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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A REPRESENTAÇÃO POÉTICA DO NEGRO
E SUA CULTURA EM URUCUNGO DE RAUL BOPP
JOSÉ HELBER TAVARES DE ARAÚJO
JOÃO PESSOA
MARÇO DE 2008
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JOSÉ HELBER TAVARES DE ARAÚJO
A REPRESENTAÇÃO POÉTICA DO NEGRO
E SUA CULTURA EM URUCUNGO DE RAUL BOPP
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba para obtenção do título
de Mestre em Letras (Área de concentração
Literatura e Cultura)
Orientadora: Profª Drª Elisalva Madruga Dantas
JOÃO PESSOA
MARÇO DE 2008
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JOSÉ HELBER TAVARES DE ARAÚJO
A REPRESENTAÇÃO POÉTICA DO NEGRO
E SUA CULTURA EM URUCUNGO DE RAUL BOPP
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
(Literatura e Cultura), Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade
Federal do Paraíba UFPB, como parte dos requisitos necessários para obtenção do
título de Mestre.
Aprovada em: 04/ 04 / 2008
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Elisalva Madruga Dantas (Orientadora - UFPB)
___________________________________________________
Líduína Maria Vieira Fernandes (Examinadora - UECE)
___________________________________________________
Genilda Azeredo (Examinadora - UFPB)
___________________________________________________
Liane Schneider (Suplente - UFPB)
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À memória do meu avô, JoAdelino, que,
em sua moto, levava-me todos os dias à
escola primária, na esperança que eu
pudesse conquistar o conhecimento que ele
nunca pôde obter.
5
AGRADECIMENTOS
Por toda a confiança que depositaram em mim, agradeço aos meus pais, José
Tavares e Francisca Alves, casal que, em minha vida, é exemplo máximo de amor e de
ética.
A Leyla Thays, vivaz, carinhosa, feminina, a quem devoto amor incondicional.
És responsável pela simetria da minha vida, assim como a estrela Giedi harmoniza a
constelação de Capricórnio.
Aos meus queridos irmãos, Helton Tavares e Henny Nayane, pela paciência com
que, no invariável do nosso cotidiano, aceitam meu jeito de ser.
À Professora Drª. Elisalva Madruga Dantas, pela orientação precisa, paciência,
espontaneidade, sinceridade e incentivo. Em cada frase sua, uma orientação e em cada
orientação, uma aula.
Às Professoras Drª. Genilda Azeredo e Drª. Liduína Maria Vieira Fernandes pela
leitura atenta que, gentilmente, prestaram-se a fazer desse trabalho. À Liane Schneider,
coordenadora ágil e responsável.
Aos professores que marcaram minha trajetória acadêmica: Maria Ignez Novais
Ayala, Marcos Ayala, Luis Custódio, Sergio de Castro Pinto e Wilma Martins.
Aos meus colegas de graduação e mestrado, Leandro César, Fabio Dantas,
Danielly Lopes e Sara Moreira. Amigos que compartilharam comigo as mesmas
inquietações literárias e angústias dos calendários.
Aos meus sagrados amigos de momentos profanos: Luciano Igor, Carlos André,
Raphael Alves, Fabrícia Oliveira, Moama Lorena, Paulo Anchieta, Cleomar Cabral,
Bruno Ricardo, Júlio Francis, Ailton de Freitas. E pela amizade e cumplicidade de
Gretha Vianna e Larissa Avelar.
Ao CNPq pela bolsa de estudo concedida.
A todos os demais amigos e familiares que contribuíram, direta ou
indiretamente, para a realização deste trabalho.
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Aprentei milho e feijão
A semente floresceu
Iôiô ficou contente
Mas nem sequer agradeceu
Quando eu fui aprentar semente
No coração de sinhá
Nhô-nhô enraiveceu
E veio me castigar
(Cantado por Mera, mestre de coco e
ciranda, no documentário Mera:
Múltiplos Saberes)
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Resumo
Esta dissertação tem como objeto de estudo os poemas sobre o negro reunidos na obra
Urucungo (1932), de Raul Bopp, fortemente marcada pelas propostas do movimento
modernista da Antropofagia. Considerando esta perspectiva, busca-se verificar como se
nesses poemas a representação do negro, a partir de dois eixos: a utilização de
elementos culturais de procedência afro-brasileira e aspectos do processo sócio-
histórico do negro enquanto escravo. Obedecendo a lógica dos estudos literários, a
análise dos poemas priorizará a elaboração estética, sem deixar de lado componentes de
apelo histórico que se apresentam com função importante no corpo do texto.
Palavras-chave: Poesia Brasileira; Modernismo; Antropofagia; Negro na Literatura
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Abstract
This research constitutes a study of poems about black representation in Urucungo
(1932), by Raul Bopp, a work which is strongly characterized by the principles of the
modernist anthropophagic movement (Antropofagia). Considering this perspective, the
purpose is to examine in what ways black people are represented in these poems, having
two parameters as a basis: the use of Afro-Brazilian cultural elements and aspects
concerning the social and historical process of black people as slaves. Following the
dynamics inherent to literary studies, the analysis of poems emphasizes aesthetic
construction, without ignoring historical components that play a relevant function in the
text.
Keywords: Brazilian poetry; modernism; Anthropophagic movement; blackness
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. O NEGRO NA LITERATURA
1.1. Algumas representações do negro na história e crítica da literatura
brasileira
1.2. Uma proposta de abordagem teórica
2. MODERNISMO, ANTROPOFAGIA, AFRICANIDADE EM
RAUL BOPP
2.1. Antropofagia: a afirmação das culturas brasileiras
2.2. Raul Bopp e a crítica do modernismo
2.3. Novos rumos para Bopp
2.4. O negro na antropofagia boppiana
3. PELA CULTURA NEGRA
3.1. A musicalidade do homem negro
3.2. O som do Urucungo
3.3. Lendas da história africana
3.4. No transcorrer da história do escravo negro
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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16
34
39
39
51
56
64
72
72
81
92
104
117
120
INTRODUÇÃO
Uma ocasião, em busca de leituras sobre a Amazônia, veio-me
às mãos um trabalho de Antonio Brandão de Amorim, com
nheengatus colhidos genuinamente nas malocas do Urariquera.
Era um idioma novo, de uma pureza lírica deliciosa. No seu
mundo as árvores falavam. (BOPP, 1972, p.16)
Este é um trecho do livro de relatos de Raul Bopp intitulado Bopp passado-a-
limpo” por ele mesmo, de 1972. Apesar de se concentrar muito mais em passagens de
sua vida diplomática, o livro contém informações como as acima sobre o escritor
que esclarecem uma parte de suas andanças, suas experiências modernistas e seu
contato com as manifestações populares afro-brasileiras.
A figuração poética da árvore é uma temática muito recorrente nos trabalhos de
Bopp. Elas instauram em seus poemas, sempre que evocadas, relação direta com a
pureza lírica e fantástica que tanto marcou o estilo do poeta gaúcho. Em Urucungo,
livro objeto de nosso estudo, há um poema intitulado “Casos da negra velha” onde Bopp
emprega as árvores, no corpo do texto, sob uma perspectiva fantástica: “Uma árvore
disse:/ -Quero virar elefante,/ E saiu correndo no meio do mato”.
Como a árvore que sai correndo pelo mato, Bopp, enquanto poeta, se lança
também pelo Brasil a fora, percorrendo-o de sul a norte.
De fato, no período de sua graduação, de 1918 a 1922, Bopp foi um verdadeiro
andarilho, cursando cada ano de direito em uma região diferente do país (Porto Alegre
em 1918, Recife em 1920, Belém do Pará em 1921 e Rio de Janeiro em 1922). O
itinerário o qual Bopp fez é longo, com viagens pela costa do Amapá, viagens de canoa
pelo Maranhão, viagens em busca de festanças folclóricas nos estados vizinhos de
Pernambuco e viagens pelo Pará, onde Bopp penetrou na Amazônia. Em todo este
11
percurso “não levava em propósito, catar material para algum estudo, ou para trabalhos
literários, de base folclórica. Nada disso. Viajava pelo simples prazer de ver coisas
brasileiras, nas suas manifestações autênticas” (BOPP, 1972, p. 30).
Assim, o trajeto que Bopp realizou como estudante estava subordinado ao seu
interesse em conhecer o país, sua diversidade cultural e festas populares. Nesta
perspectiva, ele teve a oportunidade de acumular uma vasta experiência sobre a cultura
brasileira e, com certa antecedência, conhecia e valorizava aspectos culturais do país
que, mais tarde, seriam fundamentais para a realização do projeto de “brasilidade” do
grupo Antropofagia. Tendo vivido a realidade cultural amazônica e nordestina, foi
essencialmente na aproximação entre cultura e literatura brasileiras – mais do que
através das vanguardas que Bopp percebeu que o esgotamento das formas poéticas
tradicionais poderiam ser substituídas por aquilo que denominou de “clima de
magicismo” presente na imaginação de uma “terra enfeitiçada.”.
Da mesma forma que ele aproveitou a condição de estudante para viajar, quando
virou repórter, no Rio de Janeiro, Raul Bopp, procurava propor pautas sobre lugares que
achava interessante conhecer. Sugeriu a Américo Facó, que organizava as reportagens
de Bopp para o jornal O Globo, fazer um trabalho jornalístico sobre a região andina.
Facó propôs uma outra reportagem/viagem: ir com Graça Aranha para a região do
Araguaia, pois o escritor de Canaã aspirava coletar informações sobre o lugar para uma
novela que estava escrevendo. Assim, ficou combinado assim que Bopp viajaria a São
Paulo e esperaria Graça Aranha para que fizessem a expedição. (Bopp, 1966, p.142-
134) Ao chegar em São Paulo, Bopp conheceu o ciclo de amigos de Plínio Salgado.
Logo passou a freqüentar a pensão de Luiz Antônio, lugar onde se reunia diversos
intelectuais. “O ponto central das conversas era invariavelmente o Brasil, no seu estado
de inércia, com populações resignadas no interior. O país estava à espera de soluções
12
que desse rumo ao seu destino”. Passou então a ter contato com os principais
realizadores do grupo Anta e compartilhava com Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia
e o próprio Plínio Salgado as estórias, mitos e narrativas da Amazônia que aprendeu
durante sua estadia no Norte. A intimidade que Raul Bopp adquiriu junto ao futuro
grupo do verde-amarelismo revigorou suas intenções literárias, algum tempo tratadas
por ele mesmo com desdém, e proporcionou-lhe uma atualização com o processo de
transformação modernista que o país vivenciava.
Em São Paulo, passou a ser superintendente da Associação Paulista de Boas
Estradas. Com pouco tempo depois, o amigo carioca Américo Facó entra em contato
com ele mais uma vez, expondo um projeto de criar uma agência de notícias que
forneceria matérias jornalísticas para todo o país. Facó desejava que o gaúcho
cooperasse com a criação da sucursal paulista, Bopp aceitou a proposta facilmente. A
sede da Agência Brasileira de Notícias, um tempo após ser fundada, tornava-se então
centro de reuniões de intelectuais de todas as correntes e ideologias daquele momento
histórico. Ali, Raul Bopp participava de ecléticas discussões e estava atualizado com os
principais acontecimentos do Brasil, além de usufruir um vínculo amistoso com
intelectuais do país inteiro.
Na agência, conviveu com Oswald de Andrade, que visitava o ambiente “com o
mesmo espírito buliçoso de 22”, como disse o autor de Cobra Norato. O então
superintendente tomou gosto pelos debates literários do jovem modernista,
simpatizando com suas causas e estabelecendo um vínculo mais estreito com o grupo do
autor de Pau-Brasil. No novo círculo de amizades, Bopp chegou a visitar a casa de
Mário de Andrade. O escritor gaúcho comenta que admirava a sabedoria do autor de
Paulicéia Desvairada sobre a cultura nacional: “Saímos muitas vezes, à noite, ajustando
pontos de vista nesses assuntos [os postulados nacionalistas na literatura]. Outras vezes,
13
em pequenos grupos, íamos para a casa de Tarsila, onde as reuniões, em ambiente
animado, alongavam-se até alcançar a faixa da madrugada” (Bopp, 1966, p.66).
Assim, depois das viagens que fez praticamente por todas as regiões do país, da
vivência com o processo de modernização e da familiarização com os grupos
modernistas do Rio e de São Paulo, Bopp se incorporava ao movimento do qual
alicerçaria sua principal produção literária e que daria novos rumos à literatura
brasileira: Antropofagia.
Se um dos principais argumentos da antropofagia modernista fora a denúncia de
uma intelectualidade bacharelesca distante da realidade do país, pode-se dizer que
Bopp, seria um arquétipo simbólico desta luta, que enquanto escritor, jamais galgou
prestígio literário, sendo um escritor de postura anti-acadêmico. Além do relato que faz
sobre nunca ter cogitado se candidatar à vaga, prêmio ou ordem honorífica para adquirir
relevo na vida intelectual, seus dois principais livros, Cobra Norato (1931) e Urucungo
(1932), somente foram publicados devido a muita insistência de amigos, que mandaram
seus poemas para impressão, com o autor fora do país, quando exercia a função de
diplomata no oriente.
Levando em consideração a inusitada série de fatores que levou essas obras de
Raul Bopp a uma situação periférica em relação às obras canônicas do modernismo, este
trabalho tem o propósito de realizar uma análise interpretativa do livro de poemas
Urucungo,buscando entender como a temática do negro, partindo da elaboração
literária, se faz presente na tessitura do texto fenômeno poético e lingüístico.
De certo modo, a análise-interpretação proposta neste trabalho irá considerar a
relação de Bopp com a história e a tradição afro-brasileira, a fim de entender como, na
tessitura dos poemas de Urucungo, existe uma representação do negro em que as
imagens, personagens e linguagem poéticas são marcadas por elementos étnicos,
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históricos e folclóricos próprios da realidade da população brasileira afro-descendente.
A maneira como os poemas de Urucungo revivem o passado da escravidão ou os cantos
da tradição de descendência africana tem um caráter singular por manejar com
equilíbrio um discurso literário sobre o negro, os ideais antropofágicos de brasilidade,
as riquezas das formas populares e o aproveitamento das marcas vanguardistas.
Além disso, de certa maneira, o homem inquieto que não conseguia se fixar em
um único lugar se refletiu no poeta através das inúmeras reescritas e modificações dos
poemas a cada reedição de suas obras. Esta constante mutação dos versos foi
enriquecendo, no plano estético, o estilo boppiano, como identificou Drummond,
fazendo com que os poemas de Raul Bopp adquirissem uma diversidade de versões
análogas a dos cantos populares, os quais o gaúcho tanto se preocupou em recriar.
Assim, para respeitar as inquietantes alterações dos textos poéticos promovidas pelo
poeta, para este trabalho foi utilizada a edição de Urucungo presente em Poesia
completa de Raul Bopp, de 1998, organizada e comentada por Augusto Massi, por se
tratar de uma versão onde o crítico estabelece os poemas a partir de uma pesquisa
apurada e meticulosa., não apenas dos poemas originais, mas de toda a gama de
reconstruções realizadas ao longo da vida do poeta.
Esta dissertação se estrutura em 3 capítulos.
O primeiro, de discussão mais historiográfica, visa mostrar como as perspectivas
de abordagem do negro na literatura foram se modificando ao longo do tempo. O intuito
é perceber como vão se construindo as matrizes teóricas sobre a representação do negro
na história da literatura brasileira, constatar pontos de vista relevantes e justificar a
escolha de certos procedimentos entre as delimitações expostas. Ainda, neste capítulo,
procura-se elaborar um breve panorama histórico de obras e autores brasileiros que
representaram o negro ao longo dos diversos momentos literários. Em certo sentido, o
15
objetivo deste capítulo é refletir, de maneira concisa, sobre estudos precedentes e situar
obras literárias que podem dialogar, em estudo comparativo, com os poemas de
Urucungo. Ao final deste, serão levantados alguns pontos teóricos que nortearão a
leitura crítica dos poemas.
O segundo capítulo é de caráter contextual e busca-se o significado da
Antropofagia para o modernismo, suas idéias, características, fases, colaboradores.
Além disto, busca-se também recuperar concepções da Antropofagia nos escritos de
Raul Bopp para se compreender como os poemas que representam o negro e sua cultura
se relacionam com a moderna visão sobre a cultura brasileira. Neste sentido, é também
o momento oportuno para aprofunda-se nas discussões teóricas sobre a poesia boppiana,
enfocando como se as divergências críticas a respeito do lugar que o autor de Cobra
Norato deve assumir na história literária brasileira. Neste percurso, será visto como,
com o tempo, alguns destes enfoques foram sendo superados por trabalhos que
buscaram apreender a qualidade estética de suas obras, a partir de um estudo
interpretativo mais atencioso sobre sua produção literária.
Por fim, o último capítulo é de natureza analítica. Serão analisados os poemas
“Caratateua”, “Marabaxo (Dança de Negros)”, “Coco”, “Monjolo (Chorado de Bate-
Pilão)”, “Urucungo”, “Casos da negra velha”, “África” e “Mãe-preta” buscando
verificar como no nível da palavra, da sintaxe e das imagens presentes em seu discurso
poético se a representação ideo-estética da cultura negra. Á partir da análise das
metáforas, rimas e ritmos utilizados na estruturação do poema “Dona Chica” e “Serra do
Balalão”, também será verificado como Bopp traça para o plano literário a situação
histórico-social da escravidão.
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1. O NEGRO NA LITERATURA
1.1. Algumas representações do negro na história e crítica da literatura brasileira
A visão sobre a representação do negro na literatura brasileira tem passado por
algumas transformações críticas no último meio século. Não somente pelo fato do
surgimento de algumas posições metodológicas que ampliaram e implementaram novas
perspectivas no que se refere à relação entre o negro e a literatura, mas também devido
ao fazer literário dos escritores brasileiros que, impulsionados pelos movimentos da
Negritude, consolidou o assunto definitivamente como temática literária por dois vieses:
uma consciência negra no modo de expressão e no discurso poético, estabelecendo uma
diferença significativa da tradição literária anterior ao século XX.
Quando se trata da representação do negro na literatura, além das transformações
no campo da crítica acadêmica e da construção literária, é importante perceber que
processos a sociedade brasileira tem passado para alcançar uma nova politização das
questões raciais nas áreas importantes do conhecimento. Cada estudo mais aprofundado
no âmbito da história, política, religiões ou manifestações culturais tem contribuído
diretamente para um melhor esclarecimento da discussão sobre a participação do negro
nos textos da literatura brasileira.
Assim, pode-se pensar o fenômeno do negro da literatura como um trabalho em
que se combinam, de maneira plural e simultânea, as forças dos discursos ideológicos, a
situação histórica concreta de cada obra e a sua dimensão estético-literária. Ao longo do
século XX, investigadores se detiveram em apenas um desses aspectos, privilegiando
principalmente a relação comparativa entre as tendências literárias predominantes no
Brasil e do que delas pode-se “colher” sobre o negro, como se a literatura sobre o negro
17
não pudesse ter uma existência estético-estilística própria, sendo sempre refém do
barroco, do romantismo ou do realismo.
Atitude pioneira de investigação da história da figura do negro na literatura
brasileira que exemplifica a pouca preocupação com a averiguação do texto literário
está em Renato Mendonça, que apresentou o ensaio O negro no folkclore e na literatura
do Brasil, no Congresso Afro-Brasileiro, em Recife no ano de 1934. Neste estudo,
Mendonça trata primeiramente da cultura popular, expondo dados e informações sobre a
religiosidade africana, sobre a culinária, a música e os contos populares registrados por
folcloristas como Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Sílvio Romero. Observa-se que
Renato Mendonça ainda está vinculado a uma tradição intelectual que não percebe todas
estas manifestações afro-brasileiras como parte integrante de uma literatura e arte
popular negra. Os versos das músicas religiosas africanas ou dos Congos e as lendas e
estórias de origem e temática negra são reconhecidas como folclore, pensando os
costumes antigos como sobreviventes do passado no presente. Sua preocupação está na
identificação dos aspectos etnográficos ou lingüísticos da cultura negra, sendo que as
questões literárias são canhestras a ponto de citar Gregório de Mattos como o cultor do
amor da raça negra.
No caso de Gregório de Mattos, suas aspirações poéticas, em determinados
momentos, eram expor sua visão barroca de desprezo e de atração pelas negras e
rebaixar através de um preconceito social consciente o negro e seus descendentes, forma
eloqüente que ele encontrou para exaltar sua posição diante de ‘rebaixados’. De acordo
com Alfredo Bosi, Gregório de Mattos representa em seus poemas “uma prática erótica
onde se geram, íntima e simultaneamente, a atração física, a repulsa e o sadismo”.
Além disso, Gregório utiliza a figura dos negros não propriamente como uma temática
de sua poesia, mas como um meio de expressar às suas concepções ideológicas,
18
barrocas e aristocráticas. Naquele momento, a literatura no Brasil era produzida em
manifestações literárias isoladas, sem um sistema literário definido, devedora da
tradição e visão de mundo portuguesas, sob o marco da colonização e da escravidão,
contexto em que a obra agressiva ao negro do poeta baiano, em parte, foi orientada:
Triste da boca enganada,
Que sendo vossa cativa
Quando convosco mais priva
Então beija uma privada:
Vós não sois não desdentada,
Com que fedor vós não toca:
Porém isso me provoca
A ver, se o fedor acaso
Vai da boca para o vaso,
Se do vaso para a boca. (...)
Fedeis mais que um bacalhau,
E prezai-vos de atrevida,
Como que se a vossa vida
Não fora sujeita a um pau
Olhai, não vos dê o quinau
Um Mina de cachaporra
Que um cão morde uma cachorra,
E se em ser puta vos fiais,
Sois puta, que tresandais,
E enfastiais toda a porra.
(MATTOS, 2003, p. 182-185)
Este trecho ilustra bem o quanto estava equivocado o posicionamento de Renato
Mendonça em relação a Gregório de Mattos. Os inúmeros poemas que descrevem, em
estilo grosseiro, mulatas e negras levam a constatação de que o poeta baiano jamais
cantou lirismo pra os negros, havendo justamente uma posição contrária, onde a negra é
submetida à depreciação sexual. O contexto ideológico da década de trinta em que o
crítico está situado tende a democratizar a relação racial de maneira otimista, ignorando
impudentemente o texto literário, que diz justamente o contrário do afirmado pelo
crítico.
19
Das décadas 40-50, destaca-se na crítica literária brasileira preocupada com as
representações poéticas do negro o francês Roger Bastide. Seus melhores trabalhos
estão voltados para a preocupação em entender como aconteceram os encontros sócio-
culturais entre Brasil e África, principalmente no âmbito das religiões. Entretanto,
Bastide possui alguns ensaios importantes dedicados à questão do negro na literatura
brasileira: A poesia afro-brasileira, de 1943, A incorporação da poesia africana à
Literatura Brasileira, de 1946. Coube a Bastide refletir mais a fundo sobre os
procedimentos críticos no que se refere à forma de abordar a questão do afro-brasileiro
na literatura.
Em A poesia afro-brasileira, percebe-se na crítica de Bastide um viés
psicanalítico, social e biográfico utilizado eventualmente, sem uma ordem sistemática.
Sua perspectiva de historiador acaba dando mais ênfase a pesquisa por traços implícitos
de africanidade nos textos literários produzidos por negros ou descendentes de negros.
Na verdade, o método do sociólogo francês, neste primeiro texto, aproxima-se muito
mais do biografismo com intuito de perceber reminiscências históricas na vida e no
pensamento do escritor negro. O objetivo é de perceber a vivência de um autor afro-
descendente representada ou não na obra literária. Repara-se que, neste caso, Bastide
pretende partir do externo, seja da vida do autor ou dos fatos sociais, para o interno,
praticando aquilo que seu amigo Antonio Candido chamou de sociologismo da
literatura, não se constituindo uma crítica literária efetiva
1
. Em outras palavras, observa-
se que Roger Bastide estava num terreno muito mais biográfico e sociológico do que na
história e na crítica literária, a ponto de ser confuso na parte teórica do ensaio:
1
Sobre essa questão, vai dizer Antonio Candido em Crítica e Sociologia: “Todas essas modalidades [de
abordagem do social], e suas inúmeras variantes são legitimas e, quando bem conduzidas, fecundas, na
medida em que as tomamos não como crítica, mas como teoria e história sociológica da literatura, ou
como sociologia da literatura, embora algumas delas satisfaçam também as exigências próprias do
crítico.” (CANDIDO, 2000, p.11)
20
Os escritores que passaremos em revista apresentam, sabemo-lo,
valores muito desiguais, mas anima-os o mesmo desejo de criar algo
belo. Além do mais, não visamos fazer só crítica literária, e sim
estudos psicológicos. Interessa-nos conhecer e compreender a própria
alma do negro, ou do mulato, para averiguar o quanto de
originalidade ou de inspiração lírica pode ser atribuído ao sangue
africano que lhes corre nas veias, seja puro, seja misturado a sangue
europeu. (BASTIDE, 1973, p.11)
E em seguida comenta:
A literatura afro-brasileira está marcada pelo estigma da imitação.
Porque as representações coletivas existem encarnadas nas
consciências individuais e é justamente ao passar através da alma de
um homem de cor que elas adquirem matiz diferente, se diversificam
e se enriquecem. (BASTIDE, 1973, p.12)
Estas passagens são significativas para compreender a forma de abordagem que
Bastide utiliza no seu primeiro e controverso estudo. Como um crítico literário
consegue apreender tal alma negra? Como elaborar crítica literária da representação do
negro à ausência do próprio negro no texto de autores como Cruz e Souza? É válido
apontar o que um escritor deveria ter feito, como ele faz com Luiz Gama, ao invés de
discorrer sobre o que foi fixado textualmente por esse autor?
Três anos depois, o professor francês muda seu olhar sobre o negro na história
da literatura brasileira. A incorporação da poesia africana à Literatura Brasileira é um
estudo que deixa de lado aquela preocupação anterior com a alma do escritor de origem
africana e passa a estudar como correntes literárias e seus principais autores (na maioria
brancos) trataram a temática africana e afro-brasileira. Neste ensaio, Bastide tem noção
de que a tradicional literatura brasileira, isto é, a formada e desenvolvida nos moldes
europeus e orientada racialmente de acordo com a estrutura de poder, trata o afro-
brasileiro de tal maneira que é necessário ser estudado à parte, quase como uma
tendência literária. Assim, Bastide ressalta que:
21
(...) a incorporação da poesia negra seguiu uma marcha progressiva
de fora para dentro. (...) Temos primeiramente o período de rejeição,
ou da sátira, depois o do desejo de comunhão, do impulso
sentimental, mas que permanece uma tendência puramente pessoal
que não sai do “eu” do poeta para alcançar a intuição compreensiva
de um ser que, no fundo, é sempre uma situação social, poesia menos
lírica que dramática, considerada por um estranho; temos depois a
poesia do canto da escravidão, e finalmente a descrição de um certo
comportamento exterior, a descoberta de uma certa originalidade,
mas uma originalidade que não ultrapassa o domínio dos gestos. (...)
Numa palavra, o africano é sempre um “objeto” poético, um tema
lírico; quando começa o século XX, ele ainda o se tornou poesia
pura e lirismo essencial. (BASTIDE, 1997, p.35)
Parece que a mudança de enfoque de Bastide permitiu resolver aquela confusão
do texto anterior sobre a maneira de abordar a literatura afro-brasileira. Fica claro para
ele que, ao se estudar o negro na poesia brasileira, deve-se ter a compreensão da
existência de dois estágios distintos da história do Brasil. Um desses estágios vai da
colônia à abolição da escravidão, que, de maneira diversificada ao longo dos anos e
tendências, produz uma literatura de impressões e ideologicamente dirigida sobre a
cultura afro-brasileira que facilmente se identifica, com raras exceções, com
preconceitos, estereótipo e distorções culturais da vida do africano e dos seus
descendentes; compreende-se o segundo estágio do final do século XIX aos dias atuais,
quando a poesia tradicional, nativa, popular e dita folclórica torna-se mais evidente e
presente na elaboração poética de autores interessados em representar o negro.
A defesa de Bastide pela orientação sócio-histórica é oportuna, principalmente
quando se trata do Brasil-Colônia, para se compreender outro estágio histórico,
subseqüente ao barroco, da representação literária do negro: o momento neoclássico.
Alguns críticos tentam recriar um significado histórico da imagem do negro neste
período apenas a partir de fragmentos literários, muitas vezes periféricos ao cerne das
obras, e fazendo um intenso esforço para não deixar uma lacuna na tradição. No
entanto, mais importante é perceber e explicar as lacunas realmente existentes e não
simplesmente tentar preencher espaços destituídos. Encontram-se nas obras do período
22
neoclássico no Brasil determinadas referências ao negro e sua cultura, mas isoladas, sob
aspectos estéticos e ideológicos mal dotados que impossibilita discorrer sobre uma
representação do negro como projeto literário.
Esta ausência do negro na literatura deste período pode ser explicada pelo fato
de que o processo formativo da Literatura Brasileira enquanto articulação de um sistema
começa a se desenvolver justamente pelos postulados neoclássicos e iluministas. A
razão, o progresso, o classicismo de inspiração francesa, a busca pela verdade, o olhar
sobre a natureza reorientaram a visão de mundo colonial brasileiro. Os homens das
letras passaram a assumir posição em favor da busca de expressões das verdades locais,
nativas, mas sob a ótica e normas da intelectualidade européia. É a partir deste momento
que se esboça no Brasil a configuração de um sistema literário orgânico. Como dito
anteriormente, representação do negro e de sua cultura neste período literário é escassa,
pois ao eleger a tradição clássica européia como modelo universal, criou-se na
intelectualidade brasileira uma circunstância desfavorável à temática afro-brasileira
como assunto poético.
Assim, pode-se afirmar que neste momento da história brasileira praticamente
não houve obra de expressão literária devido ser o negro tema reprovado nas belas-artes.
Roger Bastide afirma que neste período:
Para que o africano se torne poético é preciso que seja de qualquer
forma “exótico”, é preciso separá-lo da vida cotidiana, do meio
ambiente, para fazê-lo sofrer uma dupla transposição, no tempo e no
espaço. (BASTIDE, 1997, p. 20)
Quitubia de Basílio da Gama, de 1791, é talvez um dos poucos desvios desta
ausência do negro na literatura. No entanto, é mais do que nunca prova rigorosa da
afirmação de Bastide, pois a proposta da obra ostenta um negro como protagonista
23
inserido em aventuras heróicas nos moldes clássicos, fora de seus valores e culturas,
adaptado ao mundo do outro, como se pode perceber nos versos a seguir:
Esfoado Quitubia, o Téjo sabe
Quanto valor dentro em teu peito cabe.
Herdaste de teu Pai o Nome, e o brio,
Que foi terror do pérfido Gentio:
Fez-lhe sentir da nossa Espada o peso;
E levando nas mãos o Raio aceso
Queimou a Corte da feroz Rainha.
Mas tu ganhaste, além dos que ele tinha,
Novo Direito à Imortalidade:
É teu Brasão a tua Lealdade:
O Título, que tens, deu-to a Vitória:
C'o teu sangue compraste a tua glória.
Que ainda que essa cor escura o encobre,
Verteste-o por teu Rei; é sangue nobre.
(GAMA, 1996, p.3, v.11-24)
Vale a pena ressaltar que é uma obra escrita em Portugal, no final da vida de
Basílio, sem elementos ligados ao afro-brasileiro, fora do sistema literário local, não
fazendo parte efetiva da tradição literária brasileira. Seu texto apresenta constituição
apropriada desta natureza adaptada do negro ao universo cultural europeu. O poema, em
seu início, considera Quitubia de sangue nobre, apesar de dessa “cor escura que o
encobre”. Esta obra de Basílio da Gama possui passagens mescladas de desarranjos
ideológicos, pois embora seja pioneiro em tente criar uma aproximação da temática do
negro, ele desraiga a sua cultura, deixando apenas sua cor como um sinal que se
sobressai como empecilho a sua grandeza de herói.
Anda deste período, Silva Alvarenga e Domingos Caldas Barbosa são exemplos
de escritores que possuem descendência negra e que obtiveram prestígio literário.
Porém, o primeiro incorpora em sua obra o discurso literário neoclássico, sem
representações do negro ou sequer menção, e o segundo logo cedo partiu para a Europa,
construindo sua obra poética fora do Brasil, a exemplo de Basílio da Gama. Sobre a
24
relação entre este período e o ofício dos escritores negros, relata Oswaldo de Camargo
que:
Mesmo os poucos negros e mulatos que alcançaram a condição de
letrados e se intelectualizaram como poetas, romancistas e jornalistas,
não quiseram ou não viram motivo nenhum para atingir a condição de
negro, como escritores, isto é, ser também um “negro escrito”.
(CAMARGO, 1987, p. 32)
José Aderaldo Castello afirma que o romantismo marca o início de um novo
período da História da Literatura Brasileira. Com um sistema literário com condições
internas mais favoráveis, a literatura aos poucos foi se caracterizando pela afirmação
nacionalista, ancorando-se no indianismo, na liberdade formal e na preocupação com os
anseios do indivíduo, substituindo as noções de racionalidade impessoal do
neoclassicismo. É um movimento em que “modelos, teorias e poéticas passam a ser
progressivamente submetidas à nossa reanálise crítica intimamente comprometida com
a representação da realidade brasileira” (CASTELLO, 1999, p.25).
Muito destas transformações do contexto literário se deve a questões políticas e
econômicas. A vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil desencadeou, junto com
as insurreições internas pela autonomia nacional, o processo de Independência do país,
modificando profundamente a situação cultural brasileira. Escolas superiores,
bibliotecas e tipografias entraram no país e promoveram abertamente o surgimento dos
suportes necessários para a consolidação de um público leitor. O intercâmbio cultural
com a metrópole se estreitou e, com isso, logo os postulados românticos começaram a
brotar no pensamento do brasileiro, não como forma de equiparação ao modelo europeu,
como fizeram os neoclássicos, mas como forma de afirmação da identidade e
consciência de uma ação livre, autônoma e independente.
Paralelo ao desenvolvimento do pensamento romântico e nacionalista, havia as
posições teóricas e ideológicas do liberalismo sócio-econômico que defendiam o
25
comercio livre como égide do progresso de uma nação. A formação de um setor liberal
representado por uma burguesia agroexportadora veio de encontro ao conservadorismo
das oligarquias e dos traficantes de escravos. A primeira metade do século XIX
certamente é marcada por essa dialética do regime pós-colonial, em que escravistas e
liberalistas coexistiam contraditoriamente, a ponto de se pensar em determinados
momentos, por exemplo, que era um direito de liberdade de propriedade a oligarquia
comercializar o “bem mercadológico” chamado escravo (BOSI, 1992, 194). Mas o que
era contradição logo passou a ser tensão, e o contraste entre trabalho livre e trabalho
escravo exigiu do liberalismo uma posição mais contundente contra os direitos do
senhor, o tráfico negreiro e a escravidão. Surge, assim, a posição ideológica denominada
abolicionista, colocando a questão escravista no centro da discussão sobre o progresso
nacional.
Pode-se observar que a inclusão aberta do negro como tema poético ou prosaico
acompanha o desenvolvimento dessas discussões político-econômicas. O negro não é
mais elemento ornamental como no Arcadismo, nem figura destituída de humanidade
como no barroco de Gregório de Mattos, mas integrante de uma sociedade escravocrata.
No entanto, a preocupação com o negro se torna mais presente nas décadas de 50-60 do
século XIX, somente depois de muito se esgotar a temática romântico-indianista, onde
os nativos desempenhavam papéis literários simbólicos, míticos e ideais de uma
literatura estritamente nacional. Com os postulados do romantismo, a Literatura
Brasileira podia agora discorrer mais abertamente sobre temas mais amplos da cor local,
sobre os povos que constituíam a nação. Nesta perspectiva, surgem obras importantes
enfocando o negro, como as de Gonçalves Dias, de Fagundes Varela, de Luiz Gama e
de Castro Alves. Assim, o negro começava a fazer parte dos assuntos admitidos na
literatura, fato considerado despropositado nas tendências literárias anteriores.
26
Além da preponderância do tema indianista no romantismo, a preocupação dos
escritores românticos com o negro na literatura foi incluída tardiamente por passar
muito mais pelo debate sobre a pertinência da economia escravocrata, isto é, sobre um
processo político-judicial da ordem do dia do que necessariamente pelo decantar de
versos sobre a cultura do afro-brasileiro e do interesse em recontar a história de sua
cultura negra. Esta é a opinião de Heloísa Toller Gomes (1988), que estuda
especificamente como o período romântico representou, em algumas obras, a temática
do negro ora com simplicidade grosseira, ora com um pensamento demasiadamente
idealista:
Foi mais fácil pairar o silêncio sobre o negro ou, quando muito, pintar
a escravidão como instituição benevolente ou cruel, do que tentar ver
e expressar o que se passava dentro da realidade da senzala: senzala
essa tão desconhecida quanto acusadora. (GOMES, 1988, p.3)
Voltando para as questões relacionadas à crítica literária da representação do
negro, o momento histórico do romantismo convém uma transição rápida dos estudos de
Roger Bastide, escritos nos meados dos anos 40-50, para as leituras mais
contemporâneas, em que se pode perceber uma distinção de posições que envolvem
diretamente a figura de um dos principais escritores românticos e defensores do
abolicionismo: Castro Alves.
Elio Ferreira, no artigo Algumas vozes da literatura afro-brasileira, defende que
a poesia de Castro Alves que representa o negro possui a perspectiva de uma terceira
pessoa distanciada e que enxerga o negro com uma postura paternalista, piedosa e
pessimista. Para Ferreira, “Castro privilegia a visão do branco sobre o negro e o
africano como o Outro, um ser estranho, uma raça incapaz que precisa ser protegida.”
(2005,p.63). Condizente com os ideais abolicionistas, poemas como “Navio Negreiro”
27
possuiriam o tom predominante de comiseração e tragicidade, sendo este o ponto fraco
na obra do poeta, pois somente destaca o lado sofredor e infeliz do negro.
Ressaltando um aspecto diferente do de Elio Ferreira, Alfredo Bosi entende os
poemas anti-escravistas de Castro Alves contextualizados na situação histórica da
formação da sociedade brasileira, em que o liberalismo e o abolicionismo exigiam
medidas urgentes na integração da nação ao processo de democracia moderna.
Justamente por isso, para ele, os poemas castrianos vão além de simples lamentos,
sendo “protestos contra a cumplicidade dos brasileiros no massacre dos negros” (2003,
p. 238). Bosi acredita que os poemas de Castro Alves sobre o negro registram
denúncias, protestos, inquietações. Se uma separação formal entre África e América
no poema “Navio Negreiro” é para simbolizar, no viés romântico de destacar nações
como entes vivos, a relação entre oprimidos e opressores que regem a condição do
escravo brasileiro.
É pertinente a observação de estrofes onde se pode encontrar, respectivamente,
os elementos destacados por ambos os estudiosos:
São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz.
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados,
Que com os triges mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão...
(ALVES, 2002, p. 100)
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúmulo de maldade
Nem sõ livres pra... morrer...
Pernde-os a mesma corrente
- Férrea, lúgubre serpente –
28
Nas roscas da escravidão.
E assim roubados à morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!...
(...)
Fatalidade Atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga
Como um íris no pélago profundo!...
... Mas é infâmia demais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! Arranca este pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta de teus mares!
(ALVES, 2002, p. 102-103)
Quem irá acrescentar uma forma inovadora ao tratamento poético do negro será
Luís Gama. Nas Primeiras Trovas Burlescas, de 1959, o poema “Quem sou eu?” é uma
bem elaborada sátira carnavalizada sobre a questão do afro-brasileiro na sociedade. A
inovação poética está principalmente em dois aspectos ainda não presentes nas obras
anteriores da história literária brasileira: o negro como sujeito poético, debochador,
consciente de sua situação no meio de tantos brancos discutindo sua liberdade sem
consultá-lo; e a utilização de uma linguagem procedente da cultura africana. A poesia
deste autor originou procedimentos que serviram de critérios para inspirações e práticas
literárias posteriores, se tornando um precedente do que no século XX viria se chamar
de literatura do negro:
(...) Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
29
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres.
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,asmin
Marram todos, tudo berra;
Nobres, Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas damas emproadas
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.(...)
(GAMA, 2000, p.35)
nobres gentes
Em todos há meus parente
Silvio Romero foi um dos poucos que, como crítico e historiador, reconheceu a
relevância do poeta de Luiz Gama. Entretanto, Silvio Romero compreende, a partir de
posições naturalistas e deterministas, a nação como a síntese da modificação da matriz
européia diante das relações com o meio sul-americano e com outras matrizes como a
negra e a indígena. Sua abordagem das culturas era predominantemente eurocêntrica
assim como todo o período que vai dos últimos trinta anos do século XIX ao início do
século XX. De acordo com Roberto Ventura:
Introduziu-se, na literatura e na crítica brasileira, uma visão
exótica ou um olhar de fora, que trouxe uma imagem negativa da
sociedade e da cultura local, expressa na oscilação entre o
ufanismo e cosmopolitismo, na tensão entre a ideologia
civilizatória e o projeto nacionalista. (VENTURA, 1991, P.41)
Neste sentido, embora, em termos literários, a poesia de Luiz Gama tenha dado
um salto qualitativo em relação ao que já foi escrito sobre a literatura de representação
do negro, em termos históricos, naquele contexto, ela é um fato isolado diante do
30
paulatino engajamento da intelectualidade brasileira, agora mais desenvolvida em
termos de meios e produção, nas teorias da inferioridade das raças e das culturas não
européias. Em outras palavras, o cientificismo que predominou nas três últimas décadas
do século oitocentista possuía entre suas principais vertentes a marca da desigualdade
racial: a ideologia do branqueamento e a miscigenação cultual. Levado a cabo pelo
pensamento nacional no campo social, cultural e cientifico, pode-se constatar que,
durante este período, as produções de obras poéticas ousadas, como a de Luiz Gama
sobre a temática do negro, rarearam, embora no que se refere a narrativa, Machado de
Assis, Lima Barreto e Cruz e Souza conseguiram atingir com suas obras grande
repercussão (tanto estética quanto ideológica) na discussão sobre questão étnica
brasileira. Quanto à poesia, ofuscamento da cultura local devido ao intenso trabalho
intelectual voltado para as artes européias. O parnasianismo se torna movimento
literário hegemônico, elegendo como pauta a tradição neoclássica e a força formal da
arte, em detrimento de uma poesia livre e de feição local. Este estilo poético
predominará em grande parte do período de 1880 à 1922, quando o modernismo
oficialmente se inicia. Assim, o negro, no Parnasianismo é novamente alijado da
literatura, à exceção do poema “Fugindo do Cativeiro” de parnasiano Vicente de
Carvalho e de “Banzo”, de Raimundo Correia, citados por Oswaldo de Camargo (1987).
ainda um poema simbolista de Cruz e Souza de grande expressão na área, mas
também como um fato isolado, inclusive dentro de sua obra poética:
(...) Preso à cadeia das estrofes quentes
Como uma forja em labareda acesa,
Para cantar as épicas, frementes
Tragédias colossais da Natureza.
Para cantar a angústia das crianças!
Não das crianças de cor de oiro e rosa,
Mas dessas que o vergel das esperanças
Viram secar, na idade luminosa.
Das crianças que vêm da negra noite,
Dum leite de venenos e de treva,
Dentre os dantescos círculos do açoite,
Filhas malditas da desgraça de Eva.
E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela,
A ironia das aves rindo a aurora
E a boca aberta em uivos da procela.
31
Das crianças vergônteas dos escravos
Desamparadas, sobre o caos, à toa
E a cujo pranto, de mil peitos bravos,
A harpa das emoções palpita e soa.
Ó bronze feito carne e nervos, dentro
Do peito, como em jaulas soberanas,
Ó coração! és o supremo centro
Das avalanches das paixões humanas.(...)
(SOUSA. In: Bernd, 1992, p.34)
Corrente critica que vai se debruçar com interesse sobre esse período histórico
pós-abolição são os representantes americanos brasilianistas Raymond Sayers (1959),
Gregory Rabassa (1975) e David Brookshaw (1983), este último o único dos três que se
preocupou com a representação do negro no texto poético.
Segundo David Brookshaw, em Raça e Cor na Literatura Brasileira (1983), os
estereótipos de negros criados e representados no decorrer da literatura brasileira foram
maneiras de aprisionamento no modo de vida do branco, na relação de oposição entre
euro-brasileiro e afro-brasileiro, com toda a carga de conflito cultural, entre a oposição
de cor e também, evidentemente, entre as diferenças cio-econômicas. A linha de
raciocínio estabelecida por Brookshaw em sua pesquisa é feita a partir da suposição de
que existe uma constante “assimilação à cultura branca metropolitana e desassimilação
dessa mesma” por parte das culturas subalternas brasileiras. Sua discussão não gira em
torno do centralismo da raça, mas sim da cultura. Este é o princípio metodológico que o
norte-americano irá empregar para fazer em suas críticas a distinção de autores brancos
de autores negros. O escritor branco condizente com a estrutura de poder enfatiza o lado
primitivo, violento e selvagem do negro, defendendo um país branco. Já aquele que tem
propensão a retratar o negro a partir de suas qualidades, faz de maneira exótica ou então
como mero objeto estético. Processo semelhante acontece, para o crítico, com o escritor
negro, mas de maneira mais complexa, que a assimilação ou a desassimilação da
cultura branca, neste caso, potencializaria outros tipos de estereótipos, criando a
32
dicotomia “negro fiel” X “negro rebelde”. O período central estudado por Brookshaw é
o abolicionismo e suas conseqüências.
O estudioso é um dos primeiros a afirmar que os escritores, independentes de
sua descendência, podem abordar ou não questões raciais e da cultura afro-brasileira em
seus poemas. A questão não está na diferença entre escritor negro e escritor branco, a
questão é se o negro representado literariamente está subordinado à imagem da
ideologia dominante ou não.
Mas essa perspectiva pôde ser compreendida atualmente devia a uma
verdadeira revolução cultural iniada em 1922. Ora, somente com a culminância das
proposições das vanguardas modernistas que o Brasil se viu imerso em um novo
panorama literário, diferente da tradição do século anterior. Fundamentados e
empenhados na descoberta de um novo Brasil, livre dos recalques históricos e das
ideologias estrangeiras, os modernistas modificaram radicalmente os valores estéticos
do país utilizando principalmente a paródia, a irreverência, a ironia e a
desautomatização das formas literárias fixas. Fazendo parte do segundo momento
nacionalista na literatura brasileira, os modernistas fortaleceram os principais traços de
brasilidade e, mais uma vez, elegeu-se o índio como temática principal.
Mas os modernistas também contribuíram para a inclusão da cultura afro na
formação da literatura e da identidade nacional. Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Jorge de Lima e Raul Bopp, autor
perquirido neste estudo, voltaram-se, em determinado momento de suas obras, para a
representação do negro e da sua cultura. Preocupados com a expansão de assuntos
literários que fizessem contraponto aos moldes rígidos dos neoclássicos, os modernistas
amplificaram a heterogeneidade da literatura, desencadeando um modelo de busca de
identidade que servirá de matiz para os movimentos literários negros posteriores.
33
Apesar de todo esse desempenho da literatura na tradução do país, no gênero
poesia, quando se pensa nas imagens poéticas do afro-descendente verifica-se que, da
mesma forma que a sociedade brasileira custou reconhecer a real história e condição
social dos negros, a literatura resistiu em eleger como temática literária a camada social
basilar afro-descendente, muito como reflexo da não garantia de sua cidadania. É certo
que a representação poética do negro, como se percebe, não é totalmente ausente dos
principais períodos literários da literatura escrita brasileira, mas se pensarmos a
literatura brasileira com papel e função interpretativa do país, uma grande
disparidade entre o social, com sua presença marcante do negro, e a representação da
sociedade brasileira na literatura, com raras referências a esta presença.
Seja como for, o reconhecimento da presença do negro na literatura brasileira
tem sido abordado em discussões complexas, polêmicas e sempre atuais. Por exemplo,
tem sido questões bastante trabalhosas analisar imagens do negro no texto literário, ver
o negro como produtor do discurso literário e articular esses aspectos numa história
literária maior que é a da Literatura Brasileira. Relacionar estas dimensões do
conhecimento tem motivado trabalhos de variadas perspectivas, ao longo do século XX,
que se esforçam em organizar efetivamente o lugar dos elementos afro-brasileiros na
literatura, o que de alguma forma, já estabeleceu uma série de textos críticos e históricos
importantes que vêm sendo revisados e revisitados sistematicamente. Estes textos
comportam diversos conflitos de abordagem, da mesma forma que trazem alguns pontos
de concordância em algumas categorias. O que se tenta nestas linhas é circunscrever, de
maneira condensada, alguns tópicos da crítica literária brasileira que foram importantes
para o desenvolvimento dos procedimentos teórico-metodológicos que fundamentam
esta pesquisa em torno de poemas de Urucungo, de Raul Bopp.
34
1.2. Uma proposta de abordagem teórica
Os significados estéticos do gênero poético se manifestam também na recriação
dos acontecimentos históricos, pela codificação de imagens e pela nova expressão social
dada a um determinado evento. É principalmente destas características que se pode
articular um esboço conceitual para compreender a representação do negro e seus
aspectos culturais na poesia. A elaboração semântica do discurso sobre o negro presente
no corpo de um poema pode, com evidência, serem tomadas como categorias literárias
legítimas no momento do exercício de interpretação textual, principalmente se levado
em conta “o estudo da metáfora, das constantes estilísticas, do significado profundo da
forma” (CANDIDO, 2006, p.36).
Riffaterre (1984) afirma em seus estudos que a unidade semântica de um poema
é indissociável da sua unidade formal e que é apenas nesta relação complementar que se
pode pensar na abrangência da significância poética, que extrapola o sentido isolado das
palavras e das técnicas de composição. Assim, torna-se perfeitamente possível, levando
em conta o caráter plural das significações da literatura, uma interpretação da realidade
dos valores afro-descendentes construídas nos poemas, que este referencial da
composição é urdido na organização mútua da semântica e da sintática da linguagem.
Desde que as referências analíticas, sejam no âmbito das representações históricas ou no
âmbito da expressão da organização formal, estejam direcionadas ao esclarecimento de
alguns pontos da construção poética, não existe inconveniência em se aprofundar
questões relacionadas, por exemplo, aos sujeitos históricos como os negros.
A proposição de que a poesia negra de Raul Bopp se revela possuidora de uma
abordagem crítica dos processos de opressão do negro, considerando-os sujeitos
detentores de experiências históricas e sociais, será amparada, dentro da possibilidade,
35
por vários procedimentos analíticos proposto pelos críticos debatidos, mas sobretudo,
será orientada pela própria obra, que exigirá, em determinados momentos, atenção mais
perspicaz nos seus procedimentos técnicos que fornecem ligações com os valores afro-
brasileiros e, em outros momentos, com a criação de imagens poéticas do negro. É
refletindo sobre o referencial teórico exposto que se chega, no procedimento
metodológico desta pesquisa, a alguns pontos que serão observados na leitura dos
poemas. Um deles é a atenção que será voltada para as articulações fonológicas e
lexicais das palavras, onde estão presentes significados (rítmicos, sintáticos e sonoros)
ligados à cultura africana e que predominam em determinados poemas boppianos que
serão analisados. Também se deve atentar para a unidade semântica e formal dos
poemas, entendendo o poema como a síntese de um evento que congrega os aspectos da
realidade com diversas operações textuais (BOSI, 2002, p. 463). Visto que é recorrente
a mimese de situações da história dos africanos e afro-descendentes em Urucungo, esta
perspectiva preocupada com a representação do real será essencial para a investigação
desta obra e fundamental para se compreender a visão de mundo adotada no discurso do
eu-lírico dos poemas. Como se verá, motivado pelo cenário modernista e pela visão
antropofágica, o poeta gaúcho se empenhou em construir um mosaico de episódios
históricos e cantos da cultura negra, dando privilégio à posição dos negros. Um outro
ponto que não se deve deixar de fora da análise diz respeito às relações textuais dos
poemas com os padrões literários de épocas anteriores e com o contexto em que foram
produzidos.
Outros fundamentos teóricos que podem dirigir mais de perto a análise desta
“presença negra no Brasil” existente em Urucungo encontram-se no modelo teórico
proposto por Zilá Bernd que assim como os princípios de Massi, Madruga e Averbuk
–, podem se configurar como basilares para a interpretação dos poemas desta obra no
36
que dizem respeito à construção literária da figura do negro. Embora a estudiosa foque
seus trabalhos em um período diferente do que Bopp está inserido, Bernd estabelece
alguns marcadores estilísticos que possibilitam reger uma interpretação das
representações do negro quando afirma que:
No que concerne à literatura negra, sua característica maior talvez seja
aquela ligada aos procedimentos de (re)nomeação do mundo
circundante. Ora, nomear equivale a tomar posse do que foi nomeado.
Em certa medida, a função da crítica também é a de nomear: é tornando
visíveis as descobertas feitas pelos autores que os críticos as
transformam em história da arte, ou melhor, as legitimam. (BERND,
1988, p.20)
O termo escritura negra parece ser pertinente por conduzir a questão da
representação do negro partindo do próprio universo mimético e simbólico da literatura,
deixando questões como a cor da pele do escritor ou a eficiência do discurso político
para um plano secundário. O que interessa nas premissas de Bernd aproveitáveis para a
análise da obra de Bopp são os três parâmetros de investigação que ela propõe para
perquirir a realidade do universo afro-brasileiro existentes em uma “literatura negra”:
1) O reconhecimento dos negros como sujeitos históricos, detentores de uma
identidade cultural, sem deformações, exclusões ou estereótipos. Ou seja, uma forma de
contraposição ao discurso literário pautado na história institucionalizada,
ideologicamente deturpada e que não assinala a visão de mundo de grupos étnicos
oprimidos. Uma poesia em que o tratamento do negro se de maneira em que uma
distância e estranhamento, isto é, “fala de um lugar que se situa fora da comunidade
negra” (Bernd, 1988, p.67). Zilá defende que da posição contrária à tradicional emerge
um tratamento diferenciado do discurso literário, pois nele está presente o
reconhecimento sócio-histórico que, a partir do momento que os poemas dão voz,
identidade, história e cultura aos sujeitos afro-descendentes, estabelece-se uma nova
37
organização poética de idéias complexas sobre o negro. Preocupado com a imagem
poética da realidade histórica do país, objetivo do nacionalismo literário dos
modernistas, Bopp redescobre o ângulo da formação brasileira pela releitura de
passagens cujo foco principal é a população negra, realizando, no corpo dos poemas,
este reconhecimento proposto por Bernd.
2) A construção histórica como matéria poética, denunciando as injustiças e
maus tratos da escravidão brasileira que, em Bopp, caminha do surgimento do tráfico
negreiro às favelas urbanas. Poemas pautados nesta proposta buscam reconstruir o
passado sangrento a que os negros foram submetidos como forma de denúncia e tem na
sua constituição estética a simbologia da resistência dos povos frente às opressões
históricas. No dizer de Bernd, “a reapropriação da origem e a estruturação do universo
negro na América, desde a viagem nos navios negreiros, a saga da escravidão, os
quilombos e a situação pós-Abolição constituem elementos basilares do discurso
poético” (Bernd, 1987, p.134).
3) Um código verbal que aponta para referências históricas e culturais do afro-
descendente, instaurando uma nova ordem semântica que, nos poemas de Bopp,
reproduz campos simbólicos da tradição mítica e social da tradição africana. O trabalho
com esta tipologia resgata referências do contexto do passado do negro e, ao mesmo
tempo, estimula o redescobrimento da sua identidade a partir da nomeação do seu
universo sócio-cultural.
Por dialogar com as propostas críticas deste presente trabalho, as categorias
teóricas apresentadas por Bernd serão concentradas nas circunstâncias particulares de
alguns poemas de Urucungo, já que existem características em suas teorias que
disponibilizam recursos úteis à identificação da proposta estética de Bopp no momento
em que representa o mundo do afro-descendente em sua obra poética.
38
Uma interpretação crítica do livro de poemas Urucungo com foco na
representação do negro em sua história e cultura faz necessária para dar seqüência ao
novo interesse na releitura deste autor modernista. Pois, para se compreender a
importância de uma obra há de se verificar em seus aspectos mais internos a sua
natureza literária. No entanto, esta natureza não escapa do conjunto de valores que
fundamentam a percepção literária e cultural de qualquer autor, sendo essencial que se
compreenda, neste trabalho, a partir de uma leitura histórica, a noção moderno-
antropofágica de Bopp e de como estes preceitos dialogam com sua obra, Urucungo.
Tal contextualização modernista será observada no capítulo subseqüente.
39
2. MODERNISMO, ANTROPOFAGIA, AFRICANIDADE EM RAUL BOPP
2.1. Antropofagia: a afirmação das culturas brasileiras
O projeto do modernismo, depois que originou as mudanças das formas de
expressar a realidade, progressivamente foi voltando sua atenção para novos aspectos e
diferentes visões da cultura do país. Para os modernistas, havia chegado o momento de
interpretar a realidade que diz respeito ao caráter brasileiro, sem o viés ornamental da
linguagem nem o sentimento de inferioridade diante das produções artísticas européias.
As reflexões sobre o nacionalismo se tornaram fundamentais entre os modernistas que
manifestaram agudo senso crítico na hora de se voltar para a nação. O Manifesto da
poesia Pau-Brasil de Oswald é representativo desta nova fase do modernismo: “O
trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura
nacional” (ANDRADE, 1995, p.44). Numa única premissa, Oswald condensa as
influências vanguardistas, as transformações estéticas da Semana e a preocupação com
o teor nacional na literatura. Os escritores, neste momento de redescobrimento da nação,
buscaram resgatar em diversas fases da História do Brasil, na realidade local da
Amazônia, do Nordeste ou de qualquer região do país as marcas de brasilidade que
passaram a alicerçar suas obras literárias, compostas de enérgica valorização da
sincrética cultura nacional e de inumeráveis denúncias de ordem histórica.
Sobre este momento de transição das preocupações formais para as aspirações de
nacionalidade, Vera Lúcia de Oliveira afirma que:
O esteticismo exasperado da Semana de Arte Moderna é substituído
pela preocupação de reintegrar a literatura na realidade, de mergulhar
profundamente naquele Brasil do qual tanto se falava, mas que pouco
se conhecia. Sem renegar os postulados do Modernismo, os seus
40
protagonistas recusam a gratuidade do fato estético em função de
uma participação social mais acentuada. (OLIVEIRA, 2002, p. 66)
A Antropofagia possui um significado profícuo para o momento modernista,
pois conseguiu convergir os influxos externos provindos dos grandes centros europeus
sem ignorar a situação do presente e do passado local, subjugando aquele de acordo
com as necessidades deste. Os postulados da Antropofagia, como se sabe, foram
elaborados a partir de um amadurecimento das idéias contidas no Manifesto Pau-brasil
e, de maneira indireta, das concepções modernas de arte, advindas das produções
críticas e literárias brasileiras, como os prefácios de Mário de Andrade e a obra
ensaística de Paulo Prado e Graça Aranha, embora nenhum destes tenham aderido
abertamente ao grupo.
A antropofagia possui duas fases distintas, ambas geradas por questões de ordem
sócio-contextual. Na primeira fase do movimento, englobando as doze primeiras
edições da Revista da Antropofagia, lançadas entre XXXX e XXXX, existe a
predominância dos escritos de Oswald de Andrade, Antonio de Alcântara Machado,
Raul Bopp, Oswaldo Costa, Mário de Andrade e a participação de Tarsila de Amaral,
havendo ainda a colaboração de intelectuais de todo o país como Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira, Luis da Câmara Cascudo, José Américo de Almeida, Jorge
de Lima e Augusto Schimidt. A contribuição para a revista de escritores de várias partes
do Brasil representa o quanto, naquele momento, os ideais de brasilidade e de
modernismo tomavam proporções nacionais, não correspondendo apenas a um setor
localista da intelectualidade. A RA inclusive abrigou texto de autores que se
contrapuseram aos ideais antropofágicos, como é o caso dos participantes do Verde-
Amarelo Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida.
41
Nesta primeira fase, o que proporciona a participação de tantos escritores
diferentes é ainda a idéia predominante de dar continuidade a ruptura sistemática dos
padrões literários e culturais anteriores, muito próxima da concepção Pau Brasil.
Apesar da variedade de colaboradores e da inquietação em efetivar o “novo código”, a
preocupação com a identidade nacional foi, neste momento, elemento importante e
essencial para o grupo, independente do teor particular adotado por cada poeta ou
articulista. Pensando na diversidade da primeira fase, é difícil estabelecer um projeto
antropofágico fidedigno, dado o mero de autores, visões e estilos presentes nas
páginas da Revista. No entanto, pode-se perceber nos poemas, nas crônicas, nas críticas
e, particularmente, nos manifestos, alguns pontos fundamentais que guiaram a filosofia
antropofágica nas suas primeiras dez edições. Os textos são críticos, os poemas buscam
técnicas inovadoras, e o humor e a imagem metafórica da devoração do passado sempre
que possível evocados. O artigo de Oswaldo Costa é significativo deste estilo
antropofágico de espontaneidade estética:
O que se quer é simplicidade e não um novo código de simplicidade.
Naturalidade, não manuais de bom tom. Contra a beleza canônica, a
beleza natural feia, bruta, agreste, barbada, ilógica. Instinto contra
verniz. Os selvagens sem as miçangas da catequese. O selvagem
comendo a catequese. (COSTA, RA, nº 1 In: RA, 1977, p. 8).
Na segunda fase da Revista, compreendida de março de 1929 a agosto do
mesmo ano nas páginas do Diário de São Paulo, existe uma unidade maior em torno
dos ideais antropofágicos, que agora extrapolava o campo literário e buscava instaurar,
na relação mais próxima com a história e filosofia, uma nova concepção de identidade
nacional, inspirada no homem natural americano. A segunda dentição foi espaço para a
apreciação desfavorável daqueles que, segundo a linha editorial da revista, torciam o
sentido do modernismo. É o momento em que Oswald de Andrade rompe com diversas
42
figuras que participaram ativamente dos acontecimentos da década, como Graça
Aranha, Menotti del Picchia e Mário de Andrade. Oswald de Andrade, Raul Bopp,
Jaime Adour e Geraldo Ferraz, criando e recriando inúmeros pseudônimos, vão
estabelecendo as novas diretrizes do movimento, enfatizando que a descida
antropofágica não é uma revolução literária. Nem social. Nem política. Nem religiosa.
Ela é tudo isso ao mesmo tempo. ao homem o sentido verdadeiro de vida, cujo
segredo está o que os sábios ignoram na transformação do tabu em totem.” (JAPY-
MIRIM, RA, 2dent. N.2. 1929)
Benedito Nunes (NUNES, 1995) lança um olhar sobre as diretrizes basilares do
movimento antropofágico como um todo. Segundo ele, independente das fases ou dos
colaboradores, o movimento assumiu três planos de atuação peculiares que, embora
sempre identificados com traços das vanguardas européias, demonstram a importância
renovadora que houve na maneira de enfocar a cultura brasileira. O primeiro plano é o
regido pela simbólica da repressão ou a crítica da cultura, marcada pela investida
radical contra o processo forçado de civilização que os colonizadores, jesuítas e
exploradores implementaram no país, trazendo com isso elementos morais, religiosos e
jurídicos que não faziam parte das relações humanas do índio nem do negro. A
simbólica da repressão é a retomada dos mitos e lendas do universo tupi e africano
como forma de se contrapor aos mitos do desenvolvimento e evolução do mundo
capitalista. Assim, na Antropofagia, há um constante jogo de oposição entre os símbolos
coloniais e os símbolos ritualísticos das sociedades primitivas.
O comportamento selvagem é o tema do segundo plano traçado por Benedito
Nunes: a revolução caraíba ou o processo histórico-político. Esta característica
resignifica metaforicamente a deglutição praticada pelos rituais antropofágicos. Com o
intuito de convergir os elementos locais e cosmopolitas da cultura, o antropófago
43
“degusta” as idéias advindas do estrangeiro a fim de determinar quais e como estes
elementos podem ser ajustados para sua cultura. A revolução caraíba se apresenta como
um método que revolucionará a história pelo seu caráter abrangente de reunir todos os
processos culturais possíveis sem a perda da identidade nacional. Tudo isso, claro, sob o
tom humorístico próprio do movimento. O que é importante saber é que a Antropofagia
percebe a sociedade selvagem “equilibrada e feliz”, sem as neuroses e recalques que
orientam a civilização, quer dizer, é ideal do movimento antropofágico questionar a
razão com a magia primitivista. Por fim, Nunes chama atenção para a metafísica
bárbara, que se destaca na segunda fase do movimento e é marcada pela exaltação do
ato sagrado de devoração como incorporação do estranho ao familiar, fortalecendo o
ethos de determinada cultura. Diferente da revolução caraíba que prega uma
transformação do mundo exterior, a metafísica bárbara aspira afirmar o sentimento de
nacional e de liberdade espiritual no campo dos sentimentos. Pensando nesta dupla
transformação, interior e exterior, o movimento da Antropofagia dialoga com alguns
pressupostos do surrealismo.
Maria Eugenia Boaventura, tratando da Revista da Antropofagia, destaca dois
elementos estilísticos que predominaram na estética antropofágica tanto nos textos
quanto nas obras: a paródia e a colagem. Para ela, a paródia é a forma de expressão
literária encontrada pelo grupo modernista para inverter comicamente o sentido de
textos considerados cânones, sérios e elevados. Na sátira, os antropófagos alteram os
valores padrões e encontram na liberdade do riso e da ironia o recurso crítico para
demolir os tabus da sociedade brasileira. A ridicularização de obras, personagens e
acontecimentos históricos e a utilização de piadas e trocas para satirizar discursos e
tendências antigas ressaltaram o caráter rebelde e corrosivo da Antropofagia, na linha
44
dos vanguardistas da época, tendo como objetivo libertar um Brasil recalcado pela
repressão e opressão. Diz Boaventura que:
A publicação antropofágica traz à tona, breve e ludicamente, o
debate, onde o tom de troça e humorístico de linguagem concorrem
para desmistificar e ridicularizar assuntos sérios. Elimina a
carranquice do editorial jornalístico e aborda temas incomuns a uma
revista literária, pelo menos na época (afora a crítica à sociedade,
proposta de legalização do aborto e de substituição do sistema de
propriedade privada), numa linguagem nova. As características
inovadoras, na segunda fase, prendem-se também ao espaço de
impressão do seu material: a página de jornal. O de colagem-citação
tem na folha do jornal grande respaldo. E a revista soube explorar
todo o poder de dinamicidade que esse modelo ofereceu à escritura
em transformação do início do século (...) (BOAVENTURA, 1986, p.
56)
Mas para alcançar a significação do “espírito antropofágico” não se pode excluir
a leitura das intenções do Manifesto Antropófago que Oswald de Andrade (1995)
escreveu para a primeira edição da RA onde consta um roteiro básico que orientaram as
manifestações literárias e a linha editorial contida na proposta do movimento. A
primeira delas está na premissa inicial: “Só a antropofagia nos une. Socialmente.
Economicamente. Filosoficamente”. Nesta sentença se encontra a defesa da
congregação do modernismo em torno do movimento, através da autenticidade do estilo
e do aproveitamento dos diversos campos do conhecimento para a elaboração literária.
A antropofagia autorizava, enquanto literatura, a produção de obras que contivessem
aspectos sociais, econômicos e filosóficos, proclamando a abertura estética para
assuntos preocupados com as necessidades locais. Além disso, a antropofagia traz em
seu próprio conceito características de primitivismo moderno, isto é, a valorização dos
elementos étnicos e culturais do indígena e do negro, principalmente do nativo, como
fonte de originalidade formal e marca de brasilidade. A recuperação da cultura brasileira
se dá também, no manifesto, pela volta às concepções mágicas, mitológicas e primitivas
45
dos habitantes das florestas brasileiras. É um retorno ao homem natural contra a
racionalização do colonialismo que se impôs como elite opressora no desenvolvimento
da história do Brasil. É deste posicionamento que Oswald fala da “reação contra o
homem vestido”: “Queremos a revolução Caraíba”, “o contato com o Brasil caraíba”,
“O instinto caraíba”, “A magia e a vida”, “Não tivemos especulação. Mas tivemos
adivinhação”, “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade” (ANDRADE, 1995, p. 47-52), etc.
A Antropofagia, para Oswald, se realiza pelo processo de deglutição das
influências externas e do processo de digestão do que melhor pode ser adaptado e
assinalado pela cultural nacional. É neste sentido que ele manifesta uma síntese da
relação entre o nacional em sua essência e o que pode ser aproveitado da cultura de fora
em favor da identidade cultural. “Tupy or not tupy that is a question”, “Só me interessa
o que não é meu, lei do homem. Lei do antropófago”, “Nunca fomos catequizados.
Fizemos foi carnaval”, estas são passagens que refletem um dos pilares principais que a
imagem metafórica do antropófago sugeriu para o desenvolvimento do movimento
modernista. Um outro aspecto sugerido por Oswald é a denúncia dos males do Brasil.
Tomando as proposições do manifesto, pode-se identificar uma postura combativa
contra o conservadorismo. O movimento modernista brasileiro que inicialmente possuía
preocupação muito mais estética, adotava agora uma postura de revisão crítica da
História do Brasil, história impregnada de recalques, pudores e idéias moralistas.
Antropofagia se pautava na ruptura, no choque contra o “Brasil arcaico”, desreprimir o
país se configurava como uma missão e, para isso, era preciso adotar postura de
liberdade, ousadia e alegria, era preciso transformar o “tabu em totem”. Diversas
passagens do manifesto remetem a esta posição contrária à estrutura sócio-cultural do
país: “Contra todas as catequeses e contra a mãe dos Gracos”, “Contra todos os
46
importadores da consciência enlatada”, “Contra o Padre Antonio Vieira”, “Contra o
mundo reversível e as idéias objetivadas”, “Contra as elites vegetais”, “Contra as
histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra”, “Contra as sublimações
antagônicas. Trazidas nas caravelas”, Contra a verdade dos povos missionários”,
“contra o índio de tocheiro”, “Contra a Memória fonte do costume”, “Contra Goethe,
mãe dos Gracos e a corte de João VI”, “Contra Anchieta contando as onze mil virgens
no céu, na terra de Iracema”, “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada
por Freud”. Estes são alguns aspectos relevantes do complexo e rico texto de Oswald,
que Vera Lúcia Oliveira contextualiza:
A antropofagia é um convite a não isolar-se. Como opção, e como
consciente postura estético-cultural, ela tem um sentido
extremamente fecundo: é a assimilação crítica das forças do “inimigo
sacro”, é a transformação ativa e a dominação de tais forças no ato
consciente de assimilar apenas o que se considera compatível ou, de
qualquer maneira, positivo para a própria cultura. (OLIVEIRA, 2002,
p.76)
Através da Antropofagia, a nacionalidade modernista atingiu, nas suas
investigações etnográficas e antropológicas da cultura brasileira, elaborado grau de
senso crítico da história do país. A partir dessas reflexões, Raul Bopp tinha a
oportunidade de trabalhar literariamente o material e a vivência que havia adquirido ao
longo das suas várias viagens. As lendas, os folclores e os mitos brasileiros seriam
reelaborado esteticamente, pelo olhar antropofágico do escritor, para gerar um rico
imaginário poético que ia das “terras do Sem-fim” amazônicas às vozes das florestas
africanas.
A participação como escritor na primeira fase da Revista da Antropofagia é
tímida: apenas o poema “Vaca Cristina”, assinado sob o pseudônimo de “Jacob Plim-
Plim” e uma “nota insistente”, escrita junto com Antonio de Alcântara Machado; na
47
segunda fase, publicou um maior número de poemas (Macapá, Putirum, Yperungua,
Drama cristão e O papagaio do palácio). Além disso, Bopp, ao lado de Antônio
Alcântara Machado, desempenhava função fundamental na Revista da Antropofagia,
pois, como organizador, gerente e, nas últimas edições, diretor, tanto enviava a RA,
através da Agência Brasileira, para todo o Brasil, como lhe eram destinados materiais de
importantes pesquisadores, historiadores e escritores do país que gostariam de colaborar
para a revista.
É importante lembrar que Bopp não foi um mero seguidor dos ditames do
manifesto antropófago, mas um dos seus idealizadores, discutindo, propondo e
investigando elementos que pudessem ser incorporados ao movimento. À sua
participação com obras poéticas e com a produção da Revista da Antropofagia soma-se
o registro das suas concepções antropófagas. O vasto conhecimento que possuía sobre o
Amazonas o levou a se identificar com a releitura da história colonial brasileira,
característica “totêmica” do grupo modernista. A idéia era buscar no primitivismo
indígena e africano o tipo de saber brasileiro que contrapusesse a técnica racionalista do
colonizador.
Debaixo de um Brasil, de fisionomia externa, havia um outro Brasil de
enlaces profundos, ainda incógnito, por descobrir. O movimento,
portanto, seria de descida às fontes genuínas, ainda puras, para captar
germes de renovação; retomar esse Brasil subjacente, de alma
embrionária, carregado de assombros e procurar alcançar uma síntese
cultural própria, com maior densidade de consciência nacional.
(BOPP, 1966, p.64)
Sem dúvida, este trecho é uma lúcida síntese das pretensões da Antropofagia. A
primeira preocupação é, de acordo com a passagem, reconhecer a existência de um
Brasil desconhecido, reprimido, distante do mundo técnico-industrial. O projeto de
colonização a que o país foi submetido ao longo de sua formação ocasionou uma
48
historiografia enviesada pela perspectiva daquele que continha os meios técnicos mais
avançados, destituindo da história brasileira suas principais matrizes culturais. Se um
novo Brasil deveria surgir naquele momento, não era apenas através de mudanças de
rumos estéticos, mas de uma revisão da história do país, invertendo pontos de vista,
recompondo passagens históricas esquecidas, resgatando tudo que pudesse contribuir
para o fortalecimento da identidade cultural brasileira. As riquezas mítica e os aspectos
folclóricos das florestas indígenas e africanas seriam as temáticas que
desmitificariam o descobrimento para demonstrar que a existência do país antecede a
visita de Cabral e que através da valorização desta brasilidade primitiva o Brasil
expurgaria seu passado deturpado e, enfim, alcançaria, sem dependências, o ritmo de
desenvolvimento que o progresso histórico tanto almejava.
A descida antropofágica veio determinar uma estrutura nova no
pensamento de hoje. Violenta e agressiva, mas necessária. Não
podíamos pretender um reajustamento com o que existia. (...) Nós
vamos é tomar pulso da terra; consultar a floresta. Enfrentar problemas
que se confundem em medida; ajustá-los em outras proporções.
Material de fora tem vistorias na aduana. (Bopp, 1977, p.79-80)
É como se o país estivesse fechando suas portas para reorganizar sua identidade
e autonomia. Quem desejasse entrar nele, teria que passar pelo processo ritualístico da
Antropofagia, isto é, teria que ser incorporado a alma nacional através do processo de
deglutição. No entanto, uma leitura atenta da participação do escritor de Cobra Norato
no grupo demonstrará que os seus ideais antropofágicos são mais voltados para a
valorização primitivista da cultura brasileira do que propriamente na configuração
simbólica de deglutição de idéias estrangeiras. Isso se dá, talvez, porque Bopp nunca
precisou se preocupar em dar respostas às críticas ao movimento, como o polêmico
Oswald sentia a necessidade de fazer desde a publicação do Manifesto Pau- Brasil. O
certo é que chega a ser bastante evidente, no modelo antropofágico que Bopp
49
desenvolveu, subjugação das fontes vanguardistas ao universo poético da cultura
indígena e africana. Seria de difícil trabalho distinguir, por exemplo, recursos poéticos
advindos do imaginário mágico da cultura nativa ou do imaginário surrealista, o que
destitui a obra da polêmica travada entre o grupo Antropofagia e o Grupo Nhengaçu
Verde-Amarelo em torno das influências estéticas. A poética antropofágica de Bopp
passava indissociavelmente por regiões da Amazônia, do Nordeste, do Sul, diferente de
Oswald que estava sempre concatenado com os acontecimentos literários de Paris, com
sua imagem associada aos eventos da Semana de Arte Moderna e a Blaise Cendrars. O
que se pode dizer, através dos registros em que relatou sua orientação poética, é que
Bopp, no movimento antropofágico, preocupou-se mais em descobrir um Brasil
diferente do que “deglutir” antropofagicamente as influências externas, embora nunca
as tenha negado. É da sua obsessão pela “brasilidade” que vai elaborar passagens de alto
grau de percepção filosófico-poético do movimento que o envolvia a cada edição
lançada da revista:
Vamos descer à nossa Pré-história obscura. Trazer alguma coisa desse
fundo imenso, atávico. Catar os anais totêmicos. Remexer raízes de
raça, com um pensamento de psicanálise. Desse reencontro com as
nossas coisas, num clima criador, poderemos atingir a uma nova
estrutura de idéias. Solidários com as origens. Fazer um Brasil à nossa
semelhança, de encadeamentos profundos. (BOPP, 1966, p.97)
Essa diretriz da Antropofagia que expressa um universo primitivo brasileiro se
tornou a proposição máxima das obras de Bopp. O “reencontro com nossas coisas” na
sua obra poética se pela hibridização da narração histórico-cultural com a narração
mitológica e atemporal das origens dos povos que constituem o Brasil. A referência
explícita aos domínios da psicanálise freudiana sugere que a história do país precisa de
um tratamento clínico que o faça descer às suas raízes profundas e expurgar seus
traumas históricos. A pureza mágica do passado primitivo para redimir a consciência
50
nacional. Neste sentido, percebe-se que o modernismo antropofágico, através da obra de
Bopp, em diversas proposições dialoga com os inquietações surrealistas e primitivistas,
diferenciando destes em alguns aspectos como na necessidade de canalizar a discussão
para um projeto de identidade cultural do país, uma técnica de valorização.
A trajetória antropofágica de Bopp se encerra a partir do momento que o grupo
se dilui. As desavenças de Oswald com Paulo Prado e Mário de Andrade antes de sua
separação de Tarsila de Amaral tornaram completamente inviável a continuação do
projeto do grupo
2
. “E a Antropofagia dos grandes planos, com uma força que ameaçava
desabar estruturas clássicas, ficou nisso... provavelmente anotada nos obituários de uma
época” (Bopp,1966,p.94). Bopp encerrava um ciclo literário para entrar na diplomacia
internacional.
Somente no início dos anos 30, Cobra Norato (1931) e Urucungo (1932) são
publicados por iniciativa de amigos, e sempre com o autor ausente do país. Tais obras
tiveram origem em um outro cenário literário. Os escritores modernistas que surgiam se
preocupavam em consolidar seus projetos ideológicos, independente das subcorrentes
que marcaram os anos 20. Um dos objetivos, por exemplo, passou a ser a denúncia neo-
realista dos problemas sociais presentes. Neste contexto, a obra de Bopp não podia
receber a atenção adequada. O próprio autor relata em carta a Jorge Amado que “A
Noratinho, coitada, andou uns dias neste meio, chuchando no dedo, extraviada. Meio
encabulada num canto de vitrine. As livrarias venderam um exemplar. Eu quero
saber quem foi a besta. Talvez por engano uma encomenda do Butantã de São Paulo”
(Bopp, 1998, p.196). Se a obra Cobra Norato, que mais tarde seria considerada a obra
2 Massi comenta a possibilidade de Bopp ter se ressentido com a união amorosa entre Oswald e Pagu,
estopim da dispersão do grupo: 'Uma hipótese plausível seria substituir o vago 'um tomou a mulher do
outro' por 'Oswald tomou Pagu de Bopp'. Os acontecimentos teria precipitado a decisão de deixar São
Paulo, embarcar num cargueiro japonês e viajar dois anos sem parar”. (MASSI, 1998, p. 26)
51
mais notável do escritor passou por um difícil processo de aceitação, que dirá Urucungo
que, por muito tempo, passou a ser citada pela crítica apenas com referência incidente.
A temática de Urucungo trata da cultura e história afro-brasileira a partir de
fundamentos antropofágicos que evidencia uma visão de alteridade sobre características
específicas do negro.
2.2. Os caminhos da crítica boppiana
Para se iniciar uma crítica sistemática dos poemas que compõem a obra
Urucungo, de Raul Bopp, é imprescindível verificar como se deram as abordagens
críticas de seus trabalhos ao longo dos anos, principalmente para que se possa entender
os motivos que levaram um dos principais realizadores do movimento modernista
brasileira a um tratamento crítico muitas vezes aquém do seu valor poético. Comparada
com a fortuna crítica de outros escritores modernistas, como Mário de Andrade e
Oswald de Andrade, foram poucos os estudiosos da literatura brasileira que se
preocuparam em fazer uma leitura aprofundada da obra do escritor gaúcho. O fato de a
crítica se concentrar em passagens pontuais de Cobra Norato, seu poema de maior
prestígio, ou fazer juízos superficiais da sua produção como um todo, acabou retardando
a apreensão de traços característicos da poética de Bopp.
Neste sentido, a fortuna crítica da poesia de Raul Bopp pode ser identificada em
categorias que oscilam de equívocos e repetições à renovação de valores literários. São
diversos os modelos de crítica que permeiam sua obra: a que seleciona nas obras os
aspectos que se supõem mais relevantes e os incorpora a um panorama histórico linear;
resenhas e ensaios que vão perfazendo passagens diversas da obra, sem a preocupação
52
de captar sua integridade; e a que busca discutir, através de um olhar mais sistemático e
aprofundado, a configuração dos elementos constitutivos das obras do escritor.
Refazer o percurso dos principais textos que refletem a obra de Bopp se torna
uma forma de recuperar o que foi explorado até o momento, para que se possibilite
perceber nuanças estéticas que se fazem presente na elaboração dos seus trabalhos e, de
certo modo, para que se compreenda como o valor literário de Urucungo foi em parte
suprimido ao longo dos anos. Neste caso, a crítica encontrada nos compêndios sobre o
modernismo se torna um espaço exemplar para a constatação de algumas dessas
observações.
Manuel Bandeira, na Apresentação da Poesia Brasileira (1957), foi um dos
pioneiros a observar na obra de Bopp a elaboração estilística dos seus versos. Bandeira,
como se sabe, sobressai enquanto poeta no modernismo pelo refinado trabalho com os
elementos da linguagem coloquial, sendo justamente esta qualidade literária que ele
procura abordar enquanto crítico na leitura do escritor de Cobra Norato: “mistura-se a
sugestão da alma selvagem evocada nos mitos do folclore local, tudo expresso numa
linha forte e saborosa, síntese harmoniosamente organizada da dicção culta e da fala
popular” (BANDEIRA, 1957, p.51). O autor de Libertinagem, no que diz respeito a
Urucungo, considera que esta obra é “uma contribuição que emparelha com as dos
mestres cubanos e porto-riquenhos”.
Esta observação de Bandeira confirma o viés negritudinista da obra de Bopp.
Encontra-se, aliás, entre os mestres cubanos, o poeta Nicolas Guillén, uma das vozes
mais expressivas erguida em favor do negro, de grande ressonância no cenário literário
africano de língua portuguesa.
De maneira diferenciada da visão de Bandeira, que destacou a elaboração da
linguagem da obra, o espaço destinado à obra de Raul Bopp no compêndio A Literatura
53
no Brasil (1986), organizada por Afrânio Coutinho, polariza a discussão em torno da
estrutura do poema Cobra Norato. Coutinho constrói uma síntese descritiva do que trata
o poema. Cita que “primitivamente, ou como projeto de história para crianças, [Cobra
Norato] ostenta a grandeza daquele mundo em formação que é o Amazonas”. A
preocupação no texto gira em torno da tentativa de encadear passagens do poema que
dêem ao leitor uma noção do que é o mito da cobra amazônica, deixando em segundo
plano as considerações críticas de ordem estilística e da dimensão modernista. A
referência a Urucungo é curtíssima, limitando-se apenas ao registro de que “Urucungo
cultiva a poesia negra”.
Perspectivas como a encontrada n’A literatura no Brasil levou Massaud Moisés,
em O Modernismo (1997), a elaborar juízos desfavoráveis a alguns pontos exaltados
pela crítica da obra boppiana. Moisés organiza seus trabalhos pela ordem cronológica
dos anos das publicações das obras, situando Bopp na fase da poesia brasileira dos anos
30, destituindo seus poemas de reflexão antropofágica que, segundo ele, “cheirava a
infantilidade”. Centrando seus comentários em Cobra Norato, o referido crítico ressalta
que o valor literário da obra de Bopp “reside, na poesia de boa qualidade que encerra,
ou seja, na categoria de emoção produzida e no conhecimento implícito da realidade.
Tudo o mais é puro subjetivismo, não raro presa a uma visão provinciana ou regional do
produto literário” (MOISES, 1997, p. 317). Moisés propõe uma leitura que enfatiza
unicamente o aspecto textual e, assim, renega diversos outros elementos do próprio
texto que podem ser entendidos pelo seu teor antropofágico. Ao ignorar a circulação
de partes da obra antes da sua publicação, no final dos anos 20, Moises despoja a obra
de Bopp do contexto histórico do modernismo, momento em que brasilidade se fazia
necessária enquanto projeto literário, não vinculando, por exemplo, os textos
54
antropofágicos com a proposta de retorno as origens, razão pela qual faz leva o
historiador a atribuir aos textos boppianos “infantilidade”.
O estudioso refere-se a Urucungo como obra que não consegue se realizar
poeticamente “a altura da saga amazônica, apesar do toque de lírica brasilidade e da
generosa adesão à tragédia do escravo” (MOISES, 1997, p. 319).
Um outro historiador que tem relativa dificuldade em especificar onde enquadrar
certas considerações a respeito do escritor gaúcho é Wilson Martins (1973) no seu livro
destinado ao modernismo O Modernismo. Sob sua ótica, o modernismo comporta
obras representativas e autores fundamentais. Para ele, a natureza de abordar os autores
que tiveram papéis fundamentais no desenvolvimento cultural do movimento é diferente
das obras significativas que foram produzidas no período indicado. Assim, destaca
autores como José Américo de Almeida e Augusto Frederico Schmidt como
fundamentais no destino do modernismo em 1928, mas torna ausente a presença de
Bopp que, no mesmo ano, escrevia, dirigia e organizava a revista literária de maior
repercussão da história da literatura brasileira. Ora, na perspectiva de Wilson Martins,
se o autor fundamental é aquele que é “inseparável de uma escola” e que vivencia o
momento artístico com entusiasmo, não se faz coerente deixar o escritor de Urucungo à
margem. Com relação às obras representativas, Martins destaca Cobra Norato como o
poema que conclui a primeira fase modernista e o ciclo literário em que os mitos
amazônicos se constituíam como principal temática. Sobre tal obra afirma que é “a
suma de toda essa corrente [de composições sobre o Amazonas], situando-se numa
fronteira líquida, como as da própria Amazônia, entre o Verdamarelismo, de onde veio
Bopp, e a Antropofagia, para onde foi” (MARTINS, 1973, p.193). O crítico e
historiador se preocupa durante toda a reflexão sobre Bopp em aproximá-lo e compará-
lo com Mário de Andrade e Cassiano Ricardo, tomando “emprestado” destes dois
55
poetas as diretrizes para examinar aquele, o que a idéia de que não buscou encontrar
o significado estético na obra e muito menos no contexto do autor, que o exclui dos
representantes fundamentais do modernismo.
Nesta busca do significado histórico da obra de Bopp, deve-se ainda consultar o
que Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira (1997), raciocina
sobre o escritor gaúcho. Bosi a Cobra Norato status antropofágico, chama atenção
para o viés mitológico do épico-drama e o classifica como “documento-limite do
primitivismo entre nós”. Esteticamente, chama atenção para a sonoridade dos versos
boppianos, principalmente os de Urucungo, mas não verticaliza a análise, preferindo
observar que poesias como a de Bopp rendeu elementos para os estudos de Roger
Bastide, sociólogo francês.
Na antologia Presença da Literatura Brasileira Modernismo (1997), Antonio
Candido e Aderaldo Castello não incluem Bopp como autor de contribuição significante
ao período modernista, defendendo que ele é um dos escritores que não ultrapassaram a
fase heróica. Os dois literatos justificam que Cobra Norato é uma obra telúrica e
mitológica admirável, mas sem continuação. Assim, curiosamente, aquilo que Massaud
Moisés anteriormente apresentou como irrelevante – a participação de Bopp nos anos 20
é justamente o que estes dois críticos apontam como única contribuição do autor e
que, por este motivo não o incluiu na antologia. Como se percebe, esta é uma
controvérsia crítica que suscita a revisão atenta dos olhares sobre o autor de Cobra
Norato.
Somente mais tarde, em trabalho mais contundente, Aderaldo Castello (1999,
v2) revê o papel de Bopp e de sua obra, desenvolvendo uma das reflexões mais lúcidas
sobre Urucungo. Parte desta reflexão merece ser reproduzida:
56
Raul Bopp publica a seguir Urucungo [após Cobra Norato]. Poemas
Negros, conforme indica, inspirado no negro, sua cultura e presença
brasileira. Alguns destes poemas foram refeitos e incluídos em edição
de Cobra Norato e Outros Poemas. (...) Com este segundo livro o autor
amplia sua temática ao todo do Brasil: natureza primitiva, nossas
origens, formação social, desenvolvimento, o Oeste, o Amazonas, o
ouro, o negro, o imigrante, tradições, configurações do nosso retrato
complexo (CASTELLO, 1999, v2, p.148).
O importante, além das referências e informações extrínsecas dos textos que
compõem uma História Literária, é o historiador atentar para a necessidade de
aperfeiçoamento das leituras críticas sobre as obras dos escritores, evitando a mera
repetição dos antecessores e reconhecendo os processos de revisão crítica no que diz
respeito ao desenvolvimento da história da literatura. O que antes era apenas visto como
um texto de seleção enciclopédica foi se transformando ao longo dos anos, buscando, de
maneira ponderada, adentrar nos aspectos literários temáticos e formais que
prevalecem enquanto elementos assertivos da poesia de um autor. A poesia de Raul
Bopp, como se percebe, tem exigido reparos cuidadosos na ligação com o contexto
histórico da literatura modernista e na legitimidade estética do seu estilo literário. E para
tal comenda, a apreciação minuciosa de suas obras auxilia na mudança de foco crítico e
historiográfico na literatura.
3.3. Novos rumos para Bopp
Com a publicação da poesia completa de Bopp, organizada por Augusto Massi
(1998), começam a surgir estudos que buscam reavaliar a sua situação na literatura
brasileira. A introdução da edição de sua poesia completa, A forma elástica de Bopp,
escrito pelo próprio Massi, é um esforço em “esboçar um roteiro de leitura capaz de
oferecer uma visão interna e integrada de sua trajetória poética” (MASSI, 1998, p.13).
57
O que Massi destaca em relação à sua estética é a predominância de uma linguagem
solta em que “os poemas se deslocam para dentro e para fora do livro, versos idênticos
desembarcam em poemas diferentes, partes transitam livremente dentro do todo”. “Este
princípio que estrutura sua poética pode ser definido como uma forma elástica, cuja pele
textual alterna polimorficamente momentos líricos, narrativos e dramáticos” (p.15).
Massi chama também atenção para o cuidado que Bopp teve em não desvirtuar o
sentido primitivo de cada lenda ou mito ao dar um emprego original do folclore
brasileiro na elaboração poética. A perspectiva boppiana, neste ponto, parece ser é de
incorporar à poesia a diversidade étnico-cultural de um determinado grupo social, dando
à cultura popular e aos elementos nacionais um tratamento antropológico.
Raul Bopp conseguiu conservar na sua poesia alguma substância
daquela arte de contar histórias de que falava Walter Benjamim, mais
próxima do trabalho artesanal do que da técnica industrial. (...) É
preciso cavar fundo para redescobrir as diversas camadas culturais que
compõem o sedimento de sua poesia. (MASSI, 1998, p.33)
Além da leitura que faz sobre a obra do poeta, Massi seleciona uma série de
breves ensaios que compõem a fortuna crítica de Raul Bopp. Descrever e analisar todos
estes textos demandaria grande esforço que para execução de uma pesquisa desta
dimensão seria conveniente a realização de um trabalho paralelo unicamente com tal
objetivo. As referências selecionadas pelo crítico são compostas de textos de Oswald de
Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Sérgio Buarque de Holanda,
Augusto Meyer, Manuel Cavalcanti Proença, José Paulo Paes e Antônio Hohlfeldt.
O caso do artigo de Carlos Drummond de Andrade, para exemplificar, chama
atenção para a necessidade de uma leitura atenta dos versos que Bopp reelaborou ao
58
longo da vida. Como se sabe, a produção dos poemas de Bopp é marcada pelas diversas
modificações e reescrituras. Ao fazer um estudo comparado da remanipulação de Cobra
Norato, o autor de Alguma Poesia se surpreende com a riqueza rítmica e vocabular do
poema, afirmando que apesar de ter sido escrito em um determinado contexto, isto é, ser
parte de uma literatura de um momento específico da história do país, o texto não
perdeu a sua atualidade justamente pela sua expressividade poética (DRUMMOND,
1998, 38-45).
As leituras presentes na fortuna crítica organizada por Augusto Massi
demonstram o quanto é diversificado os trabalhos analíticos em torno da poesia de
Bopp, significando que diversas categorias estéticas que ainda precisam ser
exploradas com mais afinco pela crítica. É o que sinaliza Antonio Hohlfeldt, por
exemplo, em texto que compõe a fortuna crítica mencionada:
O simplismo com que, muitas vezes, a crítica e a história literária
brasileira tem examinado a obra e determinados momentos dos nossos
escritores tem sido grandemente responsável pela falta de unidade, de
visão generalizadora e global de um conjunto literário. (...) Caso típico é
o de Raul Bopp, de quem acabou-se por consagrar o poema Cobra
Norato, escrito em sua primeira versão, ao que parece, por volta de
1928, mas publicado apenas em 1931. Para quem leia os nossos
historiadores da literatura brasileira, parecerá que Bopp é autor de um
único livro, ou único poema, ou que, à exceção deste, nada mais vale
ser lido de sua produção poética. (HOHLFELDT, 1998, p.66)
Pensando como ponto de partida esta reflexão de Hohlfeldt e a retomada dos
estudos da obra poética de Bopp, a partir da publicação de sua Poesia Completa, pode-
se destacar ainda o ensaio de Elisalva Madruga (2001), Deambulações poéticas de Raul
Bopp, por proceder a uma interpretação do poema renegado Como se vai de São Paulo a
Curitiba, de 1928, obra que expressa, ao mesmo tempo, a inquietude da vivência do
poeta e do momento modernista. Explorando a fragmentação de imagens e versos,
Madruga aponta como destaque do poema a técnica telegráfica usada também por
59
Oswald na composição de Memórias Sentimentais de João-Miramar, de 1928 que
explora a velocidade das informações poéticas através de uma linguagem depurada e
substantivada. Voltar um olhar para uma obra de traços tão modernistas que se tornou
totalmente periférica ao longo dos anos é recuperar fontes literárias que foram ignoradas
em nome da construção de um cânone. Como se vai de São Paulo à Curitiba é uma obra
que comporta uma originalidade pela maneira como o seu autor registra poeticamnete a
experiência moderna de adentrar no país através de uma auto-estrada, associando
modernidade e brasilidade.
Outro trabalho crítico de importância por seu rigor teórico e minucioso é Cobra
Norato e a Revolução Caraíba (1985), de Lígia Marrone Averbuck. Com passagens que
vão identificando respectivamente as motivações e temáticas de Cobra Norato e suas
estruturas metafóricas, o ensaio desloca o foco das leituras críticas de Raul Bopp para
um campo analítico onde os elementos sócio-culturais e lingüísticos do poema se
fundem e se permutam dialeticamente. O objetivo de seu ensaio é demonstrar como, no
poema, a criação de imagens, principal característica da estilística boppiana, deve-se à
vinculação da linguagem ao material folclórico e popular e também à forma com que a
tradição do imaginário mitológico da cobra amazônica é organizada pela concatenação
predicativa dos versos. Isto é, sem o domínio da “linguagem amazônica” que
acompanha, de maneira ontológica, a própria narrativa mitológica ou sem o
conhecimento da temática que permite organizar linguisticamente os versos de
característica moderna, Cobra Norato não passaria de mais um poema de regionalismo
exótico e pitoresco que tanto se produziu antes do modernismo na literatura brasileira.
Assim, ao discutir, em Cobra Norato, o estatuto de poema polimórfico e
plurissignificativo, Averbuck dirige sua leitura para o campo da reflexão sobre o
conceito de poesia moderna em Bopp. Naquele final dos anos vinte, a noção de poesia
60
elegia a natureza híbrida do tema e da forma como fundamento estético principal e, com
isso, a expansão da semântica de vocábulos, muitas vezes adequada ao tom coloquial,
ou que trouxesse um grupo isotópico
3
que representasse a linguagem de uma realidade
específica no caso, a realidade nacional. A poesia modernista tomou este recurso
literário como influente pauta inventiva para alcançar este almejado hibridismo do
significado literário das palavras. Ao se realizar a leitura de Cobra Norato, a
fragmentação em “unidades múltiplas” que vão reconstruindo o mundo através de
imagens oníricas e míticas da floresta amazônica, o dualismo entre lírica subjetiva e
seqüência narrativa e a escolha de vocábulos e metáforas expressivos favorecem a visão
plural da realidade poética, num processo semelhante aos de vanguardas como o
surrealismo e o cubismo. De modo mais conciso, pode-se dizer que Cobra Norato é um
poema em que um entrelaçamento entre um discurso literário modernista, um fundo
mítico-maravilhoso que reforçam a condição épica e uma constante elaboração de
imagens e subjetividades líricas que vão articulando o material sócio-poético e as
expressões lingüísticas de maneira fluente e concomitante. É o que Averbuck quer dizer
quando reconhece os elementos mistos do poema:
Posta de lado a evidente largueza da definição, fica ainda a constatação,
muito correta, do caráter fluido de que se reveste o poema, advindo,
sem dúvida, do seu fundo mítico, que o aproxima simultaneamente do
lírico no que este gênero tem a ver com as categorias do imaginário
e do épico, cujo núcleo reside em sua natureza de relato, narrativa de
“uma história sagrada”. (AVERBUCK, 1985, p.98)
É a partir deste “caráter fluido” da obra, mencionado na citação, que o processo
de organização das imagens visuais do poema boppiano, segundo as conclusões de
Averbuck, vai poder se estruturar em três níveis diferentes de construção poética. O
3
Para uma explicação mais detalhada dos pocedimentos isotópicos na literatura ver RASTIER, François.
Sistemática das isotopias. In: Ensaios de Semiótica Poética. São Paulo: cultrix, 1975.
61
primeiro, chamado de semântico, estaria relacionado ao campo da visão, privilegia o ato
de “olhar”, “contemplar”, “enxergar”, onde “ver” tem o significado de adentrar e
compreender os mistérios e magias que se fazem presente no rico território amazônico.
Percebe-se neste nível semântico uma predominância na linguagem por descrições
objetivas de eventos de natureza subjetiva, fantástica e inventiva. O segundo nível,
denominado semântico e morfossintático, elegido por Averbuck, está associado ao
primeiro por ser também regido pela forma de perceber a realidade em volta, mas sendo
este voltado para a noção de espacialidade da imagem poética. É quando este nível se
faz predominante em Cobra Norato que o ambiente amazônico ganha referências
significativas na estrutura do poema, já que a representação de uma floresta de grandes
proporções espaciais suscita o ato heróico da travessia da figura humana do poema. Por
fim, o terceiro nível chamado de construção metafórica remete às montagens de
imagens que vão, sucessivamente, criando uma série de painéis dinâmicos onde “ao
justapor quadros do mundo primitivo, o que Bopp faz é colocar a floresta em
movimento” (AVERBUCK, 1985, p.161).
ainda um outro fator na construção poética de Bopp que Averbuck chama
atenção como elemento estrutural de Cobra Norato. É a relação direta, estabelecida na
poesia moderna, com os topos culturais que sugerem a valorização do caráter nacional.
Os escritores da fase antropofágica utilizaram referenciais da cultura popular com
intuito de se aproximar da população brasileira e das características reais da maneira de
se expressar nacional. Assim, para compreender certos graus de concepção literária que
estimularam a produção de expressões estéticas de material folclórico, tradicional e
popular na poesia modernista, não se pode deixar de levar em conta a noção de cultura
dos escritores naquele momento histórico, principalmente dos que participaram da
corrente antropofágica. O aproveitamento das temáticas populares, na perspectiva do
62
grupo da Antropofagia, exerceu inúmeras funções que preenchia os requisitos do projeto
estético e do projeto ideológico do modernismo daquele momento, pois traziam, de
maneira intrínseca, numa outra concepção de arte, novas formas e conteúdos
construídos na coletividade da população, facilmente identificada como patrimônio
cultural nacional.
Os temas populares e folclóricos que, pelo crescente impulso
nacionalista, povoaram os textos dos poetas modernistas, viriam a se
retratar na literatura pelo aproveitamento do material verbal
(provérbios, refrões, sentenças, onomatopéias) e dos temas básicos da
tradição popular, a literatura oral, dos cantos e danças e resíduo dos
cantos populares. (AVERBUCK, 1985, p.182-183)
Para Averbuck, o projeto de reavivar a língua brasileira pelo lado prático da
mesma, isto é, pelo seu tom coloquial e oral que se faz presente no cotidiano é
transportado para dentro do poema amazônico de Bopp de maneira que atende a força
da brasilidade modernista e, simultaneamente, ressalta e enriquece os três níveis de
elaboração imagética do poema descritos: o semântico, o morfossintático e o
metafórico.
As observações sobre o aproveitamento dos mitos e tradições e as categorias
que buscam analisar as estruturas metafóricas desenvolvidas por Averbuck no seu
trabalho sobre Cobra Norato se apresentam como linha de bastante proveito para a
interpretação dos poemas de Urucungo, pois há uma proximidade entre as duas obras no
que diz respeito, por exemplo, ao tratamento mito-poético que é dado às origens do
mundo e aos procedimentos de organização de imagens. Ao se comparar as duas obras,
percebe-se que a escolha de processos literários bastantes análogos, pois, embora
tratem de temáticas diferentes, ambas estão integradas a uma visão boppiana cuja
preocupação é antes de tudo entender as particularidades do Brasil, seja de origem
indígena ou negra, através da representação da memória cultural.
63
Buscando as peculiaridades da cultura negra brasileira, Urucungo possui uma
distinção em relação à obras de poetas modernos que caminharam no campo dos valores
afro-brasileiros, como Jorge de Lima e Cassiano Ricardo, decorrente da habilidade
antropológica (e antropofágica) do autor de tratar o material folclórico brasileiro,
estudados com minúcia por Averbuck. Voltado para a temática histórico-cultural do
negro brasileiro, Raul Bopp contribui com seu fazer poético para afirmação da matriz
afro da identidade brasileira através do respeito às estruturas dos cantos, ao ritmo dos
versos, à religiosidade popular e à narrativa oral histórica.
Após recorrer a alguns dos principais trabalhos que geram a imagem crítica da
participação e contribuição de Raul Bopp no modernismo brasileiro, deduz-se que o
período de falta de clareza de sua completa produção literária levou a crítica a se
debruçar sobre apenas o seu poema de maior expressividade, Cobra Norato, em
detrimento de uma boa parte de sua obra que também se manifesta portadora de
recursos inventivos merecedores de exame mais dedicado, seja no tocante ao seu
conteúdo ideológico e cultural ou seja na habilidade estético-formal dos seus versos. O
fato dos estudiosos centrarem suas atenções em torno de Cobra Norato, criou-se, como
diz Augusto Massi, a “recordação mitológica” que Bopp era um “autor de um único
livro”. Entretanto, com a publicação de sua Poesia Completa, pode-se dizer que houve
um despertar crítico. Da possibilidade de se fazer uma leitura unitária de sua literatura,
surgem novos estímulos em repensar sua elaboração estética e sua situação contextual
no modernismo brasileiro. Os estudos não podem tomar como referência a sua obra
por inteiro, “desafogando” o foco da crítica em torno de Cobra Norato, como também
pode-se voltar à pesquisa crítica, de maneira independente de outras obras do autor
inclusive aquelas arroladas sob o titulo de outros poemas, cujo teor ideológico e estético
merecem ser estudados. É o caso, por exemplo, de Como se vai de São Paulo à Curitiba
64
que, como visto, recentemente tem despertado maior interesse. Mas é o caso ainda
mais grave de Urucungo que não tem sido observada pela crítica com maior firmeza e
dedicação.
Urucungo, de Bopp, se configura como uma obra composta de dois traços de
primitivismo: a vida cultural do negro no contexto do processo de colonização e a fase
de escravidão em que se faz necessário a denúncia poética da sua condição social. Sobre
este primeiro traço, a representação do negro nesta obra se faz desde o surgimento
mítico de sua identidade nas florestas africanas e brasileiras e se prolonga nos costumes,
crenças, cantos e danças nos mocambos. Com relação ao segundo traço, a posição
vivenciada pelos negros no país é representada principalmente pelas atividades sociais
que o escravo exercia e suas conseqüências como a miscigenação contrafeita e os
castigos arbitrários. De acordo com Hohlfeldt (1998, p. 66), “cada poema [de
Urucungo] busca caracterizar algum aspecto da presença negra no Brasil” não apenas
pelo conteúdo destes, mas também pela expressividade do vocabulário, pelas imagens
metafóricas e pelas transformações fonéticas que enuncia.
2.4. O negro na antropofagia boppiana
A busca por uma consciência nacional motivou o amadurecimento das pesquisas
etnológicas sobre o afro-descendente no país e, juntamente com o discurso
antropofágico de valorização das matrizes brasileiras, formaram um contexto
privilegiado para que Raul Bopp pudesse incorporar a temática do negro em sua poesia.
Preocupado em representar em seus poemas assuntos que simbolizassem aspectos da
identidade nacional, o escritor modernista buscou em sua obra Urucungo (1932)
65
sintetizar a situação histórica e cultural do negro brasileiro escravizado, através da
utilização poética de temas, representações de rituais e ritmos afros. Na obra, Bopp tem
a preocupação de explicar a miscigenação afro-brasileira pela estrutura de poder do
sistema escravocrata, explicitando situações históricas onde se fez presente a
brutalidade da escravidão. Além disso, ao mesmo tempo que denuncia literariamente
fatos sobre a história do Brasil, Urucungo revela elaborado tratamento poético da
tradição cultural africana, assinalando as duas principais premissas que compunham a
reavaliação antropofágica do país.
A forma como o negro está presente na poesia boppiana difere da perspectiva do
ideário cientificista que predominou entre o fim do século XIX e o início do século XX.
Deste período, as principais concepções de raça inspiradas no positivismo,
naturalismo e evolucionismo que vigoravam no Brasil tinham se fundamentadas na
desigualdade racial, afirmando a existência de etnias inferiores
4
. Diferentemente destas
correntes, Bopp estabelece uma poesia em que a inferioridade social do negro é
entendida através da violenta estrutura escravocrata e não de maneira inata como era a
propensão do pensamento do início do século. Assim, de certa forma, pode-se dizer que
o escritor modernista rompe com uma tradicional visão etnográfica sobre o negro que,
de maneira reelaborada, ainda se fazia presente nas pesquisas brasileiras.
A revisão historiográfica feita pelo grupo da Antropofagia virava instrumento
para subsidiar a revisão literária brasileira. Urucungo apresenta uma perspectiva em que
o negro é sujeito dotado de história cultural e, justamente por isso, assim como o índio,
4 No pensamento brasileiro do final do século XIX e o início do século XX, em relação ao debate
sobre raça e etnia, prevaleceram ideais evolucionistas expressos em estudos como os do médico Nina
Rodrigues e o historiador e jornalista Euclides da Cunha. Ambos viam na desigualdade dos estágios
evolutivos, do negro ou do mulato, o motivo das desigualdades sociais. Além disso, muito mais incisivo
no que diz respeito ao determinismo racial eram as posições adotadas por Silvio Romero e a tradição
cientificista que o sucedeu. A inferioridade das raças não-brancas era explicada pela climatização tropical
onde índios e negros viviam e pela mistura das raças que havia ocorrido no país modificando
desfavorávelmente o alto estágio evolutivo ao qual o branco havia chegado. Ver: VENTURA, Roberto.
Estilo tropical: história cultural e polemicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
66
era uma das “fontes genuínas” de brasilidade. No entanto, não é possível estabelecer um
programa específico da Antropofagia para a cultura negra, que no período de
circulação da revista quase não registros de trabalhos etnográficos do grupo voltados
diretamente para a questão. Quando tal temática é abordada, sempre há uma diversidade
de perspectivas, não apresentando um programa único do movimento sobre o assunto.
Porém, a constante referência ao negro nas obras poéticas e o interesse em aprofundar
pontos da história do país através do registro de manifestações de origem africana
revelam a preocupação dos modernistas em pôr em discussão, na literatura, os
elementos culturais afro-brasileiros. Mário de Andrade, por exemplo, neste período,
havia feito longas viagens pelo país, documentando muitos aspectos da cultura afro-
brasileira e os incorporando a sua rapsódia Macunaíma. Como ele, Bopp também
percorreu grande parte das regiões brasileiras. Suas viagens possibilitaram influente
contato com a tradição afro, permitindo vincular e internalizar referências destas
experiências na sua produção poética.
Sobre o negro, Bopp elaborou, num pequeno texto chamado “Área Poética da
Antropofagia”, um esquema de orientação literária, portador dos princípios básicos para
a produção antropofágica dos poemas de Urucungo. O texto não chega a ser uma
“poética da poesia do negro”, mas contém material fundamental para tornar mais claro a
proposta boppiana de tratar poeticamente a cultura afro-brasileira. Através dele, pode-se
fazer uma leitura dos elementos que motivaram a perspectiva de Bopp na hora de
organizar seus trabalhos literários enfocando o negro:
O drama da escravatura deixou pelo Brasil um sopro amargo. Negro
chegou, amarrados em lotes, com coleira de ferro. Catou mineração
para el-Rey. Trabalhou, sol a sol, nas lavouras. Apalpou o Brasil com as
mãos. Assistiu, sem saber, ciclos de nossa História. Fez papel de
sombra. (...) Nos depósitos de escravos, ele era escolhido pelo toque da
bunda (Negro de bunda fina era mais caro).
Trazia em baixo relevo,
67
inscrições de chico no lombo
Raça domingueira, caminha em ritmo diferente, com pernas elásticas.
Nos gingamentos do corpo arrastado, inventou o seu passo de dansa
(sic). Depois coçou o piano e fez música. Adoçou desse jeito a alma do
Brasil. (BOPP, 1966, p.89)
5
Chama atenção, nesta reflexão, o ponto de vista assumido por Bopp diante da
discussão dos fatos históricos da escravidão. A intenção em evidenciar que a opressão
ao negro persistiu por um longo período cronológico da vida brasileira, do navio de
tráfico negreiro à lavoura nacional, demonstra que o autor estabeleceu como um
preceito organizador da sua estética, no movimento Antropofagia, o conflito entre a
dominação escravocrata do colonizador e a resistência da cultura negra associada à
defesa da vida. O crédito que se pode atribuir à visão antropofágica de Bopp, em relação
à representação do negro, não está apenas em dar a conhecer tal assunto numa forma
flexível de poesia, o que culturalmente representava um avanço em relação ao tempo
e à concepção de poesia que predominava poucos anos atrás, mas está também na
maneira como apreende e expressa uma possível identidade do negro e,
consequentemente, do brasileiro. Através da elaboração artística de materiais históricos
e culturais, Bopp existência a uma realidade poética onde o negro traz consigo um
conjunto de experiências pessoais que refletem alegrias e dramas coletivos. Poemas cuja
temática é a brutalidade contra um negro escravizado, por exemplo, evoca
simbolicamente toda uma realidade complexa de tirania e coação a que os negros foram
submetidos. Tal procedimento continua na mesma direção quando feita a leitura dos
5 Esta passagem poética de suas reflexões sobre o negro foi decantada em versos no poema
“Escravatura”. Bopp assina pela última vez este poema em Mironga e outros poemas, de 1978, e o data
de 1928, o que não havia feito em edições anteriores onde aparece o título ‘Escravo’, em Putirum, de
1969 e com o título “Escravo”, em Cobra Norato e outros poemas, de 1973. De acordo com Massi (1998,
p. 313) a versão poética do texto se configura da seguinte maneira: “O drama da escravatura deixou pelo
país um sopro amargo/ Negro chegou em lotes de seres subumanos/ amarrados em coleiras de ferro/
Catou mineração para El-Rei/ Trabalhou de sol a sol nas lavouras/ Apalpou o Brasil com as mãos/
Assistiu sem saber os cilos da nossa história/ Nos quadros rurais fez um papel de sombra/ Nos depósitos
de escravos era escolhido pelo toque da bunda/ Negro de bunda fina era mais caro/ Nas fazendas em
noites bojudas bate jongo/ chamando o mato/ A diamba em pitadas lentas/ traz o Congo de longe mais pra
perto/ Raça domingueira/ Negro envernizado brinca de rei/ com coroa de papelão/ Caminha em ritmo
diferente/ com pernas elásticas”.
68
cantos e mitos inseridos na poesia boppiana, pois nela a tradição cultural está vinculada
às imagens da vida cotidiana de um sujeito lírico afro-descendente, mas representando,
conseqüentemente, valores e tradições comunitários. Somado à sua destreza em
desenvolver elementos expressivos nos seus versos, o tratamento sociológico da
representação do negro e de sua cultura se transformam numa das suas principais
qualidades poéticas e isso em muito se deve à percepção crítica das fontes históricas
brasileiras que o movimento antropofágico desenvolveu, como ele mesmo pôde
compreender na passagem atrás citada.
De fato, uma leitura atenciosa de Urucungo revelará uma preocupação em
refletir a questão racial a partir da condição social, econômica e emocional do ser
humano negro, num esforço em emitir uma consciência das qualidades da identidade
negra em forma de poesia. Sob este aspecto, a poesia de Urucungo é portadora de
aprimorado nível de alteridade, principalmente, se levado em consideração as condições
em que se encontravam os negros no processo de modernização dos anos 20.
Nesta década, o sistema de idéias que predominava sobre o negro, no Brasil,
eram o branqueamento e a democracia racial. A primeira corrente orientava a
população negra a se incorporar aos padrões e costumes da parcela da sociedade
brasileira hegemônica que se concentrava nos valores europeus. Defendia-se que para
não haver preconceito/discriminação o negro deveria se incorporar às maneiras culturais
de quem o colonizou em detrimento de sua identidade afro. A segunda suprimia
vestígios dos processos violentos de escravidão que caracterizaram a história colonial
brasileira, pois a palavra democracia, e toda sua carga semântica, camuflava a
dominação, o autoritarismo e o abuso de poder que marcaram as relações raciais no
país. A poesia de Bopp sobre o negro pouco se relaciona às duas correntes, possuindo
inclusive pontos onde se percebe uma contestação destes ideais. Poesias como
69
Caratateua e Casos da negra Velha revalorizam a identidade afro-brasileira, divergindo
do processo de inclusão sugerido pela perspectiva do branqueamento. Da mesma forma,
Dona Chica, Urucungo e Mãe-Preta são poemas que ordenam um discurso literário de
visibilidade dos casos de violência do período colonial, assumindo claramente posição
contrária ao processo de democracia racial.
O fato da poesia antropofágica de Bopp que aborda o negro não ter tido maior
ressonância no período de sua difusão nos anos 20 e início dos anos trinta está
relacionado justamente à predominância e intensificação destes dois modelos de
abordagem da questão racial no país, pois tais vertentes, muitas vezes, atingiam
inclusive os artistas e movimentos negros organizados, como bem aponta Zilá Bernd:
Os artífices do movimento iniciado com a Semana de Arte Moderna de
1922, ao proporem o rompimento com padrões estéticos “autorizados” e
legitimados, como o Parnasianismo e o Simbolismo, rumaram no
sentido oposto ao das comunidades negras, convencidas de que o
caminho de sua aceitação definitiva no corpo social brasileiro deveria
passar justamente pela assimilação dos modelos que os modernistas
queriam destruir (BERND, 1988, p.63).
A poesia sobre o negro desenvolvida na Antropofagia, que aparece em Oswad de
Andrade, Raul Bopp e, de certa forma, em Mário de Andrade, é marcada pela tomada de
consciência de que é preciso valorizar aspectos da cultura brasileira que, aparentemente
diferentes, são essenciais para se entender o país e a si próprio. Embora escritores
modernos, como Lino Guedes, tenham desenvolvido em suas poéticas posições de
vanguarda no que diz respeito à literatura que representa o negro, a tomada de
consciência do próprio negro da sua identidade mais tardiamente se mostrará com
mais veemência em forma poética
6
.
6
A partir dos anos 40, no amadurecimento dos processos estéticos e ideológicos do modernismo e no
diálogo com o movimento da Negritude, autores como Eduardo de Oliveira e Solano Trindade vão
apresentar um estilo literário de auto-representação étnica e cultural, onde transparece literariamente a
70
Literariamente, Bopp soube combinar suas convicções e idéias de brasilidade
com um trabalho de aprimoramento estético, resultando em uma obra poética de
conteúdo afro-brasileiro relevante. A disposição de imagens míticas, criadas
poeticamente, revela um retorno à natureza primitivista, dando a Urucungo vigor
literário de cunho modernista. De acordo com o próprio autor, na carta-prefácio que
destinou a Jorge Amado, a obra é, ao mesmo tempo, denúncia e celebração, feita de
gritos e cantos que marcaram a trajetória histórica da população afro-brasileira:
A maior parte escravaria de 1922, 1923 e 1924. Esotericamente eu tinha
a intenção de fazer um livro Urucungo, de gemido de negro. Uma
parte: África, pré-histórico; sexual e místico. Outra parte o cativeiro,
troções de lavoura, etc. Depois umas coisas cabalísticas (sambas e
macumbas) e no fim uma seçãozinha de “chorados” e “catapiolhos” que
é uma espécie de cantigas de ninar (BOPP, 1998, p.196).
Na verdade, os poemas de Urucungo fora publicados por volta de 1926-1928,
principal época do entusiasmo lírico da trajetória do autor. Neste período, Bopp
supostamente também estava se dedicando à composição de Cobra Norato, não
restando dúvida de que estas duas obras estão englobadas contextualmente ao projeto da
Antropofagia, mesmo que suas publicações tenham ocorrido no início dos anos 30,
quando o grupo ao qual estava ligado havia se fragmentado e ele havia se voltado
para as questões diplomáticas.
Assim, convergindo à leitura de cada poema para a formação de um panorama
geral da obra, há que se levar em conta que Urucungo possui três importantes fatores na
sua constituição textual que sintetizam e encaminham a sua interpretação: 1) as opções
lingüísticas escolhidas (semânticas, rítmicas, sintáticas) que têm um caráter simbólico
relacionada à figuração que deseja criar em cada poema; 2) o aproveitamento literário
consciência e a valorização da identidade negra. Ver: BERND, Zilá. Poesia negra brasileira: antologia.
Porto Alegra: AGE: IEL: IGEL, 1992.
71
do material histórico e cultural do negro; 3) O teor antropofágico que à obra lucidez
antropológica diante da representação do negro. Sem o entendimento destes elementos,
não se pode penetrar nos poemas de Bopp e reconhecer o valor estético com que se
fundamenta a temática do negro brasileiro em sua obra.
72
3. UM PASSEIO PELA CULTURA NEGRA
3.1. A musicalidade do homem negro
Coerente com as propostas da Antropofagia, a poesia de Raul Bopp se apresenta
bastante comprometida com a realidade brasileira. Imbuído desse espírito
antropofágico, em Urucungo, o poeta traz à cena o universo do negro, valendo-se para
isso de elementos da expressão cultural afro-brasileira os quais vão se mesclando no
tecido poético da obra, de modo predominante. Por isso, a importância desta relação
entre literatura e tradição afro-brasileira em Urucungo está, sobretudo, na maneira como
o poeta cria em seus versos um vínculo de concomitância entre os fundamentos
antropofágicos, sua estilística idiossincrática e o reconhecimento da realidade histórica
do negro no Brasil.
Nesta linha, pode-se destacar que a ordem simbólica das palavras referentes a
valores específicos do universo afro-brasileiro detém elaborada função poética. O
emprego de palavras que exprimem significados simbólicos da cultura negra no corpo
de um poema, conforme observa Zilá Bernd, é considerado como um procedimento
literário que tem “a função de prover o povo negro de referentes que o vinculem a uma
ancestralidade de qual possa se orgulhar” (1988, p. 91), conferindo costumes, valores e
identidade coletiva aos negros representados nos poemas. A exploração semântica dos
vocábulos relativos a expressões e materiais que evocam o campo cultural do negro faz
parte do projeto boppiano de brasilidade modernista com o qual tenciona traduzir o país
através dos seus próprios enunciados coletivos. No caso de Urucungo, este processo
ocorre por meio de um autêntico inventário do patrimônio cultural de origem africana.
Assim, a incorporação nessa obra do léxico de referências afro-brasileiras e o contato
73
com a oralidade popular tornam-se regras fundamentais do projeto literário de Raul
Bopp. Como ele mesmo relata, o objetivo de trabalhar uma linguagem no campo
simbólico do negro era uma das preocupações da Antropofagia, na qual se esforçava em
realizar uma sub-gramática do Brasil desconhecido em que as “confecções lexicais de
sabores primitivos desvendassem a realidade da fala brasileira” (BOPP, 1966, p. 83) nas
suas múltiplas relações culturais.
Nesse sentido, compreende-se que em diversas passagens de Urucungo a
representação da tradição negra se na manipulação do vocabulário que insufla uma
significação simbólica do universo do negro brasileiro ao longo da história do país.
Bopp recria imagens que traduzem o reconhecimento da identidade cultural do negro
brasileiro, assegurando a este sua humanidade, negada pelo regime escravocrata. Uma
eloqüente amostragem desta articulação entre o processo poético moderno-
antropofágico e a caracterização da cultura negra está presente quando se engendram
instrumentos musicais de origem africana nos poemas de Urucungo. Procedimento que
permite a Raul Bopp ligar as imagens expressivas destes objetos de festejos à
musicalidade poética empregada nos seus versos, oferecendo sugestão rítmica e
semântica e reforçando o processo modernista de transposição das maneiras de criação
poética do popular, cuja base, em Urucungo, é a identificação com as cerimônias de
origem africana. A referência ao atabaque, por exemplo, aparece como componente da
cultura negra que evidencia ressonâncias místicas e nostálgicas tanto na realidade
fônica, como na lexical ou semântica, conforme é possível perceber no trecho abaixo,
extraído do poema “Caratateua”:
Caratateua
74
Na praça. De tarde. Há batuque. Tambores.
Domingo de Festa de São Benedito.
O sol se mistura com um sorriso na alegria de Caratateua.
toda engravatada de bandeirolinhas.
Inserido na obra em estudo, este poema enfoca uma festa religiosa a de São
Benedito, santo católico negro na cidade maranhense de Caratateua. Em sua
peregrinação de viajante, o escritor de Cobra Norato estava sempre atento às expressões
culturais de brasilidade encontradas nas festas e celebrações dos grupos populares de
todo o Brasil. O domingo de São Benedito aparece na estrofe como uma celebração
coletiva produzida no espaço da praça pública com a participação ativa da comunidade,
conforme se pode depreender das imagens contidas nos dois últimos versos do poema,
advindas das figuras de retórica (prosopopéia) e de linguagem (metonímia) a que
recorre o poeta no terceiro e quarto verso respectivamente. Percebe-se que a celebração
não é uma festa de padroeiro católico comum devido à presença dos batuques e
tambores. Estes instrumentos de percussão se fazem presentes no texto como símbolos
da compleição dos negros e, ao mesmo tempo, predispõem as fórmulas rítmicas
empregadas na estrofe para a sonoridade do tamborejo.
Assim, no que diz respeito à estética da composição, esta poesia é marcada por
um traço relevante: o ritmo africano. As frases curtas do primeiro verso estabelecem um
ritmo de batida, marcado também pela aliteração do /t/, do /d/ e do /b/, além da
permanência rítmica do /a/ que, juntos, sugerem uma expressiva sonoridade dos
tambores. Algo semelhante acontece com a composição dos terceiro e quarto versos, em
que a vogal a, caracterizada pela liberdade da passagem do ar, apresenta-se em uma
seqüência que, junto com o /r/, equaciona, através do ritmo, uma aproximação entre as
palavras “mistura”, “alegria”, “Caratateua”, “engravatada” e “bandeirolinhas”,
redimensionando, desse modo, a significância do poema.
75
Mas a importância do tambor e do batuque em Urucungo não alimenta apenas o
sentimento de alegria e de festa como demonstrado no poema acima. O toque de
percussão pode exprimir e representar também a revolta e a resistência cultural do negro
escravizado. Neste plano, o batuque extravasa a sua significância musical e se
transforma em instrumento de luta contra as violências praticadas historicamente sobre
o povo negro. Eis como se em trecho do poema “Marabaxo (Dança de Negro)” o
processo de ressignificação do batuque, que se transforma em símbolo de luta,
indignação e construção identitária:
Marabaxo (Dança de Negro)
Marabaxo de toada triste
Negro velho dança no rancho
pisando com a perna pesada no chão pegajoso
Bum Qui-ti-bum Quiti-bum Bum-bum
Em preguiça lasciva
as fêmeas de carne sedosa
rengueiam em roda num balanço lento:
Ai Sinhá, cume teu nome?
Meu Sinhô não tenho nome
Me chamo chita riscado
Camisa daquele homem
Misturam-se vozes de coro
com a queixa do tambor
que faz doer a alma do negro
A dança, o canto e a poesia como práticas culturais de tradição negra, para
grande parte da população brasileira, sempre foram pouco visíveis, ignoradas e
combatidas ao longo da história. No poema em questão, a partir do momento em que a
batida do tambor, a pisada do negro velho, a dança sensual das negras e as vozes do
coro se fundem num lamento de dor, os aspectos culturais se transformam também em
instrumentos de conscientização dos valores e costumes, atuando como denúncia do
76
sofrimento vivenciado pelo negro. Pode-se, assim, dizer que a “queixa do tambor” opera
como sinônimo de protesto, pois para além da tristeza do negro, expõe a exploração
histórica da sexualidade da negra, sempre tratada como fêmeas em “preguiça lasciva”,
meros objetos de prazer, sem nome, sem identidade, como bem ilustram os versos da
penúltima estrofe. Razão, entre outras, pela qual os tambores batem em ritmo de
lamúria, de toada triste, reiterada nos passos lentos do marabaxo.
Os versos que representam o canto dos negros em roda, de tom irônico e em
linguagem coloquial, são emitidos por um coro de negros que expressam essa situação
de reificação. Um dos méritos deste poema se encontra na intenção de revelar em
discurso direto a voz e a sociabilidade dos negros. Através dele, Bopp tenta adentrar em
um espaço histórico-social menosprezado. O tratamento antropológico e estético
empregado na busca da reconstrução de uma imagem histórica perdida reúne nuanças de
poesia de vanguarda, revolucionária, consciente, antropofágica e nacional.
A recorrência ao léxico, ao ritmo, à oralidade afro-brasileiros na poesia boppiana
constrói uma relação plástica e fonossemântica que reafirma a perspectiva antropofágica
e moderna do escritor gaúcho. A utilização bem definida de formas e mbolos que
fazem parte, na sua poesia, da caracterização da etnia negra surge como contraposição
ao lirismo burguês e tradicional. Esta investida sobre o signo ideológico ocorre ainda
em Urucungo de modo relevante nas palavras elegidas para os títulos dos poemas, a
começar do próprio título da obra, as quais, em sua maioria, relacionam-se com o
universo musical dos negros tais como “Marabaxo (Dança de negro)”, “Chorado de
Bate-Pilão”, “Coco”, “Cata-piolho do rei Congo”. Na direção das considerações de Zilá
Bernd sobre o valor literário, no nível lingüístico, da simbologia afro-descendente,
pode-se encontrar na evocação dos títulos dos poemas da obra sobre o negro de Raul
Bopp forte presença de significações estéticas advindas da ressemantização das
77
palavras. É o que acontece com poemas expostos como “Caratateua” e “Marabaxo
(Dança de negro)”, e como se verá, com outros poemas, como “Monjolo (Chorado de
Bate-Pilão)” e “Coco”, nos quais se percebe o mesmo princípio de carregar, em seus
títulos, elementos que projetam a diversidade cultural do negro nas formas poéticas das
canções que, na leitura atenta, transparecem a linha principal de cada poema. Os títulos
fornecem significações que ora são necessárias para se entender a estrutura utilizada,
ora servem para arrematar a compreensão da temática tratada no discurso poético e suas
ligações com a cultura negra, conforme demonstra o poema “Monjolo”:
Monjolo
(Chorado de bate-pilão)
Fazenda velha. Noite e dia.
Bate-pilão
Negro passa a vida ouvindo
Bate-pilão
Relógio triste o da fazenda.
Bate-pilão
Negro deita. Negro acorda.
Bate-pilão
Quebra-se a tarde. Ave-Maria.
Bate-pilão
Chega a noite. Toda noite.
Bate-pilão
Quando há velório de negro.
Bate-pilão
Negro levado pra cova.
Bate-pilão
Nesse poema, a relação entre o som e a imagem, proveniente do título e do
subtítulo, oferece recursos para a compreensão do arranjo discursivo sobre a dura vida
do negro escravo brasileiro. Recorde-se, em primeiro lugar, que o termo Monjolo,
78
oriundo do quimbundo, refere-se aos bantos, trazidos como escravos para o Brasil.
Designa também uma estrutura mecânica, movido à água, com a função de pilar
alimentos. Já o termo chorado para além do significado de pranteado, lamentado,
remete também para tocado ou cantado em tom plangente e o pilão, como se sabe, tanto
designa o recipiente onde se tritura os grãos, como o de café, quanto o instrumento que
serve para bater, triturar. Desse modo, os significados a que o título remete operam
como um código que expressa, ao mesmo tempo, a condição social do negro no
processo de escravidão, o som da pancada do pilão na fazenda e o ritmo incessante do
trabalho negro. Partindo de uma relação imagética do monjolo como um pilão utilizado
para socar o alimento, técnica muito recorrida nos engenhos coloniais, através de um
sistema de repetição da expressão quase onomatopaica Bate-pilão”, o poema vai
marcando as pancadas do pulverizador, gerando uma representação acústica das batidas
do ato de pilar. Por outro lado, os monjolos, enquanto escravos negros no projeto de
colonização lusitano, são destinados a atender as necessidades da “Fazenda velhae
vão, ao longo do tempo, se desgastando com o trabalho forçado e repressor.
A respeito do escravismo no Brasil, Darcy Ribeiro (1995) se reporta à situação
do negro possuir plena consciência de que sua condição de escravo o levará a uma
morte precoce devido à estafa do trabalho excessivo e dos castigos coercivos. Era “o
destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas do dia todos os dias
do ano” (Ribeiro, 1995, p.119). Tais considerações vêm a propósito para se entender a
aproximação entre o monjolo enquanto máquina mecânica e o negro proveniente do
Monjolo que a manuseia: é na própria humanidade do escravo que o pilão bate,
submetendo-a a um estado de reificação. Essa imagem poética do negro noite e dia
trabalhando na fazenda, acordando e dormindo com o som do pilão em seus ouvidos e a
dimensão formal dos versos breves, secos, entremeados de ritmo constante, manifestam
79
o caminho da vida do negro escravizado para a morte. Daí o subtítulo de “Chorado de
bate-pilão”, ou seja, canto lamentoso, triste. A representação deste canto plangente do
negro, além de criar uma aproximação imagética através da ressignificação da palavra
monjolo, apresenta-se como uma maneira de recriar a história brasileira na voz/canto
dos escravos e a riqueza cultural que ela invoca.
no poema Coco de Pagu, pode-se encontrar a utilização direta das estruturas
poéticas do coco, da dança de origem afro-brasileira. Ao transportar para este poema a
construção em quadras, com ritmo análogo ao do coco da cultura popular, Bopp
recupera mais uma vez a concepção estética do plano geral da Antropofagia: buscar
fazer contato direto com a realidade nacional para encontrar a resolução genuinamente
brasileira do exercício literário e político:
Coco
Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate coco quando passa.
Coração pega a bater.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer
Passa e me puxa com os olhos
provocantissimamente
Mexe, mexe, bamboleia
pra mexer com toda a gente.
Eh Pagu eh
Dói porque é bom de fazer doer
Toda a gente fica olhando
seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.
Eh Pagu eh
Dói porque é bom de fazer doer.
Quero porque te quero
Como não hei de querer?
Querzinho de ficar junto
80
que é bom de fazer doer.
Eh Pagu eh
Dói porque é bom de fazer doer.
Embora o poema seja uma homenagem a Patrícia Galvão (Pagu), uma das
personagens centrais do modernismo, o que nele nos interessa é a utilização da estrutura
poética do coco. Não se tem aqui um poema de temática abertamente sobre a cultura
negra, mas aproveitamento da estrutura de uma forma popular afro-brasileira a dança
do coco. Sem dúvida, o olhar de respeito sobre as tradições populares e sua inserção na
poesia representam uma grande reviravolta no quadro literário brasileiro. A
simplicidade dos versos, o jeito alegre e descontraído de descrever Pagu e a relação
entre o solo e o coro presentes no poema são traços da poesia do coco que Bopp se
utiliza para criar a sua estética moderna.
O enunciador do poema expressa a doce dor inexplicável de coração apaixonado
levado pelo olhar e pelo corpo de Pagu. A indefinição das causas objetivas da dor,
demonstrada em versos como “uns olhos de fazer doer” e “não-sei-o-quê-é-que-tem”, é
deixada de lado para a contemplação do sentimento bom que essa dor provoca. Pagu
possui uma atração natural, enfeitiçadora: “Bate coco quando passa/ Coração pega a
bater”; “Quero porque te quero. Como não hei de querer?”; “Passa e me puxa com os
olhos”. O coco, brincado com alegria, condiz com a boa dor do coração do enunciador
poético, que no corpo e nos olhos de Pagu um mole vai-e-vem semelhante à dança,
que tem o contato corporal como matriz.
Como identificado no capítulo anterior, deste jogo de palavras com a imagem,
encontrado na estilística boppiana Lígia Marrone Averbuck esboça um quadro
sistemático das imagens visuais presentes em Cobra Norato e chega a conclusão que a
predominância do olhar “adquire função marcante, como veículo de mensagens que
podem conduzir as formas de percepção [do mundo]” (AVERBUCK, 1985, p.155).
81
“Coco”, em Urucungo, é uma expressão festiva que, como dito anteriormente, afasta
momentaneamente a dor. No caso do poema em foco, trata-se da dor provocada pela
paixão sentida.
A habilidade antropofágica de compreender e valorizar os significados culturais
do povo afro-brasileiro e de transformá-los em representação poética, sem apelar para
traços estereotipados, confere a Bopp uma posição singular no roteiro do movimento da
Antropofagia. O vocabulário pertencente ao campo simbólico de determinada população
afro-brasileira, aliado ao estilo “elástico” de Bopp, reafirma características modernas de
Urucungo que, em várias passagens, apresentam importante tratamento estético-
antropofágico da representação do negro. Nesta empreitada, faz-se necessário uma
leitura atenta do poema que título ao livro, para que se possa constatar como o
discurso poético boppiano possui elaborada elocução sobre a cultura negra.
3.2 O Som do Urucungo
O poema que inicia e título ao livro de Raul Bopp demonstra uma perspectiva
modernista de teor antropofágico radical, principalmente se for levado em consideração
o tratamento que a visão cientificista dava à cultura afro-brasileira antes da mudança de
enfoque nacionalista nas ciências humanas nas décadas de 20-30. Neste poema, são
vários os aspectos que dizem respeito à cultura e história do negro utilizados na
composição e configuração textual:
Urucungo
Pai-João, de tarde, no mocambo, fuma
E as sombras afundam-se no seu olhar.
Preto velho afoga no cachimbo a lembrança dos anos de
82
[trabalho que lhe gastaram os músculos.
Perto dali, no largo pátio da fazenda,
umbigando e corpeando ao redor da fogueira,
começa a dança nostálgica dos negros,
num soturno bate-bate de atabaque de batuque.
Erguem-se das solidões da memória
coisas que ficaram no outro lado do mar.
Preto velho nunca mais teve alegria.
Às vezes pega no urucungo
e põe no longo tom das cordas vozes que ele escutou pelas
[florestas africanas.
Dói-lhe ainda no sangue uma bofetada de nhô-branco.
O feitor dava-lhe às vezes uma ração de sol para secar as
[feridas.
Perto dali, enchendo a tarde lúgubre e selvagem,
a toada dos negros continua:
Mamá Cumandá
Eh Bumba.
Acubabá Cubebé
Eh, Bumba
.
O enunciador lírico observa um ancião negro que trabalhou durante anos como
escravo e que, com a ajuda do fumo do seu cachimbo e da dança de outros negros,
recorda melancolicamente sua terra africana. O poema possui seis estrofes de caráter
prosaico e uma em forma de toada africana. Esta aproximação da prosa através de
versos livres quebra a métrica tradicionalista; a utilização de verbos de ações,
constituindo uma característica da poesia modernista proporciona uma técnica em que
se pode enfocar mais abertamente a fala, o cotidiano e a realidade brasileira, neste caso,
aquela encoberta pelo processo histórico colonizador. Os versos do poema Urucungo
estão organizados de uma maneira tão irregular que, em casos como o terceiro e décimo
primeiro versos, chegam a apresentar, por serem bastante longos, forte contraste gráfico
no branco da página, um aspecto formal que homologa, no plano do conteúdo, o
contraste ideológico de que falam os versos: liberdade x opressão. A liberdade dos
83
versos é intensificada pela ausência das rimas e a liberdade temática, pela utilização de
expressões melódicas da cultura nativa do negro, observada nos versos da última
estrofe. Um dos aspectos estruturais de relevância neste poema está na forma do preto
velho articular sua lembrança enfocando dois passados distintos: o passado de trabalho
forçado que ele luta para esquecer e o passado de sua terra natal distante que tenta
conservar na memória.
Seja para expressar tristeza ou alegria, os elementos da cultura africana, seus
valores e suas tradições, como se percebe, estão sempre presentes não apenas na
ambientação criada pelo eu-lírico, mas nas lembranças da figura poética do negro. As
lembranças manifestam a intenção do eu-lírico de denunciar o caráter coercivo da
sociedade brasileira frente aos negros afro-brasileiros através das impressões e
experiências dos próprios oprimidos. Já a terra e as “vozes” que ficam do outro lado do
mar as quais Pai-João recorda apresentam o propósito de reafirmação da identidade
cultural do negro. Mesmo depois de tanta opressão física e social, o escravo consegue
manter vivas suas práticas culturais em sua memória. O poema se desenvolve numa
relação cíclica e dialética entre as lembranças da escravidão e as lembranças do seu
povo.
O título faz referência a um elemento simbólico da cultura negra popular: o
urucungo, trazido para a América no período da escravidão. É um instrumento
genuinamente africano que é tocado com um arco de crina e que possui uma caixa de
ressonância, às vezes revestida em couro, e uma haste de madeira onde se fixam arames
retesados. O tocador o apóia sobre o peito ou sobre a barriga, o que fez com que o
instrumento fique conhecido em algumas regiões brasileiras como berimbau-de-barriga.
No entanto, diferentemente do berimbau, que é um instrumento de percussão, o
urucungo é de cordas. Suas notas musicais não estão definidas fisicamente em semitons,
84
dando ao tocador a liberdade de transitar entre notas com intervalos menores que um
semitom. Câmara Cascudo (2000, p.120) constata que este instrumento popular está
ligado à tradição oral de grande parte da África. No poema, o som do urucungo auxilia a
reconstrução da história de vida do preto velho, na qual, de alguma forma, entre boas e
más lembranças, representa a história de vida de muito dos negros transportados da
África. O poema apresenta traços narrativos para construir a imagem sintetizada da vida
do ex-escravo tocador de urucungo. Observa-se a primeira estrofe:
Pai-João, de tarde, no mocambo, fuma
E as sombras afundam-se no seu olhar.
Preto velho afoga no cachimbo a lembrança dos anos de
[trabalho que lhe gastaram os músculos.
O nome dado ao ancião é Pai-João. Esta denominação, na cultura afro-brasileira,
geralmente representa o negro escravizado que executou as suas funções na condição de
cativo pacífico durante toda a sua vida e que, agora desgastado, torna-se inválido dentro
do sistema social ao qual pertence. Pai-João é visto sempre como a imagem do negro
domesticado, que se integrou ao sistema colonial. Não seria para menos, as distâncias
lingüísticas, sociais e culturais as quais os negros foram submetidos quando trazidos de
tribos distintas em comboio, isolaram vários escravos, obrigando-os a se render ao
modelo da escravidão sem luta, passando a exercer tarefas pesadas e ordinárias
intercaladas com a violência do açoite. Ancião, este escravo se refugia no mocambo e
passa a preservar o pouco que lhe restou na memória das suas práticas culturais
africanas. Bopp elege este personagem histórico como metonímia dos africanos no
Brasil, uma civilização cheia de sentimento com a sua terra e sua cultura arrancada
cruelmente do seu sistema social para ser escravizada em território desconhecido e
distante. Além disso, embora Bopp não desenvolva um eu-lírico em primeira pessoa, ele
consegue quebrar com o ideal de passividade do Pai-João expressando as lembranças e
85
sentimentos deste, humanizando-o. A lembrança de um passado e de uma terra
longínqua não é a mera nostalgia de uma região, mas o banzo e a saudade de um lugar
onde foi construído um universo de valores cio-culturais e de práticas simbólicas
impossíveis de serem transplantadas para um outro continente. Neste sentido, como foi
visto, o poema se desenvolve a partir das lembranças de Pai-João, testemunha
sobrevivente do processo de escravidão e remanescente dos antigos costumes tribais os
quais foram interrompidos pela degradante condição de escravo. Ele utiliza o fumo para
esquecer o longo período de reclusão e trabalhos forçados que lhe foram impostos pelo
modelo escravocrata brasileiro. O fumo tem uma marcante presença nas manifestações
religiosas africanas por exemplo, o candomblé e a umbanda. Além disso, os escravos
trouxeram de sua terra ervas e fumos, como a maconha, que, além de possuir teor
místico, eram utilizados para relaxar os músculos e a mente depois de um sofrido dia de
trabalho escravo. O fumo, no poema, tem a função de intensificar o reencontro de Pai-
João com as lembranças do seu passado, da sua história, na busca incessante por um
pouco de alegria, coisa que nunca mais teve. Mesmo com todos os negros dançando no
pátio, em festanças, ele não consegue apagar a dor que sente no corpo e no sangue. O
fumo é uma tentativa, aparentemente frustrada, de esquecer os dias de castigo e trabalho
em nome de uma alegria mínima.
Na mesma estrofe, chama atenção a função construída pela fricativa /f/ dos
verbos fuma, afunda e afogam-se e pelas nasais /m/ e /n/ que estão presentes nestes
mesmos verbos, mas também nas palavras no, mocambo, sombras, cachimbo,
lembrança, gastaram e músculos. A repetição expressiva destas consoantes reforça a
ambientação criada por Bopp para o seu Pai-João através de elementos lingüísticos que
sugerem o movimento do sopro, do ar, da fumaça do cachimbo e do seu estado sombrio,
decorrente da tristeza na qual se via mergulhado.
86
Outro aspecto importante desta primeira estrofe diz respeito ao espaço em que
está inserido o preto velho: o mocambo. De acordo com Roger Bastide (1960, p.118), o
mocambo tornou-se um espaço importante para a prática mais livre das expressões
culturais populares. É no mocambo que os negros, reunidos, podiam ressuscitar seus
costumes tribais interrompidos na África. Fumar, dançar umbigada ou tocar urucungo
eram formas de não deixar se extinguir a identidade. Fora do mocambo, suas práticas
eram consideradas crime, feitiçaria ou cultos demoníacos. O lirismo de tom descritivo e
narrativo, neste poema, favorece a possibilidade de se criar uma ambientação mais
detalhada do espaço negro, sem prejudicar os aspectos psicológicos e sentimentais
presentes no texto. Pires Laranjeira, analisando o movimento da Negritude, uma
precisa contribuição teórica no que se refere à aproximação do poético com o narrativo
como forma estética privilegiada para abordar a temática Africana:
Para um modo literário que, na tradição européia, se considera lírico,
isto é, apto para enunciação de estados de espírito, sensações,
elucubrações existenciais, filosóficas, ou expressões emocionais, a
intromissão da descrição e o esboço de <personagens>, com
predominância ao nível da figuração (no sentido que este termo tem no
teatro), originando a acentuada contaminação do lirismo pela
narratividade, permite contar, se bem que de modo fragmentário e
alusivo, as histórias localizadas dos negros em suas situações, com
indicações mais precisas, e preciosas, para uma leitura sócio-histórica
global. dessa maneira particularizante e especificadora (localização
ambiental, notação cronológica, caracterização rácica, social, cultural e
anatômica) o negro transita da sombra dos bastidores para o
aclaramento protagonístico, mesmo que esse protagonismo se exerça
através da mediação figurante, pela dificuldade (senão impossibilidade)
de extravasar os limites arquitextuais máximos do modo literário.
(LARANJEIRA, 1995, p. 343)
O espaço onde os africanos no Brasil e seus descendentes diretos podiam se
sentir, mesmo que temporariamente, livres, iguais e, sobretudo, humanos era no
ambiente das suas festividades. As danças populares dos negros foram marcadas pela
rica variedade de passos e movimentos corporais, encontrados até hoje, por exemplo,
87
em emboladas, jongos e cocos. Bopp estiliza em seus poemas negros esta pluralidade de
formas provindas das músicas festivas da cultura afro-brasileira. Destoante das imagens
criadas pela visão ideológica vigente sobre a África até aquele momento histórico, a
obra do poeta gaúcho tem como ponto forte a modelação literária das imagens dos
aspectos culturais afro-brasileiros a partir de uma visão antropológica aguçada, como foi
de praticamente todos os integrantes do grupo Antropofagia. Bopp não foi um
pesquisador etnográfico como Mário de Andrade, mas foi um verdadeiro “turista
aprendiz”, experimentando, com interesse, um contato direto com a cultura de todas as
regiões do país.
A segunda estrofe do poema é rica e, ao mesmo tempo, cheia de ambigüidades
com relação aos pontos que se referem à cultura africana:
Perto dali, no largo pátio da fazenda,
umbigando e corpeando ao redor da fogueira,
começa a dança nostálgica dos negros,
num soturno bate-bate de atabaque de batuque.
também um outro instrumento musical da cultura africana mencionado no
poema: o atabaque, cuja percussão está bastante ligada aos cultos religiosos sagrados,
pois servem de marcação dos cantos e das danças oferecidas aos orixás. O atabaque é
também utilizado em situações de alegria e divertimento. Constantemente, os negros se
reuniam ao redor do fogo e ao som dos atabaques para perpetuar e renovar seus valores,
símbolos e ideais. A batida dos tambores além de remeter para estes aspectos mítico-
culturais, tinha um poder de agregar e socializar os grupos em torno dos bens
simbólicos ligados à ancestralidade. Nesta perspectiva, na cultura africana, a música
popular produzida pelos negros não se desvincula da vida prática das pessoas. Ela
acompanha as manifestações religiosas, os ritos da tradição e a dança umbigando e
corpeando.
88
A escassa crítica que aborda a poesia de temática negra de Raul Bopp chama
bastante atenção para o último verso desta estrofe devido a sua bem sucedida
aproximação entre a sonoridade da aliteração das oclusivas /t/ e /b/ com a plástica
sonoridade rítmica dos atabaques. De fato, a representação poética do ritmo da música
popular africana se constrói na união entre som e sentido, entre o fonológico e o
semântico. O ritmo dos versos corresponde ao ritmo dos tambores que estão sendo
tocados no pátio da fazenda onde ocorre as umbigadas. Roger Bastide comenta a
riqueza desta estrofe:
Ora, se como dissemos, a África é o ritmo, essa nova poesia
vai dançar, girar, deslocar-se segundo ritmos ainda não
conhecidos. Ao órgão dos românticos, à flauta dos simbolistas,
os modernos juntam novos instrumentos que enriquece a música
dos versos, o tambor antes de tudo: “num soturno bate-bate de
atabaque de batuque”. (BASTIDE, 1997, 53-54)
Alfredo Bosi (1994, p. 371) também descreve este verso como “um
enriquecimento tanto na esfera dos motivos, quanto na própria camada sonora da
poesia”. A afirmação de Bosi é, na verdade, como ele mesmo expõe, uma ratificação da
posição de Bastide. Percebe-se, porém, que em ambos os casos não houve uma
preocupação de análise mais apurada do poema, ocorrendo uma tradição crítica de
repetição que pouco renova na abordagem de poemas como este. Um outro caso de
crítica “apressada” e anacrônica em torno da poesia negra de Raul Bopp é feita por
Brookshaw em Raça e cor na literatura brasileira (1983):
Urucungo cai bem na esfera da influência da “art-nègre”. O
negro não é evocado como brasileiro, e sim como uma figura
nostálgica para uma África que parece representar seu próprio
subconsciente. O negro em Urucungo não é um participante na
dinâmica de uma nova nação, mas um exilado que, através do
recurso exótico da mariajuana ou das notas misteriosas do
89
urucungo viaja” para uma igualmente exótica África da
imaginação do poeta (BROOKSHAW, 1983, p.93).
Algumas considerações devem ser feitas com relação a este trecho.
Primeiramente, Urucungo está inserido num contexto brasileiro onde a figura histórica
do negro começa a ser mais estudada antropologicamente. Assim, a obra de Bopp
possui muito mais influência do movimento de caráter nacional-antropofágico do que da
art-nègre. Isto porque se buscou retornar às origens da formação brasileira como forma
de reelaboração do passado, inserindo-se nas pesquisas sócio-culturais sobre os negros e
sua ascendência africana, que estavam em bastante voga naquele início dos anos trinta,
a partir, sobretudo, dos estudos de Gilberto Freyre. Os elementos que Broakshaw aponta
como negativos na poesia de Urucungo são, no mínimo, discutíveis. Na forma como
está exposto, é como se o negro não tivesse historicamente sentido nostalgia de sua terra
da qual foi desenraizado. Preocupado em desmascarar estereótipos, o crítico não estuda
o poema como ele é, e sim como deveria ser, não percebendo que estava lendo a poesia
de Bopp buscando explicitamente traços de construção nacional mais engajados quando
esta nacionalidade pode ser encontrada em Urucungo ou de maneira sutil “no largo
pátio da fazenda”, “no mocambo” e na “bofetada do nhô-branco” - versos que
exprimem uma atmosfera social que se gerou no Brasil escravocrata ou na leitura
integral da obra que tematicamente reconstitui todo o percurso da cultura africana: das
origens míticas, passando pela casa-grande e culminando em favelas nos morros
brasileiros.
Cultuando atividades tradicionais, ritos, danças e instrumentos musicais, a
poesia negra de Raul Bopp se apresenta de maneira oposta a muitas abordagens da
questão racial (como o olhar mais conservador do grupo verde-amarelo) por possuir
uma caracterização da figura do negro muito mais próxima do seu ethos histórico. Isso
90
se deu muito em parte pelo cuidado dos ideais antropofágicos de não se deixar cair em
chavões e repetições de pensamentos advindos do Brasil arcaico, anterior a 22. Assim,
Urucungo não representa uma África reduzida ao subconsciente de um preto velho,
como diz Brookshaw, mas, ao contrário, apresenta Pai-João como um testemunho da
história, da sabedoria, da bruta viagem e do trabalho escravo. Sua cultura e sua memória
não são isoladas e individualizadas, mas coletiva e histórica. É a recomposição de um
passado que não é apenas seu, mas de toda a sua nação, de todos os seus irmãos:
Erguem-se das solidões da memória
coisas que ficaram do outro lado do mar.
Às vezes pega no urucungo
e põe no longo tom das cordas vozes que ele escutou pelas
[florestas africanas
Num certo momento do poema, a concomitante relação entre os momentos de
sofrimento moral e físico se manifesta de maneira mais explícita na passagem a seguir,
onde a brutalidade sobre este povo, ao longo dos séculos, se reúne concentrada na
bofetada do senhor de escravos:
Dói-lhe ainda no sangue uma bofetada do nhô-branco.
O feitor dava-lhe às vezes uma ração de sol para secar as
[feridas.
Chama atenção nestes dois versos a maneira como representam a crueldade que
ficou fixada na carne e na consciência de Pai-João. A dor no sangue significa que os
maltratos da escravidão, base da sociedade racista e classista brasileira, possuem um
longo alcance histórico, atingindo as gerações afro-descendentes. A presença do “nhô-
branco” e do “feitor” aponta para esta relação de hierarquia de poder da estrutura social
brasileira no período da escravidão. A extrema violência destes dois, sob a ótica
91
modernista, é o sinônimo do atraso e da barbárie do país que a antropofagia se obstina
em desmascarar. A bofetada que não deixa de doer e as feridas que secam ao sol (que
sugerem o tronco de açoite utilizada historicamente pelo feitor) são fortes imagens
geradas impossíveis de serem esquecidas, como ocorre na memória de Pai-João. Outra
parte importante destes versos se refere à palavra “ração”, que revela o tratamento
desumano dado ao negro pelo seu feitor. Em todo caso, o eu-lírico descreve estes dois
atos de violência infiltrados na memória de Pai-João, que não apresenta expressões de
rebeldia com relação a estes acontecimentos. A única ação de Pai-João com relação a
tudo isso é a tentativa de esquecer, por meio da toada triste do seu urucungo, o que sente
ser inesquecível. Como se pode perceber, o poema tem a intenção de gerar uma visão
crítica do passado no presente interno do poema, escancarando uma cena do cotidiano
do negro escravo.
Perto dali, enchendo a tarde lúgubre e selvagem,
a toada dos negros continua:
Mamá Cumandá
Eh Bumba.
Acubabá Cubebé
Eh, Bumba.
Por fim, resgatando mais um traço da cultura africana, Bopp encerra seu poema
com uma toada cantada pelos próprios negros. Com esse procedimento, além de trazer
para o poema, de modo direto, as vozes dos negros, Bopp parece querer ressaltar a
resistência desse povo, uma vez que, apesar de toda dor vivenciada, eles expressam,
através do canto e da dança regidos pelo batuque, a continuidade da vida.
92
3.3. Lendas da história africana
O advento da modernidade instaurou nos discursos dos estudos de humanidades
a noção de que o passado jamais pode ser abordado através de um olhar neutro. Os
escritores modernistas que se importaram com o nacionalismo buscaram reconstituir
literariamente o passado brasileiro com o objetivo de atribuir um novo sentido histórico
a memória da nação. Havia, nas discussões dos meados dos anos vinte, a preocupação
em revelar que a história não é apenas um relato linear de um acontecimento, mas
também uma construção de sentido elaborada nas significações e impressões vividas no
presente. A brasilidade modernista tinha a intenção de fazer uma leitura do país tendo
por base a condição sócio-econômica que redirecionava a visão do passado, renegando
concepções que foram hegemônicas no final do século XIX como o determinismo, o
positivismo e o naturalismo.
A reconstituição do tempo histórico nos poemas de Urucungo, remete a um
período da história da África onde as origens da vida eram explicadas através de lendas
africanas. Ao dedicar três poemas (“Casos da negra velha”, “África” e Mãe-preta”) à
representação de um espaço africano intemporal, Raul Bopp lança um olhar
diferenciado sobre a cultura africana porque estimula a experiência de rememorar e
reconstituir fenômenos ignorados pela formação sócio-cultural do Brasil. Estes três
poemas, que têm como principal temática as lendas da tradição africana, assentam-se no
eixo de análise desta pesquisa que busca compreender como é feita a construção
literária da cultura afro-brasileira em Urucungo.
“Casos da velha negra”, “África” e “Mãe-preta” possuem uma relação íntima
com o sagrado. Levando em conta que as tribos africanas se muniam de uma
diversidade de lendas que representavam, na natureza, a chave para a formação do seu
93
mundo, a floresta e os animais possuíam um valor simbólico que remetia a toda uma
força divina dos espíritos dos antepassados, os protetores da vida. Na esfera cotidiana, o
africano primitivo não dissociava a vivência espiritual da vivência prática, pois todos os
aspectos sociais estavam dotados de religiosidade assim como todo o ato ritualístico ou
narrativa mítica explicavam simbolicamente os hábitos e costumes. Raul Bopp associa,
em seu fazer poético, vários elementos estéticos destes rituais e mitos primitivos da
África à tematização de uma idade áurea do africano, um período antes da chegada dos
colonizadores. Nessa proposição ideo-estética a preocupação antropofágica por parte
do escritor gaúcho em recuperar imagens de situações decorrentes do processo de
transição de uma África de lendas milenares para uma África dominada racionalmente.
Pensar poética e explicitamente esta transição cultural se configura, na literatura
nacionalista do modernismo, como uma forma de pensar de maneira crítica a formação
histórica do Brasil.
A vanguarda antropofágica, como muitas outras vanguardas, preocupou-se com
a libertação da literatura do encadeamento racionalista dos processos de composição
parnasianos, sugerindo uma escrita espontânea no que diz respeito às formas e temáticas
literárias. O retorno à África mítica é uma valorização da poesia antropofágica do
espontâneo, do mágico, do encantado, do fantástico, existente na cultura africana e
incorporados profundamente à cultura brasileira. O poema Casos da negra velha é
característico deste processo:
Casos da negra velha
A floresta inchou
Uma árvore disse:
- Quero virar elefante,
E saiu correndo no meio do mato
Aratabá-becúm
94
Aquela noite foi muito comprida
Por isso é que os homens saíram pretos
A partir do título dado ao poema, tornam-se evidentes as características orais e a
temática da cultura negra. O poema é apresentado como um conto, uma narrativa, uma
estória pertencente e contada por uma negra que comunica o conhecimento que possui
sobre o seu povo. Os lexemas “casos”, “negra” e “velha”, constituintes do título,
remetem para a idéia de histórias tradicionais contadas por alguém que as conhece bem.
O fato de a negra ser velha possui um valor importante na composição do poema, pois
significa que ela tem considerável tempo de existência e isso dá legitimidade aos casos,
principalmente se levado em conta o respeito e a reverência com que as palavras
proferidas pelos mais idosos são acatadas em uma cultura hierarquizada pelos graus de
parentesco como as culturas africanas. Neste sentido, feita a leitura integral do poema, o
título anuncia a palavra da negra, que se faz porta-voz da expressão de sua cultura e que
revela, através da narrativa, um passado mítico de seu povo onde os elementos da
natureza desempenham funções predominantes na formação dos homens. Percebe-se
que, embora não haja nenhum aspecto verbal que aponte para o discurso em primeira
pessoa, através do título, a narrativa mítica é conferida à negra velha e a origem do mito
advém de sua memória, do seu saber, da transmissão oral dos seus antepassados.
Formalmente, o poema composto por sete versos se divide em três imagens
distintas que representam os casos contados pela negra velha. Comparando as estruturas
dos versos, cada imagem também se manifesta de forma diferenciada na sintaxe das
orações, no tipo de verbo utilizado e na quantidade de sílabas empregadas em cada
bloco semântico.
“A floresta inchou” é uma afirmação brusca, objetiva, fechada por um verbo
com função intransitiva. O verbo inchar significa aumentar de volume, expandir,
95
engrossar sua densidade e, no corpo do poema, pode sugerir uma dilatação do mundo
africano. O verbo inchar tem a proposta de engrandecer o espaço florestal que envolve o
ser africano e tal ação pode ser considerada um ato espontâneo da floresta,
manifestação divina da garantia da vida biológica e mística do ser africano. Mas, acima
de tudo, o aumento da floresta é de teor simbólico de veneração, podendo, assim, estar
relacionado à contemplação da grandeza da África: inchar representa um tratamento de
nobreza e magnificência conferido à floresta. Afirmar que a floresta inchou, de maneira
natural, revela também o significado de que sua mata preserva uma unidade que frui, ou
seja, que a floresta está cheia de vida, é uma entidade natural, e por isso desenvolve com
intensidade o seu tamanho.
O segundo caso da negra velha traz elementos narrativos que justificam o
emprego no título de “Casos”. Em forma de três breves versos, um discurso em
ordem direta antecipado por um verbo dicendi. O que chama atenção não é
simplesmente a utilização deste verbo, mas quem realiza a ação: “Uma árvore”. Dar-se
à árvore atributos animados, lingüísticos e, porque não, humanos. Sua manifestação é
verbal, física e, de certo modo, filosófica, já que ela tem um desejo, uma aspiração, uma
intenção de se tornar elefante. De um modo geral, este segundo caso representa as
forças místicas da natureza que atuam no interior da floresta. Se existe um espaço macro
(a floresta tomada como um todo) onde a natureza se manifesta de acordo com seus
impulsos, o espaço micro (a árvore) também tem uma disposição mágica e espiritual. A
árvore deseja e quer virar elefante e, numa mudança imprevisível de sua ontologia, sai
“correndo no meio do mato”.
O anseio em tornar-se elefante, por parte da árvore, é uma indicação que os fatos
contados pela velha negra não se passam em terras brasileiras, por este animal não
96
existir na fauna do país, mas em algum lugar das florestas africanas, nas origens míticas
do mundo.
Por fim, o terceiro caso apresentado no poema é formulado com orações cujo
verbo “ser” se destaca por ter, nos versos, a função de dotar a noite e os homens de
experiência viva. Estes dois últimos versos são de caráter cosmogônico. Neles as forças
da natureza agem sobre a origem do homem negro africano. uma relação entre a
percepção originária da realidade com as energias do mundo espiritual presentes na
interpretação mítica que faz com que uma noite muito comprida seja explicação da
gênese da forma humana. A noite comprida da formação do homem revela um tempo de
grande dimensão, este tempo noturno duradouro é a força cósmica que transmitiu aos
seres humanos a essência de cor preta na humanidade. Nota-se que a palavra “pretos”
empregado aos homens se refere estritamente a cor da pele, não à raça nem a etnia,
que o título do poema se refere a uma negra – e não a uma preta velha. A obra
Urucungo pouco, ou quase nada, discute a relação racial a partir da cor, indo buscar o
enfoque na cultura ou na história negras para tratar dos assuntos referentes aos afro-
brasileiros. O que importa na passagem em que representa a origem da cor da pele do
negro está justamente na ligação mágico-religiosa existente do homem com a natureza.
Raul Bopp procurou, neste poema, remontar a um passado muito distante, onde a
representação da ligação entre o homem e a natureza se fazia presente sem a
intermediação de deuses abstratos ou cósmicos, pois é a própria noite quem possui o
poder mágico de interferir na vida humana, não um “deus da noite”. Da mesma forma
como a palavra mítica pretende revelar os mistérios da natureza, a palavra poética da
antropofagia aspira adentrar em um mundo desconhecido das culturas indígenas e
negras. No poema, a aproximação entre a vida e o universo sobrenatural do mundo
místico se através da linguagem. É no relato simbólico das conceituações mito-
97
poéticas que as leis do pensamento primitivo detêm o conhecimento do homem e do
mundo e os fixam em uma tradição.
O contato direto com a natureza que se faz presente na vida do homem africano
o levou a atribuir significados orgânicos e simbólicos aos eventos que regem o seu
cotidiano: a floresta, a árvore, a noite. E este significado se faz presente através de
uma linguagem metafórica, subjetiva, poética, como aponta Ernst Cassirer, em
Linguagem e mito (2000), quando observa que a construção lingüística e as imagens
míticas possuem uma raiz comum nas suas constituições. Cassirer afirma que:
Este vínculo originário entre a consciência lingüística e mítico-religiosa
expressa-se, sobretudo, no fato de que todas as formações verbais
aparecem outrossim como entidades míticas, provinda de determinados
poderes míticos, e de que a Palavra se converte numa espécie de
arquipotência, onde radica todo o ser e todo acontecer. (CASSIRER,
2000, p.64)
Neste sentido, pode-se inserir o verso que intercala os dois últimos casos do
poema, “Aratabá-becúm”, no campo das palavras mágicas detentoras do culto ao
sagrado, isto é, que expressa a manifestação de um poder pertencente a esfera das coisas
divinas. Tal expressão será importante para a ligação deste poema com um outro do
livro Urucungo, que no poema chamado “África” existe não apenas a repetição de
“Aratabá-becum” como também uma estrutura e temática semelhantes ao poema “Casos
da negra velha”.
De acordo com os comentários de Massi sobre estes dois poemas, a intenção de
Bopp era criar uma relação de continuidade entre ambos que teria intitulados “Casos
da negra velha” e “África” em suas origens respectivamente como “África” e África
(2)”. Em verdade, na leitura do poema percebe-se que o homem, a floresta, as árvores e
a noite novamente são tratados com uma nova disposição e simbologia:
98
África
A floresta era um útero
Quando a noite chegou
As árvores incharam
Aratabá-becúm
O homem amedrontado espiava no escuro.
A selva carregada de vozes ia crescendo no sangue.
Quando vieram as estrelas
O carvão-animal filtrou a luz das estrelas.
Encontram-se neste poema outras evidências marcantes que indicam como se
configura antropofagicamente a elaboração lingüístico-cultural de influência africana na
poética de Bopp. A exigência de brasilidade que se fazia presente nas produções
literárias dos modernistas levou, nos anos vinte, vários escritores a buscarem
motivações em aspectos culturais inexplorados pela história do país e ao revelarem
diferente ângulo da formação social descobriam também em suas pesquisas novas
propostas de se fazer poesia. Na situação de Boop, a poesia voltada para a formação
mítica do negro africano sugere a necessidade de reconhecer, na constituição da nação
brasileira, os elementos de origem africana. Em tal empreitada, Bopp encontrou na
unidade lingüística da metáfora mitológica a forma poética ideal para expressar as
disposições estéticas que se desenvolviam na antropofagia pelo lema “transformar o
tabu em totem”. Segundo a perspectiva antropofágica, a restrição da história brasileira
ao ponto de vista da cultura européia havia formado um “tabu” ideológico que impedia
a apreensão da identidade nacional aspirada pelo sentimento de brasilidade do
modernismo. A revelação e a apreciação “totêmica” da vivência simbólica, ritualística e
mítica do indígena ou do africano construídas no plano da poesia se tornavam, para
os modernistas, um contra-discurso às ideologias brasileiras arraigadas na tradição
99
européia. Assim, é na relação dialética entre “tabu” e “totem” que o que era negado ou
ocultado nos documentos históricos brasileiros se tornava sagrado no material artístico
dos modernistas, invertendo a ordem simbólica das matrizes do país para sugerir a
consciência nacional e, ao mesmo tempo, articulando o caráter de ruptura vanguardista
presente no grupo Antropofagia.
A revisão histórico-cultural dos aspectos afro-brasileiros presentes na reflexão
da poesia antropofágica de Raul Bopp possui sua densidade estética na forma de
representação imaginária das lendas tradicionais africanas. O retorno a este passado
através dos elementos metafóricos significa que a reorganização moderna da literatura
do país se faz pela recuperação das poéticas tradicionais que o Brasil sempre possuiu,
mas que esteve, até aquele momento, em estado latente devido à força do
empreendimento europeu sobre os países americanos. Os modernistas brasileiros vão
substituir o racionalismo político-econômico, as idéias deterministas e positivistas e, no
campo literário, à arte pensada como uma equação parnasiana, por imagens que revelam
um mundo que não pode ser explicado através de categorias gicas. Otávio Paz ( 1982,
p.137) comenta que a imagem poética não possui uma natureza conceitual, “a imagem
não explica: convida-nos a recriá-la e literalmente revivê-la. O dizer do poeta se encarna
na comunhão poética”.
A força do poema África incide na caracterização que é dada às palavras
correspondentes ao espaço africano. Reapropriando do poema “Casos da negra velha” a
imagem da floresta, em “África”, o ambiente africano agora se faz representar como
propício para o nascimento, o surgimento, o brotar da vida: “A floresta era um útero”.
neste verso o emprego de um forte andamento rítmico advindo do uso do fonema /r/
que acompanha e reforça o ritmo da palavra-título do poema (África). De acordo com
Bosi (2000, p.104), na poesia “a idéia, no momento em que aporta ao concreto da
100
expressão (à frase), produz ou reaviva algum efeito rítmico da língua que, em virtude do
novo contexto, se torna significativo”. Neste sentido, o ritmo empregado ao verso a
partir da utilização da letra /r/ constrói um elo lingüístico que enriquece a ligação
semântica entre a “África”, sua “floresta”, o verbo ser/existir na forma era” e “útero”.
Tomado este elemento formal como ponto de partida da análise, percebe-se que da
mesma maneira que as palavras do verso possuem uma seqüência rítmica comum que
encadeia os sentidos semânticos, a África possui uma sucessão de fenômenos naturais
que a caracteriza e a torna viva.
Retomando mais uma vez a noção literária de “forma elástica”, desenvolvida por
Massi para traduzir alguns aspectos do estilo de Bopp, pode-se dizer que os processos
de composição destes poemas se fundamentam na assimilação contínua de elementos
líricos, narrativos e dramáticos. Versos vão se “esticando” para dentro de outros versos,
palavras se permutam em torno de um único tema, este, por sua vez, vai ganhando
novas dimensões em significado interno. A forma elástica requer que os componentes
estéticos percorram passagens da obra com flexibilidade, dependendo da circunstância
proporcionada pelas imagens poéticas.
O poema “Mãe-preta” demonstra um vínculo coerente com diversas
características encontradas nos outros dois poemas já vistos, entrelaçando formas e
conteúdos em uma única rede: nos valores da tradição africana.
Mãe-preta
- Mãe-preta, me conta uma história
- Então feche os olhos, filhinho
Longe muito longe
Era uma vez o rio Congo...
Por toda parte o mato grande
Muito sol batia o chão
101
De noite
Chegavam os elefantes.
Então o barulho do mato crescia.
Quando o rio ficava brabo
Inchava.
Brigava com as árvores.
Carregava com tudo, águas abaixo,
Até chegar na boca do mar
Depois...
Olhos da preta pararam.
Acordaram-se as vozes do sangue
Glus-glus de água engasgada
Naquele dia de nunca mais.
Era uma praia vazia
Com riscos brancos de areia
E batelões carregando escravos.
Começou então uma noite comprida.
Era um mar que não acabava mais.
... depois...
- Ué mãezinha,
Porque você não conta o resto da história?
Proporcionando a presença simultânea dos gêneros, o poema se desenvolve em
estrutura dramática com a função de revelar uma narrativa mítica e histórica sobre o
passado africano. O diálogo entre Mãe-preta e seu filhinho pode ser retratado como
mais um “caso de negra velha” em que a estrutura de narrativas tradicionais, elefantes,
rio, árvores, sol aparecem como as mesmas referências ambientais dos outros poemas.
No entanto, quando atende ao pedido do filho para contar uma história, Mãe-preta
seleciona dentre tantos casos, a história das suas origens, em lugar distante, no rio
Congo, iniciada pela estrutura de contos “Era uma vez...”. Este termo marca a natureza
imaginária das narrativas tanto como fechar os olhos cria uma atmosfera de devaneio,
invenção, fantasia. Entretanto, ao tomar o poema como um todo, o termo ganha mais
um significado quando se revela o sentimento triste da Mãe-preta lembrando a
102
escravidão no continente. É como se, ao olhar para o passado, e-preta enxergasse
uma África pré-colonial em harmonia com a natureza e quisesse dizer ao seu filho que
nada mais existe daquela maneira. O “Era uma vez” ganha um sentido melancólico de
perda, de algo que se foi e não é mais, de “aquele dia do nunca-mais”.
A narrativa em discurso direto vai descrevendo um ambiente natural da África,
com menção a elefantes e ao rio Congo, mas, diferentemente dos poemas anteriores, no
que diz respeito às referências míticas, o que Mãe-preta narra não faz mais parte das
origens encantadas, com árvores se transformando em elefantes ou a origem dos
homens sendo explicada pela escuridão da noite. Estes elementos semânticos passam
agora a serem narrados de maneira objetiva e servem para descrever o transbordamento
das águas do Congo, a luta das árvores contra a inundação e o barulho dos elefantes
percorrendo os matos grandes não mais florestas, mas matos grandes. Mãe-preta,
através da memória, tenta voltar no tempo, talvez até na intenção de retornar ao tempo
mitológico, o que apenas reaviva a situação do negro no sistema escravista,
comparando-o a uma noite comprida de tormentos. Não conseguindo assim criar a
narrativa, seja pela tristeza do passado colonial, seja pelas lágrimas, cessa
repentinamente sua história através da pausa longa “Depois...”.
Esta pausa é bastante simbólica porque marca, na tessitura textual, o momento
em que a rememoração do passado cultural é interrompida para dar lugar à lembrança
de “batelões carregando escravos”. Revela também o contato brusco entre as culturas
africanas com a européia. Antes, a história africana se fazia lenta, em harmonia; a
presença da colonização e da escravidão transformam esta harmonia em aflição e
angústia. De certa forma, Mãe-preta não continua a história porque “aquele dia do
nunca-mais” representa o momento em que o africano é destituído de sua própria
103
história, dando-se início ao período de dominação dos batelões que arrastam o homem
negro para “um mar que não acabava mais”.
ainda no poema um eixo semântico em que, ao se encontrar com o mar, a
força das águas do rio Congo, que corre com violência arrastando “águas abaixo”,
converte-se em “glus-glus de água engasgada”, aliteração que assinala as forças do
lúgubre sentimento de perda que sufoca e-preta, impedindo-a de falar. Esta relação
com a água,no poema, tem continuidade na palavra “mar”, que serve como elemento
semântico para simbolizar não apenas o tráfico de escravos responsável pelo
desmantelamento das sociedades africanas, mas o início de uma “noite comprida” (antes
a noite estava em harmonia com a natureza e os homens, e agora recebe sentido de
trevas, tormento, adversidade) que marca um novo e longo período histórico, de
escravidão e violência.
A invasão colonialista que aportou em grande parte da África costeira
desorganizou um modo de vida social no qual a relação mítica entre o homem e a
natureza se fazia predominante. Refletindo sobre como a representação deste momento
histórico se dá na poesia moderna de Raul Bopp, pode-se chegar à hipótese de que o
retorno à África primitiva em sua poesia emerge como uma releitura crítica em que o
objetivo é de redimir a história da visão autoritária dos vencedores, da mesma forma
como as vanguardas se apresentaram em contraposição à tradição acadêmica para
revisar e reconfigurar o panorama literário.
Nos termos de uma poesia modernista e antropofágica, os três poemas de Bopp
revelam um tempo passado onde o homem combinava a sua vida com a magia da
natureza. Utilizando-se de aspectos da cultura negra, Bopp constrói um discurso
literário em que a liberação criativa, a oposição ao racional e a complementaridade entre
104
homem e mundo se fazem presente enquanto recursos poéticos, em explícita
aproximação com as intenções vanguardistas dos surrealistas.
O conjunto destes três poemas elabora a imagem de um passado africano que
ratifica o investimento antropofágico no primitivismo literário. Tendo como ponto de
partida as manifestações orais como casos e histórias, nestes três poemas, Urucungo
reconta a África do início fabuloso, desde quando o continente era um útero até se
transformar em “uma praia vazia” e dominada pelo colono, fechando um ciclo histórico
em que mitos e lendas ditavam os valores e tradições culturais. Os versos destes poemas
trazem características que demonstram o empenho de Raul Bopp em garantir um
enfoque atento à cultura negra.
Encerrado este primeiro momento em que o eixo principal do empreendimento
poético de Bopp busca representar o negro através do enfoque nos aspectos complexos
da cultura africana, passa-se agora à leitura de Urucungo sob a perspectiva do negro
representado na condição de escravo sujeitado a trabalhos forçados no regime colonial
brasileiro.
3.4. No Transcorrer da História da Escravidão
Dando continuidade à leitura crítica de alguns poemas de Urucungo, o enfoque
passa agora a recair sobre o tratamento dado à representação do negro levando em conta
o processo histórico da escravidão. Neste eixo temático, a reconstrução das relações de
poder entre senhores e escravos atinge um elevado grau de tensão devido
principalmente ao teor realista que Bopp busca imprimir aos conflitos sócio-históricos.
Na diretriz desenvolvida pela Antropofagia que critica o processo civilizatório
brasileiro, poemas como “Dona Chica” e “Serra do Balalão” trazem à tona passagens do
105
cotidiano da história que expõem as fraturas do passado nacional, contribuindo, deste
modo, para a tomada de consciência do indivíduo moderno.
na perspectiva antropofágica destes poemas pontos de contato com a
proposta analítica de Zilá Bernd no que se refere à denúncia poética do dilaceramento
histórico do negro e da presença explícita desta situação de violência da escravidão.
Considerando que a Antropofagia se revelou, com mais vigor em sua segunda fase,
portadora de um amplo projeto cultural, pode-se identificar que suas aspirações estéticas
se vinculam à intensificação das preocupações discursivas sobre a história do país.
Assim, o elemento estrutural destes poemas mencionados se encontra na aproximação
entre a representação de uma determinada matéria poética o negro e a construção
histórica que o circunda sistema escravocrata. Tornar transparente e nítida a força
repressiva dos castigos aplicados ao negro escravizado não emerge apenas como uma
reconstrução dos fatos do mundo colonial brasileiro, mas também é uma abertura no
campo literário para a discussão da relação entre literatura e história, proposta que seria
transformada em parâmetro literário pelos escritores da década de trinta, principalmente
os romancistas.
Como se sabe, os grupos dominados no processo de colonização brasileira,
principalmente negros e índios, quase não deixaram fontes históricas acessíveis. Assim,
na poesia de Bopp, surge um discurso histórico que, através da palavra, tenta retornar ao
passado desaparecido ou ocultado da nação. Neste sentido, pode-se argumentar que dois
aspectos da qualidade poética boppiana estão na intensidade da organização semântica e
na seleção imagética dos versos que se concentram, em tom dramático, no processo de
rememoração do passado do negro brasileiro.
Na escravidão brasileira, a violência e o castigo marcaram indelevelmente a
condição do escravo. Além disso, a passagem da América dita primitiva para a
106
sociedade civilizada, formalizada no desenvolvimento das forças coloniais européias,
implantara, contraditoriamente, o caráter desumano da ordem escravocrata na história
do país. A Antropofagia, em um dos seus pilares, empenhava-se em criar uma nova
forma de testemunhar esta história e, com isso, reformular o sentido de nacionalidade,
conforme se pode observar no poema abaixo, o qual passaremos a comentar:
Dona Chica
A negra serviu o ca
- A sua escrava tem uns dentes lindos dona Chica.
- ah o senhor acha?
Ao sair
A negra demorou-se com um sorriso na porta da varanda
Ai do céu caiu um galho
Bateu no chão. Desfolhou.
Dona Chica não disse nada
Acendeu ódios no olhar
Foi lá dentro. Pegou a negra.
Mandou metê-la no tronco
- Iaiá Chica não me mate!
- Ah! Desta vez tu me pagas.
Meteu um trapo na boca
Depois
Quebrou os dentes dela com um martelo.
- Agora
Junte esses cacos numa salva de prata
E leve assim mesmo,
Babando sangue,
Pr´aquele moço que está na sala, peste!
Os aspectos realistas e objetivos presentes no poema ressaltam a fria crueldade
da ação realizada por D. Chica, cujo comportamento é assinalado no poema por
recorrentes referências à crueldade e violência “tu me pagas”, “ascendeu ódio”,
“peste” reafirmando o ódio e a inveja gratuita da senhora para com aquele que está
sob seu domínio. Historicamente, as esposas dos donos de escravos eram encarregadas
107
da disciplina doméstica e, assim, principais responsáveis pelas punições físicas brutais.
Se na senzala, durante o dia de trabalho, os negros viviam sobre a ameaça da chibata, na
casa-grande, estavam suscetíveis a receber violência física diária. A semelhança do
ocorrido no poema com as descrições do historiador Julio José Chiavento revelam a
cautela e a atenção de Bopp ao tematizar a violência contra o negro :
A crônica da escravidão está fartamente ilustrada pelo sadismo de
senhoras piedosas que mandavam arrebentar os dentes das suas negras a
marteladas, quando elas próprias não executavam sua justiça,
quebrando-os com o salto das elegantes botinhas francesas. (...) Estas
crônicas o férteis na descrição do ciúme das senhoras brancas
extravasando-se em crueldades. Não é caso isolado o daquele
imprevidente senhor que elogiou os olhos da mulatinha que lhe servia o
almoço e teve a surpresa de recebê-los boiando em calda doce, ao
jantar, num oferecimento gentil da sua esposa (...) (CHIAVENATO,
1980, p.10)
No poema, em frente ao “moço”, a senhora mantém a compostura, apenas
fulminando a negra com o seu olhar, porém, em seguida, uma sucessão de castigos
que vão além da injustificável violência corretiva ou exemplar. “Metê-la no tronco”,
“meter trapo na boca” e “quebrar os dentes” fazem parte do exercício de abuso de
autoridade senhoral que o poema expõe com a intenção de denunciar o processo
desumano que o sistema escravocrata gera, tendo como vítima os negros.
Além dos castigos físicos, a condenação e a punição da escrava também é moral.
Dona Chica faz questão de que a moça entre babando sangue e com os dentes em uma
bandeja de prata, um forma de fazer com que a própria negra se sinta, como diz, uma
“peste!”. Os dentes, quebrados, não são mais dentes, são cacos que representam a lição
moralista que desmoraliza e a crueldade da destruição daquilo que a negra tinha do que
se orgulhar, seu sorriso. Ora, a negra tem belos dentes, sorri e canta. Da imagem de sua
boca que tanto agradou o moço faz emergir a beleza, a poesia dos versos que, em
seguida, são calados a golpes de martelo. Além do canto, a única frase falada pela negra
108
se resume a denunciar o seu medo da morte. “- Iaiá Chica não me mate!”. Isso
demonstra um sentimento de terror e temor do tronco, ameaça que existia
constantemente na vida dos escravos. De um modo geral, no poema, a oposição e o
conflito entre a senhora e sua escrava ressalta a desumanidade dos seus donos. Os
senhores de escravos, representantes do poder civilizatório do processo colonial, em
verdade, agem de maneira tão irracional em suas punições que, em atos como os de
Dona Chica, revelam-se destituídos de qualquer complacência com o “outro”.
Um dos objetivos do grupo Antropofagia está em revelar este Brasil real,
reconstituindo o que foi apagado, esquecido ou ocultado da história. O poema “Dona
Chica” alcança este status por representar, em detalhes, a violência abusiva da
dominação senhoral como característica histórica do relacionamento social da
organização escravista. Assim, um elemento importante a ser observado no poema
“Dona Chica” é a construção contextual da situação que envolve as personas
representadas.
algumas discussões contextuais a serem destacadas que podem contribuir
para entender este poema. Na década de 20 e 30, a partir das transformações na
estrutura sócio-econômica e no plano das idéias, surgem novas manifestações cujos
objetivos eram a identidade nacional e a formação do país enquanto nação e estas
realizações intelectuais atingiram tanto o meio artístico quanto o historiográfico. As
proposições modernistas de organizar a história social e cultural do país parte da
tentativa de instaurar um pensamento moderno, renegando métodos, categorias e
perspectivas aplicadas no passado. Neste sentido, uma tentativa de retorno a
passagens históricas do país lidas não mais nos grandes feitos políticos, mas na
experiência do dia-a-dia, do sistema de vivência da população. No caso de Bopp, ao
representar o negro nas condições de escravo, focando os tratamentos a que eram
109
submetidos a preta, problematiza a formação do país no que ela possui de
constrangedor: os castigos aos escravos. As pesquisas do modernismo brasileiro em
torno da população negra criaram uma nova perspectiva que centrava seus estudos no
campo historiográfico.
Aquela posição privilegiada que as influências climáticas, fisionômicas,
deterministas e positivistas possuíam na intelectualidade brasileira, devido ao caráter de
rigorosidade científica, foram cedendo lugar a uma visão interpretativa da história social
e da antropologia cultural. Gilberto Freyre teve papel fundamental na guinada das
ciências humanas no país, ao concentrar suas análises no espaço das relações
domésticas da casa-grande com a senzala para explicar como se dava o processo de
mestiçagem na vida dos brasileiros.
Embora a obra de Freyre, na defesa da tese da democracia racial, suavize o
processo de escravidão, ‘adoce’ as relações de poder com a sexualidade dos escravos e
o paternalismo dos seus senhores, proferindo juízos críticos que mistificaram durante
muito tempo a história do Brasil, sua obra obteve bastante aceitação na época por reunir
o olhar apurado modernista sobre as relações humanas (e raciais) com o auge ideológico
do nacionalismo político.
Freyre destaca que era comum que as amas-de-leite fossem trazidas da senzala
para a casa-grande com o intuito de cumprir serviços domésticos, além de servirem às
iniciações sexuais dos meninos de engenho ou à volúpia dos senhores. Para tais
serviços, os donos de escravos selecionavam “as mais lindas, as mais bonitas” para que
atendessem “as qualidades físicas e morais da casa”.
Desta aceitação da escrava no espaço do senhor fora comum as relações inter-
raciais regidas, evidentemente, pela estrutura de poder, sendo o negro ou a negra
subservientes aos mandos e desmandos opressivos dos seus donos, sob pena dos mais
110
cruéis castigos, como no caso descrito no poema “Dona Chica”, que ressalta todo o
ciúme das senhoras brancas e a virulência com a qual reagem às demonstrações de
afeição manifestas às suas escravas.
O que afasta Urucungo do pensamento freyriano é o veio crítico antropofágico
que emana da representação de situações conflituosas que permeiam o desenvolvimento
histórico da escravidão, no Brasil, as quais, por muito tempo, foram consentidas e
renegadas pela historiografia oficial. Enquanto Gilberto Freyre toma como secundária a
violência para que valide a sua teoria da democracia racial, ocultando ou amenizando
todos os maus-tratos físicos, Bopp, em seus poemas e sob a orientação da Antropofagia,
recorre à tematização da denúncia da opressão dos negros na formação histórica do país.
É possível que o advento do modernismo antropofágico e sua preocupação
estética em captar fatos e linguagens no âmbito da vida cotidiana tenham tido influência
direta sobre a tendência regionalista representada por Freyre, por José Lins do Rego e
por Jorge de Lima que, em “Essa Negra Fulô”, recria poeticamente situação análoga a
de “Dona Chica”, mas com uma ideologia aproximada a do autor de Casa Grande &
Senzala, como se vê nos trechos abaixo:
Essa Negra Fulô
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
No bangüê do meu avô
Uma negra bonitinha
Chamada negra Fulô.
.......................................
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Fulo? Fulo?
(Era a fala da Sinhá
Chamando a Negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?
111
- Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!
.....................................
O senhor foi açoitar
sozinho a negra fulo
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulo.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Neste texto, o discurso sobre o negro favorece inteiramente a fala da Sinhá que,
além de mandatária, ainda tacha a negra Fulô incisivamente de ladra. Em outro
fragmento (última estrofe do texto acima) o açoite destinado à negra é posto de lado por
conta da sua sensualidade, extinguindo, no poema, as marcas históricas da violência
pelo suposto lado carnal de influência africana, gerando uma aprazível relação social.
Tanto a sinhá quanto o senhor se fazem de vítima das peripécias e do jeito da negra Fulô
quando afirmam, em tom de condescendência, “Essa negra Fulô!”. Não existe, no
poema, nenhum sinal, com exceção da intenção do açoite interrompido, de
representação de castigo e mau-trato aos escravos que caracterizaram este meio social.
De acordo com Bernd, este estilo de falso negrismo, encontrado na poesia de Jorge de
Lima, constitui uma estratégia consciente ou inconsciente de o sujeito responsável
do texto construir uma imagem do negro ao mesmo tempo presente e ausente do
discurso” (BERND, 1998, p.66) pois o negro não possui em nenhum momento voz no
poema, sendo o neto de senhor de bangüê o eu lírico narrador.
Diferentemente, em Bopp, em sua obra Urucungo uma severa crítica à
escravidão, movida pelo nacionalismo antropofágico que desmistifica a história da
população negra, tornando evidente a opressão dos senhores de escravos, como aparece
112
em outro poema, intitulado “Serra do Balalão”, mais um retrato da história do cotidiano
dos escravos no Brasil:
Serra do Balalão
Muier dos zóios verde tem perigo
Ai lorolúm lua
O patrãozinho
Que tinha coisa escondida com uma moça de olhos verdes
Se ria da bobagem dos negros
Mas um dia,
Atrás duma porteira,
Mataram o patrãozinho
- quem foi?
- quem foi?
Ninguém sabia.
Então foi aquele negro que vinha tocando a tropa.
- Foi você! Foi você!
- Não foi eu, não sinhô.
O negro tremia e jurava
mas nada ajudou. Coitado!
Foi enforcado na entrada da vila.
Era de tarde. Chovia.
O corpo ficou batendo numa timbaúva.
Meia légua adiante fica a serra,
Serra do Balalão,
assombrada.
Em noite escura
Os cargueiros começam a subir o perau
Passo a passo:
Bem belém
Não vem ninguém ninguém
- Olha que vem!
Vem
Lá do outro lado
O negro.
Desce da timbaúva
Pisando
Num passo-pilão
Pum! Pum! Pum!
113
A sombra vai crescendo.
Quando chega na serra
Está da altura da serra.
Então
A tropa volta depressa batendo cangalhas
E some-se lá adiante
Numa chuva de estrada.
Diz-que de vez em quando
Ouve-se um ai-ai estrangulando-se no fundo do mato.
- Não fui eu!
Bate a porteira de tocaia: páa!
E essa pancada seca
Ouve-se por todo o Brasil!
“Serra do Balalão” é um poema em que o castigo senhoral, com o intuito de
punição, progride para a morte. Como no caso de “Dona Chica”, as ações presentes no
poema deixam entrever a brutalidade da reação dos senhores na punição arbitrária dada
aos negros.
Inicia-se o poema com o aviso em linguagem popular dos riscos iminentes que
existem em se aproximar da “muier dos zóio verde”. O patrãozinho, filho do senhor de
engenho, goza de maneira debochada dos negros por causa da mulher de olhos verdes
da cantiga, não leva em consideração os avisos e acaba aparecendo assassinado. Deve-
se reparar que o verbo matar aparece na forma que indetermina o sujeito da ação,
anunciando a dúvida em relação ao autor do homicídio. Não se sabe quem nem como se
deu a morte do patrãozinho e isso se ratifica através das falas que buscam, a todo custo,
encontrar o culpado da morte, mas “ninguém sabia”.
A repetição da pergunta “Quem foi?revela a necessidade imediata de se buscar
o assassino, pois não se aceita o fato do “patrãozinho” ter sido morto e esse ato ficar
impune. Diante desta ocorrência, o poema aponta para uma ordem histórica de poder
que autoriza aos senhores de escravos, dentro do patriarcalismo de julgar e punir, ao
114
mesmo tempo, como afirmativa da dominação senhoral e garantia desta através da
repressão violenta de qualquer transgressão ou possibilidade dela. O negro que vinha
fazendo o seu trabalho, “tocando a tropa”, acabou sendo enforcado e exposto na entrada
da vila como mensagem para incutir o temor e o terror aos demais escravos. O
enforcamento tem a função de demonstrar que um eficiente instrumento de controle
que é a condenação à morte, mesmo que ela seja de um inocente. A morte do
patrãozinho precisa ser vingada por ser uma terrível infração e, por outro lado, a morte
do negro trabalhador, sem culpa, perpetua, como uma lição, a violência de forma
incontestada de poder.
No poema, não existem indícios que apontem para a culpa do negro, que vinha
conduzindo os animais, para que ele seja tratado como principal suspeito. No entanto,
no sistema escravocrata, é preciso que quem cometa os delitos contra brancos sejam
punidos para mostrar aos negros a força e a intolerância do poder da classe dominadora.
Mais uma vez, a exemplo de “Dona Chica”, a única expressão em discurso
direto que representa a fala do negro é a atitude de negação insuflada pelo medo: “- ‘não
foi eu não senhor / o negro tremia e jurava/ mas nada ajudou”. Mas é a partir da
alegação de inocência do negro que o poema desenvolve uma outra situação que se
passa no campo gico da Serra do Balalão. Fora da fazenda, isto é, distante do espaço
dos senhores de escravo, os acontecimentos ganham um significado de natureza
sobrenatural. O negro passa a se fazer presente enquanto entidade espiritual, torturada e
assombrada, gritando continuamente sua inocência.
No momento em que o lado místico surge no poema, percebe-se que os versos
vão realizando aquele movimento de antropofagia lingüística muito comum na
estilística do Boop, onde as características das imagens poéticas são incorporadas aos
115
sons e ritmos. É o caso de “Bem Belém/ Não vem ninguém ninguém/ olha que vem”
que reproduz o som das badaladas dos chocalhos dos cargueiros.
A tropa que perambula agora no espaço da Serra do Balalão se assusta com a
presença imaginária e sobrenatural do seu condutor morto que, ao descer da timbaúva,
no dizer da população, continua a lançar sua negação de inocente repetindo o “não fui
eu!”. Na descida metafísica do negro da timbaúva, quando ele ‘vem do outro lado”,
isto é, do mundo misterioso dos mortos, também são encontrados elementos
onomatopaicos, em ritmo regido pelo fonema /p/, que recria nas batidas do passo a
dimensão formal e semântica do sobrenatural do poema: “pisando num passo-pilão.
Pum! Pum! Pum!”.
No final do poema, uma relação metonímica que afirma que o ocorrido na
vila reflete o que acontece em todo o Brasil, sendo o ocorrido na Serra do Balalão uma
situação específica que caracteriza todo o país. A violência e a escravidão fazem parte
da “sombra que vai crescendo” e que, assim como a batida da porteira, “ouve-se por
todo o Brasil”. O sentido dado à pancada seca representa o modo severo e duro com que
os escravos são castigados no interior das relações sociais. Como se pode perceber, no
desespero de quem será punido arbitrariamente, em Balalão, existe uma força coerciva
por parte dos senhores que leva o negro a viver sob o medo da tortura. É a sensação de
que em qualquer momento o negro escravizado possa ser espancado ou morto que faz
com que a opressão ocorra tanto no campo físico quando na consciência. No entanto,
mesmo com a morte cruel, injusta, o negro, no poema, sobrevive espiritualmente, como
a mostrar que a presença do negro na história do país não pode ser sufocada pela morte,
pois sua voz ainda ecoará como um grito do passado aos que vivem no presente, como
forma de denúncia histórica.
116
O importante nestes dois poemas de Raul Bopp, neste sentido, é que a visão
antropológica e sociológica norteadora da representação do negro se de acordo com
uma perspectiva antropofágica bastante apurada da formação racial e histórica do país.
Apontar poeticamente as fraturas da sociedade brasileira, enquanto nação, motiva uma
série de imagens poéticas que são moldadas pela competência estilística do escritor
gaúcho. Além disso, se existe um diálogo dos poemas de Urucungo com os principais
trabalhos de interpretação do Brasil como Casa Grande & Senzala está na
reprodução do sistema patriarcal, na sensualidade da negra ou no olhar minucioso sobre
as relações individuais entre escravos e senhores. Fora tais aspectos, existe um salto
antropofágico e qualitativo na poética boppiana que segue vertente diferente desta
tendência por buscar demonstrar explicitamente a situação dos escravos: objetos de
propriedade senhoral, submetidos a trabalhos e castigos constantes. Fator que preside
toda a estrutura escravista brasileira e que nem a história oficial nem o grande ensaio de
Gilberto Freyre foram capazes de abordar.
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou compreender a representação poética do negro nos poemas
da obra Urucungo, de Raul Bopp, observando em que medida os aspectos históricos e
culturais dos afro-brasileiros se fazem presentes nestes textos.
Inicialmente, buscou-se fazer uma leitura sistemática de críticos e historiadores
como Renato Mendonça, Roger Bastide, David Brookshaw, Benedita Gouveia
Damasceno, Jean M. Carvalho França e Zilá Bernd que discutiram a representação do
negro na literatura brasileira, para, a partir desse lastro, procedermos à leitura crítica dos
poemas de Urucungo, tomando como pressuposto fundamental o viés ídeo-estético que
os norteia e não a origem étnica do autor, por considerarmos que este aspecto não é o
mais importante para se verificar a representação do negro, conforme alguns críticos
acreditaram ou acreditam.
O levantamento destes referenciais críticos possibilitou também uma
organização cronológica sucinta das obras literárias em que se fazem presentes a
representação do negro. Este percurso permitiu-nos constatar os diferentes tratamentos
dados, no plano literário, à cultura afro-brasileira e a importância que teve para ela o
movimento do modernismo brasileiro, cujas propostas, fundamentadas no “ver de olhos
livres”, defendido, anteriormente, por Oswald de Andrade, no Manifesto Pau-Brasil,
proporcionaram condições históricas para se construir, na literatura, um novo olhar
sobre a cultura afro, como se pôde comprovar na leitura de Urucungo.
Ainda com o objetivo de situar contextualmente os poemas, procurou-se destacar
a importância do grupo Antropofagia para a revisão dos valores dominantes e a maneira
de perceber os significados da pluralidade de vozes da cultura brasileira. Através da
leitura dos textos de autoria de Bopp, Vida e Morte da Antropofagia e Movimentos
118
Modernistas no Brasil, notou-se que ele teve papel fundamental tanto na organização do
grupo quanto na formulação dos ideais e de obras de natureza antropofágicas.
Seu olhar sobre a cultura brasileira, advindo das experiências de viagens e dos
debates sobre a brasilidade modernista, permitiu que elaborasse um discurso poético em
que recupera eventos históricos e traços culturais do afro-brasileiro como forma de
valorização do material nacional e como recuperação de passagens que marcaram a
formação histórica do país.
A leitura da fortuna crítica de Bopp levou-nos a verificar que, durante muito
tempo, Urucungo não obteve da crítica o reconhecimento devido, uma vez que esta
concentrou suas análises em Cobra Norato como sendo a única obra de valor do poeta,
com exceção de alguns trabalhos que se destacam por adotar um enfoque significativo
para a fundamentação da análise-interpretação da obra em estudo. É o caso dos ensaios
de Augusto Massi, Elisalva Madruga e Zilá Bernd.
As análises dos poemas de Urucungo comprovam o vínculo do poeta ao projeto
antropofágico de redescobrimento das expressões culturais brasileiras. Isso, a partir do
levantamento dos elementos lexicais, fônicos, rítmicos utilizados por Bopp, para
ressaltar o campo simbólico-cultural de manifestações negras como o tambor, os
festejos, as danças, os cantos dos negros.
A leitura crítica do poema intitulado “Urucungo” se prestou como exemplo
irrefutável do intuito boppiano de criar imagens poéticas que marquem a vivência
cultural dos negros. Nele, identificaram-se inúmeros aspectos relacionados com a época
da escravidão e a memória ancestral dos negros, importantes para a compreensão da
formação sócio-cultural do Brasil. O poema reflete grande parte da temática tratada na
obra, justificando a existência de um título em comum.
119
Além de utilizar a representação da cultura do negro através da musicalidade,
Bopp reforçou as ligações entre Brasil e África com poemas em que os negros relatam
casos de natureza fantástica. Neste sentido, a abordagem destes poemas apontou
também para uma relação híbrida, defendida pela poesia modernista / vanguardista /
antropofágica que concilia tradição e modernidade, conforme o demonstram os traços,
neles presentes, ligados aos contos e cantos da tradição oral afro-brasileira. Assim, o
texto poético de Bopp é marcado pela linguagem do seu tempo, inspirado nas
proposições vanguardistas e nas linguagens tradicionais, recriadas pelas linguagens
históricas que busca representar.
Na análise dos poemas “Mãe-preta” e “Serra do Balalão”, foram observados, de
acordo com o projeto antropofágico de redescoberta do país, traços de reconstrução
histórica que apontam para a denúncia da opressão exercida sobre o negro, contribuindo
assim para a formação de uma consciência crítica a respeito das relações étnico-sociais
brasileiras. A visão antropológica acerca dessas relações que marcaram a estrutura de
poder no Brasil escravista é destacada nos poemas através da sutileza das imagens e dos
elementos semânticos, fônicos, a partir dos quais são registradas as violências arbitrárias
contra os negros escravizados.
Concluímos este trabalho, afirmando que, conforme a análise feita, os poemas
reunidos em Urucungo, pela maneira como são elaborados, não ficam, portanto, aquém,
em literariedade àqueles presentes em Cobra Norato. Como estes, se encontram
também profundamente vinculados aos princípios antropofágicos de desrecalque das
matrizes culturais do Brasil, no caso em foco, da matriz afro, merecendo, pois,
importante lugar no cenário literário brasileiro, por colocar em pauta, com maestria
poética, uma das faces da nossa tradição cultural.
120
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