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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CECÍLIA CAMPELLO DO AMARAL MELLO
POLÍTICA, MEIO AMBIENTE E ARTE: percursos de um movimento
cultural do extremo sul da Bahia (2002-2009)
RIO DE JANEIRO
2010
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Cecília Campello do Amaral Mello
POLÍTICA, MEIO AMBIENTE E ARTE: percursos de um movimento
cultural do extremo sul da Bahia (2002-2009)
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Marcio Goldman
RIO DE JANEIRO
2010
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Mello, Cecília Campello do Amaral.
Política, Meio Ambiente e Arte: percursos de um movimento cultural do
extremo sul da Bahia (2002-2009) / Cecília Campello do Amaral Mello.
2010.
303 f.:il.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Rio de Janeiro, 2010.
Orientador: Marcio Goldman
1. Movimento social. 2. Eleições. 3. Conflito Ambiental. 4. Arte. 5.
Bahia.
- Teses.
I. Goldman, Marcio (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional.
III. Título.
Cecília Campello do Amaral Mello
POLÍTICA, MEIO AMBIENTE E ARTE: percursos de um movimento
cultural do extremo sul da Bahia (2002-2009)
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Antropologia Social.
Aprovada em 01/03/2010, por:
Marcio Goldman (Doutor, PPGAS/MN/UFRJ)
Olívia M. Gomes da Cunha (Doutora, PPGAS/MN/UFRJ)
Eduardo B. Viveiros de Castro (Doutor, PPGAS/MN/UFRJ)
Geraldo Andrello (Doutor, PPGAS/CECH/UFSCar)
Henri Acselrad (Doutor, IPPUR/UFRJ)
Para Laura e João
Para Nicolas
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas contribuíram com esta tese e me apoiaram em diferentes
momentos deste longo percurso. Agradeço, em primeiro lugar, ao meu orientador
Marcio Goldman pelo apoio irrestrito às escolhas que fiz ao longo da pesquisa e pela
paciência e compreensão no difícil processo que foi concluí-la. A realização de uma
pesquisa de campo de longa duração foi possível, no atual regime de redução de prazos
e bolsas, em grande medida pelo seu comprometimento efetivo com o desenvolvimento
de uma produção etnográfica e pelo apoio concreto às pesquisas de campo dos seus
orientandos.
Aos professores Olívia Cunha, Eduardo Viveiros de Castro, Geraldo Andrello e
Henri Acselrad, pelo gentil acordo em participarem da banca examinadora desta tese. É
um verdadeiro privilégio ter como primeiros leitores pessoas que tanto admiro.
Aos amigos e colegas de diferentes gerações que passaram pelo PPGAS/Museu
Nacional nos últimos anos, que, com sua amizade, tornaram vibrante uma experiência
que não é nada fácil: Ana Carneiro, Ana Claudia C. da Silva, Ana Claudia Marques,
André Guedes, Antonia Walford, Beatriz Mattos, Bruno Marques, Célia Collet, Clara
Flaksman, Diana Lima, Edgar Barbosa, Flávia Pires, Gabriel Banaggia, Indira
Caballero, Ingrid Weber, João Laguens, Jorge Villela, Luciana França, Marina
Vanzolini, Nicolas Viotti, Paula Siqueira, Renata Valente, Salvador Schavelzon, Sílvia
Nogueira, Suiá Chaves e Virna Plastino. Partilhar com vocês do cotidiano acadêmico
tornou tudo mais alegre e prazeroso.
Aos professores do PPGAS/Museu Nacional, à Secretaria e à Biblioteca, meu
reconhecimento pela qualidade da formação acadêmica e auxílio nas questões
administrativas.
Agradeço ao CNPq pela bolsa de estudos e à FAPERJ e à FINEP pelo
financiamento parcial das viagens de campo.
Aos amigos Camila Rhodi, Cristina Buarque, Erika de Almeida, Fabrina
Furtado, Fernanda Buarque, Gustavo Bezerra, Juliana Scorza, Luis Granato e Moema
Guedes, que, longe ou perto e cada um à sua maneira, são os melhores amigos que se
pode ter.
À Julianna Malerba, Marcia Casturino, Jean Pierre Leroy e demais amigos da
Rede Brasileira de Justiça Ambiental, pelo apoio nos momentos finais desta pesquisa.
Ao professor Henri Acselrad, meu reconhecimento pela sua generosidade
intelectual e inquietação criativa.
Ao Marcus Quintaes, força fundamental para completar este percurso entre o
mangue e o mar.
À Tê, madrinha do coração, à minha avó Alcina, à Juju, à Carol e ao meu irmão
e amigo Chico, por todo o apoio e carinho ao longo da vida.
Aos meus pais, Laura e João, pelo amor, generosidade e compreensão nesta
etapa da existência e sempre. Agradeço ao meu pai especialmente pelas fotografias da
casa de Dó e pela confecção dos mapas, desenhos e da genealogia.
Aos moradores de Caravelas e a todos com quem convivi, pela acolhida calorosa
e pela atenção e tempo que dedicaram a esta pesquisa. Agradeço especialmente a
Roberto Barata (in memoriam), Seu Jorge Santana, Dona Maria José, Piaba, Jaqueline
Alves, Genilson e Jane, Macrô, Itamar, Gilca, Dadá, Anne, Lília, Fabinho, Chico e
Vinícius.
Aos ambientalistas ativistas que tive o prazer de conhecer e admirar: André
Esteves, Elaine Corets, Erika de Almeida, Guilherme Dutra, José Tozzato, Marcello
Lourenço, Omar Nicolau, Renato Cunha e Rodrigo Moura.
Aos companheiros do Instituto Terramar, aos pescadores Mentinha, Vanilson,
Luís Caboclo Tremembé, Fátima Tremembé e ao professor João Luís do Cumbe (CE).
A todos os integrantes do Movimento Cultural Arte Manha. A Jaco Santana,
Simone dos Anjos e Dó Galdino, minha enorme gratidão pela acolhida afetuosa e
admiração pelas belezas que criam e pela perseverança com que lutam.
Às crianças e jovens que alegram o movimento e me enchem de saudades.
Ao Nicolas Dalmon, por seu apoio de todas as horas, com amor.
"O bom de um ato é que ele nos ultrapassa"
(Clarice Lispector)
“O possível, senão eu sufoco”
(pichação num muro de Paris em 1968)
RESUMO
Esta tese é sobre um encontro: trata-se do relato de um tempo vivido com um
movimento cultural do extremo sul da Bahia, que é também a história de um tempo
vivido pelo movimento cultural. A etnografia foi o caminho escolhido para descrever a
história deste encontro, sem buscar totalizá-lo em teorias envolventes e globais ou
reduzi-lo a modelos ou instâncias transcendentes que forneceriam a “explicação” para
os eventos descritos. O movimento cultural poderia ser entendido como um caso
privilegiado para estudar o saber diferencial das pessoas no que se refere a sua relação
com a política, o meio ambiente e a produção artística. A partir das pessoas e eventos
que atravessam o movimento cultural com suas intensidades próprias, esta tese, em
primeiro lugar, apresenta o processo de heterogênese deste coletivo; em seguida, detém-
se nas linhas de força que percorreram o movimento e a cidade durante o pleito eleitoral
municipal e nas práticas de educação, circunscrição e controle implementadas pela rede
ONGs-empresas-IBAMA. Por fim, aproxima-se de um processo de luta política de
resistência à implementação de um grande projeto de carcinicultura, para finalmente
apresentar os modos de criação política e artística do movimento cultural.
Palavras-chave: Movimentos sociais, Política, Conflito Ambiental, Arte, Bahia
ABSTRACT
This dissertation is about an encounter. It describes a time lived with a cultural
movement from Southern Bahia, which is also a time lived by this cultural movement.
Ethnography was the tool chosen to deploy the story of this encounter, so as to avoid
totalizing theories or reducing models which would provide an “explanation” for the
lived events. The cultural movement could be envisaged as a exemplary case to study
the differential knowledge of common people, in what concerns their relation to
politics, the environment and art production. Following the different intensities of
people and events that have built the movement, this investigation firstly presents the
heterogenesis processes of this collective. Then, it focuses on the lines of force that pass
through the movement and the town of Caravelas (BA) during the municipal elections.
Subsequently it analyses the practices of education, circumscription and control
implemented by the network NGOs-private corporations and environmental agency in
the region. It then describes a process of political resistance to the implementation of a
shrimp farm project and, finally, presents the movement’s political and art creative
processes.
Key-words: Social Movements, Politics, Environmental Conflict, Art, Bahia
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Travessia da família Santana em 1951 p.282
Figura 2 – Mapa esquemático de Caravelas p. 283
Figura 3 – Genealogia da família Galdino Santana p. 284
Figura 4 – A casa de Dó p. 285
SUMÁRIO
Introdução p.12
Capítulo 1 - Rumo às matas brutas do Prado p.33
Capítulo 2 - O que deseja um candidato? Ação, sujeito e vontade p.83
Capítulo 3 – A rede ONGs-empresa-IBAMA-comunidade p. 138
Capítulo 4 – A política depois do tempo da política p. 174
Capítulo 5 – A arte, a casa, o vídeo p. 233
Conclusão – Indeterminação, bricolagem e “irradiação” p. 258
Bibliografia p. 271
Anexo A – Resultados das Eleições Municipais de 2004 - Caravelas (BA) p. 286
Anexo B – Fotografias da Casa de Dó, de esculturas e outras produções artísticas
p. 288
Anexo C - Encontro entre pescadores de Caravelas e Ceará e Audiência Pública do
projeto da COOPEX p. 300
Anexo D - Vídeos criados pelo Cineclube Caravelas e Avenida Filmes p. 302
12
INTRODUÇÃO
A questão que orienta esta tese pode ser sintetizada em três imagens do trabalho de
campo, descritas abaixo. De algum modo, elas condensam alguns dos principais vetores que
me afetaram e produziram a perplexidade e o movimento que deram origem à pergunta-motor
da escrita.
A primeira é a imagem de dona Zefa, bisavó cabocla legítima de Alice e Jorge, tia e
pai dos que hoje fazem o movimento cultural, eixo central desta tese. Dona Zefa era nascida
na região de Olivença, onde dizem que é a casa dos Tupinambá. Era a década de 30 e ela
tinha mais de cem anos. De tão velha, os dentes caiam, ninguém sabia a idade dela. O
pescoço curvado, os dedos tortos, cabelo liso e duro, cabocla legítima. Dona Zefa vestia-se
com uma longa saia de não sei quantas varas de pano. Hoje fala metro, mas na época era
vara. A saia tinha várias camadas de tecido e dona Zefa andava arrastando aquele mundo de
pano pelo chão. Quando rasgava um pedacinho aqui na frente, ela falava, ô menina – que
era minha mãe – toma isso aqui, desmancha aí pra fazer roupa pros meninos. Aí, abria
aqueles buracos na saia e quando eu via já tava vestida, era assim.
A segunda imagem é de um dia como outro qualquer no sítio onde fica a sede do
movimento cultural. Seu Jorge, bisneto de dona Zefa, estava usando um machado para
consertar a porteira do curral até que o cabo pocou [quebrou]. Ágil em seus quase setenta
anos, seu Jorge imediatamente subiu numa raiz de jamelão e quebrou um galho com as mãos.
Com o ferro cortante em mãos, retirou rapidamente a casca do galho e lapidou a madeira.
Ainda estava muito grossa para se encaixar. Seu Jorge continuou cavando-a, mas acabou por
retirar mais do que deveria e o cabo ficou frouxo. Riu, se agachou e pegou do chão o cabo
antigo. Com o ferro, retirou do cabo quebrado uma cunha, que encaixou entre o cabo novo e a
lâmina. No final, exibiu satisfeito seu machado novo.
A terceira imagem é na verdade um diálogo, que ocorreu em agosto de 2008, numa
tarde em São Paulo, onde eu e Jaco, filho de Seu Jorge e tataraneto de Dona Zefa, nos
encontramos. Nossa presença na cidade estava – por vias distintas e improváveis– plenamente
ligada à Caravelas: ele, com um vídeo no Festival Internacional de Curtas de São Paulo e eu
com uma palestra sobre os impactos sócio-ambientais das fazendas de camarão na Faculdade
de Oceanografia da USP. Conseguimos nos encontrar e passar um dia juntos perambulando
por uma cidade que não conhecemos. A conversa se passou enquanto caminhávamos em
busca de um cinema. Falávamos sobre as pessoas difíceis com quem nos deparamos na vida e
que por um motivo ou outro somos obrigados a nos relacionar. Disse Jaco:
13
- Uma coisa que eu aprendi é que todo mundo tem algo pra dar, alguns mais, outros
menos. Aprendi a não esperar das pessoas uma coisa diferente do que elas podem dar.
Você tem que captar o que é que cada um tem pra oferecer. E pegar, receber. É que
nem quando faço escultura com madeira: você não pode querer tirar dela algo que ela
não tem, algo que não tá dentro daquelas possibilidades.
- E se você cismar que quer porque quer um formato tal?, indaguei.
- Não se faz o que se quer com a madeira. Se você resolver que quer fazer uma
escultura toda vazada, pode ser que a madeira não resista, que ela rache ou quebre.
- E como faz pra saber se vai dar para fazer o que está na sua cabeça?
- É que nem com as pessoas: uma questão de intimidade. De conhecer o outro, o jeito
de ser do outro, as manias do outro. E isso só com o tempo. Tem que conviver, testar,
ver os limites, as possibilidades. Experimentar, arriscar. Tem que estar atento às
tramas e nós da madeira.
- E quando se descobre que as possibilidades daquela madeira são muito limitadas?
- Quando o artista não se emociona mais com aquela madeira, é hora de deixá-la pra
trás. Hora de parar, ficar quieto, observar ao redor. Às vezes ele está caminhando e
topa de repente com uma bela madeira nova. Às vezes, ele tem que partir em longas
expedições até encontrá-la. Mas ele só tem como saber que é aquela madeira que
procurava depois de arriscar conhecê-la. Como eu disse, é tudo uma questão de tempo,
mas também de intimidade. Só ganhando intimidade com a madeira que ela vai
mostrar todas as possibilidades que contém dentro de si, as tramas escondidas. Ele
pode encontrar coisas maravilhosas e é claro que vai topar com entraves e limites. Mas
se tiver medo e evitar ser íntimo, simplesmente nunca vai saber se encontrou o que
procurava. Arrisca jogar fora a madeira certa ou perder muito tempo com a errada.
- Então se é certo que a madeira é a matéria-prima do artista, o artista também é
matéria-prima da madeira..., especulei.
- Sim, o artista tem que se deixar entalhar pela madeira. Você vai sentindo,
conhecendo os nós, ganhando intimidade e o resultado nunca é exatamente como você
imaginou. Não é nem mais você, nem a madeira. É uma outra coisa.
- E o que é essa outra coisa?
- Essa outra coisa é o novo
...
Essas imagens, que condensam tantas outras vivenciadas no campo, fizeram-me
formular uma pergunta que, de um modo ou de outro, permeou esta tese: se tudo está dado,
como nasce o novo? As duas primeiras imagens descrevem situações em que novos objetos
14
são criados a partir de um novo uso e/ou de uma nova combinação dos elementos disponíveis
naquele universo. As varas de pano da saia da avó que, cortadas, se transformam em roupas
para os netos; o galho do jamelão que se transforma em um novo cabo de machado, com uma
cunha feita do cabo antigo. Temos aqui um mundo pleno, no sentido de que as “necessidades
são supridas” (do nosso ponto de vista ocidental), ou, mais precisamente, as invenções são
derivadas do encontro entre os meios de que se dispõe e a habilidade de quem irá transformá-
los. No entanto, se do ponto de vista de quem aí vive, este é um mundo em que tudo está
dado, não se trata de um universo em que se possa fazer de tudo: não existem infinitas
possibilidades. Jaco diz, na terceira imagem, que não se pode fazer tudo o que se deseja com a
madeira; ela tem limites, nós e tramas que o artista deve saber observar e respeitar. Só assim –
levando em conta critérios de tempo e intimidade - ele poderá esculpi-la de modo a “pegar” o
que ela tem de bom a oferecer.
Se tudo está dado, como nasce o novo? A presente investigação não se propõe a
demonstrar que “tudo está dado” do ponto de vista do grupo, nem tampouco a discorrer sobre
este “novo”: o que busco é o como nasce. O exercício aqui apresentado é o de descrever como
nasce o fazer político e artístico de um movimento cultural do extremo sul da Bahia, a partir
do que pude observar, viver e experimentar durante o período de tempo em que acompanhei
seus percursos
1
.
No entanto, não foi com esta pergunta que fui para Caravelas em 2002 fazer minha
pesquisa de mestrado e em 2004 fazer minha pesquisa de doutorado. É apenas agora, em
2009, enquanto escrevo, que esta pergunta me vem à mente. Ela nasce, portanto, como um
resultado, um efeito a posteriori do campo, uma espécie de resultante do modo como a
criação artística e política do movimento cultural afetou esta etnógrafa.
A minha tese, portanto, tratará simplesmente de um encontro. Será o relato de uma
experiência de um tempo vivido com o movimento cultural, que é certamente também a
história de um tempo vivido pelo movimento cultural. A escrita tratará de seguir os
agenciamentos do movimento ao longo do tempo e buscará traçar conexões entre esta
experiência e questões que se colocam para movimento e para esta autora por ele conduzida.
A experiência de campo nos põe em contato com a vida social em sua mais pura dispersão, o
que traz o desafio de se buscar um instrumento que permita narrá-la em toda sua
“recalcitrância” (Latour, 2005, p.101), isto é, naquilo que foge ou resiste à adequação nos
1
Permaneci em Caravelas um total de 20 meses, assim distribuídos: 2 meses em 2002 e 1 mês em 2003 (durante
o mestrado) e 5 meses em 2004, 9 meses em 2005, 2 meses em 2006 e 1 mês em 2009 (durante o doutorado). O
título da tese contém as datas (2002-2009) porque este foi o tempo em que os eventos aqui relatados
transcorreram.
15
instrumentos teóricos de que dispomos. A etnografia foi o caminho escolhido para descrever a
história deste encontro, sem buscar totalizá-lo em teorias envolventes e globais ou reduzi-lo a
modelos ou instâncias transcendentes que forneceriam a “explicação” para os eventos
descritos.
O território de onde parte esta tese é um movimento cultural que se denomina
“Movimento Cultural Arte Manha” (o nome vem de uma poesia que está na epígrafe do
capítulo 5), que existe há vinte anos na cidade de Caravelas (BA) e é em parte uma família,
em parte uma vizinhança, em parte pessoas de “fora” a ele conectadas de modos diversos.
Este “movimento” – acredito que a auto-definição do coletivo em questão como movimento é
de longe a mais precisa – se agencia ou faz rede com processos sociais que não dizem respeito
apenas à dinâmica propriamente “locais”, mas interconectam-se com fluxos de saberes, ideias
e informações que atravessam supostas fronteiras entre local e global, micro e macro e fazem
de Caravelas uma arena pulsante onde essas dicotomias e diferenças de escalas explodem a
olhos vistos.
Não fui para o campo para pesquisar o movimento cultural. Tinha outros interesses em
vista quando ali cheguei pela primeira vez em janeiro de 2002, para o trabalho de campo de
mestrado. Mas, em Caravelas, vivi um duplo encontro que, por sinal, mudou minha vida. O
primeiro, em certa medida fortuito, em certa medida provocado, foi o contato com o
movimento cultural. Mas este contato em si mesmo poderia não ter surtido efeito. O segundo,
a meu ver o que me levou a querer estudar, aprender e desaprender com o grupo, foi o
encontro dos problemas que me “mobilizam” de algum modo tematizados por aquele
“pessoal”. Ali encontrei a arte, a política, a questão ambiental articulados segundo um modo
muito peculiar e completamente novo, desconhecido e, por isso mesmo, instigante. Como
estudar essas questões “clássicas” colocadas em outros termos pelas pessoas que fazem o
movimento? Eis o desafio que persegui. É este “modo peculiar” o que os diferencia. Este
modo peculiar - sua diferença - será o foco central desta investigação, já que é aí que se
evidenciam as virtualidades não realizadas das “grandes questões”, as questões menores
engolidas e mal digeridas pelas “grandes”.
Tome-se como exemplo o partido político. Eles são o PT da cidade. Mas não querem
formar um diretório. Eles lançam candidatos, mas não têm como objetivo primeiro ganhar a
eleição. Por algum motivo, é importante serem petistas, lançarem-se candidatos, mas não
necessariamente serem eleitos. Seu modo particular de lidar com o pleito eleitoral revela uma
outra idéia ou conceito do que sejam as eleições. Eles revelam uma dimensão das eleições em
que o que está em jogo não é ganhar ou perder, mas sim demarcar uma diferença tanto em
16
relação à Rua – onde mora a elite da cidade - quanto em relação ao próprio PT de que fazem
parte.
Outro exemplo: eles produzem móveis e esculturas em madeira, mas não os vendem
no “mercado de arte” (embora tenham todas as condições e contatos para isso): preferem
vender ou trocar para amigos e conhecidos e assim manter um contato esporádico ou
constante com sua “obra”. É só bater na porta de um colega e pedir para ver “aquela poltrona
feita com a raiz da jaqueira”. A cidade é uma espécie de museu semi-aberto cujas salas de
exposição são as casas das pessoas que deixam o desconcertado visitante conhecer sua linda
cama feita a partir de uma transformação de um carro de boi encontrado numa velha fazenda
abandonada. Seu modo peculiar de lidar com a arte e o mercado faz com que a venda da obra
de fato aconteça. Porém, ao mesmo tempo, este “modo peculiar” impede a completa
“privatização” do trabalho artístico ou sua entrada num circuito de mercado inteiramente
impessoal. Exemplos como estes poderiam se multiplicar.
O movimento cultural poderia ser entendido, ainda, como um caso privilegiado para
estudar o que Foucault (1976) denominou “saberes sujeitados”. Para ele, haveria dois tipos de
“saberes sujeitados”. Um seriam os “conteúdos históricos” que foram sepultados por
sistematizações formais que mascararam as clivagens, tensões e enfrentamentos que
permeiam a constituição de uma série de instituições (escola, prisão, manicômio, etc.) e foi a
eles que Foucault dedicou grande parte de sua obra. O outro tipo de “saber sujeitado” seria
“toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não-conceituais, como
saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores,
saberes abaixo do nível de conhecimento ou cientificidade requeridos” (Foucault, 1976, p.
12). Este saber “sem senso comum”, este saber “diferencial”, este saber “deixado em repouso
quando não efetivamente mantido sob tutela” Foucault denomina simplesmente de “o saber
das pessoas”. Este é, a meu ver, o objeto de estudo da Antropologia.
O movimento cultural é um caso privilegiado pois, em seu devir, conecta de modo
singular elementos que talvez em outros lugares estejam organizados de um modo mais
previsível. Acredito que o modo como o movimento articula arte, política e questão ambiental
é interessante e pouco conhecido, daí a vontade de realizar uma investigação antropológica
sobre este “novo”. As forças com que eles se conectam e a forma específica como se dá essa
conexão: é nesta interseção que se encontra a experiência que irei relatar.
Antecedentes
Sete anos atrás, estudante de mestrado, fui para Caravelas estudar um tema que me
instigava desde a graduação, a saber, as inovações discursivas e práticas que se constituíram
17
em torno da noção de meio ambiente – tais como sustentabilidade, capacidade de suporte,
agenda 21 - e passaram a fazer parte do vocabulário político corrente a partir da década de
90
2
. Mais do que isso, almejava estudar uma situação de conflito ambiental, isto é,
controvérsias em que o que está em jogo são sujeitos que atribuem sentidos distintos para o
manejo e uso dos recursos naturais. Caravelas parecia-me um lugar especialmente promissor
para isso, por concentrar numa pequena cidade uma série de entidades ambientalistas, órgãos
ambientais e uma das maiores empresas poluidoras do Brasil, a Aracruz Celulose. Caravelas
parecia-me um verdadeiro microcosmo de embates sociais e políticos a desvendar.
Uma série de entidades que têm como foco a assim chamada questão ambiental se
reúnem na cidade: a sede do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, o CEPENE (centro de
pesquisas do nordeste, centro especializado do IBAMA), uma divisão de meio ambiente da
Prefeitura Municipal, uma ONG conservacionista de origem estrangeira, uma ONG de
proteção a baleias e cetáceos brasileira, além de pequenas ONGs criadas para captar recursos
dessas outras ONGs ou da empresa Aracruz Celulose.
No momento em que cheguei ao campo pela primeira vez, em fevereiro de 2002, a
Aracruz iniciava a construção de um terminal marítimo para o transporte de toras de eucalipto
por mar para sua fábrica de celulose, no município de Aracruz, Espírito Santo. Para tanto, a
empresa empreendera uma campanha bem sucedida no município para obter as licenças de
operação do porto e conseguira aplacar todas as vozes contrárias através das chamadas
“medidas condicionantes” e “patrocínios” para atividades das ONGs, da prefeitura e do
IBAMA.
Meu intuito, então, era pesquisar este curioso caso de “conflito ambiental”, onde não
havia conflito algum. Permaneci um mês na cidade entrevistando o chefe do IBAMA, os
integrantes das ONGs, funcionários da Prefeitura, pescadores, enfim, todos os atores que ao
meu ver tinham alguma relação com a “questão ambiental”. Ao final deste termo, vi-me com
uma coleção de notas de campo que nada mais eram do que justificativas sobre a adesão e/ou
submissão daqueles diversos agentes ao poderio de uma grande corporação.
Quando retornei da minha primeira experiência de campo, em março de 2002, e me vi
confrontada com os dados coletados, fui pouco a pouco sendo acometida por algo que poderia
ser definido como uma claustrofobia teórica
3
. Basicamente, a sensação de se estar preso a um
2
Temáticas que faziam parte do projeto de pesquisa “Meio Ambiente, Economia e Política – novas
institucionalidades na regulação de conflitos socio-ambientais”, coordenado pelo Prof. Henri Acselrad
(IPPUR/UFRJ), no qual participei como pesquisadora durante a graduação.
3
Devo esta definição a uma amiga psicóloga que sentiu o mesmo quando um texto de Lacan que havia xerocado
caiu no chão, embaralhando as folhas. Ao perceber que não conseguia ordenar o texto novamente, que as frases
18
esquema teórico que tudo explica. Tive a viva impressão de que os esquemas teóricos que
buscam explicar a dominação a tomam como fato e não como estado. Definem a dominação
como primeira em relação ao que dela escapa e não é incomum que a pesquisa empírica torne-
se refém desta lógica e acabe por referendá-la tautologicamente. O campo é assim engolido e
reduzido a um dado que já conhecíamos antes e, no final da análise, é grande o risco de não
haver nada de novo sob o sol. Retorna-se ao conceito previamente emitido de modo que a
proposição seja sempre uma afirmação verdadeira; o sujeito se desloca, mas não se
desterritorializa.
É preciso admitir que a sensação de claustrofobia não se ateve ao domínio teórico, mas
também político. Era sufocante demais a constatação de que simplesmente não havia conflito,
de que todos estavam comprados e cooptados. Sem dúvida, esta foi uma configuração
momentânea, partilhada por aqueles que entrevistei no período da minha primeira visita. Mais
tarde, pude ver que esta disputa estava longe de ser resolvida, quando eclodiu com toda força
um novo conflito, envolvendo estes e outros atores no processo de licenciamento de uma
grande fazenda de carcinicultura, como veremos adiante.
Do ponto de vista pessoal, existencial e político, sufocava-me o fato ou a sensação de
não haver um “lado de fora” do poder, de não ter acesso, naquele momento, às linhas de fuga
traçadas pelos diferentes atores sociais em questão. Mas estava hospedada na casa-sede do
movimento cultural. E, seguindo instruções do meu orientador, anotei tudo, inclusive o que
parecia nada ter a ver com as questões que haviam me levado para o campo, e vivi com os
integrantes do movimento cultural em seu devir cotidiano, participando de suas atividades
artísticas e lutas políticas. Foi o que me permitiu questionar a teoria, o protocolo
4
e, assim,
conseguir respirar.
Um desaprendizado
É muito mais difícil formular perguntas do que reconhecer as respostas. A imagem de
pensamento fundada na recognição, na identificação do certo e do errado, do verdadeiro e do
falso - o modo como somos treinados a pensar durante o processo de escolarização - é uma
forma muito sofisticada de bloqueio criativo e submissão ou hierarquização de sujeitos. Só há
uma “boa resposta” e tudo o que a ela escapa é erro, falta, omissão. Romper com este modo
se misturavam e que tudo parecia fazer algum sentido e nenhum sentido ao mesmo tempo, ela foi tomada pela
sensação que definiu como “claustrofobia teórica”.
4
Latour (2004, p.11, grifo do autor) acredita que, para ser interessante, o laboratório não deve temer se colocar
em risco, uma vez que “o risco real a ser corrido é o de se ter as questões colocadas requalificadas pelas
entidades postas em teste.”
19
de pensar é um desaprendizado difícil, mas ao meu ver, muito importante, ou melhor, vital.
Ter a “boa resposta” é o fantasma que assombra qualquer estudante nos bancos escolares e,
num certo sentido, é o aquilo que define esta condição. Mas realmente difícil é fazer as “boas
perguntas”. Como diz Deleuze (1999:9), “a verdadeira liberdade está em um poder de
decisão, de constituição dos próprios problemas”. É para esse exercício de liberdade que não
somos treinados, talvez daí a sensação de dificuldade que permeou toda a elaboração desta
tese. O exercício a que me propus foi fazer proliferar respostas e perguntas, sem julgá-las a
priori, permitindo simplesmente que elas existissem e circulassem, de maneira minimamente
articulada e numa linguagem clara, de simples compreensão.
Assim, sugiro que esta tese seja lida como um conjunto de proposições e não de
afirmações, seguindo a trilha da distinção proposta por Latour (2004: 1-2.) entre proposições
– que podem ser articuladas ou desarticuladas - e afirmações – que só podem ser verdadeiras
ou falsas:
“A palavra proposição conjuga três elementos cruciais: a) denota uma obstinação
(posição) que b) não possui nenhuma autoridade definitiva (é apenas uma pro-posição)
e c) pode aceitar a negociar a si mesma numa com-posição sem perder sua solidez”.
Em outra palavras, uma proposição articulada irá sempre buscar ser afetada pelas
diferenças com as quais se defronta, ao invés de se esquivar das críticas, questionamentos e
controvérsias. Como afirma Latour:
“não existe este trauma com a articulação porque ela não espera que os relatos sejam
convergentes numa única versão que fechará a discussão com uma afirmativa que seria
simplesmente uma mera replicação do original”.
Assim, uma proposição corre o risco de se tornar desarticulada quando perde sua
capacidade de ser afetada pelas diferenças (ou de registrar as diferenças) e começa a repetir o
que já foi dito, já foi feito e já foi sentido ad nauseum. No limite, ela pode se tornar uma
afirmação, quando começar a servir de argumento de autoridade, ao fixar as diferenças (que
então se tornariam identidades) e reproduzir o modelo original numa argumentação
tautológica cuja missão última se satisfaz no julgamento do verdadeiro e do falso. Esta
distinção entre afirmações e proposições ao meu ver funciona como um alerta contra as
armadilhas de sistemas de pensamento fundados na pressuposição de uma identidade que dá a
priori ao pensamento uma forma àquilo que ele ainda não conhece ou está em vias de
conhecer. E esse conhecimento é constituído a partir de um olhar que não é apenas de fora,
externo, mas acima de tudo um olhar transcendente em relação ao mundo observado. Nesta
plataforma superior da experiência, acima dos pontos de vista dos atores sob escrutínio, o
20
analista crê na possibilidade de ter acesso e acumular todos os pontos de vistas virtualmente
possíveis.
Construída segundo uma lógica a partir da qual o observador tudo vê sem ser visto e
sem estabelecer relações com os observados, essa concepção do conhecimento fundada na
distância e/ou na neutralidade do observador e em sua capacidade de maximizar a aquisição
de pontos de vista dos observados guarda muitas semelhanças com a lógica do utilitarismo e
com panoptismo, inclusive no sentido de que funciona aprisionando o pensamento.
Utilitarismo aqui é entendido não como uma teoria ou uma ideologia ou uma maneira da
sociedade “se representar”, mas como uma prática, uma “maneira de fazer” orientada por
objetivos
5
. Essa não é a única semelhança que essa imagem de pensamento guarda com o
utilitarismo, como veremos na discussão sobre o interesse (capítulo 3).
Foi acreditando-me capaz de adotar este olhar que visa enxergar mais ou além do que
os próprios “observados” que cheguei a Caravelas em 2002, em busca de um campo para o
meu mestrado. O trabalho de campo – acredito que esta é uma de suas funções enquanto
técnica de pesquisa antropológica - provocou um deslocamento ou melhor, um
desmoronamento da crença neste ponto de vista “superior” ou “externo”, que também
poderíamos chamar de científico. É certo que um empirismo etnográfico “puro”, isto é, a
concepção de que o trabalho de campo seja um modo de se apreender diretamente o modo de
vida nativo tal como ele é, também é ilusório. Como veremos, no campo, por mais que se
tenha acesso direto a uma miríade de situações e cenas da vida social, há uma “opacidade” de
fundo
6
, uma dificuldade em se entender o que “de fato está acontecendo”. A dispersão e
instabilidade do campo tem um efeito muitas vezes vertiginoso. Em outras palavras, o
trabalho de campo põe o pesquisador em contato com uma indeterminação essencial no
coração das questões com que se depara. Trata-se não apenas de aprender a conviver com ela
mas, igualmente, de exercitar a capacidade de fazer proliferar essas questões, ao invés de
buscar “solucioná-las” com uma teoria que as explique ou solucione.
Estar dentro ou estar fora?
No início do trabalho de campo do doutorado, em 2004, fui tomada por uma dúvida,
que dizia respeito a uma suposta escolha que acreditava ser obrigada a fazer entre “estar
dentro” ou “estar fora”. Esclareço: acreditava que, para que minha pesquisa tivesse
5
Cf. Foucault, 1994 [1979]: 819.
6
Opacidade que é da vida social, mas também “uma opacidade essencial do sujeito consigo mesmo”. (Favret-
Saada, 1990:9).
21
cientificidade teria que conhecer o maior número possível de pessoas, lugares,
acontecimentos, histórias – com o devido distanciamento, o que me levaria a ter acesso aos
fatos, aos atos e aspectos intelectuais observáveis da experiência humana. A alternativa a isso,
isto é, “estar dentro” seria, segundo este raciocínio, em primeiro lugar, limitar o escopo da
análise a poucas pessoas, lugares, acontecimentos e histórias; em segundo lugar, envolver-me
com o “objeto de estudo”, isto é, ser afetada – mesmo que de um modo diferente do qual eles
o são - pelas mesmas forças que os afetam.
O “estar fora” como método talvez se explique por um desejo de maximização - ecos
de uma cosmologia de mercado ou de um modo de subjetivação dominante que carregamos
dentro da gente e que eu certamente não deixei em casa ao ir para o campo. Mas a dúvida
logo tomou seu devido lugar quando a própria experiência de campo impôs o imperativo da
escolha: com que família se vai morar, quem serão seus amigos, com quem se vai ao mercado,
com os filhos de quem se vai brincar, qual político se vai apoiar, qual casa de candomblé se
vai frequentar, enfim, de qual meio se fará parte. Não ter tudo, não conhecer todo mundo, não
maximizar pontos de vista me parece um elemento fundamental para uma pesquisa
etnográfica. Porque quem está aqui e lá, não está em nenhum lugar. Mais do que isso, os dois
lados pensam: a pessoa diz que está aqui e lá, mas como não existe estar em dois lugares ao
mesmo tempo e a rigor ela não está aqui, na verdade ela está lá. Como confiar em alguém que
age assim? Quem está em todos os lugares, não está em nenhum e assim não cria relação,
condição primeira de toda etnografia.
É por isso que, a meu ver, trabalho de campo só se faz do lado de dentro
7
. Dentro pode
ser entendido de duas maneiras. Entrar no mundo dos nativos para alguns significa cegar-se.
O dentro é o mundo da illusio; o grande temor do antropólogo que hesita entrar é o de ser
capturado pelo dentro e ficar cego, como se, estando “dentro” imediatamente se entrasse na
caverna platônica e se perdesse a clarividência filosófica para a qual se foi treinado. Estar
“dentro” seria então estar no mesmo plano ou num plano perigosamente próximo dos nativos,
esses sujeitos que supostamente não veem ou ao menos não são capazes de ver tudo aquilo
que só o antropólogo é capaz de vislumbrar: a verdade do outro, para a qual este outro é cego.
O outro dentro é o “dentro” tal como o conheci em Caravelas. Primeiro, estar nele não
é produto de uma escolha entre “dentro e fora”. A rigor, não há fora, tampouco escolha. Tudo
já está dentro e se você foi se imiscuir aí, já está irreversivelmente dentro, quer queira ou não.
7
Embora certamente o antropólogo seja alguém que oscila entre estar dentro E estar fora, que vive em dois
mundos – e não ENTRE dois mundos. Agradeço Marcio Goldman por esta e incontáveis outras valiosas
observações à primeira versão desta tese.
22
No “tempo da política”, como veremos no capítulo 2, todos estão dentro. Ironicamente,
quanto mais eu me precavia e acreditava não estar “dentro”, mais capturada estava. Foi este
estar dentro inelutável a condição da realização da pesquisa; ter sido afetada pela potência do
encontro com o movimento é o que tornou possível escrever esta etnografia.
Nas palavras precisas de Favret-Saada (1990: 7):
“que um etnógrafo aceite ser afetado não implica que ele se identifique com o ponto
de vista nativo, nem que ele aproveite a experiência de campo para exercitar seu narcisismo.
Aceitar a experiência de campo supõe todavia que se assuma o risco de ver se esvair seu
projeto de conhecimento. Pois se o projeto de conhecimento é onipresente, nada acontece”.
Não se trata aqui de observação participante, nem tampouco de pura e simples
“empatia”, “comunhão afetiva” ou “encantamento” pelo objeto de estudo. No campo, fiz uma
escolha metodológica consciente de fazer da participação um instrumento de conhecimento,
isto é, de me deixar afetar pelas ondas de intensidades específicas – os afetos – que
atravessam e, como veremos, “irradiam” pelas pessoas, eventos e obras de arte com quem me
relacionei. Esta escolha funcionou de modo semelhante à descrição que os integrantes do
movimento fazem da produção artística: ela abre um canal, uma porta, uma possibilidade de
comunicação com algo que é desconhecido. Mas não há garantias. Um artista, diz-se em
Caravelas, não é melhor porque é capaz de “abrir este canal”. É o que ele faz com isso, isto é,
as conseqüências que ele tira desta abertura o que importa no final das contas.
Esta “dupla-captura” (Deleuze e Guattari, 1980, p. 17) foi ao mesmo tempo a condição
sine qua e o resultado deste processo. Esta tese nasceu de uma interconexão entre seres
heterogêneos que gerou uma troca de influências, afetos ou “irradiações” entre o grupo
estudado e esta antropóloga, mas não produziu um efeito de identificação ou homogeneização
como poderia se esperar. Minha forma de fazer antropologia certamente foi afetada pela
forma deles fazer arte e política. Da mesma forma, eles foram afetados por este encontro de
um modo que não é semelhante ou simétrico ao meu encontro com eles. O que cada um
“tirou” deste encontro é diferente, mas, de modos distintos foi uma conexão produtiva na
medida em que permitiu um aumento da potência de ambos neste difícil processo de tornar-se
o que se é.
A relação do antropólogo com seu campo traz alguns pontos em comum com àquela
que o escultor tem com a madeira antes dele começar a esculpi-la. A criação não é o
resultado de um projeto previamente definido; é, antes, o produto da relação que se estabelece
entre as ideias e habilidades do artista e a forma dada pela “madeira de aproveitamento”, que
é sempre repleta de nós, tramas e ocos imprevistos. Segundo os escultores, o tempo da técnica
23
de “reaproveitamento” é incomensurável, pois é possível que o artista observe por anos a fio
uma raiz e não enxergue sua “forma natural”, até que, certo dia, venha um “desenho na
mente”, que lhe revele sua forma implícita e o leve a trabalhar por dias a fio até a finalização
da obra. Assim, como destacou Jaco na imagem do início desta introdução, tempo e a
intimidade são variáveis cruciais da pesquisa antropológica, pois são o que vai permitir a
construção das associações entre as experiências muitas vezes dispersas e vertiginosas nas
quais se inseriu.
Se tudo está dado, como nasce o novo? Esta questão têm implicações em três planos
que poderiam ser formalmente separados mas que defendo serem um só no final das contas:
os planos etnográfico, acadêmico e político. Nascida da etnografia, esta pergunta tenta dar
conta do meu espanto com pessoas que vivem num mundo pleno e que, no entanto, criam a
todo tempo novo enunciados e agenciamentos através da arte e da política (o novo aqui não é
tomado como sinônimo de algo necessariamente positivo; “novo” pode ser para pior ou para
melhor). O que esta tese tentará fazer é mostrar os termos nos quais esta produção desejante
se faz. No plano acadêmico, esta pergunta procura traçar uma linha de fuga em relação aos
esquemas teóricos totalizantes, que definem certas coisas como dadas, como é o caso da
dominação na sociologia crítica, que têm como efeito político colateral reforçá-la ao atribuir
ênfase excessiva na sobredeterminação dos processos seja pela Economia, pela Cultura, pelo
Interesse ou pela Racionalidade. E no plano propriamente político, esta questão se traduz
numa recusa pessoal ao niilismo e ao embotamento político disseminados pelo pensamento
único hegemônico nas duas últimas décadas, marcadas pelo triunfo das teses neoliberais e a
capitulação - ou suspensão temporária - das alternativas.
O que me levou a Caravelas foi vontade de encontrar outras formas de vida em que
estivesse em cena algum movimento. Porque tudo parecia parado, estático e
insuportavelmente opaco. Por isso parti em busca de novos tons, ora mais ora menos
vibrantes, nesse espectro em constante transformação que é o repertório de modos de fazer
arte e política que os grupos humanos inventaram e que a Antropologia se propõe a estudar.
“Eu não sou só eu”
Algumas observações finais importantes. O(a) leitor(a) irá notar que a remissão a
referências teóricas é feita com parcimônia e de maneira esporádica. Este foi o resultado de
uma preocupação pessoal – reforçada pelas observações da banca de qualificação – de não
deixar que a teoria “engolisse” o objeto, para que a descrição dos agenciamentos ou das redes
traçadas pelos agentes estudados não fosse interrompida. Durante a escrita, notei que a
remissão explícita à teoria ou mesmo a outras etnografias produzia um efeito (que não me
24
agradou) de corte e de distanciamento em relação à descrição dos eventos, o que se revelou
por fim incompatível com o estilo aqui adotado. Daí minha escolha de reduzir as articulações
com a teoria a um mínimo e remetê-las às notas de rodapé. Que fique claro, porém, que esta
escolha não significa de forma alguma a defesa de um empirismo obtuso ou simplório. Há
uma miríade de autores presentes no texto sem estarem citados explicitamente. A solução
encontrada para fazer jus às inúmeras linhas de força que atravessam silenciosamente este
trabalho foi apresentar na bibliografia todos os autores dos quais me nutri para conseguir
escrever esta tese. Reconheço que esta pode ser entendida como uma solução limitada, mas
foi um recurso que me permitiu escrever com mais segurança e fluidez.
A segunda observação diz respeito ao uso que faço dos nomes próprios. Certa vez em
Caravelas resolvi mostrar para algumas pessoas um texto que havia escrito para apresentar
num congresso. Dó Galdino, artista do movimento cultural, leu a parte do texto em que
descrevia suas idéias e práticas políticas e comentou: “tudo bem, só que eu não sou só eu”. E
acrescentou: “se você quiser, pode tirar meu nome, não faz diferença”. Dó disse duas coisas
com este enunciado: primeiro, que não é apenas ele que pensa daquela forma, isto é, outras
pessoas pensam como ele no movimento cultural e partilham daquelas idéias (sobre política,
no caso). Por outro lado, ele quis dizer que não é um só, ou seja, não é apenas (no caso em
questão), o candidato a vereador pelo PT, mas um Dó que comporta muitos outros modos de
subjetivação: artista, vaqueiro, arquiteto auto-didata, escultor, bailarino, ator, marido de
Simone, etc.. “O nome próprio é a apreensão instantânea de uma multiplicidade” (Deleuze e
Guattari, 1980, p.51).
Assim, do ponto de vista de Dó/do grupo, quem enuncia algo não é “dono” do
enunciado, as enunciações não são privadas, não há sujeito individual da enunciação, mas
agenciamentos coletivos que atravessam aquele “eu” chamado Dó. O nome próprio seria,
portanto, um efeito ou uma condensação de um conjunto de vetores de singularização que
estão ao mesmo tempo aquém e além do indivíduo. Portanto, o que Dó pensa ou diz é
irredutível ao "eu-Dó"; o que ele pensa ou diz o transborda. Por isso parece-me que um
desafio da escrita - e também da leitura - etnográfica é não acreditar que “eu seja apenas eu” e
estar atento aos muitos heterônimos que cada “eu” faz proliferar.
A terceira observação é sobre o “contexto” desta pesquisa. Apresentar a cidade onde
desenvolvo a pesquisa não é das tarefas mais fáceis. Isso porque não há uma Caravelas, mas
muitas. Para concluir esta introdução, apresento algumas delas.
25
Muitas Caravelas à vista
A Caravelas dos historiadores locais foi descoberta no ano de 1503. A segunda
expedição exploradora após o descobrimento do Brasil saiu do Tejo em 1503 e chegou no
mesmo ano no arquipélago de Fernando de Noronha, onde um navio capitânia, da esquadra
comandada por Gonçalo Coelho, naufragou. Desta esquadra fazia parte o célebre Américo
Vespúcio, o "piloto e marinheiro mais instruído do seu tempo", como afirmam os
historiadores locais. A caravela de Américo Vespúcio se perdeu ou se desvencilhou das
demais e chegou à foz do que algumas décadas mais tarde, em 1574, ficou conhecido como o
rio de Santo Antonio das Caravelas, ou simplesmente, rio Caravelas. Os historiadores da
cidade contestam a versão oficial da história de que Américo Vespúcio chegou a Cabo Frio
em 1503. Argumentam que, por um erro de leitura da caligrafia antiga do navegante, a
latitude que se perpetuou até os nossos dias através do tratado de Varnhagen (1857) acabou
sendo equivocadamente aquela corresponde à latitude da cidade fluminense.
Os historiadores locais defendem que “a história deve se basear na fonte primária”,
que no caso é a carta a Soderini, documento escrito “do próprio punho” por Vespúcio por
volta de 1505, relatando sua segunda viagem às Américas. Um professor de história da cidade
indaga: “quem somos nós hoje para questionar Américo Vespúcio, o maior navegador de seu
tempo?” Para os caravelenses não há dúvidas de que o Visconde de Porto Seguro “adulterou a
história” e que os cálculos de Vespúcio eram exatos: Caravelas foi de fato o porto que
descreve ter chegado em 1503. Afirma um deles: “Foi Caravelas descoberta no ano de 1503,
ocasião em que o homem civilizado pisou seu solo pela primeira vez” (Rallile, 1949:14). Em
1503, portanto, Américo Vespúcio costeou a terra até a latitude de 18 graus e entrou no porto
do que hoje é Caravelas, onde fundou uma feitoria, que deixou fortificada com 12 peças de
artilharia e 24 homens e retornou em seguida para Lisboa
8
.
Durante o tempo em que o Brasil esteve dividido em capitanias hereditárias, o atual
município de Caravelas pertenceu a Porto Seguro (300 km ao norte), doado a Pero de Campos
Tourinho, em 1534. A capitania de Porto Seguro, como várias outras, fracassou, dado o pouco
interesse do seu donatário e sucessores e pelos incessantes ataques dos índios tupiniquins, que
habitavam a região, desde o rio Camamu até o rio Cricaré - que hoje se denomina Mucuri.
Presume-se que a feitoria deixada em Caravelas por Américo Vespúcio tenha desaparecido
em conseqüência de ataques dos índios.
8
O relato que se segue foi elaborado a partir da Monografia Histórica de Caravelas (Rallile, 1949) e de um artigo
elaborado por Oliveira (1993), professor de história da cidade.
26
Caravelas aparece e desaparece dos relatos desta fase inicial da colonização
portuguesa. Os historiadores locais supõe que as expedições em busca de metais e pedras
preciosas que partiam de Porto Seguro e desciam o litoral teriam passado por Caravelas, como
é o caso da bandeira Espinoza (em 1553), que percorreu o litoral desde a foz do rio
Jequitinhonha até São Mateus, no que hoje é o estado do Espírito Santo. Em 1572, Sebastião
Fernandes Tourinho subiu o rio Doce e retrocedeu ao litoral pelo rio das Caravelas. Em 1574,
Antônio Dias Adorno, chefe de uma expedição de 150 portugueses e 400 índios, que se
embrenhou pelo interior à procura de ouro e da então famosa “serra das esmeraldas”,
mencionou o passagem pelo “rio das Caravelas”. Somente em 1581, diz-se ter um padre
francês, - provavelmente um dos missionário vindos com Manuel da Nóbrega - fundado a
aldeia de Caravelas, onde erigiu pequena igreja, sob a invocação de Santo Antônio do Campo
dos Coqueiros. A aldeia foi abandonada, possivelmente por ataques dos índios e somente em
1610 Caravelas foi repovoada. Em 1700, foi elevada à categoria de vila, com o nome de Santo
Antônio do Rio das Caravelas. De 1702 a 1729, a colonização estendeu-se pelos vales dos
rios São Mateus, Mucuri, Doce e Peruípe. Caravelas alcançou o título de Constitucional
Cidade de Caravelas em 1855.
Em 2003 foi comemorado o aniversário de 500 anos do descobrimento de Caravelas.
Porém, para a indignação da prefeitura e dos habitantes da cidade, o governo do estado não
liberou verba alguma para tal evento, por não acreditar nesta versão da história, o que não
impediu que a data fosse celebrada no carnaval de 2003, pelas escolas de samba da cidade –
que desfilaram uma apologia ao descobrimento - e pelo movimento cultural aqui estudado,
que denunciou em seu desfile manifestação-política o início sangrento da conquista.
Há ainda outra Caravelas: a cidade dos biólogos, oceanógrafos e ambientalistas que
vão aí morar buscando uma vida próxima à “natureza” aliada a um trabalho relacionado à
proteção do “meio ambiente”. A Caravelas dos ambientalistas é o principal porto de saída
para a região dos Abrolhos, conjunto de ilhas e ambientes de recife de corais conhecido pela
grande diversidade de sua fauna marinha, com inúmeras espécies de peixes, moluscos, corais,
esponjas, tartarugas marinhas, além de algumas aves e da baleia Jubarte, que durante certos
meses do ano procura o arquipélago para se reproduzir. A cidade está localizada no chamado
Corredor Central da Mata Atlântica, em uma região definida pelo Ministério do Meio
Ambiente como “de grande relevância ecológica” (MMA, 2002) e área prioritária para
conservação, devido aos diversos ecossistemas aí presentes, tais como: manguezal, estuários,
restingas, praias, ambientes recifais e remanescentes de florestas. Caravelas é o principal
27
ponto de partida para o Parque Nacional Marinho dos Abrolhos e se encontra parcialmente
inserida na Área de Proteção Ambiental estadual da Ponta da Baleia - Abrolhos.
Desde o início da década de oitenta Caravelas atrai pesquisadores e amantes da prática
de mergulho de várias partes do país pela exuberância de sua vida marinha. É sede do
primeiro Parque Nacional Marinho do país, criado por decreto em 1983 , assim como de
várias ONGs ambientalistas de perfil conservacionista e de uma série de projetos de cunho
ambiental. Entre as ONGs, destaca-se o Instituto Baleia Jubarte, voltado para a conservação
de baleias e cetáceos e a Conservação Internacional do Brasil, voltada para a preservação da
biodiversidade. Além das ONGs, situa-se em Caravelas a sede do Parque Nacional Marinho
dos Abrolhos, assim como um posto avançado do IBAMA, que desenvolve pesquisas
aplicadas na região.
A Caravelas onde vivem os ambientalistas é uma cidade vista como “pequena” (possui
apenas 20.000 habitantes), “longe de tudo” (o município se situa a 865 km de Salvador) e com
poucos atrativos urbanos para quem vem de uma grande metrópole. Sua renda é alimentada
pela pesca do camarão, pela Previdência Social (aposentadorias e pensões) e por um turismo
intermitente e cada vez mais escasso para a região dos Abrolhos. Diz-se que, por ser um
turismo de luxo e pela cidade “ser pobre”, isto é, não ter uma infra-estrutura de hotéis,
restaurantes e serviços, o turista muitas vezes apenas usa a cidade como porto para Abrolhos e
nem chega a pernoitar aí. Hoje, a maior parte dos ambientalistas são pesquisadores de
universidades do Rio, de São Paulo e do Sul, que aí se instalam para desenvolver seus
projetos de mestrado e doutorado em biologia marinha ou para trabalhar nas ONGs.
...
A Caravelas dos moradores mais antigos, como é de se esperar em virtualmente todo
lugar, é marcada pela nostalgia. Conversar com os mais velhos e andar com eles nas ruas é
uma experiência instigante para os sentidos: vê-se diante dos olhos uma outra cidade. Ou
melhor, outras cidades, uma vez que essa espécie de arquitetura fantástica que fizeram-nos ver
é descrita de modo distinto por moradores da Rua e por moradores da Avenida, importante
oposição da cidade, como veremos mais adiante. Os moradores da rua apresentaram-me uma
cidade próspera, movimentado centro comercial, com uma vida cultural intensa, casario em
estilo colonial português único na região, com azulejos de Macau nas fachadas, cimalhas
trabalhadas e janelas com caixilhos de vidro formando desenhos geométricos refinados,
iluminadas por lampiões a óleo de baleia. Aí se localizava o mais importante teatro da região,
hoje desativado e quase totalmente em ruínas, que recebia companhias de teatro, músicos e
28
bailarinos de várias regiões do país. O porto da cidade, localizado a meio caminho entre Rio
de Janeiro e Salvador, era uma parada obrigatória para artistas, circos e andarilhos.
Esses moradores comprazem-se ao lembrar de um passado de “grande
desenvolvimento econômico de Caravelas”, devido basicamente à extração do azeite de baleia
– que era largamente empregado na fabricação de argamassa para construções e na iluminação
pública das ruas da colônia - e à implantação da lavoura cafeeira, que transformou a cidade no
maior pólo produtor da Província da Bahia no século XIX
9
. Os moradores antigos lembram
com tristeza e resignação que, até meados da década de 50 do século XX Caravelas foi um
importante centro econômico regional e local de entrecruzamento entre meios de
comunicação diversos: havia aí um movimentado porto no rio que banha a cidade, a 14 km do
oceano Atlântico; um aeroporto com vôos da Panair diários para Salvador e Rio de Janeiro,
um sofisticado sistema de telégrafos desde 1875 e, acima de tudo, a extinta porém onipresente
estrada de ferro Bahia-Minas, que ligava o norte de Minas ao distrito caravelense de Ponta de
Areia, imortalizada na canção homônima de Milton Nascimento e Fernando Brant.
Desde a década de 60, quando o governo militar do Brasil desativou a ferrovia Bahia-
Minas, os moradores lamentam que nenhuma alternativa de desenvolvimento foi projetada
para a região. Por isso, acreditam que a cidade mergulhou num processo de decadência
econômica, evidenciado pelo êxodo populacional significativo, seja para as grandes capitais
como Rio e São Paulo, seja para os principais centros urbanos da região, Teixeira de Freitas,
Belo Horizonte e Vitória.
Caravelas é apresentada de modo bem diferente pelos moradores da Avenida, que até
muito recentemente era considerada uma área periférica da cidade, mas que, com o
povoamento de suas margens, vem se aproximando cada vez mais da Rua. Os mais velhos da
Avenida são antigos trabalhadores da estiva, arrumadores dos navios que aí aportavam e
carregadores dos armazéns onde eram estocados os produtos a serem transportados para
Minas pela ferrovia. São, ainda, os antigos trabalhadores rurais de origem indígena que
“abriram a mata” da região, alimentaram a indústria madeireira e prepararam o caminho para
a chegada da pecuária, vinda de Minas Gerais. São os trabalhadores da manutenção da estrada
de ferro, que viviam junto às caldeiras das locomotivas. Para esses, Caravelas não tem nada
das luzes que irradiavam dos casarios prósperos: é descrita como uma cidade muito
9
Em 1818, imigrantes suíços criaram a Colônia Leopoldina, no vale do rio Peruípe (onde hoje situa-se a cidade
de Helvécia, estudada por Martin Ossowicki, 2003), uma das primeiras colônias agrícolas organizadas por D.
João VI para o cultivo do café com mão-de-obra escrava e de imigrantes europeus.
29
movimentada onde, não obstante a riqueza circulante, por vezes, para as crianças se
alimentarem era preciso que os adultos fossem dormir com fome.
Mas, com diz Dadá, moradora da Avenida e mãe de muitos participantes do
movimento cultural, sempre havia um jeito: “botava rede, ia pescar siri no mangue. Ia pro lixo
pegar abobrinha verde, os pés brotam, pra comer com peixe. Tinha dia que não tinha nada
pros meninos jantar. Mas eu pegava o coco, ralava e fazia aquela farinha de coco torrada no
fogo, eles tomavam com café.” Dadá lembra das brincadeiras de roda, boneca de pano,
boneca de barro, dos batizados e aniversários de boneca quando ela e as coleguinhas pegavam
as “bandas” de coco seco e de ostra para fazer os pratos, onde punham ossos de galinha para o
banquete imaginário. Enquanto os bebês de brinquedo eram batizados com “agüinha de sal”,
os de carne e osso eram banhados em gamelas de madeira. As roupas da mãe e do bebê eram
defumadas em alfazema dentro de um cesto de cipó e os passantes, sentindo o aroma que
então se espalhava, ficavam sabendo: “fulana já ganhou neném”. A placenta era enterrada no
fundo do quintal, o umbigo enterrado “no maior sigilo” na porteira de casa e o bebê,
embalado com uma tesoura debaixo do travesseiro, precaução contra a bruxa que rondava a
casa, a cobiçar seu sangue.
Aliás, para fortalecer o sangue e combater doenças, o pai de Dadá, morador da roça (a
grande ilha de Cassurubá, formada pelos vários braços-de-mar que adentram o continente na
região, ver figura 2) fazia garrafada, um fermentado de milho e batata-de-purga: “Mamãe
usava pra gente. Era bom pro sangue.”
A vida era muito dura para os trabalhadores no tempo em que se pagava pelos
serviços, direitos e assistências que hoje são vistos como básicos e perenes: “tudo era pago,
tudo era com dificuldade. A gente não tinha remédio de graça. Até o normal era pago, o
colégio de Itamar. A primeira vez que recebi o décimo terceiro eu perguntei: ‘vocês querem
roupa ou querem cama?’, porque dormia tudo perto de mim.” Quando da extinção da Bahia-
Minas, era preciso viajar até Teófilo Otoni, em Minas, para receber a pensão que seu marido
deixou ao morrer. Dadá só podia ir a cada três ou quatro meses, por ser muito distante e
custosa a viagem. Enquanto não recebia, lavava roupa pra fora, carregava feixe de cana, saco
de farinha “feito um homem” e água no latão para sobreviver com os três filhos. Era comum
trocar serviços por alimentos: “Pegava 12 latas d’água por dia e levava numa distância daqui
até aquele beco. Quando voltava pra casa, já trazia o açúcar e o café. A dona me pagava com
mantimento”.
Mesmo consciente de todas as dificuldades por que passou e ainda passa, Dadá é
resoluta: “Dizem que a vida piorou. Piorou que nada! Melhorou, isso sim. Hoje tem geladeira,
30
fogão, antes era tudo na braçadeira, pega lenha, salga tudo. Hoje a vida é mais fácil”. Ela
conta que antes “aqui tudo era areia”, não havia calçamento e na época das chuvas virava
“uma lama só”. Água, não era encanada, “a gente carregava nas latas, naqueles barris no
cavalo, no burro. Pegava com rolo, ia rolando assim e puxando a água. Todos os moradores
pegavam água na cacimba. É uma coisa que nunca deveria ter acabado, a cacimba. É uma
coisa, como diz?, histórica. Que deveria ficar lá pras pessoas sempre se lembrarem. As
lavadeiras lavavam as roupas ali nas cacimbas. E ficava aquela conversa de lavadeira. Quando
vinha trovoada de chuva, botava tudo nos cestos e vinha nas carreiras.” Dadá não se conforma
que até hoje não exista um sistema de esgoto na Avenida, apesar da casa do antigo prefeito ser
a menos de duas quadras dali.
Até recentemente a agricultura familiar de subsistência se espalhava por toda a região
e nas feiras da região era grande a oferta de frutas e pescado. A partir da década de 80, com a
expansão da monocultura do eucalipto e o dramático êxodo rural resultante
10
, quase todos as
frutas, verduras e legumes vêm da Ceasa de Vitória, a 450 quilômetros dali. E, com a
instalação de um grande frigorífico de pescado na cidade, para onde é vendida toda a
produção pesqueira (que segue para as capitais e para o exterior), é muito raro encontrar peixe
na cidade. Na feira dos sábados, os açougues tomaram o lugar das peixarias. Para comer
peixe, só encomendando a um pescador. O próprio caranguejo, que nunca faltou, chegou a
desaparecer. Especula-se que os agrotóxicos aplicados intensivamente nos eucaliptais
próximos ao manguezal poderiam ter atingido o leito das várias vertentes de água que formam
o mangue. Outros afirmam que trata-se de uma virose que se espalhou pelas correntes
marinhas a partir de fazendas de camarão situadas mais ao norte, em Canavieiras. A sensação
de que a natureza não é mais tão abundante quanto antes é comum entre os moradores mais
velhos. Para muitos, trata-se de um sinal do fim dos tempos. Para outros, como Dadá, um
indicador da “ambição” de alguns que desejam lucrar, vendendo maciçamente para fora e
deixando os moradores da cidade sem acesso àquilo que aí se produz. Diz Dadá:
“As frutas vinham todas de canoa dessas roças. Mas agora o eucalipto tá acabando
com tudo. Era muita laranja, muita banana, era tudo com fartura. Mas tá acabando
tudo. Tudo mesmo. Diminuiu tudo. Vinha galinha da roça, porco, carne de porco,
tudo, ave maria, peixe, peixe, tudo a gente já tá achando com dificuldade. Peixe era
barato. Ninguém vendia arraia, cação, hoje vende tudo. Hoje com essa coisa de
malhador, camarão, todo dia, todo dia, estraga os peixes. Aí a gente sente um pouco de
dificuldade. O mangue, cada um caranguejo! Hoje não tem mais caranguejo aqui em
Caravelas, só tem aqueles boboiozinho. Hoje eu não compro mais, comprar boboio?
Os ossos chega tá mole, não deixam nem o bichinho crescer. Era tudo farto, goiamum,
10
O centro urbano mais próximo, Teixeira de Freitas, entre 1980 e 1990, teve uma taxa de crescimento
populacional de 82% (Koopmans, 1993)
31
caranguejo. Isso não evoluiu, não, isso tá acabando mesmo. É muita gente querendo
ganhar em cima disso, exportar pra fora, então a cidade fica em falta”.
A Caravelas de Dadá – e dos moradores da Avenida - não é um espaço ou uma
paisagem física, mas uma história de eventos significativos, encadeados numa mesma rede
11
que conecta relações de trabalho, brincadeiras de criança, sabores, nascimentos, odores,
medos, bebidas, vegetais, relações com a política, fome, formas de posse e uso da terra,
afluência e escassez. Ao conectar esses elementos heterogêneos em seu relato, Dadá nos
oferece um território existencial feito de tramas de diferentes densidades, que se entrecruzam
segundo uma lógica particular. Ao longo desta tese, iremos acompanhar a criação de outros
territórios, por parte dos descendentes de Dadá que atuam no Movimento Cultural Arte
Manha, o núcleo a partir do qual outras histórias serão contadas.
Para finalizar, apresento a forma como esta tese está estruturada. No capítulo 1,
apresento a heterogênese do movimento cultural, que começa com uma travessia da serra de
Itamutinga (região de Ilhéus) até as “matas brutas do prado” (interior do que hoje é o
município de Itamaraju). Trata-se de um percurso de 480 km, que os irmãos da família
Santana atravessam em busca de uma terra devoluta para recomeçar a vida. Desencontros e
perdas marcam esta passagem. O reencontro dos irmãos Jorge e Val produziu novos
encontros, desta vez entre Val, os filhos de Jorge (Jaco e Dó) e um estilo de vida alternativo
na Salvador de final dos anos 70 e início dos 80. Este capítulo traz as diferentes pessoas e
eventos que, em suas intensidades próprias, tiveram um papel ou um efeito no processo de se
pôr a ser do grupo.
No capítulo 2, acompanho de perto um desses eventos que fazem parte da vida do
movimento cultural e seus integrantes: as eleições. Nas eleições municipais de 2004, foi
lançada a candidatura de Dó Galdino, então presidente do movimento, a vereador por
Caravelas. Este capítulo traz as principais linhas de força e de tensão que percorreram o
movimento e a cidade durante “a política”, isto é, o processo eleitoral.
O capítulo 3 é de certa forma um desvio para fora do movimento. Busco, porém, situar
aquilo que descrevo a partir de uma perspectiva próxima daquela adotada pelo movimento
cultural. Este capítulo tem como objetivo traçar o modo próprio de constituição das relações
de poder na cidade, a partir da descrição de algumas das práticas de educação, circunscrição e
controle implementadas pela rede ONGs-empresas-IBAMA-comunidade sobre as chamadas
“populações” que fazem uso dos “recursos naturais” na região.
11
Entendo rede como um modo de conectar elementos heterogêneos, a partir do rastro deixado pelo seu
movimento, seguindo a sugestão de Latour (2005)
32
O capítulo 4 trata da chamada “política depois da política”, isto é, das lutas políticas
que se desenrolaram em Caravelas após as eleições de 2004. Com foco específico nos
embates nascidos durante a tentativa de implementação de um grande projeto de
carcinicultura (produção de camarão em cativeiro), este capítulo traz uma descrição
etnográfica da micropolítica deste processo e um exercício de apreensão das concepções
nativas sobre os diferentes modos de fazer política que aí emergiram.
O capítulo 5, por fim, traz uma aproximação dos processos de criação artística do
movimento cultural, ou seja, como nasce a produção de esculturas de aproveitamento de
“madeira morta”, a arquitetura de uma casa inusitada e as imagens em movimento, nova seara
na qual o movimento se inseriu nos últimos anos. Procuro, aqui, investigar não apenas como
se produz arte, mas também as concepções que os integrantes do movimento têm do que seja
a criação artística.
Convido, então, o(a) leitor(a) a conhecer alguns dos percursos trilhados por este
coletivo.
33
Capítulo 1 - Rumo às matas brutas do Prado
A história que vou contar se inicia com pessoas em movimento, ou melhor, com
pessoas postas em movimento. O impulso: a morte da mãe e a busca por uma terra. O destino:
as matas brutas do Prado, 480 km ao sul
12
. O ano: 1951. Data do grande massacre dos pataxó
da aldeia de Barra Velha, próxima à Ponta do Corumbau
13
. Período de expansão da fronteira
agrícola avançava de Minas para o litoral e de Porto Seguro para o extremo sul, o que
provocou forte valorização das terras da região. Os fazendeiros incorporavam as chamadas
“terras devolutas”, as terras de mocambos e quilombos, terras de índio e dos afro-indígenas,
as terras que ainda restavam.
Fevereiro de 2009: na cozinha da casa de Dó – artista cuja família me acolheu em
Caravelas – converso com Jorge, seu pai e registro uma história que escutei muitas vezes,
contada de muitas formas. Janeiro de 2007: na cozinha de Val, irmã de Seu Jorge e tia de Dó,
ouço-a contando a história de sua vida, com voz e expressão serenas, enquanto estica a massa
dos pastéis integrais, como se estivesse falando sobre algo completamente banal. Setembro de
2004: acabo de me mudar para Caravelas e dou sorte de encontrar Alice ainda por lá. Alice,
irmã mais velha de Seu Jorge e Val. O tempo já está esquentando e ela voltará para São
Bernardo do Campo em breve. Alice foge do inverno paulista rumo à Bahia logo que começa
a esfriar e para lá só retorna na primavera. É Alice quem me oferece os primeiros fios dessa
história que não é uma, mas muitas - que se desdobram, se desintegram e se refazem toda vez
que alguém se põe a contá-las. Cada um dá um peso diferente para a história da caminhada
rumo às “matas brutas” do Prado. Na conversa com Alice, ela é um vestígio apenas
mencionado: Alice não participou dela. A caminhada surge para a etnógrafa apenas como
uma pista, um elemento indicador de algo que só foi ficar claro mais tarde, em outras
conversas. Com Val, ela assume uma outra dimensão: é a história do seu abandono. A
caminhada é interrompida para mais tarde ser retomada. Com Seu Jorge, ela ganha
tonalidades aventurescas, a andada é relatada em detalhes: é a história de sua sobre-vida, do
recomeço de tudo.
Hoje intuo que, tal como o movimento que descrevem, essas histórias estão ainda a se
mover. Não mais pelo território concreto do que hoje é o estado da Bahia, mas dentro do
território existencial composto pelo movimento cultural e pelas pessoas, eventos e obras de
arte que o fazem. São histórias que pulsam dentro de quem as rememora, mas também dentro
12
Ver figura 1 – Travessia da família Santana em 1951, p. 282.
13
Para um relato sobre o Grande Massacre Pataxó, ver Castro, 2008.
34
dos seus filhos e netos; são histórias vivas dentro dos móveis, esculturas e casas que eles
criam. Tive acesso a alguns fios dessas histórias, que certamente não foram vivenciadas da
mesma maneira por quem delas fez parte. Ainda que nos eventos vivenciados de forma
comum se observa uma grande coerência entre os relatos, o que chama atenção é que essas
histórias têm pesos e sentidos muitos distintos de acordo com o modo específico como se
encaixam na vida de quem as conta. O que é relevante para cada sujeito não é
necessariamente o que eu, neste momento de “edição” dessas histórias, irei privilegiar. Isso
porque neste capítulo optei por apresentar as diferentes versões dessas histórias numa só
versão
14
. Ressalto que não pretendo nem acredito na constituição de uma história total dos
acontecimentos. O que aqui apresento é tão somente mais uma versão dessa história, que
costura as histórias a que tive acesso de uma nova forma. O fio que alinha esse relato é a
tentativa de mostrar como o movimento de um sujeito afeta o movimento do outro. Pretendo
mostrar como o movimento cultural de hoje é uma espécie de resultante (não o resultado) de
outros vetores de movimentos, traçados por outros sujeitos, em outras épocas. Um impulso
que se propaga de forma indeterminada previamente mas cujos efeitos se tornaram
irreversíveis e são hoje passíveis de uma reconstrução a posteriori. O futuro certamente trará
muitas outras e novas histórias, que se somarão a este mosaico aqui apenas esboçado.
A travessia
15
Ó dona Nanzinha, a senhora toma conta de meu filho, Jorge. Ó Alice, você toma conta
de sua irmãzinha Val, cuida do imbigo dela, não deixa ela ficar doente. Dona Martinha
pronunciou essas palavras quando estava morrendo de câncer no útero. Todas as tentativas de
salvá-la falharam. Alguns homens da fazenda em Itamutinga chegaram a levá-la para o
hospital, carregada numa rede amarrada num pau, subindo e descendo a ladeirona da serra até
Coaraci e de lá num ônibus velho para Ilhéus. Mas não tinha mais jeito. Naquela época, se
tivesse operação, tirava o útero fora. Mas não tinha. Ela voltou pra fazenda e morreu
(Jorge).
Por parte de papai eram caboclos. E por parte da minha mãe eram sertanejos de
Candeúba. Minha mãe tinha um cabelo bem anelado, um cabelão cheio que batia aqui. Um
cabelo bonito, bem cuidado. Quando passava o pente, aquelas ondas voltavam. Era natural.
14
Mais adiante, no capítulo 4, procuro mostrar, em relação a um caso distinto, histórias que se apresentam como
diversas e irredutíveis umas às outras, mudando radicalmente de acordo com o sujeito em questão.
15
No relato que se segue, coloquei em itálico as falas dos irmãos Jorge, Alice e Val. Seus nomes aparecem em
parênteses, sempre no final da primeira vez em que cito suas falas. Quando não há o nome de quem falou entre
parênteses, considere-se o último nome indicado.
35
Quando ela faleceu, a mulher que cuidou dela na hora de colocar no caixão, partiu o cabelo
dela, penteou ao longo dos braços e falou assim: ‘o manto de dona Martinha vai ser o cabelo
dela’. Muito lindo o cabelo de mamãe. (Alice)
Foi quando a gente ficou tudo jogado lá. Meu pai bebia uma cachaça lerda e nem
ligava pra nada. Aí fiquei com dona Nanzinha, era uma mulher que trabalhava na
desnatadeira (Jorge). Dona Nanzinha cumpriu a palavra e passou a cuidar do menino Jorge,
então com oito anos. Tomava conta mas fazia de escravo. Jorge tirava leite, desnatava o leite,
levava de uma fazenda pra outra, botava o leite pra coalhar, aferventava a massa, lavava a
massa, fritava a manteiga, torna a aferventar em outro leite até dar a liga e assim fazia o
requeijão. Entregava em formas de 10 litros em Pouso Alegre ou Coaraci todos os sábados.
Menino de 9 anos, Jorge não aguentava o peso das formas. Parava o cavalo, os homens
pegavam o requeijão e ele pegava os vales para dona Nanzinha. E voltava já de noite por
dentro das matas de Zé Tucano, onde nunca acabava a lama. Foram dois anos assim,
trabalhando dia e noite pra dona Nanzinha. Alice já estava casada e morava no Pontal do Sul,
pra lá de Coaraci e pra lá de Itajuípe (nas margens do rio Almada), na fazenda que era a maior
produtora de leite da região. As outras irmãs, Haydée e Helena, se casaram com Mariano e
Raimundo, também vaqueiros, filhos de Velho Miguel.
Velho Miguel ficara sabendo que tinha terra de evoluto lá pras bandas da mata bruta
do Prado. E desceu pro Prado trazendo animais, a troco de terra. De primeiro andava muito a
cavalo. Era difícil conseguir animais naquela região. Você dava um burro em dez alqueires de
terra. Um tanto de terra assim. Trazia animais e trocava por terra, não tinha dinheiro assim
de mão. Haydée já tinha descido junto com Velho Miguel, pra ajudar na cozinha. Velho
Miguel conseguiu as terras e mandou chamar os filhos. Naquela época, quem tava naquela
região lá de Ilhéus, de Itamutinga, as terras só tinha pra rico. Pobre não tinha mais direito a
um palmo de terra daquela região. Aí o pobre tem sempre essa coisa de querer ter uma
terrinha. Aí pegou de vir pro Prado, que tinha mutcha terra. Naquela época era terra de
evoluto, como era no Pará alguns anos atrás, os fazendeiros mede um mundo assim e diz que
é dele né? Não tinha nem medição: ‘daquele córrego praquele córrego é seu’ e metia o pau.
O Zé Miguel foi, conseguiu a terra e mandou buscar Raimundo, com minha irmã Helena
(Jorge).
Helena, grávida do primeiro filho com Raimundo, veio contar a novidade para Jorge:
“nós vamos embora pro Prado”. Jorge, então com dez anos, ao saber que sua irmã partiria em
breve pensou “eu não vou ficar aqui não”. Dona Nanzinha era mutcho boazinha mas meio
me maltratava, mandava fazer coisa que eu não gostava, mexer com coisa de cozinha, eu
36
acostumado mexendo com animal. E disse pra Helena ‘vou m’embora com você’. Quando
Dona Martinha morreu, apenas Alice era casada, os outros eram tudo pequeno. Aí
esparramou, os meninos desertaram pelo mundo (Alice).
Era época das chuvas, março, abril, maio. Naquele tempo chovia mais, eram dias
inteiros seguidos sob a chuva. A travessia era muito longa: quatrocentos e oitenta quilômetros
separavam as fazenda de Itamutinga (Coaraci) das matas brutas do Prado. Helena e Raimundo
levavam alguns animais com as bagagem e os três irmãos mais novos a tiracolo: Jorge,
Marinalva e Valdeci (Val), que não completara quatro anos, tinha uma grande hérnia no
umbigo e sérios problemas respiratórios. Uma criança franzina, que inspirava cuidados.
viemos na viagem. Veio eu, Valdeci, Marinalva. Quando mamãe morreu, Val ficou com
Helena. Aí viemos nessa estrada, ô rio cheio, a gente nadava, tinha dia que chegava numa
fazenda, pedia um arrancho, ‘pode arranchar por aí’, botava os couros que vinha cobrindo
as malas pra chuva não molhar, aquela época chovia demais (Jorge).Helena achou de ir
embora daqui da região, de Coaraci, para o Prado, como é que pode, uma viagem dessas,
andando, tipo retirante mesmo. Levaram animais com cargas e comidas e saíram andando
para chegar nesse lugar (Val).
A chuva castigava. Era o terceiro dia de viagem e Helena começou a se preocupar com
a saúde de Val, que tossia muito. As cargas iam em cima dos cavalos e as crianças iam a pé.
Só montavam quando ficavam muito cansadas. Perto de Almadina, depois de Floresta Azul,
ficava a fazenda do tio Alcídes, irmão da mãe, onde eles pousaram. As mulheres da fazenda
Coquinhos pediam insistentemente para ficar com Val. Helena com aquele barrigão e aquela
menina no colo. Tio Alcides falou ‘ô Helena, deixa essa menina comigo.’ Val, um umbigão
deste tamanho. ‘Daqui pro Prado é longe’. Helena relutou, não queria deixar Val pra trás, a
falecida mãe queria que Val estivesse sob os cuidados de Alice e Helena já havia rompido a
promessa ao pegar Val pra cuidar. Era preciso levar a menina consigo. As mulheres da
fazenda diziam que Val não sobreviveria a viagem tão longa e choravam. Foram dias de
agonia até que Helena decidiu deixar Val aos cuidados dos tios. Minha mãe quando morreu
falou pras outras irmãs cuidarem de mim, porque eu era uma crianças doente, tinha uma
hérnia muito grande, tinha um problema respiratório. E aí cada uma achava que tinha que
cuidar de mim. E nessa caminhada ela passou por uma fazenda de café, de um tio meu, que
tinha sido herança de meu avô. E nessa fazenda me deixaram, porque sabiam que eu não iria
agüentar a viagem. E desse tempo em diante, fiquei cada vez mais distante da minha família.
Ela me tirou da minha irmã mais velha que ia cuidar de mim, achando que ela é que tinha
obrigação e me levou com mais dois irmãos, o Jorge também estava nessa caminhada. No
37
meio do caminho ela me deixou e Jorge continuou, mais dois irmãos, junto com ela e o
marido e filhos. Aí fiquei nesse lugar chamado Fazenda Coquinhos. Naquele momento eu
achei que não fosse mais encontrar ninguém na minha vida, foi um momento assim que até
hoje eu nunca me esqueço (Val). Durante os dez anos seguintes Val permaneceria afastada
dos irmãos e viveria naquela e em outra fazenda, trabalhando feito uma escravinha mesmo.
A travessia continuava, agora sem Val. Então nós viemos nesse sofrimento (Jorge). Na
região de Ilhéus, a caminhada era mais simples, pois havia muitas fazendas, era tudo
devassado. Chegou a vez de cruzar o rio Cachoeira, em sua parte alta, em Água Preta do
Lírio, no Itaju, onde ele se chama rio Colônia. Era um rio largo e na época de chuvas ele
estava especialmente caudaloso. E aquele rio tava cheio, cheio, quase como daqui naquela
horta ali, mais largo. A bagagem e as pessoas iriam de canoa, havia canoeiros para atravessar
gente. Mas os animais teriam que ir nadando. Quando a gente soltou os animais, em vez de
atravessar, nunca tinha atravessado ali, os animais desceu rio abaixo. Ave Maria, deu
trabalho. E todo mundo rezando. Até que Deus ajudou que pegou os animais. Aí foi
atravessando de um em um, pegava na beirada da canoa assim, o rapaz ia remando até o
outro lado. De vez levava um dia nessa luta. Foi o dia todinho, já cheguemos de noite. E
dormiam arranchados nas fazendas que encontravam no percurso ou em casas que tinham
rancharias pra dormir.
De Guaratinga (vila próxima a Eunápolis, que nasceu com a BR 101 e, portanto, não
existia na época) em diante, porém, a caminhada se tornou mais penosa; começava a mata
fechada. Ali já era mutcha mata. Mata virgem, mata bruta. Alguns dias não andavam nem
dez quilômetros, tamanha a dificuldade de alguns trechos. Quase perderam tudo novamente
em outra travessia de rio. Foram ao todo dezessete dias de viagem. Nessa travessia de rio foi
luta, a gente quase morre tudo. Tinha dias que a gente viajava duas léguas, três léguas. Aí a
gente veio sofrendo, sofrendo e chegou. Chegou nesse Prado aí e me pegou uma anemia, um
paludismo (malária), eu não andava nem daqui até aquele curral, me sentava pra descansar.
Fiquei da cor dessa garrafa (branca), muito resfriado, mutcha chuva no caminho.
Mas logo Jorge recuperou a saúde e começou a ajudar na roça. Um ano antes, quando
Velho Miguel e os outros homens desceram para o Prado, a primeira coisa que fizeram foi
abrir uma roça. Quando seu filho Raimundo, a esposa Helena e os irmãos pequenos de Helena
chegaram ao Prado, já havia feijão, arroz, café e mandioca, além de caça abundante, muita
anta. Quando cheguemos, melhorou um pouco. As roças eram vastas. Quando derrubava uma
roça, era do tamanho desse sítio todo aqui. Não era roça de um alqueirão não, era de 20
hectáreas. A mata bruta foi rapidamente dando lugar ao roçado. Cada um jacarandá menina!
38
Os jequitibá do tamanho dessa sala aqui. De quatro homens bater o dia todo. Quatro homens
cortando. Tinha dia de bater o dia todinho e não derrubar. Pra queimar, menina. E
jacarandá? Cada um jacarandá com aquela madeirona bruta. Ô desperdício de madeira.
Queimava pra plantar mandioca, café, fazer pasto. Era assim. Os homens derrubavam a mata
e aumentavam a roça, satisfeitos em serem finalmente donos de uma porção de terra.
Foi breve, porém, a alegria de Velho Miguel e seus filhos. As terras tava encrencada.
Velho Miguel havia comprado a terra na mão de um pernambucano chamado Antônio
Pretinho. Ele era sabido. Ele não trabalhava, o negócio dele era como aquele cara do
Pantanal, você assistiu Pantanal? Não tinha aquele velho que só pegava a terra dos outros e
vendia? Tenório! O Velho Antonio Pretinho era um daqueles. Era Tenório. Chegou na
comarca do Prado – na época, eram muitos dias de viagem - e fez um requerimento: requereu
300 hectareas no cartório, no tabelião. Já havia muito cacau naquela região, as terras estavam
se valorizando. O pessoal do Prado só mexia com cacau, aqueles ricão, o pessoal dos
Mascarenhas, dos Almeidas. Dizia que foram eles que mataram os índios. O cacau descia
pelo rio Jucuruçu de canoa para o Prado. Assunta só: o velho Antonio Pretinho chegava
naquelas matas e avexava, tirava umas posses e ia vendendo.
Desses 300 hectares, Velho Miguel comprou uma posse para si e posses para cada um
dos filhos, inclusive para Raimundo, cunhado de Jorge (casado com sua irmã Helena). Tinha
um camarada lá no Pau d’Alho chamado Damião, que fazia escritura dentro de casa. Pegava
um pedaço de papel e falava tantos alqueires. Não falava hectárea não, falava alqueire, que
são vinte hectáreas. Velho Miguel comprou vinte alqueires na mão de Antônio Pretinho lá,
que assinava e dava os recibo. Eles achavam que tava garantido. Gente boba, o povo antigo
era besta. Além disso, Antônio Pretinho vendeu um pedaço de terra para um camarada de
fora, um tal Otávio. Só que Antônio Pretinho brigou com o Otávio, outro sabidão que tinha lá.
Quando o Antônio Pretinho brigou com Otávio, pegou o requerimento, as tais 300 hectáreas,
onde tava o pedaço de Otávio e vendeu pra um tal Bii, dizendo que tinha cacau. E botou as
posses de todo mundo no meio, onde Zé Miguel e os filhos tinham roça. E ninguém tinha
documento. O único que tinha o requerimento era Antônio Pretinho. Bii pegou um monte de
gente de cartório e levou praquelas matas. E foi medindo, medindo. Bii comprou 300
hectárea e levou mais de 4000 hectáreas. E foi prendendo os posseiros. Inclusive Velho
Miguel, Raimundo, meu cunhado e todos. Bii só pagava as benfeitorias. Mas já tinha mutcho
café, mutcho pasto, mutcha roça. Pagou como ele queria. Esse homem era encrenqueiro do
Prado, só vivia tomando terra dos outros. Sempre tem um sabido que toma tudo. E quem
mandava no Prado era eles, dono do cartório, tabelião. Quem protestava?A gente não ficou
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desarranchado porque procurou as fazendas dos outros. Todo mundo teve que vir embora.
Tanto que essa terra hoje é dos sem-terra. Esse povo do olho grande compra muita terra, mas
aí depois entrou reforma agrária. Chama terra improdutiva né. Com tanto pobre nas cidades
à toa. E aqueles homens com aquele mundo, umas 4000 hectáreas. Aí chegou e dividiu lá, um
bocado de fazenda boa lá, tá tudo dos sem-terra, do pessoal do, como é?, emê esse tê, MST.
Aí já tá tudo assentado. E a gente ficou por aí nesse sofrimento.
Velho Miguel conseguiu comprar uma outra terra, pequena, no Córrego da Onça.
Jorge foi trabalhar na fazenda de Pedro Rosas, a fazenda Goiânia, quando tinha 12 anos junto
com os cunhados Raimundo e Mariano, além de Manoel, irmão deles. Jorge trabalhou para
Pedro Rosas durante mais de quarenta anos, até o velho morrer, em meados da década de 80.
Em 1958, Pedro Rosas comprou terras no Vai-quem-quer. Esse nome se deve ao fato de que
só se vai pra lá, vai e volta, não há saída, já que a fazenda termina numa ilha do rio Itanhém,
que deságüa em Alcobaça. O contato com as cidades era feito de canoa pois de primeiro era
uns atoleiros naqueles brejos. A cavalo só era possível chegar até Caravelas que hoje também
é uma espécie de Vai-quem-quer, ou findomundópolis como brincam alguns, já que a cidade é
o ponto final de uma estrada, ponto final da Bahia Minas, fim da linha. Mais adiante, há o rio
Caravelas e as ilhas e manguezais que compõem o Cassurubá. Caravelas não é cidade por
onde se passa; é lugar para onde se vai e pára. E, poderíamos acrescentar, lugar de onde não
se volta da mesma forma como se foi. O Vai-quem-quer era bonito de primeira, só cê vendo.
Era uma fazenda que tinha uma ilha e tinha aqueles engenhão velho. Tinha uma bulandeira
grande, daquele tempo das escravidão. Toda de madeira, que nem aquele povo antigo fazia,
faziam aquele cocho, aqui no meio botava o engenho e botava aqueles bois pra puxar. Aqui
no meio moía cana, aqui tinha um negócio de rodar pra pilar o café, tinha aquelas
engrenagens, tudo de couro, botava uma roda e rodava pra ralar mandioca. Moía a cana,
pilava o café e ralava a mandioca, tudo de uma vez só. Hoje se voltar lá não reconhece mais,
nem o lugar da casa existe mais. Desmancharam aqueles casarão tudo. Os sem terra tá lá,
dividindo tudo. Só na área de beira do rio que dá pra você plantar, mas cá pra dentro é
areia, nem abacaxi não dá.
Foi no Vai-quem-quer que seu Jorge conheceu Benedita, mãe dos seus primeiros sete
filhos: Jamilton ou Jaco é o mais velho, depois nasceu Maria d’Ajuda (Dadá), Reginaldo
(Preto), Sérgio, Dó (que poucos sabem que se chama Jorge, como o pai), Luciana e Dedê.
Esta é a família que deu origem ao Movimento Cultural Arte Manha, como veremos adiante
16
.
16
Ver Genealogia da família Galdino Santana (Figura 3), p.285.
40
Benedita era natural do Prado e foi com os irmãos para o Vai-quem-quer ajudar a cozinhar,
quando esses foram trabalhar numa empreitada do Dr. Zé Nunes, prefeito de Alcobaça em
1959. Em 1962 deu à luz a Jamilton, seu filho mais velho, um parto difícil. Seu Jorge teve que
buscar a parteira no Aparaju, também conhecido como “os vinte”, vilarejo que ficava no
quilômetro 20 da ferrovia Bahia- Minas.
A rotina de Seu Jorge como gerente da fazenda de Pedro Rosas girava em torno dos
cuidados com as vacas e bezerros, a distribuição do leite e a derrubada da mata para a abertura
de roças e pastagens. Caravelas tinha um aeroporto muito movimentado na época, que ficava
no km 14 da Bahia-Minas. A segunda base do Brasil era aqui. O porto era muito
movimentado; a conexão com o norte de Minas se fazia pela Bahia-Minas. Os navios saíam
abarrotados de madeira, alguns levavam até seis meses carregando. Seu Jorge saía todos os
dias de casa às 3 horas da manhã pra tirar leite e entregar no aeroporto. Todo dia levava leite a
cavalo, 60, 80 litros. Sérgio (o filho que então era o mais novo) nem me conhecia, eu chegava
de noite ele tava dormindo. Num dia de domingo - diz que domingo é dia de comer o ganhado
né? - cheguei e ele tava correndo de mim, não sabia que eu era o pai. Quando cheguei ali,
até o aeroporto era mata, fui eu que derrubei no trator, na mão. Empastei aquilo tudo. Tinha
época que tinha quatro trator nas fazendas. Ensinei a eles todos, os filhos e os sobrinhos,
todo mundo aprendeu comigo.
Jaco crescia solto no Vai-quem-quer. Nadando no rio, brincando com os bezerros e
conversando com as árvores. Era o mais velho dos irmãos, não tinha companheiros da mesma
idade, o que o levava a passar muitas horas sozinho. Fazenda de gado é uma tristeza só, as
casas longe umas das outras, aqueles pastos enormes, aquela solidão (Jaco). Jaco conversava
com as árvores. Por horas e horas, sentava em suas raízes e tinha longas conversas com elas,
que considerava suas amigas. Conversava muito com a mãe também, em pé, uma perna
apoiada na outra, no escuro da casa de pau a pique, beira do fogão a lenha. O aroma doce da
madeira queimando se entranhava na casa. Dona Benedita também se sentia só, longe da
família, sem vizinhos por perto, naquele lugar tão lindo e desalentador. Ela, que havia
aprendido a ler e escrever, montou uma escolinha improvisada em casa e ensinava o ABC
para as crianças da roça. Pedro Rosas, o patrão, não gostava. Filho de trabalhador não carece
de estudar, dizia. Dona Benedita se indignava em silêncio e continuava as lições. Mulher de
fibra, trazia muita alegria guardada dentro de si, embora tenha morrido do coração causado
pelo o que alguns relatam como uma depressão profunda. Tinha uma pele muito escura, o
cabelo preto liso, olhos puxados, brilhantes, olhos sem fundo, como os dos filhos Jaco, Preto e
Dó. Dona Benedita era festeira: quando se mudou para a cidade para os filhos poderem
41
estudar, organizava o carnaval, o samba de São Benedito, o bloco de índio e as festas juninas
da Avenida.
Enquanto Jorge vivia no Vai-quem-quer, a irmã mais velha Alice se separava do
marido e ia viver com os filhos entre Muriaé (MG) e Itamutinga (BA), vendendo costura.
Livre do marido, Alice conquistou a liberdade necessária para viajar sozinha Brasil afora,
entrando e saindo de cidades, conhecendo pessoas, atraindo novos fregueses. Diz ela: Depois
que mamãe morreu, nós ficou tudo desertado, um pro sul, outro pro norte, um trabalhava
numa fazenda, outro em outra. De primeiro uma mulher casada não tinha liberdade para
viajar. Quando eu me pus sozinha no mundo, diz que a gente aprende a viver com o milho,
nunca sentei num banco com o ABC na mão. Alice anotava na cabeça tudo o que vendia,
para quem vendia, a cidade e em quantas parcelas. Sabia exatamente o dia e o mês da
cobrança. Se eu vendesse pra você isso aqui a cinco real, era cinco real, se você pagasse em
duas vezes, eu sabia, se fosse pagar de três vez, eu não esquecia. No dia certo que você
falasse pra eu pegar a prestação eu ia. Eu vinha pra aqui, chegava de Itapetinga, lá de Ilhéus
no Banco da Vitória, aí vinha pra’qui pra Eunápolis, chegava e ia pra Colônia. Meu cheque
é voador, porque voa mesmo, de Minas para a Bahia. O mês, o dia, ficava tudo na minha
cabeça. Pelo caminho, Alice conversava com outros mascates e caixeiros viajantes e sempre
que encontrava alguém da sua região perguntava se eles teriam notícias dos irmãos: ô seu
Antônio, a coisa que eu tenho mais paixão na vida é encontrar meus irmãos, acho que nem
reconheço se encontrar (Alice). Helena tomara o rumo das matas brutas do Prado sem
comunicar Alice sobre o seu destino. Os irmãos se esparramaram pelo mundo e Alice sonhava
em reencontrá-los. Alice doida atrás dos irmãos, sem ter notícia de onde Helena havia
parado, para onde eles teriam ido.
Val já tinha nove anos e acreditava que nunca mais encontraria ninguém da sua
família. Cinco anos haviam-se passado. Sua vida era lavar, passar, pegar água na cacimba,
cortar lenha, cozinhar, arrumar a casa. A tia era uma pessoa cruel; o tio, doente mental, nada
fazia para defender a sobrinha. Na fazenda, eu trabalhava como escrava mesmo, dentro de
casa. Casa de fazenda, grande. Com 7 anos, eu tomava conta de uma casa, era uma criança
triste, doente, sem alegria, sem brincar. Mas não tenho um pingo de revolta pelo que
aconteceu (Val). Val sofreu, a tia maltratava muito ela. Com aquele umbigão, ia lá pegar
água com a lata d’água na cabeça, desde pequenininha (Jorge).
A madrinha de Val, que morava próximo a Itabuna, descobriu que a afilhada estava
sofrendo maus tratos e a tirou da fazenda dos tios, com a promessa de que ela voltaria a
estudar e que operaria a hérnia umbilical. Mas a promessa não foi cumprida. Na casa da
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madrinha, ela continuou a trabalhar como cativa para ela e suas duas filhas. Fui a própria
gata borralheira, porque ela tinha 2 filhas, veja só. Eu fazia tudo pra elas, botava água na
banheira pra elas tomarem banho, lavava roupa, cozinhava, limpava a casa. Val já tinha
quatorze anos, dez anos haviam-se passado desde sua separação dos irmãos. Sua única alegria
era pescar piabas quando descia para o rio para lavar a louça do almoço. Era a hora em que
todos dormiam na casa e ela podia brincar sem ser importunada. Eu ficava fascinada por
aquele cenário, pescando, pegando as piabinhas, tomando banho. Nisso, eu me entretia tanto
no rio, que era minha única diversão, eu demorava. E quando chegava em casa, apanhava.
Era o preço a pagar, ela sabia disso, mas não abria mão daqueles momentos só dela na beira
do rio.
Val chorava muito à noite e sempre pedia para sua mãe ir buscá-la; seu desejo era
morrer. Numa dessas noites de desespero profundo, Val teve uma visão. Era a mãe,
aparecendo para ela. Teve medo e contou para a vizinha, que confirmou que aquele era o
espírito da mãe. Ora, você chora tanto e chama por ela o tempo todo, ela veio te aquietar.
Algum tempo depois, enquanto fugia dos afazeres domésticos e se deliciava no rio
pescando piabas, passou um mascate. Parou e ficou um tempo observando aquela menina que
se divertia no rio. Ô menina, você tem uma irmã chamada Alice? Tenho sim, o senhor sabe
onde ela mora? Ela tá louca, menina, querendo saber notícia de você, é o que ela mais tem
paixão nessa vida. O mascate cruzou com Alice algum tempo depois, pelos caminhos entre
Bahia e Minas e Alice, entusiasmada com a localização da irmã, foi então tirar Val das mãos
da madrinha. Na primeira vez, não conseguiu levá-la, a madrinha não aceitou. Retornou
algum tempo depois e resgatou Val de madrugada, antes de todos se levantarem.
Aí fui morar em Coaraci, na fazenda. Eu tava muito anêmica, com 14 anos, nem
sonho de menstruação, uma hérnia imensa. Aí ela me botou numa escolinha que tinha na
zona rural. Aí tiveram outro cuidado comigo, tava na casa de irmãs, eu sentia que estava com
a família. Eu senti muita felicidade de estar ali. Então, Alice achou que eu precisava de
tratamento, me levou para Itajuipe, onde morava uma tia, irmã de meu pai (tia Santa), a
única que tinha a vida de meu pai. Ela tinha filhos que moravam no Rio, no São Paulo. E
criava uma irmã minha, Letícia, que era prendada, dava aula de culinária. Essa tia era
casada com um vereador de Itajuipe. Minha irmã Alice viu que estava com anemia muito
grave e que precisava de cuidados, aí me levou pra essa tia, que o marido era político e tinha
boas condições na cidade, era bem conhecido e era bem conceituado. E tinha essa irmã, que
quando cheguei lá era como se tivesse no colo de uma mãe, não deixava fazer nada, me dava
tudo na mão. A gente não se conhecia antes, você imagina, ela foi me conhecer quando eu
43
tinha 14 anos de idade. Mas nossos irmãos têm uma coisa muito boa uns pelos outros, uma
coisa de energia, ta longe, mas ta se comunicando, com saudade, compra um cartão e liga
pro outro. E eu parecia muito com minha mãe, com o cabelão liso. E todas minhas irmãs que
me viam, choravam: como você parece com mamãe. E me abraçavam porque eu trazia a
lembrança de mamãe na fisionomia. Era como se a mãe tivesse voltado à vida. Fiquei um ano
lá na casa deles para me recuperar para fazer a cirurgia em Ilhéus. Meu coração respirou
bem mais aliviado. (Val)
Tia Santa era casada com um vereador, o que facilitaria seu tratamento de saúde. Val
acabou por retirar a hérnia que a deformava anos depois no Rio de Janeiro. Estava com
dezesseis anos e viera trabalhar como babá/agregada da família do filho do marido da tia
Santa. Embora sua estadia no bairro do Lins e do Méier no Rio de Janeiro incluísse muito
passeio, muito presente e viagens anuais pra Caxambu, Val não teve permissão para estudar
nos anos em que permaneceu na cidade. Em 1965, com dezoito anos, Val decidiu retornar a
Itajuipe, para terminar seus estudos e trabalhar em um hospital administrado por freiras que a
conheceram no grupo jovem da igreja católica e tinham aprovado o seu empenho e dedicação
ao grupo. Val tornou-se enfermeira totalmente por acaso: foi trabalhar no hospital sem nada
saber do ofício e viu-se aprendendo a preparar injeções, assumindo plantões e fazendo partos
sem nunca ter tido aulas de como lidar com enfermos ou parturientes. Com três meses de
hospital, as freiras me deixavam no plantão sozinha à noite. Acho que foi a própria
necessidade de trabalhar que me fez aprender. Eu tinha que dar conta de tudo.
Ao mesmo tempo, Val experimentou um período de efervecência política e cultural: a
década de 60, uma época bonita, a revolução cultural toda. Era a época da ditatura. A gente
fazia um jornal da cidade, tinha peça de teatro, grupo de teatro, trabalho social. E nesse
período conheci um amigo que foi expulso do seminário, era muito revolucionário. Era o
período dos festivais, a gente se reunia muito pra assistir aos festivais. Ele me apresentou à
MPB: Geraldo Vandré, Chico Buarque. E começou a abrir a minha cabeça para o lado
cultural. E aí fui pra Salvador, conheci mais pessoas envolvidas com arte, cinema, teatro. Em
Salvador, Val foi trabalhar no centro cirúrgico de um dos maiores hospitais da cidade, o
Hospital Espanhol. Nunca havia entrado num centro cirúrgico, mas passou a trabalhar em um
deles todos os dias das 7 da manhã às 7 da noite. Vivia interna no hospital e trabalhava como
escrava também. Naquela época não tinha sindicato para cobrar. Saía do trabalho no bairro
Barra, ia estudar no Rio Vermelho até às dez da noite e namorava escondido até às onze da
noite, hora do toque de recolher do alojamento do hospital. Val se mudou para um pensionato,
onde tinha um pouco mais de liberdade do que no vigiado alojamento do hospital. E acabou
44
casando-se com o filho da dona do pensionato, pai de sua primeira filha, Kito. Cinco anos
depois, cansada dos ciúmes do marido, separou-se e foi morar sozinha com a filha. Val pediu
demissão abruptamente do hospital, sem ter nenhum outro emprego em vista. Chegou a um
nível tal de esgotamento que um dia a mais naquele lugar lhe parecia insuportável.
O trabalho no hospital a esgotava física e psiquicamente. Os tratamentos que
observava nos setores de neurologia e psiquiatria a indignavam: os médicos prescreviam
eletrochoques e remédios que desvitalizavam os pacientes. Aquilo começou a me torturar. As
pessoas ficavam dopadas, abobalhadas, não tinham nenhum controle da sua vida, as pessoas
entravam ali gritando. Nos hospitais psiquiátricos, o tratamento é muito violento. Então pedi
pra eles me demitirem, não agüentava mais ficar ali nem mais um dia.
Foi imenso o alívio que sentiu no dia seguinte ao pedido de demissão. Resolveu ir
almoçar no Grão de Arroz, restaurante natural que freqüentava em Salvador. Cheguei no Grão
sorridente e disse “saí do trabalho” para um amigo, que era o dono. E ele me chamou para
trabalhar num outro restaurante natural que ele tinha na Cidade Baixa, o Espiga. ‘Quer ou
não quer? Vambora, tô precisando de alguém lá’. E eu fui, sem nunca ter cozinhado comida
natural.
Nessa época, final da década de 70, Val reencontrou Noel, antigo companheiro de
grupo jovem da igreja, com quem é casada até hoje. Foi nesse período que ela redescobriu o
irmão Jorge, que acabara de ficar viúvo de Dona Benedita. Val foi para Caravelas visitar o
irmão, que trabalhava na roça e conheceu seus sete filhos. Dedê, o mais novo, era uma criança
de colo e Jaco, então com 18 anos, precisava prestar serviço militar.
O encontro de Val com Jaco desencadeia uma nova série de movimentos cujo rastro
desejamos seguir. É possível afirmar que, de certo modo, uma nova vida começou aí para
Jaco, com este encontro inesperado com a tia recém descoberta ao qual seguiu-se sua ida à
Salvador, para prestar serviço militar. Lá, conheceu um modo de vida contra-cultural,
descobriu que era negro e que vivia numa ditadura. Jaco descortinou um mundo que vibrava
intensamente à sua volta. E caiu dentro dele. Jamilton ficou uns 2 anos. Ele conheceu toda a
malucada que freqüentava lá em casa. Ele veio a conhecer outra visão que ele não conhecia,
ele tinha um sonho de trabalhar com entalhes, começou a fazer entalhes. Os primeiros
quadros. Eu achava bonito e via como ele tinha jeito pra isso. Eu fazia yoga, meditação.
Freqüentava as palestras dos espiritualistas que chegavam a Salvador. Tinha shows de
artistas que ele nunca tinha visto, Gilberto Gil, Rita Lee, Novos Baianos, ele conheceu tudo
lá. Apesar de que, na vida deles, a mãe dele encaminhou eles para a vida cultural. A mãe
deles fazia muita festa, movimentava o carnaval, bloco afro em Caravelas. Eu sinto tanto não
45
ter conhecido essa pessoa. Então ele já vinha com essa bagagem, de criancinha vendo a mãe
movimentar as escolas de samba, bloco. Tava no sangue dele. E Jaco fazia poesia, tinha cada
poesia linda... Conheceu os poetas da praça em Salvador. Era essa linha de poeta popular
que trabalhava na praça pra levar a poesia pro povão. Era um movimento que se reunia na
praça da Piedade. E ali era protesto, era o momento de passar os panfletos, de avisar das
reuniões da UNE na casa de fulano no boca-a-boca, porque era muito policiamento. Os
estudantes que participavam do movimento revolucionário iam mesmo pra rua. Marcava
reunião na porta da reitoria, polícia botando cachorro atrás e a gente corria. Sempre tinha
um grito de ordem pra dizer para onde ir: Praça Castro Alves! Não sei como Noel [seu
marido] não foi preso, sempre foi comunista brabo. Se tivesse luta armada, ele tava lá, era
defensor de Lamarca. Sempre tinha uma turma babaca que se acomodava, mas também
sempre tinha um povo que movimentava.
O cotidiano de Jaco em Salvador se dividia entre duas vidas completamente diferentes:
a vida da caserna e a vida dos meios políticos e artísticos alternativos. Como recruta, Jaco
acordava de madrugada, participava de treinos, repetia frases fascistas e aprendia a matar. À
noite, escondido, arranhava poesias nos armários de ferro dos alojamentos, seu ato de
rebeldia, sinal indelével naquele espaço que também a seu modo impunha-lhe marcas. Em
suas folgas, Jaco corria para a casa da tia Val. No início, aquele jovem soldado que chegava à
noite no meio das festas repleta de artistas e revolucionários provocou algum desconforto.
Aos risos, Jaco conta do dia em que acordou involuntariamente uma jovem ativista de
esquerda que dormira no chão da casa da tia, pouco antes de partir para a base da Aeronáutica
vestido com seu uniforme. A menina quase morreu do coração ao me ver ali e já foi se
rendendo. Precavido, passou a andar com um saco de estopa e, ao deixar o quartel, costumava
entrar num bar, tirar o uniforme e vestir uma bata africana, indumentária mais apropriada ao
ambiente em que circulava. Mas quando eu queria namorar as empregadinhas que vinham do
interior, eu ia de uniforme para os bairros da periferia. Era tiro e queda!
Jaco observava os movimentos políticos, artísticos ao mesmo tempo em que
experimentava na pele as coisas como eram no quartel. Isso tudo começou a tocar na mente e
no coração dele, ele se chocava mesmo. Tá no coração e na mente da gente; quando a gente
quer a mudança, não tem nada que faça a gente mudar. Você quer aquilo e não larga. Eu
adorava Jaco e sentia uma falta dele! A gente sente falta das pessoas que falam a mesma
língua que a gente.(Val)
Salvador também atraiu Itamar, amigo de infância de Jaco, um jovem de uma região
de Caravelas conhecida como Avenida e que, como ele, tinha dotes artísticos e fome de
46
conhecer o mundo. Alguns anos mais tarde, os dois integrariam o grupo de teatro Avesso em
Cena e criariam o bloco Umbandaum, embriões do que hoje é o Movimento Cultural Arte
Manha. O Umbandaum foi inventado em 1988, seguindo um modelo muito semelhante aos
blocos afro de Salvador
17
, cujo desenvolvimento foi testemunhado por dois dos fundadores do
movimento, Jaco e Itamar, em sua passagem por Salvador para prestar serviço militar e fazer
vestibular, respectivamente. Jaco não seguiu carreira na Aeronáutica e Itamar não foi prestar a
prova. Embora tenham estado na capital do estado em períodos não exatamente coincidentes,
tanto Jaco como Itamar saborearam uma época febril, de efervescência política e cultural, que,
segundo eles, provocou uma mudança radical em suas vidas. Estamos falando do início dos
80: época da chamada redemocratização política do país, do fortalecimento dos movimentos
negros, da reafricanização do carnaval de Salvador
18
e, na cidade de Caravelas, da influência
da teologia da libertação nas pastorais da juventude católica e da visibilidade de indivíduos e
grupos adeptos de um estilo de vida alternativo ou contracultural.
Em Salvador descobriram-se negros
19
. Conheceram uma versão diferente da história
do Brasil que lhes ensinaram no colégio. Descobriram um continente chamado África.
Assistiram aos afoxés e aprenderam danças afro. Conheceram mais de perto a ditadura,
palavra então não pronunciada em Caravelas, mas presente na censura imposta pelo diretor da
escola aos jornais de poesias que editavam. Conheceram intelectuais, políticos, artistas e
contraculturais em geral na casa da tia Val, que a esta altura já se tornara uma cozinheira
naturalista de mão cheia e que, como dissemos, reunia todos os “loucos” de Salvador.
Tiveram notícias dos movimentos negros nos EUA, do apartheid na África do Sul, do black
power. Deixaram de lado suas roupas de meninos do interior, vestiram batas, trançaram seus
cabelos, fizeram dreadlocks. E voltaram a Caravelas com a certeza de serem belos e cultos e
com o coração tomado por idéias revolucionárias.
A viagem a Salvador foi o primeiro acontecimento que deu novos contornos à
subjetividade de Jaco e Itamar, dois agentes centrais do movimento. Essa viagem produziu um
processo de desterritorialização que fez brotar o desejo de constituir em Caravelas um bloco
como aqueles que os emocionaram. A estes encontros somam-se outros, com universitários
que passavam por Caravelas via Projeto Rondon, jovens professores, funcionários públicos e
bancários, figuras oriundas de um meio urbano, universitário e politizado, cujas idéias,
terríveis e encantadoras, em parte entraram no repertório de concepções mais ou menos
17
Sobre este tema, ver Cunha 1991 e 2000; e Agier 2000.
18
Sobre este tema, ver Risério, 1981.
19
Diz Jaco: “eu não sabia que eu era negro, não. Em Caravelas, me sentia igual a todo mundo, era moreno. Fui
descobrir esse lance da discriminação e do movimento negro em Salvador”
47
explícitas que norteiam a atuação do movimento. Desses encontros múltiplos
20
nasceu o
Umbandaum e, um pouco mais tarde, o movimento cultural Arte Manha.
A heterogênese do movimento
“A diferenciação segue diferindo” (Tarde, 1895)
O movimento cultural surgiu de uma interseção singular de processos heterogêneos
que vinham ocorrendo de maneira mais ou menos independente: o processo de
redemocratização política do país; a fundação do Partido dos Trabalhadores, a re-
africanização do carnaval de Salvador
21
; a visibilidade local de grupos e indivíduos adeptos de
um estilo de vida alternativo ou contracultural e também de artistas e andarilhos que passaram
pela cidade, transmitindo novos saberes e técnicas para os jovens do movimento.
O que importa, do ponto de vista da análise, não é tanto o peso específico de cada uma
dessas “influências”, mas entender o que foi feito delas, ou seja, qual seu efeito no processo
de heterogênese do grupo. Heterogênese é aqui entendida no sentido dado por Felix Guattari
(1990), ou seja, como o processo contínuo de re-singularização de grupos e subjetividades.
Subjetividades e não indivíduos, pois este está em posição “terminal” em relação aos vetores
de subjetivação: “a interioridade se instaura no cruzamento de múltiplos componentes
relativamente autônomos uns em relação aos outros e, se for o caso, francamente
discordantes” (Guattari, 1990, p.18). Cada uma dessas influências atua como modos diversos
de intensidades, numa lógica não-determinista que leva em conta os movimentos, os processo
de “se pôr a ser” do grupo
22
.
20
Para uma instigante tese que explora o conceito de encontro em relação a um movimento cultural negro do sul
Bahia, ver Silva, 2004.
21
Para uma análise do processo de “reafricanização” do carnaval da Bahia, ver Antonio Risério (1981 e 1995).
Outro trabalho interessante é o de Michel Agier, que aborda a relação entre carnaval e movimento social ou entre
“cultura” e “política”, a partir de uma etnografia do grupo Ilê Aiyê, de Salvador. O trabalho de Ana Claudia Cruz
da Silva (1998) sobre a noção de cidadania na antropologia brasileira, e a partir do ponto de vista do movimento
afro-cultural de Ilhéus, pode ser entendido como uma inspiração para o presente trabalho.
22
Se concebermos as relações sociais como Tarde (apud Vargas, 2000) propõe, o social como féerie de idéias,
onde acaso, interesse, crença e desejo têm o mesmo papel determinante sobre os processos sociais, talvez
tenhamos uma interessante chave de leitura para a compreensão do jogo de relações que deu origem ao
movimento. Em Tarde, dois princípios cosmológicos centrais: o de que “existir é diferir” e o de que “o real é
um caso do possível”. Entender o social como féerie de idéias significa buscar a “singularidade profunda e
fugidia das pessoas, sua maneira de ser, de pensar, de sentir, que existe uma vez e em um único instante”
(Tarde apud Vargas, 2000). Para Tarde, o real é feito de emergências ou “acidentes” produzidos pelos encontros
“fortuitos, contínuos e inumeráveis” de séries causais múltiplas e independentes. Assim, nada está determinado;
esses intercessores são, por definição, “contingentes, situacionais e atuais”. Nesse sentido, o realizado é um
fragmento do realizável, o real é um caso das possibilidades infinitas do possível. O impossível nada mais é do
que um possível de infinitésimo grau. E o que de identidade e similitude neste mundo de contingências é um
mínimo; a identidade é uma “espécie infinitamente rara de diferença, como o repouso é apenas um caso do
movimento” (ibid.). Daí resulta que tudo provém da diferença e “segue diferindo”. Para Tarde, o real está por
48
Em seu processo de emergência, esta singularidade, hoje chamada Movimento
Cultural Arte Manha
23
, rompeu com encaixes totalizantes e desenhou linhas de fugas que
permitiram aos seus componentes ter acesso a configurações existenciais outras, além
daquelas às quais supõe-se que estariam condenados a seguir, por serem descendentes de
negros e indígenas da periferia da cidade. Ao cultivar o dissenso e uma produção singular da
existência, nada mais é dado ou condição, do ponto de vista do grupo
24
. Da mesma forma
como o artista remaneja sua obra de arte a partir da intrusão de um detalhe acidental, de um
acontecimento-incidente que repentinamente faz bifurcar seu projeto inicial (Guattari,1990),
novas possibilidades surgiram no horizonte daqueles jovens da Avenida, a partir do processo
de criação artístico-político em que se inseriram no início da década de 80.
Diferentes marcos ou eventos definidores surgem nos discursos dos membros do
grupo sobre o surgimento do trabalho artístico que desenvolvem. As manifestações artístico-
políticas envolvendo integrantes do que hoje é o Arte Manha existem desde o início da década
de 80, mas apenas em 1992, dez anos depois dos primeiros movimentos político-culturais da
cidade, o grupo se instituiu formalmente. O Movimento Cultural Arte Manha nada mais é do
que a articulação das diferentes atividades que os integrantes do grupo já vinham
desenvolvendo: o próprio bloco Umbandaum, um bloco-manifestação política; o Ateliê
Astúcia, de produção de móveis rústicos, entalhes e artesanatos feitos de madeira morta ou
materiais de reaproveitamento; a oficina de desenho e silk-screen Pigmeu, capitaneada por
Dedê, o mais novo dos irmãos da família Galdino Santana. Houve também o Afrodam,
oficina de percussão que teve vida curta, porém intensa
25
.
definição em excesso; uma “imensidão de possíveis” que não se realizaram. O instigante neste princípio é que
“as possibilidades não-realizadas existem virtualmente e essa existência virtual afeta o que realmente existe”
(ibid.).
23
“Toda singularidade remete, pois, a uma multiplicidade causal e as objetivações históricas são raras, como diz
Paul Veyne: seu caráter de necessidade aparente é um efeito a posteriori do conjunto de práticas que as
produziu. Tudo, enfim, poderia ser diferente, e não ‘necessidade’ que não seja mera contingência
objetificada”. (Goldman, 1999, p.69)
24
Como veremos, esta posição do movimento cultural enquanto um “grupo-sujeito”, isto é, capaz de romper
encaixes totalizantes e subordinar as determinações do socius à sua produção desejante não é uma constante, isto
é, muitas vezes oscila, em situações que veremos nos próximos capítulos, e os coloca numa posição de “grupo
sujeitado”, isto é, submetido a relações de poder que limitam a expansão de sua produção criativa. A distinção
“grupo-sujeito” e “grupo-sujeitado” proposta por Deleuze e Guattari (1972, p.280-281) deve ser lida menos
como uma oposição (que distinguiria grupos-sujeitos de grupos-sujeitados) e mais como pólos de uma variação
contínua percorrida por grupos e coletividades em seu cotidiano: em certas situações, eles são um grupo-sujeito
(por exemplo, em seu processo de criação artística) e em outras eles são um grupo-sujeitado (em sua relação com
a Rua, por exemplo, quando não estão apresentando algum espetáculo).
25
O Afrodam foi uma experiência que não teve continuidade dentro do Arte Manha, porque começou a se
apresentar em campanhas de candidatos tidos como não confiáveis, o que, para os líderes do grupo, é um uso
político espúrio da cultura. Talvez por isso, a bateria não seja hoje o componente mais valorizado do carnaval
do Umbandaum. Apesar disso, os meninos que desfilam na bateria são assíduos aos ensaios e sentem-se muito
49
Umbandaum, Astúcia e Pigmeu, antes com propostas diferentes, passaram a ser
integrados sob o nome “Movimento Cultural Arte Manha”, a partir da percepção de que todos
os projetos tinham em comum sua filiação à produção artística. Arte Manha é um dos versos
de uma poesia de Napoleão, funcionário da Infraero, antigo participante do Centro Cultural
Pedro Saraiva e simpatizante do grupo. A poesia de Napoleão se intitula “Arte”: “Arte isto/
Arte manha/ Artista façanha/ De teia de aranha/ Assanha cromossomicamente/ As garras do
amor/ Da fome, da guerra/ Luta que brinca/ Artista é isso/ Arte de aranha/ Manha de isca/
Belisca, petisca/ A arte engole o artista.”
Muitos conhecem o grupo como Umbandaum e não como Arte Manha, uma vez que
as atividades em torno do bloco Umbandaum durante o carnaval ou as performances teatrais
ao longo do ano são aquelas que causam o maior impacto na cidade e dão maior visibilidade
ao movimento. Quando começam os boatos de que “os meninos do Umbandaum estão
preparando algo”, a cidade inteira se reboliça para ver o que “eles estão aprontando dessa
vez”.
O movimento cultural não é um grupo coeso, fechado e estável ao longo do tempo. Já
passou por diferentes fases e formações, embora haja um núcleo mais ou menos estável que
assume sua liderança e organiza suas atividades. Foram muitos os que passaram pelo
movimento por períodos relativamente curtos de tempo. Pessoas que são lembradas com um
misto de alegria e lamento, por terem participado intensamente, mas também por terem
deixado a cidade e partido rumo às capitais do Sudeste – Vitória, Belo Horizonte, São Paulo,
Rio de Janeiro – em busca do emprego que Caravelas não lhes oferece. Hoje, pode-se
encontrar antigos participantes ativos do Umbandaum vivendo nas periferias desses grandes
centros e trabalhando em caixas dos supermercados, elevadores de edifícios comerciais como
ascensoristas ou em prédios de classe média como porteiros ou empregadas. Muitos foram
também os que permaneceram. Estes optaram por um caminho marcado pela instabilidade,
que é por um lado fonte de inquietações e incertezas, mas por outro, entendida como
constitutiva e inerente à condição de artista.
Jaco Santana e Itamar Silva, então colegas de escola e hoje na faixa dos quarenta anos,
lideraram os primeiros movimentos do Umbandaum. Hoje é Dó, irmão de Jaco e cunhado
de Itamar, quem está à frente da produção e execução dos trabalhos. Fiquei hospedada na
casa de Simone (irmã de Itamar), e Dó durante a maior parte do período do campo. Ele e
Jaco foram os que ofereceram a maior parte das informações sobre o trabalho do
orgulhosos de sua participação no desfile. Os instrumentos são feitos por eles próprios, com tubos de PVC e
latões.
50
movimento, nas longas conversas que costumávamos ter em diferentes momentos do dia,
principalmente durante o almoço e depois do jantar, momentos de pausa da agitada rotina
do movimento.
O ponto de partida foi o Centro Cultural Pedro Saraiva, criado em maio de 1982 por
um grupo de jovens moradores da cidade
26
. Esse grupo era composto por pessoas que faziam
trabalhos em artesanato e desejavam desenvolver atividades culturais em Caravelas. Hoje a
maior parte já deixou a cidade. Macrô, dono de pousada no centro da cidade e, à época, hippie
recém-chegado de uma comunidade alternativa próxima de Salvador, elenca os criadores e
participantes do Centro Cultural: uma bióloga, uma jornalista, um ex-funcionário do Banco do
Brasil; um funcionário da Infraero, um professor de história, uma jovem que hoje é professora
de Comunicação da UFPE, além de Jaco e Itamar, que haviam acabado de terminar seus
estudos secundários e eram moradores da Avenida.
Esse grupo fazia teatro de rua, performances e uma revista literária de poesias, textos e
crônicas, chamada o Clarim do Povo. Jaco chegou a publicar algumas poesias na revista e,
junto com Itamar e Cocotinha, morador da cidade, fazia entalhes em madeira no Centro
Cultural. O grupo utilizava a sede do Sindicato dos Estivadores – desativada desde o fim da
ferrovia Bahia-Minas – como espaço de encontro e de produção artística, e o mimeógrafo da
escola para rodar as revistas. O Clarim do Povo durou em torno de um ano e gerou uma outra
revista – dissidente – denominada O Avesso. Foram quatro edições e a marca de 100 a 150
revistas por número. Segundo Jaco:
“era um texto mais politizado, as poesias eram mais politizadas. Mas tinha também
um pouco de poesia romântica, essas coisas assim. Os textos de história abordavam a
questão da Guerra de Canudos, o Golpe de 64. Numa época em que o prefeito na
época era o Chiquinho, tenente da Polícia Militar (hoje filiado ao PFL)”.
Jaco atribui sua mudança de perspectiva e a construção de um olhar crítico e “mais
politizado” à sua viagem à Salvador, quando foi servir à Aeronáutica e morar com Val. Jaco
era então, como afirma, “um garoto da roça”: “quando eu saí de Caravelas, não sabia que a
gente vivia numa ditadura, nem sabia que existia ditadura”. Suas idéias começaram a mudar
conversando com as pessoas que conheceu em Salvador e ouvindo as músicas de Raul Seixas,
Janis Joplin, Bob Dylan, Gil, Caetano no toca-discos da sua tia. Jaco conheceu então um novo
mundo, em que os negros conquistavam um espaço na arena pública e os debates em torno
dos projetos para o país, o movimento negro, o black power americano se disseminavam.
26
Pedro Saraiva é o nome de um poeta local, já falecido.
51
Voltou mudado. Mas as mudanças pelas quais passou, no plano da subjetividade e do
posicionamento político, não agradaram aos setores mais conservadores da cidade: a revista
acabou sendo fechada pela polícia, por ordem do prefeito, e perseguida por alguns professores
que num primeiro momento haviam colaborado mas, não obstante, passaram a condenar o
caráter “subversivo” do empreendimento. O mimeógrafo da escola foi apreendido e um dos
professores escreveu uma carta aberta criticando a revista e seus autores.
O impacto da revista foi de proporções relativamente grandes na cidade, como
evidencia o fato de que, mesmo após a censura, seus redatores conseguiram meios de rodá-la
em Salvador e editar um número censurado – que obviamente acabou esgotado. O Clarim do
Povo e O Avesso são lembradas até hoje por diferentes pessoas com as quais conversei sobre a
época, como marcos daquele momento de luta entre um pensamento progressista que nascia
em oposição à ditadura.
Junto com as revistas, o teatro de rua também é lembrado como acontecimento
marcante em Caravelas. Tendo a própria cidade – ruas, praças, construções históricas e a
igreja – como palco e cenário, o encontro de Jaco e Itamar com o teatro de rua definiu um
futuro padrão para as intervenções do Umbandaum: a apropriação do espaço público como
locus da produção e disseminação de novos discursos e elaborações inesperadas, abordando a
discriminação social, racial, a história dos orixás, os índios da região, a caça às baleias etc.
Apesar do rebuliço provocado na cidade, o Centro Cultural acabou se desarticulando
quando seus fundadores deixaram a cidade. Mas Jaco e Itamar decidiram dar continuidade ao
trabalho de teatro de rua e de entalhes e intensificaram a inclusão – que já operava no Centro
Cultural – de uma parcela da população historicamente discriminada pela maior parte dos
moradores do centro da cidade: eles próprios e seus vizinhos, os moradores da Avenida.
A Avenida
27
A Avenida era a região periférica da cidade: ali ficavam as casas de madeira para onde
foi removida parte dos trabalhadores que viviam nos galpões da Bahia-Minas. Tratava-se de
um local com alto índice de tuberculosos. Um morador do centro, simpatizante do movimento
cultural, afirma: “A Avenida era a ‘favela’ da cidade; as pessoas com menor poder econômico
estavam ali”. Napoleão, um dos colaboradores do grupo e morador das imediações da
avenida, conta que “até hoje há algumas casas onde é possível ver as tábuas daquele tempo”.
Ele diz:
27
Ver mapa esquemático de Caravelas (Figura 2), p. 283.
52
“Tinha muita areia por aqui, cansava as pernas para andar. Quando chovia, parecia um
ribeiro, a criançada tomava banho na água. Era como se fosse uma favela, tinha muita
briga e uma péssima fama. Agora você vê, essa avenida, que hoje se chama Avenida
da Liberdade, foi calçada há somente 10-15 anos, numa cidade que tem 500 anos!”
Paulo, um marinheiro que participava à época das atividades de percussão do movimento,
comentou comigo que “antes do movimento cultural existir, aqui era a maior favela, a
gente não podia ir para o Centro – chamavam a gente de “o pessoal da Avenida Graças a
Deus” e tratavam a gente como favelado.
A avenida e suas casas abandonadas acabaram sendo a opção de moradia que restou
aos agricultores descendentes de negros e índios que chegavam a Caravelas após terem
vendido ou sido expulsos das suas roças, objeto da cobiça de grandes madeireiras e
pecuaristas do interior de Minas que avançavam sobre esta porção do território rumo ao
litoral.
Jaco conta que o nome original é rua da Liberdade, mas que uma das pessoas que
conseguiu uma das casinhas de madeira no local colocou uma plaquinha com o nome
“Avenida Graças e Deus”. Porém, as pessoas do Centro da cidade chamavam-na de “Avenida
Deus me livre”. Jaco acredita que essa discriminação teria sido a razão que motivou alguns
episódios de violência entre moradores dos dois territórios, especificamente ligados à revolta
que sentiam os homens da Avenida com envolvimento das mulheres locais com homens do
Centro. Diz ele:
“Uma das formas das pessoas responderem à discriminação era com a violência. Eu
lembro que, quando eu tinha uns 14 anos, o pessoal que morava lá no Centro tinha
medo de vir cá. E tinha uns que, se fossem namorar uma menina da Avenida, levavam
uns tapas mesmo. O cara do Centro namorava a menina dali, mas tinha que largar ela
um quilômetro antes da Avenida. A violência era contra o pessoal que vinha namorar
as meninas dali, porque quando eles iam para o Centro ia ser aquela discriminação:
‘Ah, o cara mora na Av. Graças a Deus!’. Falar que morava na Graças a Deus era um
inferno !”
Decididos a manter a proposta do Centro Cultural, Jaco e Itamar começaram a fazer as
atividades na casa de um e de outro: “começamos a trabalhar com o pessoal da rua, fazer
teatro, incentivamos o pessoal a fazer capoeira, surgiu esse grupo de capoeira, montamos o
grupo de teatro... Aí que começou a mudar a relação de Centro e Avenida. Aí o pessoal da
Avenida começou a se sentir mais gente”. Um ex-componente do Umbandaum me disse certa
vez: “Eu lembro a primeira vez que o Umbandaum saiu na rua. A Avenida e o Centro não se
53
davam bem. Mas começaram a sair juntos no bloco. Imagina dois grupos rivais juntos. Todos
começaram a falar a mesma língua.”
A “Avenida”, onde morava e ainda mora a maior parte dos participantes do
movimento cultural, situa-se numa região considerada periférica da cidade de Caravelas,
habitada por uma população que os participantes do movimento vêem como descendentes de
negros e índios, das mais diversas origens, mas que têm em comum o fato de terem uma
história ligada à terra, à estiva ou à estrada de ferro Bahia-Minas.
São filhos de antigos trabalhadores rurais, que deixaram o roçado ou dele foram
expulsos, quando da expansão das grandes madeireiras, dos pecuaristas do interior de Minas
e, mais recentemente, da monocultura do eucalipto. Ou ainda filhos de antigos trabalhadores
da estiva ou arrumadores, que realizavam o trabalho de carga e descarga dos navios, na época
em que o porto da cidade era um dos mais movimentados do Brasil, devido à presença da
estrada de ferro Bahia-Minas, extinta em 1964. São ainda filhos dos trabalhadores
responsáveis pela manutenção dos trilhos e das locomotivas, cuja função era alimentar os
altos fornos das marias-fumaça ou consertar suas engrenagens. Com o fim da era de
prosperidade econômica, aquelas famílias que realizavam esses trabalhos subalternos foram
morar na “Avenida”, área alagadiça, com casas de madeira abandonadas, onde outrora se
confinavam os tuberculosos da cidade. Lugar que, até meados dos anos 80, era profundamente
estigmatizado pela “Rua”, tido como violento, com enchentes e surtos de doenças e
comparações com as favelas cariocas. Seu nome: Avenida Liberdade. Os moradores da
“Rua”, como vimos, a chamavam de “Avenida Deus me livre”.
A “Rua” é o centro da cidade, onde se concentra a maior parte do comércio local e
onde habitam as camadas médias e a elite branca da cidade, em casas de alvenaria, que
outrora seguiam o padrão da bonita arquitetura colonial portuguesa, hoje submetida à
alterações dramáticas, que vão desde a introdução de ladrilhos de cozinha na fachada, até a
demolição pura e simples e reconstrução de uma casa “moderna” no lugar da “velha”, sendo
difícil precisar quais das duas opções mais apraz os moradores locais. Diz-se que, no passado,
os moradores da Avenida não freqüentavam a Rua a não ser como empregados e que os
moradores da Rua temiam pôr os pés na Avenida. Hoje a tensão entre Rua e Avenida parece
menor, ou menos explícita. Um morador da Rua pode andar tranqüilamente pela Avenida sem
ser molestado (embora o temor de andar por lá à noite permaneça); um morador da Avenida
aparentemente anda pela Rua sem maiores problemas, especialmente se estiver indo ao banco
ou às compras.
54
Embora no carnaval as fronteiras entre “Rua” e “Avenida” se esmaeçam, elas
obviamente não desaparecem, da mesma forma como a fase de menor atividade do
movimento não significa que ele simplesmente não exista mais. Basicamente, são situações
sociais específicas que fazem aparecer linhas de tensão entre a “Rua” e a “Avenida”. Na
verdade, são essas linhas de tensão que constituem socialmente o que localmente se classifica
como “Rua” ou “Avenida”, marcadores geográficos que nada têm de naturais. Esses pontos de
referência aparentemente estáveis tornam-se facilmente mutáveis, como veremos a seguir.
Como afirma Strathern (1984, p.48), em sua análise sobre a noção de “local” numa aldeia
inglesa: “a tentação é de ir em busca do núcleo interno estável dos verdadeiros locais. Mas sua
maior parte se extingüe quando sob escrutínio. O núcleo se desintegra, a fronteira torna-se
permeável, a continuidade parece rompida”.
Por outro lado, o pertencimento a uma ou outra categoria é contextualmente variável:
não é tão óbvio quanto parece definir se uma pessoa pertence à rua ou à avenida. Vejamos o
caso de Dó, que, como veremos no capítulo 2, se candidatou a vereador e perdeu. A principal
arma de Dó, segundo seus experientes assessores, razão da confiança quase cega que tinham
na vitória, era o fato de que “a Avenida votará em Dó, já que Dó nasceu, cresceu e vive na
Avenida”. Não há dúvidas: Dó é um homem da Avenida, quem irá negá-lo? Logo após o
resultado das eleições, que evidenciaram a derrota de Dó, começaram as especulações em
torno das razões que teriam levado o candidato ao fracasso eleitoral
28
. Dedê, seu irmão mais
novo, foi incisivo: “a Avenida traiu Dó. Mas não foi à toa. Faz muito tempo que ele se afastou
da Avenida. Pode ter certeza que a maior parte dos votos é da nossa família e do pessoal da
Rua”. Uma simples mudança de contexto e, como que de repente, Dó é lançado fora da
Avenida e identificado com a Rua.
Rua e Avenida são formas de classificação social definidas a partir da variação
inerente às situações sociais sob escrutínio
29
. É possível, de fato, passar anos na cidade sem
perceber nenhum traço desta oposição, como é o caso de um jovem defensor público recém
formado e vindo de Salvador, que trabalhou por dois anos em Caravelas. Por todos os cantos
aonde ia, Dr. Claudio exultava por não haver “estratificação social” na cidade. Segundo ele,
os conflitos jurídicos eram todos referentes a “disputas pessoais”. A despeito destes fatos
28
Para uma análise das retóricas de explicação de derrotas eleitorais, ver Goldman e Silva 1998.
29
Como afirma Galaty, em uma formulação que creio poder ser estendida a outros marcadores que os étnicos,
“ao contrário das visões que tomam rótulos étnicos meramente como espelho ou expressão de ordens primeiras
de organização, a presente abordagem examina a relação dinâmica entre marcadores étnicos e grupamentos
sociais emergentes dentro do processo classificatório” (Galaty 1982, p. 3 - grifos meus).
55
“lamentáveis”, segundo ele, na cidade reinava a mais pura “harmonia social” e nenhum
“preconceito de cor”.
Embora de forma nem sempre tão explícita, a relação entre Avenida e Rua, marcada
por contrastes e tensões, mas também por diversas aproximações ao longo do tempo, é um
dos eixos constituintes do movimento cultural. Não é à toa que o movimento escolhe sempre a
Rua como espaço de suas apresentações. Regra geral, o grupo escolhe os espaços públicos
privilegiados da cidade para encenar suas peças, performances e blocos. O objetivo declarado
é “causar um impacto”, “fazer as pessoas pensarem”, “conscientizar” - fórmulas que supõem a
existência de uma potência transformadora na arte, capaz de provocar mudanças qualitativas
de percepção nos seus receptores, como aconteceu com a encenação da peça Geni.
A Geni
Os membros mais antigos do Arte Manha destacam a encenação da peça da “Geni”
como um dos momentos mais marcantes da atuação do grupo. Itamar foi o idealizador da
encenação de uma adaptação da peça A Ópera do Malandro, de Chico Buarque
30
. Sua
adaptação “para a realidade de Caravelas” é centrada na figura de um personagem secundário
da peça original: a Geni. Na peça, Geni é um travesti que sofre nas mãos dos “poderosos” e da
sociedade como um todo que a reprova (o coro diz: “Joga pedra na Geni/ Joga bosta na Geni/
Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni), mas
também é capaz de reagir e se salvar por meio de astúcias e artimanhas”.
Ter encenado “a Geni” é considerado um acontecimento inesquecível na trajetória dos
jovens da Avenida. Para Itamar, que representou a Geni, a personagem marcou o grupo e a
cidade porque traz dentro de si todo “o sofrimento, a discriminação, o preconceito” vividos
cotidianamente pelos moradores da Avenida. Segundo ele, a experiência da montagem
“mexeu com a estrutura e a consciência dos participantes e de quem teve a oportunidade de
conhecer o trabalho”. A peça – ensaiada no porão do bispado – era apresentada em forma de
cordel narrado por Simone, hoje esposa de Dó, e representada por Itamar, que ficou conhecido
na cidade tamanha a paixão que imprimia à personagem. Para Dó, a peça “era um trabalho de
consciência”, uma vez que “mostrava os maus tratos que as prostitutas e homossexuais, os
excluídos da época, sofriam”.
No entanto, Geni não é apenas vítima, ela é inteligente, astuciosa e engraçada. É meio
homem, meio mulher, que ama e sofre, mas sabe se vingar e consegue enganar aqueles que a
30
A Ópera do Malandro é inspirada na Ópera dos Mendigos (1728), de John Gay, e na Ópera dos Três Vinténs
(1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill.
56
enganam e defender seu protetor. Talvez por isso tantas pessoas tenham se identificado com a
personagem. A peça foi apresentada em muitos locais na cidade, mas a primeira apresentação
foi a mais marcante: uma intervenção inesperada no coreto da praça durante as festividades de
Santo Antônio, padroeiro da cidade. Entre beatos e beatas que iam à Igreja dar graças ao
padroeiro, Geni ousou contar sua história. “As senhoras da cidade choravam com pena da
Geni”, contou-me Simone. “Geni fazia os conservadores chorar. Uma mulher explorada pela
sociedade!”, completou Dó, aos risos.
A representação da Geni, que incorporava a um só tempo a discriminação que os
próprios atores sofriam por serem moradores da Avenida e o seu inconformismo e revolta
com esse estado de coisas, motivou o grupo de jovens a continuar seu trabalho artístico e a
aprofundar seu engajamento político.
O Espaço
O local onde hoje se localiza a sede do movimento, epicentro de suas atividades,
pertenceu durante muitos anos à Diocese – chamava-se então Centro Comunitário N.Sa. de
Fátima – onde funcionava uma escolinha para crianças mantida por uma freira holandesa, que
também desenvolvia um trabalho de assistência às mães. Porém, a igreja deixou o galpão por
muito tempo abandonado. No espaço há, até hoje, uma imagem da N.Sa. de Fátima, que Dó
faz questão de manter presente, apesar de suja de cal e de algumas pessoas do próprio
movimento terem desejado retirá-la de lá. Segundo ele, o grupo revolveu deixá-la no galpão
“para preservar a questão cultural: isso faz parte da nossa filosofia. Senão, a história morre. Se
a gente tivesse tirado [a imagem], talvez já tivesse esquecido o que já foi esse lugar aqui”.
O galpão abandonado foi, durante muitos anos, um espaço privilegiado para os ensaios
das peças e performances do grupo e, em seguida, para o bloco Umbandaum. O grupo passou
a utilizar este espaço, ao invés do porão do bispado.
Os cem anos da falsa abolição: surge o Umbandaum
Os debates que tomaram o país no ano de 1988, quando se comemorava o centenário
da abolição da escravidão, contagiaram os membros do grupo e os levaram a realizar uma
performance inesperada, um acontecimento que levou grupo a se interessar pela cultura negra
e a se constituir enquanto grupo afro.
Era 13 de maio e na cidade estava se realizando uma festa patrocinada pelos políticos
locais de direita. Conta Dó:
57
“Os políticos pegaram as nagôs para comemorar o 13 de maio, justamente quando
fazia 100 anos da abolição. Jaco e Itamar pensaram: temos que fazer alguma coisa!!
Estão comemorando a abolição e se aproveitando das nagôs. Vamos botar uma faixa
escrita ‘Cem Anos da Falsa Abolição’ e sair atrás da procissão??”
Imediatamente os jovens da Avenida vestiram seus sarongues improvisados com
lençóis e calças de capoeira. Quando a procissão das nagôs descia a rua principal da cidade, o
grupo entrou de surpresa com a grande faixa dos “cem anos da falsa abolição”. Dó, que tinha
então 19 anos, conta:
“Quando eles estavam na rua, nós pegamos de surpresa e caímos atrás. O pessoal
gostou porque cresceu o bloco, não estavam nem sacando a faixa, a maioria
analfabeta, não sabia ler. Os políticos estavam financiando essas coisas. Era ano
político, 1988, aí começaram a financiar camisetas e colocar alguma coisa para a rua
em datas comemorativas. Foi aí que começamos a compreender a história que Itamar
estava provocando”.
A performance, liderada por Jaco e Itamar, começou no centro da cidade e terminou
numa intervenção súbita num terreiro de candomblé que, à época, existia na cidade:
“Na frente do terreiro de candomblé, resolvemos mudar essa história. Quando deu um
intervalo veio a idéia: ‘vamos improvisar um navio negreiro? Vamos mostrar o negro
de uma forma diferente!!’ Então fizemos mímicas e improvisamos um navio negreiro
no meio do terreiro. Itamar pegou uma corda e improvisou como se tivesse ferido.
Ninguém ali nunca tinha feito teatro direito. Aí todo mundo no terreiro aplaudiu,
achando que tinha sido contratado e tal. E aí o pessoal começou a sacar o negócio do
Umbandaum, um lance ousado. Entrar num terreiro de candomblé e fazer uma
anarquia, para eles era uma loucura. Mas a proposta era séria, era uma proposta
diferente de tudo que havia na época por aqui”.
A performance motivou a decisão de formar o bloco Umbandaum: “Em 13 de maio de
1988, fizemos os “Cem Anos da Falsa Abolição” e, em 20 de novembro do mesmo ano, dia
da Resistência Negra, começamos a discutir a formação do bloco.” Assim, iniciaram-se os
ensaios do grupo, no espaço da Diocese cedido por conhecidos. A ocupação mais sistemática
do espaço gerou a proposta de “ser um grupo afro” (“afro-indígena” é uma inflexão mais
recente como veremos adiante). Conta Dó: “Sentamos Itamar, Jamilton, eu e outra figura que
era de candomblé, o Jorge Alodé (que mora em Juerana, cidade vizinha), apelido que botamos
nele, porque ele cantava música iorubá. Foi aí que surgiu a idéia de botar um bloco, que
chamamos de Umbandaum”.
A capoeira já existia na cidade antes do bloco afro e foi aprendida por Dó, junto com
seus colegas Cadeira, Tunga e Djalma, através de um livro sobre capoeira angola comprado
por Itamar em um sebo de Salvador especializado em cultura afro-brasileira. Os membros
58
destacam que a existência de pessoas interessadas “nessa história de cultura afro e capoeira”
estimulou Itamar a “provocar” a formação de um grupo.
Em novembro e dezembro de 1988, o grupo fez shows para arrecadar dinheiro para
“botar o bloco” em janeiro. Era um show de orixás apresentado em duas sessões lotadas no
cinema da cidade. Eles chamaram um vizinho, Piaba, líder do bloco de índio e ogã de
candomblé para tocar tambor, “porque ninguém sabia bater tambor”. Os jovens não gostaram
de ter que vestir o sarongue
31
, num primeiro momento “resistiram, mas saíram”.
Dó lembra que a divulgação de que o bloco iria sair “era no boca-a-boca” e cada um
improvisava sua roupa como podia: “avisamos para os amigos que o bloco ia sair e quem
tivesse lençol deveria ir para a creche. Montamos alguns adereços e saímos no carnaval de
1989. Saímos só com lençóis. Foi uma loucura, um bocado de turista saiu nesse bloco só de
lençol”.
Outro elemento que o grupo se orgulha de ter inserido na cidade é uma versão
estilizada dos orixás, que não segue nenhuma ortodoxia do candomblé, apenas incorporando
alguns elementos que os distinguem. Isso muitas vezes chocou não apenas os moradores do
Centro, mas também os adeptos das religiões afro-baianas: “Já botamos os orixás de seios de
fora. Iabá, Oxum de seios de fora, um orixá bem estilizado, sem pegar aquela roupa
tradicional. Isso começou a fortalecer. E de lá para cá, não paramos mais.”
De grupo a movimento
Foi então que o grupo decidiu falar com o padre sobre o espaço. Jaco foi falar com padre,
que disse que era preciso que o grupo se comprometesse a fazer um trabalho filantrópico
para poder usar o galpão. Diz Dó:
“Assumimos o compromisso de fazer um trabalho voluntário. Assinamos um acordo
que definia que, de seis em seis meses, seria necessário fazer novos acordos. Mas
depois isso não foi mais necessário, pois o padre viu que o trabalho estava dando uma
grande repercussão na cidade”.
Preto, irmão de Dó e Jaco, criou um projeto chamado Erês da Liberdade, voltados para
as crianças da Avenida, e ocuparam o espaço com mais de cem crianças que, durante toda a
semana após a escola, faziam aulas de capoeira sem mestre com Dó, aulas de dança com
Itamar e Simone e oficinas de percussão com Dedê. As crianças participaram de alguns
shows, apresentações de maculelê e dança afro e do “resgate de brincadeiras de rua”.
31
Sarongue é uma calça feita toda com amarrações. Segundo Dó, “não é de candomblé, é mais da África raiz.
Descobrimos em Salvador, tanto por Jaco e Itamar, quanto pelo que víamos na televisão”.
59
Este último foi o tema de um dos desfiles do Erê Mirim, o bloco infantil que saía junto
com o Umbandaum no carnaval, cujo nome, acoplando um termo iorubá (erê, do iorubá ere:
‘jogo, brincadeira’) a outro tupi (mirim, do tupi mi'ri: ‘pequeno’), é uma mistura que traduz a
filiação “afro-indígena” dos seus componentes. Muitos dos jovens que hoje lideram atividades
do Movimento e dão aulas de dança e capoeira para as crianças são oriundos das atividades do
Erê Mirim. A idéia que as lideranças do movimento tinham era que as crianças que passassem
pelo Erê Mirim fossem depois para o Umbandaum, o que de fato vem ocorrendo.
Neste momento se iniciou a parceria com o trabalho de Zé da Baiana, que coordena o
Espaço Cultural da Paz em Teixeira de Freitas, com suas esposa, a Baiana
32
. O grupo
começou a trazer cantores e violeiros da região para se apresentar na cidade, apresentando
música regional do Vale do Mucuri e do Vale do Jequitinhonha, num momento em que a Axé
Music parecia dominar o cenário musical brasileiro. Jaco conta:
“Começamos a trazer violeiro, poesia... Depois que saiu o bloco, o trabalho repercutiu
pra caramba, foi loucura. Começamos a inserir todo o trabalho de literatura, de música
de violeiro. Trouxemos Rubinho do Vale, que tinha vindo lançar o disco dele em
Teixeira. Armamos o palco e expusemos o trabalho de arte com as crianças, um
espetáculo que fizemos.”
O Umbandaum desfilou de 1989 a 1992, mas parou entre 1993 e 1995. Nesta época,
Jaco, Preto e Dó encontraram um “mercado” para seu trabalho em madeira e, com isso,
tiveram que viajar para Ilhéus, pois foram contratados para montar estandes de madeira para
uma feira de Turismo da Ilheustur. Ao mesmo tempo, a área onde hoje é o galpão, sede do
movimento e residência de Dó, foi objeto de disputa judicial entre o grupo e uma pessoa de
fora da cidade que também ocupara a área, para fins de especulação imobiliária
33
.
Todos são unânimes em afirmar que o trabalho do grupo era, ao mesmo tempo, muito
admirado e muito discriminado no início. Diz Jaco: “trabalhamos sob bombardeio entre 88 até
95”. Isso só se reverteu quando Tita Lopes, articulador cultural do Oludum, grupo afro de
Salvador que na época estava em seu auge, foi para Caravelas fazer oficina com o grupo.
“Isso aqui virou febre”, dizem. A oficina do Olodum é evocada para ilustrar o momento em
que o grupo conquistou uma maior legitimidade social na cidade.
32
O Espaço Cultural da Paz é um centro de articulação política e cultural situado em Teixeira de Freitas, que
oferece cursos de artesanato, música e teatro para os moradores de baixa renda da cidade. O espaço funciona
como galeria de arte popular e um palco onde se realizam shows e eventos políticos do Partido dos
Trabalhadores e sindicatos. Zé da Baiana saiu candidato a deputado estadual pelo PT, mas não se elegeu.
33
Este senhor chegou a incriminar alguns componentes do grupo de “abuso de menores” mostrando, como
prova, fotos das apresentações dos grupos em que as crianças apareciam vestidas de bustiês e tangas de pano. O
juiz, na época, julgou improcedente a acusação e fez a observação de que se tratava de “um trabalho de cultura
afro – e isto é arte”.
60
No entanto, o trabalho o Olodum é visto de forma ambivalente
34
. Por um lado, é visto
como um exemplo a ser seguido, de banda que teve um trabalho sério de “base”, mas, por
outro, é como um “fantasma” que os assombra, do grupo que “estourou”, abandonou as bases
e se focou apenas na administração da banda. Quando o sucesso acabou, o grupo já não tinha
mais aonde se sustentar: nem os trabalhos paralelos com a comunidade, nem o apoio que
tiveram de várias empresas públicas e privadas. Em 1996, o Umbandaum voltou a sair, com
instrumentos emprestados do Dilazenze, grupo cultural de Ilhéus que conheceram durante sua
estadia na cidade. A partir daí, Jaco passou a ficar mais tempo em Ilhéus do que em
Caravelas, até que decidiu se estabelecer de vez por lá
35
.
Em 1998, Itamar construiu o Dandara, um grande galpão decorado com motivos afro,
que originalmente seria um espaço de shows e um restaurante. Acabou não cumprindo a
expectativa de dar algum retorno financeiro para Itamar e tornou-se um local de bailes e festas
eventuais. Hoje em dia, é muito utilizado pelo movimento para as oficinas de dança e
percussão.
Preto e Dó começaram a desenvolver mais sistematicamente o trabalho do Ateliê
Astúcia, de produção de móveis rústicos e esculturas com “madeira morta”. Até assumir a
liderança, Dó não considerava seu trabalho com madeira como parte do trabalho mais amplo
que envolvia as oficinas de dança, capoeira e percussão e o bloco:
“Os meninos trabalhavam lá, só que a gente não considerava isso fazendo parte do
Arte Manha. Era um trabalho para a gente garantir nosso sustento. Comecei a trabalhar
com decoração de rua do carnaval. Em 1995-1996, fiz a decoração dos 300 anos da
resistência negra, de Zumbi. Foi tudo feito com material reciclado. O bloco saiu bonito
porque a decoração de rua tinha a ver com a temática.”
Quando Dó assumiu a liderança do Arte Manha, passou a imprimir uma concepção de
trabalho que integrasse as oficinas de dança, capoeira e percussão e as atividades de geração
de renda, como o trabalho com madeira do Ateliê Astúcia e o trabalho de decoração para
carnaval, com o objetivo de construir uma “sustentabilidade” e “autonomia” para o grupo.
34
Sobre a visão de um grupo afro de Ilhéus sobre o Olodum e sua perspectiva sobre o que seja “cidadania”, ver a
interessante análise de Ana Cláudia Cruz da Silva (1998).
35
Seu pai adquiriu uma antiga fazenda de cacau nos arredores de Ilhéus e, à época da pesquisa, Jaco dividia seu
tempo entre o trabalho na fazenda e a criação artística junto ao grupo cultural Dilazenze. Hoje (2009) ele voltou
para Caravelas, uma vez que o movimento cultural foi contemplado com um Ponto de Cultura, projeto do
Ministério da Cultura.
61
O que é o movimento? O que é o grupo?
A primeira das várias dificuldades com que me deparei ao redigir esta tese se refere à
definição do grupo. É certo que este problema não é privilégio meu nem tampouco restrito ao
grupo que escolhi estudar. Parece-me, porém, que no caso de Caravelas e do Movimento
Cultural a questão de como definir o grupo se coloca em toda sua agudeza. Eles são negros ou
índios? Afro-indígenas. ONG, movimento social, partido político ou associação? Um pouco
dos quatro. Artistas ou artesãos? Os dois. Grupo afro ou grupo cultural tradicional, folclórico?
Artistas de vanguarda. Vivem no campo ou na cidade? Entre os dois. A sede do movimento
cultural situa-se numa área limítrofe entre a cidade e o entorno feito de campos, pastos e
manguezais. Seus participantes são filhos de trabalhadores rurais e/ou extrativistas que têm
várias histórias de idas e vindas para a cidade (não só Caravelas, mas centros urbanos maiores
como Vitória ou Belo Horizonte), mas que ainda mantêm uma relação com o “campo”, uma
vez que acessam o “mangue” ou para a “roça” de forma esporádica.
Busquei investigar antes de tudo como o próprio grupo se define e a primeira evidência é
que não há apenas um modo mas muitos de se definir/apresentar para o outro. Ao longo do
trabalho de campo fui tendo acesso aos seus múltiplos modos de ser e o que aqui descrevo é
apenas o que pude apreender durante minha estadia e não deve ser entendido como uma
definição fechada do grupo. Segundo ponto: a forma como o grupo se apresenta e se define
varia de acordo com quem eles estão em relação: uma dessas facetas é privilegiada e outras
são desenfatizadas, dependendo do contexto e do interlocutor. Importante observar dois
sentidos do que quero dizer com “definir o grupo”: por um lado, essa questão pode ser
entendida literalmente e poderia se traduzir numa pergunta formulada especialmente para este
fim, como veremos a adiante. Por outro, podemos entendê-la num sentido distinto, que seria o
de explorar o que faz o grupo ser um grupo, quais seriam os eixos de estabilização deste fluxo
na “forma grupo” em seu processo de se por a ser.
Certa vez estava com Jaco preenchendo um formulário de um edital do Ministério da
Cultura em que pedia-se para definir o grupo em algumas linhas. Aproveitei a “deixa” para
perguntar como ele definiria o Arte Manha. Jaco ficou desconcertado: “definir o Arte Manha?
Assim, em geral? Sei lá, o Arte Manha é tudo isso aí que você tá vendo”. Mas se você tivesse
que definir o grupo, o que você diria? “Definir assim eu não sei, mas uma palavra que me
vem à cabeça é coletivo”. Pergunto a Dó, liderança atual e irmão de Jaco, que estava por
perto: se você tivesse que definir o Arte Manha em uma palavra, o que você diria?
Autonomia”. De fato, como veremos, o Arte Manha é um coletivo que tem na sua autonomia
um ponto de articulação central. A idéia de autonomia sugere uma relação com um fora (ao
62
contrário, por exemplo, da idéia de autarquia que pode ser entendida como uma organização
que se fecha numa relação de si consigo mesmo). Autonomia, como veremos, remete em
primeiro lugar a um imperativo de não se submeter a regras e lógicas diferentes daquelas que
inventaram para si mesmos.
Há um temor onipresente no grupo de que algo os leve a perder sua capacidade de
auto-regulação e este receio é conjurado através de sua luta incessante contra as tentativas de
captura a que estão constantemente submetidos. Um exemplo de tentativa de captura nada
sutil é a proposta que receberam da Aracruz Celulose de um projeto de “mega-marcenaria” de
eucalipto, que seria gerido pelo grupo, com financiamento e apoio da Aracruz. O projeto
acabou não sendo aceito pelo grupo pelo temor de que ele atentasse contra sua autonomia.
Outro exemplo é a relação do grupo com o PT: o movimento foi por um bom tempo a sede do
diretório municipal do partido e sempre lançou candidatos a vereador e/ou prefeito pelo
Partido. Mas nunca se preocupou em angariar filiados nem em formalizar as filiações no
cartório do Prado, o que faz com que não consigam ter o mínimo de filiados para participar de
instâncias estaduais e nacionais do PT nem despertar grande interesse das lideranças do
partido para a região.
No entanto, em época de eleições (internas e gerais) é comum a aparição de setores
mais “organizados” do partido na cidade, com vistas a regularizar a situação precária do
diretório municipal, cuja pasta está repleta de fichas de filiação não homologadas no cartório
do Prado. Nas incursões dos petistas de fora à Caravelas não é incomum as lideranças do
movimento “darem um perdido” nos visitantes (isto é, evitarem encontrá-los), o que levou a
pelo menos uma militante do partido vinda de Teixeira de Freitas a ter como estratégia
aparecer de surpresa na cidade para não ser “despistada”. Se antes da vitória de Lula e do PT
nas eleições presidenciais ser ou não filiado ao partido não representava grande ganho (pelo
contrário, poderia significar perseguição na cidade), depois de 2003, algumas pessoas com
“interesse” em se tornar petistas foram para outros partidos por não terem observado um
verdadeiro empenho dos integrantes do movimento com a consolidação organizativo-
burocrática do PT na cidade. Não ser capturado pela máquina partidária parece ser uma
questão que também permeia aquilo que o movimento entende como sua autonomia.
Por fim, a autonomia se traduz, por exemplo, na oposição rua x avenida, em que rua é o
local de moradia da elite da cidade e avenida a área “periférica” de onde provém grande parte
dos componentes do grupo. Desde sua aparição, o movimento cultural revela uma
preocupação em “chocar” a rua, em provocar espanto e admiração em seus moradores, através
de suas intervenções teatrais, performances e desfiles do bloco Umbandaum. Um travesti
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protagoniza uma peça, o assassinato do índio Galdino é encenado num espetáculo chamado
“queima de arquivo”, um Jesus negro é crucificado por um homem branco de paletó e pasta
de executivo, Zumbi é louvado pelos orixás (ver capítulo 5). Autonomia aqui se traduz no
cuidado especial do grupo em não agradar ao gosto da rua, em afirmar uma outra estética e
trazer à tona uma outra história, subterrânea, protagonizada pelos negros e índios mortos
pelos antepassados dos moradores da Rua. Mortos que ora são vítimas indefesas (como é o
caso do índio Galdino), mas também mortos em combate, como Zumbi ou Geni. O escândalo
que o movimento causa até hoje na Rua parece estar relacionado ao fato de que esses mortos –
que talvez a rua preferisse esquecer - são metaforicamente “desenterrados” e exibidos aos
descendentes de seus algozes, alertando-os que essas mortes não serão esquecidas. E de que é
possível transformar a morte na afirmação da arte e da beleza e deste modo ao mesmo tempo
afirmar e conjurar a dor “sem nome”, “sem sentido”, “que às vezes vem de dentro e me toma”
relatada por alguns participantes do movimento.
É interessante, porém, que nem a palavra autonomia nem a palavra coletivo apareçam
na definição que eles criaram para si no edital citado acima, cujo preenchimento revela um
domínio notável do “onguês”, a língua utiliza pelas ONGs em sua relação com entidades
doadoras de recursos:
“O Movimento Cultural "Arte Manha" nos seus 20 anos de atuação em Caravelas, vem
realizando diversas ações no âmbito educacional e cultural, enfatizando a importância
do resgate e o fortalecimento da identidade cultural na região. Com o incentivo à
preservação de manifestações folclóricas e à conscientização sócio-ambiental a partir
de atividades nas áreas de artes cênicas, musical, literárias e artes plásticas,
promovendo sempre o aproveitamento racional dos recursos naturais renováveis e não
renováveis com a utilização de material reciclável. O “Arte Manha”, através das
oficinas profissionalizantes já capacitou mais de 250 jovens e nas atividades
relacionadas às artes cênicas e manifestações folclóricas, envolveu mais de 2.000
integrantes da comunidade.”
Muitas vezes é este “onguês” a linguagem acionada pelos integrantes do grupo para
falar sobre si para outrem, especialmente pessoas de fora, moradores de grandes centros
urbanos. Isso não quer dizer que o grupo se veja como uma ONG, embora pudesse ser
apresentados como uma organização não-governamental latu sensu. Quando alguém indaga
ou diz que eles são uma ONG, a resposta, invariavelmente, é: “não somos ONG, somos uma
associação” ou “não somos ONG, somos um movimento”. Se a definição acima apresentada
de fato revela algo sobre o grupo, talvez a excessiva aproximação com uma linguagem
compreensível para as pessoas “de fora” induza o leitor a formar um conceito apressado sobre
o que é o Arte Manha – imagem que revela sim uma das facetas do movimento - mas que
64
pode obliterar a visão de muitas outras dimensões ao não explicar aquilo que o grupo de fato
faz. Afinal, o que seriam, em termos concretos, “ações no âmbito educacional e cultural”,
“resgate”, “fortalecimento da identidade cultural da região”, “conscientização sócio-
ambiental” e “preservação das manifestações folclóricas”?
Ainda neste exercício de “definir o grupo” para as pessoas de “fora”, é comum
indagarem-me sobre o que poderíamos chamar de “composição sócio-demográfica” do
movimento cultural, isto é a faixas etárias, a origem étnica, a profissão, a cor ou a classe
social dos seus integrantes. Esse tipo de indagação pressupõe que essas variáveis seriam
capazes de definir quem ou o que eles são. Se fosse responder a esta indagação, diria que seus
participantes têm entre 2 e 72 anos; são afro-indígenas, indígenas, negros e brancos;
pertencem às classes populares, à classe média e em alguns casos à elite da cidade, dentre eles
há artistas, artesãos, donas-de-casa, empregadas domésticas, bancários aposentados, ex-
bancários, biólogos, oceanógrafos, pedreiros, bailarinas, pescadores, sindicalistas,
trabalhadores rurais, ativistas políticos, motoboys, recepcionistas de pousada, pintoras,
antropólogos, comunicólogos, funcionários públicos de órgãos ambientais, empregados de
operadoras de turismo, dono de escola de mergulho, agente de saúde, biscateiros, publicitário,
cartunista, professores etc.
A pergunta que eu me coloco é: o que essas variáveis sócio-demográficas revelam
sobre o grupo? O que com elas aprendemos para além da evidente composição heterogênea
do movimento, a mistura de classes, idades e profissões? A questão é que a definição do que é
o grupo não está resolvida com a apresentação deste seu perfil sócio-demográfico. Acreditar
que estes índices explicam algo, quando são justamente o que deve ser explicado, é cair numa
espécie de armadilha identitária, indissociável de uma série de pré-noções e preconceitos que
carregamos conosco. Acima de tudo, nossa concepção sobre as profissões supra listadas vem
carregada de uma série de pressupostos que têm como já conhecidos mundos que ainda não
conhecemos nos termos nativos. O velho etnocentrismo está à espreita
36
. A projeção
etnocêntrica mediatiza todo olhar sobre as diferenças para identificá-las e hierarquizá-las
tendo como critério central e superior a sociedade ocidental. Portanto, entender que a
definição do grupo em termos de idade, classe e profissão é suficiente para defini-lo constitui
um problema a um só tempo metodológico e político: as diferenças são anuladas em nome da
primazia da identidade e o outro é definido, não pelos seus próprios critérios, mas em função
da ausência ou da projeção de tal ou qual característica da sociedade do observador.
36
Como afirma Pierre Clastres (1978, p. 13) eis “um adversário sempre vivaz, o obstáculo permanentemente
presente”.
65
Como afirma Wagner (1974, p. 103-104), “quando um antropólogo congrega as vidas
e imaginações dos seus sujeitos num “sistema” determinista do seu próprio ideário,
capturando suas idéias e inclinações dentro das necessidades de suas próprias economias,
ecologias e lógicas, ele declara a prioridade do seu modo de criatividade sobre o deles [os
sujeitos].” O interessante, ao meu ver, é o movimento de substituir “seu próprio
(“heurístico”) fazer dos grupos, ordens, organizações e lógicas pelo modo no qual “os
nativos” fazem suas coletividades”. Assim, definir o movimento cultural em termos de
“profissão” dos seus integrantes, por exemplo, será uma forma de propagar as similaridades
com as nossas próprias noções, por exemplo, do que sejam grupos, porém não um meio de
entender “o modo no qual as pessoas lá criam-se a si mesmos socialmente” (ibid., p. 104).
A busca por uma determinação em termos de “composição sócio-demográfica” sobre
quem são os sujeitos estudados, além de bloquear a concepção nativa de socialidade, engendra
o problema de funcionar como “explicação” para os processos sociais que envolvem o grupo.
“Ser negro, pedreiro e ter 23 anos” diz exatamente o quê sobre alguém? Explica o quê sobre o
grupo do qual ele participa? Este é um modo de pensar que repousa na crença, na
objetificação naturalizante ou no preconceito de que (1) o número de anos vividos pelas
pessoas diz algo de fundamental sobre elas (2) as pessoas detém uma profissão, um “capital
social” adquirido que define sua forma de estar e se relacionar no mundo e (3) as pessoas
podem ser alocadas dentro de um extrato social chamado classe e, a partir de então, você pode
explicar suas ações em função deste critério, que em ampla medida determina aquilo que elas
fazem.
Com isso não quero dizer que conhecer a idade, a profissão ou a classe das pessoas
não contribua para dar certa inteligibilidade aos processos estudados. O problema é que,
satisfeitos com uma explicação nesses termos, muitas vezes paramos de desdobrar a análise
justamente em seu ponto mais nevrálgico: seu núcleo etnocêntrico. O bloqueio da análise tem,
portanto, um sentido preciso. Ao se exprimir mais as coisas do que as relações, os estados do
que os processos e, acima de tudo, ao se privilegiar determinadas variáveis específicas da
sociedade do observador, correlacionando-as com aspectos da vida do grupo observado, o
efeito é muitas vezes o cegar-se à singularidade dos grupos estudados. Tomados de uma
espécie de cenotofobia - medo mórbido da novidade – acreditamos ilusoriamente que não há
nada de novo sob o sol. O grupo ou movimento torna-se classe, idade, profissão, ONG,
partido político, movimento negro ou qualquer outra instância que nos pareça mais familiar e
que crie uma falsa sensação de conforto ao leitor – “ah, claro, é isso, entendi do que se trata”.
É assim dado ao socius o poder de submeter e esmagar a produção desejante que engendra
66
processos de singularização. “A identidade é um caso particular da diferença” (Tarde, 1893).
Algo sempre escapa. É este algo que escapa o ouro de que não podemos abrir mão.
O exercício de explicar “o que é” o movimento só é possível na medida em que é
apresentado de forma concomitante ao estudo das relações sociais que constituem seu
processo de se pôr a ser. Para tanto, buscarei analisar duas dimensões deste processo: em
primeiro lugar, sua relação ou encontro com elementos que, do seu ponto de vista, são
entendidos como “vindo de fora”, de um mundo concebido como externo e, paralelamente, as
mudanças engendradas no mundo entendido como de dentro, da ordem daquilo que é interno
ou interioridade. Minha proposta, num primeiro momento, é descrever os processos que estão
e estiveram em jogo na produção de novas sensibilidades, continuamente engendradas neste
encontro e fusão entre os mundos externo e interno. O material etnográfico permitiu-me
vislumbrar que as pessoas, acontecimentos e objetos de arte são os meios nos quais se
desenrola o encontro entre estes dois mundos. Esta poderá ser a porta de entrada para a
etnografia, uma vez que neles se condensam as formas de subjetivação de que os participantes
do movimento são a um só tempo agentes e pacientes, em seu processo de heterogênese
37
Essas relações são passíveis de análise na medida em que se apresentam ao
antropólogo em situações etnográficas precisas, no caso estudado, relativas aos três elos –
pessoas, acontecimentos e objetos de arte - que constituem o processo de se pôr a ser do
movimento cultural. O trabalho de campo permitiu-me compreender que as fronteiras – se é
que esse termo é apropriado - desse grupo são conjunturais e instáveis: há momentos em que
o movimento agrega centenas de pessoas, como no carnaval; há momentos em que apenas dez
ou quinze jovens realizam atividades; por vezes são convocadas reuniões com as pessoas que
“colaboram sempre” ou que o movimento deseja “atrair de volta” onde reunem-se sessenta,
setenta pessoas; há ainda períodos em que a sede do movimento cultural permanece fechada,
dando a impressão ao observador externo de que nada está acontecendo e, por fim, está
sempre colocado o risco do movimento acabar, quando o grupo se dispersa demais em função
de desavenças internas ou pressões externas, como por exemplo a falta de recursos mínimos
para pagar as contas de luz e água ou o singelo fato de que em determinadas épocas do ano
simplesmente nada acontece.
Acima de tudo, os catalisadores da participação no movimento cultural são “eventos”,
que podem ser ações artístico-políticas por eles inventadas, como o bloco Umbandaum e a
Semana Zumbi dos Palmares; festividades organizadas pelo grupo, como shows de reggae,
37
Aqui entendido, como vimos, como o processo contínuo de singularização de grupos e subjetividades. Cf.
Guattari & Rolnik, 1986.
67
desfiles da Beleza Negra, arrastões culturais, oficinas de dança, seminários organizados ou
frequentados pelo grupo, audiências públicas sobre a questão ambiental na região, exibição de
vídeos e documentários sobre a questão negra e indígena, reuniões do Partido dos
Trabalhadores, reuniões do Conselho de Cultura e Patrimônio Histórico da cidade, festivais
organizados pelas ONGs da cidade e pelo IBAMA, campanhas políticas, dentre outros.
O movimento não pode ser visto como uma “entidade” separada de suas ações. Sem
eventos em vista, não há motivo para reunir as pessoas. Assim, muitos participantes nem
saem de casa quando não há nenhuma programação concreta de ações. As lideranças, porém,
entendem que o movimento “existe” independente da presença ou ausência de ações e
convocam reuniões semanais, em que os participantes comparecem para ouvir os mais velhos
tomarem a palavra por longos minutos e às vezes até por horas a fio, numa espécie de
“lamento” sobre a falta de empenho e responsabilidade dos jovens e sobre os riscos do grupo
terminar caso as coisas permaneçam como estão. Nesta espécie de elegia semanal da finitude,
afirma-se que “tudo pode acabar a qualquer momento”. Nos momentos em que nada acontece,
há uma dispersão natural do grupo e o fantasma da dissolução se faz presente. Isso leva as
lideranças a se preocuparem com os destinos do grupo e a convocarem essas reuniões,
digamos, sem uma pauta específica, em que tecem seu “lamento” e uma espécie de ode ao
coletivo. Sem eventos em vista, as relações entre membros do grupo obviamente
permanecem, funcionando de muitas outras formas. Por exemplo, muitos dos participantes do
movimento cultural são ligados por laços de parentesco e essas relações operam
independentemente das ações do movimento. O parentesco entre os membros do grupo pode
ser visto em muitos sentido como o território que nutre a existência e manutenção do grupo.
Algumas pessoas
Um dos elos centrais que fazem o movimento cultural são certas pessoas, definidas
como internas ao movimento e essenciais para sua existência, funcionamento e estabilidade.
Dizer que o movimento é feito de pessoas não quer dizer que ele seja a soma dessas pessoas.
Essas pessoas não são indivíduos no sentido de que não são mônadas bem delimitadas,
homogêneas, inteiriças e separadas entre si. O que é enfatizado pelo grupo é menos as pessoas
e mais o que elas têm a oferecer. Nesse sentido, a ênfase é na relação que é estabelecida, nos
encontros que podem aumentar ou diminuir a potência de ambos. Todo o esforço do grupo é o
de pegar “o que aquela pessoa tem de bom pra oferecer”, sabendo que “todo mundo tem algo
de bom para oferecer”. Tal como é impossível fazer uma escultura toda vazada com um
pedaço de madeira cheio de nós, “não se pode esperar do outro o que ele não vai ou não pode
68
dar”. Essas pessoas são acima de tudo agenciamentos com os quais o movimento se conecta,
buscando capturar “o que elas tem de bom” e relevar, não dar muita importância ou ainda
neutralizar o que têm de ruim, já que “ninguém é só bom ou só ruim, todo mundo tem coisas
boas e ruins dentro de si” (Jaco). Na discussão de Giorgio Agamben (2007) sobre o que é um
dispositivo encontrei uma solução interessante para a conceitualização dos sujeitos.
Assim, o que seria para eles aquela entidade ou aquele agente que chamam por um
nome próprio? A primeira coisa que me vem a mente é que, do ponto de vista do grupo, as
pessoas são tomadas pelo o que elas têm a oferecer ao movimento. Elas se definem pelo o que
têm para dar, que pode ser muito ou pouco, mas há sempre algo. Há sempre a possibilidade de
se agenciar com algum dispositivo. Daí a associação que traço com Agamben, que diz:
“Há assim duas classes: a dos seres vivos (ou as substâncias) e os dispositivos. Entre
as duas, como terceiro, os sujeitos. Chamo sujeito o que resulta da relação, e por assim
dizer, do corpo a corpo entre os seres vivos e os dispositivos. Naturalmente, como na
antiga metafísica, as substâncias e os sujeitos parecem se confundir, mas não
completamente. Por exemplo, um mesmo indivíduo, uma mesma substância, pode ser
o lugar de vários processos de subjetivação: o utilizador de celulares, o internauta, o
autor de contos, o apaixonado por tango, o altermundista etc. Ao desenvolvimento
infinito de dispositivos do nosso tempo corresponde um desenvolvimento também
infinito de processos de subjetivação. Esta situação poderia dar a impressão de que a
categoria da subjetividade própria ao nosso tempo está se enfraquecendo e perdendo
sua consistência, mas se quisermos ser precisos, trata-se menos de um
desaparecimento ou de uma superação do que um processo de disseminação que leva
ao extremo a dimensão de fingimento (mascarade) que sempre acompanhou toda ideia
de identidade pessoal.” (p.32-33)
Esta idéia de Agamben de que cada “substância” hospeda muitos processos de
subjetivação e que, portanto, pode conter em si uma multiplicidade de sujeitos se sintoniza
com a ideia do movimento de que cada pessoa tem muitas qualidades (boas e ruins, uteis e
desprezíveis) e que cabe ao grupo estabelecer com quais delas ele deseja se relacionar. É na
medida em que uma pessoa é muitos sujeitos, é pelo fato dela se conectar, de traçar redes,
maiores ou menores, com diferentes dispositivos, que aqui acionamos essa ideia de “pessoa
para explicar uma das dimensões do que é o movimento ou o grupo. Não é apenas que o
grupo seja composto de pessoas e que cabe dizer quem são essas pessoas. Isso é uma
evidência que não diz nada ou pouco sobre o movimento. O que importa aqui é o que cada um
tem a oferecer para o grupo. Em outras palavras, cada pessoa/substância se relaciona com
diferentes dispositivos, constituindo-se diversos sujeitos. Alguns desses sujeitos “encaixam”
ou “combinam” com o movimento. O que chamo de pessoas são essas conexões, isto é, o
modo específico como cada sujeito se associa com os dispositivos do grupo, favorecendo a
perpetuação do movimento.
69
O que Gilca, irmã mais velha de sete irmãos, dos quais seis participam ativamente do
movimento, tem a oferecer para o grupo não é nada óbvio. À primeira vista, sua participação
no movimento cultural não é evidente: Gilca nunca participa das aulas de dança, jamais atuou
em algum espetáculo do grupo e não participa ativamente das reuniões ou dos processos de
tomada de decisão do movimento. Sua presença – para muitos imperceptível – se dá nos
bastidores, num sentido literal e num sentido metafórico. Não é incomum que ela assuma o
papel de contra-regra e operadora de som, dando o suporte necessário quando o grupo entra
em cena nos eventos protagonizados pelo movimento. É no cotidiano do movimento que
Gilca assume outro papel tão ou mais importante que sua atuação nos bastidores: a ajuda que
oferece à sua irmã Simone, atriz e bailarina do movimento, cuidando dos três filhos mais
novos desta, Rui, Raoni e Naomi (hoje com doze, oito e seis anos, respectivamente), desde a
primeira infância. Simone tem o respaldo de Gilca para assumir sua vida artística e
profissional: desde cedo, quando era professora primária de uma escola num distrito distante
do município, mais tarde, quando ministrava oficinas de dança no município vizinho de
Alcobaça e atualmente quando sai para trabalhar como agente de saúde em tempo integral. O
fundamental para o movimento cultural é que Gilca cuida dos filhos de Simone em todos os
momentos em que esta precisa se ausentar de casa e do cuidados das crianças para os ensaios
de dança ou de teatro do Umbandaum. Simone se tornou a maior e mais bela bailarina do
Umbandaum muito devido ao esforço e generosidade de Cutinha, como ela chama
carinhosamente a irmã.
Quando Gilca e Simone estão ocupadas, é a mãe das duas, Dona Dadá, quem se
responsabiliza pelas crianças. Muitas vezes isso não é necessário, já que é comum que as
crianças estejam em cena desde a mais tenra idade. Este é o caso de Raoni, 10 anos, que toca
chocalho no bloco e nas apresentações teatrais desde 3 anos; de Ruana, 9 anos, que desde os
10 meses desfila no colo de sua mãe e de Rui, 8 anos, filho mais velho de Simone, que desde
bebê desfila no bloco Umbandaum. Naomi, a filha caçula de Simone, já ensaia seus primeiros
passos no bloco; Ruan, filho de Lília (ver abaixo) já atua nos ensaios da bateria, assim como
Dudu, filho de Chico (filho adotivo de Dadá). Exemplos como esses poderiam ser facilmente
multiplicados.
Dadá, avó das crianças citadas, é, portanto, uma das pessoas que criam as condições
para a existência do movimento, atuando das mais diferentes formas. Cuida dos netos,
empresta sua aparelhagem de som e cede o terreno ao lado de sua casa - que adquiriu com as
70
economias de anos de trabalho como lavadeira - para a construção do Dandara Zumbi
38
, um
dos barracões onde se realizam os ensaios e reuniões do grupo. Dadá, mãe biológica de três
dos principais agentes do movimento cultural e mãe adotiva de mais cinco participantes ativos
do Umbandaum, é literalmente, uma pessoa que fez e faz o movimento, dando seu suporte
afetivo irrestrito à opção dos filhos pelo trabalho artístico e oferecendo apoio e proteção aos
seus.
Importante observar que, tal como Gilca, talvez os participantes do movimento não
apontem Dadá como “integrante” do grupo, afinal, ela não frequenta as reuniões nem
tampouco se apresenta nos espetáculos encenados pelo Umbandaum. Sua atuação no
movimento é tão intensa e necessária quanto pouco visível. A exceção a essa invisibilidade foi
a atuação de Dadá no vídeo “Não mangue de mim”, como Nanã, que é a mais velha dos
orixás e por isso mesmo considerada mãe de todos os orixás e a guardiã da memória do povo
(ver capítulo 5). No vídeo, Dadá/Nanã, orixá associado às áreas alagadas e pântanos, esculpe
com a lama do mangue o corpo de um homem, que deste modo ganha vida. Tal como Nanã,
Dadá é generosa, austera e justa com os seus (como veremos no capítulo 2). E, em muitos
sentidos, uma pessoa ligada à criação do mundo. De um certo mundo
39
.
Entre as pessoas que constituem o movimento está Lília, 26 anos e liderança jovem do
movimento cultural, que desfila desde os cinco anos no bloco Erê Mirim, hoje transformado
na ala das crianças do Umbandaum. Lília não tem nenhum grau de parentesco com outras
pessoas do movimento cultural, mas nasceu na Avenida próxima à sede, conhecida como
“Espaço Cultural”. Cresceu dentro do Espaço, fazendo oficinas de dança, atuando nas peças e
criando adereços. Trouxe Anderson, então namorado da capoeira e hoje marido, para
participar do movimento cultural. Já foi Rainha da Beleza Negra, no ano seguinte desfilou
grávida
40
e hoje – embora tenha um emprego como frentista – continua no movimento, dando
aulas de dança para as crianças. Seu filho, Ruan, hoje com 5 anos, brinca junto com as outras
38
O nome é uma homenagem aos “heróis negros” do Quilombo dos Palmares. Dandara era uma liderança
feminina do quilombo e, segundo os participantes do movimento, teria sido uma das mulheres de Zumbi.
39
Foi baseado neste mito, que é relatado por Reginaldo Prandi na Mitologia dos Orixás, que o movimento
cultural concebeu a cena de Nanã modelando o corpo de seu filho com a lama: “Dizem que quando Olorum
encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o
homem de ar, como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de pau, mas a criatura
ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até
vinho-de-palma, e nada. Foi então que Nanã veio em seu socorro, apontou para o fundo do lago com seu ibiri,
seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da
lagoa onde morava ela, a lama sob as águas, que é Nanã. Oxalá criou o homem, o modelou no barro, com um
sopro de Olorum ele caminhou, com a ajuda dos orixás povoou a terra. Mas tem um dia que o homem morre e
seu corpo tem que retornar à terra, voltar à natureza de Nanã Buruku. Nanã deu a matéria no começo, mas quer
de volta no final tudo o que é seu.” (Prandi, 2001).
40
As grávidas têm destaque nos desfiles do Umbandaum: suas barrigas são cuidadosamente pintadas e exibidas
seja numa ala especial ou sobre algum carro alegórico.
71
crianças da vizinhança entre os tambores do Dandara e os adereços espalhados pela sede do
movimento cultural. Jaco e Dó revelam o desejo de “resgatar” Lília do emprego de frentista,
que consideram como algo que poderá levar Lília a se afastar do movimento. Contrariando
todas as previsões, Lília consegue se desdobrar entre os cuidados do filho, da casa, o emprego
e o movimento cultural.
Anne também começou cedo a participar do grupo e hoje, com 25 anos e mãe de
Gabriela há um ano, já está de volta ao Espaço para dar aulas, acompanhada da filha de colo e
da mãe, que cuida do bebê enquanto Anne ministra suas oficinas para as crianças. Moradora
da Avenida, Anne costumava aparecer no Espaço depois da escola levada pela amiga Lília.
Começou a frequentar as aulas de dança, a ajudar na confecção dos adereços para os desfiles e
espetáculos do Umbandaum e, finalmente, a participar das reuniões do movimento cultural.
Poderíamos dizer que um importante marcador de pertencimento ao grupo é, em primeiro
lugar, estar disponível para “dar uma força”, seja trabalhando na preparação do carnaval, seja
simplesmente ajudando a limpar a sede do movimento. Num segundo momento, a presença
nas reuniões semanais ou quinzenais é um elemento importante para entrar de fato para o
grupo, já que nelas as atividades em cursos são avaliadas e é nelas onde se decide as futuras
ações do coletivo. A simples participação nas aulas e oficinas de dança ou no desfile do
Umbandaum não necessariamente significa adesão ao grupo. É nas aulas que os mais velhos
observam os jovens mais interessados e ativos e tecem expectativas – sempre discretas e não
explicitadas para a pessoa em questão - de que determinado(a) jovem persista no grupo, o que,
ao contrário do que se possa imaginar a primeira vista, não é algo tão fácil ou simples de
acontecer.
Se algum jovem da cidade ler isto, muito provavelmente irá discordar de mim, mas eu
diria que Caravelas oferece múltiplas opções de lazer para esta faixa etária. Além dos
atrativos naturais, como as praias oceânicas e de rio, há sempre uma canoa disponível para se
pescar no rio, um campo para se jogar futebol, uma lan-house para se jogar videogames em
rede e parabólicas para se assistir televisão. As aulas de dança, percussão ou capoeira sem
mestre são outras opções de lazer disponíveis, oferecidas pelo movimento cultural. Assim,
muitos jovens entram em contato com o movimento de forma despretensiosa: simplesmente
vão às aulas, dançam, tocam percussão, mas isso não significa que “estejam dentro” ou que
sejam considerados “de dentro”. Porque o movimento não é apenas lazer e diversão. São
outros aspectos que fazem os jovens aí permanecerem. Vejamos abaixo quais seriam eles.
Bianca Santana era uma jovem evangélica e freqüentava a Igreja Maranata, na Rua,
levada pela mãe e pela patroa da mãe, que era evangélica. Usava saias longas, blusas sem
72
decote e cores sóbrias. Nunca havia participado do movimento cultural, embora já tivesse
visto e admirado o desfile do Umbandaum inúmeras vezes, desde a mais tenra infância. As
irmãs mais velhas, que não eram evangélicas, começaram a fazer oficina de dança no
Dandara, com Itamar, e a frequentar o Espaço Cultural, bem próximo à casa da família, na
Avenida. Diz Bianca:
“Eu era evangélica, mas via minhas irmãs irem dançar no Umbandaum. Resolvi ir um
dia e isso mudou minha vida”.
Ao contrário do que se costuma ouvir de que as religiões evangélicas estariam
angariando mais e mais fiéis provenientes das religiões de matriz afro-brasileira, o exemplo
de Bianca demonstra que o inverso também acontece – e talvez este seja um fenômeno mais
comum do que supomos.
Outros integrantes do movimento já tiveram ou têm seu “momento evangélico”, como
é o caso de Cobra Coral. Ele saiu como Oxumaré no carnaval de 2002: o corpo semi-nu
pintado com as cores do arco-iris, uma cobra de adereço enrolada ao seu tronco e uma
expressão corporal que remetia aos movimentos sinuosos de uma serpente. Algum tempo
depois o reencontrei, mas não o reconheci: estava de terno e gravata, com uma Bíblia debaixo
do braço, sério e de pouca conversa. Recentemente, nos vimos no distrito da Barra e lá estava
Cobra coral, sorridente e falante como em 2002, sentado na mesa ao lado no bar, bebendo
uma cerveja com os amigos. Mas você não tinha virado evangélico?, perguntei. Ele
respondeu, dizendo:
Sim, virei. Mas não aguentei. Só Jesus salva, Jesus é realmente a única verdade e o
único caminho. Mas não é pra mim...Eu gosto de festa, de carnaval, de ousadia... Mas
Ele é a verdade. Ele é o caminho. Eu sei disso, eu senti isso. Só não é pra mim...
Esses dois exemplos revelam que o movimento cultural se apresenta para os jovens da
Avenida como algo a mais do que um simples espaço de lazer, onde se pode passar agradáveis
horas durante o dia. No movimento cultural, esses jovens se articulam com agenciamentos
com as quais não teriam contato de outro modo. Como veremos ao discutir os eventos do
movimento, o grupo lida o tempo todo com as possibilidades e os limites da criação artística,
com o imperativo de se diferenciar no campo da política assim como de manter sua
autonomia. Ao mesmo tempo, o movimento põe os jovens em contato com uma experiência
estética e sensorial singular, em que elementos minoritários/ signos da cultura negra, africana
e/ou indígena se fazem presentes por toda parte: seja na decoração do Espaço cultural, seja na
forma de se vestir dos seus participantes, nos instrumentos e sons que são tocados, nas
discussões que aí se travam. Além da arte e da política, poderíamos dizer que ali correm
73
diferentes formas de subjetivação que se traduzem numa relação com o corpo que o toma
como meio por excelência do refino estético, da feitura de uma beleza singular. O corpo é
modelado por pinturas corporais - uma constante nas apresentações do grupo - assim como
pelos movimentos da dança afro, que lhe confere uma tonicidade forte e uma estatura
alongada e larga. As mulheres costuram suas próprias vestimentas, num processo em que
misturam tecidos coloridos, fazem amarrações com corda, tricô e crochê e tingem ou pintam
fazendas de diferentes texturas e materiais. Os cabelos são objeto de um cuidado especial e as
tranças afro são um importante marcador de pertencimento ao grupo. O corpo é tratado como
um objeto de arte onde imprimem-se desenhos, cores, tecidos e movimentos. Não cabe,
portanto, qualquer sentimento de pudor, nem sentido de vergonha ou culpa no uso do corpo
enquanto expressão artística.
A dança, a música, a pintura, a escultura estão sempre presentes no dia-a-dia daquele
Espaço. É só entrar no Espaço, conversar com Dó, pegar um formão e começar a esculpir.
Pegar um latão ou um violão e começar a tocar. Ou aparecer no Dandara na hora das aulas de
dança e fazer o corpo entrar no ritmo afro. As portas estão quase sempre abertas e não precisa
ser convidado para entrar.
Mas nem só de arte ou de artistas é feito o movimento. Tome-se o exemplo de Chico,
que sempre foi um garoto muito tímido e teve uma infância difícil, com uma mãe que não
teve condições de criá-lo. Quem o criou foi Dadá, a já citada “matriarca” do movimento
cultural, que vem a ser sua tia carnal (irmã da mãe). Chico nunca teve ou nunca assumiu
publicamente um “espírito de artista”, embora tocasse aqui e ali um pandeiro ou uma
zabumba e eu já o tenha ouvido cantarolar uma música que estava compondo na hora. De todo
modo, Chico nunca se sentiu muito à vontade para participar dos desfiles e espetáculos do
movimento. Sua inserção se dá na parte de marcenaria do Ateliê Astúcia – ateliê de produção
de móveis e esculturas rústicas capitaneado por Dó - e na confecção das alegorias no carnaval.
Seu talento para mexer com madeira, embora não venha acompanhado de uma febre por criar,
faz seu trabalho como marceneiro ser requisitado pelos moradores da cidade e permite que ele
tenha uma renda básica para cuidar da mulher e do filho pequeno.
Rafael, ou Rafinha como é conhecido, também frequenta o Espaço Cultural desde
pequeno, onde aprendeu os primeiros movimentos de capoeira com Dó e sua Capoeira sem
Mestre. Sua família tornou-se evangélica no início da sua adolescência, mas Rafinha não
seguiu o caminho dos seus e manteve suas roupas e boinas coloridas, seu berimbau e seu
cotidiano como capoeirista. Apesar das imensas dificuldades na escola, Rafinha passou a
frequentar o Espaço e aprendeu com Dó a esculpir em madeira e desde cedo obtém uma renda
74
razoável para os padrões locais, quando consegue vender suas baleias e golfinhos esculpidos
em jenipapo para os turistas endinheirados que vão para Abrolhos. Rafinha participa do
movimento como escultor, toca tambor na bateria do Umbandaum e ministra oficinas de
capoeira para crianças junto com Vinícius, irmão de Simone e filho adotivo de Dadá.
Recentemente, as pressões da família para que Rafinha conseguisse um “emprego de
verdade” aumentaram muito e ele foi acusado pelos seus de estar frequentando um espaço
condenado pela igreja evangélica e, portanto, de estar compactuando com algo de que deveria
se manter afastado. Embora sua família seja conhecida da família de Dó Galdino e Simone, de
nada adiantou a visita deles a seus pais, para convencê-los de que Rafinha está bem no
movimento e inclusive obtém uma renda do trabalho artístico que aí desenvolve. Já foi
internado duas vezes e passou a se vestir como evangélico, abandonou o formão e o berimbau,
deixou as esculturas e a capoeira, suas maiores paixões, de lado.
Por muitos meses, todos no movimento ansiavam para que Rafinha retornasse, o que
aconteceu por um determinado tempo. Depois de passar por uma internação psiquiátrica em
Vitória, ele retornou a Caravelas e voltou a frequentar o Espaço e a fazer suas esculturas. É
interessante observar que, embora exímio escultor (no sentido de domínio da técnica e
acabamento), sua produção artística é entendida por outros escultores do movimento como
“presa num certo esquema” ou como caracterizada por um baixo grau de inventividade. Isso
por dois motivos. Em primeiro lugar, porque os temas que Rafinha aborda em suas esculturas
e entalhes – corais, peixes, golfinhos e sobretudo baleias – são entendidos como “vindos de
fora”, isto é, coerentes com um certo gosto dos ambientalistas locais (que são todos pessoas
de outras cidades, basicamente de São Paulo e do Sul do Brasil), assim como dos turistas
dessas regiões que vão a Caravelas praticar mergulho e conhecer Abrolhos. Suas esculturas
não tematizam o que “vem de dentro”, as imagens do repertório “afro-indígena”. Por outro
lado, embora Rafinha possa ser considerado o escultor mais produtivo do grupo, sua produção
se caracteriza por uma serialidade que não se vê, por exemplo, na produção de Dó e Jaco: suas
peças são muito parecidas entre si. Apesar disso, ele é certamente o escultor que mais vende
do grupo e não possui apego expressivo em relação às peças (algum apego sempre há) como
alguns integrantes que não gostam de se separar da sua produção, costumam vender para
amigos ou conhecidos e muitas vezes visitam suas obras nas casas das pessoas para as quais
venderam ou, mais comumente, trocaram. Quando meu pai foi me visitar no campo, Dó o
levou para conhecer seus móveis e esculturas nas casas de pessoas moradoras da Rua sobre as
quais até então eu nunca ouvira falar. Era um domingo de manhã e entrávamos e saíamos das
75
casas das pessoas como se estivéssemos percorrendo salas de uma grande exposição. Naquela
manhã, Caravelas se tornou um grande museu aberto à visitação.
Voltando a Rafinha, poderíamos dizer que a tensão que caracteriza sua vida – o desejo
de fazer parte do movimento versus as pressões familiares (ou quiçá o desejo pessoal) de ter
um “emprego” - está também em certa medida presente na forma como ele conduz sua
produção artística. Sua forma de ser artista tenta equilibrar esses dois mundos: caracteriza-se
pela serialidade e pela adequação ao gosto do público - ele não se permite maiores liberdades
artísticas – o que lhe garante uma renda razoável e o conseqüente apaziguamento dos ânimos
de sua família. Isso, por sua vez, permite que ele continue a frequentar o Espaço Cultural, a
ser escultor e a praticar capoeira, sua grande paixão, interdita aos seguidores da fé evangélica.
A vida de Fabinho, grande amigo de Rafinha desde a infância, também traz as marcas
da tensão entre o desejo de ser artista e viver da arte e a necessidade bem concreta de garantir
uma renda mínima para sustentar sua família. Órfão de pai e mãe, Fabinho foi criado pelo avô
e cresceu frequentando as atividades do movimento cultural, especialmente as rodas de
capoeira sem mestre. Há quatro anos conseguiu um emprego como “auxiliar para serviços
gerais” no terminal de barcaças da Aracruz. Seu trabalho inicial era o de tirar amostras das
toras de eucalipto com a motossera, para o controle da Aracruz. O trabalho o levava utilizar a
motossera acima da altura da cintura, o que é considerado algo extremamente perigoso. A
empresa – que possui um passivo trabalhista enorme devido a mutilações entre ex-
empregados que exerciam a função de lenhadores quando o processo de corte do eucalipto era
manual - mudou o procedimento e extinguiu a função de Fabinho, que passou a trabalhar
como uma espécie de “faz-tudo” no terminal de barcaças. O esforço físico considerável de sua
função atual e o tempo de descanso necessário para se recompor são, segundo ele, os fatores
que o levaram a se afastar do dia a dia do movimento cultural e das rodas de capoeira. Apesar
disso, Fabinho sempre está presente na percussão do espetáculos criados pelo movimento.
O movimento conta ainda com o engajamento de Erika, oceanógrafa e educadora
brasiliense que aproximou-se do grupo quando trabalhava no setor de educação ambiental da
ONG Instituto Baleia Jubarte. Desiludida com os métodos de ensino tradicionais empregados
pelo Instituto e pela concepção a seu ver conservadora do que seja “educação ambiental”,
Erika abandonou seu posto na ONG com o desejo de fazer um trabalho com a “comunidade”.
Desde então, colabora com o movimento oferecendo oficinas de papel reciclado,
permacultura, construção alternativa, reciclagem de alimentos e danças circulares sagradas.
Acima de tudo, sua participação se faz através do estímulo constante aos integrantes do grupo
no sentido de desenvolverem seus talentos artísticos pelo meio de intercâmbios e oficinas com
76
grupos de outras cidades do Brasil e, mais recentemente, através do seu diálogo com as
mulheres do movimento, instigando-as a tomarem uma postura mais ativa na definição das
atividades. No início, sua participação não se fez sem tensões, na medida em que havia uma
desconfiança velada de que um dia o movimento pudesse “ser tomado” por pessoas “de fora”.
Essa postura mudou ao longo dos anos e se solidificou à medida que Erika angariou a
confiança do grupo e intensificou sua partipação em oficinas e eventos do movimento. Há
alguns anos esses laços se estreitaram ainda mais, depois que Erika se separou de um
oceanólogo de São Paulo e casou com Berg, integrante do movimento cultural e enteado de
Preto, irmão de Dó e Jaco, que é artista e escultor admirado por todos e participa
pontualmente do movimento. Nos últimos anos Erika despontou como importante
articuladora política do movimento de resistência que nasceu na cidade contra a instalação de
fazendas de camarão. Mudou-se para Salvador onde trabalhou na parte de Educação
Ambiental do então recém-eleito governo Jacques Wagner e, com a saída dos seus aliados do
governo, assumiu a secretaria da Rede MangueMar, articulação de movimentos,
pesquisadores e associações de pescadores que nasceu do processo de resistência à entrada da
carcinicultura em Caravelas e no Ceará. Erika está de volta à Caravelas, onde coordena a
educação ambiental do Parque Nacional Marinho de Abrolhos. Acaba de dar a luz a seu
primeiro filho, Iriê Gustavo, fruto de sua união com Berg e o movimento cultural.
Buscando aprofundar a compreensão do processo de singularização do movimento, é
preciso, ainda, ressaltar os encontros, concretos ou virtuais, de determinadas formas de
produção de subjetividade
41
com o movimento cultural, que se deram através da presença de
artistas e andarilhos, provenientes de várias partes do país e do mundo. Esses encontros
transmitiram novos saberes e técnicas, incorporados pelos jovens do movimento cultural, a
seu modo, à sua produção artística. Embora não pretenda deter-me nesse ponto
42
, há que se
fazer referência a essas forças que afetaram o grupo das formas mais diferentes.
41
Formas de subjetividade e não indivíduos, porque trata-se de marcar aqui a impossibilidade de totalizar ou
confundir as subjetividades com que entraram em contato os membros do movimento com os indivíduos
concretos que por passaram. Como afirma Guattari (1986, p.31): “uma coisa é a individuação do corpo. Outra
é a multiplicidade de agenciamentos de subjetivação”.
42
Para uma abordagem mais detalhada, ver Mello, 2002, p. 75-81.
77
Artista plástico, artesão, artista popular e folião
Os membros do grupo tiveram contato com uma produção artística oriunda de muitos
lugares, que traduzem diferentes formas de relação com a arte, incorporadas em quatro tipos:
o artista plástico, o artesão, o artista popular e o folião. Essas formas podem ser entendidas
como modos de expressão artística que foram apropriados pelos membros do movimento,
com maior ou menor intensidade. Mais do que a contribuição individual de cada uma desses
matrizes para o trabalho artístico do grupo, o que interessa aqui são os micro-relacionamentos,
as múltiplas relações difusas e infinetesimais que esses encontros produziram entre e nos
indivíduos (Vargas, 2000p.195).
Em primeiro lugar, há o “artista plástico”, que, em geral, tem uma visão elitista do que
seja arte. Eles citam Frans Krajcberg como exemplo de artista plástico que “não considera o
artista popular como artista”, baseados numa declaração que ele teria dado de que “não há
artistas na Bahia”. Jaco e Dó acreditam que muito do seu sucesso deve-se a um certo
“marketing” que os artistas populares não possuem. Embora tenham em comum com ele o
fato de utilizarem a mesma matéria-prima, a “madeira morta”, os artistas do Arte Manha
criticam-no por não reverter seu trabalho de denúncia em um trabalho “de conscientização da
comunidade”
43
Assim, embora a técnica de reaproveitamento de madeira desenvolvida pelo grupo
possa ser remetida ao trabalho de Franz Krajberg, os jovens do movimento tendem a
estabelecer um contraste entre seus trabalhos e os do escultor. Isso tanto porque enxergam
pouca coisa em comum nesses trabalhos (apenas a matéria-prima, em última instância)
44
,
quanto por desejarem se distanciar do ideal do “artista plástico”, ou seja, da arte como
empreendimento individual, que implicaria um distanciamento do mundo e do público, coisa
que rejeitam e que vai de encontro ao agenciamento coletivo produzido pelas práticas
artísticas do grupo.
Há, por outro lado, artistas plásticos que desenvolveram um trabalho atento à
coletividade. É o caso do arquiteto baiano Zanine Caldas, nascido na cidade de Belmonte.
Autodidata, Zanine foi objeto de polêmicas, por construir casas sem ter um diploma. Ele é o
43
Diz Dó: “O Krajcberg quer promover a arte dele, então pega carona nisso tudo. Uma oportunidade onde está
acontecendo muita devastação, madeira morta, então o que ele fala? ‘Eu utilizo essa madeira que foi queimada
para denunciar a agressão ao meio ambiente’. Mas ele poderia arrumar outros meios de denunciar. Aquilo ali é
muito fácil de dar impacto.
44
Assinalemos, de passagem, que nas esculturas de Krajberg a morte está presente o tempo todo, uma vez que
madeira morta das queimadas é propositalmente deixada pelo escultor nesse estado. Todo o esforço artístico dos
escultores do movimento cultural, ao contrário, se no sentido de aplacar a morte contida na madeira: apagam,
com o uso da motosserra, todos os vestígios de sua presença, retiram as partes apodrecidas e dão uma nova vida
a uma matéria antes morta, “ressuscitando a madeira”.
78
criador dos famosos móveis Z nos anos 50, (as “namoradeiras de Zanine”) e de dezenas de
casas feitas em madeira, em que se misturam elementos de uma arquitetura moderna com
detalhes coloniais, como portas, janelas e gradis. Seu trabalho buscava sempre adaptar a
construção ao local, para integrá-la à natureza. Assim, uma sala pode conter uma rocha
imensa ou uma árvore centenária que faziam parte da topografia local. Sua preocupação social
se traduzia em projetos de autoconstrução, nos quais aplicava sua capacidade de trabalhar a
madeira em projetos de construções de baixo custo
45
. Mesmo sem nunca terem tido contato
direto com Zanine, o movimento Arte Manha se apropriou da sua concepção de aproveitar a
madeira de forma “consciente”, a partir de um trabalho preocupado com a preservação do
meio ambiente e com a transmissão do conhecimento.
Uma outra forma de relação com a arte é a do “artesão”. Segundo Dó, o trabalho do
artesão nasce a partir de uma necessidade do seu cotidiano:
“O artesão não começa a fazer cesto ou esteira para vender, mas porque precisa para
colocar o seu feijão ou para dormir. É a mesma coisa que o índio. O artesão está
sempre buscando a produção para sua subsistência. É artesão por circunstância:
quando alguém tem interesse, é comercializado. Esse ofício é constituído pelo uso das
mãos e de pequenos instrumentos. Não é um trabalho em série, industrial. É um
trabalho que depende das mãos. Por exemplo, usamos a moto-serra, mas ela é usada
com habilidade pelas nossas mãos, isso é um uso artesanal.”
Um artesão que os influenciou bastante por ter transmitido uma técnica única de uso
da moto-serra para esculpir a madeira foi Paulo de Tarso, um andarilho “meio nômade de
Londrina que saiu por aí viajando numa Kombi com um bando de filhos e que veio até nós
porque se identificou com o nosso trabalho”. Até o encontro com Paulo de Tarso, Dó, Jaco e
Preto só usavam a moto-serra para cortar a madeira em círculos, já que se tratava de uma
ferramenta muito perigosa. Mas o resultado era esteticamente tido como “feio” ou “grosseiro”
já que os móveis pareciam ser “da idade das cavernas”
46
.
Paulo de Tarso simpatizou com o trabalho que faziam com a madeira, produzindo
pinos, cunhas e tarugos com pau-ferro, e teve muita disposição para deixá-los se apropriar de
sua técnica:
45
Em 1983, Zanine fundou o DAM (Fundação Centro de Desenvolvimento das Aplicações das Madeiras do
Brasil), espaço que consolidou seu trabalho de reaproveitamento dos materiais “mais simples e toscos”, dos
quais extraía um resultado integrado à paisagem local. O trabalho que o arquiteto desenvolveu no sul da Bahia
influenciou vários artistas. Dó conheceu o trabalho de um discípulo de Zanine, Varela, numa fazenda em
Mucuri. Varela, que trabalhava com publicidade e artes plásticas, reuniu artesãos e os ensinou a desenhar móveis
“para trabalhar a arte comercial de forma mais decente, trabalhando a conscientização ecológica para dar mais
garantias de que os artesãos poderiam ganhar seu dinheiro sem depender das madeiras de madeireiras”.
46
Diz Jaco: “o móvel era feito em círculo porque a gente comprou a moto-serra para trabalhar, mas não sabia
trabalhar direito em moto-serra e tinha medo. Então a gente tirava tudo em círculo, ia emendando o círculo, aí
fazia a mesa, fazia o banco, parecia muito com aquela coisa dos Flintstones mesmo, né? Aqueles círculos
presos, que não dava para você colocar encaixe. A maioria era no prego mesmo. Ficava muito pesado.”
79
“Até aquela hora, Paulo não tinha encontrado, em suas andanças pelo Brasil, móveis
como os nossos, com a preocupação de resgatar as tradições da marcenaria antiga, que
era na forma de cunha, cravo, cravilha. Isso é travar o móvel sem o prego, só com a
cunha e a cravilha, usando a própria madeira como prego, encaixar tudo. Cravar uma
madeira na outra com pino de pau-ferro, madeira mais dura. E a gente estava
desenvolvendo um trabalho tão parecido a uma distância tão grande... E lá tem uma
figura que está desenvolvendo um trabalho com as mesmas características e você um
dia se encontra. Esse tipo de móvel que fazemos hoje é feito desde os primórdios. O
fato de não envolver muitas ferramentas, nossos antepassados desenvolviam as coisas
encaixando, montando. Então, pegavam a madeira morta. Nas roças, os móveis eram
rústicos, mas não porque queriam, mas dentro das necessidades.”
Uma terceira forma de relação com a arte é o trabalho do “artista popular”. Um dos
maiores colaborados do grupo foi Lapi, cartunista carioca e ativista político, colaborador do
Pasquim, falecido em 2001, que percorreu as diferentes regiões do Brasil desenvolvendo um
trabalho de arte nos muros das cidades, nas favelas e periferias, e oficinas de arte e humor
junto às crianças
47
. Lapi desenvolveu um trabalho muito próximo daquilo que Dó entende
como arte popular em Barra de Caravelas, distrito localizado a 14 quilômetros da sede. Sua
paixão era colorir os muros da cidade com seus desenhos e com as pinturas das crianças que
participavam das suas oficinas. Dó conta que Lapi se considerava “membro fundador” do
Umbandaum, foi ele que desenhou o logotipo do grupo e era freqüentador assíduo do bloco.
Sua influência foi importante em dois sentidos: uma larga experiência como ativista político e
seu apoio irrestrito ao trabalho do movimento
48
.
Por fim, a quarta forma de relação com a arte é o “folião”, responsável por organizar e
promover a realização de “teatro de rua, performance, que envolvem o folclore e a cultura
popular, no contexto da preservação dos grupos étnicos que persistem”. Piaba seria um
exemplo de folião, já que sempre liderou a organização do bloco de índio Tupinambás e o
bloco das Nagôs, influências fundamentais para o trabalho do bloco Umbandaum, como
veremos adiante.
47
Por este trabalho, Lapi ganhou em 1992 o prêmio “One World Art”, oferecido pela UNICEF, BBC de
Londres, TV’s alemãs e Conselho da Europa, por seu trabalho de arte junto às crianças e às classes populares.
48
Afirma Dó: “O Lapi, em 1992, conheceu o nosso trabalho de entalhe. Foi uma das figuras que só vinha para cá
no carnaval por causa do Umbandaum. Lapi passou muita força para o grupo. Dentro dessa discussão política,
quando a pessoa tem mais tempo, passa mais segurança, motiva mais o grupo, dá mais conforto nas palavras para
você resistir e faz com que o grupo mantenha a sua proposta de trabalho. Quando você uma pessoa mais
madura motivando dessa forma, você sente mais vontade de continuar. Usamos na blusa em homenagem a ele,
que faleceu em 2001. Essas figuras passam palavras de conforto. Falam que o trabalho é bacana. Essa busca do
trabalho de resgate de valores culturais, dentro de um trabalho de conscientização ecológica e política, é algo
que poucos grupos fazem. Quando você começa a conhecer pessoas que respeitam tudo isso, que dão força e que
em alguns momentos compartilham com você, essa figura passa a ser importante para que você mantenha seu
trabalho vivo”.
80
Essas quatro formas de relação ou de definição do que seja a arte me parecem boas
portas de entrada para a discussão sobre local versus global em antropologia. Cada um dos
tipos citados – um artista plástico que fugiu da Alemanha nazista e encontrou refúgio e espaço
para sua expressão a poucos quilômetros de Caravelas; um arquiteto auto-didata de origem
italiana nascido na Bahia, que virou sinônimo de bom gosto nos salões da elite Sudeste do
país; um artista itinerante do interior do país que inventou uma técnica especial de uso da
moto-serra e a transmitiu para o grupo; um cartunista que trabalhou no principal jornal de
resistência à ditadura e passou a se dedicar a viajar pelo país ensinando formas novas de
pintura; um morador da cidade ligado ao candomblé que mantém vivas manifestações do
“folclore local” – cada qual com uma origem e trajetória que tornam discutível qualquer
separação entre local e global.
Embora não pretenda desenvolver longamente este debate teórico no presente
trabalho, vale a pena delinear alguns pontos. Velho (1997) destaca que boa parte da literatura
sobre globalização remete a um certo “conservadorismo antropológico” identificado com as
teorias da modernização. Essas teorias, enquanto ideologias de modernidade, tenderiam a um
certo reducionismo metodológico ao restringir o debate à busca da definição do que é
determinante – o local, o global ou uma combinação de ambos, nas palavras do autor, “sem
que se discutam os próprios termos da questão e a natureza imaginária dessas objetificações;
ou seja, sem assumir que estamos diante de realidades inseparáveis da própria ação humana”
(1997, p.44).
49
A noção de local enquanto unidade natural com uma fronteira que os indivíduos
podem cruzar é problematizada por Strathern (1984). Segundo ela, a idéia de “comunidade
local” é um artefato, tal como a idéia de sociedade. A noção de localismo não se refere apenas
ao valor de ser local, mas também ao valor da mobilidade. Isso teria uma conseqüência
importante para a investigação antropológica: “A tentação é de ir em busca de um núcleo
interno e estável de locais reais. Mas a maior parte deles se esvanece quando sob escrutínio. O
núcleo se desintegra, a fronteira parece permeável, a continuidade parece se romper” (1984,
p.48). Assim, ter em vista que o local é sempre “evanescente” (vanishing) e estar ciente da
natureza ideacional de conceitos como estabilidade e mobilidade, mitos de um gênero
49
Segundo Velho (1997, p.57-58), é possível se tratar a globalização “como um jogo de linguagem permitido
por interconexões concretas, como artefato e ao mesmo tempo como um mito com muitas versões. Mas versões
num sentido forte, que acentua a inseparabilidade entre o mito e seus usos. Usos que permitem reinterpretar o
aqui e agora e, neste contexto, poderão até reafirmar identidades e interesses particulares, não autorizando
nenhuma ingenuidade que ignore as realidades de poder envolvidas. Os discursos sobre a globalização serão
outras tantas apropriações e leituras em face do mito, que constituem formas de ação e de objetificação diante
das quais não é possível se omitir. E que não excluem a possibilidade de versões contra-hegemônicas do mito,
quer por seu conteúdo, quer pelo lugar de onde são emitidas”.
81
específico, pode ajudar-nos a fugir das reificações e dicotomias quando falamos de local e
global. Gupta e Ferguson (1992, p.9) lembram em tom de ironia que “as pessoas sempre
foram mais móveis e as identidades menos fixas do que as abordagens estáticas e
tipologizantes da antropologia clássica poderiam sugerir”.
Os dados aqui apresentados revelam que fluxos regionais, nacionais e internacionais
de cultura continuamente passaram pelo movimento cultural e estabeleceram diversas
combinações e sínteses com a “cultura local” (Hannerz, 1987), que no limite não existe, por
ser uma espécie de resultante instável de processos similares. Ao contrário de empobrecê-la
ou descaracterizá-la – como crêem alguns teóricos da globalização – esses fluxos de saberes,
informação e técnica trouxeram novos recursos tecnológicos e simbólicos para os membros
do grupo lidarem com suas próprias idéias e formas de criação.
Os jovens do movimento cultural contaram, por muitos anos, com o estímulo artístico
e a amizade pessoal de um colaborador do principal jornal de resistência à ditadura no Brasil,
o Pasquim. Aprenderam a reaproveitar a madeira morta dos mangues e fazendas de gado com
um artista itinerante do sul do país, que ensinou uma técnica sofisticada de esculpir com o uso
da motosserra. E, ali mesmo, na Avenida, conheceram Piaba, que toca tambor desde jovem
em um terreiro de umbanda e foi - junto com Dona Benedita, mãe de Jaco e Dó, líderes do
movimento - um dos agitadores do Bloco de Índio Tupinambás e do Bloco das Nagôs. Cada
um desses artistas plásticos, artesãos, artistas populares ou foliões, como são classificados
pelo movimento, com suas inusitadas trajetórias, passaram de algum modo pelo movimento,
deixando um rastro. Porém, como veremos a seguir, é importante enfatizar que esse rastro não
é a mera “influência” ou a simples transmissão de um conhecimento “apropriado” pelos
nativos. Não se trata de “influências” que os teriam levado a uma “tomada de consciência”, já
que essa posição supõe uma potência assimiladora vinda de fora e uma ignorância ou
passividade ingênua dos jovens do movimento.
Do ponto de vista da análise, o importante não é tanto o peso ou valor específico de
cada uma dessas dimensões, caminho que poderia nos levar para o perigoso terreno da busca
da autenticidade ou, o que dá no mesmo, do espúrio, com duvidosas questões sobre que
influências teriam sido “mais legítimas” ou “mais fundamentais”, ou, ainda, se é legítimo
sofrer “influências”, já que esse tipo de pensamento parece supor tanto mais “impuro” um
movimento quanto mais “influências” receber. Na verdade, o que interessa aqui é demonstrar
o que foi feito desses fluxos, ou seja, o efeito dessas multiplicidades no processo de
heterogênese do grupo.
82
O movimento de Velho Miguel em busca de uma terra para os seus pôs Helena e seus
irmãos Jorge e Val em movimento. Jorge e Val se perdem um do outro durante a andada rumo
às matas brutas do Prado. O movimento incessante de Alice Brasil afora reconecta Val com a
família. O reencontro de Val com Alice é o que a leva até Jorge e, a partir daí, o que põe Jaco
em movimento. Em Jaco este nomadismo concreto sobre o território se transforma no
nomadismo de um movimento político-cultural autônomo em que Gilca, Dadá, Lília, Anne,
Chico, Erika, Berg, Preto, Fabinho e Rafinha, dentre outros tantos sujeitos, se conectam e
traçam seus movimentos próprios, singulares. Como veremos adiante, as pessoas, eventos e
obras de arte que passaram ou foram produzidos pelo movimento cultural condensam, em
diferentes planos, o modo específico do processo de “se pôr a ser” do grupo. É hora, portanto,
de conhecermos alguns eventos com os quais o movimento se envolveu nos últimos anos.
83
Capítulo 2 – O que deseja um candidato? Ação, sujeito e vontade.
Quando cheguei em Caravelas em agosto de 2004 para o primeiro campo de minha
pesquisa de doutorado, encontrei uma cidade completamente diferente daquela que conhecera
em 2002. Se há momentos da vida social marcados pela efervescência, as eleições municipais
são indubitavelmente um deles. Vários autores já apontaram para esta característica das
eleições, que faz os nativos demarcarem nela um tempo diferente do tempo cotidiano, o
tempo da política
50
. Como veremos adiante, em Caravelas a expressão “ficar políticos”
51
indica tornar-se inimigo, criar discórdia, entrar em disputa. Dona Alice, tia dos fundadores do
movimento cultural, assim disse sobre sua relação com o ex-marido após a separação: “mas
nós não ficamos políticos, não. Pelo contrário, continuamos amigos”. Espera-se numa relação
marido-mulher que se desfaz que os membros do ex-casal “se tornem políticos”, isto é,
inimigos, que briguem e disputem entre si, que criem a discórdia onde antes havia
entendimento. Dona Alice, ao contrário disso, continuou amiga do ex-marido, a ponto de
acolher em sua própria casa a segunda esposa de seu marido com os filhos quando este
faleceu. Diziam para ela: “se no dia do juízo final você ainda tiver algum pecado, ninguém
mais se livra do inferno!” Em Caravelas, o tempo da política, ou simplesmente “a política”, é,
portanto, sinônimo de discórdia, conflito aberto, período em que uma certa imagem de
harmonia social que os caravelenses fazem de si e do meio em que vivem se desfaz por
completo, dando lugar à plena e irrefreável competição pelo voto do cidadão-eleitor.
Não é fácil descrever este processo, que, em muitos sentidos, é sensorial. Sensorial na
acepção de algo que afeta fisicamente os corpos e os sentidos. Durante a política, os corpos
tornam-se imbuídos de uma potência muito maior. A atmosfera da cidade fica agitada, há um
frêmito constante no ar, sempre há muita gente na rua, muitos carros de som para cima e para
baixo; em suma, um clima de euforia toma conta de todos. Até a maneira de andar das
pessoas, especialmente dos cabos eleitorais, é mais altiva. “A cidade fica possuída”, resume
um eleitor. Todos falam com todos, seja para oferecer um “santinho” (pequeno prospecto de
propaganda eleitoral com retrato e número do candidato a cargo público) e tentar conseguir
um voto para seu candidato, seja para provocar os conhecidos que votam no candidato
adversário. A conversa pode assumir um tom amigável ou, ao contrário, partir para o
confronto aberto:
50
Cf. Palmeira e Heredia (1994), Palmeira (2000) e Villela e Marques (2002)
51
As aspas são aqui empregadas em duas situações: termos ou falas nativos ou citações de autores,
acompanhadas das referências. Os itálicos são ênfases da autora.
84
“você mora aí do lado, passa aqui todo dia e não dá nem um bom dia! Agora que quer
o meu voto vem se dirigir a minha pessoa ? Ora, me poupe!”
52
Quem pede o voto não sabe se será bem aceito ou rechaçado. Quem dá o voto muitas
vezes acaba por deixar para se decidir na última hora, tamanho o assédio dos candidatos ao
longo de todo processo e as benesses que podem obter enquanto não se decidem. Há também
muito mais dinheiro circulando na cidade. Numa cidade em que a renda provém
majoritariamente do INSS e da prefeitura, as eleições surgem como um dos raros momentos
propícios para se aumentar a renda, conseguir “um extra”, como se diz.
A campanha eleitoral em si mesma movimenta recursos, é um mercado
periodicamente criado que gera renda e faz circular o fluxo de dinheiro normalmente
estagnado ou inexistente em Caravelas. O movimento é intenso na rua principal da cidade - a
rua 7 de setembro - onde observa-se enormes filas em bancos, farmácias e lotéricas: são
pessoas quitando dívidas ou se endividando com a aquisição de produtos que não fazem parte
da pauta cotidiana de despesas.
O comércio se aquece, os bares estão sempre lotados, há sempre algum político
oferecendo um churrasco em algum canto. Alguns deles abrem contas em determinados bares
e deixam seus eleitores aí beberem “por conta”. As histórias de bebedeiras e confusões
associadas ao excesso de bebida proliferam. O candidato derrotado da coligação PT-PMDB,
Renê Siquara, foi um dos que abriu conta num boteco e, apesar de ter ganho muitos novos
“amigos de bar”, amargou um grande prejuízo, inclusive porque este dom não se reverteu em
votos, ao contrário do que ele imaginava.
Por vezes, as bebedeiras envolvem os próprios candidatos e geram situações
desmoralizantes que fazem-nos perder votos. Foi o caso de Macrô, candidato a vereador pelo
PT, dono de uma modesta pousada no centro da cidade, artista plástico e militante gay.
Marcos é seu nome; a alcunha Macrô deve-se à sua adesão à dieta macrobiótica na década de
70, prática que abandonou há tempos, mas que retoma periodicamente quando deseja “se
purificar”. Extremamente gentil, Macrô é um homem corpulento de aproximadamente 50
anos. Possui um grave problema de vista, é muito querido pelos moradores da cidade e pelos
viajantes com baixo orçamento que se hospedam em sua pousada simples. Foi um dos
fundadores dos fanzines subversivos que, na década de 80, prefiguraram o surgimento do
Movimento Cultural Arte Manha. Dado a polêmicas, Macrô exagerou na bebida após o
comício de Chiquinho, candidato a prefeito que já ocupou o cargo por 3 mandatos seguidos na
52
Como disse Dadá, sogra de Dó, para uma jovem vizinha que tentou em vão conseguir seu voto.
85
cidade. Chiquinho é amado pelo povo, a quem distribuiu benesses e empregos quando
prefeito. Macrô criticou-o em voz alta, no meio da praça mais movimentada da cidade, usando
palavras de baixo calão que atingiam tanto o candidato a prefeito quanto aqueles que o
admiram. No dia seguinte, quando passei para visitá-lo, Macrô estava sofrendo com a
“ressaca moral” devido ao escândalo que fizera. Planejava escrever uma carta pedindo
desculpas pelos exageros, mas afirmava que manteria tudo o que disse, porque “não suporto
mentira e hipocrisia”. A coordenadora da campanha do PT, Lêda Rosana, estava lá dando seu
apoio a Macrô e repreendendo-o por beber daquele jeito. Macrô desandou a falar mal da
bebida que, segundo ele, o transformara em algo que ele não é: “Um outro tomou conta de
mim. Eu não me reconheço nele... A não ser pelas verdades que disse”. A coordenadora da
campanha do PT deixou a pousada de Macrô contabilizando quantos votos a coligação havia
perdido naquela noite.
Além do dinheiro circulando e dos excessos etílicos, proliferam fofocas maliciosas
sobre a vida sexual dos candidatos. Disseminam-se, para quem quiser ouvir, as preferências
sexuais bizarras ou interditas dos candidatos, seus amores proibidos, as crises de ciúmes das
esposas, além da constante boataria sobre casos amorosos que nem começaram e que são
dados como certo, posto que todos observam os primeiros passos e anunciam-nos antes
mesmo que se concretizem – geralmente com grande margem de acerto. Histórias de orgias
sexuais envolvendo políticos se multiplicam, assim como de cirurgias plásticas
transformadoras feitas pelos próprios candidatos, suas esposas e filhas. A atmosfera reinante
alia uma forte tensão a altas doses de humor e jocosidade: ri-se muito o tempo todo de tudo e
todos, apesar (ou talvez por causa) do nervosismo e tensão permanentes.
Em poucas palavras, as eleições assumem um caráter inebriante para quem entra na
disputa e mesmo pra quem tenta se colocar à margem dela. Na verdade, não há como ficar de
fora, não há possibilidade de não participar do processo. A “política” é o tempo em que todos
afetam todos, ou, para dizer de outro modo, em que as relações “irradiam” umas nas outras
53
.
O que aconteceu com Macrô pode ser entendido como um caso extremo - porque
intensificado pela bebida (e não causado por ela) - de um efeito da “irradiação” que percorre
todos os corpos, em maior ou menor medida, durante o processo eleitoral. A descrição deste
efeito é precisa: “Um outro tomou conta de mim. Eu não me reconheço nele... A não ser pelas
verdades que disse”. Há uma força para além do controle do sujeito que o possui e na qual ele
53
Como veremos em detalhes no capítulo 5, diz-se que alguém “irradiou” quando se é parcialmente possuído por
um orixá, caboclo, entidade ou espírito. A irradiação é o fenômeno de propagação de uma energia ou força que
transcende a pessoa, através da pessoa - que é ao mesmo tempo agente desta difusão e paciente da força que a
atravessa.
86
não se reconhece totalmente, ou melhor, na qual ele se reconhece parcialmente - pelas
verdades que disse - e que se recusa a retirar.
As pessoas tornam-se possuídas por uma força que está além delas e, com a
divulgação do resultado e o fim abrupto de um processo tão longo e intenso, a sensação
imediata é de profunda exaustão física e mental. Jaco assim descreve a chamada “ressaca pós
eleitoral”: “parece aqueles carnavais que a gente se acaba todo”.
Pelo menos para quem perde, como foi o caso que estudei/vivi, trata-se de um
desfecho bastante desgastante. Posso dizer que experimentei essas eleições em toda sua
intensidade, uma vez que fui chamada a participar da coordenação da campanha para vereador
de Dó Galdino e, de imediato, posta no coração desta disputa singular. Esclareço que não tive
nenhum papel protagonista nesta história: meu cargo foi acima de tudo “simbólico”; eu não
tinha poder algum sobre as decisões de campanha, os recursos ou agenda do candidato – seja
porque este não obedecia a ninguém, seja porque havia gente mais importante e experiente do
que eu querendo mandar. Mas, de todo modo, por viver com a família de Dó, acompanhei as
eleições a partir deste ângulo específico, aquele do grupo que buscava criar os meios para
elegê-lo.
O que me põe a pensar neste capítulo é uma espécie de enigma nativo que se impôs
durante o processo eleitoral. Um problema que permeou a candidatura de Dó do início ao fim
foi a dúvida que pairava entre todos – veremos a seguir as nuanças desse conjunto - sobre seu
“real desejo” de ganhar as eleições. Não que se acreditasse que vencer as eleições dependesse
tão-somente do desejo do candidato, não se tratava disso, embora muitos afirmem que para
vencer é preciso antes de tudo “querer”. Mas o fato é que, apesar de hoje Dó afirmar
categoricamente que gostaria, sim, de ter vencido aquelas eleições, durante o transcorrer do
processo ninguém conseguia decifrar o que se passava pela mente daquele candidato
inusitado. E isto foi um problema para muitas pessoas que atuaram – com mais ou menos
força - na campanha de Dó.
Dó Galdino foi um candidato inusitado, em primeiro lugar, porque em nenhum
momento ele manifestou qualquer vontade de se candidatar. Embora candidatos que dizem
que não queriam se candidatar e o fizeram por insistência de seu grupo não seja algo
exatamente inédito, nunca esteve nos planos de Dó lançar-se candidato. Se acabou saindo foi
porque seus “companheiros de partidos”, capitaneados pelo seu irmão Jaco, o inscreveram à
sua revelia. Conseguiram que ele “desse seu nome” com a promessa de que se tratava de algo
provisório e que logo que conseguissem um outro candidato, Dó abriria mão da sua
candidatura dando lugar a este outro. Mas acabou não havendo nenhum outro candidato.
87
Assim, num certo sentido, Dó foi pego de surpresa pela própria candidatura. Mas acabou
aceitando o fato consumado e entrou em campanha até com certo entusiasmo. A campanha
era coordenada por Jaco, Roberto Barata e Lêda Rosana, militantes antigos do PT na cidade,
moradores da “Rua” e amigos de longa data do movimento cultural. Os recursos financeiros
eram modestos e se originaram do candidato a prefeito da coligação PT-PMDB e de um
micro-empresário da área de turismo e mergulho em Abrolhos.
Em termos materiais, a campanha de Dó possuía um forte atrativo: um jingle político
bastante melódico composto por Denison, um dos músicos de maior prestígio na cidade; um
carro com um som emprestado que percorria as ruas da cidade tocando a canção, alguns
cartazes móveis de tamanho médio confeccionados pelo próprio Ateliê Astúcia e distribuídos
por pontos estratégicos da cidade (estrategicamente retirados à noite, já que era comum que
amanhecessem destruídos) e os indispensáveis santinhos, que traziam a foto de Dó Galdino e
o seu número 13.000, indicador de sua importância pelo PT na cidade.
A campanha propriamente dita apostava em cinco frentes de ação: a participação nos
comícios da Coligação Vale a Pena Acreditar (PT e PMDB); as visitas a moradores
conhecidos tanto de Dó quanto dos membros da coordenação da campanha, votantes em
potencial; as visitas aos distritos e à zona ribeirinha, áreas onde Dó tinha poucos conhecidos
mas que deveriam ser exploradas devido ao grande número de eleitores; a realização de uma
reunião ampliada – a reunião de motivação – agregando amigos de Dó e participantes e
simpatizantes do Movimento Cultural Arte Manha e, finalmente, a caminhada final no dia da
votação, que reuniria seus amigos e familiares, rumo aos dois colégios onde se concentram as
zonas eleitorais da sede do município. Apostava-se que Dó teria entre 200 e 250 votos,
número que seria suficiente para elegê-lo caso sua coligação fosse bem votada como um todo.
Um dos primeiros eventos da campanha de Dó foi uma festa-reggae no Dandara, galpão
coberto contíguo à casa de sua sogra Dadá, utilizado como sede dos ensaios do grupo e
também alugados para festas. A festa reggae ficou lotada de moradores da Avenida e também
da Rua, eleitores de Dó e também de outros candidatos. Todos dançaram animadamente o
reggae da campanha de Dó. Segundo ele: “isso é o que a arte faz: quando o cara menos
espera, ela já te pegou.” A arte, para Dó, tem a capacidade de transformar a percepção de
forma sutil: é isso o que ele chama de conscientização
54
, efeito provocado quando se é afetado
54
Segundo seus integrantes, as performances do Umbandaum produzem um efeito de conscientização nos
setores mais conservadores e/ou racistas da cidade. Como afirma Dó, o bloco e as performances do grupo são
expedientes que provocam a emoção estética fazendo as pessoas pensarem: “A arte é um caminho para a auto-
afirmação do ser humano, dele mostrar sua capacidade. A arte tem essa possibilidade revolucionária: quem ia
saber que o 13 de maio é a falsa abolição se o movimento não tivesse lançado essa questão? Não é tanto
88
por um evento externo ao agente, que desloca algo dentro dele e, de forma imperceptível, o
faz tornar-se algo diferente do que era antes: ocorre assim uma mutação subjetiva. A
transformação se processa e se torna visível na medida em que o agente se desterritorializa-
reterritorializa suavemente de um modo diferenciado. Esse era um dos raros momentos -
quando observava a adesão de um eleitor potencial – em que Dó se entusiasmava com a
própria campanha.
No entanto, de um modo geral, a atuação de Dó como candidato não se deu
exatamente como planejada e uma série de fatos levaram a coordenação da campanha e
muitos eleitores a crer que Dó simplesmente não desejava vencer: seu gosto por ficar
“entocado” no sítio ou no galpão-sede do movimento cultural acentuou-se durante as eleições.
Retirá-lo de casa era um verdadeiro suplício para a coordenação da campanha, especialmente
quando o que estava em jogo eram as visitas que deveria fazer e que o enchiam de vergonha.
Embora a coordenação da campanha se preocupasse com esses desvios do candidato, Jaco,
seu irmão e principal coordenador de sua campanha confessou-me certa vez:
“eu critico Dó, mas entendo ele não querer pedir voto. Quando saí candidato –[em
1988], no primeiro comício, deu o maior branco quando o microfone tava na minha
mão e eu não falei nada. Pedir voto para si próprio é a mesma coisa que chamar uma
moça pra dançar... Aquele desespero de não saber se ela vai te aceitar ou te rejeitar.”
Quando se conseguia a proeza de arrancar Dó de casa ou do trabalho para a própria
campanha de rua - o chamado “corpo-a-corpo” - não era incomum que ele esquecesse os
santinhos em casa ou os levasse em quantidade insuficiente, o que nos angustiava a todos. A
coordenação da campanha definiu uma agenda de visitas e Dó as fazia sozinho, o que não era
aconselhado pelos seus assessores, que além de tudo não tinham certeza se elas de fato
haviam sido feitas. Andar sozinho e a pé é um indicador de que se tem pouco ou nenhum
apoio. Os candidatos raramente andam sós, mas sempre cercados por assessores e
preferencialmente de carro. Mas Dó insistia em andar sozinho e a pé, aliás, como sempre fez,
o que costumava deixar sua coordenação de campanha enfurecida, especialmente porque
muitas vezes não era possível localizá-lo e a coordenação queria sempre saber onde estava o
candidato.
Por outro lado, da mesma forma como se suspeita de um candidato que anda só, as
pessoas chamavam de “desespero do candidato” aqueles que lançam a campanha de rua com
força total e ficam o tempo todo pedindo votos e promovendo eventos. Para o showmício de
conscientizar, mas principalmente provocar discussão.” Para uma análise detalhada sobre o conceito de
conscientização do movimento cultural, Cf. Mello, 2003, p. 32-33.
89
Chiquinho, muitos jovens de Rancho Alegre pegaram carona no ônibus que o candidato
disponibilizou e foram se divertir em Caravelas. Diz uma antiga eleitora de Chiquinho:
“Trazer povo de ônibus não é garantia de que vão votar nele. O povo se aproveita muito”. O
momento eleitoral é o período em que os eleitores podem obter uma série de ganhos bem
concretos com o seu voto: medicamentos, cimento, tijolos, cesta básica, bebidas, gasolina,
diesel para barco, botijão de gás, passagens de ônibus, dinheiro vivo e, ainda, na melhor das
hipóteses, um emprego na prefeitura. Este é o único momento em que os eleitores recebem
benefícios diretos, palpáveis e específicos por parte dos políticos. Veremos mais adiante
algumas nuanças desta intrincada relação, que Dó definia criticamente como “o vício em
pedir”.
Quando finalmente Dó era “laçado” pela coordenação de sua campanha e “arrastado”
para os distritos e/ou área ribeirinha, mostrava-se inibido e com indisfarçável mal estar ao
entrar em “currais eleitorais” de outros candidatos. “Aquela área ali é de Manoel de Jonga.
Aquele povo ali tá com Belini. Pra quê vou entrar ali se todo mundo já fechou com eles?” E,
com isso, na incursão à área ribeirinha, permanecemos mais tempo dentro do barco do que em
terra, buscando eleitores em potencial. E, quando descíamos para recantos “sem dono”,
muitas vezes nos víamos em uma situação constrangedora de não poder atender aos inúmeros
pedidos que os eleitores faziam durante as visitas.
Por outro lado, havia as condições concretas de subsistência que Dó enfrenta
normalmente e que se agravaram com as eleições: por ser autônomo, um dia de campanha
significa um dia a menos de trabalho. E justamente durante o período eleitoral Dó arranjou
uma empreitada de trabalho – a construção de uma estrutura em madeira para um empresário
local – cujo cronograma coincidia com aquele de sua própria campanha. Dó não hesitou em
sacrificar a própria campanha em prol do trabalho, alegando que não recebia nada para ser
candidato e tinha que alimentar seis bocas em casa, argumento sólido e difícil de ser refutado
pela sua coordenação. A situação foi considerada tão complexa que na reta final da campanha
um os coordenadores – indignado por verificar que o trabalho estava roubando horas
preciosas da campanha de Dó – suplicou que ele o abandonasse. Dó recebeu um ultimato:
“quero que você me responda sinceramente. Dó: você está pronto para ser vereador de
Caravelas?” Dó se limitou a dizer que sim, mas que tinha que trabalhar.
Esta tensão – Dó quer ou não quer ganhar as eleições - marcou todo o processo e ao
meu ver é uma questão que faz pensar. Em muitos momentos, a coordenação da campanha se
viu convencida de que Dó queria ser candidato e não podia, por não ter as condições materiais
para tanto. Como veremos, os caravelenses afirmam que para vencer o candidato tem que dar,
90
“ser mão aberta”, não pode “ficar de murriagem”. E Dó, além de não ter recursos para
distribuir, é contra a idéia do voto como “troca” e a todo tempo criticava o “vício em pedir”
que contaminava os eleitores. Mais tarde, as conversas “de avaliação” da campanha com seus
coordenadores levaram-nos a crer que ele nunca quis ser candidato e muito menos ganhar. As
mulheres da família de Dó, porém, sempre acharam que ele desejava vencer e temiam que
isso acontecesse, posto que a vida deles “se tornaria um inferno de gente batendo aqui na
porta fazendo pedido”.
Por muito tempo aqueles que cercavam Dó colocavam-se questões que giravam em
torno da dúvida quanto ao seu real desejo de vencer e pressupunham a possibilidade de se
encontrar uma explicação que justificasse as ações daquele sujeito: “Será que Dó quer mesmo
vencer?”, indagavam-se. Uma das formas possíveis para se responder a isso seria buscar as
próprias razões do sujeito, suas intenções ao agir. Porém, como vimos, as intenções de Dó são
desencontradas: ele reclamava ter sido feito candidato e ao mesmo tempo afirmava que
desejava ganhar. É possível saber com clareza o que o outro deseja?
Deixemos então o campo nebuloso dos desejos e intenções e partamos para o campo
supostamente mais concreto das ações, que deveriam revelar mais do que as intenções.
Observando as ações do sujeito, acreditamos ter acesso a um espectro mais sólido de
elementos que irão corroborar ou refutar suas intenções. Mas o que acontece com este
raciocínio quando as ações apontam para direções opostas?
Como pensar as diferenças nas ações de Dó independente de toda forma de negação?
Como pensá-las sem que elas sejam classificadas como “contradições”? Em primeiro lugar,
pode-se entender a negativa de Dó em ser o candidato ideal como uma afirmação. Afirmação
de uma recusa ou de um mal-estar em tornar-se representante, isto é, de ter que falar pelos
outros, algo estranho num movimento em que as pessoas só falam por si mesmas. Ao mesmo
tempo, pode ser entendido como uma recusa em sofrer as conseqüências negativas de se
deixar investir pelo poder, que, como as mulheres bem detectaram, redundaria em ter que
conviver cotidianamente com “gente pedindo coisa”.
Segundo uma outra chave de leitura, pode-se dizer que as ações de Dó oscilam porque,
como vimos, ele não é “só ele”, mas uma multiplicidade
55
. Centrar a questão do querer ou não
vencer apenas no indivíduo Dó é impreciso, uma vez que Dó era a parcela terminal, a ponta
do iceberg, o índice visível de uma campanha que envolveu muitos outros quereres que não só
o dele. Dó não representava um grupo, Dó era um grupo (ou uma rede, que incluía sua
55
“O nome próprio é a apreensão instantânea de uma multiplicidade” (Deleuze e Guattari, 1980, p.51)
91
família, a coordenação da campanha, o movimento cultural) com muitas tensões entre si, o
que torna mais inteligível o fato de que suas ações fossem em muitos momentos francamente
discordantes. Dó é um nome que se dá a um agenciamento em que move-se uma
multiplicidade heterogênea, daí a impressão de que ele não pára de mudar, de que suas ações
oscilam. “Há outro sem que haja vários”
56
. Dó não é um (é muitos) mas também não é vários
(no sentido de um aglomerado qualquer). Esse conjunto de forças e quereres que chamamos
Dó comporta em si muitos outros, identificáveis através de suas ações desconexas.
De um ponto de vista molar haveria incoerência nas ações de Dó, mas de um ponto de
vista molecular ou micropolítico, a partir do qual a pessoa ou o indivíduo está em posição
terminal em relação a forças outras que o ultrapassam, essa instabilidade é perfeitamente
inteligível. Dó é um caso privilegiado para estudar os processos moleculares que atravessam a
política justamente por não ser um candidato “eficiente”; suas oscilações e instabilidade por
um lado desconcertam, mas por outro tornam visíveis as tensões que permeiam qualquer ação
em que estejam em jogo agenciamentos coletivos.
Sabemos que em termos estritos, o que alguém realmente sente é inner state
57
, estado
interno, pessoal, intransferível e indetectável, não só pelo antropólogo, mas muito comumente
pela própria pessoa concernida. Por isso somos treinados a prestar mais atenção no que as
pessoas fazem do que naquilo que dizem. Daí fazermos trabalho de campo e não “entrevistas
com lideranças” ou “análise de discurso”. O mundo das intenções e desejos traz a marca da
indeterminação. Não temos acesso a suas intenções, então optamos por prestar atenção a suas
ações. Ações e intenções se chocam e se contradizem o tempo todo. Desejando ou não vencer
(no limite, nunca saberemos isso), o que temos é que de fato Dó participou do processo
eleitoral. No entanto, Dó participou do processo eleitoral assumindo posturas antagônicas
entre si, como vimos e veremos. Então, nem mesmo no mundo da ação encontraremos um
porto seguro. Por algum motivo insondável, esperamos coerência na ação dos sujeitos e,
quando elas são destituídas deste atributo, somos afetados por uma perturbação: queremos
saber qual é a sua verdade, qual a verdadeira intenção, o que está por trás, o que explica a
oscilação ou a indeterminação da ação. Como tratar, numa narrativa etnográfica, de ações que
se chocam e revelam intenções opostas, contraditórias? Descrevendo-as.
...
Antes de adentrarmos na campanha de Dó propriamente, apresentaremos alguns
aspectos das coligações que disputaram as eleições municipais de 2004, de modo a fornecer
56
Deleuze, 1966 [1999], p.32-33.
57
Herzfeld, 1982.
92
uma espécie de “cenário” para o(a) leitor(a). Três coligações lançaram candidatos a prefeito: a
Coligação Por Amor a Caravelas (PL / PTB / PRTB / PDT), a Coligação Caravelas sempre
pra frente (PP/PFL/PRP) e a Coligação Vale a Pena Acreditar (PT/PMDB). No campo,
perguntei para as pessoas da campanha de Dó quais eram os partidos dessas coligações e a
resposta que obtive foi: “são todos partidos de direita”, “são ligados a ACM”.
A diferença entre eles, segundo este ponto de vista, adversário, era assim apresentada:
David da Caixa (candidato a prefeito da “Por Amor a Caravelas”) é “homem da Aracruz”,
“homem de Teixeira de Freitas”, “só veio aqui para roubar a prefeitura”, “não tem nenhuma
relação com Caravelas”, “veio de fora”. E Chiquinho (candidato a prefeito da “Caravelas
sempre pra frente”) é apresentado pelos adversários petistas como um “político antigo”, “um
Odorico Paraguaçu” (político corrupto e ardiloso, personagem da novela O Bem Amado, de
Dias Gomes), um homem que “foi ligado aos militares”, “prefeito biônico”; “permaneceu 16
anos no poder em Caravelas”; “é amado pelo povo”; “pagava água, paga luz, dava emprego
na prefeitura. Mas é rancoroso”.
David, genro do ex-prefeito Jurandyr Boa Morte, fazendeiro de gado que se tornou
milionário com o plantio de eucalipto para as empresas de celulose da região e considerado o
maior “fomento florestal”
58
da Bahia, é ex-funcionário da Caixa Econômica, acusado de
conceder créditos a grandes fazendeiros e de desvio de recursos. Chiquinho é um político
definido como “populista”, transformou a prefeitura “em cabide de emprego” e, em mais de
uma década de poder, não fez saneamento básico na cidade, mas distribuiu muito material de
construção em troca de votos e é por isso até hoje adorado por muitos moradores da sede do
município. Estes são os candidatos David e Chiquinho tal como os conheci, isto é, através dos
olhos dos meus amigos petistas. Diferentes por um lado, mas “farinha do mesmo saco”, pelos
olhos do PT.
Indaguei a algumas pessoas que apoiavam as coligações “de direita” quais seriam os
partidos que as compunham, mas elas simplesmente não sabiam. Certamente não saber é antes
um indicador da irrelevância de um assunto do que de uma suposta ignorância de quem “não
sabe”. Em suma, os partidos das coligações Por Amor a Caravelas e Caravelas sempre pra
frente não interessam às pessoas – nem aos seus defensores, tampouco aos seus detratores - e
por este motivo não faria diferença se eu os omitisse do texto. Ao contrário disso, dentre
aqueles que apoiavam a Coligação Vale a Pena Acreditar, mais especificamente para os
58
“Fomento florestal” é uma forma de arrendamento de terras para o plantio de eucalipto amplamente
empregada na região. As grandes empresas de celulose incorporam pequenos, médios e grandes proprietários de
terra à produção de eucalipto, vendendo-lhes insumos (mudas, agrotóxicos e tecnologia) e comprando sua
produção. (Para uma análise aprofundada sobre o tema, cf. Koopmans, 1994).
93
petistas da coligação, a questão de quais os partidos a compunham era central: em todos os
comícios se enfatizava: “esta é a coligação PT-PMDB”. A ala petista da coligação sublinhava
a todo tempo a importância do partido, mesmo sendo o PT de Caravelas pouquíssimo ativo
em instâncias partidárias ou disputas intra-partidárias regionais.
Em 2004 ser petista pouco tinha a ver com participar organicamente da dinâmica
propriamente partidária; significava, antes, um importante marcador de diferença na cidade,
principalmente para quem era petista “velha guarda”, denominação criada por Lêda para
distinguir, dentre os que se declaravam petistas, aqueles cuja filiação era mais antiga e que se
mantinham integralmente alinhados a um certo conteúdo ético: ser petista delimitava na
cidade um grupo de pessoas com a proposta de “um modo diferente de fazer política”, que
destoava das práticas clientelísticas tão difundidas Brasil adentro. Pela ênfase com que era
projetada, essa diferença era reconhecida por todos, petistas e não-petistas. Os petistas se
apresentavam como contrários à compra de votos. Petistas eram aqueles que normalmente se
opunham aos candidatos que dispunham de muitos recursos financeiros, vistos como
suspeitos. Petistas eram aqueles que tinham forte aversão à Antonio Carlos Magalhães e à
prática da perseguição (que veremos a seguir mais em detalhes)
59
. Petistas eram aqueles que
esperavam do eleitor um voto “consciência”; petistas eram aqueles que criticavam o “vício em
pedir” do eleitor e que sentiam-se particularmente mal com isso, já que tinham pouco para
dar. Petistas eram aqueles que tinham pudores em se lançar candidatos e que dispunham de
poucos recursos para a campanha. Petistas, enfim, eram aqueles que não faziam tudo o que é
necessário para se ganhar as eleições. Eram aqueles que não partiam com “força total” para
vencer, o que levantava a suspeita de que... será que eles realmente desejam ganhar as
eleições?
Do ponto de vista dos petistas “velha guarda”, haveria uma clara divisão “nós x eles”,
sendo nós os guardiões da honestidade, da ética, da democratização da participação política e
da consciência e eles, os partidos e pessoas regidos por “interesses econômicos”, “que se
vendem e se deixam comprar”, que realizam compras ou trocas de voto consideradas espúrias
e desonestas e que utilizam abertamente a máquina de governo a seu favor, bloqueando a
“participação popular”.
O primeiro abalo a esta divisão “nós x eles” foi o apoio do PT a Renê Siquara,
candidato do PMDB, fazendeiro abastado da região. Como afirmou Dó em um comício,
59
Antonio Carlos Magalhães (1927-2007), conhecido como ACM, governou a Bahia durante três mandatos, dois
dos quais durante o regime militar. Passou pela UDN, Arena, PDS e PFL e foi eleito duas vezes senador. Para
uma análise detalhada do modo de fazer política de Antonio Carlos Magalhães, ver Dantas Neto (2004).
94
“apesar de ser rico” - o que o aproximaria dos outros candidatos - Renê estaria comprometido
com um projeto que inclui a participação popular no processo de tomada de decisão política -
postura que o afastaria dos demais candidatos. Além disso, sempre foi considerado um
homem “honesto e honrado”. Nas palavras de Dó:
“Apesar dele ser fazendeiro, ele tá apostando na participação do povo, não achando
que pode resolver tudo, como esses outros que fazem promessas, mas como alguém
capaz de elaborar um projeto de governo junto com o povo e fazer valer todos os
anseios e necessidades da comunidade” (Dó, durante comício em Juerana).
A perspectiva dos petistas “velha guarda” sobre os candidatos às eleições majoritárias
ilustra como é construída esta oposição “nós x eles”. Se Renê, à primeira vista, não se encaixa
no perfil de candidatos apoiáveis pelo PT velha guarda, sua origem de classe – que o
aproxima “deles” - é minimizada ou contrabalançada pela honestidade e pelo desejo declarado
em abrir o mandato à participação popular – elementos que o aproximam do pólo “nós”.
Outra razão acionada para justificar a coligação do PT com o PMDB era o fato de ambos
terem um inimigo comum: o PFL. Nas palavras de Lêda, “o PMDB sempre foi oposição em
Caravelas ao PFL, desde época em que era MDB versus Arena”. O fato de Renê ter sido
sempre completamente alheio à política, ao contrário do que se imaginaria (acusações de
despolitização ou de descomprometimento), terminou em princípio por contar a seu favor: era
visto como alguém não contaminado pelos vícios que a política dissemina entre aqueles que
nela tomam parte
60
.
“E como Renê era uma figura que ninguém conhecia em termos políticos
(risos), todo mundo apostou nele. Aí vem o lance da amizade, desse conhecimento não
político. Itamar e Dó já conheciam Renê. Ele é um cara íntegro, honesto, não ponho
em dúvida isso. Ele se lançou de brincadeira no carnaval, aquela camiseta “sou mais
Renê”, só que isso pegou. Sem querer querendo sabe? Pegou. Não deu certo por esse
medo que ele teve. Porque quando ele se coligou com o PT, cresceu. Ele ficou com
medo de ganhar”.
No entanto, quando a relação de Renê com o PT começou a se tensionar, sua ausência de
conexão pregressa com a política assumiu contornos de falta de seriedade e despolitização:
“Renê não estava acostumado com política, nunca foi político, nunca se envolveu,
morava no Rio de Janeiro. Ele se lançou no carnaval com aquela camisa junto com os
amigos, quando o PT entrou na coligação e a coisa partiu pra seriedade, os amigos se
afastaram”.
60
Para uma análise da política como algo poluído e poluente em outro contexto etnográfico, cf. Goldman, 2006,
p. 292.
95
Sua postura “independente”, vista em princípio como qualidade, logo tornou-se um grave
defeito ao longo da campanha, uma vez que Renê era um candidato extremamente rebelde à
coordenação petista, incapaz de obedecer às diretrizes por ela definidas:
“E teve aquele gênio dele. Ele sempre falava isso, a campanha inteira ‘sou autônomo’.
Ele dizia que nunca marcou ponto, que nunca precisou de chefia, eu discuti com ele
várias vezes. Não prestava conta a ninguém. É ele que manda. Ele não se submeteu à
coordenação - que era do PT basicamente - e o PMDB se omitiu.”
“A gente precisa se reunir para discutir as estratégias da campanha, mas Renê não
gosta de reunião e ele já declarou isso publicamente. Se ele se eleger, o PT vai ter que
romper com ele logo, porque ele não vai bancar um mandato participativo. Parece que
não quer se eleger, não quer saber de discutir estratégias da campanha.”
A coordenação petista, ao mesmo tempo em que criticava Renê por sua indisciplina, ainda o
acusava de não ter um critério claro ou acordado com a coordenação para o uso dos recursos
da campanha, o que estaria causando um desperdício de recursos que poderiam ser usados nas
campanhas dos vereadores:
“A campanha foi toda errada. Ele gastou um dinheiro lerdo. Até a camisa que ele
mandou fazer no final pra ser usada no dia da eleição ele dava pras pessoas erradas...”
Renê se defendia das acusações e dos pedidos insistentes dos potenciais eleitores e
candidatos a vereador de sua coligação, afirmando já ter gasto muitos recursos e estar por
receber pagamentos por cabeças de gado que vendera para entrar em campanha. Segundo ele,
os gastos com o pleito estavam ultrapassando o limite previsto, dois lobistas o haviam
procurado, mas ele preferiu “declinar da ajuda”. Segundo ele, recursos teriam sido
desperdiçados devido a uma estratégia errônea proposta pela coordenação da campanha de
distribuir 20 mil cartas (número equivalente à população total do município) com suas
propostas de governo, um gasto que entendia como “desnecessário”. Além disso, destacava
que os recursos investidos na campanha estavam sendo gastos com camisetas e em material
de campanha para os vereadores.
O verbo votar é raras vezes empregados, o que se ouve a todo tempo é a expressão
“dar o voto”, assim empregado: “vou dar meu voto para fulano”, “a família pode me dar o
voto”, “eu dei meu voto para sicrano”, “ainda não decidi pra quem vou dar o voto”.
A gota d’água que levou muitos petistas a se decepcionarem completamente e/ou a
romperem com Renê foi o chamado “debate sobre educação”, convocado pelos professores da
cidade para que as propostas relativas à área de educação fossem apresentadas pelos três
candidatos a prefeito. As perguntas dos educadores foram previamente encaminhadas aos
candidatos e a coordenação da campanha reuniu-se durante uma tarde para elaborar as
96
respostas que deveriam guiar Renê no debate. Ele havia recebido a tarefa de estudar as
questões para respondê-las de forma que parecesse “espontânea” durante o debate.
Os candidatos Renê e Chiquinho foram recebidos por uma platéia numerosa, porém
incapaz de lotar todos os 200 lugares do Clube dos 40. O apresentador era um professor
aposentado, que assim anunciou o debate: “Espero que nós que apoiamos X, nós que
apoiamos Y, nós que apoiamos Z, possamos juntos comemorar a democracia de Caravelas.
Podemos ou não podemos mudar nossa realidade social?” O público, majoritariamente
formado por profissionais de educação da cidade, respondeu “sim”, sem grande entusiasmo.
Logo de imediato, a primeira frustração: “o candidato David da Caixa enviou um comunicado
dizendo que não iria ao debate devido a compromissos políticos anteriormente assumidos”. O
público ensaiou uma breve vaia, logo interrompida pela chegada dos dois candidatos: Renê,
vestido com uma camiseta onde lia-se “Chicago Major League” e Chiquinho, envergando
blusa estampada de seda e óculos ray ban.
Renê se apresentou como alguém que “deu o nome” (isto é, não se tornou candidato
por vontade própria) e ignorou completamente o material preparado pela sua equipe de
assessores, apostando numa intervenção marcada pela espontaneidade, permeada por
provérbios de mestres de artes marciais
61
e caracterizada pelo desconhecimento total em
relação aos fundos constitucionais da educação. Em sua intervenção, Chiquinho elencou os
destinos que, se eleito, daria ao FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) e revelou que havia convidado Renê
para ser candidato a prefeito junto com ele, numa chapa em que sairia como vice. “Se Renê
tivesse aceitado, estaríamos eleitos”, disse Chiquinho. Ao invés de replicar, aproveitando para
explicitar para o público as diferenças programáticas que incompatibilizariam sua candidatura
numa chapa com Chiquinho - como esperava o PT - Renê ficou visivelmente lisonjeado com
o comentário do adversário e não esboçou reação.
Dó ficou indignado pelo fato de Renê não ter conseguido falar sobre as propostas de
“geração de renda”, “depois de tanta conversa que tivemos sobre isso”. Por outro lado, Jaco
ressaltou que “foi dose ver Chiquinho citar o Arte Manha”. Chiquinho contratara o trabalho
do Ateliê Astúcia para a decoração de um carnaval de sua gestão e utilizou este fato para
“capitalizar” politicamente. Segundo Jaco, “Apoio é uma coisa, outra bem diferente é nos
contratar para fazer a decoração do carnaval da cidade, uma relação puramente comercial.” A
coordenação da campanha de Dó entendeu que Renê perdera a oportunidade de falar sobre o
61
Tais como, “é melhor acender uma vela que amaldiçoar a escuridão” ou “não importa o tamanho da montanha,
ela não pode tapar o sol”.
97
porquê de sua candidatura e da coligação com o PT e o que o diferenciaria da coligação de
Chiquinho: “Deveria ter dito que seu projeto é outro, daí a coligação com o PT e que não
tolera certas práticas comuns na gestão Chiquinho.” Visitamos Macrô para relatar o debate.
Ele, que estava recluso em plena campanha, sofrendo com a “ressaca moral” pelo seu já
citado escândalo envolvendo denúncias sobre Chiquinho feitas sob efeito do álcool,
comentou: “Estou decepcionado com a falta de coragem de Renê. Ah, se fosse eu naquela
mesa, o Chiquinho iria ouvir muito”. Algumas pessoas, após o debate, começaram a levantar
suspeitas de que Renê poderia ter saído candidato com o intuito de rachar os votos de
Chiquinho e abrir espaço para David. Obviamente, teorias conspiratórias como esta jamais
foram comprovadas, mas são interessantes na medida em que revelam que, do ponto de vista
dos caravelenses, a campanha de Renê estava tão fraca que ele estava, intencionalmente ou
não, de fato ajudando a eleger David.
Não por acaso, foi este o momento em que a candidatura de Renê caiu em descrédito
junto à coordenação petista. A insistência de Renê em conduzir a campanha à sua maneira,
sua incapacidade de escutar seus assessores e a defesa obstinada daquilo que denominava
“autonomia” de ação, ressoaram aos ouvidos petistas como sinais de um desejo de
centralização da campanha e prenúncio de sua transformação – de candidato aberto à
participação popular – em prefeito incapaz de escutar nem aos seus próximos, quiçá ao povo.
A sombra do autoritarismo surgiu com força e levou muitos petistas a desacreditarem em
Renê como alternativa crível de transformação do fazer político na cidade. Renê, ao longo da
campanha, parecia deixar o pólo “nós” e caminhar irremediavelmente para o pólo “eles”:
parte dos petistas abandonou a coordenação da sua campanha e alguns dos petistas velha
guarda confessaram em off ter anulado seus votos para prefeito.
“Ele não teve humildade de falar “tenho que trabalhar”, acreditou muito no sobrenome
dele, que “todo mundo conhece Moacir Siquara”, que já foi prefeito, investiu em
educação, ele acha que isso pra ele bastava. Ou ele entrou nessa para na próxima
eleição ser candidato a vereador? Não sei. Só sei que nós entramos de gaiato no navio.
Nunca fizemos coligação e quando fizemos, deu nisso. A gente batia na casa dele às
11h da manhã para fazer campanha e ele estava levantando.”
Os cabos eleitorais mais próximos de Renê ficaram indignados com o rompimento da
coordenação petista e fizeram questão de criticá-la abertamente, generalizando os ataques
para o PT como um todo:
“Desistiram na reta final! Por isso que eu não voto no PT, eles abandonam o barco no
momento mais sério, nunca me filiaria. O que importa é a pessoa de Renê e a pessoa
de Dó, por isso eu apóio eles.”
98
Coincidentemente ou não, Renê começou a falar das eleições empregando o verbo no
pretérito. Jaco compreendeu aí um sinal claro de que Renê havia se dado conta de que não
ganharia mais as eleições e por isso não desejava gastar mais nada. O “calundu” dos seus
cabos eleitorais mais próximos
62
, segundo Jaco, devia-se muito mais a este fato do que a
qualquer problema específico com o PT. Dó, por sua vez, revelou que sabia que Lêda não
agüentaria a coordenação, porque “é muito séria, cumpre horário, não aceita desorganização.
E olha que aqui nem é tão ruim... Se ela visse o que rola por aí...”
Se no pleito majoritário os limites entre o “eixo petista” e os demais era construído em
função de certos marcadores éticos aos quais os candidatos teriam maior ou menor adesão,
nas eleições proporcionais era difícil, quiçá impossível, associar o perfil do candidato a
vereador aos parâmetros éticos construídos pelo eixo “petista velha guarda”. Em relação ao
marcador honestidade, por exemplo, como diferenciar Anerivan, liderança da Pastoral da
Juventude, reconhecido pela sua seriedade e candidato pelo PFL (ou seja, do ponto de vista
petista, pertencente ao pólo “eles”), de Corina, empregada da padaria da Barra considerada
exemplo de força de caráter e candidata pelo PMDB (portanto coligada com o PT e ligada ao
pólo “nós”)? Em que medida o candidato Professor Sandro (do PT) – que alguns afirmam ter
aberto mão da campanha por medo de perseguição e outros, ao contrário, o acusam de ter
feito uma aliança espúria com o candidato Chiquinho - pode ser considerado parâmetro maior
de honestidade do que, por exemplo, sua companheira de profissão, a Professora Rosa (do
PL)?
A lista dos candidatos a vereadores – a carnavalesca da escola de samba, o dono do
açougue, o dono da farmácia, a liderança comunitária, o pastor, o dono de pousada, o
trabalhador rural - é composta por pessoas com que todos convivem cotidianamente e com
quem têm relações de amizade, parentesco ou compadrio. Do ponto de vista de um morador
da cidade - petista ou não petista - não há como encontrar elementos biográficos, de caráter
pessoal ou de concepção política que diferenciem radicalmente os candidatos a vereador entre
si e que ofereçam uma explicação racional sobre sua associação com tal ou qual partido e/ou
coligação. Em cidades pequenas onde todos se conhecem são acima de tudo pessoas se
candidatando, cada uma com sua atuação maior ou menor em defesa do seu bairro, da sua
classe, da sua escola de samba, do seu comércio, da sua igreja, enfim, cada qual com sua base
social distinta e também com sua personalidade, sua história pessoal, seus hábitos, sua
família, suas generosidade para com os amigos, os vizinhos, a comunidade. São estes os
62
Calundu, palavra amplamente empregada em Caravelas em sentenças como “ele está de calundu”, designa um
estado de mau humor, irritabilidade, em geral motivado por algum ressentimento ou rancor.
99
elementos que orientarão o eleitor no momento da definição do seu voto, muito mais do que o
pertencimento a tal ou qual partido e muito menos a tal ou qual programa ou projeto de
governo.
Assim, entende-se porque a maior parte do eleitorado considera o partido como
variável irrelevante para a definição do voto. Essa postura coloca em dúvida o pressuposto de
que existiriam critérios claros e distintos a permear a associação do candidato ao ideário
político de seu partido. Nesse sentido preciso, a máxima popular de que “os políticos são
todos iguais”, ganha inteligibilidade
63
. Para além da percepção bastante difundida de que os
políticos são todos iguais por estarem acima de tudo interessados no ganho pessoal, a
percepção dos caravelenses sobre o pleito proporcional nos permite concluir que, do seu
ponto de vista, os políticos são todos iguais em no mínimo dois sentidos: em primeiro lugar -
evidência quase tautológica - são todos iguais porque são todos políticos, isto é, por terem
optado se lançar no domínio duvidoso da “política”; são semelhantes por fazerem parte do
mesmo estrato que transcende o comum dos mortais; são iguais enquanto série constituída por
um olhar exterior, que delimita este grupo e se coloca fora dele.
Durante o período da política, certa vez tomei um ônibus lotado para ir à praia e, ao
passar em frente ao cemitério, um pescador comentou comigo: “político não é melhor que
ninguém, ninguém é mais que ninguém. No fim das contas, menina, vamos tudo parar aí, ó,
debaixo da terra.” É este segundo sentido em que todos os políticos são iguais, definido a
partir de um olhar interno, que os coloca no mesmo plano de imanência que os não-políticos.
São padeiros, professores, moradores do bairro tal, lavradores, pescadores, comerciantes,
artistas. São iguais no sentido de que estão sujeitos a tudo quanto qualquer pessoas está
sujeita. Se qualquer um pode virar político, os políticos são como qualquer um. São todos
iguais mesmo quando tentam demarcar sua diferença pelo dispositivo partidário; são iguais
apesar dos partidos. E, neste sentido, o que os torna iguais é sua diferença irredutível, sua
singularidade.
Este olhar de dentro ou de fora sobre os políticos funciona numa dupla direção: por
um lado, demarca uma diferença dos políticos em relação aos não-políticos e, por outro lado,
anula esta mesma diferença, quando se postula que, no fundo, eles são todos iguais...a nós
mesmos. A diferença político-partidária não é valorizada e as tentativas de se diferenciar pelo
partido é inócua: partidos e coligações são entendidos tão somente como um meio necessário
para se candidatar.
63
Para uma interessante análise sobre expressões correntes do período eleitoral como “o povo não sabe votar” e
“os políticos são todos iguais”, cf. Magalhães, 1998; Goldman, 2006 e Goldman e Silva, 1998.
100
Os petistas velha guarda, porém, não concordariam com isso, uma vez que se veem
como diferentes dos demais eleitores e entendem seus candidatos como também distintos,
inclusive daqueles com quem se coligam. Uma marca dos petistas velha guarda é a resistência
às barganhas políticas, como é o caso das recorrentes ofertas de secretarias em troca de apoio
eleitoral:
“Chiquinho sempre prometia secretaria de cultura, mas a gente não acredita nesse
povo. Há uma diferença de caráter. Eles só querem se dar bem, ganhar dinheiro. E
hoje eu vejo que o nosso grupo que tá aí hoje, aquela meia-dúzia de sempre, é o que
resiste. Entrou mais gente, que achávamos que iam fazer a diferença, mas não.
Ficamos sozinhos de novo, a velha guarda.
- O que aconteceu com a coligação...
- ...que não deu certo (risos)? A Coligação Não Vale a Pena Acreditar? (risos) O que
aconteceu é que existe um diferencial de pensamento, de tudo.”
O PT de Caravelas – e até certo momento da história recente – o Partido dos
Trabalhadores como um todo se definia como o grupo político que, ao contrário dos demais,
não tolerava a chamada “compra de votos” e propunha mandatos participativos, em que a
“voz popular” seria ouvida e guiaria o mandato dos governantes. Como nunca conseguiu
eleger prefeito ou vereador na cidade e nunca teve maiores inserções no panorama partidário
mais amplo, ser petista em Caravelas é muito mais um modo de demarcar “um diferencial de
pensamento”, como disse a petista “velha guarda”, mais do que qualquer outra coisa. Como
disse um deles, para quem mais tarde digitei a carta de desfiliação do partido, “aquela meia
dúzia de sempre é o que resiste.”
Os comícios
A Coligação Vale a Pena Acreditar não investiu recursos em palanques e dispunha
apenas de uma caminhonete e de um aparelho de som relativamente potente. Os comícios
eram realizados nas praças dos bairros e distritos com os candidatos a vereador e o candidato
a prefeito e não havia palanque, tablado, ou qualquer outro meio de colocar os candidatos um
nível acima dos eleitores
64
. Os comícios se resumiam aos discursos dos candidatos e dos
personagens honorários dos partidos e não dispunham de apresentador ou outros atrativos
como os shows de bandas de “axé music”, então permitidos, que tornavam os comícios das
outras coligações bastante atraentes para os eleitores.
O público dos comícios da coligação Vale a Pena Acreditar era, justamente pela
ausência de atrativos, relativamente pequeno. Afinal, o principal motivo que leva as pessoas a
64
Sobre os efeitos de poder de se colocar “um nível acima” dos eleitores nos comícios, ver Palmeira e Heredia,
1995.
101
suportarem os discursos dos candidatos é saber que no final serão recompensadas com um
show de música. Em algumas localidades, porém, o público não era apenas pequeno; era
praticamente inexistente. Este foi o caso do comício em Juerana, distrito de Caravelas
completamente cercado por eucaliptos onde grande parte da população vive da coleta (legal
ou ilegal) dos refugos do monocultivo e de sua transformação em carvão vegetal. Quase todas
as casas do vilarejo possuem pelo menos um forno. Ao longo da beira da estrada de terra que
liga Caravelas a Juerana, os fornos dos carvoeiros – de diferentes tamanhos, já que homens,
mulheres e crianças exercem o ofício - se multiplicam. Durante a noite, Juerana - que já foi o
maior produtor de mamão e abóbora da Bahia - é tomada pela espessa fumaça de odor
adocicado e nauseante dos fornos de carvão. A chegada dos candidatos da Coligação Vale a
Pena Acreditar esvaziou em poucos minutos a praça principal do distrito. E a explicação que
todos deram para este fato foi uma só: medo de perseguição. Ir a um comício pode significar
simpatia ao grupo político em questão ou, no mínimo, curiosidade com seu discurso. E isso
não é tolerado por aqueles que dominam a economia e a política do vilarejo. Em Caravelas
uma amiga me explica: “Juerana é barra-pesada. Eles têm observadores que anotam quem vai
ao comício de quem.” Os moradores-carvoeiros de Juerana não puderam sair de suas casas. E
a voz dos candidatos ecoou vazia noite adentro, incapaz de romper a espessa fumaça do
eucalipto em brasa.
Johnson, presidente PMDB, iniciou seu discurso afirmando:
“Na boca de urna ninguém pode forçar o eleitor a votar. Nós queremos que o eleitor
tenha sua consciência livre pra votar em quem achar melhor. Porque os homens
poderosos, aqueles que têm recursos suficientes para comprar muitas consciências,
querem o poder a qualquer preço.”
Após apresentar o valor do custo das campanhas dos três candidatos a prefeito
declarados no sítio eletrônico do TRE – a campanha de Renê foi orçada em cem mil reais, a
de Chiquinho em 560 mil reais e a de David em 700 mil reais, Johnson continuou:
“O que queremos com a candidatura de René é que ele seja realmente eleito pra provar
que não são só os poderosos que podem ser prefeitos do nosso município. Não
queremos que eles comprem a consciência dos nossos eleitores. Queremos que os
eleitores tenham a sua própria consciência! Por isso a nossa campanha é feita num
carro assim, é uma campanha modesta. Nossos candidatos a vereador são candidatos
modestos, são pessoas que têm a competência de estar lá na Câmara mesmo, não é
porque tem o dinheiro. É importante a pessoa humilde poder ser candidadato. Basta
que ele seja filiado. Queremos a democracia, a manifestação espontânea das pessoas.”
Geovani, agricultor familiar e candidato local a vereador pelo PT, fez um discurso genérico
homenageando os moradores ilustres do distrito e um morador que havia sido assassinado há
102
pouco tempo, em função de disputas (cada vez mais frequentes) em torno do roubo de carvão
vegetal, que se tornou uma das únicas alternativas de subsistência de uma região confinada
por maciços de eucalipto. No entanto, em nenhum momento isso foi mencionado em sua fala,
que manteve-se o mais contida possível:
“Essa coligação PT-PMDB está vindo pra resgatar os pequenos agricultores. Vai
ajudar muito o povo que aqui vive, que precisa de um suporte maior, um povo
educado, um povo guerreiro, um povo que precisa de uma oportunidade. É preciso que
se faça urgente essa reflexão de por que votar em Renê. Eu escolhi Renê porque vejo
Renê como a pessoa ideal para governar o reino da nossa Caravelas. Gostaria de fazer
uma pequena homenagem a um colega que eu tive a felicidade de conhecer e que
partiu daqui para os patamares da glória...”
Dó foi o único candidato que tocou abertamente no tema tabu da perseguição. Em suas
palavras:
“Convivemos aqui com pessoas coagidas. Um candidato a prefeito que impõe uma
prática equivocada de fazer política, fazendo com que a comunidade se sinta
constrangida. Nós estamos trazendo uma política diferente, de pé no chão. O povo de
Juerana não são pessoas frágeis, são simplesmente pessoas que estão sendo
pressionadas, não estão tendo seu direito de cidadão, de exercer o seu direito
democrático, de exercer a cidadania. A gente não veio pra cá trazendo trios elétricos
ou coisas que precisa de dinheiro. Não precisa. A gente quer mostrar uma prática
diferente de fazer política e assim será nossa administração. Será um lugar
participativo, teremos reuniões com as comunidades, a gente quer valorizar nossa
identidade, trabalhar muito pelo resgate folclórico da nossa região. Não é vir pra cá
com o trio elétrico e dizer que tá fortalecendo a cultura da região. Então, peço uma
reflexão à comunidade de Juerana. Viemos fazer valer de fato nossos direitos, mas
com o voto, dia 3 de outubro. Então peço essa reflexão. Apesar de Renê ser um
fazendeiro, ele tá competindo, apostando na participação do povo, não achando que
ele pode resolver tudo, como esses outros que fazem promessas e não são capazes de
elaborar projetos junto com o povo e fazer valer todas as necessidades da comunidade,
em Juerana, Caravelas e outros distritos.”
O comício em Juerana foi encerrado com o discurso contundente de Aquiles Siquara
65
,
tio de Renê Siquara e presidente honorário do PMDB local. Jovial apesar de então ter 78
anos, Dr. Aquiles, como era conhecido, explicava a quem indagasse que a ausência de palco
ou palanque era uma “tática de guerrilha”, inspirada em Ho Chi Ming: “fazemos comícios
dispersos, espalhados, de surpresa, quando o inimigo menos espera”. Através de uma
manobra retórica, Dr. Aquiles conseguiu transformar defeito - a falta de estrutura da
campanha - em virtude e, por conseguinte, em dividendos políticos: “Nós não temos foguetes,
65
A quem faço uma singela homenagem, in memoriam, reproduzindo a íntegra de seu eloqüente discurso.
103
nós falamos no mesmo nível que vocês”. Eis o eixo central de seu instigante discurso, que
também tematizou a perseguição política:
“A realidade hoje faz com que nós ponhamos os pés no chão. Faz com que nós
sejamos obrigados a dirigir nossas palavras no chão. No mesmo nível em que o povo
se encontra. Faz com que nós saibamos que há um fenômeno que devemos prestar
atenção. O fenômeno da ascensão, da subida das massas, da ascensão do povo. O povo
está cansado de ser platéia, cansado de bater palma para aqueles que trazem promessas
e mais promessas e nada resolvem. As praças ficam cheias, o povo delira, ao som das
músicas das bandas riquíssimas e depois retornam às suas casas, para encontrar seu lar
simples, cheio de sofrimento. Nós precisamos mudar essa realidade, nem que nossa
mensagem atinja um eleitor apenas, nós nos damos por satisfeitos, porque nossa
missão é transmitir uma mensagem sadia, cheia de esperança, mas com muito
conteúdo de realidade. Eu vou contar uma pequena história para o povo de Juerana,
uma história real que se passou no extremo sul da Bahia. Há muitos anos um candidato
chamado Bonifácio Dantas resolveu ser candidato, um paraibano, um homem simples.
Ele ficou conhecido como Chapéu de Couro, porque não tinha nada, só um chapéu de
couro e um jaleco. Era um homem modesto. Quando ele disse que ia ser candidato, as
lideranças econômicas, intelectuais, do município de Itamaraju fizeram deboche,
disseram: “você não tá vendo rapaz, você um analfabeto, não pode ser prefeito?”. Ele
disse: embora eu seja um analfabeto, posso passar uma mensagem que o povo vai
entender. E aí, esse homem simples me procurou e eu lhe disse: ‘Bonifácio, você tá
certo, seja candidato, faça seu discurso em cima de um caixão de querosene, nas
praças vazias, mas vá entregar sua mensagem’. Ele saiu, chegou na praça de Itamaraju
com um caixote, pegou um microfonezinho e começou a falar. E dizia para o povo:
“eu sei que vocês estão me ouvindo. Vocês estão dentro das suas casas, me ouvindo,
me vendo por baixo da janela, vocês estão com medo de sair porque os poderosos
ameaçam vocês, mas eu vou conversar com vocês, vou dizer pra vocês a realidade que
estou vendo. O curral, dizia ele, o curral da fazenda de seu José Almeida está
iluminado. As vacas estão dando cria iluminadas à luz elétrica. E vocês com suas
esposas que parem no escuro. Esse era o discurso dele, ele falava ao povo, o povo foi
compreendendo, o povo saiu das suas casas sem medo no dia das eleições e chegou lá
na urna silenciosamente, sem dar satisfação a ninguém, a nenhum poderoso e
depositaram os votos em favor de Bonifácio Dantas. E aquele Chapéu de Couro,
aquele homem quase analfabeto, tornou-se prefeito de Itamaraju. O Brasil, agora
recentemente, deu a mesma lição. Deu lição ao mundo. Porque foi pegar Lula, que era
um torneiro mecânico, um operário, que tentou várias vezes, que não fala francês, não
fala inglês, não fala italiano, não fala alemão, mas fala a linguagem do povo e resolveu
dar um basta naquelas poderosos intelectuais, aos banqueiros e falou ‘agora nós vamos
colocar um de nós, um operário no poder’ e se elegeu presidente da república, dando
lição ao mundo. É isso o que nós queremos fazer, que as pessoas tenham a sua
oportunidade e não que as escolhas de candidatos a vereadores sejam feitas nos salões
de ar condicionado, no gabinete do prefeito. (...) Por isso meus amigos, eu me dispus a
vir a Juerana, eu me dispus a falar nessa praça que não está vazia, porque está cheia de
esperança de que um dia seremos um povo livre e independente desses rancorosos e
amedrontadores do município. Eu digo viva, viva a independência de Juerana, viva a
sua consciência.”
104
Geovani do PT, único candidato da Coligação Vale a Pena Acreditar do distrito de
Juerana, obteve 2 votos, o dele próprio e de sua esposa, a pior votação da coligação e a
segunda menor votação do pleito municipal (ver anexo A – resultado das eleições municipais
de 2004). Em Juerana, o medo da perseguição venceu as eleições.
Algumas faces da perseguição
A “perseguição” é prática corrente em Caravelas, na Bahia e talvez no Brasil todo.
Trata-se da prática de se retaliar ou impor castigos e tormentos contra pessoas que assumem
uma postura política dissidente da sua própria, quando se ocupa uma posição de poder. A
forma mais comum de dissidência política é o voto em candidatos diferentes daqueles
apoiados pelo grupo dominante, mas também pode assumir outras formas, como a denúncia
de práticas de corrupção por parte do grupo político que administra a cidade. Como veremos
no capítulo 4, este é um assunto tabu – raramente se fala sobre perseguição ou sobre seus
agentes. Diz-se de alguém que “é perseguido”, mas nunca se enuncia abertamente que alguém
é perseguidor. A “política” é o momento em que as adesões e dissidências se tornam
obrigatoriamente visíveis; em que torna-se inescapável assumir um posicionamento público
sobre qual grupo se apóia. É, portanto, o momento em que os moradores da cidade
encontram-se mais vulneráveis, correndo o risco de ficarem “marcados” e de serem
posteriormente perseguidos, caso o grupo que se apóia não vença as eleições. É comum ouvir-
se comentários do tipo “fulano tá sempre bem com todo mundo, tem pavor de se envolver
com tudo que é política”. Trata-se, assim, de uma situação extremamente delicada. A saída
para se proteger da perseguição é “fechar” com o grupo hegemônico. Porém, para isso, é
preciso saber quem será o vencedor. Como no limite isto é impossível, muitas pessoas não
revelam explicitamente seu voto até as vésperas das eleições, quando supõe-se estar
relativamente claro quem irá vencer. Vota-se no suposto vencedor já que teme-se que ele, ao
vencer, descubra quem não votou nele. É estratégico e crucial, portanto, projetar a ideia e
convencer o eleitorado de que seu grupo será vencedor. Este é o primeiro passo para de fato
tornar-se vencedor.
A perseguição não precisa ser praticada para ter seus efeitos amplamente disseminados
e incorporados pelos caravelenses. Vejamos alguns exemplos da etnografia. Muitos amigos e
simpatizantes de Renê possuíam cargos na prefeitura, o que os impedia de participar de sua
campanha e, no limite, até mesmo de votar nele, já que tinham interesses concretos na
perpetuação do grupo que os empregava no poder. Diz uma observadora perspicaz desta
dinâmica:
105
- Os amigos de Renê tinham os seus compromissos. A fulana é diretora na gestão de
David. Ela dizia “voto em Renê mas não posso fazer campanha”. Como não pode? E ela ainda
se filiou ao PT, diz que adora o PT, sempre votou em Lula, mas nunca assumiu.
- Então os amigos de Renê apoiavam ele, mas não puderam assumir porque estavam
enredados com a prefeitura atual ?
- Apoiavam entre aspas. Na hora H, não deram voto. A partir do momento em que
você fala “eu voto em Renê mas faço a campanha do outro, meu filho... é a pior propaganda,
mesmo que no fim das contas você vote em Renê. Se ele é amigo Renê e veste a camisa do
outro, pra mim é a melhor campanha que se faz para o outro. Como entender um amigo que
não apóia? Que amigo é esse que não veste a camisa?
- Foi isso que derrubou Renê?
- Foi. As pessoas viram que os próprios amigos dele não o estavam apoiando... Ele tem
muitos amigos e a família é muito grande...
Nesse sentido, a perseguição funcionou impedindo que Renê obtivesse o apoio
explícito dos seus amigos, que temiam perder seus empregos. Esta mesma lógica operou no
caso do Professor Sandro, candidato a vereador pelo PT que havia denunciado no início da
campanha o desvio de recursos do FUNDEF pela gestão anterior, do sogro do candidato a
prefeito David da Caixa. Para além dos possíveis desvios de recursos o que era visível
naquele ano eleitoral era a malversação dos recursos públicos: contratou-se, para cada sala de
aula, duas ou três professoras. A estratégia da gestão anterior foi contratar muito mais quadros
do que os necessários e transformar o que seriam bonificações para os professores
concursados em salários para novos professores – os chamados “contratados” – no ano
eleitoral. Ao invés de um professor recebendo um salário razoável, a prefeitura contratava três
professores a um salário mínimo cada – e deste modo, conseguia a adesão e o voto de mais
famílias. Diz um morador, casado com uma professora:
“A Bahia foi envolvida pelo coronelismo que ainda se mantém nessa região por conta
desse fraco poder aquisitivo que as pessoas têm aqui: dependem da prefeitura ou de
um empreendimento privado mais forte. Então quem manda são eles mesmos. Se hoje
a prefeitura parar de pagar os funcionários, você vai quebrar o município todo, porque
boa parte das famílias tem como arrimo um emprego na prefeitura, seja com um
salário, seja com dois salários.”
Professor Sandro denunciou corajosamente este e outros “esquemas”. Mas, ao
contrário do que esperava, não contou com o apoio de sua classe: viu-se sozinho e sujeito a
sofrer perseguições no caso da vitória do grupo que denunciara. De modo inesperado,
professor Sandro passou a se fechar em casa e abandonou a própria campanha, deprimido com
a falta de solidariedade em seu próprio grupo. Ao mesmo tempo, surgiram suspeitas de que
ele teria um “acordo secreto” com o candidato Chiquinho para desqualificar a gestão
Jurandyr. Os indicadores de que seria um aliado de Chiquinho e não de Renê, como previa
sua candidatura pela coligação PT-PMDB, eram sua presença nos comícios de Chiquinho e
106
seu adesivo de campanha, que seguia o padrão gráfico dos adesivos dos vereadores do
candidato do PFL.
E quais seriam as perseguições a que ele estaria sujeito? Vejamos algumas a que
tivemos acesso, apesar da grande dificuldade de fazer as pessoas falarem sobre o assunto.
Uma moradora da cidade contou-me que havia sofrido muitas perseguições na gestão atual
por ter votado em Chiquinho no pleito anterior:
“Não me davam nada pra fazer só porque eu apoiara Chiquinho. O que fazia? Levava
crochê para o trabalho. Você acha que a essa altura da minha vida eu iria cruzar os
braços? Me fizeram de recepcionista da prefeitura. Sou agente administrativa, não
recepcionista. Comi o pão que o diabo amassou e ainda resisti a Jurandyr por dois
anos. No final, não agüentei e pedi licença”.
Outra forma de perseguição é negar a determinadas áreas ou pessoas a provisão de
serviços básicos a que têm direito. A casa de Dadá – “matriarca” do movimento cultural Arte
Manha, cujos integrantes nunca apoiaram os prefeitos eleitos –, como muitas outras da
Avenida, está sempre sujeita a alagamentos e entupimentos da fossa, porque nunca teve
construída a conexão com a rede de esgotos da cidade, que termina a exatamente um
quarteirão de distância. Diz ela:
Tem perseguição. Não arranjo pra fulano porque votou pra fulano. Às vezes o
prefeito nem tá sabendo, o perseguidor é que apronta o campo. Da vez mesmo que eu
fiz a fossa aqui, Itamar foi falar com o secretário e ele falou que vai passar a rede de
esgoto aqui e sanar o problema. Há muitos anos que a gente mora aqui, que estamos
esperando por isso. O fiscal veio aqui e queria desmanchar a ligação que a gente fez
com a rua. Ele queria desmanchar, mas não podia desmanchar, eu ia ficar em prejuízo,
gastei três sacos de cimento. Não posso dizer que foi perseguição. Ele tava fazendo o
serviço dele. Primeiro lugar o que tem que fazer é rede de esgoto. Se tivesse a rede de
esgoto estava livre disso. E não vieram mais aqui não. Essa chuvarada que teve agora,
ave maria, a água do esgoto voltou pra dentro do banheiro de novo.
- E tem associação de moradores para ir reivindicar?
- Ah, já fizemos um bocado de abaixo-assinado. Não tem solução. No tempo
de Chiquinho, no tempo de Jurandyr. Nada, nada feito. Quando Chiquinho veio morar
aí perto, pensamos ‘graças a Deus, agora o esgoto vai passar’. Que o quê? Ele fechou
o esgoto dele ali no do hospital. Não passou por aqui.”
Atentando para o discurso de Dadá, ela afirma ao mesmo tempo “tem perseguição” e
“não posso dizer que foi perseguição”, paradoxo que revela o caráter fugidio e intrincado
desta prática. Nem sempre é evidente que esteja havendo perseguição e, além disso, não é
seguro se denunciar que se é vítima de “perseguição”, sob pena de despertar a fúria do
“perseguidor” e tornar-se ainda mais “perseguido”. Um exemplo que ilustra isso é a prática de
pegar carona, comum na cidade. Depois das eleições, todos se lamentavam do “fim da
107
política” e, consequentemente, “o fim das caronas para a Barra”. Na “política” os cabos
eleitorais ou candidatos motorizados jamais negam carona, já que a pessoa a quem se presta
este tipo de favor é um eleitor em potencial. Porém, depois da política, já se tem uma ideia
mais ou menos clara de quem votou em quem. A perseguição começa a ser posta em prática e
o indício mais imediato disso é a dificuldade em se conseguir carona.
Nas eleições de 2004, apesar de David ter sido vitorioso, os resultados foram
questionados na justiça e permaneceram sub judice até o dia da posse, o que teve como efeito
impedir que os caravelenses comemorassem um resultado que poderia ser temporário e assim
revelassem em quem haviam votado. Com ironia, um dono de uma birosca, resumiu a
situação:
“Quem venceu foi o ‘Chiquinho da Caixa número 15’. Ninguém sabe se votou em
David ou em Chiquinho. E um acusa o outro de fazer o que sempre fez (compra de
voto, distribuição de cestas básicas, uso da máquina etc.).”
“Chiquinho da Caixa número 15” é um candidato inventado a partir da fusão do nome
e do número dos três candidatos que concorriam à prefeitura: Chiquinho, David da Caixa e
Renê (número 15). O personagem inventado exprime bem a estratégia dos moradores de
omitirem em quem votaram – dizendo que votaram nos três candidatos - para se evitar a
“perseguição”.
Logo após a divulgação do resultado, uma amiga passou em minha casa e contou que
estava muito preocupada, pois iria começar a “perseguição”. Professora contratada, embora
não tenha feito campanha de forma aberta para Renê, o fato de ter relações de parentesco com
um candidato a vereador da Coligação de Renê, a tornava uma vítima em potencial da
prática
66
. Segundo ela, “apesar de David estar cantando vitória, ainda não tá nada definido
quem será vencedor.” A todo momento ouvia-se fogos de artifício vindo da direção dos
diferentes comitês de campanha (David na Avenida e Chiquinho perto da igrejinha) deixando
as pessoas confusas sobre quem é o vencedor. Ela afirma, “as pessoas não sabem se são
Chiquinho ou David”; em outras palavras, preferem esperar pela definição do vencedor para
declararem seu voto.
Logo após de definida a vitória de David, encontrei uma jovem participante do
Movimento Cultural cuja família sempre apoiou Chiquinho. Ela revelou-me que há pessoas
66
Na semana seguinte às eleições, ela me encontrou e disse: “começou a perseguição, tá todo mundo com
medo”. A prefeitura começara a demitir os funcionários que haviam sido contratados em março-abril daquele
ano. Esta amiga esperava que um parente a mantivesse no emprego, mas disse, com ironia: “tenho muito medo
de sair [ou seja, não tenho medo algum de ser posta na rua]! Não vou morrer de fome.” No dia seguinte, a
prefeitura demitiu todos professores contratados com o Fundef, inclusive ela.
108
na cidade que não falavam mais com ela pelo fato dela ter participado ativamente da
campanha de Chiquinho. Disse ela: “A política passa. Mas tem gente que acha que não”. A
perseguição, portanto, seria a continuidade da disputa que deveria ater-se à “política”, ou ao
“tempo da política”; trata-se de seu prolongamento para um momento posterior onde as
desavenças supostamente deveriam ser esquecidas. Como veremos no próximo capítulo, a
perseguição é entendida localmente como a “política depois da política”.
Outras “estratégias ocultas”
Além da perseguição, existem muitas outras formas “não-ditas” de se conquistar a
adesão dos eleitores. Na verdade, a ameaça de perseguição em si mesma é inócua se o eleitor
em potencial não obtiver indicadores concreto de “quem vai ganhar”. Como foi dito, a forma
mais eficaz de se proteger da perseguição é dar o voto para o grupo vencedor e de preferência
fazer campanha para ele. É por isso que podemos afirmar que em cidades pequenas não há
voto secreto strictu sensu. Todos sabem quem votou em quem. E aqueles que escondem seu
voto são vistos com suspeita por todos os lados da disputa, “se ele não está comigo é porque
está com o outro”
67
.
Mas como saber quem vai vencer antes do pleito de modo seguro? Numa democracia,
supõe-se que nada está decidido antes das eleições; isto é, que tudo pode mudar a qualquer
momento a favor de um ou outro candidato. É evidente que, no limite, não é possível saber o
resultado das eleições com toda a certeza antes do pleito. Mas sabe-se, por exemplo, que as
pesquisas de opinião têm um efeito performativo claro na decisão sobre o voto. Assim, todo o
esforço dos candidatos é mostrar que a eleição já está decidida a seu favor antes do dia
marcado para ela ocorrer.
Se escapar da perseguição pressupõe saber de antemão quem irá ganhar e, ao mesmo
tempo, se tudo só se define após o pleito, como fazer para saber quem “vai levar”? Do ponto
de vista dos caravelenses, há dois indicadores centrais sobre quem sairá vencedor: o primeiro
é “mostrar que veio pra ganhar” e o segundo é “ter para dar”. Em outras palavras, a
performance do candidato – a forma como se apresenta publicamente – e sua capacidade de
distribuir benesses são os melhores indícios para o eleitor médio detectar o vencedor.
Segundo os caravelenses, normalmente vence aquele que “tem mais para dar”, “atende
mais aos pedidos”, “é simpático, despachado”, “veio com força pra levar”. Tudo isso se
traduz na capacidade do candidato de fazer a melhor campanha, isto é, de demonstrar para os
eleitores de forma pública e convincente que ele será o vencedor, apostando no efeito
67
Sobre a impossibilidade da neutralidade durante as eleições, ver Palmeira, 2000 e Villela e Marques 2002.
109
performativo da sua atuação. Para que isso ocorra vale tudo, inclusive divulgar pesquisas
forjadas que o coloquem como vencedor, como fez David, provocando uma reação imediata
de Chiquinho, que colocou um carro de som na rua desmentindo os dados e distribuindo um
cartaz com fotos de David distribuindo cestas básicas. Muitos leram esta atitude como
“desespero do candidato” - isto é, indicador de que ele está perdendo. Pode-se ainda indagar
se essas fotos não acabaram tendo efeito contrário ao pretendido, já que funcionaram como
provas de que David, de fato, “tinha para dar”.
Evidentemente, os candidatos que possuem mais recursos financeiros conseguem
atender mais facilmente aos pré-requisitos de ser generoso e exibir sua opulência material. A
coordenação da campanha de Dó decidiu investir na difusão do jingle do candidato com um
carro de som. Porém, não conseguiu alugar nenhum carro de som da cidade, pois todos já
haviam sido alugados por David da Caixa e tiveram que improvisar um som dentro de um
carro emprestado. Corria a boca pequena que um político aliado de David estaria enchendo o
tanque de gasolina das pessoas em troca da fixação do adesivo de David nos vidros dos carros
e da participação das pessoas nas carreatas, que, de fato, consistiam num impressionante e
interminável desfile de carros. Disseram-me:
“David deve mais de 40 mil reais no posto. O dono não tá aceitando mais gente
recomendada por ele. Parece que ele gasta 2 mil reais por dia com a campanha só em
gasolina”.
A apresentação de sua persona como alguém descontraído e simpático fez de David um
candidato muito comentado – e a cada dia mais querido - por todos. Mesmo quem não votou
nele, como o pessoal do movimento cultural, exibia uma certa admiração :
“Ele cumprimenta todo mundo, bebe a cerveja das pessoas (fulana quase jogou na cara
dele dizendo que não dá esse tipo de intimidade), vai a velório, faz discurso sobre o
morto... ”
“Menina, David soube ganhar, o bicho é bom. Ele soube jogar, fazer política. Ele teve
aqui na minha vizinha, entrou de casa em casa, tomou cafezinho.”
“David paga 65 reais no dia 15 e 65 no dia da eleição para as mulheres que ficam
paradas no sol com as bandeiras. Vôti, vê se eu tenho cara de que vou ficar parada
com as bandeiras nesse sol!”
No comício final, antes do show de luzes, fogos e música, um telão exibiu um vídeo dos
melhores momentos da campanha. E David concluiu sua campanha com as seguintes
palavras, que emocionaram muitos presentes:
110
“Peço que Deus, N.S. Aparecida e Santo Antonio, padroeiro de Caravelas me ajudem
a não decepcionar o povo. Sou um menino vindo de uma família humilde, simples.
Tenho vontade de abraçar cada um de vocês agora”.
Para conseguir ganhar o voto e fazer operar o medo da perseguição, uma estratégia muito
usada foi oferecer - nas vésperas da eleição ao eleitor em potencial - para plastificar o título de
eleitor. No dia do pleito, devolvia-se o título dizendo ao eleitor “nesta seção só tenho você”
para que ele não ousasse votar em outro candidato. Também foi comum a prática de reter o
título até o último momento para que o eleitor não ficasse tentado a votar em um candidato
que lhe fizesse melhor oferta pelo seu voto. Além disso, principalmente nas zonas eleitorais
em distritos da área rural, funcionou muito bem disseminar a ideia de que a máquina de
votação registra o voto e o nome de quem votou, sugestão que encontra certa base empírica,
uma vez que o mesário registra o número do título e libera a máquina para votar, o que torna
muito razoável se imaginar que o voto é registrado de modo associado ao eleitor.
Foi utilizada também a “técnica” de comprar na véspera das eleições toda a gasolina
do posto, impedindo que outros candidatos dispusessem dos seus carros para levar e trazer
eleitores. No porto, os donos de barcos que não votavam em X e Y (candidato da ribeirinha e
grande cabo eleitoral de um candidato para prefeito) foram alertados de que se utilizassem
seus barcos para o transporte de eleitores da área poderiam sofrer represálias. Nas palavras de
um deles:
“Coloquei meu barco à disposição pra Ribeirinha. Mas na última hora vieram me falar
‘é melhor não colocar porque vai arrumar confusão’. Ia dar confusão porque quem não
votasse em X não era pra vir votar. Não era pra ajudar esse pessoal vir pra cidade.
Poderia ter represália, tipo o barco ser danificado. O pessoal da Vila me avisou dias
antes: ‘tá correndo a boca pequena que os barqueiros que não estão com o candidato
da situação não é pra se meter a trazer ninguém’. Não era pra mim pessoalmente, era
um recado geral, pode até ter sido uma farsa, mas efetivamente funcionou. Me senti
intimidado.”
Também foi prática comum a cooptação de líderes comunitários para serem candidatos a
vereador e cabos eleitorais e o uso de recursos oriundos de empresas de eucalipto. Dizia-se
abertamente que as campanhas do grupo de David e, em menor medida, de Chiquinho haviam
recebido recursos provenientes das empresas de eucalipto e celulose que dominam a região, a
saber, a Aracruz e a Veracel:
“Investiu-se muito em cima de lideranças da zona ribeirinha e da zona rural. Soube
que um outro líder comunitário, da cidade, chegou uma certa etapa que ele se recusou
a receber aquele dinheiro todo da Aracruz, que vinha através do David. A Aracruz
desceu fortuna em cinco vereadores. Compraram tudo, sem dó, sem história nenhuma.
111
Isso várias pessoas comentaram comigo. Eu sei que momentos depois da eleição, os
deputados estaduais deram o título de cidadão baiano ao presidente da Aracruz, a
pedido do então deputado estadual Fábio Souto
68
, que é filho do Paulo Souto.”
“O candidato que ganhou em Porto era um político de carreira – vereador em
Salvador, prefeito de umas cidadezinhas pequenas, depois prefeito de Belmonte, que
ele abriu para a Aracruz. E daí ele recebeu grana e pisou em cima de todos com muito,
muito dinheiro. Houve bairros que eles bloquearam as passagens porque não era voto
dele. Bloquearam esquemas de voto dos outros partidos. Não é conquistar o voto, é
pressão mesmo. Aqui teve isso nos lugares mais afastados”.
Um muro, um voto
Interessante observar que para muitos caravelenses, a prática de comprar o voto é
condenada, enquanto a troca do voto por um favor, um emprego ou uma promessa de
emprego não é necessariamente mal vista. Um político da cidade foi muito criticado por ter
iniciado um ciclo de “compra aberta” de votos, injetando na campanha recursos
desproporcionais aos demais candidatos e encerrando, através do uso da moeda viva, um ciclo
de prestações e contra-prestações que esperava-se ser mais longo. O fluxo de dinheiro que
repentinamente tomou a cidade teve dois efeitos paradoxais. Por um lado, criou ou, mais
precisamente, pôs em movimento pessoas, cabos eleitorais, carros, barcos, palanques, bebidas,
comidas, músicas, discursos, ideias, votos. E, por outro, esse mesmo dinheiro funcionou
cortando, interrompendo o fluxo de dons e contra dons que antes, do ponto de vista das
pessoas, se estabelecia entre o político e o eleitor.
Num país em que o voto é obrigatório e, ao mesmo tempo, a punição para quem não
vota é irrisória
69
, há que se fazer as pessoas votarem. Para além das festas e churrascos em
que come-se e bebe-se em excesso, duas práticas comuns nos parecem revelar de forma
precisa o caráter ambivalente do fluxo monetário: o pagamento de contas e o erguimento de
muros, prática que observei junto aos meus vizinhos que, embora moradores da periferia da
cidade – uma transversal da “Avenida” – não são nem se veem como pobres ou carentes.
Alguns de meus vizinhos decidiram parar de pagar as contas de luz dois meses antes
das eleições, de modo que, quando estivesse próximo ao pleito e houvesse o risco da energia
ser cortada, elas fossem quitadas pelos candidatos (a vereador ou a prefeito, de forma
indiferente) que porventura deles se aproximassem. Revelaram-me que as próprias empresas
de luz e de água já estão cientes de que a inadimplência aumenta em ano eleitoral, mas que
68
A bem sucedida campanha de Fábio Souto para deputado federal em 2006 recebeu um total declarado de 320
mil reais de empresas de eucalipto e celulose (Aracruz, Veracel, Bahia Pulp).
69
Irrisória, é claro, para quem não pretende tirar passaporte ou prestar um concurso público, caso da maior parte
das pessoas com quem convivi em Caravelas. Quem não vota e não justifica precisa apenas pagar uma pequena
multa para legalizar a situação.
112
isso não é motivo de preocupação por parte dos empresários, pois trata-se de uma
inadimplência passageira, corrigida às vésperas do pleito. Não é à toa que as lotéricas e
farmácias onde se pagam contas ficam particularmente movimentadas às vésperas da eleição.
Em outras palavras, o eleitor interrompe deliberadamente o fluxo de recursos para as
concessionárias de energia e água – correndo o risco, no limite, de ter seu fornecimento
efetivamente cortado - para que o candidato possa aí injetar seus próprios recursos e assim
restabelecer o fluxo dinheiro -energia elétrica e, em troca, ganhar o voto ou a promessa de
voto, já que é comum as pessoas se aproveitarem do assédio dos candidatos para conseguirem
não um, mas muitos préstimos e favores.
Esta tática revela algo importante sobre a lógica que orienta o voto dos caravelenses. É
comum a ideia de que no Brasil e em outros países do Sul, a pobreza ou a despossessão
levariam as pessoas a não terem outra escolha a não ser adentrar em redes clientelísticas e
votar sem consciência política e, mais do que isso, em desacordo com sua classe social. O
fenômeno do “coronelismo” se valeria das condições de semi-indigência da população, o que
as tornaria desprovidas de discernimento ou consciência no processo de definição do seu
voto
70
. Esta leitura – pretende dar uma explicação sobre a escolha do voto do trabalhador rural
baseada numa falta, no caso, a despossessão econômica e a consequente ausência de
“consciência de classe”. O velho etnocentrismo à espreita: cega às dinâmicas próprias que
orientam a escolha do voto “rural”, esta concepção ainda projeta sobre o camponês a
necessidade de uma adequação às supostas reivindicações de uma classe na qual ele talvez
nem mesmo se reconheça. Apesar de seu etnocentrismo no plano da explicação das razões do
voto, este estudo detecta algo empiricamente consistente: o voto como objeto de troca.
Indagamos: se esta troca não se dá por falta de esclarecimento por parte do eleitor, em que
termos ela efetivamente ocorre?
Vejamos: o eleitor potencial suspende deliberadamente seus préstimos às
concessionárias públicas, criando uma falta onde antes não havia. Este fluxo cortado será
restabelecido com recursos do candidato, ao qual se ficará devendo o voto, que – importante
observar - pode ou não ocorrer. Para que aconteça, talvez o candidato tenha que se “empenhar
mais”, ou seja, tenha de dispor de mais recursos para dar, isto é, trocar pelo voto. A variável
tempo é importante aqui: o período eleitoral é o tempo desta tensão, desta incerteza que é
preciso transformar em certeza, da discórdia que irá se tornar concórdia, é o tempo da
formação de um consenso em torno de um ou mais candidatos. Este jogo entre o eleitor e o
70
A argumentação sobre a correlação entre “pobreza”, “falta de consciência” e voto encontra-se detalhada no
clássico livro de Victor Nunes Leal (1948), Coronelismo, Enxada e Voto.
113
candidato vai se desenrolar durante toda a campanha, até que o eleitor decida para quem ele
ou ela irá “dar o voto”. Isso geralmente se decide na direção daquele que “deu mais” por ele,
isto é, que mais o valorizou ou “prestigiou”
71
. O eleitor tem que ser cortejado e, mais do que
isso, deve se sentir querido pelo candidato, daí a perspicácia da frase proferida por David em
seu último comício: tenho vontade de abraçar cada um de vocês agora. O candidato não
apenas deve expressar que quer vencer, mas que deseja que você dê o seu voto para ele. Por
isso o candidato não pode ter medo de ser rejeitado, como tinha Jaco ao pedir o voto como
quem faz a corte a uma moça. Os eleitores são claros: para vencer, “tem que ir com tudo”,
“tem que ser cara-de-pau”, “tem que mostrar que quer ganhar”. Se considerarmos o poder
como “algo que se exerce antes de se possuir”
72
, a performance se torna um elemento crucial
para a eleição de um candidato.
No entanto, os caravelenses entendem que essa lógica do voto como troca vem sendo
transformada. Segundo eles, o voto vem sendo cada vez mais comprado com dinheiro vivo.
No dia das eleições dizia-se: “estão comprando toda a Avenida”, o que significava que as
pessoas estavam recebendo dinheiro (50 reais) por voto. Dentro dos dois colégios onde se
concentravam as sessões eleitorais da sede do município, eleitores comentavam que a esposa
de um candidato entrava e saía o tempo todo do banheiro junto com um eleitor ou eleitora que
acabara de votar. Alguns presentes supunham que ela estava pagando pelos votos. Como fui
designada para ser fiscal pelo PT, confesso que fiquei muito tentada a fazer valer minhas
prerrogativas e pegá-la em flagrante, mas ao perceber que nenhum outro fiscal – do PT ou
outros partidos - se entusiasmou em me apoiar na empreitada, desisti. Mais tarde entendi que
aí estava em jogo o medo da perseguição: ninguém quis se arriscar a ser perseguido no caso
da eventual vitória de seu candidato.
Se “antes” o voto era objeto do desejo do candidato e o punha numa longa relação de
prestações e contra-prestações com o eleitor, “hoje”, do ponto de vista das pessoas com que
analisei a política caravelenses, os votos estão sendo “comprados”. O ciclo de trocas não é
mais triangular, não haveria mais mediação de uma outra instância; se faz no face a face e
com “tons” de ilegalidade. O que antes era uma troca indireta mais ou menos aberta, hoje
transcorre de maneira velada e abreviada. Alguns moradores leem esta abreviação do fluxo
favor-voto como um indicador positivo do fim de um certo “populismo” e isto é celebrado
como uma benfazeja “austeridade administrativa”:
71
Sobre o “prestígio” dos eleitores durante as eleições, ver Villela e Marques, 2002.
72
Deleuze, 1984, p. 233.
114
“Uma coisa que foi pública numa administração anterior é que não se prometia
emprego, pagava-se pela prestação de serviço. Depois da posse, as pessoas iam lá e
diziam ‘mas eu trabalhei pra ti’. ‘Eu te paguei pra isso, não vem me chorar emprego’.
Isso gerou uma certa quebra na política de favorecimento de emprego, isso foi legal
pro cidadão caravelense”.
Outras pessoas lamentam o que vêem como o fim ou a retração daquele tipo de relação que
beneficiava o eleitor por mais tempo, quando o ciclo da troca não se reduzia ao momento do
voto, mas se desdobrava pelo período da administração adentro e poderia redundar num
emprego, bem muito mais durável do que o dinheiro vivo:
“A política não era assim não. Ninguém comprava ninguém. A prefeitura não ajudava
ninguém. Só ajudava assim: morria um indigente, ia lá e dava só o caixão. Não tinha
isso de tudo o que sentia falta ia na prefeitura. Se ajeitava como pudesse. E político
não comprava ninguém. Lançava ali o candidato, votava e pronto. Ninguém prometia.
Hoje só ganha a política quem tem dinheiro aqui. Bota serviço pra fazer naquela
gestão de política, contrata as pessoas, serviço de balançar bandeira, essas coisas.
Devia dar chance àquela pessoa certa que quer trabalhar. Não comprar as pessoas para
depois que ele ganhar ficar em dificuldade, quer serviço, não tem. É isso o que tá
faltando aqui, uma política mais consciente. As pessoas têm necessidade mesmo. Tem
que trabalhar, tem que dar serviço pras pessoas que precisam, não é comprar voto.
- E como é que faz pra conseguir um emprego na prefeitura?
- A pessoa tem que ficar em cima: eu quero, eu quero! Fica lá lembrando, marca
reunião hoje, depois. O tempo vai passando, eles vão enrolando as pessoas. Quem tem
bons lábios para enganar é político. Eles se baseiam nisso. Mas tem que conhecer
alguém pra ser o intermediário. O pistolão né? Alguém próximo ao prefeito aí fatura o
emprego dele, o pistolão. Mas na prefeitura não dá pra caber esse horror de gente
trabalhando dentro dela. Tem que botar dois, três meses, sai, faz essa experiência se
não quiser perder voto. Rodízio das pessoas que votaram.”
O dinheiro, portanto, dependendo do tipo de fluxo que alimenta, pode contribuir para que ele
cresça, se alongue, crie relações ou para que o processo da troca seja totalmente abreviado ao
mínimo possível. Há, aqui, uma diferença entre o dinheiro usado para comprar voto e o
dinheiro que faz o eleitor dar o seu voto. O primeiro prescinde da relação eleitor-candidato e
de toda a corte necessária para se conquistar o eleitor: o dinheiro que compra voto não é
indicador de prestígio algum, pelo contrário, o eleitor que se deixa comprar é visto pelos que
deram o seu voto para quem os valorizou como “um pobre coitado”, torpe, miserável, incapaz
de explorar as potencialidades do voto como troca e como relação.
A questão é que é impossível diferenciar quem “vendeu” de quem “deu” seu voto. A
observação dos efeitos do fluxo de dinheiro e favores após as eleições revela num plano bem
concreto esta ambigüidade do voto: na Avenida, região da cidade que muitos afirmam ter
havido grande compra de votos, houve uma transformação espacial impressionante durante e
115
após a “política”. Muros foram erguidos, dividindo casas, demarcando quintais, separando o
espaço doméstico da rua. Para alguns, esta seria uma evidência de que os moradores da
Avenida venderam seus votos e, com o dinheiro obtido, compraram materiais de construção.
Outros, para quem não é novidade alguma que os candidatos ofereçam materiais de
construção em troca de votos, acreditam que houve na verdade uma troca: um muro, um voto.
Quem vendeu e quem deu o voto?
A Campanha “Dó 13.000”
Feito este desvio da campanha de Dó rumo à campanha majoritária, talvez o(a)
leitor(a) já tenha uma ideia inicial do “cenário geral” no qual se inseriu a campanha aqui
estudada. Voltemos agora ao objeto inicial deste capítulo, isto é, a campanha de uma pessoa
cujo discurso e ação revelam intenções diversas, indeterminações, tensões e incertezas. Será
que Dó desejava de fato ganhar? Será que sua campanha iria deslanchar? Será que sairia do
sítio para fazer visitas? Será que aqueles que diziam votar nele realmente votariam? Será que
a vida dele seria melhor depois de eleito?
Apesar de contrariado com a candidatura quase compulsória, Dó, aos poucos, foi
“tomando gosto” pela própria campanha e pelo o que ele denominava sem ironia de “período
eleitoreiro”. Um mês antes do pleito, logo após o desfile de 7 de setembro, fizemos uma
panfletagem no centro da cidade. Dó chegou ressabiado, mas logo “pegou gosto” por
cumprimentar as pessoas, conversar, dar santinho e até pedir voto. Pedir votos para si mesmo
era entendido por Dó como algo muito constrangedor. Ele dizia: “pedir votos pros outros é
fácil, sempre fui cabo eleitoral. Vai pedir voto para você mesmo pra ver o que é bom!”
Ao contrário do que Dó imaginava, as pessoas foram muito receptivas à sua
candidatura. Dó se revelou surpreso e contente com algumas pessoas que pegaram os
santinhos e declararam que dariam seu voto a ele. Uma empresária do turismo, por exemplo,
declarou que votaria nele pois estava indignada com o descaso da gestão atual em relação ao
turismo no município. No dia anterior, no comício de David, quando a chamaram para falar
ao microfone apresentando-a como “uma empresária de sucesso de Caravelas”, ela fez uma
crítica aberta à administração de Jurandyr, sogro de David e se declarou “falida”. O microfone
foi imediatamente cortado.
Dó agradeceu o voto e apresentou seu projeto político. Seu discurso centrava-se na
defesa de uma proposta de “desenvolvimento sustentável” para Caravelas, que geraria
emprego generalizado e não apenas nos 4 anos de uma gestão na máquina da prefeitura, como
fazem os outros candidatos. Dó defendia um projeto para a região atento para o potencial do
116
eco-turismo e afirmava que “não faz promessas, mas projetos”. Para a zona rural, Dó
pretendia conseguir um “trator para o coletivo” e formas de escoar a produção ligadas à
“economia solidária”. Conclamava os caravelenses para o que chamava de “responsabilidade
social”, isto é, o compromisso de trabalhar com a comunidade. No seu caso, esta
“responsabilidade social” se traduziria no seu tempo dedicado ao movimento cultural: “50%
do meu tempo é dedicado para o movimento cultural, de forma totalmente voluntária e sem
qualquer apoio da prefeitura”. Para Dó, “sem identidade cultural as pessoas ficam sem
vontade de viver.” “Quem tem comportamento ético ontem e hoje, terá depois das eleições”
“Assumo essa responsabilidade social com o povo de Caravelas”; “Queremos o resgate
cultural da cidade”; “Democracia não se resume só ao voto”.
O discurso de Dó “para o público externo” é claramente marcado por um jargão
utilizado pelas ONGs, como “desenvolvimento sustentável”, “economia solidária”,
“responsabilidade social”, “resgate cultural”, “projeto coletivo”, “geração de renda”.
Caravelas é uma cidade onde a presença de ONGs é forte e estas ocupam assentos em
conselhos municipais como o conselho de meio ambiente e o conselho de patrimônio
histórico, onde o movimento cultural Arte Manha também atua. Muitos empregados em
ONGs frequentam o Espaço Cultural, as aulas de dança no Dandara e os eventos organizados
pelo Arte Manha. Este convívio fez Dó em certa medida apreender este vocabulário. Porém, o
uso que faz destes termos é em muitos sentidos um uso singular que demarca uma diferença
em relação às ONGs.
O termo “responsabilidade social”, por exemplo, tem sua origem no mundo
empresarial e nos investimentos de empresas públicas e privadas em projetos sociais,
culturais, ambientais ou esportivos. A empresa assume para si uma responsabilidade que seria
propriamente uma atribuição do Estado e projeta uma imagem pública social ou
ambientalmente correta, ainda que internamente seus processos produtivos sejam danosos
para o meio ambiente e as relações de trabalho precarizadas. Alguns críticos denominam esta
prática de greenwashing ou de maquiagem verde que serve a objetivos de marketing mais do
que uma efetiva incorporação de transformações no processo produtivo que representem um
maior cuidado com o meio ambiente e a saúde dos trabalhadores, por exemplo.
A impressão que se tem quando Dó emprega o termo “responsabilidade social” é que
este uso se faz fora do lugar, fora do discurso empresarial. Em seu uso, este termo assume o
sentido de que cada um deve ter responsabilidade social, isto é, assumir compromissos – e
dedicar um tempo da sua vida e de seu trabalho – a uma atividade que se diferencia do
trabalho individual cujo valor se reverte para o sustento da sua família. Trata-se da assunção
117
de um compromisso com o grupo, a comunidade, a sociedade, o coletivo mais amplo no qual
ele nasceu e cresceu. Para Dó, todos têm uma responsabilidade, um dever ético para com esta
outra instância que está além do individual e do familiar. Nas reuniões do Arte Manha é
recorrente o lamento de Dó em relação à “falta de responsabilidade social” de alguns
participantes do movimento, que estariam mais interessados no ganho individual do que na
dedicação para a comunidade, na doação do seu tempo e de seus talentos ao grupo. Esta
chamada à “responsabilidade social”, ao compromisso de cada um com o grupo, funciona
como uma espécie de apelo constante ao movimento. Dó sabe que a participação em
processos coletivos não é simples nem muitos menos natural. E também está ciente de que
suas cobranças à “responsabilidade social” só surtem efeito em quem quiser se deixar ser
afetado pelo devir-movimento que dá liga às relações entre os membros e conecta – mas não
submete - o projeto individual ao projeto do grupo.
Nos comícios, os discursos de Dó buscavam, por um lado, uma identificação e
sensibilização do eleitor - “Cresci na Avenida, sou órfão de mãe” - e, por outro, a
apresentação de propostas ousadas, como a do seu compromisso em fazer um “mandato
participativo”. Dó se emocionava e muitas vezes fazia seus ouvintes irem às lágrimas com a
descrição em detalhes das condições sanitárias precárias da Avenida em sua infância, há
trinta, quarenta anos atrás. Os tuberculosos da cidade eram confinados nos becos da Avenida
e Dó perdeu parentes próximos para esta doença que demorou para ser controlada na região.
Em seus discursos, destacava sua atuação na associação de moradores e o fato de não ter
aceito a proposta da prefeitura de colocar um posto policial na Avenida, “onde há muitas
necessidades, mas não de polícia.” E, por vezes, terminava seu discurso afirmando que
“Temos que fazer uma revolução libertária aqui dentro”, inspirado em palavras do insuspeito
Dr. Aquiles, que do alto dos seus 78 anos defendia abertamente a “tática de guerrilha” dos
comícios feitos chão a chão, sem palanque, “no mesmo nível do povo”.
Após o desfile de 7 de setembro, enquanto Dó panfletava e se entusiasmava com a
própria campanha, reuni-me com algumas professoras da cidade em torno de muitas garrafas
de cerveja escondidas debaixo da mesa – que as mulheres chamavam de “esponja” - na “praça
de alimentação”, uma praça coberta no centro da cidade onde há vários quiosques que vendem
cerveja, refrigerantes, sanduíches e salgados. A conversa girava em torno de assuntos
pessoais, maridos, filhos, sogras, universidade, até que, finalmente, após muitas rodadas de
cerveja, a política veio à tona. Nenhuma delas declarou seu voto, o tom geral era de desprezo
e, mais do que isso, repulsão pela política. “Em política são todos o capeta vestidos de anjos”.
“É tudo uma grande hipocrisia”. “Um circo”. “Político é bicho bom pra pegar mentira”.
118
Indaguei como elas viam a candidatura de Dó. As professoras imediatamente abriram
sorrisos e, em uníssono, não apenas disseram que “Dó é diferente”, “Dó não é político
profissional”, como declararam abertamente seu voto a ele. Mais tarde, ao conhecer o temor
reinante da perseguição, desfiz minhas ilusões.
Uma das professoras defendia que “Pra ganhar, tem que acreditar”. Ao longo da
campanha, entendi que esta é uma das máximas mais verdadeiras que há. Considerando a
importância do candidato se mostrar vencedor desde o início (vide supra), se ele não acredita
que tem chances de ganhar, certamente levará as pessoas a perceberem que ele não tem
chances de vencer, o que tornará sua campanha um fiasco. Acreditar supõe, assim, uma boa
dose de ilusão, cegueira e paixão pela política. É claro que simplesmente acreditar que se sairá
vencedor não garante nada. É condição sine qua para se deslanchar a campanha, mas não é
condição suficiente para vencer. Geovani, por exemplo, candidato por Juerana, em visita ao
diretório do PT em Caravelas, contou-nos com vivacidade que tinha muitos votos certos,
motivo de alegria para todos os presentes. Terminou sendo o segundo candidato menos
votado do pleito, com apenas dois votos: o dele mesmo e – provavelmente - o da esposa. Mas
acreditou até o fim.
É claro que acreditar não é algo tão simples para os céticos, como é o caso de Dó.
Porém, como veremos, ceticismo e racionalidade aparecem sempre aliados a boas doses de
ilusão, ousadia e fé e são esses os elementos fundamentais para se pôr em marcha o élan da
política. Um bom exemplo deste misto entre razão e ilusão que permeiam a “política” foi a
estratégia da coordenação da campanha de Dó para convencê-lo, com provas empíricas
consistentes, de que ele teria sim grandes chances de “levar”, isto é, de vencer.
Este trabalho de convencimento do candidato foi objeto de uma reunião de
coordenação que se revelou crucial para a adesão de Dó à própria campanha. A coordenação
criou toda uma atmosfera de mistério, que envolveu o candidato. Em primeiro lugar, a reunião
se deu na sede do diretório municipal do PT, o que atribuiu ao evento uma certa formalidade.
Além disso, a reunião foi realizada nos fundos da casa, na penumbra, “porque as paredes têm
ouvidos e nós não queremos que outros candidatos escutem nossas estratégias”. Um dos
coordenadores – muito mais circunspecto do que o usual – abriu a reunião dirigindo-se
seriamente para Dó:
“Dó, vamos começar esta nossa reunião com uma afirmação e uma pergunta: neste
momentos estamos certos das reais chances de você vencer e se tornar o primeiro
vereador do PT de Caravelas. Por isso, Dó, precisamos saber: você está pronto para ser
vereador de Caravelas?
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Dó não respondeu, deu evasivas dizendo que outros candidatos não possuem tantos
votos quanto anunciam. O coordenador o ignorou e seguiu apresentando o mapa de votos de
cada candidato e mostrou, contando com reduções, quantos votos o PT teria: 1440. “Este
número representa duas vagas na Câmara e uma delas será de Dó. Só tem um problema: Dó,
você tem que parar de trabalhar”. Dó disse que não poderia deixar o trabalho, que assumiu
uma responsabilidade com o empregador. Foi então que Dó recebeu o ultimato de que teria
até o sábado seguinte para parar de trabalhar e poder enfim se dedicar integralmente à própria
campanha: “Se vira, arranja alguém para te substituir, mas temos que ter certeza que você
estará disponível o tempo todo na reta final da campanha”.
Depois disso, fizemos a lista de tarefas a serem realizadas imediatamente. Fiquei
responsável, junto com Jaco e Simone, pela feitura do mapa detalhado de eleitores de Dó, no
qual ele deveria se basear para fazer as chamadas “visitas”, circuito de incursões às casas das
pessoas conhecidas – amigos, vizinhos e parentes - para conversar e pedir voto. As visitas
eram particularmente constrangedoras para Dó, que parecia se intimidar mais “entre os seus”
do que, por exemplo, num comício ou panfletagem afastado do seu território familiar.
A confecção do mapa dos eleitores potenciais de Dó foi feita por Simone, sua esposa,
Jaco e eu, reunidos em torno de um prato de conservas de legumes. Eles começaram, então, a
citar os nomes dos que foram designados de “eleitores consolidados” e “eleitores a
consolidar” e estes nomes foram anotados numa planilha de Excel para facilitar os cálculos.
Os votos “consolidados” eram da própria família de Dó e de Simone, do Movimento Cultural,
de amigos de infância de Ponta de Areia, de familiares de membros do movimento cultural e
de vizinhos e amigos da Avenida. Um dos jovens participantes do movimento afirmava “Dó
vai surpreender porque muita gente conhece o trabalho do movimento cultural e vai votar nele
sem anunciar”.
Em alguns casos, porém, votos que pareciam em princípio serem “consolidados”,
tornavam-se “por consolidar”, por se ter informações das ligações da pessoa com outro
candidato a vereador. Sobre os eleitores mais velhos, comentava-se que “é tudo voto de
cabresto”, em outras palavras, que as lealdades já estavam muito consolidadas, o que tornava
difícil – mas não impossível – reverter os votos a seu favor. Alguns votos de pessoas
próximas, normalmente amigos e vizinhos da Avenida, eram considerados “perdidos” e o
critério para isso era a notícia de que outro candidato teria feito um favor considerado
relevante para aquele eleitor ou possuía laços de parentesco. Alguns comentários sobre votos
“perdidos”: “Quando fulano estava doente, o candidato X o levou para Teixeira”; “quando o
pai de sicrano morreu, o candidato Y pagou o caixão e ainda chorou no velório”; “quando o
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sobrinho de beltrano foi preso, o candidato Z o tirou da cadeia”; “quem tem adesivo de Z na
porta de casa, pode ter certeza que tem parente que já foi tirado da cadeia por ele”.
Além destes, há aqueles que não votam em Dó “por causa da questão afro. Preconceito
mesmo, negro, candomblé”, nos quais se incluem os que se tornaram crentes. Apesar disso e
um tanto ironicamente, um dos cabos eleitorais mais fervorosos da campanha de Dó era a tia
evangélica de Simone que acha que o Umbandaum é “coisa do demônio”.
Dó ouvia em silêncio os comentários que eram tecidos por seu irmão e esposa sobre
seus eleitores em potencial e vez ou outra pontuava algo. Ele tinha certeza de que seus
parentes consangüíneos iriam votar nele, mas revelava ter dúvidas sobre os afins,
principalmente sobre os maridos das irmãs por parte de pai. “Esses aí são incertos, podem
trair”. Além disso, algumas pessoas amigas não votam em Dó porque votam em seus próprios
parentes, isto é, não irão “trair” os seus.
A traição se dá quando não se obtém votos da própria família, de amigos ou de
vizinhos próximos. A conversa se encaminhou para a identificação de “traidores em
potencial”, que muitas vezes coincidem com os “votos não consolidados”, isto é, pessoas que
não votariam naturalmente em Dó e das quais é preciso se aproximar, visitar, pedir o voto. No
dia seguinte, fui com Jaco almoçar na casa de seu Jorge, seu pai, uma moqueca de arraia
preparada pela madrasta D. Joana. Um dos cunhados de Dó comentou durante o almoço que
ele precisa estar atento já que “tem muita traição por aí”, sem suspeitar de que já havia sido
identificado como alguém com forte potencial para “traição”.
No final da formulação do mapa de eleitores de Dó, chegamos ao número de 329 votos
consolidados, 286 votos a consolidar, num total de 615 votos. Seguindo um cálculo de que
talvez só se conseguisse 30% dos votos “a consolidar”, isto é, 86 votos, chegamos a uma
previsão de que a votação de Dó seria de algo em torno de 415 votos.
No almoço, Seu Jorge nos lembrou de que “tem candidato que não é pra ganhar, mas
pra somar”, isto é, para capitalizar votos que irão eleger outro candidato. Ele temia que Dó
fosse um candidato deste segundo tipo e se tornasse o que no jargão político se denomina
“mula”, isto é, aquele que ajuda, com os votos obtidos para si, a eleger outro candidato da
coligação. Neste caso, Dó disputaria a cabeça de chapa com Dr. Geraldo (PMDB), o que o
preocupava. As suspeitas de que Dó poderia ser mula aumentavam durante os comícios da
coligação, quando Dr. Geraldo tecia elogios a Dó, coisa que candidatos rivais não fazem. O
resultado das eleições deu, de fato, vantagem a Dr. Geraldo, que obteve 291 votos, 53 votos a
121
mais que Dó. Em outras palavras, se a Coligação tivesse conseguido uma vaga na Câmara, ela
iria para Dr. Geraldo e Dó seria mula
73
.
Um homem, um vício
No dia de percorrer a área ribeirinha, Dó ficou muito constrangido de descer do barco
em áreas que entendia como pertencentes a outros candidatos; por isso, não o fizemos.
Paramos, porém, num pequeno sítio à beira rio, onde havia uma casa muito simples e um
casal de marisqueiros extremamente pobres. Dó puxou conversa e o dono da casa se disse
evangélico, honrado pela visita, mas que infelizmente já havia prometido dar seu voto a outro
candidato, de sua igreja. Mandou a mulher preparar um café e continuou a conversa com Dó,
explicando que, pela razão exposta, infelizmente não poderia votar nele. Dó não se fez de
rogado e disse que não faz promessas, mas projetos de geração de renda e que, caso eleito, iria
providenciar “um trator para o coletivo” e formas de escoar a produção para quem “labuta nas
terras boas das ilhas”, como são conhecidas as áreas ao longo dos vários braços de rio e dos
extensos manguezais, localizados entre a cidade de Caravelas e a de Nova Viçosa. Além
disso, afirmou Dó, iria investir em ecoturismo para a região num projeto em que os próprios
moradores iriam receber os turistas. O dono da casa afirmou, então, que apesar de notar que
Dó era “sábio leituramente” (isto é, alguém que sabe ler ou que “tem leitura”), de verdade não
poderia votar nele, porque o outro candidato havia pago o caixãozinho de seu filho menor,
que morrera algum tempo antes. Um silêncio se fez então, de piedade e constrangimento. Até
que Dó replicou dizendo que este tipo de favor não é presente, mas obrigação de “quem tem
mais” para com “quem tem menos”. E que ele não deveria dar seu voto em troca de algo que
não era um favor, mas um ato de humanidade que qualquer um no lugar de quem fez, faria. O
dono da casa afirmou então que gostou muito dele e que, embora não pudesse realmente dar o
seu voto para Dó, oferecia-lhe o voto da esposa. Dó reagiu surpreso e agradeceu. Acabamos
de beber o café, trocamos mais um dedo de prosa e partimos, rumo ao barco que nos esperava
na beira do rio, antes que a maré secasse. A esposa, então, me chamou num canto e perguntou
se nós poderíamos dar um botijão de gás para ela, que custava à época, 30 reais. Disse o que
Dó diria: “não posso dar, se Dó for eleito, todos irão ter um botijão de gás. Acreditamos numa
outra forma de fazer política”. E caminhei rumo ao barco pensando: “menos um voto”.
73
Goldman (2006, p.206-211) assinala a instabilidade da posição dos candidatos, uma vez que a eleição depende
não apenas dos votos em um candidato específico, mas no conjunto da chapa/coligação. Assim, há uma disputa
externa por votos e interna, dentro da chapa, por uma posição que o permita ser efetivamente eleito. Afirma
Goldman (2006, p.211): “[...] todo político tende a ser, simultaneamente, candidato, mula e cabo eleitoral, ao
mesmo tempo que dispõe de suas próprias mulas e cabos eleitorais”.
122
Alguns dias depois, fomos fazer uma visita à Dona Tiana, vizinha do antigo sítio da
família Galdino, no final de Ponta de Areia, em frente ao atual Terminal de Barcaças da
Aracruz e onde outrora foi o sítio do pai de Dó, seu Jorge. Era dia de festa de Cosme e
Damião
74
. O pequeno casebre de madeira à beira da estrada – que hoje – cinco anos depois -
não existe mais já que Dona Tiana e sua família venderam aquele pedacinho de terra para a
Aracruz – estava todo iluminado e decorado. Para os festejos de Cosminho, como se diz, as
casas das pessoas tornam-se pequenos terreiros, que podem ser “instalados” na sala principal,
numa casinha dos fundos ou simplesmente num quintal, espaços que são decorados de
maneira especial para a festa. No caso de dona Tiana, o terreirinho era uma sala fechada,
decorada com bandeirinhas de festa junina e balões coloridas. As paredes de alvenaria sem
reboco eram cobertas por telhas de amianto e cortadas por janelas e portas de ripa azul. Havia
um incenso do lado de fora e uma vela à esquerda da entrada. Do lado oposto à porta de
entrada ficava o altar, onde se destacava uma grande imagem do Cristo crucificado no centro.
Ao lado de Cristo, um quadro com uma pintura de São Cosme e Damião. As paredes atrás do
altar estavam decoradas com muitas imagens de santos católicos. Do lado direito do altar, via-
se uma cruz azul com fitas brancas e vermelhas amarradas. Do lado esquerdo do altar, um
grande bolo colorido e garrafas de refrigerantes hipnotizavam as crianças presentes.
Os homens sentavam-se à direita e mulheres à esquerda. As crianças ficavam soltas,
mas dona Tiana pedia o tempo todo que permanecessem sentadas no meio do salão, sobre um
tapete carmim bem antigo. Todas as mulheres presentes vestiam vestidos brancos ou blusas e
saias brancas. Três delas traziam torsos brancos à cabeça. Uma delas, Dona Tiana, trazia uma
grande guia de contas coloridas. Iniciou o rito dirigindo-se às imagens e pedindo “saúde, força
e muita coragem pela frente”. Um homem de branco ajoelhou-se a seu lado e todos os
presentes se ajoelharam também. Em uníssono, todos entoam um longo ofício, mistura de reza
e canto. Na audiência, onde eu estava sentada só tinha eu e mais uma moça e, do lado dos
homens, Dó, sozinho. Durante o ofício, um candidato a vereador apoiado por David, entrou
no salão e sentou-se próximo a Dó. Terminado o ofício todos rezaram três pai-nossos e ave-
marias. Uma voz se ergueu pedindo força, alegria e felicidade e pediu “Tende misericórdia”.
Em seguida, as crianças da casa começaram a brincar com o terço, pular e dançar. Imaginei
que seriam repreendidas, mas, pelo contrário, agora era a hora delas dançarem.
74
No dia 27 de setembro é comemorado nos terreiros de candomblé e nos centros espíritas de Caravelas o dia de
Cosme e Damião, identificados com os erês, os orixás infantis que protegem sobretudo as crianças. Para uma
instigante análise sobre os erês no candomblé, ver Serra, 1979.
123
Então Dona Tiana começou a reclamar do som do atabaque e fez cara feia com som
que ouvia: “temos que arranjar um novo tambor”, disse em voz alta. Uma das senhoras de
branco, então, foi possuída por Cosminho e começou a fazer o zumbido característicos “tsi....
(som de ar saindo da boca com os dentes cerrados). Começou a balbuciar como um bebê e a
se arrastar de joelhos para oferecer balas a mim. Peguei as balas e ofereci as que levara, que
ela pegou, manipulou e me devolveu. Em seguida, caminhou em direção a Dó e jogou muitas
balas em torno de sua cabeça, fez festa, bateu palmas e brincou com ele, como uma criança
feliz na presença de um ente querido. Dó ficou meio sem jeito, mas sorriu e recebeu as
bênçãos de Cosminho de bom grado. Diz-se que os erês possuem muito axé, energia vital que
emana dos orixás; assim, ser tocado por um erê ou receber uma bala ou doce de suas mãos é
como receber uma bênção. Cosminho então andou na direção do outro candidato e, para
surpresa de todos, fingiu que iria oferecer, mas não ofereceu as balas. Gritou “seu gordo!!!”
Todos riram um pouco constrangidos pela pilhéria inesperada da crianças contra um
candidato que apoiava David, ou seja, que tinha grandes chances de ser eleito. “Dó é o
candidato escolhido por dona Tiana”, pensei.
Enquanto esse pensamento cruzava minha mente, ouvi a voz de dona Tiana: “Ô Dó,
você não tem um tambor?” Dó, muito sem jeito, respondeu que só havia um atabaque no
movimento cultural. Ela insistiu: “você não pode dar ele pra nós não?” Dó disse que o
atabaque estava emprestado, única desculpa aceitável para não se emprestar algo a alguém em
Caravelas. Dona Tiana pediu então para Dó fazer um atabaque para ela. Dó disse que iria ver.
Despedimo-nos logo após o bolo. Tivemos que sair antes do final da festa para pegar o último
ônibus para Caravelas. O candidato que apoiava David foi de carro, mas não era possível
pedir carona, concorrentes que eram. Voltamos a pé, contabilizando quantos votos o
adversário iria ganhar naquela casa ao oferecer-lhes um atabaque novo.
No dia seguinte, Dó, Barata, Fábio e eu fomos pedir votos em Juerana, distrito a 40 km
de Caravelas, pela estrada de terra. Foi uma viagem tão desoladora quanto o comício vazio já
descrito. Encontramos o único candidato do PT de lá, trabalhador rural que no momento era
empregado do posto de gasolina, mas ele não foi conosco pedir votos, até porque ele e Dó são
concorrentes. Conversamos com algumas pessoas que estavam sentadas ao pé da porta de
suas casas, mas todos pareciam muito desconfiados. Visitamos um casal que era vizinho de
Seu Jorge e Dona Benedita, quando Dó era criança; o homem era amigo do seu pai na fazenda
de Goiana e a senhora “criou a gente, porque em roça cresce todo mundo junto”. Eles
pareciam muito humildes e a mulher, feliz com a visita, pediu que Dó a ajudasse a consertar o
telhado. Dó ficou constrangido, mas prometeu voltar assim que a política terminasse.
124
Visitamos também a casa da tia da mãe de Galdí - filho mais velho de Dó - cuja sala da casa
estava ainda decorada como um terreirinho para os festejos de Cosme e Damião que haviam
ocorrido nos dias anteriores. A sala estava toda enfeitada por bandeirinhas feitas com sacos de
arroz, de feijão, de pipoca, de café e de açúcar coloridos, num uso criativo desses materiais.
Conhecemos a casa e ela pediu para Dó fazer uma mesa para ela. Saímos constrangidos
também.
Foi neste momento da campanha que Dó começou a se revelar contrariado com o que
ele definiu como o “vício em pedir” que estaria acometendo os eleitores de modo sem
precedentes. Certamente isto era um efeito da posição de candidato que ele ocupava pela
primeira vez e que o tornava depositário de pedidos sem limites. Dó estava impressionado
com os inúmeros pedidos que lhe eram feitos incessantemente e revelava seu espanto e
indignação com a prática: “as pessoas estão viciadas em pedir favores para os candidatos”.
Desabafou com amigos numa conversa ao pé da oficina onde trabalha que estava contrariado
porque sempre fez inúmeros favores para as pessoas e que agora não sentia a menor vontade
de ir pedir o voto:
Dó: - Por exemplo, o fulano, eu fiz o favor de pintar uma parte da casa dele. Mas não quero ir
lá agora pedir o voto.
Paulista (jovem participante do movimento cultural), rindo: - Ah, esse fulano está se fazendo
em cima dos candidatos. Está aproveitando para ajeitar a casa – ele pede de tudo a cada
candidato a vereador: cimento, tijolo, telha, tinta...
Dó - Esse povo tá mesmo viciado em pedir.
Logo em seguida, numa ida ao centro da cidade, eu e Dó encontramos um antigo
participante do movimento cultural, que disse com orgulho: “é com muita satisfação que vou
depositar meu voto para Dó”. E emendou, “o povo de Barcelona [distrito rural de Caravelas]
mudou tudo para Chiquinho. Ele tá trabalhando. Era pra ter sido Renê em Barcelona, mas na
murriagem ele dançou. Quando um candidato se empenha, ele leva.” Dó retrucou que votar
em Chiquinho seria nocivo, porque “ele vicia o povo nesse negócio de pedir”.
A expressão “vício em pedir”, cunhada por Dó, traz a ideia de que pedir é uma
compulsão incontrolável que toma cada votante: um homem, um vício. Por outro lado, Dó
entende que este vício é provocado pelos próprios políticos, que, ao oferecerem bens ou
favores em troca do voto, condicionaram o povo a acreditar que o voto é um objeto de troca e
a praticar esse intercâmbio com naturalidade. O que é chamado de “empenho” ou “trabalho”
do candidato é a sua capacidade de oferecer, dar, doar, pagar, comprar. Os candidatos que não
são generosos – como Renê foi visto por muitos – isto é, que “ficam na murriagem”, perdem
125
votos para aqueles que se empenham, isto é, que oferecem dádivas aos seus potenciais
eleitores. Dó não concorda com este vício e se sente desconfortável em estimulá-lo. Daí
compreende-se a falta de vontade de Dó em fazer visitas, já que elas seriam forma como ele
“fecharia o ciclo”, isto é, cobraria o retorno pelos favores que fez ao longo da vida para
muitos amigos e vizinhos e talvez por isso Dó as tenha evitado o tanto quanto pôde. As visitas
faziam mal a Dó, pois lhes pareciam “murriagem”: como cobrar de volta tudo o que se deu ao
longo do tempo a alguém, na forma de um voto?
A reunião de motivação
Encontrei fortuitamente em cima de uma mesa no espaço cultural a seguinte lista de
tarefas, escrita pela coordenadora da campanha de Dó na semana anterior às eleições:
- Jaco/Cecília: agendar ida ao colégio;
- Falar com Fábio para rodar com o carro de som amanhã de 8h-9h e de 17h-19h.
Nesses horários, Dó estar no carro com o motorista, nos outros, o motorista roda
sozinho.
- Pedir cupom fiscal de tudo
- 25/09: REUNIÃO DE MOTIVAÇÃO:
- Beto falar sobre a real possibilidade da eleição de Dó – de forma didática.
- Discurso de Dó – agradecer e estimular os cabos eleitorais. Trabalhar no
discurso. Histórico do candidato. Responsabilidade social, fontes reais de geração de
renda (sebrae etc), cultura-lazer, educação, saúde, plano diretor – prodetur.
- Exposição de fotos.
- Cabos eleitorais devem sair com “kit cabo eleitoral”
- Comida para 100 pessoas: ver pratos e talheres, copos, arroz, feijão tropeiro
(Fábio comprar), bebidas (açúcar, cerveja, vinho, sucos, polpa)
A “reta final” da campanha é o momento visto como o mais importante de todo o
processo, quando os candidatos devem investir o máximo de si, em termos de empenho
pessoal e recursos, quando se dispõe de algum. Dó não possuía recursos próprios, mas apoio
pontual de Renê para confecção do material de campanha e de Fábio Negrão, um micro-
empresário do turismo que dispunha de experiência pessoal com campanhas políticas no
interior de São Paulo (seu padastro era um político do antigo MDB paulista). A “reta final” é
o momento em que todas as apostas são feitas, em termos de estratégia de campanha. E
também é o momento que surgem os maiores conflitos quanto ao encaminhamento dos
recursos e estratégias definidas. Cada um acredita que detém sozinho a solução mágica para
se vencer as eleições. Segundo Fábio, em Porto Seguro, a candidata à prefeitura pelo PT teria
saído dos últimos lugares para o primeiro em função de um investimento maciço em carros
de som, que, segundo ele, devem “rodar pela cidade o dia todo”. Apostando no poder dos
126
carros de som para conquistar o eleitorado, propôs-se a colocar um carro rodar pelo menos 3
horas por dia pela cidade com o jingle de Dó. Em suas palavras,
“O carro de som faz as pessoas ouvirem e conversarem sobre o candidato – esse cara
já fez isso, fez aquilo, [no caso da candidata em Porto]: é uma advogada, tem
compromisso, é uma pessoal legal”.
75
Além de colocar carros de som na rua, a coordenação de Dó começou a preparar a
“reunião de motivação com os cabos eleitorais”, que aconteceria nos últimos dias da
campanha no Dandara, galpão coberto pertencente à Dadá – sogra de Dó –que os cede
cotidianamente para ensaios do Umbandaum e eventos do movimento cultural. As estratégias
para este dia logo começaram a ser debatidas pela coordenação. A reunião de motivação seria
onde culminaria a “reta final” da campanha e o momento de distribuição dos “kits cabo-
eleitoral”, contendo uma camiseta de Dó e santinhos para a campanha de boca-de-urna.
Em primeiro lugar, discutiu-se qual deveria ser o “tom” do discurso de Dó. Ele mesmo
defendia que deveria fazer não um discurso, mas um “bate-papo descontraído”. A
coordenação, por sua vez, enfatizava a importância de se fazer um belo discurso para motivar
os cabos eleitorais em final de campanha, contando toda sua história, de morador de um bairro
periférico a liderança do principal movimento cultural da cidade. Mais um impasse se
instaurava, afinal Dó não aceitava que a coordenação impusesse o “tom” de seu discurso,
enquanto esta não aceitava que Dó falasse da forma como bem entendesse.
Em seguida e com muito atraso, começaram os esforços para a compra, estampa e
distribuição da camiseta da campanha de Dó, que seriam utilizados pelos cabos eleitorais.
Fomos eu, Jaco e Fábio para Itamaraju com um carro emprestado para comprar camisetas
baratas para serem estampadas e distribuídas na campanha. Compramos 200 camisetas e a
demora para serem estampadas enchia a coordenação da campanha de angústia. Combinou-se
que elas seriam utilizadas só no dia da eleição, pelos cabos eleitorais e distribuídas no dia da
reunião de motivação, o que acabou não acontecendo. Dó avaliou que “dar uma camiseta para
um e não dar para todos dá problema”. No final, elas ficaram um tempo “encalhadas” num
canto do Espaço Cultural e terminaram por ser estampadas para a IV Semana Zumbi dos
Palmares, que ocorreu um mês após as eleições, em Caravelas.
A reunião de motivação seria seguida de um grande almoço e a comida a ser servida foi
um assunto que rendeu muitos debates entre os participantes do movimento cultural. Fábio, o
75
Ilma Falcão, candidata da coligação PT/PV “Participação e Transparência” terminou o pleito em 3º lugar, com
9368 votos, 5356 votos a menos que o vencedor, Jânio Natal (coligação Porto Seguro tem Jeito –
PP/PDT/PMDB/PL/PAN/PRTB/PHS/PRP).
127
micro empresário que apoiava Dó, propôs cozinharem um arroz de carreteiro. As mulheres
ponderaram que seria melhor um feijão tropeiro ou um bobó de camarão. Era tempo de fruta-
pão e elas poderiam engrossar o bobó com a fruta pão, ao invés do aipim. Era, porém, tempo
do defeso, quando se suspende a pesca do camarão e este fica custando “o preço da carne”.
Decidiu-se, então, pelo arroz branco com feijão tropeiro “caprichado nas carnes”.
Jaco e eu fomos para a rua xerocar os convites, que seriam distribuídos pessoalmente a
todos os atuais integrantes e antigos participantes do movimento. Dó defendeu que não seria
preciso dar convite para quem é do movimento e Jaco retrucou que são justamente essas
pessoas que mais merecem receber o convite. Jaco reclamou “que mania de Dó de pôr defeito
em tudo! Se ele for eleito, vai ter que se tornar mais flexível”. Entregamos os convites junto
com santinhos de Dó a muitos caravelenses que não atuam mais no movimento, mas são
simpatizantes. Eles se demonstraram contentes com “a lembrança”. Pessoas que nunca
suspeitei terem participado do movimento cultural foram convidadas e compareceram à
reunião.
Na sede do movimento cultural, Lêda selecionava fotos de eventos promovidos pelo
movimento ao longo de seus vinte anos, que comporiam um mural “tipo cordel”. As fotos
ficariam suspensas com barbante, compondo uma exposição que seria montada no Dandara no
dia da reunião de motivação. Os jovens do movimento ficaram encantados ao ver as fotos que
registravam momentos da história do grupo e mostravam crianças pequenas que até hoje estão
no grupo, já adultos. Anderson, um dos adultos que encontrou fotos dos integrantes quando
era criança, mostrou-me várias fotos e indagou-me se conseguiria adivinhar quem era quem.
Muitos integrantes do movimento frequentam o espaço desde bebês, trazidos pelas mães,
explicou-me ele. Hoje, o filho de Dão com Lília (outra integrante do movimento desde
criança pequena) é um pequeno integrante do movimento.
Na véspera da reunião de motivação, quando todos os convites haviam sido
distribuídos, a exposição de fotos estava pronta e os discursos afinados, Dadá apareceu de
supetão na casa de Simone e Dó, coisa que faz raramente, aparentando um grande
nervosismo. Sentou-se no banco que fica colado à porta de entrada da casa e, ofegante,
afirmou que estava muito preocupada com o almoço previsto para os cabos eleitorais. Simone,
Dó, as crianças e eu ouvimos calados e sérios a voz da grande mãe do movimento, que nunca
se intromete nas decisões do grupo e sempre apóia em silêncio suas opções, cedendo seu
Espaço (o Dandara), sua aparelhagem de som, sua casa, seus cuidados de avó, com enormes
confiança e admiração pelos filhos, netos e genros. Dadá estava determinada: “não pode ter
almoço”.
128
Minha primeira impressão - ingênua - foi de que ela estivesse preocupada em ter que
cozinhar para um grande número de pessoas. Mas não foi o que Dadá trouxe como
inquietação. Disse ela: “Convidar algumas pessoas significa deixar muitas outras de fora. Isso
não pode não. Vai dar em desentendimento e inveja. E não acho certo fazer um convite
formal, por escrito. Se o povo ficar sabendo que tem comida lá em casa, vai aparecer um
monte de gente e não há comida que dê pra tanta gente. Dó vai perder votos ao invés de
ganhar. E não vai ter comida que chegue pro pessoal. Acho melhor cancelar.”
Nunca havia visto Dadá interferir em assunto de Dó, Simone ou do Movimento
Cultural, muito menos com tamanha ênfase. Se ela saiu de casa exclusivamente para
comunicar isso é porque, de fato, era assunto da mais alta importância. Dó ouviu tudo em
silêncio e não opôs nenhuma objeção à posição da sogra. Simone apoiou a mãe desde o início,
assim como Gilca, o que me deu a impressão de que a visita de Dadá havia sido previamente
acordada pelas mulheres. Decidiu-se, então, cancelar o almoço de confraternização,
mantendo-se, porém, a reunião de motivação no final da manhã do sábado que antecedeu as
eleições.
Jaco e Barata – coordenadores da campanha de Dó que não estavam presentes na hora
– lamentaram a decisão de Dadá, defenderam que não se perde voto desse jeito e que os cabos
eleitorais precisavam de uma “motivação”, mas tiveram que acatar também a decisão tomada.
A reunião foi num sábado de manhã e começou com um discurso de Barata para uma
platéia de 50 pessoas sentadas em círculo em cadeiras de plástico, todas moradoras da
Avenida ou de Ponta de Areia, amigos de longa data de Dó, alguns próximos, outros
distantes. Barata afirmou, num tom confiante:
“Chegamos à reta final da campanha. Pela primeira vez estamos vislumbrando a
possibilidade de realizar um sonho de 20 anos. Temos um candidato, um verdadeiro
representante do povo, com reais chances de se eleger vereador de Caravelas. Todos
sabem que desde a sua fundação, o PT de Caravelas sofre muitas dificuldades. Hoje
temos a possibilidade clara de eleger um companheiro que representa o que cada um
de nós pensa. Estou convicto de que Dó é um representante de cada um de nós. A luta
dele não é apenas a política partidária. É uma luta ambiental e também cultural. Dó é
liderança do maior movimento cultural da cidade. Os moradores da Avenida eram
pessoas marginalizadas e hoje são respeitadas em todas as partes desta cidade. As
pessoas na rua estão falando que a coligação PT-PMDB não vai eleger candidato, mas
nós avaliamos nome por nome e temos convicção de que temos reais chances de eleger
Dó e fazer um mandato participativo. Um trabalho participativo é algo que ele já faz,
por isso não estará sozinho.”
Jaco serviu as pessoas com água; Gilca serviu um café. Dó tomou a palavra:
129
“Eu não queria sair [candidato] pois apostava que havia outras pessoas. Mas Preto [seu
irmão] não podia pedir licença uma semana depois de ser contratado pela Aracruz. A
partir do momento em que você sai candidato, você passa a ter um certo “egoísmo”,
tem que sair, tem que se aparecer, tem que pedir voto para si. Eu não queria isso não.
Mas vi que já faço um trabalho político indo a todas as reuniões dos conselhos, onde
não vejo vereador nenhum. Hoje acho bom ter acontecido de ser candidato, porque
não há muito diferença entre política partidária, social e cultural. E eu quero agradecer
a minha esposa Simone e à Dadá por todo o apoio que elas têm me dado (emocionou-
se neste momento). Obrigada.”
Jaco então emendou:
“A gente não quer emprego; a gente quer a transformação social. Quando o político dá
um emprego, a pessoa se anula. Eu sou um eterno apaixonado pela política. É um
processo belo quando feito com amor”.
Dadá passou a reunião toda na sua cozinha, que é ao mesmo tempo uma espécie de sala de
estar da casa, com um sofá, cadeiras, uma grande mesa e um espaço aberto para o quintal. No
final dos discursos, Dadá apareceu na reunião e disse rapidamente, de forma bastante
emocionada, uma frase tão singela quanto significativa: “Me encontrei num grupo”. Depois
de servido o licor de jenipapo, especialidade de Dadá, o esperado almoço não aconteceu.
Houve um certo clima de expectativa frustrada e decepção no ar. O mal-estar era perceptível,
mas de algum modo atenuado pelas doses do licor de jenipapo que Gilca servia
generosamente.
Alguns meses depois, conversei com Fábio, que defendera a realização do “almoço
que não houve”.
- Você esteve muito presente na campanha. O que você achou daquele evento que ia
ter e acabou não tendo?
Fábio: - Eu fiquei chateado. Nós enquanto grupo estávamos precisando de um ânimo a
mais. Se houvesse outra proposta mais aceita, eu estava apoiando. Foi um almoço, uma festa,
eu apoiei. E depois, desistiram, por receio de estar rolando um certo ciúme, dos que não foram
convidados. Eu acho que foi bobeira do grupo que decidiu isso. Me chegou como decisão do
grupo, aceitei, mas pessoalmente não gostei não. Porque achava que fez falta. Não tem que
ficar com receio do que os outros vão achar. Tem que fortalecer o grupo. Mas ficar com medo
do que os outros vão falar, sendo que havia a representatividade toda do grupo, besteira. Se
falar, são pessoas que não frequentam mesmo.
- É que teve gente que achou que os que ficaram de fora não iriam votar...
- As pessoas votam em qualquer um na última hora, eu mesmo já me vi na última hora
sem candidato. Eu acho que isso foi uma falha, uma falha da coordenação da campanha de ter
deixado isso acontecer.
Alguns meses depois, conversei com Dadá ao pé do seu fogão a lenha sobre o
“acontecido”.
- E a candidatura de Dó, a senhora achava que ele tinha que sair candidato?
130
Dadá - Eu achava que... (pausa) que não. Ele tinha que conhecer mais pessoas. Tinha
que conhecer mais as pessoas que realmente queriam a mudança. Não gostei aquele dia da
comida. Ia ser como comprar o povo. Com certeza. Não era pra lançar questão de votação.
Era pra dar isso depois, numa palestra, um piquenique, sem ter que fazer jogo de política. E
convidar as pessoas de dedo não foi bom. Tinha que dar uma comida para várias pessoas. Ia
escolher as pessoas. E isso não pode acontecer. Tem que ser uma coisa aberta, pra todo
mundo. Quem quisesse participar, que tirasse um tira gosto, comesse. Mas se fosse convidar,
pra mim não foi válido. Quem não foi convidado ia cobrar. “Pra querer o meu voto ele soube
me procurar. Pra dar festa convidou fulano e fulano não!” Podia perder voto. Aqui age assim.
No mesmo dia veio um parente de Renê fazer um churrasco e o pessoal tava cobrando. Devia
ser de porteiras abertas para todo mundo.
A questão que paralisou Dadá e a fez cancelar o que era programado para ser o ápice
da campanha de Dó foi a seleção das pessoas. As pessoas convidadas foram escolhidas “a
dedo”, dentre os amigos, vizinhos e parentes de Dó que poderiam atuar como cabos eleitorais
no dia da eleição. Para Dadá, se fosse para fazer almoço, que fosse aberto, para quem quisesse
entrar, com comida à vontade para todo mundo. A questão é que não havia recursos para fazer
uma festança aberta, como os churrascos promovidos por um dos candidatos na zona
ribeirinha, onde matava-se um, dois bois, que alimentavam uma pequena multidão. Havia,
sim, meios de fazer um almoço para um grupo de 50 pessoas, o que pareceu razoável para a
coordenação da campanha, mas não para Dadá, que entendeu esta estratégia como algo que
“podia ser como comprar o povo” e, mais do que isso, iria criar desavença, ciúme, inveja e
desentendimento entre os convidados e os não-convidados. Para Fábio Negrão, porém, esta
decisão teria sido errônea e levado Dó, pelo contrário, a perder votos daqueles que haviam
sido convidados para uma reunião seguida de um almoço que não houve. Fábio defendia que
era preciso fazer um “agrado” aos cabos eleitorais, ao passo que Dadá entendia este agrado
como algo semelhante a “comprar o povo”. “Escolher as pessoas”, isto é, criar um mecanismo
de hierarquização entre os potenciais eleitores, foi recusado por Dadá, para quem não havia
razão de convidar uns e não outros; ou se convidava todos, ou não se convidava ninguém.
Convidar poucos, além disso, poderia surtir o efeito inverso e fazer Dó perder os votos dos
não-convidados que estivessem simpatizando com sua candidatura. A ideia da seleção e do
convite pessoal foi o que a perturbou. Dó, ao eleger alguns, correria o sério risco de não ser
eleito.
Afinal, qual o limite entre “fazer um agrado” para um possível eleitor e “comprar” seu
voto? Um coordenador da campanha do PT ajudou um morador de Barcelona (distrito) a
conseguir uma escritura de sua terra. Certas práticas não eram consideradas “compra de voto”
pela coordenação petista, tais como oferecer transporte para os eleitores das áreas rurais e
ajudar uma pessoa de um distrito distante a obter uma escritura de posse de terra. Essas
131
práticas são as mesmas de todos os candidatos: prestar favores em troca de voto, mas, do
ponto de vista do PT velha guarda, “a diferença nossa para eles é que a gente faz isso com
uma preocupação com a consciência.”
Segundo Leda, uma das coordenadoras da campanha, ser PT foi durante muitos anos
“o diferencial em Caravelas”; significava a demarcação de um espaço ético e também
destoante da política tal como vinha-se fazendo até então na região. Os integrantes do PT não
toleravam pessoas que não tivessem um compromisso real com o partido. Um exemplo disso
foi o caso de Itamar, filho de Dadá e cunhado de Dó e Jaco. Numa “política” anterior, Itamar
arrendou o Dandara para a campanha de Chiquinho. Isso não foi perdoado por Jaco e Dó:
“Jaco arretou com ele e ele se desfiliou do PT”. Indagada sobre porquê se filiara ao PT, ela
afirma:
“Pela minha admiração por Beto, em primeiro lugar. Não só amizade, mas por
admiração, respeito, por confiar nele. E nesse período conheci Jaco – uma figura maravilhosa
– e Itamar que eram filiados. Eu me filiei por acreditar também. Era o meu pensamento. Era
não, ainda é. O PT era o diferencial de Caravelas. Nem na nossa família a gente falava. Eles
diziam assim “se meter com esse pessoal, política com subversivos?” Mas era o pensamento
que a gente tinha e acreditava. Mas Beto começou a lançar com Napoleão jornal de poesias: o
Clarim do Povo, o Avesso. Eles faziam o jornal e não tinha como rodar. Aí eles mandavam
pra Vitória, eu conversava com a chefia e rodava escondido na fábrica. E Vicente, que era
MDB, morava em Vitória e vinha sempre pra Caravelas, trazia encomenda pra minha mãe
sem suspeitar que na caixa vinha todo o jornal já xerocado e xerox era alto nível na época”.
Algum tempo depois das eleições, Lêda revelou seu desencanto, tanto com o partido,
quanto com o fato de não ter obtido os votos de pessoas que imaginou que fossem votar em
Dó em reconhecimento a ela e aos favores que ela sempre prestou de graça para um sem-
número de pessoas, “sem nunca pedir nada em troca”. Lêda é conhecida na cidade como uma
mulher generosa, sempre pronta a ajudar uma pessoa sem instrução a desvendar os trâmites da
burocracia para conseguir uma aposentadoria, a preencher um formulário, a entrar com um
pedido de pensão. Ela faz isso porque gostar “de se doar”, mas, segundo ela, as pessoas não
entendem e acreditam que ela recebe um salário da prefeitura, ou da previdência social. Eis
um pequeno trecho de nossa conversa:
- Como foi essa história das pessoas que você ajuda não votarem nem em Dó nem em
Renê?
Lêda – eu não faço isso pras pessoas votarem. Eu sou contra isso. Só que com os
outros eles fazem sempre isso [dão o voto], mas com nós do PT eles não fazem isso.
Não é questão “estou fazendo pra ele votar”, mas se eles fazem com os outros, por que
não votam nos nossos candidatos?
– você pediu voto?
Lêda – Pedi. E não deram. Alguns até que deram, mas a maioria não. Alguns
acreditam até hoje que sou funcionária da previdência. Acham que ganho pela
132
prefeitura. Quando eles vão na prefeitura e não conseguem resolver alguma coisa, o
próprio funcionário fala “ah, isso eu não resolvo... tá muito difícil, vai lá que Lêda do
Café resolve”. As pessoas vão lá em casa achando que eu tô trabalhando na prefeitura
mesmo. Elas perguntam: quem vai ficar no teu lugar agora que você tá indo embora?
Aí eu realmente acredito que elas realmente pensam que eu recebo dinheiro.
A questão que desencantou Lêda foi não ter conseguido converter seus favores
cotidianos para pessoas em votos para Dó, enquanto os outros candidatos “de direita”
conseguem normalmente. Em outra ocasião, perguntei a Lêda qual a diferença dela para os
políticos de direita, já que ambos “trocam”. Ela afirmou que a direita “mostra” para o eleitor
em potencial que aquele favor deve se converter em voto e que ela não consegue demonstrar
isso explicitamente, por se sentir desconfortável em efetuar este tipo de troca.
Do ponto de vista das pessoas que recebem um favor de Lêda e que acreditam que ela
é paga pela prefeitura para fazer isso, a troca já foi feita, ela já recebe pelos seus serviços,
logo eles nada devem a ela. Quando Lêda os visita, oferece um santinho de Dó e diz, com
muitos pudores “lembra de nós na hora do voto”, ela está tentando obter um voto
“impossível”, seja porque o circuito da troca já está terminado do ponto de vista do eleitor em
potencial, seja porque ela mesmo entende seu trabalho como doação voluntária, ou seja, como
algo que não deve ser passível de retorno, o que a leva a pedir o voto com constrangimento,
algo facilmente perceptível pelo eleitor em potencial. Os políticos de direita não têm este
pudor e dizem abertamente “te dou este saco de cimento e dia 3 de outubro você vota em
mim”, sacramentando a troca às claras e obtendo, assim, o voto que custa tanto para a
esquerda.
“Ressaca” pós eleitoral
Na casa de Dó Galdino todos acordaram tarde naquele 4 de outubro. Eram nove horas
da manhã quando Simone, Dó e Jaco se levantaram. Para os padrões locais, em que as pessoas
acordam por volta das seis horas da manhã, nove horas é muito tarde. As conversas em torno
do café eram em torno da busca de explicações para a derrota. Dó ficou tentando adivinhar
quem teria votado nele e quem o teria traído. “Pra onde foram os votos, meu Deus?”, era a
indagação que rondava todos nós, que tínhamos como praticamente certa a eleição de Dó. Ao
saber da votação estrondosa de outros candidatos, Dó deduziu: “Os votos perdidos vieram da
Avenida”. A lógica é simples: o candidato tem uma ideia da área em que têm votação. Se um
candidato que também tem votantes nesta mesma área é mais votado, deduz-se que os votos
foram perdidos daí. A partir desta constatação, começaram a citar os nomes daqueles que
133
supunham ser os traidores. Jaco sugeriu cautela: “é bom tomar cuidado, não há como saber”.
Citou uma velhinha simpática que pedia votos para Dó na igreja e acabou por votar em Dr.
Geraldo. Dó não quis acreditar – “não, tenho certeza que ela não traiu”, até Jaco dizer a fonte
segura da onde obteve tal informação: a própria, que confessara diretamente para a mãe de um
coordenador da campanha. Jaco concluiu:
“Sabe o que é isso? Preconceito”. O povo da rua ainda tem muito preconceito com a
gente. Porque é preto, porque não fez faculdade, porque vem da Avenida. Igualzinho
quando eu me candidatei em 1988”.
Em seguida, outra explicação veio somar-se às demais: “Sabe o que é isso? É o
dinheiro”. Os amigos e parentes chegavam à casa trazendo os relatos os mais diversos sobre
compra “deslavada” dos votos na Avenida, local tido como “curral eleitoral” de Dó. A notícia
era de que, nos dois últimos dias antes da eleição, vários candidatos que se elegeram
inundaram a avenida com cestas básicas, camisetas, bonés e dinheiro vivo. Dizia um: “X
marcava hora com as pessoas para pegarem o dinheiro em sua casa”. Contava outro: “Y tinha
uma caixa com notas para distribuir às pessoas”.
Fomos curar a ressaca eleitoral na praia, passeio que, ao contrário do que se pode
supor - já que Caravelas fica a apenas 14 km do oceano - não é algo exatamente comum, mas
uma “excursão” que se faz em ocasiões especiais. Encontramos Barata, visivelmente
consternado, sentado à sombra das enormes amendoeiras que protegem os banhistas à beira-
mar. Barata estava indignado com o fato da gasolina dos postos ter acabado no dia das
eleições. “A cambada de Z encheu o tanque e não deixou mais ninguém transportar eleitores”.
Propôs um encontro em breve para a “avaliação do partido no processo eleitoral”.
Andamos um pouco pelos quiosques à beira-mar, no Grauçá e um grupo de jovens se
aproximou de Dó para cumprimentá-lo. As pessoas paravam Dó pra dizer: “valeu, você teve
uma votação grande para a primeira vez. Fico feliz em ter feito parte desse processo”,
indicando que teriam votado nele. “Barão”, pescador da Barra, elogiou a campanha de Dó,
mas disse-me que Renê precisava ter feito mais showmícios.
Eu e Jaco seguimos para o restaurante do Tio Berlindo, enquanto Dó ficou um tempo
conversando com seus supostos eleitores. Após a conversa, Dó veio em nossa direção
injuriado: “entendo Barata quando ele diz que não dá pra conversar com certas pessoas”. “O
que eles disseram?”, indaguei. “Que a gente só não ganhou porque não prestou favores à
pessoas. Disseram bem assim: ‘vocês têm que perder esses pudores!’”. Dó não escondia a
raiva com a naturalidade como as pessoas expressavam seu “vício em pedir”. Dó contou que
Coronel José, uma figura séria e respeitadíssima na cidade, disse a ele certa vez: “vocês fazem
134
política com muitos escrúpulos”. Tanto Dó quanto Jaco reafirmaram: “se for para fazer
política do jeito que esses caras fazem, prefiro desistir”.
Pegamos o ônibus de volta no final da tarde e fomos direto para a reunião marcada no
Dandara, para discutir as razões da derrota eleitoral com os integrantes do movimento
cultural
76
. Dedê (irmão mais jovem de Dó) estava particularmente irritado e abriu a reunião
afirmando cruamente: “o povo trai”. Revelou que tem amigos que receberam dinheiro, mas
que haviam garantido que mesmo assim votariam em Dó, o que, no entanto, não aconteceu.
Nêgo disse: “Eles traem aqui, mas Deus vê tudo lá de cima”. Dó se lamentou: “eu achava que
o pessoal iria pegar o dinheiro e votar na gente, mas as pessoas ainda não têm consciência.”
Do total de votos de Dó (238), ficou-se especulando quantos vieram da Avenida. Dedê
apostou que, do total, apenas 30 vieram da Avenida. “Jogaram muito dinheiro na avenida. X
desfilava mostrando notas de 10 e 20 reais. Muita gente que frequenta lá em casa dizia “peraí
que vou ali pegar um dinheiro e já volto”.
Dó reafirmou que seu projeto não é individual, mas coletivo: “Não sou eu, é um
projeto que precisa ser ampliado, precisamos organizar a comunidade, participar da gestão da
cidade. Nas pesquisas a gente liderava, estava claro que seríamos eleitos. Mas vendo para
onde foram os votos, ficou claro que aqui é o dinheiro”.
Jaco, por sua vez, avaliou que nas primeiras eleições de que o PT participou, em 1988
e na década de 90, as relações de força eram mais equilibradas. Segundo ele, seu Elias Siquara
se elegeu vereador com apenas 130 votos. Jaco contou ter sido duas vezes o candidato mais
votado do PT, com 60 e 70 votos, que, segundo ele, vieram de dentro do movimento cultural e
de amigos e parentes. Afirma ele: “hoje, o que ocorreu foi o mesmo, a diferença é que o
movimento cresceu. O movimento cultural ocupa hoje um espaço muito maior, ampliou o
número de pessoas, chama mais atenção.”
Nêgo tomou a palavra, relatou ter observado várias pessoas pegarem dinheiro com
candidatos, mas enfatizou que “amigos e pessoas conscientes não se vendem e não se
venderão nesta nem na próxima eleição”. Este depoimento emocionou Jaco, que entendeu a
fala de Nêgo como um belo retrato de alguém que deixou de vender seu voto quando passou a
se preocupar com a “comunidade” e atuar no movimento cultural. Segundo Jaco, “esta foi a
vitória de um grupo de pessoas que não se vendeu”.
Dó chamou essa mudança de “Efeito Aracruz” na cidade. Segundo ele,
76
Para uma análise sobre as razões invocadas pelos candidatos e cabos eleitorais para justificar uma derrota nas
eleições numa pequena cidade do Estado do Rio de Janeiro, cf. Goldman e Silva, 1998.
135
“desde 88 a política mudou radicalmente na cidade. Há muito mais festa, mais
dinheiro, mais dinheiro público sendo desviado, mais violência e mais compra de
votos. Parece que havia um saco de dinheiro no Tancredo. Antes, eles desviavam
cobertores da LBA e distribuíam cestas básicas, mas não tinham tanto voto nos
distritos concentrados em um só vereador como hoje”.
Os distritos são as localidades onde a presença da Aracruz é mais forte, pois são os
locais de plantio de eucalipto. Dó analisou os dados desta votação. Segundo ele, num universo
de 5000 votantes, os “candidatos dos distritos, isto é, da Aracruz” conseguiram, cada um, 10%
dos votos. Zé do Leite, do distrito de Nova Tribuna obteve 473 votos; Décio Leite, de
Rancho Alegre, obteve 556 votos e Manoel de Jonga, da ribeirinha, obteve 517 votos. Num
universo de 5000 votos, esses candidatos conseguiram obter 1546 votos, cerca de 30% do
total. Dó mostrou ainda que o “efeito Aracruz” foi, além disso, capaz de eleger 3 vereadores
do distrito de Barcelona, o mais distante da sede e um dos mais tomados pelo eucalipto.
Fábio Negrão afirmou que o grupo passou por um processo de “aquecimento”, e que
não poderia parar agora. Segundo ele,
“agora é hora de pensar na política cultural, no envolvimento com a secretaria de
cultura, nos conselhos de gestão, se ativar mais. Dó cresceu muito nessa eleição,
passou a ser conhecido e respeitado. No Pirão Virado [bar à beira rio onde se reúnem
pescadores] só se fala no nome de Dó. Ele é admirado por um monte de gente. Mesmo
os mafiosos sacanas que tem na cidade, que são muitos, e as pessoas que não têm
instrução, admiram o Dó, pela história, trajetória do Arte Manha e ele como uma das
lideranças, como um dos pensadores do município. Ele é uma pessoa que as pessoas
dizem (imitando voz dos nativos): ‘o Galdino lá sabe falar bastante, ele conhece, ele
discute, ele lê’. Isso já corre na cidade.”
No final da reunião, alguém fez uma proposta de agradecer às pessoas que
participaram da campanha por carta. Debateu-se a proposta, mas alguns disseram que não era
possível saber quem votou de verdade em Dó. Decidiu-se, assim, que seria melhor colocar um
carro de som com um texto de agradecimento. Alguns achavam que Dó deveria gravar uma
mensagem com uma crítica aos votos comprados e ao “poder econômico”. Outros integrantes
ponderaram que “não é hora de achar os culpados”.
Preto (irmão de Dó e Jaco) entrou no final da reunião e falou, em pé, rodando em
círculos, indignado:
“O voto de favor é um problema do brasileiro. Muita gente depende da gente pra viver
o dia a dia. Gente que vai lá em casa pedindo favor, que depende de um prato de
comida, de roupa... Sabe o que eu vou fazer? Daqui pra frente vou ser ruim. Não vou
dar. O miserável tá lá passando fome, eu dou. Agora que eu peço o voto para o meu
irmão, o desgraçado nega, o cara trai a gente. É falta de respeito. É falta de respeito
por mim. Traição dói, cara”.
136
No dia seguinte, contaram para Dó que Denison [que compôs seu jingle musical] subiu
no trio de David para cantar depois da “vitória” sub judice. Os integrantes do movimento
cultural ficaram se indagando se Dedê, irmão de Dó, também teria subido no trio, já que ele
tocava acordeão e bateria na banda de Denison. Jaco foi categórico: “Se subiu, tem que
chamar ele para conversar. Não pode essa história de flexibilizar, de achar normal subir em
trio só porque precisa da grana. Nunca aceitamos isso e não vai ser agora que vamos aceitar”.
Gilca, cunhada de Dó: “Tem gente que faz qualquer coisa por dinheiro”. Lília, jovem
integrante do movimento, ponderou: “mas hoje dinheiro tá tão difícil que cinqüenta reais pesa
muito”.
Algum tempo depois conversei com uma integrante do movimento cultural sobre os
motivos que teriam levado à derrota de Dó:
- Por que você acha que Dó não se elegeu?
- Porque ele não teve dinheiro pra gastar, pra comprar as pessoas. Se tivesse
dinheiro, ele ganhava a política. Esse pouco voto que ele teve foi pessoa consciente
que não é comprada, agora o resto tem que ser comprada.
- E Renê?
- Ele não trabalhou bem, tinha que trabalhar mais. Quando os meninos
chamavam pra ele sair, ele tinha que ir em todas essas rocinhas, trabalhar. Mas ele não
ia. Ele tinha que ser mais aberto com as pessoas. Tinha que gastar!!! Se não tiver
dinheiro aqui não ganha a política! Ele não gastou, segurou. Perdeu.
Um colaborador do movimento avaliou mais tarde que Dó estava pouco motivado e que a
coordenação da campanha se preocupou muito em motivar os eleitores e pouco em motivar o
próprio candidato:
“Eu acho que aquele tal episódio da festa com o rango que não teve era uma forma de
motivar o nosso candidato, não era só os eleitores. A gente precisava fazer com que o
Dó tivesse mais ânimo para a coisa. Ele tava pensando no dia-a-dia dele trabalhador,
ganhar grana, sustentar a família, o movimento e só parte do dia ele se candidatava à
candidatura. Porque, no meu entender, ele se sentia um pouco em falta com o
compromisso que já era diário, já era tradicional. Era um pleito de passagem, daqui a
pouco acabava e ele tinha que continuar na outra vida. Ele não largou o trabalho que
ele tava, ele continuou. Outra sacanagem pra mim foi o tal cara ligado à Aracruz ter
contratado ele bem nessa época. E depois da eleição, quando ele teve outro negócio e
poderia ter chamado Dó para continuar ganhando dinheiro, ele não botou. Pode ser ou
não. Mas a Aracruz tem um braço político muito forte. Senão eles não teriam
conseguido todas as licenças pra operar. Me veio agora à cabeça que o movimento
cultural talvez tenha se sentido desamparado perdendo seu líder para um líder político
que teria que se preocupar com a comunidade como um todo. Pode ter rolado esse
pensamento no movimento...”
Finalmente, Marlon, ex-sindicalista do sindicato dos lenhadores e integrante antigo do
movimento cultural, afirmou:
137
“Para se eleger tem que ter ambição. Tem que querer. Pra começar, tem que fazer
nascer o fogo dentro de si e isso acontece no corpo-a-corpo com as pessoas. Não
adianta falar que tem preocupação social. A palavra social não significa nada para as
pessoas. Veja Dó, um cabra inteligentíssimo, um homem da cultura, que faz um
trabalho social... Não consegue se eleger. O político foi o que faltou em Dó. Tem que
ser ar-ti-cu-la-dor. Não o articulador safado, que quer ganhar dinheiro, mas o que tem
poder de discussão na comunidade. Ele tinha que ter trazido outro candidato forte para
o nosso partido e puxar voto dos eleitores do outro candidato para se eleger”. [grifos
meus]
Há pouco tempo, cinco anos após as eleições de 2004, soube que Dó decidiu não
prestar contas de sua campanha ao TRE, porque deliberadamente quis tornar-se inelegível.
Nas última eleições municipais (2008) o PT e o PMDB não lançaram candidato a
prefeito e apoiaram, nas eleições majoritárias, a coligação Caravelas para o Bem
(PP/PRB/PSB), que elegeu Luiz Antônio Alvim Delgado, conhecido como Loló. Dó Galdino
foi convidado para ser secretário de cultura e aceitou. Hoje, Dó divide-se entre as atividades
do movimento cultural e seu trabalho como secretário municipal de cultura de Caravelas.
138
Capítulo 3 – A rede ONGs-empresa-IBAMA-comunidade
Se no capítulo 2 nossa atenção centrou-se no processo eleitoral, momento em que o
desacordo ou dissenso pode levar a uma reordenação das relações de poder, neste capítulo
apresentarei alguns aspectos do funcionamento da rede
77
que associa ONGs, empresas de
eucalipto e celulose, órgão ambiental e a assim chamada “comunidade” e alguns dos seus
efeitos de poder. Nossa atenção recairá sobre as práticas pedagógicas de algumas das ONGs
ambientalistas locais em sua relação com os moradores e as grandes empresas da monocultura
do eucalipto. Embora do ponto de vista dos moradores essas práticas não sejam classificadas
como “políticas”, elas possuem elementos em comum com o modo de exercício do poder dos
governantes eleitos no “tempo da política” e são reveladoras de uma vontade de governar
78
que se evidencia na ação das ONGs, empresas, bem como dos órgãos ambientais da
burocracia estatal. As organizações não-governamentais estudadas, apesar de se definirem
negando sua relação com o governamental, implementam projetos – em “parceria” com
empresas e órgãos governamentais - que revelam esta vontade de governar, isto é de definir
ou estruturar o campo de ação do outro através de práticas “educativas”, de “gestão” ou de
“capacitação”, destinadas para os grupos que fazem “uso do meio ambiente”. Assim, nossa
preocupação neste capítulo é registrar os efeitos desta vontade ou tentativa de conduzir a
conduta dos outros colocada em prática através dos mecanismos pedagógicos e gerenciais
implementados pela rede empresas-ONG-Estado.
Não é incomum observarmos análises de conflitos políticos como uma disputa de
interesses. Supõe-se os diferentes sujeitos em disputa como já dados. A cada sujeito
corresponderia um recurso, um território, uma circunscrição qualquer que seria objeto do
interesse ou do domínio efetivo deste sujeito já dado. O conflito seria um efeito do choque
entre interesses divergentes, motivado por algum evento que levaria à sobreposição e a
conseqüente disputa entre esses interesses incompatíveis. Neste embate, alguns sujeitos
estariam dotados de uma quantidade maior de determinadas qualidades (ou capitais) do que
77
A palavra rede é aqui empregada não como um objeto que existe no mundo, mas como um movimento de
associação entre forças heterogêneas. Assim, quando menciono a rede empresa-ONG-Estado ou empresa-ONG-
comunidade quero dizer que esses “entes” atuam em rede, isto é, de maneira associada. Como afirma Bruno
Latour (2005, p.131), “Rede é um conceito, não uma coisa lá fora. É uma ferramenta para descrever algo e não
aquilo que está sendo descrito”.
78
Foucault emprega a idéia de “vontade de governar” ao conceitualizar as relações de poder como “uma ação
sobre outra ação” (1982), isto é, o poder não seria algo que se “possui”, mas algo que só existe quando exercido.
Para Foucault, esta “vontade de governar” estaria presente em diferentes espaços disciplinares – a escola, a
caserna, o trabalho – e seria especialmente visível através de práticas pedagógicas no sentido da docilização dos
corpos.
139
outros, o que definiria uma situação de desigualdade ou assimetria de poder. O resultado deste
choque de interesses levaria quase que invariavelmente ao avanço daqueles que acumulam
mais poder rumo ao recurso, território ou circunscrição até então pertencentes aos sujeitos
com menos poder, que se tornariam, deste modo, despossuídos daquilo que lhes pertencia.
Os processos sócio-históricos de avanço da colonização sobre os grupos sociais que
viviam neste território e a lógica da expansão da fronteira capitalista sobre territórios
existenciais
79
codificados sob modos por princípio dissonantes em relação a este modo de
produção poderiam ser entendidos como evidências que evidenciam a adequação da
explicação acima sintetizada. Embora não pretenda aqui discorrer sobre as teorias do conflito
social, proponho trazer uma certa dose de estranhamento em relação a determinadas
categorias de análises das Ciências Sociais, tal como a noção de interesse. Isso porque, aquilo
que é dado como explicação para o embate – interesses divergentes, luta de classes - é
justamente o que deve ser explicado, ou melhor, descrito. Se os sujeitos em luta já estão
dados, assim como seus interesses, não nos é dado a ver o fato da dominação, isto é como a
dominação se produz. Este como, isto é, os mecanismos infinitesimais, difusos e heterogêneos
que operam nas ações dos sujeitos sobre si mesmos e sobre outrem são, num certo sentido,
aquilo que vai revelar as tensões, instabilidades, reversibilidades e fissuras subsumidas mas
não anuladas pelo “estado de dominação”.
A pergunta foucauldiana - “como escapar ao modelo da ‘dominação universal’? -
leva-o a modular o conceito de poder, definido como ação sobre outra ação, isto é, como a
capacidade de estruturar o campo de ação do outro
80
. É nesta acepção que entendemos os
mecanismos de educação, circunscrição e controle implementados pelas rede ONGs-empresa-
comunidade.
Na criação de uma história dos diferentes modos de constituição dos sujeitos, Foucault
realçou dois sentidos para a palavra sujeito: o sujeito a e o sujeito de. O primeiro aponta
para uma relação de exterioridade, em que se é sujeito a outrem por uma relação de
controle e dependência. Ao mesmo tempo, o sujeito é sujeito de, isto é, possui uma
interioridade, em que, pela relação de si consigo mesmo, é ligado àquilo que entende como
sendo sua “identidade” pela consciência ou pelo conhecimento de si (Veyne, 1987).
79
Este conceito, cunhado por Guattari (1992) como um desdobramento das reflexões sobre a noção de território
(Deleuze e Guattari, 1972; 1980) será discutido nos capítulos 4 e 5.
80
Afirma Foucault (1994d, p. 729): “Parece-me que é preciso distinguir entre as relações de poder como jogos
estratégicos entre liberdades – que fazem com que uns tentem determinar a conduta de outros, ao que os outros
respondem tentando não deixar que sua conduta seja determinada ou tentando determinar em retorno a conduta
de outros – e os estados de dominação, que são aquilo que chamamos normalmente de poder”.
140
Na teoria jurídica clássica, o poder é analisado em termos de uma analogia com a
riqueza, como sendo um bem que se possui, se transfere ou se aliena de forma total ou parcial
e que pode ser cedido na forma de um contrato. É deste poder em analogia com a riqueza que
trata a noção de conflito de interesse acima descrita. Esta concepção jurídica do poder serviu,
segundo Foucault (1976ª, p.31), para dissolver “o fato da dominação”: “para fazer que
aparecessem no lugar dessa dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um
lado, os direitos legítimos da soberania, do outro, a obrigação legal da obediência”. A
soberania seria, nesse sentido, produto de um discurso de verdade, que tem como efeito de
poder a dissolução daquilo que Foucault designa, em princípio como fato da dominação e,
mais tarde, como estado de dominação.
A saída proposta é a introdução de um olhar atento à dimensão propriamente tática ou
tecnológica no estudo das relações de poder; que buscasse focar não sobre o que o poder é,
quem o exerce ou quem é a ele submetido, mas sobre os mecanismos efetivos de poder, ou
seja, como ele é exercido e transmitido. Temos, portanto, uma concepção que foge da idéia do
poder como substância ou essência, que o esvazia de todas as suas “propriedades” e o entende
como algo que só existe em ato, a partir de um conjunto de relações de força a todo momento
socialmente (re)definidas. Trata-se de um novo sistema de referências, que propõe a “captura”
do poder em sua dimensão microfísica, tática, capilar. A “entrada” nessa dimensão pode se
processar através da formulação de determinadas perguntas: não como o poder é exercido ou
como se manifesta, mas por quais meios é exercido e o que ocorre quando os indivíduos
exercem poder sobre os outros (Foucault, 1982, p. 208-226).
Deste modo, temos aqui um quadro analítico que destaca a diversidade e peculiaridade
das formas de exercício do poder, escapando a uma leitura unilateral ou “unidimensional” e
abrindo um campo de análise do poder em sua positividade, naquilo que ele incita e produz.
Seguindo a proposta foucauldiana, destaco quatro precauções metodológicas básicas que
deve-se levar em conta na análise do poder:
1. apreender o poder em suas formas e instituições mais regionais, em suas
extremidades, onde assume uma forma capilar – “apreender o poder sob o aspecto da
extremidade cada vez menos jurídica do seu exercício” (Foucault, 1976b, p.33);
2. estudar o poder em seu enraizamento nas práticas sociais reais e efetivas;
3. entender o poder como algo que se exerce em rede, que funciona em cadeia e não
como um fenômeno maciço e homogêneo;
141
4. analisar o poder de maneira ascendente: partindo-se dos seus mecanismos
infinitesimais e ver como esses dispositivos táticos, que interconectam o nível tático-local ao
nível estratégico-global.
Assim, ao invés de estudar o papel constituinte das instituições sobre as relações de
poder, podemos analisá-las como constituídas pelas relações de poder. Analisar as relações de
poder a partir do estudo de suas instituições significa não apenas reduzir o escopo da análise,
mas olhar para o “produto final” e não para as “múltiplas proveniências” das relações de
poder, que se espalham e enraízam por todo o sistema de relações sociais.
Assim, faremos aqui o exercício de analisar as relações de poder mais a partir dos seus
efeitos e consequencias e menos a partir de uma ou mais instituições de onde supõe-se que
o poder emanaria. Em primeiro plano, vê-se não uma empresa, uma ONG ou um grupo de
pescadores, mas os efeitos de um agenciamento que os associa através de ações que
desdobram-se em outras ações. Nesse sentido, o poder é “detectável” justamente quando
toma uma forma dessubstancializada e passa a ser entendido enquanto ato, exercício,
produção, práticas passíveis de serem descritas pelo relato etnográfico.
A idéia de interesse nasceu contraposta à noção de “paixão humana”, cujo esboço se
fez pela primeira vez presente de forma sistemática na argumentação do pacto hobbesiano, em
que os homens teriam submetido os “desejos e paixões” que os inclinam para a guerra àquelas
outras paixões que o inclinam para a paz. O interesse teria o sentido da busca de aspirações e
vantagens - não apenas materiais - guiado pela razão e as paixões, que seriam marcadas pelo
impulso, pelos sentimentos, pela espontaneidade, pela ausência de cálculo. As ações movidas
pelo interesse supõem uma distância entre o querer e o agir, preenchida pelo cálculo que visa
a maximização dos ganhos do sujeito. Já as ações motivadas pelas paixões seriam marcadas
por uma relação com uma certa interioridade, com sentimentos, ações não necessariamente
orientadas para o ganho pessoal ou do grupo, que não antecipam resultados.
Aos poucos, a noção de interesse, como entendimento disciplinado e calculista do que
é necessário para conquistar aspirações individuais em termos de poder, influência e riqueza,
se alastra e torna-se uma espécie de “paradigma” para os cientistas sociais, que passam a
explicar as ações humanas em termos do interesse individual: “assim como o mundo físico é
regido pelas leis do movimento, o universo moral é regido pelas leis do interesse”
(Hirschman, 1979, p.45). Proponho que apliquemos o raciocínio de Foucault sobre a noção de
soberania à noção de interesse: da mesma forma que a soberania subsume o fato da
dominação, a noção de interesse subsume o fato da existência das “paixões”. Com isso
142
obviamente não queremos dizer que não haja dominação e interesse. Apenas enfatizamos que
há mais do que isso e esse “mais” é por vezes obliterado nas análises que tomam estas noções
como auto-evidentes. O que Foucault nos mostra ao estudar os processos de constituição do
sujeito moderno em sua relação de si para si é que essas paixões não desapareceram, nem
foram reprimidas ou simplesmente direcionadas para atividades produtivas: as paixões,
entendidas como os processos subjetivos e de assujeitamento, são constitutivas e constituintes
do sujeitos.
Assim, ao se estudar a “política local” em Caravelas e as tensões e embates produzidos
pelas relações de poder, a análise das formas de subjetivação/sujeição (ou daquilo que liga o
indivíduo a si e submete-o aos outros) pode ser uma interessante maneira de se atentar para as
relações de si para si e, desta forma, não privilegiar uma concepção individualista de poder,
em que o indivíduo (ou grupo tratado como indivíduo) seria um mero ponto de apoio para o
que seriam seus “interesses” e estaria sempre em luta para maximizá-los. Portanto, como
afirma Veyne (1987), o sujeito/súdito não é um ser puramente manipulado ou manipulável em
função de seus interesses, mas alguém que pensa algo sobre a sua obediência, do seu senhor e
de si mesmo como sujeito dócil ou indócil. Um olhar atento à relação de si para si abriria
espaço para a definição das “vontades” que movem as práticas políticas nos planos da
subjetividade e das relações sociais. Ao mesmo tempo, apontaria para a constituição de uma
linha de fuga possível ao imperialismo do “interesse” e aos efeitos de poder/verdade
totalizadores e individualizantes presentes nesta noção
81
.
Nesta capítulo, apresentamos as práticas político-pedagógicas das ONGs locais e dos
órgãos de controle social e ambiental, como o IBAMA. A proposta de uma regulação da
natureza levada à cabo por ONGs ambientalistas, órgãos ambientais e empresas supõe antes
de tudo uma regulação da sociedade, ou, no jargão das ONGs, da “comunidade”. Nesse
sentido, pescadores, ribeirinhos e extrativistas – ou seja, a população caravelense em geral –
tornam-se objeto de práticas que visam estabelecer normas e regras em torno da relação que
81
Isabelle Stengers (2002, p.111-117) apresenta uma outra possibilidade de apropriação da noção de interesse,
em seu estudo sobre o surgimento das ciências modernas, que foge a esta acepção individualizante aqui
destacada. Analisando os dispositivos experimentais em laboratórios, Stengers propõe que interessar-se seria a
condição primeira para um cientista se lançar numa investigação ou numa controvérsia. Interessar-se aproxima-
se da ideia de arriscar-se. “U m cientista interessado é um cientista que se pergunta se um enunciado
experimental pode intervir em seu campo problemático, que diferença produzirá, que novas restrições, que
possibilidades determinará” (Ibid., p.112). A palavra interesse deriva do latim inter-esse, estar entre; a partir daí
Stengers demarca uma acepção da noção de interesse que se afasta da lógica utilitarista de apropriação por parte
de um indivíduo de um meio ou recurso que irá maximizar seus ganhos. Interessar-se por algo, neste outro
sentido, seria o movimento de colocar-se “entre”, o que supõe uma reciprocidade entre as partes. É preciso criar
um interesse recíproco, isto é, arriscar deixar-se afetar pelo objeto do seu interesse e, por este motivo, ser
obrigado a fabricar um novo pensamento ao invés de repetir fórmulas já prontas.
143
estes grupos sociais têm com o seu meio de vida. Se até o início da década de 1980, as
práticas desses grupos não eram objeto de regulação específica, com a emergência da assim
chamada “questão ambiental”, desenvolve-se todo um aparato burocrático estatal e para-
estatal com a atribuição de definir o “bom uso” do meio ambiente ou da natureza, entendidos
como recursos marcadamente escassos que é preciso cuidar, regular, economizar
82
. O alvo
privilegiado dessa biopolítica
83
foram os grupos sociais cujo modo de vida encontrava-se
entrelaçado de modo intrincado com o que foi doravante definido como “natureza” ou
“recurso de uso comum”.
Modos de apropriação do “meio ambiente”
Em primeiro lugar, irei apresentar as diferentes modalidades de apropriação daquilo
que é definido pelas ONGs, o IBAMA, empresas e outros entes como “meio ambiente”. A
cidade de Caravelas agrega diferentes instituições cuja atribuição é proteger, controlar,
regular, preservar, ordenar, conservar, defender ou mesmo salvar o "meio ambiente". Sede de
um centro de pesquisa do IBAMA, do Parque Nacional Marinho de Abrolhos e de
Organizações Não-Governamentais de perfil conservacionista – o Instituto Baleia Jubarte, a
Conservation International e a ECOMAR, para citar uma lista não exaustiva delas - observa-
se na cidade a concentração de iniciativas que têm o chamado “meio ambiente” e as
“populações locais” como alvos privilegiados de uma ação não-integrada que envolve
mecanismos de educação, circunscrição e controle, voltadas para os moradores de Caravelas,
mais especificamente, as populações extrativistas
84
.
Pretendo contribuir com um olhar etnográfico sobre as situações sociais em que estão
presentes um ou mais desses mecanismos de ação, buscando entender como esses
mecanismos operam em situações sociais concretas. Em outras palavras, o que acontece
82
Para uma análise da relação entre meio ambiente e escassez, cf. Acselrad, 1999a, 1999b, 2004a, 2004b.
83
Empregamos a noção de biopolítica seguindo a pista de Foucault (1976), que define deste modo uma inovação
no modo de exercício do poder, que “deixou cair a morte” e que passa a ter como objeto a “vida” e o “ser vivo”.
Foucault detecta o surgimento do que denomina de “biopolítica da espécie humana” no decorrer do século XVIII
enquanto nova tecnologia de poder que não excluiria a técnica disciplinar, mas a embute, a integra e a modifica
parcialmente. Essa nova tecnologia não se aplicaria ao homem-corpo, mas ao homem enquanto ser vivo, tomado
enquanto população, massa, afetado por processos que são próprios da vida, como o nascimento, a morte, a
produção, a doença e, poderíamos acrescentar, seu meio ambiente. Toda a lógica do aprendizado da higiene no
século XVIII, da medicalização da população, da criação de instituições de assistência fazem parte deste novo
dispositivo de poder que se exerce sobre a população. “A biopolítica lida com a população e a população
enquanto problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e
como problema de poder” (Foucault, 1976: 292-293).
84
As chamadas “populações extrativista”, isto é, os pescadores e marisqueiros chamam os técnicos, biólogos,
oceanólogos e educadores que trabalham no IBAMA e nas ONGs de “os ibamas”. Usos comuns da expressão é:
“os ibamas me pediram pra eu dar o nome de um peixe que eles não conheciam”; “os ibamas apreenderam os
peixes que o fulano pescou dentro da área do Parque”.
144
quando o Estado, uma ONG ou uma grande empresa privada atuam – de maneira articulada -
sobre aquilo que entendem como sendo o “meio ambiente” e as “comunidades locais”?
Além das ONGs, do Ibama e das secretarias de governo que incluem a questão
ambiental em sua pauta, há na cidade a presença nem sempre evidente da empresa Aracruz
Celulose. A presença da empresa é contundente nas antigas áreas rurais do município, onde se
espalham até perder de vista maciços homogêneos de eucalipto em enormes faixas contíguas
de terra. Para se ter uma ideia, em torno de 70% das áreas agricultáveis do municípios estão
tomadas pelo eucalipto (IMA, 2008). Os povoados que ainda não desapareceram estão
cercados por plantios de eucalipto, que não obedecem a regulação alguma (licenciamento ou
fiscalização) e tomam a cada dia mais e mais terras férteis de uma região que foi uma das
maiores produtoras de alimento da Bahia.
Na cidade, porém, a atuação da empresa de eucalipto e celulose se faz em rede com
outros agentes, que alguns chamam de “intermediários” e outros de “mediadores”,
responsáveis pela aplicação de uma política de boa vizinhança da empresa com a assim
chamada “comunidade”.
Educar a comunidade para preservar a natureza
As ONGs de Caravelas dedicam-se à proteção de espécimes animais e vegetais
ameaçados, à preservação da biodiversidade marinha e costeira dessa região e à
“demonstração de que as sociedades humanas podem viver em harmonia com a natureza”
85
. A
região do oceano Atlântico que vai do sul da Bahia até o litoral de Pernambuco é conhecida
como um “Hot Spot”, no jargão empregado pelas ONGs conservacionistas internacionais,
uma área de alta diversidade biológica e, ao mesmo tempo, muito ameaçada, daí seu caráter
prioritário para conservação. A região do arquipélago dos Abrolhos foi a primeira região do
Brasil que se tornou “parque nacional marinho”
86
, por tratar-se da localidade onde as baleias
jubarte se reproduzem e por este motivo considerada uma espécie de santuário para a
preservação destes mamíferos. No passado, a economia de Caravelas esteve profundamente
85
Cf. Missão da Conservação Internacional, 2007. As ONGs que na época da pesquisa existiam na cidade eram
o Instituto Baleia Jubarte (IBJ), a Conservação Internacional (CI), a ECOMAR (Estudos Marinhos e Costeiros
dos Abrolhos) e a Patrulha Ecológica (então um sub-projeto do IBJ). Havia ainda a ONG IAPA, que
administrava os recursos da compensação ambiental da dragagem e uma organização. Este capítulo se atém
sobre a implementação de parte das condicionantes da dragagem da Aracruz e em todo o aparato de educação
ambiental que existia na cidade em 2002. A Conservação Internacional foi a única ONG que se posicionou
contrariamente à dragagem e não atuou na implementação das medidas condicionantes e compensatórias do
porto da Aracruz.
86
Parques nacionais são unidades de conservação integrais, isto é, onde não é permita a presença humana, com o
objetivo de garantir a preservação de espécies ameaçadas.
145
ancorada na caça da baleia, seja para uso do seu óleo – amplamente empregado como reboco
nas construções do Brasil Colônia - seja para o consumo de sua carne. O Parque Nacional
Marinho de Abrolhos foi criado por decreto em 1983 e começou a ser implantado em 1987,
concomitantemente ao decreto-lei que proibiu a caça de baleia e quaisquer espécies de
cetáceos na costa brasileira. Hoje, com a caça proibida, a preservação do mamífero é o eixo
em torno do qual giram ONGs, pesquisas e um certo turismo de observação de baleias.
Projetos voltados para a proteção das baleias Jubarte nasceram ligados ao Parque Nacional
Marinho de Abrolhos, atraindo muitos pesquisadores das ciências naturais para a cidade.
Na década de 80, os biólogos e oceanógrafos que aportavam na cidade para conhecer
ou pesquisar o arquipélago dos Abrolhos eram vistos com uma certa dose de desconfiança
pela população local, que observava com espanto a prática de uma atividade comum na
zoologia e biologia marinha: a marcação de animais para monitoramento de sua população.
Eram, então, considerados como um “monte de malucos pendurando coisa no rabo da baleia”,
como relatou uma diretora do IBJ. Por outro lado, esses forasteiros certamente geravam
também certa dose de curiosidade, principalmente nos mais jovens. Hoje em dia esse olhar
desconfiado é contrabalançado por outro, mais condescendente e aberto. Os jovens biólogos
interagem de muitas formas com os moradores da cidade; muitos fazem capoeira, participam
de eventos culturais e namoram moradores. O local que elegeram para viver, a praia do
Grauçá, distante do centro da cidade e acessada preferencialmente de carro, não é vista pelos
moradores de Caravelas como um bom lugar para se viver, por conta do relativo isolamento,
ausência de comércio e dos ventos e maresia constantes. Se ir à praia nos finais de semana
não é um programa tão popular como tomar banho de rio, morar em frente à praia não é
tampouco visto como algo necessariamente bom. A areia, o sal e a maresia da região oceânica
de Caravelas são vistas como pouco salubres pelos moradores da cidade, que dista 14 km do
mar.
Determinadas situações revelam uma oposição entre os moradores da cidade e os
biólogos e oceanógrafos de fora, como dois blocos identitários bem delimitados e
homogêneos. Numa festa promovida pelo Movimento Cultural na Avenida em que, apesar de
convidados, não se viu nenhum biólogo, ouvi de mais de um morador da cidade reclamações
sobre “esse povo do sul, que não dá carona, não se acasala com a comunidade, não se
integra”. Quando se detecta uma situação de descaso ou de fraco reconhecimento dos de fora
para com os locais, os primeiros são taxados de egoístas, fechados em torno de si próprios e
pouco interessados na comunidade.
146
Outras situações, porém, revelam que os moradores da cidade, em especial os
integrantes do movimento cultural, embora apontem algumas tensões sobre a forma em geral
“estranha” que os biólogos teriam de se relacionar, são capazes de estabelecer distinções bem
claras que diferenciam internamente as pessoas que formam o grupo dos “de fora”. O grau de
distância e proximidade leva em conta diferentes variáveis. Há aqueles que não conhecem e
não querem conhecer os moradores de Caravelas. Com estes, obviamente, não há relação. Há
aqueles que são apresentados para o movimento cultural e eventualmente vão a festas. Com
estes se estabelece uma relação distante. Cruzar na rua e cumprimentar, cruzar na rua e parar
para conversar e cruzar na rua e ignorar, ou nunca cruzar na rua por se andar sempre de carro
ou moto também são marcadores de maior ou menor relação. As caronas também são indícios
importantes de “consideração”. Os pesquisadores de fora, porque sempre apressados, nem
sempre oferecem carona. Pode-se frequentar as festas do movimento cultural e ainda ser
distante. Participar das aulas de dança, ensaios do bloco são índices de maior integração. Ser
convidado para uma reunião do grupo e participar é um indicador ainda maior de intensidade
relacional. Participar das confraternizações do grupo ou ser chamado para almoçar na casa de
um integrante apontam para maior proximidade. Ajudar a escrever um projeto é um marcador
de compromisso com a continuidade do grupo. Fazer capoeira e flertar com integrantes do
movimento não é visto como revelador de especial profundidade da relação, mas namorar
firme e/ou casar ou ter filhos com moradores sim.
Esta atenção dos caravelenses aos detalhes do modo como os de fora se relacionam
revelam que os moradores da cidade dedicam-se ao delineamento de pequenas diferenças que
irão orientar seu modo próprio de se relacionar com quem não nasceu ali. A visão reversa, isto
é, das ONGs para com os moradores locais, é menos dotada de nuanças, como indica o uso da
palavra “comunidade” para se referir aos caravelenses como um todo e dos vocativos “tio” ou
“tiozão” para chamar pessoas mais velhas, uso que uniformiza o interlocutor e revela o
desconhecimento de seu nome próprio ou apelido.
Algumas das organizações ambientalistas acreditam que a “comunidade” os vê como
instituição “de fora”, que “só se interessa por baleias” e ressente-se do fato de que eles pouco
empregam a população local. Como veremos, elas partilham de uma visão comum sobre os
caravelenses, que não estariam suficientemente informados sobre a importância da proteção a
cetáceos - baleias e golfinhos - , assim como da preservação da natureza em geral. Por este
motivo, parte das ações das organizações é voltada para a chamada “educação ambiental”,
que, no caso do IBJ se inseria numa estratégia mais geral de projeção pública de uma imagem
mais amigável que rompesse com a desconfiança dos nativos. Seria a forma de se “chegar à
147
comunidade” e promover uma “sensibilização” dos moradores O conteúdo seria dado por um
conjunto de informações sobre o ciclo de vida dos cetáceos. Nas palavras de sua diretora:
“O objetivo de criar um Instituto foi dar um suporte administrativo e financeiro
para o Projeto Baleia Jubarte [que era parte da burocracia do órgão ambiental estatal]
e, além disso, criar um programa de educação e informação ambiental que seria a
nossa grande ferramenta de criar esse link com a comunidade, de mostrar para a
comunidade o que nós estamos fazendo, para que serve e ao mesmo tempo tentar, de
alguma forma, contribuir para a melhoria da qualidade vida dessa comunidade usando
como principal ferramenta a educação ambiental.”
Esta organização não-governamental nasce, portanto, de um órgão ambiental
governamental, que não teve condições materiais e financeiras de sustentar ações relacionadas
à proteção a cetáceos. A proximidade com o aparato estatal permanece, na medida em que
esta organização possui um convênio com as escolas do município e do estado e aí realiza seu
Projeto de Educação Ambiental. Em 2002, o Projeto de Educação Ambiental do Instituto
Baleia Jubarte desenvolvia este trabalho em oito escolas do município, estaduais e municipais,
com crianças de 1ª à 4ª série e era financiado pela BR Distribuidora, a Aracruz Celulose e a
ONG Conservation International.
Uma aula de Educação Ambiental
Assisti a uma aula de educação ambiental numa escola pública da Barra, distrito de
Caravelas - onde se desenvolve forte atividade pesqueira - com crianças da terceira série do
ensino básico, entre 8 e 9 anos de idade. As aulas foram ministradas por dois jovens
moradores de Caravelas, que então estavam em vias de completar o ensino médio e o
magistério, supervisionados por uma jovem professora contratada pelo Instituto, que cursava
Pedagogia numa faculdade particular em Teixeira de Freitas, centro urbano médio com 125
mil habitantes, à beira da BR 101, localizado a 70 km de Caravelas. Através de um convênio
direto com escolas municipais e estaduais, os educadores do Instituto visitavam cada escola
duas vezes por semana e realizavam atividades como esta que descrevo a seguir.
Entramos na sala e a algazarra era completa: crianças gritando, rindo, pulando, uma
agitação presumivelmente intensificada pela visita de muitas pessoas novas: os dois jovens
instrutores que dariam aula, a professora supervisora e eu a “pesquisadora”. Sentei-me no
fundo da sala e a supervisora na frente. Todos conversavam entre si e riam muito. A aula
começou com os gritos da professora responsável pela turma, que conseguiu, a duras penas,
fazer com que as crianças voltassem para suas carteiras. Os dois jovens professores pediram,
então, que as crianças fechassem os olhos. Todos se agitaram e começam a rir. Neste
148
momento, a professora da turma deixou a sala e só retornou após o fim da “dinâmica”. Os
jovens instrutores então disseram: “Podem dar risada, até relaxar. Vamos fazer um exercício
de criatividade”.
Aos poucos, a turma foi se acalmando e conseguindo permanecer de olhos fechados.
Os instrutores declararam: “agora imagine que você está subindo, sentindo o corpo subir,
saindo da escola, está vendo o telhado da escola, vendo a Barra e a praia lá de cima. Então
você vê algo no mar que parece com um peixe. Mas não é um peixe. O que é aquilo? É uma
baleia. Uma não, duas baleias, uma macho e outra fêmea. Elas estão namorando, vieram aqui
para se reproduzir. Do alto, você está observando as algas, os corais, os golfinhos, tudo
combina. Mas aí você vê algo diferente que não combina: um ser vivo que teima em fazer mal
para tudo isso. Uma espécie que tem muitos seres bons e muitos maus. Que polui a mata, o ar,
o mar. Esse mesmo ser esquece que retira o seu alimento do mar, do mato. Só ele contribui
para que o ambiente fique em desequilíbrio, só ele que faz algo de errado nesse meio
ambiente. Mas você não quer deixar isso continuar, você quer ensinar para cada um deles a
importância daquilo tudo. Aí você e seus colegas se juntam e juntos começam a lutar pelo
meio ambiente. Todos começam a voar mais alto, a ver todo o Brasil. Vêem nuvens, cometas,
estrelas, outros planetas”.
As crianças pareciam hipnotizadas, de olhos fechados e em completo silêncio, absortas
na narrativa. O instrutor continuou: “De lá, você vê a terra pequenininha e sabe que você é um
grão de areia naquele globo azul. Todos vocês nasceram ali, gostam desse equilíbrio. Mas dá
uma vontade grande de voltar. Você vê o Brasil, vê a Bahia, vê sua cidade, sua casa, o mar,
as baleias que ainda estão lá e vem trazendo uma estrelinha daquela lá no espaço. Ela é a
esperança de que um dia tudo pode ser melhor, tudo pode mudar. Vocês vêem a escola, as
salas, as crianças e a sua sala, cada um começa a perceber que está sentado na cadeira. E nota
que a estrelinha da esperança e do amor ainda está em nós. Começa a abrir devagar os olhos e
se lembrar da viagem”. Aos poucos crianças despertaram e abriram os olhos, ainda em
silêncio. O instrutor disse: “Por mais que eu estivesse falando de uma coisa só, cada um
imaginou certamente algo diferente. Então eu quero que cada um de vocês escreva e desenhe
o que imaginou.”
Aos poucos, as crianças voltaram a conversar e começaram a escrever sobre o que
‘viram” e sentiram. Enquanto escreviam, a professora da turma voltou à sala e começou a
circular pelas carteiras, vigiando a escrita das crianças e repreendendo rispidamente os erros
gramaticais de cada aluno. Diz: “Paula, o sujeito tem que concordar com o verbo!!” “Luís,
antes de p e b vem o quê?”; “Tá melhorando a letra, Rodrigo!”; “Vai começar o texto com
149
letra minúscula menino?” Observo que algumas crianças estão tão apavoradas com as
reprimendas da professora que sistematicamente escrevem e apagam o que haviam escrito
antes. E finalmente não conseguem terminar de escrever a tarefa no tempo estipulado, sendo
por isso ainda mais censuradas pela professora. Os jovens instrutores convocam, então,
voluntários para ir à frente do quadro negro e ler em voz alta para os colegas o que haviam
escrito. Alguns alunos se dispõem a ir para a frente da sala e ler. Depois disso, os jovens
professores recolhem os trabalhos e se despedem da turma.
Eis alguns trechos dos textos produzidos: “Eu vi a baleia e os planetas e as pessoas
maltratando a natureza e outras cuidando. Eu comecei a enxergar o mundo melhor”. “Eu
estava voando pelas nuvens olhando o mar, vendo coisas lindas, as baleias pulando no mar. E
vi as pessoas jogando lixo no mar, a baleia foi embora e seu pomar ficou muito sujo, as
baleias foram para outro mar viver, porque o mar estava sujo demais”. “Eu imaginei que
estava voando e também imaginei que eu limpei a rua e cuidei da baleia”. “Eu vi coisas boas e
coisas ruins: as boas foram os corais, as ruins foram os homens destruindo as coisas boas”.
Uma vez que tive acesso à totalidade dos textos produzidos, pude verificar que todas
as crianças redigiram textos em que afirmaram ter sentido sensações semelhantes a estar
flutuando e observando um mundo dividido entre os seres vivos do mar e os seres humanos,
responsáveis pela degradação da natureza. O assim chamado “exercício de criatividade”
acabou por induzir à produção de relatos muito semelhantes, que se evidenciam não apenas na
descrição da sensação experimentada coletivamente, mas também no próprio conteúdo dos
relatos sobre a relação dos homens com uma baleia dotada de emoções e atributos humanos.
Qualidades positivas de beleza, grandeza e raridade eram associados ao mamífero e sobre os
“homens” – indiferenciadamente - recaía a acusação de serem os responsáveis pela
degradação do meio onde a baleia vive. Os processos ou atividades que ameaçam a
sobrevivência das baleias e de outras espécies não foram tematizados pelas crianças e
professores.
Patrulhar, Fiscalizar, Denunciar: outros projetos das ONGs
Além do trabalho nas escolas diretamente com as crianças, o IBJ também desenvolvia
à época desta investigação um projeto de educação ambiental com os professores, que
objetiva disseminar a temática ambiental por todas as disciplinas. Por exemplo, nas aulas de
matemática, propõe-se estudar teoria dos conjuntos com elementos da natureza e nas aula de
português construir frases com temática ambiental. Além da atuação nas escolas, o IBJ
implementava um projeto de intervenção direta chamado “Patrulha Ecológica”. Tratava-se de
150
um grupo de crianças e adolescentes que, durante os meses de verão, passam o dia na praia
colhendo lixo e prestando informações ambientais para os turistas e as comunidades quanto à
importância da preservação das praias e mares. Os jovens instrutores, hoje estagiários no
Instituto, começaram como voluntários do “Patrulha Ecológica”. Além da Patrulha, as
crianças também são o público-alvo do trabalho dos “Fiscais do Meio Ambiente”,
organização fundada por um casal de artistas plásticos paulistas, moradores do distrito da
Barra, que possuíam uma Reserva Particular do Patrimônio Natural
87
.
Financiados pela ONG IAPA - que recebe recursos das compensações ambientais e
patrocínios da Aracruz Celulose e os repassa para outras ONGs e para o Parque Nacional
Marinho - os Fiscais do Meio Ambiente distribuíram amplamente para a população da cidade
uma cartilha com o objetivo de educar os moradores a proteger as espécies animais, com
destaque para o fato de que a caça de “animais silvestres’ é crime inafiançável. Escrito como
uma fábula, conta a trágica história de duas tamanduás fêmeas, mãe e filhote, amigas dos
fiscais do meio ambiente, que são crianças: um índio, um negro, uma branca e dois mestiços.
Os fiscais do meio ambiente ouvem as reclamações dos animais da mata e prometem levar as
denúncias para a cidade, “para que todas as pessoas saibam que os bichinhos estão sofrendo
com gente que não respeita a lei”.
Na fábula, dois caçadores – um branco alto e um mestiço forte - encontram as
tamanduás fêmeas, atiram e matam a maior, a mãe. A filhote sobrevive e passa pela terrível
experiência de “assistir ao descarne da mãe”, enquanto os malfeitores comentam: “belo
couro”. Um passarinho observa tudo e denuncia os caçadores aos fiscais do meio ambiente.
Estes vão à casa dos caçadores e, amigavelmente, os esclarecem que “pela lei o senhor pode
ser preso e ter que paga uma multa muito alta”. O caçador se revolta e nega ser considerado
“bandido”. Os fiscais explicam que “até ontem caçar era uma coisa comum, mas agora é
preciso parar, pois os animais estão acabando, indefesos. A lei veio para proteger o que
sobrou da natureza, que o homem ainda não destruiu”. Os fiscais pedem de volta a filhote de
tamanduá. O caçador mestiço se nega a entregá-la, mas branco o faz e diz: “Eu sou pobre,
mas sou homem de bem. Se caçar hoje é crime, toma! Peguem sua amiguinha.” A tamanduá é
então liberada na mata, mas o caçador malvado, resolve voltar para a mata e matar a bichinha.
Quando está prestes a atirar, dois policiais surgem gritando: “três anos de cadeia se você
87
Trata-se de uma modalidade de área protegida privada, caracterizada pelo tombamento de uma área particular
de relevante interesse ecológico, que, nas palavras de um ambientalista, torna-se, então, “uma unidade de
conservação com dono”.
151
abater este animal” e o levam para a delegacia, no camburão. A moral da história é “metade
da pena foi cumprida na cadeia e a outra, trabalhando de graça no zoológico da cidade”.
Evidentemente tanto este texto como a aula de educação ambiental revelam muito
mais sobre como as organizações ambientalistas “de fora” entendem o que chamam de
“natureza” do que sobre a relação que os caravelenses têm com seu meio. Em ambos observa-
se uma relação de completa exterioridade entre humanos e meio ambiente, uma imagem da
natureza como algo a ser preservado ou intocado e uma caracterização dos humanos como
seres potencialmente nocivos à manutenção do equilíbrio deste meio, que funcionaria de
modo ideal sem a presença humana.
Considerando que a carne de caça é muito apreciada pelos caravelenses e que –
embora bem menos comum do que no passado devido à tomada das áreas rurais do município
pelo eucalipto – esta é uma atividade que nunca cessou na região, não é de se estranhar que a
cartilha dos Fiscais da Natureza tenha surtido efeito contrário do que o pretendido. Funcionou
como alerta para a população de que “caçar é crime inafiançável” e levou as pessoas não a
pararem de caçar, o que seria considerado risível, mas a manterem a atividade em sigilo.
Quando alguém aparece com uma caça sempre se diz “fulano caçou e me deu uma parte”.
Comer caça é algo que também fez os moradores da ribeirinha demarcarem uma diferença
entre antropólogos – que segundo eles “adoram caça” - e os biólogos, que, se pudessem,
dariam voz de prisão ao caçador.
O carnaval do eucalipto
As crianças caravelenses, além de estarem sendo educadas para amar as baleias, a
sentirem-se responsáveis pelo lixo na praia, a desconfiar que homens parecidos com seus pais
fazem mal aos animais e a temer pela sua prisão por crimes ambientais, também estão
aprendendo a gostar do eucalipto. No carnaval de 2002, a empresa Aracruz celulose
patrocinou as duas únicas escolas de samba da cidade, por intermédio da Prefeitura de
Caravelas e o enredo das duas escolas foi o eucalipto. Nas duas escolas havia alas inteiras
com crianças vestidas de eucalipto, com uma faixa na testa onde lia-se “eucaliptal”. Todas
cantavam animadamente os sambas, cujo título não deixa dúvidas quanto à intenção das
escolas: “Da Proteção Ambiental à Sedução do Carnaval: O “Eucalipto” mostra do seu valor”.
As letras estabeleciam uma ligação entre o cultivo do eucalipto, a proteção ao meio ambiente
e um certo nacionalismo romântico: “O Homem plantou, cultivou, produziu/ Para conter o
desmatamento/ Preservando a floresta/ Alimentando a riqueza deste solo brasileiro”. Mais do
que isso, os versos enfatizavam a diversidade de aplicações e usos do eucalipto e associavam
152
o eucalipto ao progresso das condições de vida: “Dela se faz celulose/E também
construção/Faz essência para perfume/Queima para fazer carvão/Faz remédios e artigos de
limpeza em geral/É o eucalipto tema da Coroa Imperial/Enaltecendo Caravelas pelo seu
desenvolvimento social”. E, por fim, destacavam os supostos benefícios que o eucalipto teria
trazido à Caravelas, na esfera do meio ambiente, do trabalho e da educação: “Mostro o
Progresso/Que a celulose oferece a Caravelas/A Proteção Ambiental, a Produção Regional,
Educação e Trabalho Social”
88
.
O desfile das escolas de samba da cidade aconteceu logo após o desfile do
Umbandaum. Os sambas-enredo, como se vê, não apenas eram uma espécie de apologia ao
eucalipto como também estabeleciam uma relação entre o cultivo do eucalipto e a proteção
do meio ambiente.
O enaltecimento deste cultivo que, após a extração da madeira e a tomada da região
por pastagens, vem se expandindo de forma desregulada pelo sul da Bahia, extinguindo o
que havia restado de pequenas propriedades e da mata atlântica, foi rapidamente entendido
por um integrante do Umbandaum como pernicioso. Ao deparar-se com uma ala da escola
de samba chamada “eucaliptal”, repleta de crianças vestidas de eucalipto, esse me disse, ao
pé do ouvido: “isso é pior do que lavagem cerebral”.
Estratégias de captura
Qualquer pesquisa que se situe hoje no norte do Espírito Santo e no sul da Bahia
inevitavelmente irá esbarrar com o eucalipto. Os maciços deste monocultivo tomam a perder
de vista a BR 101 no norte do Espírito Santo e a estrada de 70km que liga Teixeira de Freitas
a Caravelas. Correm-se quilômetros literalmente dentro dos eucaliptais, o que provoca nas
pessoas uma sensação “de andar, andar e não sair do lugar”, como uma vez me relatou um
caravelense. A paisagem uniforme e indiferenciada é, de fato, ainda mais perturbadora para
88
Eis a transcrição dos sambas-enredo: Coroa Imperial – O Eucalipto
“Veio de lá/ De além-mar para o Brasil/ O Homem plantou, cultivou, produziu,/ Para conter o desmatamento/
Navarro foi o grande pioneiro/ Preservando a floresta/ Alimentando a riqueza deste solo brasileiro/ Dela se faz
celulose/ E também construção/ Faz essência para perfume/ Queima para fazer carvão/ Faz remédios e artigos de
limpeza em geral/ É o eucalipto tema da Coroa Imperial/ Enaltecendo Caravelas pelo seu desenvolvimento
social/ Vou jogar a minha rede/ Tenho orgulho do que faço/ Iemanjá me manda o peixe (BIS)/ Meu amor beijo e
abraço/ E veio de lá...”
Irmãos Portela Da Proteção Ambiental à Sedução do Carnaval: O ‘Eucalipto’ mostra do seu valor. “Vem, oi
vem a Águia’ decolando/ Meu coração palpitando, já sinto um arrepiar/ Hoje eu sou, sou rei, sou pierrot/ Sou
palhaço, sou ator/ Da Portela eu sou amor/ Mostro o ‘Progresso’/ Que a ‘celulose’ oferece a ‘Caravelas’ (BIS)/ A
Proteção Ambiental, a Produção Regional/ Educação e Trabalho Social/ O Balança/ Balança o corpo deixa o
clima te envolver/ Eu quero ver você mexer, roda baiana/ Que a “Nossa Força” vem regando a Portela/ ‘O
Eucalipto1’ cresceu na passarela/ ‘Irmãos Portela’, sublime parte pra arte desta cidade/ Que a ‘Celulose’ vem,
vem abrilhantar com seu valor/ (Tem perfume pelo ar)/ Tem ‘Perfume’ pelo ar, da Portela/ Quarta-feira ‘Banho
de Cheiro’/ Vou tentar me segurar/ Pra não chorar”
153
quem conhece a região há muitas décadas: os antigos referenciais dos lugares ao longo da
estrada se foram. Tudo é igual quando se está num túnel de eucalipto e são poucos os
moradores, sítios e fazendas que ainda permitem alguém se localizar. Se nas cidades não se vê
eucaliptos, o monocultivo se faz presente de forma mais sutil mas não menos efetiva: através
da estratégia de “relações comunitárias” da empresa, que vem desenvolvendo um trabalho de
docilização dos moradores através de diferentes formas de educação implementadas por
ONGs que aí atuam.
Duas precauções metodológicas. A Aracruz é inegavelmente onipresente no cotidiano
de quem vive em Caravelas e bem poderia ser vista como uma “potência total” que captura
pessoas desprovidas de outra alternativa. Não pretendemos, porém, analisar a empresa em si
mesma como bloco a partir do qual se projetariam tentáculos manipuladores transformando os
moradores da cidade em marionetes desta potência suprema.
Queremos ou pudemos aqui entender, em primeiro lugar, o que chega aos moradores
e, mais precisamente, ao movimento cultural. Em outras palavras, não tivemos acesso e não
procuramos o que é pensado dentro dos núcleos empresariais sobre “responsabilidade social
da empresa”, pesquisa que poderia ser em si mesma interessante. O que nós fizemos foi
buscar levar a sério duas ideias com as quais me defrontei no campo. A primeira, aquela de
“relações comunitárias” – título de um cargo da empresa cujo titular evidentemente recebeu-
me muito bem e forneceu-me muitas informações sobre a empresa. A segunda ideia é a de “é
pior do que lavagem cerebral”, que Jaco formulou ao observar as crianças da Avenida
vestidas de eucalipto.
Estas duas ideias nos mostram que o que está em jogo são os meios pelos quais é
forjada a adesão a algo
89
. Este é o nosso objeto neste capítulo e para isso tivemos que
observar como as ONGs se relacionam com a “comunidade” para construir uma certa forma
de apropriação do “meio ambiente”. De saída, percebemos que não é possível falar sobre
ONGs sem mencionar a Aracruz e sobre como esta se relaciona com a “comunidade”. Daí
nosso desvio para a empresa. Desvio este que revela que a ação da empresa não é direta: há
uma rede empresa-ONGs-comunidade. Se nossa atenção agora recairá sobre a empresa, não
devemos perder de vista que seu modo de ação é em rede com as ONGs e “moradores-chave”.
Nem tampouco perder de vista que há caravelenses que não se deixam capturar pelas ações da
Aracruz, que as consideram perniciosas e “piores do que lavagem cerebral”. Esta última
concepção está intimamente relacionada ao conceito de arte tal como desenvolvido pelo
89
Se esta “adesão” ocorre ou não, se é bem sucedida ou falha, é um tema que está desenvolvido no próximo
capítulo.
154
movimento cultural. Em poucas palavras, a arte traria em si mesma uma potência de
transformação subjetiva. O processo de criação artística por definição transformaria não
apenas a matéria sobre o qual o objeto de arte é criado, mas o próprio artista. A arte
provocaria uma espécie de abertura ou bifurcação no sujeito – cisão que poderá ou não se
desdobrar numa transformação. O que Jaco considera pernicioso nesta atuação nem tão sutil
da empresa junto às crianças caravelenses é precisamente o fato dela fazer uso de técnicas
artísticas para se impor. E se Jaco identifica esta forma de ação é também porque o
movimento cultural também opera deste modo, mas com outro propósito: o de fazer pensar.
Nem todas as formas de educar a população caravelense – especialmente as crianças –
acima descritas são entendidas por Jaco como eficientes, como é o caso das aulas de educação
ambiental, a limpeza das praias e a cartilha sobre a criminalização da caça. Os expedientes
vinculados a uma lógica estritamente disciplinar podem ser efetivos, mas para Jaco encontram
grande resistência nas crianças e nos pais. Conheci muitos pais, por exemplo, que proibem
seus filhos de fazer a limpeza de praias – “meu filho não é gari”. No entanto, o bloco de
carnaval do eucalipto, isto é, a associação entre a monocultura do eucalipto e a alegria e a
liberdade do carnaval e, mais do que isso, a transformação de crianças em pequenos
eucaliptos, induzida pelo paramento que todas vestiam no bloco, para Jaco foi algo além do
tolerável. Lavagem cerebral é sinônimo de bloqueio de pensamento. Para Jaco, o que os
carnavalescos da cidade fizeram ao vestir a meninada da cidade de eucalipto foi produzir a
adesão irreflexiva a algo. O grande perigo situa-se quando se pára de pensar.
Mas “quem” é a Aracruz celulose? Que empresa é essa que financia tantas atividades
executadas por locais? Conhecida então como Aracruz Celulose
90
, esta empresa hoje passa
por um processo de limpeza de sua imagem (conhecido em inglês como greenwashing ou
maquiagem verde), em função do desgaste motivado pelos impactos sociais e ambientais
nocivos e por perdas financeiras milionárias na última crise econômica mundial. Sou novo
nome é Fibria e ela é resultado da incorporação das ações da Aracruz Celulose pela
Votorantim Celulose e Papel, por meio de sua holding, a Votorantim Industrial
91
.
90
O controle acionário da Aracruz era então exercido pelos grupos Lorentzen (28%), Votorantim (28%) e Safra
(28%) e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES (12,5%). As ações da empresa
eram negociadas nas Bolsas de Valores de São Paulo, Nova York e Madri e sofreram enormes perdas com a
crise econômica de 2008.
91
Sua composição acionária é formada por 29,3% da Votorantim industrial; 33,6% do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outros 37,1% são ações no mercado. Manteremos o nome
Aracruz, pelo qual esta empresa era conhecida durante o período da pesquisa.
155
A expansão da monocultura do eucalipto se deu de forma rápida e massiva nestas
regiões, principalmente nas décadas de 90 e na primeira década do século XXI. As tensões
não tardaram a brotar por conta do avanço do eucalipto sobre terras indígenas e de populações
tradicionais (citar alguns exemplos 2006), mas, de um modo geral, os cultivos simplesmente
cercaram pequenos agricultores familiares obrigando-os a vender a terra e se mudar ou a
arrendar sua terra para a empresa, um negócio conhecido como fomento florestal. A tomada
das terras da região fizeram desaparecer vilas rurais produtoras de alimento. Hoje, a maior
parte da produção de legumes, frutas e hortaliças consumida pela população da região provém
de Vitória, a 600 km de Caravelas, o que os encarece bastante. Algum alimento ainda é
produzido pela população ribeirinha e vendido na feira semanal, mas mal suprem a demanda.
A pasta de celulose é um dos principais itens da pauta da exportação brasileira. Com linha de
crédito no BNDES e omissão ativa dos órgãos ambientais estaduais e nacionais, o plantio de
eucalipto vem se alastrando Brasil afora sem nenhum controle o regulação. As tentativas de se
estabelecer limites ao plantio foram derrotadas. Em outubro de 2001, a Assembléia
Legislativa do estado do Espírito Santo aprovou uma lei estadual (6.780/01) que condicionava
o plantio de eucalipto para celulose à realização de um zoneamento agro-ecológico.
No Espírito Santo, a empresa é acusada de uma série de violações, que incluem a
apropriação ilegal de terras indígenas, de remanescentes de quilombos e de agricultores
familiares; degradação ambiental e perda de biodiversidade provocadas pela derrubada das
matas nativas e secagem dos rios nas regiões da eucaliptocultura; mutilação grande número de
serralheiros florestais; desemprego em massa causado pela automatização da cadeia
produtiva; além do trabalho desumano a que são submetidos as famílias de carvoeiros,
inclusive crianças, que vivem precariamente da queima de resíduos do eucalipto nas margens
dos maciços de eucaliptos. Uma rede informal com dezenas de entidades, movimentos,
sindicatos, comissões e pastorais – a Rede Alerta Contra o Deserto Verde - surgiu em 1999,
como uma reação de movimentos sociais, sindicatos e grupos indígenas - contra a expansão
da multinacional (com capital norueguês e brasileiro), denunciando as violações sistemáticas
a direitos fundamentais a que a empresa vinha há anos cometendo.
Para escapar das pressões do movimento social e manter “sua condição de um dos
produtores de menor custo em todo o mundo”
92
, como descreve o presidente do Conselho de
Administração da Aracruz em seu relatório anual de 2001, a estratégia da empresa foi se
deslocalizar e expandir os plantios de eucalipto no sul baiano, norte e nordeste mineiro e o
92
Além disso, a Aracruz Celulose responde por 31% da oferta de celulose branqueada de eucalipto no mundo.
156
norte fluminense. Meses depois da aprovação da lei no ES, a empresa conseguiu liminar
favorável do Supremo Tribunal Federal, em junho de 2002, alegando a inconstitucionalidade
da lei 6.780/01. Logo em seguida, a empresa inaugurou sua 3ª fábrica no ES, sob fortes
manifestações dos movimentos, prevendo a elevação da sua capacidade de produção de 1,3
milhões de toneladas por ano para 2 milhões de toneladas de celulose por ano. Os plantios no
ES foram retomados, mas a empresa manteve seu foco estratégico nas regiões onde a pressão
social é menos articulada, intensificando, portanto, sua presença no sul baiano.
Em 2002, a Aracruz estava em vias de construir um terminal marítimo-fluvial para o
transporte das toras de eucalipto, que tomam quase 70% das terras agricultáveis do município
(Cf. IMA, 2008). Para obter a licença de operação, a empresa foi obrigada por lei – e pela
pressão das ONGs locais - a cumprir uma série de “medidas condicionantes” e
“compensatórias”. Estas medidas são motivadas pelo fato do terminal marítimo ter-se
instalado em área de manguezal (considerada área protegida) e pela operação de uma draga
que afeta o principal pesqueiro de camarão da região. Além disso, o porto afetaria uma região
considerada ecologicamente sensível por ser uma área de reprodução de cetáceos. Todos os
danos potenciais da operação do terminal marítimo foram monetarizados e transformados em
programas de compensação ambiental, implementado pelas ONGs locais. Em teoria, já que se
trata de medidas mitigatórias previstas em lei, a empresa não deveria estampar sua logomarca
nas camisetas, placas, carros e sedes de ONGs como faz. Mas sua estratégia foi acrescentar
um valor às compensações ambientais e, com isso, transformá-las em patrocínio, o que torna
legítimo que os programas implementados por ONGs venham acompanhados de todo um
aparato de propaganda institucional.
O Instituto Baleia Jubarte foi a entidade responsável pela implantação de alguns dos
condicionantes ambientais e sociais da obra do terminal de barcaças. Um dos condicionantes
foi o monitoramento do percurso das baleias e de pequenos cetáceos, como botos e golfinhos;
o outro condicionante foi um projeto de educação ambiental, que teve como público alvo
todos os setores organizados da cidade: os professores, pescadores, associações de bairros, a
maçonaria, irmandades religiosas etc. Todas as suas camisetas, sua sede, seus carros e
materiais educativos possuem dão destaque para a logomarca da Aracruz e da BR
Distribuidora.
Em conversa com o Superintendente de Relações Comunitárias da Aracruz, este
descreveu-me como são implementados os projetos sociais, entendidos por ele como
dimensões fundamentais da presença da empresa nas cidades onde atua:
157
“Fazemos projetos sociais através de ONGs, como o Instituto Baleia e a CI, além do
CRA e do IBAMA, além de doações para melhoria da infra-estrutura do município: reforma e
ampliação da colônia de pesca, doação de um rádio, doação de computadores para a secretaria
de educação, doações de 5 computadores para a loja maçônica, construção de um pontilhão
em Ponta de Areia, a pedido da comunidade, realização de um vídeo institucional sobre
Caravelas e reforma e ampliação do trapiche dos pescadores.” Indagado sobre quais são os
critérios que definem o destino dos recursos para as medidas compensatórias, o
superintendente explicou-me que a existência de medidas condicionantes e compensatórias é
prevista por lei, mas onde eles serão aplicados e por quem é, segundo ele, definido pelo
empreendedor. Em suas palavras, “isso facilita para a empresa na medida em que ela mesma
opera a liberação de verbas para os projetos que escolhe”
93
.
Vejamos alguns exemplos do que chamo de projetos “compensatórios-patrocinados”.
“Relações comunitárias”: compensação e patrocínio
Pude conhecer as ações implantadas pelo setor de “relações com a comunidade” da
empresa em dois municípios do extremo sul, Caravelas e Alcobaça. No município de
Alcobaça, empresas de celulose restauraram o prédio do posto de saúde, construíram um
pequeno parque, pintaram 24 escolas, montaram bibliotecas equipadas e reergueram a banda
filarmônica local. Além desses projetos, a Bahia Sul – empresa produtora de celulose de
capital nacional que em 2001 passou a ser controlada pela Companhia Suzano de Papel e
Celulose
94
- financiava o Projeto Sementeira. Trata-se do plantio de “hortas comunitárias” nas
escolas do município, acompanhado de aulas de educação ambiental para os estudantes, em
bases semelhantes às aulas do IBJ. Além disso, em Alcobaça havia um projeto chamado
“Exército da Natureza”, que, tal como o “Patrulha Ecológica” de Caravelas, mobilizava
estudantes voluntários para atividades de limpeza urbana e plantio de árvores.
Na Secretaria de Turismo e Meio Ambiente de Caravelas fui recebida com uma
formalidade excessiva e por um secretário cujo discurso enaltecedor da importância das
empresas de eucalipto e celulose não me fez ter dúvidas sobre a inegável presença das
empresas também no meio governamental. Em Alcobaça, porém, onde havia uma secretaria
93
Notícias recentes do campo dão conta de que a Aracruz, agora chamada “Fibria”, instalou na cidade uma ONG
chamada “NGE Tecnologias Sociais”, que vem implementando o projeto “Empreender com Fibria”, para a
formação de novos “empreendedores”, dos quais um dos sub-projetos é o “Pescar com Fibria”, que envolve a
participação ativa de muitos pescadores e se propõe a “estruturar a cadeia produtiva do pescado”.
94
Que tem como acionistas principais a Suzano Holding S.A. (35%), o BNDES participações S.A. (12%), a
Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (4%) e o banco J. P. Morgan (2%). Outros = 47%
158
de meio ambiente destacada da secretaria de Turismo e um corpo técnico próprio, as
contradições das empresas de eucalipto e celulose – a um só tempo os maiores destruidores e
protetores do meio ambiente na região – fizeram-se evidenciar.
Indagados sobre as possíveis denúncias de danos ambientais causados pela Aracruz e a
Bahia Sul, obtive uma resposta ao mesmo tempo indignada e resignada dos funcionários da
Secretaria de Meio Ambiente da Alcobaça “eles simplesmente acabaram com a mata
atlântica”. Segundo eles, embora o discurso da empresa seja de que o plantio de eucalipto só
acontece em pastagens de antigas fazendas de gado, grande parte da Mata Atlântica do sul
baiano foi suprimida para dar lugar à monocultura de árvores. A Secretaria havia recebido
uma denúncia poucos dias antes contra a empresa Plantar, sub-contratada da Aracruz que
realiza os plantios das mudas, pelo lançamento de 3000 litros de herbicida (glifosato) no leito
do rio Santo Antônio, que passa pela região. Um dos funcionários, agrônomo de formação,
destacou a “ironia” de que “as empresas que mais destroem o meio ambiente no Brasil”,
segundo ele, “a Petrobrás e a Aracruz”, serem justamente as que “mais estão presentes no
município protegendo as baleias e oferecendo aulas de educação ambiental”. Segundo este
funcionário, “deveria ter aula de educação ambiental para os caras que trabalham na Aracruz”,
disse ele.
Um professor de Alcobaça relatou-me em detalhes a estratégia de propaganda da
empresa, que com isso consegue angariar o apoio da população: “O povo acha maravilhoso e
quem é contra a empresa só falta ser apedrejado”. De fato, os membros do movimento cultural
Arte Manha foram as únicas vozes dissonantes na Audiência Pública realizada em Caravelas
durante o processo de licenciamento do porto. E foram efusivamente vaiados por boa parte
dos moradores presentes.
Os laços de afinidade da Aracruz celulose com o poder público se evidenciam de
forma cristalina no relatório da empresa sobre “Qualificação Profissional” de 2001. No
capítulo “Avaliação dos Parceiros”, destaca-se fotos do Prefeito da cidade de Caravelas, do
Presidente da Câmara Municipal e de um conhecido vereador. Diz o Prefeito: “Se não fosse a
parceria com a Aracruz Celulose não teríamos qualificado todos estes trabalhadores e não
teríamos mão-de-obra própria para executar esse trabalho. Há uma Caravelas antes da Aracruz
e outra depois”. Diz o vereador: “As empresas estão chegando. Estamos resgatando os nossos
sonhos. A Aracruz é responsável por isso”.
Em Caravelas, a empresa é acusada de ter doado carros zero quilômetro aos
vereadores e ao escritório local do Centro de Recursos Ambientais, órgão ambiental estadual.
Em fevereiro de 2002, quando estive na cidade a primeira vez, o funcionário do CRA havia
159
sido exonerado por ter imposto condições restritivas durante o processo de licenciamento para
a construção do terminal marítimo da Aracruz. Durante todo o processo de licenciamento da
obra, a Aracruz ofereceu, em parceria com o SENAI, cursos profissionalizantes de artesanato,
panificação, corte e costura, silk-screen e construção. O crescimento econômico da cidade e a
atração de mão-de-obra de fora criaria um novo mercado de trabalho que necessitaria de
trabalhadores qualificados. Mas o efeito desta estratégia da empresa sobre os moradores não
foi pequeno: muitos moradores da Avenida fizeram os cursos e esperavam ansiosamente por
uma “vaga” aberta pelos efeitos dos “investimentos” que a Aracruz supostamente traria para a
cidade.
Alguns anos depois de concluídas as obras do terminal particular da Aracruz, os
moradores de Caravelas despertaram do seu sonho de conseguirem um emprego. Quase a
totalidade do processo de desembarque das toras de eucalipto é automatizado, as balsas e as
dragas que funcionam dia e noite para permitir a passagem das balsas por um canal assoreado
empregam em torno de 12 pessoas, em sua maioria oriundas de outras localidades. O serviço
de manutenção e limpeza é o único que conta com moradores locais, que trabalham em turnos
de 12h e ganham menos de 2 salários-mínimos por mês.
Além de promover a aceitação da presença do porto e a expansão do plantio de
eucalipto no município junto aos grupos organizados da cidade, a empresa teve preocupação
particular em educar os operários que prestavam serviço para a empresa, para que eles não
fossem agentes poluidores ou de desequilíbrio do ambiente da região, nem da saúde sexual da
população que vive no entorno do terminal marítimo.
Além das aulas de educação ambiental para as crianças e os setores organizados da cidade,
uma das medidas condicionantes para a obtenção da licença de operação do porto foram aulas
de educação sexual e ambiental para os operários da obra.
Durante a construção do terminal de barcaças, pude assistir a uma dessas aula de
educação sexual e ambiental prevista nos condicionantes, direcionadas para os operários da
obra. O professor era um funcionário do Instituto Baleia Jubarte, a que chamarei de Paulo e
que gentilmente permitiu-me assistir à aula, sem que o superintendente de relações
comunitárias o soubesse. A metodologia utilizada tinha como objetivo abranger aquilo que a
empresa e a ONG entendiam como “problemas potenciais que podem surgir com um porto” e
que se deveria “tentar minimizar desde o começo”. Esses problemas eram não apenas os
impactos ambientais da obra, mas o risco de disseminação de doenças sexualmente
transmissíveis e de uso de drogas, que supõe-se irromper a partir da instalação de um porto.
160
Nas aulas, os operários aprendiam que estavam entre os “efeitos adversos” da instalação do
porto e que eram vistos como classe perigosa pelos seus empregadores.
Uma aula de educação sexual e ambiental
“Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo, trata-se de lhe impor
uma ordem”
95
Enquanto esperávamos a hora do almoço, quando os operários da empreiteira sub-
contratada pela Aracruz seriam liberados para a aula, numa sala improvisada numa espécie de
container sem janelas e com forte ar condicionado, fiquei conversando com o técnico de
segurança, que iria dar uma palestra sobre segurança do trabalho logo após a aula de educação
sexual e ambiental. Contou-me que houve um acidente na obra naquele mesmo dia. Segundo
ele, “um operário teve mal súbito, porque comeu e foi trabalhar direto. Teve vista escura e
caiu quatro metros de cabeça. Caiu no mangue. Sorte dele. Foi para o hospital”. Em seguida, o
técnico de segurança se dirige a Paulo e indaga: “você acha que o campo ambiental está bom
em termos de trabalho, de emprego? Estou pensando procurar um trabalho nessa área...”
Paulo responde que o campo ambiental está em expansão em termos de emprego e que as
“áreas promissoras são EIA-RIMA, saneamento, reciclagem, resíduo sólido, parte de
engenharia de florestas e manejo florestal.”
Eram 10 operários ao todo, usando um boné e o capacete de trabalho por cima do
boné. Paulo se apresenta, me apresenta e se coloca à frente de uma projeção em power point
sobre doenças sexualmente transmissíveis: “Aqui será uma área portuária e áreas portuárias
têm uma tendência ao desenvolvimento de prostituição, de uso de drogas e transmissão de
doenças sexualmente transmissíveis. Então essa é uma preocupação muito grande da
comunidade. A gente quer fazer um trabalho preventivo. Quase todo mundo aqui é de
Caravelas, então a gente sabe que tem sua mulher ou sua namorada por aqui, mas tem muita
gente que vem de fora, de tudo quanto é canto do Brasil para trabalhar na obra. Então a gente
tem que tomar cuidado e prevenir para que não ocorra transmissão de DSTs. A mais perigosa
de todas é a AIDS, uma doença que não tem cura e causada por um micróbio, o vírus, que
mata os glóbulos brancos, que são as células que defendem a gente das doenças. Então você
pega uma doença, uma gripe e pode morrer de gripe, pneumonia.”
Paulo apresenta uma foto de uma mulher sensual ao lado da frase “ela não sabe que
tem AIDS”. E continua: “tu vai lá com uma menininha bonitinha e ela tem AIDS. Não dá para
saber, não está escrito na cara. A gente não sabe quem tem e quem não tem, só vai saber se
95
Foucault, 1987, p.135.
161
fizer exame. As pessoas que tomam remédio e parece que não tem doença nenhuma. A pessoa
magra, cadavérica, já é doente terminal. Pode ser gordo e forte e ter AIDS. Antigamente o
pessoal falava muito de “grupo de risco”: usuário de drogas, prostitutas e homossexuais.
Usuários de drogas ainda é grupo de risco. Mas hoje em dia não existe essa história: hoje é a
sociedade inteira, todo mundo está sujeito a pegar AIDS.” Ele conta que os portos de Itajaí e
de Santos são as cidades com maiores índices de AIDS do Brasil. Muitas vezes devido à
transmissão através de drogas injetáveis (70% em Itajaí).
Depois de explicar as vias de transmissão da doença, enfatizando como “pega” e como
“não pega”, disse: “A camisinha custa R$ 1,20. Todo dia eu pego minha mulher, no final do
mês dá 20 reais de camisinha. Só ganho 200 aqui na obra, dá 10% do meu salário. Então não
uso camisinha porque não tenho dinheiro. Então vai lá na secretaria de saúde, leva sua carteira
de identidade, faz um cadastro e eles vão te dar camisinha. Não tem desculpa, é só ir lá.”
Segundo ele, “não tem desculpa” também para as jovens que engravidam: “Aqui em
Caravelas a gente vê muita menina grávida. Se a camisinha estourou há a pílula do dia
seguinte, não precisa ficar grávida.”
Ele conta que Caravelas tem um alto índice de sífilis, “o pessoal não faz exame”. Uma
imagem com um pênis com uma ferida provoca um certo mal estar entre operários: “a sífilis
dá um pus e aumenta cada vez mais”, diz o professor. Alguém pergunta se tem como “matar a
doença”. Paulo explica que todas as doenças sexualmente transmissíveis têm cura, exceto a
AIDS. “A herpes genital dá um pus e a sífilis um buraco maior. Se apareceu um
machucadinho, fica esperto e vai no urologista.”
Paulo exibe mais algumas imagens assustadoras de genitálias afetadas por DSTs.
Explica que gonorréia é a infecção por uma bactéria e descreve em detalhes a sintomatologia
da doença, “que pode se espalhar e ir para as articulações do corpo”. Todos os operários
olham atentamente para as imagens e ouvem as orientações de Paulo. Nenhuma pergunta.
Paulo conclui: “É importante falar da relação de vocês com a comunidade. A gente sabe que
tem um pessoal de fora. Há uma preocupação bastante grande aqui na cidade com essas
questões. Aqui a fofoca rola solta, é uma cidade pequenininha. Se o pessoal ver algum de
você aí fazendo coisa errada, não tenha dúvida de que isso vai chegar na boca do pessoal e se
for coisa séria, vai chegar aqui. Embora vocês trabalhem para a [empreiteira] Civil Porte, a
comunidade vê tudo como Aracruz. Quando tem alguma reclamação, eles reclamam mesmo.
É respeitar a comunidade, não fazer aqui o que vocês não gostariam que fizessem onde vocês
moram”.
162
O tema da aula se deslocou, então, de forma um tanto quanto repentina para a
importância de se preservar o meio ambiente na região. Paulo explicou que Caravelas é uma
das cidades mais importantes do Brasil e do mundo na questão do meio ambiente,
principalmente por causa dos recifes de coral, manguezais, peixe, baleia e “o que sobrou da
mata atlântica”. Segundo ele, a importância de Caravelas na região é evidenciada pela
presença do IBAMA, da CRA, do Baleia Jubarte e da CI – órgãos ambientais e não
governamentais - que seriam “indicadores” da importância ambiental da região. Alertou que a
caça é proibida e quem for pego caçando está sujeito a dois anos de prisão, sem fiança:
“Aquele que mora por aqui ou trabalha no terminal e tem dinheiro para comer carne no final
de semana, não tem desculpa, se for pego, vai preso”.
Em seguida Paulo explicou que "o principal problema ambiental aqui da área é a
dragagem, que é o que permite a operação do porto e a passagem da balsa. Quando ela solta a
lama, essa lama se espalha pelo mar e pode chegar aos corais. Há já um assoreamento natural
na região, mas com a dragagem esses sedimentos que estão parados no fundo do mar se
movimentam. Se morrem os corais, morrem os peixes pequenos, morre o budião, o badejo e
com tempo morre o pescador que não tem o que pescar. Então, fazemos um sistema de
monitoramento, que impede que essa lama chegue até lá. Se a lama estiver chegando perto do
coral, tem que parar a dragagem. Um problema que surgiu é que a área onde está sendo
jogada a lama era o pesqueiro do camarão, muito importante para a pesca aqui."
A aula se encerrou com explicações de Paulo sobre a importância de registrar no
IBAMA os passarinhos que porventura eles tenham em casa. Indaguei aos operários presentes
o que eles faziam antes de trabalhar na construção do porto. Entre as resposta que recebi,
nota-se uma sutil, mas importante diferença na forma como os operários se veem: “Eu era
ajudante de pedreiro”, “eu era pedreiro”, “eu era padeiro”, “eu era pintor”, “eu sou pescador”,
“eu sou pescador”. De fato, como veremos adiante, os pescadores não entendem sua
transformação em operário como completa. A ideia de que o trabalho na obra é uma atividade
provisória e/ou sazonal, não contraditória com sua profissão ou identidade principal, revela
algo sobre o desejo dos pescadores de continuar tornando-se o que sempre foram, mesmo sob
condições adversas.
O que podemos concluir deste breve relato? Por que essas duas “disciplinas” são
ministradas juntas, uma após a outra? Que efeitos de poder são detectados nessas aulas de
educação sexual e ambiental? É certo que os operários receberam importantes informações
sobre prevenção a DSTs, através de um método que alia dados da sintomatologia das doenças
a imagens que provocam o medo e advertências verbais em tom de ameaça. Transmite-se a
163
informação de que haveria uma vigilância difusa sobre seu comportamento – “a fofoca rola
solta”, “vai chegar na boca do pessoal”, “vai chegar aqui [na empresa]”. O medo - provocado
pelas imagens aterrorizantes - e a ameaça - de sanções por mau comportamento - são as
ferramentas educativas utilizadas para o disciplinamento dos operários. Educação sexual e
ambiental se encontram na metáfora da draga e dos corpos perigosos. A draga opera
espalhando no mar a lama já sedimentada, que poderá atingir os corais e destrui-los, matando
os peixes e os próprios pescadores. De maneira análoga, os operários são apresentados a si
mesmos como seres potencialmente poluentes, agentes da contaminação da cidade através de
seus corpos, meios através dos quais se disseminariam as doenças sexualmente transmissíveis,
que podem levar à morte. Igualmente, pode-se estabelecer uma analogia também entre a
imagem da mulher sensual e contaminada e a sedução da empresa sobre os moradores da
região, em especial os pescadores, que estão empregados pela empresa responsável pela
destruição do seu principal pesqueiro.
Cartografias dissonantes
As “relações comunitárias”, porém, são permeadas por tensões e ambigüidades que
transparecem também nos agenciamentos da empresa diretamente com moradores da cidade.
Conversei com um antigo presidente da colônia de pescadores, que havia deixado a colônia
sob acusações de ter agido de forma condescendente com a Aracruz e de não defender a
“classe” dos pescadores das práticas ostensivas de fiscalização do Ibama. O ex-presidente
defendeu-se das acusações afirmando que teve um papel importante na legalização da
documentação dos pescadores, o que teria permitido-lhes acesso a uma série de direitos, como
os previdenciários. Conversando com alguns pescadores, entendi que a não-legalização da
prática da pesca estava relacionada a uma resistência em se submeter à fiscalização periódica,
que implica o pagamento de valores relativamente elevados aos "órgãos responsáveis", da
Marinha e do Ministério da Agricultura, que, segundo eles, nunca prestaram quaisquer tipo de
assistência aos pescadores. Um deles, com 32 anos de pesca, morador de Ponta de Areia,
criticou o fato de que, se o barco não estiver regular, recebem multa altas, de no mínimo mil
reais. Isso faz com que, segundo ele, “muito pescador tenha medo de ir pescar”.
Havia uma nostalgia no relato do ex-presidente da colônia sobre as mudanças na pesca na
região. Sua lembranças trouxeram à tona o seu tempo de garoto, quando a pesca era feita com
lança e canoa de madeira e o peixe salgado para ser preservado. Contou que nos anos 70
começaram a surgir os barcos motorizados, mas que, até então
164
“a pesca era de linha, salgagem e arrasta de camarão seco ao sol”. Com a
intensificação da pesca industrial, nos anos 70 e 80, a produção de Caravelas chegou a
ser de 600 toneladas por anos, “era o que movia a economia do município”.
Porém, de 1998 para cá tem ocorrido algo que o preocupa muito: a queda da produção,
motivada, segundo ele, pela pesca predatória e a “falta de capacitação”. Segundo ele, a
solução para esse problema seria fazer “um levantamento com dados científicos” para
determinar quanto aquele ambiente suporta de atividade pesqueira, para que, a partir daí, a
pescaria fosse controlada e se tornasse “sustentável”. É exatamente este o princípio básico do
projeto do IBAMA “Mangue Sustentável”, que apresentarei adiante.
O ex-presidente da colônia caiu em desgraça junto aos seus colegas quando aceitou o
acordo de ação compensatória proposto pela Aracruz. Como foi dito, a passagem da balsa que
transporta as toras de eucalipto a partir do terminal marítimo até a fábrica de celulose em
Aracruz (EA) depende da presença permanente de uma draga, que retira sedimentos do fundo
do oceano e os lança no mar a uma certa distância, ao sul. O local escolhido para o
lançamento dos sedimentos é o principal pesqueiro do camarão na região. A quantidade de
lama que estava em vias de ser removida era enorme, segundo um funcionário do IBJ daria
para encher 75.000 caminhões de lama, o que, segundo ele corresponderia à distância entre
Rio e São Paulo tomada por caminhões transportando lama.
Do ponto de vista dos pescadores, essa prática certamente afetaria o pesqueiro do
camarão e aqueles com que conversei disseram-me sentir-se traídos pelo ex-presidente por ele
não ter negociado nenhum tipo de indenização no presente ou no futuro para os pescadores.
Contaram-me que na reunião com a empresa, “eles não tocaram no assunto do futuro do
camarão, só sobre a fiscalização. Ninguém assinou nada”. O ex-presidente aceitou a única
oferta da Aracruz, que foi basicamente equipar e reformar a sede da Colônia de Pesca,
reivindicação antiga dos pescadores, sempre negada pelos órgãos responsáveis. Disse-me ele:
“Aplaudi a Aracruz, porque ela fez benefício. Reformou a sede da colônia, mandou
murar, nos deu um computador completo, com impressora e um rádio VHF de 90
canais para ter uma base fixa da colônia em Ponta de Areia. Eu tenho sete anos de
colônia e nunca recebi nenhuma assistência dos órgãos que falam em nome dos
pescadores. Nunca recebi nenhum benefício da Conferação dos Pescadores do Brasil,
nem do IBAMA, nem do Ministério da Agricultura. Este só nos deu despesas e a
Bahia pesca não veio para os pescadores, veio para os empresários de pesca. Agora a
Aracruz chegou. Em quatro meses deu um benefício de 10-15 mil, enquanto nesses
anos todos esses órgãos não deram um centavo.”
Sua única reserva em relação à Aracruz refere-se à forma como foram conduzidas as
Audiências Públicas e a divulgação das informações para a população. Ele lamenta não ter
165
tido oportunidade de conversar com os técnicos da empresa, “para pedir que jogassem a lama
uma milha abaixo”. Ele conta que participou de uma Audiência Pública promovida pela
Aracruz, em que os técnicos da consultoria contratada mostraram um mapa com a área que
seria afetada. Porém, segundo ele, para entender aquele tipo de representação gráfica
“tinha que ter noção de oceanógrafo. Tá no gráfico ali, parece longe pra caramba, tá
umas 3, 4 milhas. Mas quando fui olhar de barco, vi que estava a uma milha e meia da
costa. Me desculpa não conhecer através de escala náutica a distância.... Mas
questionei que a dragagem não estava se realizando no quadrado demarcado e chamei
o consultor responsável para me explicar. Ele mostrou no computador cada lugar onde
estava tendo a dragagem. Mas eu disse para ele “esse computador obedece ao seu
sinal, não tem sinal dele próprio”. Senti uma coisa meio manobrante. Mas não poderia
discutir, porque tinha que ter ao meu lado gente que entende dessa área tecnológica.
Não gosto de discussões sobre o que não conheço. O Ibama disse que tá certo, que a
marcação era aquela. Não sei. Parece que a dragagem não está dando efeito ruim
imediato, mas pode vir a ter.”
A consultoria responsável por monitorar os efeitos das obras de dragagem sobre o
meio ambiente e o Laboratório de Celenterados do Museu Nacional/UFRJ, cuja atribuição era
medir a turbidez da água e os efeitos da sedimentação sobre os corais, ambos contratados pela
Aracruz Celulose, constataram que os corais já estavam sendo afetados pela draga. O
resultado da análise realizada pelo Laboratório do Museu Nacional – que visitei logo que
voltei ao Rio de Janeiro em março de 2002 - sustenta que a sedimentação na região é muito
mais alta do que o máximo entendido como suportável pela literatura especializada e,
portanto, extremamente prejudicial aos corais. Porém, os estudos argumentam que esse fato
não pode ser atribuído à obra de dragagem, uma vez que não haveria uma correlação
suficientemente forte entre ambos os processos. Os pesquisadores sugerem que os corais
brasileiros, ao contrário daqueles das mesmas espécies descritos na literatura internacional,
teriam uma capacidade de resistência acima do normal, o que os levou a propor que foram
capazes de se adaptar a um ambiente hostil.
Num jantar com um grupo de consultores, onde estive presente convidada por um
amigo do movimento cultural que faz mergulhos para o laboratório de Celenterados do Museu
Nacional, conversei com diferentes “especialistas” e ouvi reiteradamente a seguinte frase:
“Posso te garantir que não haverá impacto sobre o camarão.” Indaguei sobre quais
argumentos justificariam esta assertiva e obtive argumentos de autoridade como resposta.
Disse-me o responsável da Aracruz pela área ambiental: “Todos os nossos técnicos são
professores universitários, PhDs. Se eu sou da Aracruz e não tenho como ser independente,
posso te garantir que o relato deles é independente.” Presente no jantar, no restaurante que à
166
época era o melhor da cidade, estavam, além dos consultores, alguns diretores de ONGs, de
operadoras de mergulho, um representante do Ibama e um defensor público. Indaguei a este
último sobre a possível existência de ações civis contra o processo de licenciamento da
Aracruz, mas ele se resumiu a afirmar que “aqui em Caravelas os litígios são mais pessoais,
não têm a ver com a ‘extratividade social’”.
Tive também oportunidade de conversar com o consultor contratado pela Aracruz para
monitorar as obras de dragagem, citado acima no relato do ex-presidente da colônia. Decidi
provocá-lo, dizendo que a posição dos pescadores não é consensual em relação à dragagem e
que muitos duvidam que a obra não causará danos à pesca, ao contrário do que afirmam
categoricamente os especialista. Ele reagiu afirmando: “Hoje em dia é importante ser
flexível”. Retruquei que, do ponto de vista da sobrevivência das famílias dos pescadores,
algumas coisas são inegociáveis. Segundo ele, a minha posição seguiria uma lógica inflexível
“ganha-perde” e que, seu objetivo neste trabalho é procurar sempre a visão “ganha-ganha”,
em que “todas as partes fiquem satisfeitas”.
Os pescadores com que conversei, porém, não pareciam acreditar na viabilidade de
uma solução “ganha-ganha”. Informaram-me que, no dia anterior ao jantar descrito, uma
bióloga havia encontrado um peixe com a guelra repleta de lama, completamente sufocado e
pediu para eles o identificarem. Renato, um jovem pescador, disse-me:
“A corda sempre quebra do lado mais fraco. A gente fica assustado com o tanto de
lama que estão tirando [do fundo do mar]. Isso prejudica o pesqueiro. A pesca
emprega muito mais pessoas do que essas balsas. Porque envolve todo mundo da
família: a mulher ajuda a descascar, os mais fracos podem apanhar siri, peixinho. O
prefeito está a favor, a rádio diz que vai melhorar para o pescador, mas o peixe com
guelra cheio de lama está morrendo. Eles tinham meios de jogar essa lama em terra,
mas dizem que os gastos seriam maiores. Se eles tiveram licença do Ibama para jogar
aqui na água, porque vão jogar em terra? Cadê que tem justiça pra eles lá? Tem justiça
aqui, o Ibama sobrevoando a invasão do mangue. Eles dão um bocado de dinheiro e
cala. Só vêem a gente na hora do voto. São onze mil metros cúbicos de lama que eles
estão retirando. Se pedra que é pedra se desloca, imagina lama”.
Renato contou-me que a população se alinha automaticamente à empresa devido à
oferta – segundo ele ilusória - de emprego, numa cidade com muitos desempregados. Ele
lembra do caso da Petrobrás, que entrou na região à procura de petróleo, empregou
pouquíssimas pessoas e no final do processo, deixou a região sem gerar nenhum emprego.
Renato à época previu que durante a construção do terminal a empresa iria empregar mais
pessoas, mas que, no final, restariam apenas 12 pessoas, quatro para cada barcaça, todas de
167
fora da cidade, porque trata-se de um trabalho especializado. Em 2004, quando retornei à
cidade, sua contabilidade mostrou-se correta.
IBAMA: controle e circunscrição
O IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis) órgão federal responsável pela implementação da política ambiental brasileira
96
está presente em Caravelas através de duas autarquias: a administração do Parque Nacional
Marinho dos Abrolhos e o CEPENE (Centro de Pesquisas do Nordeste). Embora nos últimos
quatro anos a gestão do IBAMA tenha apresentado claras mudanças (como veremos no
capítulo 5), até 2005 a atuação do órgão era das mais controversas, do ponto de vista dos
moradores da cidade, pescadores e da população ribeirinha. Relatos sobre uso da força e de
armas de fogo na coibição de supostas transgressões da população local envolvendo o uso dos
“recursos naturais” se multiplicaram quando estive a primeira vez em Caravelas, em 2002,
com vistas a estudar a “questão ambiental” na região. Couro de Lixa, um pescador de Ponta
de Areia com 32 anos de pesca qualifica como ambivalente a atuação do Ibama, o que leva
suas práticas a serem ora aprovadas ora rejeitadas pela população: “às vezes faz injustiça, às
vezes faz justiça. Porque às vezes o barco não está pescando no Parque e é apreendido e às
vezes está na área do Parque e é apreendido.”
O Parque a que ele se refere é o Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, modalidade
de área protegida em que a presença humana é restrita e o acesso e uso dos recursos,
proibidos. A pesca no perímetro do Parque é interditada e quando um barco é pego pela
fiscalização do IBAMA pescando neste território, são certas a multa e apreensão do pescado.
Normalmente os alvos deste tipo de investida são os pequenos barcos de Caravelas e região;
grandes navios pesqueiros que “descem raspando tudo” – os chamados “piratas” (Berkes et
al., 2006) raramente são autuados.
Este pescador veterano me explica que certamente há tipos de pesca nocivos, como a
“pesca de balão” ou “com malha”, “de arrasta” que teriam causado a extinção de vários tipos
de peixe: “vários peixes já extinguiu, saiu do mapa, várias raças, como o bagre amarelo, a raia
manteiga”. Segundo ele, o fator determinante e fonte de maiores impactos ambientais nas
últimas décadas teriam sido as plantações de eucalipto e não a ação dos pescadores, que em
sua maioria “fazem pesca com anzol, que é o que tem mais preservação”.
96
A maior parte da pesquisa se deu antes da separação entre IBAMA e Instituto Chico Mendes, ocorrida em
meados de 2007 à revelia de seus técnicos, quando o primeiro permaneceu responsável pelas atividades de
fiscalização e licenciamento e o segundo pelas áreas protegidas e unidades de conservação.
168
Couro de Lixa mostrava-se preocupado com o que hoje é conhecido como “mudanças
climáticas” na região. Em suas palavras: “O meio ambiente desequilibrou com esses 25-30
anos de plantação de eucalipto. A seca desequilibrou muito. Antes, eu já sabia qual o tempo e
qual estações para pescar que tipo de peixe. Peixe em alto mar tá fraco. Antes chovia direto,
agora quase não chove mais. Esse ano ainda não teve verão, tempo quente, sol direto, fartura.
Em todo o Nordeste só agora em final de fevereiro é que fez tempo bom”.
O setor de relações comunitárias da Aracruz fez uma série de atividades na Colônia de
Pesca, no sentido de convencer os pescadores de que a dragagem não afetaria a pesca na
região. Nas palavras do pescador: “O pessoal da empresa [Aracruz] garantiu que nada ia
acontecer com o pesqueiro, mas os peixes bagre de laguna correram para outro canto”. À
época, afirmou ter esperança de que a dragagem não atingisse o pesqueiro do camarão, mas,
caso isso acontecesse, segundo ele, ainda haveria outra alternativa de subsistência: a coleta de
crustáceos no mangue - “caranguejo nunca faltou. A não ser que as barcaças derramem óleo,
aí sim pode faltar”. Para um pescador de alto mar, a mariscagem no manguezal é considerada
uma atividade menor, realizada por pessoas do seu ponto de vista “mais humildes”, que não
possuem barco, no máximo uma canoa sem motor. Ter que coletar mariscos como o
caranguejo é considerado como uma “última alternativa”. E este “último recurso” também
sumiu dos manguezais pouco tempo depois, quando uma doença rara atingiu os caranguejos
da costa brasileira, dizimando o crustáceo desde o Ceará até o sul do Brasil
97
.
O “Projeto Manguezal” e a vontade de governar
Caravelas possui uma das maiores extensões de manguezal do Brasil. O “rio
Caravelas”, um braço de mar que avança sinuosamente sobre o continente e se encontra com
rios de água doce e forma ilhas. Nelas habita uma população, que já foi abundante, mas hoje
em dia é cada vez menor, que vive do cultivo do coco, da mandioca, do abacaxi, do limão e
do dendê, além da coleta de mariscos. No centro dos agrupamentos familiares do interior das
ilhas, em sua maioria casas de taipa, embora haja algumas de alvenaria, há casas de farinha,
também de pau a pique, lado a lado a antenas parabólicas e placas de energia solar. Da
mandioca, os moradores das ilhas fazem não apenas a farinha, mas também o beiju (que, em
Caravelas, é uma espécie de bolacha pequena, por vezes recheada com coco ralado) e a
moqueca, que em Caravelas é goma da mandioca recheada com coco, enrolada na palha de
bananeira de forma cilíndrica, uma receita que pessoas da cidade ligados à área "cultural",
97
Este assunto será abordado mais extensamente no próximo capítulo.
169
disseram-me ter sido transmitida pelos índios. Além disso, os moradores das ilhas fazem um
óleo de dendê, também vendido na feira, apurado através da lenta fervura dos frutos do
dendezeiro em latões erguidos sobre pequenas fogueiras, ao lado das casas, construídas em
pequenas clareiras abertas na mata.
A mata no entorno do agrupamento familiar era densa e completamente tomada por
uma enorme quantidade e diversidade de árvores frutíferas como jaqueiras, cacaueiros,
abacateiros, mamoeiros, dendezeiros, jabuticabeiras. Os participantes do Movimento Cultural
estavam fascinados com o tamanho que as árvores atingiam naquele lugar; eram muito mais
altas do que aquelas dos quintais da cidade. Havia também cedro e outros tipos de madeira
nobre. O homem que liderava aquele agrupamento familiar, embora satisfeito com as árvores
frondosas plantadas por ele mesmo ou por seus ancestrais, lamentou não poder derrubar
nenhuma árvore para fazer canoa, meio de transporte que os leva da ilha à cidade. Indagado
sobre porquê não pode fazer uma canoa para sua família, ele disse: "Se eu fizer, o Ibama vem
e derruba." Contou que já teve duas canoas destruídas pelo Ibama: "com eles não tem
conversa: já chegam destruindo”.
Durante minha estadia em 2002, conversei com um técnico do Ibama, que defendeu a
idéia de que o segmento social em relação ao qual o IBAMA mais tem conflitos "são aqueles
que querem usar os recursos ambientais" e, em seguida, especificou: "o grupo de pesca do
camarão e de mariscagem, o grupo que usa madeira para lenha e os que invadem mangue para
fazer loteamento urbano". Em outras palavras, o público-alvo da ação de repressão do
IBAMA são os pescadores, os catadores de mariscos e crustáceos, as famílias que não têm
recursos para comprar um botijão de gás e a população ribeirinha que migra a cada dia para a
cidade. As técnicas de disciplinamento dessa população, à qual, segundo ele, "falta base
educacional" incluem o uso da força: “porque se não tiver demonstração de força, eles não
entendem".
Ele nega que a postura do Ibama seja congruente com a imagem mais difundida da
instituição na cidade, que é a "de proibir tudo". Exemplar da dimensão propositiva do
IBAMA seria o Projeto Manguezal, por ele concebido, voltado para buscar soluções para os
problemas causados por "aqueles que querem usar os recursos ambientais"
98
. Este projeto foi
financiado pela Aracruz através dos recursos compensatórios da obra de dragagem, da ordem
de 1 milhão e 300 mil reais, segundo dados fornecidos pelo Superintendente de Relações
98
O nome completo do projeto é Projeto Integrado de Manejo e Monitoramento para Uso Sustentável pela
População Ribeirinha do Manguezal de Caravelas, BA. Este projeto foi estudado por Omar Nicolau (2006).
170
Comunitárias da Aracruz
99
. Trata-se de um projeto a ser implementado pelo IBAMA com o
objetivo declarado de "capacitar" as comunidades e "gerar alternativas de emprego e renda"
para as populações ribeirinhas, que, segundo seu parecer, "perdem muito na mão dos
atravessadores”. Através do Projeto Manguezal, as populações de pescadores e coletores iriam
"aprender a gerenciar seus negócios, ter noções de contabilidade, novas tecnologias do
pescado, reaproveitamento dos cascos etc." A idéia seria introduzir técnicas de cultivos de
mariscos e crustáceos, como "fazendas de ostras" e "fazendas de mariscos", em que iriam
produzir a “engorda” desses animais para fins comerciais.
O Projeto incluía ainda "um trabalho de base", para que as populações ribeirinhas
"sintam-se participantes" e uma espécie de interação do "saber científico" com o "popular", já
que "há coisas que eles não sabem porque acontecem". Iriam buscar desenvolver um sentido
de propriedade da população em relação ao mangue, "porque na verdade o mangue é
patrimônio da união", buscando afastar-se dos modelos "assistencialistas ou populistas". Era
prevista a construção de um alojamento e de um "centro de convivência", onde se realizariam
as reuniões comunitárias, as aulas de educação ambiental e a capacitação em cultivos
alternativos. Pretendia-se revitalizar a sede da associação de marisqueiros e mudar seu
estatuto, tornando-a "com fins lucrativos", dado que um dos objetivos declarados do projeto é
"gerar renda".
Paralelamente à capacitação das populações locais, o Ibama estaria realizando
pesquisas científicas com o objetivo de ter mais conhecimentos das áreas degradadas, que,
segundo ele, "vêm sendo exploradas ao máximo". Assim, "poderíamos conhecer a real
capacidade de carga desse mangue" e, através dos cultivos, proporcionar um “descanso das
áreas” e um "repovoamento induzido ou natural" dos animais que estariam sob extração
intensiva. Após dois anos de implantação, esperava-se que o projeto se tornasse auto-
sustentável, o que não aconteceu. Então se iniciaria uma parte definida como "mais
complexa" do projeto, que é "discutir as áreas dos manguezais que poderiam se tornar áreas
intangíveis, de acesso proibido pela população". Ele acreditava que esta seria a dimensão mais
"difícil" do projeto, porque "na hora da necessidade, o cara pode entrar lá para pegar". Para
evitar isso, propôs um tipo de parceria com as populações locais, que participariam do
monitoramento e, portanto, teriam interesse em impedir a entrada de "alguém de fora" nas
99
Segundo o então Superintendente de Relações Comunitárias da Aracruz, o Projeto Manguezal envolve a
"recuperação do mangue, educação ambiental, cooperativismo, cultivo de ostras, cursos de qualificação na área
de beneficiamento do pescado, construção de casa para beneficiamento, fábrica de gelo etc.". O técnico do Ibama
que elaborou o projeto destacou que a Aracruz entraria com 50% do total dos custos e o Ibama com salários,
equipamento e infra-estrutura, além de recursos da Prefeitura, da ONG IAPA e da Bahia Pesca.
171
áreas intangíveis. A proposta final do Projeto Manguezal era além de promover uma série de
atividades econômicas, produzir uma circunscrição de determinadas áreas do manguezal e
torná-las inacessíveis para as populações da região.
Os recursos para o projeto Manguezal entrariam através da ONG IAPA (Instituto de
Apoio à Preservação Ambiental), fundada em 2001, cujo diretor era também proprietário da
maior agência de turismo da cidade, de uma escola de mergulho e de uma empresa de
transporte marítimo que começou a atuar em conjunto com o porto da Aracruz. A IAPA tinha
em seu portfolio de ações sociais o financiamento a festivais de reggaes, camisetas para a
Semana do Meio Ambiente, a cartilha dos Fiscais do Meio Ambiente, supra analisada e o
pagamento dos salários de parte dos funcionários do Parque Nacional Marinho de Abrolhos
(que anteriormente era assumido pela Associação dos Proprietários de Embarcação de
Caravelas). Segundo seu fundador: "São recursos destinados ao bem-estar da comunidade, das
ONGs e das Organizações Governamentais. Então a gente tem apoiado bastante o Ibama,
captado bastante recursos para o Parque. Para o Instituto Baleia Jubarte também a gente
consegue recursos para tapar alguns buracos. Tudo sem fins lucrativos." A IAPA surgiu para
operacionalizar o fluxo de recursos da Aracruz para as ONGs e o IBAMA. Assim foi-me
explicado sua lógica:
“Como o financiamento das atividades compensatórias dos empreendimentos da
Aracruz não pode se efetivar através de entidades governamentais, a IAPA funciona
como a entidade "captadora" de recursos da empresa, retransmitindo-os para outras
ONGs e para o Ibama implementar o Projeto Manguezal".
Nas palavras de um técnico do IBAMA, "O Projeto Manguezal faz parte dos
condicionantes, mas é mais do que isso. Ultrapassa o modelo limitado de compensação
ambiental. Não é mais obrigação, é um patrocínio, daí usarmos a logo da empresa nos
materiais do Projeto". Como já vimos, a compensação ambiental – obrigação legal – em
projeto social ou ambiental patrocinado – vem sendo transformada em patrocínio, com
retornos incomensuráveis para a empresa em termos de publicidade.
Educação, circunscrição e controle
Este capítulo procurou descrever os mecanismos combinados de educação,
circunscrição e controle, através dos quais diferentes agentes sociais projetam seus modos de
apropriação do meio ambiente natural em Caravelas.
Antes mesmo da entrada das grandes empresas de eucalipto e celulose na região, as
ONGs conservacionistas já vinham aperfeiçoando ferramentas educativas para ao mesmo
172
tempo legitimar sua presença na cidade e transformar as percepções e práticas das
"populações locais" em relação ao meio ambiente. A educação ambiental funcionava como
um meio de se aproximar da "comunidade" e para transmitir de forma eficaz uma mensagem
cujo pressuposto é de que o meio ambiente é uno, indivisível e ameaçado por um sujeito
transcendente e universal, identificado seja como "a humanidade" ou o "homem" ou com um
"nós" difuso e totalizante.
O único recorte que opera nesse sujeito universalizante é o de que há os que poluem
ou degradam a natureza e há os que não a poluem e não a degradam. Ensina-se às crianças
que, no campo dos poluidores, estão os setores que vivem da pesca e da coleta, que retiram
lenha da mata e fazem invasões no mangue para ter moradia, campo do qual certamente elas
mesmas e suas famílias fazem parte. Estes estariam incorrendo em “crimes ambientais”. Ao
informá-las sobre isso, estigmatiza-se os grupos que "usam o meio ambiente" de forma
supostamente indevida, naturalizando-se a lógica da vigilância e da punição para a regulação
dos desvios de determinados grupos sociais. Naturalmente, nenhuma menção é feita nas aulas
de educação ambiental às grandes empresas estatais ou privadas que poluem rios, mares e
baías e destroem a mata atlântica e os modos de vida tradicionais, patrocinadoras desse
processo educativo.
Com a entrada das grandes empresas de eucalipto e celulose na região, inicia-se o
processo de captura de todos os segmentos organizados da cidade. Através de uma ONG que
se define como intermediária entre a empresa e a "comunidade", as empresas financiam e
reforçam não apenas as atividades das organizações não-governamentais de educação
ambiental para as crianças do ensino fundamental, como também as estendem para os
operários que aportaram na cidade para a construção de um porto, agregando a ela um
componente que visa o disciplinamento e a marcação dos seus corpos como potencialmente
contaminantes.
Paralelamente, a ONG intermediária da empresa financia um projeto de circunscrição
dos espaços do mangue e transformação das formas de produção a eles associadas (de uma
economia de subsistência para uma economia de mercado), a ser promovida pelo órgão
governamental de regulação do meio ambiente. Essa forma de demarcação territorial e da
definição, por uma razão científica, de um limite quantitativo supostamente inscrito na
dinâmica "natural" do mangue em última instância poderá vir a por em jogo o próprio acesso
do mangue às populações que dele tiram sua subsistência, uma vez que, no limite, certas áreas
poderão a vir a se tornar intangíveis. Em certo nível já o são, dado o controle sistemático a
que são submetidos os moradores das ilhas ao fazerem uso dos recursos naturais - produzidos
173
por eles mesmos e seus ancestrais - com fins de locomoção e acesso ao mercado. O saber
científico também circunscreve determinados territórios no mar através de um instrumental
tecnológico inacessível aos pescadores, que detêm o conhecimento da navegação sem
aparelhos em terreno assoreado e instável, porém desconhecem a lógica dos mapeamentos por
meios digitais.
O controle da percepção da comunidade em relação ao empreendimento é realizado
através do apoio da rede empresa-ONGs às atividades passíveis de gerar renda; da oferta de
infra-estrutura para os grupos organizados desaparelhados; da capacitação profissional para
uma expectativa de emprego; além do apoio a escolas de samba que desfilem as benesses do
eucalipto.
Frente a esse processo, alguns setores, como os pescadores, expressam sua suspeita de
que, a longo prazo, as atividades da empresa podem vir a prejudicá-los. Outros formulam
explicitamente a percepção de que sua presença há décadas na região já teria causado
mudanças substanciais no clima e, portanto, afetado sua atividade produtiva. Reconhecem que
"a justiça não é para os de lá; só há justiça para os daqui", entendendo, neste caso, por justiça
as formas de punição que recaem sobre os mais fracos. Percebe-se a desconfiança em relação
à empresa, que agilmente transformou mecanismos legais para compensação ambiental e
social em patrocínios, benefícios e presentes, aos quais apenas uma pequena proporção da
população têm acesso.
Se em 2002, o “estado de dominação” tecia-se através dos mecanismos de educação,
circunscrição e controle implementados pela rede empresa-ONGs-comunidade, em 2005
acontecimentos inesperados fizeram esta rede se esgarçar e se configurar de outro modo. As
linhas de fuga traçadas por aqueles que escaparam de associar-se à rede empresa-ONGs-
comunidade levaram ao desenho de agenciamentos inéditos, envolvendo ONGs e moradores
que se negaram a aceitar a instalação de um outro projeto de grande impacto ambiental. É
disso que trataremos no próximo capítulo.
174
Capítulo 4 – A política depois do tempo da política
“A máquina do mundo se entreabriu” (Carlos Drummond de Andrade)
Como afirma Foucault (1994c, p.606) em relação ao conceito de “luta de classes”, os
marxistas teriam dado uma ênfase maior à ideia de classe (isto é, à identificação do sujeito das
lutas revolucionárias) do que ao estudo das lutas propriamente ditas. O que buscarei neste
capítulo é descrever e atribuir densidade às lutas que se desenrolaram em Caravelas enquanto
aí estive. O exercício a que me proponho é entendê-las e apresentá-las tal como o fizeram os
integrantes do movimento cultural. Se para eles “gente é igual a madeira”, com seus nós e
tramas, fendas, ocos e partes com maior ou menor maleabilidade, os eventos que criam e se
inserem também podem ser lidos enquanto tal. É seguindo esta pista dada pelo movimento
que tentarei aqui descrever as lutas que acompanhei em Caravelas: trazendo à luz seus
aspectos infinitesimais, móveis e reversíveis; seu inacabamento, seu devir, sua força, enfim.
Talvez seja pouco apropriado falar em revolução hoje em dia, mas é disso – ou algo
muito parecido com isso – que este capítulo vai tratar. Não aquele tipo de revolução dos
planetas em volta do sol, em que se muda para permanecer tudo como sempre foi. Descreverei
uma revolução molecular, uma repetição que muda algo; processo que engendra encontros e
nexos imprevistos, abre-se para o fora e produz o novo. Isso nada tem de utópico, idealista ou
mesmo de especial ou extemporâneo: os fatos que apresento aqui nada mais são do que
pequenas diferenças que abriram bifurcações imprevistas quando um determinado encontro,
um processo de singularização, fez com que um certo grupo passasse “do medo à coragem”.
Se a revolução aqui descrita não virou o mundo pelo avesso como se espera das revoluções
molares, teve por efeito a criação de novas possibilidades de vida, impensadas até então
100
.
Um processo de singularização minoritário como o aqui descrito pode ser recuperado
e transformado numa afirmação da individualidade ou da identidade e assim sofrer uma
100
Os processos e lutas sociais são molares e moleculares ao mesmo tempo, tal como, na física quântica, a
matéria é corpuscular e ondulatória ao mesmo tempo. Molar e molecular não estão em oposição como as noções
de micro e macro; eles se entrecruzam completamente. A análise micropolítica não usa um só modo de
referência. “Os problemas se colocam sempre e, ao mesmo tempo, nos dois níveis” (Guattari & Rolnik,
1986:133). “O molecular, como processo, pode nascer no macro. O molar pode se instaurar no micro” (ibid:128).
Há sempre uma multiplicidade de processos de singularização em jogo nos agenciamentos. “Os mesmos tipos de
elementos, os mesmos tipos de componentes individuais e coletivos, em jogo num determinado espaço social,
podem funcionar, a nível molar, de modo emancipador e, coextensivamente, a nível molecular, serem
extremamente reacionários e microfascistas” (ibid: 133). Da mesma forma, por vezes no cerne de relações de
trabalho com alto grau de exploração são preservados certas doses moleculares de liberdade e de desejo. As
máquinas capitalistas se beneficiam ou até mesmo necessitam desta captura deste microprocessos para se
reproduzir.
175
normatização. Se essas novas possibilidades serão aniquiladas por aparelhos de captura ou se
conseguirão escapar dos modos de produção dominantes da subjetividade, não é possível
saber. O certo é que este tipo de embate sempre haverá, assim como as pontas de
desterritorialização e linhas de fuga por onde todo agenciamento foge e se metamorfoseia.
No campo, escolhi prestar atenção para a política tanto por gosto, quanto pelo simples
fato de que ela de algum modo se impôs e se impõe para quem vive nesta pequena cidade. Um
dos problemas centrais ao se fazer pesquisa antropológica numa coletividade que fala a
mesma língua do observador é a expectativa de que o sentido daquilo sobre o que os nativos
falam é auto-evidente, isto é, imediatamente familiar, por supostamente coincidir com as
nossas próprias categorias
101
. Para alguns termos, esta percepção não resiste a alguns meses
de trabalho de campo; para outras noções, leva-se anos; sem mencionar obviamente que só se
descobre o “erro” depois que ele foi cometido muitas vezes; pode-se crer infinitamente que se
está falando sobre a mesma “coisa”, quando de fato há um abismo invisível entre os
interlocutores. Fazer antropologia é em muitos sentidos um experimento constante segundo
uma lógica de tentativa e erro, em que errar é fundamental para se descobrir, justamente, onde
estão as diferenças
102
.
Os sentidos que os caravelenses do movimento cultural emprestam às noções de
“política”, “meio ambiente” e “responsabilidade social”, como vimos, não são auto-evidentes
por no mínimo duas razões. Em primeiro lugar, não são ideias “dadas”, não se pode indagar
“o que é política para você” e esperar uma resposta definitiva. Isso porque, eis a segunda
razão, são ideias construídas e transformadas à medida que se desenrola seu envolvimento
com essas questões, portanto sujeitas à mutações inesperadas inerentes à práxis. Deste modo,
o exercício aqui proposto é o de – a partir da etnografia - fazer proliferar os sentidos desses e
de outros termos, que devem ser entendidos como termos homônimos, de som e grafia
idênticos, porém muitas vezes, com significados diferentes daqueles consagrados na
101
Goldman (2006)
102
Wagner (1975: 4, grifos meus) precisa como o contraste experimentado pelo antropólogo através de seus
erros e acertos no campo torna visíveis as diferenças e lhe permite detectar o “sentido abstrato da cultura e de
muitos outros conceitos”. Dentre estes “muitos outros conceitos”, poderíamos incluir o conceito nativo de
política: “In experiencing a new culture, the fieldworker comes to realize new potentialities and possibilities for
the living of life, and may in fact undergo a personality change himself. The subject culture becomes “visible”,
and then “believable” to him, he apprehends it first as a distinct entity, a way of doing things, and then secondly
as a way in which he could be doing things. Thus he comprehends for the first time, through the intimacy of his
own mistakes and triumphs, what anthropologists speak when they say the word “culture”. Before this he had no
culture, as we might say, since the culture in which one grows up is never really “visible” – it is taken for
granted, and its assumptions are felt to be self-evident. It is only through “invention” of this kind that the abstract
significance of culture (and of many another concepts) can be grasped, and only through the experienced
contrast that his own culture becomes “visible”. In the act of inventing another culture, the anthropologist
invents his own, and in fact reinvents the notion of culture itself”.
176
sociedade do observador. Diferentes, mas não completamente distintos, eis a questão, já que,
neste caso, a “sociedade do observador” encontra muitos pontos de intercessão com a
“sociedade do observado”.
Em 2002, impôs-se o que denomino a política ou, inspirada em Foucault, a biopolítica
da relação ONGs-empresa-Ibama-caravelenses, como vimos no capítulo 3. Em 2004, foi o
tempo do que os caravelenses nomeiam “a política”, sinônimo de período eleitoral, eleições,
discórdia, divisão e até mesmo perseguição. Em 2005, quando estava de malas prontas para
voltar para o Rio de Janeiro, um evento sem precedentes levou-me a testemunhar e atuar num
processo de mobilização em torno da resistência à implementação de um grande projeto do
agronegócio conhecido como fazenda de camarão ou carcinicultura, que foi comparado pelos
caravelenses com a “política” na acepção acima descrita. Um morador chegou a afirmar:
“aqui a política continua depois da política”, frase que poderia ser traduzida aproximadamente
como “ aqui a discórdia e/ou a perseguição continuam depois das eleições”
103
. Num certo
sentido, o fato deste caravelense utilizar a mesma palavra política em dois sentidos distintos
evidencia que uma tensão fundamental se instala e se mantém no coração da política mesmo
depois que o poder é constituído através das eleições. O que este morador está dizendo é que,
depois da definição de quem detém o poder soberano, há que se governar e neutralizar os
dissidentes através da perseguição.
Em outubro de 2005 chegou a Caravelas a notícia de que a maior fazenda de camarão
jamais feita no Brasil (1500 ha), seria implantada sobre os manguezais que cobrem a região
entre Caravelas e Nova Viçosa. Esta notícia engendrou o nascimento da política depois da
política, de disputas entre os moradores no período após as eleições. Este capítulo se organiza
em torno de oito cenas etnográficas que evidenciam algumas das principais tramas sociais
observadas durante este processo de mobilização. Meu intuito é, por um lado, trazer ao leitor
uma descrição etnográfica deste processo e, por outro, buscar entender as nuances presentes
nas concepções nativas sobre os diferentes modos de “fazer política” que daí emergiram.
103
Giorgio Agamben (2009: 9-13), num pequeno texto sobre o conceito de democracia, demonstra que no
pensamento político grego, a palavra politeia é traduzida ora por “constituição”, ora por “governo”, o que,
segundo o autor, denotaria uma ambiguidade do conceito fundamental de política, que perdura até hoje. Politeia
(atividade política) e politeuma (a coisa política que daí resulta) são apresentados por Aristóteles como “a
mesma coisa”, uma vez que estariam costuradas sob a forma de um poder soberano (kyrion). O poder soberano,
assim, “suturaria” uma cisão fundamental entre a política como atividade/poder constituinte/arte de governar e a
política como poder constituído/constituição/contrato. Agamben se indaga: “O que dá ao soberano (kyrion) o
poder de garantir sua união legítima? Não seria isso uma ficção, destinada a dissimular o fato de que o centro da
máquina é vazio, que não há, entre os dois elementos e as duas racionalidades, nenhuma articulação possível?
177
Este capítulo trata de um processo de aproximação dessas formas da política e
pretende levar a sério as diferentes percepções nativas que se produziram a partir da eclosão
da “política” fora do chamado “tempo da política”
104
, as eleições. O ponto de vista aqui
assumido não se pretende externo ou superior aos grupos sociais analisados não só porque
isso não é etnograficamente possível
105
, como porque este processo foi também um
aprendizado, segundo a lógica própria do movimento cultural: “aprender fazendo”, de
maneira esporádica e sem nenhuma garantia que se vai chegar onde se quer
106
. O relato que
ora apresento revela o que pude perceber desta experiência de luta enquanto eu mesma a
vivia. Embora o movimento cultural não apareça explicitamente como o protagonista ou
agente das ações que descreverei (porque, conforme veremos, devido ao temor da
perseguição, seus integrantes não assumiram a linha de frente da luta), o conhecimento
específico dos integrantes do movimento sobre a política em Caravelas guiou em grande
medida as ações que então transcorreram.
Neste sentido, o movimento está integralmente presente em todos os atos aqui
descritos. Assim, este capítulo pode ser lido como um exercício prático, como uma forma de
levar a sério e pôr à prova os ensinamentos e o modo de reflexão próprio ao movimento
cultural, junto ao qual vivi e aprendi os limites e as possibilidades de diferentes modos de
fazer política. Confrontados repentinamente com o retorno da política depois da política e
assombrados com a perseguição potencial, os integrantes do movimento cultural se colocaram
um problema: como furar o bloqueio? Como ir além dos limites impostos pela política sem
que isso levasse ao próprio aniquilamento? Como encontrar o “fora” deste poder total? A
situação demandava a busca de alguma saída. Se tudo está dado, como nasce o novo?
Este capítulo se atém basicamente ao intervalo de tempo de quase três meses
transcorrido entre a notícia da entrada desse grande projeto na cidade e as semanas seguintes à
audiência pública, período durante o qual uma série de acontecimentos e encontros provocou
o surgimento do que Zourabichvili (2000) denomina uma distribuição diferencial dos afetos,
ou seja, a invenção de uma nova maneira de ser afetado, de novas possibilidades de vida, tidas
como “impossíveis” antes de acontecerem e desencadeadas por alguns encontros
107
.
104
Cf. Palmeira, M. e Heredia, B. 1993.
105
“Absolute” objetivity would require that the anthropologist have no biases, and hence no culture at all”.
(Wagner, 1975: 2)
106
Sobre diferentes formas de aprendizados, entre um Yaqui, os mórmons e num terreiro de candomblé. Em
comum, a inseparabilidade entre viver, experimentar e aprender, ver, respectivamente Casteñeda, 1968;
Flaksman, 2007 e Goldman, 2005.
107
Segundo Zourabichvili (2000), um encontro é um afeto que faz comunicar os pontos de vista e permite que
ocorra uma mutação subjetiva.
178
Os encontros aqui descritos desencadearam uma alteração nas relações de força, aqui
entendidas como potências clivadas, que envolvem a faculdade dos sujeitos de afetar e serem
afetado
108
. O que os dados etnográficos de algum modo revelam é que os grupos sociais
analisados não ocupam posições fixas, por exemplo, como grupos dominados ou grupos
dominantes. A dinâmica do processo de luta aqui descrito revela que essas posições ou
oposições são intercambiáveis de acordo com a situação etnográfica em questão e que os
sujeitos não estão alinhados a priori a um desses dois pólos. São, a um só tempo, afetados e
afetantes pelos acontecimentos por eles mesmos produzidos. É a partir das mutações de
sensibilidade engendradas ao longo do processo de luta que torna-se viável a criação de um
novo campo de possíveis no horizonte imediato dos sujeitos envolvidos.
Esta foi a última etapa de minha pesquisa de campo, que começara dois anos antes
tendo como ponto de partida uma antropologia da política em sua dimensão eleitoral. Num
certo sentido, minha etnografia descreve um processo de “capilarização da política”: inicia-se
nas eleições- esse modo macroscópio da política, com um tempo e um espaço claramente
delimitados – e encerra-se no manguezal. Manguezal, lugar em que as raízes se capilarizam e
multiplicam, tornando-se rizomas, trazendo à tona uma heterogeneidade e uma diferenciação
pulsantes, desencadeadas por linhas de desterritorialização-reterritorialização pelas quais
escapam as vãs tentativas de estratificar este meio literalmente transbordante e sedentarizar
esta figura que se desdobra em muitas, o extrativista.
Porém, ao contrário do possivelmente esperado, apesar desta parte ser o substrato para
a descrição da última etapa de minha pesquisa, não aponto para uma “conclusão” de um
trabalho que supostamente funcionaria segundo um crescendo. Meu encontro com o mangue e
seus personagens que se fracionam e se multiplicam teve como efeito uma intensa
desterritorialização nesta antropóloga, o que engendrou o questionamento de muitas certezas
oriundas de teorias aprendidas que me eram caras. Mais precisamente, as faíscas etnográficas
produzidas por este bom encontro provocaram alguns deslocamentos em minha forma de
entender determinados tratamentos dados às noções de “meio ambiente” e “populações
extrativistas”, que desejo agora compartilhar.
Os ciclos econômicos e o sonho do desenvolvimento
Há quatro anos ouviam-se boatos: Caravelas, pequena cidade do extremo sul baiano, foi
escolhida pela Bahia Pesca, órgão de desenvolvimento da pesca do governo do estado da
108
Cf. Foucault (1972) e Deleuze, G. (1986)
179
Bahia, como local com “vocação natural” para a implementação de fazendas de camarão.
Esta cidade de vinte mil habitantes, mais conhecida como o porto de partida para o Parque
Nacional Marinho de Abrolhos, finalmente iria retomar seu caminho rumo ao
“desenvolvimento”, sinônimo, neste caso, da almejada “geração de empregos”, o aumento
da renda circulante na cidade e o acesso a bens de consumo.
Caravelas é descrita por seus moradores como a “cidade do já teve”, uma alusão aos
vários ciclos econômicos que aí se sucederam e se esgotaram. Foi um grande centro de pesca
da baleia durante o Brasil colônia; um importante centro do comércio regional, intensificado
com a construção de uma grande ferrovia, a Bahia-Minas, extinta em 1964 e imortalizada na
canção Ponta de Areia de Milton Nascimento e Fernando Brant. Foi um pólo de expansão da
indústria madeireira, hoje praticamente esgotada; assim como da produção cafeeira e agro-
pecuária na Bahia, hoje pouco significativa. As escavações por petróleo na década de 80
foram decepcionantes e o turismo para a região dos Abrolhos é hoje escasso e intermitente.
A partir do final da década de 80, a monocultura do eucalipto se expandiu rapidamente
pela região ocupando amplas faixas de terras até então destinadas à agricultura ou pecuária.
Como vimos, hoje, a monocultura do eucalipto ocupa mais de 70% das terras agricultáveis do
município de Caravelas. Alguns povoados desapareceram do mapa entre o censo de 1991 e
2000. A população rural que trabalhava nas fazendas de gado se deslocou para grandes
centros como Vitória, Belo Horizonte e Teixeira de Freitas.
O que esses ciclos econômicos têm em comum é que os tempos de crescimento
econômico não representaram melhoria na qualidade de vida da população como um todo. A
prosperidade sempre foi muito mal distribuída. Os dados estatísticos oficiais dão conta de que
as desigualdades aumentaram nas últimas décadas
109
. Os moradores da cidade, para continuar
aí vivendo (ou seja, não precisarem emigrar) normalmente têm pelo menos um membro da
família aposentado ou pensionista do INSS; e/ou pelo menos um membro da família ocupante
de um posto de trabalho ligado à Prefeitura ou ao estado (professor, agente de saúde, gari,
vigilante, policial, enfim, funcionários da administração pública em geral) e/ou, ter pelo
109
Até onde possamos acreditar nas estatísticas, segundo a ótica do chamado “desenvolvimento humano”, entre
1991 e 2000, a desigualdade em Caravelas aumentou: o chamado “índice de Gini” – que mede o grau de
desigualdade existente na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar per capita e cujo valor varia de
0, quando não há desigualdade (a renda de todos os indivíduos tem o mesmo valor), a 1, quando a desigualdade é
máxima (apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula),
passou de 0,51 em 1991 para 0,74 em 2000. Em outras palavras isso significa que os 20% mais ricos se
apropriam de 76,8% da renda total enquanto os 80% mais pobres se apropriam de 23,2% da renda total. Apesar
disso, segundo esta mesma ótica, Caravelas é considerada uma cidade de “médio” desenvolvimento humano e,
em relação à Bahia como um todo, ocupa a 65ª posição, num total de 415 municípios baianos. (Cf. Atlas do
Desenvolvimento Humano no Brasil PNUD-IBGE 2003).
180
menos um membro da família que consiga viver do extrativismo, ou seja, da pesca e da
mariscagem. Neste contexto de reduzidas possibilidades de criação de meios de vida, a
produção de camarão em cativeiro, também conhecida como carcinicultura, apareceu no
horizonte dos moradores da cidade como a almejada alternativa de desenvolvimento
econômico.
Um breve esclarecimento sobre a definição técnica do que seja a carcinicultura, a
produção de camarão em cativeiro.
A inspiração veio da criação de camarão artesanal segundo o modelo amplamente
espalhado pela Ásia de construção de pequenos currais de bambu nas margens dos
manguezais, onde o camarão fica retido devido à variação das marés. Uma inspiração
longínqua, visto que a “revolução azul”
110
, tal como vem sendo implementada mundo afora,
nada mais é do que um sistema de produção intensivo em capital e em recursos hídricos,
vendido em pacotes a capitalistas de médio e grande porte de países do Sul
111
. A
carcinicultura envolve o fornecimento de insumos de grandes empresas para todas as fases da
produção e sua expansão se fez a partir de investimentos maciços por parte de governos e
órgãos multilaterais, como o Banco Mundial. A agroindústria do camarão se expandiu do
Sudeste asiático para a costa do Pacífico da América do Sul, América Central e desde a
década de 90 aportou no Brasil. Este setor necessita de disponibilidade de recursos hídricos
em abundância e muitas vezes funciona sem nenhum tipo de regulação, explora os recursos
naturais até o esgotamento e, em seguida, parte para outros locais, onde reinicia o ciclo. Nos
países onde este tipo de produção se instalou, um rastro de destruição em larga escala foi
amplamente registrado, em função da desestabilização de ecossistemas e modos de vida e da
geração de fome e miséria em zonas costeiras outrora afluentes.
112
No Brasil, a criação do Departamento de Pesca e Aqüicultura (DPA) dentro do
Ministério da Agricultura em 1998 aumentou exponencialmente a produtividade da
110
Alusiva à “revolução verde” e à tecnologia que permitiu produção de alimento em massa com alto uso de
agrotóxicos, a revolução azul foi uma denominação criada pela FAO, que até a década de 90 divulgava as
fazendas de camarão como estratégia de segurança alimentar, para assegurar “proteína para os pobres” (FAHN,
2003, p.182).
111
As fazendas de camarão criam um ambiente artificial no qual uma proporção ótima de água doce e salgada
(encontrada em mananciais como aqueles que banham manguezais) é bombeada continuamente para dentro de
tanques, preenchidos com larvas de camarão da espécie Litopenaeus vannamei, reproduzidas em laboratório. Em
seguida, os tanques são preenchidos com grandes quantidades de ração e hormônios para a engorda, além de
antibióticos e outros aditivos químicos indispensáveis para impedir o alastramento de epidemias virais comuns
em populações densas e geneticamente indiferenciadas. Esses produtos são vendidos por empresas de grande
porte dos ramos químico, farmacêutico e alimentício – como a Basf e a Purina, por exemplo e permite até três
ciclos produtivos de 90 dias/ano, isto é, uma produção praticamente ininterrupta às fazendas.
112
ONGs internacionais, como a Environmental Justice Foundation e o Greenpeace produziram relatórios
detalhados sobre a destruição dos ecossistemas e violações aos direitos humanos praticadas pela indústria do
camarão em cativeiro (SHANAHAN, M. et al., 2003 e HAGLER et al., 1997 )
181
carcinicultura voltada para exportação. Em 1997, antes da criação do DPA, a produção anual
deste setor foi de 3,6 mil toneladas. Em 2001, a produção anual foi de 40 mil toneladas e em
2004 a produção chegou ao pico de 76 mil toneladas, um crescimento vertiginoso de 2.110%,
alavancado pelos investimentos públicos do BNDES, Banco do Nordeste e SUDENE. A partir
de 2005, porém, em função do alastramento de epidemias virais, houve queda na produção
das fazendas de camarão, que ficou em 65 mil toneladas
113
.
O projeto da Coopex, que previa a instalação de enormes tanques para o “cultivo” de
camarão numa área de manguezais e nascentes de água doce tornou-se público em outubro de
2005, mas já tramitava em silêncio na burocracia do estado desde 2002.
As formas de escrever a história de um grande projeto
Como se escreve a história de um grande projeto? É possível relatar cronologicamente
a instalação de um grande “empreendimento”
114
num determinado território? Ao percorrer
arquivos, revisitar fotos, colecionar fontes escritas e entrevistar as partes envolvidas percebe-
se a busca por uma história do “empreendimento” tomado enquanto totalidade. Assume-se
que a fazenda é um dado já existente, portanto, apreensível em termos de uma cronologia.
Esta forma de se escrever a história produz um determinado efeito de sentido: ao se propor
uma composição final que abarque os acontecimentos em seu conjunto e sucessão lógica
atribui-se congruência a eventos experimentados muitas vezes de forma fragmentária pelas
pessoas. Esta história total só pode existir na medida em que o observador se coloque,
justamente, fora da história, assumindo um ponto de vista externo aos acontecimentos. É isto
que lhe permite tomar os eventos transcorridos como peças de um quebra-cabeça a ser
construído com o objetivo de compor um quadro nítido, no qual as peças se encaixam de
forma perfeita, tão bem coladas que o observador não vê as linhas de encaixe. Por isso, ao
olhar para o quadro, esquece de que se trata de um puzzle e somente é capaz de enxergar a
paisagem daí resultante: uma composição coesa.
Esta forma de escrever a história se constituiu segundo uma epistemologia que supõe
um sujeito onisciente e pessoas ou acontecimentos tomados enquanto objeto de um
conhecimento produzido a partir de um ponto de vista externo e superior, um olhar que tudo
vê e desvenda e que está sempre a preencher as lacunas que insistem em desestabilizá-lo. No
113
O valor total da exportação do camarão cultivado foi de 111 milhões de dólares em 2002, 170 milhões de
dólares em 2003, 151 milhões de dólares em 2004 e 129 milhões de dólares em 2005. Apenas no primeiro
semestre de 2006, as exportações de camarão cultivado somavam 72 milhões de dólares. (Associação Brasileira
de Criadores de Camarão, 2006.)
114
Empreendimento é o termo pelo qual os órgãos responsáveis pela emissão das licenças denominam essas
atividades econômicas altamente impactantes do ponto de vista social e ambiental.
182
entanto, um olhar de dentro do campo mostra que o quebra-cabeça não está completo: faltam-
lhe algumas peças, muitas foram escondidas, outras destruídas, algumas não se encaixam. O
resultado disso tudo é que a paisagem retratada é algo perturbadora.
Buscamos explorar a idéia de uma história-para e não de uma história-de, no sentido
que Lévi-Strauss (1997, p. 273-298) atribui a esses termos. Em outra palavras, a história
relatada é sempre relativa a um ponto de vista (história para alguém). As tentativas de se
escrever a história de algo correriam o risco de se colocar num patamar supra-histórico,
produzindo uma congruência no plano discursivo não vivenciada pelos sujeitos na prática. O
que buscamos não são versões concorrentes de uma mesma história total, mas histórias
específicas, nascidas de perspectivas distintas, porém conectadas entre si. As histórias aqui
relatadas por diferentes sujeitos sociais estão intimamente interrelacionadas, pois, como
afirma Appadurai (1981), o “passado é um recurso escasso”, isto é, há um certo número
limitado de eventos com que os diferentes sujeitos se relacionam, de uma forma que nunca é a
mesma. Mais do que isso, há disputas concretas para se dar sentido a determinados eventos e
essa disputa é permeada por relações de poder. Como as cartas de um baralho num jogo, para
se montar uma seqüência é necessário dispor de cartas que podem estar com o adversário. A
história de licenciamento e de criação de uma Unidade de Conservação aqui estudada é a
história da luta – muitas vezes inglória - para se ter acesso a um número maior de cartas de
um jogo cujas regras são formuladas e reformuladas a cada jogada. Buscamos nos aproximar
da percepção dos sujeitos em disputa levando a sério a aparente falta de sentido dos eventos
por eles experimentados, para assim dar uma maior inteligibilidade aos acontecimentos que
permearam o processo de licenciamento da fazenda.
Buscarei apresentar como alguns dos sujeitos deste processo relatam, organizam ou
percebem a presença das propostas em jogo em termos de uma cronologia e em termos de
historicidade, para retomar os termos propostos por Lévi-Strauss (1962). A história como
cronologia diz respeito a como os diferentes sujeitos organizam os eventos a posteriori, numa
sucessão temporal mais ou menos coerente. A história enquanto historicidade poderia ser
definida como a experiência do devir histórico, aquela que os homens fazem sem pensar ou
saber que a estão fazendo, isto é, a história enquanto fluxo dos acontecimentos intensivos
experimentados pelos sujeitos em seu devir
115
.
115
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de
sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado (Marx,
1977 [1857]:17, grifo meu). Talvez esta frase ilustre de K. Marx ajude a pensar a ideia de história como
historicidade, subtraindo-se evidentemente o tom determinista (“legadas e transmitidas pelo passado) e atendo-se
183
O “empreendimento” como virtualidade que afeta o real
“Eles chegam como o destino. Sem causa, sem razão”
116
O “empreendimento” ainda não existe. Mas já produz efeitos sociais concretos. O
projeto, em sua virtualidade, foi perfeitamente capaz de afetar o real e provocar intensas
transformações na vida das pessoas. Assim, quando os órgãos responsáveis pelo
licenciamento de grandes projetos utilizam a noção de grupo social “potencialmente afetado”
ou quando os movimentos sociais que nascem em torno dos grandes projetos definem-se
como “atingidos”, há que se pensar sobre o que ser “potencialmente afetado” e “atingido”
significa. Imagina-se que se é atingido após a implantação física de um “empreendimento”.
Mas, no caso estudado, todos foram atingidos muitos antes da fazenda estar concretamente
instalada no território. Assim, a história de um “empreendimento” tem sua origem muito antes
dele existir, quando ainda é um projeto, uma ideia, uma meta a ser alcançada. A primeira
parte deste capítulo é dedicada a um exercício a respeito de quando se inicia esta história.
Quais seriam os critérios definidores da emergência de um grande projeto, a partir do ponto
de vista dos diferentes sujeitos envolvidos?
Para o movimento cultural este marco inicial é uma reunião no Centro de Convivência
do Ibama em outubro de 2005, quando foram informados pela primeira vez sobre a existência
do processo de licenciamento em curso proposto pela Cooperativa de Criadores de Camarão
do Extremo Sul da Bahia (Coopex). A história do “empreendedor”, por sua vez, se iniciou
pelo menos três anos antes, em agosto de 2002, com a formação do processo de “manifestação
prévia de localização” pela Bahia Pesca
117
e a emissão da chamada “manifestação prévia” –
uma espécie de aval para se iniciar o processo de licenciamento, conduzido pelo então Centro
de Recursos Ambientais (CRA), órgão ambiental estadual
118
. Por outro lado, do ponto de vista
das ONGs ambientalistas, a história se iniciou um ano antes da história do movimento cultural
e mais de dois anos depois da história da empresa. Através de seu representante no Conselho
à ideia da história como experiência vivida e produzida pelo homens e mulheres a partir da configuração
específica do seu mundo no presente.
116
Nietzsche, F. A genealogia da moral, 1887, II, §17
117
Empresa ligada à Secretaria de Agricultura do estado da Bahia, que obteve do órgão ambiental estadual a
permissão para buscar investidores interessados em adquirir terrenos onde seriam implantadas fazendas de
camarão em Caravelas.
118
Na atual administração Jacques Wagner, o CRA mudou de nome: hoje é conhecido como IMA (Instituto do
Meio Ambiente).
184
Estadual de Meio Ambiente (CEPRAM), as ONGs ambientalistas de Caravelas foram
notificadas da existência do projeto em outubro de 2004, quando a Coopex requisitou a
licença de localização junto ao CRA e foi aprovado o termo de referência do Estudo e
Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA)
119
. O projeto, no entanto, apenas se
materializou para as ONGs e o Ibama em outubro de 2005, quando o RIMA foi
disponibilizado para consulta pública, conforme a regra do licenciamento ambiental. Entre
outubro de 2004 e 2005, observa-se um esforço persistente, porém improfícuo, por parte das
ONGs e do Ibama no sentido da obtenção de informações mais precisas e detalhadas sobre o
projeto.
Estes elementos nos permitem afirmar que o marco zero das cronologias, isto é, o
momento em que o empreendimento ganhou contornos reais, difere substancialmente de
acordo com os sujeitos em questão. Entre 2002 e 2004, a Coopex existia enquanto um
espectro num limbo burocrático e seu processo transcorria de modo silencioso, inacessível às
entidades da sociedade civil e muito menos aos grupos potencialmente atingidos. Apenas em
2004, a informação sobre o projeto chegou ao Conselho Estadual de Meio Ambiente e em
seguida às ONGs locais, que buscaram junto a diversos órgãos informações mais precisas
durante um ano. Somente em outubro de 2005, às vésperas da Audiência Pública, é que os
caravelenses foram notificados sobre o empreendimento. Os últimos a saberem sobre o
empreendimento foram os grupos sociais potencialmente mais atingidos – pescadores e
marisqueiras - que receberam a notícia a apenas dez dias da audiência pública pela rádio FM
local e pelas atividades de mobilização realizadas pelos movimentos locais em conjunto com
as ONGs.
A história do empreendedor
A história tomada enquanto sucessão de eventos coerentes só existe do ponto de vista do
empreendedor. Na audiência pública, a Coopex apresentou uma série de slides contendo uma
cronologia de acontecimentos que sancionam sua obediência às normas prescritas pela
119
EIA (Estudo de Impacto Ambiental) – é "um dos elementos do processo de avaliação de impacto ambiental.
Trata-se de execução, por equipe multidisciplinar, das tarefas técnicas e científicas destinadas a analisar,
sistematicamente, as conseqüências da implantação de um projeto no meio ambiente, por meio de métodos de
Avaliação de Impacto Ambiental e técnicas de previsão dos impactos ambientais"(Milaré, 2000: 668). RIMA
(Relatório de Impacto Ambiental) – "é o documento que apresenta os resultados dos estudo técnicos e científicos
de avaliação de impacto ambiental" (Milaré, 2000: 682), constituindo-se como documento público do processo
de avaliação de impacto ambiental, devendo esclarecer todos os elementos da proposta e ser amplamente
divulgado. MILARÉ, E. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. Rio de Janeiro,
Ed.Revista dos Tribunais, 2000.
185
burocracia do Estado, advogando a favor de uma imagem de legalidade e adequação aos
termos procedurais do licenciamento. Assim, temos:
“Histórico:
- 05/08/2002: Formação do Processo de Manifestação Prévia em nome da Bahia
Pesca: processo nº 2002-003477/TEC/MNP
- 18/09/02: Emissão da Manifestação Prévia de Localização pelo CRA;
- 26/09/2003: Primeiros contatos do empreendimento com a Bahia Pesca
- 26/09/2003: Primeiros contatos do empreendimento com o CRA
- 30/01/04: Início da aquisição da propriedade
- 04/10/04: Formou-se o processo requerendo a Licença de Localização
- 20-21/10/04: Inspeção do CRA para elaboração do Termo de Referência
- 29/10/04: Aprovação do Termo de Referência pelo CEPRAM;
- 06/2005: Entrega do EIA-RIMA
- 07/2005: Publicação da disponibilização do RIMA.
- 24/07/05: RIMA disponibilizado para a comunidade nos seguintes locais: Caravelas
– Prefeitura Municipal, Câmara dos Vereadores, Rotary Clube, Colônia de Pesca,
Administração do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos – Ibama, 3 cópias para o
Conselho Municipal de Meio Ambiente –COMDEMA; Alcobaça: Prefeitura
Municipal e Câmara dos Vereadores. (...)”
O que se pode concluir a partir deste auto-designado “histórico”? Em primeiro lugar,
observa-se que a entidade que iniciou todo o processo foi a Bahia Pesca S.A., que obteve do
órgão ambiental estadual a permissão para buscar investidores interessados em adquirir terras
onde seriam implantadas fazendas de camarão em Caravelas. Três meses depois dos primeiros
contatos com a Bahia Pesca e o CRA, a Coopex começou a aquisição das terras onde
pretendia se instalar. De fato, a Bahia Pesca foi a verdadeira promotora da entrada da Coopex
na Bahia. Atuando como uma instituição de prospecção de negócios rentáveis na área
pesqueira, esta entidade costurou uma aliança tríplice entre investidor, governos estadual e
governo municipal. Isto se evidencia num dos slides apresentados pela Coopex na Audiência
Pública:
“Por que a Coopex escolheu Caravelas? Na Bahia, tivemos total apoio das autoridades
municipais e estaduais, a quem aproveitando este evento, apresentamos nossos
agradecimentos, destacando: Prefeito Municipal e todo seu secretariado, ao
Governador e seus secretários, que nos encaminharam à Bahia Pesca, aqui presente na
figura do seu Presidente, nosso grande incentivador desde a primeira hora, a quem
aqui enviamos o nosso especial agradecimento, estendido a todos os técnicos e
colaboradores da Bahia Pesca.”
Com tantos entes públicos, privados e público-privados associados ao chamado
“empreendedor”, os integrantes do que mais tarde se tornou uma “coalizão” entenderam que a
categoria “empreendedor” não se aplica tão-somente ao grupos de empresários e investidores
em fazendas de camarão denominado COOPEX nos documentos relativos ao processo de
186
licenciamento. Reduzi-lo a isso é ignorar a multiplicidade de agenciamentos que nasceram do
projeto de instalação da carcinicultura no município e que, por uma questão de coerência
taxonômica, devem ser incluídos dentro da rubrica “empreendedor”.
Em primeiro lugar, tem-se o “empreendedor Bahia Pesca”, que desde julho de 2002
vinha perscrutando alternativas de negócios rentáveis no estado da Bahia e divulgando-as para
investidores em potencial, desenvolvendo inclusive um CD ROM sobre o potencial baiano
para a carcinicultura. Em segundo lugar, tem-se o que nos documentos é definido como
“empreendedor”, isto é, os vinte e seis empresários investidores que supostamente adquiriram
as terras onde pretendiam instalar suas fazendas. Em terceiro lugar, tem-se o “empreendedor-
consultoria”, contratada pela Coopex para realizar o Estudo e o Relatório de Impacto
Ambiental que justifica, a partir de um discurso técnico-científico, a viabilidade social e
ambiental da instalação das fazendas de camarão.
E, por fim, há o “empreendedor-prefeitura”, que alterou a Resolução Normativa
regulamentadora da atividade de carcinicultura no município, viabilizando legalmente o
empreendimento, destituiu as entidades da sociedade civil contrárias à instalação da grande
fazenda do Conselho Municipal de Meio Ambiente e impôs a “lei do silêncio” junto aos
funcionários e familiares de funcionários da Prefeitura. Portanto, quando nos referirmos à
categoria “empreendedor”, estaremos remetendo ao conjunto de agentes descrito, no qual
coexistem harmonicamente o investidor privado, as consultorias especializadas na produção e
comercialização laudos científicos, o órgão estadual de desenvolvimento da pesca e o governo
municipal.
A história das organizações ambientalistas
A história do ponto de vista dos ambientalistas encontra-se relatada nas páginas
iniciais do Parecer Independente ao EIA-RIMA (Moura et al., 2005). A narrativa revela um
esforço no sentido de atribuir sentido a uma série de acontecimentos que, nas palavras de um
biólogo, os “atropelaram”. Em outros termos, embora a posteriori seja possível reconstituir os
eventos e ordená-los de forma inteligível, muitas vezes não se sabia exatamente o que estava
acontecendo enquanto eles eram vivenciados, não só porque em boa parte da experiência
humana é isso mesmo o que acontece, mas também pelo fato de não haver informações
públicas e precisas sobre o empreendimento. Foram boatos e ocorrências esparsas que
levaram os ambientalistas a crer que algo poderia estar em vias de acontecer e a se organizar
no sentido de obter informações e construir algumas salvaguardas legais.
187
Notícias de jornal oferecendo “excelente oportunidade de investimento” em fazendas
de camarão em Caravelas foram detectadas por membros do conselho consultivo do Parque
em março de 2002, dezembro de 2003 e março de 2004. Alertado sobre a notícia por um
funcionário, a chefia do PARNAM-Abrolhos emitiu um memorando ao Ibama, solicitando
maiores informações e requisitando uma avaliação técnica sobre as empresas de
carcinicultura.
Ao longo de todo o ano de 2004, evidências de que um grande empreendimento estava
se instalando na cidade vez por outra surgiam, sem que a empresa notificasse formalmente a
população do município. Em fevereiro de 2004, as entidades ambientalistas da cidade
representadas no Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMDEMA), a partir dos rumores
na mídia impressa, decidiram tomar uma medida de precaução e conseguiram aprovar a Lei
normativa nº 12 de 2004 regulamentando a atividade carcinicultora no município. Entre
março e agosto de 2004, as primeiras irregularidades no licenciamento se evidenciaram para
as entidades ambientalistas: uma área de 22,5 ha. de vegetação de mangue foi desmatada e
queimada, fato que gerou denúncias dos moradores ao Ibama e à prefeitura. Os responsáveis
pelo desmatamento afirmaram estar preparando o terreno para uma fazenda de camarão.
O Ibama expediu uma notificação pedindo esclarecimentos ao proprietário da área e
não obteve resposta. O Parque Nacional também informou à prefeitura municipal, o setor de
licenciamento do CRA e a Gerência Executiva do Ibama-BA sobre a atividade irregular. Em
maio de 2004, o COMDEMA solicitou ao CRA informações sobre a existência de quaisquer
empreendimentos de carcinicultura em Caravelas em vias de licenciamento e não obteve
resposta por mais de um ano. Entre julho e agosto de 2004, as entidades ambientalistas
conseguiram aprovar no COMDEMA a criação de uma Comissão Técnica de
Acompanhamento de Impacto Sócio-Ambiental da Atividade de Carcinicultura e constataram
em vistoria técnica que a área onde os boatos indicavam que seria a fazenda de camarão
continuava a ser desmatada.
Apenas em outubro do mesmo ano (2004), as entidades ambientalistas obtiveram,
através do seu representante no Conselho Estadual de Meio Ambiente, a informação de que a
Coopex requerera uma Licença de Localização e tivera o termo de referência do seu EIA-
RIMA aprovado. Até a divulgação do RIMA em julho de 2005, nem o Ibama, nem as
entidades ambientalistas ou os moradores da cidade tiveram acesso a quaisquer informações
mais precisas sobre o projeto. A resposta à solicitação feita pelas entidades locais ao CRA em
agosto de 2004 chegou apenas um ano depois, em agosto de 2005, quando o PARNAM
Abrolhos solicitou mais uma vez ao setor de Licenciamento do CRA informações sobre
188
possíveis empreendimentos de carcinicultura na cidade, ao mesmo tempo em que informou
este órgão sobre o processo em curso de criação de uma Unidade de Conservação Federal no
manguezal e estuário do município
120
. O CRA se limitou a informar que, em setembro de
2002, havia fornecido à Bahia Pesca S.A. uma manifestação prévia de localização e não
mencionou a suposta inspeção e o termo de referência da Coopex, citados no auto-designado
“histórico do empreendedor”.
Finalmente, em agosto de 2005, o RIMA da Coopex foi encaminhado ao Conselho de
Meio Ambiente do município e divulgado para as entidades locais, mas apenas em outubro do
mesmo ano, a quinze dias da audiência pública marcada, o Estudo de Impacto Ambiental
completo (4 volumes) foi disponibilizado. Como medida de precaução, uma série de entidades
ambientalistas locais, o Ibama e universidades entraram, através do Ministério Público, com
uma solicitação ao Ministério do Meio Ambiente de decretação de Limitações
Administrativas Provisórias (por sete meses, de acordo com a lei 9985, de 18/07/2000), de
modo a impedir o exercício de atividades e empreendimentos potencialmente causadores de
degradação ambiental na área de manguezal, que compunha a maior parte da área referente à
Unidade de Conservação Federal em processo de criação.
A história dos moradores da cidade
Do ponto de vista dos moradores da cidade, o curso dos acontecimentos também foi
experimentado de modo intermitente: a possibilidade de instalação de fazendas de camarão
surgia e desaparecia de modo repentino no horizonte das pessoas. As pessoas consideram
muito difícil precisar um momento definido quando teriam ouvido falar pela primeira vez no
empreendimento. Genilson, marisqueiro que seria diretamente atingido pelos impactos da
fazenda de camarão, afirma que só soube do licenciamento através das atividades das ONGs
em conjunto com os atingidos do Ceará, a cinco dias da audiência pública. Este caso não é
isolado: a maior parte da população potencialmente atingida teve acesso à notícia sobre o
projeto – apresentado aos moradores como um fato consumado - às vésperas da audiência
pública.
Os participantes do movimento cultural da cidade, porém, ouviram falar em
carcinicultura pela primeira vez em agosto de 2002, quando um funcionário do Ibama foi à
sede do movimento mostrar uma matéria do Correio da Bahia, que indicava a cidade de
Caravelas como alvo do investimento de um grupo de empresário chineses em fazendas de
120
Que veio a ser a RESEX Cassurubá, que engloba os manguezais e áreas marinhas entre Caravelas e Nova
Viçosa e foi decretada em junho de 2009 após intenso processo de mobilização local.
189
camarão. Nesta época ouviram-se os primeiros boatos de que Caravelas estaria sendo visada
como área de implantação de fazendas de camarão. Dó relatou um passeio realizado junto
com sua família a uma praia de mangue em agosto de 2002. Ele se recorda que este passeio
foi perturbado pelo sobrevôo rasante de helicópteros, cuja presença contrastava enormemente
com a paz do lugar. Houve uma certa sensação de temor experimentada por todos, o
pressentimento de que aquele pedaço de mangue poderia estar sendo descoberto e cobiçado
por interesses desconhecidos. Assim, enquanto o empreendimento não divulgou seu projeto,
os moradores recebiam notícias esparsas e vivenciavam “sensações” e “pressentimentos” que
os levava a supor que “algo” - que conscientemente ignoravam - poderia estar em vias de
acontecer.
Ainda no ano de 2002, os pescadores de Ponta de Areia (distrito de Caravelas)
estavam muito apreensivos com os acontecimentos recentes: a construção de um porto para o
transporte de toras de eucalipto da empresa Aracruz Celulose e a obra de dragagem do fundo
do mar, para permitir a passagem das barcaças da Aracruz (vide capítulo 3). Ao mesmo
tempo, os pescadores estavam muito preocupados com as mudanças no clima da região,
segundo eles, causadas pelas plantações de eucalipto e a resultante dificuldade de se prever as
condições de pesca. Outro temor à época era de que o descarte dos sedimentos revolvidos do
fundo do mar pela dragagem afetasse o principal pesqueiro de camarão da região, próximo à
Barra Velha, Nova Viçosa, como de fato acabou acontecendo. Couro de Lixa, um pescador
veterano afirmou que “os peixes bagre de laguna correram para outro canto. O pessoal da
empresa [Aracruz] garantiu que nada vai acontecer com o pesqueiro”. Ele esperava em 2002
que a dragagem não fosse atingir o pesqueiro do camarão, mas, caso isso acontecesse, para ele
sobrava uma outra alternativa: a coleta de crustáceos no mangue: “caranguejo nunca faltou. A
não ser que as barcaças derramem óleo, aí sim pode faltar”.
Em 2002, o pescador veterano queixava-se do “sumiço” de algumas espécies, como o
bagre. Ele imaginava que o camarão poderia ser afetado também, mas não imaginava que o
caranguejo – sua última alternativa de pesca – desapareceria por completo dos manguezais da
região. Embora os cientistas contratados pela Aracruz neguem, constatou-se no ano de 2003
que os pescadores foram impactados com a redução do pesqueiro do camarão, causada pela
deposição de grande quantidade de matéria orgânica oriunda da dragagem. E, além disso, uma
grande mortandade de caranguejo atingiu os manguezais de Caravelas naquele mesmo ano de
2002, praticamente extinguindo o crustáceo que compunha a base da renda de centenas de
famílias da cidade.
190
Em janeiro de 2003, uma grande mortandade de caranguejos-uçá atingiu a região de
Canavieiras (Schmidt, 2006). Neste ano, grupos de extrativistas daquela localidade se
deslocaram para Caravelas, à procura do crustáceo. A chegada destes grupos de marisqueiros
causou fortes conflitos em Caravelas: os pescadores caravelenses se indignaram com o grande
volume de mariscos capturados de uma só vez, pelas técnicas predatórias utilizadas (como
redinha e carbureto) e pela “invasão” dos seus territórios de uso tradicional por um grupo
definido como “de fora”. Este evento engendrou forte oposição dos pescadores de Caravelas
ao escritório do Ibama local, que não foi legalmente capaz de impedir a extração do crustáceo
pelos moradores de Canavieiras. Ao mesmo tempo, estes conflitos geraram manifestações dos
extrativistas de Caravelas, que passaram a discutir e reivindicar o direito de uso exclusivo de
seu território, processo que culminou na luta pela implementação da Reserva Extrativista do
Cassurubá nos manguezais da região, decretada em junho de 2009.
Em 2004, esta grande mortandade se alastrou para o sul do estado e atingiu os
manguezais de Caravelas, reduzindo drasticamente a quantidade de caranguejos (Schmidt,
2006), principal recurso dos extrativistas. Este “desastre ecológico” – imprevisto, inédito e
responsável pelo desaparecimento do caranguejo em toda a extensão dos manguezais da
região - pôs em movimento uma grande quantidade de famílias moradoras da região
ribeirinha. O assim chamado “processo de urbanização” dos moradores da ribeirinha - que já
vinha ocorrendo de forma intermitente há anos – intensificou-se drasticamente na época do
“sumiço do caranguejo”. Famílias provenientes dos sítios na região ribeirinha mudaram-se
para a sede do município de Caravelas, onde ocuparam uma área de manguezal contígua ao
centro da cidade, à beira do rio dos Macacos. Esta área, sujeita a constantes alagamentos por
estar sob influência da maré, foi loteada, legalizada e doada pelo então prefeito aos moradores
da zona ribeirinha, numa jogada eleitoral que garantiu a eleição do atual prefeito, seu sucessor
e genro. A maioria absoluta da população hoje residente no Bairro Novo é proveniente dos
sítios ou “ilhas” ao longo do estuário do rio Caravelas e seus afluentes.
Os grupos potencialmente mais atingidos pela entrada da carcinicultura no município
– pescadores e marisqueiras da área ribeirinha e do Bairro Novo - afirmam que as “ONGs
chegaram tarde demais”. Isso porque elas “apareceram” para os pescadores muito depois da
grande mortandade de caranguejo. A causa da mortandade de caranguejo é ainda hoje objeto
de controvérsias e pode ser entendido como um tema central para se compreender a posição
dos pescadores em relação aos órgãos ambientais e às ONGs durante o processo de
licenciamento da Coopex. Num certo sentido, os extrativistas já sentiam os efeitos de um
processo de intervenção em seu meio muito antes deste novo empreendimento chegar. A
191
história deste “empreendimento”, da perspectiva dos extrativistas, é apenas um capítulo da
história recente de impactos ambientais negativos sobre sua atividade de subsistência.
O empreendimento vem a público
Entre as notícias de jornal de 2002 e 2004, não se ouviu mais falar em fazenda de
camarão na cidade: a preocupação dos caravelenses girava em torno da diminuição dos
estoques de pesca, o impacto sobre o pesqueiro do camarão e a mortandade de caranguejos
sem precedentes que experimentavam. Somente em setembro de 2005, os boatos de que as
fazendas de camarão chegavam à Caravelas voltaram com força total. Alguns moradores
foram contratados pela Coopex e percorreram a cidade divulgando que muitos empregos
seriam criados na cidade e preenchendo fichas com os nomes e dados das pessoas interessadas
numa vaga, ou seja, virtualmente todo mundo. Outubro de 2005 foi o momento em que
chegou aos ouvidos da população – pela única rádio FM da cidade que não dispunha, até
então, de quaisquer outros meios de comunicação - a notícia de que haveria “uma grande
oferta de empregos na cidade”, proporcionada pela fazenda de camarão, algo em torno de
3000 vagas (ou seja, 15% da população total do município estaria empregada). A empresa
divulgou o empreendimento através de panfletos coloridos amplamente distribuídos pela
cidade, programas de rádio e cartazes onde lia-se “Coopex, desenvolvimento sustentável”.
Deste modo, a empresa deu início a uma vigorosa campanha de marketing, centrada
fundamentalmente na suposta oferta de empregos aos milhares e na suposta qualidade
ambiental do empreendimento. Nos programas de rádio, não se fazia quaisquer menções aos
impactos sociais ou ambientais das fazendas de camarão; afirmava-se tão-somente que a
Coopex tinha um “compromisso com o desenvolvimento sustentável”. Moradores e grupos
sociais potencialmente atingidos foram surpreendidos pela notícia, que se espalhou
rapidamente pela cidade, causando grande expectativa entre os caravelenses.
O simples anúncio da possível chegada de um grande projeto na cidade provocou a
eclosão extemporânea de disputas incomuns, somente comparáveis com aquelas do período
eleitoral. O projeto de fazenda de camarão foi um evento que atravessou a cidade e fez
aparecer tensões onde antes não se supunha ou não se via. Este fluxo repentino permitiu a
explicitação de desavenças antigas que opõem o conjunto dos moradores locais versus o
conjunto ONGs-Ibama, vistos pelos primeiros com desconfiança, como um todo unívoco e
192
indiferenciado
121
. E permitiu, paradoxalmente, a superação desta mesma desconfiança por
parte de uma parcela dos moradores e a construção de uma aliança inesperada entre
extrativistas com pesquisadores e ambientalistas, unidos no processo de luta contra a
carcinicultura.
Do ponto de vista dos diferentes agentes, o histórico do empreendimento é construído
a partir das informações (que podemos entender como fontes) disponibilizadas pelo
empreendedor ou obtidas em outras instâncias, como na imprensa e dentro dos órgãos oficiais.
O cuidado do empreendedor em não divulgar sua existência até o momento certo fez com que
os sujeitos envolvidos, hoje, demonstrem um certo desconforto por não saberem ou pouco
saberem da história do empreendimento, embora a tenham acompanhado. Esta “ignorância”
não foi uma falta, mas um efeito de um processo ativo, por parte do empreendedor e do órgão
ambiental estadual, de omitir sua presença do público durante o maior período de tempo
possível.
Assim, se as entrevistas, documentos e cacos de informação reunidos pelos
pesquisadores permitem até certo ponto reconstruir a história do ponto de vista do
empreendedor (e trata-se sobretudo de um histórico frio, sobre o trânsito burocrático do
projeto), há que se levar em conta que, para os grupos locais, o empreendimento surgiu de
forma repentina, quando o relatório de impacto ambiental já estava pronto e o pedido de
licenciamento correndo no conselho do órgão ambiental estadual. Para os sujeitos envolvidos
aos quais foi negado o acesso às fontes/informações, não houve história do empreendimento.
O empreendimento nasceu eterno, surgiu de um dia para o outro no seu horizonte,
terrivelmente presente e influente. Nossa hipótese é que muito da força do empreendimento
provém justamente daí, do fato dele não ter uma história, isto é, se projetar para fora da
história, como um fato, um dado, um estado de coisas inelutável, quase natural, ou até mesmo
sobrenatural: o empreendimento não existe nem precisou existir para produzir efeitos sociais
concretos.
Três Manguezais
Mas quem são os extrativistas de que estamos falando? Apenas aquelas pessoas que
vivem na área ribeirinha? Um morador de Caravelas que eventualmente acesse o manguezal
não poderia também ser considerado extrativista? De que manguezal estamos falando? Iremos
121
Aliás, a recíproca também é verdadeira: pessoas que trabalham nas ONGs e no Ibama veem muitas vezes os
moradores do ribeirinha, os chamados “extrativistas” como um todo unívoco e indiferenciado. Ver adiante “os
múltiplos sentidos de ser extrativista”.
193
agora nos deter sobre os múltiplos sentidos do manguezal em Caravelas bem como sobre os
desdobramentos possíveis da categoria “extrativista”.
O material apresentado a seguir procura buscar novas formas de dar inteligibilidade para a
relação das pessoas com o que chamamos de “meio ambiente”, que para elas, no caso
estudado, é simplesmente o mangue.
Esclareço que, neste momento, não pretendo recensear a ampla produção bibliográfica
deste debate, tarefa por certo desejável e necessária, mas que foge ao escopo do presente
capítulo. Os autores eventualmente citados devem ser entendidos como “balizas” para o
exercício de minoração (Deleuze; Bene, 1978) que aqui proponho. Trata-se de um
procedimento, um tratamento ao material, que busca extrair ou extirpar todos os elementos de
poder (a História, o Território, a Estrutura, os Padrões, as Constantes) que bloqueiam a nossa
capacidade de perceber os devires e potencialidades pouco exploradas trazidos pela
etnografia. O que sobra? Tudo.
Em cena, uma acirrada disputa sobre a definição dos usos legítimos do manguezal.
Uma possível abordagem sobre o tema seria afirmar que os sentidos sociais e políticos em
disputa se refeririam a um mesmo território, ou seja, girariam em torno de uma determinada
porção do ambiente biofísico do município. O território nasceria de uma espécie de
transformação ou conversão do ambiente natural em ambiente social, que se processaria por
meio do trabalho da história e da cultura. Nas palavras de Little (2002, p.3-4): “ Defino a
territorialidade como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se
identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
“território” ou homeland” (...). Ou ainda, segundo o mesmo autor, “O fato de que um
território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que
qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos” (ibid.).
Não resta dúvida que esta noção de território ou aquela de meio ambiente como o
meio de alguém, histórica e culturalmente forjado pelas atividades dos grupos sociais que nele
habitam, sempre em transformação e nunca completo é por si só interessante, uma vez que
introduz uma variável dinâmica em categorias que tendem a uma certa fixidez. No entanto,
parece-me que essas idéias de meio ambiente e território ao invés de conduzir nossas análises
adiante, podem ser o fator mesmo que as impede de avançar. Minha indagação é: o que
aconteceria com esta idéia de território ou meio ambiente como transformação cultural ou
social de uma base biofísica já dada se mudarmos de perspectiva e prestarmos atenção aos
múltiplos modos pelos quais os grupos extrativistas se relacionam com o seu meio?
194
Cabe, em primeiro lugar, discutir a questão disso que Ingold (2000) chamou de
relativismo perceptual, que repousa na idéia de que haveria uma base natural dada sobre a
qual são construídas diferentes representações que variariam segundo os agentes sociais em
questão. Um mesmo objeto é percebido ou apreendido de diferentes formas, segundo os
pontos de vista dos diferentes sujeitos, que o constroem de modos distintos. Assim, teríamos
representações sobre um mesmo objeto, dado a priori, que mudariam de acordo com o sujeito
em questão ou segundo sua posição num determinado campo de disputas. O estudo do meio
ambiente dado caberia ao biólogo; o estudo das representações em disputa sobre este meio
ambiente seria tarefa do antropólogo, numa operação que recorta o objeto em partes cujo
escrutínio remete a competências distintas, favorecendo assim uma divisão social do trabalho
científico e uma partição dos dividendos devidos entre as respectivas disciplinas.
A aposta que faço é a seguinte: o que aconteceria se olharmos para o meio ambiente
como algo que não está dado previamente? E se, além disso, abandonarmos a idéia de que o
que está em jogo são “representações” em disputa? O que sobra? Tudo, isto é, os percursos
heterogêneos e múltiplos traçados pelos moradores, que nos fornecem as distintas
modalidades da relação das populações extrativistas com o manguezal. Para tentar
demonstrar isso, começo apresentando três perspectivas distintas – do empreendedor, das
ONGs e dos extrativistas – que delineiam três possíveis manguezais. Em seguida, adentro nas
modalidades de relação com o manguezal detectadas pelo trabalho de campo, os distintos
modos de ser extrativista.
Esclareço que as fontes empíricas em que me baseio diferem substancialmente de
acordo com os sujeitos em questão. Isso porque minha pesquisa de campo se fez muito mais
próxima aos grupos extrativistas do que das ONGs ambientalistas e dos empresários. O ponto
de vista que adoto situa-se irremediavelmente neste primeiro pólo e as reflexões sobre as
ONGs e os empresários devem ser entendidas como resultantes dos agenciamentos
produzidos pelo meu encontro com o movimento cultural e os grupos extrativistas.
O material no qual me baseio para conhecer o manguezal do empreendedor é o EIA-
RIMA deste grande projeto de carcinicultura e um texto exemplar publicado pela Revista da
ABCC (Associação Brasileira de Criadores de Camarão). O Parecer Técnico Independente ao
EIA-RIMA, é, por sua vez, a fonte que permitiu o acesso ao manguezal concebido pelas
ONGs ambientalistas. Finalmente, tive acesso ao manguezal dos extrativistas de forma direta,
diária e intensa, durante a última etapa de minha pesquisa de campo no município.
O manguezal do empreendedor é concebido como pura negatividade. A atividade da
mariscagem é entendida como um fardo insalubre atribuído a seres desumanizados, que não
195
teriam outra escolha a não ser submeter-se a um trabalho abjeto. Segundo o autor de um texto
síntese sobre a visão dos carcinicultores sobre o manguezal, publicado na revista dos
criadores de camarão, trata-se de uma “condenação inumana viver e sobreviver para sempre
nos inóspitos manguezais (...) sob a sentença de pena perpétua de se nascer na lama e em lama
transformar-se. (...) A insalubre atividade dos catadores de caranguejos é tão sub-humana
quanto aquela dos catadores de lixo (Guimarães, 2005, p.19).
O manguezal é definido como um ecossistema “pútrido, fétido e infeccioso”, uma
“terra podre”. Os marisqueiros são representados como seres em que a própria humanidade
está em causa e classificados como vivendo numa zona liminar, que tangenciaria o mundo dos
animais: são chamados de “seres anfíbios”, que vivem “entre as águas do rio e a lama dos
mangues”, sem “acesso à saúde, à educação, a qualquer coisa da terra dos humanos.” Seus
corpos e gestos são postos em relação de analogia com aqueles dos caranguejos: “Eles se
assemelhavam aos caranguejos que catavam quando se agachavam e enlameavam o corpo
todo; arrastavam-se no chão lodoso em fermentação pela urina, fezes e lixo”. (Guimarães,
2005, p.19).
Na cosmologia dos produtores de camarão em cativeiro, o trabalho nas fazendas seria
o expediente redentor, a atividade por excelência capaz de libertar estes “seres anfíbios” dos
grilhões de uma condição sub-humana ou pré-animal e da transformação de um ambiente
poluto e infernal num ambiente higienizado pelo trabalho. De um lado, o trabalho e o
desenvolvimento nas fazendas liberariam o manguezal de sua poluição moral natural e, de
outro, os marisqueiros seriam alçados à humanidade propriamente dita, ao tornarem-se
trabalhadores. Nas palavras do autor, “a atividade [do cultivo de camarões] consolidou-se e
em conseqüência vieram os empregos, as divisas, o desenvolvimento das indústrias afins, o
incremento do comércio local e, finalmente, a oportunidade dos homens-caranguejos saírem
da fossa pantanosa e se encantarem em homem-homem”. Segundo esta visão do
empreendedor, os ambientalistas, (“homens-homens de terra firme”) são apresentados como
sujeitos românticos e responsáveis pela despossessão dos marisqueiros. Sua oposição à
carcinicultura seria um fator a impedir o desenvolvimento econômico e, por conseguinte, a
redenção moral dos extrativistas. Afirma Guimarães (ibid.): “Os homens-homens de terra
firme não lhes permitem sair [do mangue]. Não querem que tenham acesso à saúde, à
educação, à carteira de trabalho assinada. Pelo contrário: tramam em matar a atividade que os
libertaria. Discursam que ela acabará com seus caranguejos, que exterminará os manguezais,
196
que assassinará os rios. Mentira. Eles apenas acham poético catar caranguejo para
sobreviver”
122
.
É interessante perceber a notável e incômoda semelhança entre este texto e o livro
“Homens e Caranguejos”, de Josué de Castro, misto de romance e autobiografia do autor,
nascido nos alagados da cidade do Recife. São ao meu ver significativas as convergências
semânticas entre o texto do ideólogo dos proprietários de fazendas de camarão e o livro deste
homem de esquerda. Josué de Castro também define os moradores dos manguezais como
“seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos.” Castro enfatiza
ao longo do livro a grande semelhança entre homens do mangue e os caranguejos:
“Alimentados na infância com o caldo do caranguejo: este leite da lama. Seres humanos que
se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com
os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se
terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu
cheiro de terra podre e maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os
tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também
enlambuzadas de lama” (Castro, 1967:12-13).
Como explicar esta coincidência do discurso empresarial com o discurso de um
homem de esquerda? Em primeiro lugar é importante lembrar que Josué de Castro se referia
aos manguezais urbanos de Recife, em franca deterioração, onde amontoa(va)m-se os
moradores oriundos do êxodo das áreas rurais. Mas isso não pode obscurecer o fato de que
ambos – fazendeiros e homens de esquerda – possam recair nesse nosso “adversário sempre
vivaz”, “obstáculo permanente”, expediente que “mediatiza todo olhar sobre as diferenças
para identificá-las e finalmente aboli-las” (Clastres, 1978, p.13-14): nosso velho conhecido, o
etnocentrismo. Não falo aqui daquele etnocentrismo “compartilhado” por todas as culturas,
que considera bárbaro o que não se pratica em sua terra, tendência universal em considerar o
seu modo de vida como o mais “correto” e o mais “natural” (Lévi-Strauss, 1950).
Refiro-me aqui a um determinado etnocentrismo, o etnocentrismo ocidental, que, ao
definir o outro por aquilo que ele não é, abolindo as diferenças em nome de uma identidade,
acaba por funcionar como um dispositivo de conversão de pessoas e meios ambientes. Eis a
lógica incrustada na raiz do racismo contemporâneo, a classificar e hierarquizar os homens
por graus de “desvio em relação à face do homem branco, que pretende integrar em ondas
122
Guimarães, Iveraldo. 2005. Homens-Caranguejo: os filhos da lama. In Revista da ABCC (Associação
Brasileira de Criadores de Camarão). Ano 7, nº3, setembro de 2005. Impactos sócio-econômicos da
carcinicultura no Nordeste.
197
mais e mais excêntricas e retardadas os traços que não estão conformes, seja para tolerá-los
em tal lugar e em tais condições, em tal gueto, seja para apagá-las sobre o muro que não
suporta jamais a alteridade” (Deleuze e Guattari, 1980, p. 218). Racismo este que transparece
em determinados modus operandi da biopolítica estatal relativa aos territórios de grupos e
comunidades extrativistas. Biopolítica atualizada, no caso estudado, num grande inventário
intitulado “Macrodiagnóstico do Potencial da Bahia para Carcinicultura Marinha”, produzido
em 2002 pela Bahia Pesca, empresa de capital misto que tem por missão o desenvolvimento
da atividade pesqueira no estado da Bahia. Através de mapeamentos, planilhas e imagens de
satélite, a Bahia Pesca desenhou um zoneamento econômico circunscrevendo os manguezais
das populações tradicionais - apresentados como terras vazias – e deste modo liberou
territórios não explorados para o investimento de capital e expandiu a fronteira da acumulação
para áreas onde predominam atividades extrativistas, como a pesca e a mariscagem.
Cabe lembrar que no atual governo petista de Jacques Wagner, apesar da
Superintendência de Recursos Hídricos ter suspendido a outorga de água para atividades de
carcinicultura, a Bahia Pesca não apresenta mudanças significativas em termos de orientação
política; ao contrário, vem mantendo a lógica da expansão do agronegócio sobre territórios de
uso comum. Sintoma de que empresários e homens de esquerda situam-se na faixa comum de
um repertório político desenvolvimentista-predatório que, etnocentricamente, define os
extrativistas, sejam eles pescadores, marisqueiras, quilombolas ou indígenas, como “entraves”
ao desenvolvimento (no singular: desejo universal e rumo inexorável).
E o que seria o manguezal do ponto de vista das ONGs? A quase totalidade dos
quadros das ONGs é formada por biólogos e oceanógrafos, pessoas treinadas para exercitarem
um olhar científico sobre o mundo, o que supõe a definição da área em questão como um
ecossistema, regulado por uma dinâmica natural própria, habitado por determinadas
populações e protegido por legislações específicas. Os cientistas das ONGs entendem que o
rio Caravelas e seus afluentes são o principal estuário do Banco dos Abrolhos, local de
nascimento e reprodução da fauna marinha e, portanto, crucial para a manutenção da atividade
pesqueira nesta região que, não por acaso, é a mais produtiva do nordeste
123
. Segundos os
pesquisadores, a produção de camarão em cativeiro contaminaria este estuário, uma vez que
os efluentes das fazendas - contendo compostos químicos poluentes - seriam nele lançados
sem o devido tratamento. Afirmam ainda que o projeto de carcinicultura prevê a retirada da
vegetação nativa - restingas e mangues - de uma ampla área e que a introdução de uma
123
As informações a seguir se baseiam em MOURA et al., 2005, p.47-48.
198
espécie exótica de camarão asiático ocasionaria riscos diretos às espécies nativas, base do
sustento de significativa parcela da população humana. Um quadro de imprevisibilidade
quanto às conseqüências biológicas e ecossistêmicas seria produzido a partir da introdução da
carcinicultura no ambiente descrito. O manguezal dos biólogos é portanto, um ambiente a
meio caminho entre a afluência e a escassez: um ecossistema dinâmico que pode ser
irreversivelmente desestabilizado. De máquina de produção de vida e base econômica dos
moradores da região, o mangue pode converter-se num ambiente frágil, desestabilizado e
finito, no caso da introdução da produção de camarão em cativeiro em seus domínios.
Além de ser regulado por uma ordem natural, o manguezal também é objeto de uma
série de regulamentações jurídicas que visam garantir a permanência da vigência desta ordem.
Trata-se de área considerada de “Extrema Importância Biológica” pelo governo brasileiro;
localiza-se no limite da Zona de Amortecimento do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos e
dentro de uma área em estudo para criação de uma Unidade de Conservação Federal; inclui
ainda Áreas de Preservação Permanente e leitos de rios e é definida como Terrenos de
Marinha, ou seja, Bens da União. Trata-se de um território atravessado por uma série de
dispositivos jurídicos previstos na Constituição, em leis ambientais e em resoluções do
CONAMA (Conselho Nacional de Meio Ambiente), o que, do ponto de vista das ONGs
legitimaria a opção por uma atuação que enfatiza a disputa na esfera propriamente jurídica.
A relação manguezal-extrativista
“Não é somente o ser vivente que passa constantemente de um meio ao outro, são os meios que passam
de um ao outro, essencialmente comunicantes” (Deleuze e Guattari, 1980, p.384-385)
Ao longo dos 20 meses que vivi em Caravelas, morando junto a família que compõe o
movimento cultural, pude observar um amplo espectro de formas de relação com o
manguezal. As múltiplas combinações possíveis de se traçar uma relação com o manguezal a
princípio se mostraram inusitadas e, mais tarde, desconcertantes para mim, que talvez
buscasse algum padrão dominante na lógica dos deslocamentos observados. Se hoje sei que a
chamada “divisão rural-urbana” no município não pode ser entendida como uma fronteira
pura e simples, definida por uma lógica binária fixa e linear e posso afirmar que - se há
fronteira - esta se move segundo um princípio polimorfo, contrátil e fluido, acompanhando os
movimentos de desterritorialização-reterritorialização dos grupos extrativistas. É no traçado
produzido pela repetição do movimento dos muitos modos de ser extrativista que um
determinado meio é formado. Se esquecermos o território (o fundo) e olharmos apenas para os
extrativistas (a figura) o que se vê são linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação,
199
linhas de fuga e de desterritorialização, como se evidencia no material etnográfico
apresentado a seguir.
A prática extrativista, isto é, a extração e coleta de mariscos, crustáceos e outros
recursos disponíveis no ambiente é denominada pelos nativos de giro. O mangue é o lugar
onde se faz ou de onde se tira o giro e corresponde às extremidades das ilhas, que são ilhas no
sentido oceanográfico ou pedaços de continente entrecortado por rios e de difícil acesso por
terra. A roça é a pequena lavoura que os moradores da região ribeirinha costumam ter
(mandioca, abacaxi, coco ou dendê), associada à criação de pequenos animais. Ela se localiza
entre a casa e o manguezal propriamente dito. Mas roça também é o nome que se dá em geral
ao bloco casa-roça-mangue e é um termo empregado em frases como – “este final de semana
eu vou pra roça”, ou seja, para as terras localizadas rio acima. Diz-se também: “tô indo pra
ilha”, ou “ele tá pra Tapera”, denominação de uma das ilhas. A casa corresponde ao núcleo
das ilhas e são comuns núcleos familiares de duas a seis ou mais casas, com suas respectivas
roças. O manguezal é tido como de uso comum: o acesso é livre para qualquer morador da
roça ou da cidade, como veremos a seguir. O mesmo ocorre com as matas, áreas de florestas
cada vez mais escassas onde se encontra a caça tão apreciada (tatu, capivara, jibóia, cotia,
paca, jacaré, catitu) que o Ibama tanta em vão reprimir, apesar de seu importante papel nos
laços de reciprocidade e na dieta dos ribeirinhos.
A primeira forma de relação com o manguezal é a de pessoas que tiram seu giro do
mangue e cuja casa se localiza num meio anexo a ele, na ilha ou roça. Esta é a figura
considerada o extrativista “por excelência”, aquele que mora numa área contígüa ao local de
onde retira sua subsistência; ele vende seus mariscos para intermediários e freqüenta a cidade
raramente ou nos dias de feira. Este é o extrativista identificado nos estudos e laudos sócio-
econômicos que sustentam a criação de uma Reserva Extrativista – a Resex Cassurubá – na
região
124
. É o homem certo no lugar certo: sobre ele não pairam quaisquer dúvidas quanto a
sua identidade. O trabalho de campo, porém, vem mostrar que, embora evidentemente válido,
este é apenas um dos múltiplos modos de ser extrativista. Este modo “extrativista por
excelência” se desdobra em muitos outros modos de ser, em função de determinados
acontecimentos com os quais os extrativistas vem se defrontando ao longo do tempo.
A segunda forma de relação com o manguezal pode ser entendida como uma
desterritorialização desta primeira. Como foi dito, em 2003 houve uma grande e inédita
mortandade de caranguejo em toda zona costeira baiana, o que gerou um grande afluxo de
124
Ranauro, M. L. 2005. Laudo socioeconômico para criação de novas Unidades de Conservação: Região da Ilha
do Cassurubá, Bahia, Brasil. Conservação Internacional/Ibama. 66p.
200
moradores da área ribeirinha de Caravelas para a cidade, em busca de algum tipo de renda
alternativa ao extrativismo. Isso se traduziu em muitos casos numa inserção no mercado de
trabalho informal: trabalho doméstico para as mulheres e na construção civil para os homens.
Jane e sua cunhada Rita moraram muitos anos na roça, como designam a terra que a
família de Manuel de Adeu ocupa entre o rio Caribê e o rio do Poço, na parte conhecida como
Tapera. A Tapera é uma ilha relativamente próxima à cidade e à feira: se a maré estiver
grande, isto é, enchendo, o percurso entre a ilha e a cidade leva 40 minutos de canoa e com a
maré vazante, leva-se apenas vinte minutos no remo. Em sua família são ao todo treze irmãos:
todos, sem exceção, vivem da extração de mariscos do manguezal. As casas de pau-a-pique
eram o pouso certo após o trabalho entre quatro e dez da manhã catando mariscos e pescando.
Em 2003, porém, o caranguejo começou a escassear até sumir por completo. Durante o
período da mortandade de caranguejo, Jane deixou de obter uma renda de aproximadamente
seiscentos reais por mês. Ela tirava 150 reais por semana vendendo o catado do caranguejo
para atravessadores. Isso a fez desfazer (literalmente, desmontar) a casa de sua família na área
ribeirinha. Seu marido Genilson trouxe as telhas da casa para a cidade e a reconstruiu no
chamado Bairro Novo, ocupação recente de uma área de manguezal onde antes o traçado
urbano terminava. Jane tornou-se, então, empregada doméstica na casa de uma família
abastada e passou a ganhar meio salário mínimo por um mês de trabalho, o equivalente ao que
tirava do mangue a cada semana.
Esta mudança para a cidade não é entendida por Jane nem por seu marido como
definitiva; eles sonham em juntar dinheiro para comprar as telhas que permitirão refazer sua
casa na ilha da Tapera. Hoje, Jane vive numa casa de alvenaria no Bairro Novo, numa área
sem água encanada ou saneamento básico (tal como na Tapera), porém, diferentemente de seu
local de origem, sujeita a alagamentos constantes e doenças. Seu filho mais novo, de 8 anos,
contraiu hepatite B em meados de 2005 e a fez ter muitos gastos com medicamentos e
exames. O marido de Jane, conhecido como pajé pelos moradores da região ribeirinha,
também deixou de catar caranguejo e foi trabalhar como pedreiro na Barra, distrito à beira-
mar que concentra as novas construções na cidade. Nos últimos meses de 2005, com o
reaparecimento do caranguejo e da ostra, Jane e seu marido largaram esses empregos e
voltaram ao giro no manguezal. Quando querem ficar mais perto dos recursos, voltam para a
roça e se alojam temporariamente na casa dos parentes que aí permaneceram. Esta é uma
segunda modalidade de relação com o manguezal: pode-se viver na cidade e fazer o seu giro
no mangue e, eventualmente, “pousar” na roça, na casa daqueles por quem se está ligado por
laços de parentesco.
201
Um terceiro modo de ser extrativista é uma reterritorialização desta segunda, quando a
moradia na cidade se torna permanente. Este é o caso da maior parte dos moradores da
Avenida, área periférica da cidade de ocupação antiga: sua grande maioria veio da roça.
Muitos deles acessam o manguezal de forma permanente e vivem integralmente do
extrativismo, apesar de levarem uma vida que o IBGE tranqüilamente classificaria como
“urbana”, já que o critério da contagem populacional se baseia tão-somente na localização
geográfica da unidade familiar.
A quarta modalidade de relação com o manguezal é uma espécie de contrapartida ou
efeito recíproco da segunda e da terceira: nas conjunturas em que o manguezal está “batido”,
isto é, com poucos recursos, os moradores da roça podem alojar-se por uma temporada na
casa de parentes na cidade em busca de outras fontes de renda. A casa na cidade funciona,
portanto, como um pouso para pessoas de uma mesma família que saem dos sítios e vêm para
a cidade trabalhar em biscates ou vender os mariscos coletados. No caso estudado, a casa de
Jane e Genilson serve como pouso para os parentes que ainda possuem casas na roça.
Evidentemente, nem na cidade nem na roça a unidade de moradia coincide com o núcleo
familiar: é muito comum encontrar irmãos, tios, primos, sobrinhos, cunhados e agregados
pousando numa mesma casa na cidade ou na roça ou, inversamente, pessoas de uma mesma
família pousando em diferentes casas. Por isso, a contagem da população extrativista com
base no critério “família”, supondo uma família nuclear por unidade habitacional num
território, não faz jus à complexidade dos arranjos familiares passíveis de co-habitar a mesma
casa, nem aos múltiplos desdobramentos habitacionais de uma mesma família. Uma casa
comporta muitas famílias e uma família se distribui por muitas casas.
Uma quinta modalidade de relação com o manguezal pode ser concebida como uma
desterritorialização das quatro primeiras: expedições para áreas de difícil acesso onde há
“fartura” para se fazer o giro. Nesses locais os extrativistas montam ranchos – habitação
temporária erguida com lonas e recursos disponíveis no entorno – e aí pernoitam durante três
a quatro dias, por vezes uma semana. Até há cinco anos atrás, no tempo do caranguejo farto,
Genilson conseguia tirar até 600 reais por semana. Hoje, porém, quando têm muita sorte, ele
e sua esposa conseguem tirar 150 reais por semana. Apesar de viverem próximos ao giro,
Genilson e seus familiares precisam muitas vezes recorrer a essas expedições mais trabalhosas
manguezal adentro para conseguir encontrar o caranguejo: “é porque aqui não tem mais.
Então nós vamos lá pra dentro porque lá o mangue é grande. Mas pouca gente pode ir com a
gente, é pena que não dá pra levar todo mundo”.
202
Genilson paga 15 reais para um dono de barco levá-los até uma região do rio do Largo
onde o manguezal ainda está bastante profícuo: “Nós vamos lá porque lá tem mangue à
vontade para trabalhar, cada um espalha para o seu lado e tem mangue à vontade.”A viagem
dura duas horas. Chegando lá, armam um acampamento, o rancho: nas barracas dormem 5-6
pessoas sobre tapetes, cobertas por um telhado feito com gravetos, palha e lona. As excursões
duram de três a quatro dias, tempo suficiente para coletarem uma boa quantidade de
caranguejos, sururu, ameixa e ostra que poderão ser vendidos na feira em épocas próximas a
feriados e datas festivas. Ranchos similares são montados quando aparecem pessoas de fora
em busca de frutas, ervas e sementes da região. Recentemente, Genilson fez um rancho para
catar a folha e a semente da aroeira, que estavam muito bem cotadas entre seus
atravessadores.
No caso estudado, tomaram parte na expedição Pedrinho (irmão de Genilson que ainda
vive na roça e corresponderia ao primeiro modo de ser extrativista descrito), Jane e Genilson,
que possuem casa na cidade, mas vivem do mangue e esperam voltar para a roça (o segundo
modo de ser extrativista); Piaba, que vive permanentemente na cidade e acessa o manguezal
eventualmente (correspondente ao terceiro modo de ser extrativista) e Lena, cunhada de
Genilson que está na cidade trabalhando como empregada doméstica e morando
temporariamente com os cunhados, apesar de ter sua casa na Tapera (quarto modo de ser
extrativista).
As outras duas modalidades de relação com o manguezal são a das crianças e do
pescador de alto mar. O manguezal dos pescadores de alto mar carrega as marcas da perda e
descaracterização do seu modo de vida, em função da recente e proeminente queda dos
outrora fartos estoques pesqueiros da região. No ano de 2002, realizei algumas entrevistas
com pescadores da cidade sobre os impactos ambientais das obras de dragagem do porto da
empresa Aracruz Celulose, que havia sido recém-instalado na cidade. Como já vimos, na
ocasião, os pescadores estavam muito apreensivos com as mudanças no clima da região –
segundo eles, causadas pelas plantações de eucalipto - e a resultante dificuldade de se prever
as condições de pesca.
Outro temor à época era de que o descarte dos sedimentos revolvidos do fundo do mar
pela dragagem afetasse o principal pesqueiro de camarão da região, próximo à Barra Velha,
distrito de Nova Viçosa. Couro de Lixa, pescador veterano, esperava em 2002 que a dragagem
não fosse atingir o pesqueiro do camarão, mas, caso isso acontecesse havia ainda um último
recurso, entendido pelos pescadores como uma atividade menos nobre, porém muitas vezes
necessária: a coleta de caranguejo no mangue. Disse-me Couro de Lixa em 2002:
203
“caranguejo, esse aí nunca faltou”. No entanto, em 2003, aconteceu o que os pescadores de
alto mar mais temiam: o crustáceo desapareceu por completo dos manguezais caravelenses,
levando consigo aquele que é visto como “o último recurso” pelos pescadores de alto mar.
Esta pode ser entendida como uma sexta modalidade de ser extrativista: o manguezal, neste
caso, seria uma espécie de amortecedor social que impede, em conjunturas econômicas
particularmente desfavoráveis, que os moradores da cidade resvalem para a miséria,
garantindo padrões mínimos de segurança alimentar.
Por fim, conheçamos o manguezal das crianças moradoras da parte periférica da
cidade, a Avenida. O terreno contiguo à sede do Movimento Cultural é um sítio, cujos limites
tangem tanto a Avenida quanto o mangue. As crianças de que falo têm entre 5 e 14 anos e
costumam brincar juntas seja nas ruas da Avenida, na sede do Movimento Cultural ou nos
pastos, matas e manguezais que compõem o sítio, situado numa área que é a um só tempo
rural e urbana. A notícia de que uma fazenda de camarão poderia vir a poluir o rio dos
Macacos preocupou enormemente as crianças e gerou perguntas e inquietações. “Você não
sabia que esses riachos que descem até o sítio vêm do Rio dos Macacos [local previsto para
localização do empreendimento]?” indagou-me uma delas. “Eu já segui o caminho desse
riacho aí escondido da minha mãe e fui sair lá no Bairro Novo, que é onde passa o rio dos
macacos”, confirmou outra.
O conhecimento empírico das crianças sobre as conexões surpreendentes entre os
muitos rios, córregos e braços de mar da região, levou-as à conclusão imediata de que a
poluição em um ponto acima de um rio distante poderá poluir seus afluentes próximos, uma
vez que, como disse uma delas “o rio corre e a sujeira também”. No mangue, Rui costuma
capturar o guaiamum, crustáceo que está habituado a comer, presentear seus pais e avós ou
vender, ganhando algum dinheiro, com o qual ajuda a família a pagar o gás e compra doces e
guloseimas para si e seus irmãos. Foi o tio que lhe ensinou a fazer armadilhas de lata – as
ratoeiras - para pegar o guaiamum no mangue seco. Rui passa manhãs inteiras construindo
armadilhas e aventurando-se no mangue atrás dos crustáceos desejados. Isso é motivo de
orgulho para a mãe, que costuma contar alegremente quantos guaiamuns o filho captura por
dia e convidar as amigas para comer a iguaria, para desespero do filho, que deseja vendê-los
para comprar doces.
As crianças sabem que não podem ir muito longe nem demorar muito, porque, embora
tenham uma grande margem de independência e liberdade - especialmente se comparadas às
crianças da cidade grande - os pais sempre sabem onde elas estão. Mas vez por outra gostam
de escapar, se aventurar, arriscar-se no desconhecido. O manguezal é um dos lugares
204
escolhidos para essas fugas, por ser uma área aberta, sem dono, como elas dizem, e todavia
próxima. Elas sabem que o fundo do sítio é formado de alagados, riachos e manguezais, terras
habitadas por animais que aprendem desde cedo a identificar e se relacionar. O manguezal é
fonte de brincadeira, conhecimento, sonhos, medos, alimentos, fantasmas, presentes e fugas
que permitem às crianças ficarem a sós entre si mesmas e refletir sobre si e sobre o mundo.
Neste espaço lúdico, a produção não foi sobrecodificada pelo trabalho, no sentido preciso
dado por Clastres (apud Barbosa, 2002, p.59), de que o trabalho supõe o sobretrabalho e a
alienação. O manguezal das crianças é, portanto, fonte de recursos que se extrai brincando. É
uma produção desejante inseparável da alegria, do prazer de correr riscos e de novas
descobertas. Manguezal como espaço de exercício da liberdade, o sétimo modo, modo-criança
de ser extrativista.
Os sete modos de ser extrativista
“O extermínio de uma minoria faz nascer ainda uma minoria desta minoria”
125
Em resumo: há (1) os que possuem casa na roça e tiram seu giro do mangue; (2) por
desterritorialização do 1º modo, há aqueles que possuem casa temporária na cidade e o pouso
na roça (relacionados aos primeiros por laços de parentesco); (3) por desterritorizaliação-
reterritorialização do 1º e 2º modos, há aqueles que possuem casa definitiva na cidade (mais
precisamente, na “avenida”, área intensamente urbanizada) e que tiram seu “giro” do mangue;
(4) por contrapartida ao 2º e 3º modos, há pessoas que possuem casas na roça e pousam na
casa dos parentes na cidade; (5) por desterritorialização dos 4 primeiros modos, há ainda
aqueles que constroem “ranchos” improvisados na mata para acessar o mangue; finalmente,
há (6) os pescadores de alto mar que acessam o manguezal como último recurso e (7) as
crianças, para quem o manguezal é o primeiro recurso.
Os casos etnográficos aqui descritos nos apresentam uma proliferação de modos de ser
extrativista que muitas vezes não são levadas em conta nas abordagens tradicionais que
entendem a identidade deste “ente” como una e indiferenciada. Essas mesmas abordagens, por
se fixarem analiticamente no território, por vezes tendem a descredenciar, por exemplo, os
grupos urbanos que vivem do extrativismo como dotados da “identidade” de extrativista.
Busquei com este capítulo fazer o exercício de olhar para os grupos extrativistas justamente
extraindo deles seu território. Esta operação de minoração levou-nos a enxergar outras
125
Deleuze e Guattari, 1980: 589.
205
dimensões negligenciadas pelas abordagens que entendem como natural a fixação dos
extrativistas ao um território dado. O efeito paradoxal desse procedimento é que, ao subtrair o
território da análise, este finalmente se amplia e ao olhar para as múltiplas linhas de fuga-e-
força traçadas pelos grupos extrativistas, estes também se multiplicam.
Cena 1: A irrupção da política fora do tempo da política
Confirmada a notícia: um grande empreendimento de carcinicultura estava em
licenciamento no CRA, Centro de Recursos Ambientais, órgão ambiental estadual da Bahia
responsável pela condução do processo de licenciamento de projetos de grande impacto
ambiental. O projeto previsto possuía1.500 hectares e se localizava no manguezal da cidade de
Caravelas, entre os rios Macaco e Massangano, em frente ao Parque Nacional Marinho de
Abrolhos, área de maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul.
Uma reunião foi convocada às pressas reunindo as ONGs, o Ibama, representantes dos
pescadores, pesquisadores e o movimento cultural Arte Manha. O local da reunião
emergencial a portas fechadas era o Centro de Convivência do Projeto Manguezal
126
, projeto
vinculado a um centro de pesquisas do Ibama.
A reunião foi convocada por um analista local do Programa Marinho da CI,
Conservação Internacional do Brasil, organização não-governamental internacional com
escritório no Brasil
127
, que tivera acesso poucos dias antes ao Estudo de Impacto Ambiental e
Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) da empresa e à informação de que haveria uma
audiência pública na cidade dali a nove dias.
Os presentes se alarmaram com a notícia inesperada e se indignaram com o curto
prazo definido até o dia da audiência pública. Puseram-se, então, a delinear as estratégias de
ação a serem postas em prática até a data da audiência. A CI defendeu a elaboração imediata
de um parecer técnico independente sobre o EIA-RIMA e a necessidade de se multiplicar as
informações e formar “células de articulação na comunidade” para angariar o apoio da
população contra o empreendimento.O representante do Ibama/Projeto Manguezal destacou
que seria preciso um trabalho de “convencimento” dos pescadores e supunha que isso seria
possível em função do trabalho de “capacitação” que vinha desenvolvendo junto a este grupo.
126
Projeto Integrado de Manejo e Monitoramento para Uso Sustentável pela População Ribeirinha no Manguezal
de Caravelas – Bahia, desenvolvido pelo centro de pesquisas do Ibama como meio de fomentar o associativismo
e “agregar valor” aos recursos ambientais do manguezal, com recursos das condicionantes e patrocínio da
Aracruz (ver capítulo 3).
127
A missão da ONG Conservação Internacional do Brasil aponta para os objetivos combinados de preservar a
biodiversidade global e demonstrar que as sociedades humanas podem viver em harmonia com a natureza. Ao
envolver as chamadas “sociedades humanas” nos seus objetivos, a CI reconhece que seu trabalho adentra no
mundo das relações sociais e políticas nos locais aonde atua.
206
Os moradores da cidade presentes, no entanto, contrapuseram um forte ceticismo à
expectativa do Ibama e das ONGs, em relação ao seu poder de articulação e persuasão. Isso se
evidenciou quando o representante dos pescadores expressou dúvidas quanto à adesão do seu
grupo, uma vez que o empreendedor divulgara a criação de mais de três mil empregos,
promessa altamente sedutora para os moradores do município. No mesmo sentido, um
professor informou aos presentes que a prefeitura já estava atuando na zona ribeirinha,
reunindo pequenos grupos e convencendo-os a aderir ao empreendimento com promessas de
emprego.
Finalmente, o representante do movimento cultural trouxe à tona uma lembrança que
muitos não gostaram de ver evocada: de que os moradores do município se ressentem em
relação às ONGs ambientalistas e ao Ibama por estas organizações - após uma breve
contraposição inicial - terem aceito a instalação do terminal marítimo da Aracruz na cidade.
As ONGs ficaram responsáveis pela implementação de medidas condicionantes e
compensatórias necessárias para a obtenção da licença e, do ponto de vista dos moradores,
não informaram devidamente a população sobre a destinação das enormes quantias recebidas.
Esse processo foi visto pelos moradores da cidade como pouco transparente e colocou em
dúvida o comprometimento das ONGs e do Ibama com os grupos extrativistas, os principais
afetados pelo porto e pela dragagem.
No dia seguinte, as organizações presentes na reunião se organizaram para conseguir o
adiamento da Audiência Pública junto ao CRA, enviando um ofício argumentando que não
haveria tempo hábil para que a discussão em torno do empreendimento ocorresse de forma
“democrática e participativa”. O CRA aceitou adiar a Audiência por 20 dias. Durante este
intervalo, um representante do CRA se dirigiu pessoalmente à sede de um movimento cultural
da cidade para indagar sobre as razões do pedido de adiamento da Audiência. Sobre o capô do
carro do órgão estadual o técnico do CRA desdobrou um grande mapa da área de manguezal
onde o empreendimento desejava se instalar, buscando persuadir os integrantes do movimento
de que a carcinicultura não traria impactos ambientais. Desconcertado pela inusitada situação
em que se viu - quando o representante do órgão estatal que se supõe garantir a licitude do
processo de licenciamento pessoalmente tentava convencê-lo dos supostos benefícios do
empreendimento - um dos integrantes do movimento cultural comentou: “O pessoal tá numa
usura... Vai ser muito pior que o eucalipto. Estão tratando essa questão como se fosse a
política. É muita ganância.”.
207
Cena 2: Princípio de briga no Pirão Virado
Ao perceber que os empresários proponentes da fazenda de camarão e seus aliados
locais buscavam persuadir os pescadores sobre os supostos benefícios da fazenda de camarão,
um pequeno grupo composto por um biólogo da CI, um sociólogo e esta antropóloga decidiu
começar um trabalho de ação direta e mobilização dos moradores da cidade. Um telão foi
montado numa praça de um bairro onde os pescadores se reúnem para conversar e beber,
conhecida como Pirão Virado. Neste local, apresentamos uma seleção de slides em power
point que evidenciava a destruição causada pelas fazendas de camarão no Brasil e em várias
partes do mundo.
Uma grande aglomeração de pescadores se formou em torno do biólogo, que se pôs a
gritar palavras de ordem (“ponha a mão na consciência”) e denunciar os riscos da entrada
iminente da maior fazenda de camarão projetada no Brasil. Repentinamente, um técnico do
Ibama, que não havia sido convidado, chegou à praça. Detestado pelos pescadores por sua
postura pouco simpática, este técnico é conhecido localmente por suas ações controversas em
relação aos grupos extrativistas, especialmente no episódio de uma ocupação de uma área de
mangue, que acabou sendo transformada no mais novo bairro da cidade, por pressão dos
moradores e de políticos a eles aliados, a despeito da proibição do Ibama. Os pescadores são
muitas vezes acusados pelo Ibama de pesca predatória e ocupação indevida de área de
manguezal. O Ibama, por sua vez, é acusado pelos pescadores de não proteger os recursos
pesqueiros da região dos grandes barcos industriais vindos de Vitória e Salvador, que
costumam fazer verdadeiras varreduras no mar e no mangue. Com a chegada do técnico do
Ibama, os ânimos dos pescadores se exaltaram e foi exigido que ele explicasse porque o órgão
federal não os protege das invasões da pesca industrial. O técnico do Ibama explicou que o
manguezal não está sob sua jurisdição, por isso só pode garantir a fiscalização da área do
Parque Nacional Marinho. Os pescadores consideram esta delimitação do alcance
administrativo do Ibama como incoerente, uma vez que, além da sede do Ibama se situar em
pleno manguezal, são comuns as incursões do órgão na zona ribeirinha, onde há intensa
repressão por parte do órgão à derrubada das matas, à pesca de espécies em extinção e à
ocupação do manguezal para fins de moradia.
Com a chegada do técnico do Ibama a esta primeira atividade de mobilização pública,
o biólogo da ONG internacional foi imediatamente identificado pelos moradores como aliado
do Ibama. Os pescadores passaram então a questionar as ações da CI na cidade, em especial o
episódio do licenciamento do porto da empresa Aracruz Celulose, visto como exemplo de
capitulação e/ou conivência das ONGs locais com grandes empresários. Num primeiro
208
momento, ONGs e Ibama se opuseram à instalação do porto da Aracruz. Mas, logo, algumas
ONGs passaram a negociar a administração das irresistíveis compensações ambientais.
Ironicamente, dentre todas as ONGs da Caravelas, a CI foi a única que manteve sua oposição
à empresa e não recebeu recursos das compensações e condicionantes. Mas àquela altura dos
acontecimentos, isso não fazia a menor diferença para os pescadores
128
.
Vozes exaltadas eram ouvidas pontualmente, aos poucos começaram a se sobrepor, até
que todos falavam ao mesmo tempo. Os pescadores muitas vezes conheciam por experiência
própria fazendas de camarão situadas mais ao norte do estado e aproveitaram a ocasião para
relatar a situação de destruição, miséria e violência que testemunharam. Outros, porém,
garantiram que as fazendas de camarão eram seguras para o meio ambiente e expressavam o
desejo de “tentar uma vaga na firma, nem que seja como segurança”. Em pouco tempo os
pescadores contrários às fazendas de camarão e aqueles favoráveis discutiam incisivamente
entre si. Uma briga parecia iminente, embora fosse difícil saber ao certo quem estaria
envolvido, tamanha a confusão criada com a divulgação da notícia e a chegada do funcionário
do Ibama. Finalmente, o técnico do Ibama deixou o local – possivelmente por temor à sua
integridade física - e os pesquisadores presentes continuaram a conversa com os pescadores
mais entusiasmados, até que após algumas horas todos foram vencidos pela exaustão.
Os pesquisadores de fora, dentre os quais eu me incluo, propuseram desencadear um
processo de “mobilização ostensiva” ou “em massa”, realizado em praças públicas, com o
intuito de “informar a comunidade em geral” sobre o empreendimento. Uma vez informadas,
supunha-se que as pessoas estariam esclarecidas sobre os efeitos sociais e ambientais nocivos
das fazendas de camarão e, deste modo, se posicionariam publicamente de forma contrária à
entrada do empreendimento no município. Nós pesquisadores de fora acreditávamos em um
poder inerente à “informação”, que encerraria em si mesma uma potência mobilizadora, capaz
de desencadear um movimento de resistência nos grupos sociais a ela expostos e por ela
“esclarecidos”
129
. A nossa avaliação foi de que a intervenção havia sido bem sucedida, pois
provocara o dissenso e um germe de discussão entre os próprios pescadores, o que poderia ser
um primeiro passo para a participação deste segmento no enfrentamento que se anunciava.
Como testemunha ocular e integrante desta “atividade de mobilização”, relatei o
ocorrido a Dó, que rapidamente diagnosticou a intervenção como “um erro”. “Se continuar
128
Como vimos no capítulo 3, os funcionários das ONGs são chamados como “os Ibamas” pelos pescadores, o
que denota a percepção local de que Ibama e ONGs não sejam instâncias totalmente diferenciadas.
129
Poderíamos dizer que esta crença no poder inerente da informação faz parte do que Marilyn Strathern (1992,
p.132, tradução nossa) apontou como sendo uma das bases do “sistema de conhecimento ocidental”, que se
fundamentaria “na proposição de que deve-se buscar um estado de permanente revelação, para desmistificar e
tornar as coisas mais e mais aparentes através de sua transmissão consciente para outros”.
209
desse jeito aí, num ata nem desata, estão caçando chifre em cabeça de cavalo”. Segundo sua
perspectiva, os pescadores não confiam nas ONGs e têm bons motivos para as identificarem
com o Ibama. Ambas as instituições são vistas como aliadas que desejam se interpor
indevidamente na relação que os pescadores e marisqueiras têm com seu meio de vida.
Portanto, qualquer intervenção protagonizada pelas ONGs ou pelo Ibama estariam, ao seu ver,
fadadas à desconfiança e ao insucesso.
Por outro lado, destacou que este trabalho de mobilização “em massa” nunca
funcionaria na cidade; o tipo de mobilização política que “faz muito barulho” a seu ver não
encontraria ressonância junto às pessoas. “O povo daqui é sossegado, não gosta de briga. Tem
que conversar com as pessoas-chave que têm a confiança dos moradores”. Ao seu ver,
“atividades de mobilização” só são viáveis quando se dispõe de algum aliado no local, em
suas palavras, “alguém que te convida, que vai te defender e vai garantir que se pode utilizar
aquele espaço”, mesmo sendo um espaço público, como uma praça. Intervenções endereçadas
para um público sem rosto, com o qual não se tem nenhum relação, seriam inúteis e até
mesmo perigosas.
A reunião inicial no Projeto Manguezal, a constatação de que algo semelhante ao
período eleitoral se avizinhava e a intervenção dos pesquisadores no Pirão Virado (bem ou
mal sucedida, dependendo da perspectiva) são fatos inaugurais que revelam as principais
linhas de tensões que se colocavam então nas relações entre ONGs, Ibama e grupos locais. Os
participantes “nativos” do município contrapuseram um forte ceticismo ao otimismo relativo
dos representantes das ONGs e pesquisadores, instigados pelos embates políticos que se
anunciavam. Este ceticismo dizia respeito a cinco questões que lhes pareciam subestimadas
por aquelas pessoas “de fora”.
Em primeiro lugar, à confiança reinante das ONGs e do Ibama de estarem do “lado
bom”, enquanto defensores dos interesses comuns do “meio ambiente” e das “populações
tradicionais” foi contraposta a existência de uma “grande desconfiança” dos moradores em
relação às duas entidades. Em segundo lugar, foi lembrado um passado recente de
capitulação e colaboração das ONGs e do Ibama na sua relação com uma grande empresa - a
Aracruz Celulose - o que teria sido decisivo para aumentar a “desconfiança” dos grupos
locais. Mais do que isso, esta relação é localmente vista como uma aliança e isso teria
projetado uma imagem de que o Ibama e ONGs seriam “uma coisa só”. Nesse sentido, o
Ibama e ONGs não eram até então percebidos como interlocutores legítimos pelos pescadores.
Uma terceira fala destacou que não se deveria subestimar a promessa de emprego, por
esta ser uma tática tentadora numa cidade sem alternativas de desenvolvimento econômico.
210
Ademais, foi proposto, no lugar de uma “mobilização ostensiva”, voltada para a
“comunidade em geral” – como defendiam as ONGs - uma outra forma de fazer política: a
“conversa” com pessoas determinadas, lideranças comunitárias que detêm a confiança de
muitos grupos locais. Muitas dessas pessoas estavam em vias de ser cooptadas pela empresa.
Entendendo que a cooptação não é inevitável, um integrante do movimento cultural sugeriu
que uma “conversa honesta” alertando sobre os riscos do empreendimento poderia ser uma
forma de impedir a adesão de determinados grupos.
A comparação do processo de licenciamento com o “eucalipto” e o período eleitoral é
reveladora, tendo em vista que a chegada da empresa Aracruz Celulose no município foi um
momento de acirramento das disputas políticas e de injeção de dinheiro na cidade tal como é
fato corrente no período eleitoral, a política.
Do ponto de vista dos participantes do movimento cultural, o anúncio da chegada de
um empreendimento deste porte e o aparecimento de agentes estatais no seu encalço também
guarda semelhanças com o “tempo da política”, o período eleitoral, quando eles são
procurados por pessoas e grupos que ocupam cargos na administração pública em busca de
apoio para os candidatos da “situação”. Tal como na política, os recursos abundam e neste
caso foram derramados na cidade sob basicamente três formas - “condicionantes”,
“patrocínio” ou “presentes”, utilizados com sucesso pela empresa em sua estratégia de
persuadir, respectivamente, o Ibama, as ONGs e o governo municipal a facilitar a liberação de
suas licenças de localização e operação do porto para transporte das toras de eucalipto.
Durante “a política” “corre muito dinheiro” na cidade e isso gera em virtualmente
todas as pessoas um desejo de enriquecimento – a chamada “ganância”. Todos querem
usufruir da afluência de recursos que de modo repentino e momentâneo toma conta da cidade.
Embora tida como inevitável, a ganância é condenada como um vetor de disputas entre os
próprios moradores, que desejam reter parte desse fluxo para só si ou sua família, numa
prática chamada de usura. A irrupção da política fora do tempo da política e a percepção de
que desentendimentos entre os próprios moradores da cidade se anunciavam foram motivos
de inquietação para os participantes do movimento cultural. Nesse sentido, política é uma
espécie de potência que irrompe à revelia da vontade dos sujeitos, um fluxo incontrolável que,
em momentos precisos, adentra e atravessa a cidade, instilando em seus moradores
sentimentos e práticas moralmente duvidosas e, conseqüentemente, gerando brigas,
desentendimentos e, acima de tudo, perseguições.
Os participantes do movimento cultural local se inquietaram: se “a política” irrompera,
é sinal de que as disputas entre os próprios moradores da cidade logo teria início e, portanto,
211
as perseguições. O episódio no Pirão Virado evidenciou não apenas a oposição pescadores
versus Ibama e ONGs, mas também as divergências que atravessam o próprio grupo dos
pescadores.
Se, por um lado, essas divergências foram entendidas por alguns moradores como algo
negativo, um fator de “discórdia” num ambiente tido como “calmo”, por outro lado, os
técnicos das ONGs concebem a “política” como o momento de explicitação dos conflitos, que
deveriam ser então explorados. Estes últimos abraçaram a “política” como uma oportunidade
para debater um projeto que era apresentado como um dado inelutável para os grupos que
seriam diretamente afetados. Por isso lançaram mão da tática de “fazer barulho”, insuflando
entre os pescadores um ambiente de disputas, entendido como “saudável”.
Deste primeiro encontro das ONGs com os pescadores, porém, se evidenciou que esta
relação estava longe de ser uma relação de confiança mútua. Além disso, as ONGs
perceberam pela primeira vez que sua associação com o Ibama na memória dos pescadores é
mais viva do que supunham. Além disso, verificou-se que esta “intervenção direta” usando a
técnica de “fazer barulho” não melhorara em nada a interlocução com os pescadores, pelo
contrário, aumentara seu afastamento.
Dó ofereceu elementos para os pesquisadores de fora e integrantes do que mais tarde
se tornou a “coalizão” que os levaram a constatar a impossibilidade de se falar em nome dos
outros
130
. Afinal, os primeiros atingidos com a entrada das fazendas de camarão seriam os
pescadores. Caberia a esse mesmo grupo assumir o protagonismo das ações. Mas como os
pescadores assumiriam abertamente este embate, considerando as muitas divergências que os
separam, a cooptação das colônias de pesca pela prefeitura e o temor de represálias e
perseguição por parte do poder municipal? Eis o problema com o qual se confrontou o
movimento cultural: como traçar uma linha de fuga onde não parecia haver saída?
A saída inventada foi apostar num encontro, num “intercâmbio” entre pescadores e
marisqueiras caravelenses e seus pares atingidos pela carcinicultura no Ceará. Esta ideia
nasceu de uma tripla constatação. Em primeiro lugar, as ONGs locais reconheceram seu
relativo fracasso no estabelecimento de uma relação de confiança com os pescadores. Em
segundo lugar, observou-se que, sozinhos, os pescadores e marisqueiras de Caravelas eram
um grupo vulnerável à política de perseguição perpetrada pela prefeitura. Ao tomarem
conhecimento da existência de um grupo de pescadores e marisqueiras do Ceará que disse
não, eu não obedeço mais. Não é inútil sublevar-se, nem tudo será sempre a mesma coisa,
130
Sobre a “indignidade de se falar em nome dos outros”, ver entrevista de Foucault com Deleuze (1972) [1994],
pp.306-315.
212
decidiu-se convidá-los para uma temporada em Caravelas. Se uma das marcas da potência do
capital é o seu poder de deslocalização, sua capacidade de se deslocalizar para onde quer,
quando quer, o que aconteceria se fosse possível deslocalizar a resistência?
As informações sobre os efeitos da carcinicultura reunidas pelos pesquisadores e
ONGs foram coletadas com apoio do Instituto Terramar, ONG cearense que possui maior
acúmulo no debate sobre manguezais e carcinicultura; do Projeto Ação Manguezal e da Red
Manglar, articulação internacional de grupos de defesa do manguezal e dos grupos que aí
vivem. A partir da relação nascente com essas redes, articulações e projetos - que até então se
resumia à troca de informações sobre os impactos sociais e ambientais da carcinicultura -
surgiu a idéia de colocar os pescadores e marisqueiras de Caravelas em contato com
pescadores, marisqueiras e professores do Ceará, pessoas que têm uma experiência de luta
política e fazem parte de movimentos de oposição à carcinicultura e defesa do manguezal em
suas localidades. Essa relação poderia fortalecer a posição dos pescadores de Caravelas que
expressavam o desejo de resistir à entrada da carcinicultura nos estuários do município. E
permitir que novos modos de fazer política fossem engendrados a partir desse encontro.
Formou-se, então, uma articulação inédita entre esta organização internacional de apoio a
movimentos de base ligados ao manguezal com sede em Seattle, a organização do Ceará que
subsidiou as lutas dos movimentos de resistência à carcinicultura no estado, os pescadores e
marisqueiras de ambos os estados e o escritório local da Conservação Internacional- Brasil.
Um grupo de sete pessoas entre eles pescadores, marisqueiras, índios Tremembé e professores
chegou a Caravelas para partilhar com seus pares suas experiências de luta. E, deste modo, as
relações de força começaram a se alterar.
Cena 3: O encontro e a formação do coletivo
“Tudo acontece agora pela primeira vez” (Alberto Pucheu)
O contato inicial foi estabelecido junto ao Instituto Terramar (Ceará) e o Mangrove
Action Project (MAP) no sentido de buscar apoio, informações e orientação. Com o apoio da
Avina, Global Greengrants Fund, MAP e Conservação Internacional-Brasil (CI) para os
custos de transporte e hospedagem, foi formado um grupo de 7 pessoas entre pescadores,
marisqueiras, índios, e pesquisadores para visitar Caravelas e partilhar suas experiências de
luta contra a carcinicultura no Ceará.
Era a primeira viagem de avião de Dona Fátima Tremembé, 52 anos, moradora da
aldeia Passagem Rasa, município de Itarema, costa oeste do Ceará. Quando o Pajé da aldeia,
Luís Caboclo, 54 anos, a convidou para mais uma viagem de mobilização, preferiu não contar
213
que iriam pegar um avião, sabendo do temor que D. Fátima sentiria. No aeroporto
encontraram com o professor João Luís, da comunidade do Cumbe, município de Aracati e
Mentinha e Vanilson, marisqueira e pescador, ambos do município de Acaraú, no Ceará. Os
cinco percorreram mais de 1800 km rumo de Caravelas, onde há, diz-se, o segundo maior
manguezal do Brasil e o risco de licenciamento do maior empreendimento de carcinicultura
do Brasil.
Em comum, o fato de serem moradores de comunidades atingidas pela carcinicultura
no estado do Ceará, onde há 247 fazendas instaladas, 84% operando sem qualquer tipo de
licença (Diagnóstico de Carcinicultura no Estado do Ceará, MMA/Ibama, 2005). Nos últimos
anos, essas pessoas viram com seus próprios olhos a expansão vertiginosa da carcinicultura
em suas comunidades. A contaminação de mangues e rios levou ao desaparecimento do
caranguejo e à diminuição expressiva dos recursos pesqueiros, gerando miséria em áreas
outrora afluentes. O cercamento dos manguezais e a limitação do acesso a recursos que eram
de uso comum levou a um aumento dos conflitos na região, particularmente da violência
contra pescadores. Nos últimos anos um movimento de resistência à expansão da
carcinicultura no Ceará ganhou corpo, envolvendo grupos atingidos, a Pastoral da Pesca da
Igreja Católica e ONGs locais como o Terramar.
O grupo do Ceará chegou a Caravelas 5 dias antes da audiência e tomou conhecimento
da conjuntura local, passando a traçar as estratégias de ação com os grupos locais: ONGs,
movimento cultural, professores, associações, etc. Durante estes dias iniciais as principais
atividades foram as visitas, o reconhecimento da área proposta do empreendimento e
conversas informais com moradores. Definiram o que seria a sua “política”: ao invés de falar
com “a comunidade em geral”, como haviam feito os pesquisadores de fora junto com as
ONGs, decidiram focar sua ação em conversas diretas com grupos de pescadores e
marisqueiras. Dividiram-se em dois grupos e passaram a fazer visitas de casa em casa, de
quintal em quintal, tanto na cidade, como no manguezal. Os pesquisadores e os técnicos das
ONGs os acompanhavam, indicando locais e pessoas conhecidas, numa rede cujos elos
aumentavam a cada dia. A aproximação, a conversa e as palavras eram assumidos ora pelas
ONGs, ora pelos pescadores e marisqueiras cearenses.
O vídeo “O Verde Violado”, que retrata ao efeitos da expansão da carcinicultura no
Ceará
131
, foi apresentado em diferentes bairros e escolas, inclusive Bairro Novo, Ponta de
Areia, Barra e Colégio Polivalente, além do próprio escritório do CI em Caravelas. As sessões
131
Produção do Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceara, em parceria com Environmental Justice
Foundation.
214
de exibição do vídeo contavam com ampla participação dos moradores da cidade, muito além
do que era esperado pelas ONGs. Além do vídeo, uma sessão de slides com imagens dos
manguezais do Ceará e do Rio Grande do Norte após a chegada da carcinicultura também foi
exibida e a isso se seguia um debate aberto à participação dos moradores das diferentes
localidades visitadas. Nessas oportunidades, os pescadores do Ceará tomavam a palavra e
relatavam sua experiência de conflito com as fazendas de camarão.
A aproximação entre pescadores e marisqueiras de Caravelas e do Ceará começava
invariavelmente por brincadeiras de reconhecimento mútuo: era o momento em que as
marisqueiras confrontavam as diferenças dos nomes dos peixes, crustáceos e moluscos nos
dois estados. “Ameixa” em Caravelas é “lambreta” no Ceará e elas se divertiam com os
nomes e exibiam as conchas ou desenhavam no chão o formato dos mariscos de modo a
identificar as espécies que existem nos dois lugares e aquelas presentes em só um dos estados.
As trocas iam além da conversa e das experiências relativas à carcinicultura. Mentinha, por
exemplo, ensinou um grupo de crianças caravelenses que catavam aratu com as mãos uma
técnica de pegar o crustáceo com um anzol e estas se deleitaram com a forma muito mais
simples e eficiente de coleta. O pajé Luís Tremembé se encantou com as variedade de
espécies vegetais que via pela primeira vez, como o cacau, coco do dendê e o jambo,
incomuns no litoral oeste do Ceará, onde fica sua aldeia. Em seus caminhos pela cidade, era
visto constantemente coletando sementes diversas que pretendia plantar na sua terra no Ceará.
Sempre que podia, aproveitava o contato com os moradores da cidade para conhecer mais
espécimes vegetais, obter informações sobre o cultivo, os cuidados e os usos nativos das
plantas.
De um modo geral, os pescadores e marisqueiras do Ceará abordavam seus pares
caravelenses dizendo que estavam ali para “levar uma mensagem” e que caberia a eles,
receptores dessa mensagem, decidir o que fazer com ela. “Não viemos fazer a cabeça de
ninguém, cada um sabe da sua consciência. Nós só queremos contar o que aconteceu quando
as fazendas de camarão chegaram aos nossos manguezais”. E assim, aos ouvidos atentos dos
seus interlocutores, punham-se a relatar algumas dimensões que consideravam relevantes na
sua experiência de confronto com a carcinicultura.
Nas trocas e conversas entre BA e CE, os elementos discursivos privilegiados se
organizam em torno basicamente de 3 eixos. O primeiro era uma resposta à chantagem do
emprego. Para além das disputas em torno do número de empregos efetivamente criados – que
variavam entre 100 e 3000 -, os pescadores do CE questionavam a própria necessidade ou
desejabilidade de se ter um emprego e as conseqüências disso na vida de quem é acostumado
215
a trabalhar para si ou para os seus. O emprego é associado com falta de liberdade, fraqueza e
submissão. Nas palavras do pajé Luis Tremembé “Nós nunca tivemos isso, o tal do emprego.
Eu não gosto de emprego e vivo bem. Meus irmãos também não gostam de emprego e são
fortes como eu. O único irmão que tenho que é fraco é um que tem um emprego, é professor
na prefeitura, nem parece um homem. A gente nunca chegou a ser submisso de ninguém,
nunca chegou a ser controlado por ninguém. (...) A coisa mais grave é que eles não
reconhecem a gente como gente, eles exportam tudo com o camarão, eles exportam a tua
liberdade”.
Em seguida, os moradores eram alertados sobre a inevitável introdução de
divergências na “comunidade”, para os quais deveriam estar preparados. Vanilson, pescador
de Acaraú, que sempre se apresentava afirmando “meu nome é Vanilson, sou pescador e há
cinco anos estou combatendo a carcinicultura”, dizia: “Os mais fortes se instalaram na nossa
comunidade sem dizer nada a ninguém. Prometiam emprego, disseram que “não fariam nada
que a comunidade não quisesse”, mas acabaram destruindo grande parte do nosso manguezal.
Eles têm muito dinheiro e vão tentar subornar as pessoas mais fortes da comunidade e trazer a
discórdia.”
Muitos moradores argumentavam que o manguezal de Caravelas já não era tão
produtivo quanto antes devido a uma grande mortandade de caranguejo que ocorrera na região
poucos meses antes da chegada do empreendimento. Mentinha, marisqueira e poeta nas horas
vagas, relatou o caso da sua comunidade, onde os próprios carcinicultores provocavam a
destruição dos manguezais para gerar desemprego e justificar a entrada das fazendas. Ela
enfatizava o caráter perene e sustentável do manguezal, em contraposição ao curto tempo de
vida das fazendas de camarão. Em suas palavras, “no CE jogavam produtos químicos de
avião. O mangue ficava todo amarelo. E depois eles vinham dizer que o mangue já estava
morrendo. O manguezal de vocês vai estar aí pra sempre, sustentando as pessoas; se a fazenda
de camarão vem, destrói tudo e depois como é que fica?” Mentinha se vê como uma defensora
do manguezal e das pessoas que aí vivem. Ela mostra que, quando o assunto é solidariedade
com seus pares pescadores e marisqueiras, não é possível reconhecer fronteiras. Esse
sentimento se traduz nas suas poesias: “Para defender o mangue, não importa aonde estou.
Pode ser no Brasil ou até mesmo no exterior.” “Desde cinco anos atrás/Eu defendo os
manguezais/Conheço sua importância/Isso tudo me atrai/Deixei rastros na lama/Andando nos
manguezais”.
Os moradores, pescadores e marisqueiras contactados reuniram em torno de si pessoas
que aos poucos se organizaram em torno de uma “coalizão” cuja característica central era a
216
heterogeneidade dos participantes. Marquinhos, um pescador conhecido por sua insatisfação
com a cooptação dos líderes da sua colônia pela prefeitura apareceu numa das reuniões na
sede do movimento cultural para dar o seu apoio. Segundo ele, “o manguezal é uma empresa
também. Se destruir o manguezal vai destruir a vida, toda a vida”. Guto, pescador do distrito
da Barra, também foi a uma das reuniões e pontuou sua discórdia em relação à atuação do
Ibama na região - “falta fiscalização do Ibama no mar. Segundo ele, muitos pescadores
estavam inclinados a apoiar as fazendas, principalmente aqueles que “estudaram mais” e
sonham com “um emprego na firma”. São os mais sujeitos à “ganância”. As divergências
anunciadas pelo pescador cearense de fato já começavam a se fazer presentes. E Guto relatou
seus esforços para convencer seus colegas pescadores de que a carcinicultura não traria
benefícios para o seu grupo: “Eu digo ‘seu pai te criou, criou seus irmãos, você criou seus
filhos com o manguezal, construiu casa, canoa, trocou por barco, tudo por causa do
manguezal. Deixe de ser egoísta, olhe para seu irmão, olhe para seu pai que vive do mangue”.
Além dos pescadores, um ilustre participante da coalizão foi Cocotinha, um louco
lúcido da cidade, uma espécie de andarilho local que transmite mensagens de conteúdo
profético nas ruas, feiras e praças da cidade. Embora tido por alguns como simplesmente
“maluco”, seus discursos são ouvidos com certa atenção pelos outros moradores, que o
consideram “culto” e “bem informado”. Ao conhecer os pescadores e marisqueiras do Ceará,
Cocotinha, também conhecido como o “Marquês de Caravelas”, declarou-se ferrenho opositor
das fazendas de camarão.
Cocotinha destacou o valor do manguezal como uma espécie de amortecedor social
que impede que, em conjunturas econômicas particularmente desfavoráveis, os moradores da
cidade resvalem para a miséria. Enfatizou ainda os danos ambientais causados pelas fazendas,
a progressiva extinção de recursos, a contaminação das águas e o fato de que ganhos com as
fazendas não sejam revertidos para a população local, que iria sofrer então com o desemprego
e com a ausência de alternativas de subsistência.
“Aqui, ninguém passa fome, não. A gente não precisa dessa fazenda de camarão, a
gente tem o mangue para recorrer, sempre. O mangue tem aroeira, tem caju, tem
mangaba, tem pitanga, fruta a rola. Camarão, ninguém quer isso aqui não. Eu sou do
grupo do contra. Os peixes vão morrer, a água vai ficar contaminada, vai sumir os
caranguejos, o siri e a ostra do mangue. Eu sou o contra no 1. A natureza levou
milhões de anos para formar isso que taí, o mar começou no mangue. Os peixes do
mar nascem no mangue, isso vai trazer graves problemas para Caravelas, daqui a 5
anos a água potável vai estar envenenada. Essa firma vem aí, vai enterrar a cidade, nós
não queremos isso aqui não. O lucro dele não adianta o município, vai beneficiar o
estrangeiro, aqui vai criar mais desemprego, o pobre não vai mais catar o caranguejo,
o rico não vai mais comer o caranguejo, o caranguejo não vai existir mais”.
217
Crítico mordaz dos biólogos - que considerava “traidores” da cidade por terem
firmado o acordo com a Aracruz - Cocotinha pôs de lado suas divergências com esse grupo ao
constatar que eles também eram “do grupo contra”, decidiu tomar parte nas reuniões de
preparação para a audiência pública e colaborou com muitas idéias e questionamentos lado a
lado com biólogos e pescadores.
Por fim, os pescadores e marisqueiras do CE discutiram com seus pares locais o que
eles fizeram na prática para conter a expansão das fazendas nas suas áreas de pesca e as
razões que, do seu ponto de vista, teriam levado Caravelas a ser escolhida para a instalação
desta empresa: “A primeira coisa que fizeram ao chegar lá foi colocar uma cerca no mangue.
A gente sabia que depois que eles passassem os arames, ia ter dono Mas os donos do mangue
somos nós. Era eles fincando de um lado e a gente arrancando do outro. Por que eles querem
vir para cá? Porque a peste se instalou dentro do Ceará, lá não tem produto químico que dê
conta da praga. Aí eles vão se espalhando em outros lugares.”
As reuniões de preparação para a audiência se concentraram na formulação de
perguntas a serem feitas ao CRA, órgão ambiental estadual, e à consultoria contratada para
fazer o EIA-RIMA. Os participantes definiram que a coalizão deveria evitar ao máximo
realizar perguntas diretamente aos empresários, uma vez que isso lhes daria mais tempo para
propagandear os supostos benefícios sociais e ambientais do empreendimento. Duplas e
grupos de trabalho foram formadas, normalmente juntando um pescador e uma marisqueira a
um pesquisador com título universitário e/ou pós-graduação, que formulavam as perguntas,
divididas em temas como “impactos sociais”, “impactos ambientais” e “impactos
econômicos”. Esta combinação entre saber local e saber científico se mostrou bem-sucedida
por juntar a percepção e o conhecimento dos moradores da cidade e a aquele dos
pesquisadores de fora. Jovens doutores da USP com seus laptops de última geração redigiam
as questões formuladas pelos pescadores. Juntos pela primeira vez, trocavam experiências e
técnicas e buscavam ajustar suas perguntas a uma linguagem comum, compreensível para os
dois grupos. Um agenciamento improvável entre ONGs, movimentos e pescadores se
constituiu no processo da luta. A coalizão em poucos dias contava com uma grande
diversidade de pessoas, muitas das quais não se conheciam ou não se falavam até então. Aos
poucos o movimento cresceu, ganhando a adesão das mulheres marisqueiras, de educadores e
integrantes do movimento cultural. Uma grande reunião de mobilização chegou a congregar
um número expressivo de moradores preocupados com a chegada deste empreendimento de
218
grande potencial desagregador. Uma participação somente comparável como aquela
observada durante o período das eleições municipais.
Cena 4: A política da perseguição
“Se as sociedades se mantém e vivem, isto é, se os poderes não são aí “absolutamente absolutos”, é porque, por
detrás de todas as aceitações e coerções, para além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade de
um momento em que a vida não se troca mais, em que os poderes não podem mais nada e em que, frente ao
cadafalso e às metralhadoras, os homens se sublevam”
132
À medida que o movimento de oposição à entrada das fazendas de camarão na cidade
crescia, aumentava o temor dos moradores quanto a possíveis represálias em função de sua
participação ou pelo envolvimento de familiares na Coalizão contrária à fazenda de camarão
que então se formou.
Numa das exibições do vídeo “O Verde Violado” uma jovem estudante de 12 anos
denunciou publicamente o fato de que “na escola os professores não falaram nada sobre as
fazendas de camarão”. A partir do depoimento desta menina, foi possível entender que havia
de fato uma estratégia da prefeitura no sentido de silenciar possíveis debates nas escolas em
torno do empreendimento. Soube-se mais tarde que o prefeito da cidade convocara uma
reunião do Conselho de Educação para apresentar aos diretores de escola o projeto de
carcinicultura, defendendo-o com entusiasmo e sugerindo que não toleraria manifestações
contrárias ao empreendimento por parte da classe dos educadores.
Todos os pedidos de espaço nas escolas por parte da coalizão contrária à carcinicultura
no município foram negados pelas direções e a única forma encontrada de “informar” os
estudantes foi uma ação direta das ONGs e dos atingidos do Ceará num debate sobre o
“Educação Ambiental em Caravelas”, realizado no auditório da escola estadual, para o qual
não haviam sido convidados.
Professores, agentes de saúde, demais funcionários da prefeitura e seus familiares e
parentes não podiam se pronunciar publicamente sobre o assunto, pois temiam perder seus
empregos. Uma espécie de “lei do silêncio” foi imposta pela prefeitura em relação ao tema da
carcinicultura na cidade. Além disso, a Prefeitura realizou um concurso público com mais de
1200 moradores inscritos, em sua maioria jovens, poucas semanas antes da audiência pública
e o resultado só foi divulgado algumas semanas após a data da audiência. Esta estratégia da
prefeitura teve o efeito de garantir o silêncio de grande parte dos moradores jovens da cidade,
132
Foucault, 1979 [1994], p.791. Registro aqui um agradecimento especial a Marcio Goldman pela indicação do
texto “Inútil sublevar-se?”, de Michel Foucault.
219
que, temendo represálias, preferiram não se pronunciar em nenhuma reunião, assim como na
Audiência Pública .
As mulheres do movimento cultural foram particularmente afetadas pela política do
medo perpetrada pelo prefeito e seus assessores. A mãe da presidente é gari da prefeitura, o
pai da secretária faz fretes e biscates para a secretaria de obras e a mulher do ex-presidente é
agente de saúde do município. Todas sentiram-se pessoalmente ameaçadas de serem
demitidas ou terem seus vínculos de prestação de serviços cortados caso apoiassem
publicamente a coalizão. As reuniões da coalizão realizadas na sede do movimento cultural
tinham que ser feitas de forma discreta. Quando o movimento cresceu a ponto de precisarem
de um espaço maior, marcou-se uma reunião no Dandara, galpão do movimento cultural que
pertence legalmente à mãe de alguns de seus integrantes. Ao constatar o aumento do número
de moradores envolvidos na resistência ao empreendimento, a agente de saúde preferiu
cancelar a reunião, devido ao temor de que sua mãe fosse pessoalmente prejudicada.
Justificou sua atitude afirmando: “só louco pra confrontar a prefeitura”.
Como vimos no capítulo 2, a estratégia da Prefeitura é localmente conhecida como
“perseguição”: ocorre quando algum “traíra” (delator) transmite - para um membro da
prefeitura com poder de contratar e demitir servidores e prestadores de serviço – a informação
de que determinada pessoa (ou parente desta mesma pessoa) atua de modo divergente aos
interesses do prefeito, de sua família ou de seus aliados. A coalizão se viu permanentemente
dividida entre o desejo de agregar o maior número de pessoas e a necessidade de realizar
reuniões a portas fechadas para proteger seus integrantes.
A perseguição é entendida como característica indissociável da política. Aprendi
muito sobre o assunto com um morador perseguido, antigo participante do movimento
cultural que virou crente e detinha a primeira e única lan-house da cidade. Por apoiar
ostensivamente o candidato derrotado à prefeitura, à época Emerson se encontrava
praticamente falido financeiramente: a prefeitura, para destruir seus negócios, criou uma lan-
house gratuita, com a qual obviamente não conseguia competir. Disse-me ele: “para eles, a
política continua depois da política”. Ou seja, a política, segundo esta outra acepção, é a
perseguição, a busca sistemática por neutralizar ou eliminar o poder do grupo definido como
adversário pelas circunstâncias. Como vimos, uma tradução possível para esta frase seria “A
perseguição continua mesmo depois das eleições”.
O risco de sofrer perseguição é permanente, seus agentes são invisíveis e seu modo de
agir, reservado e silencioso. Diz ele: “as portas e janelas têm bocas e ouvidos, as coisas vazam
de maneira surpreendente”.
220
- E você não procurou investigar, denunciar?
“Não é o que rapaz! Vou muito! Esse trem é todo tempo (=desde sempre). Chegou no
ouvido, aconteceu. Não quer saber se é pai de família, se precisa, se é verdade ou
mentira. Já têm idéia formada... Vamos se pôr... Você tem um projeto né? As pessoas
vêm barrar. Inveja. Diz ‘não vai dar certo’. E não dá”.
Tal como se protege contra a possibilidade de feitiçaria praticada contra si, é preciso
tomar precauções quanto ao risco de perseguição. Como a feitiçaria, a perseguição é uma
potência total e não precisa existir de fato para operar e ter efeitos sociais e é desta
característica que ela retira o todo seu poder de ação.
“Não importa amizade, capacidade, integridade. Tem que ser a cartilha deles. Se você
for contra eles, não importa nada, eles vêm contra você. Você viu o comício, os
prefeitos se aliam ali tudo junto no palanque do Paulo Souto (candidato a governador).
Mas, cá embaixo, o povo continua brigado. Inveja. O que falta é vínculo. Parece que tá
invadindo o espaço do outro.”
Cena 5: Tentativa de recuo
O temor de represálias chegou até mesmo ao único local que se acreditava imune às
ameaças da prefeitura: o escritório local da CI. Embora até o início das atividades de
mobilização a sede local da CI fosse tida como um ambiente exclusivo para pesquisadores “de
fora” e impermeável aos moradores da cidade, aos poucos seu quintal foi sendo ocupado pelos
pescadores e marisqueiras do Ceará e pelos moradores participantes da coalizão. Este espaço
foi visto como estratégico, pois era o único lugar da cidade onde era possível reunir as pessoas
sem que seus donos fossem direta ou indiretamente ameaçados.
De centro de pesquisas científicas restritas à biodiversidade marinha e impermeável à
entrada de moradores da cidade, o escritório da CI passou ter que conviver com uma grande
“biodiversidade” humana. O quintal do escritório local da CI foi invadido por um grupo que
incluía artistas do movimento cultural, um bancário aposentado, biólogos, oceanógrafos,
bailarinas, pescadores, sindicalistas, trabalhadores rurais, loucos, recepcionistas, tarólogos,
agente de saúde, biscateiros e professores. Este era o único lugar da cidade que oferecia uma
espécie de imunidade contra a perseguição.
No entanto, às vésperas da audiência, o diretor do Programa Marinho da CI “desceu”
de Salvador e, em curtas palavras “jogou um balde de água fria” na efervescência que tomava
a cabeça e coração dos participantes da coalizão. O diretor da CI-Brasil propôs na última
reunião antes da audiência que a posição da coalizão fosse definida da seguinte forma: “O
empreendimento, na forma como está proposto, é inviável”. Na forma como está proposto.
Essa frase abriria a possibilidade de negociação com os empreendedores a respeito de
221
condições para instalação da fazenda de camarão sob a forma de condicionantes ambientais,
o que é normalmente a orientação da CI, o tal “desenvolvimento sustentável”: compatibilizar
crescimento e proteção ambiental
133
. Quando confrontado com a demanda de recursos para
viabilizar o transporte dos moradores da área ribeirinha, o diretor da CI alegou que o
orçamento da entidade não permitiria flexibilidade no uso dos recursos.
Imediatamente, a ativista de Seattle propôs um leilão entre os presentes para arrecadar
fundos para o transporte dos moradores – “eu dou dez reais, quem dá mais?” “eu dou quinze
reais!”, “Eu dou vinte reais!”, disse um professor. “É bom que vocês da CI definam logo até
que ponto podemos contar com vocês, porque, se não pudermos mais, nós seguiremos
sozinhos”. Deste modo, criando um clima de embate e irreverência, os participantes da
coalizão conseguiram convencer o diretor da CI a mobilizar recursos do seu orçamento para
garantir o pagamento do combustível dos grupos extrativistas. Embora se defina como
“apolítica”, a CI foi obrigada a se abrir à “política”, este fluxo incontrolável que adentrou a
cidade e a todos mobilizou. Este diretor, nos anos que se seguiram a este evento, se tornou um
combativo opositor das fazendas de camarão e defensor da RESEX Cassurubá.
Na mesma ocasião, a proposta do diretor da CI de abrir uma brecha para negociação
com o empreendedor foi duramente criticada pelos “atingidos” do Ceará, para quem nenhuma
relação de confiança com os empresários seria possível. Segundo eles, os empreendedores
estariam dispostos a realizar quaisquer medidas solicitadas, se isto for o suficiente para
convencer os moradores a aceitarem a implementação da fazenda. Vanilson trouxe para os
presentes a situação que experimentou no seu município, onde os empresários deram um
tanque de camarão para a comunidade, como forma de convencer as pessoas de que o
empreendimento seria benéfico para todos. Disse: “As pessoas começaram a vender de tudo,
boi, carro, terra, para investir no viveiro. E, por fim, não conseguiram manter os altos
investimentos necessários e acabaram vendendo o viveiro comunitário de volta para os
empresários”.
A percepção de que a oposição frontal ao empreendimento não era consensual dentro
da CI gerou reflexões e críticas por parte dos atingidos do Ceará. Um deles afirmou: “O
pessoal da biologia é despolitizado, falta experiência em lutas políticas, falta conteúdo,
contextualização política. Eles tomaram um choque de realidade quando viram os
testemunhos da gente do Ceará. Mas nenhum deles é “abestado” não. Só tá faltando no
pessoal daqui uma força, um apoio, a confiança”.
133
Para uma reflexão crítica sobre o conceito de desenvolvimento sustentável, cf. Acselrad & Leroy, 1999.
222
O pajé comparou o posicionamento da CI com o andar dos caranguejos: “Estavam
igual caranguejo, andavam ora pra frente, ora pra trás, mas a gente não deixou eles entrarem
no buraco”.
Cena 6: Do meio do medo nasce a coragem
Apesar do clima de medo e da propaganda maciça do empreendedor através das rádios
e de seus “laranjas”
134
na cidade, muitos moradores e associações locais se pronunciaram
publicamente contra a entrada da carcinicultura no município, como é o caso dos pescadores e
das mulheres marisqueiras. Uma última reunião foi convocada para a véspera da audiência.
Nesta ocasião, os atingidos do Ceará explicaram em seus depoimentos a lógica de expansão
da carcinicultura, sua chegada como promessa de desenvolvimento, o esgotamento dos
recursos por ela produzido e, finalmente, sua estratégia de deslocamento, sempre a ameaçar os
lugares ainda preservados. E reafirmaram que, paralela à deslocalização das fazendas, há a
deslocalização da solidariedade dos grupos sociais que não desejam ver repetir em outros
locais com seus pares a experiência trágica que, segundo eles, “deixam marcas dentro da
gente”.
Muitos moradores indagavam-nos sobre as razões que levaram Caravelas a ser
escolhida para a instalação desta empresa. O pescador Vanilson explicou, então, a lógica de
expansão da carcinicultura, atividade que necessita de recursos hídricos livres de poluição
disponíveis em abundância e que, paradoxalmente, contribui para o esgotamento desses
mesmos recursos e a expansão de doenças no camarão produzido. Vanilson contou que a
contaminação dos mananciais no Ceará tem levado muitos produtores a se deslocarem para
áreas onde os manguezais ainda estão intactos, como Caravelas. E, a partir daí, a privatizarem
recursos que eram de uso comum.
Diz ele, “Apareceu um homem com umas máquinas para fazer os tanques. Nós demos
uma pressão nele e ele disse que quem o tinha enviado eram os donos. Que donos? Os donos
somos nós. Nós presenciamos tudo isso e não queremos que vocês passem pelo o que
passamos. O mangue é aberto, é de todos e as pessoas daqui e de outras comunidades vão se
alimentar lá.”
João Luis, professor da comunidade do Cumbe, município de Aracati, completou: “Lá
o empreendimento chegou fundando a associação de desenvolvimento do Cumbe. E o
desenvolvimento que eles trouxeram foi quatro anos sem caranguejo. As pessoas catavam
134
Como eram chamadas as pessoas contratadas para fazer propagando do empreendimento.
223
caranguejo pra sobreviver. A água de beber ficou contaminada, salinizada. Se eles
conseguirem entrar aqui, eles vão ficar só enquanto estiver dando camarão. Quando a água
ficar poluída demais e as doenças se espalharem, eles não vão querer mais e irão se deslocar
para outro lugar”
Destacaram ainda a oportunidade que os moradores de Caravelas estavam tendo de ser
informados sobre os malefícios da carcinicultura antes de sua possível instalação: “Vocês
estão tendo um momento ímpar de decidir se vão querer a carcinicultura ou não. Nós não
tivemos esse direito. A gente deixou trabalho e família lá no Ceará para alertar vocês, não
estamos ganhando dinheiro com isso não. O companheiro pescador poderia estar pescando,
mas não, ele veio aqui conversar com vocês e tentar ajudar a barrar a chegada desta desgraça
aqui. Ninguém deseja que se repitam as coisas ruins que já aconteceram e deixaram marcas
dentro da gente”.
Os atingidos também reconheceram que sua presença era acima de tudo anunciadora
de um período de acirramento das disputas na cidade. Mas, uma vez cientes dos efeitos
nocivos deste tipo de atividade, os moradores da cidade poderiam aproveitar a ocasião para se
unir e assim se fortalecer.
Por fim, Mentinha, pescadora e poeta, concluiu:
“O mangue é a nossa liberdade. Não só nossa, humanos, mas também das plantas e
dos animais. É verdade que agora vocês têm um conflito. A gente não veio aqui para
dizer coisas boas para vocês, mas vocês têm que estar preparados. Vocês estão tendo
este privilégio. Nós não tivemos essa chance de ouvir outras comunidades que foram
afetadas. Não vou dizer que estamos leves depois de toda a nossa luta, porque quem
está sobre esse chão está sujeito a tudo. Mas estamos mais fortes. Alguém me disse
que é muito difícil o povo daqui se unir. Mas eu não acho que é tão difícil assim,
vendo a quantidade de gente que está aqui. Vocês estão tendo a chance de se defender;
por isso não podem recuar agora; a gente não, a gente estava sozinho no mundo, só
nós e Ele lá em cima e mesmo assim encontramos forças pra lutar. Do meio do medo
nasce a coragem”.
Cena 7 – A Audiência Pública
A estratégia de atuação durante a audiência foi definida a partir da experiência de
alguns dos integrantes do movimento cultural que participaram da Audiência Pública sobre as
empresas de eucalipto e celulose, ocorrida um mês antes em Porto Seguro. A idéia era ocupar
o máximo possível o espaço destinado à participação da comunidade, fazendo “inscrições em
massa” para perguntas.
No dia da audiência pública, os integrantes da coalizão se reuniram no quintal do
escritório da CI para terminar os últimos preparativos, pintar os cartazes e faixas, onde lia-se
224
“Camarão estrangeiro, o eucalipto do mar”, “Não queremos viveiros, queremos viver”,
“Manguezal: o verdadeiro emprego do povo”. As dezenas de perguntas preparadas nos dias
anteriores, devidamente digitadas e impressas, foram distribuídas para que todos os
participantes da coalizão e quem mais desejasse no momento da audiência pudessem ocupar o
microfone disponível pelo menos uma vez. Muitas presentes preferiram reformular as
perguntas escritas, de modo a torná-las mais claras para o público em geral presente na
audiência.
A atmosfera durante a manhã era de apreensão, a ansiedade tomava conta de todos,
pois não era possível saber o que os esperava na Audiência logo mais à tarde. Logo Vanilson,
pescador de Curral Velho, pegou o violão e começou a tocar uma ciranda. O pajé Luis
Tremembé, de chocalho de cabaça em punho, marcava o ritmo e os demais começaram a
cantar uma melodia. Uma grande roda se formou com todos os presentes: biólogos,
pescadores, representantes de ONGs locais e internacionais, marisqueiras, sociólogos, um
padre holandês da igreja católica, um profeta, antigos sindicalistas, donas de casa,
ambientalistas de Salvador, artistas locais, professores e o pajé Tremembé. De mãos dadas na
ciranda, espontaneamente alguns tomaram a palavra e pediram proteção a várias entidades
espirituais, como Deus, o Rei Salomão e os espíritos da matas e das águas.
Cocotinha o profeta louco-lúcido afirmou que, embora forte, aquele grupo correria
sempre o risco de não ser bem sucedido na audiência, mas nada estava definido, uma vez que
tudo pode se transformar repentinamente, já que “o tempo e o acaso governam tudo”. Tomou
a palavra e recitou um trecho do Eclesiastes, do Rei Salomão: “Os velozes nem sempre
vencem a corrida, os fortes nem sempre triunfam na guerra, os sábios nem sempre têm
comida, os prudentes nem sempre são ricos, os instruídos nem sempre têm prestígio, pois o
tempo e o acaso governam tudo. Quantas calamidades acontecem de repente!” Reafirmou, por
fim, sua fé em Deus, acrescentando que Ele estaria do lado da Coalizão e não dos
carcinicultores: “em tudo na minha vida primeiro eu coloco Deus; o Rei está conosco e não
com eles”.
Seu Manoel, telegrafista aposentado da ferrovia Bahia-Minas e ex-presidente do
sindicato dos telégrafos, aderiu à coalizão e leu para todos um trecho da Bíblia, que diz
“Na verdade, a terra está contaminada por causa dos seus moradores, porquanto transgridem
as leis, mudam os estatutos e quebram a aliança eterna” (Isaías, 24, p.5). Seu Manoel afirmou
que a destruição da natureza é provocada pelos próprios homens e que a separação da
natureza, a “quebra da aliança eterna” conduzirá a humanidade a seu fim. Mas isso não é
inelutável, segundo seu ponto de vista. Segundo ele, é possível impedir a “transgressão das
225
leis”. Seu Manoel terminou conclamando a todos “meus irmãos, digam não ao camarão
estrangeiro!”
O Pajé Luis Tremembé concluiu as intervenções entoando um canto do seu grupo
indígena, que foi aos poucos sendo repetido por todos os presentes:
“Não tem rio que eu não atravesse/não tem mangue que eu não ande/não tem pau que
eu não arranque/nem tem pedra que eu não quebre/Não tem mal que nós não
cure/Viemos lá da cachoeira/Os encantados nos mandou/Viemos aqui fazer limpeza.
Os encantados nos mandou/viemos aqui fazer limpeza.”
Era um canto que pedia proteção e força aos espíritos das matas e das águas para
aqueles que lutavam contra as fazendas de camarão ou qualquer outra forma de destruição da
natureza, que o pajé definiu como “a nossa casa”. Todos os presentes foram tomados por uma
forte emoção ao entoar este canto e se dirigiram para a Audiência Pública com uma sensação
de proteção e confiança em sua própria força e na capacidade de mobilização do grupo como
um todo.
A coalizão chegou ao clube onde foi marcada a audiência duas horas antes do horário
estabelecido, para evitar que os empreendedores tomassem todos os lugares disponíveis com
pessoas recrutadas, como ocorrera na Audiência de Porto Seguro. Sentados na calçada em
frente ao local da audiência, os participantes da coalizão fizeram um almoço coletivo ao ar
livre, com sanduíches, frutas e chás calmantes para todos, preparados por Erika, oceanóloga e
colaborada antiga do movimento cultural.
Os aliados dos empreendedores ligados à prefeitura se surpreenderam com a chegada
adiantada da coalizão e policiais armados foram chamados para fechar o acesso de carros à
rua. Em seguida, uma massa impressionante de pescadores do distrito da Barra de Caravelas
chegou de ônibus para a Audiência e desceu a rua gritando palavras de ordem como
“queremos união, não queremos destruição!”, “CRA, cadê você, os pescadores querem te
ver!”, “o povo unido jamais será vencido” e empunhando cartazes que diziam “fora camarão
estrangeiro” “respeite minha natureza”, “o manguezal é a feira do povo”, “manguezal: o
verdadeiro emprego do povo”.
Liderado pelo secretário da divisão de meio ambiente da gestão anterior da prefeitura e
por um segurança forte de óculos escuros, um grupo de sessenta mulheres do distrito rural de
Barcelona postou-se à frente do local da audiência pública. Indagadas sobre o que faziam ali,
afirmaram “vim recadastrar meu bolsa família”. Porém, o posto de cadastramento para o bolsa
família da cidade estava de mudança para outro prédio e se encontraria fechado por mais
quatro dias. Alguns participantes da coalizão decidiram conversar com essas mulheres,
226
explicando que haveria uma audiência pública, fato que desconheciam. Era visível sua
expressão de desgosto por terem sido enganadas. Muitas fotos foram tiradas e um vídeo foi
feito para registro dos fatos e dos responsáveis. Em pouco tempo, as mulheres foram retiradas
dali.
Porém, logo em seguida, um outro ônibus desembarcou dezenas de desempregados
dos distritos rurais do município, onde a monocultura do eucalipto se espalhou por quase a
totalidade das terras agriculturáveis. Esses homens gritavam “queremos trabalhar” e foram
pagos para provocar tumulto no local onde se realizou a audiência pública. Os pescadores,
indignados com os “intrusos” que se aliavam aos empresários, replicavam “vai fazer carvão”,
alusão à atividade econômica que restou aos moradores dos distritos rurais, a produção de
carvão a partir dos restos de eucalipto, que vem se espalhando vertiginosamente na região. De
modo trágico, atingidos pelo eucalipto e potencialmente atingidos pela carcinicultura se
encontraram como inimigos na audiência pública e trocaram insultos e acusações. Os antigos
trabalhadores e pequenos proprietários rurais destituídos pela expansão dos plantios de
eucalipto na região querem hoje um emprego que custa o sacrifício do meio de vida dos
pescadores e marisqueiras.
Inicialmente, o representante do Centro de Recursos Ambientais (CRA-BA)
apresentou os procedimentos da audiência, que atribuíam um tempo de exposição
desproporcionalmente amplo para os empresários, a consultoria, a Bahia Pesca e a Prefeitura.
À coalizão, que tinha preparado uma exposição de quinze minutos com imagens e
questionamentos sobre o projeto, foi negada qualquer participação, a não ser quando abertas
as inscrições com intervenções de cinco minutos.
A mesa estava equilibrada: um representante da OAB-BA convidado pela coalizão,
um representante das ONGs ambientalistas baianas no CEPRAM (conselho do CRA,
responsável pelas licenças ambientais), o deputado estadual Zilton Rocha (PT-BA), o
representante do CRA (presidente da mesa), um representante da empresa, um representante
da consultoria contratada, um representante do Ministério Público Estadual e o
superintendente do Ibama regional. O prefeito da cidade, abertamente favorável ao projeto,
inaugurou a Audiência e foi efusivamente vaiado pelos presentes. Muitos moradores se
surpreenderam com esta que foi a primeira vaia pública de um prefeito na história da cidade.
A coalizão realizou inscrições em massa e, ininterruptamente, produziu perguntas que
tornavam evidentes as inúmeras contradições, omissões, inverdades e erros técnicos do
projeto. O público se mostrou polarizado e os empreendedores, que esperavam um domínio da
audiência, ficaram perplexos com as manifestações contrárias ao empreendimento. Era
227
evidente, porém, que apenas as pessoas “de fora” tomaram a palavra publicamente e fizeram
questionamentos diretos ao microfone. Os pescadores e marisqueiras presentes preferiram não
se pronunciar publicamente. Porém, em grupo, gritavam, vaiavam, cantavam, enfim,
produziam um eco coletivo que transmitia claramente para os presentes sua insatisfação com a
chegada do empreendimento. Uma marisqueira fez uma pergunta por escrito, que resumiu
todo o ceticismo do seu grupo quanto aos supostos benefícios da carcinicultura no município:
“Tem uma coisa que eu não entendo. Se os empresários querem tanto o camarão, gerar
emprego e preservar o mangue, não seria mais fácil comprar o camarão nativo da mão do
pescador daqui?”
Toda a audiência foi permeada de questionamentos sobre as inúmeras imprecisões,
ambigüidades, erros e falsificações contidas no EIA-RIMA, relativos a temas como a suposta
geração de empregos, o uso dos recursos hídricos do mangue, a poluição das águas e do
lençol freático, o uso de produtos químicos, a crise econômica atual da carcinicultura no
Brasil e a situação dos recursos pesqueiros após a introdução das fazendas. Os técnicos da
consultoria contratada buscaram defender seu relatório, mas, aos poucos, à medida que seus
pareceres foram publicamente desmoralizados, suas falas perderam capacidade de articulação.
A audiência pública, iniciada às duas da tarde, terminou às onze e meia da noite.
Foram nove horas e meia de um combate exaustivo e polarizado ao fim do qual os
participantes da coalizão avaliaram que, embora bem sucedidos nesta primeira etapa, muito
trabalho ainda havia por ser feito. “A batalha está apenas começando”, disse um deles. No dia
seguinte, o grupo do Ceará retornou para Fortaleza. Entretanto, no aeroporto de Porto Seguro,
encontraram os técnicos da Bahia Pesca lado a lado com a equipe de consultores da
COOPEX.
Cena 8: O mundo pós-audiência
Nos dias que se seguiram à audiência, ouvia-se na cidade comentários que denotavam
a percepção da audiência pública como uma arena de luta entre adversários, em que um dos
dois lados deve, necessariamente, vencer. Ao notar minha preocupação em registrar a
audiência em fitas cassete, um participante do movimento cultural fez notar que, mais
importante do que os debates que se sucediam na audiência pública, era estar atento aos
comentários dos moradores durante e após este evento.
Do lado de fora do local da audiência, as conversas paralelas indicavam uma
percepção de que “os pescadores foram mais fortes”, “o prefeito saiu vaiado” e “as ONGs
bateram bem”. Dó lembrou que sempre foi vaiado nas audiências públicas de que já
228
participara na cidade, por seu posicionamento contrário, por exemplo, à Aracruz. Estava
surpreso com a capacidade da coalizão de enfrentar ponto a ponto o empreendedor e angariar
o apoio de parte da população; isso, para ele, era novo. A audiência pública reafirmou a
situação de dissenso provocado pela irrupção da “política”. Se as pessoas saíram mudadas ou
convencidas do seu apoio a um dos lados deste embate, não é possível saber. Mas,
efetivamente, observou-se uma mudança nas pessoas que estiveram na audiência ou se
informaram sobre o seu desenrolar. Como comentou uma senhora idosa, aliada constante da
prefeitura, que participou da audiência, “talvez essas fazendas não sejam boas para a cidade”.
Para esta senhora, cujo negócio depende largamente de recursos municipais e que
nunca imaginou discordar da prefeitura, tornou-se possível, pela primeira vez, pensar de outro
modo, discordar publicamente do prefeito e, eventualmente, até mesmo pôr em dúvida a
promessa de emprego e desenvolvimento trazida por este empreendimento
135
.
O encontro dos pescadores e marisqueiras do Ceará com seus pares locais provocou a
irrupção de um novo campo de possíveis no horizonte dos diferentes grupos sociais que
tomaram parte neste processo de luta. Entende-se aqui por possível não a idéia corrente de que
uma dada situação é saturada de possibilidades. As possibilidades pareciam muito limitadas
até o encontro com os atingidos do Ceará. Mas este encontro engendrou uma mutação nas
relações de força locais, nos modos correntes de afetar e ser afetado. Assim, modificou
aqueles que se abriram a essa nova distribuição dos afetos e à invenção de novas
possibilidades de vida
136
.
Nos dias que se seguiram à audiência, o prefeito e seus aliados imediatamente deram
início a uma campanha intensa contra as ONGs e o Ibama. A prefeitura passou a intensificar
seu contato com as marisqueiras da zona ribeirinha e a reunir pequenos grupos,
135
Para Deleuze & Guattari (1984), o acontecimento político por excelência ocorre quando o exprimível de uma
situação irrompe bruscamente e uma nova circunscrição do intolerável é traçada. Zourabichvili, (2000: 340),
descreve esse movimento de modo preciso: “Há acontecimento ou vidência quando alguém encontra com suas
próprias condições de existência, ou as dos outros: aquilo que se chama “lutas”, pelo menos em sua fase
ascendente e viva exprime, então, nesse sentido, menos uma tomada de consciência do que a eclosão de uma
nova sensibilidade. (...). Encontramos brutalmente o que tínhamos cotidianamente diante dos olhos.”
136
Nas palavras de Zourabichvili (2000:335): “Deleuze inverte a relação habitual entre o possível e o
acontecimento. O possível não é o que pode acontecer, efetiva ou logicamente. Solicita-se a não-resignação
porque a situação é cheia de possibilidades e porque ainda não se tentou tudo; aposta-se, então, em uma
alternativa atual. Na esteira de Bergson, Deleuze diz o contrário: quanto ao possível, você não o tem
previamente, você não o tem antes de tê-lo criado. O que é possível é criar o possível. Passa-se, aqui, a um outro
regime de possibilidade, que nada mais tem a ver com a disponibilidade atual de um projeto por realizar, ou com
a acepção vulgar da palavra “utopia” (a imagem de uma nova situação pela qual se pretende, brutalmente,
substituir a atual, esperando alcançar o real a partir do imaginário: operação sobre o real e não do próprio real).
O possível chega pelo acontecimento, e não o inverso; o acontecimento político por excelência – a revolução –
não é a realização de um possível, mas uma abertura do possível.”
229
constrangendo-os a apoiar o empreendimento através de um abaixo-assinado. Usando o
argumento de que os ambientalistas são pessoas “de fora”, “que não estão preocupados com a
comunidade”, aos poucos o prefeito arregimentou muitos grupos a seu favor.
Paralelamente, o Ibama e as ONGs buscaram acelerar o processo – já em curso há
alguns anos - de criação de uma Reserva Extrativista na região do manguezal de Caravelas e
Nova Viçosa. E em maio de 2006, uma portaria do Ibama definiu a Zona de Amortecimento
do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, incluindo uma ampla área de 400 km de linha de
costa, entre a foz do rio Doce, no ES e Prado, na BA. Essas demarcações impediriam
legalmente a introdução de fazendas de camarão no manguezal de Caravelas.
Do ponto de vista das ONGs que estão à frente do processo de criação da RESEX, a
participação surpreendente dos pescadores e marisqueiras na audiência pública poderia ser
potencializada durante as consultas públicas necessárias para o processo de criação da
RESEX. Inspirados pela experiência de solidariedade interlocal entre os atingidos, a CI e o
Ibama contrataram dois pescadores e um participante do movimento cultural para estabelecer
um diálogo e “sistematizar a relação com as comunidades ribeirinhas”.
O encontro com os pescadores e marisqueiras do Ceará também provocou
deslocamentos no modo de atuação das ONGs: embora se defina como “apolítica”, a CI
acabou por se abrir à “política”, concebida como fluxo incontrolável que adentrou a cidade e a
todos mobilizou. Ao mesmo tempo, a ONG verificou as limitações de se falar “em nome de”
e, visando superar isto, contratou pescadores e lideranças comunitárias para atuarem no
processo de criação da Resex. Se esse movimento de transformar uma ação política em
trabalho remunerado nos quadros de um projeto social redundará na domesticação dos
conflitos, só o tempo dirá.
O trabalho que Dó – liderança deste movimento - e os dois pescadores estão
desenvolvendo é por eles definido como de “mobilização comunitária”. Este trabalho possui
três planos. Por um lado, é o meio através do qual as ONGs e o Ibama encontraram para
informar aos moradores da zona ribeirinha sobre o que é a Resex que está em vias de ser
criada. Trata-se de “levar para as pessoas as informações sobre o que está sendo construído. É
mais levar a informação do que defender a Resex, porque ela já vai ser criada, já houve a
consulta pública e foi aprovada.” Num outro plano este trabalho é uma reação à atuação
política da Prefeitura junto aos moradores da zona ribeirinha na disputa em torno da
carcinicultura.
230
Acima de tudo, o que se encontra em disputa são as concepções e práticas do que seja
a “política”: a política da mobilização em massa, a política da perseguição ou do silêncio e a
política da conversa.
O encontro com os cearenses fez os participantes do movimento cultural passarem “do
medo à coragem”. Dó ou o movimento cultural propõem uma outra forma de fazer política: a
“conversa” com pessoas determinadas, que detêm o “respeito” de muitos grupos locais.
Participantes do movimento cultural acreditam que o tipo de mobilização política que “faz
muito barulho” – defendida a princípio pelas ONGs - não encontra ressonância junto à
comunidade. Isso porque, nesta modalidade as disputas afloram a tal ponto que provocam
mais cisões entre os grupos do que adesões a uma causa comum. Segundo Dó, o modo
particular pelo qual se formam as lealdades políticas das pessoas da cidade é a “conversa” e a
sua forma ativa na verdade é um modo de não-adesão, o “boicote”. Diz ele, “Os pescadores da
Barra até gritam, como vimos na Audiência, mas não é a prática daqui não. Aqui o povo
boicota no silêncio. Mas sair pra rua, não sai não.”
O método de “fazer política” do prefeito – a perseguição – tem no silêncio e na
discrição seus principais ingredientes. Em sua proposta, Dó condena a perseguição, mas no
entanto sugere que alguns elementos dessa prática devam ser incorporados: “O prefeito
consegue que a comunidade não vá aos eventos. Se fizermos a mesma tática que a prefeitura,
agir no boicote, podemos trazer eles para o nosso lado”.
Dó afirma que é fundamental tentar estabelecer algum diálogo com essas pessoas:
“Mas tem que ser “na miúda” [discretamente], dentro da casa do cara abre o verbo. Uma
conversa honesta não é perda de tempo. Isso é um ganho. É uma relação de colega pra colega,
nos momentos oportunos. Sou filho da cidade, colega, amigo, a minha família tem amizade
com a deles, é um jeito diferente. Se conversar com ele direitinho, você deixa uma dúvida na
cabeça do cara, tem que sensibilizar a figura humana. Esses caras são sensíveis a uma
conversa pé no chão.Ele vai refletir quando chegar em casa, vai pensar nisso antes de dormir.”
Enquanto a ênfase dos pesquisadores de fora era no poder inerente da informação
enquanto catalisador do “esclarecimento” dos moradores, do ponto de vista do movimento
cultural, a informação é entendida como, simplesmente, o conteúdo da conversa, esta sim
fundamental. Entende-se que a informação pura e simples sem nenhum tipo de relação prévia
entre os sujeitos é inócua, incapaz de gerar laços de proximidade.
A prática de “mobilização em massa” implementada pelo grupo de pesquisadores de
fora, na primeira atividade realizada no Pirão Virado, chocou-se com seu limite, a disputa
extrema que gera o não-diálogo e o não reconhecimento mútuo. A política de “fazer barulho”
231
e de “mobilização em massa” possui um agente, as ONGs, mas é endereçada a uma massa
informe, que não se conhece, com quem não se trava nenhuma relação.
É importante destacar que Dó e muitos participantes do movimento cultural são
críticos da atuação dos biólogos. É comum se entreouvir comentários como “essa gente que
não dá bom dia, passa e não bate a mão na rua”. “Essa gente só sabe andar de carrão bom e
ficar o dia inteiro fechado na sala com ar-condicionado, parece que tá em São Paulo”. “Eles
não se ambientam, não se acasalam com ninguém, não dão carona.” “Eles vendem a alma pro
diabo e ganham dinheiro a rola”. “E se ganham na facilidade, é porque tão facilitando”.
“Dizem que a gente é desorganizado. Mas lá é tudo à moda boi (mal-feito, improvisado).
Devia chamar desorganização não governamental”.
Dó conclui, “É tudo ciência, modelo. Eles acham que sabem tudo. Quando o cara não
entende, o problema é do cara e não do modelo. Eles precisam botar o pé na lama e aprender a
ouvir”.
Um novo campo de possíveis
A indiferença das pessoas que trabalham nas ONGs em relação às necessidades dos
grupos extrativistas é apontada como um fator inibidor da aceitação das ONGs por esses
grupos. Afirma Dó: “Os pesquisadores nunca pisaram o pé na lama para saber o que o pessoal
da ribeirinha tá precisando. Falta um senso de companheirismo, passar e dar oi, bom dia,
andar mais pela cidade a pé e não de carro como eles fazem. Aqui não é como rotina de
capital, de mandar o operário trabalhar e ficar o dia todo no escritório. Quando o morador fica
sabendo que o cara mora na cidade há mais de dois anos, fica surpreso: “você se esconde
aonde que eu não te vejo?
A política do silêncio imposta pela Prefeitura teve como efeito provocar medo e
efetivamente calou grande parte da população, principalmente os jovens. No entanto, essa
“política” teve como efeito paradoxal provocar a desconfiança em muitas pessoas que
tradicionalmente se aliavam ao prefeito. A política da “perseguição” possui um remetente
claro – os dissidentes – mas seu agente é sem rosto, está encoberto, invisível e, no entanto,
onipresente e onisciente, como um panopticum. Não há “massa” ou “anonimato”, conhece-se
tudo e todos, assim como todos os laços de parentesco que possam comprometer alguém. “Os
aliados do prefeito sabem o que o pessoal tá precisando e vão até a região ribeirinha suprir as
necessidades em troca de apoio”.
O que o encontro dos cearenses com o movimento cultural provocou foi uma outra
forma de conceber o fazer político, uma espécie de alternativa entre o “barulho” ensurdecedor
232
e o “silêncio” aterrorizante da Prefeitura. Trata-se, simplesmente, de “conversar”. “O boca-a-
boca, a rádio cipó, a fofoca, a política artesanal”. Esta é a seu ver a forma de se construir
micro-alianças locais, solidificadas pelas relações de confiança preexistente entre os
moradores da cidade. Trata-se da interlocução entre sujeitos com rosto, que se veem e se
reconhecem mutuamente e sabem os limites de sua exposição. Como diz Dó, “É uma relação
de colega pra colega. A gente vem fazendo disso a base de conversa, nos momentos
oportunos. Sou filho da cidade, colega, amigo, a minha família tem amizade com a deles, é
um jeito diferente”.
A política da conversa proposta pelo movimento cultural indica que as posições
dominante-dominado, por exemplo, só podem ser entendidas como condensações ou
resultantes das relações – sempre precárias - que os sujeitos estão a constituir e que, ao
mesmo tempo, os ultrapassa. As posições dos sujeitos nas relações de força não estão dadas.
As relações entre os sujeitos seriam primeiras e mais fundamentais que a informação; a
conversa é capaz de provocar a adesão do interlocutor e se dá antes de tudo em função daquilo
que os liga previamente.
Este é apenas um capítulo de uma história ainda em curso. Se essa alteração nas
relações de força foi apenas circunstancial ou se terá efeitos futuros, não importa tanto.
Afinal, como vimos, o possível só existe depois de criado. Os dados estão lançados.
233
Capítulo 5 - A arte, a casa, o vídeo
Arte isto/ Arte manha/ Artista façanha/ De teia de aranha/ Assanha cromossomicamente/ As garras do amor/ Da
fome, da guerra/ Luta que brinca/ Artista é isso/ Arte de aranha/ Manha de isca/ Belisca, petisca/ A arte engole o
artista (Napoleão Herval Monteiro)
“E um dos indiretos modos de entender é achar bonito” (Clarice Lispector, A Maçã no Escuro, p.327)
Neste último capítulo meu esforço se fará no sentido de demonstrar como uma certa
atitude que podemos provisoriamente denominar como “sincrética” - imanente ao devir do
grupo e a uma espécie de “atitude mental” ou modo de subjetivação dos integrantes do
movimento - se desdobra em três agenciamentos distintos: as esculturas em madeira morta, a
casa que Dó construiu para sua família e a produção cinematográfica do Cineclube Caravelas,
fundado pelo Arte Manha.
As formas de criação artística, juntamente com as pessoas e os eventos, são
importantes territórios
137
onde se distribuem diferentes tipos de agenciamentos constituintes
do Movimento. Além de fazerem teatro, dança e política, alguns participantes do movimento
são exímios escultores em madeira. Dizem-se autodidatas, porque aprenderam sozinhos, isto
é, observando os mais velhos e não em alguma escola ou espaço institucionalizado de ensino.
Na trajetória dos irmãos Galdino Santana há - além do pai que é um habilidoso artesão -
encontros com hippies, com quem aprenderam a arte do entalhe em madeira e artistas
andarilhos, de quem se apropriaram de diferentes técnicas de escultura, como a que faz uso da
motossera para retirar a parte morta da madeira e liberar a vida em potência dentro dela. Sua
produção artística - basicamente de móveis “rústicos” e esculturas - tem como base materiais
encontrados de maneira mais ou menos aleatória no mangue e nas fazendas da região: são
raízes e troncos caídos, canoas e carros de boi deixados de lado, rodas de carruagens,
tubulações de esgoto, tambores de plástico, barro, palha, pano, couro. Por outro lado, há uma
matéria-prima imaterial, acionada pela história dos membros do grupo, experiências e forças
diversas, oriundas do encontro com suas lembranças, com fluxos de informação e saber
vindos “de dentro” e “de fora” que distribuem as marcas e linhas de força que darão
137
Utilizo a noção de território segundo a acepção proposta por Deleuze e Guattari (1980, p.381-433), que tem a
vantagem de não se confundir com o território físico ou biofísico, embora certamente o abarque. O território é
traçado pelas linhas de desterritorialização-reterritorialização dos diferentes agentes que o percorrem. Nesta
medida, pode ser tanto um lugar, um espaço vivido, como uma canção que faz o sujeito se sentir “em casa”. As
criações artísticas do movimento cultural são territórios na medida em que são atos que nascem de um encontro
entre um “fora” e um “dentro”: do confronto com suas condições de existência, sua história, suas fabulações,
com a política, a televisão, o “folclore”, os andarilhos, o mangue, enfim, fluxos de informação e saber
heterogêneos que se conectam e combinam de modos imprevistos e, deste modo, constituem um território.
234
consistência ao território-obra de arte. Buscarei explorar como este modo próprio de
subjetivação se faz presente nos agenciamentos citados - as esculturas, a casa e o vídeo .
Escultura com técnica de aproveitamento de madeira morta
“Eu acho que essa madeira ainda vai rir muito com a gente.” (Preto)
O trabalho artístico sobre uma madeira que estava “jogada fora” é entendido como o
meio pelo qual se atribui uma nova vida à madeira, tratada muitas vezes como um ser
animado. Diz Preto, um dos escultores:
“Eu penso assim: estou ressuscitando a natureza. Ela está morta. É uma nova vida e
todos vão olhar para ela, vão prestigiar, elogiar aquela madeira. Imagina se ela tivesse
lá no mato? Ninguém ia olhar para ela. A gente traz do mato para a cidade e ela está
sendo prestigiada. Eu acho que essa madeira ainda vai rir muito com a gente.”
O processo propriamente artístico de criação dos móveis e esculturas, segundo os
artistas do movimento, funciona por meio da busca sistemática de uma espécie de revelação
da forma que se supõe oculta ou em potência na madeira bruta. Um tipo de diálogo se
estabelece com o material durante o processo criativo, no momento em que o artista observa a
forma da madeira e tenta auscultar seu sentido implícito, a forma que “a natureza está dando
e que precisa ser revelada. Diz um dos escultores:
“Se você cai numa forma natural de uma madeira, de um galho ou uma raiz, você tem
que primeiro observar e começar a desenhar isso em mente, memorizar, gravar para
não perder os traços naturais que ela já tem. Senão você corre o risco de atropelar o
que a própria natureza deixou”.
Ao mesmo tempo em que é afetado pelo material, o artista põe em marcha sua
imaginação, submetendo o material que ora está sendo esculpido à inspiração que nasce no
próprio momento em que é manipulado e cavado. A criação, portanto, não é o resultado de um
projeto previamente definido; é, antes, o produto da relação que se estabelece no momento em
que as ideias e habilidades do artista se encontram com a forma dada pela madeira. Segundo
os escultores, o tempo da criação artística de “reaproveitamento” é incomensurável, pois é
possível que o artista observe por anos a fio uma raiz e não enxergue sua “forma natural”, até
que, certo dia, venha um “desenho na mente”, uma epifania, que lhe revele sua forma
implícita e o leve a trabalhar febrilmente por dias a fio até a finalização da obra. Nas palavras
de Dó:
“Essa outra escultura quase vira uma cabeceira de cama. Eu não enxergava em
nenhum instante um corpo humano, só enxergava um pé de mesa, era um absurdo!
Então eu vim desenhando, desenhando... Ia ser uma mulher, mais vi que tinha algo
235
muito mais rústico, aí exagerei e fiz um homem, um bailarino. Chegou um instante, eu
comecei a observar o movimento de um corpo humano. Então aquilo explodiu de uma
vez. Eu pensei, que forma humana estava me inspirando? Aí pensei no orixá. Qual
orixá? Você se faz um monte de pergunta, começa a questionar um monte de coisas.
Não é muito fácil. Dá uma piração arretada! Tem o trabalho de pesquisa de orixá, tem
que conciliar a forma natural com o elemento que você quer trabalhar. O orixá veio,
porque encontrei uma forma humana e aí tive que procurar o mito que se identificava
melhor com o tronco. Aí veio Oxumaré, porque o tronco é bem sinuoso e Oxumaré
tem como simbologia a cobra”.
Preto, irmão de Dó e Jaco, foi com 12 anos para Belo Horizonte, onde trabalhava
como faxineiro numa fábrica de móveis. Depois de pouco tempo, tornou-se auxiliar de
marcenaria e logo se tornou marceneiro da fábrica. Quando voltou para Caravelas, um amigo
que estava montando uma pousada com poucos recursos propôs que Preto lhe fizesse os
móveis. Preto, então, sugeriu que usassem as “madeiras brutas” da própria roça do amigo. Ele
conta: “comecei a misturar uma raiz, uma tora, uma com a outra, assim, inventando.” A
princípio, aqueles móveis rústicos lhe pareciam “os móveis mais horríveis”, mas, com o
tempo, foi percebendo que agradavam aos turistas e aos amigos de fora da cidade: “Eu achava
que as pessoas que iam para a pousada desse meu amigo iriam achar feio. Eu pegava uma
tora, abria a madeira assim na moto-serra e as pessoas acharam lindo, maravilhoso.”
Logo Preto percebeu duas coisas: primeiro que aqueles móveis que mais tarde
denominou de “linha rústica” tinha admiradores e compradores e que era possível trabalhar
com a madeira bruta, a raiz ou a tora “mortas”, jogadas nas roças, ou nas beiradas do rio e do
mangue. Madeiras de boa qualidade, mas queimadas ou em processo de decomposição
avançado que, de outro modo, ficariam de lado, inaproveitadas. Por outro lado, Preto
descobriu que, ao resgatar aquela madeira tida como “morta” e reaproveitá-la (ou, em sua
visão, “ressuscitá-la”), estava, de fato, recriando e perenizando a vida da própria madeira. Em
suas palavras:
“Às vezes a gente pega uma tora de uma raiz assim. De uma tora, a gente abre no meio
e, de uma, a gente faz duas, faz três. Eu peguei um bocado de madeira velha e comecei
a fabricar móveis, mesa, cama, tudo. E não é que deu certo? Foi que comecei a
trabalhar com a linha rústica. Eu achava que era uma loucura, mas não era: isso é arte,
é um trabalho de reaproveitamento. Por isso que sinto prazer: a natureza está morta,
nós estamos ressuscitando ela. Ela está lá, pode ser queimada, destruída, mas nós
podemos fazer ela viver eternamente. Porque vamos fabricar o móvel, manter sempre
guardado, sempre preservado.”
236
Mas como se o “ressuscitamento” da madeira? Através de que processos um tronco
aparentemente morto se torna um móvel ou uma escultura?
Para os artistas, o reaproveitamento deve conjugar uma visão artística, um olhar que
respeita as formas naturais da madeira e uma visão que poderíamos denominar estratégica,
atenta a reduzir ao mínimo o desperdício de matéria-prima, em busca da melhor forma de
aproveitamento. Os meios disponíveis são limitados e bastante diversificados, já que a
madeira “morta” é encontrada um pouco por acaso, jogada na beira do rio, no meio do
mato, encontrada por alguém ou “garimpada” em pequenas expedições pela região. Afirma
um dos artistas:
“Esses móveis que a gente trabalha é sobre visão. Você vê uma raiz. Aí você pára
assim. E antes de cortar aquela madeira, você tem uma visão artística. Você olha para
a madeira e pode dar um banco, pode dar uma estante... Para você cortar o mínimo
dela e aproveitar ao máximo essa raiz. E você vai analisar, se vai dar uma estante,
você vai cortar tantas partes dela. Você vai desperdiçar 30%. Se for dar um banco, vai
desperdiçar 10%. Aí a gente cria pensando no mínimo que se vai jogar fora dela. É um
aproveitamento de raiz, de tronco. Aqui no mangue em Caravelas, a maré às vezes
pega um mangue que cai e joga aquele resto de mangue. A gente pega essa madeira,
tem aquela visão artística e cultural em cima dela e vai aproveitar o máximo dela, para
não ser jogada fora. Vamos supor: ela está mais para uma cama. Mas para fazer a
cama, precisa jogar fora 30% dela. Isso é um banco. Esses 30% vão dar num banco.”
O trabalho propriamente artístico sobre uma madeira que estava “jogada fora” é entendido
como o meio através do qual se atribui uma nova vida e um novo significado para a
madeira. A relação que se estabelece com a matéria-prima não é simplesmente utilitária, a
madeira é percebida como um ser animado e a relação do artista com a madeira é uma
relação de respeito, deferência e reconhecimento mútuo. Como conta um dos artistas:
“É ótimo isso, você ressuscitar quem está morto. Ela vai agradecer a gente de um jeito
que a gente não vai ver, mas eu sinto assim, esse trabalho, a madeira, ela olha pra mim
e fala assim: ‘obrigada, muito obrigada por você ter me trazido para aqui’. Eu gosto
deste trabalho, porque eu trouxe uma vida; trouxe ela aqui para a cidade, ela estava
morrendo e eu trouxe, estou recriando ela e todo mundo está vendo.”
Além de ser um meio para se atribuir uma nova vida e sentido para um ser
anteriormente jogado, esquecido, o processo de criação realiza uma espécie de revelação da
forma que está escondida ou em potência na madeira bruta. Uma espécie de diálogo se
estabelece com a “natureza” durante o processo criativo, no momento em que o artista
observa a forma da madeira e tenta auscultar seu sentido implícito, a forma que a “natureza
está dando” e que precisa ser revelada.
237
Isso fica claro quando um dos artistas estabelece a diferença entre o trabalho com
“tronco maciço” e aquele com a “escultura de aproveitamento”. Por não ter forma, o tronco
maciço se presta totalmente à imaginação do artista, à inspiração que nasce no momento
mesmo em que é manipulado e cavado. Mas ele não traz em si mesmo nada que possa se
somar à criação do artista. Já durante a produção de “esculturas de reaproveitamento”, a
criação não é o resultado de um projeto; é, antes, o produto da relação que se estabelece entre
as idéias do artista e a forma natural da madeira. Enquanto me mostrava as esculturas para eu
fotografá-las, Dó foi me contando como foi o processo de criação de cada uma delas:
“Esta escultura é feita com raiz de jaqueira. A diferença da escultura de
reaproveitamento e o tronco maciço é que, você quando pega o tronco maciço, começa
a cavar, a inspiração vai batendo, você vai transformando ele na medida em que vai
trabalhando, porque o tronco está todo por inteiro. Mas se você cai numa forma natural
de uma madeira, de um galho ou de uma raiz, você tem que primeiro observar e
começar a desenhar isso em mente, memorizar, gravar, outros dias observar e ir
desenhando isso na mente, para não perder os traços naturais que ela já tem. Senão
você corre o risco de atropelar o que a própria natureza deixou. A raiz, às vezes, tem a
forma de um corpo humano e você quer porque quer fazer um outro ser e atropela
aquela forma que ela já tem. No meu caso, eu deixei essa raiz no quintal até desenhá-la
na mente. Essa raiz ficou 15 anos no quintal. Ela ia virar um pé de mesa, eu ia estragá-
la! Há pessoas que não têm tolerância para a arte. Isso eu já vi um monte de vezes em
loja que faz móvel. Cada peça linda que vira um pé de cama!”
A lógica que orienta a produção artística do grupo é por eles chamada de “técnica de
reaproveitamento”
138
e não se restringe à madeira. Diferentes materiais, como plásticos,
papelão, palha, bambu etc. são passíveis de serem reaproveitados. Dodó lamenta que boa
parte da “madeira morta” disponível na região já tenha acabado. Para se fazer um belo móvel
rústico, é fundamental que se tenha madeiras com formas naturais bonitas ou intrigantes.
Assim, a opção que os artistas encontraram foi utilizar “o natural da indústria”, isto é,
“aproveitar os latões, que também têm uma forma pronta”. Da mesma forma como trabalham
com a madeira, trabalham com outros materiais, de acordo com sua disponibilidade: “basta
você interpretar o natural do plástico. Pode fazer rostos nesses latões, criar faróis, fazer um
monte de recortes, um trabalho eclético.”
138
O grupo estabelece uma diferença entre reciclagem e reaproveitamento: o reaproveitamento é por
definição um trabalho criativo, artístico: “Reaproveitamento não quer dizer que você vai reciclar, é saber
jogar a arte dentro do material quase pronto. Reciclar é um conceito de industrializar. Você tem que pegar e
processar. Pode-se reciclar papel, mas se for usar o papel e fazer papietagem em cima, você está
reaproveitando o material, usando-o como um material alternativo. Reciclar é pegar um papel e tornar ele
papel de novo. Pegar a madeira e tornar ela madeira de novo. Nós não fazemos reciclagem, nós trabalhamos
com material alternativo, como ferro, papel, cola de mandioca. Isso é reaproveitar”.
238
Em sua clássica análise sobre a bricolagem, Lévi-Strauss estabelece uma analogia entre o
trabalho do bricoleur e a lógica que rege o pensamento mítico. O bricoleur é aquele que
reaproveita elementos de antigos conjuntos, peças com uma forma pré-moldada, mas não
totalmente acabadas, “que podem sempre servir” (1962:31). São elementos semi-
particularizados, “cada elemento representa um conjunto de relações ao mesmo tempo
concretas e virtuais; são operadores, porém, utilizáveis em função de quaisquer operações
dentro de um tipo” (ibid.:31). Da mesma forma, o pensamento mítico se exprime a partir
de um repertório de composição heteróclita, extenso, porém limitado. O pensamento mítico
seria, portanto, um bricolagem intelectual, que se apropria dos elementos disponíveis, pois
nada mais tem em mãos (ibid.,p.30).
Esse “diálogo com a matéria” se dá não apenas no plano prático, mas também no plano
intelectual. A forma que a madeira traz, esse tipo de “pré-marcação”, é o que decide a sua
seleção para uma nova obra. Quaisquer reparações pontuais podem levar a um reajuste
completo do dispositivo. Esses elementos semi-particularizados são formas que ainda se
prestam a serem trabalhadas pela imaginação e, portanto, são passíveis de fazerem parte de
novos conjuntos, totalmente originais.
O processo de criação do bricoleur encontra-se assim descrito por Lévi-Strauss:
“Observemo-lo no trabalho: mesmo estimulado por seu projeto, seu primeiro passo
prático é retrospectivo, ele deve voltar-se para um conjunto já constituído, formado
por utensílios e materiais, fazer ou refazer seu inventário, enfim e sobretudo, engajar-
se numa espécie de diálogo com ele, para listar, antes de escolher entre elas, as
respostas possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema colocado. Ele interroga
todos esses objetos heteróclitos que constituem seu tesouro, a fim de compreender o
que cada um deles poderia ‘significar’, contribuindo assim para definir um conjunto a
ser realizado, que no final será diferente do conjunto instrumental apenas pela
disposição interna das partes.” (1967, p.32)
Embora a lógica que orienta a produção de esculturas seja a mesma do bricolagem,
suas criações não são apenas peças de bricolagem produzidas tendo em vista alguma
utilidade, mas são acima de tudo objetos ou obras de arte. Como afirma Lévi-Strauss, “a arte
se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico,
pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur
(ibid.:37). Segundo Lévi-Strauss, o modo de pensar do cientista é a partir de conceitos, ou
abstrações, formas purificadas de lidar com a natureza. Parte da estrutura rumo ao evento.
Por outro lado, o modo de pensar do bricoleur é por meio de signos: ele utiliza elementos
“pré-constrangidos” que lhe permitem permutar um pelo outro. A criação artística seria, sob
239
esta ótica, uma conjugação desses dois modos de operação mental: ao mesmo tempo sensível
e inteligível; movimentando-se ora do evento à estrutura, ora no sentido inverso. E a emoção
estética derivaria da integração entre estrutura e um modo da contingência, que pode se
manifestar em três momentos distintos da criação artística – no nível da ocasião, da execução
ou da finalidade. Cito Lévi-Strauss (1997, p.42):
“No primeiro caso [no nível da ocasião] somente a contingência assume a forma de
um evento, isto é, uma contingência exterior e anterior ao ato criador. O artista a
apreende de fora: uma atitude, uma expressão, uma iluminação, uma situação, das
quais ele capta a relação sensível e inteligível com a estrutura do objeto que essas
modalidades vêm afetar e que ele incorpora a sua obra. Mas também é possível que a
contingência se manifeste a título intrínseco, no decorrer da execução: no tamanho ou
forma do pedaço de madeira de que dispõe o escultor, no sentido das fibras, na
qualidade da textura, na imperfeição dos instrumentos de que ele se serve, nas
resistências que a matéria lhe opõe, ou no projeto, no trabalho em vias de finalização,
nos incidentes imprevisíveis que surgirão no decorrer da operação.”
Apresento a descrição do processo de criação da escultura “Bailarino russo” (ver
anexo B, foto 23), que, ao meu ver, exemplifica como nenhum outro essa conjugação entre
contingência e estrutura que se desenrola no momento da expressão criativa.
O pedaço de madeira de reaproveitamento levava Dodó a enxergar apenas um pé de
cama com um abajur acoplado à cabeceira. Até que um dia, assistindo televisão, viu uma
apresentação de um bailarino russo que teve suas duas pernas amputadas e, apesar disso,
continuou seu trabalho de dança, executando os movimentos somente com a força dos braços.
Aquilo afetou Dó, o fez “ser tomado por uma piração arretada” e o levou a fazer uma
escultura, o bailarino russo. Trata-se de uma escultura impactante e de grandes proporções, de
um homem fazendo um movimento de torção do corpo, como se jogasse capoeira ou
dançasse. Segundo Dó, o rosto tem uma influência “cubista” – foram trabalhados vários
ângulos, de onde se vê diferentes expressões. O abdômen e o braço traduziriam uma
influência “realista”, pois um antigo capoeirista da cidade posou para Dodó. A escultura
produz no espectador uma espécie de ilusão de ótica: à primeira vista, não se nota que o
bailarino só tem um braço e uma perna. Devido ao efeito de movimento que Dodó conseguiu
imprimir à escultura, tem-se a sensação de que ele tem todos os membros intactos. Na época
em que concluiu sua obra, Dodó escreveu numa nota acoplada à escultura: “a arte alivia a
dor”.
O relato de Dodó explica por si só esta concepção:
“O bailarino russo teve as duas pernas amputadas e continuou fazendo todo o trabalho
de performance. E aquilo demonstrou para mim uma força interior imensa. Você ter a
tua forma toda natural e, de repente, se deparar com um acidente e conseguir forças
240
para continuar numa área que depende totalmente das pernas, dos membros que você
usa para trabalhar. E você buscar força nos outros membros – ele perdeu as pernas e
foi buscar a força nos braços. Tem que ter muita força interior. A escultura não tem
uma perna e um braço e foi inspirada nessa questão. Então, o dançarino, esse ser
humano que tem uma dificuldade perante essa situação toda, encontrou na arte a
solução. Oxumaré que é a questão de religiosidade e de humanismo nessa questão
toda, que é delicada. Os exus na mitologia africana são elementos que vem dar
proteção aos seres discriminados, desprotegidos, como crianças menores,
homossexuais, mendigos. O Exu é um garoto avante dentro da mitologia africana. Às
vezes pregam, dependendo da circunstância, que ele pode fazer um mal, mas em
situação de combate, como proteção. Mas é um orixá que vem a dar proteção para os
excluídos, os desprotegidos. A capoeira tem toda essa questão também de força
interior que os negros buscaram para sair de uma situação de guerrilha, não tinha
mecanismo nenhum, estratégia política nenhuma para buscar parceria com outros
grupos. Os negros descobriram uma força interna que era uma arma, a capoeira inicial.
Transformar sua capacidade física, misturando com os movimentos do balé rudimentar
que eles tinham e começaram a inserir golpes dentro da dança, para transformá-la
numa arte marcial para combater os feitores em guerrilha. E, ao meu ver, uma força
interior, uma estratégia inteligentíssima para sobreviver na época, quando não tinha
capacidade de adquirir outras ferramentas. A ferramentas que eles encontraram era o
corpo humano, o corpo físico. E batalharam um bom tempo com essa arma.”
Embora à primeira vista desconexos, há uma evidente analogia entra a madeira morta que
ganha nova vida a partir do trabalho de “reaproveitamento”, o bailarino russo com sua
“forma natural” desfigurada que reafirma sua vontade de dançar, o escravo capoeirista que
transforma uma dança numa estratégia de resistência e o próprio trabalho do movimento
cultural, que, se apropria de fluxos de ideias e práticas, a todo tempo as reinventa e afirma
uma vontade de constituir sua existência como alternativa aos modos dominantes de
subjetivação. A descrição da elaboração da escultura “Bailarino Russo” revela uma
composição singular, que estabelece conexões lógicas até então insuspeitas entre seus
elementos, traduzindo, a um só tempo, a perspectiva ética e estética que tem os integrantes
do movimento cultural têm sobre o mundo em que vivem e criam.
Esse encontro entre a concretude da matéria-prima e a imaginação do artista engendra
uma espécie de ciclo: ora o artista é um agente que esculpe a madeira, ora o produto daquilo
que o artista produz o transforma em “paciente em relação à agência que ele exerce” (Gell,
1998, p.45). Isto é, a agência exercida pelo artista o afeta reciprocamente. Assim, temos um
processo de criação artística que é, ao mesmo tempo, um processo de modelização da
subjetividade, uma vez que o diálogo com a madeira funciona como uma espécie de
catalisador existencial, que coloca o artista em contato com sua própria sensibilidade,
percepção, história, relações sociais, fantasmas, etc. O artista não esculpe o que quer sobre a
241
raiz envelhecida que encontra jogada na beira do mangue. Não há um projeto prévio, nem
tampouco contingência total: há, antes, um jogo lúdico entre a arte do escultor e as manhas do
material. O artista “não fala apenas com as coisas, mas através das coisas: narrando, através
das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais
completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si” (Lévi-Strauss,
1997:3 5).
Assim, os objetos de arte produzidos pelos escultores do grupo são, juntamente
com os acontecimentos e pessoas que constituem o movimento, um elo ou locus do encontro
daquilo “que vem de fora”, isto é, aquilo que é apreendido ou “pesquisado” (no caso, os
mitos, histórias e simbologias dos orixás), com aquilo que “vem de dentro”, ou seja, os
processos infra-pessoais do artista. O artista, ao entrar em contato com sua interioridade
139
, se
reapropria de componentes da sua subjetividade e, desse modo, produz um processo de
singularização, isto é, um processo auto-modelador, em que o artista constrói suas próprias
referências práticas e teóricas, suas próprias cartografias (Guattari, 1986, p.33)
140
. Ao mesmo
tempo, pode-se conceber a criação artística como um ato de pensamento, uma vez que ela
evidencia que pensar não é algo que se restringe ao dentro, mas é algo que acontece também
do lado de fora
141
.
Porém, na medida em que a subjetividade é parte constitutiva de todo processo de
produção social e material, ela é inevitavelmente agenciada pelas “concatenações de relações
sociais, econômicas, maquínicas”, sendo “aberta a todas as determinações sócio-
antropológicas, econômicas, etc.” (Guattari e Rolnik, 1986, p.68). Daí a tensão permanente,
no âmbito da subjetividade dos agentes do movimento cultural, entre singularidade e
individualização, isto é entre a tentativa de produzir modos de subjetividades originais e o
processo geral de serialização da subjetividade que caracteriza a sociedade que Guattari
denominou capitalística e na qual estão inseridos
142
.
139
Interioridade é aqui entendida no sentido proposto por Guattari (1990:17): “A interioridade se instaura no
cruzamento de múltiplos componentes relativamente autônomos uns em relação aos outros e, se for o caso,
francamente discordantes”.
140
A singularização designa “processos disruptores no campo da produção do desejo: trata-se dos movimentos
de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser,
outras sensibilidades, outra percepção, etc.”. (Guattari e Rolnik 1986.: 45)
141
Como afirma Gell (1998, p. 236, tradução nossa): “pensar acontece tanto fora quanto dentro de nós”.
142
“É num movimento que nascem os indivíduos e morrem os potenciais de singularização” (Guattari &
Rolnik, 1986: 38). “Há sempre algo de precário, de frágil nos processos de singularização. Eles estão sempre
correndo o risco de serem recuperados, tanto por uma institucionalização quanto por um devir grupelho” (Ibid.:
53)
242
Arte e trabalho, singularidade e serialidade
A casa que Dó construiu para sua família viver pode ser vista como um agenciamento
maquínico que condensa a forma como o movimento cultural e seus integrantes concebem e
executam sua produção artística, que não é separada da vida, mas plenamente integrada ao
dia-a-dia de cada um. A tensão entre singularidade e individualidade/serialidade se traduz nas
definições sobre o que é “arte” e o que é “trabalho”, muitas vezes sobrepostas do ponto de
vista do grupo. Vejamos alguns casos.
Quando Jaco pinta uma faixa para um candidato a vereador pelo PT, ele a considera
como trabalho, mas não define como trabalho pintar faixas ou camisetas para a campanha de
seu irmão Dó. Tampouco define isso como arte, embora haja certa dose de arte ou de
elementos artísticos em ambos os casos. Quando Dó pinta a parede de uma creche, é um
trabalho; quando realiza desenhos sobre esta parede, é arte. Ele não recebeu dinheiro por esta
atividade, mas, em troca, pôde matricular o filho mais novo, Raoni, na escola particular
143
.
Quando Chico faz uma estante ou uma simples prateleira, em princípio, trata-se de um
trabalho. Mas – como ele define – há um acabamento artístico, curvas, entalhes e detalhes que
tornam móveis que seriam puramente funcionais em algo “bonito”. Então, o trabalho é visto
como também artístico, embora Chico não se veja como artista, mas como marceneiro. Um
marceneiro, ao fazer um móvel, cumpre um papel de reproduzir uma forma conhecida. Mas,
dizem os artistas do movimento, “tem pessoas que não se contentam em fazer só aquilo,
querem algo mais, aquilo dá prazer para ele, ele quer que fique bonito, dá um acabamento
melhor, um refinamento. A arte é muito feita para os olhos e para a emoção. A arte é um meio
de despertar em quem vê o prazer que o artista teve ao produzir aquela obra. Você não faz só
pra você, apesar de ter muito de você ali. É uma produção para outras pessoas.” De todo
modo, artista para Chico são os integrantes do movimento cultural que fazem teatro e dançam,
como Itamar, Anne, Simone, Dó e Lília, por exemplo.
Lília trabalha num posto de gasolina, para orgulho de sua família e lamento de alguns
integrantes do movimento. Não há dúvida para ninguém que este é um trabalho. Aliás, este é
o trabalho por excelência, com horário, patrão, carteira assinada e salário mínimo. Ao
143
Esta escola – criada por pessoas de fora que foram morar em Caravelas por motivos diversos - em princípio
lhe parecia melhor do que a escola pública. Aos poucos, porém, Dó e Simone foram percebendo que talvez não
fosse uma boa ideia educar seu filho num espaço com poucas crianças (seis ao todo), todas brancas, “num
caixote de cimento”, isto é um espaço exíguo e quente, com muros altos e nenhum pátio onde seu filho poderia
correr ou brincar. A gota d’água para esta decisão foi o pedido da diretora para que Dó apagasse o desenho de
uma menina negra levantando pipa, alegando que destoava dos demais desenhos, o que lhe soou como racismo.
Dó não apagou o desenho e tirou o filho da escola particular.
243
contrário do que temiam Jaco e Dó, Lília não abandonou o movimento cultural depois que
começou a trabalhar. Ela frequenta o movimento cultural desde os cinco anos (está hoje com
26, isto é, está no movimento desde que ele foi criado há 21 anos atrás, quando participou do
bloco infantil “Erê Mirim”). Há seis anos Lília e Anne assumiram as aulas de dança para as
crianças da Avenida. Foram de casa em casa, conversaram com as mães, fizeram um cadastro
e ocuparam o espaço duas vezes por semana com este propósito. Elas não recebiam salário
algum para desenvolver esta atividade até o ano passado. Embora tenha todas as
características de um trabalho, com horários e disciplinas, dar aulas de dança não é visto por
todos enquanto tal. Primeiro porque envolve gosto, prazer, “acordar com vontade de fazer”
como se diz lá. Segundo porque é uma atividade voluntária: não receber um salário
descaracterizaria a ideia de trabalho, “não tá relacionado com valores econômicos” diz Jaco.
Observe-se que receber um salário ou algum tipo de pagamento tampouco significa que se
exerça um trabalho. Hoje em dia, por exemplo, Anne é remunerada pelas aulas para as
crianças, mas isso não faz de sua atividade um trabalho. Para ela, é uma questão de
compromisso e envolvimento com o grupo e a evidência disso é que o projeto ficou sem
recursos e ela continuou dando aulas, como sempre fez antes do projeto obter recursos.
As crianças, quando não estão na escola, passam o dia no sítio ou no barracão do
movimento, com um facão ou um formão nas mãos, de onde nascem entalhes em tocos de
árvores recolhidos pelo sítio. Com argila do fundo do sítio, moldam-se peixes, baleias,
pássaros. O espaço é aberto para quem quiser chegar, entrar, conversar. A todo tempo aparece
um vizinho, um conhecido, pedindo emprestado uma ferramenta, uma máquina. Às vezes a
pessoa leva até a oficina o objeto que precisa de reparo e o conserto é feito na hora pela
própria, utilizando os instrumentos do Ateliê Astúcia. As pessoas de fora, quando
encomendam móveis (prateleiras, pequenos armários) pagam com dinheiro, mas o mais
comum são as trocas, as chamadas “permutas”, em que se trocam serviços e materiais. Dó
pinta uma porta para um vizinho e este oferece um serviço em sua pequena gráfica; Dó
conhece um vizinho que sabe construir olarias e pede para ele construir um forno, oferecendo
em troca o barro tabatinga do fundo do sítio para ele fazer seus próprios tijolos. Os processos
de trabalho e criação artística estão intrincados dentro dessa densa teia de relações de
vizinhança, parentesco e amizade.
Mas então qual seria a especificidade da atividade propriamente artística? Para Jaco, a
arte é “algo que modifica as pessoas e modifica o local. Arte é um diferencial do seu dia-a-
dia; não é o comum. Não é a rotina, mesmo que o artista siga uma rotina de todo dia fazer
aquilo ali. É algo que desperta emoções diferentes, modifica as pessoas, emociona, transforma
244
o espaço, o local, o objeto e a pessoa em algo diferente do que era.” Nesta concepção de arte,
há uma espécie de campo de irradiação do fenômeno artístico. Não se trata apenas de uma
matéria prima transformada e de uma obra de arte criada; tudo se transforma junto no
momento da criação artística: o ambiente em que a obra é criado e o artista que a produz são
necessariamente afetados.
144
Mais que eventos seriam esses que ocorrem nas imediações da produção artística?
Segundo Jaco, a arte “abre um canal”; “a arte é o mesmo que abrir uma porta”, entrar num
lugar desconhecido:
“Você abre uma porta. E depois dessa porta tem muitas outras coisas. Não tem fim. É
um universo de muitas possibilidades. Tem pessoas que recuam. Essa coisa de enfrentar o
novo, de se deparar com um mundo completamente diferente, pode te fazer assustar ou pirar,
mas você começa a ver que há muitas possibilidades. A pessoa pode recuar. Num processo
político democrático dizem que você pode tudo, falar, se expressar, mas você pode tudo o
quê? Só falar? Os canais em que se pode tudo são os canais das relações, da afetividade, da
criação. É um mundo que assusta ou encanta. A gente é fechado num mundo construído em
que a gente foi educado. Mas quando você percebe que há vidas além-mar...”
E lembra de Rafael, jovem integrante do movimento cultural que, segundo Jaco, não
soube lidar com este canal aberto. Sofreu um surto, ficou um tempo internado, foi forçado
pela família a se afastar do movimento (sob acusação de que ali cultua-se o diabo) e hoje
mora em Santos (SP) e é auxiliar de pedreiro. Rafael aprendeu desde menino o ofício com Dó
e era um exímio escultor de baleias, as quais vendia para os turistas que visitavam Abrolhos.
Especializou-se num só tipo de escultura – de fato, poucas vezes saía do repertório fixo de
baleias e golfinhos. Rafinha, como era conhecido, era por vezes criticado por Dó, que
esperava que ele saísse do padrão repetitivo e introduzisse “elementos artísticos”. Faltava arte
a Rafael, mas o que isso significa? Diz Jaco,
“Rafael tinha um lado artístico, mas não tinha aquela coisa da viagem, de explorar
mais. Fazia aquela peça e tal, mas era o suficiente, não ia além daquilo. Não sei se era
preguiça, se era algo que não pulsava nele. Tem coisas que você se identifica mais. Ele
vendia bem, gerava uma grana e continuava naquele mesmo esquema.”
Das poucas vezes que produziu algo diferente, fez obras impactantes, assustadoras. Mas
Rafinha não conseguiu navegar dentro de suas próprias águas revoltas. Enquanto repetia
aquele padrão, estava seguro. Quando se lançou em alto mar ou no além-mar, como diz Jaco,
se afogou. Hoje, vive “bem”, a base de remédios.
144
Isso remete ao conceito de agência e proposto por Gell (1998) em sua teoria antropológica sobre a arte: o
agente é aquele que “faz eventos acontecerem em sua vizinhança” (:16) e, nesta posição de agente podem estar o
artista, a obra de arte, o protótipo ou o público. Para um amplo inventário sobre como essas quatro “entidades”
podem ser agentes sociais de diferentes tipos, isto é, ocupar a posição de agente ou paciente um em relação ao
outro, cf. Gell (1998, cap. 2 e 3).
245
...
A arte produzida pelas mulheres talvez seja a mais integrada ao cotidiano. Para os homens, a
criação artística é o dia-a-dia da pessoa (caso de Dó, Rafael, Chico), isto é, eles acordam e vão
logo para o galpão do movimento cultural produzir. Lá passam o dia e só voltam para a casa
para almoçar, retornando em seguida para a oficina. Normalmente trabalham sobre uma
encomenda, que chamam de “trabalho”, mas se houver tempo, dedicam-se à produção
artística própria. Dó sempre reclama que é muito solicitado para produzir móveis, decorações
e entalhes e - por de fato precisar “alimentar muitas bocas” como ele diz - sobra pouco tempo
para a arte que considera mais elevada, isto é, sua atividade como escultor.
As mulheres produzem arte individualmente nos intervalos dos cuidados com os filhos
e dos trabalhos doméstico. No coletivo, homens e mulheres atuam nos espetáculos de dança e
teatro. Mas a produção artística pessoal das mulheres - por mais manifesta que seja - se
localiza em espaços menos visíveis e normalmente não são comercializados. A decoração da
casa, as roupas, a comida e os jardins das mulheres do movimento são intrincadas produções
artísticas sem no entanto serem necessariamente reconhecidas enquanto tal. Enquanto os
homens saem de casa para criar, o espaço de criação feminino está centrado no ambiente
doméstico. Simone faz colchas de fuxico enquanto assiste televisão à noite; Anne, Lílian e
Simone criam roupas para irem às festas da cidade sem o uso de máquina de costura, com
panos, lenços, amarrações e nós que se fazem e desfazem e podem ser integrados a novas
criações. Gilca cozinha pratos típicos da culinária baiana e – por mais elogios que receba –
não é vista nem tampouco se vê como artista.
Atentos à sensibilidade das mulheres para a produção de indumentárias e itens da
gastronomia regional, Jaco e Dó tentaram estimulá-las a transformar essas atividades que
fazem por um misto de necessidade e prazer em “atividade de geração de renda” e eu os
ajudei a redigir um projeto para a criação de uma “grife étnica”, capitaneada pelas mulheres
do movimento cultural. No início, elas se entusiasmaram, mas quando começamos a orçar
máquinas de costura industriais, Simone disse: “isso aí vai dar dor de cabeça...”. Sem entender
a súbita condenação da pessoa que parecia ser a mais motivada, terminamos o projeto e o
enviamos para a agência financiadora. Estimulada por mim e por Erika, colaboradora do
movimento, que levou uma série de tecidos e retalhos que comprara em Salvador com uma
doação que fizemos ao grupo, a grife étnica realizou um desfile, angariou a simpatia das
moradoras da cidade e conseguiu uma série de encomendas. Porém, as “modelos” que
desfilaram as roupas, todas integrantes do movimento cultural e/ou moradoras da Avenida,
não quiseram devolver as criações que criaram e apresentaram. Foi então que começamos a
246
perceber que aquilo poderia não dar certo, como anunciara Simone. “E quem disse que eu
quero ver na rua uma pessoa usando a mesma roupa que eu?” Este comentário enterrou de vez
nossa pretensão de transformar as mulheres do movimento em micro “empreendedoras” do
setor têxtil. Gilca, no entanto, seguiu os conselhos de Jaco, investiu em seu talento culinário e
hoje é uma bem-sucedida vendedora de acarajés na cidade.
Jaco entende a criação de roupas como uma
“arte que junta tudo: você rebusca uma coisa que te dá prazer de vestir, coloca um
detalhe a mais, você quer que as outras pessoas vejam e gostem. As meninas fazem
com um prazer que é como se elas mesmas fossem usar, por isso é difícil pra elas se
separarem da roupa criada. E por isso é difícil também a produção artística num
processo em massa. Você perde a relação afetiva com o que tá produzindo. Aquele
vínculo, aquilo de você que tá dentro, é como se você estivesse ali, é uma parte de
você, tem pessoas que têm dificuldade de se separar. É um filho, é sempre você que tá
ali presente, tem uma relação muito afetiva. Você não quer que ninguém use. É só
seu”.
Arte também é algo que leva tempo, um tempo não redutível ao tempo cronológico, ao
tempo de uma jornada de trabalho ou de uma linha de produção em série. Como vimos com
Dó e o processo de criação da escultura do bailarino russo, ele ficou 15 anos com aquele
pedaço de raiz de jaqueira jogado num canto do curral. De vez em quando olhava para aquela
madeira e não via nada além de um pé de cama. Um dia, após assistir televisão, veio uma
inspiração e “aquilo veio numa loucura arretada”, num impulso criativo só. Diz ele:
“Aquele momento de concentração, de integração, te abre canais, lembranças, pessoas,
passado, presente futuro. Nessas transições, você sai desse tempo presente para outro
tempo onde as coisas reais não são como a gente vê, é quase como o processo do
sonho, onde muita coisa acontece mesmo que não seja possível acontecer. A cabeça
faz essa viagem para vários lugares, várias lembranças, projetos futuros, meditação. É
uma integração com outro mundo, num outro tempo, em outro movimento, outro
ritmo. É individual e ao mesmo tempo coletivo, tem várias pessoas, vários elementos,
onde você também não está só.”
Jaco afirma a dimensão essencial do tempo na produção artística: é o tempo que
permite ao artista “abrir os canais”, observar o mundo, aprofundar uma relação com o
material e se conectar com a vida que existe dentro de si e dentro da madeira:
“Um operário o dia inteiro num escritório não tem relação com uma coisa que ele mal
toca, mal percebe. Tem a ver com o tempo, estar perto, relações se aprofundam com o
tempo, vai criando um afeto. Qualquer obra de arte – por mais rápido que seja feita –
tem um tempo. Tem uma coisa mágica, os invisíveis, os encantes, em tudo tem vida.
Tem as vidas visíveis e a dos invisíveis. Madeira tem vida, tem muito encanto, mesmo
depois de morta, mantém muita vida ali dentro, aí você vai trabalhando e ela vai
brotando. A escultura é demorada, é uma relação muito íntima. As vezes você não
percebe com clareza, a gente vive no mundo do real, a gente acha que o que a gente
não vê não existe. Quem tá trabalhando, no subjetivo sabe que essa relação tá
247
acontecendo. Por isso as pessoas vão se tornando melhores, mais sensíveis, mais
compreensivas, a arte humaniza, você tem outra relação, percebe outro tempo da vida,
das coisas. É um processo muito individual que te dá essa percepção. Abre outros
canais que no dia a dia não são acionados. Dia a dia, produção em massa, correria,
falta de tempo, falta de tudo, o pensamento é só correr para gerar riqueza. Aí
impossibilita outros sentimentos, fica sufocando. Não quer dizer que todo mundo que
faz arte é maravilhoso. Mas a arte aciona esses canais, se você vai acessar ou não eles,
é uma questão sua, um processo individual.”
Este processo é definido como individual num plano e coletivo em outro. O fato da
produção artística dos integrantes do movimento cultural sempre se desenrolar num meio
coletivo teria como um dos efeitos uma espécie de regulação ou controle das tendências
egocêntricas do artista. Ao mesmo tempo, há um ambiente onde as pessoas – afetadas pelas
criações à sua volta – por sua vez sentem-se instadas a criar. O espaço coletivo permite a
afirmação da potência individual dos seus integrantes e os retira do anonimato e da solidão de
serem “mais uma pessoa invisível”. Afirma um dos integrantes do movimento:
“Aqui no movimento tem várias coisas acontecendo, a dança, a música, o cinema, a
escultura, as pessoas fazem tudo. Quem faz escultura não faz só escultura, faz dança,
decoração de rua, participa do cinema, aí você exercita o coletivo. Se for para um
lugar que só faz escultura, você vira um artista que é só você. Como a arte mexe com a
individualidade, você pode se tornar pessoa muito egoísta, individualista, chato,
egocêntrico. Como aqui exercita o coletivo, as coisas são decididas em grupo, em
reuniões, tudo é discutido, o exercício do coletivo se manifesta em tudo. Se você tá
sendo tocado, abrindo canais, de relações, você vai compreender isso no universo do
grupo, todo mundo faz tudo, é uma briga constante da gente. Mas não é automático o
coletivo. Tem que puxar o tempo todo, é construído, aos poucos, tem gente que sai,
não suporta, depois volta. Gilvan brigou com Dodó, xingou e tudo e saiu. Agora
voltou, tá participando de tudo. Qualquer um de nós fora do Arte Manha não é nada.
Assim, é mais um ser comum, que passa e as pessoas tratam como um ser invisível.
Aqui, como a gente é um grupo, produz coisas, isso possibilita outra visibilidade, as
coisas aqui só acontecem porque é uma produção coletiva, as pessoas enxergam com
um outro olhar e isso se estende a todos. Quando sai, a pessoa percebe a diferença
entre produzir no coletivo e produzir sozinho e volta num outro nível.”
A casa de Dó
145
“Composição, composição é a única definição de arte” (Deleuze e Guattari, 1991, p.181)
Antes mesmo que construir sua casa, Dó descobriu que possuía nas imediações de seu
sítio uma reserva natural de barro tabatinga, ideal para fazer tijolos artesanalmente. Decidiu
associar-se a um colega que sabia construir olarias com o objetivo de montar uma olaria “com
produtos artísticos e ornamentos de jardim, para fazer tijolos com um toque especial”. A
proposta era, ainda, aproveitar os vãos abertos com a utilização do barro do solo e a variação
145
Ver croqui da casa de Dó (figura 4, p.285) e fotos no anexo C.
248
das marés natural na região para criar peixes nos lagos que seriam fatalmente formados com
as escavações. Caravelas é um pedaço de terra cercado de manguezais por todos os lados, o
que significa que vários rios e água doce-salgada circundam a cidade e as variações da maré
se fazem sentir nos recantos mais improváveis, como no sítio em terra firme na periferia da
cidade onde vive Dó e sua família. Dó acabou não levando até o fim seu projeto de
piscicultura – apesar do lago em frente à sua casa ser prolífico em espécies de peixes
comerciais – mas utilizou a olaria para fazer tijolos com figuras de peixes escavados dentro. A
produção de tijolos subtrai o barro e permite que venham os peixes trazidos pelas marés. A
piscicultura é, pois, uma consequencia lógica da olaria. Os peixes entram no lugar que era do
barro: essa relação é expressa artisticamente nos peixinhos que ocupam o lugar que seria do
barro nos tijolos “estilizados” da casa de Dó. Sua explicação sobre os motivos marinhos nos
tijolos é outra, porém: segundo Dó, são inspirados na conexão dos povos que habitavam a
região do extremo sul da Bahia com o mar: “Os tupinambá eram um povo praiano. Tá no
espírito.”
Ao lado da parede ornada com esses tijolos, vê-se ainda na figura 1 um armário de
cozinha apoiado num toco de madeira recolhido do sítio onde sua família morou até o ano de
1999. O puxador do armário – em formato de ferradura – foi segundo Dó inspirado no
trabalho de um arquiteto de Ilhéus, que conheceu quando foi fazer curso técnico em
agropecuária em Uruçuca, cidade próxima à Ilhéus. Vê-se ainda um banco, feito a partir de
um tambor de leite enferrujado encontrado nas fazendas vizinhas à Caravelas. Até pouco
tempo atrás o leite produzido era armazenado e distribuído em recipientes de ferro, prática
hoje proibida pela vigilância sanitária. A obsolescência dos antigos tambores fez com que eles
se transformassem em bancos. Dó os recolheu, passou massa rápida por cima das ferrugens,
fez desenhos sobre o ferro, Simone colocou um pano e uma fita coloridos e eis um móvel para
sentar-se na cozinha cujo interior serve ainda para amadurecer bananas fora do alcance das
galinhas que vez ou outra entram na casa. Na figura 2, além do detalhe dos tijolos, observa-se
um porta-chaves feito com a “bolacha do coqueiro”, isto é, um corte em sentido diagonal do
tronco do coqueiro. Sobre esta prancha, Simone aplicou metades de frutos da boleira (uma
espécie de amendoeira), que se tornaram cascos de tartaruga, no desenho-entalhe feito por Dó.
Pequenos bambus recolhidos do sítio foram introduzidos na prancha, servindo de apoio para
as chaves que abrem e fecham o galpão-sede do movimento cultural.
A poltrona das figuras 3 e 4 foi feita a partir de três cortes no tronco de uma jaqueira:
dois transversais e um em sua base. A principal “prancha”, que forma o encosto da poltrona
foi vazado propositalmente por Dó e preenchido por um trançado feito com corda “rabo de
249
tatu”, usado normalmente como tralha (linha mestra) da redes de pescas utilizadas na região.
Os dois apoios para braço foram feitas com o raro pau-ferro, conhecido como braúna, que Dó
havia encontrado anos antes e guardado com cuidado. No tempo em que ainda havia mata
atlântica na região (até a década de 50-60), este tipo de madeira era utilizado como estaca de
cercas de quintais.
Nas figuras 3, 6 e 8 observa-se ao fundo a técnica de amarração dos tijolos em escama
de peixe, que Dó conheceu ao observar as paredes descascadas das ruínas das casas coloniais
do centro de Caravelas, construídas num tempo em que não existia viga de concreto e era a
disposição dos tijolos o que sustentava as paredes. Dó utilizou esta observação das
construções coloniais de origem portuguesa também para sustentar os vãos e janelas da casa
com arcos de tijolos (figs. 5 e 5a). As arquiteturas francesa e suíça - presentes nos distritos de
Ponta de Areia, Juerana e Helvécia para onde foram imigrantes suíços no século XIX -
também influenciaram Dó, que fez o acabamento dos telhados – as chamadas “tabeiras” –
segundo o padrão de arremate dos telhados europeus ainda preservados nessas localidades
(figuras 14 e 15).
As figuras 6, 6a, 7 e 13 e 19 trazem aberturas de ventilação, portas e aquários (ainda
inconclusos) feitos com manilhas de ferro-cimento. Essas manilhas são resíduo de uma
política pública de saneamento mal sucedida, do governo João Durval (1982-1986). Para
amenizar a ausência de rede de esgotos nos municípios baiano, João Durval instalou
banheiros públicos em comunidades periféricas. Em Caravelas, cidade em que o lençol
freático é muito próximo da superfície e, como foi dito, sujeita às constantes variações das
marés, os banheiros não funcionaram e foram sendo aos poucos abandonados pela população.
Essas manilhas ficaram enterradas na Avenida até que um dia Dó resolveu recolhê-las, lavá-
las e utilizá-las para fazer a ventilação da casa. Durante a construção, percebeu que poderiam
ser as entradas de acesso ao sótão, onde dormem os filhos mais velhos - “porque eu queria
que o sótão fosse tipo uma toca, toca de coruja ou ninho de papagaio; a manilha é o buraco da
toca”.
Além das manilhas de ferro-cimento, a ventilação da casa é feita por manilhas de
argila, utilizadas para escoamento de águas pluviais antes da existência dos tubos de PVC e
por uma inusitada roda de carruagem pertencente ao antigo dono do sítio, um mineiro que
guardava relíquias antigas de sua família.
Na figura 7, ao lado da manilha, vê-se uma estante feita com um tronco de coqueiro
caído no antigo sítio da família, no caminho de Ponta de Areia. Com a motosserra, retira-se a
casca externa do coqueiro e vaza-se o tronco, em três ou quatro pontos, formando uma estante
250
para livros e revistas ou um “aparadouro vertical” como a chamam. Na última prateleira, há
um bocal com um ponto de luz, por isso Dó a chama de estante-abajur.
Os portais e molduras das janelas são feitos com eucalipto (figuras 9, 11, 11a e 12), o
que é motivo de lamento para Dó, que não considera o eucalipto uma madeira boa ou durável:
“tive que tratar com óleo queimado e veneno, porque o eucalipto tem a celulose muito doce e
atrai cupim”. Estas partes da casa foram feitas com “madeira comprada em madeireira”
porque Simone mudou-se para a casa com as crianças tão logo ele fez o telhado, obrigando-o
a apressar a construção de portas e janelas – “não consegui madeira de aproveitamento porque
Simone cismou em se mudar antes do tempo”. Neste caso, o artista-bricoleur foi obrigado
pelas contingências de sua relação conjugal, a apressar a consecução de sua obra, o que
significa ter que acessar o mercado comum em busca dos elementos necessários de que não
dispõe.
Nas figuras 9 e 10 vê-se o berço que foi de Rui, Raoni e Naomi. Neste caso, aconteceu
o oposto das portas e portais. O cedro vermelho - raríssimo – “morreu na fazenda do Macaco,
no caminho de Alcobaça”, onde Dó morou durante um período de sua infância-adolescência.
Ele guardou a madeira morta do cedro durante quinze anos. Quando Simone engravidou de
seu primeiro filho Rui
146
, Dó utilizou a preciosa madeira para fazer um berço com gavetas em
forma de ferradura, pés em forma de cabeça de cavalo e laterais de couro, “primeiro
artesanato que aprendi quando era menino, nas fazendas de gado”. Da raiz deste mesmo cedro
vermelho, Dó fez uma de suas esculturas mais impressionantes, um Oxumaré (fig.10a). Da
fazenda do Macaco também veio o antigo carro de boi que foi utilizado por Dó para fazer sua
cama (figura 21).
O piso da sala de estar é ornado com um mosaico em formato de rosa dos ventos, feito
a partir de azulejos colecionados ao longo do tempo por Dó e das sobras de pastilhas da
construção da casa de uma amiga. Alguns azulejos foram comprados no comércio e
quebradas, devido ao efeito de cores que Dó intencionava criar. As lâminas de jaqueira
utilizadas para compor os pontos cardeais foram retiradas da raiz de uma jaqueira morta
trazida do Cassurubá: “destrinchei em bolachas a base da catana da jaqueira”.
Quando os trilhos da extinta ferrovia que ligava Bahia a Minas foram retirados da
ponte do píer, Dó o negociou com um colega em troca de um serviço. O trilho da estrada de
ferro foi utilizado como a viga principal da casa, que sustenta o mezzanino onde Dó um dia
pretende instalar o quarto do casal (figura 18).
146
Rui é o primeiro filho de Simone com Dó e o segundo filho de Dó, que já tinha Galdí, de uma primeira união.
251
Dó, como artista-bricoleur, possui um universo ilimitado e deve se arranjar com aquilo
que possui, que é por definição algo finito, porém paradoxalmente pleno
147
. A construção se
faz sobre aquilo que ele já possui mais do que sobre um possível projeto. Dó sempre afirmou
que possuía um projeto da casa “pensado na cabeça”, mas nunca a projetou de fato no papel: a
construção nasceu de uma ideia inicial que foi se desdobrando em função do aproveitamento
de materiais que ele já havia coletado e reunido há tempos. A casa é um espaço construído
pedaço por pedaço; as relações entre as partes não são predeterminadas: elas nascem durante
o processo de construção. Aquele conjunto de materiais de que dispunha - através do “canal”
aberto pela arte - abriu um novo campo de possíveis, que não é nem infinito, nem prefixado.
Esse campo, que num primeiro momento parece infindo, como afirma Jaco – e talvez daí a
“piração arretada” que toma o artista - logo é limitado pelo efeito da escolha do artista ao
restringir o universo inicial. Ao optar por um material e não outro ao mesmo tempo delimita-
se o espectro de ação presente no universo anterior e abre-se novos “canais”, novos possíveis,
que vão abrindo-se e limitando-se de acordo com o que vai sendo escolhido.
Criação de imagens em movimento: os vídeos Lia e Não mangue de mim
Um dos desdobramentos do processo de mobilização contra as fazendas de camarão
nasceu do intercâmbio com os movimentos sociais do Ceará e ONGs aliadas (Instituto
Terramar e Mangrove Action Project): a produção de vídeos. Como vimos no capítulo IV, o
vídeo “O Verde Violado”, realizado pelo Terramar com apoio de uma organização inglesa
chamada Environmental Justice Foundation foi um instrumento amplamente utilizado durante
as atividades dos pescadores, marisqueiras e professores cearenses em Caravelas. As imagens
da destruição causada pela carcinicultura no Ceará tiveram um papel importante, aliada ao
diálogo com os principais atingidos pela destruição dos manguezais no litoral cearense.
A Environmental Justice Foundation (EJF) entrou com o equipamento e a equipe
técnica e “capacitou”, como se diz no vocabulário das ONGs os integrantes do movimento
cultural no uso da câmera, do computador e do programa de edição, por ela doados ao
Cineclube Caravelas, recém criado
148
. Jaco acompanhou a equipe da EJF ao Ceará e, juntos,
criaram o vídeo-panfleto “É tudo mentira” (em anexo), em que documentam o processo de
intercâmbio iniciado com a visita dos pescadores e marisqueiras do CE a Caravelas. Jaco e
outros moradores da área ribeirinha foram às áreas mais atingidas pela carcinicultura no Ceará
147
Sobre o “finito ilimitado”, ver interessante proposição de Suely Rolnik (2006, p.63).
148
O Cineclube Caravelas é uma nova vertente do movimento cultural, em parceria com o Parque Nacional
Marinho dos Abrolhos, cuja direção abriu um espaço do Centro de Visitantes para sediar o Cineclube,
disponibilizando condições apropriadas para manutenção do equipamento de vídeo.
252
(como a comunidade do Cumbe, em Aracati) e na Bahia (como Canavieiras) e entrevistaram
as pessoas que aí vivem. O vídeo é uma espécie de chamado, um alerta dos cearenses e
baianos atingidos pela carcinicultura aos caravelenses, para que estes não caiam nas
“mentiras” dos produtores de camarão como eles caíram, e “deem o seu grito de guerra”
contra as fazendas. A edição ágil e veloz das imagens e as falas contundentes dos moradores
tornaram este vídeo documentário uma peça importante no processo de resistência política à
entrada da carcinicultura em Caravelas.
Ao mesmo tempo em que a formação técnica em vídeo e os equipamentos chegaram
ao movimento cultural e ao cineclube Caravelas, a passagem de um jovem andarilho pela
cidade abriu novas relações para os artistas do movimento. André Esteves, um jovem
jornalista na casa dos 30 anos que trabalhara durante muito tempo com “comunicação
popular” na favela da Maré, no Rio de Janeiro, aportou em Caravelas com uma máquina
fotográfica e uma proposta de “troca de serviços” à direção do Parque Nacional Marinho dos
Abrolhos: em troca de hospedagem e alimentação, ele daria oficinas de “comunicação
popular” visando a criação de um jornal comunitário. Hoje, O Timoneiro está em sua sétima
edição e é o único meio de comunicação impresso independente produzido em Caravelas.
Além do jornal, André levou a Caravelas colegas seus jornalistas e cineastas, que ofereceram
oficinas de vídeo para o movimento cultural Arte Manha. Uma oficina de produção de vídeo
de baixo custo, ministrada por Josias Pereira, deu origem ao vídeo Lia (em anexo), filmado
em apenas um dia, no primeiro semestre de 2007. Trata-se de uma produção coletiva dirigida
por Jaco Galdino e Jaqueline Alves (integrante do movimento cultural) e fotografado por
André Esteves (sob pseudônimo de Luis Pinto). Se imaginarmos que os integrantes do
movimento já possuíam a arte “dentro de si”, isto é, esta habilidade que Jaco descreve como
sendo a de “abrir um canal”, pode-se vislumbrar que a produção de vídeo significou o
aprendizado de mais uma técnica artística que possibilita, com novos meios, a conexão com
esta “abertura”.
O vídeo Lia traz a história de uma criança moradora da área ribeirinha de Caravelas
que, ao ir para cidade com seu pai marisqueiro, leva consigo um livro, que guardava entre
bonecas e fuxicos, em sua casa de pau a pique. Depois de catar caranguejo e se lavar no
mangue, o pai (interpretado por Dó Galdino) a chama “Lia! Ô Lia, avia menina, se apresse.
Avia pra cidade!” Lia (a menina Karolinny Sabrina, de sete anos, que mora ao lado da sede do
movimento e o integra desde pequena) deseja ler uma história para as pessoas que encontra
em seu caminho. Imagens da fauna do manguezal pontuam esta primeira parte, assim como a
trilha sonora “Segredos Vegetais”, de Décio Marques, violeiro e cantador mineiro amado
253
pelos integrantes do movimento cultural. Lia e o pai chegam ao porto conhecido como Pirão
Virado. Ouve-se um reggae ao fundo, trilha sonora sempre presente nas ruas da cidade.
Pescadores consertam uma rede, Lia se aproxima e pergunta: “Posso contar uma história?”.
Receptivos, eles aceitam, mas um outro pescador surge e pede para os colegas de ofício uma
“força” para alguma atividade. Os outros o seguem e Lia não consegue ler sua história.
Lia continua andando pelas ruas de Caravelas e se depara com os jovens da
filarmônica da cidade tocando “Asa Branca”. Pergunta-lhes se pode contar uma história, mas
é interrompida pelo professor de música, que os convoca para o ensaio. Lia, então, se dirige
para a praça, em frente à antiga estação da ferrovia Bahia-Minas, hoje convertida em
rodoviária, onde crianças brincam. Lia avisa que irá contar uma história “muito legal”. As
crianças se reúnem em torno dela, mas um carro pára em frente à praça e dele sai um homem,
que abre um porta malas com uma enorme aparelhagem de som e coloca um “arrocha” (tipo
de música baiana) no volume máximo. Sem perceber que incomoda as crianças, ele segue
falando tranquilamente em seu celular. Lia caminha sem rumo, desapontada. Até que se
depara com duas crianças carvoeiras. Ela começa a ler, mas o pai dos carvoeiros aparece e os
chama para continuar o trabalho. As crianças o seguem, deixando Lia novamente só. Lia anda
até uma casa nos arredores da Avenida e senta-se desconsolada num banco à frente de uma
casa. Uma senhora muito idosa e afável a acolhe, perguntando: “Por que você tá tão
tristezinha assim?” “Eu quero ler uma história e ninguém quer ouvir...”, lamenta-se Lia. “Mas
eu quero ouvir, minha filha, pode contar que eu quero ouvir direitinho”. Lia diz:
“Na primeira noite, eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. Não
dizemos nada. Na segunda, já não se escondem. Pisam as flores, matam o nosso
cachorro e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles invade a nossa casa,
rouba-nos a luz e, conhecendo o nosso medo, rouba-nos a voz da garganta. E como
não dissemos nada, já não podemos dizer nada.”
Trata-se do poema A caminho com Maiakovski, de Bertold Brecht. A avó diz “Eu
fico mutcho satisfeita de você contar; é com mutcha alegria que recebi você dizer sua poesia”
e a abraça carinhosamente. A música de Décio Marques, Segredos Vegetais, recomeça e são
exibidas fotografias de pescadores, crianças, marisqueiros, carvoeiros, o bloco das nagôs, uma
senhora pataxó, a feira de caravelas.
Um ano depois de criarem “Lia”, o movimento cultural Arte Manha em sua vertente
cinematográfica – a produtora “Avenida Filmes” – criou o Não Mangue de Mim primeira
produção integralmente escrita, produzida, fotografada e editada exclusivamente por
254
integrantes do Movimento Cultural Arte Manha. O vídeo se inicia com a música “Portal do
Mar”, criada por Gigi Castro e Soraya Vanini, então integrantes do Instituto Terramar:
“Não mangue, de mim, não mangue! / Sou Mangue, vou lhe contar! / Não mangue de
mim, sou Mangue, por feio me querem dar! / O caranguejo que na praia você come, o
camarão que pula na sua barriga, / vê se me entende, Homem, / o que em mim se cria,
vê se me entende é o que mata a sua fome! / Não mangue, de mim, não mangue! / Sou
Mangue, vou lhe contar! / Não mangue de mim, sou Mangue, por feio me querem dar!
/ A lama negra, a que você não quer dar nome, / tem aratu, tem sururu, ostra do
mangue, ê! / Vê se me entende, Homem, / o que em mim se cria, / vê se me entende é
o que mata a sua fome! / Portal do Mar! Portal do Mar!”
O filme teve mais uma vez o apoio de Elaine Corets, do Mangrove Action Project, que
conseguiu recursos para sua produção. O Parque Nacional Marinho dos Abrolhos cedeu o
espaço para a deposição dos equipamentos e para a edição e a Pastoral da Juventude
participou do filme com dois atores, Juninho e Anerivan, lideranças da pastoral na cidade que
interpretam o empresário e seu segurança. A direção é de Jaco Galdino e a montagem de
Galdi Valentim, filho de Dó Galdino.
O vídeo começa com crianças brincando num sítio (o sítio de Dó). “vambora,
vambora, a vovó vai contar uma história”, diz uma delas. O grupo de crianças se reune em
torno de uma senhora, integrante das nagôs, que conta uma história, sob o olhar atento das
crianças: “o Deus supremo nagô encarregou oxalá de fazer o mundo e modelar os seres
humanos. Oxalá cria o homem modelado no barro. Com o sopro de olorum, o homem, de
barro, carneou.” “Vovó, como foi feito o mangue?”, pergunta uma delas. “Ah, meus netinhos,
é uma história muito bonita. Esta casa onde mora muitos mitos, muitos animais, também
moram os peixes, os mariscos, que alimentaram meus pais e agora estão alimentando vocês e
vão alimentar seus filhos”, continua a avó, enquanto imagens de aratus, chama-maré,
pescadores em canoas e manguezais se sucedem. “O mangue é o encontro das águas doces
com as águas salgadas. Oxum, que é a deusa da beleza, das águas doces e das cachoeiras, faz
os rios correrem pelas pedras e vai fertilizando as matas, os vales, os campos...”
Começa, então, um coro, “eu vivi mamãe oxum na cachoeira, sentada na beira do
rio...”, ao qual se segue a voz de Valdeli, conhecido como Lecréu, capoeirista e integrante
eventual do movimento cultural, “Colhendo o lírio lírio ê, colhendo o lírio, lírio a, colhendo o
lírio pra enfeitar nosso congá.” Surgem imagens da sensual Oxum se vestindo e colhendo
água da cachoeira que deságua numa praia do Prado. Como o rio deságua no mar, a Oxum
segue-se Iemanjá, dona do mar, “a morada de Iemanjá, deusa das águas salgadas. Representa
a maternidade, é mãe de todos os seres do mar. Os filhos de Iemanjá depois voltam para o mar
e viram peixinhos que vão morar nos riachos e rios dos mangues.” O coro recomeça:
255
“Iemanjá é a rainha do mar, Iemanjá é a rainha do mar”. Iemanjá toma um bebê e o leva para
as águas do braço de mar que é o rio Caravelas. É a vez de Nanã, “a grande vovó do mundo, a
deusa dos pântanos, senhora do lodo e das águas lodosas, da união entre o rio e o mar. Nanã,
fonte que nos encanta e alimenta. Aí nasce o mangue”, continua a avó, seguida pelo coro: “Eu
vi Nanã, euá, euá, euá ê”. Com suas mãos, Nanã modela no barro o corpo de um homem, o
primeiro homem. Ele se ergue da lama do mangue tremendo e anda até o rio, onde se banha.
Caranguejos com divertidas antenas feitas com cd testemunham Nanã dar vida à humanidade.
Surgem imagens do sítio de Dó, o som dos passarinhos, o cacarejar de um galo, cenas da área
ribeirinha, pequenos animais, crianças brincando, beiju sendo feito na casa de farinha,
ameixas (um tipo de marisco chamado de lambreta em outras localidades), pescador
consertando rede, canoeiros, por do sol. Entra a música composta por Dó:
“Salve os mananciais”: Salve os mananciais/ Prá móde um dia vê... /Homem e bicho
crescer/ João e Maria ter/Na mesa o que comer/No mangue tem crustáceos/Sururu,
carangueijo-uçá/ Ostra, aratu, Siri e ameixa/ No mangue tem socó/ Robalo,
camurupí/Martim – pescador/ Rato e guaxinim/ Mas se só depender do homem/ Nada
disso tem/ Óh! Mãe Sereia/ Não deseje isso prá ninguém”
Mulheres pisam sobre um poço de lama, isto é, fazem um embarreiro, uma forma de
construção autônoma e coletiva de casas de taipa, comum nas áreas ribeirinhas da cidade.
Enquanto pisam o barro, cantam: “Tava na peneira, eu tava peneirando, eu tava no
embarreiro, eu tava barreirando”. Despedem-se de compadre, que agradece a ajuda e seguem
para casa. Dois homens estranhos aparecem. “Gostaria de falar com seu Pedro, ele está?” A
esposa de Seu Pedro o cumprimenta e diz “Não, mas a demora é pouca. Vou pegar um
banquinho”. O empresário limpa as mãos no pano de fuxico e revela o nojo de tocar nas mãos
enlameadas da esposa de Pedro. Ela então lhe oferece uma xícara de café. “Adoro um
cafezinho da roça, cheirinho gostoso, da terra”, diz o empresário. Fora da vista da esposa de
Seu Pedro, ele cheira o café e o joga fora. Seu Pedro, marisqueiro, chega. “Tá na lida? Com
sucesso? Eu vim aqui fazer uma proposta pro senhor”, diz o empresário, enquanto abre uma
pasta preta e, com as mãos, aponta para uma grande área nas redondezas da terra de seu
Pedro. Despedem-se amigavelmente, o empresário seguido pelo seu segurança/capanga. A
vida volta ao normal, as mulheres trabalham no mangue coletando ameixas e siris.
O vídeo corta para uma cena da mulher do empresário na feira, onde Pedro vende
caranguejo. O empresário se aproxima novamente de Seu Pedro: “E aquela nossa proposta?
“Estou pensando. No São Benedito, passa lá” diz Pedro. “Quanto é a roda do caranguejo?
“Cinco reais”. O empresário então oferece uma nota de 50 reais e fala para Pedro ficar com o
troco. Pedro desconfia. O empresário vai embora falando ao celular e diz para a mulher dar o
256
caranguejo para um homem desconhecido (figuração feita por Pedrinho, marisqueiro da
ribeirinha, em quem o personagem de seu Pedro foi inspirado). O empresário diz para a
mulher: “Dá esse caranguejo, você não vai comer isso mesmo, detesto caranguejo”. Pedrinho
pega a corda e agradece.
Agora vemos Pedro, seu compadre Zeca e Antonio, aportando com a batera “Piaba do
rio” de Piaba, que interpreta seu Antonio. Zeca (interpretado por Dó Galdino) pergunta:
“Compadre Pedro, vem cá, você vai vender mesmo a terra praqueles homens?” Zé afirma que
ficou “balançado” e que está pensando em ir embora pra cidade. Antonio afirma: “Tá doido,
cumpadre, hum-hum”. Zeca insiste: “Compadre Zé, corre a hora, fazer o que na cidade? O
senhor já pensou se a gente perde essa beleza toda aqui de natureza, pois é terra aqui que a
gente tira nosso ganha-pão, homem! Vou dizer uma coisa, o senhor me desculpe, o Antonio
tem razão, o sr. tá é doido. Pois tem muita gente que vai pra cidade e hoje não tem nem o que
comer”. Pedro aceita a ponderação, diz que Zeca tem razão, mas não parece inteiramente
convencido.
É Festa de São Benedito na roça e o que se vê é uma festa, com sanfona, tambor e
dança. O empresário chega com seu capanga. O som é interrompido.“Vim aqui saber a
decisão que o senhor tomou mediante a proposta que eu fiz da compra da sua terra”, diz o
empresário. “Ó moço, aqui ninguém vai vender suas terras, não”, afirma Pedro, confiante. O
empresário chama seu Pedro no canto e diz: “Sr. Pedro, o senhor tá perdendo um grande
negócio por causa de um pedacinho de terra cercado de lama?” A esposa de Pedro intervém:
“a vida da gente, seu moço, é isso aqui mesmo. É daqui que a gente tira tudo que temos.” Seu
Pedro, fortalecido, emenda: “Dinheiro, seu moço, um dia acaba e o mangue, a gente cuidando
dele, vai nos alimentar o resto da vida.” O empresário não desiste: “Com esse dinheiro, Seu
Pedro, o senhor pode comprar uma casa na cidade e lá viver melhor com sua família”. “E
quem disse que nós quer morar na cidade?”, replica a mulher. “Vocês querem ficar enterrado
nesse lugar igual caranguejo? Tá bom seu Pedro. Não precisa ir para a cidade. Quando eu
construir a minha fábrica aqui eu vou dar emprego pra todo mundo, principalmente para a sua
família”, diz por fim o empresário.
Zeca, que observava tudo em silêncio, então afirma “Quem disse aqui que a gente quer
ter patrão? O senhor acha que a gente vai deixar de ser ferrão pra virar boi?” Seu Pedro
emenda: “ter padrão? Louvado o Benedito”. O empresário se enfurece e diz: “Que nada de
São Benedito, seu Pedro, eu acredito é em dinheiro!” E fecha uma pasta repleta de dinheiro
que exibira às pessoas presentes. “O senhor respeite São Benedito e o mangue!”, exige Seu
Pedro. O empresário vai embora e a festa de São Benedito continua. No caminho, pelo meio
257
das matas da região ribeirinha, o empresário e seu comparsa ouvem um assovio, um zumbido.
Suas expressões revelam grande temor. Uma risada é ouvida, não se sabe de onde vem. É o
caipora, eles estão perdidos na mata. O capanga diz algo pela primeira vez: “crê em Deus pai”
e se benze. Caipora continua a provocá-los, rindo, gritando, pulando. O empresário grita
“Valei minha nossa senhora!” e sai correndo, desastrado, com seu comparsa. Eles mal
conseguem se manter em pé, tropeçam e perdem todo o dinheiro da mala. O riso da caipora
invade a cena e o filme termina com a gargalhada da caipora, seguida da dedicatória: “Este
filme é dedicado aos povos do mar e manguezais”.
As esculturas em madeira morta, a casa de Dó e os filmes do Cineclube Caravelas são
agenciamentos entre elementos heterogêneos: uma madeira guardada há quinze anos se
conecta com um programa visto na televisão e daí nasce uma escultura; um trilho de uma
estrada de ferro que marcou a história da cidade e uma tubulação de uma política pública de
saneamento tornam-se respectivamente, a viga e as janelas de uma casa; uma criança da área
ribeirinha caminha pela cidade tentando ler um poema de Brecht, que funciona como um
alerta sobre a entrada das fazendas de camarão na região; orixás africanos dão vida ao mar, ao
rio e da lama do manguezal nasce o homem e as casas de taipa da ribeirinha; caiporas e santos
católicos protegem os moradores e afastam empresários inescrupulosos. Não se combina
qualquer coisa com qualquer coisa; enquanto o observador da obra procura compreender a
conexão (quase sempre improvável) entre os elementos heterogêneos que observa, produz-se
um efeito de desconcerto, surpresa e emoção estética, intensificados pela proficuidade dos
agenciamentos delineados.
Num certo sentido poderíamos afirmar que o que define o artista-bricoleur é menos a
produção mezzo contingente, mezzo pré-determinada a partir de um conjunto heterogêneo de
materiais e mais uma atitude mental ou modo de subjetivação diante dos meios de que possui:
ele não se crê “despossuído” nem tampouco vê o conjunto heteróclito de materiais de que
dispõe como “pouco” ou como um conjunto onde falta algo. Subtrair elementos do seu
universo inicial de criação é condição para a composição artística; é a subtração o que permite
o surgimento de novos agenciamentos. Aqui, a incompletude é potência. Neste conjunto por
definição inacabado, é a finitude que move o artista; a limitação não é uma falta, mas um
motor, um conector que o faz “abrir o canal” e, deste modo, nascer o novo.
258
Conclusão: Indeterminação, bricolagem e “irradiação”
Três linhas de força estiveram presentes ao longo de toda esta tese: a indeterminação
como princípio, o sincretismo ou a bricolagem como prática e a irradiação como modo da
relação. As situações etnográficas descritas a seguir de algum modo explicam essas linhas de
força - que perpassaram tanto minha experiência etnográfica quanto o modo específico como
se organizou a escrita desta tese.
A indeterminação
Samuel é um jovem integrante do movimento cultural conhecido em Caravelas por
seus dotes como cabeleireiro e seu trabalho como ator. O papel para o qual Samuel é
normalmente convidado é o de Exu, orixá mensageiro, identificado com o diabo na
apropriação cristã. O Exu de Samuel é conhecido na cidade e as apresentações em que o orixá
mensageiro está presente provocam a um só tempo susto, medo e encanto na platéia. Seu Exu
afeta o público de modos múltiplos.
Samuel freqüentava muito minha casa para tomar café da manhã e conversar. Durante
um certo tempo da pesquisa saí da casa de Dó e fui morar numa rua transversal à Avenida –
área por onde antes passava a ferrovia Bahia-Minas e onde se confinavam os tuberculosos no
início do século passado. A Avenida aos poucos tornou-se um bairro e é um eixo da expansão
urbana do município, que a cada dia recebe mais e mais pessoas oriundas das “roças” – as
“ilhas”, formadas pelos manguezais da região – e de terra firme - os expulsos pela expansão
vertiginosa da monocultura do eucalipto.
Em uma das vezes que Samuel me visitou, contou-me sobre uma experiência muito
íntima e forte que viveu quando era mais jovem e à qual se seguiu a afirmação libertadora de
sua homossexualidade. Após o relato, Samuel começou a se queixar de dores nas costas e
pediu um copo d’água. Quando voltei da cozinha, ele estava possuído por um exu, exu-
caveira, que pediu para eu dar um recado para seu “cavalo”, Samuel, e instruiu-me a anotar
tudo o que ele me diria. O Exu recomendou que ele deveria “procurar o homem do anel” [um
médico], “voltar a estudar” e ir à encruzilhada em frente ao cemitério depositar sete rosas
vermelhas. Em seguida, Samuel foi possuído por uma cigana, por uma Iansã, pelo caboclo
boiadeiro e novamente pelo exu-caveira que o havia possuído no início. Nunca havia visto
uma série tão variada de possessões, apesar de freqüentar alguns terreiros e festas de Cosme e
259
Damião
149
onde as pessoas são muitas vezes possuídas por mais de uma entidade. Fiquei
preocupada e conversei com algumas amigas do “povo de santo”, que diagnosticaram isso
como um “desequilíbrio” que deveria ser sanado com a feitura do santo.
Uma semana depois, Samuel passou novamente em minha casa, quando eu estava de
saída para visitar a família de Jane e Genilson, marisqueiros que moravam na área ribeirinha e
que construíram uma base na cidade, uma casa de tijolos no chamado Bairro Novo. Passei-lhe
a recomendação de minhas amigas de que ele deveria se consultar com um pai ou mãe de
santo, se cuidar e quem sabe fazer o santo. Mas Samuel é de família evangélica e afirmou que
não cogita de modo algum ser feito no santo. Disse-lhe que estava de saída para a casa desses
amigos, perguntei-lhe se ele queria me acompanhar e ele aceitou. No caminho, Samuel se
queixou de dores nas costas. Encontramos Piaba, liderança do Bloco de Índio e ogã de
diversas casas ou terreiros da região.
Chegando na casa de Jane e Genilson, nos acomodamos na sala e ficamos conversando
sobre pescaria, mariscagem e as fazendas de camarão que ameaçavam a cidade com sua
instalação. Também conversamos se aquele ano haveria ou não as festividades de Cosme e
Damião, já que a família de Genilson, um dos muitos filho do famoso Manuel de Adeu (já
falecido), é conhecida por suas festas memoráveis na roça, onde é certa a presença de
caboclos, marujos, sereias, cabocla Jurema, dentre outras entidades que gostam da
“brincadeira”. “O giro [a mariscagem] foi fraco este ano, é capaz de não ter festa”, disse
Genilson.
E então aconteceu: Samuel foi repentinamente possuído pelo Exu caveira que o havia
tomado em minha casa. Corpo inclinado, braços retorcidos e invertidos, olhos revirados. As
crianças correram para trás das cortinas que separam a sala do quarto da casa. Todos se
afastaram, exceto Genilson, também conhecido como Pajé, tido por muitos moradores do
Bairro Novo como pai-de-santo. Piaba também permaneceu por perto e foi a ele que o Exu se
dirigiu, avisando que havia “coisa feita” contra ele. Piaba escutou atentamente o recado e
disse que sabia do que se tratava e que iria providenciar o que fosse necessário. Em seguida,
Genilson, ou Pajé, que não pareceu ter gostado da presença do Exu, aproximou-se dele,
colocou a mão direita em sua testa e disse repetidamente a fórmula “Deus é Amor, Deus é
Amor, Deus é Amor”, “vá para o seu lugar em nome de Jesus” e chamou o nome dele
“Samuel, Samuel, Samuel”. Samuel despertou do transe muito abalado. Tomamos um copo
d’água e fomos embora, após um pedido de desculpas pelo ocorrido. Piaba disse para eu não
149
Ver nota 24, capítulo 2.
260
me preocupar, que “Samuel é assim mesmo”, vez ou outra ele “cai”, “sabe que deve se cuidar
e não se cuida”. Voltei correndo para casa e contei o evento para Simone. Ela não acreditou
que Samuel estivesse realmente possuído – “isso é teatro que ele gosta de fazer”. Sem saber
em quem acreditar, no dia seguinte, fui atordoada visitar Piaba e levantei a objeção de
Simone. Piaba disse resolutamente que não tinha dúvida alguma de que Samuel estava de fato
possuído. “Tem vez que ele finge, mas lá em Genilson ele tava de exu sim, rapaz”.
O que teria acontecido a Samuel? Estaria ele possuído ou apenas representando? Seu
corpo teria sido possuído por uma profusão de entidades que se desdobraram em uma série de
ondas de diferentes intensidades ou o fenômeno sobrenatural nada mais seria do que uma
grande brincadeira, como faz em seu trabalho como ator? Quando ele foi possuído em minha
casa, optei por acreditar que ele estava representando, mas na casa de Genilson, fiquei em
dúvida. Simone defende que ele estava fingindo, “é teatro que ele gosta de fazer”; Piaba é
resoluto em afirmar que, apesar dele muitas vezes fingir, na casa de Genilson ele estava de
fato possuído, daí a necessidade do exorcismo evangélico praticado pelo Pajé.
Esta experiência me afetou com força. O que me parece particularmente assustador
não é tanto os exus e demais entidades, digamos, poderosas, que surgiram em minha
vizinhança – embora isso certamente faça parte do pavor que me toma ao relembrar aqueles
momentos. O que me abalou nestes casos foi a mais profunda indeterminação sobre o que
teria se passado de fato durante essas duas possessões e/ou representações.
O trabalho de campo produz no(a) etnógrafo(a) um efeito duplo. O partilhar de uma
vida cotidiana com as pessoas no campo produz a suposição de que se tem acesso direto a
uma dimensão mais real da experiência. Por outro lado, dado o caráter fugidio e desconhecido
desta experiência, são constantes as situações em que simplesmente não se sabe o que está
acontecendo. O caso acima descrito é exemplar deste duplo efeito, pois as situações vividas
foram bem reais, ao mesmo tempo em que eu não sabia o que estava acontecendo. Quando
isto ocorre, busca-se algum alicerce na percepção das pessoas com quem se vive. Mas, neste
caso, os pareceres das pessoas sobre o que estava acontecendo foram os mais díspares
possíveis. Situações como esta, em que os pareceres sobre o real são flagrantemente
divergentes, revelam-nos que não há um fundo estável, fundamento, verdade ou explicação
última para a experiência vivida – talvez daí o caráter profundamente vertiginoso de qualquer
trabalho de campo. Em seu processo de desterritorialização pessoal, Samuel desterritorializou
em cheio meu desejo de certezas e fundamentos e lançou luz sobre a profunda indeterminação
e instabilidade das situações que chamamos de sociais.
261
Certamente, acreditar no que se vê e se vive é condição sine qua para a produção de
uma etnografia, da mesma forma como no caso das eleições, é fundamental que o candidato
acredite que irá vencer para conseguir sustentar sua campanha. Porém, mais fundamental do
que acreditar na realidade da própria experiência vivida no campo, é acreditar no que os
nativos veem, dizem, experimentam, por mais irreal que isso em alguns momentos pareça.
Afirmo este “acreditar” num sentido próximo da concepção tardiana de crença, que postula
que as crenças e desejos – que para ele são os motores da ação - variam segundo graus de
intensidade maiores ou menores (“atos de fé possuem intensidade muito diferentes”, afirma
Tarde, 1893, p. 90).
Para se acessar aquilo que as pessoas que estudamos creem, é preciso, antes de tudo,
crer nelas, em seu mundo, em suas proposições, em suas dúvidas, em suas incertezas. O
cogito tardiano “Desejo, creio, logo tenho” parece-me uma interessante fórmula pois aí está
expressa uma conexão entre desejo e crença, esta última num sentido que se aproxima da
idéia de ter fé, de acreditar, de confiar ou de “botar fé”, como dizem os participantes do
movimento cultural. Há graus de intensidade nesta idéia de crença, pode-se confiar mais ou
menos numa percepção, numa ideia, numa pessoa. Em meio à indeterminação que margeia
toda experiência etnográfica, uma única certeza: é preciso confiar no outro. Confiar não no
sentido de ser “simpático” ou “tolerante” com as idiossincrasias alheias; confiar aqui é ser
capaz de colocar à prova seu próprio modo de perceber o mundo e estar abertos às conexões
imprevistas criadas pelo saber das pessoas.
Os capítulos 1 e 2 desta tese trazem exemplos de dois sentidos deste “acreditar”. É
preciso acreditar no relato de Seu Jorge, de Val e de Alice para que haja inter-esse (no sentido
proposto por Stengers, 2002, cf. nota 5 do capítulo 3), para que o relato se desdobre, para que
as histórias se interconectem. “Uma história clarividente deverá confessar que jamais escapa
completamente da natureza do mito”, já afirmava Lévi-Strauss (1964, p.32). Desqualificar um
relato como “memória”, esse conteúdo tido como instável e seletivo, é não apenas
deslegitimar o saber diferencial das pessoas, mas também ignorar que a História é permeada
por amnésias retumbantes. Ouvir o relato e confiar nele e em quem o profere é a condição
para que uma relação se estabeleça e o próprio relato se enriqueça e aumente suas conexões
com mais e mais agenciamentos.
No capítulo 2, a indeterminação se traduziu na dúvida que pairava sobre as reais
intenções de Dó ao concorrer as eleições: queria ele vencer? À indeterminação inerente a
qualquer processo eleitoral somou-se o comportamento errático de Dó, que tampouco oferecia
um solo seguro para se alicerçar. Esta incerteza mobilizou a coordenação da campanha, que
262
tentou a todo custo estabilizá-la, procurando – em vão - definir a agenda, a fala e os passos
deste candidato fugidio.
A indeterminação como princípio é o exercício de suportar as muitas verdades que se
multiplicam no campo, ao invés de se buscar uma só, que sobrecodifique as demais. Por
exemplo, a multiplicidade de explicações sobre se Dó realmente desejava vencer as eleições
ou se Samuel estava mesmo possuído, foi o que permitiu-me ou quiçá obrigou-me a
apresentar o material etnográfico sem lançar mão de teorias ou explicações fechadas que
limitassem o desdobramento dos fenômenos observados/experimentados. Isso certamente
poderia ter sido feito, mas minha opção foi deixar transparecer e de algum modo
problematizar o que o trabalho de campo traz de instável, fragmentário e vertiginoso para o(a)
antropólogo(a).
A bricolagem
O Bloco de Índio Tupinambá faz sua “brincadeira” todos os anos no carnaval.
Liderado por Piaba, no bloco saem mulheres e homens pintados de urucum, vestidos com
saias de taboa cuidadosamente elaboradas e com blusas vermelhas doadas por vereadores e/ou
candidatos. Nos rostos, pinturas com carvão. Eles fazem a roda, a “aruanda” ou “brincadeira”
e desfilam traçando círculos e cantando pontos de caboclo pelas ruas da cidade. O efeito
também é algo perturbador e desconcertante: visualmente não diferem em nada dos pataxó da
Barra Velha ou dos tupinambá de Olivença. O visitante de fora pergunta: “mas são ou não são
índios?” A resposta é uma sonora gargalhada, o que só faz aumentar o mistério desse grupo.
Antes de tomar as ruas, o bloco se reúne num canto da casa de alguém e Piaba pede
licença aos caboclos, aos encantados e demais entidades indígenas para a realização da
“brincadeira”. O pedido de licença é também um pedido de proteção e uma expressão de
respeito. Apesar disso, é comum que algumas mulheres “caiam” durante o percurso pela
cidade, isto é, sejam possuídas pelos caboclos.
É noite de lua e o Bloco de Índio está fazendo a aruanda na quadra a céu aberto do
movimento cultural. Dona Tata, uma vizinha branca, idosa e beata católica que mora a poucos
passos do sítio-sede do movimento, observa a roda e é repentinamente tomada por um
caboclo. Sua presença é saudada, mas Dona Tata/o caboclo é logo levada/o para um canto.
Movem seus braços para baixo e chamam-na pelo seu nome, retirando-a – não sem
dificuldade – do transe.
Embora dona Tata atualmente freqüente apenas a igreja Católica, soube mais tarde que
ela já “foi do santo”, mas o terreiro que frequentava fechou. Segundo sua filha, “mamãe não
263
pode ouvir um tambor que logo cai”. A presença do caboclo foi rapidamente esconjurada, em
consideração à saúde de dona Tata, que poderia não suportar o arrebatamento. Embora se
tomem todas as precauções para que os caboclos fiquem afastados e apenas protejam a festa,
eles são secretamente desejados por todos: quando um aparece, é saudado; algumas pessoas
aproveitam para se consultar, mas, de um modo geral, ele é rapidamente despachado. A
aparição de um caboclo durante o bloco de índio é reveladora de que o local onde o bloco está
– naquela noite, a sede do movimento cultural - tem muito “axé”, muita energia; é isso o que
faz os caboclos não resistirem e descerem para participar da festa. É também indicativa de que
o bloco está “forte”, cantando e dançando bonito.
A esposa de Piaba, dona Rita, que normalmente sai no bloco e participa das festas nos
terreiros afastados da cidade está doente, com pressão alta. Ela me conta, desolada, que
descobriu um feitiço contra ela debaixo da sua cama. “Fiquei apaixonada” diz. Apaixonada
em bom caravelense significa doente, abalada emocionalmente, inquieta. Dona Rita revela-me
que está cansada do agito das festas de santo e do bloco de índio e que está freqüentando a
Assembléia de Deus, mais próxima da sua casa do que os terreiros que requerem longas
caminhadas por trilhas irregulares. “Na Assembléia”, ela diz, “não tem isso de ficar dançando
e se cansando”. Dona Rita revela que é possível que volte aos terreiros quando estiver melhor
de saúde, mas que no momento está feliz indo à Assembléia.
Marinalva, que sempre saía no Bloco de Índio como porta-estandarte, também está
“cansada de festa”, por isso está frequentando uma igreja evangélica perto de sua casa.
Encontrei com ela nas vésperas do carnaval de 2009 quando caminhava pela Avenida na
companhia de Piaba. Passamos por sua casa e ela receitou-me vários banhos de ervas e
ofereceu-me algumas de seu quintal. Ao ser indagada se as ervas não seriam consideradas um
problema pela sua nova igreja, ela disse “as ervas eu não largo não”. Ao se despedir, disse
para Piaba: “se quiser que eu leve o estandarte, estamos às ordens”. Piaba virou-se para mim e
comentou em voz baixa: “essa aí não ‘guenta evangélica até o carnaval. Tá doida pra sair no
[bloco de] índio”.
Dona Maria José, que também é assídua participante do Bloco de Índio, além de ser
uma espécie de mãe de santo informal da Avenida (é filha de santo de mãe Marininha do
Prado), também revela que gosta muito da Igreja Maranata. Eles têm “o jardim mais jeitoso”
que ela já viu e é um local onde ela ouve as palavras do evangelho, “das coisas mais lindas”.
Tal como no caso da “possessão” de Samuel, aqui também se coloca uma indagação
em forma de alternativa: são ou não são índios? A resposta? Uma sonora gargalhada. “Brincar
de índio”, assim se diz. A aruanda é a hora da festa, quando se brinca de ser índio. Mas a
264
brincadeira é séria, da mesma forma que o ato de brincar é a coisa mais séria do mundo para
uma criança. Não faz sentido perguntar se é verdade ou mentira, se é brincadeira ou não, se é
índio de verdade ou índio de mentira. Os caboclos gostam tanto da brincadeira que decidem
vir brincar também e descem pra festa. Começa-se brincando de índio e termina-se a aruanda
brincando com os índios. São eles, os caboclos, os donos da terra, temidos, admirados,
conjurados e desejados. “Eles vieram brincar com a gente”, alegra-se Piaba, que afirma:
“Nos índios manifesta. Porque é muito pesado. Já vi até em gente que não está
brincando. Todas as músicas chamam. Aquela dos índios ‘Xangô é tal, é de amarauê’
é só cantar que quem mexe com macumba cai. Uma vez a gente estava ali, na rua da
prefeitura, e quando chegamos no bar Pingüim, vinha uma mulher subindo no beco.
Quando ela viu os índios e ouviu o tambor e o ponto, ela caiu. Não agüentou não. Era
um ponto pesado, ponto de Tupinambá”.
Para os participantes do movimento cultural os índios do bloco de índio não são apenas
“caboclos”, mas são realmente descendentes dos tupinambás. O Bloco de Índio é, segundo os
integrantes do Arte Manha, uma expressão típica da cultura “afro-indígena”. Afro-indígena
pode ser uma forma de descendência. Uma pessoa ou grupo afro-indígena é descendente da
mistura entre negros e índios, não como pólos primeiros e puros, e sim como heranças já
misturadas desde o princípio. Como é o caso da família Galdino Santana, segundo seus filhos,
assim definida: de um lado com uma marca mais “negra”, a mãe, e outro lado com uma marca
mais “indígena”, o pai, embora nenhum dos dois seja puramente negro ou indígena. Como
afirma Preto:
“Eu creio que tenho um pouco de sangue índio. Eu sou meio índio, eu sinto. Porque o
Brasil foi descoberto em Porto Seguro e a maioria da raça aqui é indígena. Todo
mundo que nasceu na Bahia, de Ilhéus para cá, tem um pouco de sangue indígena.
Meu pai tem uma mistura, é meio caboclo; minha mãe é mistura de índio com caboclo.
Eu sou meio indígena, sou caboclo. Minha mãe gostava muito de índio, colocava o
índio [isto é, o bloco de índio] assim na rua. Eu sinto que tenho um sangue um pouco
de índio e acho que tenho uma mistura, através de ser índio e ser negro: índio-afro.”
Por outro lado, o “resgate” ou “pesquisa afro-indígena” é o trabalho que o movimento
cultural desenvolve no sentido de pesquisar todas as manifestações culturais que contenham
essa fusão entre elementos definidos como de origem africana e indígena. O movimento
cultural procura estimular que os grupos se organizem e “não morram”. Dó contou-me que
o grupo fez uma espécie de promessa “de nunca deixar de dar proteção aos grupos que estão
265
dentro dessa resistência, dar continuidade ao trabalho, para não deixar morrer as Nagôs, os
Tupinambás”
150
.
O Bloco de Índio e as Nagôs fizeram parte da infância das pessoas que hoje lideram o
Umbandaum e são tidos como os precursores e fontes de inspiração para o movimento
cultural. Um dos membros do grupo me disse: “A gente ajudou os Nagôs e os Tupinambás e
eles ajudaram a gente. É tudo uma linguagem só, afro-indígena”.
O conceito de afro-indígena não diz respeito à raça ou a uma expressão de um
fenótipo, fundada em diferenças naturais. Não se trata de um conceito substancialista, mas
expressivo; ele diz respeito muito mais às diferenças culturais do que a uma base natural de
identificação. Como me disse um dos jovens do grupo: “O que mais me encanta no grupo
afro-indígena é a dança e a capoeira, o modo de se expressar, de comandar o corpo”. Como
afirma Dó, “afro-indígena é uma linguagem”, uma forma de expressão, que nasce da
recombinação da expressão dos índios e das nagôs e da busca de uma origem relativa aos
antepassados africanos e indígenas.
Elementos africanos e indígenas aparentemente desconexos funcionam como peças de
um bricolagem material no projeto do grupo. Amalgamados e rearranjados num outro sistema,
esses elementos passam a dizer coisas diferentes daquilo que diziam antes (Bastide, 1970). O
que é interessante neste processo é que, mesmo retirado do conjunto mítico ao qual
supostamente teriam pertencido, esse elemento reapropriado conserva “de algum modo, de
maneira virtual, a lembrança do horizonte de sentido no qual se inscrevia” (Mary, 1994) e
assim reativa afectos que atingem quem vê os modos de expressão artística do movimento.
Afro-indígena, portanto, não é algo da ordem da identidade nem mesmo do pertencimento
(Serres, 1997), mas da ordem do devir, do que se torna, do que se transforma em outra coisa
diferente do que se era e que, de algum modo, reinventa o que se foi.
Poderíamos provisoriamente chamar os eventos acima descritos como exemplares do
sincretismo que marca os modos de exercício da religiosidade em Caravelas. Porém, a noção
de sincretismo, um conceito nascido na sociedade do observador, é imbuída de um certo
desconcerto, como se as coisas estivessem fora do lugar ou do contexto onde deveriam estar.
Sincretismo está muito próximo da ideia de inautenticidade e transparece implicitamente uma
150
A promessa que Dodó fez foi em função de alguns sonhos que a Simone teve e da preocupação de Piaba com
o show em que encenavam os orixás. Piaba afirma que uma parte dos espetáculos do grupo era “pesada, a linha
de Exu era pesada”. A promessa era uma espécie de “licença” aliada a um pedido de proteção aos orixás, já que
algumas pessoas “do santo” os tinham alertado para “não brincar com coisa séria”. Mas mesmo Piaba, que não
aprovava totalmente a forma como o grupo apresentava as partes “pesadas”, ajudava o grupo tocando tambor nas
apresentações, já que era Ogã de um terreiro das ilhas e “ninguém tinha experiência em tambor”.
266
acusação de um não ancoramento numa tradição religiosa sólida, isto é, não-sincrética (mas
qual seria?).
A mistura, justaposição ou fusão de elementos heterogêneos observados na prática da
bricolagem ou do sincretismo não são incoerências, mas formas de se criar novos arranjos,
novas combinações, saídas possíveis. O que essas situações etnográficas revelam é que, do
ponto de vista nativo, não há qualquer sentimento de que o trânsito entre práticas religiosas
diferentes seja indicador de perda de autenticidade. O Pajé, ao invocar uma oração evangélica
para retirar o exu do corpo de Samuel ou a opção de dona Rita por um tempo mais calmo na
Assembléia de Deus enquanto lida com o feitiço que a deixou apaixonada são práticas não
apenas perfeitamente congruentes, mas que apontam para a possibilidade de acionar-se a
favor do sujeito a ampla variedade de expedientes disponíveis no arco das alternativas
religiosas existentes na cidade.
Como vimos, se do ponto de vista de quem aí vive, este é um mundo em que tudo está
dado, isso não significa que se possa fazer de tudo. A coerência é, assim, em relação às
condições atuais de vida e saúde do sujeito; a capacidade de se dosar esses múltiplos
pertencimentos é vista localmente como um indicador de força e sabedoria pessoal. O jovem
integrante do movimento cultural que se tornou evangélico por um tempo e desistiu anos
depois sintetiza este sentimento complexo. Disse ele, “Só Jesus salva, Jesus é realmente a
única verdade e o único caminho. Mas não é pra mim...Eu gosto de festa, de carnaval, de
ousadia... Mas Ele é a verdade. Ele é o caminho. Eu sei disso, eu senti isso. Apenas não é pra
mim....” Deste modo, combina um sentimento de respeito à diversidade religiosa, aliado ao
reconhecimento de que pode-se simplesmente não gostar ou não se adaptar a uma dada
religião, o que não a faz menos legítima, nem a pessoa que opta por abandoná-la menos
respeitável. “Simplesmente não é para mim”.
Da mesma forma, como vimos no capítulo 4, o encontro entre pescadores de Caravelas
e do Ceará provocou um diferencial num ambiente em que as relações entre ONGs,
movimentos, IBAMA e moradores parecia já dada e pré-definida (capítulo 2). Ao unir pessoas
de origem as mais diversas – sindicalistas, artistas, bancários, índios, biólogos, bailarinas,
pescadores, sindicalistas, trabalhadores rurais, loucos e professores – em torno de uma luta
por um bem coletivo, o movimento que então se formou intensificou a potência de cada um
desses pólos e – negando-se a acreditar no caráter inelutável daquele grande projeto – logrou
por reverter as relações de força e impedir a entrada da grande fazenda nos manguezais da
região. Como veremos a seguir, a força da Coalizão “irradiou” nos processos políticos que se
seguiram e se desdobrou em novas lutas, como a que culminou na recente criação da Reserva
267
Extrativista do Cassurubá e em novos modos de criação artística, como a produção de vídeo
por parte do movimento cultural, que se originou dos encontros inesperados engendrados pela
Coalizão.
A bricolagem ou o sincretismo apontam para a construção de um fazer (artístico,
religioso ou político) que não toma a mistura como inautenticidade, contaminação ou
fraqueza. Ao contrário, a justaposição, mistura ou fusão entre elementos heterogêneos são
valorizadas como métodos de fortalecimento de sujeitos e grupos, de incremento de sua
saúde/criatividade e de intensificação de sua potência transformadora no mundo.
A “irradiação”
O espetáculo Origem encena o surgimento da vida a partir da água e de Oxalá, o
aparecimento dos elementos como o fogo e o metal e a criação dos vários orixás. A vida e a
morte de Zumbi dos Palmares são aí encenadas; Zumbi é coroado por Oxum e, depois de
morto, velado por Obaluaiê e Iansã e elevado num cortejo por todos os orixás. Os integrantes
do movimento cultural consideram este o espetáculo mais emocionante que já fizeram e sua
encenação na IV Semana Zumbi dos Palmares sediada por Caravelas teve algo de especial.
Uma lua cheia e tochas de fogo iluminavam o sítio do movimento, o declive natural do
terreno formou uma arena e os moradores da Avenida se aglomeraram para assistir ao
espetáculo. Os integrantes do movimento cultural não participam enquanto fiéis de nenhuma
das inúmeras variações de religiões afro-brasileiras que se distribuem por Caravelas. Eles não
são “do santo”, nem querem ser. Alguns por medo, outros por recusa à religião e suas
obrigações, outros por serem oriundos de famílias evangélicas e outros por se definirem como
ateus e materialistas. Mas em Caravelas não é preciso ser do candomblé para se ter uma
relação com os orixás.
Decidi ir aos bastidores antes do início da apresentação e puxei conversa com Simone,
minha “mãe” em Caravelas. Ela trazia as vestes de Iansã, seus olhos estavam semi-cerrados e
respondeu-me de forma estranha, acenando com a cabeça, sem pronunciar palavra alguma.
Seu filho Raoni, então com 4 anos, estava ao seu lado também vestido para o espetáculo e
parecia de certa forma ausente. Só mais tarde soube que Simone estava em transe e que seu
transe “irradiava” para Raoni, como se diz da possessão que reverbera de uma pessoa para
outra, especialmente de mãe para filho.
No espetáculo, a Iansã de Simone adentrou a arena, lançou um grito arrepiante,
rodopiou diversas vezes e dançou de forma majestosa. Neste momento, observei sua mãe
carnal, Dadá, que estava a poucos passos da arena. Dadá chorava em silêncio ao ver a filha
268
tomada pela deusa do vento e das tempestades. Seu filho mais velho, Itamar, era Xangô.
Entrou no palco dançando e carregando duas cumbucas em fogo ardente na palma das mãos.
A presença de seu filho/Xangô afetou Dadá: ela fechou os olhos e seu corpo sofreu um forte
espasmo. A possessão do filho irradiou sobre a mãe, mas Dadá resistiu à vibração que tomou
seu corpo e ameaçou chegar à sua cabeça. Após controlar o fluxo que a atravessava, lágrimas
tomaram sua face. Ou seriam as lágrimas de Oxum, seu orixá?
Conversando no dia seguinte sobre o espetáculo com Jaco, ele comentou: “aconteceu
uma coisa diferente ali ontem. Nunca tinha sido tão forte.” Simone e Itamar afirmaram que
não se lembravam de absolutamente nada do que se passara. A experiência que viveram havia
sido tão forte que, nos espetáculos que se seguiram a este, os dois nunca mais tiveram
coragem de sair como Iansã e Xangô, seus respectivos orixás pessoais. Simone atualmente só
se apresenta como Yemanjá e Itamar só sai como Ogum. Não querem correr o risco de serem
possuídos novamente.
Simone representa Iansã e está por ela possuída. Xangô possui Itamar e é por ele
representado. Onde termina a representação e começa e possessão? Seriam estes pólos de um
continuum discreto nos quais oscilam sujeitos em devir? Aqui, ao contrário da primeira cena,
a possessão não se desdobra em multiplicidades instáveis. Os orixás que possuem os corpos
dos irmãos Simone e Itamar irradiam-se por ondas intensivas na direção de sua mãe Dadá,
que quase perde os sentidos ao ver os filhos/orixás dançarem.
O fenômeno da irradiação já havia sido descrito por Simone, quando de um sonho
“forte” que teve. Ela disse ter certeza de que então desfizera o “problema de Gilvanira”, sua
irmã adotiva, em sonho. Sonhou que estava possuída por sua Iansã e andava próximo a um
barranco no caminho para Juerana. Ela colocava a mão, cavava o barranco e encontrava um
short que Gilvanira usava e havia perdido, objeto roubado por alguém que o utilizara para
fazer um feitiço contra ela. No momento em que punha suas mãos para pegar o short, um
cachorro violento e esquelético o mordia também e disputava com ela a peça de roupa. Mas
Iansã era mais forte e conseguia sobrepujar o cão raivoso e levar consigo o short. Simone
acordou assustada com o sonho e com um som que vinha do quarto do seu filho mais novo,
Raoni. Ele estava sentado de quatro sobre a cama, rosnando como um cão. Simone concluiu
que seu sonho “irradiou” no filho. No dia seguinte a este sonho, uma amiga foi ao sítio visitar
Simone e levou uma imagem de Iansã de presente para ela.
Em seu sonho, Simone foi possuída por uma força que a transcendia. Se por um lado,
ela é uma agente bastante ativa no sonho, capaz de desfazer um feitiço poderoso, por outro
lado, a força que a faz enfrentar o cão raivoso vem de outro lugar que não ela, provém de seu
269
orixá. As afecções contidas em seu sonho não afetaram tão somente a ela; de algum modo, a
força que atravessou Simone transmitiu-se para seu filho. “Irradiou em Raoni”, resumiu. Ao
ver o filho “irradiado” Dó também foi afetado e ficou abalado. Ao ouvir o relato de Simone,
também senti-me de algum modo afetada e hoje, ao relembrar este dia, sou novamente
atingida por aquela força que o sonho de Simone liberou. A irradiação é uma força que emana
de um agente em direção a outro, mas que tem origem em outro agente, digamos, primário; no
caso, o orixá. O poder que toca uma pessoa e irradia em outras provém de um outro lugar, de
um fora.
A irradiação como modo da relação diz respeito às situações em que um
acontecimento produz efeitos que vão além do sujeito. Se os objetos de arte já foram descritos
como sendo pessoas (Gell, 1998), o movimento cultural nos ensina que as pessoas ou relações
podem ser tratadas como objetos de arte. Cada um tem algo para dar. E daí nascem os
encontros. Os encontros funcionam quando produzem e isso não é explicável, é algo que
simplesmente funciona ou não. Jaco ensina que, tal como a madeira, não se pode esperar do
outro algo que ele não tem pra te dar. E se você insistir numa forma que ela não te dá, a
madeira quebra, deforma. Jaco também ensina que mesmo quando as possibilidades são
pequenas, há sempre pontos de encontro ricos, criativos. Ele ensina que você tem que "pegar"
o que o outro tem de bom para te oferecer, porque, segundo ele, "isso pode sempre servir". O
movimento cultural é isso, eles "pegam" o que os outros têm de bom e se enriquecem. Eis
uma ética das relações que supõe prestar atenção no outro pra saber se e o que ele tem pra
dar.
Da mesma forma que a relação que se tem com as pessoas pode ser semelhante a que
se tem com a madeira em vias de ser transformada em escultura, alguns eventos funcionam
como objetos de arte em relação aos agentes sociais que os fazem, exatamente como uma
criação pode ir além da intenção do artista e o afetar reciprocamente. Isto aparece em diversas
situações: quando a efervescência da política eleitoral contagia quem nela toma parte; quando
a “política da conversa”, ao colocar frente-a-frente sujeitos que se respeitam, permite reverter
um quadro político tido como dado e inelutável; quando um vídeo é capaz de afetar seu
espectador e “abrir um canal”.
As pessoas são a um só tempo afetadas por certos acontecimento e afectantes do seu
curso, sofrendo assim uma dissolução-reconstituição em termos nem totalmente iguais a antes
e nem totalmente diferentes, simplesmente em outros termos. Nesse sentido, podemos dizer
que a criação política e artística do movimento cultural é um processo a um só tempo
270
constituinte e constitutivo. É uma espécie de elo que liga o antes e o depois; é o meio, “o lugar
em onde as coisas ganham velocidade”
151
e onde o novo nasce. Como afirma Jaco:
- O artista tem que se deixar entalhar pela madeira. Você vai sentindo, conhecendo os
nós, ganhando intimidade e o resultado nunca é exatamente como você imaginou. Não
é nem mais você, nem a madeira. É uma outra coisa.
- E o que é essa outra coisa?
- Essa outra coisa é o novo.
151
Deleuze e Guattari, 1980, p. 37.
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152
Nota explicativa: Há autores presentes nesta tese que não foram citados explicitamente. A solução encontrada
para fazer jus às muitas linhas de força que atravessaram este trabalho foi apresentar na bibliografia as produções
textuais que de algum modo afetaram minha escrita. Esta seleção está a meio caminho entre a totalidade dos
textos lidos durante o doutorado e as referências citadas.
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282
Figura 1 – Travessia da família Santana em 1951
283
Figura 2 – Mapa Esquemático de Caravelas
284
285
Figura 4 – A Casa de Dó
Desenho de João Vicente do A. Mello
286
ANEXO A – Resultados das Eleições Municipais de 2004 - Caravelas (BA)
Eleitorado: 14948 | Apurado: 14948 | Abstenção: 3240 | Comparecimento: 11708 Seções: 45 / 45
PREFEITO
NÚMERO - NOME NOME COMPLETO COLIGAÇÃO PARTIDO(S) VOTAÇÃO
22 - DAVID NEUVALDO DAVID DE OLIVEIRA CARAVELAS SEMPRE PRA FRENTE PL / PTB / PRTB /
PDT
5991
25 - CHIQUINHO FRANCISCO HENRIQUE DOS SANTOS
POR AMOR A CARAVELAS PP / PFL / PRP 4101
15 - RENE SIQUARA RENE MOACYR HANDAM SIQUARA VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 524
BRANCOS 152
NULOS 940
VEREADORES
NÚMERO - NOME NOME COMPLETO COLIGAÇÃO PARTIDO VOTAÇÃO
22220 - DELSON BAHIA SUL DELSON GABRIEL LEITE Partido Liberal PL 556
22612 - MANOEL DE JONGA MANOEL NUNES DA SILVA Partido Liberal PL 517
22211 - ALENCAR ALENCAR NERES DOS SANTOS Partido Liberal PL 481
14333 - ZÉ DO LEITE JOSE DOS SANTOS SARY ELDIM Partido Trabalhista Brasileiro PTB 473
14444 - ZÉ CABO JOSE RAIMUNDO DOS SANTOS
MARINHO
Partido Trabalhista Brasileiro PTB 457
25555 - LOLÓ LUIZ ANTÔNIO ALVIM DELGADO Partido da Frente Liberal PFL 406
25888 - JOSIEL JOSIEL SOUSA SILVA Partido da Frente Liberal PFL 335
25111 - JORGE XAVIER JORGE XAVIER DA SILVA Partido da Frente Liberal PFL 323
22223 - BORÊ RODOLFO BATISTA GONÇALO Partido Liberal PL 313
15604 - DR. GERALDO GERALDO CESAR VERVLOET ROSSI
VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 291
44444 - REGINALDO REGINALDO ALVES PEREIRA PP/PRP PP / PRP 270
11222 - FIDELCINO FIDELCINO MIRANDA DE OLIVEIRA PP/PRP PP / PRP 260
14603 - GEGÊ GERCIEL DA SILVA Partido Trabalhista Brasileiro PTB 259
11223 - ELIAS DA BARRA ELIAS OLIVEIRA JOSE PP/PRP PP / PRP 255
25613 - EDÉSIO EDÉZIO CERQUEIRA DE SANTANA Partido da Frente Liberal PFL 243
11333 - BELINE HIDERALDO BELINE SILVEIRA
PASSOS
PP/PRP PP / PRP 241
13000 - DÒ JORGE GALDINO SANTANA VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 238
44111 - CARLINHO CARLOS HENRIQUE WILDEMBERG
BRAUER
PP/PRP PP / PRP 228
11580 - ANDRE ANDRE LUIZ COSTA SIQUARA PP/PRP PP / PRP 199
22202 - CARLINHOS PLINIO CARLOS DE SOUZA SLVA Partido Liberal PL 185
11234 - DR MARCIO MARCIO ANTONIO CALMON PP/PRP PP / PRP 180
14620 - JUSCELIO JUSCELIO ALVES DE OLIVEIRA Partido Trabalhista Brasileiro PTB 167
13777 - PROFESSOR SANDRO SANDRO LYRIO MONTEIRO VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 162
28608 - ROBERTÃO ROBERTO DIAS BERTO PRTB/PDT PRTB / PDT 160
14610 - GILBERTINHO GILBERTO RODRIGUES DE SOUZA
PRADO
Partido Trabalhista Brasileiro PTB 159
28611 - GILMINHA GILMAR SOUZA DA SILVA PRTB/PDT PRTB / PDT 153
44555 - ZE MAMAO JOSE AUGUSTO DA SILVA MACIEL PP/PRP PP / PRP 138
25610 - TIÃO SEBASTIÃO PEREIRA DOS SANTOS Partido da Frente Liberal PFL 120
25666 - PEDRO JONA PEDRO JONAS DE OLIVEIRA Partido da Frente Liberal PFL 117
11666 - VIVIANE VIVIANE WILDEMBERG CAJA
MARTINS
PP/PRP PP / PRP 116
11111 - IRMA ELIETE MARIA ELIETE OLIVEIRA DE FARIAS PP/PRP PP / PRP 112
25690 - ANERIVAN ANERIVAN REINALDA DA SILVA Partido da Frente Liberal PFL 111
12230 - CARDOSO CHARLES MATOS DOS SANTOS PRTB/PDT PRTB / PDT 107
14608 - DILMA DA SUCAN DILMA MARIA SERAFIM LOPES Partido Trabalhista Brasileiro PTB 105
287
22610 - ARNALDO DA OFICINA ARNALDO PASSOS ANDRADE Partido Liberal PL 105
22228 - DANIEL SHOW DANIEL OLIVEIRA FRANCO Partido Liberal PL 97
22204 - SON EDSON RODRIGUES DA CRUZ Partido Liberal PL 96
25825 - ORESTES ORESTES LEMOS DA SILVA Partido da Frente Liberal PFL 84
25190 - SOBRAL ANTONIO CONCEIÇÃO SOBRAL
BATISTA
Partido da Frente Liberal PFL 74
22206 - BENTO DA BARRA BENTO FERREIRA INACIO Partido Liberal PL 68
22212 - GILZANE DE BINHA GILZANE MARIA LYRA SOARES Partido Liberal PL 61
22222 - PROFESSORA ROSA ROSA LUZIA ALVES SENA Partido Liberal PL 54
28688 - ERNANI ADÃO PEREIRA DE AZEVEDO PRTB/PDT PRTB / PDT 53
12240 - FLORA ANTONIO FLORA DOS SANTOS PRTB/PDT PRTB / PDT 50
12205 - ADELINO JEJEL ADELINO CARRILHO COSTA NETO PRTB/PDT PRTB / PDT 50
15000 - JORGE MADEIRA JORGE DA CONCEIÇÃO MADEIRA VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 49
11220 - JOAOZINHO JOAO FERNANDES DA SILVA PP/PRP PP / PRP 48
11123 - FAZINHO JOSAFA PEREIRA DE OLIVEIRA PP/PRP PP / PRP 48
25123 - CURINHA CLAUDENICE PACHECO DE OLIVEIRA
Partido da Frente Liberal PFL 46
28111 - CURA HAMDAN OMAR PAULO HAMDAN PRTB/PDT PRTB / PDT 42
14666 - VANDO EVANDRO RODRIGUES OLIVEIRA Partido Trabalhista Brasileiro PTB 41
14622 - MORENA CLEONICE MARIA DAS GRAÇAS DE
JESUS
Partido Trabalhista Brasileiro PTB 40
13111 - DITO BENEDITO CONCEIÇÃO DOS SANTOS
VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 39
44777 - RONALDO DO ESTALEIRO RONALDO MELO PP/PRP PP / PRP 30
13222 - MARCOS MARCOS TADEU GOMES DE OLIVEIRA
VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 30
14777 - SIBIRIRI ROMULO AUGUSTO DA SILVA FONTES
Partido Trabalhista Brasileiro PTB 29
12210 - ALCYR ALCYR JESUS DOS REIS PRTB/PDT PRTB / PDT 29
28622 - JOVAL JOVAL DO ROSARIO SANTOS PRTB/PDT PRTB / PDT 27
15650 - ANTONIO EMIDIO ANTONIO EMIDIO DA SILVA VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 26
25523 - LETÍCIA LECIA MOREIRA LIMA REBOUÇAS Partido da Frente Liberal PFL 26
25000 - GRACINHA MARIA DAS GRACAS DE SOUZA SILVA
Partido da Frente Liberal PFL 21
15015 - HELDER HELDER PASSOS SIQUARA VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 20
11777 - DIAS ARMANDO DIAS FIGUEIRA PP/PRP PP / PRP 19
13444 - JURANDIR DA FARMÁCIA JURANDIR SANTANA DE SENA VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 18
28609 - JORJÃO KIYOSHI KAWAKAMI PRTB/PDT PRTB / PDT 18
15616 - CORINA MARIA CORINA MELGAÇO MACHADO
VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 17
12208 - PASTOR ANTONIO ANTONIO COSME MENDES DA SILVA
PRTB/PDT PRTB / PDT 16
44222 - ROSILDA ROSILDA POMPILIO DOS SANTOS PP/PRP PP / PRP 14
11110 - DELMA DELMA PEREIRA DA SILVA PP/PRP PP / PRP 12
15555 - DAVID SIMÕES DAVID SIMÕES SOARES VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 11
13888 - PIT BULL ADINEILTON RODRIGUES VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 8
28602 - BALBINO BALBINO CRUZ DOS ANJOS PRTB/PDT PRTB / PDT 5
12209 - TANA SANDRA CARVALHO BUENO PRTB/PDT PRTB / PDT 4
13555 - GEOVANI GEOVAN PEREIRA MILITÃO VALE A PENA ACREDITAR PMDB / PT 2
25678 - TIA CEIÇA MARIA DA CONCEICAO BONIFACIA
OLIVEIRA
Partido da Frente Liberal PFL 0
BRANCOS 90
NULOS 419
288
ANEXO B – Fotografias da Casa de Dó, de esculturas e outras produções artísticas
Foto 1 – tijolos e armário de cozinha
Foto 2 – detalhe dos tijolos e porta-chaves de coqueiro
289
Foto 3 – Poltrona de jaqueira
Foto 4 – visão lateral
290
Foto 5
Foto 5a
291
Foto 6
Foto 7
Foto 8
292
Foto 9
Foto 10 Foto 10 a - Oxumaré
293
Foto 11
Foto11 a
294
Foto12
Foto13
295
Foto 14
Foto 15 – tabeiras do telhado
Foto16 telhado com tabeiras de Juerana, distrito de Caravelas
296
Foto 17 – chão da sala de estar em moisaco e lâminas da base do tronco de jaqueira
Foto18 – O trilho da extinta ferrovia Bahia-Minas é a viga que sustenta o mezzanino
297
Foto19 – visão geral da casa
Foto20 – visão geral da casa
298
Foto 21 – cama feita a partir de carro de boi
Foto 22 – placas de sinalização de trilha feitas com técnica de entalhe
Foto 23 – Bailarino Russo
299
Foto 24 – colcha de fuxico
300
ANEXO C – Encontro entre pescadores de Caravelas e Ceará e Audiência Pública do
projeto da COOPEX.
Foto 26: Encontro entre pescadores do CE e de Caravelas (rio dos Macacos)
Foto 27: A “política da conversa”
Foto 28: Pescadores da Barra em manifestação contra a fazenda de camarão
301
Foto 29: Entrada da Audiência Pública
Foto 30: Audiência Pública - platéia
Foto 31: Intervenção de Dó Galdino na Audiência Pública
302
ANEXO D – Vídeos produzidos pelo Cineclube Caravelas e Avenida Filmes (Lia, É tudo
Mentira e Não Mangue de Mim)
Livros Grátis
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Milhares de Livros para Download:
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