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RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA
PROGRAMA DE PÓS
RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS
SANTOS GUERREIROS:
RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS
-
SANTOS GUERREIROS:
RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA
VIVIDA NAS JORNADAS DAS FOLIAS DE REIS DO
SUL DO ESPÍRITO SANTO
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
SANTOS GUERREIROS:
VIVIDA NAS JORNADAS DAS FOLIAS DE REIS DO
SUL DO ESPÍRITO SANTO
ORIENTADOR:
Prof. Dr.
BRASÍLIA
2010
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
SANTOS GUERREIROS:
VIVIDA NAS JORNADAS DAS FOLIAS DE REIS DO
SUL DO ESPÍRITO SANTO
DIOGO BONADIMAN GOLTARA
Prof. Dr.
JOSÉ JORGE DE CARVALHO
BRASÍLIA
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
SANTOS GUERREIROS:
VIVIDA NAS JORNADAS DAS FOLIAS DE REIS DO
DIOGO BONADIMAN GOLTARA
JOSÉ JORGE DE CARVALHO
GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
VIVIDA NAS JORNADAS DAS FOLIAS DE REIS DO
DIOGO BONADIMAN GOLTARA
JOSÉ JORGE DE CARVALHO
VIVIDA NAS JORNADAS DAS FOLIAS DE REIS DO
DIOGO BONADIMAN GOLTARA
JOSÉ JORGE DE CARVALHO
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
SANTOS GUERREIROS:
relatos de uma experiência vivida nas jornadas das folias de reis do sul do Espírito
Santo
DIOGO BONADIMAN GOLTARA
Dissertação apresentada ao
Departamento de Antropologia da
Universidade de Brasília, no dia 06 de
março de 2010, como um dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em
Antropologia.
Banca Examinadora:
Prof. Dr. José Jorge de Carvalho – DAN/UnB (presidente)
Profa. Dra. Juliana Braz Dias – DAN/ UnB
Prof. Dr. Edmundo Pereira – DAN/ UFRN
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ii
Em memória de João Francino
Inácio, mestre da Folia de Reis
Estrela do Mar.
iii
Resumo
As folias de reis são conjuntos musicais presentes em grande parte do território brasileiro
originárias dos autos dramáticos natalinos de tradição ibérica e apropriados por
comunidades rurais brasileiras no contexto da colonização européia. Com o objetivo de
anunciar o nascimento do Menino Jesus, estes grupos marcham por caminhos que refazem
o trajeto dos Três Reis Magos e de São Sebastião durante as jornadas, período que inicia
em 24 de dezembro e termina em 20 de janeiro. Este trabalho é fruto de uma experiência
vivida nas jornadas das folias de reis do sul do Espírito Santo, particularmente da Folia de
Reis Estrela do Mar, sediada no bairro Zumbi, em Cachoeiro de Itapemirim. Seu objetivo é
pôr em evidência o contexto dos circuitos de prestações estabelecidas entre os foliões, as
donas ou os donos das casas e os santos. Parte deste trabalho visa apontar para uma rede
de significados locais na qual o ritual constrói os seus sentidos e agrega novos elementos,
sendo parte desta tessitura significativa extraída do imaginário vinculado aos rituais de
possessão conhecidos como umbanda ou macumba. A partir de etnografia e de entrevistas
com mestres foliões, exploro a construção musical conhecida como toada de folia, fonte do
encantamento das casas para as quais as folias levam a bandeira sagrada, a partir das
relações entre os músicos, e entre eles e os santos. É dado enfoque especial ao palhaço,
personagem cômico que desloca as molduras do ritual. Por fim, faço um breve histórico do
processo que tem transformado os Encontros de Bandeiras em Torneios e posteriormente
em apresentações públicas desvinculadas das jornadas.
Palavras Chave: Folias de Reis; rituais; religiosidade popular. Espírito Santo.
iv
Abstract
The folias de reis are musical assemblages present in most of the Brazilian territory,
derived from Christmas dramatic autos of the European tradition and appropriated by
Brazilian rural communities in the context of colonization. With the objective of announce
the birth of Jesus, these groups march along paths that retrace the Magi and Saint
Sebastian’s route among the journeys, period comprehend between December 24 and
January 20. This work is the result of an experience in the journey of the Folia de Reis
Estrela do Mar, grounded in Zumbi, a district situated in the town of Cachoeiro de
Itapemirim. The objective is to highlight the context of the exchange’s circuits established
between the foliões, the homeowners and the saints. Part of this thesis aims to point to a
network of local meanings in which the ritual builds its own senses and assembles new
elements, consedering that part of this significances web was extracted from the imaginary
entailed to the rituals of possession known as umbanda or macumba. Based in an
ethnographic enterprise and interviews with foliões masters, was assayed the musical
construction called toada de folia, source of enchanting of the houses to which the folias
carry the sacred flag, from the relationship between the musicians themselves and amid
them and the saints. A special focus was given on the palhaço, a comic personage that
displace the ritual frames. Finally, there is a brief history of the process that has
transformed the Banner’s Encounters into institutionalized competitions and, after that, in
public presentations unlinked to the journeys.
Key words: Folias de Reis; rituals; popular religiosity. Espírito Santo.
v
Agradecimentos
Nada disso seria possível não fosse a colaboração e empenho de Rogério, Marília, Gilmar,
Jorge, Tilino, Badé, Jair, Cabelinho, Manoel, Wagner, Vítor, Guinho, Cosme, Stéferson,
Jorge, Wallace, Richardson, Jadson, Ronaldo, Elias, foliões da Folia de Reis Estrela do Mar e
de outros amigos foliões que me acolheram com muito esmero e dedicação no Zumbi. A
estas pessoas guardo profunda gratidão. São também autores deste trabalho, embora
totalmente isentos de todas as falhas e incompreensões.
A Ademar e Dulcino Gasparelo, sábios foliões que me receberam com muita dedicação em
algumas prazerosas tardes, com muita prosa boa e saborosa comida de fogão à lenha feita
por Celina.
Aos meus queridos pais Rosângela Bonadiman Goltara e Heliomar José Goltara, fonte de
todo amor.
A Carolina Souza Pedreira, pelo companheirismo, carinho, incentivo, ajuda constante e
por dividir comigo tanto os momentos mais belos quanto os mais difíceis desta e de muitas
outras jornadas.
Ao prof. José Jorge de Carvalho, por suas aulas e conversas inspiradoras, que foram
decisivas para esta dissertação.
Aos meus colegas de turma de mestrado, que fizeram este pescurso se tornar muito mais
agradável: Walison Pascoal, Pedro Macdowell, Michel Alcoforado, Paula Balduino, Antônio
Guerreiro, Júlia Otero, Gleides Formiga, Larissa Brito, Fabíola Gomes, Erich Marques,
Rogério Campos e Pedro Pires.
Ao Prof. Edmundo Pereira, cujos comentários no GT “Música, Identidade e Fluxos
Culturais” (II REA/ IX ABANNE) foram importantíssimos.
Ao Prof. Pierre Sanchis, que gentilmente me recebeu em sua casa e discutiu comigo alguns
dos temas aqui desenvolvidos.
Às professoras Mariza Peirano, Marcela Coelho e Celeste Cicarone.
A Paula Moura, Leno Veras e Priscilla Thompson.
Durante os dois anos de duração do Mestrado, contei com bolsa de estudos do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
vi
Sumário
Introdução – 1
Capítulo I
Compromissso e Devoção – 11
Os santos, os mestres e as jornadas – 12
Sobre as habilidades do folião – 19
A magia das toadas – 25
Música e sociabilidade nas folias de reis – 36
Capítulo II
Palhaço: artesão da bagunça e guardião da bandeira – 53
Capítulo III
Transformações nos Encontros de Bandeiras – 81
Considerações Finais – 98
Imagens da Folia de Reis Estrela do Mar – 103
Annexo 1
Divisão político administrativa do Espírito Santo – 112
Anexo 2
Cachoeiro de Itapemirim – perímetro urbano - 113
Referências Bobliográficas - 114
1
Introdução
2
As folias de reis são conjuntos musicais presentes em grande parte do território brasileiro.
Com o objetivo de anunciar o nascimento do Menino Jesus, estes grupos marcham por
caminhos que refazem o trajeto dos Três Reis Magos e de São Sebastião durante as
jornadas, período que inicia em 24 de dezembro e termina em 20 de janeiro, dia do Mártir
São Sebastião, passando pelo dia de Reis, no dia 06 de janeiro. O termo jornada é utilizado
para descrever as peregrinações dos santos e também a das folias na busca do Menino
Jesus com o objetivo de adorá-lo, de defendê-lo do perverso Rei Herodes e de anunciar o
seu nascimento pelo mundo. Esta semelhança entre os santos e os foliões é agenciada por
uma série de prestações estabelecidas durante os rituais e é apreciada pela categoria força.
Assim, um mestre mais forte é mais habilitado do que outros para fazer com que os santos
sejam mobilizados a participarem do ritual e, por conseguinte, aquele que tem o poder de
abençoar uma casa: por meio da orquestração gerida pelo mestre folião, os devotos
articulam os ambientes das casas com o macrocosmo dos santos cujas personalidades são
inseridas em relações de troca iniciadas em inúmeras promessas, sempre encapsuladas no
símbolo dominante do ritual, a Bandeira Sagrada.
Este trabalho é fruto de uma experiência vivida nas jornadas das folias de reis do sul do
Espírito Santo, particularmente da Folia de Reis Estrela do Mar, sediada no bairro Zumbi,
que é localizado sudoeste do Rio Itapemirim
1
na cidade de Cachoeiro de Itapemirim. Meu
principal objetivo é tentar descrever esta experiência e traçar o contexto do circuito de
prestações estabelecidas entre os foliões, as donas ou os donos das casas e os santos. Uma
das principais características das folias de reis é a agregação de modos distintos de
espiritualidade, sem, contudo, ir a lugares onde ela não é bem recebida. Assim, parte deste
trabalho visa apontar para uma rede de significados locais na qual o ritual constrói os seus
sentidos e agrega novos elementos. Sabe-se que o catolicismo popular pratica um tipo de
plasticidade ritual e cosmológica muito distintas da rigidez institucional do catolicismo
oficial resultando na constante ressignificação dos símbolos e dos estilos de espiritualidade
de diversos tipos de religiosidades. Na região pesquisada, um forte vínculo das folias
com a umbanda também conhecida como macumba e faz parte deste trabalho tentar
evocar as semelhanças entre elas e o modo como alguns símbolos das folias emanam do
estilo de espiritualidade destes cultos de possessão.
1
Como pode ser visualizado no mapa do Anexo II.
3
As abordagens descritivas das folias de reis no Espírito Santo foram, até pouco tempo
atrás, obra de estudos de folcloristas, entre os quais se destaca o nome de Guilherme
Santos Neves, que escreveu artigos para jornais, produziu fotografias e pelo menos um
vídeo (em 1955, na quarta edição do Torneio de Folias de Reis de Muqui), sendo estes
materiais divulgados nos congressos nacionais de folclore e, posteriormente, na cidade de
Muqui. Em escala nacional, os estudos sobre as folias de reis foram consideravelmente
realizados por folcloristas, como testemunha o número de publicações tais como os títulos
“Folias de Reis”, de Zaïde Maciel de Castro e Aracy do Prado Couto, que, afora a
generalidade do título, é resultado de uma pesquisa com as folias do Rio de Janeiro,
publicado em 1961, e “As Folias de Reis do Sul de Minas”, de Guilherme Porto, publicado
em 1977. Essas pesquisas, fundamentadas em descrições minuciosas, partem de uma idéia
histórico-difusionista (Bitter, 2008; Chaves, 2009) segundo a qual a autenticidade das folias
de reis estaria sempre nas folias do passado, sobretudo em suas reminiscências ibéricas, e
que, portanto, seria preciso resgatar as suas raízes.
Uma quebra deste paradigma das abordagens sobre as folias de reis foi realizada por Carlos
Rodriges Brandão, cujas pesquisas (1981; 1985, em especial) apreendem as folias a partir do
seu contexto sócio-simbólico e, baseando-se nos estudos clássicos de Marcel Mauss sobre
os circuitos de dádivas (2003 [1925]), enfatizam as relações de troca entre homens, santos e
deuses. A importância que este autor representa nos estudos subseqüentes deve-se,
principalmente, pela consideração da agência dos santos no sistema de prestações
simbólicas e não apenas dos homens. Brandão também pontua a proximidade entre
homens e santos que o ritual enseja, dado que estes foram seres humanos e andaram pelo
mundo assim como os seus devotos. Esta abordagem inspirou outros trabalhos
antropológicos sobre as folias de reis, dos quais gostaria de destacar três, realizados nos
anos 2000.
O primeiro deles é a pesquisa etnomusicológica entitulada “Voices of the Magi”, de Suzel
Ana Reily, realizada em São Paulo e no sul de Minas Gerais e publicada em 2003.
Preocupada com a definição de uma “comunidade moral” constituída no ritual, Reily
considera que as jornadas das folias articulam entre os foliões um senso comum das
noções sobre o mundo enquanto fala também das aspirações dos devotos. Esta autora foca
4
nas relações sociais construídas por meio da música, que esta domina as atividades dos
rituais, e afirma que o “encantamento” produzido nos lugares pela folia depende da
“orquestração do ritual”, que rege a memória coletiva nos versos entoados pelos foliões.
Outra pesquisa que merece destaque é a tese de Daniel Bitter, “A bandeira e a máscara”,
defendida em 2008. Bittter aborda os sistemas de troca de natureza ritual adotando como
ponto de vista os objetos e suas redes de circulação e como eles, sendo mediadores,
aproximam os domínios social e cósmico. Este enfoque na agência dos objetos rituais
revela o modo como as categorias são materializadas, transmitidas e mediadas
principalmente pela bandeira sagrada e pela máscara do palhaço e como seus significados
não são intrínsecos aos próprios, mas dependentes do seu contexto atual e da história de
sua circulação entre pessoas e grupos sociais.
Por fim, o trabalho mais recente é a tese de Wagner Chaves, defendida em 2009, intitulada
“A bandeira é o santo e o santo não é a bandeira”. Este autor foca seu trabalho nas “práticas
de presentificação” dos santos nas folias de reis de São José, na região norte de Minas
Gerais. Discutindo a relação de continuidade entre fala e canto, Chaves revela a
importância da música das toadas em “animar” as lapinhas também conhecidas como
presépios assim como da eficácia da bandeira em “presentificar” os santos no terreno da
experiência. Nesse sentido, o autor analisa o modo como os santos mudam de posição no
discurso musical e textual das toadas e como eles atuam nos rituais.
***
Conheci o mestre João Inácio e a Folia de Reis Estrela do Mar em um domingo de
dezembro, o último antes da primeira saída da bandeira daquele ano. Isto aconteceu em
um ensaio geral na casa de Rogério e Marília, que mais de vinte anos é também a
morada da Estrela do Mar. O mestre Inácio nasceu no interior de Minas Gerais e cedo se
mudou com sua família para a cidade de Muqui, onde aprendeu a cantar folia com seu pai,
com seu tio e com outros mestres da região. Logo após casar-se com dona Almerinda,
nascida em uma fazenda no interior de Muqui, onde a sua família servia a de um rico
fazendeiro, mudou-se com ela para o Zumbi e não demorou a se tornar folião de frente de
uma das folias mais respeitadas do lugar. João Inácio aparece em uma foto datada de 06 de
5
janeiro de 1968 empunhando uma viola – sinal de sua posição de frentena folia do mestre
Salatiel, mais conhecido como Salati, um dos mestres mais respeitados e que ainda hoje é
lembrado com muito vigor pelos foliões não somente da cidade de Cachoeiro de
Itapemirim, mas de toda a região. Tempos depois ele cria a sua própria folia de reis, a
Estrela do Mar.
Ao se mudar do Zumbi para o bairro Monte Cristo, a bandeira ficou “sambando de casa em
casa” – já que a família de Seu João não mais aceitou que sua casa fosse a sede da folia – até
que Dona Maria, mãe de Marília, aceitasse abrigar definitivamente a Estrela do Mar em seu
centro de macumba. Este se localizava no cômodo da casa que hoje é a cozinha de Rogério
e de sua filha, sendo que, se após a morte de sua mãe, Marília aceitou a responsabilidade
de guardar a bandeira, o mesmo não aconteceu com o centro. Contudo, os foliões não
deixaram de acreditar na força deste lugar carregado, de onde ainda hoje a bandeira da
Estrela do Mar sai para a sua jornada sagrada. O mestre Inácio manteve-se à frente desta
folia até a data do seu falecimento, no dia 01 de dezembro de 2009, menos de um mês
antes do início da jornada de 2009/2010, quando, Rogério, o contramestre, marido de
Marília e filho da dona do Centro do Galo, um terreiro de umbanda localizado na entrada
do Zumbi, assumiu a chefia da Estrela do Mar.
O Zumbi é um bairro periférico e o mais populoso de Cachoeiro de Itapemirim, habitado
majoritariamente por afro-descendentes. A situação de marginalidade e de difícil acesso à
cidadania chega ao desrespeito à dignidade das pessoas, fazendo valer, ainda nos dias de
hoje, um tipo de relação baseada na intolerância e no preconceito racial. A associação
direta da negritude à violência, uma herança colonial, tem um peso enorme nas
representações da população do sul espírito-santense em relação ao Zumbi, peso que pode
ser sentido nas declarações dos moradores sobre as ações policiais no bairro. De acordo
com alguns jovens foliões, no Zumbi o “normal é tomar dura
2
”. Um dos acompanhantes
mais assíduos da Folia de Reis Estrela do Mar que mora ao lado de um ponto de venda de
drogas na parte mais alta do morro, disse-me o seguinte: “moramos no lugar errado [ou
seja, próximo a “bocas de fumo”] por falta de condições e, por isso, temos que passar por
bandido. Apanha, é humilhado e tem que ficar quietinho, senão apanha mais”. Quando
2
“tomar dura”: Ser confundido com traficante de drogas e humilhado por policiais.
6
levamos em consideração o processo histórico, nota-se que esta associação dos afro-
descendentes à violência parece fazer parte de uma situação implantada pelo sistema
colonial, no qual o trabalho forçado para enriquecer as elites cafeeiras era percebido como
natural e as revoltas dos escravos em busca da liberdade e de resistência, como uma
anomalia do sistema e da “boa” ordem.
Cachoeiro de Itapemirim é a maior cidade da região sul do Espírito Santo com uma
população de 201 mil habitantes
3
. Com o início do povoamento relativamente recente
isto sem levar em consideração as populações indígenas que habitavam a região e que
foram massacradas pela expansão dos fazendeiros os primeiros focos de colonização na
região se deram a partir da metade do culo XIX, liderados pela elite cafeeira que fugia
das terras deterioradas pelo uso intenso e irracional principalmente no sul de Minas
Gerais, no norte fluminense e no Vale do Paraíba. Com os fazendeiros e suas famílias, que
formariam então a elite local, chegaram também os seus cativos, em pouco tempo
somados pelo fluxo interno do tráfico de escravos, de modo que esta população foi aos
poucos se concentrando na região do Vale do Itapemirim. Isto porque, ao passo que esta
região se desenvolvia economicamente, as empresas escravistas de outras regiões do
estado estavam se estagnando.
Segundo algumas abordagens historiográficas da colonização da região (por exemplo,
Saletto, 1996 e Almada, 1984), com o início da pressão internacional para o fim da
escravidão no Brasil, que coincide com o início da expansão cafeeira no Espírito Santo, a
mão-de-obra escrava concentrou-se nas grandes fazendas de café, pois seu encarecimento
praticamente desfez as possibilidades dos empreendedores menores e menos rentáveis da
aquisição ou manutenção da expropriação da força de trabalho dos afro-descentes. Como o
aumento da produção cafeeira se deu justo no momento em que a mão-de-obra escrava
começou a ficar escassa, o trabalho escravo foi concentrado na produção do café. No
entanto, como ainda era necessária certa diversificação econômica, a solução encontrada
foi a intensificação da jornada de trabalho. Os escravos chegaram, assim, a trabalhar
intensamente por 18 horas diárias.
3
De acordo com pesquisa do IBGE (2009).
7
Como o clímax do sistema do “plantation” no sul espírito-santense se em um
momento de desagregação da instituição da escravidão, a elite cafeeira é forçada, por
pressão do movimento abolicionista, a criar um tipo de discurso moral para justificar a
escravidão, assim como para velar a expropriação da força de trabalho e os maus-tratos aos
negros. Em seu livro “Escravismo e Transição”, (1984), Vilma Almada, a partir de uma
minuciosa análise de documentos concernentes às “concessões de alforria”, afirma que, ao
procederem com a libertação de alguns dos seus cativos,
(...) os senhores demonstravam, principalmente, precisarem continuar
contando com o trabalho escravo, ou transformá-lo em capital, muito embora
estas necessidades se apresentem, quase sempre, dissimuladas por razões
sentimentais indicadas no texto legal por expressões tais como:
‘reconhecimento pelos bons serviços prestados’, ‘relevantes serviços’, ‘amor de
criação’, estes os mais repetidos chavões encontrados nas cartas de alforria
(Almada, 1984: 149).
Assim, a grande maioria das “Cartas de Liberdade” criava o lugar incerto da “liberdade sob
condição”, situação na qual o “ex-escravo” era considerado livre perante a lei, mas “o pleno
gozo do exercício da liberdade é retardado até caírem todas as cláusulas restritivas
enumeradas nas cartas de alforria” (Almada, 1984: 153). Junto a essa dissimulação do poder
dos senhores (que ainda era irrestrito) sobre seus escravos, é importante, a propósito do
presente trabalho, pontuar que os afro-descendentes foram associados à desordem e à
violência exatamente por reagirem à subjugação e à privação de sua liberdade. Ao
naturalizarem a ilusão de superioridade racial, a captura e a expropriação do trabalho e da
vida desta população, as elites rurais disseminaram a idéia de que a resistência dos
escravos à subordinação total aos seus senhores representava um perigo à sociedade. O
crescimento das fugas principalmente a partir de 1875, quando as jornadas de trabalho
tornam-se mais intensas e a formação de quilombos amedrontava a elite cafeeira, que,
paradoxalmente, dependia da instituição da escravidão para manter as suas fortunas. Nota-
se desde então contínuos esforços militares do governo da província para impor aos
escravos uma submissão “pacífica” às leis coloniais.
Este estigma da “insubordinação” toma novo fôlego no final no século XIX com o
crescimento do incentivo à imigração européia, com objetivos tanto de povoamento das
terras devolutas (formando as colônias européias), quanto de suprimento da força de
8
trabalho nas grandes fazendas de café. Ambos motivos carregavam uma justificação com
bases eugênicas frente à população local, principalmente no que concerne aos ex-escravos,
sendo estes freqüentemente acusados de “vadiagem”, “falta de ambição”, “desinteresse pelo
trabalho”, “indolência”, “imprevidência”, “preguiça” e “insubordinação” (Almada, 1984;
Saletto, 1996). É neste clima que se desenvolve um processo de exclusão social dos afro-
descendentes em uma sociedade amplamente racista.
Desde o início do processo de expansão cafeeira do Vale do Itapemirim, muitos Quilombos
se formaram na região. Todavia, mesmo após o esfacelamento das grandes fazendas de
café, os territórios quilombolas foram (e continuam sendo) alvo de contínuas disputas
territoriais de empresas agropecuárias. Muitos, então, não viam outra possibilidade a não
ser deslocarem-se para os centros urbanos. O bairro Zumbi, em Cachoeiro de Itapemirim,
foi o principal ponto de aglomeração desta população e, de uma “roça dentro da cidade”,
como contam antigos moradores, rapidamente passou a integrar a região com a maior
densidade demográfica do município. Os moradores contam que até pouco tempo, o
Zumbi era praticamente uma localidade rural dentro da cidade de Cachoeiro, que as
famílias que chegavam no lugar “que era tudo pasto” traziam consigo suas práticas de
cultivo do solo e de animais, assim como de suas formas de sociabilidade, para manterem-
se ali. As narrativas sobre esta mudança sempre contém algum nível de continuidade com
os lugares de origem, sendo por vezes simbolizado por algum gesto como o de Dona
Maria, mãe de Marília, que ao se mudar para o Zumbi trouxe consigo um tijolo de sua
antiga casa para servir de pedra fundamental de sua nova moradia.
Muito do que se segue é também fruto de algumas agradáveis tardes em que gentilmente
fui recebido por Ademar e Dulcino Gasparello na localidade de Santa Rita, interior do
município de Muqui. O lugar em que habita a família Gasparelo muito provavelmente foi
de propriedade da família Monteiro Lobato, da qual a casa-grande, que terminou de ser
construída em 1860, localiza-se a curta distância. Ademar Gasparelo, o patriarca da família,
com mais de noventa anos de idade, “filho de um italiano com uma preta”, conta que se
mudou do interior do município de Mimoso do Sul quando seu pai comprou aquelas terras
em Santa Rita. Mais tarde, ele e seu irmão criaram a Folia de Reis Três Reis do Oriente,
sendo este o mestre e Ademar o contramestre, “porque ele não tem voz boa pra mestre”,
contou-me Dulcino. Quando seu irmão faleceu, Ademar cogitou acabar com a folia, pois
9
seria impossível mantê-la sem um mestre. Dulcino, que então era um dos palhaços,
decidiu assumir a chefia da folia e, ajudado pela imensa sabedoria do seu pai, que
continuou como contramestre, esta é hoje uma das folias de reis mais respeitadas da
região.
***
No primeiro capítulo, busco reconstruir sinteticamente a trajetória mitológica dos Três
Reis Magos e de São Sebastião segundo alguns mestres foliões, especialmente baseado nos
relatos de João Inácio, Ademar e Dulcino Gasparelo. Aponto para a identificação entre os
contextos do mito e da experiência no modo de contar a jornada, seja nas conversas que
quando versam sobre os santos são quase sempre ritualizadas ou nas toadas, que
envolvem uma linguagem especializada do canto. Em seguida, tento mostrar como a força
das toadas, ou seja, o poder de abençoar os lugares que pontuam as jornadas das folias,
deriva de sua aproximação à espiritualidade dos cultos de possessão de origem africana
presentes em grande medida na região pesquisada, atuando na aproximação de contextos a
princípio contrastantes. Ao assim proceder, antes de buscar uma origem histórica do tipo
de espiritualidade, procuro integrar a folia em um contexto religioso que engloba o
catolicismo popular, mas o extravasa. Por fim, descrevo como a organização sonora e a
organização dos corpos dos foliões no ritual, habilidades fundamentais para a perpetuação
do circuito de trocas, são imprescindíveis para gerar um canal pelo qual os santos se
comunicam com os devotos. A partir do método de “enfoque auditivo” proposto por
Glaura Lucas (2003), apresento a transcrição musical de duas toadas com ênfase na
orquestração de vozes e instrumentos com o objetivo de neutralizar a primazia da melodia
na musicologia e na musicalidade ocidental. Por isto a importância de apresentar, embora
de modo muito reduzido no que se refere a multiplicidade sonora das folias de reis,
também o modo como a linguagem dos instrumentos constroem o ambiente sonoro dos
rituais, sem os quais as toadas não existiriam.
O segundo capítulo é dedicado ao palhaço das folias de reis, personagem marcante e de
grande importância nos rituais. Embora aparentemente possa ser percebido como
oposição aos foliões, seu modo de atuação profundamente ambíguo é fundamental para a
fusão entre experiência e mitologia. O palhaço encena a desordem e concentra a violência
10
que os foliões procuram expulsar. Ele contrasta com a humanização buscada pela
pacificação corporal e relativiza a noção de devoção, fazendo com que esta permaneça em
constante construção. Procuro mostrar as semelhanças evocadas em campo entre o
palhaço e o deus Exu e a sua relação com as entidades da umbanda.
No terceiro capítulo, faço um pequeno histórico da transformação dos Encontros de
Bandeiras, que passam por um processo de contínua pacificação das disputas que julgo
estar diretamente relacionada à associação arbitrária herdada do colonialismo entre as
populações afro-descendentes e a violência, e que passa também pelo esforço das políticas
de “resgate” em dissociar as folias de reis de sua aproximação às religiões de origem
africana.
Esta pesquisa baseou-se em um envolvimento com a Folia de Reis Estrela do Mar durante
quatro jornadas entre 2006 e 2010. No início, como acompanhante da folia, fiz registros
sonoros, e visuais dos rituais, assim como várias entrevistas. Por fim, na última jornada, fui
convidado pelos foliões a integrar a folia como músico, o que ampliou consideravelmente
minhas suposições acerca do ritual e da organização sonora, corporal e hierárquica da
folia.
***
Ao longo do texto, utilizo o termo folia com f minúsculo quando faço referência às folias
de reis de um modo geral e com F maiúsculo para me referir a uma folia em particular,
como Folia de Reis Estrela do Mar. As palavras grifadas em itálico referem-se aos termos
“nativos” e as falas dos meus interlocutores são indicadas por aspas.
Com exceção da imagem XV, que foi capturada por Carolina Pedreira, todas as fotografias
são de minha autoria.
11
I
Compromisso e Devoção
Um menino nasceu – e o mundo tornou a começar.
(J. Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas)
12
A bandeira, ela chega na sua casa, ela bate na porta, a bandeira não bate, a gente
que bate, a gente pede: “acorda, acorda meu senhor, desse seu colchão dourado/
venha ver na sua porta, quem que ta nela encostado”. Quer dizer, o dono da casa
levanta. Vai levantar primeiro a esposa. A gente fala outra palavra: “Senhora dona
da casa, alevanta seus componentes”, ela organiza a ceia. A gente fala aquela
palavra: “filho da Virgem Maria nove mêis ficou escondido/ vinte e quatro de
dezembro o menino foi nascido”. É nesse caminho que a gente anda. Aí vem e abre
a porta, ou acende a luz: “vamos dar graças a Deus que eu vi a luz acender”.
ela abre a porta e a gente entra falando da casa, que a folia vai longe... (Mestre
João Inácio. Entrevista realizada em 12 de fevereiro de 2009)
Os santos, os mestres e as jornadas
Existem duas formas proeminentes de se contar a profecia. A principal delas é pelo canto
das toadas durante a jornada de folia de reis, período que, na região sul do Espírito Santo,
inicia no dia 24 de dezembro e termina em 20 de janeiro, dia de São Sebastião, passando
por um clímax no dia de Reis, 06 de janeiro. É também no decorrer deste tempo sagrado,
em especial durante as saídas das bandeiras, que a outra forma se manifesta com maior
vigor, quando os mestres e os foliões mais experientes introduzem o mito para interpretar
eventos que surgem no caminho da bandeira. Se durante as toadas a profecia é evocada de
modo a compor o contexto do ritual vivido pelos foliões que a entoam, nas demais
situações da saída, eventos vividos pelos santos são trazidos analogicamente para a
trajetória dos devotos. Neste período, de ano a ano, a jornada mítica dos Três Reis Magos
se trilha novamente, reacendendo o ideal da busca por um novo mundo. De modo
complementar, quando o foco da evocação é a jornada dos Reis Magos, como quando os
mestres são chamados pelo pesquisador a falar para um gravador e para quem o está
segurando, o ritual e a vida de quem conta são transportados metaforicamente para o
mito.
As entrevistas que fiz com o mestre Dulcino Gasparelo e seu pai Ademar Gasparelo, assim
como com o mestre João Inácio, foram todas realizadas durante ou nas proximidades do
período da jornada, quando os contornos que delimitam o mundo dos santos e o mundo
dos homens revelam-se mais difusos. Os eventos narrados por estes mestres, embora
fundamentados em uma mesma temática, apresentam as particularidades da narração de
uma autobiografia. Os fundamentos da escritura (as resumidas passagens da Bíblia que
abordam a jornada dos Reis Magos) são então capturados e transformados em contexto
13
daqueles que as evocam. Por este mesmo motivo, a descrição que se segue da jornada não
pretende ser uma compilação exata do mito das Folias de Reis e tampouco busca uma
estrutura apesar das variações; ao invés disso, busca tentar reconstruir minimamente o
contexto a partir do qual uma complexa rede de relações entre homens e santos é
engendrada nos rituais das folias de reis
4
.
Conheci Dulcino e Ademar Gasparelo em uma manhã do dia 24 de dezembro de 2006, em
meio à preparação material e espiritual (se é que existe uma diferença clara aqui) para a
primeira saída da Folia de Reis Três Reis do Oriente na jornada daquele ano. Agricultores,
pai e filho moram em uma pequena propriedade da família no interior do município de
Muqui e trabalham em suas roças e criações de animais e também para fora: Seu Ademar
vende seus produtos no centro de Muqui. Seu Dulcino vende sua jornada de trabalho para
outros proprietários de terra. Naquela manhã, ao me apresentar, dizer o propósito da
minha visita e pedir para que eles me explicassem a profecia, Seu Dulcino, quase de
imediato, entrou em sua casa e voltou para a varanda com duas violas, a bandeira e uma
máscara. Pronto. Agora eles poderiam começar a falar sobre os Reis Magos.
Tudo começa com um sonho. Cada um dos Três Magos
5
separadamente recebe um aviso
de que um rei tinha nascido para as bandas de Belém. Eles iniciam, a partir de então,
uma viagem à procura do Menino Jesus. É nesta jornada que surge a Folia de Reis, para
procurar, adorar, anunciar e defender o novo rei do mundo.
O mito central das folias de reis parte de um ciclo de dádivas. Primeiro, é Deus quem o
inicia – daí, talvez, a incapacidade humana de fechá-lo – ao mandar seu filho para “salvar o
mundo”. Os Três Reis Magos representam a devoção de toda a humanidade diante do
Menino Nascido. Ao serem avisados por um sonho de que o verdadeiro rei do mundo estava
prestes a nascer, eles se deslocam de seus reinados e empreendem uma jornada em busca
deste rei com o intuito de adorá-lo, ato que é simbolizado pela entrega dos presentes:
ouro, “como sinal de realeza”; incenso, “indicando a divindade”; e mirra, “a erva mais
4
Estou ciente de que um estudo comparativo das versões dos mestres da região Sul do Espírito Santo é
muito importante. Entretanto, o tempo reduzido desta pesquisa obriga-me a deixar este
empreendimento para outra ocasião.
5
Na versão de Ademar e Dulcino Gasparelo, os Três Reis Magos só se tornam reis depois da adoração ao
Menino Jesus. Antes disso eles eram grandes sábios astrônomos, explicando assim a relação deles com a
Estrela Guia.
14
amarga do oriente”, pois, não obstante a grandiosidade de sua origem, ele veio ao mundo
para passar por toda a amargura de um homem comum
6
. Em sinal de gratidão, o menino
presenteia os Magos com instrumentos musicais e estes recrutam os Doze Apóstolos para
formar a primeira Folia de Reis com o intuito de anunciar o nascimento do Menino, assim
como de protegê-lo das atrocidades do Rei Herodes. Ao se deparar com a pergunta: “como
a folia de reis começou?”, o mestre Dulcino explica:
A folia de Reis começou no dia em que os Magos saíram para procurar o Menino
Jesus, acompanharam o Menino Jesus, resolveram fazer uma festa. E fizeram
uma ceia. E nessa ceia eles botaram os Doze Apóstolos. E os Doze Apóstolos foi
onde que fundou a Folia de Reis. E os Doze Apóstolos: “então agora nós temos que
cantar louvor ao menino Jesus”. Aí os Doze Apóstolos fizeram uma banda de
música, foi aonde saiu a Folia de Reis. É a mesma coisa que juntar eu, você, papai
e minha mulher, aqui, toma um vinho e tal, e começar a cantar parabéns, bater
palma... Daí a pouquinho tem uma banda de música formada.
Em todas as versões, a presença dos Doze Apóstolos na formação da Folia de Reis es
ligada a uma festa em homenagem ao nascimento e em seguida, à anunciação ao mundo
deste acontecimento. Além disso, na versão de João Inácio, eles surgem também para
combater os soldados do Reis Herodes. Assim como os mestres e contramestres precisam
dos foliões para levar a bandeira, os Três Reis contaram com os Apóstolos para empunhar
a bandeira e os instrumentos e formar a banda de música da folia. É por isso, como me
explicou o mestre Inácio, que a folia é “um negócio bravo hoje em dia”. Se para Dulcino
este encontro se antes da adoração, para o mestre da Folia de Reis Estrela do Mar, João
Inácio, ele acontece após o nascimento. Em uma entrevista realizada em 12 de fevereiro de
2009, perguntei ao mestre João: “os Três Reis tinham a bandeira quando eles chegaram no
Menino?”
Não, eles pediram. Então Jesus decretou para arrumar os Doze Apóstolos. Da
onde a palavra que eu falei que não existe mulher na folia, existe acompanhar. Por
isso na folia não tem mulher não. Na folia tem Doze Apóstolos. Portanto os Doze
apóstolos chegou, retirou Jesus com a corda no pescoço, bateu a marcha, os
Herodes falou assim, ó lá, eles vem doze, igual nós mesmo. Ele olhou a mão,
6
Esta interpretação dos presentes foi feita por Mazinho e Jorge, irmãos e experientes foliões da Folia de
Reis Estrela do Mar. Por mais que exista um consenso a respeito do significado dos presentes, como dos
demais símbolos da jornada, existe sempre controvérsias sobre o modo como o mito é narrado, sobre a
forma como a trajetória dos Reis Magos é atualizada nas narrativas.
15
quando viu ela tava subindo, olhou a mão em cima de nós assim, “aqui na terra,
um peca e outro não” você me entendeu? Um é pecador e o outro não é. Eu vou
falar mal de Izabel? Não posso falar, porque ela foi uma virgem santa. Vou falar
da virgem Maria, foi a mãe de Jesus, porque o menino Jesus foi gerado ali. José
apanhou ele e fugiu pra Nazaré. Mas ele não é pai de Jesus, não é pai de Deus não.
A gente fica quieto quando alguém fala uma bobagem. Ele é filho da Virgem
Maria. É claro que nós somos filho dela. Mas como é que ninguém fala que nós
fomos batizados por José? Ele é um grande apóstolo de Cristo. José, João, Pedro,
Paulo... A gente não fala. Não deve falar. Não é aprovado. A gente fica na da
gente. Igual eu falei pra você. Eu aprendi com dois mestres, um pouquinho. São
Sebastião: você falar profecia de São Sebastião, você atravessa de um mar pra
outro, que um barco era sangue quase puro. Você vai na Arca de Noé também é
aquela dificuldade, que a barca subiu, ele levou cada um casal, duas rolinhas, dois
rebu, duas andorinhas... Chegar na sua casa encher três copos d’água, você mexeu
comigo, eu vou puxar a Arca de Noé. Tem que contar o causo. A gente demora a
falar um pouco, porque a profecia é muito grande. Por isso que a gente chega num
lugar, a gente fala, “a profecia é muito grande/ não tem tempo de contar”.
“A gente não fala. Não deve falar. Não é aprovado”. Esta é uma referência ao modo como o
catolicismo oficial julga a sabedoria dos mestres não obstante a verdade que está sendo
dita, uma verdade que, para os mestres, diz respeito a um tipo de espiritualidade na qual a
escritura, manancial da tradição, está viva na memória para explicar a vida e o ritual. Os
conflitos de interpretação do mito são personificados em conflitos concernentes à
manipulação do ritual mediante a sabedoria do mestre. Os Doze Apóstolos são evocados
por muitos mestres, como na fala de João Inácio, para fundamentar o motivo da proibição
da presença de mulheres na folia. Mas, nas folias em que elas participam, outros eventos
tornam-se atestado para assim proceder, como na versão do mestre Dulcino: “mas mulher
adorou também o Cristo. Adoraram e ofertaram. Levaram véu e grinalda para enfeitar o
altar... todo enfeite do altar foram as mulheres que levaram”. A estreita ligação entre a
jornada sagrada dos Reis Magos e a jornada das folias que empreendem sua caminhada nos
dias atuais pode ser verificada também no modo de contar dos mestres, sempre abrindo
mão de versos das toadas para certificar a veracidade do que estão contando ou, por outro
lado, para contextualizar os próprios versos. Isto porque a profecia não está em lugar
nenhum “é muito grande, não tem tempo pra contar”, ou seja, não pode ser abarcada
totalmente por uma mesma narrativa e ao mesmo tempo está em todo lugar está nas
diversas narrativas de diferentes folias. O mito das folias de reis está inscrito em forma de
versos de toadas que são cantadas pelos mestres foliões todos os anos. E, da mesma forma
16
como a jornada nunca deixou de ser trilhada, a profecia nunca parou de ser inventada. A
seguir, a versão de Ademar Gasparelo.
Os Reis, quando eles viajaram, eles viajaram guiados por uma estrela. Mas
quando essa estrela chegou no Reino do Reis Herodes, que era um Reis ali que
mandava, a estrela apagou o sinal, porque era um rei maldoso. os Reis
chegaram no Reino do Herodes e pediram uma pousada. o Reis perguntou o
que é que eles tava fazendo. Então eles falaram que tava procurando um Menino
que ia ser o Rei do mundo e que aquela noite eles tinham recebido um sinal que ele
tinha nascido. Disse que tinha uma estrela que eles viam acompanhando, mas que
ali ela apagou. Tudo indicava que ele era nascido em Belém. Ai o Reis Herodes
falou: “bom, a cidade de Belém é aqui mesmo, e os pais dele habitam ali, São José”.
Ai os Reis dormiram, deram pousada, e no outro dia eles saíram de manhã.
Quando saíram de manhã, o Reis Herodes chamou os guarda e mandou seguir
eles. Então os guarda saíram seguindo. Ai onde é que eles chegaram no, onde é
que o estado que vinha pro Espírito Santo, que é o estado do Rio, na hora que
chegou ali a estrela mostrou sinal outra vez direitinho em Belém. eles foram
tudo certinho. Quando eles saíram de manhã, corria uma fumacinha, uma neve.
os Reis falaram, “vamos seguir essa neve que deve ser o sinal” e quando chegou
naquele lugar ali a estrela lumiou direitinho. quando eles chegaram, quando
eles olharam pra trás tava os dois soldados e prenderam eles. Mas ai, quando eles
chegaram, eles fizeram penitência e tiraram aquela roupa e aquele capacete, que é
o que a gente faz no encerramento. Mas a força divina era tanta, que dali eles não
tiveram a coragem de voltar para o mesmo reino, e eles voltaram pro lado dos
Reis. Ai Herodes ficou sem solução e ele decretou: Ele planejou um plano de
matar todas as crianças menino homem daquele estado. Mas quando ele fez o
plano, um anjo soube e avisou José e Maria que panhassem o menino e fugissem.
na mesma hora ele arriou um jumentinho e partiu mais Maria isso a gente
fala tudo em profecia. Ai, quando Herodes lançou o decreto que o decreto passou,
o Menino estava no estado do Rio, não tava mais Espírito Santo. Ai mandou
botar os guarda na divisa e todas as crianças que as mães fugiam, que era menino
homem, então eles degolavam, matavam, menino homem o escapou ninguém
de dois anos, pois tava na idade de Cristo. Mas acontece que Jesus já tava antes do
lado de lá, ele se informou. E então Jesus criou do outro lado, né. Isso a gente
canta tudo...
Ademar Gasparelo nasceu no interior do município de Mimoso do Sul, no extremo sul do
Espírito Santo, fazendo fronteira com municípios fluminenses. Mudou-se para Muqui, na
fronteira norte de Mimoso do Sul. Na fala de Ademar, os nomes de alguns municípios do
noroeste fluminense, como Bom Jesus do Itabapoama, e Natividade parecem ser o registro
de que algo relacionado à importância do nascimento do Menino Jesus aconteceu naquela
região. O trecho que se segue é seqüência da transcrição acima, embora trate-se de um
17
evento anterior. Isto parece submeter a sincronia do mito a uma lógica diferente, a qual
insere primeiro a espacialidade e uma ação de Herodes – o rei maldoso marca uma
fronteira territorial vinculada a um decreto que se apresenta também como limite entre
vida e morte – para então evocar os pastores, os nativos da região.
Então teve um carnaval fora de época na noite quando Maria tava pra ganhar o
neném, São José chegava com uma saco, parecendo um mendigo, e ela barriguda,
quem é que ia dar pousada? Então todo mundo falava que a estalagem, a casa,
tava cheia e não dava pousada pra eles. Ai ela passou mal 10, 11 horas. Ai foi
quando eles viram uma cabaninha, ai ela falou: “Ah, São José, eu não agüento
mais, está na hora de nascer a criança”. Ai ele chegou ali, espantou os gado que
tava ali, naquela quenturinha e foi aonde ela baixou e teve o Menino. Na hora que
ela ganhou, tocou a corneta, os anjos desceram, anunciaram, o galo bento cantou
e o Boi Berrou. Ai foi aonde que os pastores tava encostado e foram ver, o Menino
tava nascido. Tem um verso que eu falo assim:
Ele não nasceu em cama de ouro
Como ele merecia
Nasceu numa manjedoura
Aonde o boi bento dormia
Não nasceu em cama de outro
Nem palácio de Marfim
Nasceu numa manjedoura
Entre a terra e o capim.
A geada era tanta que até o gado tremia
O menino poderoso
A memo neve cobria
Sabe porque “a memo neve?” porque os boi soltava eles fazia bafejada, ai o bafo
dos boi esquentava o Menino. As profecia ta tudo narrada nisso aí.
Por mais que haja um consenso sobre a jornada dos Reis Magos nas histórias dos mestres
que conheci, as versões variam consideravelmente no que diz respeito à contextualização
do mito. A sabedoria do mestre, o que garante sua habilidade de ser inspirado pelos Três
Reis, está diretamente associada à performatividade com que ele fala da profecia. Pois o
modo de contar de um mestre revela sua capacidade de fazer semelhança da sua própria
jornada com a dos Reis Magos. O que emerge deste ato performativo é uma personificação
do passado que relaciona o pertencimento do mestre ao mundo dos santos e também o
18
destes ao mundo do mestre
7
. A cada vez que o mito é contado essa mimese reintroduz o
tempo mítico na história de vida de quem conta. Veremos que esta oscilação da identidade
é fundamental para a personificação da jornada dos Reis Magos. Perguntado sobre qual
dos Reis foi o primeiro a adorar o Menino, seu Ademar, que aos mais de noventa anos de
idade é lavrador, assim como seu filho Dulcino, contou o seguinte:
Tinha uma pergunta que nós fazia antigamente, que perguntava pro mestre: Qual
é que foi o Reis que adorou primeiro o Jesus nascido. Então eles falavam assim: “a,
foi o Reis Gaspar, foi Melchior, foi Baltazar”. Eu falava assim, “Respondeu nada,
porque não foi nenhum desses Reis. Quem adorou primeiro o Jesus Nascido foi os
pastores. Porque naquele tempo não existia cerca, e os pastores tomavam conta
dos gados, dos seus rebanhos, carneiro, e naquele dia eles anoiteceram ali, eles
cantaram ali tomando conta do seu rebanho, vigiando. Aí, quando eles
acordaram, o menino nasceu e eles receberam uma luz como aviso, eles se
assustaram. Aí o anjo disse:
Não se assuste pastores
Que a vós venho anunciar
Que vai ali na manjedoura
A mode o menino deus adorar.
Ai eles viram o boi beberrão, aquela mulher mais aquele homem com aquela
criancinha lá. Então foi eles que chegaram primeiro. Depois, mais tarde que veio
os Reis Magos pra adorar. tem, o primeiro que adorou, tem o segundo, tem o
terceiro que adorou e ofertou... E os pastores também ofertaram.
O que chama mais a atenção durante as falas dos mestres sobre a profecia é o modo como
esta versa principalmente sobre a vida e seu modo de pertencimento cultural. Na fala de
Seu Ademar não há como não pensar em uma identificação direta com o pastor que
primeiro adorou e que vivia em um mundo ideal sem divisões territoriais (sem cerca). No
verso do palhaço Catisco da Folia de Reis Estrela do Mar do Zumbi (p. 60), é também
muito significativo que o primeiro Rei que adorou é o “Rei Brechó, neguinho como um
breu”. Assim, o mito, sendo compartilhado por uma ampla população de devotos, tem, em
cada lugar ou mesmo em cada casa uma interpretação das relações sociais tanto quanto
7
De acordo com Michael Taussig (1993), “(...) the storyteller embodied that situation of stasis and
movement in which the far-away was brought to the here-and-now, archetypically that place where the
returned traveler finally rejoined those who had stayed at home. It was from this encounter that the
story gathered its existence and power, just as it is in the encounter that we discern the splitting of the
self, of being self and Other, as achieved by sentience taking one out of one-self to become something
else as well.” (40-41)
19
uma crônica da história dos conflitos étnicos que remontam ao violento processo de
colonização da região sul do Espírito Santo.
Apesar desta fundamentação na anunciação da chegada de Jesus ao mundo, a folia de reis
não é um movimento messiânico. Ao contrário, todo o ritual depende de atores que
tenham plena consciência, por meio da tradição, pelo menos dos símbolos mais
importantes. Na definição da jornada, os foliões utilizam o critério de casas cujos donos
tenham conhecimento da tradição, podendo, assim, atuar junto com a folia, fato
imprescindível para o acontecimento do ritual. No dia 3 de janeiro de 2009, um
mensageiro apareceu no beco em frente à casa de Marília e Rogério, onde vigiávamos a rua
à espera do mestre João Inácio para dar prosseguimento aos preparativos da saída. Dirigiu-
se a Rogério e fez o convite para levar a folia para um lugar desconhecido dos foliões. De
repente surgiu uma discussão calorosa sobre as jornadas. O mensageiro interveio, folião
experiente, dizendo que “Jesus quando veio ao mundo não escolheu casa pra levar
bandeira, não”. Marília retrucou, “eu sei disso, sou formada em Folia desde que nasci, mas
tem casa que não sabe receber (...) nós tocamos em muito puteiro que respeita mais e
sabe receber a bandeira melhor do que muita casa”. Muitas vezes surgem discussões sobre
saber levar a bandeira. Mas também é preciso saber receber para que o circuito das trocas
perpetue.
Sobre as habilidades do folião
Uma pessoa não se torna um folião apenas por saber tocar um instrumento ou por ter uma
voz boa para cantar as toadas. Para ser um folião, é preciso passar por uma iniciação na
tradição dos Reis Magos; é preciso estabelecer um contrato com os santos, com o mestre e
com os demais foliões e, sobretudo, ter muita devoção, não apenas para ter o apoio do
chefe e um bom relacionamento com os outros, mas para que a jornada da folia tenha
sucesso e volte para sua sede a salvo de todos os perigos. Dado a natureza do encontro dos
Reis Magos com o Rei Herodes, que tentou enganá-los para que pudesse matar o Menino
que punha em risco o seu reinado, as jornadas das folias de reis são cheias de mistérios e
de provações pelas quais apenas uma folia forte pode passar.
20
O mestre tem voz suprema na folia. Ele decide para que lado da cidade rumar, que atalhos
tomar, qual casa fazer a bandeira parar e quais versos entoar. A ele também é reputado a
rigidez da formação da folia: “bandeira à frente”, esta é a regra fundamental; em seguida o
mestre e os foliões de frente, aqueles que formam o coro da toada e que ficam sempre mais
próximos do dono da casa. Depois a bateria, caixas primeiro e por fim os bumbos, cujos
ataques graves marcam a pulsação e, como veremos, anunciam a chegada dos Reis Magos,
que viajam do imaginário para o encontro violento da baqueta na pele de carneiro,
passando pelos foliões e pela bandeira para então chegar ao altar da casa. O palhaço não
entra até ser convidado para a sua chula, após o descanso dos foliões e antes da toada de
saída. Todavia, durante a toada ele deve urrar e fazer suas mizuras atrás da folia. De modo
distinto do palhaço
8
, os foliões devem manter uma rigidez corporal, sempre de modo
pacífico e brando. Em hipótese alguma é a eles permitido dançar ao som da toada, a não
ser com movimentos muito discretos. Devem permanecer perfilados e atentos aos
comandos do mestre, sempre fazendo com que a folia seja percebida pelo dono da casa
mais como um organismo integrado do que como indivíduos isolados. A falha, dentro
dessa orquestração de sons e de corpos, rende uma cara feia do mestre ou do contramestre
porque ela revela o indivíduo de um modo indesejável diferente de quando um folião
sobressai por uma destreza nas artimanhas do ritual. Foi uma falha que cometi, todavia, na
primeira casa da minha primeira saída como folião, que me fez atentar para tal rigor.
02 de janeiro de 2010. Depois de ter recebido o convite de Rogério e Gilmar, cheguei à sede
da bandeira com minha calça branca para poder vestir o uniforme e integrar a Folia de Reis
Estrela do Mar naquela noite de sábado
9
. Desde minhas primeiras saídas com a bandeira
dessa folia como acompanhante, o mestre João Inácio requisitava-me sempre para
remendar uma corda (ou trocá-la, quando não tinha concerto) da sua viola e dos outros
instrumentos de corda e também afiná-los “de acordo com a sanfona”. Este passou então a
ser meu principal encargo até aquele sábado em que Rogério deu em minhas mãos a
camisa, o chapéu e também um cavaquinho da folia.
8
A este personagem dedico o segundo capítulo deste trabalho.
9
Embora o mestre forneça uniformes novos todos os anos, os foliões devem comparecer com uma calça
branca, que é um requisito para vestir a camisa e o chapéu que compõem o uniforme.
21
Transportada por um ônibus da prefeitura (que se eximiu de pagar o motorista, preço este
que a folia teve que subtrair do dinheiro arrecadado pela bandeira), a folia desembarcou
em um canto de roça do Bairro Boa Vista, onde, após caminhar por alguns minutos,
encontrou uma porteira, a primeira em que a bandeira encostou-se àquela noite. A casa
abrigava, como um de seus cômodos, um terreiro de macumba que estava em pleno
trabalho quando chegamos, sendo este interrompido pela bateria da folia. As pessoas que
participavam do trabalho logo se reuniram no pequeno alpendre para ver a chegada. Ao
apito do mestre Rogério, Cosme puxou na sanfona o estribilho, que chamou o bumbo e,
por sua vez, as caixas.
Quando a bandeira encosta e bate na porta de uma casa, os primeiros versos da toada
sempre versam sobre quem é que está do lado de fora “uma Estrela do Oriente”; “os Três
Reis do Oriente”; e “São Sebastião” e chama a dona ou o dono da casa para acordar e
abrir a porta, dizendo que veio para “lhe dar boa saúde”, a ele à sua família. Além disso,
para garantir a bênção do lugar, o mestre deve desmanchar o altar da casa, se houver um,
ou então as imagens que freqüentemente repousam na parede ou em uma estante da sala.
Desmanchar significa evocar as entidades e seus poderes por meio de algumas marcas
especiais identificadas coletivamente em cada uma delas. Para testar a sabedoria do
mestre, a dona ou o dono da casa pode preparar algum tipo de enigma, sendo este
geralmente algo que remete a algum santo ou episódio vinculado a ele. Por esse motivo, as
toadas de chegada são mais demoradas que as de saída, principalmente quando um
presépio e/ou uma bíblia aberta ou quando há um altar de umbanda com sua característica
densidade de santos presentes.
Naquela noite de sábado, após os primeiros acordes da sanfona de Cosme, solenemente a
bandeira avançou a porteira, respondendo às ordens que o mestre Rogério entoava em
versos intercalados aos que contavam/ cantavam a profecia e parou em frente ao cruzeiro,
onde o mestre cantou o calvário de Cristo, para desmanchá-lo pois “o cruzeiro significa a
morte de Jesus”, explicou Lino, contramestre de Rogério e a bandeira seguiu, então, para
estacionar mais uma vez, à entrada do alpendre, onde, sempre em versos, pediu ao dono da
casa para apanhar a bandeira e levá-la ao seu altar. Ao acompanhá-la, os foliões
encontraram-na empunhada pelo anfitrião, que também é o dono do centro, em frente ao
22
altar. Sentado ali dentro ao lado da porta, um preto-velho cumprimentou todos os foliões
que entravam. Como no altar havia uma pequena manjedoura, o mestre cantou:
Os Três Reis se ajoelhou, ai
Ai, pro Menino ele adorar, ai.
Então os foliões começaram a se ajoelhar. Atento como eu estava a toda a movimentação
dos foliões para não prejudicar a performance da folia, fui o quarto a botar os joelhos no
chão. Rogério imediatamente mostrou-me uma de suas mãos com três dedos estirados
indicando que, como são três os Reis magos, era somente este número de foliões que
deveria se ajoelhar. Após o fim da toada de chegada, ou seja, depois de a maioria dos
santos presentes de alguma forma ter sido desmanchada, o mestre e os foliões de frente
cumprimentaram o dono da casa com um aperto de mão, e o altar com o gesto de encostar
a mão na mesa e com a mesma fazer um sinal-da-cruz.
A habilidade de um folião está diretamente relacionada à sua devoção. Ser um devoto na
folia significa ter uma missão a cumprir, uma promessa a pagar, e por isso, por fornecer ao
folião a chance de estar em dia com o santo, o mestre cobra deles a submissão às suas
regras, ao seu jeito particular de conduzir a jornada. O mestre precisa ter a certeza de que
seus foliões não irão falhar, pois em hipótese alguma a missão da bandeira pode ser
obstruída. Para Ademar Gasparelo, os únicos motivos que justificam o não
comparecimento de um folião à saída da bandeira são a morte e o nascimento de alguém
da família:
Seu Ademar: quando minha mulher tava esperando filho, dava oito horas da
noite, eu deixava a folia e ia embora pra casa. eu falava pro meu irmão: olha
correu tudo bem lá, não nasceu ninguém, gente novo lá, às oito horas eu to
encostando aqui. Oito horas do dia eu tava onde é que eles tava. no dia que
eu não chegava era porque naquele dia ou morri, ou nasceu a criança lá. Quando
chegou no dia 31 de dezembro eu saí oito horas, quando chegou de madrugada o
neném nasceu. eu levantei, falei com quem eu encontrei na rua pra comprar
rosca pra fazer sopa de galinha pra mulher guardar o resguardo que hoje não
guarda, guardava 40 dias de resguardo então eu montei a cavalo, cheguei na
rua, comprei a rosca na padaria, vinha. Desarreei o burro e mudei a minha roupa
e falei: agora vocês fiquem tava tudo certo, tinha uma mulher que ficava com
ela que eu vou acompanhar a folia. Quando deu nove horas o Nevaldo tava
cantando, Cidinho Machado do lado de fora, nove horas do dia, pra entrar, eu
23
cheguei e terminei de cantar. Ai eles perguntaram: Ué? chegou gente, já? Eu
falei: chegou.
Agora um cunhado dele [de Seu Dulcino], a mulher ganhou um filho, ta com
um mês, né?
Dulcino: Já, vai fazer três meses já.
Seu Ademar: Três meses? O cunhado o pode vir porque a criança nasceu. Eu
falei, “ah, essa não”. Porque eu tinha seis filhos, sete com esse, tudo pequeno e a
mulher ficou com a parteira e matou essa galinha e eu segui a folia. Eu
falei: “não”.
Seu Dulcino: Eu acho que é o que eu quero passar pra todo mundo: “olha, só
vou passar esse documento desse jeito, se vocês acharem bom, aquele que quiser
ficar vai ficar, aquele que não quer, não precisa contar aquilo ali porque não vai”.
Ora, na hora de você levar e, tem que ter compromisso igual a gente tinha
antigamente. A gente vivia, nós cantávamos doze dias, direto. Nós ficávamos na,
na cidade e passava natal, tudo direto...
O folião, por sua vez, aceita esta rigidez porque confia firmemente na sabedoria do mestre,
por saber que ele de fato tem o poder de garantir que o ciclo de dádivas se restabeleça a
cada ano com satisfação para todas as partes envolvidas. Sempre surgem, durante uma
jornada, questionamentos sobre esta autoridade. Todavia, a hierarquia deve ser mantida
para que a Bandeira se movimente. O tempo necessário para pagar a promessa é
geralmente definido no ato mesmo do contrato com o santo, não podendo ser menor que
sete anos. Este número mínimo de jornadas deve ser respeitado, com a pena, caso aconteça
um desvio, de algum tipo de castigo.
Por outro lado, a Folia de Reis estabelece um contrato com o dono da casa, sendo
mediação entre este e os personagens míticos. A cantoria versa principalmente sobre a
garantia da contra dádiva divina:
Deus vos salve a bela oferta, ai
Que vós deu pros folião, ai.
Deve ser bem ajudado, ai
E a sua família inteira, ai.
24
“Todos acreditam que o ato de dar obriga Deus a retribuir, em nome dos Três Reis
(mediadores sobrenaturais) e através do trabalho religioso dos foliões (mediadores
humanos)” (Brandão, 1981: 45. Ênfase original). A folia abençoa a casa com a bandeira e em
troca recebe o pouso de descanso, comida e bebida. Esta relação entre folia e dona ou dono
da casa – simbolizada pelo aperto de mão – é o eixo principal da jornada, o elo que garante
que as outras trocas sejam efetuadas. Os foliões recebem uma dádiva do santo e sua
missão, em troca, é levar a bandeira, anunciar o nascimento do Menino Jesus e abençoar as
casas dos devotos. Estes, por sua vez, recebem a bandeira e oferecem presentes a ela em
gratidão (ou em troca) de uma bênção recebida pelo santo.
Ao ouvir o apito, o acordeom e o bumbo em sua porta, os moradores de uma casa
organizam-se diante de uma só coisa: a bandeira. Não apenas o estandarte enfeitado
enquanto tal, mas tudo o que ele mobiliza para seguir seu caminho de devoção, todas as
relações que a bandeira eclipsa em suas formas e que a torna viva. É a bandeira que o dono
da casa espera. É ela que o faz acordar, levantar de seu “colchão dourado”, pôr a mão na
fechadura, aguardar o verso “vem abrir a vossa porta” para então abrir o caminho e
contagiar a sua casa com o mito, livrá-la das vicissitudes mundanas para celebrar o
nascimento, ali em seu altar, do Menino. Para a dona ou o dono da casa, é o produto
sonoro, enquanto índice da sabedoria do mestre, que importa, ou seja, o modo como ele
desmancha seu altar e encanta sua casa.
Todavia, simultaneamente a isto, a dona ou o dono da casa distingue os gestos e as faces
dos foliões, o estilo da performance desta folia que tem um mestre conhecido ou não por
ele, e se o conhece, se é reconhecido como sábio ou não, experiente ou não e, por isso e
por outros motivos, se é capaz de encantar com mais ou menos eficácia a sua casa.
Digamos que esta sensação distintiva não passa de uma predisposição e que pode ser
revertida no decorrer do ritual, mas aqueles que afirmem que muitas donas ou muitos
donos das casas experientes reconhecem uma folia pelo primeiro verso da toada ou
mesmo pelo primeiro ataque do bumbo e que, se não for uma folia poderosa, seja pela
ligação da audição a um mestre pouco sábio ou a sensação, pelo desempenho da toada,
que a folia é fraca, recusam-se a abrir a porta. Mas, uma vez aberta, os de casa oferecem
25
sua hospitalidade a pessoas que se dedicam arduamente a defender a bandeira em seu
caminho para realizar esta transação.
A folia leva para o ambiente familiar fixo a bandeira, um objeto sagrado que estabelece um
vinculo imediato entre os seres humanos e os santos. Ao mesmo tempo, transforma
momentaneamente aquele lugar em um espaço encantado pela orquestração (relação
entre sons; relação entre corpos) do grupo de foliões. O mestre, voz humana dos Reis
Magos, é quem tem o poder de encadear o ritual propondo as interpretações, segundo ele,
mais adequadas das formulas míticas para resolver os enigmas que enfrenta seguidamente.
Este direcionamento é feito por meio dos versos entoados.
A magia das toadas
O dom da sabedoria, entregue ao mestre folião pelas mãos divinas, faz dele dono de um
repertório vasto de versos, assim como do discernimento em interpretá-los de acordo com
os eventos rituais. Em meio ao processo de “resgate” das Folias de Reis, muito se tem
debatido, principalmente por pessoas ligadas às secretarias de cultura e de turismo
municipais sobre as formas de apresentação das Folias de Reis em eventos tais como o
Encontro Nacional de Folias de Reis de Muqui (ES), quando diversos grupos de foliões são
recrutados para uma das maiores apresentações de Folias de Reis voltadas para a audiência
de pessoas que não tem vínculo algum com a tradição dos Reis Magos
10
. Uma das questões
mais mencionadas é a ininteligibilidade – para esta audiência – da pronúncia dos versos. O
idioma é o português, muito embora seja utilizado de um modo idiossincrático. Além
disso, a linguagem utilizada nos versos distingue-se da fala corriqueira pelo estilo
carregado na linguagem bíblica (não ortodoxa, mas prenhe de interpretações endógenas
desta esta tradição) que, além de descrever um evento, tem também uma função indéxica
(Silverstein, 1997) importante que é definir uma fronteira social entre o mestre e os demais
participantes do ritual, sendo índice de sua sabedoria e de sua importância social.
10
O terceiro capítulo é dedicado aos Encontros de Folia.
26
Ao teorizar sobre o “poder mágico das palavras”, Tambiah (1985 [1968]) argumenta que a
fronteira entre inteligibilidade e ininteligibilidade dos versos em um ritual não é trivial,
mas é resultado da especialização da comunicação com o sagrado, cuja partilha do
entendimento é interna à comunidade participante e o significado ainda mais restrito.
Entre mestres, geralmente uma luta semântica pela interpretação dos símbolos, o que
garante certa estabilidade mnemônica junto a uma dinâmica de adaptação aos processos
sociais. Quando o Estado e o turismo cultural entram nesta luta, as desigualdades sociais
são transferidas para o âmbito simbólico, de modo que o que prevalece geralmente são as
necessidades mercadológicas. Como aponta Stuart Hall (2003 [1985]), a cultura é uma luta
pela escolha dos signos e por seus significados, e quando as classes populares, que
geralmente só podem dispor de dignidade por meio da manutenção ideológica dos
significados, são expropriadas desta possibilidade de resistência, é sua fonte de
humanização que é solapada.
O poder das toadas depende de sua capacidade de comunicar com os santos, por meio
deles e de fazer esta comunicação ser interpretada e avaliada pela audiência. Esta
exclusividade de entendimento, portanto, muito além de uma incapacidade de se adequar
às normas cultas do idioma oficial, revela uma “força mágica da linguagem”, uma força
exclusiva do mestre em sua capacidade não apenas de se comunicar com, mas de ser o
próprio porta-voz dos Reis Magos. A linguagem não está apenas fora de nós, mas faz parte
da cultura de um modo muito complexo e só existe no contexto da enunciação (Silverstein,
1997).
Os versos das toadas, terreno em que se organizam as fórmulas mitopoéticas, garantem a
elas certa estabilidade mnemônica e, dado a freqüência com que são repetidos ano a ano,
criam um ambiente de familiaridade entre os foliões a respeito dos episódios e motivos
que incorporam. Por outro lado, episódios inteiros são comprimidos em poucos versos, o
que requer dos foliões e da audiência um preenchimento do sentido das passagens míticas
(o que Suzel Ana Reily chama de “telegraphic encapsulations”
11
). Este caráter comprimido
dos eventos nos versos gera uma sorte de interpretações guiadas por histórias de vida e por
11
“(...) the narrative motifs emerge in telegraphic encapsulations, and entire episodes are compressed
into a few lines, which requires the audience to fill in the blanks to make sense of them” (Reily, 2002:
153).
27
sensações diferenciadas. Em seu notável livro sobre as folias de reis do Sudeste brasileiro,
Reily (2002) considera que
Telegraphic presentation, however, also creates ambiguity, serving as fertile
ground for the emergence and diffusion of quite idiosyncratic interpretations.
In his attempt to make sense of the traditional verse, dos Magos [mestre
folião] humanized the Wise Men. By presenting them as characters who
experienced suffering an hunger during their lifetime, he made them more
sympathetic to the human condition (153).
Falando sobre o presente, os versos trazem à tona o passado, não apenas passados
individuais. A conjunção dos aspectos comprimido (Reily, 2002) e polissêmico (Turner,
1969) dos símbolos rituais promove um fenômeno tal que o passado contado nas toadas é o
passado de uma comunidade de devotos, por mais que suas histórias de vida sejam
idiossincráticas. Ainda assim, cada uma delas é evocada nas palavras dos Reis Magos,
entoadas pelo canto de um mestre folião forte, o que envolve, sobretudo, a especialização
da linguagem. A relação idealizada por Sassure de arbitrariedade entre significado e
significante é então, neste caso, colapsada pela formalidade do pronunciamento das
palavras cantadas. Os atos rituais e os encantamentos são atos performativos de acordo
com os quais certas propriedades são transferidas analogicamente para recipientes, objetos
ou pessoas
12
(Tambiah, 1985: 60). Com isto quero apontar para o fato de que a forma da
elocução e o conteúdo da mensagem dos versos são indissociáveis na inscrição das toadas
no contexto ritual. Segundo Derrida, só a inscrição tem poder de poesia, ou seja, de
arrancar a palavra de seu “sono de signo” pela invocação
13
.
O ritual estabelece um estado diferenciado de experiência em que interpretações
conflituosas podem ser agregadas por meio de seus símbolos multivocais que, segundo
Turner (1969), não são simplesmente representações do sagrado, mas sinais da presença de
seres místicos ou ancestrais. As Folias de Reis levam as bandeiras para as casas para
transformá-las, analogicamente, em um lugar abençoado, ou seja, em um lugar deslocado
12
Ver Tambiah a respeito da utilização da teoria dos atos de fala de Austin no ritual: “Like ‘illocutionary’
and ‘performative’ acts, ritual acts have consequences and affects changes; they structure situations not
in the idiom of ‘Western science’ and ‘rationality’ but in terms of convention and normative judgment,
and as solutions of existencial problems and intellectual puzzles” (Tambiah, 1985: 60)
13
“Ao consignar a palavra, a sua intenção essencial e o seu risco mortal consistem em emancipar o
sentido em relação a todo o campo da percepção atual, a esse compromisso natural no qual tudo se
refere ao afeto de uma situação contingente”.
28
do tempo e do espaço, que não é puramente mítico e nem puramente atual, em que a
jornada dos Reis Magos é personificada. A música dos Três Reis, entoada pelos próprios
através dos foliões, tem um importante papel nessa transformação.
Embora a Folia de Reis não compreenda rituais de possessão, inúmeras vezes os foliões e
os palhaços descrevem suas experiências durante a performance da folia nos termos da
incorporação dos personagens míticos. O mestre Dulcino Gasparello, por exemplo, vai
direto ao ponto ao dizer que o mestre incorpora os Reis Magos. O mestre João Inácio, por
seu turno, apesar de reiterar que “não mexe com macumba”, ainda que mostre muita
destreza no trato com as entidades dos centros quando a bandeira encosta em algum, fala
de sua relação com os santos: “é o que eu falei, eu não sou espírita e nem macumbeiro, mas
o Três Reis Magos é três espírito que o Espírito Santo mandou pra vir guiar o mestre. Se
eles cola no corpo da gente, a gente solta aquilo que vier”.
João Inácio fala de sua iniciação na maestria a partir de episódios que testemunham sua
força e capacidade extraordinária de se apropriar dos poderes dos Três Reis Magos, o que,
segundo ele, depende de muita devoção e sabedoria. A seguir ele fala do primeiro dia em
que foi obrigado a assumir a chefia de uma folia para substituir o mestre, que adoecera:
Larguei ela [sua esposa, Dona Almerinda] sozinha em casa, montei numa
bicicleta, fui parar em Córrego Dutra. Chegou lá, aquela mesa bonita... e o mestre
rolando de dor na cama. eu falei assim, a folia arrumada? me deram
uma roupa. arrumada? Então eu vou lá, eu não sei muito não, mas... fui
na cama dele esse caso é o primeiro, hein quando eu cheguei lá, ele tava
doente. ‘Ai meu filho’, eu falei, ‘entrega a bandeira lá’. Cantei uns quatro versos
em cima dele, o homem levantou. Levantou, foi tomou água... Ah rapaz, eu
falei assim, tem tom aberto, a Folia de Reis tem um negócio ali dentro. vim pra
sala, pra mesa, eu fiz o sepulto de Jesus e de Pedro, José, Maria, Isabel. E
agora ele tem que sarar mesmo. Ou sara ou morre. Que o sepulto você faz pra um
defunto, né. eu cantei, ela [Dona Almerinda] sabe (J. I. Entrevista 12 de
fevereiro de 2009).
Em seguida, outro caso misterioso e assertivo sobre o “tom aberto” da Folia de Reis:
Ela sabe [Dona Almerinda] que tinha um casal ali na esquina do Rodrigo que a
mulher tava deitada, ele falou, “vou receber a folia, mas eu sem mulher, a
mulher de derrame”. Olha Diogo, eu tenho vergonha de falar isso, um folião
meu veio e contou pra ela, a mulher levantou, foi pra cozinha, quebrou rosca e
botou e não deitou mais. Agora, eles têm cisma de mim, mas eu não mexo com
29
macumba não. Agora, eu puxo palavra forte... (J. I. Entrevista 12 de fevereiro de
2009).
No Zumbi e em inúmeras outras localidades da região sul do Espírito Santo, muitos foliões
vivenciam a experiência de possessão nos terreiros de macumba. A relação entre os santos
e os foliões, em especial entre os Três Reis e o mestre, parece estar mais próxima do que
Gilbert Rouget (1985) classifica como “inspiração”
14
ou da radiação”, como definem os
membros do jarê de Andaraí, na Chapada Diamantina, o tipo de transe que, diferente da
possessão que também ocorre ali em grande medida não desloca totalmente a
personalidade do devoto, mas coabita seu corpo
15
. Foi assim que descreveu Seu Manoel,
bumbeiro da Estrela do Mar e membro da alta hierarquia da Casa de Oração Menino Jesus,
o centro de Dona Izolina, localizado no alto do Zumbi, sua relação com os santos. Segundo
este antigo folião, que herdou de sua mãe, dona de centro, o dom da mediunidade, ele não
deixa os espíritos “tomarem sua cabeça” totalmente, mas fica junto para “vigiar” o que as
entidades fazem com o seu corpo.
A distinção da corporalidade nos tipos de transe de uma mesma pessoa nesses dois rituais
é, em todo caso, marcante: enquanto na macumba a crise de tomada do corpo pelo
espírito, na folia não ponto crítico que marca uma mudança de personalidade, ainda
que em algumas vezes um espírito possa se apropriar indevidamente de algum folião,
chegando a desafiar o próprio mestre e a puxar os versos. A diferença sugerida por Rouget
entre “inspiração” e “possessão” é baseada em grande medida neste dado, o da forma da
corporalidade e, todavia, é idealizado e não passível de precisão. Em todo caso, a
proximidade entre estes estilos de espiritualidade nos leva a considerar de um modo mais
radical a presença dos santos nas folias de reis e as produções sonoras como agência dos
Reis Magos e dos Doze Apóstolos.
14
Na definição deste autor, que reconhece ser sua tipologia do transe, embora cunhada a partir de
experiências vividas, difícil de identificar isoladamente, a inspiração, (…) rather than having switched
personalities, the subject is thought to have been invested by the deity, or by a force emanating from it,
which then coexists in some way with the subject but nevertheless controls him and causes him to act
and speak in its name (Rouget, 1985 [1990]: 26).
15
Carolina Pedreira, comunicação verbal.
30
Os versos tomam corpo sagrado quando desenhados nas melodias das toadas de folia,
caracterizadas por uma estrutura melódica que tende à sobreposição das vozes em terças e
sextas paralelas. As toadas são divididas em rápidas e lentas, classificação que diz respeito
não somente ao andamento, mas a dois grupos de toadas construídas de modos distintos e
que são identificadas essencialmente pela cadência rítmica da bateria e pelo estribilho do
sanfoneiro, a quem diretamente o mestre fala qual das duas ele quer puxar. Ao soar as
primeiras notas do fole, todos os foliões imediatamente identificam rápida ou lenta.
As toadas lentas eram as preferidas pelo mestre João Inácio nas ocasiões mais solenes
porque ele gostava de falar, de explicar a profecia, ou seja, fazer com que a audiência (em
especial a dona ou o dono da casa) se mantivesse concentrada na profecia entoada. De
acordo com Rogério, a preferência do mestre Inácio pela toada lenta existia porque “nossa
folia é explicada”. Nas toadas rápidas, o verso “fica muito misturado, cada um cantando
uma coisa diferente”. Normalmente, os foliões de frente, ou seja, aqueles que estão
comprometidos primeiramente com o canto, mesmo que empunhem violas ou outro
instrumento secundário, tentam adivinhar o que o mestre está cantando enquanto eles
mesmos seguem cantando. Assim, cada um, a partir da primeira sílaba do mestre, entoa o
que este pequeno estímulo captura em sua memória, de modo que freqüentemente o
resultado dos primeiros versos é, para ouvidos desencantados, e, principalmente para os
não habituados à tradição dos Reis Magos, de difícil apreensão textual
16
.
Como na toada lenta
17
a bateria geralmente ataca durante o estribilho e não durante a
fala dos versos, sendo estes acompanhados somente pela sanfona e pelas violas, o mestre
tem uma liberdade maior para modular o tempo de cada sílaba. Na toada rápida, a bateria
acompanha os versos e define de um modo mais rígido a pulsação, muito embora com
menor intensidade nos ataques. Quando o mestre ordena o tipo de toada que o sanfoneiro
deve puxar, ele geralmente acrescenta mais um lento ou rápido ou um de vagar ou de
pressa para indicar o andamento: lenta lenta (ou de vagar); lenta, mas rápida (ou de pressa);
rápida rápida (ou de pressa) e rápida, mas lenta (ou de vagar). São essas as principais
variações das toadas. Uma toada é lenta ou é rápida, mas pode ser tocada com um
16
Segundo John Blacking (1985: 65), “Music can communicate nothing to unprepared and unreceptive
minds (…)”.
17
Como pode ser visualizado nas transcrições ao fim do capítulo.
31
andamento mais ou menos vigoroso. Além da preferência do mestre, existem outras
variáveis para a escolha, como a informação de que a dona ou o dono da casa emociona-se
mais com uma determinada toada; ou ainda, quando há um enfermo na casa ou nas
redondezas, notícia que geralmente faz o mestre escolher a lenta.
Nem o conteúdo textual e nem a melodia compreendem, isoladamente, o sentido global da
toada. Assim como os mestres personificam a jornada mítica com seu modo particular de
contar a profecia, os versos são ressuscitados da memória e renascem para a experiência
quando cantados pelos foliões. Texto e música são complementares e ao mesmo tempo em
que a melodia não determina os versos, estes também podem ser entoados em qualquer
toada. Entretanto, a toada escolhida tem um modo específico de encadear os versos e
algumas delas acrescentam a evocação direta a algum santo. Por exemplo, as toadas do
divino, e a dos Três Reis, Maria, São José, são assim chamadas porque a cada verso cantado
introduzem, em sua fórmula poética, a evocação destes santos. Além disso, cada toada tem
uma forma distinta de enfatizar certos fonemas, com mais ou menos extensão e vigor,
assim como a introdução lamentosa do ai inicial e final
18
. A toada transcrita a seguir foi
registrada em 19 para 20 de janeiro, dia de São Sebastião.
Acorda, acorda meu senhor, ai
Ai, desse seu colchão dourado, ai.
A,i alevanta seus componentes, ai
Ai, e as crianças inocente, ai.
Ai, senhora dona da casa, ai
Ai, escuta bem o que eu vou falar, ai.
18
De acordo com o mestre João Inácio, este ai presente em todas as toadas é uma lamentação por todo o
sofrimento que o Menino Jesus passou em sua vida.
32
Ai, essa é uma estrela da guia
E ela veio lá de Belém, ai.
Ai, ela veio trazer as nova, ai
Ai, do monte das oliveira, ai.
Ai, senhora dona da casa, ai
Ai, tem compaixão de nós, ai.
Ai, vamos dar graças a Deus, ai
Que eu vi a luz acender, ai.
Ai, porta aberta, luz acesa, ai
Ai, é sinal de alegria, ai.
Vem receber nossa bandeira, ai
Ai, filho de Jesus amado, ai.
Ai, na sombra dessa bandeira, ai
Ai, nós também vão companhar, ai.
Ai, Deus vos salva a casa santa, ai
Ai, onde Deus fez a morada, ai.
Ai, onde mora o calix bento, ai
Ai, e a hóstia consagrada, ai.
Ai, Deus vos salve o seu altar, ai
Da Maculada Conceição, ai.
Eu vou salvar seu oratório, ai
Ai, do Mártir São Sebastião, ai.
Ai, encontrei as Três Maria, ai
Numa noite de luar, ai.
Ai, procurando o seu rebento, ai
Ai, e nunca poder achar, ai.
Ai, foro andar por esse mundo, ai
Ai, missa nova foi cantar, ai.
Ai, essa missa foi cantada, ai
33
Ai, às onze horas do dia, ai.
Ai, senhora dona da casa, ai
Anunciei a profecia, ai.
Já anunciei o sofrimento, ai
Do filho da Virgem Maria, ai.
Ai, o meu nobre folião, ai
Ai, vão saldar, São Sebastião, ai.
Ai, o índio matou o caboclo, ai
Era um povo sem devoção, ai.
Ai, levaro São Sebastião, ai
Pra ver o seu sangue no chão, ai.
Ai, cada gota que caía
Ai, era outra gente sua, ai.
Ai, o Mártir São Sebastião, ai
Ai, do monte das Oliveiras, ai.
Ai, foi preso, foi amarrado, ai
Ai, no galho da laranjeira, ai.
Ai, o Mártir São Sebastião, ai
Ai, seja proteção de gerra, ai.
Ai, livra nós das sete guerra, ai
Ai, livra nós da exploração, ai.
Ai, senhora dona da casa, ai
Eu vou cantar em seu louvor, ai.
Eu já cantei no seu altar, ai
Ai, salvo o seu buquê de flor, ai.
Ai, salve o seu santo cruzeiro
Ai, onde foi crucificado, ai, ai
Ai coitado do bom Jesus
Foi judiado por Herodes ai, ai
34
Uma toada é uma produção sempre inacabada e sua composição depende do arranjo
simbólico de cada evento da jornada. Sua escolha, o modo como os versos são
concatenados na seqüência melódica e principalmente a emergência de improvisos
cantados, de modo algum podem ser previstos. Todo o encadeamento da performance é
puxado pelo mestre, e boa parte de suas escolhas é delineada pelos presépios e outros
símbolos rituais com os quais a dona ou o dono da casa prepara o seu altar. Entre um verso
e outro, o sanfoneiro conduz melodicamente um trecho instrumental chamado estribilho,
durante o qual o mestre medita sobre o que deverá cantar/falar
19
no próximo verso.
Na toada transcrita acima, a saudação é realizada antes do anúncio de que é o “Mártir São
Sebastião” que está batendo na porta, mas também é a “uma Estrela do Oriente”, o que
sinaliza para a dona ou o dono da casa que a folia é devota dos Três Reis e de São
Sebastião. A estrofe “porta aberta, luz acesa/ é sinal de alegria” indica que “o filho de Jesus
amado”, ou seja, o dono da casa, acabara de abrir a porta para receber a bandeira. A bênção
da casa (“Ai, Deus vos salve a casa santa...”) inicia-se no momento em que a folia entra pela
porta. O mestre João Inácio viu, em três botões de rosas vermelhas agrupados, a presença
das “Três Marias”, que são, então, evocadas. Em outro momento, vai para o sepulcro, já que
a folia parou para desfazer ou desmanchar um cruzeiro. Enfim, o encadeamento dos versos
é um histórico do ritual e revela a presença dos símbolos expostos naquela casa.
A extensão temporal de cada toada pode ser prevista pela riqueza simbólica dos presépios
ou dos altares, pois é preciso desmanchar toda a cena exposta: o mestre deve puxar um
verso para cada personagem ou evento contido explícita ou implicitamente. Três copos de
água em frente ao presépio, por exemplo, indicam a presença da Arca de Noé que,
portanto, deverá ser suscitada em verso. Mas um mesmo motivo pode surgir de múltiplas
interpretações, como na noite em que seu João cantou para a Arca de Noé após ter
percebido uma foto emoldurada de uma grande aeronave pendurada em uma parede,
acima do presépio. Este fato, ainda que inusitado, foi reconhecido pelos foliões. As toadas
são composições espontâneas do mestre defronte a eventos (rituais ou míticos) que
influenciam em sua escolha. Ao improvisar com os símbolos do presépio da dona ou do
19
O estilo da toada, embora seja desenhado por uma melodia, muitas vezes é mencionado como palavra
falada. Aqui apenas menciono que a fronteira entre canto e fala não pode ser facilmente estabelecida.
Para uma discussão sobre a fluidez das fronteiras entre canto, fala e reza nos rituais de lamentação da
Chapada Diamantina, ver Carolina Pedreira (2010).
35
dono da casa, a folia de reis promove o que Steven Feld (1988) chama de “completude
icônica” na medida em que estes símbolos não apenas inspiram as toadas: a folia torna-se
parte do lugar, do presépio e da casa, uma fusão que torna o espaço da casa abençoado.
Isto significa que o presépio, mais do que uma simples representação da cena mítica,
transforma-se na própria jornada dos Três Reis Magos, do Menino Jesus e de todas as
entidades entoadas.
Segundo Feld (op. cit.), as metáforas indicam a co-presença do universo, a relação entre
estrutura social e estrutura musical e lingüística de modo sinestésico, ou seja, por meio de
experiências diferenciadas, como as de tempo, espaço, profundidade, interação etc. nos
diversos domínios da existência. Esta correlação de domínios torna-se tanto mais intensa
quanto mais afetiva for sua ressonância, mais inconsciente sua coerência e mais intuitiva
sua invocação. A completude icônica, então, é o domínio no qual um símbolo deixa de ter
um referencial para representar a si mesmo (a coisa não é “como” outra coisa, mas se
manifesta quando adquire características do que representa) indicando a forma como som,
sentido, sensações e sociabilidade integram-se cognitivamente e emocionalmente no
sentido mais profundo. É assim, por exemplo, que entre os Kaluli da Nova Guiné, o
significado dos símbolos rituais emana iconicamente dos sons dos pássaros e das
cachoeiras por meio das metáforas lingüísticas e musicais (Feld, 1982).
O objetivo das jornadas não é simplesmente comunicar o nascimento do Menino Jesus,
mas anunciar, saudar, abençoar, de modo que a música produzida pela folia, muito mais
do que mediar a relação entre foliões e donas ou donos das casas, é proclamar e possibilitar
a presença dos Reis Magos. Os comentários dos foliões acerca das performances nunca
avaliam a música como produto, mas como um processo pelo qual, a partir dos princípios
de devoção e de sabedoria, transforma aquele ambiente em um lugar sagrado,
humanizando os santos, da mesma forma que santifica momentaneamente os homens. A
“presentificação” dos santos, do modo como descreve Wagner Chaves (2009) a respeito das
Folias do norte de Minas Gerais, origina uma mobilidade de identificação entre posições
no discurso, de modo que o santo pode aparecer tanto como emissor da mensagem (os
Três Reis falam através do mestre e dos foliões), receptor (a folia canta para os santos que
estão no presépio) ou referente (os foliões falam para a dona ou o dono da casa sobre o
santo: “Meu senhor dono da casa/ uma história eu vou contar”) e de modo simultâneo: “o
36
canto, assim percebido, é o que movimenta as relações envolvendo pessoas, santos e
imagens” (Chaves, 2009: 55). Em suma, é o canto ao transformar o presépio de
representação sincrônica para uma cena com movimentos temporais que retira as
imagens do seu “sono de signo”.
Música e sociabilidade nas folias de reis
O poder da toada reside em sua capacidade de mobilizar pessoas, interações sociais e
musicais. O encanto que ela produz não se reduz à música enquanto produto final, mas no
processo que ela realiza antes, durante e depois de sua performance. Como argumenta
Alfred Gell, o “encanto” da arte (“the primordial kind of artistic agency” [Gell, 1998: 69])
reside na resistência que esta oferece ao desejo espectador em possuí-la, não enquanto
artefato isento de relações e movimentações estabelecidas e encadeadas por elas
(analogamente, a toada enquanto estímulos sonoros desvinculados de sua produção), mas
no “mistério” de sua construção técnica: “Every artefact is a ‘performer’ in that it motivates
the abduction of its comin-into-being in the world. Any object that one encounters in the
world invites the question ‘how did this thing get to be here?’” (idem: 67).
Se tomarmos a toada enquanto “artefato”, assim como percebido pela audiência imersa no
circuito de trocas rituais, este mistério está não apenas na resultante de técnicas
individuais, mas na capacidade de orquestração ritual/ musical (Reily, 2002), que depende
de uma grande mobilização de pessoas que se entregam ao desgaste físico e emocional e
que passaram por uma longa socialização na tradição dos Reis Magos, o que envolve tanto
um senso estético específico (não basta ser um bom instrumentista, mas é preciso saber
tocar e/ou cantar folia) quanto estar em dia com o mestre, com os outros foliões e,
principalmente, com os Reis Magos e/ou São Sebastião. Nesse sentido, mesmo quando um
dono da casa é um músico experiente ou mesmo um ex-folião, o mistério permanece, pois
é impossível refazer conceitualmente toda a trajetória da bandeira até chegar à sua casa,
assim como os percalços pelos quais os foliões tiveram que passar para este fim. Em suma,
o “mistério” da toada encantada reside especialmente no modo como vozes e instrumentos
comuns tornam-se fonte de uma construção sonora cujos autores são os santos. Este
37
mistério é responsável por um desequilíbrio de poder entre folia que é diretamente
relacionado à virtuosidade da ciência do mestre e do poder da bandeira e dona ou dono
da casa, sendo “socialmente eficaz” (Gell, 1998: 71) ao propulsionar as relações de troca
entre essas partes com o objetivo, nunca totalmente realizado, de restaurar um equilíbrio
primordial e, ao mesmo tempo, de produzir novas dessemelhanças.
A música não é apenas uma expressão da sociedade ou das relações sociais, mas uma
organização entre músicos todas as pessoas habilitadas a desvendar a estrutura musical
de um grupo, seja produzindo, escutando ou dançando capaz de produzir uma
temporalidade diferenciada em que as experiências sociais são reconstituídas por meio de
sentimentos corporais. Nesse sentido, beleza, eficácia e adequação, longe de serem frutos
das análises locais sobre um produto musical reificado, são conseqüências da qualidade
das relações sociais estabelecidas nos processos rituais. Segundo John Blacking,
(…) sensuous bodily experience could be a consequence of correct musical
performance, which was to be attained by rehearsal, and correct musical
performance was a way of feeling. Having feelings through music could be an
end in itself or a means to an end, depending on the context of the feelings and
the person having them (Blacking, 1985: 67).
Nas Folias de Reis, segundo Suzel Ana Reily (2002), a orquestração dos sons é um meio
pelo qual relações interpessoais são estabelecidas. Da tensão entre particularidades dos
músicos, que contribuem com sua voz, e organização das vozes, é em termos da qualidade
das relações sociais efetivadas que a toada é avaliada. Ao contrário da orientação musical
ocidental, em que os músicos são subservientes da relação “inata” entre os sons, na folia de
reis a produção de relações sociais é a ênfase das performances, e a organização dos sons
um reflexo da negociação entre coletivização e diferenciação social.
A música entoada nas folias de reis gera um sentido de organização de vozes e de corpos,
assim como um ambiente semântico ou de desvendamento de significados. A toada, com
toda sua profusão de timbres estruturados, gera sensações corporais intensas e
interpretações negociadas por decisões individuais e pelo panorama cultural. Assim,
“(...) what is experienced and how it is experienced become meaningful in a
personal level. Intense personal experiences built around the shared
representational repertoire create spaces for the revelation of meaning, given
38
substance to religious discourse: it is in the act of being blessed that the singing
of the foliões emerges as the voices of the Magi; it is through holding the banner
during visitation that it comes to be experienced as the presence of the Three
Kings (Reily, 2002: 186-187).
Quando percebemos as performances musicais como relações sociais, que são a ordem das
performances e a partir do que emergem as diferenciações dos foliões, vemos o equívoco
que seria uma análise da música como um produto reificado em que os padrões de
avaliação e classificação da musicologia ocidental seriam não apenas ferramentas, mas
também a base de simbolização das peças musicais. Portanto, penso ser necessária uma
atenção maior para a produção de relações sociais dentro e a partir das tensões entre
padrões sonoros, pensando a música das folias de reis como uma instância de
institucionalização dos conflitos, um ambiente em muito diferenciado do panorama
cultural cotidiano por encerrar este tempo virtual de que fala Blacking (1985), em que a
ordem passa a ser o estado das sensações e que se vincula também a uma experiência de
constituição do self que perpassa o tempo através do estilo musical. Em outra ocasião,
Blacking argumenta que, sendo a música um produto do processo vinculado à construção
do self, ela é algo como a captura de todos os seus aspectos. Em suas palavras,
They refer to states in which people become keenly aware of the true nature of
their being, of the “other self” within themselves and other human beings, and
of their relationship with the world around them. Old age, death, grief, thirst,
hunger, and the other afflictions of this world are seen as transitory events.
There is freedom from the restrictions of actual time: we often experience
greater intensity of living when our normal time values are upset, so that we
appreciate the quality rather than the length of time spent doing something, the
virtual time of music may help to generate such experiences (Blacking, 1995:
34).
Acredito que esta qualidade virtual que o tempo musical enseja no ritual das Folias de Reis
é importante para a construção de um cenário ideal em que as toadas são reinvestidas por
significações tradicionais (que, como vimos acima, são encapsuladas em suas formas
estilísticas) e atuais. Por extensão, pode ser lícito dizer que o ritual é uma espécie de
cápsula temporal cuja força de significação reside na eficácia com a qual ele fala do
passado dos participantes que nele enxergam cenários de suas vidas encadeadas em
quadros editados no próprio contexto, levando em conta a presença dos foliões e da
audiência devota.
39
uma tendência, no processo de “resgate” da autenticidade das folias de reis por parte
dos promotores de apresentações desvinculadas da jornada, na busca por “afinar” a música
das folias de reis tanto quanto de tornar os versos inteligíveis, o que implica em forçar o
abandono da especialização da pronúncia dos versos. Ora, se argumentos deste tipo
buscam caracterizar a estética das folias como uma arte primitiva, é porque seus critérios
são desmedidamente inapropriados para avaliar uma estética que emerge como um tipo de
simbolização muito distinta, e que quer da cultura popular apenas um simulacro que
simplifique de modo mastigado (prazeroso e de fácil dominação) a profusão sonora das
folias de reis.
Dizer simplesmente que a toada é uma organização de sons não exclui a equiparação com
a simbolização do todo sonoro de uma orquestra erudita da tradição musical ocidental.
Todavia, esta tradição impõe uma ênfase quase que absoluta no desenvolvimento técnico
individual como condição para a execução da música em conjunto. As grandes orquestras
procuram sempre instrumentistas que tenham um alto grau de desenvolvimento com seu
instrumento para a construção de sua comunidade musical.
Nas Folias de Reis, por outro lado, nota-se uma ênfase primeira na habilidade de tocar e
cantar em conjunto. Um folião é iniciado desde muito pequeno em meio aos ensaios,
geralmente em um ambiente familiar, por meio do processo de imitação auditiva e visual e
sua aceitação dentro do grupo, depende, a princípio, de sua capacidade de seguir os
cânones formais, o que de maneira alguma está desvinculado de sua devoção e da
responsabilidade com sua promessa em particular. O átomo de uma folia de reis é um
grupo de devotos que partilha as mesmas regras estilísticas. A partir deste crivo, os sujeitos
emanam dialeticamente num processo de constituição da subjetividade que pode ser
percebido no fazer musical enquanto diferenciação daqueles padrões tradicionais.
Um dos principais padrões estilísticos das toadas são as sobreposições melódicas das vozes
em terças e sextas paralelas e a requinta, a voz de um folião especializado em entoar notas
agudas que sobrepõem em uma oitava a melodia principal, sobretudo nas sílabas finais de
uma estrofe que geralmente é um ai de lamentação. Os foliões cantam a mesma melodia
em registros diferentes, formando um todo harmônico, um construto social a partir de
diferenciações produzidas nas melodias tradicionais. Nos termos de Crapanzano (1993), o
40
self e a alteridade são momentos cristalizados no produto musical (como na materialidade
inefável das toadas, na interação do canto em duetos e no jogo dos intrumentistas)
estabilizados pela presença onipotente de um Terceiro – a tradição, a necessidade de
equalizar os sons humanos aos sons dos Magos. As relações humanas desenvolvidas na
música transferem emoções e significados por metáforas entre os diversos domínios sociais
resgatados no ritual e entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses ao passo que
harmoniza os conflitos sociais ao prover um “sentido sônico” para a reconciliação das
assimetrias.
20
É preciso salientar que harmonizar, no sentido amplo de sincronia em todas as relações
inscritas no ritual tanto sonoras quanto de outra ordem não implica, neste universo,
em estabilizar conflitos, mas em fazer ressurgir assimetrias, e negociações entre elas, a
partir dos padrões estilísticos apreendidos como sagrados. Ou melhor, sagrado não é uma
manifestação sonora ou visual em si, mas a relação que as aloca em uma rede instável de
significados. Esta diferenciação surge tanto no plano das práticas quanto no modo de
interpretação dos símbolos rituais. Em relação às práticas, os conflitos emergem nas
interações que tomam força no ritual. Embora este jogo entre padrões e improvisos
aconteça em diversos planos, é na produção das toadas que se tornam mais patentes, como
quando os foliões de frente investem na adivinhação da melodia e dos versos propostos
pelo mestre simultaneamente à sua criação, ou ainda nos repiques com que os caixeiros
flexibilizam os ritmos tradicionais. É possível afirmar que a solidariedade entre músicos de
um mesmo naipe de instrumentos e entre os cantores de frente está diretamente
relacionada a esta dinâmica que anima as jornadas.
Independentemente da forma como esses padrões se estabeleceram nas toadas de folia, o
fato é que eles não são vistos como exógenos à tradição dos Reis Magos, mas são
considerados como parte integrante do sistema musical local. Fato significativo para esta
afirmação é que, quando se compara as toadas ao estilo musical conhecido como caipira,
não obstante as inúmeras semelhanças entre elas, além da presença de versos de toadas
20
Far from being merely an aesthetic preference among southeasterners (...) parallel thirds have
conceivably been so stable throughout the region precisely because this musical element provides a
sonic means of reconciling the assimetry of social relations with notions of essential human equality
(Reily, 2002: 98).
41
nas músicas caipiras
21
, o que prevalece na definição é a utilização ritual, que envolve, como
vimos, muitos outros aspectos além do estritamente musical.
A transformação do tempo cotidiano para o tempo virtual por si não comunica
sensações específicas. O que a música comunica não é algo intrínseco a ela, mas exterior e
transferido por um processo metafórico ou icônico; como a poesia, a música não é uma
forma de comunicação com foco na referência. Embora a toada de folia não seja proibida
de outros contextos extra-rituais, neles, pode-se dizer que ela torna-se algo parecido com
uma música comum, desvinculada dos poderes mágicos que tem durante o encadeamento
do ritual. A toada só é toada em sua plenitude quando enunciada pela boca do mestre,
sinalizado com sua farda, seu chapéu, sua viola, seguido por seus foliões devidamente
preparados e organizados visualmente, musicalmente e socialmente, ou seja, dentro de um
contexto específico no qual a folia utiliza de diversos meios para trabalhar por uma série
de prestações, para agradecer, para abençoar etc.
A quebra temporal que a sica e outros meios semânticos produzem o encantamento
do lugar é significativa quando este estado físico é relacionado a atitudes emocionais
engendradas por uma situação social real ou imaginada (Blacking, 1995: 34-35). Ou seja, a
partilha de um cânone musical das folias de reis é também a partilha de uma visão de
mundo específica; no caso da Folia de Reis Estrela do Mar, de um modo de sociabilidade
intimamente relacionado ao cotidiano da vida no Zumbi. A música é a organização
corporativa do som, ou, nos termos de Blacking, “som humanamente organizado” e que
deriva seu sentido e seu uso (indissociáveis) principalmente desta organização
22
.
Os devotos sejam eles foliões, donas ou donos da casa ou acompanhantes da folia
consideram o alcance da bênção das toadas não apenas em termos musicais, mas em uma
variedade de aspectos, como a postura dos foliões no conjunto da folia e em relação à dona
ou ao dono da casa. Esta avaliação sinaliza para a existência de uma teoria musical que
extrapola a interpretação de uma toada enquanto objeto sonoro destacado da experiência
21
O exemplo mais conhecido talvez seja a gravação da dupla Pena Branca e Xavantinho da canção “Cálix
Bento”.
22
Segundo Blacking, 1995 [1971], “(…) the cognitive systems underlying different styles of music will be
better understood if music is not detached from its contexts and regarded as ‘sonic objects’ but treated
as humanly organized sound whose patterns are related to the social and cognitive processes of a
particular society and culture.” (55).
42
de produção musical. Essa teoria musical das folias de reis faz parte de uma teoria mais
geral das relações sociais e do cosmo, em resumo, uma teoria sobre a caminhada dos Reis
Magos e de São Sebastião pelo mundo. Esta inter-relação entre os domínios – tanto
musicais como não-musicais – que promovem o sentido sônico dos rituais das folias de reis
revela, ao invés de simples “reflexos” de um domínio sobre o outro, uma multiplicidade
discursiva que resvala também em uma complexidade de relações e de interpretações.
Como não há, por outro lado, contornos claros entre um domínio e outro da mesma
forma que a divisão da realidade social entre domínios é uma necessidade da academia
torna-se significativo o conteúdo das metáforas “nativas”, prova de uma forma de
conhecimento com maior ênfase na universalidade.
A partir do momento em que Gilmar (mais conhecido como Mazinho) veste sua farda e
pega o seu bumbo, deixa de ser uma pessoa comum do Zumbi para se transformar no
bumbeiro da Estrela do Mar, o coração da folia. O primeiro sinal para os moradores de que
uma folia de reis está por perto, é a batida firme de Mazinho na pele de carneiro que,
vibrando de seu corpo para os outros corpos, é, sem dúvidas, o principal som que contribui
para a sinestesia do ritual. Além disso, acentuando o início dos compassos, o bumbo indica
o andamento com que a toada é conduzida.
Essas metáforas corporais primárias, neste caso como coração mas também é muito
comum que se fale de alto, baixo, forte, fraco, etc. explicitam de um modo especial a
relação intrincada existente entre domínios distintos da experiência social e mostram que
sensibilidade e significação atuam juntas no ritual. As formas pelas quais significamos as
cadências lingüísticas e musicais existem em relação com as experiências vivenciadas
coletivamente. O coração é o órgão do corpo biológico responsável, entre outras coisas,
pela nossa noção primária de tempo (a pulsação); por analogia, é o termo utilizado para
indicar o bumbo de Mazinho como aparato musical e social. Mais do que isso, é como tal
que ele é escutado. No primeiro caso, coração pode ser interpretado como centro rítmico,
fonte de toda a orquestração dos sons emitidos pelos foliões. No segundo, pode ser
entendido como fonte de cooperação e de “orquestração ritual”.
Gilmar ensinou-me que o bumbo sempre inicia cada compasso com três batidas para
simbolizar a presença dos Três Reis Magos, motivo principal da folia. É por isso, sobretudo,
43
que, nas palavras do mestre João Inácio, ele é o coração do grupo. Na toada lenta, o bumbo
silencia durante um compasso
23
após três compassos atacados no tempo forte; durante o
estribilho das toadas rápidas, além de apresentar o segundo compasso com três ataques de
intervalos iguais, os compassos seguintes são intercalados entre aqueles atacados uma vez
e outros atacados duas vezes. Isto gera uma percepção dos ataques do bumbo como
agrupamentos de três batidas realizadas em intervalos iguais ao longo da toada. Exceto
durante a parte cantada das toadas rápidas, o bumbo deve fazer sempre as “três batidas”,
pois este padrão é o sinal de que os Reis magos estão presentes e animados, percorrendo,
junto com a toada, o ambiente sagrado e que estão, além disso, criando a cadência do
ritual por meio da cadência rítmica fornecida pelas mãos do bumbeiro em contato com a
pele de carneiro.
As metáforas são pontes entre mundos. A cultura, segundo Roy Wagner (1972) pode ser
considerada como um conjunto de relações, de modo que toda inovação significativa
participa desta rede constituída pelos seus significados. Para Wagner, o movimento
criativo intrínseco à simbolização é um procedimento metafórico, pois as metáforas
pressupõem um contraste entre significante e significado, que se relacionam por meio de
pelo menos um ponto de similaridade ou de analogia. Por meio deste traço comum, as
características que pertencem a contextos diferentes ativam-se e relacionam-se. As
metáforas formam-se por meio de inovações no momento em que a ação simbólica desloca
um significante de sua posição no léxico cultural para significar uma nova relação, que
pode posteriormente tornar-se parte da convenção e ser novamente metaforizada
24
. Nesta
rede não figuram apenas palavras, mas também sons, ações, estilos de vida e
relacionamentos com outras pessoas. Segue-se que a personificação é um tipo de metáfora,
pois articula pontos em comum (como a personificação dos Reis Magos pelo conjunto de
ataques no bumbo ou o canto do mestre, que é análogo ao canto dos reis magos) e por
meio do contraste entre o significante e o significado (entre os ataques e os santos, entre
estes e o mestre), os contextos transitam entre si, misturam-se, assim como a alma das
pessoas misturam-se às coisas nos circuitos de dádivas (Mauss, 2003). Podemos dizer que o
23
Conforme a minha metrificação arbitrária nas toadas transcritas ao final deste capítulo.
24
“(…) it fuses formerly established elements into a new relation, which simultaneously draws upon their
‘accepted’ denotations for its force and adds the force of its own creation of these (Wagner, 1972: 169).
44
termo coração, neste caso, é um centro de significação das principais experiências
qualificadas pela identidade do folião.
Diante desta concepção da música enquanto integrada ao mito e aos demais modos de
ação e de simbolização, é importante, como sugere Glaura Lucas à respeito do Congado
Mineiro, apresentar um “ponto de escuta” ou um “enfoque auditivo” (Lucas, 2002: 41) sobre
as folias de reis. A música expressa o que o discurso verbal não é capaz de expressar. Ainda
que alguns padrões possam ser traduzidos pelos músicos da folia assim como o padrão
de grupos de três ataques do bumbo é traduzido por Mazinho como a presença dos Três
Reis Magos no ritual certamente muitos outros não são descritos verbalmente; recusam-
se a isso, pois sua força significativa parece estar em desacordo com a forma causal da
prosa.
As transcrições de toadas aqui apresentadas, em especial as que se seguem ao fim deste
capítulo, de modo algum devem ser tomadas como um registro definitivo da musicalidade
das folias de reis. sempre reduções no processo de apresentação visual dos eventos
sonoros, em especial quando se trata de uma música cuja transmissão é eminentemente
oral (Lucas, op. cit.). Não uma interpretação mais correta do que outras para o canto
das toadas, sendo que os foliões não costumam julgar as diferenças entre folias de modo
pejorativo. O que apresento, então, é a tentativa de apontar para alguns padrões estilísticos
que pude perceber em meu curto tempo de experiência com as folias de reis. Durante o
tempo que passei com a Folia de Reis Estrela do Mar, tentei apreender as variantes sonoras
de cada instrumento e o que apresento nas transcrições, em meio à impossibilidade de
uma representação das intenções dos foliões, é muito mais uma projeção do que eu tocaria
ou cantaria a partir deste aprendizado. Outro ponto importante a ser destacado é que as
transcrições são realizadas por meio de símbolos vinculados à tradição musical ocidental e,
conseqüentemente, sua aplicação para representar outras tradições musicais é
indubitavelmente aproximada.
Em relação ao canto, optei por descrever as duas linhas melódicas mais recorrentes as
terças paralelas com a adição da requinta. No entanto, as folias de reis compreendem um
número muito maior de cantores. Na Estrela do Mar, grupo com o qual realizei as
gravações que resultaram nas transcrições, este número chega a dez pessoas entoando, em
45
registros diferentes ou tendendo ao uníssono, uma melodia instável. Nesta mesma folia, o
número de caixeiros varia entre seis e oito pessoas e a resultante sonora é sempre uma
relação tensa entre os padrões rítmicos mais recorrentes (que busquei representar) e os
repiques de algumas caixas. É importante reiterar que as transcrições estão muito distantes
de apreender a multiplicidade sonora das toadas, pois é preciso deslocar a continuidade
entre os símbolos utilizados na partitura e a tendência em “temperar” ou harmonizar” o
discurso sonoro das folias de reis, disposição que acredito estar presente também nas
narrativas oficiais das instituições promotoras do assim denominado “turismo cultural”
que, como veremos, extraem das folias de reis os seus elementos mais humanos: a
espiritualidade e a instabilidade.
Das inúmeras formas de atacar a caixa seja na pele ou no aro escolhi aquelas que me
pareceram mais comuns para apresentar no gráfico, da seguinte forma:
1 – ataque na pele com a mão dominante;
2 – ataque na pele com a mão não-dominante;
21 – ataque da mão dominante na pele sendo esta abafada pela mão não-dominante;
a – ataque no aro.
Optei por não apresentar as violas porque estes instrumentos têm um papel secundário na
construção sonora. Com a exceção de Seu Jair, folião de frente que é reconhecidamente um
exímio violeiro, os demais foliões de frente que empunham violas e atacam suas cordas
apenas em poucos momentos. O instrumento harmonizador fundamental é a sanfona. As
violas têm um papel muito maior para a caracterização dos foliões de frente como suas
armas do que como instrumento musical. Isto pode ser explicado mitologicamente, já que,
na versão de João Inácio, a entrega das violas aos Doze Apóstolos está ligada ao
desempenho quase militar de enfrentamento aos soldados do Rei Herodes.
Apesar de todas estas ponderações, a representação visual nos ajuda a perceber parte das
relações engendradas entre os músicos, o modo como cada ação sonora individual é
importante para construir uma orquestração que é muito mais complexa do que essas
sínteses e que faz a toada de folia de reis existir mediante sua força. As duas toadas foram
registradas na jornada de 2006/2007 da Folia de Reis Estrela do Mar do mestre João Inácio.
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47
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Chegada
Ai, a bandeira ta cantando, ai
Ai, na sua porta encostou, ai.
Ai, venha ver quem ta encostado, ai
Ai, é uma Estrela do Oriente, ai.
Ai, já pegou nossa bandeira, ai
Ai, leva ela pro altar, ai
Ai, na sombra dessa bandeira, ai
Ai, nós também vão companhar, ai.
Ai, Deus vos salve a casa santa
Ai, onde deus fez a morada, ai.
Ai, onde mora o cálix bento, ai
Ai, e a hóstia consagrada, ai.
Ai, eu vou contar pro senhor, ai
Ai, o que foi que aconteceu, ai.
Ai, veio um anjo do senhor, ai
E anunciou a Maria, ai.
Ai, que haverá de vir ao mundo, ai
Ai, o verdadeiro messias, ai.
Ai ele veio salvar o mundo, ai
Ai ele é o nosso salvador, ai.
Ai, meu senhor, peço licença, ai
Pra descansar meus folião, ai
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Despedida da Bandeira
Ai, a bandeira ta pedindo
Ai, a bandeira ta pedindo
Descansar pra viajar
Descansar pra viajar
A bandeira ta pedindo
Descansar pra viajar, ai, ai, ai, ai.
Eu agradeço a bela oferta
Agradeço a bela oferta
Que vós deu nossa bandeira
Que vós deu nossa bandeira
Agradeço a bela oferta
Que vós deu a nossa bandeira ai, ai, ai, ai
É de ser bem ajudado
Ai, é de ser bem ajudado
A sua família inteira
A sua família inteira
É de ser bem ajudado
A sua família inteira ai, ai, ai, ai
Eu já to lhe convidando
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Ai, eu já to lhe convidando
Pra festa dos folião
Pra festa dos folião
Eu já to lhe convidando
Ai, pra festa dos folião, ai, ai, ai, ai.
Vinte e quatro de janeiro
Ai, vinte e quatro de janeiro
Às onze horas do dia
Às onze horas do dia
Vinte e quatro de janeiro
Às onze horas do dia, ai, ai, ai,ai.
Senhora dona da casa
Ai, senhora dona da casa
Entrega nossa bandeira
Entrega nossa bandeira
Senhora dona da casa
Entrega nossa bandeira, ai, ai, ai, ai
Ô meu nobre bandeireiro
Ai, ô meu nobre bandeireiro
Faz a sua obrigação
Faz a sua obrigação
Ô meu nobre bandeireiro
Faz a sua obrigação, ai, ai, ai, ai.
Pega ela e vai saindo
Ai, pega ela e vai saindo
Ai, vai chamando os folião
Vai chamando os folião
Pega ela e vai saindo
Ai, vai chamando os folião ai, ai, ai, ai
Já se foi nossa bandeira
Ai, já se foi nossa bandeira
Nós também vão companhar
Nós também vão companhar
Ai, já se foi nossa bandeira
Nós também vão companhar, ai, ai, ai, ai.
53
II
Palhaço
Artesão da bagunça e guardião da Bandeira
54
Em seu documentário “Santo Forte” (1999), Eduardo Coutinho se depara, em meio à
gravação dos depoimentos de Teresa, uma senhora adepta da umbanda, com a fala de
Elisabete, filha desta senhora, na qual diz ser atéia. Seu foco, por alguns momentos do
filme, segue pela curiosidade fomentada por esta descoberta, que, além de mãe e filha
morarem juntas e de Elisabete supostamente ter contato freqüente com os rituais caseiros
de oferenda aos guias de Teresa, ela foi a única pessoa da comunidade que até aquele
momento da realização do documentário admitira não acreditar em religião alguma.
Coutinho tenta então desvendar o modo como ela se relaciona com a espiritualidade da
mãe, sobretudo porque esta pega seus orixás em casa “quando tem alguma situação pra
resolver”, em especial a preta-velha Vovó Cambinda, “que foi do tempo da escravidão”.
Frisando sua descrença, a filha de Teresa disse com naturalidade que não apenas respeita
as entidades como pede coisas a elas. Assim como o princípio da não-contradição presente
na cadência deste pequeno trecho do documentário, princípio este que, segundo Ricoeur
(1986) é vinculado à retórica do Mal na tradição judaico-cristã, e que leva Coutinho à
procura de uma resposta linear àquela questão por ele encontrada, poderia levar-nos
também, como ocorre com freqüência, a imaginar uma linha divisória e excludente interna
à folia de reis entre foliões e palhaço.
A antropologia é uma disciplina que carrega em sua história um paradoxo ético que tem
gerado um contínuo debate ao longo de sua existência. Nascida de uma necessidade
eurocêntrica de dominação que consistia de um modo geral em categorizar os povos
diferentes como uma variação inferior de si mesmo, a antropologia travou (e ainda trava)
uma luta pela descentralização das categorias originadas no círculo de socialização do
pesquisador como aporte das análises do choque cultural inerente a qualquer etnografia,
bem como pela própria descentralização geográfica e cosmológica dos pesquisadores. Se a
centralidade de conceitos e de categorias foi responsável por inúmeros preconceitos
analíticos, em poucas áreas do conhecimento esteve de modo tão impregnado quanto nas
tentativas de classificação da diversidade religiosa, onde a moralidade cristã de cunho
dualista determinou interpretações de rituais em modalidades de manifestações do céu e
do inferno. É este tipo de perigo que ronda a interpretação do ritual das folias de reis, em
especial por se tratar de uma tradição que se apropriou (embora muito particularmente)
de um tema bíblico.
55
Esta preocupação justifica-se ainda pelo recente apelo turístico ao qual diversas
manifestações religiosas classificadas como fenômenos folclóricos são alvo, havendo uma
forte (embora sutil) tendência para a subtração da espiritualidade, em especial a de origem
africana, e para a preservação apenas do aspecto lúdico desvinculado de sua frente
religiosa. Nas folias de reis do sul do Espírito Santo, em particular, o aspecto devocional
não é totalmente deslocado, mas existe uma tendência à sobreposição da interpretação
católica dos símbolos rituais em detrimento de suas fortes ligações com a umbanda.
Um bom exemplo da desigualdade de poder presente nesta luta semântica foi-me dado por
Dona Izolina, dona do maior e mais famoso centro de umbanda do Zumbi, sendo que boa
parte de sua fama lhe foi agregada por um ritual chamado atualmente de Bate-Flecha. Esse
ritual consiste, muito resumidamente, na performance de uma dança marcada fortemente
por estacas de madeira, de modo que os dançarinos, sempre em par, formam uma roda
acompanhada por uma banda de músicos de sopro e de percussão. Dona Izolina conta que
na década de 70, o então secretário de cultura do Município de Cachoeiro de Itapemirim,
impulsionado pela possibilidade de exploração desta performance em apresentações
públicas, interveio e sugeriu a substituição do nome Campo Espiritual para Bate-flecha
com o intuito de desvincular a dança de seu aporte espiritual. O resultado desta transação
é que, a despeito da ampla divulgação do Bate-flecha, poucos sabem que esta performance
ocorre para encantar um lugar exterior ao espaço sagrado do centro de oração em que os
médiuns, possuídos, podem transitar.
Todos os anos, ao aproximar-se o tempo da jornada, os mestres e os foliões mais dedicados
se debruçam sobre os preparativos da folia. Entre os detalhes mais importantes, ou seja, na
falta dos quais a bandeira não pode sair de casa, junto à arrumação dos instrumentos, dos
uniformes e da certeza de que o sanfoneiro não i falhar, figura o recrutamento dos
palhaços. Um mestre não pode defender a bandeira se não mantiver junto a ele no mínimo
dois palhaços fortes. Antes do dia de natal, o mestre deve estar certo que eles saberão
salvar a bandeira dos perigos que aparecerem pelos caminhos. Para sair, contudo, mesmo
sendo forte, o devoto que se transformará em palhaço deve dar conta de conseguir uma
farda e uma máscara. Os palhaços são os únicos componentes da folia cuja indumentária
não é fornecida pelo mestre ou por seus principais secretários. A falta da farda, por
exemplo, fez com que Dibanda, o palhaço Passo Preto, que dezessete anos defende a
56
bandeira da Folia de Reis Estrela do mar (como ele não cansa de dizer, “dezessete anos não
é dezessete dias nem dezessete meses”), fosse barrado na última jornada (2009/2010).
O modo de atuação deste mascarado, tendo em vista a tensão que impõe à devoção de
cunho dualista (Bem versus Mau), parece revelar a resistência de uma espiritualidade na
qual existe uma forte tendência à instabilidade, divergindo assim daquela proposta pelo
cristianismo. Nesse sentido, faz-se necessário reintegrar os domínios de ação do palhaço e
os modos de criação de sua força no ritual das folias de reis, como este conjunto se
relaciona ou mesmo sintetiza uma cosmologia em que reina um complexo de forças que
lutam entre si constantemente resultando em uma dinâmica sempre instável. A partir
disso, faz-se necessário também tentar evocar o contexto em que o ritual cria os seus
significados.
Seu Dulcino Gasparelo, mestre da Folia de Reis Três Reis do Oriente, conta sua versão da
origem do palhaço:
um mestre falou que o palhaço significa os diabinho, o tentador. Mas eu fui
obrigado a falar que tava errado, pois o palhaço atrás da folia não é diabinho, não
é tentador, o palhaço é um símbolo atrás da folia, ele é um soldado do Reis
Herodes. Hoje, o que que acontece? Tem assim. Você não gosta de uma pessoa,
você quer fazer um seqüestro, você pega dois ou três companheiro e fala: “fulano,
eu quero que você faça um seqüestro em cicrano. Eu vou te dar tanto, você faz
isso e isso e isso”. Você é um Reis Herodes! Porque você mandando fazer isso
aí. Então o Reis Herodes mandava os soldados acompanhar. Quando ele soube
que ia nascer o rei dos reis, ele mandou os soldados seguir os Três Reis até eles
encontrar o Menino Jesus, quando ele soube que ia nascer. o soldado falou: “Ô
doutor, como é que nós vamos acompanhar? Nós vamos acompanhar esses três
homens, eles vão desconfiar de nós”, pois era dois soldados. Então o Herodes
arrumou umas vestes, botou neles, arrumou uns panos, rasgou tudinho, botou
um capuz na cara deles, deu um porrete e falou: “olha, quando vocês chegarem
aonde que os Reis chega nas casas procurando onde tá o verdadeiro rei do mundo,
vocês chega no lugar e fica fazendo mizura. E corre atrás de um cachorro, e
implica com uma coisa, implica com outra. As crianças vão ficando envolvidas
com vocês, mas ali vocês prestando atenção, porque aonde tiver o Menino Jesus
vocês chega e volta cá, no reino do Herodes, pra falar comigo que eu vou pra
poder matar ele. Porque o Reis que tem que mandar nesse reinado sou eu”. Então
o palhaço, ele é um soldado do Reis Herodes.
57
Independentemente de ser identificado ou não como os diabinho, o palhaço está, nas mais
variadas versões do mito, em uma posição marginal em relação à velha ordem,
personificada pelo perverso rei Herodes, e à nova, representada pelo novo rei. Ao mesmo
tempo em que ele se relaciona com os dois pólos, não pode ser capturado por nenhum
deles. Se por um lado ele surge do plano arquitetado por Herodes para assassinar o
Menino, por outro, em função da sua conversão, como na versão de Ademar Gasparelo
transcrita na página 16 (“mas a força divina era tanta”) ele é quem salva o novo rei do
mundo da morte. Perguntado sobre a proibição da entrada na missa dos foliões no
Encontro Nacional de Folias de Reis de Muqui, um palhaço afirmou que “não pode entrar
porque faz semelhança com Herodes” e que faz promessa “do outro lado”.
Significativamente, os palhaços são investidos nessa ambigüidade por seu disfarce.
Assim como os demais foliões, as pessoas que se vestem de palhaço estão envoltas em uma
promessa que deve ser cumprida em um prazo mínimo de sete anos, com a pena de
retaliações caso a missão (termo recorrente para promessa) seja abandonada no meio do
caminho. Diz-se com freqüência que o palhaço que não termina sua missão fica louco,
como o caso recente envolvendo o irmão do mestre João Inácio, que estava de cama
algum tempo; dizia-se que havia enlouquecido. O caso é que, certo dia, ele foi possuído
pelo espírito de um velho palhaço de folia. Seu João foi chamado e levou consigo a
bandeira, alguns foliões, uma caixa e um palhaço de sua folia para acalmar o homem. Em
pouco tempo ele estava de pé, fora de perigo e disposto a voltar para a folia. Dizem que, no
passado, ele abandonou a farda antes de completar os sete anos. Este perigo é visto como
um preço pela liberdade que envolve o palhaço.
Em uma de minhas primeiras visitas ao Zumbi, João Inácio fez questão de me mostrar todo
o aparato da sua folia. Entre os instrumentos e os uniformes havia uma antiga máscara de
palhaço. Impressionado, eu disse a Seu João que era muito bonita, mas ele retrucou,
zombando disso a noite toda: “Bonito? Um troço feio desse?” A scara é feita para ser
feia, e assim, produzir um palhaço ameaçador.
Preocupado com a inexperiência de um dos seus palhaços, que iniciava sua missão naquela
jornada, João Inácio, antes da saída da bandeira, chamou-o para dar alguns conselhos. “O
corpo é o principal instrumento do palhaço. Ele tem que espalhar o corpo. Não pode ficar
58
duro”. Enquanto falava, mostrava. “O bom palhaço”, disse, “chega pelo chão e se espalha,
pois sua função é mesmo bagunçar”. Quando duas folias se encontram, os palhaços tentam
atrapalhar o outro mestre e os outros foliões, mas quando a bandeira, ele se ajoelha. Se
ficar duro ele não atrapalha e nem põe medo em ninguém. Por fim, mostrando mais
movimento, Seu João deitou-se no chão e ficou se arrastando com os membros inferiores e
superiores. É assim que deve chegar o palhaço, de mansinho, para assustar com
movimentos bruscos e repentinos.
Por mais que a liberdade de movimentos do palhaço seja em certo grau restrita (a ele é
proibido a entrada nos lugares sagrados, como as casas abençoadas e as igrejas, a não ser
que seja convidado pela dona ou pelo dono da casa para falar seus versos), ele encena a
desordem, zomba dos devotos e das promessas; contudo, ao agir dessa forma, revelando
uma intimidade com os santos e também com as pessoas da casa, o palhaço trilha a
própria via da promessa, tornando-se mediador e agente da confusão entre os contextos.
Por outro lado, sua presença é imprescindível para a saída da bandeira, sendo dela o
guardião. Durante uma saída, existe sempre o risco iminente de um encontro de
bandeiras
25
, ou seja, um encontro de duas ou mais folias. Neste caso, as bandeiras se
cruzam e tem início a disputa de encontro. Em muitas ocasiões, durante as jornadas que
acompanhei com a Estrela do Mar, quando ouvimos o bumbo de outra folia nas
redondezas ou mesmo quando encontramos uma folia na rua, houve uma conversa entre
mestres e a escolha pela diplomacia. De qualquer forma, o encontro é um momento de
muita apreensão, pois se houver enfrentamento, a folia vencedora pode tomar a bandeira e
os instrumentos da outra. Para que a contenda não chegue a acontecer, os palhaços de
uma folia procuram amedrontar os da outra, o que pode fazer com que os mestres
resolvam desviar o caminho e fugir da altercação. Isto pode gerar um falatório sobre a
coragem do mestre e dos palhaços, incidindo na avaliação popular de uma folia, mas não é
pior que uma derrota nos versos, que pode durar uma noite inteira e causar danos,
inclusive físicos. Além disso, quando a folia está cantando em uma casa, o palhaço deve
estar de vigília na porta para que outra folia não entre. Caso isto aconteça, a folia que
25
O capítulo seguinte é dedicado aos Encontros de Bandeira.
59
chega prende a bandeira que ali estava pelo tempo que o mestre desejar. Como disse-me
João Inácio em uma ocasião,
O palhaço tem que ficar do meu lado. Não é fazer igual algum faz aí, a gente
cantando e ele no botequim caçando copo. A obrigação deles é estar ali, ó,
ali, um de lá, outro de cá; e gritando, sem fechar a boca. Lá em Muqui tinha. Mané
Antônio, Arides Marinho, Maurílio, Malua... Mandava eles saírem de trás da
folia... Não fechava a boca. O mestre se defende com aqueles gritos deles. Arides
Marinho é palhaço forte. Ele espanta os palhaços todo ano. Aquele é palhaço
sabido.
É justamente em sua função de principal guardião do objeto sagrado por excelência, a
bandeira sagrada, que emerge o caráter mais violento deste personagem. Assim como os
soldados convertidos atrapalharam os outros soldados de Herodes que continuaram a
busca para matar o Menino, o palhaço deve atrapalhar o serviço dos palhaços das outras
folias, despontando em uma rivalidade que, como contam os foliões mais antigos, foi
motivo de constantes brigas com porretes, facas ou armas de fogo que não raro
terminavam em sérias contusões, ou mesmo em morte.
Em sua habilidade de defender a bandeira, além de espantar os perigos que podem surgir
durante a jornada como os palhaços de outra folia e os espíritos ruins – o palhaço
também deve ajudar o mestre a desmanchar os símbolos do lugar. Entre a toada de entrada
e a de saída, o palhaço pula sua chula e fala seus versos, que são classificados em décimas e
repentes. Esta última fórmula diz respeito aos versos improvisados ao sabor da ocasião e
são utilizados principalmente para saudar os donos da casa, seus parentes e outras pessoas
ou, no caso dos terreiros, para pedir licença às entidades que guardam a porta (ver
exemplo na página 73). Neste caso, os palhaços costumam apresentarem-se enquanto seres
misteriosos, para em seguida pedir permissão para o cumprimento. As décimas são versos
prontos que falam da profecia ou então de episódios cômicos, neste último caso sendo, em
geral, proferidos em primeira pessoa. É muito comum também que os palhaços façam uma
mistura dos dois tipos, usando alguns versos de profecia das décimas para rimar com o
encadeamento do ritual. Os versos a seguir foram proferidos por Vítor, o palhaço Catisco,
da Folia de Reis Estrela do Mar nas primeiras horas de 25 de dezembro de 2006, dia do
nascimento e diante de um presépio. Neles podemos notar o uso tanto de décimas quanto
de repentes.
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Chegaram lá na cabana
Lá estava Jesus Cristo
Em sua humilde manjedoura
Cercado por animais
Seu pai e sua mãe em pessoa
Baltazar serviu de exemplo
Ajoelhou-se no chão
Para oferecer o incenso
Com as suas próprias mãos
Depois também o Reis Brechó
Neguinho como um breu
Veio oferecer sua Mirra
A Jesus, rei dos judeus
A partir daquele instante
Que permanecia em silêncio
Em nome do rei dos reis
Agradeceu o ouro, a mirra e o incenso
No romper da hora clara
Os Três Reis se levantaram
De alegria choraram
De tristeza recusaram
Voltaram pras suas terras
Cheios de satisfação
Por ter visto Jesus Cristo
Filho de Deus de Abraão
Me corrija se eu tiver errado
Me aplauda se eu tiver certo
De joelho eu encerro
A profecia do presépio
Já falei a profecia
Cumpri minha obrigação
Eu pergunto pra senhora
Posso tirar meu joelho do chão?
Meu capacete enfeitado
De longe ele ta brilhando
Com fitas azul e verde
E festão vermelho e branco
Para quem não me conhece
Sou Catisco e tô chegando
61
Meu capacete é colorido
Tem fita, mas não arregala
Eu brinquei dentro da rua
Tô brincando na sua sala
Eu vou dar minha despedida, dona
Como deu Cristo em Belém
A senhora fica com Deus
Que eu volto o ano que vem
Se a morte não me buscar
Os anjos que diga amém
Se a morte vier me buscar
Eu busco a senhora também
Se eu vou dar minha despedida
Minha despedida eu vou dar
Nós tamo em três patrício
Nós temos que viajar
Se em algum momento o termo décima englobou estrofes com um número específico de
versos, este conhecimento não chegou até mim. O fato é que, atualmente, a décima é uma
categoria que diz respeito a estrofes prontas que versam principalmente sobre a profecia,
contendo o mais variado número de versos, sendo estes freqüentemente setessílabos,
ocorrendo também os decassílabos e octossílabos. O interessante é que essas duas
categorias, décimas e repente, intercalados em uma mesma chula, aproximam
metaforicamente três contextos, o do mito, o dos antigos palhaço que são identificados em
algumas décimas, e o da experiência atual.
Nas Folias de Reis impera uma tensão clara entre palhaços e foliões. Em relação aos
movimentos corporais, por exemplo, estes procuram integrar-se, pacificamente ao
conjunto dos corpos dos demais foliões, levando em conta o arranjo das cores dos
uniformes (que distinguem mestre, contramestre, foliões de frente mais antigos e demais
foliões em uma escala hierárquica) e dos instrumentos. Como vimos, faz parte das
habilidades do folião saber manter seu corpo de modo pacífico e integrado ao arranjo da
folia, sendo a ele proibido um tipo de corporeidade mais brusca e violenta. Seus gestos são
policiados pela contínua vigília visando destacar a coletividade e a orquestração. Tudo leva
62
a crer que a passagem para a via da devoção, à imagem e semelhança dos Três Reis, carrega
de modo intrínseco o abandono da liberdade individual.
Os palhaços, por seu turno, procuram sempre o destaque. Mesmo entre os palhaços de
uma mesma folia existem disputas contínuas, um tenta rebaixar o outro e sobressair de
modo traiçoeiro. Seus movimentos são bruscos e violentos e, a partir de uma forma mais
ou menos sancionada, buscam demonstrar o caos que surge das ações contrárias àquelas
dos foliões. Sua performance está embasada pelo improviso, pelo aleatório, manifestando o
que é censurado, repelido, reprimido, uma permissividade impossível aos demais. Ele
revela fugazmente um outro mundo, onde não existe a ordem do grupo, onde os símbolos
estão desestruturados. Enquanto a folia permanece rigorosamente formada em uma fila de
posições hierárquicas, o palhaço transita, espalha o corpo, corre atrás das crianças.
Enquanto os foliões entoam a música dos Três Reis e dos Doze Apóstolos, o palhaço grita,
urra. Enquanto os foliões marcham em circulo para a direita, o palhaço pula no sentido
contrário ou sem sentido algum. A relação entre folia e palhaço no mito e no ritual, em
suma, cria incessantemente várias fronteiras diante o fluxo caótico da experiência, entre
devoção e transgressão, que se estende para as noções de inato e artificial, de natureza e
cultura, mas que, levando em conta o estado marginal do palhaço, as extravasam.
A folia de reis é um grupo musical itinerante e tem como função primeira levar a bandeira
e, por meio do encantamento, abençoar as casas que a recebem. Para isto ela depende das
relações que vão sendo criadas no decorrer da sua jornada. Como componente do caminho
que leva essas pessoas a deslocarem-se de casa em casa, existe um ambiente cultural
imanente e imprescindível, sobre o qual os foliões pouco têm acesso durante o ritual, o que
não quer dizer que não atuem sobre ele. A partir deste ambiente que essas pessoas
incorporam em sua história de vida na tradição dos Reis Magos – os foliões buscam
constantemente uma diferenciação entre si para que seja possível a criação de novas
relações que serão responsáveis pela orquestração do ritual. Esta diferenciação consiste,
por exemplo, na entoação do canto em registros melódicos diferentes, nos repiques das
caixas que sobressaem às batidas da base rítmica e, sobretudo, por ser um elemento que
engloba os demais, em estilos de devoção diferenciados. Todavia, ao invés de essas
diferenciações revelarem o indivíduo acima da folia, elas evidenciam o folião devoto que,
por meio das articulações com outros foliões e da complementaridade que estas
63
diferenciações agenciam, criam a folia de reis e, a partir dela, um canal de comunicação
com o sagrado.
Por outro lado, o palhaço mascara o devoto que, como os demais foliões, tem também
uma missão a ser realizada habilitando-o a explorar os contrastes entre os tabus e suas
transgressões e, por meio do riso e das performances cômicas, encerra uma espécie de
exploração do caos, uma regeneração por meio de sua capacidade de metamorfosear-se e
escapar à categorização. Assim, ele evidencia o indivíduo em uma performance sempre
singular e inusitada, fora dos cânones que produzem o ideal de devoção para os foliões e
para as donas ou os donos das casas.
Os palhaços de folia são personagens que jogam de forma mais estereotipada com a
dialética entre mito e práxis ao explorar a desordem, agindo contrariamente às regras de
etiqueta do ritual. Como o “bufão” ou “palhaço cerimonial” descritos por Georges Balandier
(1982 e 1996), o palhaço age de forma imprevisível, esquivo às normas, revelando a
incerteza na frouxidão do movimento e uma transgressão impossível aos demais, gerando
crises: “ele mostra que as classificações impostas pela sociedade e pela cultura podem ser
confusas; ele parece destruir para reconstruir de modo diferente; ele cria na desordem (...)”
(Balandier, 1982: 30). Assim, a desordem tem o seu lugar em potencial justamente na figura
do palhaço que, tornando-a apreensível em seu desempenho ritual, concentrando-a, pode
ser simbolicamente capturada pela comunidade. Victor Turner argumenta que as
performances estruturadas em fases distintas do processo ritual, sustentam símbolos que
se tornam fatores das ações sociais, “(...) a positive force in activity field” (Turner, 1982: 21).
Nesse sentido, os símbolos rituais são entidades dinâmicas que não apenas dão sentido ou
organizam o universo social, “(...) but creatively to make use also of disorder, both by
overcoming or reducing it in cases and by its means questioning former axiomatic
principles that have become a fetter on the understanding and manipulation of
contemporary things” (idem. Ênfase original).
José Jorge de Carvalho (2004) explora a simbologia da violência e da desordem nos
espíritos da “esquerda” nos rituais da jurema e da macumba a partir de seu “movimento
centrífugo” e sustenta o argumento de que a exploração do caos na experiência religiosa
(“when body and spirit are least separated” [idem: 26]) opera em uma lógica da
64
imprevisibilidade de um mundo desestruturado quando os indivíduos atuam em um
“terceiro estado” que não respeita a continuidade entre as noções de natureza e cultura e
que emerges thus as a sort of refuge of consciousness, as a reminder that becoming
human is always a incomplete process, still to be totally achieved” (idem: 25). Como seres
marginais e, portanto, a partir de uma perspectiva externa às convenções estabelecidas, os
personagem que atuam neste estado forçam e recriam os limites da “consciência
simbólica”. É habitando um lugar entre o céu e o inferno, entre a boa ordem e a má, entre
“o rei que veio pra salvar o mundo” e o rei antigo e perverso, que o palhaço força os limites
da devoção. Ator da desordem e do movimento, ele gera de modo contínuo
transformações nas molduras do ritual.
***
Zumbi, dezembro de 2006. A primeira vez em que ouvi o som da folia de Seu João, no
último ensaio antes do Natal foi também a data em que Alessandro (Guinho), jovem que
dá vida ao palhaço Truvuada, declamou seus primeiros versos no meio dos caixeiros.
Minha presença ali na casa de Marília e Rogério, sem dúvidas, foi responsável por uma
mobilização excepcional, o que eu havia notado anteriormente, quando seu João me
pediu para levá-lo às casas de alguns foliões para convocá-los para o ensaio, dizendo que
não podiam deixar de comparecer porque tinha “um pessoal de Vitória” que iria assistir. O
mestre aparentemente também estava exigindo uma performance diferenciada das dos
ensaios comuns, pois ele pediu para os palhaços que falassem alguns versos, ainda que sem
suas máscaras, o que causou protestos e recusas dos três, e uma conseqüente retaliação do
mestre, que reclamou obediência: com a autoridade do seu apito, fez silenciar todas as
caixas – que já marcavam a chula – e fez um longo sermão, dizendo que todos ali deveriam
obedecer sem pestanejar, aos mandatos do mestre. Tímidos, começaram a falar versos,
poucos. Sem a máscara eles ainda não eram palhaços.
Ao fim do ensaio, Guinho me convidou para conhecer a sua casa, mas o que de fato ele
queria me mostrar era sua farda. Primeiro a máscara, novinha, os cabelos de cabrito
cuidadosamente penteados. E também o brilho preto e vermelho do cetim de suas vestes,
penduradas no cabide talvez o único que havia em seu quarto onde uma grande cruz
negra reluzia na parte das costas. E o bastão, ainda só na idéia, já era suficiente para retirar
65
aquele cabo de enxada de seu lugar comum e transformá-lo, sendo posteriormente
enfeitado com fitas e borracha.
No segundo dia da jornada daquele ano, que iniciou no dia de Natal e terminaria no dia 20
de janeiro, dia de São Sebastião, passando por um momento crucial no dia de Reis 06 de
janeiro a primeira casa em cuja porta seu Jair (bandeireiro da Estrela do Mar) encostou a
bandeira foi no Bar do Russinho, descendo da casa de Marília e Rogério, na parte baixa do
Zumbi. Após a toada de chegada e a oferta de refrigerante, vinho e um ou outro pacote de
um salgadinho industrializado, os três palhaços começaram falar versos, um após o outro.
Fato que animou muito os presentes, em certo momento os mascarados começaram a
intercalar estrofes em improviso de repente, desafio. Ao mesmo tempo em que moedas
tilintavam aos pés dos palhaços, a audiência, principalmente de crianças moradoras do
bairro, tentava descobrir a identidade secreta: o Passo-Preto é Dibanda, o Catisco é
Vitinho, e o Truvuada é Guinho. O dono do bar então resolveu fazer uma charada para os
palhaços e dispôs, para cada um deles, duas cédulas de dois reais em forma de cruz, de
modo que para retirá-las dali, tiveram que ajoelhar e desmanchar o cruzeiro em verso.
Embora seja muito claro que uma metamorfose pelo mascaramento aconteça, todos
sabiam o nome da pessoa que estava por trás da máscara. Assim, existe uma oscilação em
relação à referência dos foliões e da audiência entre palhaço e devoto, de modo que este
tende a “aparecer” nos momentos de falha técnica (por exemplo, quando um improviso
tem rima pobre para a avaliação local, quando ele pouco espalha o corpo ou de modo
insatisfatório para o contexto, como quando utilizam de modo exacerbado movimentos de
capoeira) ou de baixa criatividade ao ponto de revelar as artimanhas técnicas do
mascaramento. Além disso, é notável a modulação dos sentimentos das crianças, que os
ridicularizam à distância, entre medo e euforia, parte da construção de um evento que
pouco pode ser explicado.
Para os palhaços das folias de reis, o “mascaramento” o se restringe apenas à máscara,
mas leva em conta também o modo como cada um enfrenta as expectativas do público da
roda, para quem ele se transforma. Os melhores palhaços são aqueles que efetuam um
mascaramento mais eficaz, aqueles que não deixam o ator aparecer para a audiência.
Assim, a chula é um evento em que a principal atração é a criação espontânea de um
66
personagem, a transformação em si mesma, um jogo em que a inventividade do palhaço
em relação às expectativas das pessoas da roda é mediada pela tradição. Assim também,
fica patente que o resultado estético, ou seja, o produto da performance em si mesmo, não
é o foco da ação, mas o processo de criação espontânea, do improviso, que define-se como
relação entre formas tradicionais e contexto da prática. Como afirma João Miguel Sautchuk
em tese recente sobre o improviso no repente nordestino, “as interações exigem o
conhecimento prático de uma semiologia espontânea (decodificação das ões) e da
capacidade de improvisar e desenvolver estratégias, a partir da leitura imediata da
situação” (Sautchuk, 2009: 08).
Nesse sentido, penso que esta transformação dos palhaços, este mascaramento efêmero
que coexiste com sua criação estética e ritual é parte importante da emergência não
apenas do personagem palhaço, mas também da construção da categoria devoção, seja na
interação deste com os foliões, seja no jogo com a roda de participantes da brincadeira
que, muito além de meros expectadores passivos, participam também da produção de
personagens.
Para Vincent Crapanzano (1993), o self, sendo um produto social e cultural, é uma captura
momentânea, uma objetificação do devir dialético entre a pessoa e a alteridade, de modo
que esta objetificação depende de uma tipificação por meio da linguagem, mediadora
desta dialética e guardiã do significado que permite o “jogo do desejo”. A descoberta não é
a de uma alteridade estática, mas de uma relação que depende da emergência de sua
própria alteridade pela tipificação e possessão do outro. Esta captura e esta possessão
dependem de uma estabilidade momentânea e ilusória garantida por uma relação triádica
em que a emergência do self e do outro é mediada por um Terceiro, entendido de um
modo geral como convenção ou coletivização desta relação
26
. A noção de pessoa é,
portanto, uma ilusão socialmente inevitável, uma ilusão que “mascara” a complexidade da
dialética entre self e alteridade ao propor uma “referência” para a simbolização da
personalidade (Crapanzano, 1993, 91).
26
This Third may be the voice of conscience (the incorporation of the father’s authority, in Freud’s
scheme); of various demons who may be “present” at any human interchange: of God, in his
omniscience and omnipotence; of the community, the party, and the cause; and most interestingly, of
the other as the subject of transference (Crapanzano, 1993, p. 88).
67
O que poderia ser mais significativo nesta objetificação do que o objeto máscara, tal como
utilizada pelo palhaço das folias de reis e por diversas tradições? Antes de qualquer coisa, é
importante lembrar que as noções de máscara e de personalidade, assim como foi revelado
por Marcel Mauss (2003) são derivadas de uma mesma categoria.
A máscara é um objeto complexo que encarna e eclipsa uma miríade de relações. Ela
“mascara” o devoto, não o fazendo desaparecer totalmente, mas promovendo uma
restrição momentânea da consciência das pessoas que interagem com o mascarado no que
se refere à sua identidade ao atribuir a identidade do ser simbolizado pela máscara à
pessoa que a veste. Acredito que este mascaramento, entendido como restrição da
consciência, seja parte integrante da produção de personalidades na tipificação inevitável
da categoria devoto e, dessa maneira, do conceito de humanidade que é tributária em
grande medida da emergência do contraste entre foliões e palhaços e que delimita o
contexto do ritual das folias de reis.
Nesse ponto de vista, o mascaramento, enquanto mecanismo de simbolização, não encerra
seu uso apenas no objeto máscara, embora esta tenda a encobrir as demais formas de
mascaramento. Ao perguntar-se como as máscaras trabalham, ou seja, como elas realizam
suas funções, Donald Pollok (1996) as define como
(...) only one of a variety of semiotic systems that are related through their
conventional use in disguising, transforming or displaying identity, and that
masks therefore ‘work’ by coordinating the iconicity and indexicality of signs of
identity, as identity is understood in any particular cultural context (Pollok,
1996: 582).
O argumento central deste autor é que todas as culturas possuem signos convencionais
por meio dos quais a identidade é apresentada, revelada e, conseqüentemente,
transformada ritualmente, ou ainda, o modo como cada cultura produz os signos que
“apresentam” os indivíduos como “pessoas” e que possuem “identidade”. A partir desta
definição abrangente de máscara, o autor nota que, embora exista uma ênfase na face, não
é apenas nela que estes signos são localizados, assim como existem outras técnicas que não
o objeto máscara como modo de transformação da identidade e da personalidade. O que
Pollok entende por “máscara” é toda a técnica que realiza o efeito especial de modificar um
68
número limitado de signos convencionais responsáveis pela emergência da personalidade.
Como ser instável, o palhaço desorganiza estes signos criando a necessidade da produção
dos sujeitos e, assim, das formas de interação.
Como a transformação do palhaço, por meio do uso da máscara, o investe de poder? Não é
o palhaço isoladamente que investe a máscara de poder, mas, como afirma Mauss (2003
[1938]), a coletividade. Como exemplo, Aldona Joanaitis (1982) afirma, sobre as máscaras
xamanísticas Tlingit, que “(...) the manner by which the Tlingit ascribe spiritual potency to
their shamans’ masks is similarly subtle and involves the actual process of wearing masks
specifically organized into complementary subsets (125)”. Isto nos leva a pensar que, no
contexto de aquisição de poder que é simultâneo à ação deste poder – figura e fundo não
se distinguem, pois o ritual em si, a ação principal do xamã e o que ela cria, eclipsa uma
série de ritos paralelos – como a manipulação e ordenação de objetos, a entoação de
melodias e fórmulas mágicas etc. essenciais para a eficácia mágica como um todo. Em
suma, não mensagem eficaz se o meio não for adequado, meio este constituído a partir
de uma estética específica e pela formação de uma roda de pessoas que interagem com o
palhaço e com o conjunto dos foliões que dão o compasso da chula e que também avaliam
seu desempenho.
Dessa forma, é importante perceber que a máscara mais precisamente o ato de vestir
uma máscara com uma estética específica é o principal dos signos que atuam para o
“mascaramento” (o conjunto dos objetos e das ações que dão vida ao palhaço). Mas isto
não acontece se seus versos saírem quebrados, se o palhaço não tiver suas vestes sujas e
rasgadas e se estiver desprovido de um forte bastão. Mas não é a ação apenas do palhaço,
de seu bastão e de sua farda (conjunto de máscara e vestes) que confere poder a este
personagem.
O palhaço extrai sua força mágica do seu poder de cópia, para parafrasear Michael Taussig
(1993), que deriva este termo da noção de magia simpática desenvolvida por Frazer,
principalmente da lei de similaridade, segundo a qual o semelhante age sobre o
semelhante, a cópia afeta o original de modo que a representação adquire propriedades do
representado. Taussig também sustenta que esta semelhança é “puramente teórica ou
abstrata”, de modo que o “original” a partir do qual esta cópia é gerada não é algo estável,
69
mas um ideal, um modelo que se cria com sua própria atualização. Este poder é, mais uma
vez, subsidiário da habilidade do palhaço em mascarar o devoto, e do devoto em
evidenciar e dar vida ao palhaço.
Para Mauss, a eficácia da magia resulta de seu estatuto de criação. A magia enquanto ação
ritual possui uma força de transformação de estados que envolve causa e efeito, mas de um
modo muito diferente da causalidade mecânica, visto que implica em uma “confusão de
imagens” que é em si mesma um objeto de representação. (Mauss, 2003 [1904]: 99). Ao
afirmar que “a noção de imagem, ampliada, torna-se a de símbolo” (Mauss, op. cit.: 105), a
magia, por meio do mecanismo da simpatia (Teorizada antes de Mauss por Tylor e, em
especial, por Frazer) cria um paralelismo entre imagens, ou melhor, entre símbolos e
coisas simbolizadas, uma relação não ideal, mas real, pois acredita-se de fato nas
conseqüências desses atos. A criação essencial do rito mágico é, portanto, escolher os
símbolos e dirigir seu emprego, assim como limitar as conseqüências das assimilações
simbólicas.
Por seu turno, Lévi-Strauss destaca o papel preponderante das relações entre categorias
analíticas, das quais a relação entre símbolos e experiência ganha dinamicidade. A cura é
tratada como manipulação psicológica do xamã, que ao produzir uma mudança de estados
e uma exacerbação da sensibilidade, revive uma “crise inicial” que revelou seu estado e que
“objetifica a crença coletiva” em sua técnica (Lévi-Strauss, 2003 [1949]: 209). Em A eficácia
simbólica, texto em que é analisada a cura de uma paciente com complicações de parto
entre os Cuna, Lévi-Strauss diz que o reviver do mito no corpo da paciente, promove uma
confusão entre a realidade e o mito, este último desenvolvendo-se no corpo fisiológico, de
modo que a cura ultrapassa o plano puramente individual para reconstituir uma desordem
cósmica que se intensifica na incoerência física da dor. O xamã, dessa forma, é o agente
que trata de abolir momentaneamente a fronteira entre mundo exterior (o do mito) e o
interior (o da experiência), de modo a reordenar este e dar termos novos àquele – Mauss
havia afirmado que, em relação aos ritos orais, cujas conseqüências não se resumem
apenas em evocar um poder e especializar um rito, “presentifica-se a força espiritual que
deve fazer o rito eficaz” (Mauss, 2003 [1904]: 93).
70
Foi em meio a esta questão da “confusão de imagens” entre mito e experiência que Taussig
(1993) desenvolveu seu trabalho sobre o pensamento mimético nas “sociedades
espiritualizadas”. Este autor (a partir de etnografia realizada com os Cuna, tempos depois
do célebre texto de Lévi-Strauss) especula que
(…) what enhances the mimetic faculty is a protean self with multiple images
(read ‘souls’) of itself set in a natural environment whose animals, plants, and
elements are spiritualized to the point that nature ‘speaks back to humans,
every material entity paired with an occasionally visible spirit-double a
mimetic double! – of itself” (idem: 97).
Se no mundo desencantado do capitalismo o self idealmente precisa centrar-se de modo
indissolúvel no indivíduo, permitindo assim uma ética da dominação, da possessão e do
acúmulo da natureza morta e não espiritualizada, nas sociedades que Taussig chama de
miméticas ou espiritualizadas, o self é descentralizado do indivíduo e transita em
diferentes contextos por meio da “faculdade mimética”. É nesse mundo espiritualizado que
se constroem pontes entre contextos por meio de analogias entre domínios, como intuiu
Hermann Hesse no “Jogo das Contas de Vidro” (2007 [1943]), em que a experiência de
universalidade vivida no “jogo de avelórios”, uma vivência de analogias entre as mais
variadas instâncias da vida, depende, a rigor, da prática da meditação, uma prática que nos
é revelada como profundamente espiritual.
Ao visualizar o palhaço no ritual das Folias de Reis, somos levados a pensar que esta
articulação entre contextos ou entre mundos (o mundo dos Reis Magos e do Menino Jesus,
o dos antigos e o dos atuais foliões), entre macro e microcosmo, tem neste personagem sua
propulsão mais intensa, sendo ele, em especial, agente daquela “confusão de imagens” que
nos fala Mauss por meio de sua faculdade mimética. Como vimos anteriormente, a
presentificação da jornada mítica é estabelecida se houver o encantamento proferido
pelas toadas, que dão movimento à simbologia mítica; é o palhaço, todavia, que “abre o
caminho”, que reduz a diferença entre os personagens míticos e os foliões. Ele faz a
mediação entre deuses e homens e extingue, momentaneamente, a distância entre eles.
Ao se mascarar, o palhaço deixa de habitar o domínio da coletividade para encarnar um
personagem imerso em uma profunda ambigüidade. Mesmo tendo se convertido, sua
71
identidade não deixa de estar ligada a Herodes, que os envia para matar o Menino. Ele é
um personagem que tem contato tanto com o Salvador, que nasce para fazer nascer um
novo mundo, um mundo em que as relações sociais tornam-se possíveis, diferente do que
acontece com o mundo dominado pelo perverso Herodes. A máscara investe o palhaço
desta condição espiritual incerta, fundamental para a eficácia do ritual como um todo, ao
desrespeitar quase todas as formalidades que os foliões devem observar.
Outro fator importantíssimo para a compreensão deste personagem misterioso passa pela
relação íntima entre as Folias de Reis e a macumba no Zumbi. Em especial, o palhaço é
constantemente relacionado à figura misteriosa do deus Exu. As cores vermelho e preto, os
chifres e a própria pele de carneiro da máscara, índice de uma sacrifício animal, a súbita
eloqüência do porrete, são símbolos que saltam aos olhos no que concerne à semelhança
entre estes seres. Também os nomes dos palhaços, como lembra Paulino (2008), são
semelhantes aos nomes dos Exus. Neste ano, o Palhaço Truvuada, da Folia de Reis Estrela
do Mar, saiu com a cabeça de um Exu na extremidade do porrete (imagem XIII, p. 110).
Como uma forma de mostrar uma manifestação da relação da folia e especialmente do
palhaço com a espiritualidade da macumba, passo à descrição da visita da Estrela do Mar
ao centro de Dona Isolina, no alto do Zumbi, no dia dos Santos Reis (06 de janeiro) de
2010.
***
Era perto das onze horas da noite. Mestre Rogério deu a ordem e, mesmo surpresos por
não ser costume bater marcha à noite, os foliões formaram fila e, ao apito, seguiram para a
porta do Centro de Dona Isolina. Lá chegando, o apito fez cessar a marcha e iniciar a toada
lenta. Cantando, a folia desceu alguns degraus e estacionou em frente ao cruzeiro, onde o
mestre fez (em verso) o Calvário de Cristo. Mais uma vez, a toada embalada, a bandeira se
movimentou, dessa vez em direção à porta principal do centro. Enfileirados na escadaria
estreita, os foliões desciam durante o estribilho e paravam enquanto os versos eram
entoados, seguindo dessa maneira até a bandeira bater na porta, onde foi recebida por um
senhor do topo da hierarquia do Centro. Pegou-a e parou em frente ao presépio, onde a
folia cantou não menos que durante trinta minutos, tempo necessário para desmanchar o
presépio. A parada seguinte foi no cruzeiro de São Sebastião, santo este cujo ciclo (de 07 a
72
20 de janeiro) iniciaria a partir do primeiro minuto do dia que se aproximava. E dali, a
bandeira seguiu para sua última parada, o altar principal, onde havia uma imensa imagem
de Nossa Senhora Aparecida, para quem Rogério devotou inúmeros versos. Ao fim da
toada, a Dona do Centro anunciou a chegada do tempo de São Sebastião, “nosso
advogado”, e prestou homenagem ao falecido mestre João Inácio.
Sem descanso para os foliões, Rogério comandou o início da chula para os palhaços
entrarem. Esta noite, quem defendia a bandeira da Estrela do Mar eram os palhaços
Fumaça e seu filho de não mais que dez anos, Fumacinha. Este entrou primeiro, não
ficando por muito tempo devido a sua rouquidão. Fumaça iniciou seus versos do lado de
fora do centro, e pediu licença insistentemente para entrar na casa sagrada. Ao entrar,
deparou-se com o cruzeiro de São Sebastião:
Canivete é filho de faca
Faca é filho de facão
Jesus caminha pelo céu
E eu pulo aqui no chão
Peço licença à senhora, Dona Isolina
Ponho o meu joelho no chão
Falo dos seus copos d’água
Pro cruzeiro de São Sebastião
Peço licença à senhora
Posso pegar na sua mão?
O palhaço Fumaça é uma espécie de lenda no Zumbi. Dizem que palhaço igual não e
que todos os bons palhaços de Cachoeiro devem a ele muito do que sabem. Hoje não
está em sua melhor forma, devido a sua idade avançada e aos anos de cachaça e outros
vícios. Mas, ainda assim, naquela noite, a assembléia numerosa do centro reuniu-se ao seu
redor com muita satisfação para ver seus pulos e ouvir seus versos.
Ajoelhado mais uma vez em frente ao cruzeiro em que se lia “São Sebastião, o Santo dos
Mártires”, Fumaça chamou Rogério e Dona Isolina para pegarem cada um em uma de suas
mãos, o que fizeram e junto a ele ajoelharam-se. O palhaço continuou conduzindo aquele
ritual em versos até que uma crise corporal em Dona Isolina fez-nos perceber que havia
chegado um espírito, que logo o palhaço pediu que desse a sua mensagem. O espírito
então começou a entoar uma toada de folia, acompanhada pelos foliões ali presentes,
73
versando, inicialmente, sobre sua própria identidade. Fez saber, então, que se chamava
Júlio, um mestre folião, e que chegara para dar início ao batismo do palhaço Fumacinha.
Uma vela acesa a ele foi entregue e, em seguida, um copo com água benta, com a qual
ungiu a cabeça do palhacinho em forma de cruz.
De acordo com Lino, contramestre da Estrela do Mar, o palhaço é quem desvia os espíritos
que pairam no terreiro enquanto a folia está cantando. Seus berros são fundamentais para
que os espíritos não baixem nos foliões. “Quando ele que indo bem fundo, ele tem
que berrar”. Prova disso é o fato de o mestre Júlio ter tomado a cabeça da dona do centro e
não a de um folião. É muito importante, para este propósito, que o palhaço seja também
um adepto da macumba, ou, pelo menos, que conheça muito bem este culto. Na Folia de
Reis Estrela do Mar, Guinho, o Palhaço Truvuada, é quem geralmente desmancha as
entidades dominantes de um centro. Antes de entrar em um terreiro – o que só faz quando
é convidado a pular sua chula – ele pede licença à casa de Exu, que geralmente fica
próxima ao cruzeiro, perto da porta principal, fala versos para o cruzeiro e para as demais
entidades que defendem a entrada da casa. Significativamente, ele é Ogã, responsável
pelos ritmos dos atabaques do Centro do Galo, que tem como dona a sua tia. Os versos
seguintes foram improvisados pelo palhaço Truvuada na saída do dia 19 de janeiro de 2007,
na primeira parada da noite, realizada no Centro do Galo.
Eu tava correndo da morte
Eu entrei em desespero
Eu até pulava muro
Arrepiava meus cabelos
Tia Eleni eu quero saber
Se eu posso passar pelo cruzeiro.
Eu gosto do baralho
Por causa do vinte-e-um
Eu também quero saber
Se eu posso passar da casa de Exu.
Na guerra que teve aqui
De guerreiro eu fui um
Eu também quero saber
Seu posso passar da casa de Omulu.
Fevereiro março abril
74
Março abril e fevereiro
Agora eu quero saber de vocês tudo
Eu posso brincar dentro do terreiro?
A cada pedido de licença, o palhaço espera a autorização da dona do terreiro antes de
ordenar o reinício da chula com um “faz de novo bateria” ou “rasga o fole sanfoneiro...” No
repente acima está presente uma fórmula comum de improviso, na qual o palhaço fala de
sua própria índole, do seu lugar sombrio, para rimar com o pedido. Para entrar no lugar
sagrado do terreiro, é preciso que ele se retrate, que deixe bem claro quem é e o perigo que
chega com a sua presença, para então pedir permissão à chefe espiritual.
A partir de casos como este que são inúmeros, que muito raramente a bandeira não
entra em um centro de macumba durante uma saída nota-se que existe uma
continuidade nos rituais de possessão e das folias de reis na região de Cachoeiro de
Itapemirim, rituais que se conectam e ampliam suas fronteiras no momento em que a
bandeira “bate na porta” do centro. O principal vetor desta conexão é a extensão da
espiritualidade, de modo que a folia engloba o espaço sagrado do terreiro, assim como o
centro engloba a folia. Se para o mestre e para os palhaços é preciso saber desmanchar os
símbolos do centro, para as pessoas do centro é preciso saber receber a bandeira.
Com o objetivo de investigar a proximidade dos palhaços e dos Exus neste ambiente
espiritual compartilhado pelos adeptos da umbanda e pelos foliões, traço a seguir algumas
das principais características mitológicas desta entidade, embora, como antecipa Pierre
Verger, seja este “um orixá (...) de múltiplos e contraditórios aspectos, o que torna difícil
de defini-lo de maneira coerente” (Verger, 2002: 76).
De acordo com Cardoso e Rodrigues (2001), os Exus transitam entre o mundo dos deuses e
o mundo dos homens, tendo passado pelas vicissitudes que estes passam. É procurado para
a resolução de problemas rápidos, pois é a entidade da umbanda que mais possui
qualidades mundanas: irreverência, gosto por brincadeiras, gozação e diversão, palhaçadas,
caráter lúdico, além de possuir características de cunho agregador. Os Exus, devido a este
caráter liminar, têm o poder de aproximar os contextos humano e não humano, terreno e
divino, ritual e mítico.
75
Mitologicamente, como mostra Prandi (2001), Exu é o deus que transita entre o mundo dos
homens, Aiê, e o mundo dos deuses, Orum, para transportar as oferendas feitas aos orixás.
Ele estabelece a comunicação entre os homens e os deuses e estes entre si. Sua
ambigüidade é fundamental para seu encargo. Os homens se dirigem aos deuses ao
dirigirem-se a Exu, que deve ser pago por seu trabalho com oferendas e sacrifícios (o que
vai contra o ideal cristão do trabalho desinteressado da caridade). Nas palavras do autor,
Como mensageiro dos deuses, Exu tudo sabe, não há segredos para ele, tudo ele
ouve e tudo ele transmite. E pode quase tudo, pois conhece todas as receitas,
todas as fórmulas, todas as magias. Exu trabalha para todos, não faz distinção
entre aqueles a quem deve prestar serviço por imposição de seu cargo, o que
inclui todas as divindades, mais os antepassados e os humanos. Exu não pode
ter preferência por este ou aquele. Mas talvez o que o distingue de todos os
outros deuses é seu caráter de transformador: Exu é aquele que tem o poder de
quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma e promover a
mudança. Não é pois de se estranhar que seja considerado perigoso e temido,
posto que se trata daquele que é o próprio princípio do movimento, que tudo
transforma, que não respeita limites e, assim, tudo o que contraria as normas
sociais que regulam o cotidiano passa a ser atributo seu. Exu carrega
qualificações morais e intelectuais próprias do responsável pela manutenção e
funcionamento do status quo, inclusive representando o princípio da
continuidade garantida pela sexualidade e reprodução humana, mas ao mesmo
tempo ele é o inovador que fere as tradições, um ente portanto nada confiável,
que se imagina, por conseguinte, ser dotado de caráter instável, duvidoso,
interesseiro, turbulento e arrivista (Prandi, 2001: 52)
Segundo Verger, ele é considerado “o mais humano dos orixás, nem completamente mau,
nem completamente bom” (Verger, o.p. cit.). Sobre seu caráter agregador, Verger pontua
que, “como orixá, diz-se que ele veio ao mundo com um porrete, chamado ogó, que teria a
propriedade de transportá-lo, em algumas horas, centenas de quilômetros e de atrair, por
um poder magnético, objetos situados a distâncias igualmente grandes” (Verger, o.p. cit.)
Assim como Exu, o palhaço é um agente da universalidade. Ele habita um lugar
privilegiado para a construção da totalidade. O florescimento do palhaço dentro da folia de
reis projeta o infinito das relações sociais na interação entre ele e os foliões, sendo um ser
ambíguo e intermediário que vaga entre contextos criando entre eles uma ponte. A
encarnação da folias de reis depende em grande parte das portas que o palhaço abre. Ao
chegar a um terreiro, os foliões entoam as toadas anunciando o nascimento e a adoração
76
dos Três Reis e também evocam as entidades que o mestre julgar imprescindível a partir da
presença de algum símbolo ligado a elas, contando sempre com os berros do palhaço para
manter uma mínima distância, a que impede a possessão dos foliões. Em seguida, o
palhaço dança sua chula e, com seus versos envoltos de uma atmosfera cômica, apresenta a
todos a existência de uma conexão entre os contextos. Ele equipara os estilos de devoção,
pois sua violência corporal se aproxima daquela dos transes dos fiéis do centro, assim
como revela a relação existente entre os santos da umbanda e os da folia, sendo estes, em
grande medida, habitantes do macrocosmo dos dois tipos de devoção, como foi São
Sebastião no evento descrito acima.
Segundo José Jorge de Carvalho (2004), a essência dos “espíritos de esquerda”, como a
Pomba-Gira e Exu, é promover uma violência simpática ou metafórica: “the imaginary gets
finally united with the principle of reality, the distance between signifier and signified that
traditionally sustaisn the relative autonomy of religious field, disappears” (Carvalho, 2004:
15). É bastante significativo, a partir disso, que no Zumbi as Folias de Reis não sejam
aceitas nas casas dos crentes (os convertidos às religiões evangélicas), que são os principais
rivais da macumba. É muito provável que neste contexto de rivalidade espiritual a
associação do palhaço ao diabo derive da confusão entre este e Exu. Esta confusão passa,
na verdade, pela sobreposição dos significados cristão aos símbolos que não podem ser
explicados nos termos de uma oposição entre céu e inferno.
Para atingir esta universalidade de contextos, ou seja, este poder de relacionar
metaforicamente significante e significado, o palhaço também totaliza o seu corpo ao se
mascarar, buscando uma percepção integrada do mundo a partir dos sentidos corporais de
sua dança, extraindo sua eficácia simbólica, como afirma Blakcing (1985: 65), do sentido
sensorial do corpo ao produzir uma seqüência de ação não-verbal. A performance da dança
pode estimular a imaginação e ajudar a dar coerência à vida sensorial, que, por seu turno,
afeta a motivação, o compromisso e a tomada de decisões em outras esferas da vida social.
Além disso, a violência da performance dos palhaços revela a resistência de uma
espiritualidade que é, segundo Carvalho (2004) rejeitada por outras religiões.
Para Deleuze e Guatarri (1996 [1980]) o rosto (ou, mais precisamente, a “rostificação” do
corpo) não é universal, é branco, europeu, colonizador. É o senhor das fazendas de café de
77
outrora e é o patrão de hoje. A “máquina abstrata da rostidade” desencadeou a
“significância” e a “subjetivação”, impostas por “agencimentos de poder bastante
particulares”, instâncias de uma semiótica despótica que não suporta a multiplicidade e a
ambivalência, enxergando o exterior sempre como uma deterioração do interior. A
máscara do palhaço surge, nesse ínterim, como uma recusa ao rosto. A máscara “primitiva”
(em oposição à mascara ocidental que “rostifica” o corpo), segundo estes autores, “assegura
a pertença da cabeça ao corpo mais do que enaltecem um rosto” e assim, fortalece a
experiência da corporeidade em contraposição à univocidade expressiva do rosto
27
.
Em sua atuação no ritual das Folias de Reis, o palhaço opera uma transformação mágica
que assemelha sua trajetória à dos soldados convertidos de Herodes e também a dos
antigos palhaços que habitam o imaginário dos devotos. A herança dos palhaços mais
antigos e mais fortes que fica para os mais jovens é o legado de alguns dos seus versos.
Lembra-se do palhaço ao lembrar, em primeiro lugar, de certos versos que continuam
circulando entre os palhaços atuais. Estes, porém, não figuram isoladamente, mas
incorporados à performance do palhaço que é sua fonte última. Por isso, a circulação dos
versos entre gerações é também a circulação dos palhaços antigos, que são então
personificados na atuação desses versos. É muito comum, a exemplo disso, que ao proferir
uma décima bem conhecida os palhaços evoquem a presença de antigos palhaços por meio
do contraste entre as atuações. Assim, fala-se que os versos são de algum antigo palhaço. É
razoável pensar, portanto, que o “mascaramento” dos palhaços floresça principalmente na
performance, de modo que o contraste entre atuações figure como fonte de produção do
personagem único que é cada palhaço durante sua atuação. É neste contraste entre velhos
é bons palhaços (os que foram palhaços de verdade) e os contemporâneos, que estes, com
suas motivações, evocam os antigos e criam seu lugar, junto com os soldados de Herodes
convertidos, como mediadores espirituais.
Ao palhaço, esta capacidade está localizada principalmente em sua habilidade de
improvisar e de falar décimas, tanto quanto de dançar e espalhar o corpo. Os canais de que
27
“(…) não há significância sem um agenciamento despótico, não há subjetivação sem um agenciamento
autoritário, não mixagem dos dois sem agenciamentos de poder que agem precisamente por
significantes, e se exercem sobre almas ou sujeitos (...) Trata-se de uma abolição organizada do corpo e
das coordenadas corporais pelas quais passavam as semióticas polívocas ou multidimensionais” (Deleuze
e Guatarri, 1996: 49).
78
fala Pollock são os pontos de ligação privilegiados entre este mundo e o sobrenatural. Para
o palhaço, que também utiliza a máscara convencional, a voz, a perspicácia do improviso,
ou seja, a propriedade rítmica do evento, o elementos importantíssimos para completar
o mascaramento.
Pode-se dizer também que o mascaramento leva em conta o efeito de restrição que, de
acordo com Gregory Bateson (1976, 104-105), é parte integrante da arte ao transformar a
causalidade em mensagem supostamente estruturada internamente e externamente, por
integrar-se a um universo estruturado. Esta estruturação pode estar também, suponho,
envolvida na arte de transformar a pessoa por detrás da “máscara” em um ser único do
ritual (reflexão que enfatiza o código/ forma, e não a mensagem/ conteúdo). Esta
“restrição” ou “economia” é recolocada em termos da equação de subtração entre
consciente e inconsciente, que nos reporta para o conceito de “mascaramento” de que fala
Roy Wagner, ou seja, de que esta restrição é uma “restrição da visão”, uma forma de
“obviação” necessária para todo ato de simbolização, que é sempre uma invenção (Wagner,
1981). Não podemos ser conscientes de todos os processos em curso, mas apenas sobre os
quais nos debruçamos, sobre aqueles aos quais nossa ação se concentra; ao focar nossa
ação em algo estamos sempre partindo de uma realidade como dada ou natural, e assim
criamos uma ilusão de “referência”. Nas palavras de Bateson,
Consciousness, for obivious mecchanical reasons, must always be limited to a
rather small fraction of mental process (…). The unconsciousness associated
with habit is an economy both of thought and of consciousness; and the same is
true of the inaccessibility of the processes of perception. The conscious
organism does not require (for pragmatic purposes) to know how it perceives
only to know what it perceives (Bateson, 1976: 109. Ênfase original).
Para Bateson, o inconsciente só pode ser acessado muito pobremente pela linguagem
(prosa, racionalidade), pois o modo de exploração e objetificação do inconsciente é
reputado a formas tais como sonho, arte, religião, intoxicação, justamente formas de
comunicação tomadas como “irracionais” ou “primitivas” pelo conhecimento científico. O
inconsciente, para Bateson, (ou “coração”, “sentimentos”, os terrenos não acessados pela
racionalidade ou consciência) é caracterizado por focar as relações entre as coisas, não as
próprias coisas como pontos de referência; opera segundo um processo metafórico,
principalmente entre si e os outros e entre si e o ambiente. Em suma, estas características
79
seriam as de qualquer modo de comunicação entre organismos que podem utilizar um
modo de comunicação icônica.
É este modo de comunicação que a Folia de Reis estabelece, sendo o palhaço seu principal
condutor. A sabedoria, fonte principal de apropriação da identidade social entre mestres e
entre foliões tanto no contexto ritual quanto no curso das atividades rotineiras é, nos
termos de Pollock (1995), o canal apropriado para o trabalho da “semiótica da identidade”
no ritual. A sabedoria relaciona-se à propriedade do mestre e da folia em se aproximar
tanto quanto suas capacidades permitirem, da primeira Folia de Reis, a que recebeu do
Menino Jesus os instrumentos junto com a incumbência de anunciar o nascimento. Tais
capacidades são relacionadas principalmente à orquestração sonora e social dos foliões, da
capacidade de entoar o máximo de profecias apropriadas aos momentos. É importante que
notemos, no entanto, que não há uma folia de referência estabelecida e fixada à imagem da
qual as folias atuais devem acumular semelhanças.
A relação entre palhaço e foliões opõe estes dois tipos de comportamento (o devoto e o
não devoto) pondo-os em perspectiva, de modo a formar um quadro de referência em que
o que está em jogo é a definição de humanidade e não-humanidade dentro de uma série
restrita de relações. Assim, afora a multiplicidade de facetas que tanto a folia quanto o
palhaço podem tomar, as relações entre eles se formam primariamente por meio de seus
contrastes, que delimitam e contextualizam o ritual. Pelo contraste, a máscara deixa de ser
simplesmente uma forma de esconder um devoto para assumir a negação de algo que a
folia procura, ou seja, a categoria devoção e, por conseguinte, a categoria mais ampla de
humanidade, para que esta seja constantemente revista. O ritual estabelece e fortifica
relações sociais por meio da criação deste tipo de contraste.
Antes de proporem uma resolução para conflitos, os rituais das folias de reis são movidos
pela incessante relativização de certezas pré-estabelecidas, como as idéias absolutistas de
bem e mal, céu e inferno, etc. Se existe um objetivo, nunca um ponto de chegada, mas
sempre a abertura de novos caminhos e novas jornadas. A Folia de Reis, em sua ênfase na
busca, na problematização muito mais que na resposta, abre porta atrás de porta. A
tendência de quem tenta explicar, por geralmente estar associado historicamente à cultura
80
do acúmulo, das certezas sobre o universo e da verdade absoluta, é fechá-las ou ao menos
restringi-las.
81
III
Transformações nos Encontros de Bandeiras
82
03 de janeiro de 2009. É a primeira saída da bandeira neste ano, pois a chuva do dia 31 de
dezembro foi forte o suficiente para desanimar os foliões. Desta vez, o mestre João Inácio
não pôde comparecer devido à fragilidade de sua saúde. Às 21h30min, Rogério,
contramestre, se preparava espiritualmente e com muita cautela para assumir a chefia
da folia naquela noite. Ele não quis pôr o chapéu do mestre, mas pegou sua viola. Sabendo
que não seria uma tarefa fácil, tanto pela responsabilidade da folia quanto pela ausência da
força de Seu João, Rogério sentiu as provações já na tentativa de botar a folia na rua.
Antes de anoitecer o contramestre previra chuva, evidencia indicada pelo canto de um
pardal. Por volta das dez horas, Badé e eu sentimos o vendaval chegar enquanto
afinávamos as violas e os violões da folia. “Todos para a cozinha” bradou Marília, esposa
de Rogério. As telhas que estavam soltas no terraço desabaram. Os cachorros não paravam
de latir. A chuva entrava com o vento na cozinha coberta de zinco e por isso Marília fechou
a porta. Ouvíamos a chuva caindo no telhado enquanto desviávamos das inúmeras gotas
que atravessavam o amianto. Não havia lugar para todos sentarem. Demos as mãos e
Mazinho, bravo bumbeiro e um dos foliões mais respeitados, foi convidado por Rogério a
puxar um pai-nosso. Em seguida, Marília acendeu uma vela ao lado de um copo de água e
contou que quando sua mãe era viva, ninguém pisava para fora do quarto até a tempestade
acabar. O clima era de tensão e os semblantes expressavam medo da fragilidade da casa e
preocupação com a saída da folia. Mas, apesar de tudo, Rogério puxou a primeira toada.
Em uma casa em que praticamente não lugar para proteger todas as pessoas da chuva,
os instrumentos ficam em segundo plano: no alpendre mal coberto, os tambores, as violas
e as máscaras estavam encharcados pela água que escorria na parede.
Atribuído ao apelo aos Magos e ao Mártir São Sebastião por meio das orações e da toada
de saída assim que Marília abriu a porta começou a estiar. Os foliões então enxugaram
seus instrumentos e, todos devidamente fardados, eles com a indumentária Folia e eu com
mochila, gravador, câmera fotográfica e um diário, ganhamos as ruas da cidade, seguindo
um trajeto sugerido por um mensageiro que nos guiou para outra periferia, um lugar ermo
entre os bairros Monte Cristo e IBC. A justificativa preponderante, dada pelo ex-folião, era
a de que não faltava casa para receber a bandeira. As Folias de Reis podem existir
enquanto houver devotos que recebam a Bandeira Sagrada.
83
Naquela noite chuvosa, saímos após a estiagem, ainda que conscientes de que não
estávamos livres de um provável retorno das águas. Não fui o único a estranhar a rota; os
foliões me disseram que jamais esta folia rumara para aquele canto da cidade, embora os
Bairros Monte Cristo e IBC fossem conhecidos por quase todos. E de fato, como o
mensageiro havia assegurado, havia muitas casas nas quais a Folia poderia encostar, a
maioria delas, todavia, eram centros de macumba. Todos os foliões pareciam estar mais
ansiosos do que o normal, principalmente Rogério, e subitamente me lembrei que o
mestre João Inácio sempre dizia que é preciso muita concentração para entrar com a
bandeira num terreiro, um terreno “muito perigoso”, pois é preciso cantar para
desmanchar todos os símbolos presentes ou a parte mais importante deles para que
nenhuma entidade fique desconfiada.
Aproximava-se das duas horas da madrugada quando chegamos à segunda casa/ centro da
noite. Como a maioria das casas daquele lugar, a construção era de alvenaria, mas sem
reboco, a nudez dos tijolos. Um muro guardava a entrada e criava um pequeno quintal
com uma grande castanheira. Chovia um pouco. Seu Jair, o bandeireiro, encostou a
bandeira no portão e esperou a ordem de Rogério para que os foliões tomassem seus
lugares, o que fizeram após mais alguns tragos de tabaco e de cachaça, dos que bebem e
fumam. Geralmente a folia de reis acorda os donos da casa com as primeiras toadas, mas
desta vez isto não ocorreria, pois as luzes estavam acesas, as portas abertas e lá dentro, um
trabalho em pleno desfecho. Mesmo assim, Rogério apitou e a sanfona puxou a toada. O
estribilho em anacruse do sanfoneiro e o encontro com batida forte do bumbo na cabeça
do primeiro compasso abriu o ritual.
Abre a porta meu senhor
Abre a porta meu senhor
Venha ver quem ta encostado ai, ai.
É uma bandeira sagrada
é uma bandeira sagrada
que hoje veio lhe visitar ai, ai...
A dona do centro veio abrir o portão. Rapidamente pegou a bandeira e dirigiu-se sem
demora para o altar com o intuito de abrigar logo os foliões, que em hipótese alguma
podem passar à frente da bandeira desde a saída da sede. Com a entrada da folia no centro,
as entidades incorporadas na sessão anterior foram convidadas a retirarem-se dali e um
84
por um, os médiuns foram recobrando a consciência. Logo soubemos que a cerimônia que
ali se realizava era uma festa em homenagem ao dono da casa, coincidentemente também
um mestre de Folia de Reis que falecera havia três meses além disso, aquele centro era
também a sede da referida Folia. Tudo ocorria como se um parêntese fosse aberto na
cadência de um ritual para abrigar outro, que era iniciado com a chegada da Folia de Reis
Estrela do Mar. Todavia, um fato inusitado teve início com o desenrolar de uma série de
novas incorporações. Em meio à toada, que desmanchava todo o santuário, um dos
médiuns iniciou um transe que de pronto foi entendido como a chegada do espírito do
mestre falecido, que reuniu seus foliões estes estavam presentes para a homenagem e
prontamente empunharam a bandeira e seus instrumentos, estes para acompanhar a
toada; a bandeira, para cruzar com a da Estrela do Mar. Iniciava-se assim um dos mais
importantes e mais demorados rituais da Jornada das Folias de Reis, o Encontro de
Bandeiras
28
.
***
Desde o início do século passado, um processo histórico peculiar tem transformado os
chamados Encontros de Folias de Reis, também conhecidos como Encontros de Bandeiras,
no sul do Espírito Santo. Até meados do século passado, os encontros eram praticados
durante a jornada, quando dois ou mais grupos foliões se encontravam nos caminhos da
peregrinação e disputavam versos e profecias que poderiam durar horas ou dias e, não
raro, terminavam em episódios violentos. Segundo o contramestre da Folia de Reis Três
Reis do Oriente, Ademar Gasparelo, era preciso ter bons foliões e palhaços para que uma
folia estivesse sempre pronta para encontrar outra folia nos caminhos que perfazem as
jornadas de diversas folias:
É que é a passagem quando os Reis estudava onde ia nascer o Rei do Mundo, um
era no seu reino, outro no outro, outro no outro. Nenhum sabia do outro, da
história. quando teve o aviso, ele partiu com o presente dele e foi. No caminho
ele encontrou com o outro que também estudava a mesma profecia. encontrou
os três e dali pra diante seguiram os três, perguntaram um pro outro tem os
versos aí, né e seguiram juntos. Então nós saíamos tudo quietinho. Nós chegava
em lugar que nem o cachorro percebia. Então chegava na porta com a bandeira,
28
Quando duas folias se encontram em qualquer ponto da jornada, os bandeireiros erguem suas
bandeiras e encostam-nas em formato de cruz.
85
metia o apito com o tambor e cantava. Era assim. E de dia assim. De dia era
batendo marcha, fazendo marcha e tocando. Ia o pessoal batendo, os palhaços
fazendo suas brincadeiras. E seguindo pela frente. Então porque naquele tempo,
tinha disputa de encontro. Às vezes uma folia encontrava com a outra aqui agora
e ela ia sair amanhã cedo. Cantava os versos tudinho, cantava à noite, de manhã
cedo era que terminava o encontro das folias. E agora hoje não. Hoje não tem
mais isso, as folias qualquer folião. Então naquele tempo tinha que ter folião,
porque o folião que era meio inexperiente não podia sair, porque, se que de
noite tem um encontro com a folia, eles [a folia rival] podiam tomar os
instrumentos da folia tudo. Se não sabia nada eles tomavam os instrumento tudo.
Então tinha. Agora hoje não. Hoje qualquer um aí, ele pega um bendito
qualquer e faz uma folia (A.G. Entrevista realizada em dezembro de 2007 em
Muqui, ES).
Ainda hoje, quando duas folias se cruzam por um caminho, um clima de tensão se institui
imediatamente, pois a proximidade da outra folia é um perigo para a integridade da
bandeira. Ao contato visual ou sonoro, todos os foliões mantêm-se em estado de
permanente apreensão. Todavia, se os encontros nos caminhos tornaram-se raros, o
mesmo não se pode dizer dos encontros nas casas. Quando uma folia entra em uma casa,
os palhaços devem guardar a porta da frente para proteger o espaço de maus espíritos e de
outra folia. Ainda assim, se os guardiões descuidam-se e uma folia consegue iniciar a sua
toada de chegada, ela então prende a bandeira da folia que está na casa e a libera depois
de ter completado sua toada de saída. Este é um momento de muito constrangimento para
a folia que tem sua bandeira presa, pois indica que a folia que chega tem maior sabedoria,
pelo menos para lidar com este evento.
Muito citado por foliões mais antigos, era especialmente entre palhaços que reinava o caos
e a violência nas disputas. Experiência, como utilizado por Seu Ademar, é sinônimo de
compromisso e de devoção. “Ter folião” não é ter qualquer folião, mas aqueles que
reconhecidamente zelam por seu contrato com os santos.
Este aspecto violento foi continuamente reprimido, primeiro pela polícia, como conta
Ademar Gasparelo, mas também na criação dos Torneios, dos quais o de Muqui, iniciado
em 1951, é certamente o maior e mais conhecido exemplo, organizado pelo impulso local
(de jornalistas, folcloristas e políticos) de “resgatar” as folias enquanto um artefato que
habitava a memória das elites locais. É esta memória que os torneios visavam “ressuscitar”,
como parece ser a tônica dos artigos do jornal dominical “O Município”, um dos principais
patrocinadores do evento. Os encontros, então, passaram a ser organizados por uma
86
“comissão” e as folias eram avaliadas por um corpo de jurados, escolhido e composto por
membros da alta sociedade muquiense e espírito-santense, premiando as melhores
performances, tanto dos palhaços individualmente, quanto das folias.
Na edição de 19 de janeiro de 1951 do jornal “O Município”, encontra-se uma nota sobre o
primeiro Torneio de Folias, no qual se também um direcionamento para a organização
do encontro do ano seguinte:
Revivemos, como nos melhores dias das tradições nacionais, o Dias de Reis, com
o aparecimento em nossa cidade e no Município das celebres ‘Folias’, que tanto
encheram a nossa imaginação de creanças (sic.), povoando-a de lendas e
narrativas
Pudemos apreciar várias delas de quasi (sic.) todos os recantos do Município e
elas nos falaram à sensibilidade com as suas cantorias e melopéias, os seus
palhaços improvisadores, dos quais o Chiquinho da Fazenda dos Andes, foi o
mais audaz, com a sua macabra dança das facas, de belo efeito coreográfico e
grande sensação produzida nos assistentes, culminando no ato de cortar, ao fim
de sua dança, o próprio topete, com as facas manejadas por ambas as mãos.
(...)
O [próximo] concurso serealizado no dia 06 de janeiro de 1952, no Estádio
local, a que comparecerão as ‘Folias’ do Município e será julgado por uma
comissão nomeada pelo Prefeito Municipal após uma exibição de cada uma
delas, perante a assistência, pelo prazo mínimo de 10 minutos.
Aguardemos, pois, para 1952, o Concurso de ‘Folias de Reis’ que marcará uma
nova época no folclore local reavivando velhas tradições e crendices de nosso
povo que, nós, em creança (sic.), alimentamos com tanto carinho, nas nossas
conversas na roda das fogueiras ou nas ‘histórias’ contadas pelas nossas amas...
Além da recorrente infantilização das Folias de Reis ao remetê-la sempre aos “tempos de
criança” é notável que junto a isso surja a atribuição de tais lembranças às amas as
87
mulheres negras escravas que se transformaram na figura da “segunda mãe” ou da “mãe-
preta”
29
.
O espaço das performances era então deslocado das jornadas tradicionais e construído em
um espaço aberto e de fácil acesso, incluindo o belo casario de uma cidade que por muito
tempo foi a mais rica da região dada a enorme produção da monocultura do café casario,
este, não é inapropriado lembrar, que foi construído sobre a expropriação do trabalho dos
afro-descendentes, que assumiam agora os palcos do ginásio de esportes para entreter os
descendentes dos antigos senhores de escravos e “resgatar” as suas memórias.
Em 11 de janeiro de 1953, publicou “O Município” um texto sobre o Torneio realizado na
semana anterior:
“Torneio de Folias de Reis”
Muqui está ressuscitando essa página do nosso folclore, tentando reviver as
nossas tão lembradas Folias de Reis que acostumamos, nós homens do interior,
a admirar nos nossos tempos de infância.
Já vai se tornando tradição o Torneio realizado sob o patrocínio de nosso jornal,
sempre animado por figuras populares de nossas fazendas que prestam sua
espontânea colaboração tão necessária à revivescência desse folguedo popular
um tanto esquecido em muitos municípios...
Em alguns logares (sic.), os proprietários rurais proíbem tais manifestações da
alma popular e em alguns municípios o Delegado não deixa sair para não
enfeiar o aspecto citadino do seu burgo.
Aqui em Muqui, não. Faz-se um Torneio. Aquilo que a imaginação da creança
(sic.) pinta com sangue os encontros de palhaços e a briga de folias aqui se
faz alegremente, em desafios, em confrontos, em torneio, no meio da maior das
confraternizações...
Se tomarmos o dado de que hoje existe uma enorme quantidade de folias na região sul do
Espírito Santo, somado com os depoimentos de antigos mestres segundo os quais no
29
Segato (2006).
88
passado este número era ainda maior, fica evidente que os conceitos de “esquecimento” e
“resgate” dizem respeito àqueles municípios cuja elite tenha mostrado interesse em fazer
das folias de reis um espetáculo público. Certamente não são conceitos que servem para
abordas as folias em relação à sua série de prestações que, não dúvida, naquela época
multiplicavam-se pela região.
O Torneio manteve-se ininterrupto até a primeira metade da década de 1960. A referência
mais próxima a esta data que consegui encontrar nos arquivos de “O Município” foi um
artigo de 14 de janeiro de 1962, no qual é citado um trecho do discurso do deputado Dirceu
Cardoso, mencionado, então, como organizador do “espetáculo popular”.
Com imensa assistência e grande movimentação de folias realizou se o 10
Festival de Folias de Reis que em nossa cidade se realiza, desde 6 de janeiro de
1952.
Depois da entrada solene das folias, sempre aplaudidas pela imensa massa
popular que a tudo assistia, foi dado início ao Torneio, depois das palavras de
abertura do dep. Dirceu Cardoso, organizador do festival.
“Trata-se da revivescencia do folclore, pelos grupos festivos que, à celebração de
Reis, sacudiam a poeira das estradas à frente das vendas, ou no terreiro das
casas grandes das fazendas, nos tempos distantes de nossa meninice”
Depois da exibição da cantoria e dos palhaços, a Comissão passou a deliberar
sobre a classificação.
Este ano, a demonstração dos palhaços teve o cunho do ritual do fogo, pulando
os palhaços da Folia “Estrela do Mar”
30
dansaram (sic.) sobre labaredas de uma
fogueira, arrastando com seus pés as brasas vivas, numa exibição que nunca,
antes, havia sido feita em nossa terra.
Não foi possível descobrir o motivo da interrupção dos Torneios, que foi mantida até o ano
de 1990. Se a primeira fase da história dos Torneios de Muqui registrou a presença de
algumas folias de outros municípios, destaca-se, nesta segunda fase, que se mantém
durante uma década, um número maior desses grupos. É importante ressaltar também que
a presença da Comissão Estadual de Folclore foi marcante desde as primeiras edições do
30
Não conheço relação entre esta folia e a do mestre João Inácio.
89
Torneio. Em 1955 registrou-se a presença do então presidente da Comissão, Guilherme
Santos Neves que, como consta nos textos de “O Município” daquele ano, registrou o
Torneio em vídeo e fotografia, material que foi exibido nos Congressos Nacionais de
Folclore. Em sua “Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba” (2008) encontra-
se um texto de 1957, escrito originalmente para o jornal “A Gazeta”, no qual o autor relata a
sua presença, em nome da “Comissão Espírito-santense de Folclore, cumprindo uma de
suas finalidades estimular os folguedos populares em nosso Estado” no Torneio de Folias
de Reis de Muqui. Nesse mesmo artigo, Santos Neves informa também a recente criação da
Comissão Municipal de Folclore de Muqui, que passa então a ser a principal organizadora
do evento.
Outro dado importante sobre o Torneio é que historicamente sua data era marcada para o
dia 06 de janeiro, um dia especial do calendário das folias, ou seja, o Dia de Reis. A partir
do final da década de 1990, entretanto, não apenas a data sofre alterações. Mas, em uma
iniciativa mais uma vez votada para a “harmonização” das apresentações, algumas
mudanças instituídas culminam na troca do próprio título do evento. De Torneio passou-
se a “Encontro Nacional de Folias de Reis de Muqui”. A partir de então, o concurso foi
eliminado. Todas as folias passaram a voltar para as suas casas com uma quantia em
dinheiro igualmente dividida entre as participantes, sem vencedores e vencidos. A
justificativa oficial foi então a tentativa de eliminar as querelas entre folias e entre
palhaços, mas um outro fator a ser considerado, que muito provavelmente está
relacionado também à mudança da data de realização que passou a ser marcada para
períodos fora das jornadas. É que a passagem de “Torneio” para “Encontro” acontece em
um momento de despertar do turismo voltado para o folclore.
Esta síntese histórica dos Encontros não tem outro objetivo senão indicar a relevância da
participação de pessoas, grupos e instituições não inseridas no sistema de prestações
sociais e espirituais das folias de reis na reinvenção de um elemento fundamental desta
tradição: a disputa, que perpassa os mais variados aspectos da jornada e sobrevive às
investidas exteriores de harmonização dos encontros.
Quando se fala em devoção nas folias de reis, sempre se leva em consideração as atuações
de outras folias. Como existem formas diferentes de se contar o mito, há também variações
90
do modo de viver o mito no ritual; e tantas formas quantas folias existirem. Isto porque
a interpretação da jornada é uma forma particular e envolvida com as relações cotidianas
das pessoas. Assim, cada folia é sempre e em todo lugar a “melhor folia”, pois é a única que
desenvolve de modo impecável um estilo de devoção específico, embora os foliões
considerem que as outras formas são igualmente válidas, mas para outros tipos de vínculo
com os Três Reis Magos e com São Sebastião. Estas diferenças, todavia, são
freqüentemente evocadas para que o contraste sirva de enquadramento da categoria
devoçãoque está sempre em construção. Ser a “melhor” folia significa ter mais sabedoria,
ter um maior compromisso com a bandeira o que envolve também um maior
compromisso com a promessa. É a devoção também que explica um bom resultado em um
Encontro de Bandeiras, como explica seu Ademar Gasparelo: “era preciso ter folião”.
Com o processo que fez os Encontros de Bandeira tornarem-se mais raros (o que de modo
algum diminuiu a tensão que envolve ouvir o bumbo de outra folia durante uma jornada),
esta instituição da disputa tomou outra dimensão: agora, o que a devoção e o compromisso
dos foliões e a sabedoria do mestre explicavam no confronto era a escolha de uma folia em
figurar como a campeã do Torneio. É assim, por exemplo, que o mestre João Inácio explica
as nove vezes que foi campeão do Torneio de Muqui.
A partir da “descoberta” das folias de reis por parte das secretarias de cultura e de turismo,
surge, no xico dos foliões, um par de categorias que por um lado preserva o período da
jornada em sua espiritualidade e por outro, os habilita a fazer parte enquanto agentes
desta nova realidade. “Depois que a folia de reis virou folclore”, nos termos de Rogério,
mestre da Estrela do Mar, os foliões começaram a classificar as suas saídas entre devoção e
apresentação. A primeira delas, sem dúvidas, é reconhecida como o objetivo primordial
das folias, sua obrigação com a bandeira, uma missão: ter compromisso com a bandeira,
cumprir as promessas com os santos, dar continuidade a uma série de prestações entre os
homens e entre eles e os santos, enfim, toda a organização social, cosmológica, visual e
sonora que garante à folia o poder de abençoar em nome dos Três Reis. Para mestres
reconhecidamente sábios como João Inácio e Dulcino Gasparelo, ultimamente têm surgido
muitas folias cuja principal motivação é a apresentação, em especial a do Encontro de
Muqui. Entretanto, para que uma folia tenha um bom desempenho em uma apresentação
para que seja reconhecida pela audiência dentro dos critérios desta, que são totalmente
91
estranhos aos critérios tradicionais dos foliões é fundamental que ela seja devota. Ou
seja, os critérios de avaliação da audiência não comprometida com o santo são capturados
e influenciados, segundo a opinião dos foliões, pela capacidade mágica de uma bandeira
forte.
Embora estas categorias sejam em certa medida opostas entre si, quando articuladas com o
elemento da disputa, a apresentação torna-se uma extensão da devoção. Como as
apresentações geralmente são realizadas fora do período da jornada, não há, de antemão, o
compromisso com os santos e com a bandeira. Contudo, uma vez que o convite é aceito e a
bandeira, os instrumentos, os uniformes e as máscaras o mobilizados pelos foliões, as
prestações afirmadas nas jornadas e que estão na base da sua força são, de certo modo,
responsáveis pelo sucesso das apresentações, como foram, também, nas classificações das
folias nos Torneios.
Neste processo de transformação dos encontros, um dos principais aspectos a ser
mencionado é a mudança de registro do crivo de avaliação da disputa. Antes este era
totalmente vinculado às performances dos foliões e decidido nas disputas em versos; no
segundo momento passa para os critérios de uma comissão de avaliação constituída por
pessoas que representam muito mais os prazeres estéticos da classe média e das elites
urbanas do que os anseios dos foliões; e agora, as avaliações passam para a audiência
percebidas pelos aplausos e pelos comentários e também para os órgãos públicos, que
decidem quais folias convidar para uma apresentação. Mas estes critérios exógenos, que
permanecem estranhos aos foliões e que, no plano das negociações a respeito das verbas
públicas destinadas a eles, têm um poder muito maior nas tomadas de decisão, são, do
ponto de vista dos foliões, influenciados pela devoção e pela força de uma folia. É assim,
por exdemplo, que o mestre João Inácio explicou uma de suas vitórias no Torneio de
Muqui:
Chegou em Muqui, sentei e fiquei. Eles ficam me rodeando pra dizer que eu
estou doente. Eu estou pensando. Aí eles vão falando toada, fala outra, fala outra,
mas a que caí aqui eu solto. O que cair na minha cabeça eu canto. É o que eu falei,
eu não sou espírita e nem macumbeiro, mas o Três Reis Magos é três espírito que
o Espírito Santo mandou pra vir guiar o mestre. Se eles cola no corpo da gente, a
gente solta aquilo que vier. Agora, eu não preciso, você chegar, “quero uma toada
assim, assim...” não adianta, não adianta não. Que nem lá em Muqui, aquele
92
monte de homem puxando no fundo de lá, puxando, puxando, puxando... Mas
largou o dono da casa, largou o dono da casa que é o São João Batista [padroeiro
de Muqui]. eu falei, eu vou cantar um bucadinho só. Foi a derrota. Que eu subi
no palanque, que eu falei, que eu bati, “São João Batizou Cristo, Cristo Batizou
João...” eu peguei a linha direta e fui pro Rio do Jordão... Ih rapaz... Ele é o dono da
casa. Aí eles falaram: “você cantou pouca profecia”, o outro virou, “não ele cantou
muito, que tem que cantar o dono da casa”... peguei a baita daquela taça, os
meninos carregando nas costas... É rapaz, tem que pedir licença. Porque ali tinha
muita folia, mas pouca boa. eu falei assim, precisa soltar muita coisa o, que
é tudo uma coisa só. Agora, se me imprensar, se me imprensar, eu vou é firme. Eu
não sei onde eu aprendi, foi Deus que me ensinou.
E é assim também que os foliões avaliam qualquer encontro, seja ele durante a jornada, no
tempo de devoção, ou nas apresentações. A disputa mais acirrada, todavia, é realizada
entre os palhaços, em especial nos Encontros que acontecem em diversas localidades no
interior da região sul do Espírito Santo e que são organizados pelas folias locais ou pela
comunidade de devotos, sendo um dos principais deles o Encontro de Folias de Reis de
Linda Aurora, um distrito do município de Atílio Vivácqua, que acontece sempre no dia 06
de janeiro. Em 2007, acompanhei os palhaços da Estrela do Mar em um Encontro de Folias
em Jerônimo Monteiro. A folia do Zumbi não iria participar, mas os palhaços explicaram
sua presença como uma forma de avaliar os palhaços de outras folias e então concluir se
eles teriam condições de enfrentá-los em algum possível encontro.
Como vimos, a disputa entre folias causa certa solução de continuidade entre as categorias
devoção e apresentação que, no entanto, não deixam de ser amplamente utilizadas pelos
foliões. Aparentemente, elas não dizem respeito à performance somente, mas sobretudo à
motivação do comparecimento negociado por um contrato estabelecido dentro ou fora das
prestações agenciadas pelas promessas. O primeiro e mais importante critério de
classificação de uma saída como devoção é se ela acontece durante o tempo da jornada ou
não. Mas mesmo dentro das jornadas, a obrigação primeira da folia é cantar nas casas da
sua vizinhança. Durante o tempo em que estive presente nas saídas da bandeira da folia
Estrela do Mar, os lugares mais freqüentemente visitados foram os bairros mais próximos
ao Zumbi. Mesmos considerando que é também alto o número de saídas para fora da
cidade de Cachoeiro, são escolhidos os lugares onde localizam-se casas cujos moradores
mantêm laços de parentesco com os foliões ou de devoção com a bandeira da Estrela do
Mar. O Zumbi, por este mesmo motivo, é considerado o lugar que encerra a maior de
93
todas as obrigações: é preciso privilegiar as casas do ambiente habitado pela bandeira e
pelos foliões, onde as relações sociais são mais fortemente constituídas.
Por outro lado, figuram mais propriamente na categoria apresentação os Encontros
marcados fora do tempo da jornada e também as apresentações públicas encomendadas
pela prefeitura ou por algum outro evento que não esteja diretamente relacionado com a
missão das folias. Assim se estabelece o quadro de classificação – de acordo com as
categorias dos foliões entre as principais formas de negociação de uma saída. Na tabela
abaixo procurei representar quatro dos principais tipos de eventos aos quais as folias
comparecem no decorrer do ano de acordo com a proximidade entre devoção e
apresentação, onde as colunas estão distribuídas em uma escala de variação. Como vimos,
as fronteiras entre as classificações não são bem definidas (como são as linhas que aqui as
separam), mas arrisco-me a dizer que uma hierarquia entre os tipos de saída que são
mais considerados como devoção do que outras. Esta hierarquia segue da primeira para a
última linha da tabela.
Missão/ Compromisso
Entre 24/12 a 20/01
Devoção
(política com o santo)
Encontros de folias no
Interior
Encontro Nacional de
Folias de Reis de Muqui
Entre 21/01 a 23/12
Apresentações Públicas
Apresentação (política
com o poder público)
Este quadro nos ajuda a visualizar também, entre os extremos das duas categorias, a
intensidade da presença de agentes não comprometidos com a tradição dos Reis Magos,
94
tendo como paradigma as assim denominadas apresentações públicas. Nessas ocasiões, a
partir de uma negociação (entre os mestres e secretarias de cultura, por exemplo) é
marcada uma apresentação para uma data fora do tempo sagrado das jornadas e para uma
audiência totalmente desvinculada do circuito de prestações sociais e espirituais o que
não é o caso dos Encontros, uma vez que nestes eventos, tanto durante o tempo da jornada
quanto fora dela, conta-se com a presença de mais de uma folia, sendo que os foliões
figuram também como parte, e a mais importante, da audiência.
Um dado importante a ser acrescido à tabela é que as políticas públicas de “revitalização” e
de resgate” cultural capitaneados pelas secretarias de cultura do estado e dos municípios,
concentram-se próximos à extremidade da categoria apresentação. Isto significa que estas
políticas estão envolvidas com uma formatação diferenciada das performances, já que
força uma relação com uma audiência que não participa dos circuitos de troca e revela que
os termos tais como “resgate”, “revitalização”, “manutenção”, privilegiam o modo de
apropriação estética e simbólica do ritual não apenas por esta audiência, mas também
pelos políticos envolvidos em sua promoção.
As apresentações deslocam as folias das suas jornadas, tanto em relação ao tempo sagrado
quanto aos caminhos trilhados pela bandeira. Além disso, reduz drasticamente o tempo
das performances, formatando-as para uma relação de consumo semelhante ao processo
de “espetacularização”, assim como definido por José Jorge de Carvalho
31
, pelo qual as
culturas populares têm passado nos últimos anos: “os artistas chegam ao palco através de
uma operação de captura, quase sempre como um coletivo que se apresenta em uma
condição de objeto para deleite dos sujeitos consumidores” (Carvalho, 2007: 85). Outra
conseqüência desta objetificação das folias de reis é a “atitude de distância, de não
envolvimento” da audiência, que não parece nem um pouco inclinada a assistir uma
performance das folias de reis durante a jornada, principalmente quando os caminhos se
trilham em lugares como o Zumbi ou as zonas rurais.
31
“Defino espetacularização como a operação típica da sociedade de massas, em que um evento, em
geral de caráter ritual ou artístico, criado para atender a uma necessidade expressiva específica de um
grupo e preservado e transmitido através de um circuito próprio, é transformado em espetáculo para
consumo de outro grupo, desvinculado da comunidade de origem” (Carvalho, 2007: 83).
95
Não pretendo retirar o foco dos atores do ritual e descrevê-los de um modo passivo nesta
relação, pois afora a formatação e redução simbólica das apresentações, as jornadas
mantêm-se de um modo completamente autônomo. Entretanto, é preciso destacar a
disparidade de poder presente nesta luta semântica do ritual, que remete à desigualdade
social entre os mestres e foliões, de um lado, e a audiência e os promotores das
apresentações, de outro. Mesmo considerando que as apresentações tenham entrado de
um modo muito particular nas redes de significação das folias de reis da região pesquisada
ao articularem-se com os significados das disputas entre folias, isto não esconde o fato de
que as políticas de resgate mantenham uma postura de tutela da cultura popular ao
considerar que seus portadores não têm capacidade de manter a sua autenticidade. Esta,
por sua vez, parece estar muito mais na “memória da meninice” das elites do que na
tradição das folias de reis.
As políticas públicas de “resgate”, que têm ganhado enorme vigor nas discussões acerca
dos planos de salvaguarda das culturas imateriais, surgem com uma estranha semelhança a
uma crença ocidental (evidenciada, sobretudo, no colonialismo e na descoberta da
alteridade radical) segundo a qual os primitivos” iriam naturalmente se extinguir e,
portanto, o registro integral dos seus “bens” permaneceria como herança cultural (Brown,
2005). E, de fato, a “folclorização” das folias (termo que utilizo a partir da apreciação dos
foliões sobre o momento recente em que a Folia de Reis “virou folclore”) carrega ainda
uma idéia de tutela, de que os foliões não teriam condições de manter a sua tradição. Disso
emerge, por exemplo, a idéia de “visibilidade” que, além de não garantir o acesso à
cidadania dos portadores das culturas populares, como nota Carvalho (2007), mascara uma
idéia de que é preciso que as folias de reis sejam apreciadas pela audiência não devota
segundo os moldes das Belas Artes, para que não se percam no esquecimento. O termo
muito utilizado de “resgate cultural”, por exemplo, mostra uma postura de captura das
folias de reis para os critérios de apreciação artística externas ao circuito das jornadas.
As disputas entre folias de reis – em especial as rixas entre palhaços pela guarda das
bandeiras compõem um ponto focal nessa discussão. As disputas sempre foram
encaradas como uma herança colonial à violência assimilada às populações afro-
descendentes, sofrendo constantes repressões policiais, mas o processo mais recente de
folclorização continuou a atacar o seu campo de ação nas performances das folias de reis.
96
Se por muito tempo a Igreja Católica não interferiu no modo não-ortodoxo com que os
Reis Magos, o Menino Jesus e São Sebastião, foram ressignificados pelo catolicismo
popular, sua ingerência aparece como pano de fundo das políticas de resgate. Uma
evidência desta afirmação é um texto redigido por Frei Isidoro Chasco que trata da
controvérsia da origem bíblica dos Reis Magos. Nesse artigo, o Frei toca tangencialmente
na questão das festas das folias de reis em Muqui no que se refere às intrigas relacionadas
às diferentes interpretações da jornada. Este texto foi publicado em 08 de janeiro de 1956
pelo jornal “O Município”, ao lado de outro artigo que convida os cidadãos muquienses
para o Torneio de Folias de Reis.
Não faz mal deixarmos de lado questões disputadas que a nada de positivo
conduzem. Penetrando, porém, no sentido da festa na sua espiritualidade, vê-se
que não perdeu nem a usualidade nem influencia, apesar do barulho de tanta
máquina ensurdecer o homem para acordes mais religiosos.
O artigo segue com a explicação do que é esta “usualidade” e esta “influência”, a saber, o
incentivo à pratica da oração e da prostração corporal diante da divindade, uma
interpretação do Frei para o significado da viagem dos Reis Magos que difere
profundamente das interpretações dos foliões, que guardam com zelo as disputas como
parte integrante da jornada. Assim, na exegese do Frei Isidoro Chasco, as “questões
disputadas” e o “barulho” das toadas não têm lugar. Por pouco contemporâneo que este
discurso possa parecer, ele põe em evidência a ética cristã que reside no apaziguamento do
“resgate”, ainda que oculto pelo discurso do hibridismo cultural. Assim, uma relação que
aparenta uma suposta troca cultural, revela uma dupla imposição.
A idéia de visibilidade e de reconhecimento como resistência por meio do apelo turístico
às folias de reis parece ser um eco da idéia de hibridismo cultural, segundo a qual as trocas
culturais seriam um movimento natural, que as sociedades não são isoladas. Todavia, o
que ocorre em trocas com a enorme desigualdade de poder, como é o caso, é uma ilusão de
horizontalidade. Como aponta Marylin Strathern em relação a um exemplo de James
Clifford para sua teoria do hibridismo cultural, o que concerne a uma suposta
“apropriação” de artefatos culturais estrangeiros na utilização de uma bolsa da marca
Adidas no Cricket de Trobriand, por um lado, e a assimilação de máscaras africanas na
obra de Picasso, por outro, “the aesthetics are not symetrical: Picasso bestows new value
97
on the african mask, elevates it to high culture, but a plastic bag taken out of its classy
sports milieu is detritus” (1999: 122). Embora Clifford indique que haja, nos dois exemplos,
um estado de mútua inventividade, ambos exemplos indicam a riqueza e o alcance da
cultura Euro-Americana. Segue a autora:
African mask and Adidas bag landed up in their strange contexts through the same
process of travel and diffusion. Euro-American culture seems to have the longer arm, to
reach everywhere, so ‘we’ can simultaneously recognize ourselves both in what we
appropriate from others and in what they appropriate from us. We are not only here,
we are also there: traces of ourselves on the Pacific island (Strathern, 1999: 122-3. Ênfase
original).
Da mesma forma, as apresentações públicas e os encontros de folia, formatados para o
consumo e justificadas como impulso à visibilidade, mostram, além da folia, os signos da
conquista estampados, por exemplo, nas formatações de apresentação, na pacificação das
brincadeiras dos palhaços e, principalmente, no esforço em ocultar o vínculo das folias de
reis à espiritualidade da umbanda. É significativo que a religiosidade da macumba, como
afirma Carvalho (2004), acolhe abertamente como parte constitutiva de sua
espiritualidade, a desordem e a violência do sagrado, aspectos rejeitados por outras
religiões no Brasil. Pois é justamente que o caos personificado pelo palhaço como
vimos no capítulo anterior e a música das toadas “barulho ensurdecedor” para os
ouvidos formatados pelos acordes cristãos – parecem extrair sua força de significação.
Visto por este ângulo, torna-se evidente que esta dissociação entre folia e macumba, o que
inclui o apaziguamento das disputas, envolve a domesticação da experiência ritual e o
controle dos seus significados.
98
Considerações Finais
99
A tradição dos Reis Magos é uma forma de conhecimento de e ação no mundo. No sul do
Espírito Santo, onde existe um grande número de folias de reis, a pluralidade de vozes que
versam sobre este universo produz uma constante reinvenção dos cânones tendo em vista
sua inclinação à agregação das diferenças por parte dos foliões e dos mestres, sendo estes
os sábios que detêm as chaves deste conhecimento. Entretanto, a ciência total das folias de
reis está além dos indivíduos, de modo que nem mesmo um mestre folião muito forte pode
reunir todo o conhecimento da jornada mítica. O reconhecimento das limitações leva os
mestres, mesmo os mais experientes, a buscarem adquirir dos outros mestres e de outras
fontes de espiritualidade o aprimoramento da sua sabedoria.
A contínua inserção de novos elementos a esta rede de significados, o que podemos
chamar de tradição, leva em conta tanto uma revisão na acepção dos termos quanto na
própria tessitura de relações dos símbolos do ritual. Esta dialética pode ser notada em
todos os rituais das folias de reis e nos é apresentada com muito vigor em analogias tais
como a que seu João criou entre a Arca de Noé e uma aeronave ou naquela produzida por
Mazinho entre os Três Reis Magos e os agrupamentos de ataques triplos do bumbo. O
ritual institui este ambiente mágico em que as coisas, os santos e os homens transformam-
se e transitam entre contextos normalmente separados e que, por meio da força do mestre,
misturam-se em uma atmosfera. Ao transitar por diversos lugares, em uma busca por
remover as cercas erguidas por um mundo onde reinam as desigualdades sociais (para
parafrasear o mestre Ademar Gasparelo: “naquele tempo não tinha cerca”) a folia de reis
promove transformações deste tipo em realidades distintas, da mesma forma em que ela
mesma se recria de diferentes maneiras. Em seu poder de abençoar, a bandeira explicita
um histórico dos lugares pelos quais ela passa, assim como os estilos de espiritualidade das
pessoas com as quais ela se relaciona.
É por este motivo que considero importante ressaltar a estreita relação entre as folias de
reis e os cultos de possessão no sul do Espírito Santo e em especial no bairro Zumbi. A
fusão entre a folia de reis e um espaço carregado como um centro de macumba é uma das
experiências que causa maior apreensão dos foliões visto que as forças do lugar precisam
ser equilibradas por aquelas que a folia mobiliza. Pude sentir este poder em janeiro de
2010, na última casa da minha última saída como folião da Folia de Reis Estrela do Mar.
havia passado o meio dia quando, após uma noite inteira de peregrinação pelo bairro
100
Monte Cristo, a bandeira encostou-se a um dos centros mais fortes do Zumbi. Quando
atravessamos a “casa de Exu” e começamos a subir as escadas que dão acesso ao centro, no
meio da toada de entrada, o cavaquinho que eu tocava desafinou-se completamente de
modo instantâneo e todo o cansaço que eu consegui conter durante a noite, abateu-me
naquele momento. Sem encontrar nenhuma explicação para estes acontecimentos, relatei-
os ao mestre Rogério e aos outros foliões, que foram unânimes ao creditá-los à soma das
forças dos espíritos que por ali festejavam o nascimento do Menino Jesus acrescido à
minha inexperiência, tanto na folia quanto na macumba. A força de uma folia depende do
modo como a bandeira, os foliões e os palhaços equalizam as suas próprias forças, que
derivam do modo como incorporam as relações estabelecidas nos rituais, com os espíritos
de um lugar. A minha falta de habilidade com as forças dos dois contextos postos em
contato naquele centro estaria ligada à ausência de um contrato com um santo e com a
bandeira e, portanto, a deficiência da minha defesa contra os poderes ali instaurados.
Se por um lado podemos concluir que a música é um elemento dominante nos rituais das
folias de reis, é preciso, por outro lado, que deixemos de lado a idéia de que a música das
toadas compreende apenas as resultantes sonoras ou que estas não se relacionem de um
modo sinestésico com os demais sentidos do ritual. Pois as habilidades dos músicos das
folias, assim como as avaliações sobre o que eles produzem musicalmente, dizem respeito
à força com a qual os Reis Magos são incorporados pelas vozes e pelos instrumentos. Para
isto, é preciso muito mais do que saber tocar ou cantar; é preciso que os foliões sejam
rigorosos com seus contratos com os santos e fiéis ao mestre e, principalmente, que este
seja reconhecidamente um sábio e que esta sabedoria incida no acúmulo de força da
bandeira sagrada. É somente assim que as vibrações sonoras produzidas por cada folião e
orquestradas pelo mestre podem encantar um lugar.
Tão importante para o equilíbrio das forças do ambiente é o vigor da performance do
palhaço. Este é um personagem que a todo tempo vai além do limite permitido pelo
mestre, gerando constantemente um clima de tensão, chegando, em alguns momentos, a
ridicularizar o chefe da folia. Ainda que sua atuação enseje uma postura cômica no ritual, a
rivalidade com a autoridade do mestre pode causar algum tipo de constrangimento.
Entretanto, é o mestre mesmo o primeiro a afirmar que esta é a função do palhaço:
bagunçar, confundir, espalhar, pôr-se em desacordo. No segundo capítulo, busquei
101
comparar a personalidade deste mascarado à de Exu, em muitos aspectos semelhantes.
Ainda que esta entidade de “esquerda” não figure diretamente no macrocosmo das folias
de reis, ao menos no que se refere ao conjunto dos principais santos, como os Três Reis, o
Menino Jesus e São Sebastião, ele não é familiar a todos os foliões muitos dos quais
são também adeptos da macumba no Zumbi como participa no conjunto de forças dos
rituais em grande medida. Prova disso é a destreza com que os palhaços evocam esta
entidade quando a folia encosta num terreiro. Como Exu, o palhaço é um mediador,
responsável pelo equilíbrio da relação entre os foliões e os espíritos de um centro de
macumba, impedindo, com seus gritos, que os orixás, os pretos-velhos ou os caboclos
tomem completamente a cabeça de um folião.
Dessa forma, busquei integrar o contexto significativo das folias do Zumbi, em especial
mas também de diversas outras folias da região do Itapemirim – ao da umbanda ali
praticada com grande extensão. Procurei demonstrar que o tipo de relação dos foliões com
os santos é, em certa medida, influenciado pela incorporação promovida nos terreiros, com
a ressalva de que, nas folias, não é permitida a possessão e nem as crises corporais que
sinalizam a chegada de uma entidade em um centro de umbanda.
No terceiro capítulo, faço um pequeno histórico dos Encontros de Bandeiras, eventos que
tradicionalmente criavam entre mais de uma folia uma série de contendas em que se
combinavam os versos disputados entre os mestres e as brigas dos palhaços. Uma série de
intervenções primeiro a repressão policial e, posteriormente, a intervenção do poder
público e de políticos que buscam a sua promoção e, ultimamente, as secretarias de
cultura e de turismo incidiram sobre este aspecto violento de desordeiro dos encontros.
Em todos os momentos deste processo, a justificativa central foi a extinção das disputas,
geralmente associadas como tentei demonstrar no discurso de organizadores do Torneio
de Muqui durante sua primeira fase a uma ideologia que agrega os afro-descendentes
(que são majoritários entre os foliões) à subversão e à violência e que parece continuar
acesa na procura por “harmonizar” ou “afinar” as toadas, torná-las inteligíveis a uma
audiência com ouvidos não encantados e à extração da espiritualidade afro-brasileira.
Apesar da centralidade da disputa nos rituais das folias de reis, sendo esta uma categoria
capaz de ressignificar as apresentações públicas a princípio desvinculadas da dimensão
102
devocional, acredito que uma continuidade nas iniciativas de apaziguamento dos
encontros, que passa pela representação a respeito dos moradores do Zumbi e de outras
localidades periféricas que, ao serem capturadas pelo imaginário dos promotores e da
audiência das apresentações, são obrigados a silenciar os seus estilos de espiritualidade e
de pertença social. De um modo geral, existe apenas uma história acerca do Zumbi na
região, a dos noticiários policiais. Contudo, para os seus moradores, existem muitas outras
histórias que devem ser contadas. A tradição dos Reis Magos versa sobre os lugares em que
vivem os foliões e os devotos, e sobre as relações sociais em transito nestes lugares,
metaforizando-as na jornada sagrada dos reis magos.
Após este percurso, finalizo minha jornada, iniciada por um deslumbramento, trilhada
com contínuas afetações e que pretende continuar em movimento. Essas minhas
impressões não devem ser encaradas como uma voz definitiva acerca das folias de reis, mas
como detalhes resgatados de uma trajetória particular. Ainda assim, estas reflexões são
ensaios de uma caminhada que ainda tem muito que amadurecer. Não concluo, portanto,
esta jornada, mas, tentando seguir os ensinamentos dos mestres foliões, mantenho-me na
busca por novas trilhas.
103
Imagens da Folia de Reis Estrela do Mar
104
Imagens I e II: Ensaio na sede da
bandeira Estrela do Mar (casa de
Rogério e Marília): Manoel (bumbo);
Cabelinho (caixa); Cosme (sanfona).
105
Imagem III: saída de Conduru (Nove) em 20 de janeiro de 2007, dia de São Sebastião.
Imagem IV (da esquerda para a direita): Badé, Pedrinho e o mestre Rogério.
106
Imagem V: Manoel, bumbeiro e requinteiro. Chegada ao Bar do Russinho, Zumbi.
Imagem VI: Cosme, sanfoneiro.
107
Imagem VII: Wallace, caixeiro. Linha Vermelha. Ao fundo, parte do Zumbi.
Imagem VIII: Lino, contramestre.
108
Imagem IX: Gilmar, Cabelinho e Manoel
. Zumbi.
Imagem X: Descanso dos foliões. Zumbi.
109
Imagem XII: a folia para para desmachar o
cruzeiro do Centro do Galo, antes de seguir
para o terreiro. Zumbi.
Imagem XI: Naipe de bumbos.
110
Imagem XIII: máscara e bastão utilizados
pelo palhaço Truvuada na Folia de Reis
Estrela do Mar na jornada de 2009/2010.
Imagem XIV: Mestre João Inácio. Encontro de Folias de Reis de Santana, Atílio Vivácqua.
Janeiro de 2009. Por Carolina Pedreira.
111
Legenda das imagens que abrem os capítulos
Introdução: descanço dos Foliões no Zumbi. Chapéu e caixas de nylon.
Cap. I: Toada de chegada da última casa da saída de 02/01/2010.
Cap. II: Marcha na Subida do Zumbi, para alertar os moradores que a Estrela do Mar é
chegada. Palhaço Truvuada (Guinho).
Cap. III: Marcha de chegada ao Encontro de Folias de Reis de Linda Aurora, Atílio
Vivácqua.
Considerações Finais: É chegada a hora de voltar para casa. Peregrinação em Condurú
(Nove), Cachoeiro de Itapemirim.
Imagens das Folias de Reis: A Folia de Reis Estrela do Mar canta com os primeiros raios
de sol do dia 02/01/2010. Entrada do Zumbi.
112
Anexo 1
113
Anexo 2
114
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