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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Regina Tavares de Mello e Souza
Amor e perversão
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Regina Tavares de Mello e Souza
Amor e perversão
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Dissertação apresentada à Banca
examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Psicologia Clínica, sob a orientação do
Prof. Doutor Renato Mezan
SÃO PAULO
2009
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Maria Regina Tavares de Mello e Souza
Amor e perversão
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
________________________________________________
________________________________________________
DEDICATÓRIA
Ao meu pai Venicio,
a João Candido e
Marilia
Por muito
AGRADECIMENTOS
Cecília, saber
Celina, força
Glauci, confiança
Graça, estímulo
Heloisa, carinho
Marilia, real
Marta, compreensão
Renato, paciência
RESUMO
Maria Regina T. de Mello e Souza
Amor e perversão
Esta dissertação visa articular as éticas mais significativas que atravessaram
nossa cultura, com a sexualidade, aqui entendida como uma formação humana que
ultrapassa o âmbito do biológico, para se tornar a base da subjetividade. Ao tomar o homem
como sujeito do desejo, Freud se conta da orientação perversa do mesmo, concluindo
que, por sua natureza agressiva, o homem tende a, antes de amar seu próximo, tomá-lo
como objeto, inclusive sexual, para seu gozo. Como pensador da cultura, Freud afirma que
os grandes ideais humanos não passam de formações reativas. São construídos para
contornarem a agressividade, já que os homens compreenderam que unidos poderiam
dominar as forças da natureza, garantindo sua sobrevivência. Lacan, atento comentador das
éticas que alimentam e movem nossa cultura, destaca a importância daÉtica a Nicômaco”,
de Aristóteles, voltada para o ideal do “Soberano Bem”. Esta “Ética” atravessa dois mil
anos, tendo seu fim com o declínio da relação Senhor/Escravo, que enseja o aparecimento
de duas novas éticas voltadas para o ideal do bem comum: a kantiana, cujo destaque maior,
para Lacan, é a Crítica da razão prática e a corrente utilitarista, que tem seu ponto
máximo na “Teoria das ficções”, de Jeremy Bentham. Na passagem do século XVIII para o
XIX, Sade, contemporâneo de Kant, acompanhando o movimento dos libertinos surgido
com a decadência da aristocracia, eleva ao seu ponto máximo o tema da Felicidade no Mal.
Lacan elabora um texto onde compara Kant com Sade, do qual vemos aparecer um avanço
em sua teoria sobre as perversões. Depois de um primeiro momento em que as éticas são
estudadas, o eixo desta dissertação se volta para o estudo das perversões sexuais, tendo
como fundamento o arcabouço teórico de Freud e Lacan. Este texto de Lacan transforma-
se, nesta dissertação, em meio de articular uma ética da perversão.
Palavras-chave: Éticas. Amor. Desejo. Perversão. Gozo.
ABSTRACT
Maria Regina T. de Mello e Souza
Love and perversion
This dissertation aims to connect the most significant ethics that persisted
throughout our culture – to sexuality, here regarded as a human formation that goes beyond
biological scope to become the foundation of subjectivity. By regarding man as subject of
desire, Freud recognizes him as having a perverted orientation, and comes to the conclusion
that, because of his aggressive nature, man tends to, before loving his neighbor, take him as
object (also sexual) for his enjoyment. As a thinker of the culture, Freud states that the great
human ideals are nothing but reactive formations. They are constructed to avoid
aggressiveness, since men understood that together they could tame the forces of nature, in
order to guarantee their survival. Lacan, attentive commentator of the ethics that feed and
move our culture, emphasizes the importance of Aristotle’s “Nicomachean Ethics”, focused
on the ideal of the “Supreme Good”. This “Ethic” persisted throughout two thousand years,
coming to an end with the decline of the relationship Master/Slave, which cleared the path
to two new ethics devoted to the ideal of the common good: the Kantian ethics, in which,
for Lacan, the highlight is the “Critique of Practical Reason”, and the utilitarian approach,
which highest moment is Jeremy Bentham’s “Theory of Fictions”. On the turn of the 18th
to the 19th century, Sade, Kant’s contemporary, following the Libertine movement born
with the decadence of French aristocracy, takes the subject of Happiness in Evil to its
maximum level. Lacan writes a text in which he compares Kant with Sade, where we can
see he makes progress in his theory about the perversions. After examining the ethics, the
present dissertation focuses on the study of sexual perversions, using the theoretical
framework of Freud and Lacan as foundation. The above-mentioned text by Lacan is used,
in this dissertation, as a means to articulate an ethic of the perversion.
Keywords: Ethics. Love. Desire. Perversion. Jouissance.
SUMÁRIO
Apresentação...................................................................................................................... 1
CAPÍTULO I – FREUD.................................................................................................... 4
Do Soberano Bem ao Mal Soberano................................................................................... 4
O utilitarismo......................................................................................................................
9
As éticas e a Psicanálise..................................................................................................... 13
Freud e a Ética................................................................................................................... 16
Freud e o amor ao próximo............................................................................................... 19
CAPÍTULO II – LACAN................................................................................................ 23
Lacan e a perversão........................................................................................................... 23
Cronologia de uma teorização da perversão em Lacan..................................................... 29
Sade, meu próximo............................................................................................................ 36
CAPÍTULO III – PERVERSÕES.................................................................................. 45
O exibicionismo e o voyeurismo...................................................................................... 45
O masoquismo: A Vênus das peles – Uma interpretação possível.................................... 47
Sobre o amor entre rapazes............................................................................................... 54
O homossexual existe?....................................................................................................... 61
A sexualidade feminina e a perversão............................................................................... 67
Conclusão.......................................................................................................................... 82
Referências Bibliográficas................................................................................................ 84
1
Apresentação
Os assuntos aqui tratados demandaram um olhar focado na construção da
sexualidade, sua história, as mudanças sociopoliticoculturais que contribuíram para suas
formulações e reformulações no decorrer do tempo, até sua formatação contemporânea, se
assim podemos dizer. Considerei necessário este recorte por tratar-se aqui da sexualidade
em sua vertente, por assim dizer, “mais perversa”, aqui visada em suas manifestações mais
“comuns”: o fetichismo, o masoquismo, o sadismo e o homossexualismo masculino e
feminino.
No intuito de “abranger” a história desta formação humana que nomeamos
‘sexualidade’, recorri, além dos autores psicanalistas os quais, obviamente, constituem o
cerne desta dissertação, à “História da sexualidade”, de Michel Foucault, obra em três
volumes na qual ele se dedicou a ampla pesquisa. Esta investigação se inicia na época
moderna, na vigência da pastoral cristã sobre a égide do ‘pecado da carne’, no volume
intitulado “A vontade de saber”, e, posteriormente, no volume II, voltado à antiguidade
grega, baseando-se nos principais filósofos do século IV a.C., “O uso dos prazeres”, para,
no volume III, prosseguir com “O cuidado de si”, dedicado aos filósofos e médicos que
mais se destacaram nos dois primeiros séculos de nossa era. Infelizmente, o último volume,
que seria o IV, não foi concluído em virtude de sua morte precoce.
Nesta obra inacabada que se inicia enfocando a modernidade e retrocede aos gregos,
Foucault empreende um esforço arqueológico para esquadrinhar em textos, os mais
significativos da cultura ocidental, vasta documentação referente à sexualidade,
garimpando meticulosamente, e, arejando também a tessitura das tramas que compõem a
história desta “formação humana” de “refreamento do gozo”. Lacan, em Alocução sobre
as psicoses da criança”, texto de 1967, diz: “toda formação humana tem, por essência, e
não por acaso, de refrear o gozo”. Foucault situa o homem como sujeito do desejo, portanto
sujeito moral, capaz de engendrar uma “hermenêutica de si” que, por sua vez, funda sua
subjetividade.
O trabalho de transpor esta trilogia foi um exercício, uma travessia de surpresa e
encantamento, obra que se com a respiração suspensa, o coração sobressaltado, suspiros,
jamais enfado, quase se perde o fôlego. É um exemplo feito e acabado do que se pode
2
chamar de “pensamento complexo” no sentido que lhe Edgar Morin, qual seja, o da
necessidade de se enfrentar a complexidade antropossocial, jamais reduzi-la, menos ainda
ocultá-la sob o vezo de nossas convicções e barreiras. Bachelard afirmou que o simples não
existe, “só o que é o simplificado”. Nas palavras do próprio Foucault, o impulso para
escrever a história da sexualidade adveio, não por acaso, da curiosidade: “não aquela que
procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo”.
“Uma curiosidade que leva ao descaminho”; o que é “a atividade filosófica senão o trabalho
crítico do pensamento? O ensaio... “é o corpo vivo da filosofia, se pelo menos ela for
ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ‘ascese’, um exercício de si no pensamento”.
O tema de sexualidade se enriquece com este resgate, esta nachträglichkeit, uma vez
que, assentada nos discursos que organizam o mundo em sua diacronia, formadora que é da
psiquê, pautada na subjetividade de sua época, ela constitui a própria “orientação” do
sujeito, traçando a direção de seu destino, seu modo próprio de gozar, seu estilo. O estilo é
o próprio homem, dizia Buffon (1707-1788). Lacan se detém no fato de que ao repetirmos
este dito não nos apercebemos que “o homem já não é assim uma referência tão segura”. As
vestimentas de Buffon mudaram muito, não grandes homens, então, adere a este
adágio estendendo-o (ou acrescentando) “o estilo é o homem a quem nos endereçamos”.
O outro do discurso é o próprio inconsciente, “uma vez que da perspectiva da psicanálise o
Um não existe sem o Outro. O inconsciente é transindividual. Portanto, é a dialética do
desejo que é incluída no aforismo: o desejo, o desejo que o sujeito visa, é sempre desejo do
Outro.
O movimento simbólico que Lacan nos convoca a decifrar é o movimento que Freud
denominou ‘civilização’: “... tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua
condição animal e difere da vida dos animais”
1
, que compreende a própria Psicanálise, seu
produto, assentada que está no espírito científico inaugurado com o cogito cartesiano”:
“Só posso estar certo de que penso, pois, mesmo que disso duvide, ainda assim continuarei
pensando”, ao que podemos acrescentar com Lacan, “... depois deste penso que, ao supor-
se a si mesmo funda a existência, tivemos que dar o passo que é o do inconsciente”, ou seja,
inventar o dispositivo analítico; é ela própria (a psicanálise) parte fundamental da formação
da subjetividade moderna.
1
FREUD, S. (1976) - O Futuro de uma ilusão, pg. 16, vol. XXI
3
Em 1953, em Função e campo da fala e da linguagem”, Lacan expressa, de forma
eloqüente, a importância, para cada analista, da decifração do espírito de seu tempo, o
zeitgeist:
“que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu
horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser,
o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete
com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral
a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua
função de intérprete na discórdia das línguas...”(Lacan, 1953)
Desta frase devemos destacar dois pontos: que os analistas se comprometam com
seu ser no trabalho com “tantas vidas”, atribuindo-lhe uma dimensão ética uma vez que
lida com os fundamentos da existência de cada uma delas, seus conflitos, seus destinos, e,
que se dedique a desvendar o que mais tarde chamará “Discursos”, marcando sua dimensão
política. Isso se quiser ser digno de sua profissão. Lacan evoca aqui, o que Kant chamava
de “mentalidade alargada”, atingir a alteridade.
4
CAPÍTULO I – FREUD
Do Soberano Bem ao Mal Soberano
Uma reflexão moral sobre a natureza humana não pode mais se realizar, desde
Freud, sem que nos coloquemos frente a frente com a expressão que Lacan retirou de
Hesnard (1886-1969), o universo mórbido da falta”. São os sentimentos conscientes ou
inconscientes de culpa, travestidos muitas vezes em uma vaga apreensão, ou um receio de
catástrofe iminente. O medo de sofrer retaliações, sanções, ultrapassa o puro e simples
temor a uma lei articulada, ou ao simples sentimento de obrigação; está, na verdade, sempre
referido a um ideal de conduta.
A incomensurável contribuição de Freud para o entendimento do esforço do homem
no sentido da construção de um sistema moral alçou vôo tal na cultura, que tornou
indissociável qualquer reflexão moral na atualidade sem que se reporte à culpabilidade. Em
toda sua obra, das cartas a Fleiss a “Moisés e o monoteísmo”, vemos a construção, às vezes
arrebatada, às vezes cautelosa, de seu edifício teórico, sobre dois pilares: a formação do
superego e o desejo. “É da energia do desejo que se depreende a instância que se
apresentará no término de sua elaboração como censura”.
2
Em Lacan, a lei moral se afirma
contra o prazer.
Para localizar a Psicanálise como um movimento que atribui, sem sombra de
dúvida, ao homem uma dimensão ética, e, considerando que tanto em Freud como em
Lacan não oposição entre o individual e o coletivo, procurarei debater a lógica das
principais éticas em jogo no decurso do tempo.
A “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles, caracteriza-se por um “dever ser” em
conformidade com o Senhor, ideal a ser atingido na contemplação, espelhando a ociosidade
própria de um tipo social (o Senhor). Este ócio pauta-se na temperança, valor supremo,
disciplina da felicidade que envolve também o prazer, desde que com moderação: “o desejo
é sempre desejo de coisa agradável”, dizia Aristóteles. Esta frase encerra em seu
enunciado a exclusão do campo da moral de todo o desejo sexual perverso, que ele
denomina bestialidade. Em dado momento da “Ética a Eudemo”, ele arrola o que pode ser
2
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A Ética na psicanálise, pg. 12
5
considerado intemperança (ákolàsia): são apenas e “tão somente” os prazeres do corpo,
excluindo-se os da visão, os da audição e do olfato. Os prazeres passíveis de intemperança
são os que envolvem o toque e o contato, incluídos os prazeres do sexo. Encontra-se
textualmente em “Ética a Nicômaco”, esta afirmação: “... para o intemperante, o tocar o
é difundido em todo o corpo, concerne a certas partes”. Tal afirmação corrobora com o
que consideramos, grosso modo, o desejo perversamente orientado e remete à parcialidade
das pulsões. Não vou desenvolver neste momento esta questão, apenas registrá-la para
posteriores comentários.
Toda a reflexão ética de Aristóteles converge para uma ordem (ethos) que se unifica
em torno de um conhecimento mais amplo, o qual se expande em direção a Polis e,
finalmente, alcança o “Soberano Bem”. Seu percurso se inicia no microcosmo do que se
pode denominar com Foucault o “cuidado de si”, se dirige ao exercício da cidadania na
Polis para desembocar no “Soberano Bem” (a ordem divina, o motor imóvel) de que nos
fala Aristóteles. A gica desta ética se pauta em duas questões, por assim dizer, “ilógicas”:
se existe esta ordem, este ethos, que tem no “Soberano Bem” seu ponto de convergência,
como pode existir na natureza do “Senhor” a intemperança? Como o Senhor, com todas as
suas virtudes nas quais o discípulo deve se mirar, pode eventualmente se desviar para a
intemperança? A segunda questão que se coloca é: como construir uma sociedade de
Senhores? Nota-se nestas duas impossibilidades a referência a um ideal. Estas questões
permanecerão em aberto, são postas ou colocadas apenas como marcação das diferentes
éticas.
Comentarei de forma sucinta a ética libertina, tomando como ator principal Sade, ao
qual, posteriormente, dedicarei um capítulo. Utilizar a palavra “ética”, relacionando-a à
literatura e à vida do famoso Marquês, pode parecer um contrasenso mas, é disso mesmo
que se trata. Uma Ética. Vejamos.
A “alcova sadiana”, como escreveu Lacan, fundou-se ao molde das antigas escolas
de filosofia, Academia, Liceu, Stoá, ali, nestas Academias, “preparava-se a ciência
retificando a posição da ética”
3
. O terreno foi aplainado durante cem anos, apurado nas
“profundezas do gosto”
4
para que a Psicanálise pudesse finalmente advir. Tais “condições
3
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pg. 776
4
Ibidem
6
de possibilidade” (Kant) emergiram de uma ruptura: “a ascensão insinuante ao longo do
século XIX do tema da felicidade no mal”
5
.
O século XVIII, centrado no Iluminismo, na Aufklärung, foi marcado pela tese
progressista de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que sustentava a plena convicção na
bondade natural do homem, gênese da Revolução Francesa, que conclamava aos mais
nobres ideais: liberdade, igualdade e fraternidade. Esta idealização do homem convoca-o a
lutar contra o poder político. Fêz-se a Revolução e, no início do século XIX, acertadas as
contas com os ideais revolucionários, as “Luzes” vão pouco a pouco se apagando, e,
insidiosamente, a idéia do mal como parte mesma da natureza humana vem instalando as
“trevas”. Sabemos que em dado momento, Freud comentou que a Psicanálise trazia a peste.
Immanuel Kant (1724-1804), na Crítica da razão prática”(1781), anunciava
categórico: “devemos somente escutar a voz da consciência, temos que atuar de tal maneira
que a regra de sua ação possa ser tomada como a máxima de cada um”. Anteriormente,
estávamos orientados pela dialética do Senhor/Escravo: a ordenação do homem, o “ethos”,
a harmonia entre o bem e a felicidade. O Bem-Estar, que se sustentava no “Soberano Bem”,
ponto de convergência “em que uma ordem particular se unifica num conhecimento mais
universal, em que a ética desemboca numa política e, mais além, numa imitação da ordem
cósmica”
6
, sofre um deslocamento. Assunto comentado quando da referência à Ética a
Nicômaco”, de Aristóteles. Em Kant (1781), o Bem-Estar não é mais a conseqüência de
uma ordenação, deixa de ser uma noção moral, torna-se uma contingência da própria
experiência da vida de cada um. A própria felicidade já não tem o valor que tinha para os
antigos, perdeu sua característica de universalidade, depende da combinação de múltiplos
fatores, para cada um de nós.
O terreno estava sendo preparado para que, oito anos depois da Crítica da razão
prática”, como frisa Lacan, pudéssemos ler o prolífico marquês. Em 1789, marco zero da
Revolução Francesa, ocasião em que não por acaso foi lançada a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, Sade escreve o famoso panfleto: Franceses, mais um esforço
para serem republicanos”. O teor do manifesto é o de uma convocação: deve-se gozar, pura
e tão somente. É uma convocação geral, que tem a abrangência de uma lei universal, o
5
Ibidem
6
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A Ética da Psicanálise, pg. 33
7
direito ao gozo. Ele preconiza uma República cujos fundamentos legais são invertidos, tudo
que não era permitido passa a ser permitido: o incesto, a sodomia e o crime. Os homens
devem ter o direito de possuir todas as mulheres e, as mulheres, além de se prostituirem,
pois desta forma poderão usufruir de sua liberdade, devem se igualar aos homens nas
práticas sexuais, inclusive em relação à sodomia, tanto ativa (com o uso do consolo) como
passivamente.
É possível observar neste manifesto a abolição, “por decreto”, da diferença sexual e,
simultaneamente, o seu reconhecimento, tal como Freud pode observar na raiz da estrutura
perversa
7
, assim como, desta vez corroborando com Lacan, quanto a um acento especial no
gozo feminino, ao considerar as mulheres melhor favorecidas pela natureza por possuírem
um empuxo aos prazeres e à luxúria mais poderosos que o dos homens. As mulheres
deviam manter relações sexuais preferencialmente “a tergo”, o que estaria de acordo com a
natureza e, novamente presentifica aí nesta demanda a diluição da diferença entre os sexos.
A sodomia e o homossexualismo como leis enfrentam diretamente os maiores tabus
da era cristã: transgressão da diferença sexual e da ordem da reprodução. O objetivo final é
a extinção da humanidade com as práticas de sodomia, infanticídio e aborto. Os filhos
devem ser gerados por intermédio de relações anônimas e diversificadas que impedem todo
e qualquer acesso à filiação. A instituição do Pai, a imago paterna, está abolida; quem
assume a função é o Estado.
A nova ordem social que Sade pretende instalar funda-se numa perversão
generalizada que se transmuda em norma, abandonando seu status de transgressora da Lei.
Se todos devem ser perversos, a própria “qualidade” da perversão, a perversidade, é
abolida.
Trata-se de uma ética que reivindica a felicidade peremptoriamente, ativamente, à
custa do mal e, somente através dele, busca a morte como elevação da “vontade de gozar e
de fazer gozar”, seu ponto máximo. A via do gozo é a destruição, pulsão de morte em seu
estado puro, difundida entre todos democraticamente, homens e mulheres, crianças e
velhos. O mal, a destruição e a morte são um fim em si mesmos. Um ideal a ser perseguido
7
Em sua obra, Freud, durante longo tempo, considerou a divisão do Ego um mecanismo próprio das
estruturas perversas ou psicóticas. Somente a partir de 1927, em seu artigo sobre o Fetichismo e,
posteriormente, no final de sua vida, no Esboço de Psicanálisee em A divisão do Ego no processo de
defesa”, ele estendeu este conceito também às neuroses: o fato de que uma pessoa possa adotar, em relação a
um comportamento dado, duas atitudes psíquicas diferentes, opostas e independentes”.
8
de todas as maneiras, vale dizer, é o fim do amor, construção tão cara à humanidade, e a
prevalência do real do sexo, despossuído de qualquer sustentação simbólica que o ampare,
associando-o definitivamente à morte.
Sabemos que a filosofia libertina não se estabeleceu. Seus traços, porém, fazem
parte do âmago da natureza humana e abriram um novo campo “discursivo”. Para Lacan, a
própria condição de possibilidade para a existência da aventura da Psicanálise.
9
O utilitarismo
As referências de Lacan a Jeremy Bentham (1748-1832) e ao utilitarismo percorrem
seu ensino desde 1950, em Funções da Psicanálise em criminologia”, Discurso de
Roma”(1953), A ética da Psicanálise(1959/60), até culminar no Seminário 20 Mais
ainda”(1972/73). No decurso de sua obra, Lacan demonstra seguidamente um grande
interesse em posicionar o “acontecimento psicanálise” como “datado”, no sentido de
promover uma investigação do progresso histórico que possibilitou a entrada no discurso
deste novo laço social. Inclusive, ao se perguntar até quando permanecerá em cena. Nesta
trilha ele ressalta a importância da contribuição do jurista inglês, considerando-a
imprescindível para a compreensão da ética freudiana, uma vez que aquela representa “um
deslizamento, uma mudança de atitude na questão moral como tal”
8
, assim como a
Psicanálise, que, por sua vez, tem lugar a partir deste novo referenciamento.
Lacan denominou “reversão utilitarista” a este movimento ocorrido no início do
século XIX, condicionado pelo progresso histórico e caracterizado por um declínio radical
da posição do mestre. Hegel formalizou a novidade de uma dialética na qual o senhor
diluído seu poder em favor do vencido, o escravo, cujo trabalho, agora valorizado, ganha
força. É deste “desequilíbrio” que emerge esta nova ética progressista, a via utilitarista. Tal
“reversão” deu-se no final deste declínio, atingindo as relações humanas em seu eixo,
modificando profundamente a ordem social. Bentham foi, digamos assim, a mais perfeita
tradução da queda do significante mestre.
Foi este o contexto que antecedeu o pensamento freudiano. Para melhor situar o
momento da história do pensamento à época do surgimento desta corrente, temos que a
obra de Kant veio a ser conhecida pelos ingleses meio século após sua morte. Depois de
David Hume (1711-1776), houve pouco progresso na metafísica para eles; os avanços se
deram basicamente na filosofia moral e política. Nesta época, a Grã-Bretanha era um
império que comandava um quarto da raça humana, portanto, a aplicação de novos
preceitos necessariamente teria grande impacto para a humanidade.
Bentham torna-se der de um grupo conhecido como “Radicais filosóficos”. Eles
visavam promover reformas nas prisões, na censura, na educação, nas leis, enfim, em
8
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A Ética da Psicanálise, pg. 20
10
praticamente todas as instituições públicas. Seu princípio orientador para as políticas
públicas baseava-se na máxima que fora anunciada no início do século XVIII por um
filósofo irlandês chamado Francis Hutchenson (1694-1746): a melhor ação é a que
proporciona a maior felicidade para o maior número de pessoas”. Portanto, as ações
humanas deviam ser julgadas em termos de suas conseqüências e boas conseqüências eram
as que davam prazer, más conseqüências as que causavam dor. O lema era: maximizar o
prazer e minimizar a dor. O movimento liderado por Bentham se caracterizou por estipular
regras para que houvesse uma justa repartição dos bens de mercado, assim como por uma
“pedagogia” onde os comportamentos humanos deviam ser “regulados” segundo um
sistema que estabelecia punições de acordo com a gravidade do delito, julgando em
conformidade com o dano causado ao seu valor máximo, a utilidade. Visava uma economia
na relação prazer/dor: “a dor produzida pelos castigos é como um capital na expectativa do
lucro”
9
.
Este sistema apresenta uma lógica paradoxal: democraticamente visa estender o
“bem”, ou a felicidade, para o maior número de pessoas e, simultaneamente, preconiza
dispositivos de vigilância máxima, encampando em seu ideário um total controle do
homem pelo Estado. A extensa obra de Bentham é definida por Jacques-Alain Miller, que
realça sua face delirante, megalômana, com o seguinte comentário: o utilitarismo, que
aparece na esfera política como radicalismo, variante do liberalismo, é de fato uma
concepção totalitária do mundo, aspirando à maximização perpétua e universal. Esse
totalitarismo é precisamente o que lhe permite aparecer como uma filantropia: a expansão
do seu império, com efeito, só tem por efeito a espécie humana”
10
.
Um bom e ilustrativo exemplo deste Estado totalitário e despótico é a invenção do
Panóptico. Trata-se de uma Instituição prisional construída de forma circular, com a
finalidade de abrigar criminosos, doentes mentais e escolares e mantê-los sob total controle
o que sugere o lema: “o preço da liberdade é a eterna vigilância” proporcionada pela
arquitetura e pelo posicionamento dos guardas em pontos estratégicos, de onde poderiam
observar tudo sem serem vistos. E, simultaneamente, a cena panóptica apresenta também a
9
MILLER, J. A. (1996) - Matemas I, pag. 32
10
MILLER, J. A. (1996) - Matemas I, pag. 92
11
utilidade de ser um espetáculo oferecido aos homens que não pertençam a estas categorias,
com o objetivo de ser a “Escola da Humanidade”.
11
Ao tentar colocar à prova sua máxima “a maior felicidade para o maior numero de
pessoas”, Bentham investiga meticulosamente o conceito de “Felicidade”, para concluir
podemos dizer, juntamente com Freud, em “O mal estar na civilização”- que se trata de
uma ficção. Ele atribui a este termo, “Ficções”, do latim fictitious, diz Lacan, não como se
poderia supor apressadamente, o enganoso ou o ilusório: seu significado é oposto ao real e
se aproxima de sua (de Lacan) clássica definição: “toda verdade tem uma estrutura de
ficção”. Não resta dúvida que a ficção “Felicidade” possui para ele um estatuto de verdade.
Tal ficção está assegurada pelo laço da linguagem com o desejo, que se sustenta nos
“interesses” do sujeito.
O fato é que Bentham descortina o valor de uso da linguagem articulando-a com a
Lei, atribuindo-lhe uma potência criadora ex nihilo, onde todo e qualquer recurso ao natural
ou ao divino encontra-se forcluído. Ali, onde até mesmo Descartes (1596-1650), ao lançar
as bases da ciência moderna com o famoso cogito vacilou, e, finalmente concluiu, através
da dúvida metódica, que a ciência necessita de uma metafísica que lhe sustentação, sem
a qual ela se torna um saber sem qualquer garantia, Bentham inventa a Teoria das
ficções”.
Tal teoria encontra-se distribuída em quase toda a sua obra e, reunindo seus
fragmentos, depreende-se que elas são a própria base de sustentação do discurso, sem as
quais se torna impossível exprimir-se, a linguagem é sempre uma referência: “não há
discurso que não reconheça entidades”
12
. Existem dois tipos de entidades: as que os
sentidos testemunham os corpos, de reconhecimento imediato, e as que são inferidas
através do raciocínio incorpóreas, de conhecimento imediato. Sejam elas sensíveis ou
dedutíveis, ao nomeá-las entende-se que elas existem, realmente. A própria linguagem se
encadeia neste jogo entre o real e o irreal, substantivos sem substância. mais nomes
do que coisas. Fala-se do que não existe, mas é preciso discernir no campo do que é irreal,
11
“Tudo deve ser aproveitado, não deixando nenhum resto”. A elucubração benthamniana revoga
peremptoriamente a teoria do Direito Natural, inclusive em sua versão jusnaturalista, a qual supõe a existência
de um contrato original; desta nova posição se conclui que tal contrato vale unicamente por proporcionar
vantagens à sociedade. Esta é a saída de um mundo baseado em ficção para um mundo de fato, onde a
experiência (o real, no caso, no sentido da realidade vivida) pode oferecer a garantia de que uma ação ou
Instituição é útil ou não.
12
MILLER, J. A. (1996) - Matemas I, pag. 48
12
o fabuloso, do fictício. fabulações que nenhum discurso organiza as quais perdem seu
valor de uso, mas, existem outras que também não existem, porém são exigências
gramaticais do próprio discurso, mesmo que não se pretenda atribuir a elas uma existência,
são fábulas necessárias, imprescindíveis para a expressão, são “... entidades irreais, mas
indispensáveis”
13
. Estas entidades são extremamente poderosas, uma vez que se confundem
com o fabuloso e agem, produzindo efeitos de sugestão, de crenças, adquirindo um “ser de
verdade”, uma superstição de que “a todo termo corresponde uma coisa”
14
.
As ficções, portanto, atuam; não se deve pretender dissipá-las, pois são necessárias,
porém é preciso dominá-las. A Lei, pode-se concluir, é a forma de restringi-las. Bentham
desenvolve esta teoria ao modo de uma investigação lingüística que fundamenta outra, a
que realmente interessa, a da legislação, ou seja, a de que a linguagem tem o poder de
legislar: “falar é legislar, fazer agir coisas que não existem”
15
.
Ao percorrer a trajetória da teoria das ficções em Bentham, depreende-se que esta
açambarca entidades lingüísticas que contornam um real difícil de ser nomeado, o que lhes
empresta um caráter fictício. Isto permite aproximar esta investigação do que
denominamos, com Lacan, “a ordem simbólica”.
Hans Kelsen (1881–1973), grande jurista austríaco, acompanhou o trajeto deste
termo jurídico desde o Direto Romano até o final de sua vida e sugeriu que as entidades
fictícias seriam “algo equivalente a um mito fundador, um lugar vazio sem referente
semântico”
16
.
São enormes os traços do utilitarismo na atualidade, justificando plenamente a
extensão do “delírio” de Bentham.
13
MILLER, J. A. (1996) - Matemas I, pag.48
14
MILLER, J. A. (1996) - Matemas I, pag.49
15
Ibidem
16
GARCIA, Célio. (2004) - Psicologia jurídica, pag.12
13
As éticas e a Psicanálise
O objetivo maior de resgatar estes “momentos fecundos” das éticas mais marcantes
do passado de nossa civilização até o avançar para a atualidade, deve-se, entre outras
razões que serão expressas no decorrer deste tópico, à expectativa de articulá-las com a
Psicanálise. Qual o legado de Freud e Lacan no que diz respeito à ética? uma ética
própria à Psicanálise? A perversão e a ética, como pensá-las?
Refletir sobre as “condições de possibilidade” da existência da Psicanálise, sua
episteme e, lateralmente, servir-me das éticas em jogo, pareceu um modo útil, um
instrumento para esclarecer alguns conceitos fundamentais para o desenrolar do tema
proposto. Por exemplo, as referências à obra de Bentham, além de veicularem a própria
teoria do autor com suas conseqüências na história, possibilitam uma maior proximidade
com a gênese do pensamento de Lacan sobre a Lingüística, proporcionando um melhor
entendimento do significado que ele atribui ao termo Discurso. É possível dizer que Lacan
valorizou o movimento utilitarista em boa parte do seu ensino, demonstrando o quanto esta
filosofia impregnou o homem moderno, como uma tendência, para o bom ou mau uso. O
bem, além de seu valor de uso, assenta-se sobre um poder. Pode-se dispor dele, partilhá-lo,
criá-lo, roubá-lo. A própria história do pensamento incluindo as religiões, se detém no
quesito da organização e desfrute dos bens.
Em seu último ensino, mais especificamente no Seminário 20 Mais ainda”, de
1972, Lacan estabelece uma articulação entre o Direito e a Psicanálise, pautada pela
questão do usufruto, o que veio a auxiliar na elucidação do conceito de gozo, do qual
podemos extrair a seguinte máxima: “o gozo é aquilo que não serve para nada”.
A importância desta corrente filosófica que Lacan denominou “reversão utilitarista”,
reviravolta esta que colocou a ética em outro patamar, deve-se ao deslocamento de um
referenciamento do homem de uma orientação que vinha até então no sentido do “ideal para
se dirigir ao real”. Foi este movimento, na história das idéias, sedimentado pelas
transformações sociais advindas do que poderíamos definir como um progresso, sua “re-
versão”, que dividiu a ética, grosso modo, em duas: “o bem é a felicidade” e “o bem é o
prazer”; passando de uma ética do fim (a felicidade) para uma ética do móvel (o prazer).
14
A esta nova ética utilitarista é acrescentado o fator político: “não pode haver
satisfação se não houver satisfação para todos”. A felicidade e o prazer tornam-se
progressivamente um direito e o homem passa a se individualizar.
Se em Aristóteles é na dialética do Senhor e do Escravo que se situa o bem, “o
esforço de Bentham instaura-se na dialética da relação da linguagem com o real pra situar o
bem o prazer, do lado do real”
17
. É neste movimento entre ficção e realidade que Freud
vem se instaurar, com a diferença de que, para ele, o prazer é determinado pela ficção. Diz
Lacan: “o fictício, efetivamente, não é por essência o que é enganador, mas, propriamente
falando, o que chamamos de simbólico”
18
.
Os princípios da realidade e do prazer estão dialeticamente atrelados em um ‘eterno
retorno’. A questão do bem se liga aos dois princípios do funcionamento mental (prazer e
realidade), o que necessariamente causa conflitos. A realidade se coloca, diz Lacan, para
que possamos perceber as falsas vias em que o funcionamento do prazer nos envereda. Na
verdade constituímos a realidade com o prazer”
19
. No Seminário 20 – Mais ainda”,
apresentado treze anos depois do Seminário 7 A ética da Psicanálise”, Lacan diz: “a
realidade é abordada com os aparelhos de gozo”. As duas conclusões adquirem uma
importância extra se pensarmos que, a dimensão ética envolve algo mais, está posta além
do que denominamos recalque.
Retomando mais de perto os dois princípios do funcionamento mental, insistindo na
questão do fictício, nunca é demais recordar que, para Freud, o homem, na origem, se
sedimentou na experiência mítica da satisfação (da necessidade), e, o que ele busca, nas
palavras de Lacan, “é sempre o retorno de um signo”, o objeto para sempre perdido, que
ressurge na alucinação. Posteriormente, a fantasia torna-se a atividade psíquica que
substitui e realidade da privação, indestrutível no nível do inconsciente.
A formulação do princípio do prazer se mantém na obra de Freud desde o Projeto
para uma psicologia científica”, escrito em 1895, até o Além do princípio do prazer”, de
1920. No manuscrito do Projeto”, referido acima, ao descrever a experiência de satisfação,
relatando a inequívoca dependência do ser humano dos cuidados do Outro, marca de sua
humanidade, Freud ressalta a função da comunicação que se estabelece como secundária
17
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética na Psicanálise, pag.22
18
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética na Psicanálise, pag.22
19
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética na Psicanálise, pag.274
15
entre o bebê e sua mãe: “o desamparo inicial nos seres humanos é a fonte primordial de
todos os motivos morais”. Conclui-se que a ética, a conduta moral do homem, está
firmemente assentada sobre o “interesse” que reivindica e teme perder, o amor do Outro,
imprescindível. É este o objeto erótico, fonte de prazer que vem nomear e oferecer sua
marca, seu “interesse particularizado”, escreve Lacan, “nem que seja por intermédio de
suas próprias falhas”
20
. À família, prossegue aproximadamente nestes termos, como resíduo
da sociedade, cabe ultrapassar a mera satisfação da necessidade alçando para seus filhos a
função de ‘vetor de uma transmissão’ que molda a própria constituição subjetiva da criança.
No Seminário 7 A ética na Psicanáliselê-se: “certamente o prazer se articula
sobre os pressupostos de uma satisfação, e é impelido para uma falta que é da ordem da
necessidade, que o sujeito se enreda em suas malhas, até fazer com que surja uma
percepção idêntica àquela que deu satisfação pela primeira vez. A mais crua referência ao
princípio da realidade indica que se encontra a satisfação nos caminhos que a
proporcionaram”. Tal satisfação da necessidade é retomada como prazer da repetição,
tornando-se compulsão à repetição. Eterno retorno.
A questão moral que divide o homem entre o “seu bem” e o “bem do outro”
(Outro), leia-se desejo do Outro, caminha entre o amor (Eros) e a necessidade (Ananke).
20
LACAN, J. (2003) - Outros Escritos: Nota sobre a criança, pag.369
16
Freud e a Ética
A reflexão freudiana sobra a ética elimina qualquer possibilidade de uma natureza
moral intrínseca ao homem, de uma bondade ou mesmo de uma harmonia a ser
reencontrada. O ponto de inflexão da dimensão ética em Freud é justamente a
desmistificação da perspectiva aristotélica do “Soberano Bem” e mesmo do bem como tal e
se encaminha decididamente para o registro do utilitarismo: “as necessidades do homem se
alojam no útil”
21
, o qual, certamente ultrapassa. Esta frase de Lacan contém, digamos, o
óbvio, porém, ele acrescenta, além do valor de uso “há sua utilização de gozo”
22
. O que
pode se resumir assim: “o sujeito pode dele dispor”
23
. Estamos diante da disposição dos
bens, ou seja, de um poder; adquire-se o direito de “... privar os outros de seus bens”
24
,
fazer o mal. Do “Soberano Bem” nos rebaixamos para a economia dos bens: “a felicidade
no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível constitui um problema da
economia da libido”
25
. O sujeito busca o bem através de uma negociação que envolve um
cálculo, trata-se de um álibi.
Esta elucubração lacaniana encaminha, a meu ver, a questão do mal em Freud. No
início do artigo que seria o prefácio de A filosofia na alcova”, de Sade e que foi vetado
pelo editor, que, posteriormente foi publicado na revista”Critique”, em abril de 1963,
denominado Kant com Sade”, Lacan escreve que Freud não poderia ter enunciado seu
“princípio do prazer” sem ter que se preocupar em marcar o que o distingue de sua função
na ética tradicional, e, sem ter que contestar dois milênios de uma pré-ordenação do homem
para seu bem, se não estivesse em curso a “ascensão insinuante ao longo do século XIX do
tema da felicidade no mal”, como foi dito anteriormente.
Ao pesquisar sua metapsicologia verifica-se que, desde o início, ela se volta para
uma negação radical do bem. Diz Freud: “mesmo antes de o ego surgir, as linhas de
desenvolvimento, tendências e reações que posteriormente apresentará, estão
estabelecidas para ele”
26
. É o que Lacan denominava “a primeira orientação
27
, o primeiro
21
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética na Psicanálise, pag.279
22
Ibidem
23
Ibidem
24
Ibidem
25
FREUD, S. (1976) - O mal-estar na civilização, pag.103
26
FREUD, S. (1976) - Análise terminável e interminável, pag.274
17
assento da orientação subjetiva que, chamaremos, no caso, a escolha da neurose”
28
. Essa
primeira orientação “... regulará doravante toda função do princípio do prazer”
29
, princípio
este, incompatível com a idéia do bem. A dialética dos dois princípios do funcionamento
mental, assim como a oposição do processo primário versus processo secundário situam o
homem no âmago de um conflito, o qual necessariamente deságua o pensamento e a ação
humanos em uma dimensão ética.
O mito do Pai da horda primitiva, de Totem e tabu” (1913), considerado por Lacan
o único mito moderno criado por nossa civilização, é cunhado sobre um Pai tirânico,
portanto sem Lei, que se é obrigado a matar para que se possa dividir os bens (as mulheres)
implica o mal, o crime. Só através do assassinato do Pai a ordem e a Lei puderam ser
instauradas, e a culpa – sentimento moral – passa a ser seu legado. Esse mito evoca
claramente o problema do mal articulado ao Pai e é possível recolher no pensamento de
autores religiosos dos séculos XVI e XVII, por exemplo, Lutero, “o caráter radicalmente
mau da relação que o homem entretém com o homem”, mal este que é “a causa da paixão
humana mais fundamental”
30
.
O dizer de Lacan aos seus ouvintes do Seminário 7” sobre Moisés e o
monoteísmo”, enfatiza a importância que lhe deu Freud, que a ele dedicou dez anos de sua
vida; considera também que este é praticamente seu último livro, exceção feita ao artigo “A
divisão do Ego no processo de defesa”. O texto está em sintonia com o resto de sua obra e,
a meu ver, é possível sentir pulsar o próprio Freud com suas questões sobre a vida, a
religião de seus pais e o próprio fato de ser ele um judeu. Sua leitura ecoa como um
testamento, construção derradeira do pensamento do grande homem que foi. É o pai se
dirigindo a seus filhos, ousadamente; ele sabe da necessidade de grandes homens para guiar
as massas. A própria vitalidade da Psicanálise no mundo testemunha a estatura deste
Moisés moderno.
27
Esta denominação de Lacan se refere ao que Freud considerava as peculiaridades psicológicas de famílias,
raças, nações, “a herança arcaica”. Ela é anterior ao recalcamento. Freud retrocede ainda mais esta noção até
reduzir o aparelho psíquico, em última instância, ao puro embate das pulsões ao introduzir a pulsão de morte.
Para Lacan, a questão açambarca tudo o que diz Freud no sentido do discurso universal, o Outro, incluindo o
discurso que precede o nascimento da criança.
28
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética na Psicanálise, pag.72
29
Ibidem
30
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética na Psicanálise, pag.123
18
Ao comentar esta obra, Lacan enfatiza que Freud a conduz de forma magistral em
termos de uma construção mítica sobre a origem da moral, superando Totem e tabu”.
Incluindo o papel crucial do grande homem para a formação das massas, o assassinato do
pai (que representa a morte de Deus) e os demais ingredientes indispensáveis aos mitos.
Principalmente suas contradições as quais, diz Lacan, ele nem se importa em justificar. Ele
vai em frente.
A função do pai, sublimatória, é desenvolvida neste texto em um momento histórico
marcado pelo fim do matriarcado, deslocando a ordem social da mãe (certa) para o pai
(incerto). Uma revolução se instaura no sistema jurídico vigente à época. O principal feito
dessa passagem, da mãe (real) para o pai (simbólico), um lugar demarcado a partir de uma
crença, a crença no pai, é o acesso à espiritualidade: “um passo na apreensão da realidade
como tal”
31
. Este passo, do qual a Religião é um exemplo, tem a força de uma regulação do
gozo: assinala uma passagem da “sensualidade para a intelectualidade”.
32
Ao retornar ao assassinato do pai, no caso, Moisés, replicado neste texto, ao invés
do gozo ser liberado a interdição é reforçada. No Seminário 7 A ética da Psicanálise”,
Lacan nos lembra que Freud diz o mesmo que São Paulo: a razão de sermos infelizes é que
matamos o pai. Todo gozo acaba por transformar-se em uma dívida. O gozo usufruído será
contabilizado como uma negatividade, um “menos” que será cobrado, é a Lei com sua
potência punitiva, cuja sede é o Superego. Deus (Pai) está morto, mas o gozo, mais do que
nunca, é proibido.
31
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética da Psicanálise, pag.222
32
FREUD, S. (1976) - Obras Completas – Moisés e o Monoteísmo, pag. 136 – Vol. XXIII
19
Freud e o amor ao próximo
A questão do mal em Freud encontra seu ponto máximo no texto O mal estar na
civilização”, especialmente quando ele se e a questionar o mandamento: “amarás a teu
próximo como a ti mesmo”. Após intenso debate sobre o tema ele nos escreve:
“... os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que no
máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas
entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas
um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os
testa a satisfazer sobre ele sua agressividade, a explorar sua capacidade de
trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem seu consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e
matá-lo”(Freud, 1976, p.133).
Alguns parágrafos adiante:
“em conseqüência dessa mútua agressividade primária dos seres humanos, a
sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração.
O interesse pelo trabalho comum não a manteria unida; as paixões
instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de
utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos
agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por
formações reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a
incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em
sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí também, o mandamento
ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente
justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza
original do homem”(Freud, 1976, p.134).
Em seguida ele nos fala dos esforços infrutíferos a que a civilização se dedica e
prossegue: “espera-se impedir excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma,
supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos, no entanto, a lei não é capaz
de deitar a mão sobre manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana”.
Ao discutir a ideologia comunista, entre vários comentários certeiros ele diz: “a
agressividade não foi criada pela propriedade”. No final de uma nota de rodapé ele
escreve: “a natureza, por dotar os indivíduos com atributos físicos e capacidades mentais
extremamente desiguais, introduziu injustiças contra as quais não há remédio”. Alguns
20
parágrafos à frente ele comenta: “a liberdade completa da vida sexual ‘aboliria’ a família,
célula germinal da civilização”, e, não poderíamos, “é verdade, prever com facilidade quais
os novos caminhos que o desenvolvimento da civilização tomaria; uma coisa, porém,
podemos esperar; é que, nesse caso, essa característica indestrutível da natureza humana (a
agressividade) seguirá a civilização”.
Para melhor ilustrar essa inclinação do homem à agressão, “sem a qual eles não se
sentem confortáveis”, ele ressalta uma característica usual nos agrupamentos humanos que
se manifesta “sob a forma de hostilidade contra intrusos”, o que tem a “utilidade” de manter
coeso o grupo de origem. “É sempre possível unir um considerável numero de pessoas no
amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua
agressividade”. Explicitando melhor o que ele denomina “fenômeno”, refere-se a
comunidades vizinhas que se relacionam sob vários aspectos, mas que, no entanto, “se
empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras. Esta manifestação que
facilita a coesão do grupo e, simultaneamente torna-se o escoadouro de uma hostilidade até
certo ponto inofensiva, Freud denominou “narcisismo das pequenas diferenças”. Sabemos
que em um extremo, onde tal hostilidade pode redundar; numa guerra.
Ao referir-se ao homem primitivo ele nos lembra que as restrições às pulsões eram,
sem dúvida, menores, mas, o privilégio de uma liberdade maior só era atribuído ao chefe da
família primeva, os demais membros viviam em total servidão. E, os povos primitivos que
ainda sobrevivem, as pesquisas demonstram que sua vida instintiva está sujeita a inúmeras
restrições, muitas delas mais severas do que as nossas.
Ao trabalhar este artigo, especialmente em torno do “amor ao próximo”, Lacan tem
a intenção de ultrapassar o sentido que Freud lhe dá, partindo do utilitarismo em seu valor
de uso, para a satisfação da necessidade, ao estabelecer uma diferença entre a benemerência
e o amor. Na benemerência, ou digamos, beneficência, eu posso ceder algo que possuo para
o próximo e “consolar-me” da minha “bondade culposa”com meu altruísmo, “que se situa
no nível do útil”, agora, o amor, este já é outra coisa, “o amor é dar o que não se tem”. Este
“altruísmo” me é “útil”, pois “me afasta do mal que desejo e que deseja o meu próximo”
33
.
Em dado momento de seu ensino, Lacan diz que o trabalho analítico, à medida que
avança nos aproxima da nossa própria maldade. É de se pensar na força da transferência
33
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética da Psicanálise, pag.228
21
negativa que atravessa certas análises justamente quando a “maldade” se sente acossada
pelo analista. Há também um momento de sua obra em que Lacan diz que a personalidade é
a paranóia e, nos Escritos” podemos vê-lo referindo-se ao trabalho analítico como
“paranóia dirigida”
34
.
Depois dessa digressão, retomo as questões levantadas por Lacan em torno do
desenvolvimento de Freud sobre o “amor ao próximo”. A posição de Freud recai totalmente
contra o que Lacan chama de “o engodo dos moralistas”, que é o de nos fazer crer no
paradoxo de que o prazer é um bem. Este contorcionismo lógico e tendencioso é a única
ferramenta que nos permite compreender o “hedonismo na moral de uma certa tradição
filosófica”
35
. O que se critica, não é que tal corrente tenha apontado os benefícios do prazer,
diz Lacan, mas em não se dar ao trabalho de dizer em que consiste este bem.
Freud rebate o mandamento argumentando que o próximo é um estranho,
provavelmente maldoso e pode não ser digno do bem precioso de seu amor. Mas ele não se
esquece do que merece ser amado ao invocar o dever de amar o filho de um amigo, pois, se
desse filho seu amigo for privado, ele deverá estar solidário com sua dor. Não vida
que um altruísmo no bem, este sim o verdadeiro bem, não aquele altruísmo que se aloja
no útil, de onde me sirvo para me afastar do mal que me habita e que talvez possa se
condensar no que pode estar impregnado na frase que a todo o momento enunciamos: “unir
o útil ao agradável”. Eterna negociação. Seria este um princípio de explicação do paradoxo
do hedonismo na Ética?
Em sua argumentação, Lacan assinala: é um fato da experiência “o que quero é o
bem dos outros à imagem do meu. Isso não vale grande coisa [...] Isso se degrada tão rápido
[...] – contanto que ele dependa de meu esforço”
36
.
Amar ao próximo em sua verdadeira acepção seria o enfrentamento do seu gozo
maligno, este sim, diz Lacan, é o problema que se coloca para o meu amor. Ao situar as
coisas desta forma, estabelece uma associação imediata com os místicos, amar ao próximo
em seu extremo seria penetrar em sua miséria, na intimidade de seu gozo, gozar com seu
gozo, exaltando suas impurezas, elevando-as à dignidade da “Coisa”, digamos. Está para
além do princípio do prazer, êxtase místico que transforma o abjeto em sublime, partilha-se
34
LACAN, J. (2007) - Seminário 23: O sinthoma, pag.52 (2007)
35
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética da Psicanálise, pag.227
36
LACAN, J. (1998) - Seminário 7: A ética da Psicanálise, pag.229
22
o gozo com Deus através de atos os mais repulsivos. Aproximamo-nos de um erotismo que
é eludido, de uma autêntica perversão da libido. Inadvertidamente mais uma vez, nos
defrontamos com o notável marquês que criou, digamos, uma “Ética do gozo”.
Freud, diz Lacan, escreveu O mal estar na civilizaçãopara nos dizer que Deus
está morto e, ao contrário de Nietzche, que o gozo continua proibido e, principalmente, para
sabermos que o gozo é um mal, justamente porque implica o mal do próximo a quem se
deve amar como a si mesmo.
Sua tese, poder-se-ia afirmar sem sobressaltos, é a de que tal mandamento deve ser
lido pelo avesso, toda a construção das Éticas na história do pensamento não passa de uma
formação reativa, das mais sensíveis e necessárias, voltadas para um ideal. É importante
enfatizar que esse processo defensivo ultrapassa o que se pode apressadamente concluir
como fruto de uma coerção social. Se assim fosse, quem sabe a humanidade teria sido
capaz de compatibilizar a organização dos desejos às necessidades.
Este ideal acossado pelos homens teve seu ponto de basta na invenção freudiana,
encaminhada pela corrente utilitarista. Fruto de uma experiência clínica a ética freudiana
está mais próxima do enfrentamento “das partes do inferno” que nos legou Sade.
23
CAPÍTULO II - LACAN
Lacan e a perversão
Para introduzir as questões de Lacan sobre a perversão recorrerei a uma “certa
cronologia” uma vez que as associações nem sempre nos obedecem (são até certo ponto
livres) sobre este assunto, até atingir seu ápice que pode ser localizado em Kant com
Sade”, texto em que me deterei mais adiante. Esta é uma tentativa de organizar a
progressão do pensamento de Lacan sobre o tema. Existem também importantes pontuações
sobre esta estrutura em momentos posteriores de seu ensino tais como: os seminários De
um Outro ao outro”, (16) Avesso da Psicanálise”, (17) O sinthoma”, (23). Também nos
Escritose Outros escritos”, são inúmeras as menções ao tema. Não terei, certamente,
condições de esgotar o assunto mesmo porque, entre outras limitações, fugiria do escopo
deste trabalho.
Para situar a questão, é bom que se diga que houve um cuidado em estabelecer a
diferença entre a neurose e a perversão, levando-se em conta que, como psiquiatra de uma
época em que a formação clínica era bastante sólida, especialmente na França e na
Alemanha, tendo como mestre Clérambault (1872-1934), autor de uma tese sobre paranóia,
Lacan estabeleceu uma diferença radical entre as três estruturas clínicas (neurose, psicose e
perversão). Logicamente, é possível encontrar nas três estruturas traços de uma ou de outra,
o que pode dificultar o diagnóstico, mas não abala o caráter estático da estrutura como tal.
No Seminário 4 A relação de objeto(1956/57), Lacan nos adverte para que não
tomemos a frase de Freud, “a neurose é o negativo da perversão”, no sentido habitual e
simplificador de que o que está oculto no inconsciente do neurótico está a céu aberto na
perversão. Para que possamos melhor entender esta fórmula, repetida à exaustão, ele
retoma o artigo “Uma criança é espancada”, de 1919. É significativo, diz Lacan, que Freud
ao seu texto o título de uma das frases repetidas por seus clientes a propósito de suas
fantasias sadomasoquistas: “Bate-se numa criança”, sem atribuir a elas uma conotação
própria a um quadro clínico. Toda a construção das três etapas da fantasia é feita por Freud,
uma vez que é com muita dificuldade e acanhamento, até mesmo certa aversão, que elas
são finalmente reveladas. Os sentimentos de culpa são evidentes e acompanham todo o
24
desvelamento das mesmas, o que é um sinal que marca um limite: “não é exatamente da
mesma ordem se excitar mentalmente com a fantasia e falar dela
37
.
Após reconstruir todas as fases da fantasia, chega-se à terceira que é a última:
“Bate-se numa criança”; neste momento, o sujeito está reduzido a ser o expectador, ou o
olho que reflete a cena em uma tela. Os significantes encontrados a partir da reconstituição
que Freud faz se resumem a: “meu pai, batendo numa criança que eu odeio, me manifesta
que me ama”, ou qualquer outra forma que valorize um dos acentos da situação, diz Lacan.
O que está excluído na neurose e que se manifesta em seus sintomas está presente na
fantasia. O que sobra dela, seu mínimo denominador comum, resta dessubjetivado e
enigmático, sua carga sadomasoquista não é assumida pelo sujeito. Os elementos estão
postos em uma cena, mas a significação está perdida. O significante puro, impessoal “Bate-
se numa criança” está mantido, mas seu sujeito está oculto, esvaziado de sentido. Trata-se,
no dizer de Lacan, de uma espécie de objetivização dos significantes da situação. A história
do sujeito no nível da perversão está preservada e congelada na cena fantasmática, “mas o é
sob a forma de um puro significante”
38
.
O neurótico, seja ele obsessivo, histérico ou fóbico é, segundo Lacan, aquele
que identifica a falta do Outro com sua demanda: Che vuoi? (o que quer você?)
39
; é por isso
que o desejo é sempre o desejo do Outro, que, oracular, Legifera. É nesta “dimensão da
paixão” que ele vive. A demanda do Outro, diz Lacan, assume a função de objeto em sua
fantasia. No fóbico, o objeto (da angústia) é mais fácil de identificar. No histérico, o desejo
se mantém insatisfeito (pela recusa de se posicionar como objeto); no obsessivo, “na
medida em que ele nega o desejo do Outro, formando sua fantasia para acentuar a
impossibilidade do esvaecimento do sujeito”
40
(pelo temor de um prazer excessivo), o
resultado é um só: “os dois eludem ao meio o princípio do prazer”, diz Lacan.
O perverso, à medida que privilegia o gozo em detrimento do desejo, coloca o
objeto da fantasia no lugar do Outro, fazendo-se “instrumento do gozo do Outro”
41
. A
semelhança que se pode estabelecer entre as duas estruturas é a de que as fantasias de uma
e de outra se relacionam ao gozo, porém, seu estatuto é diferente. Na neurose, a fantasia se
37
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag. 116
38
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.121
39
“Sou no lugar de onde se vocifera que o Universo é uma falha na pureza do Não-Ser”
40
LACAN, J. (1998) - Escritos, pag.838
41
Ibidem
25
constitui por uma cena inconsciente, que dificilmente será atuada. Trata-se de um esforço
de elaboração de um gozo interditado que sustenta o desejo, um trabalho de mediação que
não existe na perversão entre o desejo e o gozo. A perversão, definida por Freud como
uma posição subjetiva e não propriamente em relação às manifestações da força bruta de
suas pulsões, pode, de fato, pôr em ato na forma de condutas, a cena fantasmática. “A
castração significa que o gozo seja recusado para que possa ser atingido na escala invertida
da Lei do desejo”
42
.
Para o perverso, para quem a castração é objeto da Verleugnung (denegação), a Lei
é sua transgressão. Ele tenta ser o Outro, possuído por uma fantasia de autonomia de um
saber suposto sobre o Seu gozo. Em sua fantasia, seu parceiro está submisso aos seus
desígnios e ele avança cego, obcecado, sem qualquer alternativa. Oscilando entre a
transgressão e o reconhecimento da Lei, ele se conduz em seus meandros se inscrevendo
nas instituições e bem instalado na realidade.
O neurótico, por seu lado, acede ao desejo seguindo a Lei, o que, segundo Lacan,
são a única e mesma coisa, não existe diferença entre os dois e, a Lei (do desejo) é o desejo
pela mãe e, simultaneamente, é a interdição do incesto. Esta relação do neurótico com a Lei
se distingue por definir sua posição subjetiva como submissa em sua relação ao Outro. Ao
mesmo tempo em que ele se submete a Lei, em que acata a castração, se defende de sua
falta-a-Ser, ele o quer ser um (A) mais. Para manter sua diferença (como forma de negar
a castração) ele crê que o Outro demanda sua castração e tudo o que ele não quer “é
sacrificar sua castração ao gozo do Outro, deixando-o servir-se dela
43
. Lacan “finaliza”
este raciocínio que estou resumindo e “vulgarizando”: tudo bem que o Outro não exista,
mas, se existisse, gozaria com ela (com a castração).
Retomando a questão pela via da fantasia nas duas estruturas temos que, na neurose,
devemos procurá-la, uma vez que seus desdobramentos repercutem na formação dos
sintomas, nos quais se apresentam através de significantes que escutamos no decorrer do
trabalho analítico, dirigidos ao Outro. O neurótico os revela veladamente e ao mesmo
tempo nos engana com eles. Sua função, diferentemente do que ocorre na perversão, é de
apaziguar a angústia uma vez que, por desviar-se do objeto, a fantasia não se realiza.
42
LACAN, J. (1998) - Escritos, pag.841
43
LACAN, J. (1998) – Escritos: Subversão do sujeito, pag.841
26
Na perversão, a fantasia se caracteriza pela subsistência de um resto inassimilável,
separado dos demais elementos da situação que, no entanto, mantém o laço do sujeito ao
Outro. A estrutura da cena se conserva, “ao passo que se perdem os significantes da relação
intersubjetiva”
44
.
“O central da fantasia, a história do sujeito em relação à perversão, se mantém
então sob a forma de um signo”
45
. A cena da fantasia se “congela”, se estanca sob o
impacto de uma lembrança cúmplice, tornando-a compacta, investindo toda sua carga
libidinal. A imagem supervalorizada deste momento extrai seu valor de alguma coisa do
inconsciente.
Os sintomas, tanto na perversão quanto na neurose, auxiliam a descarga do material
recalcado e “o que resta é mais bem assimilado pelo sujeito”
46
. A diferença que se pode
certamente acentuar é que na neurose, o sintoma é “dessexualizado” e a descarga é
dificultada pela condição mesma da operação, sua desmobilização; na perversão, o
elemento conectado à sexualidade da infância do sujeito se descarrega à maneira de um
orgasmo sexual.
No “Seminário 4 – A relação de objeto”, de 1957, Lacan destaca outra característica
própria ao perverso: ele se exprime por contrastes e alusões. O ato perverso, a cena que ele
desencadeia, é um recado passado ao Outro, metonimicamente. Sua mensagem desafiadora
reivindica um intérprete à sua altura. Raramente eles procuram uma análise. Seu recado tem
endereço certo: “se não apreenderem em toda sua generalidade esta noção fundamental da
metonímia, é inconcebível que cheguem a uma noção do que pode querer dizer a perversão
no imaginário”. “... lidamos na perversão com uma conduta significante indicando um
significante que está longe na cadeia [...] na medida em que lhe está ligado por um
significante necessário”
47
.
Em contrapartida, na neurose os sintomas são constituídos por significantes
sustentados por um significante contínuo, “uma metáfora perpétua” (Lacan, 1957). Dora
expressa em seus sonhos sua questão sobre o que é ser uma mulher. Sua neurose, diz
Lacan, se expressa “como uma metáfora”. A falsa gravidez que ela desenvolve após a
44
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.207
45
Ibidem
46
47
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.148
27
ruptura com o Sr. K, é uma tentativa de permanecer ligada a ele, o que expressa “a
equivalência de uma espécie de copulação que se traduz na ordem do simbólico de uma
maneira puramente metafórica”
48
. O objetivo desta fantasia de gravidez é, por seu
intermédio, reunir-se à lei das trocas simbólica “em relação com o homem a quem se unir
ou de quem se desunir”
49
. O Sr. K, como o “autor” desta pseudociese, seria o agente de
uma possível entrada de Dora no que Levi-Strauss, em seu livro As estruturas elementares
de parentesco”, descreveu como a troca de laços de aliança. Ela poderia ou não ter acesso a
esta “instituição da troca e da leique constitui a sociedade (através do casamento). Esta
fantasia sustenta seu desejo de cura: ela teria renunciado ao falo paterno e
“trocado/substituído” pelo Sr. K. A gravidez constituiria a promessa, e o nascimento de um
filho, a prova definitiva de sua entrada na ordem das trocas simbólicas.
O neurótico inventa o amor, como tão bem definiu Freud, unindo duas correntes
opostas da vida erótica, a ternura e a sexualidade. Em que pese a tendência à degradação da
vida amorosa - Freud demonstra a divisão subjetiva do sujeito masculino quanto à escolha
de objeto - nem de longe ela se equipara ao que acontece na perversão. Nesta, mais do que
uma divisão, se instala uma abolição da corrente terna. Na busca pelo gozo o perverso
desvia-se do desejo do Outro. Se o parceiro consente, a satisfação não ocorre. Não o par
complementar; ao sádico não corresponde o masoquista. É através da queixa da histérica
que apreendemos o seu universo (do perverso). Ela recalca sua cumplicidade com o
estratagema de crer no discurso perverso, imaginando-se perversa. A mulher se submete à
fantasia perversa do homem.
O neurótico apóia-se no perverso acreditando que através de seu discurso e de suas
práticas ele poderá “apimentar” sua vida sexual e abolir suas inibições, positivando-as. A
parte sacrificada de sua sexualidade no altar da ternura almeja o gozo, confundindo desejo
com demanda do Outro. Esta é a parceria de um agenciamento de sinais trocados que
independe de haver ou não o par real. Faz parte da estrutura da neurose, “um laço de
implicação recíproca e necessária”
50
.
A questão sobre o que quer uma mulher permanece aberta tanto em Freud como em
Lacan, mas para o perverso, esta é uma questão fechada. Ele “sabe”; denega qualquer
48
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.149
49
Ibidem
50
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.284
28
acesso da mulher a um gozo próprio, dedicando-se a comprovar sua máxima por intermédio
de suas relações com os dois sexos: não outro gozo senão o fálico. “As mulheres sabem
que outro gozo, suplementar e irredutível ao gozo fálico”
51
. Esta é a causa da pequena
incidência da perversão na mulher, assunto que será debatido adiante. Pode-se deduzir que
é esta negação de um outro gozo que não o fálico, que implica um desmentido da
feminilidade, do Outro sexo, da castração, o que levará Lacan a dizer que o homossexual
(masculino) é fora do sexo. Esta é a debilidade própria ao sexo masculino rumo à
perversão. O assunto será retomado proximamente no tocante à abordagem do prefácio
Kant com Sade”. Como mestre de seu discurso, que comanda sua vida erótica ao sabor de
seu gosto, ele denega a disjunção entre o saber e o gozar. Ele crê que sabe.
51
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.284
29
Cronologia de uma teorização da perversão em Lacan
Ao acompanhar alguns importantes textos de Lacan, podemos nos aperceber de seu
interesse pelo estatuto da perversão. Existem dois “picos”, momentos fecundos em sua obra
sobre este assunto: O Seminário 4 A relação de objeto”, de 1956/57, onde seu
pensamento segue Freud mais de perto, embora com seu próprio estilo, recorrendo a rios
psicanalistas de seu tempo Melanie Klein e Winnicott entre os mais importantes e
Kant com Sade”, de 1963, onde ele definitivamente constrói um modo próprio de enfrentar
a questão. É instigante acompanhar este trajeto porque, além de elucidar o tema, torna
possível acompanhar a gênese do que será teorizado de maneira desabrida posteriormente.
Primeiramente, recorro a duas citações: a primeira de 1943 e a outra de 1953, por
enfatizarem um aspecto que ganha força no desenvolvimento da teoria das perversões em
Lacan. “Não é preciso salientar que uma teoria coerente da fase narcísica esclarece a
realidade da ambivalência própria das ‘pulsões parciais’ da escopofilia, do
sadomasoquismo e da homossexualidade, assim como o formalismo estereotipado e
cerimonial da agressividade que nele se manifesta: visamos aqui o aspecto muito pouco
‘reconhecido’ da apreensão do outro no exercício de algumas dessas perversões”
52
.
“Negligencia-se mais facilmente, porém, a dominância que se marca da relação narcísica,
isto é, de uma segunda alienação através da qual se inscreve no sujeito, com a perfeita
ambivalência da posição em que ele se identifica ao par perverso, o desdobramento interno
de sua existência e sua facticidade”
53
.
O que se pretende enfatizar nestas duas citações é o que Lacan situa no centro da
estrutura perversa: a relação anaclítica. Freud escreve em Sobre o narcisismo: uma
introdução (1914), que existem dois tipos de escolha objetal: o tipo anaclítico ou de
ligação e o tipo narcísico. Ao se referir ao tipo narcísico, que se caracteriza por tomar a si
mesmo como o objeto de amor e desejar ser amado mais do que amar, ele escreve:
“descobrimos, de modo especialmente claro em pessoas cujo desenvolvimento libidinal
sofreu alguma perturbação, tais como pervertidos e homossexuais, que em sua escolha
ulterior dos objetos amorosos, elas adotaram como modelo não sua mãe, mas seus próprios
52
LACAN, J. (1998) – Escritos: A agressividade em psicanálise, pag.122
53
LACAN, J. (1998) - Escritos, pag.346/7
30
eus. Procuraram inequivocamente a si mesmas como um objeto amoroso, e exibem um tipo
de escolha objetal que deve ser denominado narcisista. Nessa observação temos o mais
forte dos motivos que nos levaram a adotar a hipótese do narcisismo”
54
. O tipo de escolha
objetal anaclítica, se caracteriza por sua vez, a preferir amar a ser amado, e seria aquele que
é capaz de ter uma verdadeira relação de objeto.
Freud, para evitar equívocos, escreve que os seres humanos não se acham divididos
em dois grupos diferenciados conforme a escolha objetal se coadune com um ou com outro
dos dois tipos de escolha: “presumimos que ambos os tipos de escolha objetal estão abertos
a cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um ou por outro. Dizemos que
um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais ele próprio e a mulher que cuida
dele e ao fazê-lo estamos postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o
qual, em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal”
55
.
Refere-se rapidamente à diferença entre os sexos em relação ao tipo de escolha objetal,
afirmando que as mulheres são mais propensas a apresentar um tipo narcísico de escolha de
objeto, e, os homens são, em geral, mais afinados com uma escolha objetal anaclítica.
Segundo Freud, tal amor se apresenta sob uma supervalorização sexual, herdeira do
narcisismo original da criança, correspondendo assim a uma transferência desse narcisismo
para o objeto sexual, o que, se por um lado propicia uma escolha objetal verdadeira, pode
ocasionar o empobrecimento do ego em favor do objeto amoroso. Lacan destaca a forma
paradoxal e até mesmo singular com que Freud define os tipos de escolha objetal. No
pequeno artigo Tipos libidinais(1931), ele define o tipo erótico, o mesmo que em 1914
ele denominou tipo anaclítico, “cujo principal interesse – a parte relativamente maior de sua
libido está voltado para o amor. Amar, mas acima de tudo ser amado é a coisa mais
importante para eles. o dominados pelo temor da perda do amor e acham-se, portanto,
especialmente dependentes de outros que podem tirar seu amor deles”
56
. Por outro lado, ao
referir-se ao tipo narcísico, ele escreve:
“seu ego possui uma grande quantidade de agressividade à sua disposição, a
qual também se manifesta na presteza à atividade. Em sua vida erótica, o
amar é preferido ao ser amado. As pessoas pertencentes a esse tipo
54
FREUD, S. (1976) - Obras completas, pag.104 – vol. XIV
55
FREUD, S. (1976) - Obras completas, pag.105 – vol. XIV
56
FREUD, S. (1976) - Obras completas, pag.252 – vol.XXI
31
impressionam os outros como ‘personalidades’; são especialmente
apropriadas para atuarem como apoio para outras, a assumirem o papel de
líderes e a darem um novo estímulo ao desenvolvimento cultural ou a
danificarem o estado de coisas estabelecido”
57
.
É possível perceber por estas duas citações a ambigüidade e até mesmo a inversão
dos dois tipos de relação objetal.
“Ele é, curiosamente, levado a falar, a propósito da relação anaclítica, de
uma necessidade de amor. Inversamente e de modo muito paradoxal, a
narcísica nos surge, de súbito, sob uma luz surpreendente. Com efeito, um
elemento de atividade parece inerente ao comportamento muito especial do
narcísico. Este parece ativo na medida em que, até certo ponto sempre
desconhece o outro. É exatamente o contrário da necessidade de amar com
que Freud o reveste, e que lhe atribui, o que faz dele de certa forma o lugar
natural daquilo que, num outro vocabulário, chamaríamos de oblativo, o
que só pode desconcertar”
58
.
Lacan, apoiando-se na inversão freudiana, se posiciona da seguinte forma: o tipo
narcisista se apresenta com uma escolha ativa, o que importa ao sujeito é mais amar que ser
amado. As demais ‘carências’ do amor não são preocupantes, basta que ele possa amar. O
tipo anaclítico é passivo, ser amado é o mais importante. É possível depreender de sua
posição que a escolha anaclítica é a que melhor convém ao homem, o que, diferentemente
de Freud e do senso comum coloca ao homem uma posição preferencialmente passiva. Ele
se satisfaria com a contrapartida narcisista em sua versão ativa, da mulher. E,
principalmente, honraria seu sexo, uma vez que é ele o depositário do órgão apto a
satisfazer a mulher. É ele que na relação sexual tem o dom. A mulher, diferentemente do
que se afirma, recebe, não tem o que doar, ao menos na relação sexual. Tal reflexão sugere
a célebre frase de Lacan, “o amor é dar o que não se tem”. A mulher se desdobra de outras
maneiras - nem todas, uma vez que ela não é toda se colocando a serviço do Outro,
sobretudo se este Outro é um homem.
Seguindo as indicações de Freud, mas em seu estilo próprio, Lacan observa que este
tipo de relação tem importância na medida em que persiste no adulto, por tratar-se do
prolongamento de uma posição infantil, a qual Freud denominou “posição erótica”, como
57
FREUD, S. (1976) - Obras completas, pag.253 – vol. XXI
58
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.83
32
mais aberta em direção ao Outro, no caso, o Outro materno. Estas são suas palavras para
definir a relação anaclítica: “sua essência é a seguinte: é na medida em que o sujeito
masculino, na relação simbólica, se investido do falo como tal, como pertencente a ele e
sendo-lhe um legítimo exercício, que ele se torna portador do objeto do desejo para o objeto
que sucede ao objeto materno, objeto reencontrado e marcado pela relação com a mãe
primitiva que é, em princípio, o seu objeto na posição normal do Édipo e isso desde a
origem da comunicação freudiana – a saber, a mulher”
59
. Nos sujeitos que participam desta
vertente libidinal, diz Lacan, uma parte da sua vida erótica está inteiramente condicionada
pela necessidade, uma vez experimentada e assumida, do Outro, a mulher materna, na
medida em que esta tem necessidade de encontrar nele o seu objeto, que é o objeto fálico.
É importante esclarecer que, embora a relação anaclítica seja o pilar onde se funda a
estrutura perversa, ela é bastante comum entre os sujeitos pertencentes a outras estruturas
clínicas. Freud, no artigo Tipos libidinais”, de 1931, referindo-se ao tipo erótico escreve:
“... mesmo em sua forma pura, esse tipo é muito comum”.
Para situar o momento em que Lacan estava de seu ensino é preciso ressaltar que
todas as estruturas clínicas estão, de uma ou de outra forma, determinadas pelo Complexo
de Édipo. É a partir desta dialética que elas se constituem. Nesta altura, a elaboração teórica
dos três registros (o real, o simbólico e o imaginário) estava bastante avançada e ele
pôde, recorrendo ao conceito de denegação de Freud, elaborar uma distinção entre o objeto
na fobia e o objeto fetiche. Ele aborda o objeto fetiche como paradigma da relação de
objeto, servindo-se do “objeto transacional de Winnicott” como ponto chave para explicar a
gênese do fetichismo: “... os objetos transicionais são esses objetos semi-reais, semi-irreais
a que a criança segura por uma espécie de apego, por exemplo, uma pontinha de seu lençol
ou babador. Isso não se observa em todas as crianças, mas na maioria delas. O Sr.
Winnicott vê muito bem a relação terminal desses objetos com o fetiche...”
60
.
Lacan estende o caráter que lhe Winnicott dizendo que ele não é totalmente
ilusório, tem sua materialidade, compara-o aos sistemas religiosos e filosóficos que
abraçamos quando adultos dizendo que ninguém, em consciência, pretende impô-los a
ninguém, assim como estes são “respeitados” pelos demais. Ao final de um longo
59
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.83
60
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.129
33
parágrafo, ele diz: “o Sr. Winnicott não está errado, é mesmo no meio disso que se situa a
vida, como organizar o resto se não houvesse isso?”
61
. Esta frase sinaliza a relação de
objeto como princípio organizador do psiquismo.
O fetiche, o objeto fetiche, exibe de maneira ostensiva a relação de objeto. Ali, onde
o de que se trata é a falta, o fetichista faz existir o objeto (transicional). O objeto para
sempre perdido é reencontrado em sua banalidade “perversa”. Na fobia, o objeto provoca o
horror, mas tem a função de delimitar a angústia, uma vez que seu objeto é construído “para
manter o medo à distância”
62
. Ele é um sinal de alarme que é acionado para conter a
angústia de castração. Também o objeto fetiche possui a função de proteção contra a
angústia de castração e, não é porque o fetiche esteja mais claramente ligado à percepção
do órgão fálico na mulher, que ele estaria mais diretamente relacionado à angústia de
castração. Este é um detalhe sem importância, diz Lacan. Outro ponto de convergência
entre os dois objetos é que ambos “... têm uma certa função de complementação com
relação a alguma coisa que se apresenta como um furo, até mesmo como um abismo na
realidade”
63
.
Após enumerar estas semelhanças ele relata um caso de fobia em uma criança do
qual se extrai que, a grande diferença entre estas duas relações objetais está em que na
fobia, as questões se passam no nível do simbólico e, quando os lugares simbólicos são
recuperados, o sujeito não necessita mais ser fóbico. No fetichismo, assim como na
perversão em geral, a problemática se situa no nível do imaginário. Esta consideração pode
ser ilustrada por uma referência que Lacan faz no seminário A carta roubadasobre as
célebres memórias do abade de Choisy
64
. É o falso cogito que “suporta a perversão pura e
simples”: “eu penso quando sou aquele que se veste de mulher”.
A elaboração inicial de Lacan neste seminário sobre a relação de objeto se
fundamenta no que ele denominou “a tríade imaginária”. Trata-se de um triângulo pré-
edípico: mãe-criança-falo. O quarto elemento é a função paterna a qual introduz a criança
61
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.124
62
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.21
63
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.27
64
Vestido pela mãe como menina, desde criança, e feito abade francês com apenas 19 anos, François-
Timoléon de Choisy (1644-1724) manteve o hábito de travestir-se ao se tornar um belo rapaz. No entanto, não
gostava de homens. A máscara de mulher experiente e rica só lhe servia para entrar na intimidade de
mocinhas bonitas que ele depois levava para a cama. Quando escreveu suas Memórias, na velhice, Choisy
era o decano da Academia Francesa, à qual pertenceu por 38 anos.
34
na dimensão do Complexo de Édipo, o que provoca uma decepção fundamental. Esta
ocorre quando a criança reconhece que não é o único objeto da mãe e que, além disso, o
interesse da mãe, em maior ou menor grau, segundo o caso, é o falo. O próximo passo a ser
dado é se dar conta de que a mãe é privada de falo. A introdução do quarto elemento, no
caso do menino, provoca uma certa rivalidade com o pai, que se alterna com uma
identificação; nesta oscilação ele se enquadrado dentro de certos limites introduzidos
pela função paterna: a mãe é interditada. A relação simbólica possibilita que a criança
transcenda a falta de objeto da castração, proporcionando-lhe a entrada numa dialética onde
se estabelece um pacto e, a criança obtém uma permissão, da instância paterna, de um
direito ao falo, o que possibilita a identificação viril.
No caso do fetichismo, pode-se dizer que o objeto fetiche se constitui por um
deslocamento do objeto fálico percebido como ausente na mãe. A castração propriamente
dita, a castração da mãe, que é o que interessa ao sujeito, é afirmada e negada e
posteriormente recalcada. Tal denegação tem como efeito se manifestar por um ato. É
preciso construir alguma coisa no lugar da ausência do falo. “O fetiche é um modo de
sustentar a impossível presença do falo da mãe”
65
. O desejo finalmente pode se realizar; no
lugar onde havia a ausência do falo o fetiche foi instalado. Ele oferece uma proteção contra
a angústia da castração e constitui uma defesa contra a homossexualidade. Em seu extremo,
ou seja, se for a única manifestação erótica da vida do sujeito, passa a ser também uma
defesa contra a heterossexualidade. Ainda neste período de seu ensino, Lacan sustenta que
a gênese das identificações perversas ocorrem nos primórdios do Édipo, mais exatamente
no tempo da tríade imaginária (mãe-criança-falo), por identificação ao falo, ou melhor, ao
objeto de desejo da mãe. O menino, preso na relação especular, interpreta seu desejo a
partir do Outro materno: para agradar à mãe, ele precisa ser o falo. As identificações
perversas podem se fundar na medida em que esta mensagem é realizada de maneira
satisfatória”
66
.
A via da solução perversa se concretiza em momentos fugazes que repercutem a
história do sujeito, em uma fusão com o objeto que precipita a passagem ao ato. A relação
65
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.287
66
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.288
35
anaclítica, transindividual, regida pela força aglutinadora de Eros, propicia esta unidade,
justamente nos momentos que escapam à ordenação simbólica.
Esta citação, a última antes de iniciar uma reflexão sobre Kant com Sade”, é útil
para que se possa discernir as duas estruturas e preparar o espírito para o próximo capítulo:
“voltando à fantasia, digamos que o perverso imagina ser o Outro para garantir seu gozo, e
que é isso que o neurótico revela, ao se imaginar perverso: ele, para se assegurar do
Outro”
67
. O perverso quer garantir o seu gozo, para isso se convence de que detém um
saber sobre o gozo do Outro. O neurótico se submete ao abuso para se assegurar do Outro.
Neste momento de seu ensino (1960), Lacan ainda não havia elaborado a oposição,
que fará em Kant com Sade”, entre o desejo na neurose e a vontade de gozo na perversão,
onde ele vai situar o “gozo do perverso fora do discurso”
68
.
67
LACAN, J.(1998) – Escritos: Subversão do sujeito, pag.839
68
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.289
36
Sade, meu próximo
69
“... esses dois imperativos, entre os quais pode ser esticada até o
estilhaçamento da vida a experiência moral...”
Depois de recusado pelo editor das Obras completas de Sade, sob a alegação
bastante justa de que não entendera nada, o prefácio escrito por Lacan denominado Kant
com Sade, foi novamente rejeitado, desta vez pela maior revista literária da França, a
Nouvelle Revue Française”. Somente na terceira tentativa, desta vez na revista Critique”,
fundada por Georges Bataille, foi finalmente publicado em 1963.
Diferentemente de Freud, que relata sua experiência clínica em “Bate-se numa
criança”, Lacan parte da vida e principalmente da obra de Sade para aprofundar a questão
da fantasia, dizendo mais corretamente, as fantasias na perversão. Anteriormente havia
dedicado inúmeras páginas no Seminário 7 A ética da Psicanálise”, a relacionar Kant e
Sade e, depois deste artigo, são várias as referências no decurso de sua obra, especialmente
a Sade.
Logo no início deste texto, Lacan rebate a idéia, comum entre os analistas, de que
Sade antecipara Freud, dizendo, com alguma ironia, “nem que seja no catálogo das
perversões”
70
. Sua importância para a Psicanálise é a de ter siso Sade o ponto alto do tema
da “felicidade no Mal”; E, prossegue Lacan, “aqui, Sade é o passo inaugural de uma
subversão da qual, por mais picante que isso pareça, considerada a frieza deste homem,
Kant é o ponto decisivo, e jamais identificado, ao que saibamos, como tal”
71
Lacan serve-se do filósofo puro que foi Kant e do escritor libertino Sade, nascidos
em meados do século XVIII, mais especificamente de duas de suas obras: A crítica da
razão prática” e “A filosofia na alcova”, para aproximar e confrontar dois princípios éticos:
“que fiquemos bem no bem” o cúmulo da moralidade (Kant) e que fiquemos bem no
mal” – o cúmulo da imoralidade (Sade).
Antes de entrar propriamente no debate ele anuncia seu final: uma
compatibilidade e até uma complementaridade entre elas. A Alcovadenuncia a verdade
69
Esse é o título do livro (Sade, mon prochain), publicado pela Seuil, em 1947.
70
LACAN, J. (1998) - Escritos, pag.776
71
Ibidem
37
da Crítica”, o objeto escondido, negado por Kant. Se Sade expressa a verdade oculta em
Kant, a moralidade em termos filosóficos está ao seu lado. O objeto escondido na “Crítica
é a perversão sadiana. “ Havemos de convir que, ao longo de toda a ‘Crítica’, esse objeto se
furta. Mas é adivinhado pelo rastro deixado pela implacável seqüência trazida por Kant
para demonstrar sua esquiva, e da qual o livro extrais esse erotismo, sem dúvida, inocente,
mas perceptível, cuja sólida fundamentação iremos mostrar pela natureza do referido
objeto”
72
. Digamos, com Miller, que Lacan faz de Sade um instrumento para revelar o que
está oculto na “Crítica”.
Em Kant, o bem, o prazer, o wohl, equivalem ao estado de Bem-Estar no sentido da
homeostase, do equilíbrio. Neste nível, o sujeito está submetido aos objetos de sua
experiência. Porém, a moralidade não pode ser construída sob a égide do princípio do
prazer, esta não será uma moralidade pura. É preciso fundar uma ética a priori, sem objetos,
“sem uma referência aos bens e aos prazeres”
73
.
Não é possível uma relação constante com o prazer, o “bem” necessita de um
forçamento da vontade do sujeito para que se submeta ao imperativo categórico, objeto da
Lei. Esta se impõe ao sujeito através da boa vontade (a gute willen). Ela difere de uma
ordenação de objetos da moralidade, como por exemplo, as tábuas da lei com seus
mandamentos, não é um código de conduta.
uma substância única, absoluta que sustenta a máxima de Kant; sua
aplicabilidade se estende a todos os sujeitos: “age de tal modo que a máxima de tua vontade
possa valer como princípio de uma legislação que sirva para todos”. É uma convocação
anônima que pertence à natureza mesma da lei que por seu valor universal exclui “a pulsão
ou sentimentos, tudo aquilo de que o sujeito pode padecer em seu interesse por um
objeto”
74
.
Tal objeto é o que Kant denomina “objeto patológico”, o pathos, a paixão. A
eliminação do elemento patológico é um apelo à razão o que determina uma
impossibilidade de orientar a própria vida no sentido de “fazer o que se quer”, agir segundo
seus interesses. Este não deve ser um princípio norteador da conduta. A felicidade não
pode ser a busca do “Soberano Bem”, como para as moralidades antigas; esta seria uma
72
LACAN, J. (1998) - Escritos, pag.779
73
MILLER, J. A. (1997) - Lacan elucidado, pag.180
74
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.778
38
forma egoísta, uma exaltação do amor próprio. Desta forma, o “Bem” perde todo seu valor,
se obscurece na arrogância da satisfação de seus pequenos prazeres. O recurso
“magnânimo” por assim dizer em sua elevação, é a suspensão de toda paixão (do pathos)
para que a Lei possa advir pela “voz da consciência”: “a razão puramente prática, ou a
vontade”
75
. Inadvertidamente, ao escrever esta frase pude me aperceber de um eco por
associação à célebre frase de Freud: “lá, onde isso estava, como sujeito, devo (eu) advir”
(última das inúmeras traduções/versões de Lacan para o dito freudiano) wo es war soll ich
werden. A interpretação possível para esta associação seria a de tomá-la pelo avesso: o
imperativo kantiano é a voz do Superego. A voz da consciência é o próprio inconsciente, o
Isso por assim dizer, colocado em termos lacanianos, onde o Isso se goza”. Gozo
sadomasoquista, uma vez que deve ter valor universal: “que não valha em nenhum caso, se
não valer para todos”
76
.
Trata-se de uma depuração total do sentimento, ao menos como princípio orientador
da conduta moral, o que equivale a uma abolição do sujeito em favor do absoluto da Lei
moral. “... seu mero anúncio (da máxima) tem a virtude de instaurar, ao mesmo tempo, quer
a rejeição radical do patológico, de qualquer consideração por um bem, uma paixão ou até
mesmo uma compaixão...”
77
. É possível entrever o erotismo do apelo superegóico, o objeto
escondido. Ao fazer desaparecer todos os objetos da experiência, o que surge é a voz que
ecoa a máxima que ressalta todas as contradições dos objetos, diz Miller.
Sade, depois de descrever a iniciação de Eugenie de Mistival, em A filosofia na
alcova”, coloca na voz do depravado Dolmana leitura do célebre panfleto Franceses,
mais um esforço se quereis ser republicanos...”. A este recurso literário Lacan equipara a
estrutura do “sonho dentro do sonho”. É uma enunciação da voz do Outro. Convocação ao
gozo como direito extensivo a todos. É o imperativo categórico sadiano, regra universal,
direito inalienável. Ali, onde Kant emposta a voz da consciência, solipsista, Sade convoca o
Outro do discurso, lugar da palavra: “tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me
qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das
extorsões que me gosto de nele saciar”
78
. Esta frase é uma construção de Lacan
75
Ibidem
76
Ibidem
77
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.781
78
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.780
39
formulada a partir dos dizeres do Panfleto”. Neste momento de seu texto, Lacan evoca a
função de humor do Superego, humor negro, a rir sarcasticamente de Kant interposto ao
imperativo de Sade: devemos gozar um dos outros sem nenhuma coerção social, abaixo a
Lei.
Esta outra vertente do Superego ressurge como a voz exterior, retrato da divisão
subjetiva que, em sua versão cômica ao apresentar-se como lei absurda, escapa da visão
ortodoxa que temos desta instância como socializante. No exercício da clínica cotidiana
convivemos com as injunções estapafúrdias, os mandatos sem sentido, que se manifestam
especialmente nas estruturas obsessivas nas quais se observam as dificuldades de tais
pacientes com os laços sociais, cujos comportamentos retratam a versão anti-social do
Superego.
A moral kantiana também se apresenta como risível na medida em que apela para o
absoluto da Lei moral, assim como reivindica uma pureza tal que desumaniza o sujeito,
suturando sua divisão. A evocação da voz da consciência faz ressoar uma versão do
Superego que convoca um gozo sádico, depurado de toda paixão que se possa dirigir a um
bem.
Em Kant, a voz desencarnada, “pura formalização lógica”(Miller, 1997), não passa
despercebida ao clínico Lacan, sua persecutoriedade sugere o fenômeno psicótico. A voz da
consciência, “mesmo louca, impõe a idéia do sujeito, e não convém que o objeto da lei
sugira uma malignidade do Deus real. Sem dúvida, o que se impõe a Kant é a Lei pela Lei”
79
. Com Sade, a conclamação do Panfleto opera uma separação radical entre sujeito e
objeto, ilustrando sua divisão subjetiva. A máxima do direito ao gozo irrompe do Outro,
encarnando um Ser-Supremo em maldade.
Lacan considera que, apesar da infâmia, o apelo de Sade é mais honesto do que o de
Kant, por não se utilizar de um artifício como “a voz da consciência”: uma vez que
“desmascara a fenda comumente escamoteada do sujeito”
80
. É um problema de direitos
humanos: “é pelo fato de que nenhum homem pode ser de outro homem propriedade, nem
de algum modo seu apanágio, que não se pode disso fazer um pretexto para suspender o
direito de todos usufruírem dele, cada qual a seu gosto” (texto extraído de Kant com
79
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.784
80
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.782
40
Sade”, no qual Lacan cita esta frase do 3º volume das Obras completas” do próprio Sade).
Esta máxima contém uma mistificação, atribui ao homem um valor de uso ao sustentar um
direito ao gozo sem o consentimento do Outro. E, nos dá bem a medida do caráter perverso:
“o que ele (o Outro) sofrerá de coerção não é tanto por violência, mas por princípio, e a
dificuldade para quem faz dela uma máxima (o perverso) está menos em fazê-lo consentir
nisso do que em pronunciá-la em seu lugar”
81
. É a “cruz da experiência sadiana”(Lacan), o
sujeito do enunciado dirige sua máxima ao Outro, provocando-o com sua impostura,
convicto de seu lugar no gozo do Outro, feito cúmplice.
O único elemento sentimental admitido por Kant no que tange à lei moral é a dor:
“por conseguinte, podemos ver a priori que a lei moral como princípio de determinação da
vontade, pela mesma razão que ela causa danos a nossas inclinações, deve produzir um
sentimento que pode ser chamado de dor. E é esse aqui o primeiro, e talvez o único caso em
que nos seja permitido determinar, por conceitos a priori, a relação de um conhecimento,
que vem deste modo da razão pura prática, com o sentimento do prazer ou do penar”.
Coincidentemente, Kant e Sade têm em seu horizonte último o espectro da dor. Kant
concede ao sentimento da dor uma condição de possibilidade” de manifestação como
conseqüência do sacrifício de “nossas inclinações”. Sade dedica toda a sua obra e sua vida a
“a dor de existir”, ser o objeto causa da dor do Outro: “a dor de outrem e, igualmente, a dor
própria do sujeito, pois são, no caso, apenas uma só e mesma coisa”
82
.
Ao acossar a “Coisa” e arrombar as portas do desejo transbordando-o em um oceano
de gozo, Sade encontra a dor de si no Outro. Esta é a razão do mal-estar que encontramos
em sua letra. Sua obra é o exercício compulsivo de um sadismo sublimado. Resta-nos
escolher entre uma atitude estóica ou de vítima frente a ela, refletir sua dor ou negá-la. Ao
prosseguir em sua trilha sobre esta experiência, Lacan compara “a dor, que projeta aqui sua
promessa de ignomínia, faz corroborar a menção expressa que dela faz Kant entre as
conotações da experiência moral”, e se vale da obra de Sade supondo um encontro deste
com o escravo Epicteto, apólogo do estoicismo
83
. Tal diálogo se dará entre o Senhor e o
81
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.782
82
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.208
83
LACAN, J. (1988) - Seminário 7: A ética da Psicanálise, pag.102
41
Escravo: Epicteto Vê, tu a quebraste, diz ele, apontando sua perna. Acaso reduzir o gozo
à miséria desse efeito em que tropeça sua busca não é transformá-la em horror?
84
A questão proposta a Sade em relação ao estóico Epicteto é como obter o gozo se
este recusa a experiência da dor em atitude de franco desprezo a esta? Ou seja: frente a um
ilustre representante de uma escola filosófica que tem como posição ética, e até mesmo
política, o mais completo distanciamento frente ao sofrimento? Lacan recorre a este
exemplo extremo para demonstrar que o perverso é totalmente dependente do Outro,
estabelecendo com a “vítima” a fórmula que descrevemos anteriormente como relação
anaclítica. Sem a dolorosa participação ativa imposta à vítima, não possibilidade alguma
de gozo do lado do perverso. Deste modo, anula-se o gozo do perverso uma vez que
Epicteto recusa a dor. O gozo de Sade depende da dor da tima. Como instrumento para o
gozo do Outro, sua real função, ele falhou. O desprezo do escravo denuncia seu fracasso.
Em sua posição de verdugo, mestre do gozo do Outro, ele se submete ao desprezo
do escravo: ao se oferecer como instrumento de seu gozo, “fetiche negro petrificado”, ele
não se “livra da humildade de um ato em que ele não pode entrar senão como ser carnal e,
até a medula, servo do prazer”
85
. Na fantasia sadiana o sujeito é a vítima, não o carrasco
86
,
cuja posição de sujeito barrado é a do Superego, depositário da angústia. Duplicado em
duas alteridades ele conduz o Outro (o parceiro) a franquear a barra que o divide, deixando-
se invadir pela angústia avassaladora do ato perverso, onde o sujeito é simultaneamente o
algoz (tenho o direito de gozar de seu corpo, pode me dizer quem quer que seja) e a vítima,
fazendo emergir seu ser de sujeito no parceiro, transmudado em objeto. Trata-se de uma
troca de posição “fusional”.
O algoz não vacila em sua vontade de gozar certeira, recusa da castração onde o que
persegue como gozo absoluto é a destruição da humanidade do Outro, invocando-lhe sua
própria vontade de gozo o que o separa de seu ‘pathos’. A dor como ponto máximo da
experiência perversa e também como a única admissão em Kant de um elemento patógeno
correlato à lei moral, tem, no caso da experiência perversa, a finalidade de fazer aparecer “o
ponto puro do sujeito” (Miller, 1997), sua vacilação e, no extremo, sua morte.
84
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.783
85
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.784
86
MILLER, J. A. (1997) - Sobre Kant e Sade, pag.194
42
Lacan apresenta uma elucubração imprescindível sobre a dor no sentido de aquilatar
seu espectro na experiência humana, particularmente na perversão: o prazer, no sentido da
homeostase, é rapidamente atingido “no seu limiar mais baixo de tensão em que o sujeito
vegeta”
87
.
Este funcionamento do princípio do prazer precisa ser ultrapassado na experiência
perversa, ele quer atingir o “para além do princípio do prazer”, o objeto visado é “o laço do
sexo com a morte”
88
. Ele (o prazer) é útil para sustentar a fantasia, porém é insuficiente
para o momento do gozo. Fisiologicamente, a dor tem um ciclo mais extenso do que o
prazer, que acaba quando um estímulo provoca a dor. No entanto, embora mais longo,
também o ciclo da dor tem seu fim: “é o esvaecimento do sujeito”
89
.
É deste ponto vital e estático de afânise do sujeito, sempre adiado ao infinito, que as
heroínas (sem exagero), timas do algoz, tiram suas forças para sobreviver infinitas vidas
às mais atrozes sevícias, despedaçadas, mas sempre belas, como que intocadas. uma
virgindade violentada nestas jovens; afinal, que graça tem para os devassos personagens de
Sade as mulheres “prostituídas”? Vê-se também em Sade, o objeto escondido. É a pureza
oferecida ao ultraje, presa fácil da sedução vil do carrasco. Beleza pura que, para Lacan, é
“a barreira extrema que proíbe o acesso a um horror fundamental”
90
.
As belas jovens eternizadas na estética da fantasia sadiana, morrem para nos
livrar (aos seus leitores) das malhas da monotonia que se inscreve em sua “selva
fantasística”, termo que Lacan utiliza ao se referir às fantasias de Sade. Os torturadores são
mais numerosos, embora seus extremos também não apresentem tanta variedade. A morte
não é o limite em Sade, ela pode ser reduplicada.
Lacan não perde a oportunidade de apontar a incoerência de Sade ao colocar na voz
do “hediondo Saint-Fond”, um dos mais aficcionados adeptos da filosofia libertina, o tema
da “segunda morte”, assim denominada textualmente. A discordância das duas mortes
escreve Lacan, introduzida pela existência da condenação, reflete um para aquém que
sustenta um para além da morte. Para explicar esta “discordância” é preciso refletir no
paradoxo de Sade, constituído por sua postura perante a idéia do inferno. Ele o
87
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.784
88
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.785
89
Ibidem
90
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.789
43
amaldiçoava, considerando-o a expressão máxima da tirania do religioso; no entanto, o
personagem citado, Saint-Fond, ameaça suas timas com o para além da morte. Além de
matá-las, ele invectivava enviá-las para o “tormento eterno”. O personagem vacila ao tentar
provar a autenticidade de sua segunda maldição a suas vítimas. Para convencê-las de seu
discurso ele constrói o “mito de uma atração irresistível que tende a reunir as partículas do
mal”
91
.
Esta incoerência de Sade pode ser compreendida ao se verificar em sua letra o
horror que ele expressa da morte como fenômeno da natureza. Era necessária uma segunda
morte, um novo esvaecimento do sujeito para encerrar definitivamente este ciclo maldito. É
preciso uma redobrada aniquilação para que um além da morte não volte a reunir as
partículas do mal. A certa altura, ele assim escreve sobre seu fim: “uma vez fechada a cova,
plantem-lhe em cima bolotas, afim de que com o tempo ... desapareçam da face da terra
vestígios de minha sepultura, tal como eu espero que a minha memória se apagará da
lembrança dos homens ...”
92
. A história não fez jus ao seu desejo, não o leva para junto dos
deuses, mas sua obra se eterniza.
O anseio da segunda morte seria a superação da morte física, o verdadeiro objeto
visado por Sade: o desaparecimento da dor de existir. No Seminário 16 De um Outro ao
outro”, esta frase: “o inferno nos conhece, é a vida do dia a dia”, como desejar eternizá-
lo? É esta a face que simultaneamente humaniza e desumaniza o perverso: “o sadismo se
joga para o Outro a dor de existir, mas sem ver que, através disso, ele mesmo se transmuda
num objeto eterno”
93
.
Sade, diferentemente do neurótico, não almeja ser o bom objeto terno, o Bom
cristão, cuja alma imortal reivindica seu lugar na eternidade..., mais um nome para o Outro.
Ele “não é tapeado por sua fantasia na medida em que o rigor de seu pensamento passa para
a lógica de sua vida”
94
. Ele se assume como mau objeto “fetiche negro” assujeitado à sua
vontade de promover o gozo suposto do Outro, não O desconhecendo enquanto tal,
buscando antes sua cumplicidade, mesmo que seja sob a manifestação de sua repulsa.
91
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.785
92
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.790
93
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.789
94
Ibidem
44
Lacan ironiza a idéia comum na psicanálise, o ready-made “naturalista” contido na
afirmação: o sádico nega a existência do Outro. Uma forma melhor de dizer seria: “ele
causa sua dor no Outro, a expensas do Outro ou as suas expensas”.
O sujeito deve surgir sob o jugo do perverso, além de todo patológico. Sua vontade
de gozo visa mais do que a dor física, quer se alojar “no mais íntimo do sujeito que ele
provoca mais além, ao atingir seu pudor”
95
. O sentimento de vergonha e humilhação é uma
via de mão dupla: “o despudor de um constitui por si a violação a violação do pudor do
outro”
96
.
95
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.783
96
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade, pag.785
45
CAPÍTULO III - PERVERSÕES
O exibicionismo e o voyeurismo
No Seminário 16 de um Outro ao outro(1968/69), Lacan faz um comentário a
respeito do exibicionismo, para elucidar a questão que enunciara em Kant com Sade
sobre a posição do perverso frente ao Outro:
“afirmo desde já que a função do perverso, a que ele cumpre, está longe de
se basear num desprezo qualquer pelo outro, pelo parceiro, como se disse
durante muito tempo e como já não ousam dizer algum tempo,
principalmente por causa do que enunciei. Esta função deve ser avaliada de
uma forma que tem outra riqueza. Para torná-la clara [...] direi que o
perverso é aquele que se consagra a tapar o buraco no Outro. Para
introduzir aqui as cores que dão relevo às coisas, direi que, até certo ponto,
ele está do lado do fato de que o Outro existe. É um defensor da fé”.
Em seguida, ele nos apresenta algumas considerações sobre o exibicionismo que
podem ser resumidas desta forma: a exibição visa o pudor, um susto que pode provocar
uma fuga ou um consentimento, a vergonha, acrescentaria, e até mesmo o recobrimento de
uma parte do corpo visada. O essencial, a pulsão escopofílica que à primeira vista pode ser
considerada passiva, uma vez que a ver, não é isso. “O essencial, propriamente e antes
de mais nada, é fazer aparecer o olhar no campo do Outro”
97
. O exibicionista visa o caráter
fugaz do olhar ao ultrapassar o limite da função do princípio do prazer em direção ao gozo.
É pelo gozo do Outro que o exibicionista zela, diz Lacan, e goza. O ato exibicionista está
totalmente sustentado pelo campo do Outro, seu desnudamento, ou suas insígnias só têm
razão de ser ao alcançar o olhar do Outro.
Lacan não deixa de apontar para a dissimetria que entre o exibicionista e o
voyeur. O voyeur, diz ele, interroga no Outro aquilo que não se pode ver, e acrescenta:
“talvez por ter sido como que profanado para ele tudo o que pode ser visto”
98
. E,
endossando uma análise de Sartre (1905-1980) em O ser e o nada”(1943), afirma que o
que perturba o sujeito que é surpreendido na situação de espiar no buraco da fechadura, o
97
LACAN, J. (2008) - Seminário 16: de um Outro ao outro, pag.246
98
LACAN, J. (2008) - Seminário 16: de um Outro ao outro, pag.246
46
que realmente o deixa verdadeiramente envergonhado é ser apanhado “na postura daquele
que não enxerga nada”
99
. Enquanto está apenas espiando”, absorto, envolvido pela cena,
seu olhar se perdeu “de si mesmo” é, ao ser visto, capturado pelo olhar do Outro, o “alguém
me olha” (diz Sartre, acentuando o anonimato), o sujeito volta a si, vendo-se sob um olhar
que o coloca frente à mediação do Outro, à merde um julgamento que o reduz a ser
menos que nada. Objeto do Outro que julga: “Ser-em-si”.
99
LACAN, J. (2008) - Seminário 16: de um Outro ao outro, pag.247
47
O masoquismo -“A Vênus das peles”
Uma interpretação possível
Em breve comentário em Kant com Sadesobre o masoquismo, um irônico Lacan
refuta a idéia de uma complementariedade entre as duas modalidades de perversão. Assim
como Deleuze, Lacan não concorda que haja uma parceria entre o sádico e o masoquista.
A recusa da castração e a posição de mestre do gozo, assim como a posição de
objeto na cena que dirige e, simultaneamente protagoniza como escravo do gozo do Outro,
evidenciam, mais do que uma complementariedade, uma identidade entre as duas posições
desdobradas na cena fantasmática. Uma forma de melhor compreender esta perversão pode
ser a leitura de A Vênus das peles”, de Sacher-Masoch (1836-1895). Pareceu-me que este
livro torna mais simples o entendimento das posições de Lacan sobre as perversões em
geral.
É motivo de reflexão o fato de precisarmos destes dois perversos “geniais” para que
o verdadeiro caráter e até mesmo a nomeação destas perversões nos fossem fornecidas.
Sade e Masoch emprestaram seus nomes próprios como significantes destas entidades
“nosológicas” e deveriam ser reverenciados por nos terem legado, através de suas obras
literárias e de suas próprias vidas, dois paradigmas de modos de gozar que enriqueceram a
clínica.
De acordo com as posições levantadas nesta dissertação no que tange a estrutura
perversa, não deixa de ser estimulante considerar que ambos os autores acabaram por se
tornar instrumentos de gozo ou de tédio para seus leitores. Ademais, passaram a ser úteis
para a clínica psicanalítica. Os perversos raramente procuram os psicanalistas e, quando nos
solicitam devemos nos posicionar frente a eles como pacientes, nos dois sentidos da
palavra, uma vez que eles não estão em busca de um sujeito suposto saber, assim como não
procuram alguém que cause seu desejo. O acesso que podemos ter aos perversos é indireto,
ou pela via das obras literárias ou pelos ecos que escutamos na clínica pela boca de seus
infelizes parceiros.
Depois desta digressão, voltemos ao livro A Vênus das peles”, ao qual vou recorrer
como ferramenta para agrupar e ajustar as peças soltas no entendimento desta perversão.
48
O romance se desenrola com alguns episódios que determinam o seu final:
Severin, o personagem principal, é um jovem de quase 30 anos que encontra sua deusa na
forma de uma jovem viúva rica e bela, Wanda, sua vizinha. As fantasias pré-existentes ao
encontro com “A Mulher” tinham várias versões. Fundamentalmente, se assentavam em
uma estátua de Vênus, a deusa do amor, envolvida em peles. No início do livro, após o
término do seu relacionamento com Wanda, Severin sonha com a Vênus. Desenrola-se um
diálogo que pressupõe um acerto de contas entre eles com o teor de uma disputa entre os
sexos. Ela fala de amor, ao modo de Diotima. Ele a acusa de crueldade e traição e ela se
defende com a sabedoria própria da antiguidade clássica: enquanto o amei fui fiel e os
homens do Norte exigem uma fidelidade onde não há mais amor. Lá, diz ela, vocês levam o
amor por demais a sério. Falam de deveres onde se trata de deleites. À certa altura, ele diz
sobre o amor: “aquele que falha em subjugar o outro logo lhe sente os pés a lhe forçar o
pescoço”. A Vênus invoca o peso do domínio do homem sobre as mulheres e afirma sua
crueldade: “o homem é cobiçoso, a mulher a cobiçada, eis a vantagem plena e crucial da
mulher. Por isso ela deve dominá-lo, fazer dele seu escravo, seu brinquedo” (erótico, diga-
se). Ele concorda que nada excita mais um homem do que uma mulher bela, voluptuosa e
cruel, que dispõe de seus favoritos de maneira atrevida, a seu bel prazer. A Vênus sugere
que tudo isso seria mais que perfeito se ela se vestisse de peles... A senhora está muito
coquete... Severin acorda, não pode mais continuar sonhando...
A este sonho se segue a apreciação de um quadro que o fascina. Trata-se de uma
cópia da Vênus com o espelho”, de Ticiano. A deusa, também vestida de peles, se observa
ao espelho com fria indiferença; aos seus pés jaz um homem caído. Ela o mantém com um
dos pés sobre seu pescoço. E assim se seguem outras Vênus; uma estatueta no escritório do
pai de Severin, uma no jardim de sua casa atual a quem costuma visitar em silêncio
reverente. Ele é um sacerdote do amor.
Todo o desenvolvimento da história nada mais é do que dar vida a este mármore
“frio e cruel”. faltava a Severin, encontrar “A Mulher” disposta a encarnar sua deusa.
Ao se defrontar com Wanda, “A Mulher”, Severin além de convencê-la a chicoteá-lo a
induz a tomar para si um amante. Em Televisão”, texto de 1973, Lacan se interroga. Será
possível dizer, por exemplo, que quando O homem quer A mulher, ele a alcança ao
encalhar no campo da perversão?
49
No transcorrer da narrativa Wanda se apaixona por outro homem, este um
verdadeiro Senhor (um grego), abandona as peles e submete Severin à última prova: ser
chicoteado por seu amante, Apolo, sob sua orientação (dela). Severin fica entregue a seu
fantasma. “O Pai bate em Severin”, os acontecimentos chegaram ao seu clímax. “E de tudo
isso o mais vergonhoso era que eu, em tal lamentável situação, sob o chicote de Apolo e
sob o riso cruel de minha Vênus, começava a experimentar uma espécie de prazer
fantástico e ultra-sensual, com Apolo a alijar da situação toda a poesia e, chibatada após
chibatada, na impotência de minha ira, eu conseguia cerrar os dentes, em mim
desvanecendo o voluptuoso desvario, a mulher e o amor”
100
.
A fantasia construída por Freud através de seus pacientes, de “Bate-se numa
criança” torna-se “A mãe bate na criança” (Wanda bate em Severin) para, no momento da
entrada de Apolo, amante de Wanda, atingir seu auge: “O pai bate na criança” (Severin)
capturando sua fantasia homossexual que implementa seu gozo e derruba sua defesa contra
a homossexualidade. Freud reconhece a homossexualidade latente no masoquista na
medida em que este se coloca na posição de objeto, no entanto, deixa claro que a servidão
faz parte das relações do homem com o outro sexo e que o masoquista, no sentido da
estrutura, é um homem. A forma como ele aborda a mulher é masculina, ele o faz à maneira
do amor cortês, diz Lacan. Ele a idealiza e, como conseqüência, a dessexualiza.
Diferentemente desta fantasia na neurose, em Masoch todos os personagens da cena
são identificados e sua montagem foi arquitetada até certo ponto conscientemente por
Severin. Não sem sofrimento.
Abandonado por Wanda, por quem se fazia tratar como um cão e de quem fora
escravo, ele reencontra o pai a quem ajuda a por os negócios em ordem antes de morrer.
No último parágrafo, Severin escreve: “como vês, as chibatadas foram por mim muito bem
recebidas. A neblina rósea do ultra-sensualismo se dilui e ninguém mais me fará tomar pela
imagem de Deus as macacas de Benares
101
ou o galo de Platão”
102
-
103
.
100
MASOCH, L.Sacher (2008) – A Vênus das peles, pag.155
101
As macacas sagradas de Benares era o modo como Schoppenhauer designava as mulheres.
102
Alusão ao galo depenado do cínico Diógenes, lançado por este para dentro dos muros da escola de Platão,
seu rival, com estes dizeres: “Aí tens o teu homem”
103
MASOCH, L.Sacher – A Vênus das peles, pag.158
50
Aprisionado em sua fantasia aos pés de Wanda, os castigos e humilhações que
Severin reclamou ao Outro foram o preço que ele pagou pela veneração à sua amada.
Petrificado, ele adorou sua deusa, a Vênus das peles”, criação sua, na medida do seu gosto,
reduzido a nada mais que puro dejeto. Enamorado, ele idealizou seu objeto. O narcisismo
contido é evidenciado pela ficção em que ele divide a si mesmo na imagem da Vênus e na
submissão com que a homenageia: “mas essa transformação vem apenas como resíduo de
uma subtração simbólica que se fez no lugar em que o menino confrontado com sua mãe,
pode reproduzir a abnegação de seu gozo e o invólucro de seu amor. O desejo deixou ali
somente sua evidente negativa, para dar forma ao ideal do anjo que não poderia ser roçado
por um contato impuro”.
104
Nas palavras de Severin, a inibição de sua sexualidade o faz permanecer em um
estado de pureza, adiando o desejo ao infinito, em nome da dor: “eu evitava todo e qualquer
contato com o belo sexo, razão pela qual me fiz ultra-sensual, a ponto de demência”
105
. Em
outro momento, ele se expressa desta forma: “minha austeridade catatônica, minha timidez
ante as mulheres era tão somente o fruto da mais elevada susceptibilidade à beleza; a
sensualidade então, para mim se convertia em desvairança, em uma espécie de culto, e eu
jurava não dissipar suas afecções sagradas com ser algum que fosse trivial, mas poupá-las
para a mulher ideal, na medida mesma em que fosse possível poupá-la para a própria deusa
do amor”.
106
Em Kant com Sade”, Lacan escreve que a lógica de Masoch é a mesma de Sade:
“agente do tormento, o masoquista rejeita no Outro a vontade de gozo que o afeta”. Ao se
identificar com o objeto, o masoquista, como todo perverso, está na condição de demonstrar
a verdade do empreendimento sádico. Ele detém um saber sobre o gozo e o procura, e
acaba por concretizá-lo. No romance, Severin encontra Wanda e a educa ao seu molde e ela
se presta ao seu jogo perverso. Ao aceitar ser elevada à dignidade da deusa, Wanda
preenche o desejo de Severin de se manter casto. Como um mártir, ele pode se deleitar em
um gozo místico, como os heróis cristãos que tanto admira. Ele obtém desta posição a
oportunidade de servir ao Outro. Este culto perverso de servir a uma deusa o leva a
104
LACAN, J. (1998) –Escritos: Juventude de Gide, pag. 765
105
MASOCH, L.Sacher (2008) – A Vênus das peles, pag.56
106
MASOCH, L.Sacher (2008) – A Vênus das peles, pag.58
51
petrificar sua Vênus, reduzindo-a a um pedaço de pedra; ela é uma estátua de mármore.
Esta deusa é certamente um fetiche.
Após ter perdido sua amada para Apolo, o grego que o açoitou, Severin parte em
busca do pai e, desiste de ser um instrumento do gozo do Outro. Dizendo-se curado, não sai
à procura de uma mulher de carne e osso: recusa seu desejo e seu gozo; desiste do Soberano
Bem.
Severin pouco se refere à mãe, porém, duas coisas repercutem neste texto, uma certa
tensão homossexual e o peso do dito materno na construção da fantasia. No que se refere à
homossexualidade, como dissemos, esta permanece latente na atração que ele sente pelo
amante de Wanda e pelo gozo especial que o captura na cena em que este lhe aplica as
chicotadas. O erotismo aparece sob a forma da pulsão masoquista: “a mãe bate na criança”.
A cena, neste contexto, pode sinalizar uma carência da Lei para cercear o arbítrio do Outro
materno. A entrada de Apolo, que incrementa o gozo, põe em jogo a homossexualidade
latente de Severin. Pode-se pensar em um apelo ao pai como interditor. Mas na presença da
mãe/deusa, Severin não é mais do que um dejeto.
O Outro primordial, a mãe, mais especificamente o objeto pulsional voz, a voz da
mãe, é evocada por Lacan na perversão masoquista. No Seminário 16 de um Outro ao
outro”(1968/69), Lacan, corroborando com Deleuze, valoriza a presença de uma mãe fria e
cruel na vida do menino masoquista.
“Sim, com toda seriedade eu digo que é meu desejo ser teu escravo. Quero
que teu poder sobre mim seja sacramentado pela lei, que minha vida esteja
em tuas mãos, que nada neste mundo me proteja de ti ou me salve de ti. Ah!
Volúpia, sentir que estou completamente sob teu arbítrio, que dependo de
teu humor, de um gesto de teus dedos. E então que ventura se fores
piedosa, se o escravo puder beijar teus lábios, depender de ti na vida e na
morte. Ajoelhei e apoiei em seu regaço a minha fronte, que ardia”
107
.
Se uma prevalência do pai em Sade, no masoquismo parece existir um
predomínio da mãe; em Sade, trata-se de fazer calar uma voz; Masoch dá voz a Wanda.
“Que o masoquista faça da voz do Outro, por si só aquilo a que dará a garantia de responder
como um cão, isto é o essencial”. Ele busca, segundo Lacan, um tipo de Outro que seja
questionado no aspecto da voz, a mãe, de voz fria, que emite toda sorte de arbitrariedades,
107
MASOCH, L.Sacher (2008) – A Vênus das peles, pag.79
52
de quem nunca se sabe o que esperar. “Essa voz, que talvez ele tenha ouvido em excesso,
alhures, do lado do pai, vem, mais uma vez, completar, tapar o buraco”.
108
Os diálogos que pontificam nos encontros de Severin e Wanda reproduziriam os
caprichos de mãe, uma vez que a moça muda constantemente de humor em relação a ele,
ora ela o ama, ora ele é seu escravo. Isto ocorre até o final do livro quando ele é
definitivamente abandonado. Não podemos nos esquecer que Wanda foi instruída
minuciosamente sobre como deveria se portar com Severin. Os detalhes são aprimorados
no decorrer do tempo, de modo a implementar o gozo.
Neste mesmo Seminário, Lacan enfatiza a importância da voz para o entendimento
da função do Superego. “A voz pura, diz ele, tal como é ou não instaurada no lugar do
Outro, de uma forma que é ou não é perversa”
109
. A voz que Severin empresta a Wanda
visa complementar o Outro, ensejando um certo sarcasmo que O desautoriza e pode fazer
às vezes de um arremedo: “quero que o senhor seja meu escravo. Quero fazer do senhor
meu brinquedo”, diz Wanda
110
.
Ainda neste mesmo texto, Lacan, ao opor o sádico ao masoquista no que se refere à
voz, nos diz que este tenta, de maneira inversa ao masoquista, complementar o Outro
roubando-lhe a fala e impondo-lhe a voz. Na obra de Sade a voz aparece na forma de
ordens peremptórias com a qual ameaça suas vítimas e executa seus atos.
Surpreendentemente elas se calam sem manifestar qualquer sinal de revolta. Para
exemplificar esta passividade diante das ordens enunciadas, ele relembra as multidões que
se encaminhavam para os fornos crematórios sem esboçar uma única reação, um grito
sequer. Este fato histórico ilumina a dimensão da voz na experiência sádica: reduzir os
judeus ao silêncio, pura pulsão de morte.
Ao retornar a Sade, pude apreender no texto de Masoch um imperativo categórico
ao estilo sadiano, embora seja imprescindível dizer, seu alcance é, por assim dizer,
“intimista”. Ele se refere unicamente ao casal e acontece sob a forma de um contrato
idealizado por Severin e redigido por Wanda:
“- Ela rascunhou um tratado mediante o qual me comprometo, por palavra de honra
e juramento, a ser seu escravo, enquanto ela assim o desejar.
108
LACAN, J. (2008) - Seminário 16: de um Outro ao outro, pag.249
109
LACAN, J. (2008) - Seminário 16: de um Outro ao outro, pag.250
110
MASOCH, L. S. (2008) – A Vênus das peles, pag.54
53
- Mas este contrato para mim só tem deveres!
- Direito não tens nenhum, razão pela qual não podes te valer de nada. Meu poder
sobre ti não deve ter quaisquer fronteiras. Homempense que não és muito melhor que um
cachorro, uma coisa inanimada; és meu objeto, meu brinquedo, que eu posso quebrar, visto
que não és mais que um passatempo, um passatempo de uma hora. Não és nada, e sou tudo.
- Esqueceste alguma coisa – segredou-me então maliciosa – o mais importante.
- Uma condição?
- Sim, a de que devo sempre aparecer em peles...”
Esta frase é bastante reveladora do movimento de Wanda de se prestar à fantasia
perversa de Severin, esta é a parte que lhe cabe neste jogo. O imperativo, reduzido a seu
mínimo, poderia se apresentar nos seguintes termos: “tenho o direito de dispor de seu
corpo, no momento que quiser, sem nenhuma restrição pelo tempo que for conveniente,
inflingindo-lhe todos os castigos que queira”. Como todo o conteúdo do contrato foi
engendrado por Severin, este não é outra coisa que uma maneira oficial de realizar sua
vontade de gozo. Mesmo em sua intimidade ele é dirigido ao Outro. A lei reivindica sua
presença na forma da letra que consolida a relação de Severin com seu gozo, capaz de
viabilizá-lo.
“Tens o direito de dispor de meu corpo a hora que quiser, sem nenhuma restrição,
pelo tempo que lhe for conveniente, inflingindo-me todos os castigos que queira”. No
masoquismo o imperativo visaria franquear ao Outro o direito e quase se pode dizer, o
dever de usufruir de seu corpo próprio. Novamente se alcança a dimensão de um direito ao
gozo que afronta o Outro. Onde se coloca a questão do direito com a perversão na
atualidade, o problema do consentimento posto na lei atual. É de se pensar nas práticas
perversas e mortais que se apresentam. Neste ponto, mais do que nunca, entramos no
campo da Ética.
A obra de Masoch e, de certa forma a de Sade também, se aproxima de uma
pregação no sentido religioso do termo. Masoch, através de seu personagem Severin, nos
apresenta a impossibilidade de seu desejo e os estragos do desregramento de seu gozo.
Mais do que um servo do gozo do Outro, ele se apresenta como um mártir.
54
Sobre o amor entre rapazes
A leitura de Foucault sobre a sexualidade se inicia “desconstruindo” uma série de
lugares comuns que nos habituamos a considerar sem uma maior reflexão. Através de uma
rigorosa pesquisa em torno deste tema, ele, de saída, nos fala sobre a filosofia moral da
Antiguidade: “já encontramos ali uma certa associação entre a atividade sexual e o mal, a
regra de uma monogamia procriadora, a condenação das relações de mesmo sexo, a
exaltação da continência”
111
. E, o germe do que “numa escala histórica” marcaria a ética
cristã e a moral na civilização européia moderna, se encontrava inscrito no pensamento
greco-romano.
Por meio dos tratados pesquisados por ele é possível compreender que a moral pagã
considerava o desperdício do sêmen, tanto por excessos heterossexuais, homossexuais ou
masturbatórios, condenáveis porque tornavam o jovem doentio, prostrado, maléfico à
sociedade e efeminado. São inúmeros os textos de médicos gregos do início de nossa era e
anteriores que condenavam os abusos da atividade sexual, sendo que Soranius (séc. II d.C.)
pregava que seria preferível uma abstinência completa aos abusos na prática sexual. Textos
ainda mais antigos, atribuídos a médicos, aconselhavam a “prudência e a economia no uso
dos prazeres”, o respeito às condições em que tais atividades são praticadas, a contenção da
própria violência sob os riscos de prejudicar-se a si próprio. O sêmen, o germe da vida,
elemento vital, deveria ser preservado.
A fidelidade conjugal, embora não fosse uma exigência irrestrita, era recomendada e
até mesmo exaltada. Aristóteles considerava “ação desonrosa” a infidelidade, tanto do parte
do homem para com a mulher como sua recíproca. Algumas correntes filosóficas, como o
estoicismo, consideravam a fidelidade parte importante de seus ensinamentos.
O estereótipo do homossexual, que é tido no século XIX como altamente
desqualificado, com acentuadas características femininas, já estava delineado na
Antiguidade com a mesma carga de desprezo e rejeição. Recuando no tempo, lê-se em
Sócrates, no Banquete”, uma “alusão quando condena o amor que se tem aos rapazes
flácidos, educados na delicadeza da sombra, ornados de maquilagem e adereços”
112
.
111
FOUCAULT, M. (1984) - História da sexualidade, pag.18
112
FOUCAULT, M. (1984) - História da sexualidade, pag.22
55
No primeiro século de nossa era, Epicteto, representante do estoicismo, escola
criada em 300 a.C., citado nessa dissertação, escapa à ataraxia, máxima de sua ética para
repreender os retóricos, que se apresentavam carregados de adereços e perfumes,
interpelando-os sobre sua identidade sexual: “afinal, são os senhores homens ou mulheres?”
Na mesma época, Sêneca, o Retórico, ao se referir à decadência da juventude,
repugnado, diz: “a paixão doentia de cantar e dançar enche a alma de nossos efeminados;
ondular os cabelos, tornar a voz suficientemente tênue para igualar a carícia das vozes
femininas, rivalizar com as mulheres através da lassidão das atitudes, estudar-se em
perquerições muito obscenas, eis o ideal de nossos adolescentes... Enfraquecidos e
enervados desde o nascimento, eles permanecem sempre prontos a atacar o pudor dos
outros sem se ocupar com o seu próprio”
113
.
Foucault refere-se também a um perfil do homossexual escrito por um autor
anônimo do século IV, denominado explicitamente Efeminatus”. Os exemplos são
inúmeros, no entanto Foucault nos adverte que não generalizemos estes “achados” como
uma repulsa completa às relações entre os rapazes; eles são antes “uma viva repugnância
aos prestígios e às marcas do papel viril
114
. Pode-se dizer que dentro de certas “condições
de possibilidade”, o amor entre homens era mais “livre” do que passou a ser nas sociedades
modernas.
É interessante notar que a atração pelo mesmo sexo não é negada, era até mesmo
exaltada quando se que a abstinência e também a castidade deveriam prevalecer,
compondo ideal de temperança e, “renunciar a beijar o rapaz a quem se amava” era a prova
máxima desta ascese. Para outros, esta atitude revelava grande sabedoria, era a elevação a
que chegavam aqueles que tinham maior acesso à verdade, cujo exemplo vivo era Sócrates,
que atraia o amor de muitos, mas resistiu até mesmo à beleza e às provocações insistentes
de Alcebíades. Exemplo tão caro a nós, psicanalistas, no famoso diálogo do“ Banquete”, de
Platão.
Na era cristã, seria de se esperar que um homem fosse santo e não propriamente
sábio ao resistir às insinuações de uma mulher. Na antiguidade, é bom lembrar, as mulheres
eram “lacanianas”, “elas não existiam”, no sentido de uma inclusão na cultura e na moral.
113
FOUCAULT, M. (1984) - História da sexualidade, pag.21
114
FOUCAULT, M. (1984) - História da sexualidade, pag.22
56
Eram no máximo parceiras, que cumpriam uma função dentro da organização da família,
quase sempre referidas a alguém, um pai ou um marido, ou não passavam de cortesãs,
meros objetos sexuais.
É preciso levar em conta que todas estas prescrições sobre a conduta eram baseadas
no “Soberano Bem”, que por sua vez tinha por fundamento a relação Senhor e Escravo.
Constituíam uma “estilística”, como diz Foucault, que apresentavam suas variações a
depender da escola filosófica, região e do status do indivíduo, tendo, portanto, uma
abrangência relativa. Deve-se recordar que os Cínicos, por exemplo, Diógenes, contradizia
o ideal da temperança e afrontava a todos se masturbando em público, visando reduzir o
prazer às necessidades.
“Quando sou solicitado por algum desejo amoroso, dizia ele, contento-me
com o primeiro encontro e as mulheres a quem me dirijo me cobrem de
carícias, pois ninguém mais consente em se aproximar delas. E todos esses
gozos me parecem tão vivos que me abandonando a cada um deles não
desejo obter gozos mais vivos, gostaria até que fossem menos vivos, que
alguns deles ultrapassam os limites do útil”(Foucault, 1984, pag.52).
Xenofonte assim apresenta as lições de Sócrates: “a alma só aprova estes prazeres se
a necessidade física for urgente e puder ser satisfeita sem dano”
115
. O uso dos prazeres deve
ser regulado pela necessidade que, por sua vez, sustenta o desejo.
Após esta digressão, voltemos às “condições de possibilidade” do amor entre os
rapazes na antiguidade greco-romana. Foucault considera essencial ressaltar que para os
antigos o que realmente importava em relação à sexualidade era a tendência passiva ou
ativa, colocada acima da escolha de objeto. Freud, nos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” (1905), nos apresenta a questão da seguinte forma:
“é claro que na Grécia, onde a maioria dos homens mais másculos se
incluía entre os invertidos, o que excitava o amor de um homem não era o
caráter masculino do rapaz, mas sua semelhança física com uma mulher e
suas qualidades mentais femininas sua timidez, sua modéstia e sua
necessidade de instrução e assistência. Logo que um menino se tornava
homem, deixava de ser um objeto sexual para os homens e, ele também
talvez se tornasse um amante de rapazes. Neste caso, portanto, como em
vários outros, o objeto sexual não é alguém do mesmo sexo, mas sim
alguém que combine os caracteres dos dois sexos; existe por assim dizer,
uma conciliação entre um impulso que aspira por um homem e um que
aspira por uma mulher, ao mesmo tempo em que permanece condição
115
FOUCAULT, M. (1984) - História da sexualidade, pag.52
57
primordial que o corpo do objeto (isto é, os órgãos genitais) seja masculino.
Assim o objeto sexual é uma espécie de reflexo da natureza bissexual do
indivíduo”(Freud, 1976, pag.145).
Foucault, a certa altura do livro II da História da sexualidade O uso dos
prazeres”, responde, por assim dizer a Freud, a questão sobre a bissexualidade dos gregos
positivamente, desde que nos referíssemos a uma alternância na escolha de objeto,
ressalvando com alguma ironia que os gregos “não reconheciam nela duas espécies de
‘desejos’, duas pulsões diferentes ou concorrentes, compartilhando o coração dos homens
ou seus apetites”. Para eles, o que comandava a escolha de objeto era o apetite que a
natureza legara, voltado para a beleza, independentemente do sexo. Esclarece que, diante de
suas pesquisas, para os gregos ainda não havia uma distinção clara entre um amor
homossexual e um amor heterossexual. A orientação homossexual era considerada como
um traço de caráter, uma questão de gosto pessoal, separada de uma discriminação.
Diferentemente da experiência da sexualidade na civilização atual, que divide os
sexos em masculino e feminino de forma mais radical e, portanto, considera efeminado um
homem que transgride seu papel sexual, para os gregos a divisão se dá mais claramente em
relação à atividade e passividade. Um homem não será considerado menos viril se prefere
relacionar-se com outros homens, desde que sua posição seja ativa na relação sexual e no
domínio de si. Este modo de abordar a sexualidade também não recobre o que nossa cultura
considera homossexualidade passiva e homossexualidade ativa: o que era considerado
feminino para os gregos diz respeito a uma falta de domínio em relação aos prazeres e “os
signos tradicionais dessa feminilidade preguiça, indolência, recusa das atividades um
tanto rudes do esporte, gosto por perfumes e pelos adornos, lassidão”
116
. O que os gregos
consideram uma falha moral, uma “negatividade ética”, não é, evidentemente, amar os dois
sexos: também não o é preferir seu próprio sexo ao outro; é ser passivo em relação aos
prazeres”
117
.
A prática do amor entre os rapazes era relativamente livre e admitida por lei desde
que sob certas condições, encontrando respaldo em diferentes instituições (militares e
pedagógicas, por exemplo). Rituais religiosos a reverenciavam, ao lado de uma literatura
116
FOUCAULT, M. (1984) - História da sexualidade, pag.79
117
Ibidem
58
voltada para sua excelência. No entanto, não escapava de um complexo jogo de
valorizações e desvalorizações que dificultava a decifração da moral que a sustentava. Um
dado incontestável é que esta prática foi objeto de grande preocupação moral, recoberta por
“imperativos, regras, conselhos, exortações, ao mesmo tempo numerosos, urgentes e
singulares”
118
.
Em linhas gerais, os gregos consideravam que acima da diferença sexual estava a
beleza e a honra do objeto escolhido, o que constituía seu grau de “desejabilidade”, mas
este desejo, quando orientado para outro homem, devia ser regido por uma outra moral,
diferente daquela que constituía as relações dos homens com as mulheres. O uso destes
prazeres estava condicionado por uma “estilística própria”, nas palavras de Foucault. A
relação entre os parceiros devia ser estabelecida a partir de uma diferença de idade e,
somando-se a esta, uma distinção de classes. A estilística do amor entre os rapazes visa esta
dissimetria. Ela não se interessa por relações entre dois homens maduros, assim como por
tal relação entre rapazes da mesma idade. O interesse por este amor podia abranger o caso
de dois jovens de idades próximas desde que o mais jovem ainda não tivesse atingido seu
status definitivo. Esta defasagem marcava uma diferença que não deve ser entendida como
uma tendência a um, digamos, comportamento pedófilo aceito pelos gregos, nem mesmo
como a particularidade de um gosto perverso, embora, diz Foucault, o jovem fosse
claramente reconhecido como “um objeto erótico de alto valor” na Antiguidade grega.
O que foi exposto, não exclui que houvesse relações simétricas entre os homens
nem que fossem alvo de fortes preconceitos: as relações entre dois jovens podiam ser
consideradas naturais, entretanto, entre dois homens maduros havia reprovação, uma vez
que se colocava o questão da passividade/atividade. Na puberdade, eram admitidos, porém,
na idade adulta tornavam-se altamente suspeitas. A valorização do amor entre homens se
baseava na suposição do desempenho de uma função social do mais velho para com o mais
jovem. Aquele participava ativamente da formação deste e o fim último deste amor era
incluir o jovem na vida da Polis e deixá-lo livre para seguir seu caminho.
A prática da filosofia estava estreitamente ligada a este vínculo amoroso, como
ilustra a atuação de Sócrates entre os jovens e até mesmo a injusta condenação de foi
118
FOUCAULT, M. (1984) - História da sexualidade, pag.79
59
vítima. Este amor foi objeto de práticas e rituais de cortejamento que não possuíam a
complexidade do amor cortês, mas que definiam os rituais de um jogo social entre dois
parceiros em torno de um estilo de relação amorosa referida a um ideal de beleza e
moralidade. Estas regras estabelecem as funções do erasta (o amante-ativo) e do erômeno
(o amado-passivo).
A corte entre os parceiros tinha os lugares demarcados. O erasta devia tomar a
iniciativa de abordar seu objeto, demonstrando seu ardor, moderando seus arroubos,
oferecendo presentes e prestando serviços ao jovem. Estes jogos compreendiam a função
do erasta de dar provas de seu amor para aguardar a justa recompensa. O jovem assediado,
o erômeno, deveria dar provas de seu recato, não poderia jamais ceder facilmente ao erasta
sem pôr à prova seu justo valor, e, na hora oportuna, seria imprescindível saber manifestar
reconhecimento pelas atenções recebidas.
Estas práticas, conduzidas com todos os avanços e recuos que relatamos,
demonstram que o amor entre os rapazes era objeto de grande interesse para os gregos,
assim como sua concretização denotava um investimento libidinal de porte entre as partes
envolvidas. Sua complexa rede de ações denunciava as dificuldades de tal empreendimento,
situando-o como uma conquista altamente valorizada em termos da civilização.
Foucault refuta mais uma vez a idéia freudiana de que a relação entre os homens na
Grécia antiga estava fundamentada em uma bissexualidade natural, que conduzia os
homens a se apaixonarem pelos rapazes por causa da beleza própria de puberdade que
continha os traços próprios aos dois sexos. A virilidade devia estar presente no jovem como
promessa futura, na concepção de Foucault. À medida que o rapazinho se tornava um
homem, tais relações deviam ser refeitas, transformadas em amizade, a philia”, na forma
de gratidão e reconhecimento; “uma benevolência mútua”, nas palavras de Foucault,
substituiria o laço amoroso.
Esta erótica contraria profundamente a idéia de uma perversão de origem neste
delicado laço social. É de se deduzir que os gregos tinham uma”outra noção legal da
perversão”
119
. É preciso assinalar que estes relacionamentos eram, até certo ponto, de
domínio público, ao menos a partir de uma certa idade do erômeno. O assédio se
desenrolava nos lugares que o jovem freqüentava, com a restrição das escolas nas quais os
119
ANDRÈ, S. (1995) – A impostura perversa, pag.119
60
mestres se incumbiam de estabelecer certos limites. Cabe ressaltar que o erômeno tinha
total liberdade para aceitar ou recusar a oferta amorosa, desde que sua origem não fosse
servil.
Como argumentamos no início deste trabalho, a ética deste período, a Ética a
Nicômaco”, de Aristóteles, se articulava sobre um ideal que se dirigia ao seu fim último, o
“Soberano Bem”, fundamentada na relação Senhor/Escravo. O mestre antigo recusava a
passividade intrinsecamente ligada à função do Escravo. A virilidade estava profundamente
ligada à atividade que também tinha seu lado passivo na medida em que o “domínio de si”,
a recusa dos excessos, condizia com uma contenção que, se era ativa no interior do próprio
sujeito, era passiva em sua exteriorização.
61
O homossexual existe?
Um rápido olhar para a Antiguidade grega basta para nos acercarmos desta dúvida e
de várias outras. A vida amorosa dos antigos valorizava a tendência
(passividade/atividade), enquanto que a modernidade e a vida atual enfatizam o objeto: “os
antigos rodeavam a tendência com festas e estavam prontos também a fazer as honras, pelo
intermédio da tendência, de um objeto de menor valor, de um valor comum, ao passo que
nós reduzimos o valor da manifestação da tendência e exigimos o suporte do objeto pelos
traços prevalentes do objeto”
120
. Foi uma mudança considerável. No Mal estar na
civilização”, Freud diz: “dentre as obras deste delicado autor inglês, Galsworthy (1867-
1933), cujo valor é hoje reconhecido internacionalmente, uma novela outrora muito me
agradara, chama-se The Apple tree”, e mostra como não mais lugar em nossa vida
civilizada de hoje para o amor simples e natural, o eco pastoral de dois seres humanos”.
É preciso comparar para compreender este giro do ideal do amor dos antigos para o
modo atual de amar. Ao menos, constatar este deslocamento histórico que estruturou o
amor em outras bases, da tendência para o culto do objeto idealizado, “o qual foi
determinante quanto à elaboração, que é preciso chamar de sublimada de uma certa
relação”
121
. Neste mesmo Seminário, Lacan supõe que Freud tenha abordado de forma
invertida esta questão no texto em que ele trata da degradação da vida amorosa. Lacan
considera que, menos do que esta degradação, o que precisa ser realmente procurado é “um
certo cordão perdido, uma crise, que concerne ao objeto”
122
.
A nostalgia da tendência que se experimenta sobre o amor dos antigos, assegurado
por ela, talvez retrate nossas dificuldades como uma civilização que ainda não sabe o que
fazer com relação ao objeto. No caso, o objeto mulher, que veio a ser exaltado nesta
formação cultural que parece ter seus primeiros indícios na corte que o erasta dedicava ao
erômeno: o amor cortês.
Estas considerações a que recorrri nos textos de Freud e Lacan sobre o
deslocamento da tendência para o objeto, eu as levantei para tentar entender como foi que,
de uma “estilística da existência”, que regia um tipo de amor altamente valorizado dentro
120
LACAN, J. (1988) Seminário 7: A ética da psicanálise, pag.124
121
LACAN, J. (1988) Seminário 7: A ética da psicanálise, pag.125
122
Ibidem
62
de certos parâmetros e fundamentado sobre a tendência, pudéssemos alcançar o que hoje
denominamos homossexualidade, mais especificamente a homossexualidade masculina.
Como pudemos chegar ao ponto de criar um significante, um fato de discurso, com
o qual inúmeras pessoas se identificam ou são por ele identificados, que adquiriu um status
de alto poder segregacionista? Passamos de “um amor que não ousa dizer seu nome” para
um “amor que sai as às ruas”, sedento, organizando paradas que encenam sua própria
degradação. É o retorno do recalcado teatralizado como uma pantomima. Este mesmo
significante também reúne pessoas que querem ver legalizadas e sacralizadas suas relações
amorosas e constituir famílias e que muitas vezes o fazem com a devida dedicação. Estes
fatos denunciam um desejo de inclusão sem precedentes na história; na medida de sua
segregação. Sem falar nas práticas sexuais violentas e promíscuas que se têm notícias aqui
e ali. Como açambarcar tão variados modos de gozar sob um significante? Certamente
não vou conseguir me aproximar de uma resposta que seja a todas estas questões, mas
quero desta forma demonstrar como um significante tão maltratado pode ser visto levando
em conta as transformações históricas que nos conduziram a “este estado de coisas”. Este é
um desejo impossível.
“Parece, inclusive que, nenhuma época da história condenou a
homossexualidade masculina com tanta energia e ignorância quanto aquela
em que nascemos. Tal recalcamento acarreta, como de praxe, um retorno do
recalcado: a homossexualidade masculina, cuja existência obviamente
perdurou através dos séculos, agora faz suas proposições e sua exigências
serem ouvidas no discurso do mal-estar de nossa civilização, com a ênfase
do recalcado, a ponto de chegar em alguns lugares, a formar um verdadeiro
sintoma da civilização, será que a psicanálise exerce, além da relação a dois
que desenrola sua experiência alguma influência sobre essa rejeição que faz
da homossexualidade masculina uma anomalia a ser corrigida um crime,
quando é o discurso religioso que domina, ou uma doença, quando o
discurso da ciência vem substituí-lo?”
123
.
Utilizo esta frase, como uma ferramenta nem de todo apropriada por não mais
retratar a realidade, para condensar minhas inquietações antes de introduzir a parte clínica
propriamente. No mais, a maneira como vou desenvolvê-las estão muito próximas da
leitura que fiz deste autor. O fato é que o significante homossexualidade veio a se introduzir
123
ANDRÉ, S. (1995) – A impostura perversa, pag.115
63
no discurso dominante para preencher as mais variadas formas de sexualidade homoerótica
a que um ser, com esta tendência ou orientação, venha a se identificar. Esta insígnia com a
qual o sujeito vem a se conotar: “sou homossexual”, está presa ao Outro e ao sujeito
implicado cabe interrogar em que medida ele cabe ou escapa a esta nomeação. Quando
chegam aos nossos consultórios, o fardo de exclusão que carregam se expressa por um dito
simples mais contundente: “não sou como todo mundo”.
Para poder ouvi-los é preciso que sejamos capazes de, numa certa medida, “não ser
como todo mundo”, deixar de lado, reservado, o Outro do discurso. E pensar como foi que
nossa civilização caminhou para que construíssemos um discurso, o da ciência que acredita
na relação sexual, que faz da mulher o complemento do homem, um para o outro excluindo
sob um significante “exclusivo” os que mais ou menos ostensivamente são a prova viva de
que a relação sexual (tomando a palavra relação no sentido matemático) não existe?
Todo esse encaminhamento da idéia de que a relação sexual não existe já é cogitado
em Freud das mais variadas formas; os própriosTrês ensaios sobre a sexualidade” são sua
constatação. Se a sexualidade humana não passa de um “inventário de taras”, que
comprovam que não propriamente um instinto que nos dirija a lugar nenhum, como
fazer existir a relação sexual? Lacan tem uma resposta para isso, curta e delicada: “o que
vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor”
124
.
Se não complementariedade entre o homem e a mulher (que além de tudo não
existe toda), como considerar a heterossexualidade normal (para além da curva de Gauss) e
a homossexualidade um desvio? Bem, obviamente não devemos considerar que a
homossexualidade seja a via normal, nem mesmo um modelo, “mas também não decorre
daí que ela deva ser considerada simetricamente oposta à heterossexualidade, cuja
definição, aliás, é sumamente problemática”
125
.
Pode-se justamente pensar com Freud e Lacan, que a heterossexualidade faz até
mais questão do que a homossexualidade, uma vez que, sob as leis do inconsciente, no
nível do inconsciente, o “Outro sexo é simplesmente impensável”
126
. Se tomarmos o falo,
da forma como Freud nos indicou, como o elemento, o significante único de um sexo para o
124
LACAN, J. (1982) – Seminário 20: Mais, ainda, pag.62
125
LACAN, J. (1982) – Seminário 20: Mais, ainda, pag.115
126
Ibidem
64
qual o Outro sexo é a alteridade absoluta, a própria verdade da castração e que as vias da
identidade sexual passam por variados modos encará-la (se é que é possível), como não ver
que a sexualidade humana é em si mesma um enigma? Isso sem tocar na questão do “objeto
causa do desejo, impossível de apontar, mas ainda assim real, e cuja natureza por sua vez é
assexuada”
127
.
Ao retornar à Antiguidade, à Grécia, podemos nos assegurar de um momento rico
na história, inclusive na história das idéias que avança até a idade moderna, em que o ideal
de Eros (que afinal visa unir no amor) se desloca do jovem para a donzela que, “passamos
de uma anomalia para outra, e que a representação fálica ri da anatomia”.
128
A homossexualidade masculina: as estruturas clínicas
As referencias a homossexualidade percorrem toda a obra de Freud deslocando-se
da bissexualidade constitutiva do sujeito para o complexo de castração e a função do pai. A
obra em que ele mais se estendeu sobre o tema foi Leonardo da Vinci e uma lembrança de
sua infância(1910), na qual ele situa a homossexualidade no terreno da neurose. Um ano
depois, foi publicado um longo artigo sobre Schreber, Notas psicanalíticas sobre um
relato autobiográfico de um caso de paranóia”, onde a homossexualidade se situa na base
da paranóia de Schreber. Em 1919, em Uma criança é espancada”, Freud faz um extenso
estudo sobre fantasias perversas em casos de neurose.
Em todos esses casos, é de uma fantasia que Freud parte rumo à investigação.
Depois de Freud, muitos analistas tenderam a situar a homossexualidade masculina no
âmbito da estrutura perversa considerando que só uma pequena parcela de homossexuais se
enquadraria na neurose, dificultando esta distinção. Para os autores anglo-saxões só a
homossexualidade quando manifesta seria considerada perversa. No geral, a grande maioria
considera que a homossexualidade está distribuída igualmente entre as três estruturas
clínicas.
Os homossexuais masculinos resistem a procurar a psicanálise e, para a maioria dos
psicanalistas, isso não quer dizer que eles sejam necessariamente perversos e não há nada
127
LACAN, J. (1982) – Seminário 20: Mais ainda, pag.115
128
LACAN, J. (1982) – Seminário 20: Mais ainda, pag.116
65
que se possa fazer sobre isso. Este é um ponto discutível atualmente uma vez que a procura
pela psicanálise tem aumentado, talvez isso se deva à progressiva aceitação deles na cultura
nos últimos anos.
Um dado que não se pode desprezar é o de que para Freud o elemento patológico
por excelência se caracteriza pela exclusividade do objeto na perversão e em sua fixidez
porque, como sabemos a disposição perversa é parte integrante da neurose. A perversão
como tal pode ser definida por estabelecer uma condição única de gozo o que torna o
fetichismo o paradigma da estrutura. Na neurose, também pode ocorrer, transitoriamente
um ato perverso, desencadeado pela “ruptura do equilíbrio homeostático” com o propósito
de localizar o gozo. A verdadeira perversão se apresenta com a face exclusiva e fixa de uma
fetichização do objeto “pênis” ou, em sua versão masoquista ela se caracteriza por uma
posição única frente ao Outro, para se assegurar do gozo.
Uma vez postas essas diferenças, é possível distinguir as duas estruturas, situando
do lado da homossexualidade neurótica “uma relação com a defesa e o desejo” e, do lado
da homossexualidade perversa uma “fixação libidinal em relação ao gozo perverso em que
seu caráter exclusivo é patente”
129
.
Conclui-se que o termo homossexualidade “designa uma escolha de objeto sexual,
ou a conduta sexual, o que não inclui necessariamente a fetichização do objeto ou, a
posição masoquista do sujeito, que sozinha, autorize o uso do termo perversão”
130
.
Freud retira do estudo das fantasias de Leonardo a conclusão de que nos homens
homossexuais é comum que tenham sido “alvo de intensos ataques eróticos de suas mães,
ou de outra mulher que cuida da criança em sua primeira infância. Ataques provocados por
uma ternura excessiva da mãe, acompanhado de um desvanecimento do pai na vida da
criança”. Leonardo, em sua vida, parece ter feito escolhas amorosas platônicas, escolhas
narcísicas. Cercou-se de belos rapazes desprovidos de talento aos quais ensinava sua arte
sem que de fato se soubesse se mantinha relações sexuais com os mesmos. Escolhia entre
esses jovens objetos que representavam o que ele fora para sua mãe, identificando-se com
ela.
129
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.163
130
Miller, D. et al. (1990) - Traits de perversion, pag.164
66
O fato de Leonardo ter sido abandonado por seu pai e aos cinco anos ter ido morar
com este e sua madrasta fez com que Freud concluísse que o desdobramento da função da
mãe em duas, também expressa em sua obra, pode ter influído na inibição sexual de que foi
vítima. Em relação à sua verdadeira mãe, Leonardo, tomado como brinquedo erótico teve
despertado precocemente seu erotismo, o que o levou a sacrificar parte de sua virilidade.
Freud associa o sorriso estático de sua mãe, marca de seu gozo, com o amor
excessivo que Leonardo lhe dedicara, prova da veneração da maternidade que ele expressa
através de sua obra, o que denuncia sua dificuldade de renunciar ao objeto mãe.
A esta primeira elaboração de Freud, a propósito da homossexualidade masculina,
emergiu um consenso entre os analistas que se estendeu até o senso comum de que a mãe
fálica é a condição “sine quae non” da escolha homossexual.
Freud avança cuidadosamente em sua teoria sob a vertente da causalidade materna.
Outras condições são necessárias para que esta relação com a mãe, seja determinante, é
necessário também que haja uma certa carência de pai. É necessário que tenha havido uma
renúncia em relação ao pai. O menino sai da rivalidade com o pai deixando-lhe todas as
mulheres.
67
A sexualidade feminina e a perversão
Para abordar esse problema recorro primeiramente a dois casos de Freud: a jovem
homossexual e Dora, mais exatamente “a psicogênese de um caso de homossexualismo
numa mulher”, texto de 1920 e, “fragmento da análise de um caso de histeria”, de 1905.
Começarei por cotejar os capítulos VI, VII e VIII do Seminário 4 - A relação de
objeto”, de Lacan, cujos títulos são respectivamente, “O primado do falo e a jovem
homossexual”, “Bate-se numa criança e a jovem homossexual” e “Dora e a jovem
homossexual”, assim como trazendo uma ou outra contribuição de outros autores. no
primeiro parágrafo do capítulo VI deste Seminário, Lacan apresenta a complexidade do
tema: “este problema é o da perversão, entre aspas, a mais problemática possível na
perspectiva da análise, a saber, a homossexualidade feminina”.
Ao introduzir seus ouvintes no caso da jovem homossexual, Lacan se refere a ele
como “... um dos casos mais brilhantes de Freud, e, diria quase um dos mais
perturbadores”.
131
Em outro momento deste mesmo capítulo, também no início, ele ressalta
que: “A homossexualidade feminina foi dotada, em toda a análise, de um valor
particularmente exemplar, pelo que ela pôde revelar sobre as etapas do encaminhamento da
mulher, bem como sobre as interrupções que podem marcar seu destino”.
132
Com o propósito de recordar o caso, vou reduzi-lo aos seus aspectos essenciais. Trata-
se de uma bela jovem de boa família de Viena, 18 anos, inteligente, que se torna objeto de
grande preocupação dos pais ao se lançar ao encalço de uma “dama”, como diz Freud,
“uma dama do mundo”, de reputação duvidosa, com uma década a mais do que nossa
jovem. Os pais levam-na a Freud como um último recurso, uma vez que, além do mais, a
moça havia feito uma séria tentativa de suicídio, quando, ao cruzar com o pai numa rua de
Viena próxima de sua casa, estando acompanhada de sua “dama”, em atitude de franco
desafio a este, jogou-se de uma ponte sobre a via férrea, sob o olhar paterno. Ao tomá-la em
análise o que denominou “exploração analítica” Freud pôde colher dados suficientes
para construir um edifício teórico que se tornou um verdadeiro paradigma da
homossexualidade feminina: “Uma constelação especial [...] tornou possível, [...],
131
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.102/3
132
Idem
68
conseguir uma plena confirmação de minhas construções teóricas e obter uma compreensão
interna (insight) adequada, em linhas gerais, de maneira pela qual sua inversão se
desenvolvera”.
133
A jovem apresenta-se a Freud no decurso de dois meses aproximadamente, durante os
quais ele menciona que ela passara “... pela atitude normal característica do complexo de
Édipo feminino de maneira não tão notável e, posteriormente, começou a substituir o pai
por um irmão ligeiramente mais velho que ela”.
134
A comparação entre os órgãos genitais
do irmão e os seus, que fez pelo início do período de latência [...], deixara forte impressão e
tivera efeitos posteriores de grandes conseqüências”.
135
Os dados do relato da jovem levavam a pressuposição de uma resolução normal do
complexo de Édipo. “É admitido por todos os autores que, no desvio de sua evolução, a
menina, no momento em que entra no Édipo, começa a desejar um filho do pai como
substituto do falo faltoso, e que a decepção de não recebê-lo desempenha um papel
essencial para fazê-la voltar atrás no caminho paradoxal por onde ela entrou no Édipo, a
saber, a identificação ao pai, em direção à retomada da posição feminina”.
136
A jovem, aos 13 anos, em plena revivescência do complexo de Édipo, se apegou
ternamente a um garotinho que conhecera em um playground. Seu afeto foi tão grande (a
corrente terna, como diz Freud) que passou a cuidar dele periodicamente, o que acabou por
provocar um laço entre as duas famílias. Este fato vem a corroborar com a pressuposição de
uma resolução normal do complexo de Édipo. No entanto, uma inversão de fato ocorreu:
Freud constata que é precisamente o nascimento de um irmãozinho (bebê dado à e pelo
pai) o que desencadeia a mudança de objeto.
A moça troca o amor do pai por uma identificação com ele, o que não quer dizer que
ela deseja ser um homem, o que ela deseja é desempenhar o papel (a função) do pai frente
às mulheres, talvez mais exatamente mostrar-lhe como se deve amar as mulheres,
desafiando-o. Em meio às “tormentas da puberdade” na vigência do que podemos
considerar de reafirmação e ou de mudança (retificação) da escolha de objeto – materializa-
133
FREUD, S. (1976) - Obras completas, vol. XVIII, p.191
134
FREUD, S. (1976) - Obras completas, vol. XVIII, p.193
135
Idem.
136
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.98
69
se a criança real, ali onde ela desejava sua criança-falo imaginária e não é dela, é dada pelo
pai à mãe.
No texto de Lacan ao qual me refiro, (cap. VI), ele estabelece uma precisão ao dizer
que a jovem entrara na “dialética da frustração”: “Ao entrar na reivindicação fálica, ela
quer receber do pai, mais que o filho, o dom: o que aqui está em jogo é menos o objeto do
que o amor”.
137
Ele deve ser dado a quem de direito. No caso em questão, o garotinho veio
preencher a falta fálica e a jovem se constituiu em sua “mãe imaginária”. A criança adquire,
segundo Lacan, um estatuto real, para ela, seu pênis imaginário “de que foi
fundamentalmente frustrada” e, o aparecimento a posteriori do irmãozinho provoca uma
mudança na sua posição subjetiva.
Com o propósito de esclarecer a particularidade deste caso, seu caráter dramático,
digamos, Lacan frisa o quanto é “por demais inquietador” que ela (a criança) seja real: “ora,
à criança que desejava inconscientemente, a menina deu um substituto real onde encontrava
sua satisfação, traço que mostra uma acentuação da necessidade” [...] “compreende-se a
partir daí, que o sujeito tenha sido frustrado de uma maneira muito particular quando a
criança real, vinda do pai como simbólico, foi dada à própria mãe
138
.
A situação torna-se insustentável, desmorona e a moça “se arranja como pode”
139
, as
coisas se estruturam a maneira de uma perversão, nos diz Lacan. Revela-se uma situação de
intenso ciúme da filha pela mãe, onde aquela se sente traída pelo pai e, “... se a satisfação
imaginária que ela se entregava (o amor pelo garotinho) tomou um caráter insustentável, foi
na medida em que se introduziu o real, um real que respondia à situação inconsciente no
nível do plano do imaginário”.
140
O que estava latente no plano simbólico “começa a se
articular de maneira imaginária, à maneira de uma perversão, e é, aliás, por essa razão e não
outra, que isso vai resultar numa perversão. A moça se identifica ao pai e assume o papel
deste. Torna-se ela mesma o pai imaginário. Ela também conserva seu pênis, e agarra-se a
um objeto que não tem (a dama) ao qual é preciso, necessariamente, que ela esse algo
que ele não tem”.
141
137
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.101
138
LACAN, J. (1995) – Seminário 4: A relação de objeto, pag.130
139
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.131
140
Idem.
141
Idem.
70
Para além do brilho desta contribuição lacaniana ao caso, é necessário destacar dois
pontos importantes: a ênfase dada ao amor e não propriamente ao objeto, pois é preciso
entrar na dialética do dom para com o objeto, ama-se aquilo de que o objeto carece, a falta,
e é fundamental que se doe a quem não o tem. Em outras palavras: é justamente por não ter
o falo, pela sua falta fálica, que a dama se torna alvo de amor.
Ao pai convocado na posição de testemunha, o terceiro masculino, ao menos
potencial que a maioria dos autores postula como presença indispensável nos casos de
homossexualidade feminina, assim como aos homens em geral cabe à jovem ensinar
como se deve amar uma mulher. Para além de oferecer-lhe o falo é preciso cortejá-la, servi-
la, cuidar dela, valorizar sua falta, pois é justamente que reside o bem mais precioso,
marca da diferença entre os sexos, objeto de horror e fascinação, dissimetria que faz apelo
ao amor, também. Nas palavras de Serge André, ela propõe ao pai o seguinte enigma:
‘acaso se é capaz de amar realmente uma mulher quando se é homem?Se o pai não soube
amá-la, com certeza ele e os homens em geral jamais saberão ‘o que quer uma mulher’. É
este o desafio que ela lança ao pai ao caminhar com sua “dama” pelas ruas de Viena.
O encontro com o pai real é o momento da projeção em cena da relação antes
simbólica com o pai de alguém que vai receber o dom do pai, ela passa ao lugar de
alguém que sabe como doar e ostenta isso – agora tornada imaginária através de sua
identificação com ele em sua relação com a dama. E o pênis, agora, não é mais
imaginário, diz Lacan, é também simbólico. As conseqüências deste encontro não foram
poucas.
Neste capítulo, o VI, a ênfase é posta na relação entre o amor e a falta, o que, se pelo
lado da falta ilustra a perversão no que tange à castração - uma vez que toma o desejo a
partir da falta fálica - assim como à imaginarização do pai, que caminha neste sentido, por
outro lado, o lado do dom do amor, retira-lhe, por assim dizer, seu caráter perverso.
Um pequeno resumo
Na tentativa de fazer um rápido retrospecto do ponto em que está a situação quando se
apresentam as dificuldades para Freud, situemos o caso assim: no tempo de sua puberdade,
sua posição, sua estruturação simbólica e imaginária se realizam de acordo com a teoria:
71
equivalência pênis imaginário criança mãe imaginária e pai instaurado como função
simbólica: “O pai é aquele que pode dar o falo. Todos estes passos são inconscientes. Neste
ponto do declínio do Édipo, dá-se o momento fatal, o pai da realidade dá à mãe uma criança
real”, isto é, faz “desta criança diante de quem o sujeito está em relação imaginária uma
criança real”.
142
A situação torna-se insustentável, a jovem se frustrada de sua criança
imaginária e a equação se transforma: pai imaginário, a dama, o pênis simbólico (o pênis
oferecido à dama). A relação do sujeito com seu pai, antes simbólica, passa a ser
imaginária, ou seja, torna-se uma relação “perversa”. O dom que ela receberia do pai ela
projeta sobre a dama. As relações em jogo estão postas desta forma, está configurada a
inversão.
Os sonhos e a transferência
Ao fim de aproximadamente dois meses de trabalho, Freud decide encaminhar a moça
para uma analista mulher, alegando que as resistências da paciente não puderam ser
superadas. Ele localiza-as a propósito de uma série de sonhos, que ele chama de
enganadores e cristaliza-se a ruptura do trabalho analítico. Lacan atribui esse rompimento a
um erro de Freud em sua interpretação do sonho de transferência, erro este que ele compara
à interrupção da análise de Dora. Aspectos contratransferenciais intervêm em ambos os
casos. A jovem sonha seguidamente que se apaixonou, casou e tem filhos, ou seja, tudo o
que socialmente se poderia esperar como resultado do tratamento. Freud nestes sonhos
uma intenção expressa de enganá-lo, de, simultaneamente, iludi-lo para em seguida
desiludi-lo da forma mais acachapante. Toma uma postura defensiva ao dizer-lhe “... que
não acreditava naqueles sonhos, que os encarava como falsos e hipócritas e que ela
pretendia enganar-me, tal como habitualmente enganava o pai”.
143
É o analista que resiste.
Freud, apesar da interpretação, digamos,“desastrosa” (do ponto de vista
transferencial), não deixou de observar com sua costumeira argúcia que se tratava de uma
“transferência positiva”, pois, “os sonhos expressavam o desejo de conquistar meu favor,
eram também uma tentativa de ganhar meu interesse e minha boa opinião...”.
144
Recorre à
142
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, pag.135
143
FREUD, S. (1976) - Obras completas, vol. XVIII, pag.204
144
FREUD, S. (1976) - Obras completas, vol. XVIII, pag.205
72
“A interpretação dos sonhos” para detalhar os caminhos da constituição dos sonhos,
dizendo: “Um sonho não é o inconsciente; trata-se da forma pela qual um pensamento
remanescente da vida desperta pré-consciente ou mesmo inconsciente para, graças ao
estado de sono, ser remodelado”.
145
Distingue o desejo inconsciente do desejo pré-
consciente. Sabe como ninguém que um sonho pode se constituir “como representante
daquilo que se chama o inconsciente”,
146
se tiver calcado no desejo inconsciente; “só que
não tira daí as conseqüências extremas”.
147
Freud precisaria ter reconhecido que, apesar de
enganosos (na intenção pré-consciente) eram dirigidos a ele, ela sonha para ele. A cena
imaginária do sonho era tão somente uma versão nova do desejo primário dirigido ao pai,
de ter dele um filho. Freud sabe disso, considera estes sonhos também “uma revivescência
grandemente enfraquecida do original e apaixonado amor da jovem pelo pai”.
148
Apesar disso, ele enfatiza na transferência a intenção pré-consciente do sonho, o
aspecto de “tapeação”, digamos, a vertente de impostura do sonho, neste sentido,
acentuando seu aspecto perverso. Em dado momento de seu ensino, muito posterior ao
Seminário 4 em que baseio estas considerações, Lacan apresenta o termo père-version, o
que, grosso modo, poderia ser aplicado ao sonho enganador da jovem no sentido de “a
versão dada ao pai”, père-version limitando o jogo de palavras contido, excluindo o
efeito do sentido que é atribuído a esta expressão, a de que o pai transmite ao filho sua
père-version, ou seja, seu modo de gozo, o que carrega em si, um traço sempre perverso.
A jovem, ao tomar seu pai como objeto do desejo e dele esperar um filho no primeiro
tempo do Édipo, expressa no sonho seu desejo primeiro (o casar, ter filhos, etc.) e,
simultaneamente, engana o pai (Freud), o que, ela mesma dizia, pretendia jogar com os
pais, “... fingir se tratar e manter sua posição, sua fidelidade à dama”. Lacan comenta que,
“sem dúvida, estamos numa dialética da tapeação, mas o que se formula
no inconsciente [...] é, referido ao significante, aquilo que foi desviado na
origem, a saber, sua própria mensagem vinda do pai sob uma forma
invertida, sob a forma do você é minha mulher, você é meu mestre, você
terá um filho meu. Esta é, na entrada do Édipo ou enquanto o Édipo não
está resolvido, a promessa sobre a qual se funda a entrada da menina no
145
FREUD, S. (1976) - Obras completas, vol. XVIII, p.205
146
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.137
147
Idem.
148
FREUD, S. (1976) - Obras completas, vol. XVIII, p.204
73
complexo de Édipo. Foi daí que partiu a posição, e articula-se no sonho
uma situação que satisfaz a essa promessa. É sempre o mesmo conteúdo do
inconsciente que se verifica”.
149
Lacan critica Freud por sua desconfiança em relação aos sonhos da paciente, por não
dar a devida ênfase ao desejo primário presente, por revelar um temor e simultaneamente
uma satisfação, um triunfo mesmo, por não se deixar enganar pela jovem e mostrar isso
claramente a ela. Faltou, por assim dizer, um savoir faire com a transferência, um savoir
dire, um manejo, “um bem dizer” que valorizasse a centelha de verdade contida na mentira,
um equilíbrio entre não se deixar enganar pela jovem impostora e, sem desmascará-la,
mostrar a outra face de Jano.
O comentário de Lacan no final deste capítulo assinala a vertente simbólica do sonho
colocando-o como “o representante da transferência em seu sentido próprio”, e Freud teria
se deixado tomar mais intensamente pela vertente imaginária e se deixado capturar por ela,
e completa, “era ali que Freud poderia arriscar a sua confiança e intervir com audácia”.
150
Dora
A tese de Lacan é de que Freud falhou com Dora “no mesmo nível, da mesma
maneira, só que [...] comete o erro exatamente contrário”:
“Esses dois casos se equilibram admiravelmente. Entrecruzam-se,
estritamente, um e outro. Para começar, porque a confusão da posição
simbólica com a posição imaginária se produz, em cada um, num sentido
oposto. Mas, mais ainda, porque na sua constelação total eles se
correspondem estritamente, com a diferença que um se organiza com
referência ao outro sob a forma do positivo ao negativo. Poderia dizer que
não existe melhor ilustração da fórmula de Freud, de que a perversão é o
negativo da neurose”.
151
Percorrendo rapidamente o traçado do caso, temos um pai, uma filha, uma dama e seu
marido. O problema, lembremos, o ponto pivô, é a dama. Tal qual como a jovem, Dora é
levada a Freud após um acontecimento que preocupou bastante seus pais, o que Lacan
define assim “... uma espécie de demonstração ou intenção de suicídio”. No caso da
149
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.137
150
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.138
151
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.139
74
“jovem”, houve mesmo um salto para a morte; Dora escreve uma carta e providencia que
ela seja lida por seus pais. A moça devotava grande amor a seu pai e se ressentia de seu
relacionamento amoroso com a Sra. K. O pai a leva a Freud como “a doente” o que por si
“só denota claramente uma crise no conjunto social onde um certo equilíbrio fora até então
mantido”
152
. O pai dissimula a verdadeira situação a Freud, a moça revela os fatos onde se
percebe que o casal Sr. e Sra. K vive “numa espécie de relação a quatro” com a moça e seu
pai. No caso da jovem temos três personagens principais (pai, filha e dama), no caso Dora a
mãe praticamente não participa, em relação à jovem homossexual, a mãe concorre
claramente com a filha, fechando os olhos ao seu homossexualismo, e introduz “o elemento
de frustração real que terá sido o determinante na formação da constelação perversa”.
153
No caso Dora é “o pai que introduz a dama” e a mantém ali, veremos, com a
cumplicidade da filha, auma certa altura. No caso da jovem, é ela quem “a introduz”.
Dora reivindica o fim da relação e lamenta amargamente o pai tê-la oferecido como objeto
de troca para o marido da Sra. K. No momento em que os fatos reais, as cartas estão enfim
postas na mesa, Freud implica Dora na questão: “... a desordem de que você se queixa, não
é algo de que você mesma participou?” Dora sustentara aquela posição protegendo e
facilitando os encontros de seu pai com a suposta rival, cuidando de seus filhos, até a
famosa cena do lago onde o Sr. K a corteja, declara seu amor. Lacan demonstra que o que
provoca a ruptura não é a corte do Sr. K que já vinha de muito tempo, o que torna
insustentável o equilíbrio do quarteto e interrompe bruscamente toda a afinação mantida até
aquele momento é a frase: Ich habe nichts an meiner Frau.
Para Lacan, o real sentido contido nesta “sentença” é diferente daquele que
usualmente aparece nas traduções, ou seja: minha mulher não é nada para mim; ele tem o
cuidado de precisar que o que o Sr. K quer dizer é que pelo lado de sua mulher não há nada.
O Sr. K quer dizer que não nada depois de sua mulher: minha mulher não está no
circuito, assim explica Lacan o sentido implícito neste “veredicto”. As conseqüências
retiradas destas palavras são o desmoronamento total da situação, que provoca em Dora
uma passagem ao ato (a bofetada) acompanhada da destituição de seu lugar neste quarteto,
lançando-a na reivindicação do amor do pai, dom este que, até então, mesmo
152
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.139
153
Idem.
75
precariamente, através da Sra. K, ela julgava receber. E o que é pior, desinvestida deste
amor do pai de quem se achava credora, ela não passa de um objeto de troca de um pai
sórdido que “a vende a um outro” em troca da complacência do Sr. K para obter os favores
da Sra. K. Dora, diz Lacan, é uma histérica, isto é, alguém que chegou ao nível da crise
edipiana e que ao mesmo tempo pôde e não pôde ultrapassá-la. Existe uma razão para isto:
é que o pai dela, contrariamente ao pai da homossexual, é impotente. Toda a observação
repousa na noção de impotência do pai”.
154
Lacan não deixa de utilizar o caso como exemplar para ilustrar o que pode ser a
função paterna no que concerne “à falta de objeto pela qual a menina entra no Édipo”.
155
Esta função pode ser definida como aquela do doador, o pai como “aquele que
simbolicamente [...] o objeto faltoso”
156
. Neste caso, adverte Lacan, ele dá o que não tem, a
impotência paterna atravessa o caso e é mesmo constitutiva da posição subjetiva de Dora. A
este pai, que adoece pela primeira vez na idade em que a menina devia sair do complexo de
Édipo, ela ama, dedica-lhe um amor intenso, diretamente proporcional ao declínio de sua
potência. uma clara distinção entre os dois casos: à jovem homossexual é negado o
objeto faltoso que, por sua vez, é oferecido à mãe desta, signo da potência paterna
materializado na criança, seu irmãozinho, colocado concretamente no lugar de seu filho
imaginário.
o que Dora demanda “como signo de amor, nunca passa de alguma coisa que
vale como signo”.
157
Não materialização possível da potência paterna e Dora o ama
“precisamente pelo que ele não lhe ”.
158
E, como tal, coube a Lacan indicar através deste
seminário e de outros momentos de seu ensino, por exemplo, no Seminário 8”, justamente
denominado “A transferência”, “... não existe maior dom possível, maior signo de amor,
que o dom daquilo que não se tem”.
Colocadas as coisas desta maneira, é preciso refletir como pôde a situação se manter
estável por tanto tempo, uma vez que Dora soube do relacionamento desde o início e que,
mais do que isso, até mesmo parece tê-lo induzido e sustentado. Lacan começa por
explicar que “a histérica é alguém que ama por procuração, [...] alguém cujo objeto é
154
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.141
155
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.142
156
Idem.
157
Idem.
158
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.143
76
homossexual”, ela “aborda esse objeto homossexual por identificação com alguém do outro
sexo”.
159
Dora imaginariamente identifica-se ao Sr. K, à sua personalidade, e é por seu
intermédio que ela se acerca do objeto homossexual. A questão de Dora sobre a
feminilidade está “suspensa” e concentrada na Sra. K. É a ela que Dora dirige a questão
sobre sua possível identificação com seu próprio sexo.
A questão pode ser formulada da seguinte forma, segundo a tese de Lacan: o que é
que meu pai ama na Sra. K? Ou, dito de outra forma, o que ela tem que provoca o amor de
meu pai e que eu não sei o que é? A questão de Dora está de acordo com a teoria do objeto
fálico, ou seja, no caso específico da mulher, esta “só pode entrar na dialética da ordem
simbólica pelo dom do falo”.
160
O sujeito feminino deseja o falo como dom, ele só pode ser
recebido como signo de amor, “elevado à dignidade de objeto de dom”.
161
É o que explica
uma diferença básica de gêneros, acessível à observação do leigo: a mulher teme perder o
amor, o homem a potência.
É esta posição de reivindicar, receber para além do falo, o dom, o que possibilita ao
sujeito “entrar na dialética da troca, aquela que irá normalizar todas as suas posições, até
inclusive as interdições essenciais que fundam o movimento geral da troca”.
162
Dora, a
partir da cena do lago, da frase do Sr. K, se reduzida a um mero objeto de troca,
“vendida a um outro” (palavras que ela diz e que resumem toda a situação), destituída do
dom do amor do pai. Dora não pode aceitar este lugar, não desta forma, onde ela não se
contemplada neste universo por nenhum dom de amor, onde não repartição entre filha e
amante, cessa a circulação do dom entre os membros do quarteto. Há uma ruptura para
Dora, contida nas palavras do Sr. K: se sua mulher está fora do circuito há uma cisão entre
os quatro personagens (dois p’ra cá, dois p’ra lá). Dora “não pode tolerar que ele não se
interesse por ela senão na medida em que ele se interessa por ela... se o Sr. K se
interessa por ela, é porque seu pai só se interessa pela Sra. K”.
163
159
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.141
160
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.144
161
Idem.
162
Idem.
163
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.146
77
Levi-Strauss, citado por Lacan em sua obra As estruturas elementares do
parentesco” demonstra que a troca de laços de aliança consiste em: recebi uma mulher e
devo uma filha... ‘o que faz da mulher um puro e simples objeto de troca’.
164
Dora não pôde renunciar ao amor do pai para recebê-lo de um outro homem, não fez
esta transposição, ela “... está excluída da primeira instituição do dom e da lei”, “... ela
pode viver esta situação sentindo-se reduzida pura e simplesmente ao estado de objeto”.
165
Uma vez dispostas estas considerações, retorno à comparação entre os dois casos,
acentuando o que Lacan considera o erro de Freud em relação ao caso Dora, também
pautado na transferência, uma vez que comentei este ponto no caso da jovem
homossexual.
Em “Intervenção sobre a transferência”, Lacan enumera as duas ‘inversões
dialéticas’ empreendidas por Freud no tratamento e o critica por não ter feito a terceira.
Localiza-a no momento em que se presentifica no segundo sonho da paciente o verdadeiro
valor da Sra. K para Dora. Seu valor, diz Lacan, “não é o de um indivíduo, mas o de um
mistério, o mistério de sua feminilidade, quer dizer, de sua feminilidade corporal”.
Num dado momento do texto de Freud sobre o caso, ele assinala a recordação de uma
cena da primeira infância de Dora na qual ela se chupando o polegar enquanto com a
outra mão puxa a orelha do irmão. Esta ‘cena primitiva’ assinala o peso da oralidade que é
determinante em sua vida, ‘a matriz imaginária’ que o tom ao objeto mulher
indissociavelmente ligado ao desejo oral o que entre vários sintomas se revelava nas
afonias de que sofria nas ausências do Sr. K. Diferentemente de Freud, que as atribuía às
ausências (viagens do Sr. K), Lacan não tem dúvidas de que elas expressam “a pulsão
erótica oral do ‘enfim sós’ com a Sra. K”.
166
Sabemos da impotência de seu pai e do modo
como ele exercia sua sexualidade.
Dora não consegue aceder a uma posição em que reconheça sua genitalidade, fixada
que está na oralidade ‘perversa polimorfa’ da infância. Ela não assume seu corpo de mulher
e permanece sujeita ao despedaçamento corporal do que dão testemunho os sintomas
conversivos. Desta forma ela se recusa a aceitar a condição da qual se queixa, e que ao
mesmo tempo resume toda sua situação: “meu pai me vende a um outro”. Não é possível
164
Idem.
165
LACAN, J. (1995) - Seminário 4: A relação de objeto, p.146
166
LACAN, J. (1998) - Escritos, p.230
78
para ela aceitar ser objeto do desejo de um homem, condição sine qua non de todo acesso
possível à posição feminina. Ela não esgotou sua questão dirigida à Sra. K.
O que sucede no que deveria ser a terceira ‘inversão dialética’ é que Freud não
consegue orientá-la para “o reconhecimento do que era para ela a Sra. K, obtendo a
confissão dos segredos últimos de sua relação com ela, [...] abrindo caminho para o
reconhecimento do objeto viril”.
167
É o próprio Freud que comunica desta forma seu
fracasso ao adiar a interpretação, para a qual descobre ‘só depois’ o ter mais tempo.
Ela decidira parar o tratamento. Ele apontara insistentemente como seu objeto de amor o
Sr. K, ao que ela nunca aquiesceu. Freud parecia querer dirigir o tratamento analítico no
sentido desta escolha objetal heterossexual, vendo nela uma ‘promessa de felicidade’ para a
vida de Dora.
Em uma nota de rodapé do caso “Fragmento da análise de um caso de histeria”, ele
reconhece que não apreciou devidamente o valor do vínculo homossexual que unia Dora à
Sra. K. Apesar de saber da importância da tendência homossexual na subjetividade das
histéricas ele não pôde enfrentá-la em Dora e mantém uma constante ambigüidade em
relação a este tema no decurso de todo o relato do caso clínico. Em dado momento de
reflexão ele atribui seu fracasso ao desconhecimento em que na época se encontrava sobre a
questão “da posição homossexual do objeto visado pelo desejo da histérica”.
168
A reflexão que advém da leitura do caso conduz a uma apreensão de que a
contratransferência (no sentido dos preconceitos do analista) pode tê-lo conduzido a uma
denegação ‘da posição sexual do objeto visado’ por Dora é o que parece demarcar sua
insistência em apontar o Sr. K como seu objeto. O próprio Freud identifica-se demais com
o Sr. K, comenta Lacan: “no tocante a Dora, sua participação pessoal no interesse que ela
lhe inspira é confessada em muitos pontos do relato do caso” [...] “ela o faz vibrar com um
frêmito”.
169
No que concerne à terceira ‘inversão dialética’ que não de ocorrer, o resultado,
como seria de se esperar, foi a transferência negativa: “esta se manifesta com força tanto
167
LACAN, J. (1998) - Escritos, p.236.
168
LACAN, J. (1998) - Escritos, p.307
169
LACAN, J. (1998) - Escritos, p 223
79
maior quanto mais uma análise tenha comprometido o sujeito com um reconhecimento
autêntico, e habitualmente se segue a ruptura”.
170
A dimensão de ‘tapeação’ pode ser ‘entrevista’, no caso, o que provoca
‘inadvertidamente’ uma comparação com as atitudes da jovem homossexual, com seus
sonhos enganadores e os movimentos de Freud na interpretação dos mesmos. É possível
notar um falseamento, até mesmo um ‘forçamento’ de Freud no sentido de orientar Dora na
direção do Sr. K, um entusiasmo excessivo. Também nela uma falsa exaltação
dessa relação nos detalhes que relata, no entanto, ela se ressente com Freud.
É possível supor que além do aspecto ‘falso’ uma outra dificuldade se acrescenta para
ela: a direção que Freud aponta é muito semelhante à de seu pai, sob um certo ponto de
vista, e isso pode ser interpretado como ‘empurrá-la’ para os braços do Sr. K. Sabemos que,
sem a intermediação da Sra. K, Dora não assume a posição feminina de poder vir a ser
objeto de desejo para um homem. Ela rompe o trabalho analítico, e, volta uma vez mais
para uma última sessão quinze meses depois de interrompido o tratamento. Deste
reencontro, pode-se depreender as defesas de ambos, apresentadas, subrepticiamente, sob a
forma de uma cumplicidade de resistências, onde a tapeação se presentifica sob a forma de
uma certeza (mútua) de que jamais voltariam a se encontrar.
Comentários
A questão que se coloca é a relação da mulher com a perversão, mais propriamente se
existiria perversão na mulher como estrutura. Além dos dois casos relatados que são a base
deste comentário abordarei alguns aspectos de um texto de Lacan, dos “Escritos”, intitulado
Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”, assim como um trecho do
Seminário 10 – A angústia”, onde Lacan mais uma vez trabalha o caso da jovem.
Para iniciar o problema, é bom que se saiba que são raros os casos de perversão
masculina na literatura psicanalítica e, em relação a esta estrutura na mulher, são mais raros
ainda. A própria homossexualidade feminina faz questão sobre o assunto.
No caso da jovem homossexual, Lacan menciona num dado momento, que o que
estava latente no plano simbólico “começa a se articular de maneira imaginária, à maneira
170
LACAN, J. (1998) - Escritos, p.306
80
de uma perversão” (já citado). Esse desenvolvimento “à maneira de uma perversão”
permanece em aberto, e tudo o que está dito neste texto no sentido de uma perversão não se
fecha. O fato de a jovem manter com a dama uma relação em que o ponto central é o amor,
o amor cortês, como frisa Lacan, retira seu caráter perverso. É do amor que se trata, não da
perversão propriamente dita.
No Seminário 10 A angústia”, Lacan trata especialmente do modo masculino com
que a moça aborda seu objeto, à maneira de um homem e, ocupando frente a esta, uma
posição servil: “a jovem comporta-se como o cavalheiro que tudo sofre por sua dama,
contenta-se com favores minguados, os menos substanciais, e até prefere contar apenas com
estes. Quanto mais o objeto de seu amor vai além do que poderíamos chamar de
recompensa, mais ele superestima esse objeto de eminente dignidade”
171
.
À medida que a conduta da dama se apresenta decaída, mais a jovem a admira: “a
exaltação amorosa vê-se reforçada pela meta suplementar de salvá-la”
172
. Pode-se dizer
com Lacan, neste Seminário, que a jovem
“empenhara-se, portanto, em fazer de sua castração de mulher o que faz o
cavalheiro com sua dama, isto é, oferecer-lhe precisamente o sacrifício de
suas prerrogativas viris, o que, por uma inversão desse sacrifício, fazia dela
o suporte do que faltava no campo do outro, ou seja, a suprema garantia de
que a lei é efetivamente o desejo do pai, de que temos certeza disso e que
existe uma glória do pai, um falo absoluto”
173
.
Estes novos desenvolvimentos me parecem bastante sensíveis e indicativos da
homossexualidade feminina, onde o ressentimento e a vingança unem-se a um modo de
dizer, agindo, provocando a cena, neste sentido, perverso. Em sua atuação a jovem estaria,
segundo Lacan, enviando ao pai a seguinte mensagem: que fui decepcionada em meu
amor por ti, meu pai e que eu não posso ser tua mulher submissa, nem teu objeto, é Ela
que será minha Dama, e, quanto a mim, serei aquela que sustenta, que cria a relação
idealizada como o que foi repelido de mim mesma, com o que, de meu ser de mulher, é
insuficiência”
174
.
171
LACAN, J. (2005) – Seminário 10: a angústia, pag.125
172
LACAN, J. (2005) – Seminário 10: a angústia, pag.123
173
LACAN, J. (2005) – Seminário 10: a angústia, pag.124
174
Ibidem
81
Assim como o homem apaixonado idealiza a amada, transformando sua conduta
em uma exaltação do amor e, até mesmo fazendo desta o motivo de seu amor, abrindo mão
de parte de sua masculinidade, a jovem se descuida de sua beleza, desfazendo-se dos signos
de sua feminilidade.
O modo de amar da jovem é absolutamente masculino, no entanto, ela ama
platonicamente, não se percebe seu desejo pela dama, muito menos sua orientação perversa,
a qual faz parte da estrutura do desejo masculino.
uma frase de Lacan, bastante intrigante, que diz: “chamemos heterossexual, por
definição, aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu próprio sexo. Ficará mais
claro. Eu disse ‘amar’, e não prometido a elas por uma relação que não há. É justamente
isso que implica o insaciável do amor, a qual se explica por esta premissa”
175
.
Um dos modos de se interpretar este comentário de Lacan é que o amor o que deve
vir em suplência da relação sexual que não há”, é aquilo que se deve dedicar ao Outro sexo,
às mulheres. Para ele, a alteridade absoluta, ou Outro sexo, é a mulher. É o confronto com a
castração que define a alteridade. Seja homem ou mulher, aquele que enfrenta a castração
ao modo do amor, é heterossexual. Visto dessa forma a homossexual aborda o Outro sexo
de modo semelhante ao do homem heterossexual, com quem, diga-se de passagem, ele
rivaliza e almeja superar.
A homossexual ‘banca o homem’ com o intuito de causar o gozo da parceira; nesse
sentido uma aproximação com o savoir faire próprio ao perverso. Como ele, ela zela
pelo gozo da parceira.
Ao devotar um amor idealizado para com seu objeto amoroso, ela “erige a
equivalência da mulher ao falo”, como é possível observar no caso da jovem homossexual.
Dora também vivia uma relação de adoração com a Sra. K.
Lacan estabelece uma nuance entre a homossexual e a heterossexual: a mulher
heterossexual “goza em rivalidade com”, a homossexual visa “fazer gozar uma outra”.
175
LACAN, J. (2003) – Outros escritos, pag.467
82
Conclusão
O campo da ética invade a Psicanálise desde a porta que se abre no consultório do
psicanalista e se estende para além do término de uma análise. Esno fundo da prática
cotidiana ultrapassando as questões “burocráticas”. Para Lacan, a invenção da Psicanálise
foi uma “intuição ética” de Freud; o que fazer com o que elas (as histéricas) lhe diziam,
como tratar aquele resíduo que todos querem jogar fora, fazer calar, disfarçar, estigmatizar
ou simplesmente gozar, o que é pior.
Valorizar o dizer de cada uma, se deslocar da posição de Mestre para dar voz à “dor
de existir” e ver nela um gozo e um saber que se articulam e produzem outros saberes, fazer
cessar o gozo, localizando-o, é uma “decisão ética”. Requer uma “coragem ética”,
principalmente para o pioneiro, desbravar a floresta do inconsciente. Desta decisão surgiu
uma prática sujeita a se desvirtuar.
Poder ver que ali onde se nega o que se deseja para evitar o retorno do recalcado, é
lidar diretamente com a ética, a do inconsciente, assujeitada ao princípio do prazer com seu
caráter a-ético. Se um julgamento na denegação, há uma ética, “o estatuto do
inconsciente é ético”
176
.
Se “o sujeito lida com peças escolhidas da realidade”, como diz Lacan, o que Freud
diz de outro modo “a percepção não é um processo puramente passivo”, vê-se que desde o
início lidamos com a “insondável decisão do ser” (Lacan). uma escolha, a escolha da
neurose, escolha da estrutura pode-se dizer.
Julgar, diz Freud, “é uma continuação, por toda a extensão das linhas da
consciência, do processo original através do qual o ego integra coisas a si ou as expele de si
de acordo com o princípio do prazer”. Lacan diz o mesmo dessa forma: “a realidade é
abordada com os aparelhos do gozo” e logo acrescenta, “isto não quer dizer que o gozo é
anterior à realidade”.
O psicanalista enfrenta um dizer engajado em uma subjetividade que julga. O
sujeito decide do que diz por isso é preciso correr atrás dos atos falhos, dos sonhos, dos
176
VIEIRA, M. A. (2001) – A ética da paixão, pag.117
83
chistes, para entrever a verdade do inconsciente, como um índice do seu desejo. Ele deve
farejar como um cão, o que não quer dizer que sua função seja revelar, ser um hermeneuta
em tempo integral.
Freud nos orienta para uma “atenção flutuante”, estamos com nossa alma. O
“material” passa pela intuição do analista “ele paga com seu ser”, como diz Lacan.
A ética da Psicanálise passa por uma “medida de nossa ação”, diz Lacan, portanto, a
questão que se coloca é: como fazer bascular um universal kantiano que dê lugar ao pathos
do Um. Também não como se negar a esse trabalho, pois não dito que não seja
articulado a um valor e a um saber.
Então, se há a falta, não o “Soberano Bem”, esta é a resposta à promessa de
felicidade que implica uma demanda de análise. A questão da felicidade no Mal não diz
respeito só ao perverso, porque o mal pode ser o mal de si mesmo, e nenhum neurótico está
livre de um gozo outro. O problema do perverso é que ele acredita “saber fazer” o Outro
gozar. E reina o Soberano Mal. Sua conduta que se sustenta numa convicção que
não é delirante porque ele também sabe transgredir a Lei é amoral. Ele supõe um saber
“sobre a natureza das coisas”.
Lacan associa francamente a moral com a conduta sexual e diz que o que está atrás
de tudo isso “é o subentendido de tudo o que se disse do Bem”.
Agora, se “a força de dizer o Bem” (Lacan), a “voz da consciência” (Kant), o que se
revela é Sade. A moralidade é em seu extremo sádica, perversa.
E se o amor é impossível, aí incluído o amor ao próximo, isso “não diminui em nada
o interesse que devemos ter pelo Outro”
177
.
“Mas (se) Sade [...] se recusa a ser meu próximo, eis o que deve ser lembrado, não
para lhe pagar na mesma moeda, mas para reconhecer o sentido dessa recusa”.
“Cremos que Sade não é tão vizinho de sua própria maldade que nela posa encontrar
seu próximo”
178
.
O que não se pode é banalizar o Mal.
177
LACAN, J. (1982) – Seminário 20: Mais ainda, pag.118
178
LACAN, J. (1998) – Escritos: Kant com Sade. pag.801
84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2003
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Rocco, 2009.
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2007.
GARCIA, C. Psicologia Jurídica: operadores do simbólico. Belo Horizonte: Del Rey,
2004
FREUD, S. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
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_________ Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
_________ O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
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85
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