Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE
PRESBITERIANA
MACKENZIE
FACULDADE
DE
DIREITO
MARCOS
PAULO
FALCONE
PATULLO
A
IGUALDADE
NO
PENSAMENTO
DE
RONALD
DWORKIN
SÃO PAULO
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
UNIVERSIDADE
PRESBITERIANA
MACKENZIE
FACULDADE
DE
DIREITO
A
IGUALDADE
NO
PENSAMENTO
DE
RONALD
DWORKIN
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora
da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana
Mackenzie como exigência para a obtenção do grau de
Mestre em Direito Político e Econômico.
ORIENTADOR: Professor Doutor Hélcio Ribeiro
SÃO PAULO
2009
ads:
3
P322i Patullo, Marcos Paulo Falcone.
A igualdade no pensamento de Ronald Dworkin / Marcos Paulo
Falcone Patullo – 2009.
210 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) –
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010.
Bibliografia: f. 203-210.
1. Igualdade de recursos. 2. Liberdade. 3. Comunidade liberal.
4. Direito. 5. Moralidade. I. Título.
4
“a guerra é o tema lancinante da filosofia política, e a
paz, o da filosofia do direito”.
Paul Ricoeur
5
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, pelo exemplo de vida, amor e carinho.
Ao Professor Hélcio Ribeiro, pelo incentivo em fazer o mestrado pela Faculdade
de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e por toda a sua dedicação
no decorrer da orientação.
Aos meus amigos e familiares, pelo fundamental apoio nos momentos difíceis, e
por compartilharem minhas alegrias.
A toda a equipe do Vilhena Silva Advogados Associados, que na luta pela
concretização do direito à saúde, contribui para a aplicação prática dos
conhecimentos adquiridos durante o curso de mestrado.
À CAPES, pelo apoio e incentivo financeiro, essenciais para o desenvolvimento
do presente trabalho.
À Luiza, amor da minha vida, companheira de mais de 10 anos, por completar
minha existência.
6
RESUMO
O estudo da filosofia política de Dworkin, especialmente a sua concepção de
“igualdade de recursos”, é essencial para a apreensão de seu pensamento
jurídico. Sem dúvida, a teoria “Direito como Integridade” utiliza alguns
conceitos, tais como a personificação da comunidade, interpretativismo e
construtivismo, que pressupõem conceitos políticos basilares do liberalismo
dworkiniano. Quando Dworkin sustenta que o intérprete deve perquirir a
interpretação que mostre a lei “sob a sua melhor luz”, ele tenciona que os
juristas têm o dever de fazê-la a melhor em termos igualitários. Assim, é muito
importante compreender como a igualdade de recursos é desenvolvida como a
concretização do direito que todo cidadão possui em uma democracia liberal de
ser tratado com igual respeito e consideração, bem como a concepção
dworkiniana de liberdade e comunidade, para após proceder à análise de sua
filosofia do direito. Finalmente, após conectar o liberalismo igualitário
dworkiniano e sua teoria jurídica, mister verificar como a filosofia de Dworkin
pode ser aplicada à sociedade brasileira, que é marcada pela pobreza e exclusão
social.
Palavras-Chave: Igualdade de Recursos Liberdade Comunidade liberal
Direito – Moralidade
7
ABSTRACT
The study of Dworkin’s political philosophy, specially his conception of
“equality of resources”, is essential for the apprehension of his legal thought.
Indeed, his “Law as Integrity” theory uses some concepts, like the
personification of the community, interpretativism and constructivism, which
presupposes some background political concepts of dworkinian liberalism. In
fact, when Dworkin defends that the interpret must pursue the interpretation that
shows law “in its best light”, he means that jurists’ duty is to make it the best in
terms of equality. Thus, it is very important to understand how equality of
resources is developed as the concretization of the right every citizen has in a
liberal democracy of being treated with equal concern and respect, as well as
Dworkin’s conception of liberty and liberal community, for then proceeding to
his jurisprudence. Finally, after connecting dworkinian egalitarian liberalism
and his legal theory, it’s imperative to see how Dworkin’s philosophy can be
applied to the Brazilian society, which is marked by poverty and social
exclusion.
Key-Words Equality of Resources Liberty Liberal Community Law -
Morality
8
SUMÁRIO
Introdução 11
Capítulo I – O Conteúdo Normativo do Princípio Igualitário Abstrato 18
1.1. A evolução da idéia de igualdade no pensamento dworkinano 19
1.2. A igualdade de bem-estar e a crítica de DWORKIN 22
1.2.1. A igualdade de bem-estar como tentativa de fundamentação do 23
princípio da igualdade
1.2.1.1. As teorias da igualdade de bem-estar relacionadas com o sucesso 24
1.2.1.1.1. Igualdade de sucesso e as preferências humanas (políticas, 25
impessoais e pessoais)
1.2.1.1.2. A igualdade de satisfação (equality of enjoyment) e as 32
teorias objetivas da igualdade de bem-estar
1.3. O equalisandum dworkiniano: a igualdade de recursos 34
1.3.1. Igualdade na propriedade privada de recursos 37
1.3.2. A construção do mercado igualitário a partir do exemplo contractual 40
1.3.2.1. O leilão igualitário fictício como modelo avaliativo das 43
Instituições reais
1.3.2.2. O leilão sensível à ambição e insensível às circunstâncias: 45
sorte, deficiências e seguro hipotético
1.3.2.3. O leilão insensível à dotação: o problema das deficiências 48
1.3.2.4.. O leilão insensível à dotação II: a questão da sorte genética 53
9
1.4. A concretização do seguro hipotético: o sistema tributário redistributivo 56
Capítulo II – Igualdade de Recursos e Liberdade 65
2.1. Direito à Liberdade ou Direito a Liberdades? 66
2.2. Como (re)conciliar a igualdade e a liberdade? 68
2.2.1. A estratégia dos interesses 68
2.2.2. A estratégia constitutiva: a liberdade como pressuposto da igualdade 70
2.2.2.1. O princípios e subprincípios que regem os direitos de liberdade 72
2.3. A questão do deficit de recursos e de liberdade 76
2.4. A crítica de Amartya Sem ao Liberalismo Dworkiniano 78
2.4.1. A resposta de Dworkin 83
Capítulo III – Comunidade e Ética no pensamento dworkiniano 87
3.1. Os argumentos pelo perfeccionismo moral 89
3.1.1. O argumento majoritário 90
3.1.2. O argumento paternalista 91
3.1.3. O argumento do interesse pessoal 93
3.1.4. O argumento do Comunistarismo Republicano Cívico 95
3.2. O republicanismo cívico liberal de DWORKIN: a comunidade liberal 97
3.3. Comunidade e boa-vida 99
3.3.1. O conceito de boa-vida (The Good Life) 100
3.3.1.1. O “Modelo do Impacto” e a Ética Utilitarista 100
3.3.1.2. Igualdade de recursos e boa-vida: o “Modelo do Desafio” 102
10
3.3.1.2.1.Descartes e o surgimento do conceito de subjetividade humana 102
3.3.1.2.2. O Modelo do Desafio: a justiça como métrica do viver bem 104
3.4. As dimensões da dignidade humana 107
Capítulo IV – A Filosofia do Direito Dworkiniana 111
4.1. O positivismo jurídico 112
4.1.1. HART e o Conceito de Direito 112
4.1.2. A interpretação do direito nas doutrinas positivistas: um paralelo 118
entre HART e KELSEN
4.2. O Direito como Integridade 125
4.2.1. A limitação estrutural da teoria de Herbert Hart 125
4.2.2. A integridade como ideal político e a sua manifestação no Direito 131
4.2.3. A interpretação construtivista dworkiniana 133
4.2.3.1. Razão Prática e o Construtivismo Político 134
4.2.3.2. A atitude interpretativa e a definição do Direito como 137
objeto interpretativo
4.3. Ceticismo, Coerência e a Tese da Resposta Certa 145
4.3.1. O predomínio e declínio do Ceticismo na teoria política normativa 146
4.3.2. O Ceticismo no Direito e a crítica dworkiniana 151
4.3.3. Integridade e Coerência 154
4.3.3.1. A crítica de HABERMAS ao “princípio monológico” 157
de DWORKIN
11
4.3.3.2. A crítica de RICOEUR: a falta de uma teoria da argumentação 160
no pensamento dworkiniano
4.3.4. Uma leitura da tese da resposta certa”: o dever buscar 162
a melhor solução
Capítulo V – O Pensamento Dworkiniano e a Interpretação da 169
Constituição Federal de 1988
5.1. A Colocação do Problema Prático 170
5.2. Uma questão interpretativa 174
5.3. A Crise do Estado Social e o Direito à Saúde 180
5.3.1. O problema da governabilidade 182
5.4. A importância de se recorrer à Teoria Política Normativa 185
5.4.1. O liberalismo igualitário e o Estado brasileiro 187
5.4.2. A solução divergente 190
Conclusão 196
Referências Bibliográficas 203
11
INTRODUÇÃO
Qual é a importância da teoria política
1
para o Direito? Esse é, sem dúvida
alguma, um dos temas mais instigantes da filosofia do direito, e que permeia
todo o pensamento jusfilosófico de DWORKIN.
Por muitos anos, por conta da preocupação cientificista do positivismo
jurídico, houve certo distanciamento da filosofia jurídica e da teoria política
normativa. Com efeito, o dogma positivista segundo o qual “a validade de uma
norma do direito positivo é independente da validade de uma norma de justiça
2
é tido como uma verdade axiomática no ensino do direito, notadamente nas
universidades brasileiras. Por essa razão, inclusive, o estudo da filosofia do
direito muitas vezes se limita à análise da crítica positivista às doutrinas
jusnaturalistas, sem, no entanto, abordar a tradição jusfilosófica que ora se
pretende expor.
Na presente dissertação, assim, analisar o pensamento dworkiniano, com
enfoque em sua teoria liberal-igualitária. Ao fazê-lo, no entanto, tem-se como
meta ressaltar o papel e a relevância dos principais valores constitutivos da
teoria política liberal
3
, nomeadamente, a igualdade, a liberdade e a fraternidade,
para a interpretação e justificação racional do Direito.
1
Utiliza-se, aqui, o termo “teoria política”, “teoria política normativa” ou mesmo filosofia política como “um
ramo da filosofia moral que parte da descoberta, ou aplicação, de noções morais na esfera das relações políticas”,
in BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 228. Não se
pretende, nesse sentido, contrapor Política e Moral, mas sim conferir àquele termo o significado que lhe foi
atribuído pelos filósofos, como RAWLS e HABERMAS, que compõem o que ABBAGNANO denomina de
“renascimento da filosofia prática”, posto que “voltaram a empenhar o discurso filosófico nos grandes temas da
liberdade e da justiça. E isso segundo um modelo criativo-normativo de filosofia P., voltando a responsabilizar
os filósofos em relação às instituições fundamentais de uma sociedade organizada, ou seja, a engajar-se na
“construção de mundos habitáveis, por via de razões”, cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia.
Edição revista e ampliada. 5.ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 906.
2
KELSEN, Hans. O problema da Justiça. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003,
p. 11.
3
O termo Liberalismo” não é de fácil conceituação. Tradicionalmente, em termos políticos, a partir da
exposição de filósofos como MILL, o liberalismo é tido como uma doutrina individualista, e que prima pela
prevalência da liberdade sobre a igualdade. Trata-se, portanto, de uma visão extremamente conservadora e que
predomina, mormente, na Europa e no Brasil. na tradição norte-americana, especialmente a partir da década
de 1970, com a publicação de “A Theory of Justice”, houve o desenvolvimento da teoria liberal com uma
12
Mas qual a razão da escolha, entre esses três ideais fundadores do
liberalismo, da igualdade? A igualdade é, sem dúvida, um valor político muito
caro para a República Federativa do Brasil, e integra o conteúdo normativo dos
princípios constitucionais fundamentais previstos no artigo 1da Constituição
Federal. Outrossim, a igualdade está prevista, como direito fundamental, no
artigo 5.º, caput, da Lei Maior, o que apenas corrobora a sua importância para a
ordem jurídica pátria. Em que pese a relevância política e jurídica desse ideal,
não foi conferido ao mesmo o destaque teórico que lhe é devido.
De fato, quase a totalidade dos publicistas pátrios que se debruçaram
sobre o tema, limitaram à análise do conteúdo “jurídico” do princípio da
isonomia. Talvez a melhor obra sobre a igualdade que foi produzida no direito
brasileiro foi escrita por Celso Antônio Bandeira de MELLO
4
, na qual, define-se
o conteúdo político-ideológico” da igualdade com a seguinte definição: a Lei
não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da
vida social
5
”. Embora louvável a preocupação de MELLO com a igualdade,
verifica-se que a mencionada definição nada mais faz do que uma definição
“formal” da igualdade, sendo certo que nada de “político-ideológico” se extrai
da definição supra senão a repetição a idéia, expressa no artigo 5.º, caput, da
Constituição
6
, de que a lei não pode estabelecer discriminações ilógicas e deve
buscar a proteção dos direitos necessários à ordenação da vida social.
O erro cometido por MELLO, qual seja, o de buscar na própria lei a
definição da igualdade, é cometido pela imensa maioria dos constitucionalistas,
preocupação igualitária. Em contraposição ao conservadorismo de outrora, o liberalismo passa a ser concebido,
por RAWLS, como “a resposta mais funcional à exigência atual de uma “sociedade bem organizada”, baseada na
justiça e no pluralismo”. É nesse contexto que se insere o pensamento dworkiniano e, por conseguinte, é com
esse conteúdo semântico que se utilizará o termo “Liberalismo” na presente dissertação.
4
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3.ª ed. 14. ª Tiragem. São
Paulo: Malheiros.
5
Idem. Ibidem. p.10.
6
“Art. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade(...)”
13
e tem a sua origem na tradição juspositivista que domina o ensino do direito no
Brasil.
A definição do conteúdo valorativo do princípio igualitário não é
apreendido mediante análise do texto constitucional. Para tanto, a
necessidade de se recorrer à teoria política normativa. Aliás, esse ramo do
conhecimento é de fundamental importância para a análise do direito
constitucional de uma forma geral, o que levou, inclusive, DWORKIN a
afirmar, expressamente, que nenhum constitucionalista, atualmente, pode
ignorar a leitura de “A Theory of Justice” de JOHN RAWLS
7
.
A igualdade, substancialmente compreendida, deve ser perquirida na
teoria política normativa. A esse respeito, todavia, a justiça rawlsiana representa
um corte teórico extremamente relevante, eis que, conforme dito, representa
uma releitura dos pressupostos da teoria liberal, a partir de uma visão igualitária.
Pode-se afirmar, com toda certeza, que RAWLS foi um dos pensadores que mais
influenciou o pensamento dworkiniano. Em um de seus mais recentes livros,
DWORKIN “confessa” que existem muitos pontos comuns entre a sua teoria
filosófica e o pensamento rawlsiano. Mais do que isso: DWORKIN considera
tamanha a importância de John RAWLS para a filosofia moderna que chega a
compará-lo com a importância que o próprio KANT possui para a Filosofia
8
.
Essa característica do pensamento dworkiniano, qual seja, a sua “raiz
rawlsiana”, não foi devidamente explorada pelos juristas. Com efeito,
DWORKIN é sempre apresentado pelos estudiosos do direito como um
jusfilósofo anti-positivista. No entanto, o alicerce político-normativo de seu
7
Professor Rawls of Harvard, for example, has published an abstract and complex book about justice which no
constitutional lawyer will be able to ignore (A Theory of Justice, 1972) There is no need for lawyers to play a
passive role in the development of a theory of moral rights against the state, however, any more than they have
passive in the development of legal sociology and legal economics. They must recognize that law is no more
independent from philosophy than it is from other disciplines. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously.
Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 149.
8
DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006, p.
261.
14
pensamento jurídico é deixado de lado. E, nesse sentido, a melhor forma de
analisar a contribuição do liberalismo igualitário dworkiniano para seu
pensamento jurídico é através da análise da igualdade.
Assim, a escolha pela “igualdade no pensamento de Ronald Dworkin” foi
motivada tanto pela possibilidade de aprofundamento no estudo desse ideal
político, quanto pela apreensão da essência do pensamento dworkiniano, que é,
hodiernamente, um dos mais relevantes no meio acadêmico.
Ronald DWORKIN nasceu em 1931, em Worcester, Massachusetts, e
graduou-se direito na Faculdade de Direito de Havard, na década de 1950. Foi
assessor, entre 1957-58, do Juiz Learned Hand na United States Court of
Appeals. Após, tornou-se membro do New York bar e associado do escritório de
advocacia Sullivan and Cromwell entre 1958-62. Academicamente, sua carreira
iniciou-se em 1962, na Faculdade de Direito de Yale. Posteriormente, em 1969,
foi indicado para a cadeira de Filosofia do Direito de Oxford, como sucessor de
HERBERT
HART, onde permaneceu até 1998. Além de Oxford,
DWORKIN
também lecionou nas faculdades de direito de Harvard, Cornell e Princeton,
além de ser professor convidado da University College London desde 1984.
Atualmente, DWORKIN leciona Filosofia do Direito na New York University
School of Law
9
.
Seu primeiro artigo foi publicado no Journal of Philosophy em 1963 e
versava a respeito da discricionariedade judicial. Em seguida, outros artigos
foram escritos, sendo neles identificável uma tese anti-utilitarista (que emergia
na filosofia política norte-americana) e uma forte influência do pensamento de
JOHN
RAWLS.
Foi, no entanto, com a publicação, no University of Chicago Law
Review do artigo “Is Law a System of Rules?”, em 1968, na qual critica o
9
GUEST, Stephen. Profiles in legal theory: Ronal Dworkin. California: Stanford University Press, 1991, p.
01-02.
15
pensamento de HART, que o autor norte-americano ficou conhecido no mundo
jurídico.
DWORKIN tem, outrossim grande influência das escolas Britânica e
norte-americana. Com efeito, no ano de 1952, quando o Professor H
ERBERT
H
ART
tornou-se titular da cadeira de filosofia do direito na Universidade de
Oxford, o estudo e desenvolvimento da filosofia do direito, bem como a teoria
política, estavam em crise na Inglaterra. Na década de 1950 foram publicadas de
algumas obras
10
cujo principal foco era o rigor metodológico, e que motivaram o
surgimento de grandes discussões a respeito da filosofia jurídica. Todavia, foi
em 1961, com a publicação de O Conceito de Direito” (The Concept of Law),
de
H
ERBERT
L.A.H
ART
, que a Jurisprudência britânica ganhou a claridade e rigor
lingüístico e metodológico necessários para o seu pleno desenvolvimento.
nos Estados Unidos, o desenvolvimento da argumentação jurídica se
dava a partir da prática dos tribunais, o que é, até hoje, uma marcante
característica da Jurisprudência norte-americana. DWORKIN, como dito,
iniciou a sua produção científica na década de 1960, em plena ocorrência da
Guerra do Vietnã e do Movimento pelos Direitos Civis. Duas questões, portanto,
emergiam desses fatos históricos: a questão da legitimidade da atuação estatal, e,
relacionado a esta, a da inviolabilidade dos direitos individuais. Ambos os temas
têm presença marcante na filosofia dworkiniana, uma vez que tratar a todos os
cidadãos com “igual respeito e consideração” é a condição sine qua non para a
legitimidade substantiva do governo democrático, o que exige o reconhecimento
de certos direitos fundamentais que são invioláveis pela atuação estatal.
A presente dissertação visa examinar, a partir da igualdade, o pensamento
dworkiniano, tanto no seu aspecto político-normativo, quanto a sua filosofia do
10
Dentre elas, Stephen Guest cita The Vocabulary of Politics (1953), de T.D. Weldon; The Province and
Function of Law(1946), de Julius Stone; Law and Social Change in Contermporary Britain (1951) e Legal
Theory (1967), de Wolfgang Friedman; e, finalmente, Introduction to Jurisprudence (1959), de Dennis Lloyd.
Cf. GUEST, op cit., p.03.
16
Ddireito. Nesse sentido, o Capítulo 01 será dedicado à exposição pormenorizada
da “igualdade de recursos” dworkiniana, conceito essencial para o entendimento
dos demais temas que serão abordados nos Capítulos subseqüentes. Após, no
Capítulo 02, enfocar-se-á a principal característica do liberalismo igualitário
dworkinano: a compreensão da igualdade e da liberdade como ideais políticos
complementares, e não conflitivos. Conforme será visto, DWORKIN sustenta
que esses valores políticos interagem de uma forma peculiar e que não entram
genuinamente em conflito. Nesse Capítulo, ainda, será analisada a crítica que
SEN tece a DWORKIN e a importância da mesma para a compreensão do
presente objeto de estudo.
Por sua vez, o Capítulo 03 será reservado ao estudo do conceito
dworkiniano de comunidade liberal e de boa-vida. O entendimento da teoria
“Direito como Integridade” deve começar pela idéia de Republicanismo Cívico
Liberal que DWORKIN expõe no Capítulo 05 de Sovereign Virtue”, sendo
certo que a concepção de comunidade personificada” é de importância impar
para a doutrina dworkiniana. O fechamento da teoria política de DWORKIN se
dará com o estudo da questão do viver bem, e, finalmente, com as dimensões da
dignidade da pessoa humana, composta pelos princípios da responsabilidade
individual e do valor intrínseco da pessoa humana.
A partir do Capítulo 04, o foco da dissertação passa a ser a teoria do
direito dworkiniana, a qual tentar-se-á analisar com vistas ao que foi exposto nos
três primeiros Capítulos. Pretende-se, na verdade, mostrar a importância da
compreensão do pensamento ético-político de DWORKIN para a correta
apreensão de sua teoria do direito. De fato, a filosofia política exerce um papel
decisivo no desenvolvimento do pensamento jurídico de DWORKIN, tanto na
definição dos conceitos interpretativos, como, especialmente, no entendimento
da one right answer thesis.
17
Passa-se, no Capítulo 05, da abstração para a concretude, visto que, a
partir da análise de um problema concreto, qual seja, a questão do fornecimento
gratuito, pelo Estado, de medicamentos de alto custo, far-se-á uma leitura do
artigo 196 da Constituição Federal à luz do pensamento dworkiniano. Objetiva-
se, com isso, demonstrar como as filosofias política e jurídica de DWORKIN
podem contribuir para a interpretação do direito brasileiro, desde que a mesma
seja usada com critério, mediante a feitura das mitigações necessárias à
adaptação do pensamento dworkiniano para o caso brasileiro.
18
CAPÍTULO
I
O
CONTEÚDO
NORMATIVO
DO
PRINCÍPIO
IGUALITÁRIO
ABSTRATO
A igualdade é um valor fundamental na teoria de dworkiniana. Sem
dúvida, o autor norte-americano dedica boa parte de sua obra a defender uma
interpretação extensiva da cláusula de igual proteção contida na Constituição
Americana, a qual representa, para ele, o texto legal que insere o princípio
igualitário abstrato na vida política norte-americana. Nesse sentido, visando
definir o conteúdo normativo desse princípio, DWORKIN constrói uma teoria
geral da igualdade, em especial na obra Sovereign Virtue”. Se no âmbito da
teoria do direito DWORKIN pode ser considerado um “pós-positivista”,
politicamente, seu pensamento se insere na mesma linha da filosofia rawlsiana,
ou seja, como um liberal igualitário, visto que defende a conciliação (e não o
conflito) entre a igualdade e a liberdade.
No aludido livro, DWORKIN ressalta a importância que a igualdade tem
para legitimar um governo democrático, defendendo que o Estado tem o dever
de demonstrar igual consideração (equal concern) para com todos os cidadãos
que estão sob o seu domínio, aos quais invoca lealdade
11
. Considerando a
importância legitimadora da igualdade, DWORKIN pretende oferecer uma
concepção igualitária que fortaleça esse ideal, que perdeu importância nas
doutrinas liberais a partir do século XIX.
Mas o que pode fazer da igualdade um ideal político atraente? Em
primeiro lugar, cumpre salientar que DWORKIN não é defensor de uma
igualdade indiscriminada. Pelo contrário, ele se preocupa em rechaçar, logo na
Introdução de “Sovereign Virtue”, a concepção da igualdade indiscriminada
11
DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue: the theory and practice of equality. Massachusetts: Harvard
University Press, 2000, p. 1.
19
defendida pela “velha esquerda
12
”, a qual sequer pode ser considerada, segundo
ele, como um ideal político genuíno
13
. Embora DWORKIN não mencione
expressamente, a crítica ao que denomina velha esquerda” é dirigida à teoria
marxista. É deveras controverso se o marxismo pode ser propriamente
considerado uma teoria da justiça. Com efeito, o problema da Justiça não era
uma preocupação de MARX, eis que a idéia que permeia a sua filosofia é a de
que “com a chegada do comunismo iriam desaparecer (...) as ‘circunstâncias da
justiça’. A escassez e os conflitos seriam reduzidos, ao ponto de tornar
desnecessária qualquer apelação à justiça
14
”.
Por essa razão, DWORKIN desconsidera o marxismo como fonte de um
ideal igualitário, eis que, para o filósofo norte-americano, o princípio da
igualdade deve ser complexo e dotado de diversos critérios definidores das
situações em que se deve prezar pela igualdade, e daquelas em que o próprio
tratamento igualitário pode ser injusto. A “igualdade de recursos” dworkiniana
(equality of resources), visa elaborar um ideal igualitário dotado da
complexidade que falta à “igualdade indiscriminada marxista”, e parte de uma
crítica das teorias da igualdade de bem estar
1.1. A EVOLUÇÃO DA IDÉIA DE IGUALDADE NO PENSAMENTO
DWORKINANO
A igualdade é mencionada por DWORKIN em diversos de seus escritos,
mas ganhou relevância teoria em Taking Rights Seriously”, onde DWORKIN,
12
Ressalte-se, desde já, que DWORKIN não prima pela precisão técnica do vocabulário que utiliza, o que
representa, inclusive, uma dificuldade que o seu leitor deve superar, que não são incomuns as inovações
terminológicas no decorrer de sua obra.
13
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 02.
14
Marx simplemente se desentendía de las cuestiones de la justicia, porque pensaba que con la llegada del
comunismo iban a desaparecer (lo que Hume o Rawls llamaron) las “circunstancias de la justitcia”. La escasez
y los conflictos se iban a ver reducidos, hasta el punto de tornar innecesaria cualquier apelación a la justicia”.
GARGARELLA, Roberto. Las teorias de la justicia después de Rawls: un breve manual de filosofia
política. Barcelona: Paidós, 1999, p. 106. Gargarella menciona, ainda, autores como Richard Miller, que
sustentam que Marx tinha uma verdadeira aversão à justiça, e outros como Zayid Husami, que entendem que o
filósofo alemão possuía, implicitamente, uma teoria da justiça.
20
no capítulo 12, define o conceito de “equal concern and respect”. Argumenta
que quando se afirma que um governo tem o dever de tratar a todos com equal
concern and respect”, pode-se ter em mente duas interpretações possíveis. A
primeira é no sentido de que o conteúdo abstrato do direito a “igual respeito e
consideração” manifesta-se como um direito a equal treatment” (tratamento
igualitário), ou seja, “(direito) à mesma distribuição de bens e oportunidades que
foi ou é dada a qualquer outra pessoa
15
. Outra interpretação possível é que
equal concern” acarreta o direito a “treatment as an equal” (tratamento como
um igual), que diz respeito ao direito a “igual respeito e consideração nas
decisões políticas acerca da forma como esses bens e oportunidades deverão ser
distribuídos
16
”. Essa distinção entre equal treatment e treatment as an equal é
sutil, mas de vital importância.
Equal treatment, segundo a definição proposta por DWORKIN, diz
respeito a uma igualdade à mesma parcela de recursos a que foi dada aos demais
indivíduos, o que margens à “igualdade indiscriminada” defendida pela
“velha esquerda” e, conforme visto acima, é tão criticada por DWORKIN. Por
sua vez, o direito a tratamento “como um igual” (treatment as an equal) deve
ser visto como um direito de fundamental importância para a concepção liberal
de igualdade, eis que atribui ao governo o dever de considerar as circunstâncias
pessoais de cada indivíduo quando da tomada da decisão política que
determinará a distribuição de recursos na sociedade, o que significa, por
exemplo, que o governo tem que levar em consideração as deficiências (físicas,
mentais, etc) que determinados indivíduos têm para definir a política tributária
que será adotada
17
.
15
(right) to the same distribution of goods and opportunities as anyone else has or is given”. DWORKIN.
Taking…, op. cit., pp. 272-273.
16
equal concern and respect in the political decision about how these goods and opportunities are to be
distributed”. Idem. Ibidem. p. 273.
17
Essa é, inclusive, uma preocupação que se encontra na teoria liberalismo igualitário de JOHN RAWLS e
que será colocada em evidência por DWORKIN. Nesse sentido, cf. RAWLS, John. A Theory of Justice.
Revised Edition. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Havard University Press, 1999, pp. 86 e ss. e
21
DWORKIN foi criticado pela demasiada abstração com a qual definiu o
direito à igualdade, conforme podemos observar nos comentários que PAUL
GAFFNEY tece à teoria do direito de dworkiniana, no sentido de que é muito
difícil se extrair um programa político da definição formal que DWORKIN faz
da igualdade, mostrando-se surpreso com o fato de que o autor norte-americano
não se esforçou em dar contornos mais concretos à sua concepção de igualdade:
“Inacreditavelmente, Dworkin não dedica muita energia para essa questão,
apesar de sua centralidade
18
”.
Realmente, tendo em vista apenas a forma como DWORKIN define a
igualdade em Taking Rights Seriously”, que é seu livro de maior destaque, a
crítica feita por GAFFNEY é pertinente. Todavia, em escritos posteriores à
aludida obra, DWORKIN refinou a sua concepção de igualdade, dando à mesma
contorno mais concreto. Sem embargos, no artigo Why Liberals Should Care
about Equality?”, que atualmente encontra-se publicado em “A Matter of
Principle”, DWORKIN refere-se a uma concepção de igualdade de recursos”,
introduzindo a idéia de que uma teoria da igualdade, enquanto ideal genuíno do
Estado Liberal, deve respeitar as “escolhas autênticas” dos indivíduos e
neutralizar as circunstâncias naturais
19
.
No entanto, foram nos artigos “What is equality? Part I: equality of
welfare” e What is equality? Part II: equality of resources”, publicados
originalmente na revista Philosophy and public affairs” em 1981, e que hoje
compõem o livro Sovereign Virtue”, que DWORKIN desenvolveu por
completo a sua defesa da igualdade de recursos.
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, pp.114 e ss.
18
Incredibly, Dworkin does not devote too much energy to this question, despite its centrality”. GAFFNEY,
Paul. Ronald Dworkin on law as integrity: rights and principles of adjudication. New York: Mellen
University Press, 1996, p. 108.
19
DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985, pp. 205 e ss.
22
Outrossim, em seu livro mais recente, denominado Is democracy
possible here?”, DWORKIN faz menção a dois princípios éticos que
fundamentam a sua teoria liberal, que comporiam as dimensões da dignidade da
pessoa humana
20
, demonstrando que esses princípios devem constituir uma base
comum (common ground) para a discussão dos assuntos políticos de maior
relevância na sociedade americana. Esse assunto será abordado no Capítulo III.
Por ora, cumpre analisar a forma como DWORKIN elabora a defesa da
igualdade de recursos a partir de uma crítica de uma concepção igualitária que
coloca o bem-estar como parâmetro igualitário.
1.2. A IGUALDADE DE BEM-ESTAR E A CRÍTICA DE DWORKIN
Existem várias concepções políticas igualitárias, sendo este termo
“igualdade” utilizado por diversos autores para defender modelos distributivos
divergentes. Visando esclarecer esse problema, SEN defende que as doutrinas
igualitárias devem buscar a resposta à pergunta “igualdade de quê” (equality of
what?), visto que em cada uma das teorias igualitaristas “a igualdade é buscada
em algum espaço – um espaço que considera como tendo um papel central nessa
teoria”
21
. Assim, todas as doutrinas que defendem uma espécie de igualdade que
considera relevante acabam por aceitar uma desigualdade em algum
determinado espaço, considerado de somenos importância. Nesse sentido,
defender a igualdade significa definir alguma espécie de igualdade que deva
prevalecer sobre as demais, de modo que “proponentes do igualitarismo não
podem portanto simplesmente se dizer igualitários, devem apontar em que
20
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Principles for a new political debate. Oxford: Princeton
University Press, 2006, p. 09 e ss.
21
SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. 2Ed. Tradução: Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janeiro:
Record, 2008, p. 44.
23
dimensão (isto é, espaço) uma sociedade de iguais busca a igualdade entre as
pessoas”
22
.
A resposta à pergunta “igualdade de quê” pode ser considerada um marco
teórico na doutrina dworkiniana, visto que é a partir da separação entre
“doutrinas da igualdade de bem-estar” e “igualdade de recursos” que ele
constrói o conteúdo normativo do princípio igualitário. Nesse diapasão,
DWORKIN reserva um capítulo inteiro de Sovereign Virtue” para analisar (e
desconstruir) a igualdade de bem-estar (equality of welfare), para posteriormente
expor a sua teoria da igualdade de recursos.
1.2.1.
A
IGUALDADE DE BEM
-
ESTAR COMO TENTATIVA DE FUNDAMENTAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
As doutrinas da igualdade de bem-estar concebem o princípio igualitário a
partir de uma racionalidade econômica, contemplando os recursos sociais de
acordo com sua capacidade de produção de bem-estar para os indivíduos
23
.
Nesse contexto, a igualdade de bem-estar está relacionada com a forma de
distribuição desses bens para que as pessoas tenham igual bem-estar em sua vida
social considerada como um todo. Tendo isso em vista, a questão que
DWORKIN coloca é se a igualdade em bem-estar deve ser um objetivo a ser
alcançado por um governo comprometido com o princípio abstrato da
igualdade
24
.
No entanto, preliminarmente à discussão da igualdade de bem-estar,
DWORKIN propõe uma classificação da mesma a partir de três grandes grupos.
22
FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Justiça distributiva para formigas e cigarras. Novos estud. - CEBRAP
[online]. 2007, n.77 [cited 2009-12-16], pp. 243-253.Disponível em : <http://www.scielo.br /scielo. php?
script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000100013&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0101-3300. doi:
10.1590/S0101-33002007000100013. Acesso em 17.12.2009.
23
Para Dworkin, a produção de bem estar era vista, pelos economistas, como a principal característica dos
recursos sociais, cf.DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 14.
24
Idem. Ibidem. p. 15.
24
O primeiro grupo ele denomina de “teorias do sucesso” (success theories)
25
do
bem-estar, às quais estariam relacionadas com o êxito dos indivíduos na
comunidade
26
. o segundo grupo da classificação proposta por DWORKIN
contém as denominadas “teorias do estado de consciência”, segundo as quais a
distribuição deve tentar objetivar igualar as pessoas, na medida do possível, em
algum aspecto ou qualidade de sua vida consciente
27
. Dessa modo, as teorias do
estado de consciência estão relacionadas com a quantidade de prazer e de
desprazer (igualdade de satisfação) que um indivíduo sentirá em sua existência.
Por fim, DWORKIN menciona as teorias objetivas do bem-estar, que requerem
a construção de parâmetros objetivos para a mensuração do bem-estar na
sociedade.
1.2.1.1. As teorias da igualdade de bem-estar relacionadas com o sucesso
A igualdade de bem-estar, na modalidade ora em exame, relaciona-se com
o sucesso ou êxito que uma pessoa atinge na sociedade no decorrer de sua vida.
DWORKIN inicia a discussão acerca das “teorias do sucesso” do bem-estar para
verificar se o “sucesso” deve ser um parâmetro na elaboração de uma teoria
geral da igualdade, ou seja, se a igualdade, em sua substância, exige que o
Estado atue de forma a igualar os indivíduos quanto ao êxito, considerado este
em suas mais diversas formas. Nesse contexto, DWORKIN questiona: “se (...)
nós podemos alcançar a igualdade de bem-estar em alguma dessas concepções,
25
Jussara Simões, na edição brasileira do livro Virtude Soberana, publicada pela editora Martins Fontes, sugere a
tradução dessa expressão como “teorias bem sucedidas do bem-estar”, mas eu preferi por não adotar essa
tradução e manter a expressão consoante se encontra no original em inglês.
26
Cumpre salientar que DWORKIN relaciona o êxito de uma pessoa a três fatores, a saber, às preferências
políticas, pessoas e impessoais do indivíduo. Assim, para aqueles que defendem irrestritamente que a igualdade
de bem-estar é uma questão de êxito, os bens sociais devem ser distribuídos de forma a que as pessoas consigam
ter sucesso de forma equânime em suas mais diversas preferências (políticas, pessoais ou impessoais). outras
teorias mais restritas podem limitar a igualdade de bem-estar na modalidade êxito a cada uma dessas
preferenciais. Cada um desses fatores será oportunamente conceituado e relacionado com a igualdade de bem-
estar, de modo a que esta distinção fique mais clara.
27
distribution should attempt to leave people as equal as possible in some aspect or quality of their conscious
life” (tradução do autor). DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 18.
25
seria desejável, em nome da igualdade, que isso realmente seja feito?
28
”.
Visando responder a essa pergunta, DWORKIN faz uma análise das teorias do
sucesso da igualdade de bem-estar em suas mais diversas facetas,
nomeadamente, considerando as preferências políticas, impessoais e pessoais
dos indivíduos e relacionando-as com uma possível teoria geral da igualdade.
1.2.1.1.1. Igualdade de sucesso e as preferências humanas (políticas,
impessoais e pessoais)
Uma das formas que DWORKIN considera relevante para ser tratada
como igualdade de sucesso diz respeito às preferências políticas dos cidadãos.
A pergunta que se faz é se o ideal da igualdade, em seu grau mais abstrato, exige
que as pessoas sejam niveladas com relação ao sucesso obtido em suas
preferências políticas. Mas o que DWORKIN quer dizer por “preferência
política”? Para o filósofo norte-americano, o termo preferência política (political
preference) pode ser utilizado com um sentido mais amplo e um mais restrito,
mas sempre estará relacionada com preferências a respeito de como, na
comunidade, os bens, recursos e oportunidades devem ser distribuídos para os
outros
29
, ou seja, diz respeito às diversas formas de distribuição dos bens
sociais e oportunidades no seio social, em decorrência das decisões políticas
tomadas na comunidade.
Não se pode ignorar, todavia, que toda decisão política é contestável e
desagradará, via de regra, algum grupo social. Assim, caso o ideal da igualdade
abranja uma cláusula de igual sucesso em preferências políticas, cada grupo que
se sentir afetado negativamente por uma decisão política teria o direito a uma
compensação recursal por isto. Todavia, para DWORKIN, a igualdade não
28
“If (…) we could achieve equality of welfare in some of these conceptions, would it be desirable, in the name
of equality, to do so?”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 21.
29
how the goods, resources, and opportunities of the community should be distributed to others.”. Idem.
Ibidem. p. 17.
26
acarreta o direito a uma compensação àqueles prejudicados por uma decisão
tomada coletivamente, pois considera que a questão da distribuição dos bens
sociais não pode ser vinculada ao existo em uma decisão política, por tratar-se
de uma questão de justiça. Com efeito, DWORKIN reconhece que existem
divergências políticas em uma sociedade e que sempre alguém será prejudicado
pela escolha de uma política pública em detrimento de outra, mas conclui que a
igualdade, abstratamente, não exigem uma compensação para tanto, posto que a
distribuição dos recursos sociais deve ser feita de acordo com parâmetros de
justiça distributiva. Nesse sentido, pode-se concluir que DWORKIN não trata a
igualdade como uma questão preferência política, mas como uma questão de
justiça:
(...) uma boa sociedade é aquela que trata a concepção de igualdade
que a sociedade endossa não apenas como preferências que algumas
pessoas possam ter, e, assim, como uma fonte de realização que possa
ser negada a alguns e que deva ser, posteriormente, compensada de
outras formas, mas como uma questão de justiça que deve ser aceita
por todos porque está certa. Uma sociedade desse tipo não
compensará pessoas por terem preferências que suas instituições
políticas fundamentais declararem que é errado que elas as tenham
30
.
O sucesso ou insucesso em uma preferência política, nesse contexto,
relaciona-se com o bem-estar individual, e não com a igualdade propriamente
dita. A igualdade não determina, por conseguinte, que as pessoas sejam
igualadas em sucesso em preferência política.
Mas o bem-estar de uma pessoa na sociedade não diz respeito apenas às
suas preferências políticas, que existem outras duas espécies de preferências
que podem ser levadas em conta para quantificar o mesmo. A primeira delas são
as preferências impessoais, quer dizer, aquelas relacionadas com fatos
30
(...) a good society is one that treats the conception of equality that society endorses, not simply as a
preference some people might have, and therefore as a source of fulfillment others might be denied who should
then be compensated in other ways, but as a matter of justice that should be accepted by everyone because it is
right. Such a society will not compensate people for having preferences that its fundamental political institutions
declare it is wrong for them to have.” DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 23.
27
exteriores ao indivíduo e ao seu meio relacional
31
, como por exemplo, o apreço
pelo avanço científico, ou pelo desenvolvimento do esporte, etc. São todas
preferências que não estão diretamente relacionadas com a vida de quem as m.
Seria compensável, assim, um eventual insucesso em uma preferência
impessoal?
No entendimento de DWORKIN, uma eventual compensação financeira
em virtude da frustração de uma preferência impessoal não não se justifica à
luz da igualdade como, também, a frustra
32
. Sem embargo, as o insucesso em
uma preferência impessoal, embora seja um fato externo ao indivíduo, apenas
gera uma perda de bem-estar, afetada pela subjetividade inerente à mesma, que
não pode ser quantificada objetivamente para uma compensação recursal.
Assim, a igualdade de sucesso, compreendida como sucesso nas
preferências políticas dos indivíduos, ou como sucesso em atingir as
preferências impessoais não constitui argumento suficiente para, invocando o
ideal da igualdade, se pleitear uma compensação por eventual frustração.
DWORKIN analisa, então, se a igualdade de bem-estar entendida como
obtenção de sucesso nas preferências pessoais dos indivíduos pode ser
considerado um ideal político forte, no sentido de fundamentar o dever do
Estado de tratar a todos como iguais em bem-estar e constituir uma circunstância
pessoal que possa, em nome da igualdade, justificar que uma reparação
(financeira ou de alguma outra ordem) por parte do Estado em caso de
desigualdade.
A igualdade de sucesso nas preferências pessoais significa que o Estado
tem o dever de promover uma política distributiva de modo que os indivíduos
obtenham igual êxito em suas circunstâncias pessoais, consideradas em seu
próprio ponto de vista, ou seja, de acordo com o seu próprio ponto de vista.
31
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 17.
32
Idem. Ibidem.p. 27.
28
Nesse diapasão, essa forma de igualdade exige que o indivíduo faça um juízo
valorativo sobre a sua própria vida sob dois enfoques diferentes: o êxito seu
relativo e êxito total
33
. Por êxito relativo de um indivíduo DWORKIN considera
o sucesso na realização das metas que ele fixou para a sua vida, de modo a fazê-
la uma vida que tenha valor aos seus próprios olhos. O importante, no êxito
relativo, é o sucesso em atingir os objetivos pessoais que uma pessoa escolheu
com a ambição de fazer algo relevante na sua existência enquanto ser humano
34
.
Ora, a igualdade de sucesso relativo em preferências pessoais está
claramente fundamentada no direito que cada um tem de escolher o melhor para
sua vida e no dever de fazê-lo da melhor maneira possível, utilizando os bens de
forma instrumental para atingir ao sucesso em suas preferências pessoais e,
conseqüentemente, produzir bem-estar. Mas, sob o prisma da igualdade, decorre
daí, novamente, uma dificuldade: o subjetivismo. De fato, as pessoas valoram o
seu sucesso (ou fracasso) pessoal de formas diferentes, utilizando critérios
diferentes. Por exemplo, imagine-se dois escritores que não se conhecem e que
têm como objetivo escrever uma obra de sucesso. Ocorre, então, que cada um
escreveu um romance, os quais venderam um milhão de cópias cada. É possível
afirmar positivamente que os escritores atingiram seus objetivos? Será que os
dois escritores imaginários considerarão que seus livros são um sucesso a ponto
de satisfazer uma preferência pessoal? Não necessariamente.
Pode ocorrer que um escritor fique extremamente feliz e satisfeito com
relação à vendagem de seu livro, mas que o outro escritor ache que sua obra foi
um fracasso, pois, exigente que é, acha merecia ter vendido mais cópias. Agora
a pergunta fundamental: será possível, invocando-se a igualdade, sustentar que o
33
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 28.
34
Idem. Ibidem. p. 30-31.
29
escritor que considerou sua obra um fracasso mereça receber mais recursos do
que o escritor que se considerou bem sucedido? Evidente que não
35
.
Outra dificuldade concernente ao sucesso pessoal relativo (ou seja, aquele
relacionado com os objetivos que cada um traçou para si) é que esse critério de
igualdade determinaria uma distribuição de recursos de uma pessoa para outra
por razões que ambas valoram de forma diferente, ou melhor, nas palavras de
DWORKIN:
dinheiro é dado para uma pessoa e não para outra, ou tirado de uma e
dado para outra, com o objetivo de se alcançar a igualdade em relação
a algum valor que alguns valoram mais do que outros e que alguns
valoram muito pouco, ao custo da desigualdade em algo que outros
atribuem um maior valor
36
.
Dessa forma, DWORKIN considera injusta a distribuição de recurso sob
um critério que seja meramente subjetivo, ou seja, que considera apenas o que
cada pessoa escolhe para si, já que cada indivíduo pode valorar de forma diversa
o que é importante para sua vida. Assim, o sucesso relativo não pode ser
utilizado como critério para uma teoria geral da igualdade. Mas com relação às
preferências pessoais, deve ser considerado ainda o êxito absoluto, ou seja, o
êxito considerando não com relação às escolhas pessoais do indivíduo, mas a
sua vida como um todo.
Qual o critério para se avaliar o sucesso (ou insucesso) da vida de um
indivíduo? Da mesma forma como no sucesso relativo, o critério deverá ser o
próprio indivíduo, pois, conforme explica DWORKIN, é ele quem, avaliando a
sua vida como um todo, dirá se conseguiu fazer algo de valioso de sua
35
Em Sovereign Virtue”, DWORKIN utiliza um exemplo parecido e expressa a mesma opinião. Cf.
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 31 e ss.
36
“money is given to one rather than another, or taken from one for another, in order to achieve equality in a
respect some value more than others and some value very little indeed, at the cost of inequality in what some
value more” Idem. Ibidem. p. 31.
30
existência
37
. Assim, o indivíduo é o parâmetro se as suas preferências pessoais
foram atingidas ou não. Aqui ocorre o mesmo problema de subjetividade
observado com relação à igualdade de êxito relativo. DWORKIN demonstra,
através de exemplos utilizando pessoas fictícias, denominadas “Jack” e “Jill”,
que as concepções políticas, o humor, ou mesmo as convicções filosóficas
podem influenciar na avaliação que uma pessoa tem de sua própria vida
38
.
DWORKIN pressupõe uma situação hipotética em que “Jack” e “Jill”, embora
tenham vidas parecidas, avaliam de maneira oposta os valores que conseguiram
agregar na sua existência, não pelo fato objetivo de suas vidas serem diferentes,
mas porque possuem concepções de vida diversas
39
. Nesse contexto, conclui o
DWORKIN:
As diferenças nos julgamentos pessoais acerca do quão bem suas
vidas vão, consideradas no geral, são antes diferenças em suas vidas,
do que apenas diferenças em suas crenças, apenas quando constituem
diferenças em realização, e não em fantasia ou convicção, o que é,
acredito, uma questão de mensuração pessoal do sucesso ou fracasso
em face de algum padrão que estabeleça o que deveria ter sido, e o
apenas o que poderia ter sido. A comparação importante e pertinente
aqui me parece que é essa. Quanto mais as pessoas possam
razoavelmente se lamentar de não ter feito alguma coisa de suas vidas,
menos sucesso terão tido em suas vidas consideradas no todo
40
.
DWORKIN, portanto, sustenta que a igualdade não comporta, para fins de
redistribuição de bens na sociedade, argumentos puramente subjetivos acerca do
sucesso/insucesso total do indivíduo. Portanto, a idéia que percorre a crítica de
DWORKIN para as teorias da igualdade de bem-estar é a de que nós não
37
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 32.
38
DWORKIN coloca diversas hipóteses envolvendo esses personagens, e conclui que a subjetividade que
envolve as diferentes avaliações do sucesso/insucesso da vida de pessoas com recursos semelhantes não pode
servir de argumento para que a transferência de recursos de uma para outra. Cf. Idem. Ibidem. p. 36.
39
Idem. Ibidem. p. 38.
40
Differences in people’s judgments about how well their lives are going overall are differences in their lives,
rather than simply differences in their beliefs, only when they are differences not in fantasy or conviction but in
fulfillment, which is, I take it, a matter of measuring personal success or failure against some standard of what
should have been, not merely of what conceivably might have been. The important and presently pertinent,
comparison seems to me this. The more people can reasonably regret not having done something with their
lives, the less overall success their lives have had (grifei)”. Idem. Ibidem. p. 38.
31
podemos igualar as pessoas apenas segundo os seus próprios critérios sobre o
que é o sucesso geral de uma vida
41
”. Mas como, então, se pode avaliar
objetivamente a vida de um indivíduo?
Com essa finalidade, DWORKIN introduz a noção de lamentação
razoável (reasonable regret), sustentando que uma pessoa somente pode
fundamentar o insucesso de sua vida como um todo se não possuir o que
razoavelmente ela teria direito a ter em uma sociedade comprometida com o
princípio igualitário. Com isso, DWORKIN afasta, por exemplo, a hipótese de
um indivíduo sustentar que sua vida é um insucesso (e que por isso merece uma
compensação de recursos) porque ele não conseguiu ser o melhor jogador de
futebol do mundo, porque ninguém pode, razoavelmente, pretender tanto. A
pessoa pode até ter a ambição de ser o melhor jogador, mas não pode dizer que é
um fracasso somente por não ter conseguido esse objetivo
42
. Portanto,
DWORKIN sustenta que, para que a igualdade de êxito absoluto tenha algum
atrativo enquanto ideal político, deve ser compreendida a partir do conceito de
lamentação razoável. Todavia, o que pode ser considerada uma lamentação
razoável?
O conceito de lamentação razoável tem a função de inserir um critério
objetivo para a avaliação da igualdade de êxito. No entanto, assevera
DWORKIN que dizer que uma pessoa somente pode se lamentar daquilo que ela
razoavelmente poderia ter durante sua vida não está vinculado com o seu bem-
estar, mas com a distribuição de recursos na sociedade. Nesse sentido, conclui
que “a métrica da lamentação razoável para determinar o sucesso geral faz
suposições acerca de qual distribuição é justa, sobre a distribuição que cada
41
we cannot make people equal on the criterion of their own judgment of overall success alone”. GUEST, op.
cit., p. 261.
42
DWORKIN desenvolve esse mesmo raciocínio, mas com exemplos diferentes, em Sovereign..., op. cit, p. 39 e
ss.
32
pessoa tem direito
43
”. Nesse diapasão, a inserção da idéia de lamentação
razoável é vista por DWORKIN como possível somente “com o uso de algum
esquema de distribuição justa dos recursos, no qual o julgamento acerca do
sucesso geral não está incluído
44
”.
Seguindo essa linha de raciocínio, a lamentação razoável conexiona-se
com a justiça distributiva entendida enquanto igualdade nos recursos, e não com
a igualdade de bem-estar, de modo que a igualdade de êxito não pode ser visto
como um ideal atrativo de forma independente, já que, para que ganhe contornos
objetivos, depende de um conceito que está relacionado com a igualdade de
recursos. Portanto, DWORKIN deriva a igualdade de recursos exatamente da
impossibilidade de se construir uma concepção da igualdade de bem-estar
independente, o que leva à conclusão de que a essência da igualdade não está no
bem-estar, mas em uma teoria da distribuição de igualitária de recursos.
1.2.1.1.2. A igualdade de satisfação (equality of enjoyment) e as teorias
objetivas da igualdade de bem-estar
Existem, no entanto, duas tentativas de vincular a igualdade ao bem-estar
sem utilizar a idéia de igualdade de êxito. A primeira delas diz que a produção
de bem-estar na sociedade não está relacionada com o êxito, mas com a
quantidade de prazer e desprazer que o indivíduo sente no decorrer de sua vida.
Assim, retira-se o êxito do centro da teoria da igualdade e coloca-se a satisfação,
que é um estado de consciência e, assim, relaciona-se com as preferências
humanas (assim como a igualdade de êxito). Da mesma forma que na igualdade
de êxito, a igualdade de satisfação também depende das preferências (políticas,
impessoais, pessoais relativas e pessoais absolutas). DWORKIN atenta, todavia,
43
the reasonable-regret metric for determining overall success makes assumptions about what distribution is
fair, about the distribution to which people are entitled” (grifei). DWORKIN. Sovereign, op. cit., p. 41.
44
GUEST, op. cit., p. 262.
33
que com relação às preferências políticas, às preferências impessoais, e às
preferências pessoais relativas, as objeções são as mesmas que foram feitas à
igualdade de êxito
45
. No entanto, o argumento muda de figura quanto às
preferências pessoais absolutas, ou seja, quanto à avaliação que o indivíduo faz
do prazer que sentiu na sua vida como um todo. A argumentação dworkiniana
contra a igualdade de satisfação proveniente das preferências pessoais absolutas
dos indivíduos leva em conta a própria essência desse ideal: DWORKIN
considera que a satisfação não pode servir de critério para a distribuição de
recursos, e nem a vincula, para tanto, à idéia de lamentação razoável, ou seja, o
próprio binômio prazer/desprazer, que é algo inerentemente subjetivo
(sentimental, portanto) não pode ser inserido no conteúdo abstrato do princípio
igualitário
46
.
Por fim, DWORKIN desconstrói as teorias “objetivas” da igualdade de
bem-estar, que pretendem vincular a análise do que as pessoas podem
razoavelmente lamentar em suas vidas a fatores objetivos, ou seja, externos ao
indivíduo, sustentando que o Estado deve atuar de modo a igualar a quantidade
de lamentação que as pessoas têm durante a vida. Há, com relação a essa teoria,
a mesma dificuldade enfrentada pelas teorias “subjetivas anteriormente
analisadas, vez que uma pessoa somente pode se lamentar do que ela teria
direito a ter recebido e, logo, se o Estado deve atuar de modo a igualar os
indivíduos nesse sentido, ele deverá basear-se em uma teoria independente de
distribuição de recursos, pois somente dessa forma pode ser feita uma avaliação
do que cada um tem direito a receber
47
.
Cumpre, derradeiramente, salientar que DWORKIN pretende afastar
qualquer possibilidade de a igualdade de bem-estar seja considerada em uma
teoria geral da igualdade, e, para tanto, rejeita até a possibilidade de uma
45
Vide, acima, os argumentos utilizados por DWORKIN para objetar as preferências políticas e impessoais.
46
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 44-45.
47
Idem. Ibidem. p. 46.
34
eventual junção das teorias anteriormente analisadas no que elas têm de melhor.
Para o filósofo igualitário, a sua crítica às teorias da igualdade de bem-estar tem
um caráter mais amplo, de modo a rejeitar qualquer possibilidade de utilização
do bem-estar para fins de distribuição. Nesse sentido DWORKIN conclui:
Nós não achamos qualquer razão para sustentar a idéia de que a
comunidade deva aceitar o objetivo de fazer as pessoas mais iguais em
qualquer dessas diferentes formas, mesmo quando isso poderia ser
feito sem prejudicar nenhuma outra pessoa. Se isto é assim, então é
implausível que ela deva aceitar o objetivo de fazer as pessoas mais
iguais de alguma forma composta ou compromissada entre essas
diferentes formas. Combinações e permutas são apropriadas quando
um conjunto de objetivos ou princípios concorrentes, cada um dos
quais com uma atração independente, não podem ser satisfeitos de
uma vez só. Elas não são apropriadas quando nenhum objetivo ou
princípio demonstrou que tenha um atrativo independente, nem como
uma teoria da igualdade
48
.
DWORKIN não identifica, portanto, o ideal da igualdade com a
quantidade de bem-estar que o indivíduo sente no decorrer de sua vida,
rejeitando qualquer possibilidade de fundamentação desse princípio em
qualquer das teorias da igualdade de bem-estar, ou mesmo de algum teoria que
resulte da fusão de todas as teorias citadas.
1.3. O EQUALISANDUM DWORKINIANO: A IGUALDADE DE
RECURSOS
DWORKIN, consoante o exposto, nega peremptoriamente as teorias da
igualdade de bem-estar, sustentando que elas não oferecem um argumento
normativo robusto para o ideal igualitário. Mas qual seria a alternativa teórica
48
We found no reason to support the idea that a community should accept the goal of making people more
equal in any of these different ways even when it could do so without damage to any of the others. If that is so
then it is unlikely that it should accept the goal of making people more equal in some way that is composite or
compromise among these different ways. Combinations and trade-offs are appropriate when a set of competing
goals or principles, each of which has independent appeal, cannot all be satisfied at once. They are not
appropriate when no goal or principle has been shown to have independent appeal, at least as a theory of
equality, at all”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 48.
35
para as concepções igualitária do bem-estar? A concepção política rival da
igualdade de bem-estar, e que DWORKIN pretende defender, é a igualdade de
recursos (equality of resources), que, segundo o autor norte-americano, é a
teoria da igualdade que está na base do liberalismo norte-americano
49
.
Para fins introdutórios, cumpre observar o liberalismo dworkiniano é, por
excelência, uma teoria que preza pela tolerância liberal e, portanto, defende que
“o Estado deve ser neutro perante as diferentes concepções de boa vida esposada
pelos indivíduos
50
”. A análise da filosofia política de DWORKIN exige que
tenhamos em mente que ele possui a mesma preocupação normativa que JOHN
RAWLS: construir uma teoria normativa que apresente uma justificativa para a
ação individual, mas que preserve o pluralismo moral na sociedade liberal. Com
efeito, ao afirmar que “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais
51
”,
RAWLS direciona a virtude da justiça que, para os antigos era uma disposição
de caráter, para as instituições sociais, ou melhor, para a estrutura básica da
sociedade. Nesse sentido, a teoria política passa a ter a função de construir
valores políticos que servirão de base para a disposição da estrutura básica da
sociedade, com a finalidade de fazer com que o Estado concretize o ideal
abstrato da igualdade, que para DWORKIN é a virtude do soberano: tratar os
membros da comunidade com igual respeito e consideração (equal concern and
respect).
Nesse contexto, em sua artigo “Liberalism”, atualmente publicado em “A
Matter of Principle”, DWORKIN identifica a existência de duas espécies de
liberalismo: uma delas baseada no ceticismo moral e que não tem um
compromisso igualitário, visto que não oferece qualquer argumento contra o
49
DWORKIN é, essencialmente, um autor polêmico e é, por isso, muito criticado. Uma das principais
características de seu pensamento é, exatamente, a pretensão de identificá-lo com a prática norte-americana.
Dada a inexistência de um consenso na sociedade estadunidense sobre a igualdade, não como se identificar a
igualdade de recursos como amplamente aceita nos Estados Unidos.
50
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. 1.ª ed. o Paulo: Loyola,
2000, p. 198.
51
Justice is the first virtue of social institutions (…)”.RAWLS. Theory…, op. cit., p. 03.
36
utilitarismo ou contra as desigualdades econômicas, e outra comprometida com
uma moralidade igualitária, no sentido de que o governo tem o dever de tratar as
pessoas com igual respeito e consideração
52
. Há, de fato, um traço comum entre
as duas formas de liberalismo citadas, que é a rejeição da imposição de uma
moralidade privada por parte do governo, princípio esse que é a base para
qualquer teoria liberal. Todavia, o liberalismo baseado na igualdade tem uma
dimensão econômica que confere ao mercado a função de fazer com que cada
indivíduo, no decorrer de sua vida, utilize uma parcela igualitária dos recursos
sociais
53
.
Isso não significa, no entanto, que o governo deva perquirir uma
igualdade indiscriminada entre os cidadãos, ou seja, um governo comprometido
com a igualdade não deve fazer com que os indivíduos tenham, em cada
momento de sua vida, parcelas idênticas dos recursos sociais. Pelo contrário, o
fato de pessoas com vidas (e ambições) diferentes ter recursos desiguais é
inerente à igualdade de recursos. Todavia, e aqui para ter uma noção da
essência da teoria igualitária de DWORKIN, as desigualdades toleráveis por
uma sociedade liberal que adota a igualdade de recursos como princípio
fundamental devem ser aquelas resultantes as escolhas individuais, e não das
diferenças circunstanciais naturais (talentos, deficiências, classe social, raça,
etc). Nesse contexto, DWORKIN sustenta que o montante de recursos de cada
pessoa na sociedade deve refletir o custo da vida que o indivíduo escolheu levar
para a sociedade, e esse cálculo deve ser feito por intermédio do mercado
54
.
DWORKIN reconhece que sua teoria igualitária é extremamente abstrata
e que a identificação prática das desigualdades provenientes das escolhas
individuais e daquelas resultantes das circunstancias é difícil
55
. Todavia, a
52
DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 205.
53
Idem. Ibidem. p. 206.
54
Idem. Ibidem. p. 207.
55
Idem. Ibidem. p. 208.
37
elaboração de uma teoria normativa da igualdade de recursos, bem como a
construção de um mercado igualitário hipotético pode servir de guia
contrafactual para a conformação das instituições reais. É nesse contexto que o
filósofo norte-americano desenvolve a sua teoria igualitária.
1.3.1.
I
GUALDADE NA PROPRIEDADE PRIVADA DE RECURSOS
O primeiro marco teórico que DWORKIN traça para desenvolver o seu
conceito de igualdade de recursos é limitá-la, inicialmente, à propriedade
privada de recursos, ignorando, por ora, a igualdade de poder político ou a
igualdade de propriedade de recursos públicos
56
. A idéia central da qual
DWORKIN parte para elaborar o conteúdo substantivo da igualdade de recursos
é do conceito de mercado.
O mercado econômico, sem dúvida, é um conceito que exerce um papel
de destaque na teoria dworkiniana. Aliás, as instituições de mercado guardam
uma relação de estreita afinidade com o “liberalismo de princípios”, em especial
nas teorias de JOHN RAWLS e DWORKIN, muito embora estes autores não
tenham definido expressamente um arranjo institucional econômico da
sociedade democrática
57
. No entanto, tais instituições não são valoradas pelos
filósofos igualitários em virtude de sua eficiência econômica, mas “por razões
de justiça”, ou seja, por serem “mais consistentes com as liberdades iguais e
com a igualdade eqüitativa de oportunidades
58
”. Nesse sentido, pode-se
observar que, na teoria de RAWLS, os dois princípios de justiça possuem
prioridade léxica sobre o princípio da eficiência, bem como que o igualitarismo
56
DWORKIN entende que a análise do conteúdo do ideal igualitário a partir da propriedade privada de recursos
não compromete a compreensão do mesmo, de modo que essa “simplificaçãoajuda no estudo da igualdade de
recursos.
57
VITA, Álvaro de. Justiça Liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1993, p. 75.
58
Idem. Ibidem. p.77. Na realidade, a idéia em destaque não é necessariamente o fato de o mercado ser
compatível com as liberdades iguais ou com a igualdade eqüitativa de oportunidades, mas a compatibilidade e a
importância do mercado para a construção de uma teoria da igualdade, seja ela qual for.
38
dworkiniano valoriza, antes da eficiência distributiva, o fato de o mercado ser
um mecanismo de distribuição eqüitativa dos recursos na sociedade
59
. Dessa
forma:
Tanto para a teoria de Rawls como para a de Dworkin, portanto, o
mercado é primariamente valorizado como uma condição necessária
(...) à liberdade individual e à igualdade e somente secundariamente
como meio para promover a prosperidade, a utilidade e a eficiência. A
prosperidade é colocada em seu devido lugar, isto é, no de um
objetivo instrumental àquele que o liberalismo como o valor
humano fundamental, a autonomia individual: a capacidade de os
indivíduos escolherem e realizarem em suas vidas os objetivos e fins
que julguem valiosos
60
.
DWORKIN demonstra que o papel do mercado, na teoria política do
século XVIII, que atualmente é denominada de liberalismo clássico, era visto
como um mecanismo a ser utilizado pela sociedade para atingir finalidades
sociais, estando sempre relacionado com as idéias de prosperidade, eficiência e
utilidade. Nesse contexto político, a defesa do mercado se baseava em
argumentos de política (arguments of policy), exatamente por pelos ganhos que
proporciona para a sociedade. No entanto, ao mesmo tempo, o mercado era
visto, sob o ponto de vista valorativo, como um mecanismo de defesa da
liberdade individual, ou seja, como uma garantia ou instrumento de
desenvolvimento do direito de liberdade do indivíduo na sociedade
61
. Assim,
enquanto que do ponto de vista político o mercado estava relacionado com a
eficiência econômica, sob o prisma princípiológico (ou seja, que diz respeito aos
direitos individuais), o mercado era tido como um protetor da liberdade
individual.
É exatamente pelo modo como DWORKIN desenvolve a idéia de
mercado que a sua doutrina política começa a se desenvolver como liberalismo
59
VITA. Justiça..., op. cit., p. 77 e p. 79.
60
Idem. Ibidem. p. 80.
61
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 66.
39
igualitário. Com efeito, ele atenta para o fato de os filósofos liberais clássicos
defendem uma suposta oposição entre a igualdade, e um lado, e a liberdade e
eficiência, de outro, propondo sempre mecanismos de sopesamentos e
concessões entre esses valores
62
. Trata-se, portanto, de uma visão que opõe a
liberdade e a igualdade, compreendendo esta como um valor antagônico àquela.
DWORKIN faz uma interpretação diferente da relação entre o mercado e os
valores expressos pela igualdade e a liberdade, propondo que a teoria geral da
igualdade de recursos seja construída a partir do mercado econômico, que
passaria a figurar como figura central na igualdade de recursos. Assim as
instituições de mercado , enquanto instrumentos reguladores de preços dos bens
e serviços que serão comercializados na sociedade, são de fundamental
importância para o desenvolvimento da teoria da igualdade
63
.
Evidentemente, DWORKIN não pretende defender que o mercado exerce,
na realidade fática, um papel igualitário. Pelo contrário, o filósofo norte-
americano reconhece que o mercado, na forma como se desenvolveu
historicamente nas sociedades capitalistas, em especial nos Estados Unidos,
gerou enormes desigualdades. Aliás, DWORKIN afirma diversas vezes que a
sociedade norte-americana é extremamente desigual
64
. No entanto, o filósofo
igualitário pretende sustentar que, normativamente, o mercado é extremamente
importante, uma vez que “somente o mercado pode medir o que uma pessoa
adquiriu para si mediante a identificação do custo de oportunidade que isso
causa aos demais
65
”. O grande entrave para que o mercado atue de forma a
produzir justiça, para DWORKIN, diz respeito à distribuição inicial de recursos:
somente com a justeza na distribuição recursal será possível que o mercado,
62
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 66.
63
Idem. Ibidem. p. 66.
64
Vide, por exemplo o Capítulo 08 de Sovereign Virtue, op. cit., pp. 307-319.
65
“On my view a market in goods and service is indispensable to justice because only a market can measure
what one person has taken for himself by identifying the opportunity cost to others of his having it(…)
BURLEY, Justine [ed]. Dworkin and his critics: with replies by Dworkin. Malden: Blackwell Publishing,
2004, p. 342. O trecho citado refere-se a uma resposta de Dworkin a uma crítica feita por Cohen.
40
atuando de forma livre, produza resultados justos. Certamente, na prática, nunca
será possível uma sociedade atingir essa situação ótima, na qual há uma
distribuição igualitária de recursos, mas a construção normativa de tal situação é
extremamente relevante, para que possamos avaliar a instituições reais e
modificá-las para a aproximação de uma situação justa.
Nesse contexto, cumpre salientar que DWORKIN não possui uma visão
idealizada do mercado, mas sim pretende construir uma teoria igualitária
abstrata e complexa, a partir de um mecanismo hipotético de mercado
igualitário, visando à reforma das instituições reais. O enfoque de DWORKIN,
assim, embora normativo, tem uma finalidade prática, característica que permeia
todo o pensamento dworkiniano.
1.3.2.
A
CONSTRUÇÃO DO MERCADO IGUALITÁRIO A PARTIR DO EXEMPLO
CONTRACTUAL
A idéia de um mercado igualitário, que exerce um papel central na
igualdade de recursos, é desenvolvida por DWORKIN a partir de uma situação
fictícia, contrafactual, na qual náufragos (imigrantes) se encontram em uma ilha
deserta abundante em recursos. A convivência dos indivíduos (imigrantes) nessa
primitiva sociedade que eles agora formam obedece a duas condições essenciais:
i) eles reconhecem que ninguém tem, a priori, direito a qualquer dos recursos
encontrados na ilha deserta; e ii) ampla aceitação do princípio segundo ao
qual esses recursos deverão ser distribuídos igualitariamente entre eles. Há,
portanto, uma situação em que uma nova sociedade irá começar a partir dessa
distribuição de recursos, na qual todos os indivíduos concorrerão e influenciarão
de forma igualitária
66
. O problema, agora, é o seguinte: como realizar uma
66
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., pp. 66-67.
41
distribuição que não seja feita de forma arbitrária e na qual todos os indivíduos
fiquem satisfeitos com o montante de recursos que receber?
DWORKIN propõe que a satisfação dos imigrantes com o montante de
recursos recebidos seja mensurada pelo teste da inveja (envy test), que determina
que “nenhuma divisão de recursos é uma divisão igualitária se, uma vez
completa, qualquer imigrante preferir o montante de recursos de outro ao seu
próprio montante
67
”. Assim, tal divisão deve ser feita até que, ao final, cada
imigrante esteja satisfeito com a quantidade e qualidade dos recursos que
recebeu, de tal sorte que, se for proposta uma troca entre os montantes por eles
recebidos, nenhum dos imigrantes aceite. Existem, no entanto, diversas formas
de se alcançar essa distribuição igualitária (como por exemplo o sorteio, ou a
tentativa), mas a maioria desses mecanismos, embora possam resultar em
montantes igualitários de recursos, podem ser manipulados de modo a gerar
injustiças. Imagine, por exemplo, se os imigrantes chegassem a um acordo no
sentido de a distribuição dos recursos deverá ser feita por sorteios, até que se
alcance distribuição igualitária dos mesmos. Todavia, antes de se realizar o
sorteio, os imigrantes descobrem uma ilha vizinha, abundante em um
determinado recurso (e.g., melancia), e lhes propõe a troca de todos os bens da
ilha por melancias, o que é aceito pela maioria. Imagine, agora, que um dos
imigrantes odeie melancia. Chegaremos, com isso, na situação em que o sorteio
resultará em uma distribuição igualitária, mas não justa, vez que o indivíduo que
odeia melancias nunca ficará satisfeito
68
. E qual poderá ser o seu argumento para
se opor à distribuição feita na ilha? Um argumento consistente poderia ser no
sentido de que os recursos inicialmente encontrados na ilha não fossem trocados
com a outra ilha com a utilização de critérios arbitrários. Com isso, DWORKIN
pretende demonstrar a necessidade de se formular um mecanismo distributivo
67
“no division of resources is an equal division if, once the division is complete, any immigrant would prefer
someone else’s bundle of resources to his own bundle” Idem. Ibidem. p. 67.
68
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 67-68. DWORKIN utiliza um exemplo muito semelhante.
42
que permitisse a partilha dos recursos de forma igualitária e não-arbitrária,
reconhecendo, assim, que o teste da inveja não é satisfeito com qualquer espécie
de distribuição, exigindo algum mecanismo mais complexo para a partilha dos
recursos sociais.
Visando, portanto, encontrar um critério não-arbitrário para a divisão
equitativa dos recursos na sociedade primitiva estabelecida na ilha, DWORKIN
propõe que a mesma seja feita através de um leilão, no qual os habitantes teriam
conchas que serviriam como moeda de troca pelos bens a serem leiloados.
Segundo a descrição feita por DWORKIN, o leilão deveria ser presidido por um
leiloeiro (escolhido entre os habitantes da ilha) e os bens da ilha formariam lotes
com preços fixos. A idéia é que os participantes do leilão façam propostas pelos
lotes de recursos, até que haja apenas um comprador para cada lote, de modo a
satisfazer o teste da inveja. Observa-se, na proposta dworkiniana, que os
participantes do leilão exercem uma influência equitativa sobre os destinos dos
bens a serem leiloados, que possuem o mesmo poder econômico (ou seja,
número de conchas), e, ainda, podem se opor a qualquer distribuição que
eventualmente os desagrade, visto que o leilão somente se encerra quando
houver um comprador para cada lote de bens
69
. Há, assim, um mercado
igualitário, no qual os indivíduos exercem influência na forma como os recursos
serão distribuídos de forma equânime e, ademais, não desejam os bens
distribuídos aos outros indivíduos, que aceitaram a forma como a distribuição
foi feita.
Cumpre salientar que, ao contrário do que ocorre com a igualdade de
bem-estar, na qual a métrica da igualdade baseia-se na quantidade de bem-estar
que cada indivíduo teve no decorrer de sua vida, na igualdade de recursos, a
informação relativa à quantidade de recursos existente na sociedade é
fundamental, visto tratar-se de um ideal relacionado com a justiça distributiva.
69
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 68.
43
Pode-se perceber, portanto, uma nítida diferença entre o ideal igualitário
preconizado por DWORKIN e a igualdade de bem-estar. Com efeito, nesta, o
indivíduo estipula a vida que quer ter independentemente de saber o custo que o
seu estilo de vida acarretará para a sociedade, sendo essa avaliação feita apenas
no campo político, e não da escolha individual. Ao contrário, na igualdade de
recursos, o indivíduo escolhe o seu estilo de vida à luz dos recursos sociais
existentes, conforme explica DWORKIN:
Sob a igualdade de recursos, todavia, as pessoas decidem os tipos de
vidas que querem seguir com base em um conjunto de informações
acerca do real custo que suas escolhas impõem aos demais e, portanto,
no montante total de recursos que lhas é justo utilizar. A informação
deixada a um nível político independente sob a igualdade de bem-estar
é, ademais, trazida para o nível inicial da escolha individual sob a
igualdade de recursos
70
.
É, portanto, no plano da escolha individual que todo e qualquer tipo de
informação acerca dos recursos existentes na sociedade exerce influência, e é
com base nessa informação que o ideal da igualdade de recursos se concretizará,
mediante o leilão igualitário. Observa-se, assim, a conexão existente entre a
igualdade de recursos, que determina que todos os indivíduos devem ter os
mesmos recursos no decorrer de sua vida, e o mercado, que é um mecanismo
institucional de avaliação e distribuição dos recursos na sociedade
71
.
1.3.2.1. O leilão igualitário fictício como modelo avaliativo das instituições
reais
O exemplo do leilão igualitário realizado entre os imigrantes é uma
situação fictícia, construída por DWORKIN como modelo de sociedade no qual
70
“Under equality of resources, however, people decide what sorts of lives to pursue against a background of
information about the actual cost their choices impose on other people and hence on the total stock of resources
that may fairly be used by them. The information left to an independent political level under equality of welfare
is therefore brought to the initial level of individual choice under equality of resources. DWORKIN.
Sovereign..., op. cit., p. 69.
71
Idem. Ibidem. p. 70.
44
a igualdade de recursos é atingida de forma plena. Todavia, ao realizar essa
ficção, DWORKIN tem em mente as instituições reais, atentando para o fato de
que a igualdade de recursos não deve ser apenas um ideal, ou uma utopia, mas
um modelo de avaliação da sociedade existente
72
.
Sem dúvida, a ficção do leilão igualitário exerce um importante papel
teórico na teoria dworkiniana, vez que fornece um elemento para a mensuração
da coerência e da completude do princípio da igualdade de recursos
73
, bem como
da forma pela qual a distribuição dos recursos sociais é determinada por esse
ideal, atentando sempre para o fato de não se tratar de um ideal estanque, que
comportaria apenas um modelo de distribuição, mas antes de um ideal flexível,
que abarca uma variedade de modelos distributivos, que também se coadunam
com a igualdade nos moldes propostos por DWORKIN. No entanto, uma
preocupação prática na construção desse exemplo fictício por DWORKIN, a
saber, fornecer um padrão par a avaliação das instituições e distribuições que
ocorrem no mundo real (real world)
74
.
Assim, em todo aspecto de sua filosofia, seja política ou jurídica,
DWORKIN demonstra uma preocupação com o aspecto prático, ou seja, com a
aplicabilidade de sua teoria no mundo concreto, destacando que o conteúdo
material do princípio da igualdade pode servir como padrão de julgamento das
instituições, e, ademais, como critério de funcionamento ou mesmo de reforma
das instituições, de modo a aproximá-las ao modelo do leilão igualitário
75
.
72
Nesse sentido, ÄLVARO DE VITA, ao comentar a teoria rawlsiana, observa que a preocupação liberal-
igualitária não deve ser com a efetiva concretização de seus ideais, mas sim “em saber se é possível conceber
instituições substancialmente mais igualitárias do que as que conhecemos hoje e que, ainda assim, não façam
exigências motivacionais que não é razoável esperar que os indivíduos possam honrar”. VITA, Álvaro. A justiça
igualitária e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 24.
73
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 71.
74
Idem. Ibidem. p. 72.
75
Idem. Ibidem. p. 72-73.
45
1.3.2.2. O leilão sensível à ambição e insensível às circunstâncias: sorte,
deficiências e seguro hipotético
Os princípios básicos que fundamentam a construção da teoria da
igualdade de recursos dworkiniana, consoante DWORKIN expoe na introdução
de Sovereign Virtue”, são os princípios do valor intrínseco da pessoa humana e
da responsabilidade individual
76
, que, sinteticamente, determinam que o sucesso
de cada vida humana é de igual importância para o desenvolvimento da
sociedade e, ainda, que cada indivíduo “tem uma decisiva e especial
responsabilidade por esse sucesso
77
.” A doutrina igualitária dworkiniana é
construída em torno da idéia de responsabilidade, no sentido de que os
indivíduos devem realizar as escolhas a respeito de como deve ser as suas vidas
e, assim, arcar com as conseqüências dessas escolhas, ou seja, para usar as
palavras de DWORKIN, “pagar o real preço pela vida que eles levam
78
. Ora,
isso significa que, uma vez distribuídos os recursos no leilão hipotético
igualitário, e satisfeito o teste da inveja, a posterior manutenção da situação
igualitária na sociedade dependerá da ambição de cada indivíduo, ou seja, do
custo da vida que cada um optou por levar.
O leilão hipotético criado por DWORKIN faz com que cada indivíduo
seja tratado com igual respeito e consideração na sociedade, visto que tiveram o
mesmo poder de influência econômica nos lances e, ainda, não desejam o
montante de recursos dos demais, eis que o resultado satisfaz o teste da inveja.
Todavia, esse leilão deve ser “sensível à ambição”, o que significa sensível às
escolha individuais”, de modo que as posteriores diferenças entre os indivíduos
76
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 05.
77
has a special and final responsability for that success”. Idem. Ibidem. p. 05.
78
Idem. Ibidem. p. 76.
46
“simplesmente refletirão suas diferentes ambições, suas diferentes crenças a
respeito do que da valor à vida”
79
.
No entanto, embora seja da essência da teoria dworkiniana a sensibilidade
à ambição individual, há a necessidade que a igualdade de recursos independa
das circunstâncias pessoais, ou seja, “parte-se da posição fundamental de que,
ausentes as diferenças imputáveis às escolhas das pessoas, a distribuição de
recursos em uma sociedade deve em princípio ser igual”
80
, e, em conseqüência
disto, qualquer desigualdade proveniente das circunstâncias individuais deve ser
compensada. Nesse contexto, a teoria da igualdade de recursos dworkiniana é
permeada pelo fator sorte, no sentido de que muitas das escolhas individuais
feitas no decorrer de uma vida são bem (ou mal) sucedidas em virtude de
eventos que ocorrem aleatoriamente, e.g., catástrofes, doenças, deficiência, etc.
Assim, DWORKIN utiliza do termo gamble (aposta) para se referir às escolhas
individuais, justamente para destacar a imprevisibilidade contida nas mesmas.
de se diferenciar, todavia, duas espécies de sorte. Com efeito, existem
eventos ou fatos naturais que independem da vontade individual, sendo, assim,
não-deliberados, o que os dota de total imprevisão. Fatos há, no entanto, que são
deliberados ou calculados, de modo que os riscos decorrentes dos mesmos são
calculados (ou ao menos calculáveis). DWORKIN faz, portanto, uma
diferenciação entre os eventos totalmente imprevisíveis (sorte bruta) e os fatos
deliberados e previsíveis (sorte opcional)
81
. Mas qual a razão de tal
diversificação? Certamente a sorte opcional, conforme o próprio nome sugere,
está relacionada com a ambição individual de uma forma mais íntima do que a
sorte bruta, que, por sua vez, liga-se ao fator circunstancial, e isso trará
conseqüências no que concerne à necessidade de compensação por eventos que
79
KIMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 99.
80
FERRAZ. Justiça distributiva..., op. cit., p. 248.
81
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 73.
47
decorrem de uma, ou outra espécie de sorte. Quando um indivíduo opta por um
estilo de vida ele estará, conseqüentemente, sujeito aos riscos inerentes à escolha
feita, e.g, se duas pessoas tem montantes iguais de recursos, mas uma resolve
fazer um investimento de risco, e outra aplicar os seus recursos em algo mais
conservador, será tanto verdade que o primeiro indivíduo fará jus aos ganhos de
seu investimento quanto que, se perder tudo, deverá arcar com o prejuízo, visto
que tanto este evento (a perda), quanto aquele (o ganho), decorrem de sorte por
opção, ou seja, da ambição, da escolha individual.
Não dúvida que, após a feitura do leilão igualitário, indivíduos que
optam por formas de vida diametralmente opostas acabarão com parcelas de
recursos diferentes, mas, conforme salienta DWORKIN, a igualdade de
recursos, informada pelo princípio básico de que as pessoas devem pagar o
preço justo pela vida que escolheram levar, “não condena, mas antes assegura
essas diferenças
82
”. Aliás, DWORKIN sustenta que não somente há fundamento
igualitário para as diferenças provenientes das escolhas individuais, mas também
que uma redistribuição de recursos, nesse caso, ofende a igualdade
83
.
A mesma conclusão não decorre, todavia, quando o risco ou a má-sorte
decorre de um fato circunstancial, ou seja, de um evento relacionado, antes, com
fatos da natureza do que com a escolha individual. Reside aqui o exemplo dos
indivíduos que possuem parcelas de recursos idênticas, mas um deles fica cego,
e, em virtude disso, possui menos recursos. Não há, certamente, fundamentos
igualitários para sustentar a desigualdade nessas circunstâncias.
Nesse diapasão, pode-se afirmar que a maior contribuição de DWORKIN
para a teoria da igualdade tenha sido colocar em relevo a necessidade de
compensação dos indivíduos que ficam com deficit recursal em virtude de um
82
warrants rather than condemns these diferences.” DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 76.
83
Idem. Ibidem. p. 77-78.
48
evento de sorte bruta, como por exemplo os deficientes físicos e os doentes,
consoante conclui VITA:
Dworkin argumentou que a forma de igualdade com a qual
deveríamos nos preocupar em uma sociedade liberal justa deveria ser
“sensível à dotação”, mas não “sensível à ambição”. Uma sociedade
assim deveria ter por objetivo reduzir tanto quanto possível a
desigualdade distributiva entre seus cidadãos que resulta de dotação
de talentos naturais e recursos externos, mas aceitar como legítima a
desigualdade que resulta de ambição e esforço individuais
84
.
Nesse contexto, o papel da responsabilidade individual é colocado em
destaque, uma vez que as circunstâncias moralmente arbitrárias (às quais o
indivíduo não tem qualquer controle) devem ser neutralizadas, e a liberdade para
o indivíduo decidir a vida que quer levar é colocada na essência do liberalismo
igualitário
85
.
1.3.2.3. O leilão insensível às circunstâncias: o problema das deficiências
As deficiências físicas, sob a ótica da igualdade de recursos, podem ser
consideradas como fatores circunstanciais que ensejam compensação. Consoante
observa COHEN, as deficiências, por acarretarem diminuição de recursos, são
valoradas pela igualdade de recurso independentemente de suas conseqüências
práticas, ou seja, não importa, para fins de compensação, se o indivíduo que
sofra de uma deficiência tem uma diminuição de seu bem-estar, mas apenas que
ele está em uma posição desprivilegiada em termos recursais
86
. Assim, cumpre
observar que as habilidades físicas e mentais (ou a falta delas) devem ser
levadas em consideração para fins de cálculo da quantidade de recursos que um
indivíduo possui. Com efeito, “uma concepção atraente de igualdade de recursos
84
VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 43.
85
A relação entre liberdade e igualdade será discutida no Capítulo 02.
86
COHEN, G. A. On the Currency of Egalitarian Justice. Ethics, Vol. 99, n.º 4, 1989, pp. 906-944.
Disponível em: http://www.mit.edu/~shaslang/mprg/GACohenCEJ.pdf. Acesso em 12 de maio de 2009, pp.917-
918.
49
deve ter por objetivo central igualar os complexos de recursos em seu conjunto –
o que abrange recursos externos e internos entre as pessoas
87
”. Mas o que
seriam recursos internos e recursos externos? A idéia de recursos internos e
externos é intuitiva, podendo-se definir aqueles como recursos que dizem
respeitos à capacidade do indivíduo (física e/ou mental), e estes como bens
materiais. Mas essa definição intuitiva é ainda insuficiente, pois não abrange
uma diferenciação feita por DWORKIN que é de fundamental importância para
sua teoria.
De fato, a originalidade da igualdade de recursos consiste em combinar a
preocupação igualitária do socialismo, com a defesa do mercado feita pelos
liberais, uma vez que os recursos são uma importante fonte de liberdade. Nesse
diapasão, “a forte defesa da igualdade feita por Dworkin é, ao mesmo tempo,
uma forte defesa da liberdade
88
”. Sem embargo, a idéia central da igualdade de
recursos é a de que os indivíduos devem possuir, no decorrer de toda a sua vida,
uma parcela igualitária de recursos à sua disposição, de modo que, sendo os
recursos fonte de liberdade, a defesa da igualdade de recursos significa sustentar
que os indivíduos devem ter a mesma liberdade, considerada a sua vida como
um todo. Ser livre, nesse contexto, significa ter liberdade para desenvolver e
moldar a sua vida de acordo com as sua convicções e ambições, e os recursos
desempenham um papel fundamental para tanto.
Dessa maneira, uma vez entendidos os recursos como fonte de liberdade,
e esta como o desenvolvimento da vida de acordo com as escolhas individuais, é
possível diferenciar entre recursos que fazem parte da capacidade para a
formação das convicções que influenciarão na ambição e, conseqüentemente,
nas escolhas feitas pelos indivíduos, e os recursos que efetivamente
possibilitarão que o indivíduo, de fato, viva a vida da forma como ele a
87
VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 49.
88
Dworkin’s strong defence of equality (...) is at the same time a strong defence of liberty” GUEST, op. cit, p.
255.
50
determinou
89
. No primeiro rol de recursos estão as capacidades física e mental,
que são considerados por DWORKIN como recursos de natureza especial, visto
que “não podem ser transferidos de uma pessoa pra outra
90
”, sendo que os
recursos materiais incluídos no segundo rol, que tem por função permitir que
o indivíduo realize as escolhas feitas a partir do uso de suas convicções e
balizada pela sua potencialidade física .
Assim, a partir da constatação que as pessoas portadoras de deficiências
possuem um montante de recursos deficitário com relação às pessoas que não as
têm, seja porque não conseguem decidir com plena liberdade os rumos de sua
vida em virtude de uma deficiência mental, ou então por verem-se limitadas por
deficiências físicas, a solução que se impõe é a compensação dos portadores de
deficiência, por intermédio de bens materiais. Mas, considerando que as
deficiências e os recursos materiais são de espécies diferentes, qual deve ser o
critério para tal compensação? A solução está em um cálculo que leve em
consideração a forma como propriedade de bens materiais é afetada pela
existência de uma deficiência física ou mental
91
. Todavia, ante a dificuldade
desse cálculo, a solução de DWORKIN para a compensação dos recursos
internos é a elaboração de uma teoria baseada em seguros hipotéticos.
DWORKIN propõe, então, que antes da realização do leilão igualitário
hipotético, fosse oferecida a possibilidade de os indivíduos contratarem um
seguro hipotético contra a possibilidade de adquirir uma deficiência. Embora
reconheça que dificilmente uma compensação financeira possa eliminar
totalmente os deficits recursais gerados pelas deficiências, DWORKIN sugere
que o seguro contra as mesmas deveria ser compulsório e levar em consideração
89
GUEST, op. cit.., p. 256.
90
Nesse sentido, Cf. VITA. O Liberalismo..., op. cit., p. 49.
91
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 80.
51
o que um indivíduo médio contrataria se não soubesse a probabilidade de ter
uma deficiência, e se essas fossem distribuídas de forma aleatória
92
.
O esquema do seguro hipotético, segundo DWORKIN, mostra o ideal da
igualdade sob o seu melhor prisma, eis que permite uma solução teórica para o
problema das deficiências. Conforme foi exposto, a concepção a que
DWORKIN contrapõe a igualdade de recursos é a igualdade de bem-estar, que
falha, dentre outras coisas, em virtude da subjetividade inerente à definição de
bem-estar. Tal problema fica claro quando as doutrinas do bem-estar pretendem
solucionar a questão das deficiências físicas. Com efeito, embora a idéia de que
uma pessoa que sofre com uma deficiência possua um bem-estar inferior do que
as pessoas “normais” seja intuitiva e leve à conclusão (correta, diga-se) de que
as deficiências precisam ser compensadas, as doutrinas de bem-estar não
conseguem estabelecer um limite a essa compensação, o que pode gerar
anomalias, conforme DWORKIN observa no seguinte exemplo:
Suponha que o bem-estar (em qualquer interpretação) de uma pessoa
inteiramente paralisada mas consciente é vastamente menor que o
bem-estar de qualquer outra pessoa na comunidade, e que colocando
mais e mais dinheiro à sua disposição constantemente aumente o seu
bem-estar, mas não apenas por pequenas quantias, e que se ele tiver à
sua disposição todos os recursos além daqueles necessários apenas
para manter os demais vivos, ele ainda assim terá muito menos bem-
estar que eles. A igualdade de bem-estar recomendaria essa
transferência radical até que fosse alcança a última situação. Mas isto
não está claro para mim (ou, eu acho, para os outros) que a igualdade,
considerada isoladamente, e sem considerar os tipos de consideração
que às vezes podem ser pensadas para prevalecer sobre ela, realmente
requeira ou até recomende essa transferência radical sob essas
circunstâncias
93
.
92
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 80-81.
93
Suppose that the welfare (on any interpretation) of an entirely paralyzed but conscious person is vastly less
than the welfare of anyone else in the community, that putting more and more money at his disposal steadily
increase his welfare but not only by very small amounts, and that if he had at his disposal all the resources
beyond those needed simply to keep the others alive he would still have vastly less welfare than they. Equality of
welfare would recommend this radical transfer, that is, until the latter situation was reached. But it is not plain
to me (or, I think, to others) that equality, considered just on its own, and without regard to the kinds of
consideration that sometimes might be thought to override it, really does require or even recommend that
radical transfer under these circumstances.”Idem. Ibidem. p. 61.
52
Não há, portanto, nas doutrinas da igualdade de bem-estar, um limite para
compensação das deficiências, ou mesmo um parâmetro objetivo para tanto, o
que não se coaduna, segundo DWORKIN, com o ideal igualitário, que o
raciocínio a partir das doutrinas adeptas da igualdade de bem-estar pode atribuir
uma parcela de recursos a um indivíduo que ultrapasse o que ele efetivamente
teria direito em uma situação distributiva justa
94
. A seu turno, a igualdade de
recursos oferece um fundamento mais sólido para a compensação das
deficiências, qual seja, a diminuição da liberdade de um indivíduo deficiente em
virtude do deficit recursal que ele sofre em razão de uma incapacidade, seja ela
mental ou física. Outrossim, por argumentar em termos econômicos, bem como
por colocar o mercado em uma posição central na teoria da igualdade, a teoria
dworkiniana permite um limite às transferências recursais para os deficientes,
limite este que deve refletir, conforme o dito, o quanto a deficiência de fato afeta
a posse de recursos materiais, o que deverá ser estipulado pelo próprio mercado
igualitário.
O argumento dworkiniano para a compensação das deficiências é, assim,
que o mercado, no caso o leilão, deve ser insensível às circunstância individuais,
ou seja, conforme explica ROBERTO GARGARELLA, o liberalismo
igualitário deve distinguir entre a ‘personalidade’ e as ‘circunstâncias’ que
cercam cada um
95
”. Isso significa que os indivíduos devem ser responsáveis
pelos “resultados de seus gostos e ambições
96
”, e é com base nessa distinção que
DWORKIN sustenta a necessidade de compensação das deficiências (físicas ou
mental), mas, ao mesmo tempo, defende que uma pessoa com gostos
dispendiosos não devem receber uma parcela maior de recursos em virtude
94
Cf. FERRAZ, op. cit., p. 247.
95
el liberalismo igualitario debe distinguir entre la ‘personalidad’ y las ‘circunstancias’ que rodean a cada
uno.” GARGARELLA, op. cit., p. 70.
96
resultados de sus gustos y ambiciones”. Idem. Ibidem. p. 71.
53
disso, visto que estes relacionam-se com as preferências individuais, sendo um
aspecto da personalidade, ao passo que aquelas com as circunstâncias pessoais
97
.
1.3.2.4. O leilão insensível à dotação II: a questão da sorte genética
Seguindo a mesma linha de raciocínio acima, a doutrina dworkiniana, que
pretende ser sensível à ambição, mas não à dotação, trata a questão dos talentos
(sorte genética) da mesma forma como fez com as deficiências
98
. Assim, se um
indivíduo que possui talentos acima do normal tem uma circunstância a seu
favor e, portanto, está numa posição privilegiada com relação aos recursos, ou
seja, argumentando-se em termos de liberdade, uma pessoa que tem mais
talentos possui mais recursos e, assim, tem maior liberdade. Mas será justo que
um indivíduo goze de tal privilégio? As liberdades conseguidas com os recursos
provenientes exclusivamente dos talentos que uma pessoa possui (ou seja,
exclusivamente com a dotação, e não com a ambição) acarretam uma
distribuição não eqüitativa das liberdades e, portanto, ofende a igualdade de
recursos
99
.
Não dúvidas que a igualdade de recursos determinará que o talento,
assim como a deficiência, deverá ser neutralizado, por tratar-se de circunstância
sobre a qual o indivíduo não tem controle, ou seja, por ser um fator de sorte
bruta, e não de sorte opcional. DWORKIN propõe, então, a suposição de uma
situação abstrata na qual seria oferecido a indivíduos, sob um véu de
ignorância
100
, ou seja, sem que eles conheçam os talentos que possuem, a
possibilidade de fazer um seguro contra a falta de talentos. Nessas condições,
qual seria o nível de cobertura que indivíduos racionais contratariam?
97
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 81-82.
98
Idem. Ibidem. p. 93.
99
GUEST, op. cit., p. 257.
100
DWORKIN não utiliza esse termo, mas, conforme observa ÁLVARO DE VITA, o mecanismo teórico
utilizado por DWORKIN é muito semelhante ao da posição original de RAWLS, de modo utiliza-se esse termo
por expressar de forma fiel a intenção do autor em comento. Cf. VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 49.
54
O seguro hipotético deverá ser baseado, segundo DWORKIN, na
diferença entre o vel de cobertura escolhido e a renda que o indivíduo, após o
leilão, teve de fato oportunidade de receber, e deverá ser igual ao que qualquer
pessoa que esteja no nível de cobertura escolhido
101
. Nessas circunstâncias, será
que é vantajosa a escolha de um nível de cobertura muito elevado? Um seguro
hipotético contra a falta de talento que contenha um prêmio (valor a ser pago
para que se tenha direito à cobertura) muito elevado fará com que muitos dos
que optaram por essa cobertura tenham uma probabilidade muito alta de ganhar
muito pouco, e acarretará que alguns indivíduos, que efetivamente ganharem
altos rendimentos, tenham que trabalhar muito para manter o equilíbrio da
cobertura desse seguro. Eles, assim, estarão em uma situação muito pior do que
se não tivessem contratado o seguro e, ainda, serão escravos de seus
rendimentos máximos
102
. Nas palavras de DWORKIN:
Se o nível de cobertura é alto, então isto irá escravizar o segurado, não
apenas pelo prêmio ser alto, mas porque é extremamente improvável
que seus talentos irão ultrapassar por muito o nível de cobertura que
haverá escolhido, o que significa que ele deverá trabalhar com esforço
máximo, e que ele não terá escolha acerca do tipo de trabalho a
fazer
103
.
Nessa situação, haverá a perda de liberdade dos talentosos, e o seguro
deixará de cumprir a sua função de neutralizar a sorte genética de um indivíduo
talentoso e passaria a, efetivamente, “ser o fator determinante de sua vida
104
”, o
que vai de encontro com os cânones de uma sociedade liberal. A conclusão de
DWORKIN, nesse contexto, é no sentido de que se os indivíduos, em uma
situação de ignorância com relação aos seus dotes naturais, deliberassem a
101
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 94.
102
Idem. Ibidem. p. 96.
103
“If the level of coverage is high, then this will enslave the insured, not simply because the premium is high,
but because it is extremely unlikely that his talents will much surpass the level that he has chosen, which means
that he must work at full stretch, and that he will not have choice about what kind of work to do.Idem. Ibidem.
p. 98.
104
KYMLICKA, op. cit., p. 105.
55
respeito de um nível de cobertura racional para um seguro contra a falta de
talento, eles não optariam pelo nível mais alto de cobertura, pois a recompensa
que o mesmo pode trazer é muito menor do que o risco de se ver escravizado
pela necessidade de pagamento de um prêmio muito alto.
Todavia, o seguro contra a falta de talento começa a ser economicamente
interessante quando se consideram níveis mais baixos de cobertura. Com efeito,
DWORKIN atenta que quando o nível de cobertura é mais baixo, os indivíduos
possuem uma gama maior de opções de trabalho, que lhes proporcionarão uma
quantidade e intensidade de trabalho moderada para conseguir pagar o prêmio.
Nesse sentido, observa VITA:
(...) a racionalidade ex ante (sob o véu de ignorância que impede cada
um de conhecer seus próprios talentos) de escolha de um dispositivo
hipotético de seguro contra não ter determinados talentos se tornaria
mais forte conforme diminuísse o nível de cobertura contratado.
Conforme esse vel cai, mais do que isso, se aproxima do caso-
padrão de seguro (privado), em que as pessoas aceitam um pequeno
custo financeiro certo para evitar uma perda que, por mais que
improvável que lhes pareça no presente, é grande o suficiente para
motivá-las a arcar com o ônus do prêmio. Dworkin supõe que todos
escolheriam, se pudessem, se segurar contra não ser capaz de ganhar
aquilo que os colocaria no trigésimo centil da distribuição de renda,
bastante acima do nível de renda adotado nos Estados Unidos e na
Grã-Bretanha para que uma pessoa faça jus a transferências
compensatórias
105
.
O seguro hipotético, assim, torna-se atraente na medida em que o nível de
cobertura (e conseqüentemente o prêmio) é menor, se aproximando da situação
inerente aos seguros privados, no qual o indivíduo paga um valor baixo pelo
seguro para evitar um grande (e improvável) perda.
105
VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 50.
56
1.4. A CONCRETIZAÇÃO DO SEGURO HIPOTÉTICO: O SISTEMA
TRIBUTÁRIO REDISTRIBUTIVO
O liberalismo igualitário de DWORKIN defende, conforme visto, a
construção da igualdade através do mercado. Para tanto, DWORKIN imagina
uma situação hipotética na qual descreve o funcionamento de um leilão
igualitário, que seria o motor da igualdade de recursos. A principal característica
do aludido leilão é a insensibilidade à dotação e sensibilidade à ambição. A idéia
central, portanto, é fazer com que, em uma sociedade liberal, os indivíduos
sejam responsáveis pelas suas escolhas genuínas (sorte opcional), mas que não
sejam obrigados a sofrer desigualdades provenientes das circunstâncias naturais
(sorte bruta). Mas quais circunstâncias seriam estas? A doutrina dworkiniana
centraliza a discussão ao problema das deficiências e da sorte genética. À luz do
exposto, a solução apresentada por DWORKIN é no sentido de compensar dos
deficientes, bem como neutralizar a sorte genética através do mecanismo do
seguro hipotético, que abre uma possibilidade de os indivíduos se precaverem de
eventual deficiência ou falta de talentos.
Trata-se, portanto, de um mecanismo que faz com que um evento que
decorreria da sorte bruta (uma deficiência, por exemplo) seja protegido pela
adesão do indivíduo a um mercado de seguros hipotéticos, mecanismo este que
se mostra interessante na medida em que a deficiência ou a falta de talentos são
recursos infungíveis, ou seja, que não podem ser adquiridos no mercado
hipotético, de modo que o seguro provém uma forma de se compensar, ex ante,
um prejuízo que o indivíduo eventualmente possua, e que não pode ser
compensado na mesma por um recurso da mesma espécie.
Mas como que esse esquema de seguros hipotético se manifestaria no
mundo real? DWORKIN tem em mente um sistema de impostos que incidiria
basicamente sobre a riqueza produzida exclusivamente em virtude da sorte
genética. Trata-se, portanto, de uma teoria que atribui ao Estado um papel ativo
57
para a manifestação da igualdade na prática, o que, no entender de VITA,
permite a conclusão de que o DWORKIN (bem como RAWLS) tem em mente,
ao desenvolver a sua teoria política, um “capitalismo de welfare state
106
. Essa
conclusão a que chega VITA ganha contornos mais concretos no livro mais
recente de DWORKIN, no qual ele afirma explicitamente que o Estado do Bem-
Estar Social é o modelo estatal que melhor corresponde aos ideais do liberalismo
igualitário .
Em Is democracy possible here?”, DWORKIN dedica todo um capítulo
para realizar uma crítica da política tributária adotada pelo governo de George
W. Bush, baseada em cortes de impostos, a qual beneficia apenas as classes mais
privilegiadas da sociedade americana, além de acarretar um deficit orçamentário
sem precedentes, forçando cortes nas políticas sociais. Afirma, assim, que o
governo republicano não goza de legitimidade, visto que a política por ele
adotada não trata todos os cidadãos com igual consideração (equal concern)
107
.
Mas qual seria, então, a política tributária que um governo deve adotar para que
ele seja legítimo, ou seja, para que demonstre igual consideração para com seus
cidadãos?
Conforme visto, DWORKIN entende que o dever do Estado de tratar a
todos com igual respeito e consideração pressupõe um direito a “tratamento
como igual”, no sentido que a decisão política acerca da distribuição dos
recursos na sociedade deverá levar em consideração as circunstâncias de cada
indivíduo que compõe a comunidade. é possível concluir, com tudo o que foi
exposto acerca da igualdade de recursos, que o direito a treatment as an equal
corresponde exatamente à concepção dworkiniana de igualdade de recursos
108
.
Ao construir uma doutrina “insensível à dotação mas sensível à ambição”,
DWORKIN pretende, exatamente, por em destaque o direito que os indivíduos
106
VITA. Justiça..., op. cit., p. 81.
107
DWORKIN. Is Democracy…, op. cit., p. 90-96.
108
Nesse sentido, cf. GUEST, op. cit., p. 255.
58
têm, em uma sociedade liberal, a serem tratados como iguais pelo governo, que
está na base do conceito de equal concern. É nesse contexto que DWORKIN
afirma que:
Um governo legítimo deve tratar todos aqueles a quem ele reivindica
domínio não apenas com alguma medida de consideração, mas com
igual consideração. Eu quero dizer que ele deve agir como se o
impacto de suas políticas na vida de qualquer cidadão é igualmente
importante
109
.
As decisões políticas, portanto, somente serão legítimas se levarem em
consideração, de forma igualitária, todos os indivíduos. Mas será que essa
conclusão leva, necessariamente, à opção por uma política welferista em
detrimento a um governo laissez-faire
110
? DWORKIN afirma que a distribuição
de bens e oportunidades na sociedade depende, basicamente, de duas variáveis:
uma variável de natureza pessoal, que diz respeito às circunstancias pessoais
(deficiências, habilidades físicas e mentais) e às escolhas individuais, e uma
variável política, relacionada com as leis e as políticas, que constituirão o
arranjo político da sociedade
111
.
A atuação livre do indivíduo na sociedade, no entanto, inevitavelmente
acarreta desigualdades. Esse é um fato que não pode ser ignorado pelo governo e
constitui um dos principais desafios do Estado Liberal: como preservar a
liberdade individual e manter, concomitantemente, as desigualdades em um
nível tolerável? A esse respeito, interessante é a observação feita por PETER
SCHUCK:
Talvez o mais assombroso desafio para o liberalismo, então, seja
reduzir as desigualdades a níveis e espécies que a sociedade, e
109
A legitimate government must treat all those whom it claims dominion not just with a measure of concern
but with equal concern. I mean that it must act as if the impact of its policies on the life of any citizen is equally
important.” DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 97.
110
Ressalte-se, aqui, que o dualismo política welferista/política laissez-faire pode ser compreendida como
significando governo democrata/ governo republicano, que por sua vez refletem a cisão azul/vermelho que existe
na vida política norte-americana: de um lado os “liberais” (no sentido americano do termo), do outro os
conservadores (ou neoliberais).
111
Idem. Ibidem. pp. 98-99.
59
especialmente aqueles que sofrem desvantagem relativa, vejam como
socialmente aceitáveis e politicamente sustentáveis, senão justo no
conjunto – enquanto ao mesmo tempo justificando o compromisso
liberal com a proteção das liberdades individuais
112
.
Cabe, assim, perguntar se o Estado mínimo tem condições de oferecer
uma resposta ao problema da manutenção concomitante da liberdade individual
e de um nível tolerável de desigualdade na sociedade. O arranjo institucional
que DWORKIN pretende defender não descarta, a princípio, o Estado mínimo,
mas, conforme ele mesmo pondera, a escolha por uma política laissez-faire deve
ser acompanhada de uma justificativa no sentido de que esse governo consegue,
de fato, lidar com o problema das desigualdades de forma satisfatória
113
. No
entanto, DWORKIN não vislumbra uma argumentação que consiga definir uma
a política tributária em coerência com o ideal defendido pelo Estado laissez-
faire, de que o governo não deve tomar uma posição concreta a favor de
qualquer política distributiva. Segundo DWORKIN, qualquer decisão política,
como por exemplo a fixação do orçamento militar, ou a quantidade de verba a
ser destinada à educação, acarretará decisões distributivas, de modo que “o
Estado laissez-faire é um ilusão
114
”.
DWORKIN, assim, defende que o Estado deve apresentar um arranjo
institucional que vise garantir aos cidadãos a igualdade de recursos, mas que, ao
mesmo tempo, respeite o princípio da responsabilidade individual, a qual
constitui o segundo princípio ético que fundamenta o liberalismo igualitário
dworkiniano. Nesse sentido, DWORKIN entende que tal arranjo político
112
“Perhaps the most daunting challenge to liberalism, then, is to reduce inequalities to levels and kinds that the
society, and especially those who suffer relatively disadvantage, view as socially acceptable and politically
sustainable, if not altogether just – while at the same time vindicating the liberal commitment to the protection of
individual liberties. SCHUCK, Peter. Liberal Citizenship. In ISIN, Engin F. Handbook of citizenship
studies. London: Sage, 2002, p. 140.
113
Vide DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 100.
114
So the laissez-faire state is an illusion”. Idem. Ibidem. p.100.
60
somente é possível mediante a construção de uma teoria tributária que seja
comprometida com a igualdade e com a responsabilidade individual
115
.
Cumpre ressaltar, todavia, que uma conseqüência importante que decorre
do princípio da responsabilidade pessoal é o de que o indivíduo deve sentir os
reflexos econômicos de suas escolhas, o que somente é possível, para
DWORKIN, em uma economia de livre mercado, de forma que é a atuação
individual que deve determinar os elementos estruturais do mercado. No
entanto, a economia de livre mercado gera grandes desigualdades, tendo em
vista a diferença que de talentos e de sorte entre os indivíduos conforme a
economia se desenvolve. Assim, no entendimento do filósofo norte-americano,
muito embora o princípio da responsabilidade pessoal exija que os indivíduos
arquem com os custos econômicos de suas escolhas, existem certas
desigualdades que não devem ser toleradas, as quais deverão ser amenizadas por
uma política tributária redistributiva
116
.
Mas qual o fundamento para a defesa dessa política redistributiva? Aqui
podemos ver uma aplicação prática do mecanismo do seguro hipotético proposto
por DWORKIN. Segundo o filósofo igualitário, uma política redistributiva pode
ser defendida com duas posições filosóficas distintas: a contratualista e a da
metáfora do seguro. Existe um traço comum entre essas teorias liberais, qual
seja, a raiz kantiana. Com efeito, a sociedade liberal pode ser defendida sob dois
pontos de vistas diferentes. Um deles, de natureza hobbesiana, sustenta que “a
motivação para a obediência às regras de justiça e à ordem política que as impõe
é exclusivamente o interesse e os desejos próprios
117
”. Em contraposição ao
liberalismo hobbesiano encontra-se o liberalismo de natureza kantiana ou
“liberalismo de princípios”, que se preocupa, antes de justificar os arranjos e
instituições políticas e fundamentar a natureza da sociedade no egoísmo, em
115
DWORKIN. Is Democracy..., op. cit., p. 102-103.
116
Idem. Ibidem. p. 107-108.
117
VITA. Justiça Liberal..., op. cit., p. 21.
61
estabelecer princípios de justiça que constituem “fins últimos compartilhados
pelos membros de uma sociedade democrática
118
”. Tratam-se, portanto, de
teorias que justificam a natureza das instituições comuns da sociedade de forma
diversa: o liberalismo hobbesiano fundamenta-se basicamente em argumentos de
natureza prudencial, ao passo que o kantiano em argumentos morais.
Todavia, DWORKIN faz ainda uma distinção entre duas teorias liberais
de raízes kantianas. A primeira delas, cujo principal expoente é RAWLS, é de
natureza contratualista, e tem como principal característica a de que os termos
de cooperação social são obtidos a partir de uma situação de equidade em que há
um mútuo respeito entre os indivíduos. Na teoria da justice as fairness
rawlsiana, os princípios de justiça que fundamentarão o arranjo das instituições
básicas da sociedade são construídos a partir de uma situação hipotética em que
indivíduos, sob um véu de ignorância (ou seja, sem saber as suas condições
pessoais) deliberam acerca de quais princípios de justiça devem ser adotados
pela sociedade. Essa teoria, portanto, pressupõe a formação de um consenso
entre os indivíduos, que acabará por desenvolver dois princípios de justiça, um
deles determinando que todos têm direito ao igual acesso às liberdades básicas, e
o princípio da diferença, que estabelece um compromisso no sentido de que as
desigualdades econômicas somente serão toleradas se: a. beneficiarem a todos
na sociedade; e b. forem relacionadas a posições e ofícios abertos a todos, em
igualdade de oportunidades
119
.
Trata-se, portanto, de uma teoria comprometida com a compensação das
desigualdades provenientes de uma situação em que os princípios de justiça
mencionados foram ofendidos. No entanto, atenta DWORKIN para o fato de
que, na teoria de RAWLS, a compensação das injustiças produzidas na
sociedade ocorre ex post, ou seja, depois de ocorrido o dano, e se justifica por
118
VITA. Justiça Liberal…, op. cit., p. 23.
119
Cf. DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 112 e RAWLS. A Theory…, op. cit., p. 53.
62
um acordo hipotético realizado entre os indivíduos
120
. Em contraposição ao
contratualismo rawlsiano, DWORKIN propõe uma teoria baseada em seguros,
comprometida com uma igualdade ex ante, concretizada mediante programas
redistributivos financiados pelo pagamento de tributos. A idéia central é a de
que os tributos devem ser compreendidos como prêmio de um seguro que os
indivíduos pagam no decorrer de suas vidas, e os programas sociais como
benefícios oferecidos pelo seguro financiado pela política tributária
121
.
A metáfora do seguro hipotético destaca duas características importantes
na teoria de DWORKIN. A primeira delas diz respeito à concepção de
comunidade liberal dworkiniana, vez que o seguro sugere uma solidariedade
social, no sentido de que a identidade coletiva da comunidade é reafirmada pelo
fato de os indivíduos fazem um esforço comum (pooling) para compartilhar os
riscos que enfrentam em suas vidas, ressaltando, ao mesmo tempo, uma “aura de
prudências e responsabilidade individual
122
”. A segunda característica é a
importância que DWORKIN confere aos direitos em uma comunidade política:
a compensação derivada do seguro hipotético é um direito do cidadão,
decorrente do pagamento dos tributos para o financiamento do seguro. Nesse
sentido afirma DWORKIN que o seguro hipotético:
Delineia os programas políticos redistributivos não como caridades,
entregando os benefícios como atos de graça mas como questão de
direito; as pessoas possuem direitos aos benefícios decorrentes da
apólice de seguro porque eles pagaram adiantadamente para essa
proteção
123
.
120
DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 112-113.
121
Idem. Ibidem. p. 112 e ss.
122
Idem. Ibidem. 112-113.
123
“It paints redistributive political programs nota as charities bestowing their benefits as acts of grace but
rather as matters of entitlement; people are entitled to collect on insurance policies because they have paid for
such protection in advance.” Idem. Ibidem. p. 113.
63
DWORKIN sustenta, assim, que a metáfora do seguro hipotético,
materializada por um sistema de taxação redistributiva
124
, é a melhor forma de
se alcançar a igualdade de recursos. Identifica-se, nesse sentido, três argumentos
que levam a essa conclusão. Em primeiro lugar o fato de os benefícios dos
programas redistributivos resultantes do esquema de taxação proposto por
DWORKIN concretizarem direitos aos beneficiários, o que confere, por
exemplo, legitimidade ativa aos segurados para exigirem judicialmente que o
governo indenize àqueles que sofrerem percalços no decorrer de suas vidas.
Entendo que esse aspecto da teoria igualitária de DWORKIN é importante traz
fundamentos para a interpretação da Constituição Federal de 1988,
especialmente no tocante à força normativa positiva dos princípios
constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana e da cidadania.
Com efeito, uma vez entendida a igualdade de recursos como um ideal a ser
perquirido pela comunidade política, por ser um valor essencial para a
efetivação da auto-determinação individual e a valorização da vida humana, o
que, diga-se, relaciona-se com o princípio da dignidade da pessoa humana (CF,
artigo 1.º , inciso III), e, ainda, que a melhor forma de concretizar o conteúdo
valorativo desse ideal é mediante um programa de tributação para o
financiamento de programas redistributivos, o que conexiona-se com os direitos
de cidadania (CF, artigo 1.º, inciso II), confere-se aos cidadãos um fundamentos
(jurídicos e políticos) para pleitear judicialmente que o governo atue de modo a
efetivar políticas públicas que concretizem esses ideais.
124
A defesa da tributação redistributiva, em Is Democracy Possible Here?, insere-se dentre a crítica que
DWORKIN dirige constantemente às políticas tributárias adotadas pelos governos Republicanos.
Especificamente na obra citada, DWORKIN critica ferrenhamente os cortes fiscais promovidos pelo governo
George W. Bush, que, segundo ele, apenas beneficiaram os indivíduos mais ricos da sociedade norte-americana,
e prejudicou a concretização de programas sociais. Cf. DWORKIN, op. cit., pp. 90 e ss. A esse respeito, assevera
ROLF KUNTZ que a crise financeira do Estado Providência, nos anos 80 e 90, levou à adoção, em escala
mundial, de uma reestruturação, comandada pelo Consenso de Washington, que exigiu cortes fiscais e
diminuição do Estado. Identifica-se, aqui, nitidamente a tensão existente entre a manutenção de uma sociedade
capitalista e de um governo mínimo, e a concretização dos direitos de cidadania, exigência fundamental do
Estado Democrático de Direito. Cf. KUNTZ, Rolf. FARIA, José Eduardo. Qual o Futuro dos Direitos: Estado,
Mercado e Justiça na reestruturação capitalista. São Paulo: Max Limonad, 2002, pp. 42 e ss.
64
O segundo argumento para se defender a metáfora do seguro hipotético
como a melhor interpretação do ideal igualitário é no sentido de que,
considerando que os programas redistributivos serão financiados por
intermédios de tributos, como por exemplo, imposto de renda progressivo
125
, e,
ainda, que a adesão a esses programas é compulsória
126
, o seguro hipotético
abrangerá a totalidade dos cidadãos, e o critério para o valor dos prêmios a
serem pagos não será a probabilidade que cada um tem de ter uma deficiência ou
uma má-sorte, mas sim a renda. Dessa forma, cada um contribuirá
proporcionalmente com a sua possibilidade e a cobertura será igual para todos.
O terceiro e último argumento para a defesa da igualdade ex ante situa-se
no campo puramente normativo. A principal crítica de DWORKIN ao
liberalismo rawlsiano é no sentido de que o princípio da diferença, embora
insensível às dotações, e não é suficientemente sensível às ambições, o que pode
gerar resultados contra-intuitivos
127
. Portanto, a igualdade de recursos
dworkiniana visa exatamente suprir essa falha que aparentemente existe na
teoria de RAWLS, propondo um esquema de tributação redistributiva que incide
sobre os ganhos provenientes da “sorte genética” e beneficia os prejudicados por
eventos de “sorte bruta”.
125
DWORKIN. Is democracy..., op. cit., p. 117.
126
Idem. Ibidem. p. 113-114.
127
GARGARELLA, op. cit., p. 72.
65
CAPÍTULO II
IGUALDADE DE RECURSOS E LIBERDADE
Logo na introdução do ensaio The Place of Liberty”, que atualmente
integra o Capítulo 03 do livro Sovereign Virtue”, DWORKIN afirma que, ao
utilizar o termo “liberdade”, ele se refere à liberdade negativa, entendida
enquanto “liberdade de coerção legal
128
”. Mas o que significa liberdade
negativa? Essa expressão foi utilizada por ISAIAH BERLIN em seu clássico
ensaio “Dois Conceitos de Liberdade”, no qual identifica duas espécies de
liberdade que exprimem a essência desse ideal: a liberdade negativa e a
liberdade positiva.
Liberdade negativa, explica BERLIN, corresponde à acepção conferida ao
termo pelo liberalismo clássico, em especial por autores ingleses como LOCKE
e MILL. Notadamente na obra deste último, a liberdade foi defendida
ferrenhamente como condição necessária para o desenvolvimento humano,
condenando-se qualquer tipo de coerção como um mal em si
129
. BERLIN, por
sua vez, conceitua a liberdade negativa enquanto “área na qual um homem pode
agir sem ser obstruído por outros
130
”, mas ressalta, no decorrer do mencionado
ensaio, que “a liberdade não é o único objetivo dos homens”, no sentido de que
a esfera de atuação humana deve ter um campo delimitado pelo arranjo
institucional a que o indivíduo está sujeito.
Ao reconhecer a necessidade de limitação da liberdade, todavia, BERLIN
deixa claro que a mesma acarreta, necessariamente, perda da liberdade, de modo
que igualdade e liberdade, na concepção de BERLIN, são valores em
128
DWORKIN. Sovereign...¸op. cit., p. 120.
129
BERLIN, Ensaios…, op. cit., p.234.
130
Idem. Ibidem.p. 229.
66
permanente colisão, não sendo possível a defesa da restrição da liberdade em
nome da própria liberdade:
Para evitar a desigualdade gritante ou a desgraça generalizada, estou
pronto sacrificar parte da minha liberdade ou toda ela: posso agir
desse modo voluntária e livremente; mas é a minha liberdade que
estou renunciando em prol da justiça, igualdade ou amor pelos
homens companheiros meus. Eu seria atormentado pela culpa, e com
razão, se não estivesse disposto, em algumas circunstâncias, a fazer
esse sacrifício. Mas o sacrifício não é um aumento do que está sendo
sacrificado, a saber a liberdade, por maior que seja a necessidade
moral ou a compensação pelo sacrifício. Tudo é o que é: liberdade é
liberdade, não é igualdade, equidade, justiça ou cultura, felicidade
humana ou uma consciência tranqüila
131
.
Conforme veremos no presente Capítulo, DWORKIN parte da noção de
liberdade negativa desenvolvida por BERLIN para a construção do seu próprio
entendimento acerca desse direito político, relacionando-o no contexto da justiça
distributiva, visando, ao contrário do que defende aquele autor, uma conciliação
entre a liberdade e a igualdade.
2.1. DIREITO À LIBERDADE OU DIREITO A LIBERDADES?
Visto que a liberdade, entendida como liberdade negativa um espaço de
atuação ação sem interferência governamental, é possível afirmar que, sob o
prisma da igualdade de recursos dworkiniana, existe um princípio libertário
abstrato, ou seja, que o direito à liberdade é um ideal abstrato independente?
No entendimento de DWORKIN a liberdade não é um ideal independente.
Partindo-se da idéia inicialmente exposta, de que o princípio igualitário abstrato
é amplamente aceito por uma comunidade Liberal (no sentido norte-americano
do termo), e que, de acordo com o conteúdo valorativo desse princípio, o Estado
131
BERLIN, op. cit., 232.
67
tem o dever de tratar a todos com igual respeito e consideração, significando
isso a concretização, na comunidade, da igualdade de recursos com as
peculiaridades examinadas no Capítulo 01, DWORKIN conclui que, em tese,
havendo conflito entre a igualdade e a liberdade, aquela deverá prevalecer sobre
esta. DWORKIN, no entanto, pondera que tal situação não pode ocorrer, visto a
própria igualdade de recursos pressupõe a garantia de certas liberdades.
Nesse diapasão, a liberdade não deve ser compreendida como um direito
independente e concorrente com a igualdade, mas sim como um ideal
teleológicamente avaliado, ou seja, cuja importância valorativa depende,
exatamente, dos benefícios que traz a vida dos cidadãos na comunidade
132
,
benefícios estes que devem ser otimizados pelo Estado, em atendimento ao
princípio igualitário abstrato.
Qual conclusão importante DWORKIN pretende extrair dessa
caracterização da liberdade como um ideal valorativamente dependente da
igualdade? Em primeiro lugar, visa ele rejeitar qualquer concepção da liberdade
como “licença” para atuar indiscriminadamente. Para o filósofo norte-
americano, não existe um direito abstrato à liberdade, mas sim direito a
liberdades, ou seja, direito a liberdades básicas, às quais o governo não pode
limitar “sem uma justificativa especial mais poderosa ou convincente que a
justificação que ele requer para outras decisões políticas, incluídos restrições a
outras liberdades não protegidas por esses direitos
133
”. A liberdade, portanto,
deve ser compreendida como acesso a liberdades fundamentais concretamente
definidas, tais como a liberdade de expressão, de associação, de religião, dentre
outras.
Nesse contexto, DWORKIN intenta redefinir a dinâmica existente entre o
binômio igualdade/liberdade, a então concebido pela teoria política como
132
DWORKIN. Sovereign.., op. cit., p. 129.
133
without some special justification more powerful or compelling than the justification it requires for other
political decisions, including constraints on other freedoms not protected by such rights.” Idem. Ibidem. p.127.
68
eminentemente conflitiva. Com efeito, no contexto da concepção de igualdade
de recursos dworkiniana, a liberdade e a igualdade constituem valores
complementares: para o filósofo norte-americano não existe conflito genuíno
entre a igualdade, entendida enquanto igualdade de recursos, e a liberdade:
De acordo com a igualdade de recursos, os direitos a liberdade
que consideramos fundamentais são partes ou aspectos da
igualdade distributiva, e são, assim, protegidos automaticamente
sempre que a igualdade é alcançada. A prioridade da liberdade é
assegurada não em detrimento da igualdade, mas em seu
nome
134
.
Na verdade, conforme será abordado no fim do próximo Capítulo,
DWORKIN pretende harmonizar a igualdade e a liberdade como expressões de
um único ideal, que é a dignidade da pessoa humana. Os princípios da
responsabilidade individual e do valor intrínseco, na verdade, são reflexos
desses dois valores normativos, e juntos constituem a dignidade da pessoa
humana. Para o momento, cumpre analisar a forma como DWORKIN
compreende a forma como a garantia de algumas liberdades é de fundamental
importância para a concretização da igualdade de recursos.
2.2. COMO (RE)CONCILIAR A IGUALDADE E A LIBERDADE?
2.2.1.
A
ESTRATÉGIA DOS INTERESSES
Como foi dito, DWORKIN faz uma releitura da dinâmica existente entre
igualdade e liberdade, pretendendo uma conciliação entre esses dois ideais. Mas
como fazê-lo no campo da teoria política normativa? Reconciliar a igualdade e a
liberdade significa, em termos normativos, identificar a forma como se justifica,
134
According to equality of resources, the rights to liberty we regard as fundamental are part or aspect of
distributional equality, and so are automatically protected whenever equality is achieved. The priority to liberty
is secured, not at the expense of equality, but in its name.” DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 133.
69
em uma comunidade, a relação entre a justiça distributiva e a garantia das
liberdades fundamentais.
O pensador norte-americano identifica duas maneiras de se construir, no
campo normativo, uma teoria que concilie a igualdade e a liberdade. A primeira
delas, a qual denomina de estratégia dos interesses”, consiste em identificar a
distribuição ideal dos recursos sociais a partir dos interesses individuais, para,
posteriormente, verificar quais liberdades são de fundamental importância para a
manutenção dessa distribuição. A liberdade, nesse contexto, serve de
instrumento para a garantia da distribuição dos recursos sociais, ou seja, como
instrumento dos interesses individuais que basearam a distribuição ideal de
recursos
135
. DWORKIN utiliza como exemplo de teoria política que adota a
estratégia dos interesses o utilitarismo, eis que, ao defender que a comunidade
deve buscar uma distribuição dos recursos sociais que vise proporcionar o maior
bem-estar médio possível a longo prazo, a doutrina utilitarista nada define
acerca da liberdade, deixando-a como instrumento para alcançar aquele objetivo.
A estratégia dos interesses, portanto, coloca em primeiro plano a busca
pela igualdade, e apenas em um segundo momento considera a liberdade,
enquanto instrumento garantidor daquela. Será a igualdade de recursos
dworkiniana compatível com a estratégia dos interesses? Conforme exposto no
Capítulo 01 da presente dissertação, DWORKIN constrói a sua teoria igualitária
a partir de um exemplo contrafactual, no qual imigrantes que estão em uma ilha
inexplorada, aceitam que os recursos deverão ser distribuídos equitativamente, e,
para tanto, realizam um leilão, cujo resultado deverá satisfazer o “teste da
inveja”, no sentido que nenhum dos indivíduos, ao final, cobice o montante de
recursos que outro indivíduo possua.
135
DWORKIN. Sovereign..., op. cit.. p. 135.
70
DWORKIN argumenta que, nesse modelo, a estratégia dos interesses
somente teria alguma lógica se a liberdade fosse considerada como um recurso
disponível para compra no leilão hipotético, entrando, por conseguinte, em
concorrência com qualquer outro recurso disponível à venda no mercado
igualitário. Observe-se que, à luz da estratégia dos interesses, as liberdades
fundamentais seriam instrumentalmente compreendidas. Isso porque, enquanto
recursos
136
, seriam balizadas com os demais bens materiais (e imateriais) que os
indivíduos possuem e, nesse diapasão, constituiriam meios para alcançar a
igualdade, e não fins em si mesmas
137
. Há, dessa forma, a plena subordinação da
liberdade à igualdade.
2.2.2.
A
ESTRATÉGIA CONSTITUTIVA
:
A LIBERDADE COMO PRESSUPOSTO DA
IGUALDADE
O filósofo norte-americano, todavia, não pretende construir uma teoria
igualitária que coloque a liberdade em segundo plano. Reconhece, é verdade,
que “qualquer conflito genuíno entre a liberdade e a igualdade (...) é uma
concorrência que a liberdade deve perder
138
”. Mas, ao mesmo tempo, defende
que não existe, na igualdade de recursos, um conflito entre a igualdade e a
liberdade que se possa dizer “genuíno”. Pelo contrário, a igualdade de recursos,
nos moldes propostos por DWORKIN, pressupõe que “adquirir um determinado
recurso e adquirir direitos e oportunidades de utilizar esse recurso são duas
transações diferentes
139
”. Nesse sentido, os direitos de liberdade não podem ser
confundidos com os recursos disponíveis aos indivíduos e, ademais, constituem
136
Deve-se ficar atento para o fato de que os direitos de liberdade, uma vez considerados recursos, compõe a
esfera das circunstâncias individuais, e não da personalidade. Vide, supra, a discussão acerca da diferença entre
circunstâncias e personalidade.
137
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., pp. 139-141.
138
any genuine conflict between liberty and equality(...) is a contest that liberty must lose”. Idem. Ibidem.
p.130.
139
“(...) acquiring a particular resource and acquiring rights and oportunities to use that resource are two
independent transactions”. Idem. Ibidem. p. 143.
71
pressuposto de viabilidade lógica das transações realizadas no leilão hipotético,
que, conforme o próprio DWORKIN reconhece, ninguém, em pleno gozo de
suas faculdades morais, adquiriria um recurso sem ter certeza de terá um
mínimo de liberdade para utilizar o bem adquirido
140
.
O pressuposto teórico de que parte a igualdade de recursos, dessa maneira,
é bastante diferente da estratégia dos interesses: a liberdade não constitui
instrumento para a manutenção da igualdade, mas, antes, pressuposto gico
para a concretização do princípio igualitário abstrato. Portanto, em contraponto à
estratégia dos interesses, DWORKIN desenvolve a “estratégia constitutiva”,
que “edifica a liberdade na estrutura da concepção de igualdade escolhida desde
o começo
141
”. Desde o começo porque o leilão igualitário, que, para
DWORKIN, é o mecanismo para se atingir, no plano ideal
142
, uma distribuição
igualitária dos recursos sociais, pressupõe a existência de um sistema de
liberdades/restrições que estipule o que poderá ou não ser feito com os
recursos lá adquiridos.
Existem, portanto, algumas liberdades que devem ser garantidas como
condição de viabilidade do leilão abstrato. Cabe agora perguntar: qual conjunto
de liberdades que compõem o sistema de liberdade/restrições acima
mencionado? A igualdade de recursos é, para DWORKIN, a melhor
interpretação do princípio igualitário abstrato. Em outras palavras, tratar aos
cidadãos com igual respeito e consideração”, na teoria dworkiniana, significa
distribuir os recursos sociais por intermédio de um leilão igualitário, o qual
presume que certas liberdades serão garantidas. Dessa forma, o leilão igualitário
deverá obedecer a determinados princípios, dos quais resultarão determinadas
140
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 143.
141
(...) builds liberty into the structure of its chosen conception of equality from the start”. Idem. Ibidem. p.
135.
142
Faço questão de ressaltar que a distribuição igualitária resultante do leilão hipotético dworkiniano é possível,
como o próprio DWORKIN reconhece, apenas no plano ideal ou normativo. Essa distribuição ideal é utilizada
pelo filósofo norte-americano para a elaboração de políticas públicas técnicamente viáveis para a diminuição das
igualdades no mundo real.
72
liberdades que serão, assim, tidas como fundamentais para o liberalismo
igualitário dworkiniano.
2.2.2.1. O princípios e subprincípios que regem os direitos de liberdade
Segundo DWORKIN, existe um princípio que faz a conexão (ou ponte, na
linguagem dworkiniana) entre o princípio igualitário abstrato e a igualdade de
recursos, ao qual denomina princípio da abstração”. Trata-se de um princípio
que visa conferir segurança às relações desenvolvidas no mercado hipotético e
estipula que “a distribuição é possível quando as pessoas estão legalmente
livres para agir como desejarem, a não ser quando há necessidade de restrições à
liberdade para proteger a segurança e a propriedade das pessoas, ou corrigir
as imperfeições dos mercados
143
”. Segundo esse princípio, portanto, as pessoas
são livres para fazer o que bem entenderem com os recursos que possuem, desde
que não coloquem em risco a segurança e a propriedade dos demais indivíduos.
Do conteúdo axiológico desse princípio é possível extrair algumas
características do pensamento político de DWORKIN. Primeiramente, verifica-
se que a igualdade de recursos não pretende subordinar a liberdade. Pelo
contrário, limita-a apenas para a proteção dos demais indivíduos e da
propriedade
144
. Ademais, a teoria dworkiniana pressupõe um princípio de
segurança, no sentido de que somente é possível se desenvolver uma teoria da
igualdade distributiva com o pressuposto de que as pessoas terão garantias de
fruição da propriedade “para lhes permitir elaborar planos e projetos, e realizá-
los
145
”.
143
It insists that an ideal distribution is possible only when people are legally free to act as they wish except so
far as constrints on their freedom are necessary to protect security of person and property, or to correct certain
imperfections in markets (…)”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 148.
144
É claro que o princípio da abstração apenas vige em sua plenitude enquanto houver, na comunidade, a
distribuição igualitária dos recursos. No plano real, considerando as gritantes desigualdades existentes, o
princípio da abstração terá a sua aplicação mitigada, o que significa que haverá certas restrições à liberdade que,
em tese, seriam repudiadas por essa norma mas que, no caso concreto, serão aceitas.
145
Idem. Ibidem. p. 149.
73
A importância do princípio da abstração es em permitir com que os
indivíduos atuem no mercado hipotético em acordo com seus gostos e suas
preferências, adquirindo o que lhes aprouver para a realização de seus objetivos
de vida. Somente dessa forma será possível, para DWORKIN, a correta
apuração dos “custos de oportunidades” que cada recurso efetivamente
representa e, assim, “tornar a distribuição o mais sensível possível às escolhas
que as pessoas fazem ao elaborar seus próprios planos e projetos (...)
146
”.
O objetivo primordial do leilão igualitário é conferir aos indivíduos os
recursos necessários para a efetiva realização de seus planos e preferências, e é
exatamente com base nestas que os indivíduos deverão negociar durante a
realização do leilão. É, ainda, embasado nesse binômio recurso / preferência que
os indivíduos avaliarão o resultado da distribuição realizada e, enfim, aprovarão
ou não o resultado atingido. Para que o resultado dessa avaliação final seja
preciso, é necessário que se verifique qual o “real custo de oportunidade
147
de
cada recurso, o que exige do leilão certa sensibilidade aos planos de vida
individuais
148
.
Assim, apenas para organizar os conceitos até agora apresentados, temos
que os custos de oportunidades são o parâmetro para a fixação dos preços dos
recursos a serem distribuídos, neutra e equitativamente, no leilão hipotético. A
garantia de higidez do sistema consiste na sensibilidade que o mercado deve ter
com relação às ambições e preferências individuais, expressas por intermédio da
146
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 151.
147
DWORKIN utiliza a expressão “custo” exatamente pelo fato de um indivíduo adquirir um recurso limita a sua
aquisição por outro indivíduo, o que representa uma perda de oportunidade, no sentido de que esse recurso
poderia servir, para outrem, para a realização de algum plano ou preferência. No entanto, devemos ter em mente
que a distribuição somente será confirmada se passar pelo “teste da inveja”, ou seja, se nenhum indivíduo invejar
a porção de recursos de outro indivíduo. Nesse contexto, somente a partir da atuação livre e segura dos
indivíduos no mercado que sepossível que ele, a partir de suas próprias preferência e à luz dos seus interesses
críticos, opte, racionalmente, por um recurso ao invés de outro, o que permitirá a avaliação do real custo de
oportunidade de cada recurso.
148
Idem. Ibidem. pp. 150 e ss.. DWORKIN admite, no entanto, que algumas limitações à liberdade, de caráter
corretivo, podem ser feitas para se apurar com maior precisão o custo de oportunidade de um recurso:
constraints on freedom of choice are required and justified, according to that principle, If they improve the
degree to which equality of resources secures its goal, which is to achieve a genuinely equal distribution
measured by true opportunity costs”. Idem. Ibidem. p. 157.
74
garantia das liberdades relacionadas com a formação da personalidade, como a
liberdade de escolha, expressão, pensamento, culto religioso, associação, dentre
outras, eis que é no exercício das mesmas que os indivíduos conseguem
desenvolver os seus valores e construir os seus objetivos de vida.
É de fundamental importância, nesse sentido, que o leilão se realize em
um ambiente que propicie ao indivíduo as mais amplas oportunidades para
formar a sua personalidade de forma independente e autêntica, de modo a não se
permitir “restrições, tanto antes do leilão inicial quanto depois dele, às
oportunidades de formar, ponderar ou advogar convicções, apegos ou
preferências
149
”. Tudo isso visa à formação genuína da personalidade dos
participantes do leilão, buscando-se a avaliação do real custo de oportunidade de
cada recurso adquirido, evitando que haja qualquer tipo de interferência ou
distorção na distribuição resultante do mercado igualitário.
Nesse sentido, o princípio da abstração, que garante aos indivíduos a
liberdade de gozar e fruir dos bens que adquiriram no leilão igualitário, salvo
para a garantia da segurança e/ou propriedade de outros indivíduos, possui, em
seu conteúdo, dois subprincípios, a saber, o princípio da correção, que visa à
imposição de restrições à atuação individual, se estas contribuírem para que se
alcance uma distribuição mais igualitária (e, claro, desde que essas restrições
não ofendam ao princípio da abstração), e o princípio da autenticidade, o qual
determina que os indivíduos tenham ampla liberdade para a formação,
genuinamente, de suas convicções e preferências, de modo a vedar qualquer
imposição de restrição relacionada à formação do caráter individual e, ainda, a
propiciar uma melhor avaliação dos verdadeiros custos de oportunidades dos
recursos distribuídos no leilão.
149
so the baseline of an ideal distribution would in principle allow no constraint, either before the initial
auction or after it, on opportunities to form, to reflect on, or to advocate convictions, attachments, or
preferences. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 160.
75
Há, no entanto, mais um subprincípio que compõe o conteúdo normativo
do princípio da abstração: o princípio da independência. Segundo DWORKIN,
esse princípio controla o princípio da correção ao insistir que não se pode
justificar como necessário nenhum parâmetro limitador para se chegar a um
resultado ao qual se chegaria em um leilão com perfeitos conhecimentos e
nenhum custo organizacional”, caso esses parâmetros reflitam “desprezo ou
antipatia” aos indivíduos que submetidos tal restrição, e, ainda, “controla o
princípio da abstração ao endossar parâmetros limitadores necessários para
proteger as pessoas sujeitas a preconceitos por sofrerem qualquer desvantagem
grave ou abrangente oriunda desses preconceitos
150
”. Possui, portanto, o
princípio da independência um conteúdo negativo, recomendando que o
princípio da correção não endosse qualquer parâmetro restritivo que tenha como
fundamento o preconceito ou a antipatia por qualquer indivíduo que vá sofrer tal
restrição, e um aspecto positivo, determinando que o princípio da abstração
acolha restrições e correções que visem amparar pessoas em situações de
desvantagem (natural ou social)
151
.
Dessa forma, conclui DWORKIN que “embora seja verdade que a
igualdade de recursos é neutra com relação às preferências que impõem
desvantagens no primeiro caso, posto que as pessoas devem ser livres para
escolherem o tipo de vida que pretendem levar, ela condena as atitudes que
geram desvantagens no segundo
152
”, recomendando, assim, a correção das
desvantagens naturais e a neutralização das vantagens obtidas a partir da sorte
150
The principle of independence speaks to both liberty and constraint. First, it checks the principle od
correction by insisting that no baseline constraint can be justified as necessary to reach a result that would be
reached in an auction with perfect knowledge and no organizational costs, if that result would be reached only
because people’s bids would reflect contempt or dislike for those who be subject to or suffer disadvantage in
virtue of the constraint. Next, it checks the principle of abstraction by endorsing baseline constraints necessary
to protect people who are the objects of systematic prejudice from suffering any serious or pervasive
disadvantage from that prejudice (In effect, the principle of independence redefines opportunity costs in that
way). DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 161.
151
É nítida a relação existente entre o princípio da independência e a característica fundamental do leilão
igualitário, que é ser insensível às circunstâncias individuais. Novamente, o liberalismo igualitário dworkiniano
recomenda a adoção de medidas para a correção do problema das deficiências.
152
Idem. Ibidem. p. 162.
76
genética. A liberdade figura na igualdade de recursos, nesse contexto,
pressuposto de viabilidade do leilão igualitário. É a partir do conteúdo
axiológico do princípio da abstração, concretizado mediante ponderação com os
princípios da correção, da autenticidade e da independência, que DWORKIN
constrói o alicerce teórico da igualdade de recursos no plano da teoria política
normativa. Devemos analisar, agora, de que forma o princípio igualitário
abstrato pode atuar na realidade fática, na qual predomina a desigualdade e não
se pode elaborar uma distribuição igualitária nos moldes propostos.
2.3. A QUESTÃO DO DEFICIT DE RECURSOS E DE LIBERDADE
No Capítulo 03 de Sovereign Virtue DWORKIN pretende responder à
seguinte pergunta: qual é o lugar da liberdade na igualdade de recursos? A partir
da construção teórica acima, sustenta que a liberdade faz parte do próprio
conceito de igualdade de recursos, sendo aquela, nesse sentido, um pressuposto
para que se alcance desta. Obviamente, no entanto, os argumentos utilizados por
DWORKIN pressupõem certas condições ideais que não estarão presentes no
mundo real. Como, então, que a teoria dworkiniana pode ser útil para os países
como o Brasil, em que uma distribuição igualitária, tal como exigida pela
igualdade de recursos, é praticamente uma utopia?
Objetivando desenvolver uma resposta a essa pergunta, DWORKIN
desenvolve os conceitos de “deficit de recurso” e “deficit de liberdade”. O
primeiro consiste na diferença entre os recursos a que os indivíduos teriam
direito em uma distribuição igualitária e os que eles efetivamente possuem, ou
seja, “é a diferença entre os recursos que ela tem e os que teria adquirido em um
leilão equânime, originário de um parâmetro justo
153
”. Por sua vez, o defit de
liberdade consiste nos aspectos em que o indivíduo, em termos de liberdade, está
153
“A person’s resource deficit is the difference between the resources he has and those he would have acquired
in an egalitarian auction from a fair baseline”. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 165.
77
“em situação pior, além dos aspectos captados em seu deficit de recursos, porque
o sistema de liberdade/restrições de sua comunidade não é o que a igualdade de
recursos requer
154
”.
Segundo DWORKIN, o deficit de recursos pode ser facilmente
quantificado, vez que consiste na diferença aritmética entre os recursos que um
indivíduo possuiria em uma comunidade em que o ideal da igualdade de
recursos se concretizou, e os que efetivamente possui no mundo desigual. No
entanto, o fato de uma comunidade não ter desenvolvido plenamente a igualdade
de recursos traz conseqüências ao sistema de liberdades/restrições que será por
ela adotado
155
. Sem embargo, em uma comunidade desigual, não será possível a
formação autentica das preferências individuais, bem como serão necessárias a
imposição de maiores restrições ao uso da propriedade
156
. Existe, no entanto, um
problema a ser enfrentado: é possível quantificar o deficit de liberdade? Para o
filósofo norte-americano “duas restrições à liberdade são incomensuráveis, e não
idênticas, e essa incomensurabilidade (...) às vezes tornará também
incomensuráveis os deficits de recursos
157
”.
Isso significa que a igualdade de recursos não endossa qualquer restrição à
liberdade pelo simples fato de se produzir uma distribuição mais igualitária, ou,
para se utilizar os termos utilizados por DWORKIN, não é qualquer correção na
liberdade de escolha que será admitida pelo princípio da abstração. A teoria
dworkiniana se mostra, nesse ponto, extremamente liberal, eis que impõe
154
A person’s liberty deficit, on the other hand, consists in the respects in which he is worse-off, in addition to
the respects captured in his resource deficit, because the liberty/constraint system of his community is not what
equality of resources requires”. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 165.
155
Para DWORKIN, quanto mais igualitária a comunidade, ou seja, quanto mais ela se aproximar da distribuição
recomendada pela igualdade de recursos, com maior efetividade se desenvolverá o princípio da abstração, no
sentido de que a liberdade para uso da propriedade será maior, e as restrições se limitarão a questões de
segurança e proteção da própria propriedade, eis que qualquer outra restrição que vise atingir à distribuição
igualitária se fará desnecessária.
156
Vale lembrar que essas restrições são aceitas pelo princípio da abstração se tiverem como conseqüências uma
distribuição mais igualitária dos recursos (princípio da correção)
157
Two liberty deficits are incommensurate rather than identical, and that incommensurability, (...) will
sometimes make overall equity incommensurate as well” . Idem. Ibidem. p. 167.
78
condições especiais para o sacrifício da liberdade: trata-se, como dito, de uma
teoria da igualdade que se mostra, ao mesmo tempo, como uma defesa da
própria liberdade, uma vez que qualquer distribuição que se mostre “defensável”
sob a ótica da igualdade de recursos não poderia, em tese, endossar restrições
que seriam reprovadas pelo princípio da abstração.
Mas será que em uma comunidade desigual as restrições à liberdade
seriam aceitas como um instrumento para a comunidade alcançar a igualdade de
recursos ou, ao menos, para se aproximar de uma distribuição mais justa? A
resposta de DWORKIN a essa questão não é clara, mas parece apontar para uma
aceitação de limitação de certas liberdades, desde que estas não sejam
fundamentais. Assim, ao mesmo tempo que o filósofo norte-americano sustenta
que “não se pode conceder a igualdade por intermédio de insultos à
liberdade
158
”, reconhece que a melhoria de uma comunidade desigual deve-se
dar mediante a adoção de uma política distributiva defensável, significando esta
um programa de reformas políticas que preveja restrições que não são
encontradas no plano ideal, mas que, no entanto, não ofendam ao princípio da
abstração em sua essência.
2.4. A CRÍTICA DE AMARTYA SEN AO LIBERALISMO
DWORKINIANO
A liberdade é concebida no pensamento dworkiniano como um direito que
não conflita com a igualdade, mas antes o complementa. Trata-se de um traço
característico das teorias igualitárias que têm uma raiz comum: a teoria da
justiça rawlsiana. Sem vida, a Teoria da Justiça de RAWLS é, em essência,
uma proposta de equilíbrio entre as exigências de valores políticos como a
158
Liberty, it insists, demands nothing but the freedom of genuine equality, and equality cannot be served by
any outrage to liberty”. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 176.
79
liberdade, a igualdade, a fraternidade e a eficiência, que são conflitantes mesmo
dentro da tradição política na qual esses valores têm uma saliência maior
159
”.
Nesse diapasão, deve-se ressaltar que tanto a teoria dworkiniana, quanto a
teoria capability-based de SEN não constituem uma teoria da justiça
independente, mas sim enfoques diferentes de uma tradição da filosofia política
que se iniciou com a justiça rawlsiana. Trata-se, portanto, de uma briga em
família”, para utilizar as palavras de VITA
160
.
O enfoque igualitário de SEN consiste no que ele denomina de
“capacidades” (capabilities). Para desenvolver esse conceito, SEN parte da
idéias de que uma pessoa, em seu viver, necessita da realização de
“funcionamentos” (functionings), que consistem:
desde coisas elementares, como estar nutrido adequadamente,
estar em boa saúde, livre de doenças que podem ser evitadas e
da morte prematura etc., até realizações mais complexas, tais
como ser feliz, ter respeito próprio, tomar parte na vida da
comunidade, e assim por diante
161
.
Relacionada com a noção de funcionamentos”, mas diversa desta, está a
“capacidade para realizar funcionamentos” (capability to function), que consiste
na habilidade, concreta, que uma pessoa tem para concretizar os functionings de
que necessita para realizar o tipo de vida a que escolheu para si. Assim, “a
capacidade é (...) um conjunto de funcionamentos, refletindo a liberdade da
pessoa para levar um tipo de vida ou outro
162
”. Por sua vez, a liberdade que um
indivíduo possui para escolher dentre as vidas possíveis constitui o seu conjunto
capacitário, de modo que SEN distingue entre a capacidade que uma pessoa
possui para realizar certos “funcionamentos”, a efetiva realização dos mesmos, e
a liberdade que o indivíduo tem para escolher quais funcionamentos” ela quer
159
VITA. O liberalismo..., op. cit., p. 92.
160
Idem. Ibidem. p. 91.
161
SEN. Desigualdade..., op. cit., p. 79.
162
Idem. Ibidem. p. 80.
80
concretizar, em consonância com o estilo de vida escolhido. Essa distinção é
crucial para o entendimento da teoria de SEN.
Com efeito, os functionings realizados pelo indivíduo constituem o seu
bem-estar
163
, eis que os functionings são considerados elementos constitutivos
do próprio bem-estar individual. Nesse contexto, “a capacidade reflete a
liberdade para buscar esses elementos constitutivos e pode até ter (...) um papel
direto no próprio bem-estar, na medida em que decidir e escolher também são
partes do viver
164
”.
A liberdade, assim, está diretamente relacionada com a capacidade, uma
vez que, representando a “habilidade” que uma pessoa tem para realizar
functionings, ela “representa a liberdade de uma pessoa para realizar bem-
estar
165
”. Não se pode, argumenta SEN, conferir à liberdade um caráter
meramente instrumental. Ou seja, a capacidade, enquanto reflexo da liberdade,
não significa meramente uma possibilidade de realização de “funcionamentos”,
mas sim a efetiva concretização dos mesmos, com liberdade de escolha. A
métrica da igualdade, para SEN, é o reflexo do conjunto capacitário de uma
pessoa, devendo abranger tanto a capacidade para funcionar, ou seja, a
capacidade para realizar certos “funcionamentos”, bem como os functionings
que o indivíduo optou por concretizar, à luz do estilo de vida que escolheu para
si
166
.
Assim, por exemplo, haverá ofensa à igualdade se um indivíduo estiver
passando fome porque não teve a opção de realizar o funcionamento “estar bem
nutrido”, mas o mesmo não ocorre para aquele que passa fome porque escolheu
estar nessa situação por conta de um culto religioso, uma vez que na segunda
163
DWORKIN, ao expor a teoria de Amartya Sen no Capítulo 07 de “Sovereign Virtue”, assevera que, pelo fato
de SEN se referir constantemente a “bem-estar” em sua exposição teórica, pode-se interpretar a sua teoria
igualitária como que endossando a igualdade de bem-estar. Todavia, entende o filósofo norte-americano que esta
não é a melhor interpretação a ser conferida à teoria de SEN, conforme veremos.
164
SEN. Desigualdade..., op. cit., p. 82.
165
Idem. Ibidem. p. 89.
166
Idem. Ibidem. pp.89-92.
81
situação o indivíduo, possuindo capacidade para funcionar e liberdade de
escolha, optou por jejuar, como forma de concretizar o seu bem-estar.
Com o foco, portanto, na capacidade, SEN critica as teorias igualitárias
baseadas em “recursos”, notadamente, a teoria da igualdade de recursos
dworkiniana e a justiça como equidade de RAWLS, que busca igualar as
pessoas no acesso a bens primários” (primary goods), os quais constituem as
bases das expectativas” (the basis of expectations
167
). Com efeito, os bens
primários constituem “coisas que são supostas que um indivíduo racional deseja,
não importando mais o que ele deseja
168
”. São, nesse sentido, bens que estão
relacionados com a realização dos planos individuais, e que devem ser
garantidos de acordo com o que determina o princípio da diferença: somente se
permite que um indivíduo representativo em uma posição social superior tenha
mais bens primários se, com isso, melhorar a situação dos que estão em uma
posição social inferior.
Existe, todavia, na teoria rawlsiana, uma sensibilidade com relação às
diferenças “naturais”, ou seja, concernentes às circunstancias pessoais. Com
efeito, afirma RAWLS, no §17 de A Theory of Justice”, que o princípio da
diferença confere importância para a concretização do subprincípio da
“reparação” (principle of redress), o que estipula que “as desigualdades
imerecidas exigem reparação; e, uma vez que desigualdades de nascimento e
talento natural são imerecidas, essas desigualdades devem ser compensadas de
alguma maneira
169
”. Assim, considerando que as desigualdades provenientes da
natureza são consideradas por RAWLS como meros “fatos naturais”, e que a
justiça está relacionada não com esses fatos, mas sim com a forma como as
instituições sociais reagirão aos mesmos, resta claro que uma sociedade,
167
RAWLS. A Theory..., op. cit., pp. 78 e ss.
168
“(…) are things which it is supposed a rational man wants whatever else he wants”. Idem. Ibidem. p. 79.
169
(...) undeserved inequalities call for redress; and since inequalities of birth and natural endowment are
undeserved, the inequalities are to be somehow compensated for”. Idem. Ibidem. p. 86.
82
compreendida como um esquema de mútua cooperação, deve primar pela
compensação das desigualdades naturais
170
.
Nesse contexto, RAWLS afirma que o princípio da diferença não deve ser
interpretado como uma defesa de uma sociedade meritocrática. Pelo contrário, o
valor insculpido no princípio da diferença é a fraternidade, representando a
“idéia de o desejar possuir grandes vantagens a não ser que isso leve ao
benefício dos que estão em uma situação inferior
171
”.
Partindo dessa noção, DWORKIN, de acordo com o exposto tanto no
Capítulo 01, quanto no presente Capítulo, desenvolveu sua complexa teoria da
igualdade de recursos, a qual enfatiza a existência de duas espécies de recursos:
os recursos imateriais, os quais estão relacionados com a personalidade, e os
recursos materiais, que são externos ao indivíduo e, assim, passíveis de permuta.
Garantindo o acesso a liberdades fundamentais, garantido pelo princípio da
abstração, e pelos subprincípios da correção, da segurança e da autenticidade,
DWORKIN elabora o esquema do seguro hipotético, com o intuito de
compensar, com bens materiais, as desigualdades provenientes de bens
imateriais.
Tanto a teoria rawlsiana, quanto a dworkiniana, são sensíveis à
compensação das desigualdades provenientes de acontecimentos fortuitos, como
os talentos e as deficiências, por intermédio de bens materiais. Todavia, critica
SEN, sendo os recursos (DWORKIN) ou bens primários (RAWLS) meios para
atingir a liberdade, “a conversão destes bens primários e recursos em liberdade
de escolha (...) pode variar de pessoa para pessoa”, de modo que “a igualdade de
parcelas de bens primários ou de recursos pode seguir lado a lado com sérias
desigualdades nas liberdades reais desfrutadas por diferentes pessoas
172
”.
170
RAWLS. A Theory…, op. cit., pp.89-90.
171
“(...) to the idea of not wanting to have greater advantages unless this is to the benefit of others who are less
well off”. Idem. Ibidem. p. 90.
172
SEN, op. cit., p. 136.
83
Assim, para utilizar a terminologia de SEN, não basta que os indivíduos sejam
igualados em recursos, ou mesmo que as desigualdades sejam compensadas por
recursos materiais, eis que a promoção da liberdade se com a “capacidade de
uma pessoa para realizar várias combinações alternativas de funcionamentos
173
”.
As teorias igualitárias baseadas em bens primários ou recursos, portanto,
visam igualar as pessoas nos meios que elas possuem para realizar os seus fins
ou objetivos pessoais, mas são insensíveis, para SEN, com relação às “variações
interindividuais”, que as pessoas não possuem as mesmas capacidades para
converter os recursos em liberdade. Uma verdadeira teoria igualitária, nesse
diapasão, deve igualar as pessoas em liberdade, o que exige não apenas conferir
os meios para a concretização dos “funcionamentos”, como também buscar a
igualdade nos resultados, ou seja, nas functionings concretizadas, sob pena de
privar os indivíduos menos capacitados de liberdade de escolha
174
.
2.4.1.
A
RESPOSTA DE
DWORKIN
A crítica de SEN consiste, assim, no fato de a igualdade de recursos não
acarretar, necessariamente, igualdade na realização da liberdade. O foco na
capacidade e, por conseguinte, na concretização dos “funcionamentos”, com
liberdade de escolha, seria mais sensível às variações interindividuais e,
portanto, concentra-se “na liberdade efetiva de escolher entre os diferentes tipos
de vida que os indivíduos têm razões para valorizar
175
”. Para DWORKIN, no
entanto, as críticas de SEN não afeta os principais conceitos em que se
fundamenta a igualdade de recursos.
Com efeito, a maior preocupação de DWORKIN, ao utilizar como os
recursos como equalisandum, foi conferir um parâmetro objetivo para o
173
SEN, op. cit, p. 136.
174
Idem. Ibidem. p. 143.
175
VITA. O liberalismo…, op. cit., p. 108.
84
princípio igualitário, e, ainda, construir uma doutrina que fosse sensível à
responsabilidade individual e insensível às circunstâncias. Nesse ponto, a teoria
capability-based de SEN pode ser interpretada de duas formas distintas.
Primeiramente, conforme o próprio SEN afirma, a efetivação das
functionings , com liberdade de escolha, garante a “liberdade de bem-estar
176
”.
Ora, se se interpretar o bem-estar” como algum estado emotivo, tal como a
felicidade, a teoria de SEN estará impregnada com o mesmo subjetivismo que
todas as demais teorias igualitárias do bem-estar e, portanto, tudo o que foi dito
no Capítulo 01 acerca da igualdade de bem-estar servirá para a teoria de SEN. O
foco de SEN nas capacidades, no entanto, pode ser compreendido de outra
forma, conforme assevera DWORKIN:
O governo deve esforçar-se em assegurar que nenhuma diferença no
grau em que as pessoas não são igualmente capazes de realizar
felicidade e outras realizações “complexas” devem ser atribuíveis a
diferenças em suas escolhas e personalidade e escolhas e
personalidade de outras pessoas, não a diferenças em recursos
pessoais e impessoais que possuem. Se nós entendermos a igualdade
de capacidade dessa forma, ela não é uma alternativa à igualdade de
recursos, mas apenas o mesmo ideal exposto em outra terminologia
177
.
Embora DWORKIN interprete o ideal da igualdade de capacidades de
forma a compatibilizá-lo com a igualdade de recursos, de se reconhecer que
não foi essa a intenção de SEN. De fato, existe uma peculiaridade na teoria de
SEN que deve ser considerada: a sensibilidade às diferenças interpessoais.
Talvez por ser um teórico com origem em um país em desenvolvimento (Índia),
o economista demonstra uma preocupação com os aspectos físicos e biológicos
da desigualdade, eis que, para a realidade em que desenvolveu sua teoria, esse
176
SEN, op. cit., p. 80.
177
Government should strive to insure that any differences in the degree to which people are no equally
capable of realizing happiness and the other “complex” achievements should be attributable to differences in
their choices and personality and the choices and personality of other people, not to differences in the personal
and impersonal resources they command. If we do understand equality of capabilities in that way, it is not an
alternative to equality of resources but only that same ideal set out in a different vocabulary”. DWORKIN.
Sovereign…, op. cit., p. 303.
85
fato é deveras importante. Por sua vez, tanto DWORKIN, quanto RAWLS,
observam realidades muito diferentes, nas quais as diferenças recursais são o
grande fator de desigualdade. Assim, nesse aspecto, a crítica de SEN mostra-se
relevante: não é apenas o aspecto econômico (ou recursal) da igualdade que
importa, havendo outros fatores que também influenciam na determinação
normativa do princípio igualitário abstrato.
No entanto, a essência da teoria dworkiniana da igualdade de recursos não
é afetada pela crítica de SEN. Pelo contrário, o enfoque das capacidades deve
ser visto como um refinamento necessário para a igualdade de recursos. Na
minha opinião, as diferenças nos conjuntos capacitários, ou seja, na capacidade
de realizar functionings leva a uma mitigação no princípio da responsabilidade
individual. Fatores que alteram a capacidade, como a pobreza e a subnutrição,
podem alterar de forma consideravel a liberdade de escolha dos indivíduos,
levando-os a utilizar o seu conjunto recursal de uma forma diversa do que faria
se tivesse no pleno gozo de sua capacidade. Nessa situação, o princípio pelo
qual “cada um deve pagar o preço pelas decisões que tomou no decorrer da
vida” deve ser balizado com o deficit capacitário do indivíduo, de modo a dar
mais relevância para outros princípios, também caros ao liberalismo, como o do
valor intrínseco da pessoa humana.
Equivoca-se SEN, no entanto, ao sustentar que a igualdade de recursos
dworkiniana preocupa-se meramente com os meios para a concretização da
liberdade, deixando de lado a questão da efetiva realização da liberdade em si.
Conforme exposto, a defesa dworkiniana da igualdade representa, também, uma
defesa da liberdade,visto que DWORKIN pretende reconciliar esses dois ideais
políticos. Embora o filósofo norte-americano reconheça que se houver um
conflito genuíno entre a igualdade e a liberdade, esta deverá ceder àquela, ele, ao
mesmo tempo, constrói uma teoria igualitária em que a liberdade não apenas não
conflita com a igualdade mas, antes, é o pressuposto desta.
86
Somente com a garantia de certas liberdades fundamentais é que a
igualdade de recursos poderá se concretizar, uma vez que a manutenção da
justeza da distribuição recursal feita no leilão hipotético exige um sistema de
liberdades e restrições. Assim, tanto é verdade que os recursos são, na teoria
dworkiniana, um meio para a liberdade, como também o é que a liberdade faz-se
necessária para a garantia da igualdade.
Uma vez garantida a liberdade, e, ainda, distribuída de forma equânime os
recursos sociais, os indivíduos poderão escolher e realizar o tipo de vida que
desejam. Essa questão, no entanto, relaciona-se com o tema do viver bem, e será
tratado no próximo Capítulo.
87
CAPÍTULO III
COMUNIDADE E ÉTICA
NO PENSAMENTO DWORKINIANO
O liberalismo igualitário dworkiniano baseia-se em três conceitos
fundamentais: i) no entendimento de que a igualdade deve ser mensurada a
partir dos recursos que cada um possui no decorrer de sua vida; ii) na concepção
da liberdade como valor complementar à igualdade; e iii) no conceito de
comunidade liberal. Este último é, sem dúvida, um conceito fundamental na
teoria política de DWORKIN. Isso porque é possível identificar, na forma como
o autor norte-americano concebe a comunidade liberal, a incorporação de muitas
críticas feitas pela corrente comunitarista aos liberais, e ainda, o reconhecimento
de que o liberalismo não pode ignorar certos valores comunitários. Para a
compreensão do aspecto sui generis com que DWORKIN desenvolve seu
conceito de comunidade liberal, faz-se necessária a exposição de alguns
argumentos utilizados por CHARLES TAYLOR acerca do debate existente
entre liberais e comunitaristas.
Segundo TAYLOR, tanto liberais quanto comunitaristas possuem
“diferenças genuínas”, bem como “propósitos entrelaçados
178
”. Com efeito,
existem aspectos teóricos coincidentes entre os defensores de ambas as
correntes, mas uma nota diferencial que divide o debate, qual seja, a visão
acerca da neutralidade moral: enquanto os autores liberais defendem a
neutralidade da autoridade estatal com relação às concepções de boa-vida, os
comunitaristas entendem que a tolerância liberal ameaça certos valores
essenciais à vida comunitária. Cumpre salientar, todavia, que autores de ambas
178
TAYLOR. Argumentos..., op. cit., p. 197.
88
as correntes utilizam argumentos e paradigmas diferentes para defender a
neutralidade (ou o perfeccionismo) moral.
Para uma compreensão ordenada das razões expostas por ambas as
correntes, TAYLOR distingue dois argumentos de espécies diferentes, aos quais
denomina de questões ontológicas e com questões de defesa. Sob o prisma
ontológico, ou seja, da explicação das coisas reais e da deliberação, TAYLOR
identifica autores que defendem a primazia da parte sobre o todo (atomismo)
daqueles que sustentam que o todo deve ser valorizado em detrimento das partes
(holismo)
179
. Já com relação às questões de defesa, que dizem respeito às
escolhas que devem (ou não) ser realizadas pelos indivíduos, o dualismo diz
respeitos àqueles que priorizam o indivíduo à comunidade (individualistas), e os
coletivistas, que defendem a primazia da vida comunitária com relação ao
indivíduo
180
.
TAYLOR assevera, ainda, que as questões ontológicas e as questões de
defesa não possuem uma relação de determinação, ou seja, um autor pode
defender uma posição ontológica atomista e sustentar questões de defesa
coletivistas, da mesma forma que é possível um autor individualista ter um
campo de visão da comunidade holista. Essa distinção entre questões ontológica
e questões de defesa será importante para o entendimento da comunidade liberal
dworkiniana, visto que o autor em análise utiliza um paradigma holista mas
desenvolve uma doutrina individualista
181
.
O presente capítulo, assim, será desenvolvido a partir dos argumentos
comunitaristas contra a tolerância liberal, para posteriormente demonstrar a
forma como DWORKIN aproveita esses argumentos e constrói a sua defesa do
republicanismo cívico liberal, relacionando a tolerância liberal com a questão da
179
TAYLOR, op. cit., p. 197.
180
Idem. Ibidem. p. 199 e ss.
181
Devo essa relação entre holismo e individualismo na teoria de Dworkin às aulas do Professor Cícero Araújo
no curso de Filosofia e Teoria do Direito na Sociedade Brasileira de Direito Público.
89
boa-vida para, ao final, analisar os dois princípios éticos que fundamentam a
teoria política dworkiniana.
3.1. OS ARGUMENTOS PELO PERFECCIONISMO MORAL
A doutrina liberal, em especial a desenvolvida no período pós-guerra,
possui um traço comum: a neutralidade moral. Mas o que se entende por
neutralidade moral? Segundo RICHARD BELLAMY, a neutralidade defendida
tanto pelos liberais neoconservadores de direita, como NOZICK ou HAYEK,
quanto pelos igualitaristas, em especial DWORKIN e RAWLS, significa que “a
única doutrina aceitável é aquela que considera, com imparcialidade, os valores
e projetos de pessoas diferentes
182
”.
Considerando de forma detida o desenvolvimento da doutrina liberal nos
pensamentos de RAWLS e DWORKIN, verifica-se que ambos partem de um
paradigma comum, a saber, o construtivismo. Define RAWLS que “o
construtivismo político é uma perspectiva sobre a estrutura e o conteúdo de uma
concepção política
183
”, que visa à construção dos princípios políticos
fundamentais que irão definir a estrutura básica da sociedade
184
. Trata-se,
portanto, de um instrumento teórico para a elaboração de valores políticos que
não tem por objetivo a identificação de valores absolutos, ou se consolidar como
doutrina abrangente, mas antes construir uma base comum valorativa (common
ground) na sociedade, a partir da qual serão desenvolvidas as concepções de
bem no seio social. A neutralidade da doutrina construtivista é evidente, pois
“tenta evitar a oposição com qualquer doutrina abrangente
185
”.
182
BELLAMY, Richard. Liberalismo e Sociedade Moderna. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: Unesp,1994,
p. 385.
183
RAWLS, John. O Liberalismo Político. Lisboa: Presença, 1997, p. 105.
184
Ao se referir a “estrutura básica da sociedade” RAWLS se refere à forma como as instituições (ou seja, a
Constituição Política, e os arranjos sociais e econômicos) distribuem os direitos fundamentais e os deveres
sociais, bem como determina a divisão das vantagens obtidas com a cooperação social. CF. RAWLS. A
Theory..., op. cit.. p. 06.
185
RAWLS. O liberalismo..., op. cit., p. 109.
90
O construtivismo é, sem dúvida, o arcabouço teórico com que DWORKIN
desenvolve a sua teoria política, ficando explicita a sua neutralidade sobre as
concepções de bem em diversos escritos, em especial na construção dos dois
princípios constitutivos da dignidade humana em seu último livro
186
. Os
principais argumentos de DWORKIN em defesa da tolerância liberal
encontram-se um artigo denominado Liberal Community”, publicado em 1991
na “University of California Law Review, e que atualmente integra o Capítulo
05 do livro Sovereign Virtue”. Nesse artigo o autor norte-americano expõe os
argumentos de quatro correntes comunitaristas que defendem a homogeneidade
moral e os refuta, mostrando como a tolerância liberal, à luz de sua teoria da
igualdade de recursos, é indispensável para a compreensão da sociedade norte-
americana
187
.
3.1.1.
O
ARGUMENTO MAJORITÁRIO
A primeira corrente comunitarista que DWORKIN analisa é a que
defende que a moralidade de uma determinada comunidade deve ser elaborada a
partir da vontade da maioria. Assim, havendo discordância substancial na
comunidade, esse conflito deverá ser resolvido de acordo com a vontade
majoritária, utilizando o critério “o vencedor leva tudo” (winner-take-all), já que
a decisão coletiva determinará que um valor ético, endossado pela maioria, seja
escolhido em detrimento de outro valor, defendido pela minoria
188
.
Mas será justo deixar com que a vontade da maioria imponha um valor
moral a uma minoria? DWORKIN considera injusta tal imposição, e demonstra
o erro em que incorre a doutrina majoritária a partir de sua argumentação sobre a
justiça distributiva. Segundo o autor norte-americano, a idéia fundamental da
186
Vide. DWORKIN, Ronald. Is democracy…, op. cit.. pp. 09 e ss.
187
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 211.
188
Idem. Ibidem. p. 213.
91
igualdade, independentemente da doutrina adotada, é a de que os indivíduos
devem ter uma parcela justa de influência na decisão política que decide sobre a
distribuição dos recursos sociais. Se considerarmos a igualdade de recursos, a
argumentação a partir do leilão igualitário expressa exatamente esta
preocupação
189
. A questão que se coloca, então, é se este raciocínio, que tem por
base a esfera econômica da sociedade pode ser aplicado na esfera ética.
DWORKIN entende positivamente, defendendo, inclusive, que as esferas
econômica e ética da comunidade não são plenamente independentes, visto que
se influenciam mutuamente. Nesse diapasão, o critério de justiça, que determina
que seja reservada igual parcela de influência dos indivíduos na questão da
distribuição dos bens sociais, pode ser adaptado para a esfera ética, no sentido
de que os indivíduos devem ter uma justa interferência na determinação dos
valores sociais, o que fere de morte a essência da premissa majoritária
190
.
A premissa majoritária, todavia, não é totalmente descartada por
DWORKIN, uma vez que os defensores dessa corrente desenvolvem um
importante conceito que é apropriado pelo autor norte-americano: a concepção
de que a comunidade possui um ambiente ético. Com efeito, o erro do
argumento majoritário não reside na idéia de que a comunidade possui certos
princípios éticos que permeiam o todo social, mas sim no fato de conferir à
maioria o poder de decidir, de forma absoluta, quais valores deverão prevalecer
na comunidade. O que a concepção liberal de DWORKIN refuta é, assim, a
possibilidade de imposição de certos valores pela maioria, e não a existência de
um “ambiente ético” na comunidade.
3.1.2.
O
ARGUMENTO PATERNALISTA
O segundo argumento comunitarista contra a tolerância liberal se baseia
em uma visão paterinalista da comunidade, e constitui, segundo DWORKIN,
189
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p.214.
190
Idem. Ibidem. p. 215.
92
uma corrente comunitária que coloca o todo social em uma posição ativa na
conformação do bem-estar dos indivíduos da comunidade
191
. Existem, todavia,
duas formas de interesses que influenciam o a formação da personalidade
individual.
O primeiro conjunto de interesses pode ser denominado interesses
volitivos”, e se caracterizam por serem interesses que, embora façam parte da
personalidade, não o qualificados como interesses que realmente acrescentam
algo que possa ser objetivamente valorado como essencial para a vida da pessoa.
Trata-se, na verdade, de meras preferências pessoais, mas que não gozam de
importância coletiva, como por exemplo, gostar de futebol, torcer para
determinado time, querer desenvolver determinada aptidão física, etc. Em
contraposição aos interesses volitivos, encontram-se os interesses críticos, que,
ao contrário daqueles, são efetivamente reconhecidos como interesses que
influenciam, de forma objetiva, na forma como o indivíduo avaliará a sua
vida
192
. Os interesses críticos são, sem dúvida, valores enraizados no seio da
comunidade, como por exemplo o amor pelo filho, a importância da esfera
religiosa na vida pessoal, etc. Assim, a tulo exemplificativo, se o Brasil ganha
uma Copa do Mundo, um brasileiro pode dizer que um interesse pessoal foi
atendido, mas nem por isso poderá afirmar que sua vida tem mais valor por
causa desse fato. Agora, se este mesmo brasileiro conseguir resolver uma
divergência familiar e se aproximar de sua filha, esse fato, por si só, pode ser
considerado um avanço valorativo em sua vida.
Nesse contexto, o argumento paternalista pressupõe que o Estado tem o
dever de impor determinados valores críticos aos indivíduos, que, por sua
vez, têm o dever de aceitá-los, para que suas vidas tenham mais valor. A
homogeneidade moral é vista, assim, como um avanço social, que certas
191
DWORKIN. Sovereign..., op. cit, p. 216.
192
Idem. Ibidem. p. 216-217.
93
condutas indesejadas são expurgadas da comunidade. O problema, no entanto,
está na natureza da aceitação desses valores pelo indivíduo. DWORKIN sustenta
que os valores críticos são, sem dúvida, fundamentais para a ética individual,
mas que eles devem, todavia, serem aceitos de forma reflexiva
193
, ou seja, o
consentimento com esses valores devem ser resultados da escolha individual, e
não uma imposição através da força. Nesse sentido, o argumento paternalista, ao
defender o uso da máquina do Estado, e.g., o Direito Penal, para impor certos
valores, é auto-destrutivo
194
, haja visto que, ante a pretensão de fazer com que a
comunidade adote certos valores críticos, viola um princípio ético que é basilar,
a saber, o princípio da responsabilidade individual, segundo o qual os indivíduos
devem ser livres para escolher ao rumos de sua vida, e isso inclui os valores que
orientarão as suas escolhas pessoais.
Novamente, ao refutar o argumento paternalista, DWORKIN reconhece
mais um aspecto importante na doutrina comunitarista que não deverá ser
ignorado pelas doutrinas liberais, a saber, a existência de valores críticos que
deverão fundamentar a moralidade comunitária, ressaltando, todavia, que esses
valores deverão se coadunar com a tolerância liberal e com a responsabilidade
individual.
3.1.3.
O
ARGUMENTO DO INTERESSE PESSOAL
O terceiro argumento comunitarista analisado por DWORKIN sustenta
que a tolerância liberal “faz com que as comunidades sejam menos capazes de
servir às várias necessidades sociais de seus membros
195
. A atratividade da tese
do interesse pessoal está relacionada com o argumento segundo o qual a
193
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 218.
194
Nesse sentido. KYMLICKA. Filosofia política..., op. cit., p. 260.
195
makes communities less able to serve their members’various social needs.” DWORKIN. Sovereign…, op.
cit., p. 218.
94
tolerância liberal faz com que a comunidade não seja capaz de atender às
necessidades intelectuais dos cidadãos.
Pressupõe-se, assim, que a identificação de um indivíduo com a
comunidade depende de certos fatores (ou necessidades) intelectuais, como a
língua e a cultura, que exercem um papel fundamental na auto-identificação do
indivíduo enquanto ser humano
196
. Nesse contexto, a homogeneização moral
exerceria a função exatamente de atuar nessa esfera de conexão do indivíduo
com a comunidade. Para exemplificar tal situação, DWORKIN utiliza a imagem
de uma pessoa que é católica fervorosa e que possui como traço fundamental de
sua personalidade os valores católicos, de modo que a sua identificação
enquanto indivíduo está genuinamente relacionada com a comunidade
católica
197
.
Todavia, DWORKIN questiona se a moralidade que uma determinada
comunidade política compartilha tenha realmente essa ligação profunda com a
moralidade pessoal. Pelo contrário, o autor norte-americano diz que a mudança
de certos princípios da moral social não irá afetar as crenças pessoais de um
indivíduo de forma tão profunda, de modo que, por exemplo, um indivíduo
católico não deixará de acreditar nos dogmas de sua religião somente porque
uma comunidade passa a adotar uma política de tolerância sexual. Outrossim,
DWORKIN acha implausível esse efeito devastador sobre a personalidade que
esse argumento pretende atribuir à moralidade de uma comunidade, que é
possível que uma pessoa reflita sobre as mudanças dos paradigmas morais que
ocorreram na comunidade, e as aceite (ou rejeite) de forma racional, sem que
isso abale a sua personalidade ou sua auto-identificação
198
.
DWORKIN, assim, considera que o argumento do interesse pessoal traz à
tona uma premissa ética fundamental: a de que certos valores éticos são
196
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 219-220.
197
Idem. Ibidem. p. 220.
198
Idem. Ibidem. pp. 219-221.
95
importantes para a auto-identificação do indivíduo com a comunidade, bem
como devem servir de “ancora” para o desenvolvimento de uma atitude crítica
na escolha dos preceitos morais. Todavia, e aqui reside o equívoco no
argumento ora em análise, o desenvolvimento dessa atitude crítica não
pressupõe a homogeneidade moral, mas, pelo contrário, pode se desenvolver de
forma muito mais rica em um ambiente de pluralidade moral
199
.
3.1.4.
O
ARGUMENTO DO
C
OMUNISTARISMO
R
EPUBLICANO
C
ÍVICO
O quarto argumento comunitarista analisado por DWORKIN é, sem
dúvida, o mais forte e atraente argumento contra a tolerância liberal. O
Comunitarismo Republicano Cívico (conforme denominação proposta por
DWORKIN) parte da seguinte assertiva: a distinção entre o bem-estar individual
e o bem-estar comunitário é equivocada. Propõe, em contrapartida, que a vida
dos indivíduos e a da comunidade como um todo são integradas, de modo que o
bem-estar de uma e de outra tem uma interdependência recíproca. Os
defensores desse argumento, portanto, “adotam a mesma atitude com relação à
saúde moral e ética da comunidade e à sua própria
200
. Sem dúvida, essa forma
de comunitarismo integrativo é particularmente importante para o pensamento
político dworkiniano, que é a partir do mesmo que DWORKIN desenvolve a
sua concepção liberal de comunidade. Isso porque o filósofo norte-americano
parte do princípio de que a principal premissa do Comunitarismo Republicano
Cívico está correta, qual seja, a de que a comunidade tem, de fato, uma “vida
comunitária” (communal life), e que o sucesso ou insucesso da mesma
determina o bem-estar dos indivíduos que a compõem.
199
DWORKIN. Sovereign…, op. cit.,pp. 221-222.
200
take the same attitude toward the moral and ethical health of the community as they do toward their own.
Idem. Ibidem. p. 223.
96
Mas o que seria a vida comunitária? Cumpre instar, em primeiro lugar,
que o argumento da integração não parte do princípio de que os indivíduos são
altruístas e de que atuam socialmente em prol do bem comum tendo em vista o
interesse alheio. Pelo contrário, trata-se de uma concepção egoísta, no sentido de
que os indivíduos visam, primeiramente, o seu bem-estar, e, visando atingir o
sucesso individual, acabam por atuar também em prol da comunidade, vez que,
conforme dito, o sucesso de um e de outro estão interligados
201
. Há, todavia,
uma peculiaridade na ação individual em uma comunidade integrada: os atos
individuais não devem ser considerados separadamente, mas sim como
pertencentes a um todo complexo, de forma que a avaliação da responsabilidade
de cada ato deve ser analisada holisticamente, considerando os efeitos do mesmo
perante a comunidade.
A lógica, na comunidade integrada, não deve partir do indivíduo para a
comunidade, mas do todo para o indivíduo, sendo que a coletividade prevalece
sobre o individual. É necessário, no entanto, salientar que, ontologicamente, a
comunidade não é vista como um ente metafísico que é, em si, mais importante
que o indivíduo. Com efeito, a prevalência da comunidade sobre o indivíduo
decorre de uma questão fática, ou seja, das atitudes e práticas observadas na
sociedade, e o de uma suposta natureza superior da comunidade
202
. Ademais,
são exatamente esses atos e atitudes que se desenvolvem, de forma consciente e
cooperativa, em prol do objetivo comum que forma a “vida comunitária”.
Analogicamente, da mesma forma que as atitudes individuais formam a vida da
comunitária, os atos formais dos entes políticos constituem a “vida política da
comunidade”.
O argumento da integração possui, de fato, o mérito de fazer a importante
distinção entre “vida comunitária da comunidade” e “vida política da
201
I DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 224.
202
Idem. Ibidem. p. 226.
97
comunidade”. Erra, todavia, na limitação a ser dada a esses dois conceitos.
Segundo DWORKIN, o equívoco está na visão antropomórfica em que o
Republicanismo Cívico Comunitário incide, ao sustentar que a vida comunitária
abarca todos os aspectos da vida humana
203
. Conforme veremos, DWORKIN
constrói a sua concepção de comunidade liberal utilizando muitos aspectos do
argumento da integração, mas impondo os devidos limites aos conceitos de vida
comunitária da comunidade e vida política da comunidade.
3.2. O REPUBLICANISMO CÍVICO LIBERAL DE DWORKIN: A
COMUNIDADE LIBERAL.
Conforme dito na introdução do Capítulo, embora o pensamento político
de DWORKIN possa ser considerado liberal, ele não parte de uma percepção
ontológica atomista da comunidade. Pelo contrário, a sua concepção de
comunidade liberal é construída a partir das críticas comunitaristas, procurando
incorporar os valores comunitários que se coadunam com os preceitos liberais.
Isso faz com que ele tenha uma percepção holista da comunidade, no sentido de
reconhecer importância ética do reconhecimento da integração política proposta
pelos Comunitaristas Republicanos Cívicos. É nesse contexto que DWORKIN
afirma que “embora os liberais não tenham dado ênfase à importância ética da
integração, o reconhecimento da sua importância não ameaça, mas antes abarca
os princípios liberais
204
”.
Como, então, conciliar os princípios liberais, em especial a neutralidade
sobre as concepções de boa-vida, com o argumento da integração política da
comunidade? Para DWORKIN, os argumentos comunitaristas anteriormente
analisados contêm elementos éticos que devem ser incorporados à teoria liberal.
203
DWORKIN. Sovereign…, op. cit.,p. 228 e ss.
204
although liberals have not emphasized the ethical importance of integration, recognizing its importance
does not threaten, but rather nourishes, liberal principles.” Idem. Ibidem. p. 231.
98
Nesse sentido, o argumento da integração fornece a importante idéia de que o
sucesso da vida individual depende do sucesso da comunidade, e DWORKIN
aceita esse argumento. Todavia, para incorporá-lo à teoria liberal, o argumento
integrativo deve ser visto de forma limitada. Assim, a questão a ser respondida
pelos liberais é a seguinte: de que forma a vida comunitária e a vida individual
se integram? O argumento de DWORKIN consiste em que a vida coletiva da
comunidade deve se limitar à “vida política formal” , entendida como os atos
políticos formais proferidos pelas instituições políticas da comunidade
(Executivo, Legislativo e Judiciário). Dessa forma, DWORKIN reconhece que
os indivíduos em uma comunidade atuam de forma coletiva, visando um único
fim, mas limita essa atuação coletiva aos atos formais da comunidade. Nesse
sentido, conclui:
Esses atos políticos formais da comunidade como um todo devem ser
entendidos como o exaurimento da vida comunitária de um corpo
político, de modo que os cidadãos são entendidos como atuando
conjuntamente, como uma coletividade, apenas dessa forma
estruturada
205
.
DWORKIN, portanto, limita a atuação coletiva da comunidade aos atos
políticos, fazendo com que o sucesso ou insucesso da vida individual, enquanto
integrada com a comunidade, seja dependente desta apenas neste aspecto
formal. No que concerne ao prisma ético, o reconhecimento do valor
comunitário da integração tem uma conseqüência importante, que é fazer com
que o cidadão tenha uma preocupação maior com os rumos políticos da
comunidade, ou seja, a integração acarreta uma maior participação política na
comunidade. Outrossim, o argumento da integração permite o reconhecimento
de certos valores essenciais para o sucesso político da comunidade (e
conseqüentemente da vida individual), dentre eles o de que as instituições
205
These formal political acts of the community as a whole should be taken to exhaust the communal life of a
political body, so that citizens are understood to act together, as a collective, only in that structured way.
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 232.
99
devem tratar a todos com igual respeito e consideração
206
. No entanto, ao limitar
o argumento da integração aos atos formais da comunidade, DWORKIN permite
a conciliação entre os valores liberais da tolerância e da neutralidade com a
integração política. Portanto, constata-se que a comunidade liberal, nos termos
propostos por DWORKIN, é uma visão holista da comunidade, mas que
conserva os valores individualistas.
3.3. COMUNIDADE E BOA-VIDA
O liberalismo dworkiniano, nesse diapasão, possui uma nota
característica: a tentativa de conciliação de valores que, prima facie, são
conflitivos. Assim foi com o dualismo igualdade/liberdade e, novamente, ocorre
com o comunitarismo e a boa-vida. Sem dúvida, a própria idéia de comunidade
traz consigo uma noção de “vida comunitária”, atrelando o sucesso e felicidade
individuais necessariamente ao êxito comunitário. Por sua vez, a boa-vida
expressa os ideais de uma filosofia individualista, preocupada com o sucesso da
parte em detrimento do todo.
No entanto, DWORKIN preocupa-se em compatibilizar esse dois
conceitos com o fito de demonstrar, em primeiro lugar, a importância e
limitações da neutralidade liberal; em segundo lugar, que o liberalismo pode
conviver com valores éticos que, em um campo abstrato, guiam as ações
individuais, mas sem desvirtuar o princípio da responsabilidade individual, que é
a viga mestre da doutrina liberal; e, em terceiro lugar, DWORKIN dirige uma
206
Importante perceber que a neutralidade liberal sobre as concepções de boa vida, nos moldes propostos por
DWORKIN, significa que o governo, concretamente, não pode tomar uma posição valorativa acerca das
possibilidades éticas da comunidade concretamente. Todavia, no campo normativo (abstrato), a teoria liberal
deve reconhecer certos valores que deverão ser concretizados na comunidade. Segundo DWORKIN, três são os
valores éticos que devem ser considerados fundamentais pelo liberalismo: os dois princípios éticos que
compõem as dimensões da dignidade humana (o princípio da responsabilidade individual e do intrínseco valor da
vida humana) e um terceiro valor que é uma “questão de métrica ética”. Cf. DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p.
240.
100
crítica à filosofia cética, sustentando que existe uma “métrica ética” pela qual
podemos avaliar, objetivamente, o sucesso de nossa vida.
3.3.1.
O
CONCEITO DE BOA
-
VIDA
(T
HE
G
OOD
L
IFE
)
3.3.1.1. O “Modelo do Impacto” e a Ética Utilitarista
O que significa, em termos normativos, a boa-vida? Para DWORKIN,
existem duas interpretações possíveis do que significa a experiência ética do
viver bem. A primeira delas, à qual ele denomina de modelo do impacto”,
sustenta que boa é a vida que produz um impacto relevante para o restante da
humanidade, ou seja, a vida individual deve ser mensurada em função da
relevância das ações que a pessoa produziu para o resto do mundo, de modo que
quanto mais relevante as conseqüências que a atuação do indivíduo gerou para a
comunidade, maior o valor ético de sua vida
207
.
Trata-se de um modelo que analisa a eticidade sob um prisma teleológico,
conferindo às conseqüências das ações individuais na comunidade de forma
objetiva. Isso significa que as atitudes humanas são avaliadas objetivamente pela
comunidade, de forma independente da opinião do indivíduo que as produziu,
tendo como parâmetro o impacto da ação individual para a comunidade.
A justiça, para essa modelo, não é parâmetro para o viver bem, visto que
uma pessoa pode, agindo injustamente, acarretar um impacto muito maior na sua
comunidade, e, dessa forma, ter uma vida muito mais valiosa “eticamente” do
que o indivíduo que atuou sempre de forma justa, mas que teve uma vida
insignificante. Um aspecto importante deve ficar sublinhado acerca do modelo
do impacto: defender esse modelo significa compreender que os valores são
transcendentes e que não dependem da avaliação subjetiva. Ou seja: a atuação
impactante na comunidade é vista como um valor transcendente. A auto-
207
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 252.
101
avaliação, nesse contexto, fica prejudicada, eis que, mesmo que o indivíduo
entenda que sua vida é um fracasso, mesmo assim, se suas ações causaram
impacto na sociedade, ela será considerada uma vida bem sucedida, já que
parâmetro utilizado é estritamente objetivo.
O utilitarismo, certamente, pode ser interpretado à luz do modelo do
impacto, uma vez que o princípio da utilidade é visto, por essa corrente
filosófica, como um valor transcendente. De fato, a doutrina utilitarista, em sua
forma clássica, defende que uma sociedade está corretamente ordenada e,
conseqüentemente, é justa se as suas “instituições são ordenadas de modo a
atingir a maior rede de satisfação somada entre todos os indivíduos pertencentes
a ela
208
”. A busca pela satisfação e pela felicidade é vista, para teóricos
utilitaristas como BENTHAN e MILL, como um valor moral que resume os
demais, e, portanto, deve servir de parâmetro avaliativo para a conduta
individual. Nesse sentido, “o credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior
felicidade como fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida
em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o
contrário da felicidade
209
”. Nota-se, assim, que o “impacto”, compreendido
como “busca da maximização da felicidade ou do prazer”, é um valor objetivo
para pautar a conduta humana.Mas será o modelo do impacto compatível com a
igualdade de recursos? DWORKIN entende que uma comunidade que aceita o
princípio igualitário abstrato deve, por conseguinte, compreender a boa-vida sob
um prisma diverso do que prega esse modelo.
Na ótica da igualdade de recursos, doutrina que é anti-utilitarista por
excelência, a relação existente entre indivíduo e comunidade é complexa.
Complexa no sentido de não ser possível dissociar, plenamente, o êxito
individual do coletivo, e, ainda, os valores éticos (comportamento individual), e
208
RAWLS. A Theory..., op. cit., p. 20.
209
MILL, John Stuart. A Liberdade Utilitarismo. Tradução: Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 187.
102
a justiça política (comportamento coletivo). O pensamento dworkiniano,
conforme dito, adota um paradigma de complexidade, que, parafraseando
MORIN, não dissocia o uno e o múltiplo, mas sim como o uno pode ser ao
mesmo tempo múltiplo. No contexto da teoria política de DWORKIN isso se
traduz pela adoção de um paradigma holístico, que procura observar como o
individual e o coletivo se influenciam mutuamente. A influência do pensamento
Grego, notadamente de Platão, aqui, é clara.
3.3.1.2. Igualdade de recursos e boa-vida: o “Modelo do Desafio
3.3.1.2.1.Descartes e o surgimento do conceito de subjetividade humana
Ressalta-se, preliminarmente, que carecia na filosofia grega o conceito de
subjetividade humana. No brilhante escrito de HEIDEGGER
210
acerca da
relação existente entre o pensamento Antigo e o hegeliano, o filosofo
existencialista ressalta o fato de que apenas a partir de DESCARTES, quando
em seu “Discurso do Método” (1637) afirmou je pense, donc je suis” (penso,
logo existo), houve a dissociação da vida política, que se dava no espaço político
representado pela polis grega, do espaço privado, individual, surgindo a
subjetividade humana. Nesse sentido, HEIDEGGER transcreve a interessante
conclusão de HEGEL de que o homem grego “é certamente um sujeito, mas não
se coloca como tal
211
”. Conclui HEIDEGGER, portanto, que a antítese entre o
subjetivo e o objetivo não se dava de forma segura antes da filosofia cartesiana,
de modo que havia apenas um pensamento abstrato, preocupado com a essência
em si, em não com a concretude do pensamento: para HEGEL, o estado da
consciência grega é o estado da abstração”.
210
HEIDEGGER, Martin. Hegel and the Greeks. Disponível em http://www.morec.com/hegelgre.htm. Acesso
em 06.10.08.
211
“…is certainly a subject, but he has not posited himself as such" apud HEIDEGGER, Martin. Hegel and the
Greeks. Disponível em http://www.morec.com/hegelgre.htm. Acesso em 06.10.08.
103
Dessa forma, o espaço político e o espaço individual, no pensamento
platônico, se conectam de uma forma muito peculiar, visto que ambas as
dimensões (a política e a individual) são indissociáveis. A busca pela essência
da justiça no primeiro livro de “A República”, nesse contexto, se mediante a
investigação do que seria a justiça na polis para, num segundo momento, se
utilizar esse conceito na justiça individual. A esse respeito, ensina MICHEL
VILLEY que, para PLATÃO “o mesmo equilíbrio interior que constitui a justiça
no indivíduo (...) faz a justiça na polis. As duas dimensões são indissociáveis
(grifo no original)
212
.
A justiça platônica, nesse sentido, deve ser um ideal socialmente útil e,
ainda, constituir um bem supremo inerente à alma humana. Trata-se, assim, da
síntese do desenvolvimento da idéia de que a justiça se manifesta,
concomitantemente, na alma do indivíduo e no conjunto do Estado, in verbis:
A íntima conexão entre o Estado e a alma do Homem insinua-se
desde o primeiro instante pelo modo curioso como Platão aborda o
tema do Estado. A julgar pelo título da obra, pensar-se-á que o Estado
será finalmente proclamado como a verdadeira e fundamental
finalidade da longa investigação sobre a justiça. Mas Platão trata esse
tema pura e simplesmente como um meio para um fim, e o fim é pôr
em relevo a essência e a função da justiça na alma do Homem. Visto
que a justiça existe tanto na alma do indivíduo como no conjunto do
Estado, é evidente que neste quadro muito maior, ainda que mais
distante, se poderá ler a essência da justiça em sinais mais vultuosos e
mais claros, por assim dizer, que na alma do homem individual
213
.
Para utilizar a terminologia dworkiniana, podemos dizer que o
pensamento platônico concebe o “atuar de forma justa” como um interesse
crítico, ou seja, como um parâmetro “rígido do viver bem”. Rígido porque é
requisito sine qua non para atingir a felicidade. A forma sui generis como Platão
concebe a dicotomia polis/indivíduo influenciou o pensamento dworkiniano, em
212
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. Tradução :Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 27.
213
JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Tradução: Artur M.Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 762.
104
especial no tocante à concepção de boa-vida e de comunidade. Primeiramente,
consoante dito acima, o liberalismo de DWORKIN, apesar de individualista,
reconhece a importância da comunidade e dos valores comunitários. Outrossim,
da mesma forma como Platão relaciona a prática da justiça na polis e o viver
bem
214
, o pensador norte-americano não dissocia o sucesso da vida individual, da
justiça. Pelo contrário, DWORKIN, seguindo a linha do pensamento platônico,
pretende conceber o viver bem em conjunto com a justiça distributiva, entendida
como concretização do ideal normativo da igualdade de recursos.
3.3.1.2.2. O Modelo do Desafio: a justiça como métrica do viver bem
A interpretação da boa-vida enquanto mensuração do impacto que as
atitudes individuais acarretam na sociedade não se coaduna, nesse sentido, com
o ideal da igualdade de recursos, eis que não permite essa conexão entre a ética e
justiça, ou seja, o atuar com retidão com o tratamento igualitário. Para
DWORKIN, o impacto não é a métrica adequada para a aferição do êxito
individual, sendo necessário, para tanto, um modelo que abranja a dimensão
histórico-valorativa da ética individual, e, ainda, que coloque em relevo a
integridade ética, ou seja, a conexão entre os valores individuais e a
coletividade.
A métrica do viver bem, portanto, deve ser, nas palavras de DWORKIN,
“uma performance”, ou seja, “uma resposta correta a um determinado
desafio
215
”. O modelo do desafio acarreta, dessa forma, uma série de
conseqüências teóricas distintas daquelas trazidas pelo modelo do impacto. A
214
Nesse sentido, explica EDSON BINI: “Para Platão, um entrelaçamento e uma afinidade entre os atributos
intelectuais, morais e existenciais: o indivíduo genuinamente inteligente é bom, justo, corajoso, venturoso,
amigo, sábio e cidadão cumpridor das leis do Estado. Em última análise, o ideal de humanidade é o homem
detentor de uma somatória harmoniosa de virtudes, que é uma espécie de virtude total. É por isso que Sócrates
insiste em aproximar e nivelar as qualidades, conduzindo o interlocutor a reconhecer que é impossível que o
indivíduo justo não obtenha com isto proveitos e uma vida feliz.” PLATÃO. A República (Da Justiça).
Tradução: Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2006, p. 77, nota.53.
215
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., pp. 253 e ss.
105
destacar, primeiramente, a dimensão histórica inerente a esse modelo. Em
diversas passagens do Capítulo 6 de Sovereign Virtue”, DWORKIN assevera
que somente se pode avaliar qual o desafio a ser vencido por um determinado
indivíduo, se se tiver em mente as circunstâncias históricas em que ele está
situado, uma vez que estas funcionarão como parâmetros avaliativos do êxito
com que ele reagiu aos desafios de sua vida.
Como dito acima, existem, para DWORKIN, parâmetros do viver bem
que são rígidos, que estabelecem condições essenciais para uma boa
performance em uma determinada situação, ao passo que outros parâmetros são
suaves, que espelham circunstâncias cuja inobservância, embora seja
importante, não acarreta, necessariamente, o fracasso do indivíduo perante um
determinado desafio. Nesse contexto, pergunta-se: será correto afirmar,
conforme o faz Platão, que a justiça é condição essencial para o viver bem?
Como essa concepção platônica de boa vida deve ser compreendida no
pensamento igualitarista dworkiniano e, assim, qual a influência da justiça, no
pensamento dworkiniano, enquanto parâmetro para o viver bem?
DWORKIN afirma a justiça platônica é apreendida como um parâmetro
rígido do viver bem, de tal forma que “nada pode redimir uma vida destruída
pela desgraça de viver em um Estado injusto
216
”. Todavia, embora também
busque uma aproximação da justiça como parâmetro da boa vida, DWORKIN
entende que não é adequado entendê-la como parâmetro rígido, uma vez que
embora uma pessoa se sustente com recursos obtidos injustamente não consiga a
plenitude do viver bem, “sua vida não é, entretanto, automaticamente sem valor,
e poderia ser uma vida muito boa
217
”.
216
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 266.
217
Idem. Ibidem. p. 266. Peço vênia, nesse ponto, para discordar de DWORKIN. Não entendo ser possível
defender a concretização plena do princípio igualitário abstrato, praticamente de forma axiomática e, ao mesmo
tempo, sustentar que a justiça não é um parâmetro rígido do viver bem. Sem embargo, com relação a esse ponto,
DWORKIN entra em contradição, posto que admite que uma pessoa possa ter uma vida valiosa, embora tenha
atuado de forma injusta, o que aproxima a sua concepção de modelo do desafio com o modelo do impacto que
ele tanto critica.
106
A justiça constitui, para DWORKIN, um parâmetro suave do viver bem,
sendo os recursos o “parâmetro normativo para definir o desafio da vida, e a
justiça entra na ética quando indagamos como os recursos devem figurar na
compreensão que as pessoas têm do desafio
218
”. Os recursos, assim, influenciam
na constituição das circunstâncias fáticas que definirão a resposta adequada para
um desafio. Exercem, nesse diapasão, um papel ético, atuando de forma decisiva
na avaliação subjetiva do sucesso individual. No modelo do desafio cabe ao
indivíduo analisar se a sua existência foi plena, quer dizer, se enfrentou da
melhor forma possível, com os recursos que possui, o desafio que sua vida o
proporcionou, atingindo a integridade ética, o que ocorre exatamente quando o
indivíduo vive com a convicção que a sua vida, em seus aspectos centrais, é a
apropriada, que nenhuma outra vida que ele poderia ter vivido seria uma
resposta melhor aos parâmetros de sua situação ética corretamente entendida
219
”.
A integridade ética tem que ser entendida como uma interação entre os
valores comunitários, construídos historicamente na comunidade em que o
indivíduo se situa, e a ética individual: o indivíduo, reflexivamente, no uso de
sua razão, endossa genuinamente certos valores e os compreende como críticos
para a sua existência, servindo os mesmos para uma avaliação crítica da forma
como enfrentou os desafios apresentados em sua vida. É importante constatar,
nesse sentido, que DWORKIN pretende, ao sustentar que o indivíduo deve
buscar a integridade ética, aproximar a moralidade comunitária da ética
individual, mas sem permitir um predomínio daquela sobre esta, que cabe ao
indivíduo, em última instância, endossar ou não os valores que entender críticos
para a sua existência.
218
DWORKIN. Sovereign…, op. cit.,p. 273.
219
he lives out of the conviction that his life, in its central features, is an appropriate one, that no other life he
might live would be a plainly better response to the parameters of his ethical situation rightly judged.” Idem.
Ibidem. p. 270.
107
Para DWORKIN, a essência do que ele denomina de “liberalismo ético”
é, exatamente, a escolha, pelo indivíduo, dos valores éticos que servirão de base
para sua existência
220
. A teoria dworkiniana, dessa forma, consegue aliar uma
visão holística da comunidade, que compreende a complexidade inerente à
interação entre comunidade e indivíduo, mas sem perder a sua neutralidade. Pelo
contrário, ao reconhecer a importância do ambiente ético da comunidade, mas,
ao mesmo tempo, conferir ao indivíduo o reconhecimento dos valores que serão,
para ele, críticos, DWORKIN reafirma o princípio da tolerância liberal, sem,
todavia, conferi-lo caráter absoluto. É nesse contexto que DWORKIN
construirá o seu conceito de dignidade humana, compreendendo-o a partir de
dois princípios éticos que constituirão a base de toda a sua teoria igualitária.
3.4. AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE HUMANA
O modelo do desafio, na forma como preconizado por DWORKIN,
relaciona o viver bem com a justiça social, uma vez que a distribuição justa dos
recursos influenciará, de forma determinante, para a definição tanto dos valores
éticos que o indivíduo endossará em sua vida, quanto na forma como o
indivíduo avaliará a forma como reagiu aos desafios que a sua vida o
proporcionou.
No pensamento dworkiniano, no entanto, a busca pelo viver bem, questão
eminentemente ética, eis que concernente à busca pela melhor performance que
o indivíduo pode obter frente a um desafio que a vida lhe impõe, e a moralidade,
expressão relacionada com a forma que uma pessoa deve tratar a outra na
comunidade, unem-se nos princípios constitutivos da dignidade da pessoa
humana.
220
DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 277.
108
Para DWORKIN, existem dois princípios que constituem o common
ground da para a discussão dos assuntos importantes que surgem na comunidade
norte-americana. O primeiro princípio, ao qual DWORKIN denomina de
principle of intrinsic value” (princípio do valor intrínseco), preconiza que cada
“vida humana tem um tipo especial de valor objetivo
221
”. A idéia de que a vida
humana possui um valor intrínseco consiste na concretização, na teoria política
dworkiniana, da máxima kantiana segundo a qual “o homem, e, duma maneira
geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para
o uso arbitrário desta ou daquela vontade
222
. Nesse contexto, “o sucesso ou
derrocada de qualquer vida humana é, por si só, importante, algo que todos nós
temos razão para querer ou lastimar
223
”.
O princípio do valor intrínseco da vida humana representa, no contexto da
igualdade de recursos, uma mudança de foco: a igualdade, que era vista apenas
em termos recursais, passa a conter um aspecto valorativo diverso, no sentido de
que o respeito que o indivíduo possui pela própria vida não pode ser separado do
respeito que possui pela vida de seus concidadãos. Nesse contexto, DWORKIN
afirma que “você não pode agir de uma forma que denegue a importância
intrínseca de qualquer vida humana sem insultar a sua própria dignidade
224
”.
Mas a quem compete a concretização do valor intrínseco da vida humana?
Esse princípio, que expressa de forma muito clara tanto a igualdade, quanto a
fraternidade, é completado pelo princípio da responsabilidade individual,
segundo o qual “cada pessoa tem uma responsabilidade especial pela realização
do sucesso de sua própria vida, uma responsabilidade que inclui o exercício do
221
each human life has a special kind of objective value”. DWORKIN. Is Democracy…, op. cit., p. 09.
222
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 68.
223
“The success or failure of any human life is important in itself, something we all have reason to want or to
deplore”. DWORKIN. Is Democracy..., op. cit. p. 09.
224
you cannot act in a way that denies the intrinsic importance of any human life without na insult to your own
dignity”. Idem. Ibidem. p. 16.
109
julgamento acerca de qual vida será a de maior sucesso para ele
225
”. DWORKIN
atribui, nesse sentido, ao Estado o dever de prezar pela moralidade comunitária,
mas confere ao indivíduo o privilégio de escolher os princípios éticos que
guiarão a sua vida. Tal “privilégio” consiste, na verdade, em um direito / dever:
todos têm o direito à autodeterminação, mas, ao mesmo tempo, possuem o dever
de fazê-lo da melhor maneira possível.
Assim, para finalizar a exposição da teoria política de DWORKIN,
ressalta-se que os dois princípios constitutivos da dignidade da pessoa humana
representam a relação peculiar existente entre indivíduo e comunidade no
pensamento dworkiniano, eis que o princípio do valor intrínseco da pessoa
humana reflete a preocupação comunitária com o sucesso da vida de cada
cidadão, ao passo que o princípio da responsabilidade individual representa a
reafirmação dos dogmas da doutrina liberal, conferindo ao indivíduo o papel de
protagonista na conformação de sua personalidade, mas, ao mesmo tempo,
possui um aspecto obrigacional, que atribui ao cidadão o dever de otimização
existencial, como forma de garantir não apenas o sucesso da vida individual,
mas também da comunidade como um todo.
Aludidos princípios, por derradeiro, cimentam a defesa de DWORKIN de
que a igualdade e a liberdade não são ideais conflitivos, mas antes
complementares:
Eu não aceito esse suposto conflito entre a igualdade e a liberdade; eu
penso que as comunidades políticas, pelo contrário, devem encontrar
um entendimento de cada uma dessas virtudes que as mostre como
compatíveis, sem dúvida, que mostre cada uma como um aspecto da
outra. Essa é, também, minha ambição para os dois princípios da
dignidade humana
226
.
225
each person has a special responsibility for realizing the success of his own life, a responsibility that
includes exercising his judgment about what kind of life would be successful for him”. DWORKIN. Is
Democracy..., op. cit., p. 10.
226
I do not accept this supposed conflict between equality and liberty; I think instead that political communities
must find an understanding of each of these virtues that shows them as compatible, indeed that shows each as an
aspect of the other. This is my ambition for the two principles of human dignity as wellIdem. Ibidem. p. 11.
110
Uma vez expostos os principais conceitos do liberalismo igualitário de
DWORKIN, urge verificar a forma como os mesmos atuam em sua filosofia
jurídica, o que será feito no próximo Capítulo, no qual será analisada a crítica
dworkiniana ao positivismo e a forma como o filósofo norte-americano
relaciona a teoria política normativa com a interpretação construtivista do
direito.
111
CAPÍTULO IV
A FILOSOFIA DO DIREITO DWORKINIANA
O ensino do Direito no Brasil é inegavelmente influenciado pela doutrina
positivista, em especial nos moldes como a mesma foi desenvolvida por HANS
KELSEN. Conforme visto, ao afirmar que “a validade de uma ordem jurídica
positiva é independente da sua concordância ou discordância com qualquer
sistema de Moral
227
”, o pensador alemão estabeleceu um abismo entre a
compreensão do Direito enquanto Ciência, e a Moral. A idéia básica que
permeia as doutrinas positivistas é a de que o estudo do Direito deve basear-se
em parâmetros objetivos, de modo que não a possibilidade de se fundar a
análise de qualquer sistema jurídico em valores morais absolutos
228
. A relação
entre Direito e Moral, nesse contexto, é puramente formal: o Direito é Moral
enquanto norma de conduta, mas não por exprimir qualquer valor social
absoluto. O valor jurídico para KELSEN, nesse sentido, é justamente o fato de
as normas jurídicas constituírem normas de conduta, de modo que o objeto de
estudo da Ciência do Direito nada mais é, portanto, que norma
229
.
A doutrina positivista representa, sem dúvida, uma evolução da
compreensão, tanto filosófica, quanto prática, do Direito, e foi elaborada como
paradigma filosófico no final do século XIX necessário para a superação do
jusnaturalismo, que era considerado “metafísico e anti-científico
230
”. No entanto,
o positivismo jurídico acarretou a sacralização da forma jurídica e da autoridade
227
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito [tradução João Baptista Machado], 6.ªed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998, p. 76.
228
Nesse sentido, além de KELSEN, posiciona-se HART: “Meu relato é descritivo, na medida em que é
moralmente neutro e não tem propósitos de justificação” in O conceito..., op. cit., p. 301.
229
KELSEN. Idem. Ibidem. p. 74.
230
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do
Direito Constitucional no Brasil). Disponível em http://www.georgemlima.xpg.com.br/barroso.pdf, Acesso em
29.03.09, p. 05.
112
estatal, o que permitiu que fossem cometidas inúmeras atrocidades sob o manto
da permissão legal. Houve, assim, um fracasso político do positivismo,
especialmente com as derrotas da Itália fascista e da Alemanha nazista na 2
Guerra Mundial
231
.
Com o esgotamento do paradigma positivista houve o surgimento da
doutrina denominada de “pós-positivista”, a qual “busca ir além da legalidade
estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral
do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas
232
”. Ora, é exatamente
neste contexto que se insere o pensamento dworkiniano, objeto da presente
dissertação. Ao elaborar a sua teoria do direito, RONALD DWORKIN tem em
mente exatamente que a sua teoria “direito como integridade” (law as integrity)
constitui um meio termo entre as teorias jusnaturalistas e o positivismo jurídico.
No entanto, antes de proceder à explanação da teoria do direito
dworkiniana, fazem-se necessárias algumas considerações acerca do positivismo
jurídico, notadamente dos pensamentos de HERBERT HART e de HANS
KELSEN, bem como de algumas conseqüências no âmbito interpretativo que a
adoção do paradigma positivista acarreta.
4.1.
O
POSITIVISMO
JURÍDICO
4.1.1.
H
ART E O
C
ONCEITO DE
D
IREITO
Da mesma forma que DWORKIN elaborou a sua filosofia do direito
visando à desconstrução do pensamento hartiano, o filósofo inglês teve como
alvo principal a concepção de direito de JOHN AUSTIN, tido por muitos como
o fundador do positivismo jurídico moderno e da teoria imperativa do direito
233
.
231
BARROSO, op. cit., p. 06.
232
Idem. Ibidem. p. 06.
233
Nesse sentido, cf. MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos gregos ao pós-modernismo. Tradução:
Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.258 e ss.
113
No pensamento de AUSTIN, o conceito de direito era visto de forma
extremamente restrita, tendo em vista a preocupação do filósofo positivista em
conferir cientificidade à sua análise do fenômeno jurídico. Nesse contexto, ficou
famosa a sua definição do Direito com base em quatro critérios: soberania,
comando e obediência habitual e sanção
234
. Em suma, o Direito se resumiria à
obediência habitual a ordens provindas de um poder soberano ilimitado, o qual
teria o poder de aplicar sanções em caso de descumprimento das mesmas.
Segundo HART, essa concepção de Direito se consubstancia em uma
mera descrição de sistemas jurídicos que podem ser encontrados em sociedades
rudimentares, nas quais não houve o pleno desenvolvimento do Direito,
modernamente concebido. Trata-se, por essa razão, de uma teoria que
proporciona uma visão “externa” do fenômeno jurídico, ou seja, apreende o
Direito apenas em seu aspecto descritivo, ignorando outra faceta sistema
jurídico, que diz respeito à legitimação do comando provindo da norma jurídica.
Nesse contexto, HART faz uma diferenciação entre a afirmação de que
uma pessoa “ser obrigada a fazer algo” e a de que uma pessoa “tem a obrigação
de fazer algo”. Com efeito, uma pessoa pode ser compelida à realização de uma
ação sem que, necessariamente, tenha, em termos jurídicos, a obrigação de
proceder desta maneira, como ocorre, por exemplo, em um assalto. Isso
demonstra como a afirmação de AUSTIN, que o Direito é uma obediência
habitual a uma ordem provinda de um poder soberano”, apenas descreve o
aspecto obrigacional do direito, ou seja, fixa a sua análise nas regras que HART
denomina “primárias”, que apenas fixam obrigações
235
.
O Direito, no entanto, não se limita apenas a regras de conteúdo
imperativo. Pelo contrário, a nota característica dos sistemas jurídicos modernos
é, para HART, o fato de possuírem certas regras que fornecem, acima de tudo, a
234
MORRISON, op. cit., p. 262.
235
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, pp.92 e
ss.
114
justificação
236
de certos comportamentos que são considerados obrigatórios. São
comandos, portanto, que se ocupam do aspecto interno das regras de direito, que
fazem com que uma pessoa não apenas seja obrigada a fazer algo, mas sim se
sinta obrigado a realizar uma determinada conduta.
Como, todavia, essas regras podem acarretar esse aspecto legitimador das
condutas previstas nas normas jurídicas? Isso se justifica pela função exercida
pelas mesmas no ordenamento jurídico: são regras secundárias, que visam,
basicamente, a atribuição de poderes e competências. As regras secundárias,
no pensamento hartiano, promovem a unificação do sistema jurídico, de modo
que “as regras não são mais agora apenas um conjunto discreto e desconexo,
mas estão, de um modo simples, unificadas
237
”. Conferem, assim, validade
jurídica às demais regras do sistema, atribuem poder legislativo às autoridades
públicas, além de estabelecer competências e procedimentos para os
julgamentos judiciais
238
. Nesse diapasão, com as regras secundárias “surge todo
um conjunto de novos conceitos e estes exigem uma referência ao ponto de vista
interno para a respectiva análise. Tais conceitos incluem as noções de legislação,
jurisdição e validade, e, em geral, de poderes jurídicos, privados e públicos
239
”.
Nesse sentido, para HART o Direito é um conjunto de regras, as quais
podem exercer duas funções no ordenamento jurídico: conferir competências ou
atribuir obrigações, sendo estas denominadas regras primárias, e aquelas regras
secundárias. Faz-se necessário, para os fins do presente trabalho, uma análise
mais detida acerca das regras ditas “secundárias”, às quais HART subdivide em
três espécies, a saber: i) regras secundárias de reconhecimento, cuja função é
identificar, dentre as diversas regras contidas na sociedade, quais possuem o
236
Note-se que ao utilizar o termo “justificação”, HART não se refere à justificação em termos políticos, mas
sim a uma justificação formal: o individuo sente-se obrigado pelo fato de a obrigação decorrer de um estatuto
legal legitimamente positivado por um órgão legislativo, cujos poderes provêm de uma regra de reconhecimento
suprema, e não do conteúdo valorativo da regra.
237
HART, op. cit., p. 105.
238
Idem. Ibidem. p. 106.
239
Idem. Ibidem. p. 108.
115
status jurídico e quais são regras meramente sociais ou morais; ii) regras
secundárias de alteração, cuja função é, nas palavras de
HART,
conferir “poder a
um indivíduo ou a um grupo de indivíduos para introduzir novas regras
primárias para a conduta da vida do grupo, ou de certa classe dentro dele, para
eliminar as regras antigas”
240
; e iii) regras secundárias de julgamento, que
estabelecem procedimentos e competências de julgamento.
As regras secundárias, portanto, conferem “a indivíduos em funções
públicas ou privadas o poder de variar a incidência de todo o conjunto de
normas, a alterar as normas ou a aplicar outras incluídas nesse conjunto
241
”.
Função de destaque, no entanto, exerce a regra secundária de
reconhecimento. Na teoria hartiana, as regras de reconhecimento são aquelas
utilizadas pelas autoridades públicas ou privadas (advogados, Tribunais, Juízes
de Direito, Legisladores, Ministros dos Tribunais Superiores, etc.) para a
identificação das regras componentes de um sistema jurídico, ou seja, das regras
que possuem o status jurídico”. Trata-se de regras com “aceitação oficial” e
reconhecidas, do ponto de vista interno, ou seja, com legitimidade, eis que
constituem um padrão público para a identificação das regras que compõem a
ordem jurídica de uma determinada comunidade. Nesse sentido, conclui HART:
Há, portanto, duas condições mínimas necessárias e suficientes para a
existência de um sistema jurídico. Por um lado, as regras de
comportamento que são válidas segundo critérios últimos de validade
do sistema devem ser geralmente obedecidas e, por outro lado, as suas
regras de reconhecimento especificando os critérios de validade
jurídica e suas regras de alteração e de julgamento devem ser
efectivamente aceites como padrões públicos e comuns de
comportamento oficial pelos seus funcionários
242
.
240
HART, op. cit.. p.105.
241
MACCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. Tradução: Waldéa Barcellos. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 300.
242
HART, op. cit., p. 128.
116
A legitimidade de uma ordem jurídica, ou seja, a sua capacidade de obter
comportamentos de acordo com as prescrições legais, é, na teoria de HART,
afirmação “bifronte”, pois pressupõe uma obediência voluntária, pelos
cidadãos comuns, das prescrições obrigacionais ditadas pelas regras primárias e,
ainda, a aceitação, do ponto de vista interno, “pelos funcionários das regras
secundárias como padrões críticos comuns de comportamento oficial
243
”.
Observa-se, nesse contexto, que o positivismo hartiano define a legitimidade
como a aceitação de um padrão público de comportamento, o que significa
identificá-la com a legalidade, ou seja: o fato de uma regra ter o caráter público
e ser aceite (do ponto de vista interno) a torna legitima. A noção de legitimidade
não está vinculada à expressão valorativa das regras, mas sim ao seu status (ou
pedigree)
244
.
O sistema hartiano de regras primárias e secundárias encontra o seu
fundamento último de validade de uma regra secundária de reconhecimento que
possui, em razão de sua aceitação pública, valor supremo. Ora, por ser suprema,
a sua validade dependerá única e exclusivamente de sua aceitação pela prática
dos Tribunais e demais autoridades públicas, de modo que “sua existência como
norma de reconhecimento de um sistema jurídico realmente operacional exige
que as normas que ela identifica estejam efetivamente em vigor (...)
245
” na
comunidade.
Com essa apreensão sistemática do Direito, HART objetiva elaborar uma
“tarefa de clarificação” da teoria jurídica, mediante uma teoria que seja, ao
mesmo tempo, geral e descritiva, ou seja, que não esteja vinculado a nenhum
“sistema ou cultura jurídicos concretos
246
”, e que proporcione um relato
243
HART, op. cit., p. 128.
244
Será visto oportunamente que DWORKIN possui uma noção diferente da legitimidade de uma ordem
jurídica, identificando-a com o fato de a ordem jurídica representar o tratamento igualitário (igual respeito e
consideração) do Estado para com os cidadãos.
245
MACCORMICK, op. cit., p. 300.
246
HART, op. cit., p. 300.
117
descritivo e moralmente neutro do Direito. Trata-se, portanto, de uma descrição
do fenômeno jurídico do “ponto de vista externo”, como se fosse um relato de
um fato feito por um observador que não participe dessa prática
247
: HART
pretende, conforme assevera DWORKIN, “compreender mas não valorar as
elaboradas e penetrantes práticas sociais do Direito
248
”.
A função da filosofia do direito é, para HART, prover essa descrição
neutra do Direito, o que não se confundiria com a análise da prática dos
Tribunais. No pós-escrito de O Conceito de Direito”, HART deixa bem claro
essa distinção: a tarefa descritiva do Direito é um papel da filosofia jurídica, o
que não se confunde com a análise do fenômeno jurídico sob um ponto de vista
interno, ou seja, sob o ponto de vista dos participantes dessa prática. Dessa
forma, conclui HART:
Mesmo que (como Neil MacCormick e muitos outros críticos
sustentaram) a perspectiva interna do participante, manifestada na
aceitação do direito, enquanto este fornece orientações para a conduta
e padrões de crítica, incluísse também necessariamente uma crença de
que há razões morais para uma pessoa se conformar com as exigências
do direito e justificação moral para o uso da coerção por ele, isto seria
também algo que a Teoria Geral do Direito moralmente neutra
registraria, mas não sustentaria ou partilharia
249
.
E nessa tarefa descritiva do Direito, HART faz uma análise da atividade
jurisdicional em casos nos quais a regra apresenta o que ele denomina de
“textura aberta”. O prisma interpretativo da teoria hartiana é de particular
importância para o presente trabalho e, por essa razão, far-se-á uma análise da
hermenêutica positivista de HART em confronto com a teoria kelseniana, para
posteriormente passar-se a expor o pensamento dworkiniano.
247
HART, op. cit., p. 305.
248
to understand but not to evaluate the pervasive and elaborate social practices of law”. DWORKIN.
Justice…, op. cit., p. 140.
249
HART, op. cit., p. 304.
118
4.1.2.
A
INTERPRETAÇÃO DO DIREITO NAS DOUTRINAS POSITIVISTAS
:
UM
PARALELO ENTRE
H
ART E
K
ELSEN
Conforme exposto na introdução do presente Capítulo, uma característica
marcante do positivismo jurídico é a sua preocupação pela abordagem científica
do estudo do Direito. Em virtude disto, a busca pela objetividade, autonomia,
sistematicidade e formalidade do Direito acarretou a desconexão do Direito e da
Moral, que passaram a ser vistos como ramos distintos do conhecimento. É
nítido, nesse ponto, que o positivismo é uma reação às doutrinas jusnaturalistas
que, ao fundamentarem a ordem jurídica vigente em valores transcendentes,
“contaminavam” o estudo da ciência jurídica com elementos subjetivos, que não
deveriam ser levados em conta na construção da Ciência do Direito, ou seja, “o
rigor do tratamento científico (...) exige que se atenha ao método e não mesclar
métodos sociológicos e jurídicos”
250
. Nesse contexto, “Kelsen denominou sua
teoria pura porque queria depurá-la de todos aqueles métodos que não sejam o
estritamente jurídico. Sua grande prescrição metodológica foi a de ater-se ao
método
251
.
HANS KELSEN elaborou a sua teoria do direito a partir da seguinte
premissa: todo valor moral é relativo e não deve ser levado em consideração
para o estudo do Direito. Nesse sentido, o ilustre jurista austríaco estabelece uma
relação entre Direito e Moral como mera forma, ou seja, a afirmação de que o
direito é moral está apenas no fato de que, tanto os sistemas morais, como os
sistemas jurídicos, estabelecem normas sociais com prescrições de deve-ser (o
que é justo deve ser feito, o que é injusto deve ser evitado / o que lícito é
permitido, o que é ilícito é proibido). Não há de se falar, dessa forma, em
250
CALSAMIGLIA, Albert. Em defensa de Kelsen. Disponível em www. recercat. net/ bitstream/ 2072/1337/1/
ICPC/129.pdf. Acesso em 24 de julho de 2007, p. 08.
251
Kelsen denominó a su teoría pura porque quería depurarla de todos aquellos métodos que
no fueran el estrictamente jurídico. Su gran prescripción metodológica fue la de atenerse al
método”
Idem. Ibidem.., p.09.
119
conexão axiológica entre estes dois sistemas, mas apenas de uma relação forma
entre os mesmos. Nesse diapasão, conclui o mestre de Viena:
Sob estes pressupostos, a afirmação de que o Direito é, por sua
essência, moral, não significa que ele tenha um determinado
conteúdo, mas que ele é norma e uma norma social que estabelece,
com o caráter de devida (como devendo-ser), uma determinada
conduta humana.
252
Não existe, por conseguinte, relação de conteúdo entre o Direito e a
Moral, de modo que, inclusive, KELSEN admite que uma norma jurídica tenha
um conteúdo imoral. Isso porque a teoria kelseniana tem por objetivo central a
descrição analítica do sistema jurídico, através de dados objetivos e avalorativos.
Ora, se os valores morais são inerentemente relativos (variáveis de uma
sociedade para outra), é lógico que este elemento deve ser desconsiderado numa
análise cientifica e rigorosa do Direito, uma vez que “a tarefa da ciência jurídica
não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu objeto, mas uma
descrição do mesmo alheia de valores”
253
. Segue-se, portanto, que a estrutura do
Direito, para o positivismo, independe dos valores prescritos pelas normas
jurídicas. O relativismo axiológico é, dessa forma, o pressuposto do positivismo
kelseniano, que separa o fundamento de validade do direito positivo de seu
conteúdo valorativo:
uma ordem jurídica positiva é, quanto à sua validade, independente da
norma de justiça pela qual possam ser apreciados os atos que põem
suas normas. Assim se mostra, pois, que uma teoria jurídica
positivista, isto é, uma teoria do direito positivo, nada tem a ver com a
apreciação ou valoração de seu objeto
254
.
Por esta razão, KELSEN denomina o positivismo jurídico como uma
teoria monista, visto que não apresenta como pressuposto de validade da norma
252
KELSEN, Hans. Teoria Pura..., op. cit., p. 74.
253
Idem. Ibidem, p. 77.
254
KELSEN, Hans. O problema..., op. cit., p. 70.
120
jurídica a consonância com valores transcendentes, mas sim o fato de obedecer
os critérios de validade fixados por outra norma, de hierarquia superior, posta
por uma autoridade com competência legal para tanto. Ademais, a característica
fundamental de um sistema de normas é exatamente o fato de as normas de
hierarquia inferior retirarem o seu fundamento de validade das normas
superiores, sendo que todas as normas, ao final, amparam-se em uma norma
suprema, provinda da razão, denominada por KELSEN de “norma
fundamental
255
”. Daí a “pirâmide kelseniana”, composta por um sistema de
normas hierarquizado, cujo fundamento último de validade consiste em uma
“norma fundamental”, de natureza racional (pressuposta), e que fechamento
lógico ao sistema :
Como notamos, a norma que representa o fundamento de validade
de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a
indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal
como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no
interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como
última e mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser
pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja
competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua
validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o
fundamento da sua validade não pode ser posto em questão. Uma
tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada
como norma fundamental (Grundnorm) (...). Todas as normas cuja
validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental
formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma
fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas
pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de
validade comum
256
.
O Direito é, assim, composto por normas que prescrevem condutas e
cominam sanções em caso de descumprimento, mediante o uso da linguagem
255
Embora desempenhem a função de dar validade a todo o ordenamento jurídico, existe uma diferença sutil
entre a norma fundamental kelseniana e a regra de reconhecimento de Herbert Hart: a primeira fundamenta-se na
razão e não tem existência concreta, posto que é hipotética; a validade da segunda consiste, como o próprio
HART afirma, em uma “questão de fato”, ou seja, existe porque as autoridades a utilizam para identificar as
regras que compõem o ordenamento jurídico. Cf. KELSEN, Teoria Pura ..., op. cit., pp. 215 e ss. e HART, op.
cit. pp. 126-128.
256
KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., p. 217.
121
(escrita ou falada). Dessa forma, KELSEN afirma que
a aplicação de toda e
qualquer norma jurídica, desde a mais geral até a mais específica, exige do
aplicador do direito uma operação mental no sentido de determinar de seu
sentido, ou melhor, o seu conteúdo
257
. Possuem, assim, uma “relativa
indeterminação”, pois, muito embora o conteúdo das normas inferiores seja
vinculado às normas superiores, haverá sempre um “espaço vazio” sobre o qual
o intérprete poderá realizar uma livre apreciação. Em virtude da existência dessa
indeterminação, as normas jurídicas são comparadas por KELSEN a um quadro
ou moldura, que fixam uma conduta mas permitem várias interpretações, de
modo que a determinação de seu conteúdo concreto será completada pela
atuação da vontade do interprete.
Desta feita, o juiz, ao julgar um caso concreto, atuará como intérprete e
deverá fixar qual a norma jurídica que representará a “moldura” para a conduta
em apreço e preencher o conteúdo normativo do dispositivo legal
discricionariamente, escolhendo uma das várias possibilidades resultantes desse
processo. Nesse contexto, o ato interpretativo autêntico (ou seja, aquele feito
pelo órgão aplicado da norma) consiste na “determinação do conteúdo da norma,
ou seja, no estabelecimento de fronteiras mediante um “ato de vontade”, cuja
força vinculante provém da competência do órgão que aplica a norma
258
. Por
sua vez, à doutrina do direito caberia a mera descrição desse fenômeno,
mediante a demonstração da plurivocidade dos conceitos jurídicos, sem
demonstrar qual interpretação seria, em tese, correta, pois isto “é falsear o
resultado e ultrapassar as fronteiras da ciência”, consistindo em ato realmente
político
259
.
257
KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., p. 387.
258
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4.ª ed. São
Paulo: Atlas, 2003. p. 262-263.
259
Idem. Ibidem. p. 263.
122
A interpretação autêntica, realizada pelo órgão aplicado do direito, ao
optar por uma das várias possibilidades de interpretação da norma, acarreta a
criação de direito novo, vinculante em razão da competência atribuída ao órgão
judicante. Cumpre ressaltar que nesse processo, o intérprete é livre, desde que se
mantenha em conformidade com os ditames da norma jurídica, ou seja, a
vontade do interprete é livre, sem qualquer limitação substantiva a não ser a
moldura legal. A interpretação é, assim, “um ato de vontade em que o órgão
aplicador do Direito efetua uma escolha entre a possibilidades reveladas através
daquela mesma interpretação cognoscitiva”
260
.
Sendo, portanto, um “ato de vontade”, e, ainda, não existindo valor que
vincule o aplicador do direito, verifica-se que a interpretação do direito na teoria
kelseniana nada mais é do que uma manifestação do relativismo axiológico que
permeia o positivismo jurídico. O interprete está, nesse sentido, apenas
vinculado a critérios estritamente formais e deverá utilizar-se de uma
racionalidade puramente “formal” (legalista). Não que se falar, ainda, na
teoria kelseniana, em “resposta certa” a uma questão jurídica, eis que, se o
interprete se deparar com duas interpretações possíveis de um mesmo
dispositivo legal, que expressem valores morais antagônicos, mas sejam
juridicamente possíveis, ambas serão válidas e, portanto, de igual peso. Caberá
ao intérprete, assim, determinar discricionariamente
261
a solução jurídica ao caso
sub judice. Nesse contexto, assevera KELSEN
:
Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do
sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação
jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o
Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias
possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a
interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma
única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias
soluções que na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a
260
KELSEN, op. cit. p. 394.
261
Discricionariamente no sentido de que, se a interpretação for realizada nos limites da moldura legal, o juiz é
livre para escolher, mediante um ato de vontade, a solução que melhor lhe aprouver.
123
aplicar têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne
Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito no ato do
tribunal, especialmente.
262
A função do interprete do direito é, portanto, determinar uma
interpretação, dentre as várias possíveis, que se tornará vinculante, ou seja, que
integrará o direito positivo. Vê-se, portanto, que a preocupação de KELSEN é
com o fechamento estrutural do Direito, compreendido enquanto Ciência,
ficando questão da justiça para segundo plano, vez que é uma preocupação
política e não jurídica. Fica claro, neste ponto, que o positivismo kelseniano
funda-se no que MORIN denomina de “paradigma simplificador”, in verbis:
(...) a palavra paradigma é constituída por certo tipo de relação lógica
extremamente forte entre noções mestras, noções-chaves, princípios-
chaves. Esta relação e estes princípios vão comandar todos os
propósitos que obedecem inconscientemente a seu império. Assim, o
paradigma simplificador é um paradigma que põe ordem no universo,
expulsa dele a desordem. A ordem se reduz a uma lei, a um princípio.
A simplicidade o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o
uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da
simplicidade separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o que é
diverso (redução)
263
.
De fato, KELSEN, em nome da sistematicidade de sua teoria, reduz a
interpretação do direito a um ato meramente formal, sem reconhecer a
“dimensão política” que envolve a aplicação do direito pelos Tribunais no caso
concreto
264
. Nisto reside a essência da crítica de DWORKIN ao positivismo
jurídico, que, para o filósofo norte-americano, a atividade judicante é
262
KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., p. 391.
263
MORIN, Edgard. Introdução ao Pensamento Complexo. 3.ª Ed. Tradução: Eliane Lisboa. Porto Alegre:
Sulina, 2005, p. 59
264
José Eduardo. As transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais. In FARIA, José
Eduardo [org.]. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1.ªed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 56.
124
eminentemente política
265
e envolve a busca pela melhor solução, em termos
morais, da controvérsia jurídica.
A constatação de HANS KELSEN de que as normas jurídicas são
essencialmente “plurívocas” permeia, outrossim, o positivismo hartiano. Com
efeito, no Capítulo VII de seu O Conceito de Direito”, o positivista inglês
assevera que as regras de direito são, na sua essência, diretivas que visam à
comunicação de padrões gerais de condutas, que se aplicarão a fatos futuros e
incertos e, para tanto, fazem uso de “palavras gerais
266
”. Como tais, os
comandos jurídicos acarretam certa “indeterminação”, ou seja, as normas gerais
e abstratas, ao serem aplicadas ao caso concreto particular, fazem surgir
“incertezas quanto à forma de comportamento exigidos por elas
267
”. Nesse
sentido, as normas possuiriam um “cerne de certeza” e um “entorno vago e de
trama rala
268
”. A aplicação do direito ao caso concreto, mediante atividade
interpretativa exercida pelos juízes singulares e Tribunais, se depara diante de
algo que HART denominou de “crise da comunicação”, tendo em vista que nas
questões jurídicas complexas a concretização dos comandos jurídicos consiste
em um processo de “escolha entre alternativas abertas
269
”. Com efeito, explica
HART, o raciocínio jurídico que envolve a solução de casos fáceis
270
é a
265
“I shall argue that legal practice is an exercise in interpretation not only when lawyers interpret particular
documents or statutes but generally. Law so conceived is deeply and thoroughly political. Lawyers and judges
cannot avoid politics in the broad sense of political theory”. (Eu devo questionar que a prática jurídica é um
exercício de interpretação não apenas quando os advogados interpretam documentos ou leis, mas de maneira
geral. O Direito, assim concebido, é profunda e perfeitamente político. Advogados e Juízes não podem evitar a
política no sentido amplo da teoria política). DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard
University Press, 1985, p.146.
266
HART, op. cit., p. 137.
267
Idem. Ibidem. p. 139.
268
MACCORMICK, op. cit., p. 300.
269
HART, op. cit., p. 140.
270
Ao utilizar a expressão “casos fáceis” (easy cases), me refiro àqueles em que o direito positivo uma
solução imediata e indiscutível. Por exemplo, se for perguntado “na esfera cível, qual o prazo para a interposição
do recurso de Apelação?”, a solução é simples e direta: “quinze dias, de acordo com o artigo 508 do digo de
Processo Civil”. Já a expressão Hard cases ou casos controversos diz respeito àquele em que o direito não
oferece uma solução simples ou não oferece qualquer solução. Ou seja: são aqueles em que incerteza acerca
do direito a ser aplicado. Esse conceito será melhor desenvolvido quando da análise da teoria dworkiniana.
125
subsunção do fato à norma e a conseguinte extração de uma conclusão
silogística.
HART reconhece, todavia, que existem certas questões jurídicas não
podem ser resolvidas por raciocínio silogístico, ante a incerteza do direito a ser
aplicado. Nesses casos, o magistrado deverá utilizar o seu poder discricionário e
realizar uma escolha, “ainda que não possa ser arbitrária ou irracional
271
”.Assim,
embora não confira a mesma liberdade que a teoria kelseniana ao intérprete,
HART reconhece que, ao se deparar com normas de “textura aberta”, a
autoridade deverá exercer um poder discricionário, e não possibilidade de
tratar a questão suscitada pelos variados casos, como se houvesse uma única
resposta correcta a descobrir, distinta de uma resposta que seja um compromisso
razoável entre muitos interesses conflitantes
272
”.
É possível e necessário, aqui, traçar um paralelo entre o positivismo de
HART e a doutrina kelseniana. Sem embargo, embora ambos constituam uma
visão avalorativa (logo neutra) e descritiva do fenômeno jurídico, KELSEN faz
um rompimento mais profundo entre o Direito e a Moralidade, não impondo
qualquer limite valorativo para a vontade do magistrado (intérprete) ao decidir
um caso concreto. Por sua vez, HART demonstra certa preocupação com o
resultado prático da interpretação do Direito, mas reconhece que, enquanto
filósofo, compete-lhe apenas a descrição de tal fenômeno.
4.2. O DIREITO COMO INTEGRIDADE
4.2.1. A
LIMITAÇÃO ESTRUTURAL DA TEORIA DE
H
ERBERT
H
ART
Uma das críticas centrais de DWORKIN ao positivismo jurídico, em
especial à teoria do direito de HART, é a sua limitação estrutural. Para o filósofo
271
HART, op. cit. p. 140.
272
Idem. Ibidem. pp. 144-145.
126
norte-americano, ao afirmar que o direito é um sistema composto por regras
primárias e secundárias, HART ignora o fato de que os operadores do direito,
em casos de maior complexidade, utilizam padrões (standards) que atuam, no
raciocínio jurídico, de modo diferente das regras. Desta constatação advém a
clássica diferenciação que DWORKIN faz entre regras, princípios e políticas
(policies
273
). Regras (rules)
274
, no entendimento dworkiniano, são padrões que
obedecem a um raciocínio ou lógica do tudo-ou-nada (all-or-nothing fashion
275
),
de forma que sua aplicabilidade depende apenas de sua validade, e da ocorrência
da hipótese fática nela prevista.
Os princípios
276
, por sua vez, possuem uma dimensão de moralidade,
razão pela qual a sua incidência, no caso concreto, deverá seguir uma gica de
sopesamento ou ponderação, sendo necessário que o aplicador do direito faça
um raciocínio que leve em conta o peso do princípio para a solução da questão
jurídica
277
. DWORKIN tem em mente, ao se referir ao peso (weight) do
princípio, que, por expressarem valores (morais ou políticos), esses padrões
muitas vezes conflitam e exigem do magistrado um juízo de valor que “leve em
273
O termo policies”, no inglês, significa “linha de ação adotada por ser vantajosa ou oportuna”, em especial
por órgãos governamentais, cf. Shorter Oxford English Disctionary apud MACCORMICK, op. cit., p. 341.
Muito se contesta, por essa razão, a amplitude com que DWORKIN utiliza esse termo, justamente por abranger,
nesses padrões, quaisquer “objetivos a ser alcançados, geralmente um ganho em algum aspecto econômico,
político ou social da comunidade (...)” , Cf. DWORKIN. Taking..., op. cit., p. 22.
274
Adota-se, na presente dissertação, o entendimento de que tanto as regras, quanto os princípios são espécies de
“norma jurídica”. Nesse sentido Ensina CANOTILHO que “A teoria da metodologia jurídica tradicional
distinguia normas e princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz). Abandonar-se essa
distinção para, em sua substituição, se sugerir: 1) as regras e princípios são duas espécies de normas; 2) a
distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas (Direito Constitucional e
Teoria da Constituição. 7.ªed. Coimbra: Almedina, 2003. p.1160). Do mesmo sentir é a doutrina de Robert
ALEXY, in verbis, tanto las reglas como los principios serán resumidos bajo ela concepto de norma. Tanto las
reglas como los principios son normas porque dicen lo que debe ser”. (ALEXY, Robert. Teoria de los
derechos fundamentales. 2. ª ed. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. p.83).
275
DWORKIN. Taking..., op. cit., p. 24.
276
I shall use the term ‘principle’ generically, to refer to he whole set of these standards other than rules;”
(DWORKIN. Taking…, op. cit., p. 22). Por essa razão, o termo “política” apenas será utilizado quando for
necessário. No mais, o termo princípio abrangerá todos os padrões que não são regras.
277
Segundo Carlos Santiago Nino, Dworkin “sostiene que um sistema jurídico no está compuesto sólo por reglas
sino también por outro tipo de normas, que él llama “princípios”. Los princípios (...) se distinguen de las reglas
en que su aplicabilidad a um caso no es una cuestión de “todo o nada” o es aplicable o no lo es sino que
depende Del peso relativo del princípio em contraste com el de otros princípios relevantes”. NINO, Carlos
Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo
Depalma, 2003, p.125.
127
conta o peso relativo
278
de cada princípio
279
. Os princípios exercem um papel
peculiar no pensamento dworkiniano, visto que é através dos mesmos que o
filósofo norte-americano insere em sua filosofia jurídica a dimensão moral que
tanto se deu destaque na presente dissertação. Com efeito, no desenvolvimento
de sua teoria construtivista, “Dworkin está muito mais interessado no horizonte
político-ético no qual se destacam os princípios irredutíveis às regras
280
”.
Não se faz necessário, todavia, maiores considerações sobre o tema.
Primeiramente porque a esse respeito a literatura é vasta e menciona muitas
questiúnculas que não são relevantes para o objeto deste trabalho. Em segundo
lugar, pretendo evitar o erro que muitos cometem ao analisar a crítica de
DWORKIN ao positivismo jurídico, que é exatamente ficar restrito aos
ensinamentos exarados pelo filósofo norte-americano em Taking Rights
Seriously” e ignorar os demais escritos de DWORKIN, que, diga-se,
representam o amadurecimento de sua teoria e de sua crítica ao juspositivismo.
Por ora, mister ressaltar que DWORKIN, em momento algum se refere a
“princípios jurídicos”, e o faz de maneira proposital, tencionando demonstrar
que não é possível a pressuposição de uma norma jurídica superior (como
pretende HART) que validade e existência jurídica para todos os demais
padrões jurídicos. Segundo DWORKIN, os princípios são padrões que, devido à
sua dimensão de moralidade, estão em “transformação, desenvolvimento e
278
DWORKIN. Taking..., op.cit., p. 26.
279
A partir da filosofia dworkiniana, Robert Alexy afirma que os princípios são mandatos de optimización”,
uma vez que “pueden ser cumplidos em diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo
depende de las possibilidades reales sino también de las jurídicas”. Nesse sentido, no contienen mandatos
definitivos sino sólo prima facie”. A
LEXY
, então,
faz referência a uma “lei de colisão (colisión) de princípios”,
com o intuito de analisar pormenorizadamente o raciocínio a ser realizado para se resolver uma colisão de
princípios. Segundo essa “lei”, a solução das colisões entre princípios se através de uma relação de
precedência condicionada (concreta ou relativa), pela qual se estabelece as condições de precedência (C) nas
quais um determinado princípio (P1) deverá prevalecer sobre outro, que dispõe em sentido contrário (P2).
Assim, pode-se dizer que, dada a ocorrência de determinadas condições (C), o princípio (P1) deverá prevalecer
(P) sobre o princípio (P2), ou seja: (P1 P P2) C. Cf. ALEXY, op. cit., pp. 81 e ss.
280
RICOEUR, Paul. O Justo 1. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 160.
128
mútua interação
281
”, e que por essa razão não podem ser aglutinados em uma
única regra suprema de reconhecimento.
Por essa razão, a crítica de DWORKIN tem a pretensão de ser totalmente
destrutiva à teoria de HART, que, para a inclusão dos princípios, seria
necessário abandonar a noção de regra de reconhecimento, pelo menos na forma
concebida pelo filósofo inglês. Não é pacifico o entendimento, no entanto, de
que o positivismo hartiano não poderia abarcar o conceito de “princípio”, nos
moldes propostos por DWORKIN. Nesse sentido, observa MACCORMICK que
a inclusão dos princípios no ordenamento jurídico exige uma “relação” entre os
mesmos e as normas do direito, senão vejamos :
Existe uma relação entre a ‘norma do reconhecimento’ e princípios do
direito, mas é um relacionamento indireto. As normas que são normas
do direito são o que são graças à sua linhagem. Os princípios que são
princípios do direito são o que são graças à função em relação àquelas
normas, ou seja, a função a eles atribuída por quem os usa como
racionalizações das normas
282
”.
Não se pode, assim, simplesmente descartar a teoria hartiana, uma vez que
a mesma pode conviver com a existência de princípios jurídicos. Assim, a teoria
de HART, portanto, não é insuficiente neste ponto, de modo que a crítica de
DWORKIN não possui o peso teórico que o filósofo norte-americano pretendeu.
Sem embargo, embora o positivismo jurídico defenda uma abordagem
avalorativa do Direito, não se pode afirmar que esta corrente filosófica não
reconhece, na manifestação concreta do Direito, que as normas expressam
valores, bem como que os magistrados julgam com base em valores. Essa
afirmação limita-se, na verdade, ao fato de que o positivismo defende “que não
se precisa sob nenhum aspecto compartilhar ou endossar esses valores no todo
281
DWORKIN. Taking..., op. cit., p. 40.
282
MACCORMICK, op. cit., p. 304.
129
ou em parte para saber que a lei existe”.
283
Assim, a crítica dworkiniana ao
positivismo, que ora se denomina “estrutural”, deve ser compreendida como
uma crítica epistemológica
284
: trata-se, na verdade, de uma releitura da
própria essência do positivismo jurídico, mediante a colocação de um novo
paradigma para o conhecimento do fenômeno jurídico.
Com efeito, desde o começo do desenvolvimento de sua filosofia jurídica
em Taking Rights Seriously”, como em seus últimos livros, nomeadamente
Justice in Robes” e Is democracy possible here?”, DWORKIN pretende
sempre oferecer uma contraposição às doutrinas positivistas, sustentando uma
reaproximação entre o Direito e a Moral. Em palestra proferida quando do
recebimento do prêmio “Holberg Prisen”, no ano de 2007, DWORKIN fez uma
exposição acerca de seu entendimento da relação entre o Direito e a Moralidade
Política, afirmando que esses ramos do conhecimento não são independentes, de
modo que há uma conexão densa de substância entre ambos. A Moral e o
Direito, nesse contexto, não devem ser compreendidos de forma separada, mas
sim como essencialmente interligados, consoante afirma categoricamente o
filósofo norte-americano:
eu gostaria, então, de propor que nós comecemos (a raciocinar) um
modelo muito diferente em mente. Ao invés de ver Direito e
Moralidade como dois diferentes sistemas de idéias, que podem ou
não estar conectados de diversas formas, interdependentes de várias
formas, nós tentemos compreender o Direito como um departamento
da moralidade, como embebido dentro da moralidade desde o
começo
285
.
283
MACCORMICK, op. cit., p. 305.
284
Epistemologia, Segundo ABBAGNANO, pode ser compreendido como sinonimo de “teoria do
conhecimento”, cf. op. cit., p. 392. Por sua vez, JOHN GRECO ensina que “a epistemologia ou teoria do
conhecimento, é conduzida por duas questões principais: ‘O que é conhecimento?’ e ‘O que podemos conhecer’.
Se pensamos que podemos conhecer algo, como quase todo mundo, então surge uma terceira questão essencial:
‘Como conhecemos o que conhecemos’”, cf. GRECO e SOSA, John e Ernest [org.]. Compêndio de
Epistemologia. Tradutores: Alessandra Siedschlag Fernandes e Rogério Bettoni. São Paulo: Edições Loyola,
2008, p. 16.
285
I would like, therefore, to propose that we begin with a very different model in mind. In instead of seeing law
and morality as two independents sets of ideas, witch might or might not be connected in various ways,
interdependent in various ways, we try to understand law as a department of morality, as imbibed within
morality right from the start”. Vídeo disponível em
http://www.holbergprisen.no/HP_prisen/en_hp_2007_symposium.html, acesso em 29.03.09.
130
A proposta de DWORKIN, portanto, constitui um paradigma
completamente diferente do positivismo jurídico e que tem influenciado a
compreensão do Direito pelo mundo. O Direito, segundo DWORKIN, constitui
um “departamento” da esfera moral, de modo que a compreensão dos conceitos
jurídicos, bem como a aplicação dos mesmos ao caso concreto, deverá ser
orientada pelos valores morais da comunidade política. É possível identificar,
assim, uma nítida diferença entre a teoria dworkiniana law as integritye o
positivismo jurídico. Enquanto este constitui uma forma de pensar a realidade de
forma simplificadora, que, em nome do cientificismo, procura separar realidades
que estão ligadas (disjunção
286
), o “direito como integridade” parte de um
paradigma complexo, que identifica uma inter-conexão entre conceitos que são
aparentemente desconexos (Direito e Moral), mas que na verdade constituem
realidades que não podem ser estudadas separadamente. Ora, da mesma forma
que o paradigma simplificador acarreta a disjunção, ou seja, a necessidade de
redução do que é complexo a realidades menos complexas, o pensamento
complexo exige interdisciplinaridade, ou, para utilizar as palavras de MORIN,
“conjunção complexa
287
”. Nesse sentido, a filosofia jurídica de DWORKIN não
pode ser analisada, como muitos pretendem, de forma independente de sua
filosofia política.
Conforme dito, a principal contribuição de DWORKIN para a teoria do
direito está na mudança do paradigma positivista, que pleiteia a separação entre
Moralidade e Direito, para um paradigma que insere o Direito no campo da
Moral, o que acarreta inúmeras conseqüências para a teoria jurídica,
286
Segundo EDGAR MORIN, “a simplicidade o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode
ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da simplicidade separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o
que é diverso (redução)”. Cf. MORIN, Edgard. Introdução ao Pensamento Complexo. 3.ª Ed. Tradução: Eliane
Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 59. O fenômeno da disjunção é exatamente o que ocorre com a
abordagem positivista, que separa o Direito e a Moral em esferas diferentes, que devem ser estudadas de forma
separada, sendo a validade e aplicação daquele independente desta.
287
Idem. Ibidem. p. 77.
131
especialmente com relação à interpretação e justificação das decisões judiciais.
A teoria dworkiniana, ao contrário do que propõe o positivismo, pretende
apresentar uma verdadeira justificação do Direito
288
, e não uma mera descrição,
a qual decorre do compromisso do Estado de atuar em conformidade com um
conjunto coerente de princípios, e é este ponto que se passa a abordar.
4.2.2.
A
INTEGRIDADE COMO IDEAL POLÍTICO E A SUA MANIFESTAÇÃO NO
D
IREITO
Um dos conceitos componentes do liberalismo igualitário dworkiniano
que exerce influência no direito como integridadeé o de comunidade liberal.
Conforme exposto, o DWORKIN constrói a sua concepção de “Republicanismo
Cívico Liberal” a partir de uma visão holista da comunidade, visando coadunar
as críticas comunitaristas com os princípios liberais. O faz mediante a
constatação de que a comunidade possui uma “vida coletiva” que se expressa
pelos atos formais das instituições blicas comunitárias, notadamente pelos
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. DWORKIN, dessa maneira,
consegue conciliar a idéia de uma personificação da comunidade
289
”, que trata
o ente coletivo como um verdadeiro “agente moral” vinculado a princípios
próprios, com a doutrina liberal, centrada nos direitos individuais, e que visa
conferir ao indivíduo liberdade para a formação de seus próprios valores e
responsabilidade para a sua otimização existencial.
nas primeiras páginas do Capítulo VI de Law’s Empire”, é possível
constatar uma grande preocupação de DWORKIN: vincular a atuação estatal a
princípios morais
290
, mediante a concepção Integridade (Integrity), ideal político
288
Por essa razão, inclusive, alguns críticos defendem que DWORKIN não desenvolveu propriamente uma
Teoria Geral do Direito, mas sim uma teoria da prática judiciária, visto que o problema da justificação do Direito
é um problema concreto, e não filosófico. Cf. DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 20.
289
Cf. DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 167 e ss.
290
Deve-se ter em mente que DWORKIN desenvolveu o seu pensamento político em meados dos anos 1970, em
plena Guerra do Vietnã e no auge do movimento pelos Direitos Civis. Observa STEPHEN GUEST que esses
132
que condena a “incoerência de princípio entre os atos do Estado
personificado
291
”. A exigência de uma atuação estatal em coerência com
princípios morais representa, na realidade, um reflexo da idéia básica do
princípio igualitário, que, em sua forma mais abstrata, exige que o Estado trate a
todos os cidadãos com equal concern and respect, uma vez que decorre da
própria garantia de um direito à igualdade, seja ela formal ou material, a
necessidade de que os atos estatais referentes aos direitos individuais encontrem
justificativa em uma teoria política amplamente aceita, e que esteja em coerência
com as demais decisões do Estado
292
. Trata-se de um pressuposto para que o
Estado possa se colocar perante o indivíduo como uma “autoridade moral” e
utilizar a força coercitiva de forma legítima, visando à obtenção de
comportamentos conformes à ordem jurídica estabelecida
293
.
A concepção de legitimidade no pensamento dworkiniano parte da noção
de que os indivíduos atuam na comunidade vinculados por “obrigações morais
genuínas”, as quais decorrem exatamente do fato de o Estado aceitar a
integridade como ideal político e, por conseguinte, firmar um compromisso com
um conjunto de valores insculpido em princípios políticos, os quais regem a
atuação estatal. Tais obrigações são, portanto, associativas”, ou seja, decorrem
do relacionamento dos indivíduos em uma comunidade fraternal
294
, o que
significa que os indivíduos têm que atuar de forma comprometida e honesta, em
virtude da identificação recíproca com o ente coletivo personificado. Mas qual o
fundamento para esse compromisso firmado entre os concidadãos da
comunidade? É o reconhecimento de que a comunidade é governada por um
fatos históricos causaram fissuras na sociedade americana que podem ser observadas até hoje, e influenciaram o
pensamento dworkiniano, especialmente com relação à preocupação pelo desenvolvimento de princípios
diretores da conduta governamental e a reinterpretação do conceito de direitos individuais. Cf. GUEST, op. cit.,
p. 04.
291
it is inconsistency in principle among the acts of the state personified that integrity condemns”. DWORKIN.
Laws..., op. cit. p. 184.
292
DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 185. Vide, ainda, nesse sentido, os conceitos de “Tese dos Direitos” e
“Responsabilidade Política desenvolvido por DWORKIN em Taking Rights Seriously, pp. 88 e ss.
293
DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 190 e ss.
294
Idem. Ibidem. pp. 198 e ss.
133
sistema de princípios comuns, amplamente aceitos pelos cidadãos, dos quais
derivarão todos os direitos e obrigações, dentre as quais a de que “o direito será
escolhido, modificado, desenvolvido e interpretado de um modo global, fundado
em princípios
295
".
Dessa forma, ao defender que a “comunidade personificada” tem um
comprometimento genuíno a um conjunto coerente de princípios de justiça,
os quais expressam, basicamente, valores como a igualdade, a democracia e o
devido processo legal, DWORKIN vincula a produção legislativa ao
comprometimento com esses princípios, bem como reconhece que a atividade
judicante, exercida pelos magistrados e tribunais, representam uma manifestação
da própria comunidade e, portanto, também deve visar à concretização dos
valores que fundamentam a comunidade.
4.2.3.
A
INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVISTA DWORKINIANA
A análise do pensamento de Herbert HART e de Hans KELSEN foi feita
como o fito de identificar as principais características do positivismo jurídico,
uma vez que essa corrente filosófica possui pressupostos antagônicos ao
paradigma dworkiniano. Com efeito, é possível identificar, a essa altura, pelo
menos três traços fundamentais da filosófica positivas: i) em termos estruturais,
o positivismo conceitua o direito como um sistema hermético de regras, que
extraem o seu fundamento de validade em uma regra superior, à qual HART
denomina de “regra de reconhecimento” e KELSEN de norma fundamental”;
ii) em termos valorativos, apóia-se o positivismo em um relativismo moral,
argüindo, em síntese, que o Direito e a Moral são áreas distintas do
conhecimento e que, portanto, o estudo científico do Direito não depende de
avaliações valorativas, mas sim deve possuir uma preocupação
295
the promise that Law will be chosen, changed, developed, and interpreted in na overall principled way”.
DWORKIN. Law’s... , op. cit., p. 214.
134
analítico/descritiva do fenômeno jurídico ; e iii) em termos interpretativos, o
positivismo adota a teoria da discricionariedade judicial, aproximando o juízo
interpretativo do magistrado a um simples ato de vontade.
Conforme visto, DWORKIN inicia o seu ataque ao positivismo jurídico
com uma crítica estrutural, sustentando que essa corrente filosófica ignorou a
existência dos princípios, padrões que possuem uma dimensão moral e que
exercem uma função decisiva no raciocínio judicial, especialmente nos casos
controversos (hard cases). A filosofia dworkiniana, nesse sentido, constitui um
novo paradigma jurídico, posto que defende que o Direito deve ser
compreendido como um “compartimento” da Moral, ou seja, o Direito insere-se
na Moral e deve, a partir dela, ser compreendido.
A terceira dimensão crítica de DWORKIN ao positivismo jurídico, e sem
dúvida a mais relevante para o presente trabalho, diz respeito à interpretação do
Direito: para DWORKIN, o Direito é um fenômeno essencialmente
interpretativo. O construtivismo político rawlsiano, nesse ponto, também exerce
um papel fundamental.
Sem embargo, DWORKIN denomina o seu modelo interpretativo de
“construtivista” tendo em mente o “procedimento de construção” nos moldes
expostos no “Liberalismo Político” rawlsiano, dando ênfase, notadamente, a
dois aspectos fundamentais do construtivismo rawlsiano: ao raciocínio prático e
à objetividade moral.
4.2.3.1. Razão prática e o Construtivismo Político
Pode-se verificar o embrião do conceito de razão prática na filosofia
aristotélica. Com efeito, no Livro VI da “Ética a Nicômaco”, o filósofo grego
afirma que as pessoas sábias na prática” são aquelas “capazes de deliberar bem
135
com vista a obter algum fim particular valioso(...)
296
”. Trata-se, assim, de uma
virtude relacionada com o deliberar com a intenção de alcançar as coisas que são
boas aos seres humanos. no pensamento político contemporâneo, o termo
“razão prática” ganhou importância da reabilitação/renascimento da filosofia
prática”, ocorrida nos anos 1960 e que consistiu no “renascimento do interesse
filosófico pela esfera da ação prática e pelos grandes temas da Moral, do Direito
e da Política
297
”.
Segundo RAWLS, na perspectiva kantiana, a razão teórica diz respeito ao
“conhecimento dos objetos dados
298
”, ao passo que a razão prática é relativa à
produção de objectos de acordo com uma concepção desses objectos
299
”. Nesse
sentido, “enquanto a razão teórica permite a derivação de uma cadeia causal
inteira a partir da premissa maior, a razão prática permanece apenas como um
guia para a ação, que não uma solução exata para a deliberação
300
”.A razão
prática, portanto, não se baseia na causalidade, mas sim no raciocino e na
deliberação, e visa justamente chegar a um juízo moral razoável, ou seja, que
seja justificável do ponto de vista moral:
Isso é posto em evidência pelo facto de não exigirmos de um juízo
moral ou político quer que as razões que o sustentam mostrem que ele
se encontra ligado a um processo causal apropriado, quer uma sua
explicação decorrente da psicologia cognitiva. Pelo contrário, basta
que as razões apresentadas sejam suficientemente fortes
301
.
O raciocínio prático, segundo TAYLOR, manifesta-se através de um
“juízo comparativo” entre objetos em transição, visando demonstrar um
caminho racional para a realização de uma transição moral, a partir de juízos
296
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Édipro, 2002, p. 168.
297
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário..., op. cit., p. 975.
298
RAWLS. O liberalismo..., op. cit., p. 128. A esse respeito, cf. JESUS, Carlos Frederico Ramos. RAWLS, a
Concepção de Ser Humano e os Fundamentos dos Direitos do Homem. Dissertação de Mestrado em
Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo, 2008, p. 40.
299
RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., p. 128.
300
JESUS. RAWLS..., op. cit., p. 40.
301
RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., p. 129.
136
morais já aceites pelos indivíduos, ou seja, de “constantes implicitamente aceitas
pelo interlocutor
302
”. Essa é a noção de razão prática que fundamenta o
construtivismo rawlsiano, eis que o procedimento de construção, representado
pelo argumento a partir da posição original, visa à identificação de princípios de
justiça que irão regular a estrutura básica da sociedade.
RAWLS parte da “idéia fundamental de sociedade bem-ordenada como
um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos razoáveis encarados como
livres e iguais” e dotados de duas faculdades morais fundamentais, a saber, “a
capacidade para um sentido de justiça” e a capacidade para uma concepção de
bem”, visando elaborar um mecanismo processual para o exercício do
procedimento de construção, qual seja, a posição original, a partir da qual os
indivíduos, no exercício da razão, selecionarão os princípios públicos de justiça
que regerão a estrutura básica da sociedade
303
. Deve restar claro que o
construtivismo político não visa atingir valores absolutos ou transformar-se em
doutrina abrangente
304
, mas apenas identificar valores políticos que gozam de
ampla aceitação e que servirão de base de sustentação para a discussão das
questões pertinentes à estrutura básica da sociedade.
O construtivismo rawlsiano, sem dúvida alguma, exerceu influência
decisiva no pensamento dworkiniano, que diversas elaborações teóricas do
pensador norte-americano amparam-se nessa noção, tais como as duas
dimensões da dignidade humana e a própria concepção de igualdade de recursos,
elaborada a partir do exemplo contrafactual do mercado igualitário hipotético.
No mesmo sentido, as idéias de “conceitos interpretativos” e de
comprometimento da comunidade com princípios de justiça como forma de
302
TAYLOR, op. cit., pp. 62-63.
303
RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., pp. 116-117.
304
Pelo contrário, observa RAWLS que “o construtivismo tenta evitar a oposição com qualquer doutrina
abrangente”, O Liberalismo..., op. cit., p. 109.
137
manifestação da integridade, também devem ser compreendidas a partir do
construtivismo rawlsiano, conforme será demonstrado.
4.2.3.2. A atitude interpretativa e a definição do Direito como objeto
interpretativo
DWORKIN denomina “atitude interpretativa” a ação do intérprete que
busca a melhor interpretação, em termos morais, do objeto examinado
305
, seja
ele uma obra de arte, uma prática social ou a lei. O interpretativismo
dworkiniano foi elaborado em contraposição à filosofia lingüística positivista,
eminentemente descritiva, e amparada na razão teórica. Conforme visto, a
filosofia positivista é caracterizada pela preocupação analítica, o que acarreta
certa passividade do intérprete frente ao seu objeto de estudo.
Em, sentido diverso, o interpretativismo dworkiniano visa impor um
objetivo ou finalidade ao objeto interpretado
306
, ou seja, o intérprete não se
limita a descrever o objeto, mas sim tem uma atitude ativa com relação ao
mesmo, alterando-lhe o sentido à luz dos princípios morais que o norteiam.
Assim, “a interpretação construtivista é uma questão de impor um propósito em
um objeto ou prática com o objetivo de fazê-lo o melhor exemplo possível da
forma ou gênero ao qual ele pertence
307
”.
Nesse diapasão, deve restar claro que a atitude interpretativa fundamenta-
se na razão prática. Retoma-se, por esse motivo, a noção de TAYLOR que a
razão prática é um “argumento de transições
308
que visa ao convencimento
racional dos indivíduos, a partir daquilo “com que o oponente está
comprometido”, procurando trazer à luz uma conclusão moral que o indivíduo
305
DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 52.
306
Cf. GUEST, op. cit. p. 25-26.
307
constructive interpretation is a matter of imposing purpose on na object or practice in order to make of it
the best possible example of the form or genre to which it is taken to belong. DWORKIN. Law’s…, op. cit., p.
52.
308
TAYLOR, op. cit., p. 63.
138
não pode repudiar
309
, ou seja, para utilizar a linguagem rawlsiana, a razão prática
parte dos princípios de justiça publicamente aceitos, e objetiva confrontar
doutrinas abrangentes para, racionalmente, convencer uma das partes que uma
concepção moral é superior à outra. Nesse contexto, DWORKIN assume, com a
idéia de conceitos interpretativos, que o ato de interpretar deve partir do
pressuposto de que o objeto possui uma finalidade, e que esta se transforma com
o passar do tempo, de modo que o hermeneuta deve “impor um significado à
instituição para vê-la em sua melhor luz e depois reestruturá-la à luz desse
significado
310
”, o que significa basicamente que ele deve partir de um dado (que
pode ser uma instituição ou um texto de lei) para chegar a uma construção, que é
exatamente a reestruturação do objeto à luz da melhor interpretação dos
princípios morais a ele pertinentes.
Mas quais objetos podem ser compreendidos como interpretativos? Em
Justice in Robes”, DWORKIN, indagando-se acerca da natureza do conceito
dogmático de direito, identifica três espécies de conceitos: os conceitos padrões
(criterial concepts), os conceitos biológicos (natural kind concepts) e os
conceitos interpretativos (interpretative concepts). Sustenta, então, que as duas
primeiras espécies de conceitos não dependem de atuação do intérprete para a
sua definição. Por exemplo, um conceito padrão, como o triângulo eqüilátero,
retira o seu significado de sua própria definição matemática (ou seja, do fato de
possuir três lados iguais). Por sua vez, um conceito biológico, “árvore”, por
exemplo, tem a sua definição extraída cientificamente da biologia. Em suma,
tanto o conceito padrão quanto o biológico exigem do intérprete um raciocínio
analítico, de forma que sua definição não envolve qualquer espécie de
deliberação moral
311
.
309
TAYLOR, op. cit., pp. 66 e ss.
310
impose meaning on the institution to see it in its best light and then to restructure it in the light of that
meaning”. DWORKIN. Law’s…, op. cit., p. 47.
311
DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 09-11.
139
Todavia, os conceitos interpretativos não obedecem a essa lógica. Trata-
se, com efeito, de conceitos que exigem um raciocínio prático, sendo definidos a
partir da argumentação valorativa, no sentido que exigem uma deliberação
moral a partir das próprias convicções dos indivíduos. São, dessa forma,
“práticas políticas complexas” das quais os indivíduos dividem uma
compreensão mínima, mas cujas peculiaridades devem ser definidas
argumentativamente, mediante o uso de uma teoria que é, ela mesma, uma
interpretação e, portanto, controversa. Por essa razão, esses conceitos não são
apreendidos analiticamente, mas sim construtivamente, através do uso da razão
prática
312
. Os principais conceitos políticos possuem natureza interpretativa,
dentre eles o Direito.
Nesse diapasão, DWORKIN sustenta que as doutrinas positivistas se
equivocam ao tratar o Direito como um conceito analítico, eis que a mera
descrição do fenômeno jurídico não abrange toda a sua complexidade. Nesse
sentido, a perquirição do conceito doutrinário do Direito deve começar com a
sua definição, em uma primeira etapa da interpretação construtivista
denominada “Etapa Semântica” (Semantic Stage)
313
, como um conceito
interpretativo.
Enquanto conceito interpretativo, o Direito deve ser definido à luz dos
argumentos políticos que oferecem a sua melhor justificação filosófica.
Conforme visto, DWORKIN compreende o Direito como um “compartimento”
da Moral, e, nesse sentido, em uma “Etapa Filosófica” (Jurisprudential Stage), o
intérprete deve buscar, na moralidade política, os valores que informam e
mostram os principiais conceitos jurídicos, como o de legalidade e Estado de
312
DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 12.
313
Em Law’s Empire DWORKIN apresenta três etapas da interpretação construtivista, a saber: a etapa pré-
interpretativa, a etapa interpretativa e a etapa pós-interpretativa (vide, op. cit, pp. 65 e ss.). em Justice in
Robes DWORKIN utiliza outra denominação para esse procedimento interpretativo e faz uma explicação
pormenorizada. Esta última obra, tanto por ser mais completa quanto por ser mais recente, servirá de base para a
análise das etapas da interpretação construtivista.
140
Direito, em sua melhor luz. É nessa etapa que a integridade e a igualdade
exercem um papel decisivo para a definição do Direito
314
.
Fica explícito, assim, que DWORKIN pretende uma nova leitura da
própria definição de legalidade. Com efeito, um dos principais axiomas do
positivismo jurídico é o de que a compreensão do fenômeno jurídico não
depende do endosso de qualquer valor, ou seja, que o estudo e definição do
Direito devem ser neutros. DWORKIN, a seu turno, defende que o Direito deve
ser compreendido, filosoficamente, a partir dos valores que o interprete entende
serem essenciais para a ordem jurídica. Nessa visão, o próprio positivismo pode
ser compreendido de outra maneira: não a partir de uma teoria a respeito do
significado dos termos jurídicos (filosofia lingüística) ou de uma teoria que diga
respeito apenas ao conceito científico (ou puro) do Direito, mas sim como uma
doutrina que decorre do comprometimento com certos valores políticos, como a
segurança jurídica e a democracia
315
. A divergência entre o “direito como
integridade” e o positivismo jurídico passa, nesse sentido, do prisma da
ontologia, para o da axiologia: enquanto o positivismo, à luz desse novo
paradigma, passa a ser visto como uma teoria que endossa a segurança jurídica
como valor basilar do Estado de Direito, o “direito como integridade”
preferência “ao princípio que o Estado deve tentar, o máximo possível, governar
através de um conjunto coerente de princípios políticos cujos benefícios ele
estende a todos os cidadãos
316
”, princípio esse que foi denominado de
“integridade política”, e que tem implícita em sua própria concepção o princípio
abstrato igualitário.
314
DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 13.
315
DWORKIN expressa esse entendimento na palestra proferida para o Holberg Prize Symposium 2007,
denominada: Law and Polítical Morality. Vídeo disponível em http://video.google.com/videoplay?docid=-
8182465071522193147&hl=undefined#. Acesso em 11.10.09.
316
to the principle that a state should try si far as possible to govern through a coherent set of political
principles whose benefit it extends to all citizens”. DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 13.
141
Sem dúvida, o Estado de Direito, à luz da teoria dworkiniana, deve ser
compreendido a partir de duas idéias basilares: i) a de que o Estado tem o dever
de atuar de acordo com um conjunto coerente de princípios políticos; e ii) a de
que o Estado tem o dever de tratar aos cidadãos com igual respeito e
consideração, estendendo os benefícios decorrentes dos princípios ao qual se
submete a todos os indivíduos, indiscriminadamente. Em termos concretos, esse
comprometimento estatal com o princípio igualitário estipula um dever de, por
intermédio de seus poderes políticos (Executivo, Legislativo e, principalmente, o
Judiciário), buscar a realização da igualdade de recursos, ou seja, a igualdade de
recursos servirá como parâmetro de avaliação das políticas públicas elaboradas
pelo Poder Executivo, das leis promulgadas pelo Poder Legislativo, e das
decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Todos os conceitos políticos
explanados na primeira parte da presente dissertação devem, portanto, ser
utilizados como substrato para a compreensão do Direito no pensamento
dworkiniano.
Assim, na teoria dworkiniana, alguns conceitos centrais da teoria do geral
do direito, como por exemplo a legitimidade da ordem jurídica, não podem ser
explicados sem que se tenha por base o liberalismo igualitário dworkiniano. Por
exemplo, o conceito de legitimidade, que no positivismo hartiano provém do
“aspecto interno da regra”, que decorre do fato de um determinado padrão
jurídico ser reconhecido, por uma regra de reconhecimento suprema
habitualmente aceita, como pertencente ao ordenamento jurídico, agora ganha
contornos substantivos. Com efeito, DWORKIN recorre à idéia de legitimidade
política, proveniente do fato de atos estatais expressarem o um
comprometimento em tratar aos cidadãos com igual respeito e consideração.
Portanto, um conceito que na doutrina positivista, tinha apenas um esboço
142
formal, confundindo-se com legalidade
317
”, adquire, no pensamento
dworkiniano, contornos substantivos, o que somente se compreende com o
estudo do “direito como integridade” à luz do liberalismo igualitário
dworkiniano.
O Direito é semanticamente concebido, então, como um conceito
interpretativo, e filosoficamente comprometido com a integridade e a igualdade,
de modo que os conceitos básicos da teoria geral do direito devem ser
substancialmente compreendidos à luz dos valores políticos identificados na
Etapa Filosófica. DWORKIN sustenta, assim, que em uma “Etapa Dogmática”
(Doctrinal Stage), o intérprete fixe, à luz da integridade, condições de validade
para as proposições jurídicas. Para o filósofo norte-americano, nessa etapa, o
intérprete deve fazer um juízo de adequação da interpretação que propõe fazer,
verificando se a mesma pode ser justificada se confrontada com as demais
interpretações realizadas e, ainda, um juízo valorativo, no qual avaliará se a
sua interpretação leva em consideração os principais valores envolvidos na
proposição jurídica interpretada
318
. Nesse diapasão, uma proposição jurídica será
verdadeira se decorrer dos princípios morais que representarem a melhor
interpretação do ramo do Direito a que a proposição pertencer
319
. Um exemplo
elucidará a questão.
317
Segundo José Eduardo Faria, o conceito de legitimidade, até a Revolução Industrial, “era tratado como uma
questão de definição de pautas: o poder seria legítimo à medida que estivesse em conformidade com a tradução
ou com o jusnaturalismo racionalista”. Após, com o advento da Modernidade e conseqüente mudança da
racionalidade universalista para a racionalidade voltada à eficiência, o problema da legitimidade passou a “ser
visto como uma questão de reconhecimento de pautas: para tornar-se legítimo, o poder depende então de um
critério externo aos legisladores e aos governantes, ou seja, de uma explícita aprovação popular obtida por
procedimentos formais, cf. FARIA, José Eduardo. A Crise Constitucional e a Restauração da Legitimidade.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabrinis Editor, 1985, p. 13.FARIA, no entanto, critica o caráter excessivamente
formalista da legitimidade vista pela ótica liberal, atentando para a necessidade de um conceito substantivo de
legitimidade: “No entanto, essa preocupação excessivamente formal não deixará de lado a questão social? Em
que medida a ênfase ao mercado, onde os mais ricos e os mais cultos m condições substantivas de maximizar
os direitos de cidadania, não perverte o princípio da igualdade?”. A doutrina dworkiniana é sensível ao problema
do excessivo formalismo da legitimidade pregada pelos “liberais clássicos”, razão pela qual coloca a igualdade
em destaque em sua teoria política e vincula a legitimidade à concretização da igualdade de recursos.
318
DWORKIN. Justice…, op. cit., p. 15.
319
Idem. Ibidem. p. 14.
143
Imaginemos a seguinte situação: um indivíduo A” assina um contrato de
prestação de serviços de plano de saúde com a operadora “O”. Referido contrato
possui uma cláusula na qual prevê a cobertura de “tratamento quimioterápico”,
mas contém outra cláusula que exclui a cobertura de medicamentos importados.
Após dez anos da contratação do plano de saúde, “A” foi acometido com um
raríssimo câncer, em estado metastático, e que tem como único tratamento a
realização de quimioterapia com a droga “D”, que é importada. “A”, então, liga
para o seu plano de saúde, pretendendo a obtenção de senha de autorização para
a realização de quimioterapia, com a utilização da droga “D”, no Hospital H”,
que faz parte da rede referenciada do plano de saúde. O plano da saúde, então,
analisa a situação e responde negativamente a A”, alegando que o contrato
firmado entre as parte não oferta cobertura ao tratamento pretendido, uma vez
que há exclusão expressa para quimioterapia com droga importada.
Inconformado, o indivíduo “Aajuíza ação cominatória com pedido de
tutela antecipada em face da empresa “O”, alegando que a cláusula que exclui a
cobertura de medicamento importado é nula de pleno direito, vez que ofende aos
princípios basilares da legislação consumerista, como o princípio da boa-fé
objetiva (CDC, artigo 4.º, inciso III), o princípio de que o consumidor não pode
sofrer desvantagem manifestamente exagerada (CDC, artigo 39) e o princípio de
que as cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em vantagem
desproporcional são nulas de pleno direito. Sustenta, ainda, que a cláusula
ofende ao princípio da função social do contrato (CC, artigo 421) e ofende,
ademais, ao princípio da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1.º, inciso III)
e da cidadania (CF, artigo 1.º, inciso II). Por sua vez, a empresa “O” contesta o
feito, alegando que o princípio basilar das relações contratuais é o pacta sunt
servanda, e que o afastamento da mencionada cláusula fere de morte o aludido
princípio. Fundamenta a sua pretensão no princípio da segurança jurídica e da
legalidade (CF, artigo 5.º, inciso II), e diz, ainda, que o afastamento da cláusula
144
irá criar alterar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado com “A”.
Desta feita, considerando que o juiz da causa aceita, semanticamente, que o
Direito é um objeto interpretativo, e, ainda, filosoficamente, que o Estado
brasileiro está comprometido com a integridade e com a igualdade, como deverá
decidir o a causa? Será que o magistrado pode afastar a aplicação da clausula
combatida e determinar que a operadora de saúde arque com o tratamento
quimioterápico de “A”? Ou, pelo contrário, deverá reconhecer que o princípio
pacta sunt servanda, amparado na legalidade e na segurança jurídica, deve
prevalecer e, portanto, a operadora não teria o dever de custear o tratamento
pleiteado?
A teoria dworkiniana recomenda que o magistrado identifique os
princípios (valores) que estão em questão e decida de acordo com aquele que
mostre o Direito “em sua melhor luz”? Assim, nessa “Etapa Decisória”
(Adjudicative Stage), o intérprete deve, à luz dos valores identificados na Etapa
Dogmática, elaborar uma decisão política que decidirá qual é o Direito no caso
concreto. No exemplo dado, há a necessidade de o intérprete, no caso o
magistrado, identificar o conflito que, em última instância, se dá entre o
princípio da dignidade da pessoa humana e a legalidade e decidir qual dos dois
deverá prevalecer.
Esse juízo, defende DWORKIN, é político
320
e envolve uma apreciação
eminentemente valorativa. No caso em tela, o indivíduo “A” utiliza o que
DWORKIN denomina de argumento de princípio”, fundamentando a sua
pretensão no direito constitucional a uma vida digna. a resistência da
operadora ampara-se em argumentos de natureza econômica e invoca um
princípio da teoria geral dos contratos (pacta sunt servanda) que, embora seja
importante, não pode prevalecer sobre a função social do contrato e, menos
320
Nesse sentido, cf. DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 255-258; DWORKIN. A matter…, op. cit., pp. 66 e ss.
DWORKIN. Taking…, op. cit., pp. 106-107.
145
ainda, sobre a dignidade da pessoa humana. Por essa razão a teoria dworkiniana
indicaria uma solução em favor de “A”.
Questão interessante, e de fundamental importância para a teoria do
Direito, diz respeito à existência ou não de respostas certas em casos complexos.
Foram identificadas duas respostas possíveis no caso apresentado, ambas
juridicamente plausíveis, como deve, nessa situação, atuar o aplicador do
Direito? Deverá o magistrado, discricionariamente, escolher uma dessas
respostas ou existe um dever de buscar a melhor resposta para o caso concreto?
Filosoficamente: existem, em casos complexos, respostas melhores do que as
outras ou as soluções possuem o mesmo peso jurídico?
4.3. CETICISMO, COERÊNCIA E RESPOSTA CERTA
Talvez a principal contribuição de DWORKIN para a Filosofia do Direito
esteja em sua teoria da resposta certa (right answer theory). Embora muitos
autores tenham interpretado a afirmação que o autor norte-americano faz no
sentido de que é possível o interprete alcançar uma resposta correta em um caso
controverso como uma postura que se aproxima de um idealismo
jusnaturalista
321
, não foi esse o sentido que DWORKIN pretendeu conferir à sua
filosofia jurídica.
Para a plena compreensão da tese da resposta certa dworkiniana, é
necessário ter-se em mente o momento histórico em que DWORKIN escreveu a
sua teoria, bem como o estagio evolutivo da teoria política normativa norte-
americana nas décadas de 1970 e 1980. Assim, antes de adentrar propriamente
na análise do combate de DWORKIN ao ceticismo que predominava na filosofia
321
Como por exemplo, GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6.ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2005, p.42 e NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 1ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p.207.
146
do direito, faz-se necessária uma breve introdução acerca da evolução da teoria
política normativa nos Estados Unidos no século passado.
4.3.1.
O
PREDOMÍNIO E DECLÍNIO DO
C
ETICISMO NA TEORIA POLÍTICA
NORMATIVA
A teoria política normativa, na primeira metade do século XX, foi
marcada pelo que VITA denominou de eclipse da teoria política normativa
322
”,
em virtude do predomínio de uma atitude intelectual de ceticismo
323
”,
decorrente do predomínio do positivismo lógico no campo da filosofia analítica.
Assim, ante a predominância do princípio segundo o qual a toda razão
opõe-se uma razão de igual valor
324
”, os filósofos defensores do pensamento
cético defendiam a existência de proposições de duas espécies: i) as proposições
que contém conteúdo cognitivo, dentre as quais as analíticas, “que são
verdadeiras por definição
325
”, como por exemplo os axiomas matemáticos, e as
proposições sintéticas ou empíricas, que são passíveis de demonstração por
intermédio de um raciocínio científico apodítico ou demonstrativo; e ii)
proposições sem conteúdo cognitivo, que exprimem meramente sentimentos de
aprovação ou desaprovação
326
, quais sejam as proposições morais. Nesse
sentido, interessante é a constatação de TAYLOR que o ceticismo acarreta uma
“crença disseminada segundo a qual não se podem discutir posição morais
327
”, o
que significa dizer que uma afirmação moral não é verdadeira ou falsa, mas sim
possui conteúdo meramente subjetivo ou emotivo.
322
Cf. Apresentação da edição brasileira, RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Nova Tradução baseada na
edição americana revista pelo Autor. Tradução: Jussara Simões. Revisão Técnica e da Tradução: Álvaro de Vita.
São Paulo: Martins Fontes, 2008, XII.
323
Segundo Nicola ABBAGNANO, por ceticismo (Scepticism, Scepticisme, Skepticizmus, Scetticismo)
“entende-se a tese de que é impossível decidir sobre a verdade ou a falsidade de uma proposição qualquer”.Cf.
ABBAGNANO, op. cit., p. 151.
324
Idem. Ibidem. p. 151.
325
VITA, Álvaro. Apresentação da edição brasileira do livro Uma teoria da Justiça, op. cit. p. XIII.
326
Idem. Ibidem. p. XIII.
327
TAYLOR, op. cit. p. 47.
147
Foi nesse contexto teórico que BERLIN
328
escreveu seu clássico ensaio
denominado “Ainda Existe a Teoria Política?
329
, no qual questiona a
importância da teoria política normativa para o pensamento contemporâneo,
uma vez que não havia surgido, até então, qualquer obra grandiosa de filosofia
política
330
. Segundo BERLIN, em termos filosóficos, principalmente em virtude
da influência do positivismo lógico
331
, havia, até então, somente dois tipos de
classes de problemas para os quais os homens conseguiam obter repostas claras,
quais sejam, os empíricos, que partiam da observação fática dos fenômenos
naturais e do senso comum diário, e os formais, que consistiam e deduções
realizadas a partir de axiomas, e.g., raciocínio matemático. Afora essas espécies
de questões filosóficas, estar-se-ia no campo da quase-ciênciaou na região
das ideologias, de modo que as proposições morais, que indagam a respeito de
questões de natureza ética ou acerca do que é justo ou injusto, não pertencem ao
reino do conhecimento filosófico-científico
332
.
BERLIN, todavia, rejeita a tese de que as proposições morais não são
passíveis de avaliação racional. Na verdade, sustenta que a pretensão a um
conhecimento definitivo sobre questões eminentemente conflitivas (como o
conceito de igualdade ou justiça) é uma ingenuidade teórica. Com efeito, em
uma sociedade em que predomina a pluralidade valorativa, não se pode
pretender encontrar respostas objetivas a questões dessa natureza pela simples
observação empírica dos fenômenos ou pelo raciocínio lógico-dedutivo. E, nesse
sentido, esse seria o objetivo da teoria política, a qual, sustenta BERLIN:
328
Justifica-se, aqui, a menção a esse autor em virtude da influência que BERLIN exerceu no pensamento
dworkiniano, não apenas com relação ao conceito de liberdade, mas também em termos epistemológicos.
329
BERLIN, op. cit., pp. 99-130.
330
Idem. Ibidem. p. 100.
331
De acordo com Nicola ABBAGNANO, o positivismo lógico ou empirismo lógico consiste em uma corrente
filosófica instaurada no Círculo de Viena e posteriormente seguida por alguns filósofos ingleses e norte-
americanos, no início do século XX, e tinha como principal característica “a redução da filosofia à análise da
linguagem”. Assim, negava a existência de qualquer tipo de conhecimento que não o passível de verificação
empírica ou lógico-dedutiva, cf. ABBAGANANO, op. cit., p. 381. Para a filosofia do direito, o positivismo
lógico ganha importância em virtude de sua influência para o pensamento kelseniano.
332
BERLIN, op. cit., pp. 99-102.
148
não pode então evitar, pela própria natureza de seus interesses, a
avaliação; está completamente comprometida, não com a análise,
mas com as conclusões da validade das idéias do bem e do mal, do
permitido e do proibido, do harmonioso e do discordante, que mais
cedo ou mais tarde toda discussão sobre a liberdade, justiça,
autoridade ou moralidade política está fadada a enfrentar
333
.
Assim, os autores céticos, ao limitarem o conhecimento político científico
apenas às avaliações empíricas e formais, ignoram a própria essência da teoria
política normativa, que é a análise de julgamentos avaliativos. BERLIN
critica, nesse sentido, as teorias que utilizam os julgamentos morais apenas
como instrumentos à consecução de um fim que, supostamente, é aceito
irrestritamente pela sociedade, uma vez que estas pressupõem um consenso
onde, na verdade, há o conflito. De fato, as teorias “monistas”, como o
utilitarismo, que defendem que o objetivo da convivência social é promover “a
maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número possível de
pessoas
334
”, utilizam o raciocínio segundo o qual “tudo-é-ou-um-fim-
indiscutível-ou-um-meio
335
”, e pressupõem a pacificação acerca da questão ética
concernente aos valores individuais: a ação individual serve a um fim maior, que
é a promoção da felicidade.
Nesse diapasão, o utilitarismo acarreta a valorização instrumental
“daquilo que se espera que as pessoas aprendam a valorizar de forma não-
instrumental
336
”, ou seja, a justificação de um comportamento ético, que deveria
ser algo perquirido pela teoria política normativa como finalidade, como objeto,
acabar por tornar-se um meio à realização de um objetivo social definido a
333
BERLIN, op. cit., p. 114
334
ABBAGNANO, op. cit., p. 1172. Nicola ABBAGNANO confere a formulação original da definição de
utilitarismo acima transcrita a Cesare Beccaria.
335
BERLIN, op. cit., p. 108.
336
VITA, Álvaro de. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 15.
149
priori. É nesse contexto que ganha relevância a teoria rawlsiana da Justiça
como Eqüidade” (Justice as Fairness)
O livro A Theory of Justice” (1971) de JOHN RAWLS é,
reconhecidamente, a grande obra de filosofia política do século XX. A teoria
rawlsiana, ao contrário do que defende o utilitarismo, parte da idéia de que toda
pessoa tem uma inviolabilidade baseada na justiça que nem o bem-estar da
sociedade pode atingir. Assim, a “Justiça como Eqüidade” traz consigo o
conceito de que certos direitos do indivíduo não podem ser violados com
fundamento no bem-estar da sociedade (utilitarismo). Para tanto, a
necessidade de que exista uma concepção pública da idéia de justiça, ou seja,
um conjunto de princípios aceitos por todos, bem como que as instituições da
sociedade satisfaçam estes princípios
337
. Assim, a teoria rawlsiana representou
uma evolução da teoria de BERLIN, vez que:
Propõe-se a (...) articular uma perspectiva normativa segundo a qual
se poderia demonstrar que uma determinada configuração de valores
deve ser vista como preferível a outras, pelo menos para nós, que
almejamos ser cidadãos de uma sociedade democrática e pelo menos
com respeito a um rol de questões políticas mais urgentes que
envolvem um componente de desacordo moral
338
.
O modelo contratualista rawlsiano, com seu argumento para a construção
racional dos princípios de justiça a partir da posição original, consiste numa
resposta ao ceticismo e ao relativismo, demonstrando os valores morais são
dotados objetividade e não dependem do arbítrio individual
339
. Pretende, dessa
forma, demonstrar que em uma situação de divergência acerca de questões
concernentes à moralidade, existem argumentos valorativos que são preferíveis a
outros, como demonstra, por exemplo, a concepção rawlsiana de prioridade
léxica do primeiro princípio de justiça, segundo o qual todos os indivíduos têm
337
RAWLS. A Theory, op. cit., pp. 06-07.
338
VITA. Apresentação da edição brasileira do livro Uma teoria da Justiça, op. cit. p. XVIII
339
Nesse sentido, cf. JESUS, op. cit., pp. 31-32.
150
igual direito ao mais amplo rol de liberdades básicas compatível com um rol
similar de liberdades dos demais indivíduos, ao segundo princípio de justiça (as
desigualdades econômicas e sociais deverão ser dispostas de modo que: a) haja
uma expectativa razoável de ser em favor de todos; b) relacionadas a posições e
cargos abertos a todos
340
), ou mesmo o próprio argumento de RAWLS a favor
dos dois princípios de justiça mencionados, em detrimento do princípio da
utilidade.
A idéia de existência de razões objetivas no campo da moral pressupõe,
sem vida alguma, a concepção de razão prática supramencionada, que é uma
forma de raciocínio deliberativo engajado com a ação individual e sua respectiva
justificação ética
341
. Pressupõe, ainda, a existência de uma base pública para a
justificação dos juízos morais, assente na conjunção dos princípios de razão
prática com concepções da sociedade e da pessoa”, sendo a idéia de
razoabilidade o padrão de correção para os juízos morais.
Portanto, tanto em Uma Teoria da Justiçaquanto em O Liberalismo
Político”, RAWLS retoma a essência da teoria política, que é, conforme afirma
BERLIN, que é a preocupação com os julgamentos avaliativos e uma reposta
“política, não metafísica
342
” a toda a tradição cética e relativista que o antecedeu.
Nesse diapasão, considerando que DWORKIN desenvolveu todo o seu
pensamento político e jurídico a partir do construtivismo rawlsiano, a crítica
dworkiniana ao ceticismo positivista, bem como a sua teoria da resposta certa
devem ser compreendidas como uma reverberação da construção teórica de
rawlsiana na dogmática jurídica.
340
CF. RAWLS. A Theory, op. cit., pp. 53 e ss.
341
Cf. POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, pp. 95 e ss.
342
RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., p. 112.
151
4.3.2.
O
C
ETICISMO NO
D
IREITO E A
C
RÍTICA
D
WORKINIANA
A influência cética na teoria do Direito, notadamente na filosofia
positivista, fez com que a compreensão desse campo do conhecimento fosse
isolada dos demais, dentre eles da teoria política. Conforme visto, o positivismo
tinha como principal pretensão conferir sistematicidade e cientificidade ao
estudo jurídico, e, para tanto, fundamentou-se no relativismo moral, eis que, não
sendo as proposições morais dotadas de um conteúdo cognoscitivo, não
deveriam as mesmas ser levadas em consideração para a apreensão o estudo do
Direito
Em termos analíticos, o positivismo reduziu a sua ambição teórica à mera
descrição do Direito, sustentando que o jurista deveria abster-se de juízos
valorativos e apenas descrever, externamente, o Direito. Contrapondo-se a essa
teoria analítica positivista, DWORKIN desenvolveu o conceito de
interpretativismo, e sustentou que o filósofo deve ter uma posição ativa com
relação ao conceito jurídico em exame. Percebe-se, aqui, a nítida divergência
epistemológica existente entre os pensadores positivistas e DWORKIN:
enquanto aqueles fundavam-se na filosofia cética, a filosofia dworkiniana
insere-se na tradição rawlsiana, e traz, com isso, o comprometimento com a
filosofia prática para a compreensão do Direito.
Com efeito, ao analisar o modelo de interpretação do Direito de HANS
KELSEN, foi visto como o filosofo alemão conferia ampla liberdade para o
intérprete, dentro da moldura legal, aplicar o direito como ato de vontade: sendo
o julgamento valorativo eminentemente subjetivo, interessa para o aplicador do
direito apenas a verificação da norma aplicável, sendo a compreensão valorativa
desta apenas a expressão de uma preferência subjetiva. A posição cética
expressada pelo positivismo kelseniano insere-se, assim, no que DWORKIN
denominou de ceticismo interior”, uma vez sustenta uma permanente
152
indeterminação nos julgamentos morais
343
, ante a relatividade e subjetividade
dos mesmos
344
.
O ceticismo interior, explica DWORKIN, “apóia-se na solidez de uma
atitude interpretativa geral para pôr em dúvida todas as possíveis interpretações
de um objeto de interpretação específico
345
”. É o que se verifica na doutrina
kelseniana, dentre outras, na seguinte passagem de sua “Teoria Pura do
Direito”, in verbis:
Uma teoria dos valores relativista não significa como muitas vezes
erroneamente se entende que não haja qualquer valor e,
especialmente, que não haja Justiça. Significa, sim, que não há valores
absolutos mas apenas valores relativos, que o existe uma Justiça
absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós
constituímos através dos nossos atos produtores de normas e pomos na
base dos nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a
pretensão de excluir a possibilidade de valores opostos
346
.
Evidente a influência do positivismo lógico que, como visto, surgiu na
Áustria nos anos 1920 com o Círculo de Viena, o que acarretou uma
preocupação exacerbada de KELSEN com o significado lingüístico dos
conceitos jurídicos, e um conseqüente desengajamento quanto à concretização
de princípios morais de Justiça, por intermédio pela aplicação do Direito,. Nesse
diapasão, conclusão outra não senão a de que a interpretação do texto legal,
para KELSEN, pode levar a mais de uma solução jurídica possível do ponto de
vista lógico. Diante dessa situação, o intérprete não pode fundamentar
substantivamente a escolha por uma delas, vez que esse ato será eminentemente
político e não pode pretender apresentar-se como verdade científica
347
. Diante
de um caso controverso, portanto, o magistrado deve, discricionariamente,
343
DWORKIN, Ronald. Objectivity and Truth: You’d Better Believe It. Philosophy and Public Affairs, vol.
25, n.º 2: Blackwell Publishing, 1996, p. 130.
344
KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., pp. 72 e ss.
345
relies on the soundness of a general interpretative attitude to call into question all possible interpretations of
a particular object of interpretation”. DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 78-79.
346
KELSEN. Teoria Pura..., op. cit., p. 76.
347
Idem. Ibidem. p. 396.
153
escolher qual solução é de sua preferência, não havendo, moralmente, qualquer
constrição à sua decisão.
Por sua vez, o positivismo hartiano representa uma postura cética que
DWORKIN denomina de ceticismo exterior
348
”, ou seja, uma posição
meramente descritiva da realidade e que não pretende realizar juízos de valor
acerca da mesma. Nas palavras de DWORKIN:
O cético externo supõe que pode observar todos os julgamentos
interpretativos confrontando-os com alguma realidade externa, cujo
conteúdo não pode ser determinado por argumentos que se tornam
familiares pela prática, mas que devem ser apreendidos de forma
diversa. Ele supõe que pode ficar totalmente fora do empreendimento,
dar diferentes sentidos para os julgamentos interpretativos dos que
eles têm dentro dele, testar esses argumentos assim concebidos de
alguma maneira diferente do que confrontar os argumentos
desenvolvidos a favor e contra eles na prática ordinária da
interpretação, e julgá-los todos falsos ou sem sentido quando
mensurados contra esse supostamente mais objetivo padrão
349
.
Esse é a interpretação que DWORKIN faz da teoria hartiana, uma vez que
o filósofo inglês afirma, no pós-escrito de seu livro O Conceito de Direito”,
que o seu relato acerca do Direito é “descritivo, na medida em que é moralmente
neutro e não tem propósitos de justificação
350
”. Portanto, existe uma sensível
diferença entre a afirmação kelseniana de que a interpretação do Direito é um
“ato de vontade”, e a de HART no sentido que os juízes, em casos controversos,
decidem “discricionariamente.
348
DWORKIN trata expressamente desse aspecto do positivismo de HART in DWORKIN. Justice..., op. cit.,
pp. 140 e ss.
349
The external skeptic supposes he can check all interpretative judgments against some external reality whose
content is not to be determined by arguments of the sort made familiar by the practice but which is to be
apprehended in some other way. He supposes that he can step wholly outside the enterprise, give some different
sense to interpretative judgments from the sense they have within it, test these judgments so conceived in some
way different from confronting the arguments deployed for and against them in the ordinary practice of
interpretation, and find them all false or senseless when measured against this supposedly more objective
standard”. DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 176.
350
HART, op. cit., p. 301.
154
Com efeito, a postura de KELSEN é interpretativa e reflete uma postura
moral
351
, posto que o filósofo alemão ampara-se em uma teoria do relativismo
moral para negar qualquer possibilidade de se realizar um julgamento avaliativo
objetivo. Já HART, por sua vez, abstém-se de julgamentos morais em nome de
uma pretensão descritiva. Não nega, efetivamente, a existência de valores
morais objetivos, mas sim os renega enquanto pretensão de construção de uma
teoria geral do Direito. Dessa forma, embora ambos defendam posições
“moralmente neutras”, o fazem por razões distintas.
Todavia, tanto o positivismo kelseniano quanto o hartiano trazem uma
conseqüência concreta importante para a prática jurídica: o descompromisso do
jurista com a moralidade. De fato, a neutralidade positivista, de uma forma
geral, acarreta um excessivo formalismo na interpretação do Direito e, por
conseguinte, o seu fechamento hermético, colocando-o em descompasso com a
realidade. Nesse ponto, a teoria dworkiniana representou um verdadeiro avanço
com relação às doutrinas positivistas, vez que, além de ter aberto o sistema
jurídico para a interrelação com outras áreas do conhecimento, preocupou-se
com a sua legitimidade e efetividade no momento áureo da prática jurídica: na
sua aplicação ao caso concreto.
4.3.3.
I
NTEGRIDADE E
C
OERÊNCIA
A interpretação construtivista dworkiniana, conforme visto, visa à
construção (ou reconstrução) do direito vigente à luz da moralidade política
vigente em um determinado momento histórico. Em tal processo, o magistrado,
ao decidir, reconcilia as decisões racionalmente reconstruídas do passado com
pretensão à aceitabilidade racional no presente, ou seja, reconcilia a história com
351
Embora DWORKIN não dialogue diretamente com KELSEN, o filósofo norte-américano refuta o argumento
cético “interior” utilizando os mesmos argumentos que se passa a expor. Cf. DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp.
78 e ss. e DWORKIN. Objectivity and Truth..., op. cit., pp. 129 e ss.
155
a justiça
352
”. Tendo como paradigma o direito norte-americano, no qual é
possível se identificar uma prática jurisprudencial de mais de dois séculos,
DWORKIN aproxima a interpretação da norma legal da interpretação literária,
ressaltando a necessidade de coerência entre as interpretações produzidas no
presente com a “história legal” produzida no passado.
Para o filósofo norte-americano, a interpretação do direito se aproxima da
interpretação das obras de arte na medida em que o magistrado, assim como o
crítico literário, deve interpretar o direito como um todo coerente, ou seja, eles
têm o “dever de criar, na medida do possível, um romance único e integrado
353
”.
Nesse diapasão, a interpretação direito seria, metaforicamente, como um
“romance em cadeia” (The Chain of Law), descrito por DWORKIN nos
seguintes termos:
Cada juiz é, então, como um romancista na cadeia. Ele ou ela deve ler
através do que outros juízes escreveram no passado não apenas para
descobrir o que esses juízes disseram, ou seus estados de consciência
quando disseram isso, mas para alcançar uma opinião acerca do que
esses juízes coletivamente fizeram, no sentido que cada um dos nossos
romancistas formaram uma opinião a respeito do romance coletivo até
então escrito. Qualquer juiz forçado a decidir uma controvérsia
judicial vai achar, se procurar nos livros apropriados, registros de
muitos casos plausivelmente similares decididos décadas ou
mesmo séculos por outros juízes de diferentes estilos e filosofias
jurídicas e políticas diversas, em períodos nos quais processos e
convenções judiciais eram diferentes. Cada juiz deve se considerar, ao
decidir um novo caso, como um parceiro em um empreendimento em
cadeira complexo dos quais essas inúmeras decisões, estruturas,
convenções e práticas são a história
354
.
352
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade I. 2.ª ed. Tradução: Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 264.
353
duty to create, so far as they can, a single, unified novel”. DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 159.
354
“each judge is then like a novelist in the chain. He or she must read through what other judges in the past
have written not only to discover what these judges have said, or their state of mind when said it, but to reach an
opinion about what these judges have collectively done, in the way that each of our novelist formed an opinion
about the collective novel so far written. Any judge forced to decide a lawsuit will find, if he looks in the
appropriate books, records of many arguably similar cases decided over decades or even centuries past by many
other judges of different styles and judicial and political philosophies, in periods of different orthodoxies of
procedure and judicial convention. Each judge must regard himself, in deciding the new case before him, as a
partner in a complex chain enterprise of which of these innumerable decisions, structures, conventions and
practices are the history”. Idem. Ibidem. p. 159.
156
Assim, o magistrado deve considerar a sua interpretação como um novo
capítulo de um romance iniciado, cabendo a ele, nesse diapasão, olhar o que
foi escrito previamente, interpretar toda a prática que o precede, e inserir a sua
contribuição nesse todo complexo, a qual deverá ser coerente com o mesmo e,
ainda, demonstrar a sua finalidade ou valor. Nesse ponto, é nítida a influência da
expressão-chave da hermenêutica gadameriana wirkungsgeschichte” (história
dos efeitos ou das determinações), pelo qual “Gadamer pretende dizer que o
intérprete pode preparar-se para a tarefa interpretativa apenas num contexto de
interpretações dadas, que agem sobre ele de modo irreflexo, levando-o a lidar
não com um objeto “virgem”, mas com estratificações de sentido fornecidas
pelas interpretações passadas
355
”. GADAMER, partindo do conceito
heideggeriano de “circulo hermenêutico”, o qual faz HEIDEGGER “derivar
fundamentalmente a estrutura circular de compreensão a partir da temporalidade
da pre-sença
356
”, sustenta que a tarefa hermenêutica se desenvolve a partir da
própria coisa interpretada, de modo que “aquele que quer compreender não pode
se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a
opinião do texto da maneira mais obstinada, conseqüente possível até que este
acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreensão
357
”.
Os dados constituem, dessa forma, a pré-compreensão do objeto
interpretado, no sentido que a hermenêutica deverá partir dos conceitos prévios,
“que serão substituídos por outros mais adequados
358
”. DWORKIN, assim, parte
da hermenêutica gadameriana para defender que o magistrado, ao interpretar a
lei, deverá fazê-lo a partir das decisões passadas, mas reconstruindo-as,
coerentemente, com o direito vigente, em termos semânticos e, principalmente,
em termos valorativos ou substantivos, sendo essa exigência um reflexo da
355
ABBAGNANO, op. cit, p. 1206, v. Wirkungsgeschichte
356
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 9.ª
ed. Tradução: Flávio Paulo Meurer. Nova Revisão da Tradução por Enio Paulo Gianchini. Rio de Janeiro:
Vozes, 2008, p. 354.
357
Idem. Ibidem. p. 358.
358
Idem. Ibidem. p. 356.
157
integridade, que exige, como visto, da comunidade personificada uma atuação
em acordo com um conjunto coerente de princípios políticos. Dessa forma,
considerando que o Judiciário é uma manifestação da “comunidade
personificada”, deverá, também, observar em sua atuação, os princípios políticos
que informam o todo coletivo.
O requisito interpretativo da “coerência”, assim, não deve ser
compreendido apenas em termos formais
359
, mas sim substantivos. A esse
respeito, imperiosa se faz a análise das críticas dirigidas por HABERMAS e
RICOEUR à interpretação dworkiniana.
4.3.3.1. A crítica de HABERMAS ao “princípio monológico” de DWORKIN
HABERMAS descreve a filosofia jurídica dworiniana como uma teoria
reconstrutiva do direito”, a qual tem como objetivo propiciar, por intermédio do
Poder Judiciário, uma reconstrução racional e coerente do direito vigente
mediante a observância das decisões passadas e dos princípios políticos vigentes
na sociedade. Como resultado desse reconstrutivismo racional, o Direito seria
visto como um sistema de normas idealmente coerentes, justificado
valorativamente pelas decisões tomadas no âmbito judicial
360
.
DWORKIN elabora sua teoria, assim, de acordo com o que HABERMAS
de denomina de “princípio monológico”:
Pois o ponto de vista da integridade, sob o qual o juiz reconstrói
racionalmente o direito vigente, é uma expressão de uma idéia Estado
359
Não concordo, nesse sentido, com a crítica que Sandra Martinho Rodrigues dirige a Dworkin, no sentido de
que “a coerência, na construção de Dworkin, é elevada a critério último e decisivo de “validade normativo-
jurídica”; e a utilização deste critério conduz, como afirma Castanheira Neves, à desconsideração da dimensão
específica exigida pelo caso concreto, e ao desprezo pelos momentos específicos que concorrem nessa decisão.
Assim, sendo, a coerência não constitui um critério metodologicamente válido”, cf. RODRIGUES, Sandra
Martinho. A Interpretação Jurídica no Pensamento de Ronald Dworkin: uma abordagem. Coimbra:
Almedina, 2005, p. 152. Conforme será visto, a coerência, no pensamento dworkiniano, serve a critérios
substantivos (ou seja, trata-se de coerência com valores políticos-normativos), e não a critério jurídico-
dogmáticos, como, no caso da crítica em tela, é a validade. A preocupação de Dworkin com a coerência
interpretativa, portanto, não é formal ou metodológica, mas sim substantiva.
360
HABERMAS. Direito e Democracia...I, op. cit., pp. 261 e ss.
158
de direito que a jurisdição que a jurisdição e o legislador político
apenas tomam empréstimo ao ato de função da constituição e da
prática dos cidadãos que participam do processo constitucional.
Dworkin oscila entre a perspectiva dos cidadãos que legitima os
deveres judiciais e a perspectiva de um juiz que tem a pretensão de um
privilégio cognitivo, apoiando-se apenas em si mesmo, no caso em
que a sua própria interpretação diverge de todas as outras
361
.
A crítica habermasiana, nesse sentido, consiste no fato de DWORKIN
depositar no magistrado a tarefa de interpretar os valores comunitários e realizar
a reconstrução do direito vigente. Segundo o filósofo alemão, a capacidade
sobrenatural que DWORKIN confere a Hércules visa exatamente compensar o
seu isolamento da opinião publica, eis que somente um magistrado com tais
características conseguiria concretizar a integridade e realizar o modelo
interpretativo proposto pelo filósofo norte-americano.
Tal crítica deve ser vista à luz da teoria do agir comunicativo de
HABERMAS, a qual, mediante a adoção de um modelo procedimentalista de
democracia, confere à esfera pública, compreendida como uma “estrutura
comunicacional do agir orientado pelo entendimento
362
”, o locus apropriado
para o debate racional que formará os valores da sociedade e influenciará o
sistema político, ao qual compete a tomada das decisões. Trata-se, assim, de
uma visão de democracia completamente diversa da defendida por DWORKIN:
enquanto este confere ao Judiciário o papel de “fórum do princípio”, onde se
realizará o debate acerca dos direitos individuais (argumentos de princípio) e,
através da reconstrução racional do Direito, serão concretizados os valores
fundamentais da comunidade, HABERMAS confere à opinião pública, formada
na esfera pública (mundo da vida) o mister de modelar o sistema político na
tomada das decisões democráticas.
361
HABERMAS. Direito e Democracia...I, op. cit, p. 276.
362
HABERMAS. Direito e Democracia... II, op. cit., p. 92.
159
Nesse contexto, a crítica habermasiana é no sentido de que o princípio
monológico em que se baseia a interpretação construtivista dworkiniana
apreende a interpretação do Direito como um ato singular, e não como “um
empreendimento comum, sustentado pela comunicação pública dos cidadãos
363
”.
Pela mesma razão, falha a teoria dworkiniana ao defender que Hércules seria
capaz de alcançar a única resposta certa pertinente a cada caso concreto, tendo
em vista que a compreensão da teoria do discurso jurídico como um desenrolar
argumentativo, mediante a qual se obtém apenas uma aceitabilidade racional, e
não argumentos cogentes, faz com que a teoria do direito que DWORKIN
atribui a Hércules teria que ser vista como uma ordem de argumentos por
enquanto coerentes, construída provisoriamente, a qual se exposta à crítica
ininterrupta
364
”.
A crítica de HABERMAS parte de uma premissa correta: a parte mais
frágil da doutrina dworkiniana consiste na atribuição da interpretação do direito
ao juiz Hércules. DWORKIN lança mão desse artifício visando blindar-se de
uma suposta crítica de inaplicabilidade prática de sua teoria do direito, ante as
suas complexas exigências interpretativas, mas acaba abrindo espaço para uma
interpretação idealista de sua teoria. Sem embargo, Hércules é completamente
desnecessário para o entendimento do “direito como integridade”. Nesse
sentido, a crítica ao princípio monológico que fundamenta a interpretação do
direito de DWORKIN tem o mérito de explicitar o idealismo que se mostra
presente na interpretação construtivista dworkiniana: a pretensão de mostrar que
um juiz sobrenatural poderia apreender interpretativamente toda a história
jurisprudencial, toda a prática jurídica e todos os valores políticos existentes em
uma determinada comunidade e chegar a uma solução correta em um hard case.
363
HABERMAS. Direito e Democracia...I, op. cit., p. 278.
364
Idem. Ibidem. p. 282.
160
Duas ponderações, todavia, devem ser feitas. Em primeiro lugar, a leitura
idealista da teoria dworkiniana não é apropriada e, com certeza, não expressa a
visão do autor norte-americano acerca do direito. Pode-se afirmar, com
convicção, que DWORKIN não sustenta a existência concreta de uma resposta
correta nos casos controversos, o que será objeto de estudo no item 4.3.4.
Em segundo lugar, deve-se ter em mente que DWORKIN, em seu livro
mais recente, denominado “Is Democracy Possible Here?”, exalta o debate
político, construído racionalmente por intermédio de princípios políticos
comuns, como forma de deliberação democrática acerca das questões políticas
mais relevantes da comunidade. Assim, embora haja uma descrença implícita
nos poderes legislativo e executivo na teoria dworkiniana, o que explica a visão
idealista da figura do magistrado, DWORKIN não ignora a importância do
debate público para a formação dos valores comunitários.
4.3.3.2. A crítica de Paul Ricoeur: a falta de uma teoria da argumentação
no pensamento dworkiniano
A leitura que RICOEUR faz a interpretação construtivista dworkiniana
parte da constatação de que o filósofo norte-americano, visando combater as
vigas mestras do pensamento juspositivista, desenvolveu uma teoria da
interpretação” visando sustentar que é possível, nos hard cases, chegar a uma
resposta justa, sem que seja necessário o recurso ao arbítrio judicial: é nesse
instante crítico que a teoria jurídica encontra o modelo do texto literário e o
submodelo do texto narrativo, que, nas mãos de Dworkin, passará a ser o
paradigma do texto literário
365
”.
A partir, então, da “fábula da cadeia de narradores”, explica RICOEUR, a
interpretação construtivista dworkiniana coloca em relevo o princípio
365
RICOEUR, op. cit., p. 157.
161
hermenêutico da interpretação recíproca da parte e do todo, conferindo ao
interprete a tarefa de realizar o fit” hermenêutico, “uma vez que a interpretação
recorre de modo visível, na reconstrução do sentido do texto, a relações de
conveniência, justeza ou ajuste entre a interpretação proposta de um trecho
difícil e a interpretação do conjunto da obra
366
”.
No entanto, para RICOEUR, a teoria da interpretação construtivista
dworkiniana carece de uma teoria da argumentação “que pudesse perfeitamente
ser assumida a título mesmo de critério de coerência, seja esta redutível ou não à
coerência narrativa
367
”. Todavia, o próprio RICOEUR encarrega-se de,
brilhantemente, identificar a razão pela qual DWORKIN não desenvolve uma
teoria da argumentação jurídica. Citando o livro de DWORKIN denominado
The Philosophy of Law”, RICOEUR assevera que
Pode-se então perguntar por que Dworkin não explorou uma teoria
mais refinada da argumentação. Certamente não é por falta de sutileza,
pois se trata de temível polemista; mas por razões mais profundas que
são mais bem entendidas quando abordamos a seção “Law as
Interpretation” de Matter of Principle do ensaio “Is Law a system of
rules?”, extraído de The Philosophy of Law. Esse ensaio revela que
DWORKIN está muito menos interessado na formalidade dos
argumentos do que em sua substância e cabe dizer desde já, em sua
substância moral e política. A concepção de direito proposta por esse
notável artigo assenta numa hierarquia entre os diversos componentes
normativos do direito. Mas uma vez, é a polêmica com o
positivistamo de Hart que conduz o jogo. O que se denuncia é a
cumplicidade entre a rigidez jurídica vinculada à idéia de regra
unívoca e o decidionismo que redunda no aumento do poder
discricionário do juiz. A univocidade como se diz com insistência
é uma característica das regras. Não convém aos princípios que, em
última análise, são de natureza ético-jurídico. O direito estabelecido,
na qualidade de sistema de regras, não esgota o direito como
empreitada política
368
.
366
RICOEUR, op. cit., p.157.
367
Idem. Ibidem. p. 158-59,
368
Idem. Ibidem. p. 159.
162
Assim, retomando a distinção feita por DWORKIN entre “regras,
princípios e políticas”, RICOEUR destaca duas características do pensamento
dworkiniano. Em primeiro lugar, a despreocupação com a forma. Com efeito,
DWORKIN não é um autor que escreve de forma sistemática, e, muitas vezes,
peca pela imprecisão dos conceitos que utiliza (muitos dos quais, inclusive,
diferem do comumente utilizado na literatura jurídica). Isso se explica, no
entanto, pela segunda característica marcante da filosofia dworkiniana: a
preocupação com a substância, ou seja, o desenvolvimento da teoria do direito
a partir da teoria política normativa.
Trata-se de um aspecto da teoria dworkiniana que se procurou colocar em
relevo na presente dissertação: embora não se possa extrair, da obra de
DWORKIN, uma verdadeira teoria geral do direito, ante a falta de definição de
alguns conceitos jurídicos clássicos, como os de validade e argumentação, o
“direito como integridade” tem o mérito de relevar a importância da forma, tão
prezada pelos positivistas, e colocar em destaque a substância.
Por essa razão, a tese da resposta certa não pode ser compreendida em
termos lógico-formais, ou mesmo em termos ideais, mas sim deve refletir a
preocupação de DWORKIN com o resgate do dever judicial de buscar a
interpretação mais justa, conforme será visto.
4.3.4. U
MA LEITURA DA
TESE DA RESPOSTA CERTA
”:
O DEVER BUSCAR A
MELHOR SOLUÇÃO
A interpretação do Direito foi tratada, na teoria dworkiniana, como uma
verdadeira “teoria da prestação jurisdicional”. DWORKIN preocupou-se, nesse
sentido, não apenas em formular, abstratamente, uma filosofia interpretativa,
mas sim em concretizá-la na aplicação do direito, pelo magistrado, nos casos sub
judice.
163
Para tanto, o ponto de partida é a rejeição tanto do ceticismo “interior”,
quanto do ceticismo “exterior”. Primeiramente, DWORKIN afirma que o
Direito é um objeto “interpretativo”. Conforme visto, isso significa que o teórico
e o aplicador do Direito elaboram verdadeiros “juízos interpretativos” ao
examinar os conceitos jurídicos. O intérprete, nesse contexto, assume uma
postura ativa, devendo reestruturar o sentido dos conceitos jurídico à luz da
moralidade política da comunidade. O valor político determinante desse
processo é a integridade, que determina que a elaboração, interpretação e
aplicação do Direito deve ser comprometida com um conjunto coerente de
princípios morais, dentre os quais a Justiça, a eqüidade e o devido processo
legal. De forma concludente, DWORKIN afirma que as teorias descritivas do
Direito, que se consubstanciam em um ceticismo exterior, não apenas deixam de
apreender a faceta mais importante do fenômeno jurídico, que é a sua dimensão
de moralidade
369
, mas, ainda, são filosoficamente equivocadas. O são por
simplesmente ignorarem o fato de que a análise de conceitos políticos como a
igualdade, a liberdade, e o Direito não pode ser meramente descritiva, mas antes,
exige, necessariamente, um julgamento substantivo, normativo e politicamente
engajado, ou seja, deve fundamentar-se na teoria política
370
.
O ceticismo interior” expressa, por sua vez, uma posição
verdadeiramente cética e pretende, interpretativamente, afirmar que “nenhum
juízo moral é realmente melhor do que qualquer outro
371
”. Por isso, inclusive,
KELSEN abstrai completamente a validade da norma jurídica com a
conformação com qualquer valor, vez que existem, na comunidade, diversas
concepções de Justiça, possivelmente contraditórias entre si
372
, não cabendo ao
filósofo do Direito emitir juízos avaliativos acerca das mesmas. A aplicação do
369
Essa é a crítica que está por trás da afirmação que DWORKIN faz no sentido que o Direito não é apenas
composto por regras, mas também por princípios e por políticas.
370
Dentre diversas passagem em que DWORKIN expressa essa crítica à filosofia positivista “descritiva”,
destaca-se, por ser mais recente, DWORKIN. Justice..., op. cit., p. 143.
371
DWORKIN. Law’s..., op. cit., p. 85.
372
KELSEN. O Problema..., op. cit.. pp. 69-70.
164
Direito, nesse sentido, expressa apenas um ato de vontade conformado com as
proposições jurídico-normativas: trata-se da exteriorização de um juízo subjetivo
(emotivo).
A crítica de DWORKIN ao ceticismo por ele denominado de interior”
vai além da compreensão da natureza do Direito: é uma crítica sobre a própria
essência da teoria política. De acordo com o exposto, DWORKIN insere-se na
tradição rawlsiana, e, portanto, inclui em seu pensamento filosófico a pretensão
de RAWLS de retomar a teoria política para promover a justificação racional de
certa disposição de valores. DWORKIN utiliza-se, para tanto, do construtivismo
rawlsiano para justificar a defesa de seu liberalismo-igualitário. Visa-se, no
construtivismo político, a obtenção de uma base de sustentação para o debate
político, para a discussão de questões fundamentais, para constituir um consenso
de sobreposição acerca dos valores políticos razoáveis, permitindo sempre a
existência de um pluralismo razoável, ou seja, que haja um consenso acerca das
idéias fundamentais entre doutrinas abrangentes e razoáveis em uma sociedade
democrática, o que acarreta a inexistência de uma doutrina absoluta, mas sim um
consenso razoável acerca de questões de justiça política
373
. O construtivismo,
portanto, não pretende que os indivíduos abandonem as suas concepções
políticas, mas sim que aceitem a existência de valores políticos basilares,
dotados de caráter público, acerca dos quais deverão ser desenvolvidas as
divergências sobre questões da estrutura básica da sociedade, ou seja, os
cidadãos, em uma sociedade democrática, deverão definir “as suas diferenças
fundamentais em função da idéia de razão pública
374
”.
Existem, nesse sentido, certos valores que, racionalmente, devem ser
aceitos pelos indivíduos e deverão informar a elaboração das instituições
políticas da comunidade. A aceitação da teoria construtivista por DWORKIN
373
Cf. RAWLS. O Liberalismo..., op. cit., p. 45.
374
Idem. Ibidem. p. 112.
165
fica bastante clara na concepção dworkiniana de personificação da comunidade
e na defesa que ele faz no sentido que a comunidade norte-americana aceita o
princípio igualitário abstrato como fundamento do Estado democrático: o
princípio igualitário constitui, para DWORKIN, um valor consensual, no sentido
de que as divergências políticas e morais deverão não ir contra a igualdade, mas
sim partir desse valor para a construção dos demais.
A forma axiomática com que DWORKIN concebe a igualdade faz,
conforme visto, com que seu pensamento seja constantemente aproximado da
escola jusnaturalista. Essa interpretação da filosofia dworkiniana equivoca-se,
todavia, justamente pelo fato de ignorar a base construtivista que DWORKIN
utilizou para fundamentar a sua doutrina. A igualdade, nesse sentido, não deve
ser considerada um valor transcendente, mas sim a conseqüência de uma
construção histórica
375
. Nesse contexto, o que significa a afirmação que
DWORKIN faz no sentido de que o magistrado deve buscar a melhor
interpretação moral do Direito? Significaria dizer que existe uma resposta
moralmente superior que, portanto, seria a resposta certa a ser dada em um
determinado caso jurídico?
O Direito como Integridade tem como principal nota distintiva a exigência
que DWORKIN faz de que o intérprete deve, na medida do possível, buscar a
melhor interpretação do Direito em termos morais. Essa afirmação, todavia,
refere-se a duas dimensões de um mesmo fenômeno. A primeira dimensão, que
DWORKIN denomina de integridade pura
376
(pure integrity) diz respeito à
interpretação do Direito levando-se em consideração os princípios de justiça, ou
seja, levando em consideração a justiça distributiva em sua versão mais pura e
abstrata. Em suma, significa interpretar o Direito à luz da igualdade de recursos
375
Por essa razão, afirma LUIZ WERNECK VIANNA que “a história é categoria-chave em Dworkin”, cf.
VIANNA, Luiz Werneck. [et al]. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 1999. p. 36.
376
DWORKIN. Law’s..., op. cit., pp. 203 e ss.
166
em sua forma mais plena, normativamente considerada. Nessa dimensão de
integridade o magistrado é livre para interpretar o Direito sem levar em
consideração as distorções mundanas, de modo a refletir o texto legal sob a
perspectiva da teoria política normativa:
O direito contemporâneo, entretanto, contém um outro direito que
delimita sua ambições para si próprio; esse direito mais puro é
definido pela integridade pura. Compõe-se de princípios de justiça que
oferecem a melhor justificativa do direito contemporâneo, posto que
não são vistos a partir da perspectiva de nenhuma instituição em
particular, abstraindo, desse modo, todas as restrições de eqüidade e
de processo que a integridade exige, Essa interpretação purificada se
dirige não aos deveres distintos de juízes ou legisladores, ou a
qualquer órgão ou instituição política, mas diretamente à comunidade
personificada. Declara como as práticas da comunidade devem ser
reformuladas para servirem, de modo mais coerente e abrangente, à
visão de justiça social que particularmente adotou, mas não estabelece
qual a função que cada autoridade possui nesse grande projeto
377
.
DWORKIN reconhece, no entanto, que o ato interpretativo encontra, no
momento histórico em que o magistrado situa-se, certas limitações que não
podem ser desconsideradas. Com efeito, além das restrições decorrentes da
impossibilidade de concretização da igualdade em sua forma plena, o próprio
Direito possui outros valores que não podem ser descartados pura e
simplesmente em nome da igualdade. Dentre eles, DWORKIN a eqüidade, por
ele utilizado com sentido peculiar, significando a harmonia no exercício do
poder pelas instituições, o devido processo legal, que impõe procedimentos que
devem ser observados para se pleitear um direito em juízo, e a própria
igualdade, aqui concretamente considerada. Nesses termos, a interpretação
possui dois momentos distintos: um no qual o magistrado deve considerar os
377
“Present Law, however, contains another law, which marks out its ambitions for itself; this purer law is
defined by pure integrity. It consists in the principles of justice that offer the best justification of the present law
seen from the perspective of no institution in particular and thus abstracting from all the constraints of fairness
and process that inclusive integrity requires. This purified interpretation speaks, no to the distinct duties of
judges or legislators or any other political body or institution, but directly to the community personified. It
declares haw the community’s practices must be reformed to serve more coherently and comprehensively a
vision of social justice it has partly adopted, but it does not declare which officer has which office in that grand
project”. DWORKIN. Law’s…, op. cit., pp. 406-07.
167
valores políticos normativos em seu caráter mais abstrato, e outro quando ele
promove uma harmonização entre a igualdade abstrata e os demais valores
concretamente considerados (integridade inclusiva). O magistrado, assim, deve
buscar, para o caso concreto, a melhor interpretação do Direito, consideradas
essas duas dimensões de integridade.
Mas de onde decorreria o dever do magistrado em buscar a melhor
solução para o caso concreto? Não poderia ele apenas fornecer uma resposta,
dentre as várias existentes? Observe-se a seguinte passagem de Law’s Empire:
O espírito da integridade, que situamos na fraternidade, seria violado
se Hércules tomasse sua decisão de outro modo que não fosse a
escolha da interpretação que lhe parece a melhor do ponto de vista da
moral política como um todo. Aceitamos a integridade como um ideal
político porque queremos tratar a nossa comunidade política como
uma comunidade de princípios, e os cidadãos de uma comunidade de
princípios não têm por único objetivo princípios comuns, como se
uniformidade fosse tudo o que desejassem, mas os melhores
princípios comuns que a política seja capaz de encontrar
378
.
O juiz, assim, enquanto membro da comunidade de princípio e, ainda,
enquanto órgão da comunidade personificada, tem o dever de interpretar e
aplicar a lei buscando a sua melhor concepção em termos morais. Os casos
difíceis, portanto, não exigem apenas “respostas” jurídicas, mas sim a melhor
resposta que o magistrado possa encontrar, em termos de moralidade
política. DWORKIN, no entanto,em momento algum defende que existe apenas
uma resposta correta, mas apenas que não se pode partir, como pretendem os
positivistas, da conclusão cética de que não existe uma resposta melhor do que a
outra, mas apenas respostas. Parece um tanto quanto equivocada, nesse
diapasão, ler a “tese da resposta certa” dworkiniana como que defendendo a
378
“The spirit of integrity, which is located in fraternity, would be outraged if Hercules were to make his
decision in any way other than by choosing the interpretation that he believes best from the standpoint of
political morality as a role. We accept integrity as a political ideal because we want to treat our political
community as one principle, and the citizens of a community of principle aim not simply at common principles,
as if uniformity were all they wanted, but the best common principles politics can find. DWORKIN. Law’s..., op.
cit., p. 263.
168
existência de uma resposta transcendental, superior, correta em si mesma, para
os casos controversos.
Pelo contrário, DWORKIN apenas afirma que, em termos morais e
políticos, existem interpretações que melhor se coadunam com os princípios de
uma determinada comunidade. Para tanto, o intérprete deve amparar-se na teoria
política normativa, o que significa, à luz do pensamento dworkiniano, que o
magistrado deve buscar no liberalismo igualitário, ou seja, na igualdade de
recursos o parâmetro para a interpretação da lei:
A igualdade é central para a filosofia política de Dworkin e forma o
foco prioritário em sua filosofia jurídica. A conexão com o Direito é
que fazer a melhor leitura da lei significa fazer a sua melhor leitura
moral dela, e isso significa fazer a melhor leitura moral em termos
igualitários
379
.
Faz-se aqui, portanto, a conexão entre a filosofia política e a filosofia
jurídica de DWORKIN. A importância da igualdade de recursos, nesse sentido,
figura em termos interpretativos. Entendo que é na interpretação da Constituição
que a igualdade de recursos pode servir de parâmetro para a definição de certos
direitos individuais. Essa idéia ficará clara com a interpretação do direito à
saúde à luz da Constituição Federal de 1988, tema a ser abordado no derradeiro
Capítulo de presente dissertação.
379
Equality is central to Dworkin’s political philosophy and forms a major focus in his legal philosophy. The
connection with law is that making the best sense of the law means making the best moral sense of it and that
means making the best sense of it in terms of equality”. GUEST, op. cit.. p.254.
169
CAPÍTULO V
O PENSAMENTO DWORKINIANO E A INTERPRETAÇÃO DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Na primeira parte desta dissertação foram dedicados alguns capítulos para
o estudo do liberalismo igualitário dworkiniano, o qual representa uma
reinterpretação do liberalismo norte-americano, em especial da dinâmica
existente entre a igualdade, a liberdade e a fraternidade. À luz de sua teoria
política, foi visto como a interpretação do direito, para DWORKIN, não consiste
em apenas buscar o significado semântico da lei, mas sim num verdadeiro
exercício construtivo, em que o magistrado deve buscar o melhor significado
moral do instituto jurídico interpretado. A teoria do direito dworkiniana, assim,
busca uma interrelação entre o direito e a moralidade política, o que influencia
de maneira decisiva a aplicação da lei ao caso concreto.
No presente e derradeiro capítulo desta dissertação pretendo fazer uma
relação entre o pensamento dworkiniano e a interpretação da Constituição
brasileira de 1988. Pretende-se, dessa forma, mostrar de que forma o
pensamento dworkiniano pode servir como substrato para a elaboração de uma
reflexão crítica das decisões proferidas pela Ministra do Supremo Tribunal
Federal Ellen Gracie na Suspensão de Segurança n.º 3073 e na Suspensão de
Tutela Antecipada n.º 91, na qual reconheceu que as decisões do Poder
Judiciário que reconhecem o dever do Estado em fornecer gratuitamente
medicamentos de alto custo, pode representar uma violação ao artigo 196 da
Constituição da República.
170
5.1. O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO E A
EVOLUÇÃO DO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
A Constituição brasileira de 1988, que foi corolário da redemocratização
do país ocorrida na década de 1980, é, sem dúvida alguma, o texto
constitucional mais liberal e democrático que o país teve, visto que foi uma
das que mais ampliou o rol dos direitos sociais na história da nossa República
380
.
Com o advento na nova ordem constitucional, houve uma mudança na
concepção do papel do Judiciário no Brasil: antes formalista e hermético, o
Poder Judiciário passou a conscientizar-se de que havia a necessidade de
aproximar a interpretação das normas jurídicas com a realidade. Isso se deu,
basicamente, em virtude da positivação de “normas de textura aberta”, que
exigem em sua interpretação “critérios de racionalidade material
381
”:
No atual Estado-Providência, com seus diferentes e complexos papéis
como provedor de serviços básicos, como promotor de novas relações
sociais, como planejador de atividades econômicas e até mesmo como
agente diretamente produtor de bens e serviços, muitas de suas leis
caracterizam-se por suas funções promocionais o que exige de seus
aplicadores, nos tribunais, um esforço de compreensão valorativa de
suas regras, mediante procedimentos mais abertos e flexíveis do que
os previstos pela hermenêutica comum ao Estado liberal
382
.
FARIA constata, assim, uma mudança na racionalidade a ser utilizada
pelo Poder Judiciário a partir do advento na nova ordem constitucional: ante a
falência do positivismo jurídico e sua defesa do “fechamento estrutural” do
Direito (racionalidade formal), surge uma nova racionalidade, denominada de
“material”, que visa a compreensão do Direito a partir de seu caráter axiológico,
o que leva à substituição das “pautas hermenêuticas normativamente estritas por
380
Nesse sentido, cf. CARVALHO, José Murilo de. A cidadania no Brasil: o longo caminho. 11.ª Ed. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 2008, pp. 199 e ss.
381
FARIA, José Eduardo. As transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais. In
FARIA, José Eduardo [org.]. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1.ªed. São Paulo: Malheiros, 2005,
p. 63.
382
Idem. Ibidem. p. 62.
171
pautas bem mais flexíveis, baseadas em critérios de racionalidade
material(...)
383
”. Trata-se de uma racionalidade que busca uma reaproximação
entre a filosofia jurídica e a moralidade, pondo em relevo o conteúdo moral e/ou
político dos conceitos jurídicos.
É nesse contexto que deve ser compreendido o direito à saúde na
Constituição da República, previsto primeiramente como direito social
384
, no
artigo 6.º, caput e, posteriormente, no capítulo referente à Ordem Social, como
“direito de todos e dever do Estado”, devendo ser concretizado mediante
políticas públicas que visem garantir aos cidadãos o acesso “universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção”.
Mas o que significa acesso “universal e igualitário” aos serviços de saúde?
Naturalmente, o Poder Judiciário pátrio, por intermédio de seu órgão de cúpula,
firmou posição no sentido de que o artigo 196 da Lei Maior, enquanto
supedâneo dos princípios da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1.º, inciso
III) e da cidadania (CF, artigo 1.º, inciso II), representa a consagração do dever
estatal em garantir à população o acesso amplo e irrestrito aos meios necessários
à garantia do direito à saúde. Nesse contexto, por exemplo, menciona-se o voto
do Ministro do Supremo Tribunal Federal Dr. Celso de Mello no Agravo no
Recurso Extraordinário n.º 271.286 8/Rio Grande do Sul, no qual figuram
como agravante o Município de Porto Alegre e como agravada a Sra. Diná Rosa
Vieira, e cuja matéria em debate é o fornecimento de medicamento para
pacientes destituídos de recursos financeiros e portadores do vírus HIV, in
verbis:
383
FARIA, As Transformações..., op. cit., p. 63.
384
Cumpre salientar que, consoante ensina o constitucionalista português J.J. Gomes CANOTILHO que os
sociais inserem-se no que ele denomina de “Constituição Social”, que consiste no “conjunto de direitos e
princípios de natureza social formalmente plasmados na Constituição”, consubstanciando-se em um
“superconceito que engloba os princípios fundamentais daquilo a que vulgarmente se chama ‘direito social’”.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ªed. Coimbra: Almedina, 2003,
p. 348.
172
Na realidade, o reconhecimento judicial da validade jurídica de
programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas
carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, deu
efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República
(arts. 5.º, caput, e 196), representando, na concreção do seu alcance,
um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas,
especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a
consciência de sua própria humanidade e de sua essência dignidade.
Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à
saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à
generalidade das pessoas pela própria Constituição da República.
Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja
integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a
quem incumbe formular e implementar políticas sociais e
econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive
àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar
385
.
Ademais, no decisum acima transcrito, o Douto Ministro reconheceu que
as controvérsias que envolvem o fornecimento de medicamentos de alto custo
envolvem um conflito entre, de um lado, o direito subjetivo à saúde e à vida do
cidadão que necessita do fármaco e, de outro lado, os interesses financeiros do
Estado, optando pela prevalência do primeiro “por razões de ética-jurídica”:
Tal como pude enfatizar, em decisão por mim proferida no exercício
da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto
assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246 SC), entre proteger a
inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como
direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria
Constituição da República (art. 5º, caput, art. 196), ou fazer
prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse
financeiro e secundário do Estado, entendo uma vez configurado
esse dilema que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador
uma e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável
à vida e à saúde humana, notadamente daqueles que têm acesso, por
força da legislação local, ao programa de distribuição gratuita de
medicamentos, instituído em favor de pessoas carentes.
385
Fonte: http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/342_REAgR%20271286%20saude.pdf. Acesso em 22 de
setembro de 2009.
173
A questão do fornecimento de medicamentos, no entanto, tomou
contornos mais conflitivos com as decisões proferidas pela então Ministra
Presidente do Supremo Tribunal Federal Dra. Hellen Gracie, no ano de 2007, na
Suspensão de Segurança n.º 3073 e na Suspensão de Tutela Antecipada n.º 91.
Ambas as decisões possuem objeto semelhante, a saber, a suspensão de medida
antecipatório dos efeitos da tutela jurisdicional proferida pelo Juízo local,
determinado que o Estado fornecesse, gratuitamente, medicamentos de alto
custo a indivíduos portadores de enfermidades de extrema gravidade.
Identificando o mesmo conflito existente entre o direito subjetivo
inalienável à vida e à saúde, e os interesses estatais em efetivar as políticas
públicas de saúde e, ainda, com fulcro no mesmo artigo 196 da Constituição
Federal, a Ministra Hellen Gracie determinou a suspensão das aludidas decisões
liminares, alegando suposta lesão à ordem pública nos seguintes termos:
Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública,
considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a
execução de decisões como a ora impugnada afeta o abalado
sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de
saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior
racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem
ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível
de beneficiários.
Entendo que a norma do art. 196, da Constituição da República, que
assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de
políticas públicas que alcancem a população como um todo,
assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações
individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os
recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode
vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao
deferir o custeio de medicamento em questão em prol do impetrante,
está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de
saúde básicos ao restante da coletividade.
Vê-se, portanto, que, a partir da interpretação de um mesmo dispositivo
legal, houve a prolação de duas decisões diametralmente opostas: uma
reconhecendo que o artigo 196 da Constituição, ao mencionar o acesso
174
“universal e igualitário” à saúde, representa um direito subjetivo inalienável e
que deve prevalecer sobre os interesses econômicos do Estado e, outra
interpretando que a garantia do acesso universal e igualitário à saúde significa,
antes, a efetivação das políticas públicas de saúde que “alcancem a população
como um todo (...) e não situações individualizadas”.
Assim, ambas as decisões são juridicamente justificáveis e representam
interpretações distintas de um mesmo artigo de nossa Carta Política. Ainda, a
controvérsia a respeito do fornecimento de medicamentos de alto custo é atual e
gerou, inclusive, a convocação de uma audiência pública, que foi realizada em
abril de 2009 e que envolveu a discussão do tema com diversos profissionais e
especialistas na área da saúde, não havendo, ainda, um posicionamento pacífico
do Supremo Tribunal Federal acerca do tema
386
.
Pretende-se, dessa forma, analisar como a posição exarada pela Ministra
Hellen Gracie na Suspensão de Segurança n.º 3073 , que utilizou-se de uma
racionalidade material econômica para justificar uma lesão à ordem pública,
exigiu uma melhoria qualitativa na análise da matéria, e como a teoria
dworkiniana pode ser utilizada para sustentar uma posição contrária à defendida
pela Ministra.
5.2. UMA QUESTÃO INTERPRETATIVA
A solução da controvérsia envolvendo o fornecimento de medicamentos
de alto custo, no âmbito do Poder Judiciário, deve envolver, necessariamente,
uma tomada de posição acerca da amplitude da expressão “universal e
igualitário”, contida no caput do artigo 196 da Constituição Federal. Tal
questão, no entanto, extrapola os limites do Direito. Com efeito, se partíssemos
386
No entanto, aos 18 de setembro de 2009, o Ministro Presidente Gilmar Mendes indeferiu o pedido de
Suspensão de Tutela Antecipada n.º 244, reconhecendo o dever do Estado do Paraná em fornecer o medicamento
NAGLAZYME (Galsulfase), tendo em vista a sua eficácia para o combate da doença que acomete o paciente.
175
do “paradigma da dogmática jurídica”, o qual concebe o fenômeno jurídico
“basicamente como uma ordem coativa unitária, completa e fechada, que exclui
a contradição e a descontinuidade, satisfazendo um ideal de racionalização
formal (...)
387
”, a interpretação desses conceitos se reduziria a uma analise da
legalidade/ilegalidade, ou melhor, da compatibilidade ou não de uma
determinada interpretação com a nossa ordem constitucional.
Pretendeu-se no presente trabalho, a partir do exame do pensamento
jusfilosófico de RONALD DWORKIN, demonstrar que certos conceitos
jurídicos são interpretativos” e que, por essa razão, exigem que o aplicador do
direito recorra à teoria política normativa. Ou seja, não basta a apreensão do
conteúdo formal desses conceitos à luz do ordenamento jurídico, mas sim a
necessidade da compreensão da dimensão material do mesmos, de modo a
possibilitar ao intérprete a justificação de determinados comportamentos e,
principalmente, das decisões judiciais. Trata-se, portanto, de um exercício de
razão prática, que envolve juízos de valor e ponderações principiológicas.
Em termos constitucionais, DWORKIN denomina a atividade
interpretativa com base em princípios morais de moral reading (leitura moral).
A leitura moral, que nada mais é do que a aplicação específica da teoria “direito
como integridade” para a interpretação do texto constitucional, parte do
princípio de que os conceitos interpretativos, tais como a igualdade e a liberdade
e, no caso em tela, a universalidade e equidade do acesso à saúde, “referem-se a
princípios morais abstratos e, por referência, incorporam-nos como limites ao
poder do Estado
388
”. Isso significa, no contexto do pensamento dworkiniano,
que a interpretação constitucional exige do hermeneuta uma análise dos
387
FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1.ª edição. 4.ª tiragem. São Paulo: Malheiros,
2004, p.269.
388
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a Leitura Moral da Constituição Norte-Americana.
Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10.
176
princípios morais da comunidade em que ele se situa, que estão insculpidos, em
grande parte, na própria Carta Política.
Assim, verifica-se, primeiramente, que os valores que envolveram o
processo de feitura do texto constitucional, os quais foram declarados pelos
legisladores constituintes, são determinantes para a compreensão do que
DWORKIN denomina de moralidade constitucional”, que são os princípios
informativos da Lei Maior. O que não significa, todavia, que o intérprete deve
recorrer a uma “intenção dos constituintes” ou perquirir o que eles pretendiam
dizer, mas sim que a correta compreensão dos princípios morais exige do
intérprete:
(...) um trabalho de equipe junto com os demais funcionários da
justiça do passado e do futuro, que elaboram juntos uma moralidade
constitucional coerente; e devem cuidar para que suas contribuições se
harmonizem com todas as outras
389
.
A “integridade constitucional” exige, dessa forma, que o hermeneuta
analise a Constituição à luz dos princípios morais da comunidade, mas que o
faça em coerência com o passado e observando as conseqüências de sua
interpretação para o futuro, uma vez que a Constituição, enquanto texto
legislativo, “está ancorada na história, na prática e na integridade
390
”. Nesse
sentido, assevera DWORKIN que:
Os juízes devem submeter-se à opinião geral e estabelecida acerca do
caráter do poder que a Constituição lhes confere. A leitura moral lhes
pede que encontrem a melhor concepção dos princípios morais
constitucionais a melhor compreensão, por exemplo, de o que
realmente significa a igualdade moral dos homens e das mulheres 0
que se encaixe no conjunto da história norte-americana. Não lhes pede
que sigam os ditames de sua própria consciência ou as tradições de
sua classe ou partido, caso esses ditames ou tradições não se encaixem
nesse conjunto histórico
391
.
389
DWORKIN. O Direito..., op. cit., p. 15. Em Law’s Empire, DWORKIN denominou esse processo
intepretativo de “romance em cadeia”, cf., op.cit., pp. 228 e ss.
390
Idem. Ibidem. p. 17.
391
Idem. Ibidem. p. 16.
177
A leitura moral, enquanto técnica interpretativa do texto constitucional,
pressupõe que os magistrados, ao decidirem uma determinada lide, tomam
decisões substantivas, e não meramente procedimentais. Dessa forma,
DWORKIN reserva ao Poder Judiciário um papel central tanto em sua filosofia
do direito, como em sua teoria política, uma vez que parte de uma concepção
substancialista de democracia, no sentido de que o princípio democrático se
realiza em uma determinada sociedade mediante a concretização de
determinados valores fundamentais.
Nos Estados Unidos, e idéias de que a Suprema Corte tem a incumbência
de proteger a democracia é extremamente difundida. Todavia, existe uma cisão
doutrinária acerca da forma como isso deve ser feito. Para alguns autores,
defensores da doutrina procedimentalista, cujo principal representante é John
Hart ELY, o Poder Judiciário deve zelar pelo procedimento democrático, mas
não deve adentrar em questões que envolvam julgamentos valorativos, visto que
estes são privativos do Poder Legislativo. Os procedimentalistas qualificam,
nesse sentido, um governo como democrático quando a escolha dos
representantes e a tomada das decisões observam as regras ou procedimentos
previstos na legislação. Por essa razão, IAN SHAPIRO denomina essa corrente
de “rule-centered”, destacando que as regras estão no centro ou na essência da
democracia
392
. Dizer que as regras estão na essência da democracia acarreta duas
características fundamentais da teoria democrática procedimentalista. A primeira
delas é que o princípio majoritário ganha um papel de destaque, razão pela qual
RONALD DWORKIN se refere a essa doutrina como majoritarian
view”(visão majoritária), no sentido de que “a democracia é o governo pela
392
SHAPIRO, Ian. Components of the democratic ideal. In BRETON, Albert [et al]. Understanding
Democracy. London: Cambridge University Press, 1997, p. 212.
178
vontade da maioria
393
”. O procedimento democrático deve, assim, procurar
captar a vontade da maioria dos cidadãos, sem importar se essa vontade da
maioria é justa ou injusta. Isso significa que uma decisão democrática, para os
procedimentalistas, pode ser injusta, e nem por causa disso deixará de ser
democrática.
DWORKIN ressalta que a visão majoritária da democracia não exige, por
exemplo, que o debate político seja constituído de argumentos fundados em
valores políticos, visto que não há uma responsabilidade democrática para a
busca da melhor decisão para a sociedade
394
. O princípio majoritário, nesse
sentido, é visto para os procedimentalistas como um princípio absoluto e como
um valor político independente. Assim, da defesa do princípio majoritário
decorre a segunda característica do procedimentalismo, que é a defesa de uma
atuação restrita do Poder Judiciário, em especial da Suprema Corte. Para os
adeptos desse paradigma democrático, o Judiciário deve se limitar a intervir para
que os procedimentos democráticos sejam preservados. A interpretação
constitucional, nesse sentido, deve ser meramente procedimental, de modo a
garantir um processo legislativo democrático
395
.
O procedimentalismo, todavia, foi severamente criticado por sua
despreocupação com o conteúdo da decisão democrática e pelo fato de,
freqüentemente, lesar os direitos das minorias
396
. A partir dos efeitos nefastos
que decorrem da adoção do paradigma procedimentalista,, passou-se a
questionar se o princípio majoritário deve, de fato, ter a posição de destaque que
aquela doutrina o reservou, e se o Judiciário não deveria ter um papel mais ativo
na construção de uma sociedade democrática. A doutrina substancialista
representa uma contraposição ao puro procedimentalismo, sustentando que a
393
democracy is government by majority will”. DWORKIN. Is Democracy…, op. cit., p. 131.
394
Idem. Ibidem. p. 132.
395
VIANNA, op. cit., p. 29.
396
SHAPIRO, op. cit., p. 212.
179
democracia deve visar à consecução de determinados valores, que têm por
objetivo balizar as decisões políticas. Nesse sentido, ensina IAN SHAPIRO que
a corrente substancialista:
“(...) especifica resultados distributivos ou estado de coisas (igualdade,
diminuição de certos tipos ou graus de desigualdade, ou algum outro
estado) com referência aos quais os resultados de diferentes regras de
decisão são avaliados por sua adequação ou justiça”
397
.
Trata-se, portanto, de uma doutrina teleológica da democracia, que
prioriza a realização de determinados valores políticos (outcome-centered) em
face da vontade da maioria. Ao invés da sacralização da vontade da maioria, o
substancialismo preocupa-se com a limitação dos possíveis efeitos negativos que
a decisão majoritária possa ter sobre as minorias. Em razão disto, os adeptos
desse paradigma defendem uma ação incisiva do Poder Judiciário na proteção
dos direitos fundamentais
398
. Esse é o paradigma democrático adotado por
DWORKIN, uma vez que o autor norte-americano entende que o princípio
majoritário não é absoluto, mas antes, pressupõe que alguns valores estejam
concretizados na comunidade. Nesse sentido, ao comentar a importância teórica
e política da decisão da Suprema Corte Americana no caso Marbury vs
Madison, DWORKIN constata que o Judiciário possui o papel de “tomar
decisões (...) sobre que direitos as pessoas m sob nosso sistema constitucional,
não decisões sobre se promove melhor o bem-estar geral
399
”. Trata-se de uma
garantia de que as decisões envolvendo os direitos fundamentais, em uma
sociedade democrática, não serão decididas segundo uma racionalidade
econômica ou que permita a prevalência do poder político, mas antes “serão
397
SHAPIRO, op. cit., p. 212.
398
Idem. Ibidem. p. 212.
399
make decisions of principle rather than policy – decisions about what rights people have under our
constitutional system rather than decisions about how the general welfare is best promoted”. DWORKIN. A
Matter..., op. cit., p. 69.
180
finalmente expostas e debatidas como questões de princípio e não apenas de
poder político (...)
400
”.
Assim, a solução do problema proposto, que diz respeito a um dos direitos
mais importantes dentre os protegidos pela ordem constitucional pátria, exige
um juízo de moralidade política, com o intuito de determinar o alcance jurídico
da garantia que o artigo 196 da Constituição Federal confere aos cidadãos
brasileiros, qual seja, que as políticas públicas, no que diz respeito à saúde,
deverão tender à universalidade e a igualdade.
5.3.
A
CRISE
DO
ESTADO
SOCIAL
E
O
DIREITO
À
SAÚDE
Ao desenvolver o conteúdo abstrato do princípio igualitário, DWORKIN
tem uma nítida preocupação com a efetivação da justiça distributiva. Com
efeito, a igualdade de recursos é, efetivamente, um parâmetro normativo para a
distribuição dos bens sociais. Assim, para se verificar a utilidade que a teoria
dworkiniana pode ter para a solução do caso prático proposto, deve-se responder
à seguinte pergunta: de que forma a Constituição Federal de 1988 relaciona o
direito à saúde com a justiça social ou distributiva?
O direito à saúde, enquanto direito social, representa o direito,
parafraseando CANOTILHO, a prestações em sentido estrito
401
, ou seja, o
direito um ato positivo do Estado, no sentido de elaborar uma política pública
para garantir a efetivação da saúde pública. Nesse contexto, à previsão abstrata
do direito à saúde como direito social, contida no caput do artigo 6 da
Constituição, corresponde uma norma programática, que determina a sua
efetivação mediante políticas públicas que tendam a garantir o acesso universal
e igualitário “às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
400
DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 70.
401
CANOTILHO, J.J. Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. 1.ª ed. brasileira. 2.ª ed. portuguesa.
Coimbra: Coimbra editora, 2008, p. 51.
181
Trata-se, na lição clássica de JOSÉ AFONSO DA SILVA, de uma norma
constitucional de eficácia limitada, que não estipulam direitos subjetivos, mas
antes, são normas constitucionais:
(...) através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e
imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os
princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos,
executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das
respectivas atividades visando à realização dos fins sociais do
Estado
402
.
Os direitos sociais, por essa razão, não estão abarcados pelo conceito
clássico de “direito subjetivo”, uma vez que, sendo a sua norma instituidora
meramente programática, sem, portanto, imperatividade, não existe o dever
jurídico correlativo, de modo que não haveria como se exigir, judicialmente, a
efetivação de um direito dessa natureza. Essa concepção dos direitos sociais, no
entanto, é atualmente vista como conservadora, sendo certo que, hodiernamente,
a doutrina constitucional tem compreendido que existem instrumentos
processuais para se pleitear, perante o Judiciário, a efetivação dos direitos
sociais
403
. Mas no que a doutrina política de RONALD DWORKIN pode
acrescentar nesse debate, em especial para o caso brasileiro?
A garantia do acesso universal e igualitário às políticas públicas
relacionadas à saúde está prevista no Título VIII do texto constitucional. Logo
no artigo 193, que inaugura o Título referente à “Ordem Social”, resta
estabelecido que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como
objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. De forma expressa, portanto, a justiça
social é vista como um parâmetro para a consecução dos direitos relacionados à
ordem social, como é o caso do direito à saúde. Nesse diapasão, visando,
402
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7. ª ed, São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 138.
403
A esse respeito, cf. CANOTILHO. Estudos..., op. cit., pp. 35 e ss. e LOPES, José Reinado de Lima. Direito
Subjetivo e Direitos Sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito, in FARIA. Direitos
Humanos..., op., cit., pp. 113 e ss.
182
conforme determina DWORKIN, a interpretação da Constituição à luz da
melhor compreensão moral de seus dispositivos, resta claro que o intérprete
deve atribuir significado (e não apenas descrever), com base na teoria política
normativa, aos termos “universal” e “igualitário”, expressos no artigo 196 da Lei
Maior.
5.3.1.
O
PROBLEMA DA GOVERNABILIDADE
Assim, o magistrado deve buscar na teoria política os critérios de justiça
para a definição e justificação da decisão que será tomada no caso concreto.
Talvez nesse ponto as decisões suspensivas de tutela antecipada proferidas pela
Ministra Ellen Gracie tenham representado um avanço na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, não propriamente por seus fundamentos, mas sim
por trazer ao debate o conflito que existe, em cada caso, entre a chamada
“reserva econômica do possível” (Vorbehalt des Möglichen)
404
e a efetivação
dos direitos sociais
405
. A questão que ganha relevância, portanto, diz respeito ao
efeito que a concretização do direito à saúde pode ter sobre a governabilidade.
Segundo demonstra a Ministra Ellen Gracie na fundamentação de sua
decisão, a manutenção das decisões atacadas pela Suspensão de Segurança
poderia afetar o abalado sistema público de saúde”, havendo a necessidade,
nesse sentido, de uma “racionalização” entre o custo e o benefício dos
tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, de modo a abranger o
404
CANOTILHO. Estudos sobre..., op. cit., p. 52.
405
Um interessante levantamento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca dos direitos sociais feito
por Daniel Wei Liang Wang em um artigo publicado pela na Revista de Direito da GV, mostra que o
entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o direito à saúde pode ser dividido em duas etapas: antes da
Suspensão de Tutela Antecipada n.º 91 e depois dessa decisão. Em um primeiro momento, verifica-se que o
órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro conferia os medicamentos pleiteados sem se preocupar com o
conflito existente com a escassez de recursos, ao passo que em um segundo momento, após as decisões da
Ministra Ellen Gracie, esse conflito mostrou-se mais evidente, o que representou “ganhos qualitativos em razão
da maior qualidade da argumentação”. Cf. WANG, Liang Wei Daniel. Escassez de Recursos, Custo dos
Direitos e Reserva do Possível na Jurisprudência do STF. Revista Direito GV São Paulo. Julho-dezembro
de 2008, pp. 538-568. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v4n2/a09v4n2.pdf. Acesso em 16.11.2009.
183
maior número possível de pessoas. É nítida, assim, a preocupação com uma
possível incapacidade de efetivar as políticas públicas relacionadas à saúde, na
hipótese de manutenção das decisões que obrigaram o Estado a fornecer
gratuitamente os medicamentos de alto custo, ou seja, com o aumento da
litigância acerca do acesso aos tratamentos e medicamentos de alto custo, pode
ocorrer que as despesas sociais cresçam de forma mais acelerada dos que os
meios disponíveis para financiá-las. Assim, assevera FARIA:
Como é sabido, essas despesas, uma vez efetivadas, convertem-se em
direitos sociais que acabam não podendo mais ser suprimidos sem o
risco de grandes tensões sob forma de greves por vezes selvagens,
protestos por vezes violentos, e grandes mobilizações para a
sustentação dos governos e para a legitimidade do próprio sistema
político
406
.
O problema da crise de governabilidade está, assim, relacionado com o
alto custo dos direitos sociais, associado à dificuldade do Estado Social de
manter uma política econômica sustentável. Existem algumas condições básicas
que devem ser observadas para que o Estado intervencionista possa
“desempenhar positivamente as suas tarefas de sociabilidade”, a saber:
(1) provisões financeiras necessárias e suficientes, por parte dos cofres
públicos, o que implica um sistema fiscal eficiente e capaz de
assegurar e exercer relevante capacidade de coacção tributária;
(2) estrutura da despesa pública orientada para o financiamento dos
serviços sociais (despesa social) e para investimentos produtivos
(despesa produtiva);
(3) orçamento público equilibrado de forma a assegurar o controlo do
défice das despesas públicas e evitar que um défice elevado tenha
reflexos negativos na inflação e no valor da moeda;
(4) taxa de crescimento do rendimento nacional de valor médio ou
elevado (3%, pelo menos ao ano)
407
.
406
FARIA. O Direito..., op. cit., pp.119-120.
407
CANOTILHO. Estudos..., op. cit., p. 253.
184
Assim, da simples leitura das condições de manutenção eficiente das
prestações sociais pelo Estado, verifica-se a enorme dificuldade que a maioria
dos países que adotam esse modelo organizacional para efetivar os direitos
sociais constitucionalmente garantidos, sem que tenham que adotar uma política
de deficit spending, que consiste no “endividamento do Estado, com a finalidade
de financiar a despesa pública, sobretudo a despesa social
408
”. Esse fenômeno
acarreta a crise de legitimidade tanto do sistema político, quanto do sistema
jurídico, uma vez que não se consegue mais a garantia de expectativas
normativas e sociais.
É um fato incontroverso, portanto, que a constitucionalização dos direitos
sociais, e a recorrente adoção, pelos Tribunais, da tese da “irreversibilidade de
direitos sociais adquiridos
409
”, acarretam um alto custo para o Estado Social e a
conseqüente dificuldade na garantia da prestação dos serviços essenciais, sendo
a judicialização, especificamente, do direito à saúde, é uma conseqüência desse
fenômeno. Aliás, no que tange ao custo que representa a garantia do direito à
saúde, cumpre ressaltar a ocorrência de duas situações que intensificam esse
fenômeno: i) o fato de existirem, cada vez mais, tecnologias que, além de
encarecerem os tratamentos clínicos, são cumulativas, e não substitutas, ou
seja, não se substitui necessariamente um medicamento porque um novo produto
foi lançado no mercado. Ao contrário, esse último se soma ao arsenal
existente (...)
410
”; e ii) a falta de critério para a incorporação dessas tecnologias,
que muitas vezes o representam um ganho em eficiência, mas apenas um
maior custo
411
.
408
CANOTILHO. Estudos..., op. cit.., p. 253.
409
Idem. Ibidem. p. 266.
410
FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os
riscos da interpretação judicial dominante. Dados, Rio de Janeiro, v. 52, n. 1, mar. 2009 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582009000100007&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em 02 mar. 2010. doi: 10.1590/S0011-52582009000100007.
411
Idem. Ibidem. p. 234.
185
A possibilidade de uma crise de governabilidade, em razão da recorrente
interferência do Pode Judiciário na questão do fornecimento gratuito de
tratamentos e medicamentos de alto custo é, portanto, um problema atual, e que
não pode ser ignorado para um debate consistente acerca da concretização do
direito à saúde. Como deve, então, decidir o magistrado ante o conflito entre a
efetivação do direito à saúde e, por conseguinte, da dignidade humana, por um
lado, e a governabilidade, do outro?
5.4. A IMPORTÂNCIA DE SE RECORRER À TEORIA POLÍTICA
NORMATIVA
O argumento econômico que a Ministra Ellen Gracie trouxe à baila com
as decisões mencionadas colocou em xeque a posição que, até então, o Supremo
Tribunal Federal vinha adotando acerca do fornecimento gratuito de
medicamentos e tratamentos de alto custo. Com efeito, ao fundamentar a sua
decisão na manutenção da ordem pública”, a magistrada colocou uma
roupagem axiológica em seu decisum, que pode, inclusive, ser visto como uma
interpretação dos valores fundamentais da República brasileira.
Entende a Ministra que as políticas blicas, na área da saúde, devem
buscar o atendimento ao maior número possível de pessoas, “e não a situações
individualizadas”, ou seja, entre expandir os serviços mais básicos de saúde ou
garantir tratamentos de alto custo para quem precisa, deve prevalecer a primeira
situação. O argumento em análise é poderoso, mas será que subsiste a uma
análise normativa? Nesse sentido pergunta-se: será que a negativa de
fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo ofende ao princípio
igualitário abstrato?
Conforme visto, o parâmetro para a igualdade, no pensamento
dworkiniano, consiste nos recursos. Estes, por sua vez, podem ser materiais ou
186
imateriais, sendo aqueles os recursos concretos, passíveis de permuta, e estes as
capacidades física e mental. A saúde, assim, pode ser considerada um recurso
imaterial, no sentido que uma pessoa que possui uma deficiência ou sofre de
uma doença grave possui, efetivamente, um deficit recursal. Visando reparar
essa situação, DWORKIN criou o esquema do “seguro hipotético”, que objetiva
fundamentar a compensação recursal dos indivíduos portadores de deficiência.
O raciocínio feito pelo filósofo norte-americano é no sentido de que, se fosse
oferecida a possibilidade dos indivíduos comprarem um seguro que garantisse
uma compensação recursal no caso de uma deficiência física, todos, no uso da
razão, optariam por adquiri-lo. Trata-se, assim, de um fundamento normativo
para que, no mundo real, as instituições sejam elaboradas de modo a garantir
com que os acontecimentos de sorte bruta, ou seja, que os acontecimentos
fortuitos, como uma doença grave, sejam neutralizados.
Assim, em termos abstratos, um Estado justo, e, conseqüentemente,
legítimo, que trata os cidadãos com igual respeito e consideração, deve
compensar o deficit recursal proveniente do acometimento por uma doença
grave. Em termos práticos, DWORKIN entende que a necessidade do
custeamento dos programas distributivos através de uma política tributária,
sendo que, a partir do momento que o cidadão efetua o pagamento do tributo e,
por conseguinte, financia a política pública, ele teria um direito adquirido a ser
protegido pela mesma
412
. Aliás, no direito brasileiro, a inviolabilidade do direito
adquirido, bem como a inafastabilidade da apreciação, pelo Judiciário, de “lesão
ou ameaça a direito”, são direitos individuais, por força do artigo 5.º, incisos
XXXV e XXXVI, da Constituição da República.
A compensação financeira das deficiências é fundamentada, ainda, no
princípio ético que DWORKIN denomina de “principle of intrinsic value”,
segundo o qual cada vida humana é, por si só, objetivamente importante para a
412
Cf. DWORKIN. Is Democracy..., op. cit., pp. 112-113.
187
comunidade
413
. Assim, sendo a comunidade um ente personificado e, assim,
comprometida com princípios morais, dentre eles o do valor intrínseco da vida
humana, deve ela atuar de forma coerente e comprometida, o que significa que,
concretamente, o Estado de reconhecer que uma pessoa portadora de uma
deficiência severa deve ser amparada pelas políticas distributivas, como
exigência da integridade.
Essa análise abstrata do problema prático enquadra-se no que DWORKIN
denomina de “integridade pura”, que visa identificar o que o autor norte-
americano denomina de law beyond the law”, ou seja, o direito que está,
normativamente, além do direito concreto. É um exercício de razão prática que
leva o magistrado para o plano ideal, para a formação de um parâmetro
comparativo abstrato do direito positivado. DWORKIN, no entanto, coloca o
magistrado novamente no plano existencial para aplicar a lei mediante o uso da
“integridade inclusiva”, da qual a “leitura moral” da Constituição é uma
espécie
414
.
A “integridade inclusiva” exige que o juiz faça uma harmonização entre
as exigências normativas da justiça, e os princípios políticos que efetivamente
vigem na comunidade (e que não necessariamente corresponde àquelas). Não se
deve perder de vista, no entanto, que DWORKIN escreve a sua teoria em um
contexto bem específico: a comunidade norte-americana. Sua teoria política
normativa tem plena aplicação, nesse diapasão, para a valoração do direito
norte-americano. Questão controversa, todavia, diz respeito à sua utilização para
os países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.
413
Idem. Ibidem. p. 09.
414
Embora DWORKIN não mencione, em momento algum, essa afirmação, trata-se de uma conclusão que
decorre da análise sistemática de seu pensamento.
188
5.4.1.
O
LIBERALISMO IGUALITÁRIO E O
E
STADO BRASILEIRO
Como aplicar a doutrina política de RONALD DWORKIN para o caso
brasileiro? Essa pergunta não é de fácil resposta, uma vez que a cultura política
dos Estados Unidos e do Brasil contêm profundas diferenças, sendo que,
enquanto sociedade norte-americana pode ser considerada o maior exemplo de
comunidade liberal e desenvolvida, a discussão acerca da modernidade da
sociedade brasileira ainda está longe de ser pacificada.
De fato, a doutrina clássica acerca da formação da sociedade brasileira é
praticamente uníssona no sentido de reconhecer a existência de um ethos
ibérico” que apartaria o Brasil da modernidade. A chamada “sociologia da
inautenticidade
415
”, composta pelos autores que, em rompimento com a
sociologia naturalista, que descrevia a sociedade brasileira em termos de
determinantes raciais, “se consolidou ao redor da tese que utiliza a permanência
de aspectos psicossociais, herdados de um passado ibérico, como elemento
fundamental de compreensão do Brasil
416
”.
Para essa corrente do pensamento sociológico pátrio, o Brasil seria um
país que estaria fadado a permanecer na pré-modernidade, justamente em razão
da presença da herança ibérica, a qual enraizou na nossa cultura “valores” como
o patriarcalismo, o mandonismo, o patrimonialismo, a cordialidade e todas as
demais formas de arcaísmos proveniente da cultura portuguesa
417
. A sociedade
brasileira, nesse sentido, não teria as características das chamadas “sociedades
modernas centrais”, nas quais:
a) Estado, mercado, e sociedade civil ocupam necessariamente esferas
plenamente diferenciadas entre si, reguladas exclusivamente por
códigos próprios e dinamizadas por lógicas particulares; b) a
415
Segundo Orlando Villas as Filho, essa expressão advém da lição de Jessé Souza, e refere-se
especificamente às lições de Gilberto Freyre (Casa-grande e senzala), Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do
Brasil) e Raymundo Faoro (Os Donos do Poder). cf. VILLAS BOAS FILHO, Orlando. Teoria dos Sistemas e o
Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 183.
416
Idem. Ibidem. p. 181.
417
Idem. Ibidem. p. 237.
189
normatividade que regula as relações entre indivíduos e deles com o
Estado e o mercado são plenamente desencantadas além de protegidas
de influências de concepções de mundo e sistemas normativos não-
racionalizados; e c) os âmbitos público e privado, por sua vez, são
também plenamente separados, cada um dos quais ordenado por
códigos e gicas particulares, comunicando-se apenas e tão-somente
através de canais apropriados que mantêm inalterados os termos e as
regras de cada um dos domínios
418
.
Trata-se, no entanto, de uma visão da cultura brasileira que, embora ainda
exerça uma considerável influência
419
, não mais predomina no pensamento
sociológico hodierno. Com efeito, há, atualmente, uma tendência de
flexibilização do conceito de modernidade, de modo a abranger o processo
civilizatório brasileiro como uma, dentre outras, formas de se alcançar a
modernidade
420
. Não se pode olvidar, no entanto, que o Brasil é um país
marcado pela desigualdade e forte exclusão social, situação que se assemelha ao
que SANTOS denomina de “subumanidade moderna”, na qual certos indivíduos
estão excluídos do processo civilizatório moderno, não sendo “sequer candidatos
à inclusão social”. Assim, embora o direito à igualdade (e conseqüente dever
estatal de tratar a todos com igual respeito e consideração) esteja, para usar a
expressão de NEVES, “simbolicamente” garantido na Constituição Federal, a
verdade é que, concretamente, existe no Estado brasileiro uma cultura da
desigualdade que não pode ser ignorada, para fins de aplicabilidade do
liberalismo igualitário para o caso brasileiro. Portanto, embora moderna, a
418
TAVOLARO, Sergio B. F.. Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico
brasileiro. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2005, vol.20, n.59 [cited 2009-11-21], pp. 5-22 . Available from:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092005000300001&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0102-
6909. doi: 10.1590/S0102-69092005000300001 Acesso em 17.12.2009.
419
TAVOLARO ressalta que a chamada sociologia da inautenticidade” ou sociologia exerceu influência nos
autores que compõem o que ele denomina de “sociologia da dependência”, que, a partir de um enfoque
econômico, também conclui pela pré-modernidade do Estado brasileiro. Dentre outros, adotam essa linha de
pensamento Caio Prado Jr, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. Cf. TAVOLARO,
op. cit..
420
A partir da concepção de “modernidades múltiplas”, TAVOLARO defende que “em vez de reduzir as
diversas configurações políticas, econômicas, institucionais e sociais experienciadas ao longo da recente história
brasileira a um supostamente único tipo de configuração moderna (pré determinado por tendências culturais e/ou
econômicas), abre-se caminho alternativo para que se considere como as disputas que se desenrolaram entre nós
vieram a se traduzir em padrões variados de diferenciação / complexificação social, de secularização e de
separação público / privado no decorrer de nossa história”. Cf., TAVOLARO, op. cit..
190
sociedade brasileira não teve a plena concretização dos valores liberais basilares
(igualdade e liberdade
421
), não podendo, nesse contexto, se considerada liberal.
Nesse diapasão, verificado que, no plano normativo, a compensação das
desigualdades provenientes das deficiências físicas é um imperativo do princípio
igualitário abstrato e, ainda, que, especificamente, a sociedade brasileira, embora
moderna, não pode ser considerada liberal, qual a melhor interpretação do artigo
196 da Constituição Federal de 1988, em termos político-normativos, ou melhor,
qual interpretação confere a melhor justificação normativa para o direito à saúde
no Brasil?
5.4.2.
A
SOLUÇÃO DIVERGENTE
O liberalismo igualitário dworkiniano tem como pilares dois princípios
éticos, que constituem as dimensões da dignidade da pessoa humana, e que
expressam a conciliação dos valores políticos igualdade e liberdade. Referidos
princípios, como visto, são o princípio da responsabilidade individual e o
princípio do valor intrínseco da pessoa humana. Embora DWORKIN não
estabeleça uma prioridade entre ambos, em Sovereign Virtue” o autor norte-
americano deixa bem claro que o princípio igualitário abstrato, em termos
normativos, exige que as pessoas paguem o preço de suas escolhas, ou seja, a
igualdade deve ser sensível às escolhas individuais. Há, assim, um indício de
prioridade do princípio da responsabilidade individual sobre o do valor
intrínseco.
Aludido indício, todavia, se confirma no Capítulo 08 de Sovereign
Virtue”, denominado Justice and the High Cost of Health”, no qual
421
“A desimportância atribuída à autonomia das pessoas procede de concepções autoritárias ou paternalistas e
resulta que instituições liberais não conseguem se impor na sociedade brasileira” LOPES, José Reinaldo de
Lima. Direitos humanos e tratamento igualitário: questões de impunidade, dignidade e liberdade. Rev.
bras. Ci. Soc. [online]. 2000, vol.15, n.42 [cited 2009-11-22], pp. 77-100 . Available from:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092000000100006&lng=en&nrm=iso>.
ISSN 0102-6909. doi: 10.1590/S0102-69092000000100006
191
DWORKIN analisa o sistema público de saúde norte-americano. O problema
colocado pelo autor norte-americano, no mencionado ensaio, diz respeito ao alto
custo que a saúde representa para os cofres públicos do governo americano, por
causa, especificamente, das novas tecnologias e tratamentos disponíveis nos
EUA. Assim, pergunta DWORKIN: em se tratando de saúde pública, o que não
pode ser negado sob o argumento do alto custo
422
?
Para resolver esse problema, que na verdade é um problema da filosofia
prática
423
, DWORKIN apresenta dois argumentos que podem ser utilizados. O
primeiro, ao qual denomina de rescue principle” (princípio do resgate),
determina que devemos gastar tudo que pudermos até que não seja possível
pagar nenhuma melhora na saúde ou na expectativa de vida
424
”. Trata-se,
portanto, do ideal que estaria na base da concepção de que o Estado tem o dever
de garantir aos cidadãos qualquer tratamento que seja necessário para a sua cura,
independentemente do custo.
Em contraponto ao modelo do resgate, DWORKIN expõe o princípio do
“seguro-prudente”, que aceita certa limitação aos tratamentos que o Estado deve
disponibilizar aos cidadãos, visando estabelecer um equilíbrio entre o valor que
será gasto, pela comunidade, com tratamento médico e com outras finalidades:
ele supõe que as pessoas podem pensar que levam vidas melhores
quando eles investem menos em medicina duvidosa e mais em fazer a
vida bem-sucedida ou agradável, ou em se proteger contra outros
riscos, incluindo os econômicos, que podem arruinar as suas vidas
425
.
422
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 309.
423
“possivelmente, nada conseguimos demonstrar sobre um problema central da filosofia prática: quais os
direitos que o indivíduo, como homem, cidadão, e trabalhador, tem ou deve ter numa comunidade.”
CANOTILHO. Estudos..., op. cit., p. 35.
424
DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 309.
425
it supposes that people might think they lead better livers overall when they invest less in doubtful medicine
and more in making life successful or enjoyable, or in protecting themselves against other risks, including
economic ones, that might also blight their lives”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 317.
192
Universalizar a política de saúde, seguindo essa linha de raciocínio,
significa ampliá-la para o maior número de cidadãos possível, mas não confere o
dever estatal de custear tratamentos de alto custo. A conclusão de DWORKIN,
então, é no sentido de que, em termos normativos, o modelo do seguro prudente
é mais justo para uma sociedade em que o princípio igualitário abstrato esteja
concretizado.
Obviamente, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil, não como se
defender, razoavelmente, que o princípio igualitário abstrato está concretizado.
Talvez o modelo do seguro-prudente seja plausível para a realidade norte-
americana, mas, com toda certeza, não se coaduna com os valores políticos
expressos pela Constituição Republicana de 1988. Em entrevista recente,
DWORKIN, ao ser perguntado sobre o esquema do seguro-prudente, afirma o
seguinte:
Suponha que um sistema justo de seguro estivesse de fato em
funcionamento como um serviço de saúde com financiador único.
Suponha também que o tipo de taxação redistributiva que eu
recomendo estivesse em vigor, de modo que as enormes desigualdades
de riquezas que hoje estragam nossas sociedades tivessem sido
eliminadas. Por que não deveríamos permitir que as pessoas gastassem
seu excedente como quisessem? Algumas em casas maiores, outras
em férias, outras com mais seguro-saúde. Assim, minha sugestão
parece melhor quando vista como parte de um sistema geral da justiça
distributiva. outras vantagens a todos, além daquelas que
descrevo
426
.
Logo, o próprio autor norte-americano estabelece algumas condições para
a aplicação do modelo do seguro-prudente, que é a vigência de um sistema de
taxação redistributiva e, ainda, que a sociedade não seja muito desigual. Esse
modelo, assim, não se aplica para o Brasil. De fato, a peculiaridade da sociedade
brasileira, em especial o processo de modernização seletiva (e ainda inacabado),
426
DWORKIN, Ronaldo. Igualdade como ideal. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007, n.77 [cited 2009-11-
22], pp. 233-240 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002007000100012&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0101-3300. doi: 10.1590/S0101-33002007000100012. Acesso
em 22 de novembro de 2009.
193
bem como a existência de cidadãos que não possuem meios (recursos e acesso a
direitos fundamentais) para o pleno exercício da sua faculdade de escolha, ante a
situação de pobreza e miséria em que se encontram, não permitem a sacralização
do princípio da responsabilidade individual para o caso brasileiro.
Não se pode perder de vista que o construtivismo político rawlsiano,
doutrina que está na base da teoria política dworkiniana, pressupõe, para a
escolha racional, que a existência de uma sociedade bem-ordenada,
compreendida como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos
razoáveis, considerados como livres e iguais. A forte exclusão social vigente na
sociedade brasileira, nesse sentido, impede que os indivíduos que se encontram
nessa situação sejam considerados “livres e iguais”, razão pela qual, ao invés de
se considerar o princípio da responsabilidade individual como um axioma para a
sociedade brasileira, urge, antes, a concretização do princípio do valor intrínseco
da pessoa humana, para que seja possível a construção das condições ideais para
a prevalência da responsabilidade individual.
É nesse contexto que deve ser interpretado o artigo 3.º, incisos I e III, da
Constituição Federal, que afirmam ser objetivos da nossa República a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, bem como a erradicação
da pobreza e da marginalização. Não se nega a importância do princípio da
responsabilidade individual para a efetivação dessas metas comunitárias, mas
deve-se privilegiar, certamente, o princípio do valor intrínseco. Deve prevalecer,
assim, a máxima kantiana segundo a qual o homem, e, duma maneira geral,
todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não como meio para o uso
arbitrário desta ou daquela vontade
427
”, a qual inspirou DWORKIN a sustentar
427
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 68.
194
que “o sucesso ou derrocada de qualquer vida humana é, por si só, importante,
algo que todos nós temos razão para querer ou lastimar
428
”.
Ora, a conjunção da essencialidade da pessoa humana, que deve ser
considerada como fim em si mesma, com a necessidade de erradicação da
pobreza e construção de uma sociedade livre e justa, visando a plenitude da
modernização da sociedade pátria, exige o reconhecimento de que não se pode
mitigar o direito de um paciente portador de uma moléstia grave receber,
gratuitamente, o devido tratamento. Não se pode ignorar, ainda, que os
indivíduos que utilizam o Sistema Único de Saúde, são, em sua maioria, aqueles
que não têm condições de arcar com a medicina privada, razão pela qual a
negativa estatal de fornecimento de medicação de alto custo representa,
indubitavelmente, a retirada da única esperança dos mesmos de conseguir o
tratamento de que necessitam
429
.
No conflito, assim, entre a racionalidade material econômica utilizada
pela Ministra Ellen Gracie, e a racionalidade material principiológica, no sentido
conferido a esse termo por DWORKIN
430
, esta deve prevalecer sobre aquela. O
Poder Judiciário, em especial o seu órgão de cúpula, ao qual DWORKIN
denominou “fórum do princípio”, ou seja, o lócus no qual os direitos individuais
são postos em discussão e valoração, deve buscar a melhor interpretação moral
da Constituição, que, no problema prático apresentado, é no sentido de atribuir
às expressões “universal e igualitário”, contidas no artigo 196 da Constituição, o
reconhecimento político de que o Estado, no exercício de seu dever soberano de
tratar a todos com igual respeito e consideração, e, por conseguinte, ser
insensível às circunstâncias individuais, deve neutralizar as deficiências,
independentemente do preço que isto representará para a comunidade.
428
“The success or failure of any human life is important in itself, something we all have reason to want or to
deplore”. DWORKIN, Ronald. Is Democracy…, op. cit., p.10.
429
430
“o Tribunal deve tomar decisões (...) sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não
decisões sobre se promove melhor o bem-estar geral”. DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 69.
195
Não se pretende aqui, por óbvio, conferir nova roupagem à interpretação
que os juristas pátrios, em especial o Supremo Tribunal Federal, conferiam ao
direito à saúde, no sentido de considerá-lo “como um direito a atendimento à
saúde, terapêutico e farmacêutico ilimitado
431
”, na qual a saúde é vista como:
um “conceito unidimensional (de mera ausência de doença); as
políticas de saúde são reduzidas a apenas um de seus aspectos (o
atendimento médico; e é ignorado o fato de que, no mundo real,
não haveria e provavelmente jamais haverá recursos suficientes
para implementar universalmente (isto é, para todos) um direito
à assistência à saúde ilimitado
432
.
Pelo contrário, conforme acima exposto, o problema da escassez dos
recursos deve ser o ponto de partida para se analisar a justeza ou não da
interpretação que a Ministra Ellen Gracie pretende atribuir ao artigo 196 da
Carta Magna. O que se deve levar em consideração, no entanto, à luz do
igualitarismo dworkiniano, é que as desigualdades provenientes de deficiências
são inerentemente injustas, de modo que os indivíduos que necessitam de
medicamentos de alto custo possuem um deficit recursal que justifica a
destinação de recursos sociais para a sua neutralização.
A melhor interpretação moral do artigo 196 da Constituição Federal, no
que tange às políticas públicas de fornecimento de medicamento de alto custo,
faz com que o magistrado, no caso concreto, reconheça que o dever estatal de
tratar a todos com igual interesse e consideração o leva a sobrepor interesse do
cidadão, privado na via administrativa de receber o tratamento que necessita,
sobre o interesse econômico do Estado.
431
FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde..., op. cit., p. 242.
432
Idem. Ibidem. p. 242.
196
CONCLUSÃO
Pretendo, na conclusão do presente trabalho, apresentar resposta a duas
questões que representam a essência da dissertação. A primeira, obviamente, é a
que se fez logo na introdução: qual a importância da teoria política para o
Direito? E acrescenta-se: de que forma o estudo da igualdade no pensamento
dworkiniano colaborou para a compreensão da relação existente entre a filosofia
política e a filosofia do direito?
A filosofia dworkiniana representa, sem dúvida alguma, uma tentativa, de
ressaltar a importância dos conceitos basilares do liberalismo, notadamente a
igualdade, a liberdade e a fraternidade, para a interpretação do Direito. Nesse
sentido, a preocupação de DWORKIN com o prisma ético-político do Direito
possui o seu ápice no momento interpretativo. E isso tem uma explicação: a
crença que o autor norte-americano, jurista que é, no Poder Judiciário. Não é por
acaso que DWORKIN afirma emLaw’s Empire” que os tribunais são as
capitais do império do direito, e os juízes são seus príncipes”, frase esta que
ficou famosa (inclusive para seus críticos). Trata-se, na verdade, de uma visão
democrática substancialista, para a qual a efetivação dos direitos individuais, por
intermédio da atuação dos magistrados, é de fundamental importância. Pode-se
inferir, inclusive, que a doutrina dworkiniana apresenta uma visão pessimista
dos Poderes Executivo e Legislativo, mediante a exaltação do Poder Judiciário,
visto como um verdadeiro fórum de debate de questões que envolvem
moralidade política, tais como a legalização do aborto, a pesquisa com células-
tronco e o dever estatal de fornecer medicamentos de alto custo gratuitamente,
os quais exigem do magistrado, na aplicação do direito, o uso da razão prática, e
não meramente teórico (como defendem os positivistas).
Mencionadas questões, para DWORKIN, constituem um núcleo
valorativo cuja efetividade condiciona o exercício do princípio majoritário: para
197
o filósofo norte-americano, todas as questões relacionadas com a efetividade da
pessoa humana, ou seja, com os dois princípios éticos que formam a dignidade
da pessoa humana (princípio da responsabilidade individual e princípio do valor
intrínseco), constituem conditions of full partnership”, condições de integração
do indivíduo na comunidade, as quais não podem ser suprimidas pela vontade da
maioria. A função do magistrado, nesse contexto, visa ao controle da legislação
produzida, bem como dos atos do Executivo, mediante o uso do instituto da
judicial review, (correspondente no direito brasileiro ao controle de
constitucionalidade). DWORKIN pode ser visto, assim, como defensor do
“ativismo judicial”, eis que, partindo do pressuposto que os indivíduos, em uma
sociedade democrática, possuem moral rights” (direitos morais) contra o
Estado, o autor norte-americano defende que o Poder Judiciário deve estar
preparado para formular questões de moralidade política e dar-lhes uma
resposta
433
”.
Sem embargo, no liberalismo dworkiniano o Poder Judiciário tem um
papel decisivo tanto na defesa dos direitos individuais, entendidos enquanto
direitos morais que a Constituição confere ao cidadão contra a maioria, quanto
no debate democrático acerca do reconhecimento de novos direitos de cidadania.
Essa preocupação de DWORKIN com a atuação da Suprema Corte ficou
explicita em artigo do filósofo norte-americano publicado no site
www.nybooks.com, denominado “A fateful election
434
, no qual ele afirma que:
433
Must be prepared to frame and answer questions of political morality”. DWORKIN. Taking…, op. cit., p.
147. O capítulo 05 de Taking Rights Seriously, denominado Constitutional Cases, foi publicado em 1977 e
representa uma defesa de uma postura “ativista” da Suprema Corte norte-americana, em contraposição ao
“constitucionalismo estrito” defendido pelo partido republicano, em especial pelo ex-presidente Nixon, o qual,
baseado em um ceticismo acerca da existência de direitos morais contra o Estado, sustentava que o Judiciário
deveria adotar uma postura moderada, valorando a letra da lei e abstendo-se de elaborar juízos políticos e morais.
434
John McCain's election would be a disaster for our Constitution. Conservatives have worked for decades to
capture the Supreme Court with an unbreakable majority that would, in every case, reliably serve their cultural,
religious, and economic orthodoxies. That goal has so far escaped them. Though Republican presidents have
appointed seven of the nine justices now serving, only four of them—John Roberts, Antonin Scalia, Clarence
Thomas, and Samuel Alito—are dependably rigid conservatives. Four other justices—two other Republican
appointees, John Paul Stevens and David Souter, and the Democratic appointees Ruth Bader Ginsburg and
Stephen Breyer—have voted consistently in favor of more liberal interpretations of the Constitution. The ninth
198
A eleição de John McCain pode ser um desastre para nossa
Constituição. Os conservadores trabalharam por décadas para dominar
a Suprema Corte com uma maioria invencível que irá, em qualquer
caso, certamente servir suas ortodoxias culturais, religiosas e
econômicas. Seus objetivos até agora lhes escaparam. Embora os
presidentes Republicanos tenham nomeado sete, dos nove Ministros
que atualmente compõem a Suprema Corte, apenas quatro deles –
John Roberts, Antonin Scalia, Clarence Thomas e Samuel Alito são
fiéis à rigidez conservadora. Quatro outros Ministros dois outros
nomeados pelos Republicanos, John Paul Stevens e David Souter, e os
Democratas Ruth Bader Ginsburg e Stephen Breyer – têm votado
conscientemente a favor de interpretações mais liberais da
Constituição. O novo Ministro Anthony Kennedy possui o crucial
voto “swing” que tem decidido casos de importância capital, às vezes
com os conservadores, às vezes com os liberais”.
No trecho acima transcrito, mostra-se claro a visão de DWORKIN no
sentido de que a Suprema Corte possui um papel decisivo na interpretação dos
direitos morais dos indivíduos e, por conseguinte, na efetivação dos mesmos. No
entanto, ao passo que a doutrina dworkiniana teve o mérito de ressaltar a
necessidade de o jurista valer-se da teoria política para uma melhor
compreensão do fenômeno jurídico, o se pode perder de vista a falta, em
DWORKIN, de uma instância democrática deliberativa. Com efeito, o
Judiciário não pode ser sacralizado da forma o autor norte-americano, eis que
não pode se esperar que as grandes decisões e os grandes debates políticos de
uma comunidade ocorram em uma instância política que não foi criada para
tanto. Nesse sentido, a teoria habermasiana é mais coerente ao atribuir à “esfera
pública” o locus adequado para a deliberação racional e influencia do poder
político.
DWORKIN afirma, todavia, que a sua teoria liberal igualitária,
notadamente o seu conceito de igualdade de recursos, tem uma função
primordial na realidade fática: a avaliação das instituições reais. Da mesma
justice—Anthony Kennedy—holds the crucial "swing" vote that has decided cases of capital importance,
sometimes with the conservatives and sometimes with the liberals”. Disponível em:
http://www.nybooks.com/articles/22017, acesso em 03.03.2010.
199
forma, a igualdade de recursos serve à interpretação do Direito como parâmetro
ético-político. Nesse diapasão, e aqui a resposta para a segunda pergunta, a
principal contribuição de RONALD DWORKIN para o Direito está,
exatamente, em conferir ao magistrado o dever de buscar a Justiça.
A teoria “Law as Integrity” não deve ser apenas apreendida como um
ataque ao positivismo jurídico. Seu alcance é mais profundo: constitui uma
resposta ao ceticismo que predominou na filosofia do direito no século passado.
A recolocação do Direito como compartimento da Moralidade, a qual deve ser
concebida, parafraseando RAWLS, de forma política, não metafísica
435
,
representa uma mudança no próprio conceito de legitimidade da ordem jurídica:
não mais se procura o fundamento da ordem jurídica em um plano superior de
valores, como fizeram os jusnaturalistas, ou mesmo no direito posto pelo Estado,
como pretenderam os positivistas. Legítima, para DWORKIN, é a ordem
jurídica que espelha que o Estado, por intermédio do Judiciário, atua de forma
íntegra, ou seja, em coerência com um conjunto de princípios morais, buscando
sempre a melhor leitura do texto legal, entendida esta como a interpretação que
mostre o direito em seu melhor prisma moral.
Mas o que significa mostrar o direito em seu melhor prisma moral? Em
Taking Rights Seriously, bem como nos livros que se sucederam (A Matter of
Principle e Law’s Empire), DWORKIN não deixa claro o que significa essa
“busca pela melhor interpretação moral”, passando, inclusive, a idéia de que
seria um filósofo neojusnaturalista. Por essa razão, em conformidade com o que
foi defendido ao longo da presente dissertação, a doutrina do direito
dworkiniana deve ser lida a partir de sua teoria política. Procedendo dessa
forma, fica claro que DWORKIN tencionava, com aquela afirmação, defender
que a interpretação do Direito deve ter como parâmetro a igualdade de
435
Explica ROLF KUNTZ que RAWLS pretendeu, ao elaborar a sua concepção “política, não metafísica”, criar
uma noção de justiça aplicável às sociedades democrático-liberais, a partir de valores publicamente valorizados,
“não de sentimentos ou de opiniões pessoais”. Cf. KUNZ e FARIA, op. cit., p. 52.
200
recursos. Portanto, no contexto da interpretação construtivista dworkiniana, a
teoria política normativa serve de substrato tanto à definição dos conceitos
interpretativos, quanto para a avaliação da justeza da aplicação da norma ao caso
concreto.
Não se pode, ainda, perder de vista que DWORKIN elaborou o seu
pensamento à luz da sociedade norte-americana. Nesse sentido, não se pode
apropriar o pensamento dworkiniano para a realidade brasileira sem que sejam
feitas algumas ponderações. Nesse sentido, ao analisar a questão do
fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo, foi visto que as decisões
da Ministra Ellen Gracie na Suspensão de Segurança n.º 3073 e na Suspensão de
Tutela Antecipada n91, nas quais, a partir de uma racionalidade econômica,
restou reconhecido que a manutenção do entendimento de que o Estado é
irrestritamente responsável pelo fornecimento de tratamentos e medicamentos de
alto custo poderia representar uma ofensa à ordem pública, contribuíram para
uma melhoria qualitativa no debate acerca do direito à saúde. Isso porque
colocou em discussão o problema do custo dos direitos sociais e da crise de
governabilidade que poderia resultar do entendimento que o Supremo Tribunal
Federal vinha, até então, adotando
436
.
O argumento utilizado pela Ministra é, de fato, relevante, e exige uma
reconstrução do conteúdo normativo dos vocábulos “universal” e igualitário”,
contidos no artigo 196 da Constituição Federal. Não se justifica, por
436
Octávio Luiz Motta e Fabiola Sulpino Vieira defendem, que, no Brasil, em virtude da interpretação que o
Supremo Tribunal Federal adota acerca do direito à saúde, “há um duplo sacrifício os princípios da
universalidade e equidade em saúde. Os que possuem condições de saúde comparativamente melhores em
virtude de suas condições socioeconômicas avantajadas são beneficiados ainda mais por conta de seu acesso
mais fácil ao Judiciário. De política pública universal e igualitária, tendente a minimizar as desigualdades de
saúde decorrentes das desigualdades sociais, o SUS se transforma, por meio das ações judiciais, em perpetuador
e contribuinte do já elevado déficit de equidade em saúde do país”. Idem. Ibidem. p. 245. Observa-se, no entanto,
que, na prática, muitos dos indivíduos que procuram os escritórios de advocacia para pleitear, junto ao
Judiciário, um medicamento de alto custo, são aqueles que não possuem condições financeiras de contratar um
plano de saúde, ficando, por conseguinte, sob a dependência, única e exclusiva, do fornecimento estatal do
fármaco de que necessita. Nesse diapasão, ao invés de perpetuador da desigualdade, o Judiciário, ao intervir em
situações concernentes à saúde pública, representa um instrumento concretizador da cidadania.
201
conseguinte, o raciocínio meramente formalista que o STF adotava
anteriormente às decisões em comento. Com efeito, para contrapor ao
argumento econômico utilizado pela Ministra Ellen Gracie, faz-se necessária
uma análise normativa do dever estatal de fornecer gratuitamente os
medicamentos em questão.
Assim, de que forma o liberalismo igualitário dworkiniano pode
contribuir para a interpretação do artigo 196 da Constituição Federal? A
igualdade de recursos, consoante exposto, sustenta que as desigualdades
provenientes de deficiências físicas devem ser compensadas. A questão que se
coloca, no tocante ao fornecimento gratuito de medicamentos, é o limite de tal
compensação. Em Sovereign Virtue, DWORKIN sustenta que a política pública
de saúde deve ser formulada de acordo com o que ele denomina de “modelo do
seguro prudente”, o qual confere ao indivíduo a escolha da cobertura securitária
que o Estado vai oferecer-lhe no tocante à saúde pública. Fundamenta-se, dessa
forma, no princípio da responsabilidade individual, eis que, de acordo com que
entende o filósofo norte-americano, o “seguro prudente” acarretaria uma
expansão dos serviços relacionados à saúde pública, mas, ao mesmo tempo,
isentaria o Estado de destinar recursos para custear tratamentos de alto custo.
Aludido modelo, todavia, não se aplica para a sociedade brasileira. Com
efeito, dadas as peculiaridades da nossa sociedade, que ainda sente os efeitos de
uma tradição patrimonialista, e, outrossim, marcada por uma cultura de
desigualdade e exclusão social, a necessidade de mitigação do princípio da
responsabilidade individual, e, por conseguinte, colocar em relevo o princípio
segundo o qual “o sucesso ou derrocada de qualquer vida humana é, por si só,
importante, algo que todos nós temos razão para querer ou lastimar
437
”. Assim,
enquanto DWORKIN, no tocante à interpretação do direito à saúde, defende a
437
“The success or failure of any human life is important in itself, something we all have reason to want or to
deplore”. DWORKIN. Is Democracy..., op. cit. p. 09.
202
primazia do princípio da responsabilidade individual, sustenta-se, na presente
dissertação, que, para o caso brasileiro, notadamente para a interpretação do
artigo 196 da Constituição Federal, o princípio do valor intrínseco deve
prevalecer sobre aquele, de modo que as expressões “universal” e igualitário”
contidas representam, em termos políticos, o dever estatal de fornecer
gratuitamente os medicamentos de alto custo para os cidadãos.
203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada. 5.ª
Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de
Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Édipro,
2002.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do
Direito (O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Disponível em
http://www.georgemlima.xpg.com.br/barroso.pdf, Acesso em 29 de março de
2009.
BELLAMY, Richard. Liberalismo e Sociedade Moderna. Tradução: Magda
Lopes. São Paulo: Unesp,1994.
BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
BRETON, Albert [org]. Understanding Democracy. London: Cambridge
University Press, 1997.
BURLEY, Justine [ed]. Dworkin and his critics: with replies by Dworkin.
Malden: Blackwell Publishing, 2004.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
7.ªed. Coimbra: Almedina, 2003.
204
________. Estudos sobre Direitos Fundamentais. 1.ª ed. brasileira. 2.ª ed.
portuguesa. Coimbra: Coimbra editora, 2008
CALSAMIGLIA, Albert. Ensaio sobre Dworkin [tradução de Patrícia
Sampaio]. Apresentação à versão espanhola do livro Derechos em serio.
Barcelona. Editora Ariel. 1984. Disponível em http://www.puc-
rio.br/sobrepuc/depto/direito/pet_jur/patdwork.html. Acesso em 24 de novembro
de 2007.
________. Em defensa de Kelsen. Disponível em www. recercat. net/ bitstream/
2072/1337/1/ ICPC/129.pdf. Acesso em 21 de setembro de 2009.
CARVALHO, José Murilo de. A cidadania no Brasil: o longo caminho. 11
ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008.
COHEN, G. A. On the Currency of Egalitarian Justice. Ethics, Vol. 99,
n.º 4, 1989, pp. 906-944. Disponível em:
http://www.mit.edu/~shaslang/mprg/GACohenCEJ.pdf. Acesso em 12 de maio
de 2009.
DALL’AGNOL, Darlei. O igualitarismo liberal de Dworkin. Revista
Kriterion, Belo Horizonte, n.° 111, p. 55-69. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
512X2005000100005&lng=pt&nrm=iso, acesso em 13 de abril de 2008.
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University
Press, 1977.
________. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986.
________. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985.
________. Objectivity and Truth: You’d Better Believe It. Philosophy and
Public Affairs, vol. 25, n.º 2: Blackwell Publishing, 1996, pp. 87-139.
205
________. Sovereign Virtue: the Theory and Practice of Equality.
Cambridge: Harvard University Press, 2000.
________. Sovereign Virtue” Revisited. Ethics, Vol. 113, n.º 1, Symposium
on Ronald Dworkin “Sovereign Virtue”: The University of Chicago Press, 2002,
pp. 106-143.
________. O Direito da Liberdade: a Leitura Moral da Constituição Norte-
Americana. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
________. Justice in Robes. Cambridge: The Belknap Press of Harvard
University Press, 2006
________. Is Democracy Possible Here? Principles for a new political debate.
Oxford: Princeton University Press, 2006.
________. Igualdade como ideal. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007, n.77
[cited 2009-11-22], pp. 233-240 .<HTTP :// www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_ar tt e x t & p I d = S01 0 1 -3 3 0 0 2 0 0 7 00 0 1 0 0 0 1
2& l ng = e n & n r m= I s o > . ISSN 01 0 1 – 33 0 0 . d o i : 1 0 . 1 59 0 / S0
1 0 1 – 33 0 0 2 0 07000100012. Acesso em 22 de novembro de 2009.
FARIA, José Eduardo. A Crise Constitucional e a Restauração da
Legitimidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabrinis Editor, 1985.
________. O Direito na Economia Globalizada. 1.ª edição. 4.ª tiragem. São
Paulo: Malheiros, 2004.
________. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1ed. São Paulo:
Malheiros, 2005.
FERRAZ JÚNIOR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito:
técnica, decisão, dominação. 4.ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.
206
FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Justiça distributiva para formigas e cigarras.
Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007, n.77 [cited 2009-12-16], pp. 243-
253.Disponível em : <HTTP :// www.scielo.br /scielo. php?
script=sci_arttext&pi d=S0 101-33 0020070001 00013&lng=en&nrm=iso>.
ISSN 0101-3300. doi: 10.1590/S0101-33002007000100013. Acesso em
17.12.2009.
FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde,
recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante.
Dados, Rio de Janeiro, v. 52, n. 1, mar. 2009 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582009000100007&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 02 mar. 2010. doi:
10.1590/S0011-52582009000100007
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. 9.ª ed. Tradução: Flávio Paulo Meurer. Nova Revisão
da Tradução por Enio Paulo Gianchini. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
GARGARELLA, Roberto. Las teorias de la justicia después de Rawls: un
breve manual de filosofia política. Barcelona: Paidós, 1999.
GUEST, Stephen. Profiles in legal theory: Ronald Dworkin. California:
Stanford University Press, 1991.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6.ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2005.
GRECO e SOSA, John e Ernest [org.]. Compêndio de Epistemologia.
Tradutores: Alessandra Siedschlag Fernandes e Rogério Bettoni. São Paulo:
Edições Loyola, 2008
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade I.
2.ª ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003.
207
________. Direito e Democracia: entre facticidade e validade II. 2.ª ed.
Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Hegel and the Greeks. Disponível em
http://www.morec.com/hegelgre.htm. Acesso em 06.10.08.
ISIN, Engin F. Handbook of citizenship studies. London: Sage, 2002.
JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Tradução: Artur
M.Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
JESUS, Carlos Frederico Ramos. RAWLS, a Concepção de Ser Humano e os
Fundamentos dos Direitos do Homem. Dissertação de Mestrado em Filosofia
do Direito pela Universidade de São Paulo. Orientador: José Reinaldo de Lima
Lopes. São Paulo, 2008.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa:
Edições 70, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado.
6.ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
________. O problema da Justiça. Tradução: João Baptista Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
KIMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea. Tradução: Luís Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
KUNTZ, Rolf. FARIA, José Eduardo. Qual o Futuro dos Direitos: Estado,
Mercado e Justiça na reestruturação capitalista. São Paulo: Max Limonad,
2002, pp. 42 e ss
208
LOPES, JoReinaldo de Lima. Direitos humanos e tratamento igualitário:
questões de impunidade, dignidade e liberdade. Rev. bras. Ci. Soc. [online].
2000, vol.15, n.42 [cited 2009-11-22], pp. 77-100 . <http://www.scielo.br
/scielo .p h p? sc ri pt=sc i_a rttext&pid=S0102-6909200000010000 6&lng=en&
nrm=iso>. ISSN 0102- 6909. doi: 10.1590/S0102-69092000000100006. Acesso
em 22 de novembro de 2009.
MACCORMIK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da
Igualdade. 3.ª ed. 14. ª Tiragem. São Paulo: Malheiros.
MILL, John Stuart. A Liberdade Utilitarismo. Tradução: Eunice Ostrensky.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MORIN, Edgard. Introdução ao Pensamento Complexo. 3.ª Ed. Tradução:
Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005.
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos gregos ao pós-modernismo.
Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 1.ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. ed. Buenos
Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2003.
PLATÃO. A República (Da Justiça). Tradução: Edson Bini. São Paulo:
Edipro, 2006.
POSNER, Richard A. Problemas de Filosofia do Direito. Tradução: Jefferson
Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007
209
RODRIGUES, Sandra Martinho. A Interpretação Jurídica no Pensamento de
Ronald Dworkin: uma abordagem. Coimbra: Almedina, 2005
SEN, Amartya. Desigualdade Reexaminada. 2.ª Ed. Tradução: Ricardo
Doninelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7. ª ed,
São Paulo: Malheiros, 2008.
TAVOLARO, Sergio B. F.. Existe uma modernidade brasileira? Reflexões
em torno de um dilema sociológico brasileiro. Rev. bras. Ci. Soc. [online].
2005, vol.20, n.59 [cited 2009-11-21], pp. 5-22 . <http://www.
scielo.br/scielo.php ?sc ri pt =s ci_ a rt t ex t& pid =S 01 0 2 -6909 20050003
00001&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0102-6909. doi: 10.1590/S0102-
69092005000300001. Acesso em 22 de novembro de 2009.
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Tradução: Adail Ubirajara Sobral.
1.ª ed. São Paulo: Loyola, 2000.
VIANNA, Luiz Werneck. [et al]. A judicialização da política e das relações
sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
VITA, Álvaro de. Justiça Liberal: argumentos liberais contra o
neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
________. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
________. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça
internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
RAWLS, John. O liberalismo Político. Lisboa: Presença, 1997.
________. A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge, Massachusetts:
The Belknap Press of Harvard University Press, 1999.
210
________. A justiça como eqüidade: uma reformulação. 1.ªed. Tradução:
Claudia Berliner São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________. Uma Teoria da Justiça. Nova tradução baseada na edição americana
revista pelo autor. Tradução: Jussara Simões. Revisão técnica e da tradução:
Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
RICOEUR, Paul. O Justo 1. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007,
n.79. pp. 71-94 . < http :// www .scielo .br /scielo.ph p?scrip t= sc I _a r t t e x t
& p I d = S 0 1 0 1 - 3300 200700030 0004 & ln g = e n & n rm= iso>. ISSN
0101-3300. doi: 10.1590/S0101-33002 007000300004. Acesso em 17.12.2009.
VILLAS BOAS FILHO, Orlando. Teoria dos Sistemas e o Direito brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2009.
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno.
Tradução:Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005.\
WANG, Daniel Wei Liang. Escassez de Recursos, Custo dos Direitos e
Reserva do Possível na Jurisprudência do STF. Revista Direito GV São
Paulo. Julho-dezembro de 2008, pp. 538-568. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v4n2/a09v4n2.pdf. Acesso em 16.11.2009.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo