas, que mostrava um viés em que apenas o aspecto do
divertimento era ressaltado. Nessa festa de negros muitas outras dimensões
sociais e culturais certamente podiam-se projetar: resistência, religiosidade,
sociabilidades, identidades, territorialidades, e outras mais.
No primeiro tópico do presente capítulo, a proposta é continuar a
discussão sobre o que eram essas “festas de negros” em Fortaleza, mas
ressaltando como tais manifestações compartilhavam tempos e espaços
comuns, muitas vezes percorridos pelos mesmos sujeitos. Também, como
essas práticas continuaram sendo reelaboradas, havendo a “permanência” de
alguns elementos, mas, por outro lado, ocorrendo a inclusão e a ressignificação
de outros tantos afins; o que parece ter contribuído para que práticas culturais
negras continuassem existindo (e interagindo) na capital do Ceará. Nesse
contexto, analiso a “fundação” do maracatu Az de Ouro e a questão da
influência sofrida (ou não) dos maracatus recifenses.
Nesse caminho, é importante analisar o deslocamento da corte negra
presente na Irmandade do Rosário e nos autos de rei congo para os maracatus
fortalezenses, em fins do século XIX, e a reinvenção desses maracatus na
década de 1930 quando do surgimento do Az de Ouro.
388
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 07 jan. 1889, p. 2, rolo nº.
227.
170
A proposta não é fazer uma ponte linear e imutável entre os maracatus
fortalezenses do século XIX e do XX, mas, sim, tentar perceber como a
capacidade criativa de seus sujeitos promoveu a reelaboração da festa
permitindo-lhe transformar-se, mas, ao mesmo tempo, constituir-se num
instrumento de resistência e de sobrevivência da cultura negra em Fortaleza,
num sentido próximo ao pensado por Marshall Shallins de que a
transformação de uma cultura também é um modo de reprodução”.
389
No tópico dois, procurando perceber como essa constante
reelaboração das festas de negros em Fortaleza amparou o deslocamento da
corte negra na cidade por manifestações culturais diversas (festa de coroação
de reis negros na Irmandade do Rosário, autos de rei congo, maracatus), lanço
mão da análise de alguns elementos simbólicos que perpassam as práticas
supracitadas e que parecem dialogar com outras práticas culturais afro-
brasileiras.
Assim, parece-me válido também investigar as interligações entre
congos, maracatus e cucumbis, bem como analisar a presença da calunga,
elemento central em diversas manifestações afro-brasileiras enquanto
(re)apresentação do sagrado, considerando que a boneca (calunga) traz a idéia
da transição (cíclica) entre vida e morte.
Ainda quanto à existência de elementos que acenam para o campo do
sagrado, será considerada a “permanência” de costumes como o de pintar o
rosto de preto, presente nos maracatus fortalezenses, não parecendo ser essa
uma simples atitude de brancos que se “fantasiavam” de negros, como o
fizeram sujeitos históricos em outros lugares tentando se apropriar da cultura
negra até como meio de vida
390
, mas, sim, como uma expressão negra capaz
de projetar múltiplos significados, embora, por vezes, aparecesse como
“estranha” ao olhar de alguns memorialistas.
389
SHALINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores: 1990, p. 174.
390
Eric Hobsbawm, escrevendo sobre a história social do Jazz, comenta que nos Estados
Unidos, na primeira metade do século XIX, muitos cativos viram na música sua melhor
chance de sair das piores formas de escravidão. Assim, muitos negros aprenderam a música
dos brancos, mas, instilando nela algumas de suas tradições. Por sua vez, compositores
brancos também “introduziram algumas matizes de negros do Sul nas canções brancas, e no
Norte do país prosperou a indústria de imitadores de entretenimento negro, com tocadores de
banjo com o rosto pintado de negro”. (Cf. HOBSBAWM, Eric J. História social do jazz. Trad.
Angela Noronha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 57)
171
3.1 – A Reelaboração das Festas e a Circularidade de Seus Atores
Nas últimas décadas do século XIX, coroações de reis no Rosário,
congos, sambas e outras festas de negros certamente tinham suas
peculiaridades e mesmo significados diferentes. No entanto, embora pudessem
existir paralelamente, também ocorriam em formas interligadas, compartilhando
tempos e espaços comuns.
Em 1889, publicou-se no jornal Libertador um interessante relato sobre
“usos e costumes de antigos festejos em Fortaleza, no qual se lembra essa
mistura das festas de negros e de seus sujeitos na cidade.
(...)
Ao uso de tirar os Reis no 6 de Janeiro, junte-se-lhe que este era o
grande dia dos pretos, de saudosa memoria. O Rei e a Rainha d
´elles iam á missa ao Rosario. D´ahi, ao Paço, uma casa alugada
para o festejo, com todos os seus subditos, que era toda a negrada
captiva da cidade. Branco ia para a cosinha, se queria comer. As
mulatas punham sapato Luiz XV e vestido de princeza. A noite
grande baile. Para os pretos plebeus, maracatú e samba. Iam ao
Paço dançar os congos e o bumba meu boi. Quase sempre a festa
era toldada pelos moços brancos que, á muito empenho tendo obtido
ingresso, faziam declarações de amor ás cabrochas espigaitadas e
rolo com os cabrochos idem. Esse era o tempo do Mestre Benedicto,
fundador da egrejinha do santo do seu nome, rei chronico dos
congos, que recebia o embaixador a toque de sanfona; da Maria
Pernambucana, que tinha escravos e trazia sempre o pescoço e os
punhos enrolados de ouro; de João Samango, um escravo lettrado;
do Xavier do braço cortado, que era um Lopes Trovão no meio d
´elles; do Mestre Macieira, e de tantos outros, que, a despeito de
quem quer que seja, têm tanta ou mais valia do que certas
brancuras.
391
Essa fonte mostra um momento de diálogo entre práticas culturais
diversas coroações de reis negros, sambas, maracatus, congos, boi cujos
adeptos se reuniam para uma grande festa. O detalhe é que, segundo o autor
do texto, não apenas os negros (cativos ou livres) da Irmandade do Rosário
dos Homens Pretos eram súditos dos reis (congos) coroados na confraria, mas
também todos os escravos da cidade, o que aponta certa quebra da hierarquia
social cotidiana.
391
BPGMP,cleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 07 jan. 1889, p. 2, rolo nº.
227.
172
Assim, por intermédio da festa, os cativos rompiam com seus “donos”
que lhes exploravam a força de trabalho e seguiam reis que reapresentavam
uma ancestralidade africana em Fortaleza; igualmente, eram momentos em
que os negros ocupavam o lugar de senhores/amos/patrões; divertindo-se,
mas, também, conquistando espaços, onde se exerciam sociabilidades e se
expressavam visões próprias de mundo.
Outro aspecto é que o movimento dessa corte negra até a igreja do
Rosário e daí ao “paço” (geralmente uma casa no “subúrbio”) aponta que a
festa ocorria também no trajeto entre esses dois extremos, ampliando-lhe,
assim, os territórios numa cidade em fase de reurbanização. Cumpre observar
que negros (cativos e livres) e brancos, por vezes freqüentadores polivalentes
das várias manifestações culturais negras na cidade, acompanhavam esses
“antigos festejos, tornando-se todos, de certa forma, plebeus dessa “nobreza
de cor”.
É bem verdade que parte dessa nobreza era composta por mulatas
que se vestiam à européia e calçavam sapatos estilo Luís XV, deixando
transparecer a influência francesa na moda da época. Mas também é possível
pensar que essa corte negra se apropriava de elementos da cultura européia a
fim de astuciosamente assumir momentaneamente o lugar do “próprio”
392
,
como diria Michel de Certeau.
Nesse sentido, para os atores dessa festa, as mulatas viravam
elegantes princesas e uma casa alugada no subúrbio se transformava em
palácio (paço) dos negros. Além disso, brancos “iam para a cozinha se queriam
comer” porque os negros que estavam na festa não eram naquele momento
trabalhadores cativos, criados ou empregados, mas reis, princesas, mordomos,
juízes e procuradores da Irmandade do Rosário, embaixadores dos congos,
enfim, sujeitos que ressignificavam costumes africanos e europeus a partir do
contexto vivido no Brasil e se projetavam como sujeitos sociais na capital do
Ceará.
392
“Próprio” aparece aqui como sistema dominante imposto por uma elite política, econômica e
intelectual, e que vai ser “invadido” pelos negros através da festa, sem que estes queiram ser
o outro, ou seja, o “próprio”, mas, sim com intenção de resistir a ele. Sobre a noção de
“próprio”, Cf. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. Petrópolis:
Vozes, 1994.
173
É bem verdade que esse processo tocava a todos que participavam
desse ajuntamento promovido pela festa, incluindo os “moços brancos” que
tinham relacionamentos com as cabrochas e negociações com os cabrochos
393
.
É nesse sentido de as festas de negros serem uma força de convergência de
múltiplos sujeitos e elementos, que entendo a frase Para os pretos plebeus,
maracatu e samba” escrita pelo autor da fonte supracitada, ou seja, “maracatu”
seria o cortejo que acompanhava os reis negros (congos) coroados na igreja do
Rosário
394
, incluindo-se tanto a nobreza quanto a diversidade de “súditos”
que a seguia pelas ruas da cidade; o “samba” seria a festa propriamente dita
no “palácio”, com música, cantos, dança, comida, bebida, etc...
Interessante é que o autor dessa publicação sobre “costumes e
antigos festejos” faz referências a negros (Mestre Benedicto, Maria
Pernambucana, João Samango, Mestre Macieira, Xavier “do braço cortado”)
que eram reconhecidos e respeitados na sociedade fortalezense,
provavelmente por estarem ligados a práticas culturais negras, sendo
justamente essas manifestações que despertavam no cronista a lembrança
desses sujeitos.
Vale lembrar que essas festas de negros eram constantemente
reelaboradas e orbitavam entre a aprovação e a condenação e, neste último
caso, era preciso buscar alternativas para a sobrevivência da festa. Assim, se o
conservadorismo católico contribuiu para decadência da Irmandade do Rosário
em Fortaleza e provocou o fim da festa de coroação de reis negros no âmbito
da confraria, muitos irmãos e ex-irmãos passaram a festejar seus reis nos
congos ou/e a participar de outras manifestações culturais negras, como o
maracatu. Além disso, se a idéia de “civilidade” absorvida pela elite local
contribuiu para a tentativa de se confinar as apresentações de congos a praças
e terrenos cercados, por outro lado, motivou a cobrança de ingresso para
assistir ao auto do rei congo.
As tentativas de cerceamento aos congos não apenas geraram
protestos, como o que aparece no jornal Libertador, em 1889, onde se
reclamava que “no caracter de todas as prohibições policiaes, isso é de muito
393
Cabrocha(o) aparece aqui como sinônimo de “mulata(o)s”. Cf. LELLO, José; LELLO, Edgar.
Lello Universal. Dicionário enciclopédico luso-brasileiro em 4 volumes. .p. cit., v. 1, p. 412
394
Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 11 ed. revista, atualizada e
ilustrada. São Paulo: Global, 2002, p. 361.
174
mau gosto”
395
, mas, também, podem ter contribuído para surpresa e
contragosto das autoridades – para o aumento das apresentações de congos.
Veja-se o seguinte anúncio, publicado em janeiro de 1890.
Anúncios
Congos
Alerta rapasiada!
Cabeças falantes!
– Raymundo Gurgulho –
A voz de trovão
Joaquim Xavier
Nas fúrias de imperador
O director deste brinquedo dará uma representação em beneficio da
caixa – MONUMENTO SAMPAIO.
Promete a maior novidade.
Preços e horas do costume.
396
Chama atenção a divulgação de que os preços e horários eram os “do
costume”, pois indica a freqüência dessas apresentações e aponta que as
mesmas eram de amplo conhecimento da população fortalezense. Além disso,
o local da apresentação não é citado no anúncio provavelmente porque a
população fortalezense associava esses congos a determinados espaços na
cidade, apontando-se mais uma vez que territórios eram “conquistados” através
da festa.
Ao se prometer a maior “novidade”, tentava-se atrair grande
número de pessoas para a apresentação. É importante, porém, refletir sobre o
público que o anúncio visava atingir. Se que era destinado apenas aos
leitores de jornal, num tempo em que boa parte dos munícipes não sabia ler ou
era mais uma tática para se fazer sobreviver uma cultura negra na cidade?
Provavelmente ocorria que os leitores do anúncio também poderiam se tornar
divulgadores das apresentações, não apenas porque comentassem sobre as
apresentações dos congos anunciadas em jornais, mas, também, porque
alguns iam (e participavam, ainda que como espectadores) aos autos de rei
congo e contavam sua experiência a posteriori fazendo transcender o tempo e
o lugar da festa.
395
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 14 jan. 1889, p. 2, rolo n°.
227.
396
BPGMP, cleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 8 jan. 1890. p. 2, rolo nº.
35.
175
Outro aspecto é que, segundo o anúncio, parte da arrecadação seria
destinada à construção do monumento ao General Sampaio, cearense morto
em combate na Guerra do Paraguai. Importa destacar que Joaquim Xavier
diretor do congo anunciado também lutara como soldado nesse mesmo
conflito em que perdera um braço
397
; daí seu apelido de “Xavier do braço
cortado”, como se registrou na crônica publicada no jornal Libertador em 1889
e transcrita no início desse tópico. O monumento a Sampaio seria uma
homenagem pessoal de Xavier ao general com quem dividira o campo de
batalha ou haveria interesse em se ligar uma manifestação cultural negra aos
cultos cívicos
398
como mais um artifício para perseverar a existência dos
congos que, nessa época, eram forçados a se apresentar em praças e terrenos
cercados?
De qualquer forma, considerando que o ex-soldado Joaquim Xavier
também era “procurador”
399
da Irmandade do Rosário de Fortaleza, observa-se
como os sujeitos dessas festas de negros circulavam entre os vários
segmentos da sociedade. Xavier era um dos principais personagens dos
congos, mas também seu “diretor” e, por conta, disso tinha que “negociar” com
a polícia o local e as condições da apresentação; por outro lado, também
representava interesses de uma irmandade de “homens pretos” diante do
Estado e da Igreja. Nesse contexto, Xavier do braço cortado militar, irmão,
ator nos congos –, seria um exemplo do “intermediário cultural”
400
proposto por
Michel Vovelle, por ser um sujeito capaz de transitar entre os mundos que
entrecruzavam a festa: diversão, trabalho e resistência cultural.
A capacidade de “trânsito” de sujeitos representantes de uma cultura
negra, no caso os congos, ajudava essas manifestações a resistirem ao
preconceito, ao controle e à política de reurbanização que tentavam afastar tais
práticas para os “subúrbios”. De forma geral, a presença (e a resistência) das
festas de negros em Fortaleza pode ser visualizada no mapa a seguir.
397
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. 2. ed. Fortaleza: Edições UFC/PMF, 1980, p.
128.
398
Sobre a tendência de se promover na Fortaleza de fins do século XIX uma corrente política
e ideológica afinada com os positivistas militares, ver OLIVEIRA, Almir Leal de. O Instituto
Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará. Memória, representação e pensamento
social (1887-1914). Tese de doutorado. São Paulo: PUC, 2001, p. 238.
399
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 03 jan.. 1890, p. 2, rolo
nº. 201.
400
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 214.
176
177
A localização das festas de negros no mapa de Fortaleza é importante
porque aponta a diversidade dessas manifestações, bem como certa
circularidade entre elas, considerando que muitas vezes ocorriam em tempos e
espaços comuns, como os congos que acompanhavam os reis negros na sua
coroação na Igreja do Rosário.
Além disso, através do mapa se percebe que as festas de negros
ocupavam diversos lugares da cidade. Os congos apareciam mais no eixo
representado pelas ruas da Boa Vista e Major Facundo e que atravessava a
parte “nobre” da cidade, ligando a Praça do Passeio Público à Praça do
Livramento (Carmo). Os maracatus localizavam-se em áreas fisicamente
próximas ao centro, mas longe dos “progressos” da reurbanização; eram locais
habitados por pessoas pobres, muitas delas imigrantes do interior do Ceará. É
preciso considerar que os grupos de maracatus ampliavam sua presença em
Fortaleza, quando “desciam” de suas sedes em direção à igreja do Rosário e a
outras partes centrais da cidade, nas épocas das coroações de reis negros ou
no período do carnaval. Quanto aos sambas, foram registrados em diversos
pontos da capital, com destaque para a região localizada a leste do Pajeú, em
direção ao elevado conhecido como “Outeiro”.
401
Certamente, a disposição dessas práticas festivas se dava por
influência dos sujeitos que as compunham e como resposta ao contexto social
em que viviam. Por exemplo, os sambas (perseguidos pela polícia) eram mais
ligados ao cotidiano e, quando ocorriam nas ruas e praças principais da cidade,
como na Rua do Imperador ou na Praça do Ferreira, tinham um maior caráter
de transgressão dos códigos de posturas; com efeito, os “sambistas” tendiam a
dar a essas manifestações um caráter efêmero, “organizando-as” de maneira
improvisada.
nos sambas feitos nas casas (que geralmente começavam ao
entardecer e iam até a madrugada), lançava-se mão de outra “tática” de
resistência, ou seja, escolhiam-se espaços (habitações), de certa forma,
“isoladas do centro” (pelo Rio Pajeú, por exemplo), mas que ao mesmo tempo
permitiam o fácil acesso dos “sambistas”. Foi o caso de Bento Rodrigues, em
401
Para a visualização de ruas e praças citados, rever mapas das páginas 82 e 83.
178
cuja residência, como visto, constantemente sambavam praças do Batalhão
de Infantaria, localizado ali próximo.
402
Quanto aos congos, é preciso considerar que tinham interesse em
atrair o maior número de pessoas (pagantes); d a importância de ocuparem
não apenas espaços de fácil acesso, mas também, onde a manifestação
tivesse o máximo de visualização. Foi o caso dos congos sob a direção de
Joaquim Xavier e que se apresentavam no primeiro quarteirão da Rua Senador
Pompeu e às vezes na Rua da Boa Vista, entre a Praça do Ferreira e a Rua de
São Bernardo (atual Rua Pedro Pereira), como se relembra em uma crônica
publicada no início do século XX
403
.
As apresentações dos autos de rei congo buscavam ocupar locais
mais centrais de Fortaleza, o que se constituía num outro tipo de desafio para
esses sujeitos, pois essas áreas mais privilegiadas da cidade era onde
estavam edificações públicas e privadas (Passeio Público, Cadeia, Sede do
Governo, Clubes Iracema e Cearense) que, de certa forma, simbolizavam a
repressão e o preconceito contra as “encenações populares”. Por outro lado,
era justamente isso que tornava mais intensa a “conquista” do espaço por
causa da festa.
Assim, a localização geográfica dessas festas de negros tem como
propósito ser mais do que apenas um espalhado de registros colhidos de
fontes produzidas mais de um século e ao longo de alguns anos
404
. É, pois,
uma tentativa de composição de indícios que permitem desenhar uma outra
cidade, cujos sujeitos predominantes não vêm da elite política, financeira ou
intelectual, mas, sim, de uma população composta por negros (cativos, libertos
ou livres), criados (muitos eram ex-escravos), trabalhadores de diversos
“ofícios”, retirantes, moradores de “casas cachimbo” localizadas nos
“subúrbios” ou em áreas pouco privilegiadas pela “modernização” da capital do
Ceará.
402
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 9 ago. 1877, p. 3, rolo
nº. 84. Cf. localização do Batalhão de Infantaria no mapa da página 82.
403
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 10 jan. 1911, p. 1, rolo nº
112.
404
As festas do Rosário, congos, sambas e maracatus foram localizadas no mapa a partir de
fontes diversas (compromissos da Irmandade do Rosário, jornais, registros da polícia,
memorialistas) citadas ao longo dessa pesquisa, e se referem às três últimas décadas do
século XIX, com exceção dos Congos de João Gorgulho que se passaram a se apresentar na
Praça dos Coelhos, no início do século XX.
179
Com o crescimento urbano de Fortaleza e com a continuidade de uma
política de cerceamento às festas de rua, os autos de rei congo foram
empurrados para locais mais distantes do centro, como a Praça dos Coelhos.
Não obstante, conseguiram manter um eixo territorial (ainda que
eventualmente) que atravessava a “área central” da cidade, passando pela
Praça do Ferreira e tangenciando a Praça de Pelotas.
Ao mesmo tempo em que as festas de negros lutavam para
permanecer na cidade de Fortaleza, houve uma maior interligação entre elas,
bem como uma intensa circularidade entre seus sujeitos, o que parece ter
fomentado o uso de elementos da festa (os cantos, por exemplo) para se fazer
críticas à elite que, em última instância, era a responsável pela política de
cerceamento à prática de uma cultura negra.
Veja-se o seguinte verso, que, como foi comentado, era cantado
tanto nos sambas como nos congos:
Os branquinhos vão dizendo
Que todo negro é ladrão.
Os branquinhos também roubam
Com sua pena na mão.
405
Ao ser cantada num samba que ocorria nos “subúrbios” da cidade,
essa quadra certamente tinha uma dimensão diferente de quando cantada nos
congos, ou seja, na presença de um grande público e de diversas origens
sociais, ou, ainda, quando era cantada próximo a prédios, como o Palácio do
Governo, o que potencializava a dimensão de protesto contra o preconceito
sofrido pelos negros, bem como marcava de forma mais impactante a atuação
desses sujeitos (negros) numa cidade que, em geral, os negava.
Observando os cantos proferidos nos autos de rei congo em ruas,
praças e terrenos baldios (e cercados) de Fortaleza, percebe-se que vários
deles trazem indícios de conexões entre as manifestações culturais negras na
cidade. Seria o caso do verso coletado por Gustavo Barroso, anunciando a
entrada do Rei (Congo) no auto.
405
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 176; ver também: PAIVA, Manoel de
Oliveira. Dona Guidinha do Poço. 2. ed. o Paulo: Ática, 1981; MOTA, Leonardo.
Cantadores. Poesia e linguagem do sertão cearense. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora A Noite,
1953; CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. 3. ed. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1967.
180
Rabeca, viola, pandeiro e maracá
Viva nosso Rei que já vem dançar.
Rabeca, viola, pandeiro e maracá
Viva nosso Rei que já vem dançar!
Rabeca, viola, pandeiro e maracá.
406
Maracá de lata era instrumento típico dos maracatus; pandeiro, rabeca
e viola eram muito utilizados nos sambas. De certa forma, o tipo de instrumento
utilizado também aponta o trânsito desses músicos e cantadores pelas diversas
práticas festivas de negros; e essa circularidade certamente contribuiu para
uma perenização dessas manifestações em Fortaleza.
Talvez isso fique mais bem posto, se exemplificado com o caso do
célebre Inácio da Catingueira, cantador conhecido por sua esperteza e
criatividade nas rimas, mas, também, por ter sua identidade ligada a um
instrumento típico do samba: o pandeiro
407
. Segundo Rodrigues de Carvalho, o
famoso cantador negro Ignácio da Catingueira “era escravo e morreu nesta
condição. De cor escura e analfabeto, causava admiração por toda a parte seu
talento”.
408
Sem a intenção de confundir cantorias ou desafios com sambas, mas
tentando perceber como o samba se constituía em espaço para se cantarem
desafios que muitas vezes remetiam às experiências e às práticas culturais do
negro no Ceará, cito a seguir um trecho do embate entre Francisco Romano e
Ignácio da Catingueira, coletado por Rodrigues de Carvalho, em que se
percebe uma provocação à condição social de Ignácio (escravo) e se canta a
liberdade do negro para agir como deseja, mas, também, certa associação das
identidades de cantador e de sambista que, no meu entendimento, é assumida
inclusive por Romano, ao denominar o local onde vadeia (diverte-se) de
“samba”, instituição que, em princípio, era uma manifestação cultural de raízes
africanas.
406
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. op. cit., p. 177.
407
Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. op. cit., p. 192; e
ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA. Popular, erudita e folclórica. 2. ed. revista e
atualizada. São Paulo: Publifolha, 1988, p. 240.
408
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. op. cit. p. 337.
181
(Romano): Negro, me diz o teu nome,
E onde és morador;
Se és casado ou solteiro,
Se és escravo e tens senhor;
Fala com sinceridade,
Que eu quero ser sabedor.
(Ignácio): Em casa do meu senhor
Compro, vendo e faço feira,
Aqui está seu servo e criado
Ignácio da Catingueira.
(Romano): Negro, em tuas pabulagens
Eu não posso acreditar.
Pois eu também tenho negro
Mas não boto a vadiar;
Quando saio prá uma festa,
Negro sai prá trabalhar.
(Ignácio): Seu Romano bem que sabe
Que isso não é bem comum
Meu senhor tem muito escravo,
Seu Romano só tem um.
(Romano): Ignácio, esbarra o pandeiro,
Para afinar a guitarra,
Pois no samba em que eu vadeio
Negro cativo eu amarro;
E se o negro faz-se besta,
Boto na mesa do carro
409
.
(Ignácio): Se for à mesa do carro
Seu Romano passa má,
Está no chumbo está na bala,
Está na corda de crauá,
Dá-lhe o preto, dá-lhe o branco,
O negro também lhe dá;
Bato palma à cachorrada,
Pega cão! deixa rasgar.
410
que se lembrar que, a partir da década de 1870, intensificaram-se
as correntes migratórias do interior do Ceará para a capital, o que,
teoricamente, pode ter contribuído para que cantadores e poetas estivessem
ainda mais presentes nas diversas festas de negros, como os sambas, os
congos e mesmo nas coroações de reis na Irmandade do Rosário.
A figura do cantador nos sambas e congos (e, mais tarde, “tirador de
loas” nos maracatus) tornou-se uma referência importante nas manifestações
409
Segundo Rodrigues de Carvalho, o opositor de Ignácio faz referência a uma cena da
escravidão: botar na mesa do carro queria dizer açoitar o cativo, amarrado de bruços sobre o
carro de bois. Cf.. Cancioneiros do Norte. op. cit., p. 352.
410
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiros do Norte. op. cit., p. 351-352.
182
festivas negras em Fortaleza e no Ceará, até porque a cultura africana
reelaborada em terras cearenses passava pela dimensão da oralidade bastante
presente na África. Nesse sentido, Paulo Dias destaca a “crença no poder
encantatório da fala” em práticas culturais como os desafios, em que “a
habilidade artística dos cantadores pode significar poder de sortilégio,
manifestando a força mágica da palavra proferida tão respeitada entre os
africanos”.
411
Nas festas de negros, cantadores e poetas, não obstante sua origem
geográfica e finalidade de suas presenças, eram livres para criarem e cantarem
seus versos em público, liberdade que muitas vezes gerava conflitos entre os
próprios participantes da festa, como foi o caso descrito por João Nogueira
referindo-se ao caso do negro Roqueira. Numa das vezes que foi eleito rei,
Roqueira pediu a Antônio Antunes que escrevesse um discurso elogioso para
ser lido após a missa solene de coroação. Chegado o momento oportuno,
perante à corte e à assistência, o poeta começou a ler os versos exaltando,
virtudes e qualidades do Roqueira que, sentado no trono, de coroa na cabeça,
tendo ao lado a sua Rainha, enchia-se de satisfação e de orgulho diante da
“aprovação fingida dos brancos”
412
. O último verso de Antunes, porém,
referindo-se ao Roqueira e a sua companheira Marcela, dizia assim:
Para mostrar que sou Rei
Marcela me ponha nu
Toque-me fogo no ...:
Verão que estrondo darei!
413
Ainda segundo João Nogueira, Roqueira suportou a gargalha
geral dentro da Igreja e “não perdeu o aprumo”. Mas, essa não seria
justamente a atitude esperada de alguém que incorporava a figura de um
monarca? Alguns dias depois, entretanto, o poeta Antunes levou uma grande
(e anônima) surra da qual mal podia se levantar. “Era a vingança do Roqueira”.
414
411
DIAS, Paulo. A outra festa negra. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura
e sociedade na América Portuguesa. vol. II, São Paulo: Hucitec : Editora da USP: Fapesp:
Imprensa Oficial, 2001, p. 883-884.
412
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. op. cit., p, 181-182
413
Id., Ibid., p, 182.
414
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. op. cit., p. 183.
183
Essa passagem também suscita uma reflexão sobre a participação
dos brancos na Irmandade do Rosário, no caso citado, uma participação
“fingida”, segundo Nogueira. Mas a questão é: o fato de alguns brancos (da
elite) participarem de uma confraria de negros como “irmãos por devoção” os
transformavam verdadeiramente em confrades?
Talvez a reflexão sobre a noção de grupo proposta por Richard
Hoogart
415
e que traz a oposição entre os que estão dentro (“Nós”) e os que
estão fora (“Eles”) ajude a pensar essa questão. Ao que parece, nas
irmandades de negros, os senhores/patrões nunca deixaram de ser “Eles”, pela
própria condição de serem “donos”, amos ou patrões de outros irmãos, no caso
os cativos/criados/trabalhadores assalariados (“Nós”) e não deixaram de tentar
exercer seu poder quando achassem que a situação assim o exigia.
Se esses “irmãos brancos por devoção” movimentavam-se entre o
universo dos “dominantes” e dos “dominados”, também não alteravam o
sistema de “dominação” a favor dos negros. Estes, por sua vez, reelaboravam
os costumes dos “dominantes”, de forma que a corte de um rei negro, por
exemplo, certamente tinha diferentes significados para os diversos tipos sociais
que participavam da confraria do Rosário, o que aponta a complexidade desse
jogo de controle e de resistência traçado no cotidiano das relações entre
sociedade, Igreja e a Irmandade do Rosário em Fortaleza.
Da mesma forma, essa diferença no olhar também ocorria com os
brancos (da elite) que participavam de sambas, autos de rei congo e de outras
festas de negros. Muitas vezes esse estranhamento vinha não desses
participantes, mas dos que os viam freqüentando tais espaços. Além disso, a
participação de um branco num samba, por exemplo, facilmente se
transformava em matéria-prima para críticas. Foi o caso do promotor Pedro
Frota, questionado publicamente por um desafeto seu Valdemiro Moreira
quanto a sua dignidade, relacionando-a ao comportamento do “bacharel Pedro
Frota” em um samba:
415
Cf. HOGGART, Richard. “Nós” e “Eles”. In: OLIVEIRA, Paulo de Salles (Org.). O lúdico e a
cultura solidária. São Paulo: HUCITEC, 2001.
184
[...] Quanto a sua dignidade como cidadão, tenho simplesmente a
lembrar-lhe: aquelle samba no Riachão, d’onde foi posto para fora
por attentar contra o decoro do sexo frágil, por pouco escapando de
ser esbofeteado pelo dono da casa!
416
Mas o preconceito contra as práticas culturais negras vem mais
claramente a seguir, quando Valdemiro descreve a figura do promotor público
associando-o à imagem de um jogador de capoeira:
[...] magro de corpo como de espirito, andar entonteado; chapeo que
traz a banda, como quem está sempre prompto para o exercicio da
capoeiragem, em que deve ser eximio, principalmente com seu
bigode retorcido, e a sua figura esguia, como o heroe de
Cervantes.
417
De qualquer forma, a circularidade dos diversos tipos de sujeitos,
incluindo-se brancos que ocupavam importantes cargos públicos, era uma
importante força que movia as reelaborações pelas quais passavam essas
festas de negros. Por conseguinte, os costumes de negros festivos ou não
foram por vezes ressignificados, até pela questão da sobrevivência de uma
cultura negra num contexto de mudanças enfrentado pela sociedade
fortalezense nas últimas décadas do século XIX.
Um outro exemplo de prática cultural negra fortalezense
constantemente reelaborada são os maracatus. no século XIX tais
manifestações existiam em Fortaleza, talvez não com todas as características
de festa de negros trabalhadas a aqui, mas como cortejo que acompanhava
as coroações de rei congo na Irmandade do Rosário ou, de acordo com João
Nogueira, como grupos de homens que se pintavam de negro e andavam
lentamente pelas ruas da cidade na época do carnaval, tocando reco-recos e
maracás e cantando: “Aruenda tenda cadê iôiô. A nossa rainha se coroou.
418
Entretanto, quando se fala nos maracatus cearenses, geralmente tem-
se a idéia de que simplesmente nasceram dos existentes em Pernambuco.
Esse pensamento provavelmente se liga ao fato de que, na segunda metade
da década de 1930, o maracatu marcou presença no carnaval fortalezense,
416
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 18 fev. 1887, p. 2, rolo nº.
127-A.
417
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, loc.cit.
418
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. op. cit., p,144-145.
185
desfilando oficialmente como agremiação carnavalesca o maracatu “Az de
Ouro”, fundado pelo tecelão negro Raimundo Alves Feitosa
419
.
Importante esclarecer que, antes de fundar esse maracatu, seu
Raimundo estivera trabalhando no Recife por três anos. É o que se pode
verificar na entrevista concedida ao músico e pesquisador Calé Alencar e ao
jornalista Lira Neto do jornal O Povo, em maio de 1995, quando Raimundo
Feitosa declarou o seguinte:
Eu criei o ‘Áz de Ouro’ em 1936, logo que voltei. Um dia, era perto do
Carnaval, saí do trabalho e vi as orquestras tocando. Estava com
dois amigos que tinham ido comigo tomar umas cachaças. Eu disse
pra eles: - ‘negrada, eu queria fazer um bloco aqui em Fortaleza, mas
tinha que ser um bloco bem bonito, uma coisa que eu vi em
Pernambuco e gostei muito’. Eles perguntaram que tipo de bloco
era. Eu respondi: ‘Ma-ra-ca-tu!’ Eles nem sabiam o que era isso.
420
Há que se ressaltar, no entanto, que Raimundo Boca Aberta era um
negro cearense, descendente de escravos e freqüentador dos congos que
existiam na cidade de Fortaleza, como se percebe nessa mesma entrevista,
quando Raimundo entoou alguns trechos de músicas dos congos quase
idênticos aos registrados por Gustavo Barroso na virada do século XIX:
Penerê, penerô
Ai penera o milho
Negro Salvador
Ai penera o milho
Negro Salvador
Ninguém pisa o milho
Como a Mãe Antônia
Pisa a noite inteira e não dá uma pamonha.
421
419
Raimundo Alves Feitosa (1902-1996) nasceu em Fortaleza e também era conhecido como
Raimundo Boca Aberta (“Boca Aberta” teria sido apelido dado por seu pai) e por “Mundico”
(“Seu mundico” era o modo como o chamava seu patrão). Em 1936, Raimundo Feitosa
fundou em Fortaleza o maracatu “Az de Ouro”, após uma estada em Recife; o nome desse
maracatu teria sido inspirado na cambinda pernambucana “Dois de Ouro”. Cf. ALENCAR,
Calé. Reis do congo, reisados e maracatus: dança de negros no Ceará. In. CHAVES, Gilmar
(org). Ceará de corpo e alma: um olhar contemporâneo de 53 autores sobre a terra da
luz. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002; MILITÃO, João Wanderley Roberto (Pingo de
Fortaleza). Maracatu Az de Ouro. 70 anos de memórias, loas e batuques. Fortaleza:
OMNI/Solar, 2007.
420
FEITOSA, Raimundo Alves. Raimundo Alves Feitosa, fundador do Maracatu Az de Ouro.
Jornal O Povo, Fortaleza, 13 maio 1995. p. 6.
421
FEITOSA, loc. cit. Esse trecho foi coletado em Fortaleza por Gustavo Barroso, entre 1901 e
1902; a única diferença é que o Secretário (um dos personagens do auto do rei congo) canta
“pisa o dia todo”, em vez de “pisa a noite inteira”. Cf. BARROSO, Gustavo. Ao som da viola.
186
Ora, ao que parece essa identificação de Raimundo Boca Aberta com
os maracatus pernambucanos se deu basicamente porque estes tinham as
mesmas raízes africanas dos maracatus já existentes no Ceará. Vale lembrar
que, pelo menos desde as últimas décadas do XIX, havia uma intensa
circularidade dessas práticas culturais cearenses (os maracatus) com as
diversas festas de negros existentes em Fortaleza, como os sambas, os autos
de rei congo, as coroações de reis negros no Rosário; além disso, também
ocorria a interação entre os diversos tipos sujeitos sociais que freqüentavam
essas várias manifestações.
Assim, sem querer encontrar nos maracatus uma ancestralidade local
e, menos ainda, vê-los como simples continuidade dos congos ou dos reis que
eram coroados na Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Fortaleza,
entendo que Boca Aberta e seus amigos conseguiram “fundar” um
maracatu, em 1936, porque muita gente na cidade era familiarizada com um
cortejo de reis negros, ou seja, existia um conhecimento comum dessa
prática cultural negra dentro da sociedade onde ela passava a ocorrer.
Em outras palavras, haveria uma consistência cultural”, no dizer de
Gilberto Velho
422
, que deu uma espécie de lastro a essa reinvenção dos
maracatus em Fortaleza. Foi assim que o maracatu, incorporado a uma festa
maior o Carnaval saiu, de acordo com Raimundo Feitosa, no primeiro ano
com apenas 42 pessoas e no segundo com 80. ”No quarto carnaval eram
mais de 500”.
423
Ante o exposto, negar uma originalidade aos maracatus cearenses e
entendê-los como simples cópias daqueles constituídos em Pernambuco, não
seria um preconceito e mesmo uma negação da cultura negra que existia e
existe em Fortaleza? Ademais, atribuir o “25 de Março”, data da “libertação”
e/ou “redenção” dos escravos no Ceará, como Dia do Maracatu
424
, o
representaria mais uma “data cívica” escolhida por uma elite política (“Eles”)
ed. correta e aumentada. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1949, p. 199.
422
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 2. ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p.17.
423
Cf. FEITOSA, Raimundo Alves. Raimundo Alves Feitosa, fundador do Maracatu Az de Ouro.
Jornal O Povo, Fortaleza, 13 maio 1995. p. 6.
424
A Lei Municipal 5.827, de 5 de dezembro de 1984, publicada no Diário Oficial do
Município de Fortaleza, em 10 de dezembro de 1984, estabeleceu o dia 25 de março como
data comemorativa ao “Dia do Maracatu”.
187
que assume um papel paternalista diante dos negros enquanto sujeitos de sua
própria história?
Em outras palavras, escolher o 25 de Março como o Dia do Maracatu,
no contexto das “comemorações do centenário da Abolição no Ceará”, não
seria novamente associar o negro ao escravo e seguir aquela “lógica perversa”
dos antigos abolicionistas e membros do Instituto Histórico?
425
É preciso considerar, por outro lado, que, se essas datas foram
apropriadas por alguns praticantes de uma cultura negra no Ceará, certamente
também foram ressignificadas por esses sujeitos que viram nelas algum ganho
sociocultural para o grupo do qual fazem parte.
Ademais, as festas de negros e sua inerente força criativa foram
poderosos instrumentos pelos quais se revelou a capacidade de os negros
constantemente recriarem uma cultura não dependente de “incentivos” das
autoridades, e mesmo produzirem uma identidade cultural que transpôs
preconceitos, cerceamentos, perseguições da polícia; enfim, todas as
dificuldades presentes na dinâmica socioespacial e histórica da cidade de
Fortaleza.
Obviamente, que essa criatividade sempre presente nas festas de
negros permitia-lhes um freqüente reelaborar-se, gerando muitas vezes
múltiplos significados, mas que, por outro lado, reapresentavam uma cultura
negra de raízes africanas e mesmo geravam uma identificação entre os
praticantes dessas festas. Certamente, alguns elementos da “cultura
dominante” (européia) também eram apropriados, mas isso não ocorria sem
uma ressignificação dos mesmos e não impedia que uma cultura negra fosse
constantemente constituída através de manifestações como os congos,
sambas, maracatus. E, ao que parece, essa criatividade reelaboradora tem
sido característica imanente às festas de negros até os dias atuais.
Além do mais, essa mistura de elementos culturais diversos nas festas
de negros, bem como a circularidade de seus sujeitos, certamente contribuíram
425
Sobre a análise do centenário da Abolição no Ceará como parte do processo que tornou a
Abolição um marco referencial na história do Ceará, mas não na história do negro cearense,
ver: SOUSA, Antonio Vilamarque Carnaúba de. Da “Negrada Negada” a Negritude
Fragmentada. O Movimento Negro e os discursos identitários sobre o negro no Ceará (1982-
1995). Dissertação de mestrado. Fortaleza. UFC. 2006, p. 70-87.
188
para a formação de um terreno favorável para a dinâmica da criação, sendo
esta entendida aqui segundo Denys Cuche:
A criação consiste em uma nova disposição de elementos
preestabelecidos cuja natureza não pode ser modificada. Esses
elementos são resíduos, fragmentos, restos que, pela bricolagem
vão constituir um conjunto estruturado e original. A inserção destes
materiais neste novo conjunto, ainda que o transforme a sua
natureza, fará que eles digam algo diferente do que eles diziam
antes: uma nova significação nasce desta disposição compósita
final.
426
Nesse processo criativo, além de uma identidade cultural, também é
possível perceber uma identidade étnica de raiz banta entre as diversas
manifestações culturais, não apenas nos sambas e nos congos, já abordados
neste trabalho, mas, também, nos maracatus que existiam em Fortaleza.
427
Ademais, as festas de negrosincluindo-se gradativamente os
maracatus, que se incorporam a uma festa maior, o Carnaval –, eram práticas
culturais que oscilavam entre “aquilo que permanece” e “aquilo que se inventa”.
Michel de Certeau defende que nas lentidões, latências, irrupções, desvios e
outras margens de inventividade é que a cultura transparece como:
[...] uma noite escura em que dormem as revoluções de pouco,
invisíveis, encerradas nas práticas -, mas pirilampos, e por vezes
grandes pássaros noturnos, atravessam-na; aparecimentos e
criações que delineiam a chance de outro dia.
428
Com efeito, era a constante e criativa reelaboração das festas de negros
promovida por seus sujeitos, nem sempre (re)conhecidos como um Joaquim
Xavier (o Xavier do “braço cortado”) ou um João Gorgulho (“dono” dos congos
426
A idéia de criação” defendida por Cuche é desenvolvida a partir da noção de bricolagem”
(construção, conserto, arranjo feito com materiais diversos) aplicada aos fatos culturais
proposta por Lévi-Strauss. Cf. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad.
Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 1999, p. 152-155.
427
Vários autores destacam os maracatus como manifestação cultural de origem banto. Cf.
LOPES, Nei. Novo Dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003, p. 141;
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. op. cit., p. 361-362; GUERRA-
PEIXE, César. Maracatus do Recife. 2. ed. Recife: Irmãos Vitale, Fundação de Cultura da
Cidade do Recife, 1981, p. 21-28 (Guerra-Peixe considera “plausível aceitar que a música do
Maracatu seja de procedência banto”. Durante suas pesquisas, o autor recebeu respostas
para consultas formuladas ao Museu do Dundo, da Companhia de Diamantes de Angola, as
quais eram “informações de crédito, que ‘maracatu’ designa uma dança ainda hoje praticada
pela tribo dos Bondos”).
428
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995, p. 239.
189
que se apresentavam na Praça de Pelotas e na Praça dos Coelhos), que
possibilitava a essas manifestações culturais afro-brasileiras “delinearem a
chance de outro dia”.
Embora muitos memorialistas escrevessem, na virada do século XIX,
que tais práticas estavam “desaparecendo”, elas permaneceram em Fortaleza,
sendo os maracatus, que vivem “de um constante reinventar-se”
429
, com suas
cortes de negros e seus elementos simbólicos (por vezes sagrados),
instituições que bem (re)apresentam esses “antigos festejos” tão comuns na
Fortaleza de outrora.
3.2 – A Corte Negra em Fortaleza: irmandade, congos e maracatus
Em fins da década de 1970, a Fundação Nacional de Arte, órgão
ligado ao então Ministério da Educação e Cultura, apoiou uma campanha em
“Defesa do Folclore Brasileiro” que tinha entre seus objetivos promover
registros, pesquisas e levantamentos sobre o folclore no Brasil. Vários
pesquisadores se empenharam nesse projeto que, no Ceará, ficou ao encargo
de Florival Seraine; o resultado desse seu trabalho foi publicado no ano de
1978
430
.
Dentre as várias proposições feitas por Seraine, importa destacar sua
observação quanto aos “componentes culturais” de que “a influência africana
no Ceará, não física como cultural, tem sido reconhecida como pouco
marcante”. Mais adiante, embora Seraine admita que os congos fossem “autos
populares, de reconhecidas origens afras”, defende que os maracatus, “que
atualmente desfilam nos carnavais cearenses”, foram “importados do Recife”.
Ainda, comparando as influências deixadas pelas “etnias cearenses”, Seraine
afirma que, “culturalmente, o lusitano deixou, sem dúvida, quantidade maior de
elementos integrantes do patrimônio folclórico regional”.
431
429
CARIRY, Rosemberg. Eu vou você não vai...In: MILITÃO, João Wanderley Roberto (Pingo
de Fortaleza). Maracatu Az de Ouro. op. cit., p. 8.
430
Cf. SERAINE, Florival. Folclore Brasileiro. Ceará. Rio de Janeiro: MEC/FUNARTE, 1978.
431
Id., Ibid., p. 7-8. [Na década de 1970, o maracatu Az de Ouro (fundado em 1936) voltou a
desfilar no carnaval de rua de Fortaleza, conquistandorias vezes o título de campeão; em
1978, seu enredo homenageou Dona Santa, a célebre rainha do maracatu recifense Elefante,
o que provavelmente contribuiu para o entendimento de Seraine quanto às influências dos
maracatus pernambucanos sobre os cearenses. Sobre a trajetória do maracatu Az de Ouro,
ver: MILITÃO, João Wanderley Roberto (Pingo de Fortaleza). Maracatu Az de Ouro. op., cit.]
190
Pelo que foi exposto até agora nessa pesquisa sobre “festas de
negros”, parece-me que são infundadas as afirmações de Seraine quanto a
pouca influência cultural negra no Ceará. A intenção aqui não é quantificar
determinadas “heranças” (africanas) na constituição de uma “cultura cearense”,
mas tentar evidenciar que a negação de que o maracatu seja cearense é mais
uma forma de repetir aquele discurso preconceituoso de uma “intelectualidade”
cearense das últimas décadas do XIX, no qual é negado ao negro um papel de
agente político, social e cultural na história do Ceará e, a partir daí, analisar a
corte negra presente nos maracatus fortalezenses, mas, também, nas
coroações de reis negros na Irmandade do Rosário da Capital, bem como nos
autos de rei congo que se apresentavam nas ruas, praças e terrenos baldios de
Fortaleza até o início do século XX.
Em outros termos, a proposta desse tópico é analisar o deslocamento
da corte da Irmandade do Rosário, e também dos congos, para os maracatus,
considerando as reelaborações de seus elementos constituidores, mas que vão
permitir (re)apresentar essa corte negra em Fortaleza no século XX. Nesse
sentido é preciso contrapor-se à visão “folclórica” de estudos como o de Florival
Seraine, e mesmo ao olhar nostálgico dos memorialistas que descrevem “algo
que não existe mais”, e tentar perceber como essa corte negra não
permaneceu estática em determinados espaços (Rosário, congos, maracatus),
mas, sim, foi-se reelaborando, permitindo a inclusão de novos elementos,
constituindo-se, enfim, num costume de negros que vem se fazendo presente
em Fortaleza desde pelo menos meados do século XIX.
É importante considerar ainda, que a presença contínua de uma corte
negra em Fortaleza, independentemente do tempo em que ocorre festa do
Rosário, ciclo natalino ou no carnaval –, ajuda a perseverar elementos culturais
de raízes africanas, certamente ressignificados, mas que vão permitir a esse
desfile de uma corte liderada pelos “reis congos” ser uma “tradição” negra que
perdura na cidade.
Mas, não me refiro aqui àquela “tradição inventada” sobre a qual alerta
muito bem Eric Hobsbawn, ou seja, como instrumento ideológico das elites
políticas e intelectuais que visam inculcar valores e normas de comportamento
por meio da repetição, implicando numa continuidade do passado
432
.
432
Cf. HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 16.
191
A propósito, no caso dos maracatus cearenses, essa “tradição
inventada” não estaria mais ligada a interesses turísticos do que ao significado
que essas manifestações culturais poderiam ter para os diversos segmentos
sociais cearenses, particularmente para os componentes desses grupos?
Vale trazer aqui a pesquisa de Franck Ribard que, estudando as
manifestações negras no carnaval de Salvador, entende que “os elementos
culturais tradicionais aparecem não como vetores e portadores privilegiados
das mensagens destinadas ao grupo, à comunidade e aos ‘outros’ segmentos
da sociedade”, mas, também como uma tradição dinâmica, aberta a influências
externas, que se reinventa através do processo de criação, sem deixar, no
entanto, de representar um marco do Mundo negro na Bahia.
433
É nesse sentido, pois, que entendo uma “tradição” cultural negra em
Fortaleza, onde, através do cortejo dos reis congos, é possível perceber
heranças africanas, bem como uma série de inovações, mudanças,
movimentos, (re)criações de elementos da corte negra e no seu cortejo, mas
que também, (re)apresentam sempre a história e os costumes dos negros no
Ceará.
Observe-se, portanto, que no estudo dos costumes faz-se necessário
considerar o que estes podiam significar para os sujeitos, capazes de
reinterpretá-los. Sigo aqui a linha de pensamento de Edward Thompson, para o
qual “longe de exibir a permanência sugerida pela palavra ‘tradição’, o costume
era um campo para mudança e a disputa, uma arena na qual interesses
opostos apresentavam reivindicações conflitantes”.
434
Nesse contexto, podem ocorrer mudanças, mas, também, certas
“continuidades”. No maracatu “Az de Ouro”, fundado por Raimundo Alves
Feitosa em meados da década de 1930, havia um cortejo régio comandado por
rei e rainha negros, acompanhado de “batuque”, cantando loas com referências
a uma África ancestral e/ou a Nossa Senhora do Rosário; o que era uma
433
RIBARD, Franck. Memória, identidade e oralidade: considerações em torno do carnaval
negro na Bahia (1974-1993). In: Trajetos. Revista do programa de pós-graduação em
História Social da UFC. v. 2. n. 3. dez. 2002. Fortaleza: Departamento de História da UFC,
2002, p. 127.
434
THOMPSON, Edward. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 16-17.
192
composição pouco distante de antigos costumes cearenses, como os congos e
os maracatus.
435
Mas o que eram esses cortejos de maracatus presentes na Fortaleza
do século XIX? A partir de descrições feitas por memorialistas é possível
vislumbrar não apenas aspectos ligados a vestimentas, letras das loas,
instrumentos musicais, mas, também, indicações de estranhamento e do
preconceito que havia contra essas manifestações. Observa-se isso nos
escritos de Gustavo Barroso, quando ele relembra os maracatus, num tópico
denominado “No tempo dos papangus”:
Deram-me uma máscara de palhaço que ponho à cara e falo
fanhoso, fazendo medo aos meninos menores do que eu. É uma
forma de vingar-me do pavor que me fazem os maracatus do Outeiro
ou do morro do Moinho, quando descem pela cidade. São duas filas
de negros cobertos de cocares escuros, com saiotes de penas
pretas, dançando e cantando soturnamente ao som dos batuques e
maracás, uma melopéia de macumba: ‘Teia, teia de engomá! Nossa
rainha mode coroá! Vira de banda! Torna a revirá!’ Corro e vou
esconder-me até não mais ouvir o som do ganzá e do batuque do
maracatu. São as duas cousas que mais me apavoram: o maracatu e
o corredor de entrada do nosso sobrado, à noite.
436
Pela descrição, percebe-se que os maracatus fortalezenses de fins do
século XIX vinham de áreas não muito distantes do centro, mas pouco (ou
nada) privilegiadas pela reurbanização pela qual passara a capital do Ceará.
Não obstante, oriundos do Outeiro (atual Aldeota), do Morro do Moinho (por
trás da estação João Felipe) ou de outros locais da cidade, esses cortejos de
negros seguiam cantando e dançando ao som de tambores (batuque) em
435
Diversos autores, no Ceará e em outros estados, têm apontado essa ligação entre
Irmandades do Rosário, congos e maracatus. Para Eduardo Campos, em várias irmandades
de Nossa Senhora do Rosário existentes no Ceará havia a corte de reis negros. A tradição
do maracatu surgiu, sem dúvidas, dessas irmandades” (CAMPOS, Eduardo. O cotidiano do
Ceará escravocrata. Entrevista a José Anderson Sandes. In: Jornal Diário do Nordeste.
Fortaleza, 25. mar. 1998, Caderno 3, p. 1); Leonardo Dantas, em estudo sobre os maracatus
recifenses, defende que a existência dos maracatus está “diretamente ligada às coroações
dos reis negros de Angola e do Congo, que geralmente acontecia nas festas em honra de
Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, principais padroeiros de gente de cor” (SILVA,
Leonardo Dantas. A instituição do rei do congo e sua presença nos maracatus. In: Estudos
sobre a escravidão negra. Vol. 2. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1988, p. 29);
Raimundo Souza chama a atenção para os símbolos utilizados pelos antigos congos e ainda
presentes no cortejo dos maracatus fortalezenses (SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues.
Rosário dos Pretos de Sobral CE. Irmandade e festa [1854-1884]. Fortaleza: Edições
NUDOC, 2006, p. 121-122).
436
BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. Edição em conjunto das obras:
Coração de Menino, Liceu do Ceará e Consulado da China. 2. ed. Notas de Mozart Soriano
Aderaldo. Fortaleza: Governo do Estado do Ceará, 1989, p. 37.
193
direção à Igreja do Rosário onde havia a “tradicional” coroação de reis congos.
Interessante que, nesses cantos dos maracatus citados por Barroso, destaca-
se a coroação não de um rei, mas de uma rainha. Não seria essa uma
referência à rainha Ginga, que tanto se destacou na história de Angola? De
certa forma, isso apontaria mais uma abertura no leque da cultura de raízes
africanas praticada pelos negros cearenses.
Além disso, no trajeto, certamente os maracatus eram vistos por todo
o tipo de gente, boa parte com aquele olhar preconceituoso de “estranhamento”
como o de Barroso. Provavelmente também por isso, os maracatus escolhiam
o período de carnaval, em que a liberdade de expressão certamente era menos
cerceada.
Mas, talvez os maracatus ainda sejam como um corredor escuro de
um velho sobrado, parecendo exóticos ou misteriosos para muita gente que os
vêem como “folclore”, principalmente quando se tornam espaços para práticas
culturais negras como a coroação de reis negros ou mesmo para trazer à tona
elementos da cultura (brasileira) de influência africana. Por exemplo, a inclusão
nos cortejos de representações que acenam para o campo do sagrado
437
, como
os orixás, os pretos velhos e as calungas.
Novamente, vale ressaltar as similitudes de elementos presentes nos
congos e nos maracatus a fim de apontar como essas práticas culturais negras
dialogavam e até convergiam entre si. Veja-se, como exemplo, um canto dos
congos, onde Raimundo Alves Feitosa entoava os seguintes versos:
Boneca preta do maracatu
Boneca preta do maracatu
Ela vem de Luanda
De saia rodada
Pisou no terreiro
Caiu na congada (...)
438
437
A palavra “sagrado” aparece aqui de acordo com Mircea Eliade que, no seu estudo sobre
religiões, propõe o entendimento do sagrado a partir da dialética com o profano; para Eliade
“a experiência do sagrado torna possível a ‘fundação do mundo’ (...) onde o sagrado se
revela, o mundo vem à existência”. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das
religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 59.
438
FEITOSA, Raimundo Alves. Boneca Preta do Maracatu. Fortaleza, 1943. In: Maracatus e
Batuques. Produção executiva: Calé Alencar e Rosemberg Cariry. Fortaleza: Cariri Discos e
Equatorial , 2001. 1 CD. Faixa 20. (Coleção Memória do Povo Cearense – vol. V)
194
Por esse canto, gravado no ano de 1943, mostra-se a proximidade e
mesmo a confluência das manifestações negras em Fortaleza
439
. A boneca
preta do maracatu (calunga), vinda da capital angolana (atravessou o Oceano
Atlântico), dançava nos congos e nos maracatus. Era, pois, essa iniciativa de
trazer elementos de raízes africanas, somada à força criativa dos sujeitos
dessas festas, que, enfim, impulsionava um constante reelaborar de uma
cultura afro-cearense, que, no meu entendimento, possibilitou a perpetuação
de práticas culturais negras na cidade, e que chegam aos dias atuais em boa
parte amalgamadas (mas não cristalizadas) nos maracatus.
Além do mais, a presença de certos elementos permite perceber
certas dimensões dessa sobrevivência da cultura negra em Fortaleza. É
justamente o caso da calunga, conduzida nos cortejos de maracatus. Segundo
Nei Lopes, “kalunga” é termo multilingüístico banto “que encerra idéia de
grandeza, imensidão, designando Deus, o mar, a morte”.
440
Já de acordo com o
Dicionário Lello Universal, “calunga” seria um rio de Angola (Benguela),
afluente do Coporolo; sendo a palavra também utilizada no Brasil com sinônimo
de “boneco”.
441
Na Fortaleza de fins do século XIX, “calungas” feitas de borracha e/ou
de folha-de-flandres (lata) eram vendidas em casas comerciais da cidade
442
;
“calunga” também significava bonecos de brinquedo, como escreve Gustavo
Barroso, ao se referir a sua infância, quando montava “presépios de sombras
com calungas de papelão que se moviam”.
443
Até aí, percebe-se que “calunga” era uma palavra de origem banto
utilizada por munícipes fortalezenses para se referir a uma boneca ou a um
boneco. Mas, “calunga” também era empregado com tons pejorativos, inclusive
439
Em 1943, o musicólogo carioca Luiz Heitor Correa de Azevedo, fundador do Centro de
Pesquisas Folclóricas do Instituto Nacional de Música, veio a Fortaleza e gravou cantos dos
congos e dos maracatus. Esse registro seria lançado apenas em 1997, como parte do disco
“Music of Ceara and Minas Gerais”, patrocinado pela Biblioteca do Congresso dos Estados
Unidos. Cf. ALENCAR, Calé. Reis do congo, reisados e maracatus: dança de negros no
Ceará. In. CHAVES, Gilmar (org). Ceará de corpo e alma: um olhar contemporâneo de 53
autores sobre a terra da luz. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002, p. 188.
440
LOPES, Nei. Novo Dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003, p. 57.
441
LELLO, José; LELLO, Edgar. Lello Universal. Dicionário enciclopédico luso-brasileiro em 4
volumes. Porto: Lello & Irmão Editores, s./d., p. 435.
442
BPGMP. Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 05 abr. 1884, p. 3, rolo nº.
127-A.
443
BARROSO Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. op. cit., p. 294.
195
com sentido que tocava o mundo do sagrado, quando se queria atingir um
adversário político.
Para ilustrar, pode-se trazer à baila o caso da guerra política através
dos jornais, travada entre Rodrigues Júnior e João Brígido, tendo este sua
imagem associada desde a um negro “banda forra” que freqüentava
divertimentos como o boi e os congos
444
até a um “africano calunga” que devia
ser “julgado por seu igual, por seu par (...) o Diabo, preto como ti-Brijo, julga os
negros”.
445
A despeito do real sentido das “acusações” entre a elite política
cearense, elas deixaram pistas que apontam a “calunga” não apenas como
uma simples boneca vendida no comércio; mas, também, como elemento
cultural de origem africana que se referia a um campo sobrenatural, visto este
com um olhar carregado de preconceito e que relacionava a calunga, o negro e
o diabo.
A questão é que, se havia uma leitura deturpada por parte da “elite
política”, isso também apontava que a calunga era reconhecida enquanto
elemento simbólico pela sociedade fortalezense da época, em que certamente
assumia significados múltiplos. Nos cortejos de maracatus, provavelmente
representavam o poder dos reis negros (congos) coroados na Irmandade do
Rosário.
É o que defende Alberto da Costa e Silva nas suas pesquisas sobre a
“calunga” na África e sua “sobrevivência” no Brasil.
444
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Cearense. Fortaleza, 13 jan. 1884, p. 2, rolo nº.
29. [Os versos publicados nesse jornal tentavam preconceituosamente ridicularizar João
Brígido, colocando-o como atuante em práticas festivas negras.
Minhas gentes venham ver
O banda forra empollar,
Fazendo muitos tregeitos
Feito burrinha a dançar
Toca bem um birimbáo
Dança melhor o pesqueiro;
Si como burrinha é bom
Do boi é exímio vaqueiro.
(...)
Já dos congos foi o rei
Foi burrinha e foi vaqueiro
Do boi, e pra Catherina
Daria bem o sedeiro. (...)].
445
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Republica. Fortaleza, 3 fev. 1908, p. 2, rolo nº.
317.
196
A boneca, com o seu nome, atravessou o Atlântico e sobrevive nos
maracatus brasileiros. O maracatu é uma forte reminiscência dos
préstitos reais africanos. (...) Sabe-se que no passado, se ligava à
coroação dos reis do Congo, eleitos pela escravaria. E pode-se
cogitar que representasse, até mesmo sob o disfarce da eleição ou
da aclamação, a persistência de estruturas de poder africanas no
Brasil.
446
Ainda segundo Costa e Silva, na África a calunga era fonte de poder
político e de uma organização social fundada na terra ou num território
específico, e não necessariamente baseado apenas na estrutura de
parentesco, trazendo como exemplo outros grupos, como o dos rapazes da
mesma faixa de idade que eram iniciados e circuncidados juntos e depois
mantinham contato entre si; o grupo dos adivinhos e curandeiros que viajavam
pelas aldeias sendo recebidos por seus pares com consideração e
homenagens; ainda, o grupo dos caçadores, que conheciam entre si sinais
secretos e formavam uma comunidade esotérica que ultrapassava as fronteiras
da linhagem e do idioma. “Um grande caçador não era somente hábil no
manejo da arco e da flecha, mas sobretudo pelos seus poderes mágicos. Tinha
sob seu poder discípulos com os quais estabelecia uma relação de autoridade
e respeito”.
447
Por outro lado, Alberto da Costa e Silva chama a atenção de que em
muitos rios africanos e em seus afluentes, viviam as calungas, representadas
por bonecas de madeiras, cada uma delas guardada por uma linhagem, “cujo
chefe conhecia o segredo da comunicação com as forças espirituais que a
boneca continha”, estabelecendo-se, assim, uma hierarquia entre os vários
guardiões das calungas, alguns dos quais se transformaram em reis. “O
custódio da estatueta do rio principal era mais importante do que os dos
riachos tributários, a graduação e a autoridade fazendo-se conforme a
hidrografia”.
448
Percebe-se que, além de representar uma extensão de água, a
calunga era a fonte da autoridade e do poder do chefe ou rei que detinha sua
custódia. Robert Slenes, em um interessante artigo sobre a África “descoberta”
446
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. 2. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 504.
447
Id., Idid., p. 502-504.
448
Id., Ibid., p. 503.
197
no Brasil pelos africanos que foram obrigados a empreender uma viagem sem
volta para o outro lado do Atlântico, no contexto da escravidão moderna, amplia
essa discussão sobre o significado da calunga.
Kalunga também significava a linha divisória, ou a ‘superfície’, que
separava o mundo dos vivos daquele dos mortos; portanto,
atravessar a kalunga (simbolicamente representada pelas águas do
rio ou do mar, ou mais genericamente por qualquer tipo de água ou
por uma superfície refletiva como a de um espelho) significava
‘morrer’, se a pessoa vinha da vida, ou ‘renascer’, se o movimento
fosse no outro sentido.
449
Com efeito, a presença da calunga nos maracatus ou em outras
manifestações culturais negras apontava indícios de uma religiosidade de
raízes africanas, muitas vezes vista com o viés do preconceito, como se
percebe nos relatos de alguns memorialistas que enxergavam nessas práticas
formas de “macumba”
450
.
Considerando a presença de maracatus nas coroações de reis negros
realizadas pelas confrarias do Rosário, é possível pensar que havia uma troca
cultural entre essas práticas negras. Veríssimo de Melo, estudando a
Irmandade do Rosário dos Homens Pretos como reação contra aculturativa dos
negros, defende:
Na verdade, além de sua aparente significação católica, N. S. do
Rosário seria para os negros transposição do ídolo de sua religião
primitiva. Talvez Iemanjá, para os sudaneses, principalmente. Ou a
boneca, para os bantos, ídolo que sobrevive nos maracatus. Não
podendo adorar seus deuses publicamente (...) os escravos se
filiavam às irmandades católicas, onde podiam, tranqüilamente, pelo
processo que mais tarde se chamaria de sincretismo, adorar nos
santos da Igreja católica os seus ídolos africanos.
451
Num contexto em que era negado aos negros (escravos e livres)
praticarem uma cultura de raízes africanas, a confraria do Rosário era espaço
para solidariedade e sociabilidades diversas; mas, a festa de coroação de reis
negros (congos) no Rosário se constituía em forma especial de resistência,
449
SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. In: Revista
USP, São Paulo, Trimestral, 1991-1992. p. 53-54.
450
Cf. BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. op. cit., p. 37.
451
MELO, Veríssimo de. As confrarias de N. S. do Rosário como reação contra aculturativa dos
negros no Brasil. In: Revista da Sociedade Cearense de Geografia e História. Rio de
Janeiro: Ed. Nacional, vol. 8, fascículo n°. 1, 1979, p. 113.
198
pois, através desses “folguedos” praticados “inocentemente”
452
, elementos
europeus (Nossa Senhora, por exemplo) eram apropriados, ressignificados e
misturados com elementos de origem africana, gerando um catolicismo de tons
afro-brasileiros.
O antropólogo Sérgio Ferretti, estudando a presença do “catolicismo
popular” nas religiões afro-brasileiras, entende que:
Para o negro brasileiro a aceitação do catolicismo em sua forma
popular foi o caminho disponível numa sociedade dirigida por
brancos católicos e onde a inquisição vigorou até inícios do século
XIX. Nos dias de festas de santos os senhores permitiam que os
escravos organizassem seus batuques e, a partir daí, a religião
africana construiu um espaço que foi preservado até hoje, com
adaptações e características regionais diversas.
453
Ante o exposto, uma questão a se pensar é a possível função mágico-
religiosa ou sagrada da calunga no cortejo de maracatu. Para Mário de
Andrade, que estudou no início do século XX a calunga nos maracatus, a
boneca era “idolo, feitiço e apenas objeto de excitação mystica, e ainda
symbolo politico-religioso de reis-deuses”.
454
Para ilustrar suas afirmações quanto ao sentido religioso da calunga
nos maracatus, Mario de Andrade comenta, por exemplo, o ritual observado em
Recife, antes da partida de um grupo para o desfile nas ruas.
A Dama do Passo sae da séde carregando a Calunga e entra no
cordão. Emquanto isto o pessoal vai entoando a melodia
452
Uso aqui as expressões do padre Antonil com o intuito de apontar quão antigas são as
diferentes (e divergentes) visões que existiam (e ainda existem) sobre festas de negros. No
meu entendimento, o olhar “paternalista” de Antonil destoava da visão dos negros, para os
quais, a festa poderia ir muito além do lúdico, passando pela diversão, mas, também,
constituindo-se em prática (e forma de resistência) de uma cultura negra. Negar-lhes
totalmente os seus folguedos, que o o único alívio do seu cativeiro, é querê-los
desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os
senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns
dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas
festas de Nossa Senhora do Rosário” (ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil
por suas drogas e minas. Texto confrontado com a edição de 1711. Belo Horizonte: Itatiaia,
1997, p. 92)
453
FERRETTI, Sérgio F. O negro e o catolicismo popular. In: Anais do IV Congresso Afro-
Brasileiro. vol. 4. Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1996, p. 68.
454
ANDRADE, Mário. A calunga dos maracatus. In: Estudos afro-brasileiros (Trabalhos
apresentados ao Congresso Afro-brasileiro reunido no Recife em 1934). Vol. 1. Rio de
Janeiro: Ariel Editora LTDA, 1935, p. 46.
199
choreographica propria da Calunga. Ao chegar dentro do cordão, a
Dama do Passo entrega a Boneca a uma das ‘baianas’, que com ella
dança um boccado e entrega a outra ‘bahiana’. E assim a Calunga
passa de mão em mão.
455
Vale ressaltar que Raimundo Alves Feitosa, o fundador do maracatu
fortalezense Az de Ouro, estivera no Recife nesse mesmo período (início da
década de 1930) em que Mário de Andrade empreendia estudos sobre os
maracatus pernambucanos, inclusive no que se referia à presença e função
religiosa da calunga nesses grupos. Muito provavelmente Raimundo e Mário
nunca se encontraram ou souberam da existência um do outro, mas ambos
perceberam um sentido sagrado nos maracatus.
Veja-se o comentário de Raimundo Feitosa sobre sua experiência no
Recife e a sua visão sobre o que eram os maracatus:
Meu patrão foi embora pra Pernambuco com a família toda.
Ele pelejou para me levar junto e no começo eu não queria (...)
Fomos de navio, um navio grande, um negócio bom mesmo.
Cheguei em Recife e vi aquela animação, o pessoal dançando no
meio da rua (...). Acompanhei três carnavais seguidos. Tinha blocos,
clubes, frevos e macumba. Esse último aí, a macumba, é o
maracatu. Foi de quem eu me engracei mais. Acompanhava os
blocos de sete horas da manaté o final da tarde. Depois eu ia pra
casa, jantava e esperava o maracatu passar. Aí caía na dança até as
quatro horas da madrugada. Ia pra casa, tomava banho e voltava pra
festa.
456
Raimundo Feitosa se referia aos maracatus pernambucanos como
“macumba” usando uma terminologia referente ao Ceará, mas não com o
sentido pejorativo e de estranhamento relatado por Gustavo Barroso ao se
referir aos maracatus cearenses, como foi visto, mas como uma
manifestação cultural de raízes africanas que lhe era familiar. Seu
“engraçamento” pelos maracatus (ou macumbas) certamente vinha de
455
ANDRADE, Mário. A calunga dos maracatus. op. cit., 45. Embora Mário de Andrade defenda
que a condutora da Calunga chamava-se “Dama do Passo”, posto ocupado por uma negra
bonita e que possa vestir com mais luxo, mas carece que ella tenha um donaire especial no
dançar”, ou seja, fazer o “passo”, parece-me melhor se referir à condutora da Calunga como
“Dama do Paço”, no sentido de representar uma negra da corte, ligada ao palácio (paço) e
próxima à sede do poder real (sagrado).
456
FEITOSA, Raimundo Alves. Raimundo Alves Feitosa, fundador do Maracatu Ás de Ouro.
Jornal O Povo, Fortaleza, 13 maio 1995. p. 6.
200
vivências anteriores em Fortaleza, levando-o a (re)criar um maracatu ao
retornar para a terra natal.
É preciso considerar, portanto, que essa dimensão do sagrado existia
nos maracatus fortalezenses desde pelo menos o século XIX e o foi
“importada” do Recife. Ademais, tal dimensão atravessou mais de um século e,
na contemporaneidade dos maracatus que (re)existem em Fortaleza, como o
Az de Ouro, a calunga “traduz o elemento religioso do grupo, simboliza a força
e o poder”.
457
Assim, entendo que os maracatus não “evoluíram” a partir dos
recifenses, mas, sim, ambos foram experiências paralelas e próprias de seus
sujeitos em cada uma dessas cidades, embora muitas vezes enfrentando o
mesmo tipo de preconceito (como a pressão pelo fim da coroação de reis e
rainhas negros na Igreja do Rosário
458
), o olhar de estranhamento por parte de
muitos munícipes, o pouco apoio (e às vezes cerceamento) do poder estatal, e
outras tantas dificuldades enfrentadas por aqueles em geral trabalhadores de
condição mais humilde e sem grandes recursos financeiros que faziam (e
fazem) os maracatus acontecerem enquanto espaço para a prática de uma
cultura negra.
que se destacar, nesse processo de construção histórico-cultural
das manifestações negras, que predominava no Ceará (e mesmo no Brasil) o
457
MILITÃO, João Wanderley Roberto (Pingo de Fortaleza). Maracatu Az de Ouro. op., cit., p.
168. De acordo com Ana Cláudia Rodrigues, a calunga, em alguns maracatus fortalezenses,
“representa a ligação religiosa com a religião afro-brasileira”. Cf. SILVA, Ana Cláudia
Rodrigues da. Vamos maracatucá! Um estudo sobre os maracatus cearenses. Dissertação
de Mestrado em Antropologia. Recife: UFPE, 2004, p. 57.
458
Assim como em Fortaleza, em Recife os negros foram impedidos de coroar seus reis na
Igreja do Rosário. Não obstante, em 1980, houve a coroação de D. Elda Viana rainha do
maracatu Porto Rico –, na Igreja de N.S. do Rosário dos Homens Pretos do Recife. A seguir,
um trecho da gravação feita por mim com D. Elda, em que ela conta como foi a coroação e a
ligação do maracatu com o mundo do sagrado. “Antes da coroação...não antes da
coroação como antes de avenida, pelo Carnaval, nós temos de cuidar muito de Exu, porque
Exu é o dono da brincadeira do Carnaval; é quem livra a gente do mal para o inimigo não
chegar perto, que a gente faça um bom Carnaval, uma boa festa, uma boa apresentação.
Não o Carnaval como qualquer tipo de apresentação a gente temos que cuidar muito de
Exu. E cuidar do rei e da rainha, que é Xangô e Iansã. Então, esse rei a gente tem que a
ele um sacrifício de uma ovelha e à Iansã também temos que dar um sacrifício e assim por
diante. Aí, cuidando desses três orixás, então, a gente pode sair tranqüilo, que a rua está
acobertada; a nossa cabeça também. Então, a boneca seda-madeira, Dona Inês; ela recebe
sacrifício junto com Iansã. a boneca Dona Bela recebe sacrifício junto com Exu. a
boneca Dona Elisabete recebe frutas nos pés da mãe Oxum. Então, aí vem a força; aí vem a
história boa, vem tudo de bom que a gente oferece, tudo de bom que a gente quer, vendo o
maracatu”. (VIANA, Elda. Rainha da nação de maracatu Porto Rico. Entrevista gravada por
Janote Pires Marques. Recife, dezembro de 2002)
201
preconceito contra práticas religiosas não identificadas como católicas, ou
melhor, não inseridas no “tradicionalismo católico”. Nesse contexto, não foram
cerceadas apenas práticas negras, como a coroação de reis congos (que, de
certa forma, representavam uma identidade ancestral interligando o poder do
monarca negro com o sagrado) nas confrarias do Rosário, mas, também,
práticas espíritas e protestantes.
Ainda nos tempos do Império, o protestantismo era condenado
abertamente, como exemplifica a “denúncia” publicada no jornal Libertador de
que a Congregação Presbiteriana realizava cultos públicos “nos Domingos as
dez da manhã e nos Domingos e quarta-feira ás 7 horas da noute, a rua do
Senador Pompeu n. 59”, contrariando, segundo a mesma publicação, o artigo
276 do Código Criminal, que proibia “celebrar em casa ou edifício que tenha
alguma forma exterior de templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto
de outra religião, que não seja a do Estado”.
459
O preconceito religioso e as tentativas de controle continuaram mesmo
com o advento da República e a legislação
460
decorrente que determinava a
separação entre Estado e Igreja. Veja-se o caso do ataque ao espiritismo
promovido pelo jornal católico A Verdade, em 1898.
O ESPIRITISMO
Entre os erros e superstições com que o espirito das trevas tenta
enganar a bôa de muita gente e laçar a humanidade nas malhas
de sua rêde, enredando-a no intrincado labyrintho de seos
tenebrosos fins, figura modernamente o espiritismo. Essa seita
meticuloza e maldita que tem feito a infelicidade de muitos
individuos, tornando-os idiotas ou doidos, acha-se infelizmente
introdusida nesta capital.
461
Na Fortaleza das últimas décadas do XIX, mesmo religiões de origem
européia, teoricamente menos estranhas (por conta da influência cultural da
Europa sobre a elite local), eram “denunciadas”; que se considerar,
459
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 22 ago. 1883, p. 1, rolo nº.
189. (Esse anúncio e o artigo do código criminal são repetidos em outras edições, como a de
9 out. 1883, p. 3; e a de 11 out. 1883, p. 3).
460
O Decreto n. 7, assinado pelo Governo Provisório cinco dias após a proclamação da
República, previa que os governadores deveriam “estabelecer a divisão civil, judicial e
eclesiástica do respectivo Estado” (Cf. BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891.
Brasília: Senado Federal, 2001, p. 19-20); a distinção entre os poderes estatais e
eclesiásticos seria corroborada pela primeira constituição republicana, cujo artigo 72 permitia
a indivíduos e confissões religiosas liberdade de culto “pública e livremente”.
461
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal A Verdade. Fortaleza, 23 out. 1898, p. 1, rolo nº.
148.
202
portanto, que uma religiosidade de influência africana, como a Umbanda ou o
Candomblé, e mesmo práticas como os “maracatus”, sofreram uma carga de
preconceito muito mais intensa. Daí a percepção distorcida por parte de
memorialistas como Gustavo Barroso de enxergar o maracatu como
“macumba”, no sentido pejorativo, e o como uma manifestação (e
resistência) cultural negra que podia se constituir em espaço para o sagrado
ou/e para a conquista ainda que provisoriamente de territórios (físicos e
simbólicos) na cidade.
Ao irem para as ruas e ocuparem espaços físicos, os maracatus o
apenas se colocavam em relevo enquanto manifestações culturais do negro na
sociedade fortalezense, mas, com a carga representativa de seus elementos
componentes, abriam uma via simbólica através da qual faziam com que
muitos munícipes absorvessem ainda que preconceituosamente e não
necessariamente de forma racionalizada – signos que transmitiam experiências
negras de raízes africanas na capital do Ceará.
Em relação a isso, cabe aqui a reflexão de Mircea Eliade para o qual o
sagrado – retirado da vida religiosa propriamente dita – permanece vivo através
do simbolismo. Além disso, “um símbolo religioso transmite sua mensagem
mesmo quando deixa de ser compreendido, conscientemente, em sua
totalidade, pois um símbolo dirige-se a um ser humano integral, e não apenas à
sua inteligência”.
462
Ainda quanto à dimensão do sagrado presente nos maracatus,
representada através de elementos como a calunga, simbolizando a transição
da vida para a morte e a ida para outra vida, é importante destacar a ligação do
maracatu com outra manifestação cultural afro-brasileira – os “cucumbis”
463
.
462
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. op. cit., p. 109.
463
Era o nome da dança e/ou préstito dos negros, que encenava o ritual africano da circuncisão
dos filhos. Seus personagens vestiam-se com tangas e cocares de penas, adornavam-se
com colares, miçangas e dentes de animais e usavam armas como arco-e-flecha e pequenos
bastões. Os personagens mais conhecidos são rei, rainha, capataz (chefe do grupo), língua
(embaixador), quimboto (feiticeiro), mameto (criança, filho dos reis) e caboclo, todos solistas;
havia, ainda, príncipes, princesas e outros que dançavam, tocavam e executavam os coros;
no decorrer do auto, havia o enfrentamento entre o grupo do caboclo e o grupo do rei
resultando na morte do mameto; a pedido da rainha, o quimboto ressuscitava o mameto; ao
final da apresentação o grupo entoava as louvações e a despedida e ia apresentar-se em
outra parte. Cf. ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA. Popular, erudita e folclórica. 2.
ed. revista e atualizada. São Paulo: Publifolha, 1988, p. 224; CASCUDO, Luís da Câmara.
Dicionário do folclore brasileiro. 11 ed. revista, atualizada e ilustrada. São Paulo: Global,
2002, p. 169; MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares no Brasil. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, p. 142-144; QUERINO, Manuel. Costumes
203
Segundo Melo Morais Filho, quando se examinava as “províncias
(estados) do Norte” (nordeste), não se podia deixar de observar “grupos de
negros, vestidos de penas, tangendo instrumentos rudes, dançando e
cantando, que, nos dias de festa populares, percorre as ruas das grandes
cidades e pequenos povoados (...)” aos quais “o povo da Bahia denominou de
Cucumbis, e o das demais províncias – de Congos”.
464
No caso de Fortaleza, é interessante lembrar as considerações de
João Nogueira, para o qual, “os antigos Congos” da capital do Ceará eram
diferentes dos cucumbis da Bahia e do Rio de Janeiro. No entanto, o próprio
Nogueira (leitor do supracitado texto de Morais Filho) faz uma descrição de
manifestações culturais fortalezenses muito próximas aos cucumbis do “sul” do
Brasil, quando se refere aos congos e mesmo a alguns tipos de maracatus que
“se apresentavam com tangas e cocares de penas”.
465
que se ressaltar que o uso de penas pelos maracatus citados por
Nogueira não seriam propriamente uma influência indígena sobre os costumes
africanos (e descendentes) no Brasil, mas, uma reelaboração dos mesmos
utilizando-se, inclusive, elementos indígenas.
Como alertou Edison Carneiro, os cucumbis auto de inspiração
angolense tecido em torno de uma tragédia ocorrida durante a festa de
circuncisão foram gradativamente incorporando costumes tupis (segundo
Carneiro, os caboclinhos seriam uma forma moderna dos antigos cucumbis).
Entretanto, Edson Carneiro lembra que na África o negro “também se enfeitava
de peles e penas de animais”.
466
Observa-se, portanto, que os cucumbis eram práticas de raízes
africanas e apresentavam um caráter de sagrado, não apenas por ter sua cena
principal girando em torno da questão da morte (do mameto) e da volta à vida,
bem como dos poderes do “feiticeiro” capaz de dominar esse ciclo, mas,
também, por trazer em seus cantos elementos como a calunga
467
.
africanos no Brasil. 2. ed. aum. e ampl. Recife: FUNDAJ, 1988, p. 193-195.
464
MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares no Brasil. op. cit., p. 141.
465
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. 2. ed. Fortaleza: Edições UFC/PMF, 1980,
p.144
466
CARNEIRO, Edson. Folguedos tradicionais. Apresentação de Vicente Sales. 2. ed. Rio de
Janeiro: FUNARTE/INF, 1982, p. 135.
467
Sobre os cantos dos cucumbis em que aparecem referências à calunga, ver: MORAES
FILHO, Mello. Festas e tradições populares no Brasil. op. cit., p. 146.
204
Vale destacar, ainda nesse contexto de elementos que representavam
o sagrado, o uso de máscaras e/ou pinturas por componentes de
manifestações culturais negras diversas, como os congos, os cucumbis e os
maracatus, exercendo uma função social, mas, também, reverenciando
antepassados (culto aos ancestrais).
468
Marina de Mello e Souza, analisando a descrição feita pelo botânico
francês Francis Castelnau sobre uma coroação de um rei negro (congo) em
uma confraria do Rosário em Minas Gerais, em meados do século XIX, destaca
a dificuldade de o estrangeiro perceber o significado do uso de uma máscara
preta pelo rei. Para Castelnau era como se o rei “tivesse receio de que a
permanência no país lhe tivesse desbotado a cor natural”. Sobre esse mesmo
aspecto Mello e Souza, destaca que, juntamente com os trajes e adereços
(coroa e cetro) reais insígnias familiares ao espírito europeu e facilmente
identificadas a posições de mando , juntavam-se o guarda-chuva (pálio) e a
“máscara preta, distintivos do poder nas tribos africanas; esta, associada aos
poderes mágicos dos sacerdotes”.
469
Em Fortaleza, os maracatus que saíam às ruas da cidade na década
de 1880, de certa forma usavam “máscaras”, pois seus componentes tinham o
costume de fazerem pinturas (negras) do rosto. Como foi comentado, João
Nogueira relata desfiles desses maracatus cujos componente tocavam reco-
reco e de maracás, cantando: “Aruenda tenda ca ioiô. A nossa rainha se
coroou”. Mas, além disso, Nogueira também descreve como eram esses
grupos:
468
Ao que parece, o uso de máscaras era costume antigo nas manifestações culturais negras
no Brasil. Veja-se o caso das festas ocorridas na Bahia em homenagem ao casamento da
princesa portuguesa Maria I, onde numerosos “grupos de congos executavam danças
‘africanas’ à luz do dia”, com a presença de rainha e rei negros, bem como de “oitenta
máscaras”. Cf. Pedro Calmon, Relação das faustíssimas festas, 1762 apud Maria Clementina
Pereira da Cunha (Veneza, África, Babel. Leituras republicanas, tradições coloniais e
imagens do carnaval carioca. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura e
sociedade na América Portuguesa. vol. II, São Paulo: Hucitec : Editora da USP: Fapesp:
Imprensa Oficial, 2001, p. 65-66.
469
Cf. SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista. História da festa de
coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: EDUFMG, 2002, p. 284-286.
205
Outro grupo que aparecia uma vez ou outra era o dos Maracatus.
Formados de homens vestidos de mulher, saias brancas e
cabeções de renda, traziam o corpo e o rosto pintados de negro. À
simples vista pareciam africanos. Não dançavam, andavam
lentamente, pelas ruas.
470
Interessante notar que Nogueira não conseguiu enxergar dança onde
havia uma dança cadenciada por passos lentos. De qualquer forma, a
descrição dos maracatus feita por João Nogueira aproxima-se da idéia de
outras manifestações negras, como a coroação de reis (congos) negros; os
cucumbis (cujos autos traziam um caráter sagrado, ligado à morte)
incorporados às procissões fúnebres realizadas para os filhos de reis africanos
falecidos no Brasil
471
; e às cambindas, nas quais seus participantes se
pintavam de preto e desfilavam solenemente pelas ruas
472
.
Gustavo Barroso, referindo-se aos maracatus fortalezenses de fins do
século XIX, descreve-os como dezenas de “individuos” que formavam duas
filas, conduzidos por um tocador de ganzá ou maracá de folha de Flandres,
numa dança que “recorda a funebre cerimonia de enterro de um chefe
dahomeano”.
473
Esse sagrado ligado à morte foi observado por Barroso nos
maracatus, mas, novamente, com o viés do preconceito:
O ‘maracatú’ é mais apavorador do que grotesco. Ao avista-lo, os
meninos correm, gritando com medo, escondendo-se nas casas, tal
o aspecto lugubre dos robustos figurantes trajados de negras, com
os seus enormes ouropeis e a sua dansa funebre.
474
470
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. 2. ed. Fortaleza: Edições UFC/PMF, 1980, p.
143-144.
471
Sobre essas danças coreográficas de raízes africanas e de caráter fúnebre, ver: MORAES
FILHO, Mello. Festas e tradições populares no Brasil. op. cit., p. 141-149 e p. 305-309.
472
Em geral, os autores que publicaram sobre o assunto perceberam as “cambindas” ou
“cabindas” como grupos dançantes de negros que andavam em forma de préstito trazendo
personagens da corte real. Pereira da Costa (COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Folk-
lore pernambucano. Subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco. 2. ed.
autônoma. Recife: CEPE, 2004, p. 227) descreve a “Cambinda Velha” como um cortejo real
negro; Câmara Cascudo (Made in África. 5
a
ed. São Paulo: Global, 2001, p. 122-123)
defende que das cambindas é que se originou o ritmo solene e a velocidade inicial dos
maracatus; Guerra-Peixe (GUERRA-PEIXE, César. Maracatus do Recife. op., cit., p. 29)
registra uma versão de cambinda onde seus participantes pintavam-se de preto.
473
Cf. BARROSO, Gustavo. Ideas e palavras. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro &
Maurillo, 1917, p. 204.
474
Id., Ibid., p. 206.
206
Percebe-se, portanto, que em Fortaleza os maracatus representaram
um diálogo entre manifestações negras próximas, como cortejos de reis e
rainhas negros (congos), as cambindas, que tinham o costume de se pintar de
preto (uso de máscara), e os cucumbis, que encenavam o renascimento do
príncipe morto.
A recriação dos maracatus, na década de 1930, parte dessas e de
outras matérias-primas que tempos existiam na cidade. A título de
ilustração, veja-se “O Samba de Guerra do Maracatú Az de Ouro”, composto
por Raimundo Alves Feitosa em 1937 e denominado pelo próprio Raimundo de
“macumba” para se referir ao que hoje se chamaria de “loa” ou canção.
O que bêco estreito,
Chegado a capim
E’ cambimba brilhante
Que vem no camin
A corôa é do rei
Vou mandar lá pra rainha
Este trono é imperial
Macumba, cumba, cumba (...)
475
Ao que parece, finalmente, é que desde o século XIX os maracatus
vêm se constituindo em espaços onde manifestações culturais negras o
freqüentemente reinterpretadas, de forma que costumes como o pintar-se de
preto permanecem, o porque “o Ceará não tem negros” como muitos ainda
podem (preconceituosamente) pensar; ao contrário, porque além do elemento
negro, uma cultura negra conseguiu sobreviver apesar de tudo.
E a corte negra presente nas coroações de reis negros do Rosário,
nos autos de rei congo, nos maracatus é exemplo da resistência do negro e
de suas práticas culturais em Fortaleza, constantemente reelaboradas e
interligadas, é certo, mas que o compor uma cultura de raízes afros através
da qual os negros conquistavam (e conquistam) seus espaços sicos e
simbólicos na cidade.
475
Essa “macumba” ou loa, como se diria hoje, foi publicada no jornal O Povo, em 1940.
“Cambimba” aparece como uma variação de “cambinda”. Cf. MILITÃO, João Wanderley
Roberto (Pingo de Fortaleza). Maracatu Az de Ouro. op. cit., p. 34.
207
Considerações finais
Segundo Michel Vovelle, a festa é para o historiador um maravilhoso
campo de observação, pois é o momento em que um grupo de pessoas projeta
seu entendimento do mundo.
476
Certamente foi possível perceber isso ao longo dessa pesquisa. Mas,
também descobri que “festa” é um campo extremamente complexo e as “festas
de negros” eram reapresentadas em constante movimento. Assim, estudá-las
deu muito trabalho, até por causa da força dinâmica dessas manifestações e
do deslocamento de alguns de seus elementos. No entanto, acredito que foi
possível responder à formulação dos problemas propostos de forma
satisfatória.
Inicialmente, portanto, evidenciou-se a existência, nas últimas décadas
do século XIX, de um discurso abolicionista, patriótico e intelectual em que se
estabelecia a “ausência” do negro na história de Fortaleza e do Ceará. Nesse
contexto, muitos políticos usaram práticas festivas negras como referências
para ridicularizar adversários partidários, revelando seu preconceito contra a
cultura negra que existia na capital da província/estado.
Não obstante, o negro – livre ou cativo - teve uma participação efetiva
na luta pela liberdade e por seu espaço na sociedade cearense. Além disso, as
manifestações festivas negras foram poderosos instrumentos para os negros
conquistarem territórios físicos e simbólicos numa Fortaleza que passava por
intensas transformações sociais e urbanas.
E isso acontecia até como reação a um projeto de “modernidade” que
incluía a abolição, mas não os libertos e os negros livres; e, menos ainda,
valorizava a cultura criada por esses sujeitos. Nos embates políticos, a idéia de
“progresso” dificilmente aparecia separada da “libertação”. Acabar com a
escravidão constituía-se uma “questão de honra” para a elite. Mas, a
preocupação com o destino dos negros (cativos, libertos ou livres) não aparecia
em seus discursos.
476
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 246-
247.
208
[...] O Ceará é provincia que, nestes ultimos tempos, tem assimilado
mais e melhor os grandes productos da ciencia e da liberdade
moderna. (...) A adopção, mais de 20 annos do systema decimal,
as escolas primarias, a quasi extinção dos crimes crueis e por
trahição, a exploração de industrias varias e especiais, finalmente a
libertação dos captivos constituem para os cearenses titulos de
honra.
477
O trecho supracitado é a transcrição de um artigo publicado por João
Brígido com o objetivo de rebater críticas de um adversário político (Rodrigues
Júnior), usando como argumento o “progresso” pelo qual passara o Ceará na
administração dos “liberais pompeus”. Nesse processo, o movimento
abolicionista não se deu preocupado com os destinos dos negros (cativos ou
livres), mas, como fator obrigatório para a “modernização da sociedade”, o que
também incluía uma população ordeira, comportada e apegada à “moral e aos
bons costumes”.
Nesse contexto, ao qual estavam agregadas questões como a
romanização do clero local e a reurbanização de Fortaleza, foram constantes
os protestos de alguns munícipes contra o “barulho” na cidade, provocado por
diversos sujeitos, desde aqueles que participavam das festas de rua e
encenações populares até os sacristãos que exageravam nas badaladas dos
sinos das igrejas
478
.
Diante disso, as festas de negros, como a coroação de reis na
Irmandade do Rosário, os autos de rei congo e os sambas, constituíram-se em
desafio à ordem estabelecida. Com efeito, não foram poucas as tentativas de
controle que partiram da Igreja e do Estado, tanto no período Imperial como no
Republicano.
É bem verdade que, a partir de 1889, a “linguagem dos folguedos”
479
,
passou a representar em medida mais intensa a contestação ao novo poder
dominante, que tentava se autolegitimar pela ideologia do progresso.
No entanto, desde a década de 1870, favoreceu-se o enfraquecimento
da Irmandade do Rosário da Capital, tentou-se confinar os congos a praças e
477
BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Gazeta do Norte. Fortaleza, 03 dez. 1886, p. 2,
rolo nº. 330
478
Cf. BPGMP, Núcleo de Microfilmagem. Jornal Libertador. Fortaleza, 01 fev. 1886, p. 2, rolo
nº. 252; Jornal Libertador. Fortaleza, 12 dez. 1886, p. 3, rolo nº. 252; Jornal Cearense.
Fortaleza, 12 jan. 1887, p. 3, rolo nº. 31.
479
Cf. CARDOSO, Gleudson Passos. Padaria Espiritual: biscoito fino e travoso. 2. ed.
Fortaleza: Museu do Ceará / Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. (Coleção
Outras Histórias, 8), p. 42.
209
terrenos murados, promoveu-se a repressão aos sambas. Mas, se essas festas
de negros apareciam para as autoridades como espaços de transgressão,
também mostravam os vieses da resistência e da sociabilidade, ao se
constituírem práticas através das quais seus sujeitos exerciam suas liberdades,
quereres e sentimentos de pertencimento a um grupo, bem como marcavam a
presença de uma cultura negra na geografia da cidade.
Aliado a tudo isso, existiu uma intensa circularidade de muitos sujeitos
por essas festas, fazendo com que essas práticas muitas vezes aparecessem
interligadas espacial e simbolicamente. Além disso, houve o “deslocamento” da
corte negra - coroada na Irmandade do Rosário - para os congos e maracatus,
o que contribuiu para a persistência de uma cultura negra em Fortaleza, por
vezes ligada ao sagrado.
Apesar do preconceito, das tentativas de controle, das mudanças
provocadas pela reurbanização de Fortaleza, as festas de negros continuaram
existindo, mas, até por uma questão de sobrevivência, passaram (e passam)
por diversas reelaborações.
Nesse sentido, está a constante apropriação pelos grupos de
maracatus, de espaços, datas e personagens “oficiais”, dando-lhe significados
novos e interessantes do ponto de vista de seus componentes, o que se pode
perceber inclusive nos desfiles dos maracatus contemporâneos.
Entretanto, mesmo os grupos atuais, no século XXI, ainda têm que
lutar por liberdade de expressão e pelo reconhecimento de uma identidade
negra que muitas vezes é alvo de preconceito. Talvez por isso perceba-se uma
forte tendência em se colocarem na rua representações de Orixás e de se
realçar o sagrado através da festa que é o desfile anual dos maracatus na
Avenida Domingos Olímpio.
No século XIX, era proibido expressar esse tipo de sentimento, afinal,
a religião oficial do Império era a Católica Apostólica Romana. No entanto,
mesmo com o advento da República, persistiu o preconceito contra outras
religiões. E isso, no meu entendimento, atravessou o século XX,
permanecendo até os dias atuais.
É importante, pois, o papel exercido pela festa, pois ela é campo
privilegiado para as sociabilidades, para as interações e para o exercício de
uma cultura própria. Mais ainda, através dos elementos que a festa
210
(re)apresenta, pode-se, de alguma forma, “tocar” nos outros, mesmo naqueles
que ficam na “assistência”, mas que, com maior ou menor intensidade, sempre
“absorvem” os elementos constituidores da festa e, a partir daí, quebram-se
preconceitos.....
Os diversos grupos de maracatus, com seus milhares de
componentes, com suas indumentárias, músicas, danças, cantos e gestos, com
seu poder de agregar pessoas em torno do evento, com sua força física e
simbólica para conquistar territórios na cidade, constituem, atualmente, não
apenas uma grande festa de negros, mas uma amálgama da cultura negra em
Fortaleza. E, para entendê-la, certamente serão necessários outros trabalhos,
nas áreas de História, Ciências Sociais, Artes Plásticas e outras afins.
Reconheço, portanto, que a pesquisa ora apresentada possui
limitações, ressalvas e restrições. Mas, sendo a festa um maravilhoso e
complexo campo de observação, este estudo jamais poderia se colocar como
conclusivo.
Certamente, ainda virão muitos trabalhos que ajudarão a perceber
melhor por que e como essas manifestações festivas negras existiram e
persistiram em Fortaleza até chegarem aos dias atuais em que expressam - os
maracatus estão para comprovar um dos aspectos mais importantes da
cultura cearense.
Para tanto, acredito que seriam interessantes estudos específicos
sobre papel do corpo nas festas negras, o poder simbólico do rei nos cortejos,
a questão do gênero na representação da rainha do maracatu, e, enfim, sobre
outros tantos temas possíveis no estudo do negro e de suas experiências no
Ceará.
Finalmente, penso ser importante ressaltar que a intenção deste
trabalho não é apenas afirmar o negro como sujeito da história no recorte
temporal tratado, mas, também, valorizar a cultura negra existente na cidade
de Fortaleza e no Ceará.
É nesse sentido que espero ter contribuído...
211
FONTES
Manuscritos, impressos e outras fontes
1. MANUSCRITOS E IMPRESSOS (POR LOCAL DE GUARDA).
ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS
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Fundo Palácio Episcopal do Ceará / Bispado Cearense
Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos
Homens Pretos da povoação da Lapa (1868). Ala 03, estante 47, caixa 02.
Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos
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Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos
Homens Pretos do Crato (1870). Ala 03, estante 47, caixa 02.
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Lançamento de requerimentos diversos (1869 a 1870). Ala 03, estante 44, livro
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Movimento de crimes cometidos na Provincia do Ceará (1871-1873). Ala 03,
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Registro de officios ao Presidente da Provincia (1878-1880). Ala 02, estante 27,
livro nº. 209.
Registro de officios a diversas auctoridades da Provincia (1875-1880). Ala 02,
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Registro de officios aos subdelegados de policia desta Provincia (1887-1891).
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Registro de officios aos delegados (1870-1872). Ala 02, estante 44, livro nº.
337.
Registro de officios aos delegados (1885-1887). Ala 03, estante 44, livro nº.
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Registro de officios a diversas auctoridades da Provincia do Ceará (1880-
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Registro de officios a diversas auctoridades da Provincia do Ceará (1889-
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212
Registro de officios aos delegados de policia do Ceará e de outras Provincias
(1878-1886). Ala 02, estande 44, livro n. 345.
Rol de culpados (1915-1916). Ala 03, estante 46, caixa 02, livro nº. 07.
Termo de audiencia do Chefe de Policia (Fortaleza). (1873-1887). Ala 03,
estante 46, caixa 39, livro nº. 13.
Termo de audiencia do Chefe de Policia (Fortaleza). (1887-1896). Ala 03,
estante 46, caixa 39, livro nº. 16.
Termos de bem viver (1881-1894). Ala 03, estante 46, caixa 40, livro nº. 17.
BIBLIOTECA PÚBLICA GOVERNADOR MENEZES PIMENTEL (BPGMP)
Legislação impressa – Setor de Obras Raras
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Fortaleza: Typ. de Odorico Colás, 1868.
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213
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da Camara Municipal da Villa de Mecejana. In: Colleção de actos
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Resolução nº. 2022, de 19 de setembro de 1882. Approva o codigo de posturas
da camara municipal da Villa do Acarape. In: Colleção de actos
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empregados e o codigo de posturas da camara municipal da cidade de
Sant’Anna. In: Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará
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