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TESE DE DOUTORADO – IPPUR / UFRJ
MÚSICA E VIDA URBANA:
encontros e confrontos na cidade
do Rio de Janeiro (1990-2008)
ANITA LOUREIRO DE OLIVEIRA
Orientação: Ana Clara Torres Ribeiro
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ANITA LOUREIRO DE OLIVEIRA
MÚSICA E VIDA URBANA:
encontros e confrontos na cidade do Rio de Janeiro (1990-2008)
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em
Planejamento Urbano e Regional.
Orientador: Profa. Dra. Ana Clara Torres Ribeiro
Doutora em Sociologia / USP
Rio de Janeiro
2008
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Oliveira, Anita Loureiro de.
Música e Vida Urbana: encontros e confrontos
na cidade do Rio de Janeiro (1990-2008) / Anita
Loureiro de Oliveira. – 2008.
259f. : il. color. ; 30 cm.
Orientador: Ana Clara Torres Ribeiro.
Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional, 2008.
Referências bibliográficas e sonoras: 247-258.
1. Cidade. 2. Música 3. Rio de Janeiro (RJ).
4. Território. 5. Racionalidades Alternativas.
I. Ribeiro, Ana Clara Torres.
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional. III. Título.
CDD:
3
ANITA LOUREIRO DE OLIVEIRA
MÚSICA E VIDA URBANA:
encontros e confrontos na cidade do Rio de Janeiro (1990-2008)
Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional.
Aprovado
__________________________________
Profa. Dra. Ana Clara Torres Ribeiro – Orientador
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ
__________________________________
Prof. Dra. Tamara Cohen Egler
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ
__________________________________
Prof. Dr. Robert Pechman
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ
__________________________________
Prof. Dra. Heloisa Soares de Moura Costa
Departamento de Geografia – UFMG
__________________________________
Prof. Dra. Cátia Antônia da Silva
Departamento de Geografia – UERJ/FFP
4
5
Dedico este trabalho à minha mãe,
por seu exemplo de força e generosidade e
à memória de meu pai,
por todo o amor que compartilhamos.
6
AGRADECIMENTOS
Este trabalho resulta de um período de grande aprendizado e reflexão que buscou desvendar -
na sua limitação, mas com o apoio sensível da arte - os encontros e confrontos vividos na
cidade.
Agradeço, especialmente, à orientação generosa de Ana Clara Torres Ribeiro, que me
possibilitou percorrer caminhos alternativos no campo acadêmico e mergulhar em suas
reflexões teórico-metodológicas. Entre muitos outros estímulos, sem dúvida, foi por seu apoio
que ousei refletir a vida urbana através da música, aproveitando o momento favorável que
experimentava em minha vida pessoal, escolha que contribuiu muito para minha formação.
Entre tantos amigos e colegas, agradeço de forma especial aos que, por viverem mais ligados
às artes e menos às teorias do meio acadêmico, me faziam enxergar a necessidade de
aproximar estes campos, aparentemente tão distintos e distantes. Provocar o diálogo entre as
diferenças, entre técnica e sensibilidade, entre arte e conhecimento científico, foi o objetivo mais
geral desta reflexão. Agradeço especialmente ao Fabio, com quem compartilhei o momento de
construção do objeto da Tese, além de outros tantos momentos importantes. Agradeço aos
amigos por estarem sempre próximos e por compreenderem os convites recusados quando
precisava me dedicar à Tese: ao Flavio, ao Nando e à Clarice pela inseparável amizade de
quase três décadas e, claro, pelos momentos de festa! À Patrícia, amiga de todas as horas, das
mais difíceis às mais divertidas; à Letícia, ao Cláudio e ao Fernando Martins, pela amizade
desde os tempos da graduação, que pretendo manter viva por muitos anos. Ao Juan, pelos
momentos doces, especiais e bem-humorados e pelo incentivo à minha dedicação à tese.
Agradeço a todos que contribuíram para a realização da pesquisa: aos compositores Pedro
Luís, Fernanda Abreu e BNegão pelas entrevistas; à Jackeline pela ajuda na elaboração do
abstract; aos funcionários do IPPUR/UFRJ, principalmente, Zuleika, Vera, Clarice e ao pessoal
da biblioteca pela colaboração para que este trabalho pudesse ser concluído. Aos eternos
“lastreanos”, especialmente Alice, Laura, Luis, Pedro e Carmen, que compartilharam o
conhecimento acumulado no Laboratório da Conjuntura Social: Tecnologia e Território.
Finalmente, agradeço ao CNPq, pela bolsa de Doutorado que permitiu uma dedicação exclusiva
a esta importante etapa da minha formação.
Agradeço, finalmente, à minha mãe, irmãs, sobrinhos e especialmente, à minha avó Alice, por
sua capacidade de reunir a família e promover a alegria cotidiana em nossas vidas.
7
“Tem razão quem tem paixão
Tem razão quem pensa com a voz do coração”
Marcelo Yuka
8
OLIVEIRA, Anita Loureiro de. Música e vida urbana: encontros e confrontos na cidade do Rio de
Janeiro (1990-2008): 271f. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
A tese busca articular o conhecimento científico à sensibilidade das artes, utilizando a música
como expressão da fala dos ‘homens comuns’, não-especialistas. A reflexão sobre a vida na
cidade não é, apenas, uma função dos especialistas do planejamento urbano e a música, ao
propagar outras falas sobre a vida urbana, permite uma apreensão sensível dos encontros e
confrontos de diferentes modos de pensar e agir que constituem a cidade. Através das letras e
entrevistas realizadas com Pedro Luís, Fernanda Abreu, BNegão, e de uma interpretação
subjetiva das músicas de Marcelo Yuka (O Rappa e O F.U.R.T.O.), e de outros compositores
cariocas que se destacaram dos anos 1990 aos dias atuais, reconhecemos visões de mundo
alternativas e sujeitos que evidenciam lutas pelo direito a uma vida urbana renovada,
transformada. Buscamos o sujeito identificado com a crítica a um modo de vida centrado no
individualismo, no consumismo e na competição, mas não negamos o conflito e as articulações
existentes entre o ‘dominante’ e o ‘alternativo’. A tese percorre um circuito produtivo da música,
sinalizando contra-racionalidades que reinventam o mercado fonográfico por meio de ações
horizontais, coletivas e solidárias. A insatisfação frente à ordem dominante está nas letras e
narrativas, na produção musical alternativa e no processo subjetivo de apropriação territorial da
rua para a festa, como decorrência da ação espontânea do habitante. Trata-se de um uso
renovado de áreas da cidade para o abrigo da festa e da música, que confronta a lógica da
dominação pragmática e objetiva do território. A pesquisa indica que o acesso à música, ainda
que mediado por relações de consumo, pode não perder a capacidade de emocionar e oferecer
novas interpretações da vida urbana. As racionalidades alternativas evidenciam-se, portanto,
nas letras e representações simbólicas do espaço, mas também nos modos de produzir, fazer
circular e consumir música.
Palavras-Chave: Cidade, Música, Apropriação territorial
9
ABSTRACT
OLIVEIRA, Anita Loureiro de. Music and urban life: encounters and confrontation in Rio de
Janeiro city (1990-2008): 271f. Thesis (Ph.D in Regional and Urban Planning) (Institute for
Urban and Regional Planning and Research, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
This thesis aims to relate scientific knowledge to arts sensibility, utilizing music as an expression
of the speech of “ordinary man”, non-specialist ones. Reflection on city life is not a role just for
specialists in urban planning, and music, as it spreads other speeches on urban life, enables a
sensitive apprehension of the encounters and confrontations of different ways of thinking and
acting that compose the city. Through the use of lyrics and interviews performed with Pedro
Luís, Fernanda Abreu, BNegão, besides a subjective interpretation of Marcelo Yuka music (O
Rappa and O F.U.R.T.O.), among other compositors from Rio de Janeiro, the “cariocas”, that
had been highlighted since 90´s until nowadays, we recognize alternative world views and
individuals that evidence fights for the right of a renewed and developed urban life. We searched
for a individuals identified with the critics to a way of life focused in individualism, consumerism
and contention, but we didn´t deny the collision and negotiations existing between the ‘dominant’
and the ‘alternative’. The thesis covers a productive circuit of music, signalizing counter-
rationalities that reinvent the phonographic industry through horizontal, collective and
sympathetic actions. The dissatisfaction in face of dominant order is present in lyrics and
narratives, in non-mainstream musical production and in the subjective process of territorial
appropriation of the street for celebration, as an outcome of inhabitant’s spontaneous action.
This is about the renewed use of city areas to shelter celebration and music, which confronts the
logic of pragmatical and objective domination of the territory. The research indicates that access
to music, even when mediated by consumption relations, it is able of not losing the ability to
touch and offer new interpretations of urban life. The alternative rationalities evidence
themselves, thus, in the lyrics and symbolic representations of space, as well as in the ways of
producing, circulating and consuming music.
Key words: City, Music, Territorial Apropriation
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Lista de Figuras
Figura 1: Centro Municipal de Luiz Gonzaga Tradições Nordestinas – Bairro de São Cristóvão
Figura 2: Edificação da Fundição Progresso antes da reforma
Figura 3: Rio Scenarium – Rua do Lavradio – Lapa Fonte site da Casa
Figura 4: O uso coletivo da rua – Rua Joaquim Silva - Lapa
Figura 5: Escadaria Selaron - Lapa
Figura 6: Roda de samba: encontro de gerações
Figura 7: Ilustração do Distrito Cultural da Lapa
Figura 8: Gentileza; mensagem de Gentileza e escrituras na pilastra do Viaduto do Caju
Figura 9: Rio com Gentileza – recuperação das escrituras do Profeta
Figura 10: Eu amo baile funk – Evento promovido pelo Circo Voador – Lapa
Figura 12: O protesto anti-bélico de Fernanda Abreu – Fotos do CD Na paz (2004)
Figura 13: Novos grupos de Samba animam a Lapa - Casuarina
Figura 14: CDs Dubas: Orquestra Popular Céu na Terra - Bonde Folia (2007) e Fino Coletivo
(2007)
Figura 15: Nova estratégia de lançamento de CDs: encartados na Revista OutraCoisa
Figura 16: BNegão e Os Seletores de Freqüência, CD Enxugando Gelo (2003)
Figura 17: Músicos protestam e pedem fim do jabá
Figura 18: População protesta na arquibancada do Sambódromo - Carnaval 2008
Figura 19: Carro Alegórico do Salgueiro: representação da Lapa como lugar do samba e da
boemia
Figura 20: Protesto dos Moradores de Santa Teresa durante o Carnaval 2008
Figura 21: Cidade do Samba – Gamboa (RJ)
Figura 22: Projeto da Cidade da Música Roberto Marinho – Barra da Tijuca (RJ)
Figura 23: A cidade é preparada para sediar grandes eventos musicais promovidos pela PCRJ
– Túnel que liga os bairros de Botafogo e Copacabana
Figura 24: Show da banda Rolling Stones na Praia de Copacabana (2006)
Figura 25: Cenas da cidade depois do show da banda Rolling Stones na Praia de Copacabana
Figura 26: A Lapa repleta de gente numa noite de fim de semana
Figura 27: CD Chico Buarque Carioca (2006), lançado pela indie Biscoito Fino
Figura 28: Hutúz Rap Festival no Armazém 5 do Cais do Porto - Zona Portuária (RJ)
Figura 29: Centro Cultural Ação da Cidadania – Bairro da Saúde (RJ)
Figura 30: Casa Rosa Cultural – Bairro das Laranjeiras
11
Figura 31: Público assiste a show do projeto Conexões Urbanas na Vila Vintém - 2004
Figura 32: 47ª Edição do Conexões Urbanas – Canitá - Complexo do Alemão - 2007
Figura 33: Desfile do Cordão do Boitatá em 2006 na Rua do Mercado - Centro
Figura 34: O sucesso do tradicional desfile do Cordão do Bola Preta pela Av. Rio Branco
Figura 35: Baile à fantasia da Orquestra Imperial - temporada pré-carnaval Circo Voador (2007)
Figura 36: A apropriação da rua para a festa – Lapa
Figura 37: Desfile do Bloco das Carmelitas nas ruas de Santa Teresa
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Lista de siglas
ABMI - Associação Brasileira de Música Independente
ABPD - Associação Brasileira de Produtores de Discos
ABRAFIN - Associação Brasileira dos Festivais Independentes
ACCRA – Associação Comercial do Centro do Rio Antigo
APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte
CC - Creative Commons
CCAC - Centro Cultural da Ação da Cidadania
CMI – Centro de Mídia Independente
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CEP (20000) - Centro de Experimentação Poética
CUFA – Central Única das Favelas
DJ – Disc-Jóquei – Discotecário
ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição
FGV – Fundação Getúlio Vargas
F.U.R.T.O. – Frente Urbana de Trabalhos Organizados
HPP - Festival Humaitá Pra Peixe
IFPI - Federação Internacional da Indústria Fonográfica (sigla em inglês)
IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano
LIESA - Liga Independente das Escolas de Samba
MC – Mestre de Cerimônia
MTV – Música e Televisão
ONG – Organização Não Governamental
OI - Orquestra Imperial
PL – Projeto de Lei
PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO______________________________________________________________17
A CIDADE DO RIO DE JANEIRO DOS ANOS 1990 AOS DIAS ATUAIS: MARAVILHA
MUTANTE _________________________________________________________________ 18
CAPÍTULO 1 – DIFEFENTES RACIONALIDADES NA CENA URBANA E CRIAÇÃO
MUSICAL COMO EXPRESSÃO DA APROPRIAÇÃO SIMBÓLICA DA CIDADE _________ 30
1.1 - SINAIS DO DECLÍNIO DA ORDEM OCIDENTAL-CAPITALISTA: ‘PENSAMENTO ÚNICO’
E DIÁLOGO DIFICULTADO ___________________________________________________31
1.1.1 – Pensamento ocidental homogeneizante e crise da razão capitalista ________ 33
1.1.2. Racionalidade sem razão e dominação do território ______________________ 39
1.1.3. O modelo de gestão urbana da razão globalitária e a lógica unifuncional e
pragmática no território da cidade do Rio de Janeiro___________________________ 42
1.2 - DO TERRITÓRIO UNIFUNCIONAL DA LÓGICA CAPITALISTA HEGEMÔNICA ÀS
DIFERENTES FORMAS DE APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO ______________________ 48
1.2.1 Cidade da Música: entre a decisão governamental e o lugar da prática musical
coletiva _____________________________________________________________ 50
1.2.2 – O direito à apropriação e ao uso da cidade ___________________________ 68
1.3 POSSIBILIDADES DE ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA URBANA ATRAVÉS DA MÚSICA
__________________________________________________________________________ 73
1.3.1- O sujeito e a experiência urbana _____________________________________ 86
1.3.2 – Vozes da (cri)ação musical insurgente ________________________________89
CAPÍTULO 2 A PRODUÇÃO MUSICAL DOS ANOS 90: PASSANDO DE MONO PARA
ESTÉREO ________________________________________________________________ 104
14
2.1 - PRODUÇÃO SOCIAL TOTAL: GLOBALIZAÇÃO E VIDA SOCIAL ________________ 107
2.2 ESPACIALIDADE DA PRODUÇÃO: VERTICALIDADE E HORIZONTALIDADE NA
INDÚSTRIA FONOGRÁFICA _________________________________________________ 109
2.3 – TRANSFORMAÇÕES DO MTCI E BREVE HISTÓRICO DA PRODUÇÃO FONOGRÁFICA
DOS ANOS 90 AOS DIAS ATUAIS _____________________________________________112
2.3.1 – Majors e racionalidade dominante __________________________________114
2.3.2 Indies: Pequenas e médias gravadoras e novos selos no mercado fonográfico
___________________________________________________________________129
2.4. EM BUSCA DE UMA OUTRA RACIONALIDADE NO FAZER MUSICAL ____________135
2.4.1 – A produção independente: caminhos alternativos do fazer musical ________ 147
2.4.2 Novos instrumentos técnicos e transformação dos meios de difusão e consumo
da música___________________________________________________________ 155
CAPÍTULO 3 A MÚSICA NA CIDADE EM FESTA: CONSUMO E MANIFESTAÇÃO
_________________________________________________________________________168
3.1 – O ESPAÇO-TEMPO DA FESTA __________________________________________ 169
3.1.1 Grandes eventos e equipamentos-ícones urbanos: promoção da cidade-
espetáculo? _________________________________________________________177
3.1.2 Festivais patrocinados: consumo e diversidade
___________________________________________________________________ 187
3.2 - MÚLTIPLAS IDENTIDADES/TERRITORIALIDADES NA CIDADE EM FESTA _______200
3.2.1 Grandes Coletivos Musicais e racionalidade alternativa
___________________________________________________________________ 204
3.2.2 – Contra-racionalidade na apropriação da música _______________________215
CONSIDERAÇÕES FINAIS __________________________________________________221
ANEXO I ________________________________________________________________ 229
15
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ___________________________________________ 251
REFERÊNCIAS DE DOCUMENTOS SONOROS _________________________________ 257
LISTA DE SITES CONSULTADOS ___________________________________________ 259
16
INTRODUÇÃO
Apreender a densidade da vida urbana através da música é o objetivo mais geral
desta reflexão. A Tese aproxima a produção teórica sobre o urbano da rica experiência da vida
cotidiana, buscando provocar um diálogo entre teoria e prática. Através do reconhecimento das
apropriações e representações simbólicas do espaço, a música revela a existência de
racionalidades alternativas que podem contribuir para a reflexão sobre a vida urbana. A
proposta visa ressaltar as lutas pela co-presença e a disputa de projetos que evidenciam o
encontro e o confronto dos diferentes modos de (vi)ver a cidade.
Trata-se de buscar consolidar uma outra forma de fazer ciência, capaz de
considerar a emoção presente nas falas cotidianas e a sensibilidade do artista na apreensão
dos sentidos que orientam a ação do homem comum que vive nesta cidade de cidades
misturadas. Partimos do pressuposto que a música nos ajuda a ouvir as vozes dos não-
especialistas, mas que vivem na cidade e têm muitas idéias sobre a vida urbana. Estas idéias
são transformadas em músicas que revelam apropriações e representações simbólico-
subjetivas do território.
O recorte espaço-temporal da análise é a cidade do Rio de Janeiro do início da
década de 1990 aos dias atuais. O período escolhido revela uma vivência pessoal e a
observação da transformação na vida urbana, cada vez mais marcada pela violência, inclusive
em suas formas simbólicas. Esta vivência começou ainda nos tempos da escola e interferiu na
minha formação como pesquisadora. Para Bourdieu (2004), o habitus do pesquisador interfere
na forma como constrói seu objeto, pois o habitus resulta daquilo que incorporamos através da
convivência familiar e na vida escolar/acadêmica
1
.
1
O senso crítico e criativo sempre foi estimulado por minha família e escola. Durante os quinze
anos que estudei no Centro Educacional Anísio Teixeira– CEAT, em Santa Teresa, pude
experimentar a liberdade de refletir sobre temas difíceis da vida social e sentir indignação frente
à desigualdade. Foi também com a família e a escola que aprendi a importância de respeitar a
diferença, de viver a alegria da criação artística e as sensações de estar no palco ou na platéia
das apresentações de música e teatro que a escola organizava em sua rotina pedagógica,
sempre com a participação ativa dos alunos. Estas apresentações me influenciaram a ouvir, por
minha vontade, a música brasileira e as obras de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Luiz Gonzaga, Cartola, entre outros ícones, que meus pais também gostavam de ouvir em
casa. A música sempre esteve presente no ambiente familiar: meu pai era um autodidata do
violão, fã de Baden Powel, João Bosco, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, compositores
que tantas vezes embalaram meu sono. Minha mãe mostrava sempre citações e regravações
que os músicos da minha geração re-inventavam, re-criavam ou re-interpretavam. Foi também
com minha mãe que aprendi a importância da arte para o ato político, além do prazer de
promover a reunião festiva e alegre, como as festas juninas que organizava no Condomínio
17
A CIDADE DO RIO DE JANEIRO DOS ANOS 1990 AOS DIAS ATUAIS: MARAVILHA
MUTANTE
A escolha da cidade como escala de análise relaciona-se ao fato de ser natural do
Rio de Janeiro, sempre ter sido moradora da cidade e deste ter sido o lugar da minha prática
musical e vivência política. Mas esta escolha também decorre do fato do Rio de Janeiro
apresentar elevada densidade simbólica, amplificada pelo abrigo de funções culturais
relevantes e pela difusão de imagens-sínteses (Rio – capital cultural, cidade aberta,
cosmopolita, cidade-cenário) que permitem o reconhecimento de sua raridade (RIBEIRO, 1991;
1995; 2006). A cidade preserva ainda hoje, na escala do país, um papel de difusora de
costumes, comportamentos e hábitos sociais, mesmo sendo considerada um lugar
economicamente desestabilizado que condensa agudas contradições sociais (RIBEIRO, 1995).
O acelerado avanço tecnológico e as transformações culturais decorrentes da
comunicação global e instantânea vivida mais intensamente a partir dos anos 1990, baseada na
combinação entre novas tecnologias, no amplo poder de comunicação da Internet, na
unificação dos processos produtivos, na política neoliberal e em mercados globais, justificam o
recorte temporal adotado.
A cidade do Rio de Janeiro pode ser o cenário apropriado para o reconhecimento da
atual vitalidade das práticas musicais coletivas. O caráter político destas práticas reside nas
representações do espaço que as letras e sonoridades das canções revelam, mas também nos
modos de produzir, fazer circular e consumir a música. Estes novos canais de difusão e
consumo musical, por sua vez, são reveladores de novos formatos organizativos e de práticas
espaciais fortemente vinculadas à música e que buscamos reunir nos três capítulos da Tese.
A música é o recurso metodológico que contribui para um recorte da realidade em
movimento e que o movimento do pensamento busca acompanhar. As transformações vividas
na música da década de 1990 aos dias atuais foram influenciadas também pelo cenário político
Equitativa, em Santa Teresa. Este condomínio também tem suas próprias histórias e memórias
políticas e foi, sem dúvida, um lugar importante que influenciou minha formação, minha visão de
mundo e, em alguma medida, a construção deste objeto de investigação e análise. O próprio
bairro de Santa Teresa também tem sua singularidade no contexto da cidade do Rio de Janeiro:
por manter certa tradição de reunir expressões artísticas alternativas; por ter sido área de
residência de uma classe média (intelectuais, artistas e políticos de esquerda); por ser um
bairro que mantém preservadas marcas do passado através do bonde e do casario antigo; por
suas características de área montanhosa que ainda preserva porções significativas da Mata
Atlântica; e, sem esgotar as razões, por ser um bairro que vive as contradições urbanas,
notadas pelo abrigo de um número cada vez maior de favelas,que evidenciam a falta de
políticas públicas habitacionais, de transporte, de educação, relacionadas ao direito à cidade.
18
das últimas décadas, fortemente marcado pela implantação das políticas neoliberais, que
geraram mudanças não somente na estrutura produtiva relacionada ao mercado fonográfico,
como nos meios de comunicação e nas formas de consumo musical. Frente a um cenário de
“crise”, as músicas revelam um olhar crítico do sujeito, pois tratam de temáticas e problemas
que a maior parte da população muitas vezes prefere não ver, nem ouvir.
Esta produção musical registra a pluralidade sonora da nova música feita na cidade
- inclassificável quanto ao gênero que utiliza propositalmente harmonias ruidosas e arritmias
para provocar reações no ouvinte, assim como provocar abalos nas estruturas do mercado
fonográfico e criar um mercado alternativo capaz de fazer circular esta música insurgente,
resistente ou “independente”.
Enquanto recurso operacional de apreensão da rica experiência do homem comum
na cidade, a criação musical torna a análise sensível às circunstâncias do Outro, permitindo o
reconhecimento de práticas, identidades e territorialidades que expressam no urbano a
simultaneidade, o encontro e a possibilidade de legitimação das diferenças. A música fez da
pesquisa para a Tese um trabalho absolutamente interessante de busca do diálogo entre
mundos aparentemente distantes: o campo acadêmico e o campo musical, e também de
reconhecimento de numerosos outros diálogos e encontros possíveis na cidade e no campo
fonográfico.
A opção metodológica da pesquisa esteve direcionada ao reconhecimento da
sensibilidade do Outro e das racionalidades alternativas que convivem com a racionalidade
hegemônica. Esse movimento do pensamento foi possível graças ao diálogo com um conjunto
de autores como Jean-Paul Sartre (1967), Henri Lefébvre (1987; 2001a; 2001b), Milton Santos
(1994; 1997; 2007), Pierre Bourdieu (2004) e Pierre Bourdieu, Jean-Claude Chamboredon e
Jean-Claude Passeron (2004) que contribuíram de forma significativa para a reflexão
metodológica da presente Tese
2
.
O diálogo com esse conjunto de autores apoiou a construção do objeto de
investigação, garantindo o surgimento de um conhecimento novo, na medida em que as
desconfianças do pesquisador foram sendo transformadas em questões que ajudaram a
formular, interpretar e testar hipóteses. Acreditamos que as hipóteses ajudam a estabelecer
relações rigorosas entre fenômenos, e sua comprovação, a partir de uma fundamentação
2
Além da importância da disciplina Métodos e Técnicas de pesquisa ministrada pelos
professores Ana Clara Torres Ribeiro e Rainer Randolph, é necessário destacar a grande
contribuição da reflexão coletiva orientada pela Professora Ana Clara Torres Ribeiro no âmbito
do LASTRO Laboratório da Conjuntura Social: Tecnologia e Território. Sem esta orientação
teórico-metodológica, este trabalho não se realizaria.
19
teórica e metodológica consistente, possibilita certo distanciamento em relação ao senso
comum, resultando na construção de um conhecimento novo.
A hipótese que a pesquisa busca testar é se a música constitui-se num recurso
operacional significativo para a apreensão dos encontros e confrontos que marcam a vida
urbana atual, e se este recurso é capaz de permitir um reconhecimento de lutas simbólicas pela
apropriação do espaço urbano. A proposta da análise envolve a leitura da dialética entre
objetividade e subjetividade, a “polifonia urbana”, isto é, a ação insurgente cujo sentido político
está na propagação de uma outra fala sobre o urbano, através de músicas que evidenciam
insatisfação frente a uma ordem específica e, ainda, o potencial de renovação da vida na
cidade que a arte nos ajuda a experimentar.
Estas vozes insurgentes podem vir de áreas estigmatizadas da cidade, como
favelas, subúrbios ou periferias, mas também podem ser vozes das camadas médias
intelectualizadas, que buscam a mediação e o diálogo como forma de enfrentar a ‘crise’ que
estamos vivenciando. Assim, muitas vozes querem estabelecer o diálogo, o encontro das
diferenças para que a vida numa grande cidade, como o Rio de Janeiro, possa ter algum
sentido. Algumas músicas buscam dar visibilidade a uma existência negligenciada e fazer
poesia a partir dos conflitos experimentados no urbano. Em comum, estas músicas têm a
capacidade de criar um outro imaginário urbano que revela territorialidades, identidades,
lugares escondidos e práticas sócio-espaciais bastante relevantes para a reflexão da vida nas
grandes cidades.
As territorialidades, enquanto estratégias político-culturais, interessam
particularmente à análise porque revelam o sentido simbólico do poder e, ao serem
incorporadas à análise, permitem apreender a luta pelo direito à cidade, que se daria a partir da
possibilidade da afirmação do direito à apropriação (bem diferente do direito à propriedade) e
do direito à obra (que é o direito à ação participante), tal como Lefebvre (2001a) orienta. Para
ver a cidade como obra coletiva e reconhecer a ação participante através da música basta
observar as representações do espaço que as letras apresentam e a apropriação e o uso da
rua como lugar da festa e da sociabilidade pública, além das práticas musicais coletivas que
restituem a possibilidade do encontro e do uso coletivo da cidade.
No entanto, ao tratar de uma temática tão subjetiva, era preciso partir de um método
que fosse capaz de reconstruir o sentido da ação, a partir das motivações originais e dos
valores que a orientam, considerando que a ação pode ser objetiva, quanto ao seu desenrolar e
efeitos, mas é subjetiva quanto às motivações. Com base na leitura de Sartre (1967) que
propõe que o princípio do conhecimento do mundo não é puramente objetivo, procuramos
20
abordar a questão a partir da subjetividade, que representa um momento do processo objetivo –
o de interiorização da exterioridade sem deixar de considerar, também, o processo de
exteriorização da interioridade, através das falas e ações do sujeito.
A opção por um método capaz de apreender subjetividade e objetividade relaciona-
se à necessidade de uma abordagem dialógica que pudesse dar conta dos processos que
interferem na forma como o sujeito vive os determinantes objetivos da realidade, sem esquecer
que cada sujeito, através de sua ação, expressa valores que constituem sua própria existência
e que revelam as condições subjetivas da sua experiência social concreta. Assim, o método
compreensivo do existencialismo tornou-se uma referência importante para a pesquisa. Para
Sartre, o ser humano constitui-se numa originalidade da existência. um nível desta
existência que pode ser compreendido pelo pensamento crítico, através do princípio da
liberdade. Acreditamos que este princípio emerge nas falas e ações musicais coletivas sobre as
quais nos debruçamos nesta reflexão.
O ato do sujeito não se esgota no desenho objetivo do gesto. É também vivido
subjetivamente a partir dos projetos do sujeito. O projeto, para Sartre (1967, p. 81), implica na
superação subjetiva da objetividade, pois o subjetivo retém em si o objetivo que nega e que
supera em direção de uma nova objetividade; e esta nova objetividade, na sua qualidade de
objetivação, exterioriza a interioridade do projeto como subjetividade objetivada (id, p. 82).
Objetivamente, o sujeito social pode não ter “saída”; mas, em algum momento, pode agir de
forma inesperada e surpreendente sob a orientação da subjetividade.
Ao longo da pesquisa, a música revelou alternativas construídas no processo de
afirmação do sujeito. Utilizar a música para expressar a capacidade de superação das
condições objetivas da vida e, assim, afirmar-se como cidadão pleno e não apenas como
consumidor, é o projeto que une os indivíduos que a pesquisa reconheceu como sujeitos
criativos, que usam a música como canal e meio de expressão de sua subjetividade.
O existencialismo parece-nos a corrente de pensamento mais apropriada para dar
suporte à reflexão proposta, pois contempla a subjetividade, em diálogo com o marxismo; que
não elimina a existência da coletividade e das necessidades materiais, mas considera a
potência do Outro e o irredutível da liberdade
3
. Apesar do pertencimento à coletividade ser uma
3
Para Sartre (1967), o marxismo constitui a tentativa mais radical de esclarecer o processo
histórico na sua totalidade, sendo a filosofia insuperável de nosso tempo porque as
circunstâncias que o engendraram não foram ainda superadas. No entanto, existem camadas
de realidade que precisam ser trabalhadas, que os marxistas dogmáticos muitas vezes não
reconhecem. Segundo Sartre, o marxismo vivo manifesta-se na maneira de compreender os
fatos a partir da totalidade, pois cada acontecimento, além de sua significação particular, tem
um papel revelador e, cada fato, uma vez estabelecido, é interrogado e decifrado como parte de
21
dimensão irrecusável da existência, o sujeito é mais do que um elemento desta coletividade.
Ainda com base na reflexão proposta por Sartre, pode ser dito que o marxismo é
uma filosofia crítica que desnuda o capitalismo, mas cuja vitalidade depende da inclusão crítica
de faces do real reconhecidas pelas ciências, em especial por aquelas que possibilitam a
valorização do sujeito. É possível afirmar, assim, que o existencialismo supera em parte a
reflexão do marxismo clássico, ao valorizar o sujeito e afirmar a resistência e a anti-disciplina.
O método escolhido para a abordagem da questão proposta pela pesquisa
precisava, portanto, permitir a produção de um conhecimento novo que avançasse junto com a
praxis. Segundo Sartre (1967, p. 23), o pensamento concreto deve nascer da práxis e voltar-se
sobre ela para iluminá-la. Para tanto, torna-se importante reconhecer as condições objetivas da
existência coletiva, mas também as condições subjetivas, pois é este reconhecimento que
diferencia as ciências humanas das naturais. O compromisso com a verdade é comum às duas
grandes áreas do conhecimento, mas os discursos científicos interpretam de maneira diversa a
noção de verdade.
A pesquisa nas ciências humanas constrói relações entre sujeito pesquisador e
sujeito pesquisado que precisam ser refletidas, pois a maneira como o objeto é construído
expressa a visão de mundo do pesquisador e a forma como este interroga a realidade social.
Para reconhecer a complexidade do Outro, é preciso reconhecer sua subjetividade, pois o
Outro é mais do que aquilo que o pesquisador nele, assim como o Outro é mais do que as
suas necessidades objetivas. Sartre busca refletir as relações sujeito-objeto, afirmando que,
para compreender o Outro (o objeto), é preciso conhecer a si mesmo (sujeito do conhecimento).
O sujeito do conhecimento precisa se interrogar, rever seus princípios e refletir sobre seus
métodos. A própria formação do analista indica as circunstâncias de elaboração da pesquisa e
o ângulo com o qual observa o fenômeno escolhido para a análise.
Além de Sartre, outros autores mencionados buscam reconhecer a anti-disciplina
e a ação que não se submete à ordem hegemônica. A proposta de buscar a criatividade e a
ação solidária e horizontal de Santos (1997) inspira o reconhecimento das racionalidades
concorrentes como reveladoras de novas perspectivas de método e ação, que aconselham
mudanças na epistemologia da geografia e das ciências sociais em geral. O objetivo mais
amplo desta Tese é o reconhecimento de uma visão de mundo que não está calcada na
um todo. Enfim, o marxismo contém um olhar sintético que vida aos objetos de análise e é
pelo valor deste olhar que, para Sartre (1967, p. 6), o existencialismo seria um método
encravado no próprio marxismo. Segundo Sartre, alguns conceitos abertos do marxismo
acabaram tornando-se insuficientes para interpretar o real, pois uma filosofia permanece eficaz
enquanto vive a práxis que a engendrou e um saber passado não pode ser transformado em
saber eterno.
22
lucratividade imediata, que não reproduz a competição nas práticas mais cotidianas e que
revela o senso de coletividade diante de expressões cada vez mais freqüentes de
individualismo.
Tentar descrever e interpretar a atualidade e, por meio da música, reconhecer as
diferentes racionalidades que constituem o urbano não é tarefa fácil, apesar de ser
extremamente desafiadora e estimulante. Para Santos (1997, p. 17), “o desafio está em separar
da realidade total um campo particular, susceptível de mostrar-se autônomo e que, ao mesmo
tempo, permaneça integrado nessa realidade total”.
Para Lefebvre (1987), o analista separa do imenso devir do mundo, da totalidade do
devir, certos fragmentos, certos ‘objetos’ e, ainda que esta demarcação ocorra no plano teórico,
o conhecimento inicia-se no vivido. A reflexão de método feita por Lefebvre ajuda a afirmar que
sujeito e objeto estão em perpétua interação e que o conhecimento é prático. Para o autor,
antes de elevar-se ao nível teórico, todo conhecimento começa pela experiência, pela prática.
Assim, apesar do diálogo com a reflexão de Sartre, pareceu-nos importante
destacar as orientações de método de Lefebvre (1987, 2001a) e Santos (1997), além da
importante contribuição de Bourdieu (2004) para a análise da relação entre as posições sociais,
as disposições (ou os habitus) e as tomadas de posição, as “escolhas” que os agentes sociais
fazem nos domínios da prática. Buscou-se refletir a dinâmica do campo fonográfico a partir de
seus agentes, tal como propôs Bourdieu (idem) articulando esta reflexão à valorização do
sujeito (da criação/produção) na análise da ação insurgente e crítica no campo musical.
Buscamos utilizar o conceito de campo de Bourdieu (Op. cit) no sentido do campo
de forças - onde são disputados vários tipos de capital e, em especial, no caso da música,
capital simbólico - considerando que o campo inclui, ainda, as regras de admissão e a sua
singular dinâmica. Os agentes do campo fonográfico trazem ao centro da reflexão a questão da
produção. a referência ao sujeito do campo da música é evidente quando o foco da análise
está na criação.
A análise do campo fonográfico permite reconhecer confrontos entre interesses,
projetos e visões de mundo que constituem a densidade (espessura) da vida social (RIBEIRO,
2005). Compreender as condições sociais da produção musical, a gênese social do campo
fonográfico, as crenças que o sustentam, os jogos de linguagem, os interesses e apostas
materiais e simbólicas que sustentam a produção musical pode ser, de fato, um caminho para a
verificação de como a criação musical evidencia a diversidade da experiência social.
A opção por analisar a trajetória de artistas promotores de uma contestação festiva
visou o alcance da problemática do sujeito, enfocando suas práticas, escolhas, estratégias e
23
táticas. Este sujeito que, de forma criativa, busca desvendar, nas tramas do cotidiano e do
lugar, as condições de sua sobrevivência e também os caminhos para o alcance da visibilidade
que é indispensável à conquista de direitos, em especial aqueles direitos que estão
relacionados à vida urbana
4
.
A proposta é refletir a condição do sujeito e a sua sagacidade para revelar a força
da ação que resiste à crise e que faz da música um canal de expressão de outros imaginários,
abertos ao desvendamento de novos rumos para a experiência urbana. Alcançar a problemática
da existência, a partir da experiência singular do compositor, parece-nos uma boa opção para
compreender melhor uma coletividade e suas circunstâncias.
O diálogo com o compositor permite que o sujeito pesquisador aproxime-se do
sentido dado pelo músico às suas composições, evidenciando que discursos são também
práticas. Os discursos propagados pela música podem ser considerados práticas, pois nos
dizem muito sobre o sujeito e sua situação. Por outro lado, as entrevistas com os compositores
foram enriquecedoras para a interpretação das letras e dos processos de criação, pois
ajudaram a situar a música no contexto vivido pelo compositor ao longo de sua biografia e no
ato da criação.
A produção musical também desvela os limites impostos pela ordem dominante no
que diz respeito ao acesso a canais de produção musical, que, por vezes, reproduzem a
desigualdade social e os estigmas sócio-territoriais presentes na vida urbana. Em outras
palavras, o sentido contestador das músicas que alimentaram a reflexão realizada nesta Tese
não se esgota nas letras e na produção de contra-discursos, pois os modos de vivenciar a
ordem dominante revelam o sentido libertário da criação de canais alternativos de produção e
difusão desta outra fala sobre a vida urbana
5
.
Partindo da biografia do sujeito, isto é da história de suas relações com outras
4
Grande parte desta análise está orientada pela reflexão feita por Ribeiro, Ana Clara T. (2006)
“Vínculo Social: cartografia da ação em contextos metropolitanos” (Segunda fase do projeto:
“Cartografia da ação e análise de conjuntura: reivindicações e protestos em metrópoles
brasileiras”). Projeto de pesquisa desenvolvido com o apoio do CNPq e da FAPERJ no âmbito
do LASTRO – Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e território - IPPUR/UFRJ.
5
No primeiro capítulo, o foco da análise é a etapa inicial da produção fonográfica, de criação
das letras de músicas que se inspiram na vida urbana atual. Esta criação difunde outras falas
que se propagam em forma de música. A etapa da criação musical revela ainda importantes
formas de encontro, como parcerias e fusões rítmicas. Este encontro possibilita novas formas
de diálogo entre os diferentes e pode indicar um novo tipo de ativismo político, capaz de
mobilizar, inclusive, agentes do próprio mercado fonográfico hegemônico. Como veremos
adiante, alguns artistas mediadores, favorecidos por ocuparem posições privilegiadas no
campo, utilizam a força da indústria fonográfica para ampliar as vozes da contestação e do
protesto.
24
pessoas (BERGER & BERGER, 1975b, p. 200), torna-se possível reconhecer encontros
provocados pela música, experiências coletivas de apropriação territorial, formas plurais de
viver e conviver na cidade e, ainda, formas diversas de representar a experiência urbana.
Através da análise das letras, de entrevistas com compositores e da reflexão de suas práticas e
escolhas no campo fonográfico, a pesquisa articula o ato individual do compositor a processos
sociais mais amplos.
É necessário compreender um gesto individual, como uma composição musical, em
suas circunstâncias. Desta maneira, a potência do gesto pode ser amplificada pela análise, pois
cabe ao analista estabelecer nexos entre ações e entre teoria e prática, de modo que redes de
sentidos mais amplos sejam estabelecidas, potencializando a configuração do sujeito coletivo.
Um gesto simples, quando articulado a outros fatos pela análise pode revelar que
procedimentos individuais tecem uma rede social articulada em torno de um mesmo projeto:
perceber sintomas da crise para conseguir enfrentá-la.
Além das composições que revelam poéticas apropriações espaço-temporais da
cidade, outro gesto simples e que a pesquisa valoriza é o uso da rua como lugar da
sociabilidade, do encontro e da apropriação coletiva do espaço urbano. A possibilidade do
pensar coletivo e das práticas que contribuem para que a cidade seja vivida de forma mais
plural e justa, como lugar de todos, foi algo valorizado neste estudo. A música, ao contribuir
para a construção de uma nova representação da cidade e para a criação de novos canais de
representação, mostra que a vida social é densa e diversa e que é nesta pluralidade de
experiências que pode ser encontrado o caminho para uma nova sociabilidade, que legitime as
diferenças e o diálogo.
Assim, a opção por reconhecer na música os novos processos de organização que
transformam o sentido e a direção de lutas no espaço urbano, faz parte de um esforço coletivo
de tentar consolidar uma episteme dialógica, que busca aproximar a reflexão teórica do urbano
da rica experiência do senso comum. A emoção presente nas falas, letras e atitudes evidencia
disputas de projetos, interesses e visões de mundo que revelam a complexidade da vida
urbana.
A música em diálogo com a teoria crítica do espaço realizada por Milton Santos e,
especialmente, com o desafio analítico construído pelo conceito de território usado proposto
pelo autor (SANTOS, 1994), que pode ser articulado à noção político-filosófica de homem lento,
também por ele formulada (RIBEIRO E LOURENÇO, 2004; RIBEIRO, 2005a) permite o
reconhecimento da ação de homens comuns que usam a criatividade para conquistar direitos
fundamentais relacionados à vida urbana.
25
A valorização da ação do sujeito e do movimento de costura do tecido social, que
ocorre simultaneamente ao seu esgarçamento (RIBEIRO, 2006b), é um dos princípios
metodológicos adotado na construção do objeto desta Tese. A escolha do tema, das teorias e
os valores que constituem a moral do analista revelam a forma pela qual o sujeito pesquisador
desvenda processos. O espírito crítico e questionador não poderia estar ausente de uma
análise sobre a vida urbana que parte de músicas que têm em comum uma forte indignação
frente à realidade caótica, mas que não eliminam a esperança da transformação social.
Tal como Freire (2000) ensina, a esperança faz parte da natureza humana e seria
contraditório se, inacabado e consciente do inacabamento, primeiro, o ser humano não se
achasse disposto a participar de um movimento constante de busca e, segundo, se buscasse
sem esperança. A luta por justiça social é uma luta esperançosa e este foi o motivo pelo qual
optei por investigar a música insurgente, que, mesmo sendo a trilha sonora dos momentos de
festa, sabe contestar e provocar a reflexão. Esta música de postura contestadora diante de
temas como a desigualdade, as distâncias sócio-espaciais e a violência simbólica da
estigmatização territorial, também afirma diferenças e a possibilidade de legitimá-las
favorecendo os que foram historicamente estigmatizados e segregados.
Não se trata de uma abordagem descritiva dos fatos e processos. Foi necessário
recorrer à teoria e ter cuidado em sua apropriação, pois um fato pode ser interessante, mas é a
maneira como é abordado que faz com que uma Tese seja consistente e original. A
reflexividade acerca dos “fatos do senso comum” produz fatos científicos e a teoria é o
instrumento da busca por uma produção de conhecimento que se a partir da transformação
de fatos banais em fatos analiticamente significativos com base em um conjunto de orientações
teóricas que estimulam a reflexividade.
Uma das orientações metodológicas mais importantes, e que foi fundamental para a
elaboração da Tese, refere-se à relação entre teoria e senso comum. Uma diferença
fundamental entre as orientações metodológicas de Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2004)
e Lefebvre (2001a) pode ser reconhecida quando os primeiros falam em ruptura com o senso
comum, enquanto Lefebvre fala em superação no sentido dialético da recuperação
transformadora e de erros momentâneos e verdades relativas na tentativa de criar verdades
aproximativas (LEFEBVRE, 1987). Para este autor, o acúmulo de experiências práticas e erros
constitui-se numa forma de acumular conhecimento e de construir novas verdades. Assim, para
Lefebvre, uma dialeticidade entre verdade e erro que faz com que a reflexão não parte da
eliminação e, sim, da construção de novas verdades a partir do erro.
Esta orientação teórico-metodológica é muito importante para a reflexão sobre
26
discursos e atitudes de sujeitos que não são teóricos da vida social e, sim, pessoas sensíveis
que retratam sua experiência da vida urbana através de narrativas poéticas e composições
visando “viver da música”. O diálogo com os compositores não é simples, pois termos que para
o analista são conceitos, como cidade, urbano, megalópole, metrópole, lugar, paisagem, entre
outros, são utilizados sem o rigor exigido pelo campo acadêmico. Os compositores não são
teóricos da vida urbana, mas as entrevistas e interpretações subjetivas das canções revelam
um diálogo entre ciência e arte, que não apenas é possível como é bastante fértil e instigante.
Estimular um diálogo entre o campo acadêmico e o campo musical é a proposta
desta pesquisa. O movimento dialético da reflexão lefebvriana orienta a construção de nculos
entre orientações teóricas e prática, entre pensamento e ação. Reconhecer o valor prático do
senso comum e articular as falas do homem lento às teorias sociais é estabelecer uma proposta
de produção do conhecimento que parte de um movimento dialético que, ao invés de destruir o
pensamento do outro, busca desvelar sua potencialidade, superando-o, sem eliminá-lo.
A capacidade de refletir sobre a própria reflexividade permite que movimentos
importantes da própria subjetividade do pesquisador sejam incorporados à análise. O sujeito-
pesquisador acaba explicando a si mesmo ao analisar um objeto. Porém, cabe ao sujeito
pesquisador saber se distanciar de seus valores para reconhecer e refletir os valores do sujeito
pesquisado (objeto). Considerar a complexa relação entre sujeito e objeto significa reconhecer
que a unidade sujeito-objeto não é harmônica e sim conflituosa; pois o sujeito não controla os
determinantes da concretude e nem os movimentos do real. Os processos que conformam o
real têm uma dinâmica que independe do sujeito pesquisador, o que requer habilidade na
apresentação de conceitos que se adaptem a este real móvel, múltiplo, diverso e contraditório.
Para Lefebvre (1987), o real está repleto de matizes, complexidades, mudanças e
transições. Assim, o pensamento deve estar sempre em movimento para buscar acompanhar o
movimento do real. Esta proposta de leitura do movimento da sociedade através da dinâmica do
campo musical visa acessar o sujeito de ações criativas e críticas frente aos determinantes da
produção hegemônica e às limitações impostas pela ordem dominante. No caso desta reflexão,
a liberdade possível à criação musical revela-se a partir do sujeito que não se conforma com os
códigos do consumo e que se afirma como cidadão, através de sua narrativa poética indignada
ou por meio de ações que resistem ao modelo de mercado que exige obediência e
subordinação às grandes corporações transnacionais; um mercado que, por ser seletivo, faz
com que outros sujeitos criativos criem circuitos alternativos, à margem, underground, que
conformam o cenário “independente” da música.
Este sujeito em movimento revela a criatividade de sua ação na produção de um
27
conhecimento sobre a vida urbana (veiculado através das letras das músicas), mas também
revela novas formas de produzir e de difundir música. Ações criativas nas diferentes etapas do
circuito produtivo da música podem ser compreendidas como formas do agir político quando
dialogam com as formas anteriormente existentes de criação ou quando rompem com os modos
dominantes de produzir, difundir ou consumir música
6
.
A escolha da música como recurso operacional para a apreensão dos confrontos e
encontros que constituem a vida urbana parte de uma visão ativa da sociedade, que reconhece
a possibilidade da música permitir uma abordagem mais sensível do (e com) o Outro. Para
Sartre (1967, p. 126), “nossa compreensão do Outro não é jamais contemplativa: não é senão
um momento de nossa praxis, uma maneira de viver, na luta ou na conivência, a relação
concreta e humana que nos une a ele”. Este entendimento orientou a escolha a música como
objeto da pesquisa sobre a experiência urbana, cuja intenção principal foi valorizar o sujeito
social, a partir de uma visão ativa da sociedade. Lefebvre (2001a) ressalta a importância da
consideração conjunta de recursos da ciência e da arte, porque a arte oferece múltiplas figuras
de espaço e tempo apropriadas e transformadas em obra.
A tese percorre as etapas do circuito produtivo da música e a divisão dos capítulos
segue esta seqüência que se inicia na criação das letras, passa pela produção e pela difusão
musical, até chegar à etapa de consumo da música. O primeiro capítulo trata da criação musical
e de seu caráter político ao evidenciar os encontros e confrontos de diferentes modos de
pensar e agir na cidade. Neste capítulo destaca-se a presença da música no cotidiano do
carioca e toda a vitalidade do urbano na forma de letras musicadas. Também são enfocadas as
mediações em que agentes, que ocupam posições privilegiadas na estrutura do campo
fonográfico, colaboram para a afirmação de expressões musicais de grupos populares e, com
isso, provocam encontros e diálogos importantes sobre a vida urbana.
No segundo capítulo são percorridos os caminhos alternativos da produção e da
difusão musical, evidenciando a ação solidária, horizontal e insurgente de indivíduos
insatisfeitos com a lógica hegemônica no campo fonográfico e com as desigualdades ampliadas
pelo avanço tecnológico. A criatividade dos sujeitos frente às intensas transformações (técnicas
6
É possível identificar a existência do sujeito criativo em diferentes etapas do processo de
produção musical. Movimentos que lutam pela democratização do acesso aos canais de
produção cultural (cujas etapas passam pela criação, produção, difusão e uso/consumo dos
bens culturais) facilitando a criação de novas formas de agir em diferentes etapas do circuito
produtivo da música. As novas formas de compartilhamento de música na Internet também
indicam que as redes solidárias de música neste meio, mesmo sendo ilegais, podem ser
legítimas quando pensadas como forma de uso dos bens culturais que confronta a lógica do
consumo e do imediatamente rentável.
28
e comunicacionais) ocorridas neste campo também mereceu destaque nesta etapa do trabalho.
No terceiro capítulo são enfatizadas as transformações que a música vem causando
nos usos da cidade, enfocando o uso múltiplo da Lapa e sua recente renovação fortemente
vinculada à música. As práticas e os usos da cidade nos momentos de festa evidenciam a
presença e a potência da música na vida cotidiana. Os coletivos musicais que se organizam
tanto para promover a festa como aproveitá-la também nos ajudam a pensar os encontros e
confrontos da vida urbana. Os usos da cidade nos momentos de festa foi valorizado na Tese a
partir do reconhecimento de congraçamento detida pela música. As práticas musicais coletivas,
ainda que abrigadas no consumo, são extremamente ricas quando analisadas em relação aos
usos múltiplos do lugar.
A todo instante nesta tese a música mostra a existência de outros caminhos
possíveis para a vida social. Uma racionalidade alternativa confronta a lógica acelerada,
individualista e competitiva que busca se afirmar como a única razão possível. Esta
racionalidade sem razão é, a todo instante, questionada e a música realiza esse
questionamento com leveza e dinamismo.
29
CIRCUITO DA PRODUÇÃO MUSICAL
CRIAÇÃO PRODUÇÃO DIFUSÃO USO/CONSUMO
CAPÍTULO 1 – DIFEFENTES RACIONALIDADES NA CENA URBANA E CRIAÇÃO
MUSICAL COMO EXPRESSÃO DA APROPRIAÇÃO SIMBÓLICA DA CIDADE
O urbano é lugar do encontro e confronto das diferentes formas de viver e conviver
na cidade e é a partir deste recorte espacial que buscaremos apreender diferentes
racionalidades que convivem e se opõem na vida social. A racionalidade dominante, expressão
de um pensamento que se pretende único, e as racionalidades alternativas, vindas dos lugares
opacos (SANTOS, 1997, 2007) ou múltiplos da cidade, podem ser reconhecidas por meio da
música. As vozes insurgentes da música carioca revelam insatisfação com relação ao
pensamento homogeneizante proposto pela ordem dominante e é este o conflito que nos
interessa analisar. Com forte apoio na reflexão feita por Milton Santos, identificamos na música
e fatos que nos apresentam o mundo da globalização perversa, letras que revelam como esta
perversidade se evidencia na vida urbana e, também, músicas e atitudes que indicam um outro
mundo, tal como ele pode ser, apontando caminhos para a vida na cidade que queremos a
cidade para todos.
Também baseada na reflexão de Lefebvre, esta Tese busca aproximar a produção
teórica sobre o urbano da rica experiência vivida na cidade do Rio de Janeiro, evidenciando que
o planejamento urbano crítico pode contribuir política, pedagógica e materialmente para a
superação de determinadas formas de injustiça social (SOUZA, 2004) que fazem a cidade
parecer caótica e a vida urbana sem sentido. O encontro do planejamento urbano crítico com a
arte inspira-se na possibilidade de rompermos com uma forma de ver a ciência como lugar da
razão e a arte como lugar da emoção, como se fosse possível separá-las de forma tão rígida.
Através da música é possível ouvir as vozes dos que não pesquisam a vida urbana,
mas cuja experiência vivida na cidade revela uma racionalidade alternativa ao chamado
pensamento único. Como toda arte, a música é criação, representação e comunicação e, por
isso, nos permite fazer uma abordagem sensível da vida urbana. Esta abordagem é feita
através de sonoridades, versos, narrativas com cenários e personagens que retratam e que,
muitas vezes, reinventam o cotidiano e as maneiras de viver e conviver na cidade.
30
1.1 - SINAIS DO DECLÍNIO DA ORDEM OCIDENTAL-CAPITALISTA HOMOGENEIZANTE:
‘PENSAMENTO ÚNICO’ E DIÁLOGO DIFICULTADO
Evidenciando que “o raciocínio prático do senso comum, que tem livre curso nas
situações ordinárias de ação, deveria interagir, dialogicamente, com o conhecimento
teoricamente lastreado dos pesquisadores e planejadores profissionais” (SOUZA, 2004), o
presente trabalho procura articular a arte à técnica e ao conhecimento acumulados pelo campo
do planejamento urbano.
A obra de Henri Lefebvre contribuiu de forma profunda para a renovação da reflexão
crítica do urbano e, em especial, o livro Direito à Cidade, no qual o autor revela a necessidade
de realização de uma síntese entre arte, técnica e conhecimento. Nesta obra, Lefebvre (2001a,
p. 114) apresenta o movimento dialético como uma relação entre ciência e força política, como
um diálogo que atualiza a relação teoria-prática.
A opção por usar a música como recurso operacional na apreensão de
racionalidades alternativas constitui-se, em verdade, numa opção de método especialmente
desafiadora para uma geógrafa. Mas, o desafio de aproximar a música da teoria sobre o urbano
é estimulante porque parte do pressuposto de que o conhecimento é vivido. Tal como Lefebvre
(1987) orienta em sua reflexão de método, o movimento do pensamento precisa acompanhar o
movimento do real.
Em um sentido próximo, Morin (2002b, p. 15) afirma que o conhecimento pertinente
é o que é capaz de situar a informação em seu contexto e no conjunto de processos em que
está inscrita; pois o conhecimento progride pela capacidade de contextualizar e englobar e é o
exercício desta capacidade que pretendemos alcançar quando trazemos a música para pensar
a vida urbana.
A escolha da música como expressão da fala dos não-especialistas na temática
urbana evidencia a importância que deve ser atribuída às vozes que se insurgem nas ruas
expressando insatisfação frente a uma ordem que consideram injusta. Estas vozes devem ser
postas em diálogo com as teorias que ajudam a produzir conhecimento. Tal como afirma Morin
(2002, p. 338), “a arte é indispensável para a descoberta científica, visto que o sujeito, suas
qualidades e estratégias terão nela papel muito maior e muito mais reconhecido”. Através da
música, sujeitos falam da cidade real, estimulando a imaginação da cidade possível. Através da
reflexão sobre a criação musical crítica, é possível conhecer melhor o homem comum e alguns
de seus projetos para a vida urbana.
Tal como indica Souza (2004, p. 36) em sua crítica ao planejamento e à gestão
31
urbanos, é necessário “debruçar-se sobre as possibilidades de ação, refletindo sobre
perspectivas, limitações e potencialidades”, de um ângulo que denomina de dialógico. Para o
autor, a missão do intelectual/pesquisador/planejador passa por chamar a atenção para aqueles
que, para ele, são ao mesmo tempo, objeto de conhecimento e sujeitos históricos, cuja
autonomia precisa ser respeitada e estimulada. A idéia é dar voz ao Outro, reconhecendo-o
através de sua própria fala, de modo que seja possível aproximar o senso comum dos
acúmulos teóricos abarcados na pesquisa sobre a vida urbana.
O adjetivo dialógico usado por Souza é tomado de empréstimo a Paulo Freire, cuja
obra possui um destacado alcance político-filosófico que, de acordo com o geógrafo, é
simbolizado pela sentença “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; os homens se
libertam em comunhão”. O ensinamento de Freire sobre o ato de educar reside em vê-lo não
apenas como dialético, mas verdadeiramente como dialógico, isto é, fundado no diálogo
7
.
Ensinamento que possui nítida relevância para a ação coletiva em geral que, para Souza
(2004), inclui o planejamento urbano crítico e qualquer processo organizado de mudança social.
O diálogo proposto por Freire tem um sentido político filosófico próximo ao indicado
por Lefebvre (2001a) quando este autor sugere que uma teoria geral da cidade e da sociedade
urbana utilize recursos da ciência e da arte. Apreender as formas pelas quais a música nos
permite reconhecer apropriações e diferentes racionalidades constitutivas da vida social numa
cidade como o Rio de Janeiro, é, portanto, uma opção de método que enxerga na música um
importante recurso operacional para a apreensão das falas daqueles que efetivamente
estimulam diálogos sobre (e no) espaço urbano. Alguns sujeitos, em suas ações cotidianas,
criam uma forma comunicação sensível que traduz necessidades e desejos, muitas vezes
desvalorizados pelos técnicos e teóricos que se negam a ouvir as vozes do homem comum
não especialista em planejamento urbano.
A ação conjunta entre cidadãos, pesquisadores e planejadores urbanos é ressaltada
por Souza (2004, p. 69), que, inspirando-se em Chauí (1982 apud SOUZA, 2004), destaca o
risco do “discurso competente” revelar-se como uma ideologia tecnocrática e, em última
instância, autoritária, quando nega aos não-especialistas em uma dada matéria, o direito de
participarem ativamente da produção daquele saber e da sua aplicação mesmo quando esta
aplicação afeta a vida e os interesses de muitos, como é o caso do planejamento urbano. Em
7
O método dialógico representa uma oposição ao autoritarismo da concepção dominante e
tradicional da educação, que Freire chama de educação “bancária”, a partir da qual o educador
“deposita” conteúdos na cabeça dos educandos, reduzindo-os a um papel passivo. Partindo
deste método, o conhecimento é construído a partir da troca e do diálogo e o educando revela
seu papel ativo na construção do conhecimento.
32
concordância com este autor afirmamos que o saber sobre a vida cotidiana presente em
algumas músicas pode ser importante para refletirmos a própria maneira como fazemos ciência
e nossa formação enquanto técnicos e cientistas sociais.
Para Souza, mesmo que pareçam termos antagônicos, ‘técnica/ciência’ versus
‘política’, ‘reforma’ versus ‘revolução’, ‘planejamento’ versus ‘liberdade’, podem e devem ser
integrados não apenas retoricamente - o que para o autor seria válido -, mas conceitual,
teórica e metodologicamente. Acreditamos que, para superar a racionalidade dominante, é
preciso ver o planejamento como algo bem mais amplo do que uma ação estatal baseada numa
técnica puramente objetiva. Tal como afirma Souza (2004, p. 37), um planejamento crítico não-
arrogante não pode simplesmente ignorar saberes locais e mundos da vida de homens e
mulheres concretos, como se suas aspirações e necessidades devessem ser definidas por
outros que não eles mesmos.
A proposta de uma episteme dialógica que permita desvendar a complexidade do (e
com o) Outro, permite que o pensamento acompanhe o movimento do real. As músicas podem
sugerir formas de resistência às leituras do urbano que transformam a grande cidade no cenário
sem história dos interesses hegemônicos. Certas narrativas têm a capacidade de revelar a
diversidade e a heterogeneidade da vida social a partir da subjetividade dos sujeitos criativos,
que fazem da música um meio de garantir voz e visibilidade a outras formas de pensar e agir no
espaço urbano.
Inicialmente, evidenciaremos a crítica teórica à racionalidade dominante, para
depois inserirmos músicas que demonstram insatisfação popular frente à ordem urbana
instaurada a partir desta racionalidade. A insatisfação é reveladora de um outro fazer político,
que se manifesta na ação do sujeito criativo e na insurgência presente em territorialidades
fortemente vinculadas à música. Evidencia-se a construção de uma contra-racionalidade na
criação musical alternativa, assim como a luta pelo direito à cidade revela-se em músicas
expressivas das tensões em torno da apropriação territorial.
1.1.1 – Pensamento ocidental homogeneizante e crise da razão capitalista
A perversidade da vida urbana atual reside na crise que atinge diretamente o modo
do sujeito ser e estar no mundo, na medida em que a ordem expansionista do capital além de
econômica, é também social e cultural. Esta crise resulta da imposição da economia de
mercado que, na modernidade ocidental, institui-se como forma homogênea de organização
econômica e substrato da cultura contemporânea (SODRÉ, 2001). No processo de globalização
33
das culturas, o consumo, enquanto imperativo do mercado, aparece como uma doutrina sem
nome preciso (neoliberalismo, talvez), com pretensões de substituir valores tradicionais
(SODRÉ, 2001, p. 8).
Para autores como Garaudy (1983) e Latouche (1996), a crise que vivenciamos hoje
resulta da adesão de grande parte do globo ao modo de vida ocidental. Este processo é bem
mais complexo do que uma conquista territorial, que a expansão do ocidente corresponde a
uma adesão ideológica transmutada em técnica que busca, há alguns séculos, se impor a todos
os lugares.
O aprofundamento das relações capitalistas em todos os ângulos da vida social está
associado ao triunfo da supremacia da razão instrumental ocidental, mesmo que não seja
possível reduzir o ocidente ao sistema econômico hegemônico. A razão instrumental de base
ocidental alcançou a supremacia produzindo fragmentação não apenas como projeto
dominante, mas também como fato (RIBEIRO, 2004a).
Na base do pensamento ocidental, encontra-se um racionalismo centrado na
obtenção do lucro e do poder. Para Morin (2002, p. 160), “o economicismo torna-se ideologia
racionalizadora” e o desenvolvimento econômico-tecnoburocrático das sociedades ocidentais
tende a instituir uma racionalidade ‘instrumental’, em que eficácia e rendimento parecem trazer
a realização da racionalidade social”. Sob a égide do individualismo e da competitividade e
orientada para a dominação, essa razão oculta mecanismos garantidores da permanência de
formas tradicionais de estratificação social e divisão territorial, contribuindo para que a
superação da crise pareça ainda mais distante e difícil de ser alcançada.
No entanto, este pensamento dominante mostra-se desgastado e incapaz de
promover integração, exatamente pelo fato de partir do imperativo da dominação e do medo do
Outro. Ainda assim, Santos (2007) alerta para o fato de que o medo e o desamparo se criam
mutuamente, fazendo com que a busca desenfreada do dinheiro tanto seja causa como
conseqüência deste desamparo e medo. Não à toa Garaudy (1983) considera que o ocidente é
um acidente. Para o autor, o ocidente não é apenas uma entidade ‘geográfica’ e sim um estado
de espírito que se orienta para a dominação da natureza e dos homens.
Uma nova episteme torna-se necessária e urgente para o reconhecimento de toda a
complexidade e a diversidade da vida urbana atual; não somente pelo fato da ordem
hegemônica não ser uma ordem total, mas também pela limitação do modelo mecanicista de
leitura da sociedade. É necessário ter uma imaginação analítica mais ampla, no que diz respeito
a teorias e métodos, para que seja possível realizar uma reflexão crítica e consistente sobre as
alternativas existentes à racionalidade dominante.
34
A face contemporânea do capitalismo promove a crise das instituições sociais
crise informacional, comunicacional e de linguagem. Esta crise expressa também a
incapacidade de convencimento quanto aos benefícios dessa ordem, que mecanismos
perversos de reprodução das relações sociais são denunciados por análises teóricas e pelo
senso comum, como veremos através de músicas que realizam a reflexão informal da
problemática do poder e das injustiças sociais que marcam a experiência urbana.
Para Garaudy (1983, p. 53), “o problema fundamental da cultura hoje é pôr término
à concepção hegemônica da cultura ocidental e substituí-la por uma concepção sinfônica,
interrogando as sabedorias do mundo não-ocidental”. A visão não-ocidental do mundo une
amor da natureza e piedade para com os homens, rejeitando o individualismo ilusório para
tentar fundir-se com a natureza (GARAUDY, 1983). O não-ocidental, portanto, une o saber local
original (tradicional) ao novo olhar crítico, construído não mais a partir ‘do centro’ mas, a partir
‘da periferia’. A postura propositiva da música indica a construção de um outro olhar sobre o
mundo: coletivo, solidário e mais humano.
A emergência poética do novo exige uma postura aberta a uma nova atitude diante
do mundo, no que se refere à relação sociedade-natureza, e no que tange as relações entre os
homens. Garaudy (1983) sugere a abertura do horizonte reflexivo para novos possíveis,
capazes de orientar a concepção de um mundo diferente e um crescimento econômico com
face humana. O autor ainda afirma que para que o projeto esperança possa criar um tecido
social novo e um conceito inusitado de política, é preciso superar a concepção da teoria política
como instrumento de poder ao dispor de instituições e aparelhos exteriores ao homem. Uma
nova reflexão precisaria surgir, portanto, apoiada no engajamento pessoal e interior de cada um
com o todo.
A reflexão de Garaudy aproxima-se muito da ‘nova visão’ proposta pela música de
BNegão, a partir da qual o compositor propõe uma mudança nos valores que estão na base das
relações humanas. Nesta letra, BNegão fala da força da ação individual e também da força que
vários sujeitos adquirem ao se unirem em um projeto comum.
Uma nova revelação, você sempre soube, mas ainda não tinha compreendido
Uma nova humanização, a nova geração, passando de mono pra estéreo,
em vários tons, é sério, é sério.
O microfone, meu megafone, tome emprestado um pouco da minha energia, tem
sobrando pra todos os lados. Força importante, uma força a mais pra aturar a
pressão que tenta esmagar sua mente contra a parede chapiscada da ilusão.
Enxergando a realidade por de trás, depois da curva
Apesar da visão turva e obscura da humanidade em geral
Miopia espiritual, pegou um, pegou geral
Dignidade, simplicidade, infelizmente se tornaram artigos de luxo na
35
atualidade
Falta de vontade, disparidade entre discurso e atitude são maiores pilares
dessa situação escalafobética, patética, na qual nos metemos, pela qual vivemos e
morremos
Algumas vezes mais, pra aprender, reconhecer a todos como irmãos:
uns mais evoluídos, outros não… mas todos com sua missão
Uma nova visão (3x)
O microfone, meu megafone, passando de mono pra estéreo a sua
compreensão
8
O verso que fala de uma nova geração que faz do microfone um novo megafone,
que “passando de mono pra estéreo” sugere uma ampliação da forma de ver os fatos, através
de mais de um canal de comunicação, de escuta. Esta metáfora do mono para o estéreo
evidencia que “uma nova visão” pode ser construída a partir da escuta das várias vozes que
nos permitem ver o mundo para além do que oferece o pensamento único (mono).
Para o músico BNegão, na raiz dos problemas da humanidade está a
‘supervalorização da matéria’ e o individualismo, que sustentam o consumismo e a competição
por uma ‘vitória a qualquer custo’ geradores de miséria e violência. Para o compositor, o valor
individual está longe de ser traduzido pelo que a pessoa tem. Este valor surge no que a pessoa
é, na sua ação cotidiana. Ao questionar o comportamento individual, o compositor sugere uma
nova visão: “antes de querer que a humanidade mude, que tal mudar um pouco nosso próprio
ponto de vista?” A ‘nova visão’ de BNegão inclui a superação da hipocrisia ou da tendência de
exigir dos outros aquilo que não fazemos e, também, a não reprodução no cotidiano dos
deslizes morais que estão na base de uma sociedade injusta, como a hierarquização
desnecessária e a exploração “do mais fraco”. Destacam-se na letra os seguintes versos: “Nada
muda, enquanto não mudarem os valores na raiz de todos, eu disse todos - exploradores e
explorados, violentadores e violentados - tudo é meio a meio, tudo caminha lado-a-lado”.
Não sei se me entende, mas o que eu digo é que a maioria se trocasse de lugar
faria o mesmo; e quando tem uma oportunidade, o faz mesmo. Mesmo que em
escala menor: microcosmo, macrocosmo. Porém a intenção que movimenta a
ação é sempre a mesma: cadeia alimentar, lei da selva. O mais forte destroça,
atropela, passa por cima do mais fraco.
Consumismo, super valorização da matéria: o lado espiritual, ou seja, o real,
ficou na miséria; a mesma que domina e povoa o planeta terra, por sinal.
Competição a todo custo, vitória a qualquer custo, estilo de vida fatal, que
resultou nesse fiasco, nesse insulto que é hoje a humanidade, esse fracasso.
[...] B black bota o dedo na ferida, antes de querer que a humanidade mude, que
tal mudar um pouco nosso próprio ponto de vista?[...]
Cada um no seu tempo, cada qual no seu caminho, estradas separadas seguindo
pro mesmo objetivo. Destino ou não, pelo menos no momento, uns mais rápidos,
8
BNegão & Os Seletores de Freqüência. “Nova visão”. BNegão [compositor] In: - Enxugando
Gelo. 1CD p. 2003, faixa 2.
36
outros lentos, porém no subconsciente todos atentos. [...]
Estilo libertário, vivo nesse mundo, mas não sou presidiário da matéria
Procuro me desvincular cada vez mais, desapegar, usar somente o necessário
pra passar. Pois quando menos se espera, vem mais uma despedida do
planeta terra… [grifos nossos]
De fato, o estímulo ao consumismo, ao individualismo e à competitividade tende a
ameaçar o compartilhamento de valores e códigos comportamentais, provocando conflitos e
desagregação social (RIBEIRO, 2005b). Mas é preciso estar atento para não ocultar as formas
através das quais o capitalismo se preserva, como a que envolve a generalização da certeza de
que as pessoas são competitivas, individualistas e consumistas (idem). Para Milton Santos,
Neste mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão
dos espíritos constituem baluartes do presente estado de coisas. A
competitividade comanda nossas formas de ação. O consumo comanda
nossas formas de inação. E a confusão dos espíritos impede o nosso
entendimento do mundo, do país, do lugar, da sociedade e de cada um
de nós mesmos. (SANTOS, 2007, p. 46)
Ao contrário do imobilismo gerado pelo pensamento único, a proposta é enriquecer
o conhecimento teórico com a potência da música e das idéias que vêm das ruas, fortalecendo-
as com as teorias produzidas no campo acadêmico.
No que tange às teorias sociais, Santos alerta para o perigo da perda de influência
da filosofia nas ciências sociais, fazendo com que, por vezes, estas ciências acabem por buscar
inspiração na economia. Para Santos (2007, p. 47), é daí que vem o empobrecimento das
ciências humanas e a conseqüente dificuldade para interpretar o que “vai pelo mundo”. Nesta
direção, concordamos com o autor quando diz que, atualmente, as empresas hegemônicas
produzem o consumidor antes mesmo de produzir os produtos, daí o império da informação na
elaboração de um discurso convincente, cuja base é a ideologia tecida ao redor do consumo e
da informação ideologizados.
Segundo Santos (2007), a informação e o seu império são os fundamentos do
discurso único, que encontra alicerce na produção de imagens e do imaginário. Este discurso
encontra-se ao serviço do império do dinheiro, fundado na economização e na monetarização
da vida coletiva e da vida individual. A perversidade desta tirania da informação e do dinheiro
reside na sua capacidade de conformar, segundo um novo ethos, as relações sociais e
interpessoais, influenciando o caráter das pessoas, como no caso da competitividade sugerida
para a produção e o consumo e que se torna constante na vida social (SANTOS, 2007). A
violência da informação e do dinheiro constitui-se num alicerce os alicerces do sistema
ideológico, justificando as ações hegemônicas. Quando um compositor questiona a postura das
37
novas gerações diante desses valores culturais desagregadores, age no sentido de evidenciar
outros canais que comunicam e informam sobre uma outra visão de mundo.
Não é por acaso que Santos (2007) sugere que se quisermos escapar à crença na
visão hegemônica do mundo precisamos considerar a existência de pelo menos três mundos
num só: o primeiro seria o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula; o
segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo
tal como ele pode ser: uma outra globalização. E foi nesta perspectiva que escolhemos as
músicas que integram a presente análise. Estas músicas evidenciam a possibilidade de
lutarmos por este outro mundo possível a partir do lugar, sede da resistência.
Tal como ainda sugere Santos (1997), o mundo assiste hoje a uma criação de
normas, sobretudo das grandes empresas e megacorporações, cuja vigência é, sob muitos
aspectos, indiferente aos locais nos quais são inscritas. As organizações supranacionais como
o Banco Mundial e o FMI, cuidam de interesses “globais” e criam modelos que, em sua
concepção, são absolutamente generalizáveis. No entanto, esta ordem trazida pelos vetores da
hegemonia cria, localmente, desordem, não apenas porque conduz a mudanças funcionais e
estruturais; mas, sobretudo, porque não é portadora de um sentido local, que o seu objetivo
maior o dinamismo do mercado global implica numa permanente auto-referência (SANTOS,
1997).
Na década de 1990, empresas transnacionais passaram a controlar a maior parte
da economia mundial e a dispor de meios, cada vez mais eficazes, para interferir na formulação
de políticas e na estruturação da opinião de coletivos vinculados às suas atividades
consumidores, clientes, usuários. O neoliberalismo, entendido como a principal orientação
política e econômica das últimas duas décadas, tem como grande trunfo a suposta inexistência
de alternativas. Esta aparente inexistência de alternativas resulta numa certa apatia social. No
entanto, a proposta deste trabalho é mostrar que existem sinais de resistência à razão global.
Conforme indicado anteriormente, o contexto espaço-temporal que estimula a
presente reflexão é a cidade do Rio de Janeiro do início da década de 1990 aos dias atuais.
Nesse período, em que ocorre a combinação entre política neoliberal e o avanço de novas
tecnologias, o capitalismo reorganiza-se na escala mundial, revelando o aumento da
concentração do poder econômico, da desigualdade social, enquanto que variadas formas de
violência evidenciam, por sua vez, o predomínio de uma ação pragmática em relação ao
território – cujos princípios são orientados pela lógica da troca e da propriedade.
Sobre a violência, Santos (2007) alerta para a existência de uma violência estrutural
que evidencia o fato de que vivemos numa época de globalitarismo muito mais do que de
38
globalização. A violência difusa, mas estrutural, que é típica de nosso tempo, permite que
Santos afirme que a realidade é uma fábrica de perversidades. Este autor (2007, p. 60) nos diz,
ainda, da perversidade sistêmica, cuja causa essencial é a instituição da competitividade como
regra absoluta, fazendo do Outro uma coisa a ser removida. Daí decorrem a celebração do
egoísmo, do narcisismo, da corrupção e o abandono da solidariedade entre pessoas, grupos e
lugares. Para Santos, estas são as causas da submissão da vida de todos os dias a uma
violência estrutural, que é mãe de todas as outras formas de violência. A violência urbana é,
portanto, um sintoma desse mal maior, que muitos buscam confrontar por meio de ações e
gestos desvalorizados pelo pensamento acadêmico dominante.
Acreditamos que todos os problemas que caracterizam a vida urbana atual revelam
os limites da adesão social às promessas trazidas pela globalização (RIBEIRO, 2005b) e
facilitam a apreensão das novas formas de resistência ao pensamento dominante. A criação
musical referenciada a uma outra racionalidade mantém vínculos com espaços apropriados
através da narrativa poética vinda do lugar e apoiando o reconhecimento do sujeito da ação
contra-hegemônica, que através da música, revela alternativas às perversidades difundidas pela
razão global.
Para Santos (1997), não existe um ‘espaço global’ e sim espaços da globalização.
Em cada área, são múltiplos os graus e modalidades e combinações dos vetores globais. Os
efeitos locais destes vetores evidenciam o fato de certos lugares experimentarem uma
temporalidade lenta em relação à velocidade dos espaços paradigmáticos da globalização.
Nesse sentido a globalização, em seus moldes atuais, é negativa para a maioria da
humanidade demonstrando que a crise da razão ocidental reflete a tendência ao esgotamento
desta razão dita global.
Isto não impede que a racionalidade hegemônica, que Santos chama de razão
globalitária, incorpore-se à vida social, transformando-se em modelo para diferentes aspectos
da vida: seja influenciando a gestão e o planejamento urbanos ou interferindo no circuito da
produção musical.
1.1.2. Racionalidade sem razão e dominação do território
Para Lefebvre (1974), o capitalismo consegue ampliar sua presença através da
manutenção e da disseminação sócio-espacial de suas estruturas e, para tanto, precisa garantir
39
não apenas a reprodução dos meios de produção; mas, principalmente, as relações sociais de
produção, através da totalidade do espaço. De acordo com o autor (Op. cit), o espaço
socialmente produzido interage com as relações sociais de produção que transcenderiam a
própria esfera da produção, envolvendo a produção das relações sociais e a sua reprodução. O
espaço socialmente produzido seria, portanto, o espaço de reprodução das relações
dominantes de produção. Desta maneira, o espaço é produzido para atender as necessidades
do capitalismo. Assim, práticas econômicas, sociais e culturais revelam intencionalidades que
permitem a compreensão das formas pelas quais a razão globalitária interfere na produção e
nos usos do espaço.
Para Santos (1997, p. 150), a racionalidade que hoje testemunhamos não é apenas
social e econômica; pois, reside também no território. Para Claude Raffestin (1993), o território
se forma a partir do espaço, mas é resultado de uma ação conduzida por um ator que ao se
apropriar de um espaço - concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação) -
territorializa o espaço. O território é, nessa perspectiva, um produto elaborado a partir do
espaço, e como toda produção inscreve-se num campo de poder. Segundo o autor, o território
revela as relações de poder que envolvem do indivíduo ao grupo social, passando por
pequenas ou grandes organizações e pelo Estado. De sua ótica, o Estado busca organizar o
território através de novas ligações, recortes e infra-estruturas, o que também acontece através
da ação dos sujeitos que produzem territórios e territorialidades.
Segundo Santos e Silveira (2001), para definir um território devemos considerar a
interdependência e a inseparabilidade entre a materialidade e o seu uso, que inclui a ação
humana, isto é, o trabalho e a política. Os autores mostram que o território hoje passa por uma
transformação na qual objetos técnicos e ações estão cada vez mais informados e
normatizados. Normas, leis e diretrizes pautam a maneira como se constrói o território, o que
acontece muitas vezes, a partir de um intuito mercantil. A economia globalizada reclama
condições territoriais indispensáveis à produção.
A instalação dos capitais globalizados supõe que o território se adapte às suas
necessidades de fluidez (SANTOS, 2007, p. 66). Segundo Santos, a racionalidade dominante
não poderá se manifestar plenamente se a materialidade não oferecer determinadas condições
técnicas indispensáveis. Assim, para Santos (2007, p. 66) o discurso freqüentemente ouvido
que procura nos fazer crer que o Estado deve ser flexível, esconde o fato de que agindo a
serviço da economia globalizada, o Estado acaba por ter menos recursos para atender aos
interesses da população. Esta é uma das razões pelas quais a cultura ainda é vista como gasto
e, não, como investimento. Santos (2007) afirma que o território é atualmente o território
40
nacional da economia internacional (SANTOS, 1997) e que a pobreza, hoje, é uma pobreza
nacional da ordem internacional - uma ordem que, para ele, obedece a uma racionalidade sem
razão.
O território não pode, portanto, ser visto como um dado neutro. Da mesma maneira,
o espaço não é palco, nem mero suporte das relações sociais. Para Souza (1995, p. 78), o
território é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de
poder ou mais precisamente, relações de poder espacialmente delimitadas operando (...) sob
um substrato referencial (SOUZA, 1995, p.97, grifos do autor). Sendo que a preocupação
fundamental deveria ser identificar quem domina ou influencia e como domina ou influencia
esse espaço. Aqui o território aparece como um instrumento do exercício de poder, uma
espécie de campo de forças articulado a uma porção especifica do substrato material
(apropriada ou controlada por um grupo social) que faz com que o território não seja,
necessariamente, físico ou tangível (SOUZA, 2004, p. 61).
Nesse sentido, ao entender o território como um campo de forças, Santos (1997)
alerta para a necessidade do pesquisador evidenciar a escala de realização das ações e a
escala de seus comandos, pois é necessário distinguir entre os atores os que decidem e os que
obedecem. As zonas de densidade e de rarefação, a fluidez e a viscosidade do território, os
espaços da rapidez e da lentidão, os espaços luminosos e os espaços opacos, são alguns dos
conceitos e processos utilizados por Santos (1997) para a reflexão dos elementos que definem
a incorporação do espaço no âmago das relações sociais. Os espaços do mandar são
ordenadores da produção, do movimento e do pensamento relativo ao território como um todo
(SANTOS, 1997). Porém, precisamos estar atentos para os espaços opacos e para as zonas de
rarefação; pois sabemos que a criatividade e a inovação surgem, com muito maior freqüência,
nos lugares onde a ordem globalitária não predomina, como veremos no caso do Rio de
Janeiro, com relação à prática musical coletiva.
Além disso, Souza (1995) inclui em sua definição de território a existência de
diferentes escalas espaciais e temporais, concepção que compartilhamos quando nos referimos
aos territórios apropriados através da música. De acordo com o autor, os territórios são
construídos e desconstruídos nas mais diversas escalas espaciais e temporais e podem ser
vistos como relações sociais projetadas no espaço. Assim, os territórios podem ser instáveis,
formar-se e dissolver-se de modo relativamente rápido, ter uma existência periódica ou mesmo
cíclica, ainda que o substrato espacial permaneça o mesmo.
Esta proposta conceitual possibilita-nos pensar o território através de seus usos
plurais e de múltiplas territorialidades. Para Santos e Silveira (2001, p. 247), o território, em si
41
mesmo, não constitui uma categoria de análise. Na visão destes autores a categoria de análise
é o território usado, vivo. A partir dessa visão, Ribeiro sugere que nossa leitura do território seja
(...)orientada pela compreensão das lutas de apropriação, [de onde]
emerge o rico universo de relações que tem origem nos confrontos entre
códigos de conduta e, em termos amplos, entre a concepção dominante
da ordem social e os numerosos outros ordenamentos das práticas
sociais que se opõem e resistem a esta concepção. Desta ótica,
instaura-se a possibilidade de compreensão dos confrontos entre
interesses, projetos e visões de mundo que constituem a densidade
(espessura) da vida social (RIBEIRO, 2005, p. 95).
Esta propriedade do território possibilita a compreensão de que o espaço pode ser
analisado a partir de formas e processos contíguos e/ou em rede, horizontalidades e
verticalidades. De modo sintético, com base na reflexão de Santos (1997), as verticalidades
asseguram o funcionamento global da sociedade e da economia, pois se formam a partir de
atores hegemônicos que controlam as trocas, informações e normas. as horizontalidades
são construídas a partir das relações entre iguais, gerando formas de solidariedade (SANTOS,
1997), como as práticas solidárias da produção musical independente ou alternativa, como
veremos nos capítulos seguintes
9
. As verticalidades serão facilmente identificadas na ação que
segue a razão globalitária seja na produção musical (mainstream) do mercado fonográfico
transnacional e corporativo, seja na dominação pragmática do território, que se a partir da
propagação do modelo de gestão urbana que está longe de permitir o alcance de uma cidade
para todos.
1.1.3. O modelo de gestão urbana da razão globalitária e a lógica unifuncional e
pragmática no território da cidade do Rio de Janeiro
Para Souza (2004, p. 46), gestão e planejamento não são termos intercambiáveis
por possuírem referenciais temporais distintos: planejar remete ao futuro e gestão remete ao
presente gerir significa administrar uma situação imediata. Portanto, planejamento e gestão
são termos distintos e complementares, pois planejamos para preparar uma gestão futura,
mesmo que tenhamos que ter capacidade de improvisar e de sermos flexíveis diante do
imprevisível e do inesperado. No entanto, quando se pretende refletir as conseqüências de um
9
Quem produz, comanda, disciplina e normatiza, quem impõe uma racionalidade às redes é o
mundo, definido por Santos (1997) como o mundo do mercado universal e dos governos
mundiais, das organizações e fundações internacionais financiadoras de pesquisas, do FMI, do
Banco Mundial, cuja forma de ação afirma a verticalidade hierarquizante.
42
planejamento urbano de cunho empresarialista, (SOUZA, 2004, p. 139) a cidade do Rio de
Janeiro oferece um bom caso para exame.
No Brasil, as perspectivas mercadófilas têm se aninhado, a partir da
década de 90, no discurso dos “planos estratégicos”. O mais conhecido
exemplo é o Rio de Janeiro, elaborado durante a administração do
prefeito César Maia pela prefeitura em parceria com numerosas
entidades da sociedade civil (SOUZA, 2004, p. 139).
Segundo dados apresentados por Souza (2004, p. 140) “tenta-se criar a sensação
de um firme consenso”, quando em realidade “linhas de tensão e conflito são escamoteadas em
favor de uma imagem de unidade”. O modelo de gestão urbana adotado na cidade do Rio de
Janeiro tem favorecido os interesses privados empresariais - em detrimento dos interesses
coletivos. Este modelo de gestão urbana está conectado ao metabolismo do capital e fortalece
a lógica da competitividade, por visar tornar a cidade competitiva, enfraquecendo o diálogo
entre segmentos e grupos sociais, justamente no momento em que este diálogo precisa ser
estimulado para que seja contido o aumento da violência urbana (RIBEIRO, 2006b).
A crise - que altera a dinâmica do capital e produz fragmentação sócio-territorial
para a garantia do lucro – reflete-se na adesão do modelo da cidade-marketing-espetáculo, cujo
estilo de intervenção cosmética, estética e imagética reforça os contrastes sociais, com as suas
conseqüências mais perversas, como a indiferença e o medo do Outro. Os modelos de gestão
urbana interessam a essa análise por interferirem fortemente no uso e na apropriação dos
lugares da cidade e por revelarem a materialização da razão global no território em suas
conseqüências para as práticas culturais.
De acordo com Garcia (1997), a passagem do espaço-mercadoria à cidade-
mercadoria situa-se no marco temporal dos anos 1990 quando, em função da reestruturação
econômica mundial e da fluidez espacial de empresas e capitais, governos municipais
intensificaram a “venda” das cidades. Entretanto, a eficácia política dos projetos que objetivam a
"cidade-mercadoria" depende de um amplo consenso social e, mesmo que os opositores sejam
ofuscados, eles existem e tentam confrontar as intervenções urbanas voltadas para o mercado
globalizado. Assim, pretendemos destacar as formas como o homem comum, não-especialista,
evidencia a negação deste modelo que produz uma cidade para poucos.
Segundo Garcia (1997), para forjar um consenso em torno do modelo dominante de
gestão urbana, governo locais e agentes econômicos evocam a exigência da economia
competitiva. São assim elaborados projetos de renovação urbana, por meio de estratégias
transescalares, que buscam vender cidades enquanto mercadorias específicas. Este modelo
produz representações que obedecem a uma determinada visão de mundo e a uma série de
43
imagens-síntese (RIBEIRO,1991) sobre a cidade. São assim criados discursos referentes à
cidade, de forma a encontrar na mídia e nas políticas de city marketing os instrumentos para a
sua difusão e afirmação urbana (GARCIA, 1997).
A retórica planetária dos atores hegemônicos (PARAIRE, 1995 apud GARCIA,
1997) tende a instaurar o pensamento único - uma ideologia que, em sua vertente urbana,
configura uma agenda para as cidades, com pautas e programas definidos para a promoção e a
legitimação de determinados projetos. Suas imagens publicitárias baseiam-se nas chamadas
"cidades-modelo" e seus pontos de irradiação coincidem com as instâncias políticas de
produção de discursos: governos locais em associação com as mídias; instituições
supranacionais, como a Comunidade Européia; agências multilaterais como o Banco Mundial, o
BID ou a ONU (GARCIA, 1997). As agências de cooperação e instituições multilaterais têm
grande comprometimento com a difusão deste modelo e seu ideário. Ainda segundo Garcia
(1997), a identificação destes elos políticos entre as agências multilaterais de cooperação e
alguns dos principais ideólogos encarregados da difusão do "novo modelo de gestão urbana"
nos permite o entendimento das conexões entre o chamado "pensamento global" e a ideologia
neoliberal.
Tal como afirma Garcia (1997), este modelo propõe mudanças tanto no nível das
práticas espaciais (infra-estruturas, isenções e favores fiscais) quanto no nível das
representações do espaço (imagens, discursos), que fazem da mercadoria cidade, um palco
onde o espetáculo é conduzido por atores que cumprem o papel de consumidores específicos e
qualificados: o capital internacional, os turistas e os cidadãos "solváveis" (GARCIA, 1997). Tal
como afirma Ribeiro (2006a, p. 45),
o discurso que difunde novos ideários para a gestão urbana, realçando o
mercado e a iniciativa empresarial, não deve ser compreendido, apenas,
como sinal de alienação; pois, concretamente, este discurso defende
interesses que conectam a vida urbana ao metabolismo do capital
(RIBEIRO, 2006a, p. 45).
No discurso que busca interferir no senso comum, o modelo da cidade competitiva
aparece como resultado da performance dos governos de cidade que, através das
denominadas boas práticas, conseguiram destacar-se na ação urbanística, ambiental ou na
gestão urbana. Esta aparência esconde um complexo mercado onde as imagens são
construídas e postas em circulação em variadas escalas com mútuas influências de diversas
ordens, e o conjunto de agentes e estratégias territoriais inter-escalares comparecem para gerar
o convencimento de que as ações ocorrem de dentro para fora, a partir da ação local de
governos e habitantes (GARCIA, 1997).
44
A perversidade da tentativa de implantar este modelo está no fato de que os
governos municipais tendem a se desfazer de sua responsabilidade com relação a toda a área
urbana e a concentrar investimentos em fragmentos centrais, obedecendo à lógica de uma
política de localização que segue critérios econômicos no contexto de uma competição entre as
cidades gerada com o objetivo de gerar a máxima produtividade e a máxima lucratividade
10
.
Assim, no caso do Rio de Janeiro, o Rio Cidade é o plano de reforma urbanística
que buscou obedecer ao signo da ordem e ao signo do embelezamento, atingindo a cidade de
modo pontual e diferenciado
11
. Tal como afirma Oliveira (2002, p. 138), a reforma da cidade, a
criação ou a recriação do solo urbano, o embelezamento e a adequação da cidade a novas
situações mundiais, aparece recorrentemente no discurso de políticos, engenheiros, arquitetos
e urbanistas. Segundo o referido autor, a forma de intervenção proposta no Rio Cidade
privilegia os chamados corredores estruturadores da imagem da cidade. Esta intervenção é
pontual, por demarcar territórios no interior dos bairros, e pragmática na medida em que procura
alcançar resultados no curto prazo, sobretudo com relação à disciplinarização do uso do espaço
urbano. De acordo com a Secretaria de Obras do Município do Rio de Janeiro:
[O Rio Cidade] Se caracteriza por um plano de intervenções em áreas
de uso predominantemente comercial de grandes centros de bairros. O
objetivo do Rio Cidade é resgatar a integração do cidadão com o espaço
da sua cidade, restabelecendo os padrões de conforto, segurança e
disciplina dos usuários através da renovação e ordenação do mobiliário
urbano, adaptação das calçadas aos deficientes físicos, reformulação do
sistema de iluminação e sinalização públicas(...)
12
.
As seguidas gestões de César Maia na prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
(PCRJ) ilustram a adesão ao modelo dominante de gestão urbana. Segundo destaca o próprio
Prefeito, desde o início da década de 90, a cidade vem recebendo amplos investimentos
internacionais, que permitem que a prefeitura coloque em prática um grandioso programa de
macroinvestimentos de renovação urbana e de construção de novos equipamentos”
13
. Como
exemplos destes investimentos, César Maia destaca “a construção de equipamentos ícones
10
Em trabalho anterior (OLIVEIRA, 2004) identificamos as desigualdades que marcam as
políticas culturais da cidade do Rio de Janeiro, enfatizando o acesso à cultura como um direito à
vida urbana renovada, em que são mais equilibradas as oportunidades de produção e uso da
cultura. Destacamos que esta renovação da vida urbana exige uma postura ativa do sujeito na
luta para que a produção cultural não seja definida exclusivamente por uma política cultural
orientada pela lógica da troca e do mercado hegemônico, que no lucro imediato o motor
principal da ação.
11
OLIVEIRA, M., 2002.
12
Informações disponíveis no site http://obras.rio.rj.gov.br/index.cfm?sqncl_publicacao=264
último acesso 08 de feveriro de 2008.
13
Maia, César. Rio: um novo ciclo ascendente. Boletim do Instituto de Estudos do Trabalho e
Sociedade Dez anos depois: como vai você, Rio de Janeiro? nº 5 Março de 2003.
45
urbanos, como o Museu Guggenheim, a Cidade da Música, a Cidade do Samba, o Pavilhão de
Tradições Nordestinas e os equipamentos esportivos com vistas ao PAN-2007 e, quem sabe,
às Olimpíadas de 2012”.
Ainda segundo César Maia, “a Prefeitura alavancou um novo empréstimo de 100
milhões de dólares com o BIRD, fazendo com que a cidade tenha recursos abundantes”
14
.
Desta maneira, o discurso e a prática das últimas gestões da PCRJ têm como eixo a construção
de ícones que facilitem a projeção da imagem da cidade no cenário mundial. As prioridades
estão orientadas para fora e se distanciam das demandas mais urgentes da população.
Mas, intervir no espaço é intervir na reprodução da vida social. O Centro Municipal
de Tradições Nordestinas Luís Gonzaga foi inaugurado em 2003, quando as barracas que se
concentravam na chamada “Feira dos Nordestinos” - que funcionava mais de cinco décadas
sem apoio governamental - foram transferidas para o interior do antigo Pavilhão de São
Cristóvão, reformado pela PCRJ
15
. A feira abriga várias manifestações da cultura nordestina:
culinária, artesanato, trios e bandas de forró, dança, cantores e poetas populares, repente e
literatura de cordel. Entretanto, com a transferência da feira para o interior do pavilhão foram
excluídos pequenos comerciantes que não suportaram a concorrência com empresários mais
capitalizados que chegaram com a inauguração do Centro Municipal de Tradições Nordestinas,
que recebeu, aproximadamente, três milhões de visitantes em 2007.
Figura 1: Centro Municipal de Luiz Gonzaga Tradições Nordestinas – Bairro de São Cristóvão
16
o projeto do Museu Guggenheim-Rio foi cancelado após intensa manifestação
14
Maia, César. (2003) Op. cit.
15
A PCRJ fez obras de infra-estrutura de limpeza e segurança no Pavilhão visando a
organização das vias internas de acesso às 700 barracas, instalação de banheiros públicos e
estacionamento.
16
www.rio.rj.gov.br/riotur/pt/atracao/?CodAtr=3904
46
popular contrária ao projeto, considerado arbitrário e extremamente custoso
17
. A Câmara dos
Vereadores apoiou a posição contrária à construção do Museu, mas a PCRJ não desistiu de
construir um equipamento-ícone urbano e, assim, surgiu o projeto da Cidade da Música,
atualmente em fase de conclusão e com previsão de inauguração para Julho de 2008 e que
substituirá a monumentalidade prevista para o museu de grife internacional. a Cidade do
Samba, na zona portuária, reúne os antigos barracões fábricas das fantasias e carros
alegóricos das escolas de samba –, transformado-os em um parque temático para turistas que
buscam conhecer a produção do espetáculo do Carnaval e um pouco de sua história.
A ação dos atores hegemônicos condicionada à lógica do imediatamente rentável
evidencia a afirmação do mercado como instituição reguladora do direcionamento de
investimentos econômicos e relações sociais (PALLAMIN, 2002). As atividades instigadas por
interesses econômicos são pertinentes à análise por seus efeitos em práticas mais subjetivas,
que projetos culturais dessa perspectiva perdem grande parte da relevância intrínseca
(PALLAMIN, 2002, p. 104). Assim, concordamos com a autora quando diz que práticas que
promovem a espetacularização da cidade atuam no sentido da crescente legitimação de valores
que disciplinam e dominam as esferas do cotidiano, em vez de lhes abrir novos campos de
autonomia.
De fato, conforme afirma Ribeiro, a nova posição ocupada pelo consumo ampliou a
intervenção das empresas privadas na administração da cidade e na psicosfera dos lugares
(SANTOS, 1997) e “são muitos os processos associados à acumulação primitiva do capital
simbólico” (RIBEIRO 2006a, p. 41). É por isto que a política de eventos e a construção de
equipamentos ícones - urbanos permitem a reflexão crítica da manipulação mercantil dos
recursos simbólicos dos lugares (RIBEIRO, Op. cit.), tal como veremos no terceiro capítulo.
Para Ribeiro (1995, p. 61), a esfera cultural tem sofrido profundas mudanças no que
tange os processos de concentração de riqueza e poder envolvendo a organização social, bem
como as formas de apropriação do espaço. Para esta autora, os vínculos empresariais
estimulados pelo planejamento modificaram a composição interna da esfera cultural, a natureza
dos bens culturais consumidos no país e, ainda, o campo das políticas culturais. A dinâmica
econômica inclui atividades culturais seja na fabricação de bens culturais, seja no suprimento
de bens e serviços intermediários que viabilizam o consumo de outros bens e serviços.
as ações que visam a acumulação primitiva do capital simbólico
interferem na leitura do espaço herdado e no imaginário urbano,
impedindo a presença popular em áreas escolhidas para o abrigo da
17
A ação popular contra o museu ganhou força com sua chegada às instâncias jurídica e
legislativa.
47
frente transescalar de atividades que alimentam o mercado globalizado
(RIBEIRO, 2006a).
O carnaval do Rio de Janeiro é um exemplo dessa forma de acumulação urbana,
pois se transformou, nas últimas décadas, numa “promoção corporativa que verticaliza
atividades econômicas” (RIBEIRO, 2006a). No entanto, a população mostra que esta festa
ainda se manifesta no espaço público e os blocos de rua que surgem e se afirmam a cada ano
evidenciam a vitalidade e a potência da ação popular. A apropriação espontânea e coletiva das
ruas ainda é parte importante da vida cultural da cidade. Por esta razão, as políticas urbanas e
culturais deveriam ser articuladas aos processos existentes para que houvesse, de fato, a
coexistência de diferentes concepções e interpretações de cidade e a participação de diversas
culturas em prol de uma construção verdadeiramente coletiva da experiência urbana
(JACQUES E VAZ, 2006, p. 89).
1.2 - DO TERRITÓRIO UNIFUNCIONAL DA LÓGICA CAPITALISTA HEGEMÔNICA ÀS
DIFERENTES FORMAS DE APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO
Procuramos demonstrar, no item anterior, o modo pelo qual a razão global inscreve
a dominação como estratégia de manutenção da ordem urbana. Entretanto, através da
pesquisa empírica realizada foi possível reconhecer contradições que marcam o espaço urbano
e que evidenciam a complexidade da espacialidade capitalista em constante transformação. Um
lugar como a Lapa pode nos ajudar a observar como “o território é sempre múltiplo, ‘diverso e
complexo’, ao contrário do território ‘unifuncional’ proposto pela lógica capitalista hegemônica”
(HAESBAERT, 2004). Este lugar repleto de memória e simbolismo, ao mesmo tempo em que é
lócus espontâneo da produção e da prática musical coletiva, é, também, o lugar onde alguns
agentes podem intervir de modo a transformá-lo, em um futuro bastante próximo, num parque
temático do samba-choro e da boemia.
Ainda que a Lapa esteja correndo o risco de ser transformada em cenário da ação
pragmática do capital, a dinâmica do lugar revela a potência da ação coletiva e as
oportunidades criativas resultantes do encontro e da reunião festiva, que evidenciam diferentes
racionalidades e intencionalidades presentes no lugar.
Se a falta de diálogo entre a população e os agentes mais claramente envolvidos
nos processos decisórios que definem a alocação dos recursos torna evidente a opção por
beneficiar investidores, turistas e indivíduos que consomem o e no espaço remodelado da
48
cidade, como vimos no item anterior, a Lapa demonstra que é possível pensar a cidade através
de racionalidades baseadas na coletividade, mesmo que a dinâmica do lugar não esteja
completamente desvinculada da lógica mercantil do consumo.
Segundo Jacques e Vaz (2006, p. 80), a Lapa, antiga área residencial e reduto da
boemia e da malandragem, lugar que ainda preserva o casario do século XIX e os Arcos da
Lapa (Aqueduto da Carioca, do século XVIII) por não ter passado por processos de
homogeneização funcional e social, permitiu a multiplicação de usos e atividades que
potencializam sua vitalidade
18
. Segundo as autoras, o personagem principal desta dinâmica é o
jovem que busca a Lapa como um local de festa, cultura e boemia. Para Silveira, nos últimos
anos, é evidente sua “valorização como point noturno de diversos grupos sociais” e “como
espaço privilegiado daqueles que se disponham a (ou tenham condições de) pagar o preço do
entretenimento alçado à categoria cult” (SILVEIRA, 2004, p. 113).
Jacques e Vaz (2006) ressaltam que a Lapa vive um processo também apontado
por Gaspari de superação da idéia de cidade partida, indicando “o reencontro das duas cidades
que convivem no Rio, a dos pobres e a daqueles que acham que não são pobres. Sempre que
essas duas populações se encontram, o Rio floresce. Sempre que elas se separam, a cidade se
degrada”
19
.
Apesar de considerarmos o Rio muito mais do que uma ‘cidade partida’,
concordamos com a idéia de que a Lapa é um lugar de encontro, de usos plurais, onde as
diferenças se aproximam e se reúnem. Justamente partindo dessa experiência da pluralidade e
do encontro, observamos a forma como a prática musical coletiva é capaz de potencializar a
vitalidade de determinados lugares da cidade. Também procuramos evidenciar a luta de alguns
atores locais para a requalificação do lugar frente à opção do governo municipal em priorizar a
construção de ícones urbanos, claramente orientada pelo city marketing.
1.2.1. Cidade da Música: entre a decisão governamental e o lugar da prática musical
18
Ainda que seja tratada como bairro, até mesmo em documentos produzidos pela Prefeitura e
por outros órgãos de governo, a Lapa é a denominação conferida a uma pequena parte da II
Região Administrativa do Rio de Janeiro, esta sim identificada na subdivisão administrativa da
cidade como Bairro Centro, tal como explica Silveira (2004:113). Segundo a autora, situada na
periferia imediata da área central da cidade, na Lapa alternaram-se períodos de valorização e
desvalorização, passando de lugar de moradia de famílias abastadas no século XIX a lugar da
boemia no início do século XX.
19
Gaspari (2002 apud JACQUES e VAZ 2006).
49
coletiva
Pensar a cidade é pensar não apenas a materialidade do espaço urbano, mas
também as relações sociais, políticas e econômicas que a animam. No caso do Rio de Janeiro,
é muito freqüente o uso instrumental da cultura, e mais especificamente da música, na
promoção da imagem da cidade e, por isso, a reflexão da cidade através das práticas musicais
e da transformação que a produção musical pode produzir em determinados lugares precisa
superar a elevada naturalização que cerca as formas dominantes de uso do espaço urbano.
As transformações recentes observadas em grandes cidades indicam que os
governos municipais têm colocado a “arquitetura e o urbanismo a serviço do marketing político”
(JEUDY e JACQUES, 2006, p. 9), seguindo a orientação do modelo de gestão urbana orientado
pela imagem. Para Ribeiro (2006), hoje é menos equivocado considerar a cidade como uma
empresa ou mercadoria, do que em períodos anteriores, e o Rio de Janeiro não foge à regra.
A Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ), depois da polêmica em torno da
criação do Museu Guggenheim - que acabou sendo freada pela pressão popular e da opção
pela construção da Cidade do Samba como motor de uma “revitalização” da área portuária da
cidade, voltou a ser alvo de críticas com a criação da Cidade da Música Roberto Marinho, na
Barra da Tijuca. O local abrigará um grandioso complexo para música clássica, com salas para
concertos de orquestras sinfônicas e óperas, envolvendo um investimento total de
aproximadamente R$ 460 milhões. O projeto foi proposto pelo premiado arquiteto francês,
Christian de Portzamparc, que segundo site da PCRJ é “responsável pela criação de grandes
símbolos urbanos em todo o mundo, como o Cité de la Musique, de Paris”. Deixar marcas da
gestão através de obras grandiosas parece ser a intenção do atual prefeito. Afinal, “o complexo
abrigará a maior sala de concertos da América Latina e a nova sede da Orquestra Sinfônica
Brasileira da cidade do Rio de Janeiro”, de acordo com informações disponíveis no mesmo
site
20
.
A crítica ao projeto refere-se, em geral, ao seu alto custo e à concentração de
recursos em um único equipamento cultural, sem que este tivesse sido submetido a nenhum
tipo de consulta popular. Para Herschmann (2007), a criação da Cidade da Música é
“claramente o resultado de uma decisão tomada por técnicos em gabinetes fechados em
parceria com grandes grupos privados do país”, ao que acrescenta que esta decisão não era
propriamente um atendimento às demandas evidentes da sociedade carioca”. Para o autor, não
20
http://obras.rio.rj.gov.br/index.cfm?sqncl_publicacao=414 último acesso em 19 de Março de
2008.
50
se trata de oposição à criação de um centro dedicado à música erudita. O que se critica é o
comprometimento do orçamento do setor cultural, que é historicamente limitado, em uma ação
que pode significar o abandono do apoio a outras áreas e atividades culturais locais. Para o
autor (id, p. 11) em geral as políticas culturais não resultam de uma consulta democrática à
sociedade, ocorrendo freqüentemente a “aplicação de medidas exógenas que tendem a
dificultar a mobilização e atuação dos ‘atores sociais’ e, em última instância, o próprio processo
de integração e adensamento dos territórios”.
A crítica à maneira como foi concebida e vem sendo implantada a “Cidade da
Música” articula-se à análise que buscamos realizar neste trabalho; pois, através do exemplo da
instalação deste equipamento cultural, é possível verificar o distanciamento entre certas
decisões governamentais e as práticas espaciais e culturais da maioria da população carioca.
Enquanto a Cidade do Samba é um equipamento cultural que serve basicamente como parque
temático, atendendo ao espetáculo do carnaval para turistas, a Cidade da Música abrigará
atividades vinculadas a um gênero musical e espetáculos socialmente seletivos. Tais escolhas
sugerem, ainda, a falta de consistência dos projetos de requalificação urbana, pouco
identificados com a população local e que visam atingir, acima de tudo, metas econômicas e
atração do turista e do investidor estrangeiro (JACQUES E VAZ, 2006, p. 85).
De outro lado, áreas da cidade bastante freqüentadas em função de sua capacidade
de reunir pessoas e provocar encontros, como é o caso da Lapa, recebem poucos
investimentos em infra-estrutura. Muitos agentes que mobilizam a produção cultural da Lapa
denunciam a falta de apoio para que possam garantir mais conforto, segurança e acessibilidade
para os freqüentadores do lugar. Para Herschmann (2007, p.11), a Lapa é a cidade da música
de coração dos cariocas e, mesmo não tendo sido diretamente atingida por políticas culturais e
urbanas, sua atual vitalidade evidencia sua potencialidade integradora e criadora.
Localizada na área central da cidade do Rio de Janeiro, a Lapa é um destes lugares
de encontro e da prática musical coletiva que, desde meados dos anos 1990, vive um círculo
virtuoso. O sucesso mais recente alcançado pelas atividades das casas de espetáculo, dos
restaurantes e do turismo deve-se mais ao fato da Lapa ter se tornado um lugar especial para a
difusão musical na cidade do que a uma decisão governamental. Comparando a vitalidade da
Lapa ao investimento da PCRJ em grandes equipamentos, como a Cidade do Samba e a
Cidade da Música, temos a oportunidade de comprovar duas maneiras de se gerar
transformações no espaço urbano: a Lapa, cujo processo de renovação se deu “de baixo pra
cima” e com intensa participação dos atores locais, e que hoje chama a atenção da mídia, dos
planejadores e políticos (JACQUES E VAZ, 2006, p.86), e a construção de ícones urbanos que
51
visa a projeção da imagem da cidade-cenário no mercado internacional, que expressa
claramente uma ação vertical, “de cima para baixo”.
A vitalidade da Lapa está muito associada a seu uso plural e, ainda que ao longo
das últimas décadas a Prefeitura e o Governo do Estado tenham feito alguns investimentos no
embelezamento e recuperação do casario e do mobiliário urbano de parte do Centro do Rio
Antigo - como exemplificam o Corredor Cultural e o projeto Distrito Cultural da Lapa projetos
de natureza governamental, que visaram a renovação de áreas centrais, objetivando a
denominada revitalização de áreas degradadas que, em geral, ficam restritas à materialidade.
Na área da Lapa, as grandes intervenções que modificam o espaço urbano foram
dominantes até a década de 1980, com o início do projeto Corredor Cultural
21
. Neste período,
grupos culturais, como o que movimentou a transferência do Circo Voador do Arpoador para a
Lapa (em 1982), apoiaram o poder público municipal no que seria a primeira experiência prática
de preservação de um ambiente urbano da cidade do Rio de Janeiro. Cerca de 1300 imóveis na
área denominada Lapa-Cinelândia foram preservados com base neste projeto, mas a proposta
era ir além da preservação do patrimônio material.
O projeto pretendeu atender a três aspectos fundamentais: (1) respeito
aos interesses dos grupos sociais (moradores e usuários da área de
abrangência da proposta), inserindo-os nas discussões e resoluções; (2)
manutenção da dinâmica das atividades urbanas locais (pequeno
comércio); e (3) valorização cultural/simbólica dos espaços e atividades
tradicionais (consideradas relevantes para o conhecimento e a
preservação do passado para as gerações futuras) (SILVEIRA, 2004, p.
99).
A participação dos atores locais foi decisiva para a implantação do Corredor Cultural
e, ainda que tenha sido uma iniciativa do poder público municipal, a própria conjuntura de
abertura política estimulava a organização e a associação de moradores e comerciantes locais
que buscavam garantir melhorias na infra-estrutura urbana para a Lapa. A preservação do
patrimônio configurou-se, assim, como uma estratégia, utilizada pelos grupos locais na garantia
de visibilidade às suas reivindicações. Tais demandas incluíam a preservação da memória,
mas, acima disso, relacionavam-se ao desenvolvimento da potencialidade cultural do lugar.
Assim, através da proposta de conservação, o grupo responsável pelo projeto pôde articular a
21
De acordo com Silveira (Op cit, p. 100), a criação do Grupo Executivo do Corredor Cultural
ocorreu em 1979 e a definição da área do projeto ocorreu em 1983. Para a autora, o Corredor
Cultural é um marco da passagem do planejamento urbano para a Cidade do Rio de Janeiro
porque precedeu a institucionalização da temática preservacionista de trechos do tecido urbano
por meio da criação de Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (APACs), destinado à
preservação do patrimônio cultural urbano. A autora ressalta que o próprio Corredor Cultural é,
simultaneamente, precursor e a primeira APAC institucionalmente instituída.
52
preservação do patrimônio cultural com as ações de urbanismo necessárias ao local.
Desde então, o incentivo à preservação e ao uso cultural funciona através da
isenção de IPTU para os proprietários que fazem a restauração de seus imóveis. Entretanto, no
contexto atual o Corredor Cultural funciona como um escritório técnico, cuja atuação restringe-
se à implementação da lei que o instituiu como tal
22
.
De acordo com Silveira (2004, p. 121), desde o início da década de 1990, houve a
intenção do governo do Estado de implementar ações e intervenções culturais na Lapa. Durante
a segunda gestão de Leonel Brizola (1991-1994), a iniciativa à princípio limitada à cessão de
imóveis a grupos culturais, tornou-se mais efetiva a partir do projeto Quadra da Cultura. Neste
projeto, pretendia-se que os imóveis estaduais caracterizados por ocupação irregular fossem
destinados a atividades culturais, vinculadas a projetos elaborados e executados diretamente
pelo Estado ou pelas entidades previamente selecionadas para este fim (SILVEIRA, 2004, p.
121). Como exemplo tem-se o Centro do Teatro do Oprimido, dirigido pelo teatrólogo Augusto
Boal, o Grupo Teatral Tá na Rua, a recuperação de edificações como a sede da Federação de
Blocos Afro e Afoxés do Estado do Rio de Janeiro FEBARJ e a Casa Cultural Brasil-Nigéria,
ambas situadas na Rua Mem de Sá.
a ação do Estado de incentivo e de valorização de manifestações
culturais, voltadas para a Lapa, originou-se da solicitação de cessão de
uso de imóveis próprios estaduais, por parte de algumas entidades
interessadas em instalar suas atividades na área (SILVEIRA, 2004, p.
120).
Para tanto, o Estado instituiu um grupo de trabalho para discutir a implantação de
um projeto, inicialmente denominado Corredor da Cultura, responsável por indicar as entidades
culturais que ocupariam os imóveis. Em 1992, oito grupos e/ou entidades culturais selecionados
se organizaram numa associação denominada União do Largo da Lapa (Unilapa)
23
. No entanto,
após 1995 houve uma desaceleração dos processos, resultado de descontinuidades
administrativas, e do fato da própria Unilapa também não ter conseguido dar continuidade às
suas atividades, deixando de atuar por vários anos (SILVEIRA, 2004, p. 122).
A retomada do interesse do Governo do Estado com relação à Lapa ocorreu,
22
De acordo com as entrevistas feitas por Silveira (2004) durante toda a década de 1990 até o
momento em que a pesquisa foi concluída, houve uma drástica redução do número de técnicos
da Secretaria Municipal das Culturas no Escritório do Corredor Cultural. Em 2000, quando o
Corredor passou do RioArte para o Departamento Geral de Patrimônio Cultural (DGPC), a
promoção de atividades artísticas e culturais do projeto foram paralizadas.
23
idem
53
novamente, em 1999, através do projeto Distrito Cultural da Lapa
24
. Por meio de parcerias com
empresas públicas e privadas, a Secretaria Estadual de Cultura retomou a proposta de
requalificar a área, priorizando o uso do casario antigo às atividades culturais
25
. Segundo
Silveira, dentre as metas que deveriam ser alcançadas pelo projeto nesta época, estavam: a
“recuperação do patrimônio público imobiliário, a criação e revitalização de espaços destinados
à realização de atividades sócio-culturais e a implantação de programas de ação social”. A
intervenção urbanística realizada no Largo da Lapa buscava “preservar os sobrados
remanescentes, revogando os alinhamentos do período modernista e permitindo reconstruções
nos recuos” e a criação de amplas áreas de calçada junto às edificações, formando “um passeio
central com palmeiras imperiais ligando o Lampadário da Lapa aos arcos”
26
. A preocupação
com a abertura de “uma grande área livre para espetáculos e concentrações populares”
27
,
evidencia que a restauração de áreas de importância histórica e cultural e a preservação do
patrimônio cultural da cidade pode considerar o uso do lugar e, não apenas, o resgate da
memória.
A autora ressalta a tentativa de que o projeto fosse “viabilizado por meio de uma
ampla parceria entre poder público, iniciativa privada, comunidade local, instituições
acadêmicas e outras entidades da sociedade civil” (SILVEIRA, 2004, p 124). Esta intenção de
incluir diferentes segmentos sociais no processo de requalificação da Lapa sinaliza a
possibilidade de uma ação governamental que dinamiza o uso espontâneo e coletivo do lugar,
sem que sejam desconsideradas as potencialidades mercantis do território.
Tal como Silveira aponta, a complexidade do projeto Distrito Cultural da Lapa tem
início na sua concepção e esta complexidade precisa ser considerada quando buscamos
compreender o processo de sua implementação. Tal complexidade reside no fato do projeto
reafirmar o patrimônio arquitetônico e cultural da Lapa na promoção da “revitalização” da área,
ressaltando que a sua diversidade cultural estaria nitidamente relacionada ao seu patrimônio
arquitetônico (SILVEIRA, 2004, p. 123), ao mesmo tempo em que encontra dificuldades para se
colocar em prática a proposta de desenvolvimento urbano de amplo escopo sócio-espacial,
24
A área do projeto, definida pelo Decreto Estadual 26 459 em 07 de Junho de 2000, estende-
se do Largo da Lapa até o final da Rua do Lavradio, englobando as seguintes ruas: Avenida
Mem de Sá, Rua do Riachuelo, Avenida Gomes Freire, Largo da Lapa, Rua do Lavradio, Rua
dos Arcos, Rua Joaquim Silva, Travessa Mosqueira, Rua do Resende, Rua da Relação e Rua
Visconde de Maranguape.
25
ibidem.
26
http://www2.petrobras.com.br/cultura/portugues/patrimonioedificado/proj/edif_lampadario.asp
acesso em 05/01/2007
27
idem
54
integrando diversos segmentos sociais (id, 127)
28
.
Dentre os entraves que afetaram as possibilidades de implantação do projeto,
Silveira (ibid.) destaca as prioridades políticas do governo estadual, que foram modificadas no
decorrer dos anos. Em 2002, a proposta de ação do projeto indicava o interesse por um
programa de desenvolvimento econômico e social, por meio do turismo cultural, que na visão
de seus coordenadores as várias atividades oferecidas pela Lapa poderiam funcionar como
roteiro de opções ao visitante potencial (SILVEIRA, 2004). Outras mudanças impediram a
continuidade do projeto em sua forma original, que em apenas um mandato do Governo do
Estado foram nomeados quatro diferentes secretários de cultura, e cada substituição acarretou
mudanças nos interesses contemplados e nos focos da gestão da cultura
29
.
Se por um lado, aspectos destes projetos que evidenciam um movimento vindo
“de baixo”, cuja origem é o uso que a população institui espontaneamente no lugar; por outro, a
dificuldade de implantação das ações revelam os entraves que tornam lentas as transformações
do lugar. Os projetos não foram implantados conforme sua concepção original, entretanto, em
alguma medida podem ter contribuído para estimular ações de iniciativa privada, de grupos
artístico-culturais, comerciantes, que se organizaram para reivindicar obras de melhoria da
infra-estrutura do lugar.
28
Segundo Silveira (2004, p. 127), além da participação de pesquisadores da UFF e UFRJ, no
auxílio à elaboração de um diagnóstico da área da Lapa, representantes de diferentes grupos
locais puderam manifestar seus interesses em reuniões organizadas pela coordenadora, Maria
Juçá, que permaneceu entre 2000 e 2003 na coordenação do projeto.
29
De acordo com Silveira (op cit), na gestão estadual que se iniciou em janeiro de 2003
(governo Rosinha Garotinho), a nova secretária de Cultura, Helena Severo, discordou da
condução do trabalho realizada, até então, pela coordenadora do projeto e, meses depois de
assumir, transferiu a gestão do projeto para o Instituto Estadual de Patrimônio Cultural
(INEPAC) e, simultaneamente, a coordenação foi modificada. A partir desse momento, o
escopo do projeto foi restringido, atendo-se à restauração de três imóveis, evidenciando a
intenção do governo estadual de implementar uma concepção mais modesta e pragmática ao
projeto.
55
Figura 7: Ilustração publicada em documento sobre o Distrito Cultural da Lapa
30
A proposta de revitalização propagada pela mídia e por pesquisadores não nos
parece a mais adequada para o caso da Lapa, na medida em que o lugar pode ter sido
descoberto recentemente por determinados agentes, mas sempre abrigou, com maior ou menor
expressividade, práticas musicais coletivas. Tal como aponta Silveira (2006), o tecido social
urbano é sempre vital e, muitas vezes, a ausência de uma leitura do território praticado,
especialmente por parte dos órgãos governamentais - que não reconhecem gestos, detalhes
elutas pela co-presença entre os distintos grupos sociais – oculta a elaboração do tecer social e
a sua lentidão.
Por isso, ao refletirmos sobre as transformações recentes na Lapa, buscamos
evidenciar a capacidade deste lugar abrigar manifestações musicais que são vitais para a
cidade, ao mesmo tempo em que possibilita usos simultâneos da rua, independentemente dos
processos de espetacularização que rondam lugares da cidade e determinadas formas de arte.
Não se trata de uma negação do mercado, que seria inútil; mas de uma negação do mercado
avassalador, dito global (SANTOS, 2007). Tal como Ribeiro propõe, a própria noção de
mercado hegemônica pode ser questionada por sua incapacidade de oferecer condições para a
construção cultural da sociabilidade, na medida em que recusa as carências e as táticas do
homem ordinário (CERTEAU, 2003) e desconhece a autonomia relativa dos lugares (RIBEIRO,
2005a).
Para Herschmann (2007:25), o sucesso da Lapa “foi alcançado sem uma
participação efetiva do Estado, a partir da articulação espontânea dos empresários locais que
gravitam em torno da Associação Comercial do Centro do Rio Antigo (ACCRA) e de lideranças
30
http://www.inepac.rj.gov.br/arquivos/LapatextoSite17.10.2005.pdf
56
importantes”. Este processo contou com o apoio de uma mídia espontânea, criada por
jornalistas que freqüentavam o lugar. Esta mídia contribuiu para que o lugar ficasse conhecido e
fosse valorizado, primeiro pelos cariocas e, mais recentemente, pelo setor turístico.
Alguns empresários e músicos destacam que esse território poderia
facilmente se converter em uma localidade muito próspera. Na
realidade, sublinham em seus discursos que a Lapa vem atraindo
investimentos e é competitiva, em virtude não da aglomeração de
PMEs que reúne (como no caso dos distritos industriais marshallianos e
clusters) – da densidade produzida pela trama produtiva (Marshall, 1997;
Fischer, 2002) -, mas também em razão das “externalidades positivas”
(Humphrey e Schmitz, 1996) que estão ali presentes (HERSCHMANN,
2007).
De acordo com esta visão, a Lapa poderia ser ainda mais próspera e competitiva se
uma visão econômica de suas potencialidades fosse articulada ao circuito do samba-choro
desenvolvido na área. Discordamos, em parte, dessa visão pelo fato de que considerarmos que
foi justamente a ação despretensiosa - e pouco orientada pela lógica do lucro e da competição -
que provocou o sucesso do lugar. É evidente que a intenção dos pequenos e médios
empresários locais não era tornar a Lapa um lugar espetacularizado e, sim, um lugar propício
ao bom aproveitamento da noite carioca. Ainda que a intenção dos empresários locais seja
promover os seus negócios, uma clara preocupação em não descaracterizar os usos
tradicionais do lugar e de permitir a preservação de práticas coletivas que singularizam o bairro.
A Lapa é, muitas décadas, um lugar de boêmios e o estímulo à sua vocação
como abrigo das práticas do samba-choro feito pelas novas gerações decorre dos próprios
atores locais, organizados em uma associação de comerciantes que, desde 1996, consolida
uma visão própria do bairro, como lugar de preservação da ‘memória musical da cidade’. Nesta
direção, Herschmann (id, p.49) afirma que a Lapa é identificada como um cenário ideal para
gêneros musicais que evocam a tradição musical e a autencididade do “samba de raiz”.
O status da Lapa como território cidade da música também foi
construído socialmente e naturalizado no imaginário social a partir de
vários discursos (Thompson, 1992) tais como o de músicos, de
historiadores, de autoridades e de promotores do turismo que
circulavam na sociedade e eram veiculados constantemente na mídia.
Quase todos “(re)inventavam” a mesma tradição (Hobsbawn e Ranger
1984), exaltando o passado e/ou a necessidade de preservação da
memória do lugar como parte da história oficial nacional”. A Lapa,
apesar da destruição parcial ao longo do século XX, do casario colonial
que ali existia (Abreu, 1997), é identificada como cenário ideal para
gêneros musicais que evocam tanta “tradição musical”, sendo todos
esses elementos entronizados no discurso dos setores mais
conservadores da crítica musical (Tinhorão, 1969) (HERSCHMANN,
2007 p. 48-49).
57
Para Herschmann (id, p. 36) “a história e as representações do bairro da Lapa e
arredores estão associadas à vida boêmia e musical da cidade e mesmo do país”, o que
permitiu a sua atual afirmação como lugar de encontro de músicos e da prática coletiva do
samba e do choro. Esta afirmação converteu a Lapa numa grande vitrine nacional e
internacional para estes gêneros musicais que marcam a identidade da cidade.
Entretanto, apesar de todo o brilho conquistado através da música e dos serviços
que giram em torno da festa e da diversão, a Lapa ainda é uma zona opaca (SANTOS, 1997) e,
cabe acrescentar, mesmo com a razoável articulação política, os atores locais não recebem o
apoio de que necessitam dos órgãos públicos. A fala de uma liderança local ilustra não apenas
a luta por melhorias no local, mas a intenção dos empresários de se mobilizarem sem o
espetacularizar demasiadamente. Para Ângela Leal, liderança da Accra e proprietária do Teatro
Rival (apud HERSCHMANN, 2007, p.60-61),
O empresário que atua aqui não visa apenas o comercial. (...) Aqui a
gente está fazendo história, a gente não está fazendo somente
comércio. (...) Estamos interessados em promover a identidade
brasileira e carioca através da música. Isso nos uniu. Somos uma
novidade em termos de empresariado. Somos pessoas que foram à
luta e que conseguiram atingir alguns objetivos. Estamos juntos lutando
para ter um sistema de iluminação nas ruas e casarios que ligaria os
bairros da Cinelândia, Passeio, Lapa e Praça Tiradentes, área que
chamamos de Rio Antigo. As pessoas, com esta iluminação prevista no
projeto que chamamos de Corredor Iluminado, poderiam andar e
desfrutar das atrações dessa região com mais segurança. Acho que
isso seria fundamental para contribuir com o nosso sucesso. (Ângela
Leal, atriz, liderança da Accra e proprietária do Teatro Rival
HERSCHMANN, 2007, p.60-61) [grifos nossos]
De acordo com este depoimento, para que a Lapa e seu entorno tenham o seu
sucesso ampliado é necessário que o lugar receba investimentos em segurança e iluminação.
De fato, am alguns locais do Centro, no denominado Rio Antigo, fora do horário comercial e
especialmente à noite e nos finais de semana, não policiamento. o aspecto de abandono
relaciona-se ao seu caráter ‘opaco’, que, de certa forma, afasta os que desconhecem os
códigos do lugar. É evidente, portanto, que a preservação deste código indica que na Lapa
ocorre algo diferente do observado em outras áreas da cidade, como vimos anteriormente,
que sua transformação se a partir do uso do lugar e da organização de atores locais que
buscam influenciar as diretrizes políticas de forma a fortalecer processos existentes no lugar,
em um movimento vindo “de baixo” ou “de dentro”, como no caso da refuncionalização da
Fundição Progresso
31
.
31
A demolição do prédio da Fundição Progresso estava prevista pela prefeitura, no início da
implantação do Projeto Corredor Cultural. Entretanto, o Governo Estadual, em julho de 1982
58
Figura 2: Edificação da Fundição Progresso antes da reforma
32
Como Lefebvre (1987) sugere, o conhecimento inicia-se na prática. Bem antes de
ser pesquisadora, freqüentava a Lapa da primeira metade da década de noventa. Bem menos
movimentada e também menos iluminada do que a de hoje, a falta de cuidados nimos fazia
da Lapa um lugar marginalizado. Nesta época de aparente decadência e apesar do aspecto
degradado, a Lapa mantinha sua vitalidade através de alguns bares e restaurantes tradicionais,
como o Nova Capela e o Bar Brasil, sendo o ponto de encontro mais conhecido do lugar o
botequim “pé-sujo” Arco-íris.
Neste período, a Lapa abrigava tendências musicais que surgiam como alternativas
para a juventude urbana, ligadas à estética underground do punk-rock, o que fazia do bairro um
cenário bastante adequado à cultura da rebeldia propagada por este grupo que também se
considerava marginalizado
33
. Segundo recordações pessoais, as expressões musicais mais
freqüentes na Lapa do início dos anos 1990 eram ligadas ao circuito alternativo do rock, hip-hop
e, pouco depois, do funk-soul
34
. Neste período, a Lapa era conhecida por abrigar travestis,
impediu a demolição e o prédio foi restaurado e reinaugurado em 1983. A edificação foi
tombada pelo poder público estadual em 1987, conforme informa Silveira (2004, p. 118).
32
Foto site da Fundição Progresso. http://www.fundicao.org
33
Nos primeiros anos da década de 1990, a estética underground era muito difundida pelo
movimento grunge, cujo centro irradiador foi a cidade de Seattle (EUA). De acordo com Carmo
(2003), a expressão musical mais evidente desse movimento é a banda Nirvana, cujo líder, Kurt
Cobain, adotava uma postura punk-rock alimentada por uma tendência um tanto auto-
destrutiva, que o levou a morte aos 27 anos. O movimento grunge pode ser interpretado como
expressão de uma rebeldia que marcou a juventude da primeira metade da década de 1990.
34
Além do Circo Voador, que abrigava eventos do rock nacional até ser fechado em 1996, a
Lapa abrigava algumas festas dedicadas ao hip-hop, que se realizavam na Casa do Grupo
59
bêbados e marginais e a música que expressava a cultura da rebeldia ajustava-se ao “espírito
do lugar”
35
. As festas soul da Fundição Progresso se projetaram no cenário da diversão noturna
carioca no fim dos anos 1990.
No final do milênio, a Lapa ainda não tinha tantos locais destinados à música como
hoje. Entretanto, como em outras áreas da cidade, o forró destacava-se como gênero musical
preferencial de uma parcela significativa da juventude das camadas médias intelectualizadas,
que passaram a promover festas e shows em casas noturnas de diferentes áreas da cidade que
antes tinham outros usos ou outros públicos, como o Asa Branca e a Fundição Progresso. Este
movimento deu origem à expressão forró universitário, cuja proposta era resgatar o denominado
“forró de raiz” - o forró tradicional, encarnado por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro
36
. O
forró universitário passou a ocupar casas de shows antes desprezadas pela juventude das
camadas médias - como o Asa Branca, na Lapa, a Casa Rosa (antigo prostíbulo, hoje Centro
Cultural) em Laranjeiras e o Malagueta, no bairro de São Cristóvão reduto antigo do forró, pela
proximidade com a Feira dos Nordestinos - tornando evidente a necessidade de novos espaços,
de médio porte, para o abrigo de eventos.
Neste período, seguindo a tendência à valorização de expressões musicais
populares, algumas rodas de samba começaram a ganhar destaque na Lapa, expandindo um
movimento de valorização destas expressões que sempre tiveram pouco espaço nos meios
hegemônicos de comunicação. A reabertura da casa Arco da Velha, em 1996, e a transferência
das rodas de samba para um antiquário na Rua do Lavradio (Bar Coisa da Antiga e depois,
Empório 100), em 1997 e, ainda, a posterior retomada do Bar Semente (com Teresa Cristina e
a presença de compositores da velha guarda da Portela) a partir de 1998, contribuíam para a
consolidação da Lapa como lugar privilegiado para a prática coletiva do samba
37
.
No final da década de 1990 e início da década atual, o uso renovado da Lapa e
Teatral na Rua, em pequenos espaços da Fundição e no bar Sinuca da Lapa, como a festa
Zoeira, produzida por Elza Cohen (Superdemo). Em 1997, foi a vez da Fundição Progresso
passar a ser mais frequentada pela Festa Soul, atraindo pessoas de diversas partes da cidade.
35
O underground carioca viveu intensamente a ‘decadência arquitetônica’ do Circo Voador até
seu fechamento em 18 de novembro de 1996, quando teve seu alvará cassado pela Prefeitura
do Rio de Janeiro durante a gestão de Luiz Paulo Conde. O Circo Voador, reduto da boemia
carioca, especialmente dos anos 1970, 1980 e início dos anos 1990, após permanecer 8 anos
fechado por irregularidades na infra-estrutura acústica e por problemas financeiros, foi
reformado e em 2004 foi reaberto com novo sistema de iluminação cênica, tratamento acústico
adequado e acessibilidade universal. De acordo com o Instituto Pereira Passos, os logradouros
ao redor do Circo Voador também foram reorganizados para garantir melhor o acesso à área.
36
CEVA, Roberta. Forró e Mediação Cultural. In VELHO, Gilberto e KUCHINIR Karina (orgs.),
Mediação, Cultura e Política. Rio de Janeiro, Aeroplano Editora, 2001.
37
http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/marceunalapa/post.asp?cod_Post=47951&a=131
60
arredores, como a Rua do Lavradio, a partir da música em antigos sobrados, começava a
modificar o lugar. Estabelecimentos comerciais passaram a ocupar o casario antigo com
atrações musicais, como o Rio Scenarium - um misto de antiquário e bar num sobrado de três
andares, onde semanalmente acontecem shows de samba, chorinho, ciranda e ritmos
nordestinos para centenas de pessoas e as reformas preservaram as características
históricas do lugar, apesar de estimularem novas apropriações e novas territorialidades
38
.
Figura 3 – Rio Scenarium – Rua do Lavradio
39
A retomada do samba de roda por jovens compositores e a formação de novos
grupos de samba de raiz ampliou o interesse da juventude das camadas médias por
expressões culturais cuja origem e desenvolvimento estiveram intrinsecamente vinculadas às
camadas populares
40
. Grupos que buscavam valorizar as tradições nacionais e locais da cultura
38
A Rua do Lavradio é uma das vias que articulam o projeto Corredor Cultural e o Distrito
Cultural da Lapa, além de ter recebido restaurações do Programa Monumenta da Praça
Tiradentes.
39
http://www.rioscenarium.com.br/
40
O samba, ao que tudo indica, teria surgido a partir das influências africanas como semba,
umbigada, coco, o jongo. No Rio de Janeiro, a sua origem encontra-se na Praça Onze, um lugar
alegre e festivo, apesar da pobreza, onde moravam muitos negros vindos da Bahia e onde
músicos e artistas de toda a cidade se encontravam. Na casa da famosa tia Ciata o batuque
reunia os primeiros sambistas Sinhô, Donga, Pixinguinha e muitos outros. Estes e outros
nomes como Cartola, Candeia, Padeirinho, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Clementina de
Jesus e Dona Ivone Lara passam a ser uma referência para as novas gerações que
compreendem essa música como expressão maior de uma cultura, que traduz formas
específicas de sociabilidade e de comportamento. Além dos antigos compositores, nomes como
Clara Nunes, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Monarco, Nelson Sargento, Wilson Moreira,
Roberto Silva e outros representantes do samba influenciaram sambistas da nova geração que
se projetaram a partir da Lapa, como Eduardo Gallotti, Teresa Cristina, Pedro Hollanda, Pedro
Miranda, Edu Krieger e Moysés Marques.
61
popular encontraram na Lapa um lugar interessante para o abrigo de suas atividades. A
retomada das atividades recreativas e musicais do Clube dos Democráticos exemplifica essa
valorização “vinda de baixo” que estamos propondo para a compreensão dos processos em
curso na área da Lapa
41
.
O abrigo da diversidade e da pluralidade sempre foi uma característica da Lapa. Se
por um lado a Lapa aparece como espaço de celebração de tão referida identidade nacional,
fortemente vinculada ao samba-choro, por outro, reúne gente de todas as “tribos”, como a
Fundição Progresso se define
42
. O Circo Voador também retomou sua capacidade de reunir um
grande número de pessoas e atrações musicais do país e do exterior, assim como o Teatro
Odisséia, o Estrela da Lapa e outras novas casas de show que não se encontram
exclusivamente envolvidas no circuito do samba.
Atualmente a Lapa vive um momento de intensa efervescência cultural. Numerosas
casas foram reformadas e a refuncionalização de imóveis possibilitou o surgimento de bares e
restaurantes que, em sua maioria, abrigam atrações musicais. Diante dessa oferta cultural, a
Lapa não é do samba. Tal como veremos no capítulo dedicado ao consumo musical, a Lapa
é um espaço plural, onde diversas identidades (tribos, galeras, bondes) circulam e se
encontram.
O território dos Arcos da Lapa reúne uma grande variedade de grupos
da juventude, de diferentes composições de classe, idade, gênero e
etnia, relacionados com as culturas: do rap, do charm, do funk, do rock,
da capoeira, do teatro de rua, das religiosidades evangélica e católica,
do samba, do forró, das práticas esportivas, etc. Esses grupos
promovem a ocupação cultural de ruas, prédios e outros espaços,
evidenciando sincréticas relações entre o público e o privado, o sagrado
41
O Clube dos Democráticos foi uma das edificações tombadas pelo poder público municipal,
em 1987; assim como a escola de música da UFRJ, tombada em 1994.
42
Tal como o site da Fundição Progresso define, este “é um centro cultural que se divide em
múltiplos espaços de tamanhos e estilos variados com diversas possibilidades de utilização,
onde acontecem eventos de diferentes portes como festas, feiras, shows e gravações de CD´s
e DVD´s ao vivo, além de ensaios e aulas. Sob a administração de Perfeito Fortuna, fundador
do Circo Voador, desde 1999 a Fundição Progresso tornou-se um moderno e bem equipado
centro cultural, sem perder o caráter alternativo e a importância histórica da sua arquitetura
original”. A casa de espetáculos da Fundição Progresso tem capacidade de público de cinco mil
pessoas por evento e é conhecida por seus shows e festas que exigem uma complexa estrutura
de produção. Neste espaço multicultural que funciona na Rua dos Arcos, bem ao lado do Circo
Voador, estão reunidos grupos de dança e música, como o Rio Maracatu; grupos teatrais e
circenses como o Teatro do Anônimo e a Intrépida Trupe; grupos de capoeira como o Aluandê
Capoeira Angola. A Fundição Progresso também abriga cursos e oficinas de circo, dança afro,
ioga e possui uma galeria para exposições de artes plásticas. pouco foi inaugurado o bar
Parada da Lapa, um ambiente alternativo da fundição, com capacidade para reunir 400
pessoas.
62
e o profano, o homossexual e o heterossexual, o popular e o erudito, a
memória e a modernidade; o local e o global, o lícito e o ilícito, etc
43
.
Uma visita à noite da Lapa evidencia que a rua é o lugar de encontro. E é um
encontro que envolve uma pluralidade de identidades e estilos e que revela, no uso da rua
como lugar da sociabilidade e da arte feita na materialidade do urbano, o sentido da cidade
como obra.
Maizilda Cruppe
Figura 4: o uso coletivo da rua – Rua Joaquim Silva - Lapa
44
A escadaria Selaron exemplifica a forma pela qual a renovação vem ocorrendo a
partir de manifestações artísticas e do uso coletivo do lugar
45
. O artista plástico Jorge Selarón
decorou a escada de duzentos e quinze degraus e cento e vinte cinco metros que liga a Lapa
ao bairro de Santa Teresa com mais de dois mil azulejos, provenientes de oitenta e dois países,
criando também um jardim, feito com banheiras antigas. A escada ganhou as cores da bandeira
brasileira devido a copa de 1994 e no auge de sua obra, Selarón costumava parar de
43
Corporicidade Jovem: A Lapa Carioca de muitos tempos, espaços e identidades culturais in
http://www.eefd.ufrj.br/ludicidade/lapa/home.html
44
Foto: Marizilda Cruppe/ O Globo
45
De acordo com o site na Lapa o artista plástico Jorge Selarón nasceu no Chile, em 1947, e
passou por mais de 50 países antes de chegar ao Brasil em 1983. Em 1990, Selarón começou
o seu trabalho na escadaria do Convento de Santa Teresa, que ficava ao do lado de sua casa,
na Rua Teotônio Regadas. Até então, a escadaria era suja e sem atrativos.
63
produzir quando acabavam os recursos para a compra de material. Nestes momentos, o artista
pintava quadros para poder voltar à sua obra aberta e chegou a vender vinte e cinco mil telas
para completar a escadaria. Selarón assume que seu grande sonho é manter a sua obra que
virou ponto turístico e é usada como cenário de fotos, clipes, comerciais e reportagem para
revistas e jornais de várias partes do mundo. Recentemente, a prefeitura tombou a Escadaria e
deu a Selarón o título de Cidadão Honorário do Rio de Janeiro.
Figura 5: Escadaria Selarón - Lapa
46
No caso da Lapa, o homem ordinário, homem comum e lento, é o artista que se
apropria da rua, transformando a materialidade e seu uso, como exemplifica a roda, comandada
por figuras lendárias do samba, como Nelson Sargento e Dona Ivone Lara, que viveram uma
vida simples e que hoje têm sua arte reconhecida e valorizada, não pelo mercado hegemônico,
mas por admiradores do samba. As novas gerações de sambistas reverenciam os mais antigos
representantes do gênero e se unem a eles na arte de provocar encontros festivos em torno da
música.
46
http://www.revistaparadoxo.com/materia.php?ido=4346
64
Figura 6: roda de samba: encontro de gerações – Festival de Partido Alto no CCBB (2003)
47
A roda de samba evidencia o encontro de diferentes gerações e o uso do espaço
público como movimento fundamental para a restituição de centralidades subjetivas na cidade.
De acordo com Carrano, a velha Lapa deu sinais de vitalidade nos anos 90, consolidando uma
ocupação cultural por baixo underground - que, em grande medida, contrasta com os
pequenos resultados alcançados nas políticas de revitalização dos espaços públicos.
Mesmo que em sua memória os bares, botequins, pensões e cabarés
tenham sido cenários fundamentais, foi na rua que se revelaram os
sujeitos e tipos da Lapa. É nela que são delimitados os territórios que
consolidam as identidades, os tipos humanos, e as redes sociais que por
são encontradas. São poucos os espaços da cidade em que a rua
ainda pode ser considerado o centro da sociabilidade pública. Na Lapa a
rua é protagonista da vida cultural
48
.
É na rua que os encontros se dão, como na ladeira da Rua Joaquim Silva e na
Praça dos Arcos. Na Lapa, a rua pode perder a sua função de suporte do fluxo de veículos e
dar lugar a uma ocupação, que resulta da reunião e da mistura de gente que quer se divertir
com gente que quer trabalhar os vendedores ambulantes. A rua é lugar da sociabilidade, de
encontro e confronto. Na Lapa é possível observar a transgressão e as tentativas de controle
47
http://www.samba-choro.com.br/fotos/porartista/fgrande?foto_id=231&chave_id=1152
48
idem http://www.eefd.ufrj.br/ludicidade/lapa/home.html
65
social. Em suas ruas permanecem as figuras que antes representavam a degradação, mas é
evidente que agora inscritas na coexistência das diferenças que caracterizam este território
plural.
Na presente análise, interessa-nos alcançar o sujeito que se apropria
simbolicamente da rua, transformando-a em lugar, como ocorre com as rodas de samba do Bar
Semente que freqüentemente animam a rua, indo além das paredes do estabelecimento
comercial. Buscamos enfocar a ação que, de algum modo, expressa resistência, ainda que não
totalmente consciente, à dominação pragmática do território e à espetacularização da vida
urbana. Esta resistência, muitas vezes espontânea, se através da apropriação da rua e de
seu uso como lugar de encontro. A valorização da vida espontânea dos lugares auxilia no
desvendamento de formas sociais inclusivas (RIBEIRO, 2004b). Ainda que estas manifestações
possam ser agenciadas e transformadas em produtos pela indústria fonográfica, é necessário
ressaltar que a prática espontânea e coletiva da música continua existindo e tendo o seu valor
socialmente reconhecido.
Debord (1967, p. 14) propôs que o espetáculo é uma visão de mundo que se
objetivou e um meio de manipulação social e conformismo político que entorpece atores sociais,
turvando-lhes a consciência acerca do poder e, assim, dos efeitos da privação capitalista
49
.
Partindo deste pressuposto, compreendemos que a cidade-espetáculo, como ‘palco’ onde se
encena o espetáculo para poucos, tende a produzir o indivíduo-passivo, espectador, cujo papel
social mais importante seria a de consumidor. No entanto, acreditamos que a graça da vida é
mesmo romper com as amarras da uniformização e da dominação e, por isso, procuramos
alcançar as vozes insurgentes, que não se submetem ao espetáculo ou que se utilizam dele
para projetar a ação contestadora.
O sujeito da ação musical insurgente é, ao contrário do que o pensamento
hegemônico pretende, um sujeito ativo, que anima a vida urbana e evidencia a existência de
outras racionalidades, além da que caracteriza a razão globalitária. Esse sujeito ativo revela
49
O espetáculo de que trata Debord deve ser compreendido como um desdobramento da
abstração generalizada inerente ao funcionamento da ordem capitalista. É, em síntese, a
reunião de todas as formas de representação e de produção material que impedem que a
consciência do desejo e o desejo da consciência alcancem seu projeto (tal como concebido sob
a ótica marxista): a abolição, por meios revolucionários, da sociedade de classes (FREIRE
FILHO, 2005, p. 27). Se, para Marx, o dinheiro acumulado transforma-se em capital, para
Debord, o capital quando atinge um certo patamar de acumulação torna-se imagem. Isto
significa dizer que, se para Marx interessava investigar a primeira fase da dominação da
economia sobre a vida social, investigando o processo de transfiguração do ser em ter. Para
Debord, trata-se de investigar a fase posterior, na qual ocorre a transfiguração do ter em o
parecer.
66
territorialidades e múltiplas “formas de apropriação do território que tensamente coexistem num
determinado tempo e num determinado lugar” (RIBEIRO, 2005a, p. 94). O que buscamos
evidenciar é que os processos sociais não são completamente pré-determinados. Existe a ação
livre e espontânea. Existe a criação musical em seus elos com a apropriação festiva da rua,
ainda que alguns agentes envolvidos tenham claramente intenções comerciais.
Para encerrar este item, retomamos a reflexão sobre o processo de produção social
do espaço realizada por Lefebvre, que contribui para a compreensão da dialeticidade e da
diversidade que movimentam a vida social no espaço urbano. Podemos dizer que a razão
global inscreve o controle e o pragmatismo como estratégias de manutenção da ordem
dominante. Entretanto, a espacialidade capitalista é complexa, contraditória e em constante
transformação e, inspirado em Lefebvre, Haesbaert (2004a) diz que “o território é sempre
múltiplo, ‘diverso e complexo’, ao contrário do território ‘unifuncional’ proposto pela lógica
capitalista hegemônica”. Assim, Haesbaert (2004a, p. 95-96) entende que
o território, imerso em relações de dominação e/ou de apropriação
sociedade-espaço, desdobra-se ao longo de um continuum que vai da
dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação
mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’ (HAESBAERT, 2004a, p.95-96).
Este autor (id., 2004b) ressalta que embora Lefebvre reflita sempre o espaço, e não
o território, é fácil reconhecer que sua referência não é o espaço no sentido genérico e, menos
ainda, um espaço natural e, sim, um espaço-processo, um espaço socialmente construído, “um
espaço feito território” através do qual é realizada a análise de processos de apropriação e
dominação. A dominação está associada à propriedade e ao valor de troca, enquanto a
apropriação pode ser entendida como um processo simbólico, carregado de marcas do vivido. A
apropriação tem como base o pertencimento e revela a existência de lugares carregados de
sentidos e memórias. Isso significa dizer que a apropriação é um processo fortemente vinculado
ao valor de uso do espaço, demarcando uma experiência subjetiva de pertencimento a um
lugar, enquanto a dominação reflete uma possessão concreta e funcional, vinculada ao valor de
troca e à mercantilização do espaço.
Partindo dessa distinção, poderíamos indicar uma disputa entre dominação e
apropriação nos usos do espaço da cidade do Rio de Janeiro, e, mais especificamente, em
lugares como a Lapa. Esta disputa estaria na base dos conflitos que evidenciamos através da
criação musical, que questiona um modo de vida centrado na dominação e que sugere a co-
existência de distintos modos de pensar e viver a cidade. A Lapa é este território múltiplo,
diverso e complexo.
67
A delimitação espacial e temporal dos territórios pode ser lida a partir de uma
orientação analítica que considere os elementos simbólicos e subjetivos da cidade. Nesta
perspectiva, as identidades e o sentido de pertencimento são fundamentais para a constituição
de territórios e territorialidades. Tal como Haesbaert (1999) afirma, os territórios são espaços
concreta e/ou simbolicamente apropriados, cuja significação extrapola seus limites físicos e sua
utilização material.
A ênfase na delimitação simbólica do território constitui-se, portanto, em uma opção
teórico-analítica que visa superar os limites da leitura que considera o espaço apenas por sua
submissão ao capital e ao poder do Estado ou das grandes empresas transnacionais, como
ocorre na concepção da cidade-espetáculo.
Todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações,
funcional e simbólico, que o espaço é construído tanto para a realização de funções como
para a elaboração de significados (HAESBAERT, 2004). Por isso, a análise das expressões
culturais realizada nesta Tese não poderia se restringir à lógica que trata o território como um
recurso e que privilegia tendências da economia e mudanças técnicas na leitura da vida urbana.
Esta leitura reduziria a análise e não daria conta do movimento do real, que pode ser
alcançado se o pensamento também estiver em movimento, articulando teoria e prática.
A busca pelo reconhecimento do território usado e do sujeito ativo é, portanto, uma
opção teórico-metodológica que pretende evidenciar a existência de resistências ao
pensamento dominante, não no ambiente acadêmico, mas principalmente no lugar e nas
falas cotidianas. A apropriação e o uso insurgente da cidade são afirmados em ações culturais
que reforçam a luta pelo direito a uma vida urbana renovada. E isso permite aproximar a teoria
crítica do urbano da prática musical coletiva para pensar a vida na cidade.
1.2.2 – O direito à apropriação e ao uso da cidade
Em sua reflexão sobre o Direito à Cidade, Lefebvre (2001a) ressalta que a arte
oferece múltiplas figuras de espaço e tempo apropriadas e transformadas em obra. Neste
trabalho procuramos reunir algumas apropriações e representações simbólico-subjetivas da
cidade, expressas em músicas que questionam a hegemonia, indicando a existência de outras
ordens - alternativas, concorrentes – e que disputam os sentidos da experiência urbana.
A música, enquanto recurso metodológico para o reconhecimento de racionalidades
concorrentes e alternativas, revela o caráter político da ação musical e nos indica lutas pelo
68
direito à cidade. Estas lutas evidenciam a insatisfação frente à ordem dominante. A música é a
expressão poética pela qual os sujeitos inconformados se manifestam. Essa criação musical
revela um outro tipo de fazer político, inscrito no cotidiano e no espaço do aproximativo.
Lefebvre entende o direito à cidade como o direito à vida urbana renovada e
transformada. Para o autor, este direito se manifesta como forma superior de vários outros
direitos: direito à liberdade, à individuação na socialização, à obra atividade criativa) e à
apropriação, bem diferente do direito à propriedade.
Através da música, sublinha-se um discurso alternativo que evidencia encontros e
confrontos. A música, além de provocar encontros, cria a possibilidades dos confrontos
ganharem maior ressonância e visibilidade, pois transmissão da palavra através da música é
mais sutil. Assim, com a sutileza da música, temas de difícil abordagem podem atingir a
sensibilidade de muitos e inesperados outros.
Tal como Parra (2006) ressalta em seu artigo sobre as práticas artísticas de jovens
da cidade de Medellín, acreditamos que a postura interrogante desses sujeitos mostra que a
realidade é conformada por situações divergentes e opostas ao discurso predominante nos
meios de comunicação. Para o autor, os jovens da cidade, assim como fazem outros grupos
sociais, sussurram verdades que o poder armado – num país em guerra e numa cidade violenta
quer calar. Essas vozes murmuram, mas também gritam e cantam, revelando a aguçada
consciência social da juventude que participa da vida social e política, através de expressões
culturais.
A música tem uma forte presença na vida cotidiana do Rio de Janeiro. Através da
criação musical é possível reconhecer escolhas e táticas que podem se tornar indispensáveis à
conquista de determinados direitos, principalmente aqueles relacionados à transformação da
vida urbana. As músicas que reunimos na pesquisa tratam, por vezes, de temas difíceis como a
estigmatização, o preconceito racial e social, revelando a existência da ação política mesmo na
espaço-temporalidade da festa, freqüentemente desvalorizada pelo pensamento acadêmico. As
vozes insurgentes, que não se calam diante do espetáculo, são vozes de sujeitos
(compositores, cantores, bandas, grupos musicais) que fazem da música um importante canal
de expressão e manifestação.
A música que analisamos produz representações do espaço através de relatos-
cantados da vida urbana. Estes relatos são marcados por conhecimentos e reconhecimentos
das diferentes visões de mundo que coexistem na cidade. Muitas vezes os sujeitos se inspiram
em movimentos culturais revolucionários de outros tempos, como a contra-cultura ou o
tropicalismo. Outras músicas dialogam com expressões culturais bastante recentes, mas que
69
são pouco valorizadas por sua origem popular como o funk carioca e o movimento hip-hop
cujas expressões musicais fortemente vinculadas a espaços populares como favelas e
periferias vêm obtendo destaque no cenário musical desde os anos 1990.
A etapa da criação musical revela ainda importantes formas de encontro, como
parcerias e fusões rítmicas, que, por sua vez, indicam novas formas de diálogo entre indivíduos
e grupos sociais, apontando para um novo tipo de ativismo político, que é capaz de mobilizar
inclusive poderosos agentes do mercado fonográfico. Alguns criadores ampliam o potencial
propositivo e transformador da música, mesclando ritmos, veiculando novas sonoridades e
compondo letras questionadoras e críticas, como é o caso de Pedro Luís, Fernanda Abreu,
BNegão e Marcelo Yuka (principal compositor das bandas O Rappa e O FURTO). A
aproximação de artistas reconhecidos da produção musical periférica colabora para a
construção de um outro olhar sobre a cidade, que valoriza versos que questionam a violência
urbana, inclusive nas formas simbólicas da estigmatização e da segregação e, também, a
invisibilidade do Outro.
Lefebvre (2001a) propõe que o direito à cidade seja pensado como direito à vida
urbana, transformada, renovada, o que depende da formulação de uma teoria integral da cidade
e do urbano que supere a cisão entre filosofia da cidade e ciências da cidade. Este autor
(2001a, p.116-117), ao refletir sobre uma ciência analítica da cidade, assinala a importância de
pensarmos o objeto virtual que é o urbano, utilizando, de forma conjunta, os recursos da ciência
e da arte. Para o autor, cabe à força social capaz de realizar a sociedade urbana tornar efetiva
e eficaz a unidade (a síntese) da arte, da técnica e do conhecimento.
Necessária como a ciência, não suficiente, a arte traz para a realização
da sociedade urbana sua longa meditação sobre a vida como drama e
fruição. Além do mais, e sobretudo, a arte restitui o sentido da obra; ela
oferece múltiplas figuras de tempos e espaços apropriados: não
impostos, o aceitos por uma resignação passiva, mas
metamorfoseados em obra (LEFEBVRE, 2001a, p. 115).
Segundo Lefebvre (id., p. 79), ao mesmo tempo que lugar de encontros e de
convergência das comunicações e informações, o urbano é aquilo que sempre foi: lugar do
desejo, do desequilíbrio permanente e sede da dissolução das normalidades e coações e,
portanto, momento do lúdico e do imprevisível. Uma bela expressão de que a vida urbana inclui
o lúdico, o imprevisível e a criação artística libertária é o grafismo de Gentileza, transformada
em música por Marisa Monte em 2000, quando a arte urbana do poeta marginal foi apagada da
memória da cidade ao ser coberta de tinta
50
.
50
José Datrino “Gentileza” foi um personagem andarilho, messiânico, que passou 35 anos nas
ruas pregando a gentileza e suas virtudes. Como afirmou Leonardo Boff, se autodenominou
70
De acordo com Guelman (2000), “a obra de Gentileza demarca um espaço e uma
permanência mesmo que ameaçada para sua mensagem”, pois, quando o Profeta passa a
pintar suas mensagens diretamente sobre a superfície do concreto, “sua grafia e seus signos se
inscrevem agora na própria cidade, transformando pilastras em tábuas de seus ensinamentos”.
Para Leonardo Boff, a obra de Gentileza “nas 55 pilastras do viaduto do Caju, com inscrições
em verde-amarelo propondo sua crítica do mundo e sua alternativa ao mal-estar de nossa
civilização”, evidencia a “gentileza como irradiação do cuidado e da ternura essencial”
51
.
www.pagebuilder.com.br/boato/gentileza/gentile.htm www.pagebuilder.com.br/boato/gentileza/gentile.htm http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_com_Gentileza
Figura 8: O Profeta Gentileza; mensagem de Gentileza e escrituras na pilastra do Viaduto do Caju
A música Gentileza (2000) registra essa luta simbólica pelo direito à cidade. Uma
luta que surge em 1997, quando a Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro,
demonstrando falta de sensibilidade na distinção entre a arte urbana de poluição visual,
“limpou” as escrituras feitas pelo profeta, desencadeando um movimento de apoio ao artista
falecido. A letra de Marisa Monte, inspirada nas frases de Gentileza, questiona a razão que
despreza a sabedoria popular e a arte do homem comum, ordinário (CERTEAU, 2003), uma
sabedoria que se expressa pintando nos muros da cidade mensagens de amor e gentileza,
profeta e “até a sua morte em 1996 percorria a cidade, viajava nas barcas Rio-Niterói, entrava
nos trens e ônibus para fazer a sua pregação”. A intervenção artística realizada por Gentileza
na paisagem urbana teve como suporte as pilastras do viaduto do Caju, numa extensão de
aproximadamente 1,5 km, perto da Rodoviária Novo-Rio, numa área de intensa circulação de
pessoas. As 55 pilastras pintadas por Gentileza e depois apagadas, conforme lembra a letra de
Marisa Monte, foram restauradas com o projeto Rio com Gentileza”, coordenado pelo Prof.
Leonardo Guelman, com o apoio da Universidade Federal Fluminense, da Secretaria de Cultura
do Rio e do Consórcio Novo Rio. Os trabalhos foram concluídos em 2000 e registrados nos
vídeos “Universo Gentileza” (1997) e “Brasil: Tempo de Gentileza” (2000). Ver em
http://www2.uerj.br/~clipping/maio04/d07/jb_profeta_gentileza.htm; Site Clipping UERJ. Acesso
em: 20 nov. 2006; <http://www.gentileza.org.br>. Site ONG Gentileza. Acesso em: 20 nov.
2006; <http://www.cienciaefe.org.br/OnLine/0404/gentileza.htm>. Site Ciência e Fé. Acesso em:
20 nov. 2006.
51
Boff (2004).
71
como num gesto libertário.
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro
Tristeza e tinta fresca
Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras
E as palavras de Gentileza
Por isso eu pergunto
A você no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria
O mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o Profeta
52
Figura 9: Rio com Gentileza – recuperação das escrituras do Profeta
53
A ação libertária, na cidade, é o gesto valorizado nessa reflexão. A cidade reúne
formas plurais de ver o mundo e, portanto, de ver o sujeito que não se conforma em ser apenas
espectador ou consumidor e que luta para se afirmar como cidadão por meio de sua criação
artística. Para Lefebvre (2001a), os usos da cidade, cada vez mais, deixam de estar vinculados
à plena de apropriação do espaço, para estarem associados ao valor de troca. Entretanto, o
52
Marisa Monte. “Gentileza”. Marisa Monte [compositor] In. Memórias, Crônicas e Declarações
de Amor. Rio de Janeiro: EMI, 2000. 1 CD.
53
http://www.riocomgentileza.com.br/restaura.htm
72
mesmo autor considera que a vida urbana pressupõe encontros, confrontos das diferenças,
conhecimentos e reconhecimentos recíprocos (inclusive no confronto ideológico e político) dos
modos de viver, dos ‘padrões’ que coexistem na Cidade” (id., p. 15).
A ação insurgente revela o encontro e o confronto de diferentes racionalidades e
modos de viver, que coexistem tensamente na cidade. O plano do lugar pode ser entendido
como base para a reprodução da vida e espaço da constituição de identidades, que são
conformadas a partir da apropriação simbólica de lugares e que também constrói lugares
(CARLOS, 2007a). Diante da crise e da violência, indivíduos estigmatizados da cidade revelam
sua sensibilidade através da arte - que é produto do sujeito, de seu lugar e de suas
circunstâncias.
1.3 – POSSIBILIDADES DE ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA URBANA ATRAVÉS DA MÚSICA
É possível reconhecer na ação do homem criativo, o seu tendencial protagonismo
na vida urbana. A problemática urbana contemporânea passa pela subordinação das relações
societárias à lógica mercantil, mas é fundamental e vital que o espaço urbano também seja
analisado a partir de seus usos e apropriações simbólicas. Nesta direção, música referida aos
espaços populares ou às áreas opacas revela apropriações e usos simultâneos da cidade.
Santos (1997) afirma que, se é evidente que a ordem global busca impor a todos os
lugares uma única racionalidade, por outro lado, os lugares respondem ao Mundo segundo
diversas racionalidades. Para o autor, enquanto a ordem global funda escalas superiores ou
externas ao cotidiano e seus parâmetros culturais (razão técnica-operacional, cálculos
matemáticos), a ordem local funda outras práticas sociais baseadas na co-presença, na
vizinhança, na intimidade e sua cooperação é estimulada pela contigüidade.
A escolha da cidade como escala de observação permite reconhecer a apropriação
e a subjetividade dos lugares. A cidade subjetiva (GUATTARI, 1991), isto é, aquela que permite
a articulação dos níveis mais singulares da pessoa aos mais coletivos, sustenta a ação dirigida
por valores que questionam a cultura dominante. A proposta de ler/ouvir a cidade através do
sujeito e de sua música corresponde a uma opção pela subjetividade na reflexão da vida
urbana.
A música desvela segredos e desordens que muitos preferem ignorar ou que muitos
desconhecem. Alcançar segredos e desordens da cidade é absolutamente indispensável
quando se pretende apreender a sua alma. As desordens que ameaçam a ordem dominante
73
são fontes muito ricas para a observação de resistências e afirmações sociais.
Através da música observamos a face noturna da vida urbana - obscura e opaca
que contém histórias que muitas vezes desmentem a história oficial ou que contribuem para o
reconhecimento dos sentidos ocultos da experiência urbana. A música pode propor outras
formas de ver e viver a cidade, pois as letras retratam também desejos, delírios e, os assim
considerados, excessos da vida social. Por meio da música, é possível romper com valores que
constituem a moral dominante, mesmo que esta ruptura seja momentânea e limitada a lugares
específicos.
Tal como Pechman (1994) afirma, as cidades têm segredos. Segredos e
esconderijos que ocultam, além de desejos, mazelas guardadas por aqueles para quem o
labirinto é a forma perfeita da cidade. Com esta Tese, acreditamos que talvez seja possível
descobrir alguns destes esconderijos e percursos através da música, pois os sujeitos tendem a
preservar a liberdade do pensamento e a forma de expressá-la. Para este autor, a cidade não
se a conhecer apenas naquilo que explicita, desnuda ao olhar de todos o espetáculo das
ruas. A cidade apresenta-se, ainda, como enigma a ser decifrado, sendo o papel da música,
justamente, revelar os mistérios da experiência urbana, através da cidade cantada; pois, a voz
do artista alcança a alma das ruas por ser, ao mesmo tempo, sensível e contundente.
As músicas falam de uma cidade que precisa ser - e está sendo - (re)pensada e
(re)apropriada. Rio 40 graus (1992) de Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer é uma
música que sintetiza essa forma mais ampla de ver a cidade, partindo de idéias cristalizadas no
imaginário social, como cidade maravilhosa ou cidade partida. O Rio de Janeiro descrito como
uma “cidade de cidades misturadas, camufladas, com governos misturados, paralelos,
sorrateiros ocultando comandos” apresenta a cidade como um campo de forças, portanto, como
território em constante redefinição. A composição permite a apreensão de diferentes formas de
apropriação, encontros e conflitos entre diferentes mundos na cidade, este “purgatório da
beleza e do caos”.
De acordo com Fernanda Abreu, em entrevista concedida à autora, a composição é
divida em três partes. Na primeira, é feita uma descrição do que é o Rio, situando a cidade no
Brasil, introduzindo a leitura dos comandos, submundos e submáfias que dividem a cidade em
territórios.
Rio 40 graus
Cidade-maravilha, purgatório da beleza e do caos
Capital do sangue quente do Brasil
Capital do sangue quente, do melhor e do pior do Brasil
Cidade sangue quente, maravilha mutante
74
O Rio é uma cidade de cidades misturadas
O Rio é uma cidade de cidades camufladas
Com governos misturados, camuflados, paralelos, sorrateiros ocultando comandos
Comando de comando submundo oficial
Comando de comando submundo bandidaço
Comando de comando submundo classe média
Comando de comando submundo camelô
Comando de comando submáfia manicure
Comando de comando submáfia de boate
Comando de comando submundo de madame
Comando de comando submundo da TV
Submundo deputado - submáfia aposentado
Submundo de papai - submáfia da mamãe
Submundo da vovó - submáfia criancinha
Submundo dos filhinhos
Na cidade sangue quente
Na cidade maravilha mutante
54
No segundo bloco, várias perguntas estimulam a reflexão, seguidas de respostas
que afirmam que o Rio é dos cariocas, que querem ser reconhecidos como pertencentes à
cidade, sendo o crachá a imagem dessa identificação do indivíduo com seu lugar, tal como a
compositora esclareceu em entrevista à autora.
Quem é dono desse beco?
Quem é dono dessa rua?
De quem é esse edifício?
De quem é esse lugar?
É meu esse lugar
Sou carioca, pô!
Eu quero meu crachá!
Sou carioca.
Na terceira etapa, a cidade maravilha-mutante se faz e refaz por meio de novas
experiências musicais; “a novidade cultural da garotada favelada, suburbana, classe média
marginal” é a informática que faz com que a batucada agora possa ser também digital. Este é o
momento da metralhadora musical que dispara novos ritmos e novas poesias na cidade
55
.
54
Fernanda Abreu. “Rio 40 graus”. Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer [Compositores]. In:
- SLA2 be sample. Rio de Janeiro: EMI, p1992. 1 CD. Faixa 5
55
Assim como a cidade, a música é mutante e ao samba-funk da primeira versão foram
adicionados elementos da embolada, do coco e do maracatu, no arranjo musical feito por Chico
Science e Nação Zumbi, para a segunda versão de “Rio 40 graus”, gravada no CD Raio X
(1997) de Fernanda Abreu. Esse novo arranjo registra o encontro da garota carioca suingue
sangue-bom com os maiores representantes do movimento mangue-beat recifense - uma
importante influência para a produção musical de todo o pais desde a década de 1990. Esta
gravação possibilitou ainda o encontro de outros nomes dessa geração da música carioca,
75
A novidade cultural da garotada favelada, suburbana, classe média marginal
é informática metralha sub-azul equipadinha com cartucho musical de batucada
digital
[...] meio batuque inovação de marcação pra pagodeira curtição de falação
de batucada com cartucho sub-uzi de batuque digital, metralhadora musical [...]
Rio 40 graus
Cidade-maravilha, purgatório da beleza e do caos
Numerosas outras composições de Fernanda Abreu têm a cidade como temática
central. O CD Entidade Urbana (2000) é inspirador para essa análise, pois além das letras das
músicas possibilitarem uma leitura singular do Rio de Janeiro, seu lançamento foi acompanhado
de textos (release) que ajudam a apreender a reflexão da compositora sobre a vida urbana em
seu processo de criação musical. No release escrito em versos pela própria cantora, a intenção
de fazer música inspirando-se na vida urbana é evidente, conforme a entrevista com a cantora
veio a confirmar.
"Viver nas cidades. Falar de viver nas cidades”. [...] “Viver de falar das cidades. São
a fonte, a ponte, o mote, a inspiração”. Nos versos, as cidades estão em constante movimento:
“Nascem planejadas. Brotam espontâneas. Crescem desenfreadas. desorientadas.
Desobedientes. Crescem e crescem. Nunca param. De crescer. Cidades. Nunca morrem. São
mutantes”. A cidade é vista como “um corpo urbano. Vivo. Um corpo cidade. Dissecado.
Retalhado”. Um corpo com “suas vias, seus canais, seus órgãos vitais” que reúne e movimenta
a vida neste “sistema circulatório”, com “sangue coagulado”, de “trânsito engarrafado”. Uma
cidade-cenário, repleta de gente, “caótica”, de hiperinflação humana, de acúmulo humano, de
excesso urbano”. Um “tecido urbano” materializado em “sua pele de concreto armado”, que é
suporte e produto da ação social, um “corpo urbano, tatuado, planejado, monitorado, viciado,
aerofotogrametrado, radiografado, encurralado. Bio-degradável. Bio-degradante”. Assim,
misturando os versos das músicas que compõem o CD, a compositora passeia por lugares da
cidade e desvenda a “natureza urbana-humana” e, também, a natureza humana-urbana”. Seja
“do alto de um prédio, da fila, do elevador, daquela esquina” ou “de dentro do carro, do meio da
rua”, a música pretende reconhecer “as tribos, as gírias” e os espaços vividos por este “ser
urbano, filho de pai, de mãe e de cidade”
56
.
O antropólogo Hermano Vianna escreveu noutro release do CD Entidade Urbana
que “Rio 40º” é o hino de uma urbanidade mutante pós-partida e pós-maravilha. Para Vianna, o
CD Entidade urbana é uma seqüência lógica do combate “carioca”, que nos ajuda a ver que a
condição partida ou maravilhosa do Rio não é única ou absolutamente original; mas, sim, a
como Pedro Luís, Pedro Sá, Kassin e Berna Ceppas, que participaram como vocais no refrão
de “Rio 40 graus”.
56
ABREU, 2000. Ver texto completo em http://www2.uol.com.br/fernandaabreu/entidade.htm
76
situação-limite de uma condição social que se tornou planetária
57
. Para Vianna, esse CD é,
antes de tudo, a celebração da dança que se pode dançar à beira do abismo, de um desastre
urbano sempre anunciado e, alegremente, adiado. Se entendermos que o desastre pode ser
evitado com o diálogo, com a diminuição dos preconceitos, das distancias sociais, das formas
de indiferença e do evitamento social, então a música torna-se um recurso operacional
importante para a aproximação dos diferentes modos de viver a cidade, como nos inspira
Lefebvre (2001).
A música “Megalópole-cidade” mostra que conceitos acionados pela autora não
guardam relação com as formulações acadêmicas, mas que ainda assim, o senso comum pode
utilizar a expressão megalópole para traduzir a idéia de um espaço urbano indecifrável por
possuir muito de tudo.
Megalópole pra mim é o excesso. Excesso de sentimento, excesso de
pessoas, excesso de informação, excesso de riqueza e de pobreza, de
beleza e de feiúra. A palavra que mais me vem à cabeça com
megalópole é o excesso, é muito de tudo. (Fernanda Abreu, Entrevista à
autora em 5 de dezembro de 2007).
Fernanda canta a Megalópole” como este lugar do excesso, da velocidade (da
urgência). Esta cidade indecifrável é o oposto do que propõe a ciência e o planejamento. A
linguagem da música é a da rua, da experiência prática, de viver no lugar da multidão e do
excesso. Na letra, esta cidade-megalópole é um labirinto, um monumento, uma esfinge difícil de
ser decifrada: um guia-rex misturado e um mapa-mundi acelerado - imagens que indicam o
movimento e a transformação acelerada e permanente da cidade e a dificuldade de tratá-la
como “objeto” estanque.
Toda cidade não dá trégua
Chega mais e realiza
Todo o tipo de conflito que anima o ser humano
Toda a cidade é camuflagem
A mais perfeita paisagem
Do comércio pros negócios da eterna bandidagem
Toda cidade é uma selva
E a fauna humana se renova incessante
Nessa Arca de Noé mutante
Toda cidade é um matadouro
Meio açougue, não tem jeito
A humanidade ainda tá crua, essa carne não é sua?
57
VIANNA, 2000. Ver texto completo em http://overmundo.com.br/banco/release-para-o-disco-
entidade-urbana-de-fernanda-abreu
77
Toda a cidade é um coliseu
Onde os humanos são jogados uns nos outros
Numa festa de batalha pela vida
Toda cidade é uma vampira
Sorrateira insinuante
Suga o corpo, a alma, o sangue de quem for seu habitante
Não tem Santo, Ave-Maria ou Divindade
A megalópole é a máxima entidade
Pede licença e beija a mão de sua majestade
Escancara humanidade
Megalópole-cidade
Vou subindo no terraço
Vou subindo pelo morro
Vou passando, batucando
Cutucando com suingue
O corpo inteiro da cidade que tá nua
No compasso do que rola
Pela alma da cidade que é a rua
A minha vida
A tua vida
Fragmento a deriva
Nessa bomba de ocorrências
que é a vida na cidade
Onde as pessoas são vetores obscenos da urgência
do que a gente nunca sabe muito bem
o que acontece no coração da multidão
Toda cidade é uma demência
de excesso concentrado.
guia-rex misturado, mapa-mundi acelerado
Toda a cidade é um labirinto,
esconderijo, encruzilhada
de ninguém com todo mundo, pode tudo, fica nada
Toda cidade é um monumento
uma esfinge esquartejada
sua alma coletiva nunca vai ser decifrada
Toda cidade é catedral
pra toda reza industrial
Fé na ciência, Deus é pai, já tá clonado... paciência
Toda cidade se alimenta
de qualquer interferência
sua volúpia alucinada é parabólica excelência
78
Toda cidade é kichnet
celular-tv-satelite
tá tudo muito perto na genética internet
58
A força do manifesto de Fernanda Abreu está nas letras, rimas, mas também na
sonoridade plural, que o seu batuque samba-funk revela o encontro de ritmos que, como
sugere Hermano Vianna, conformam um manifesto anti-apartheid cultural, anti-segregação
musical
59
. Para Vianna, os estilos musicais mais globais parecem ser aqueles mais abertos ao
diálogo entre complexas e variadas realidades urbanas, o que gera uma quantidade infindável
de subestilos ou de fusões.
Os ritmos e as referências sonoras se misturam, o que pode ser reconhecido a partir
do velho chavão que une “o asfalto e a favela” ou através da articulação entre os meios
percussivos e eletrônicos. O importante é perceber que o encontro rítmico é sinal de uma
quebra simbólica de fronteiras ou sinal de uma aproximação corpórea de diferentes grupos
sociais. A etapa de criação inclui as escolhas rítmicas e melódicas e, também, parcerias
reveladoras de redes sociais e de laços afetivos. Sobre a relação música e cidade, Vianna
afirma que:
o nascimento e o desenvolvimento das músicas têm conexões
profundas e evidentes com a dinâmica da vida social e cultural de suas
cidades de origem. As letras abordam explicitamente assuntos do
cotidiano urbano que as gerou, tornando-as parte integrante da invenção
sempre renovada de suas identidades culturais mutantes (VIANNA,
2000)
60
.
A ação anti-segregação musical é também libertária porque pretende romper
distinções rígidas entre estilos e gêneros musicais. Quase todas as músicas citadas nesta Tese
são inclassificáveis quanto ao estilo ou gênero, por sua pluralidade de referências musicais. A
pesquisa mostrou que o músico (compositor, arranjador, intérprete) não limita sua ação por
gênero específico de música. Definir, classificar ou distinguir um gênero musical parece ser
preocupação exclusiva daqueles que concentram esforços na etapa da comercialização do
produto musical e, não, dos responsáveis pela criação
61
.
58
Fernanda Abreu. Megalópole-Cidade. Fernanda Abreu, Fernando Vidal e Fausto Fawcett
[Compositores]. In: - Entidade Urbana. Rio de Janeiro: EMI, p2000. 1 CD. Faixa 10.
59
VIANNA, Op. Cit.
60
Idem.
61
Quando ressaltamos o encontro de ritmos, estamos enfatizando o fato da música poder,
propositalmente, reunir harmonias ruidosas (ruídos ou sons externos ao tradicional),
dissonantes e arritmias (ausência de ritmo formal ou desvios rítmicos) que algumas vezes
servem para provocar incômodo ou reflexão no ouvinte, como no caso de músicas que utilizam
sonoridades comuns ao ambiente urbano (como buzinas, gritos de ambulante e até o barulho
de tiros) para fazer referência ao cotidiano da cidade. Informações obtidas em
79
A mistura de sonoridades também pode aproximar segmentos sociais. Fernanda
Abreu, que é moradora da abastada Zona Sul, se define como uma pessoa de classe média
alta, com seu trabalho constrói uma importante mediação entre grupos sociais que se
encontram distanciados. Para superar a limitada visão de uma cidade partida, costuma
destacar, em suas composições e entrevistas, a importância do funk, do samba e do rap para
sua criação musical e, principalmente, como expressões desta outra fala na cidade.
O conflito urbano retratado em “Rio 40 graus” ainda é atual. A compositora relata
que esta música foi feita no contexto de uma cidade que começava a ouvir vozes insurgentes
da favela por meio do funk - que alertavam para a forte influência que as armas de guerra
viriam a ter na vida da cidade.
Nos anos 90 a gente começou a sentir - quando eu chamei o Fausto pra
gente escrever o Rio 40 graus - a minha maior sensação era de que o
Rio estava se armando. (...) Foi quando eu comecei a ouvir AR15,
submetralhadora. E o funk começando. Ali eu comecei a ir pro baile funk
em 89 (...) em 91 saiu o rap do Cidinho e Doca, (...) depois o rap das
armas do Junior e Leonardo, aquilo me chamou muito a atenção, de
como eu talvez estivesse vivendo, nos anos 80, um Rio de Janeiro ainda
muito Zona Sul, classe média, praia, Arpoador e eu comecei a prestar
atenção um pouco mais, olhar pra cima e ver os morros, sabe? E
comecei a enxergar muita novidade, eu comecei a enxergar muita coisa
interessante, muita originalidade e uma possibilidade de um canal, de
um link que era muito difícil, porque realmente não sei quando o Zuenir
[Ventura] escreveu o livro ‘Cidade partida’, mas era muito essa história,
era morro e asfalto. (...) Eu comecei a sentir, naquele começo dos anos
90, um movimento de uma espécie de Rio sitiado, você podia ir a uns
lugares, mas não podia ir em outros (...) e essa segregação, essa
espécie de apartheid era muito forte. É ainda muito forte, mas era mais.
Era realmente uma cidade partida. (...) Então [com o funk] eu comecei a
entrar em contato com esta cidade de cidades misturadas e
camufladas... (Fernanda Abreu, entrevista concedida à autora em 05 de
dezembro de 2007).
A música “Blocofunk”, também da cantora Fernanda Abreu, é uma colagem de
trechos de funks que sintetiza parte significativa da história desta expressão musical das favelas
cariocas: os preconceitos sofridos pelos funkeiros e suas formas de afirmação e resistência na
cidade. Esta colagem é feita através de samples, que pode ser entendido como um trecho de
uma criação anterior - um pedaço de uma música, um trecho de um fonograma utilizado
noutra criação
62
. O grito “Conscientiza a massa funkeira DJ” adicionado ao “Explode a força do
http://pt.wikipedia.org
62
O sample era usado na década de 70, 80 e, portanto, não é algo novo. O que acontece
hoje é que com um computador e softwares de edição de áudio e de extração de fragmentos
sonoros de fonogramas, qualquer pessoa pode realizar um sample, o que veio a impactar a
80
funk, DJ” revela a importância do DJ para a festa e o uso do funk como um grito, uma forma de
manifestar a consciência da massa funkeira que apesar do estigma da violência, pede a paz.
A massa funkeira
Pede a paz geral
O baile tá uma uva
Por isso a gente fica na moral
Todo mundo sabe que o funk é da favela
Todo mundo sabe eu morro de paixão por ela
Todo mundo sabe o nosso som é de raiz
Saiu lá da favela e se espalhou pelo país”
É som de preto, de favelado
Mas quando toca ninguém fica parado
É som de preto, de favelado
Mas quando toca ninguém fica parado
(...)
Não me bate doutor que eu sou de batalha
Eu acho que o senhor ‘tá cometendo uma falha
Se dançamos funk é porque somos funkeiros
Da favela carioca (...)
63
Tal como o DJ Marlboro costuma afirmar, “o funk é a cola da cidade partida”. O
refrão “é som de preto, de favelado / mas quando toca, ninguém fica parado” é uma síntese
desse processo
64
. O funk carioca é uma manifestação cultural surgida nas favelas, mas que é
ouvida e consumida por pessoas que podem nunca ter estado em um baile realizado numa
favela ou por indivíduos que pertencem a outros grupos sociais, mas que se atraem por esse
gênero musical ou enxergam nele uma expressão do modo de vida da juventude dos espaços
populares da cidade, como Fernanda Abreu e Pedro Luís revelam em suas entrevistas.
A rejeição do funk por parte das camadas médias e altas aos “bailes de
comunidade” tem origem no fato desta manifestação cultural ter como principais músicos,
compositores e consumidores, habitantes de favelas e áreas pobres da cidade do Rio de
Janeiro. Para Luna, o baile funk é o ponto de partida para a criação de uma série de outros
produtos, como CDs, programas de rádio e TV, jornais, fanzines e revistas
65
. A "indústria do
questão dos direitos autorais, como veremos no segundo capítulo desta Tese.
63
Fernanda Abreu . “Bloco Funk”. Fernanda Abreu [Compositora]. In: - Fernanda Abreu MTV Ao
vivo. Rio de Janeiro. Universal Music, p.2006. 1CD/DVD. Faixa 20.
64
Amilcka e Chocolate. “Som de Preto”. Amilcka, Chocolate e MC Baby [Compositores]. In: - DJ
Marlboro Apresenta Funk Teen. Rio de Janeiro. Deck Disc, p2006. 1 DVD. Faixa 14.
65
Marlúcio Luna. O mundo funk é maior do que se pensa. In Admirável mundo funk / chave funk
rap. Ver texto completo em http://www.multirio.rj.gov.br/seculo21/texto. Último acesso em 20
junho de 2006
81
funk" se estabeleceu possibilitando que o jovem da favela assumisse a função de produtor e
consumidor de uma rede mais complexa de atividades, serviços e produtos. Os próprios jovens
funkeiros integram-se à indústria do funk como DJs, MCs, técnicos de som, iluminadores,
dançarinos, coreógrafos, instrumentistas, aderecistas, entre outras ocupações
66
.
O funk propaga uma fala sobre a favela, construída a partir do olhar de quem vive o
estigma do favelado, retratando o preconceito sofrido pelos funkeiros. Cidinho e Doca, dupla de
cantores e compositores de funk da Cidade de Deus que ganhou destaque na década de 1990
com o ''Rap da Felicidade'', demonstraram que as letras deste gênero musical marginalizado
podem ser reveladoras de uma forma particular de apropriação territorial e de construção
identitária. A música trata da vida na favela que, para a dupla, vem tornando-se cada dia mais
difícil pela violência decorrente da convivência direta com o tráfico de drogas constantemente
em confronto armado com a polícia ou bandos rivais. Na denúncia do funk, a oração é
interrompida por tiros de metralhadoras e o pobre é humilhado, esculachado (gíria que surge na
favela) em seu próprio lugar de moradia.
Eu só quero é ser feliz onde eu nasci
E poder me orgulhar
E ter a consciência de que o pobre tem seu lugar
Minha cara autoridade, já não sei o que fazer
Com tanta violência fico com medo de viver
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado
A tristeza e a alegria aqui caminham lado a lado
Eu faço uma oração para uma santa protetora
Mas sou interrompido a tiros de metralhadora
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela
O pobre é humilhado e esculachado na favela
Já não agüento mais essa onda de violência
Só peço autoridades um pouco mais de competência
Eu só quero é ser feliz
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem o seu lugar
Diversão hoje em dia não podemos nem pensar
Pois, até lá no baile eles vêm nos humilhar
Ficar lá na praça, que era tudo tão normal
66
Segundo Luna, em um baile trabalham cerca de 60 pessoas recebendo de R$ 10 a R$ 200
por noite. Estima-se que, a cada fim de semana, sejam gastos cerca de R$ 1,8 milhão apenas
com o pagamento de mão-de-obra nos mais de 600 bailes promovidos no Grande Rio. Apesar
desse movimentado mercado, o funkeiro ainda é discriminado e sofre discriminação e, por isso,
precisa se organizar como sujeito coletivo. Outros dados sobre o movimento funk podem ser
encontrados no livro de Silvio Essinger, Batidão: uma história do funk. Record, 2005.
82
Agora virou moda a violência no local
Pessoas inocentes, que não têm nada a ver
Estão perdendo hoje o seu direito de viver
Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela
Só vejo paisagem muito linda e muito bela
Quem vai pro exterior da favela sente saudade
O gringo vem aqui e não conhece a realidade
Vai pra Zona Sul pra conhecer água de coco
E o pobre na favela, vive passando sufoco
Trocaram a presidência, uma nova esperança
Sofri na tempestade, agora eu quero a bonança
O povo tem a força, só precisa descobrir
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui.
Eu só quero é ser feliz
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência
Que o pobre tem o seu lugar
67
O funk aparece como uma expressão musical vinda de baixo. Sua postura ativa e
consciente do seu papel político pode ser reconhecida nos versos que falam das angústias
daqueles que vivenciam a invisibilidade social. Entretanto, estes versos ganham mais potência
quando são difundidos pelos meios de comunicação hegemônicos, tornando possível um
diálogo entre distintos grupos sociais. E a mediação feita por indivíduos que ocupam posições
privilegiadas no campo fonográfico faz diferença.
Alguns músicos assumem funções mediadoras posicionadas entre o grupo social
mobilizado e a sociedade em geral, por participarem ativamente dos processos de organização
e de reivindicação relativos às condições urbanas de vida. Trata-se de processos nitidamente
interclassistas que contribuem para a aproximação social. A importância do mediador encontra-
se relacionada ao fato de ter acesso a recursos culturais relevantes e aos meios de
comunicação, podendo assim contribuir para a produção de mudanças nas formas de
representação do Outro.
Os encontros entre representantes de distintos grupos sociais podem ser
reconhecidos em parcerias musicais, como a participação de funkeiros nos CDs MTV ao vivo de
Fernanda Abreu (2006) e Monobloco ao vivo (2006)
68
. Este tipo de encontro revela uma
67
Cidinho & Doca “Rap da Felicidade” Demorou, mas abalou – Funk total, rádio RPC FM, Rio de
Janeiro. Sony Music, p1995. 1 LP.
68
Criado a partir das oficinas de percussão ministradas por Pedro Luís e a Parede (PLAP) a
partir do ano 2000, o Monobloco é um grupo de ritmistas da zona sul carioca que reúne cerca
de 80 mil pessoas em seus desfiles carnavalescos na orla de Copacabana. Misturando ritmos
como o samba, as marchinhas, o funk e outros estilos da música brasileira em suas
83
aproximação social intencional, tal como DVD Monobloco ao vivo (Som Livre), registrado no
baile-show do Circo Voador, um pot-pourri de “clássicos” do funk carioca que retrata o cotidiano
a partir dos que vivem na favela: Endereço dos bailes”, “Rap da igualdade”, Rap da felicidade
têm como compositores funkeiros veteranos, que revelam a fala dos homens pobres, habitantes
de favelas.
Segundo Essinger (2005), os veteranos do funk carioca têm menos de 30 anos de
idade e falam um português que tanto pode apontar para o nascimento de uma nova língua,
quanto para a falência do sistema educacional, vítima de décadas de abandono e da falta de
investimentos dos governos, mas que, de qualquer forma, é a língua do seu público, de quem
são os porta-vozes.
Tal como Pedro Luís afirmou em sua entrevista, o funk não está somente no
trabalho do Monobloco, mas também no seu trabalho com a banda A parede. O encontro do
Monobloco com “a velha guarda do funk foi proposto pela coordenação do Circo Voador para
sua temporada verão em 2006.
A gente usa [o funk] na Parede e, por conseqüência no Monobloco -
que a princípio é um desdobramento da Parede - porque a criatura
acabou ficando muito maior que o criador. A gente usava o acento, o
ritmo do funk carioca em algumas músicas da gente, fez o arranjo e
distribuiu no instrumental do samba (...) E quando a gente foi gravar o
DVD [Monobloco Ao vivo] a gente tinha feito uns meses antes uma
temporada no Circo Voador, do Monobloco com a velha guarda” do
funk (...) Junior e Leonardo e uma galera que vinha fazendo funk
muito tempo e a gente acabou ficando muito amigo do Junior e
Leonardo que são dois meninos que trabalham essa linguagem, mas
que são muito espertos, musicalizados, têm um histórico de música na
família - o pai trabalhou com Jackson do Pandeiro - usam a linguagem
do funk, mas têm um conhecimento musical e tentam mostrar que o funk
é uma linguagem que evolui. É a linguagem deles, mas é uma
linguagem que como qualquer outra, como o samba, evolui. (Pedro Luís,
músico e cantor, em entrevista concedida à autora em 17 de abril de
2007)
Pedro Luís esclarece que “a intenção era mostrar que o funk é uma linguagem, que
tem uma função inicial de falar dos problemas sociais”
69
. Com relação às reações da classe
média que marginaliza os funkeiros, por sua forma de expressão, Pedro Luís argumenta que
“esses meninos estão mostrando que têm uma voz ativa, são articulados e criativos” (idem).
apresentações e desfiles pelas ruas da cidade, o bloco evidencia a potência da reunião festiva
que a música é capaz de promover.
69
Entrevista concedida a autora em 17 de abril de 2007.
84
Figura 10: Eu amo baile funk – Evento promovido pelo Circo Voador - Lapa
70
Funkeiros, rappers e outros sujeitos criativos, cuja ação tem ampliado o debate
político sobre a cidade, revelam a favela, o subúrbio e a periferia como lugares onde contra-
discursos e imagens emergem com força, não apenas em forma de música, mas também na
forma de teatro, vídeo, fotografia, dança, artes plásticas e outras manifestações culturais que
rompem com a visão dominante da favela como lugar das ausências. Silva e Barbosa (2005)
alertam para a necessidade de construção de uma nova representação da favela e de seus
moradores, que deve estar pautada no reconhecimento do valor de suas potencialidades
criativas e na reconstrução afirmativa de uma identidade plural
71
.
Os funks citados acima revelam a potencialidade da música vinda da favela e,
também, a mediação construída por alguns sujeitos entre o circuito inferior (subterrâneo,
precário) da produção musical, a indústria fonográfica e a mídia. O importante do ponto de vista
da análise é que a voz insurgente está sendo amplificada através de encontros e parcerias
musicais que assim, ainda que de forma lenta, favorecem a escuta de um público mais amplo.
A criação musical contribui para a afirmação de um outro imaginário urbano,
referenciado aos espaços populares e múltiplos da cidade. A ação contrastante dos espaços
populares é evidenciada por expressões musicais como o funk e o hip-hop, movimentos que
acionam a música na ruptura do isolamento e no enfrentamento de estigmas. Movimentos que
buscam, através da música, legitimar a presença do Outro, e o seu direito de manifestar as
leituras e as linguagens do seu mundo.
1.3.1- O sujeito e a experiência urbana
70
www.circovoador.com.br
71
Os autores rejeitam discursos preconceituosos, que freqüentemente sustentam a elaboração
de projetos sociais para favelas, pretendendo “tirar os jovens do domínio do tráfico de drogas”,
como se todos os jovens da favela fossem potencialmente violentos e criminosos.
85
Para Freire (2000) a beleza de ser gente está na liberdade de escolher o que fazer
diante do Outro; pois, a auto-valorização é possível quando o reconhecimento sensível
das diferenças e uma aceitação sincera do Outro. Diante dos desafios da sociabilidade, a
música ajuda a reconhecer a criatividade, a sensibilidade, a emoção e a intuição na formação
do sujeito e, assim, nas identidades sociais.
Para Morin, (2002, p.126), “a liberdade supõe, ao mesmo tempo, a capacidade
cerebral ou intelectual de conceber e fazer escolhas, e a possibilidade de operar essas
escolhas dentro do meio exterior”. Morin (id, p.127), afirma que “é preciso reconhecer que,
potencialmente, todo sujeito não é apenas ator, mas autor, capaz de
cognição/escolha/decisão”. Esta concepção complexa de sujeito contribui para a reflexão da
experiência urbana que procuramos desenvolver neste trabalho.
Toda a vida em sociedade pressupõe linguagens que traduzam valores
compartilhados. A música, enquanto recurso operacional da apreensão da vida urbana, propõe
uma leitura renovada do urbano, enquanto realidade híbrida, densa e diversa. (RIBEIRO, 2005).
Através da música surgem formas de superação da leitura dominante da vida urbana que
prejudica a integração social e que amplia a destruição, inclusive simbólica, de possíveis
interações sociais.
A música permite reconhecer a existência de um Outro, que não se conforma em
ser apenas espectador, em ser subalterno dominado. Um Outro que rejeita o imobilismo,
estimulado pela cidade-espetáculo. Este sujeito quer participar, mas a insatisfação com a ordem
política faz com que a participação privilegie a criação musical. Os caminhos propositivos
criados a partir das práticas musicais são reveladores de uma experiência urbana reflexiva. Se
a visão unidirecionada da cidade que apóia o consumo produz apatia e passividade, a recente
criação musical carioca contesta e resiste
72
.
O sujeito da ação musical insurgente é o homem comum que, na sua lentidão, vive
entre as conseqüências da racionalidade dominante e o projeto de viver uma outra
racionalidade, paralela e alternativa, que se confronte com os valores do mercado e as
hierarquias sociais. A rede horizontal de solidariedade criada para a produção musical
independente revela a existência dessas outras maneiras de praticar a vida urbana, que se
tornam insurgentes por confrontarem a lógica do lucro, a competição e o individualismo.
A maior parte das vozes que não se calam diante do grande espetáculo conduzido
72
É evidente que nem todas as expressões musicais podem ser entendidas como
manifestações políticas. No entanto, aqui nos interessa aquelas que têm a perspectiva da
oposição a um projeto hegemônico de dominação ou que simplesmente revelam a possibilidade
do diálogo, do reconhecimento e da legitimação da diferença.
86
pela lógica do mercado, pertence a indivíduos que, desde a década de 1990, buscam fazer da
música um canal de manifestação e reconhecimento social. Através de sonoridades, narrativas
e personagens, a música referenciada aos espaços populares ou a outros múltiplos espaços da
cidade denuncia o crescimento da violência e o aprofundamento das contradições sociais.
Algumas narrativas musicais evidenciam um descontentamento ativo, capaz de
retratar o cotidiano a partir de outros ângulos de observação. Os discursos revelam uma atitude
contestadora e propositiva. Esta atitude indica que o aprofundamento da crise social não
elimina a inventividade permitida pela experiência social (RIBEIRO E LOURENÇO, 2005).
Talvez seja possível dizer que as músicas reunidas para análise nesta Tese,
compartilhem um conteúdo utópico, na medida em que, ao apontarem para a crise social,
transcendem as limitações do presente rumo a uma vida melhor. Para Scherer-Warren (1993, p.
27), o termo utopia implica a) numa crítica profunda das condições sociais de vida. b) num
projeto de mudança, como contraposição e melhoria da situação presente. Segundo Goodwin
and Taylor (apud SCHERER-WARREN, 1993), as utopias têm um papel importante quando
vistas como manifestos de um projeto para uma sociedade alternativa.
O sujeito que se afirma como portador de direitos por meio de sua criação musical,
revela a existência de uma polifonia urbana, isto é, de uma ação que se propaga como uma
outra fala sobre o urbano. O sentido político dessa voz insurgente resulta em territorialidades
que ganham visibilidade a partir da música, que detém a capacidade de veicular e expressar
novos processos e lutas pela apropriação do espaço urbano.
A opção por privilegiar o homem lento permite a consideração da voz do sujeito que
tenta resistir às imposições de um modo de vida que sinais de esgotamento. Tal como
Ribeiro e Lourenço (2005), entendemos o homem lento, proposto por Milton Santos, como uma
síntese político-filosófica do Outro e da sua capacidade de criar o discurso que exprime suas
carências e de criar caminhos para sua sobrevivência.
Assim, a figura do homem lento sintetiza sentidos mais amplos da organização
social e da participação política daqueles que, por habitarem as áreas opacas da cidade, são os
mais prejudicados pela lógica hegemônica do capital. O homem lento desvenda o espaço
enquanto o mundo impõe a adesão à velocidade, ao individualismo, à competitividade e à
eficácia.
Na música “O que sobrou do céu”, gravada pela banda O Rappa, a letra de Marcelo
Yuka retrata a riqueza de possibilidades vivenciadas num dia em que a falta de luz provoca a
quebra da rotina, possivelmente ditada pela televisão, aparelho que, ao ser desligado, torna-se
um espelho capaz de refletir “o que a gente esquecia”. Sem a televisão comandando a vida, os
87
amigos se reencontram na esquina, ocupam a rua e dela se apropriam. O personagem quer
“espantar o mal”, quer um “chá pra curar esta azia” talvez provocada por uma condição de vida
que permite, apenas, ter uma visão parcial “do que sobrou do céu, por entre os prédios”. A letra
sugere ainda o uso de “todas as ciências de baixa tecnologia” e “todas as cores escondidas nas
nuvens da rotina”.
(...) Faltou luz, mas era dia, o sol invadiu a sala
Fez da TV um espelho refletindo o que a gente esquecia
Faltou luz, mas era dia... dia (2x)
O som das crianças brincando nas ruas, como se fosse um quintal
A cerveja gelada na esquina, como se espantasse o mal
O chá pra curar esta azia / Um bom chá pra curar esta azia
Todas as ciências de baixa tecnologia
Todas as cores escondidas nas nuvens da rotina
Pra gente ver... por entre prédios e nós...
Pra gente ver... o que sobrou do céu...
73
Como num retrato da vida do homem lento, habitante das áreas opacas da cidade,
que vivencia o espaço do aproximativo (SANTOS, 1994), os versos falam da apropriação da rua
e de sua transformação em lugar, ao imaginar a brincadeira das crianças nas ruas como se
fosse um quintal” e o encontro com amigos para tomar “a cerveja gelada na esquina, como se
espantasse o mal”, indicando que a apropriação ocorre, mesmo que momentaneamente, no
instante em que “faltou luz, mas era dia”.
A música retrata uma socialização possível, baseada na convivência e nas práticas
que se inscrevem na escala do cotidiano e do lugar. Lugar que é, espontaneamente, a sede da
resistência (SANTOS, 1997, p. 207), que permite ao homem lento viver o entorno resistindo às
imposições da ordem global através de uma outra ordem, fundada numa racionalidade paralela
(id., 1997).
O homem lento, habitante das áreas opacas, representa a resistência criativa ao
imperativo global, porque tece redes solidárias e afetivas (Santos, 1994) e, de algum modo,
confronta valores que estão na base da ordem capitalista ocidental. Para Ribeiro (2006b) é
indispensável reconhecer táticas e estratégias traçadas pelo homem lento, co-partícipe na
concepção de usos do território. Para Santos (1994, 2005), os espaços opacos, orgânicos,
permitem que a solidariedade desafie a exclusão produzida pela competitividade. Tal como
Ribeiro (2005b, p. 7), acreditamos que “são os que experimentam a escassez que precisam
desvendar as múltiplas ações possíveis permitidas pelo espaço herdado e costurar projetos
num tecido social esgarçado e precário”.
73
O Rappa. “O que sobrou do céu”. Marcelo Yuka e o Rappa [Compositores] In: - Lado B Lado
A – Rio de Janeiro. Warner, p1999. 1 CD Faixa 4.
88
1.3.2 – Vozes da (cri)ação musical insurgente
As interpretações do senso comum sobre a vida urbana devem ser compreendidas
como manifestações de sistemas simbólicos “construídos historicamente, mantidos socialmente
e individualmente aplicados” (GEERTZ, 1973, apud NUN, 1989, p. 90). Por isso, a análise
reconhece a estruturação do pensamento do Outro, mas sem projetar expectativas. Interessa-
nos reconhecer o sentido da ação do sujeito a partir da sua compreensão pelo próprio sujeito.
Para alcançar a subjetividade é preciso valorizar o sentido que o próprio sujeito à sua
(cri)ação, e aí reside a relevância das entrevistas realizadas com os compositores.
A música envolve problemática da existência, partindo da singularidade da
experiência do compositor em direção a uma coletividade e suas circunstâncias. Neste caso, o
diálogo com o compositor permite que o sujeito pesquisador evidencie que discursos são
também práticas. Reafirmamos, portanto, a proposta de valorizar a subjetividade da narrativa
poética e o diálogo como orientação de método.
Para Santos (1997, p.182), “a força própria do lugar vem das ações menos
pragmáticas e mais espontâneas, freqüentemente, baseadas em objetos tecnicamente menos
modernos e que permitem o exercício da criatividade”. A visibilidade conquistada através da
música letras, sonoridades plurais, gestos e atitudes favorece a emergência de um novo
imaginário social, mais plural que estimula o encontro das diferenças e o diálogo. As narrativas
musicais são discursos e todo discurso constitui-se num reflexo da consciência. Esta, por sua
vez, é portadora de um reflexo (destorcido) da realidade (NUN, 1989, p.17).
Longe de ter a pretensão de construir a consciência alheia de forma autoritária e
hierarquizante, as músicas escolhidas para a análise permitem-nos observar uma resistência ao
desgastado modo de vida, que promove medo do Outro e não a integração social. Através de
gestos que valorizam a aproximação e o encontro, a música projeta uma fala diferente daquela
orientada pela ideologia dominante.
A própria linguagem utilizada nesta música contribui para a investigação, pois as
gírias, sotaques e outras variações da linguagem indicam posicionamentos políticos, vínculos e
interações sociais. Letras e narrativas revelam uma postura questionadora e o olhar de quem
vive a cidade renegada.
A postura questionadora do movimento hip-hop é indicativa deste sujeito em
movimento. Esta experiência estético-cultural que anima a cena fonográfica contemporânea é
89
parte integrante de um movimento social com forte apelo para a juventude, difundindo a atitude
contestadora e contundente com origem nas áreas pobres das grandes metrópoles. O rap
(abreviação de rythm and poetry ou ritmo e poesia) é a expressão musical do hip-hop e um
produto musical do MC (Mestre de Cerimônias) que elabora e canta (de maneira falada) as
letras e, também, do DJ (Disc Jockey), que nos scratches (arte de manipular o vinil) prepara as
bases eletrônicas (samples, batidas). O movimento hip-hop inclui ainda o break (dança) e o
grafite (arte gráfica).
Figura 11: Grafite, arte gráfica do hip-hopa cidade como obra coletiva
74
.
O rap inscreve-se na cidade como expressão dessa outra fala, que veicula
necessidades do Outro, não-desejado e não esperado. Na arte gráfica do movimento hip-hop,
os indivíduos evidenciam uma apropriação do espaço urbano e no discurso dos rapperscomo
MV Bill - o hip-hop aparece como a porta de entrada para novos aprendizados
75
. Bill costuma
dizer que o hip-hop o fez ler mais e se comunicar melhor. Emivi expressa essa atitude
contestadora do rapper.
[...] No meio de uma guerra, foi onde eu nasci
O berço da exclusão foi onde eu cresci
Não me intimidei, foi preciso resistir. Faço parte do quilombo comandado por Zumbi
De lá pra cá ou daqui pra li, enquanto você chora, quem controla o poder sorri
Vou guerrear pra não deixar me destruir
É por essas e por outras que eu sou EMIVI
[...] Ensinamento da minha mãe assimilei: ser humilde e não humilhado, nunca mais
esquecerei
74
Duda guima http://www.8p.com.br/dudaguima/flog/a856/34821/#a856-34823
75
MV (Mensageiro da Verdade) Bill é um rapper carioca da Cidade de Deus, fundador da CUFA
Central Única das Favelas, entidade que desenvolve projetos sociais, com base no
movimento hip-hop e promove o prêmio Hutuz, para os melhores do Hip-hop nacional. Em 2005
publicou o livro Cabeça de porco”, escrito com seu empresário Celso Athaíde e Luís Eduardo
Soares e em 2006 lançou o projeto-documentário “Falcão: meninos do tráfico”.
90
Com a proteção no caminho que vou seguir, Mensageiro da Verdade, sem deixar
me sucumbir
Odiado e amado pelo que eu promovi
Mais respeito pelo povo da favela eu exigi
As mentiras dos livros da escola eu descobri
É por essas e por outras que eu sou EMIVI [...]
76
Os rappers afirmam-se pela força de suas posturas narrativas, o que possibilita que
sejam reconhecidos como cronistas dos subúrbios, favelas e periferias. Para Bill, interessa mais
ser um negro em movimento do que pertencer ao ‘movimento negro’. Muitas músicas fazem
referência aos espaços populares, como Soldado do morro”, em que MV Bill relata o cotidiano
de jovens envolvidos com o tráfico de drogas
77
. É importante dizer que se o tráfico atrai esses
jovens, oferecendo benefícios materiais, simbólicos e afetivos (sensação de poder, status,
sentimento de pertencimento a um grupo), por outro lado, a arte, a criação estética e cultural,
tem enfrentado diretamente a questão. E Bill diz que foi preciso resistir, assim como seria um
sinal de resistência a mãe que insiste em levar o filho para a escola, mesmo tendo que fugir das
balas perdidas nos freqüentes tiroteios que transformam a favela no cenário de guerra retratado
em EMIVI.
Essas ações revelam uma luta pela apropriação simbólica do espaço, que não
disputa a propriedade, mas o sentido de pertencimento ao lugar e à cidade. São,
fundamentalmente, manifestações por reconhecimento social. Bourdieu (2004) define
manifestação de forma iluminadora:
[...] um acto tipicamente mágico (o que não quer dizer desprovido de
eficácia) pelo qual o grupo prático, virtual, ignorado, negado, se torna
visível, manifesto, para outros grupos e para ele próprio, atestando
assim a sua existência como grupo conhecido e reconhecido, que aspira
à institucionalização. O mundo social é também representação e
vontade, e existir socialmente é também ser percebido como distinto
(BOURDIEU, 2004).
Manifestar-se é tornar-se visível. Para além dos movimentos realizados pelo funk
e pelo hip-hop para revelar uma territorialidade insurgente, existe uma música muitas vezes
inclassificável quanto ao gênero que utiliza propositalmente referências rítmicas variadas,
para provocar reações que estimulam a reflexão de temáticas difíceis, freqüentemente evitadas.
Esse é o caso de Chuva de bala”, de Pedro Luís, música cuja sonoridade plural tem como
referência uma ‘trilha sonora’ cada vez mais presente no dia-a-dia: as rajadas de balas
78
. A
76
MVBill. “Emivi”. MV Bill [Compositor].In: - Declaração de guerra. Sony & BMG, p2002. Faixa 2
77
MVBill. “Soldado do Morro”. MV Bill [Compositor].In: - Traficando Informações. Natasha
Records/BMG, p1998. Faixa 8.
78
Alba Zaluar apresentou dados da Pesquisa Domiciliar de vitimização na cidade do Rio de
Janeiro 2005-2006, durante o Seminário “Zonas urbanas desfavorecidas: olhar cruzado Brasil-
91
sonoridade quase caótica de Chuva de bala” serve como base melódica para uma poesia que
fala de uma condição de vida (ou morte) que não pode ser camuflada. Assim, o compositor
faz um manifesto musical que denuncia a violência urbana e, sem eliminar a ironia, transforma o
horror em sublime criação musical.
Amor, ’tá chovendo bala
Abre a janela pra não quebrar (as vidraças)
Recolhe as coisas da sala
Maloca as crianças por trás do sofá (e passa a usar)
Guarda-chuvas de aço
E o peito blindado pro coração não sangrar
Tatuagens no braço
De balas passando rentes qual facas no ar
Há nuvens tão carregadas
Rajadas são trilha sonora do day by day
Chove, chove, chove, chove, chove
Chove bala
Chove, chove, chove
Chove sem parar!
79
A experiência criativa da música carioca revela um novo fazer político, baseado
numa atitude que afirma os atos de fala como a principal ferramenta para fortalecer o
movimento que Nun (1989) denominou de “a rebelião do coro”. Essa rebelião rompe o silêncio,
aqui e agora, sem esperar uma grande transformação social. Iniciada e inspirada no cotidiano, a
ação insurgente valorizada nesta Tese, inscreve-se no âmbito do mercado e do espetáculo
midiático, revelando a potência do gesto do artista, que trata de temas sérios, com os códigos e
a emoção que alimentam a arte.
Em entrevista, Pedro Luís ressaltou que a inspiração pode vir do cotidiano. No caso
de Chuva de Bala, a inspiração surgiu numa conversa no terraço da casa do irmão:
Foi numa conversa com meu irmão (...) na rua em que eu nasci e cresci
[na Tijuca] e a gente ‘tava conversando no terraço que é cercado por
varias favelas (...) perto do Morro do Cruz, Casa Branca, Borel e de vez
em quando tem essas guerras... e ali não atinge, não sei como, que
de vez em quando sobram uns projéteis e meu irmão mostrou: vendo
aquelas balas naquele telhado? Foi de uma guerra que teve ali outro dia.
(...) veio essa idéia da chuva de bala, a partir dessa conversa. (...) e
eu faço de uma maneira meio irônica (...) dessa coisa corriqueira, que
todo mundo sabe e que agora a mídia está começando a falar de
banalização da violência (...). Eu particularmente tenho o hábito de
França” (2006), promovido pela Embaixada da França no Brasil, na Casa de Rui Barbosa -
sobre a freqüência com que a população ouve o barulho dos tiros, evidenciando uma violência
simbólica, cada vez mais presente na vida cotidiana e que começa a ser mensurada pela
pesquisa científica sobre violência urbana.
79
Pedro Luís e a Parede. “Chuva de Bala”. Pedro Luís [Compositor]. In: - Astronauta Tupy.
Dubas Música/ Universal Music. p1997. 1CD. Faixa 10.
92
refletir, mas quando a gente se tocado diretamente pela tragédia, é
que a gente se mobiliza (Pedro Luís, músico e cantor, em entrevista
concedida à autora em 17 de abril de 2007).
Muitas letras indicam a busca pela transformação dos valores culturais que orientam
a vida cotidiana. No caso das músicas em análise, as redes horizontais acontecem a partir do
sentido comum que as une: a superação da desigualdade extrema, da estigmatização e do
distanciamento sócio-territorial.
Os versos propõem alternativas que podem contribuir para a emergência de novas
formas de ação, expressivas da densidade da vida urbana e de resistências gestadas no
cotidiano e no lugar. É o caso de “Brixton, Bronx ou Baixada” em que o compositor indaga o
que as paredes pichadas têm pra me dizer / o que os muros sociais têm pra me contar”. Nessa
letra, Yuka trata da presença da música na cultura afro dos guetos, entendendo a Baixada
Fluminense como gueto, como periferia da metrópole
80
. Diz a letra: “a poesia não se perde, ela
apenas se converte pelas mãos no tambor”. Fazendo poesia a partir dos “toques da macumba”,
o tambor “desabafa histórias ritmadas como único socorro promissor”
81
. Samba, hip-hop,
reggae, Jazz, baião são ritmos citados na canção, o que revela que a análise precisa ir mais
fundo do que é possível com base, apenas, na leitura das letras, se quisermos alcançar a
riqueza dos elementos que fazem da música a expressão de uma existência. As características
identitárias encontram-se, também, nos ritmos e sonoridades claramente referenciadas aos
grupos populares e os territórios estigmatizados.
A análise realizada das letras, assim como das entrevistas com os compositores,
procurou não isolar os discursos. A proposta é reconhecer uma série complexa de
determinações sociais que se fazem presentes na textura dos próprios discursos e documentos,
cuja desvalorização seria em geral responsável pela reificação das significações sociais
(BOURDIEU et al., 2004).
Consideramos que a opção pela música insurgente - enquanto expressão da fala do
80
Numa comparação entre guetos, favelas e periferias, Wacquant (2001) diz que o principal
problema destes espaços socialmente segregados é a criação de uma visão preconceituosa
que reforça estigmas territoriais e que têm como causa mecanismos macroeconômicos de
reprodução da pobreza. A posição destes espaços na estrutura social não é a mesma, que a
macroeconomia de cada país produz uma forma de posicionar lugares e grupos na estrutura
social. O que parece comum a estes meios sócio-territoriais é a forma de reprodução do
isolamento social. Ainda é possível ressaltar os efeitos da estigmatização territorial nas
estruturas e estratégias locais e a visão e divisão sociais que moldam a consciência e as
práticas. Para o autor, estas áreas têm em comum inúmeros problemas sociais e uma atenção
reduzida por parte dos governantes e da dia, quando se compara com a recebida em outras
áreas das cidades.
81
O Rappa. Brixton, Bronx ou Baixada. Marcelo Yuka, Nelson Meirelles e O Rappa
[Compositores] In: - O Rappa – Rio de Janeiro. Warner, p1994. 1 CD Faixa 5.
93
homem lento constitui-se numa oportunidade para valorizar o ângulo do sujeito social, do
protagonista (RIBEIRO 2006b) que tenta resistir à fragmentação espacial e à segregação social.
Os sujeitos da ação insurgente afirmam, acima de tudo, a maneira como apreendem o mundo e
criam representações do espaço, pois a música revela que além de uma experiência festiva,
existem práticas de apropriação simbólica do território e práticas espaciais reveladoras de
outras racionalidades. A ação insurgente que ressaltamos no campo musical é esta capacidade
do sujeito de se contrapor à ótica objetiva que caracteriza a atividade (RIBEIRO, 2006b)
esvaziada de sentido.
Para Soares (2004), é exatamente porque somos sensíveis e vulneráveis ao
sofrimento alheio que criamos à nossa volta uma blindagem que nos torna insensíveis ao drama
que é encenado em cada esquina para nossas consciências. É justamente porque não
suportamos a imagem de uma criança mendigando, abandonada, vagando pelas ruas, que
obliteramos os canais de percepção (SOARES, 2004).
Entretanto, o que essa pesquisa indica é que existem indivíduos que não apenas
mostram-se sensíveis aos dramas vividos na cidade, como procuram utilizar seu trabalho como
forma de intervenção crítica no mundo. Com “Batalha Naval”, Pedro Luís e Bianca Ramoneda
dizem que na ‘terra da alegria, país do carnaval, na cidade maravilha a coisa vai mal’, tratando
poeticamente uma temática difícil, a da invisibilidade social dos menores infratores que vivem
nas ruas.
J.9 ainda era tão menino
já dava tiros n’água
e afundou que nem submarino
M. não era mais que um pivete
Mas portava nos braços uma AK47
D.10, A.11, L16
não importa letra ou algarismo
vai chegar a sua vez
e essa batalha não é de confete
parece naval mas é batalha terrestre
na terra da alegria, país do carnaval
na cidade maravilha a coisa vai mal
C.15, F.14
já conhecem de berço
o poder de uma 12
sinal da cruz, hora do credo
não tem mais letra no nome
vai morrer cedo
não é mole ser alvo
tão pouco ser negro
o ponto é um tiro na palavra que virou segredo
não pode ter nome
94
só pode letra
não pode ter olhos
só tarja preta
quem é o menino do jornal?
quem é o submarino da batalha social?
82
Ao comparar o gesto jornalístico de abreviar o nome e a idade dos “meninos de rua”
ao comando repetido no jogo batalha naval, os autores evidenciam uma infância negligenciada,
cujos olhos devem ser cobertos pela tarja preta na foto do jornal, numa pseudo-garantia dos
“direitos da criança e do adolescente”. A frase ‘o ponto é o tiro na palavra que virou segredo é
crítica à forma como são tratados meninos como J.9 que “ainda era tão menino” mas “já dava
tiros n’água e afundou que nem submarino” ou como “D.10, A.11, L16 não importa letra ou
algarismo, vai chegar a sua vez”. No verso “parece naval, mas é batalha terrestre”, os
compositores evidenciam o que está indo mal “na cidade maravilha, no país do carnaval”.
As músicas que Pedro Luís denominou de “crônicas urbanas”, têm diferentes fontes
de inspiração:
Acho que a gente pode falar de três coisas distintas. A inspiração que
pode vir da rua, como ’Miséria do Japão’, uma inspiração que vem da
rua, mas que não trabalha com a linguagem da rua, é mais uma
sofisticação em cima de uma situação que eu vivi, por sinal até aqui
perto na esquina da [Rua] Macedo(?)Sobrinho, com a [Rua] Humaitá.
Outra coisa é ‘Miséria S.A’ que trabalha com o texto praticamente fiel ao
texto muito usado pelos vendedores dos ônibus, praticamente uma
parceria com aquilo ali que é meio de “domínio publico” que ninguém
sabe quem inventou aquele primeiro discurso, mas que efetivamente
todos os vendedores começaram a usar... que era um texto meio
decorado, mas que acabou ganhando uma musicalidade, o que eu fiz na
verdade foi organizar em forma de canção. o ‘Rap do Real’ é uma
música muito mais do [Rodrigo] Maranhão do que minha e a partir de
uma sugestão do Cidão que era pegar esse mote dos vendedores do
Maracanã (...) e na verdade eu fui chamado pra trazer o teor mais
político dessa canção. São da mesma fonte, mas com resultados bem
diferentes (Pedro Luís, cantor e compositor, em entrevista concedida à
autora em 17 de abril de 2007).
“Miséria S/A.”, cujo autor é Pedro Luis, mas que se tornou sucesso na gravação da
banda O Rappa, também fala da cidade que muitos preferem não ver e da invisibilidade dos
pobres na metrópole veloz. Expressando a humildade ressentida (SOARES, 2004) de pobres
que pedem ajuda nos ônibus, a melodia faz referência à musicalidade destes pedintes ou
vendedores, que já têm um repertório específico e conhecido.
82
Pedro Luís e A parede. “Batalha Naval”. Bianca Ramoneda e Pedro Luís [Compositores] In: -
Zona e Progresso. Rio de Janeiro. Warner Chappell/Dubas Música/ Universal Music, p2001, 1
CD.
95
Senhoras e senhores estamos aqui
Pedindo uma ajuda por necessidade
Pois tenho irmão doente em casa
Qualquer trocadinho é bem recebido
Vou agradecendo, antes de mais nada,
Àqueles que não puderem contribuir
Deixamos também o nosso muito obrigado
Pela boa vontade e atenção dispensada
Vamos agradecendo antes de mais nada
Bom dia passageiros, é o que lhes deseja a miséria S.A
Que acabou de chegar
83
Foi o tom crítico propagado pelas músicas e atitudes da banda que fez Soares
(2004) considerar O Rappa um inspirador etnógrafo do cotidiano. Para o autor, a banda tem
uma sensibilidade musical aguda, conseguindo captar o tema da invisibilidade, suas
ambigüidades e ambivalências, de forma eloqüente e reveladora (SOARES, 2004, p. 56-57).
Em cada letra a cidade aparece em uma de suas feições: mundo dos negócios (muitas vezes
ilícitos) descritos em “A feira” ou repleta de personagens cheios de ódio e altivez, como em
“Hey Joe” (versão de Marcelo Yuka e Ivo Meirelles para a música de Bill Roberts) um retrato da
vida dos garotos envolvidos com o tráfico de drogas, mas que afirma que estes meninos
integram uma minoria da população da favela
84
.
Para Soares, O Rappa canta, descreve, enuncia, convoca e evoca uma outra
cidade. Em “Tribunal de Rua”, a banda retrata a forma como a violência policial atinge
especialmente quem recebe o estigma do preto-pobre-favelado, assim como o fizera em “Todo
camburão tem um pouco de navio negreiro”, música do seu primeiro CD. Essas músicas
testemunham a postura crítica de O Rappa e chamam a atenção para a temas urbanos, como
os encontros e os contrastes sociais. Para Soares, a banda constrói-se como personagem
público através de uma atitude expressa através de sua produção musical, mas que não se
esgota nela
85
. Para o autor, o engajamento político brota da associação entre um personagem
público posicionado à margem - crítico, jovem, subversivo - e seu engajamento positivo,
construtivo, que aparece por meio de propostas adicionadas ao objeto estético-musical, que é o
CD.
83
O Rappa. Miséria S/A. Pedro Luís [Compositor] In: - Rappa Mundi. Rio de Janeiro. WEA,
p1996. Faixa 2.
84
______. “A feira”. M. Yuka e O Rappa [Compositores] In: - O Rappa Mundi. Op. cit Faixa 1.
______. “Hey Joe”. B. Roberts / versão de I. Meireles, M. Yuka, O Rappa [Compositores]
In: - Lado B Lado A. Rio de Janeiro. WEA, p.1999. Faixa 5.
85
Além de o engajamento político associado à sua poesia, O Rappa tem uma parceria com a
Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e, por meio de uma série
de convocações explícitas, incentiva o ouvinte a apoiar iniciativas sociais.
96
Para Soares (2004), nas ruas das cidades brasileiras, o menino pobre e, em
particular negro, é quase um ser invisível. A reflexão da experiência da invisibilidade permite
compreender um pouco mais as tensões que hoje marcam a forma e o conteúdo das relações
sociais nas grandes cidades. Como dito antes, a dolorosa experiência da violência policial,
aparece na música “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.
Tudo começou quando a gente conversava
naquela esquina alí
de frente àquela praça
veio os zomens
e nos pararam
documento por favor
então a gente apresentou
mas eles não paravam
Qualé negão? Qualé negão?
O quê que tá pegando?
Qualé negão? Qualé negão?
É mole de ver
que em qualquer dura
o tempo passa mais lento pro negão
quem segurava com força a chibata
agora usa farda
engatilha a macaca
escolhe sempre o primeiro
negro pra passar na revista
pra passar na revista
todo camburão tem um pouco de navio negreiro
todo camburão tem um pouco de navio negreiro
é mole de ver
que para o negro
mesmo a AIDS possui hierarquia
na África a doença corre solta
e a imprensa mundial
dispensa poucas linhas
comparado ao que faz com qualquer
figurinha do cinema ou das colunas sociais
todo camburão tem um pouco de navio negreiro
todo camburão tem um pouco de navio negreiro[grifos nossos]
86
A letra descreve a abordagem preconceituosa feita por grande parte dos policiais,
quando jovens negros sofrem diferentes formas de violência. Os versos que comparam o
86
O Rappa. “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. M. Yuka, O Rappa
[Compositores] In: - O Rappa. Rio de Janeiro. WEA, p1994. Faixa 3.
97
camburão ao navio negreiro e o policial ao ‘capitão do mato’ desnudam a emoção e a revolta
que orientam a narrativa: “Quem segurava com força a chibata/ Agora usa farda/ Engatilha a
macaca/ E escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista”, evidenciando o tratamento
diferenciado que negros recebem de policiais - inclusive muitos deles negros.
Esse também é o tema de “Tribunal de Rua”, que fala da violência sofrida
recorrentemente por “tipos-suspeitos”, muitas vezes submetidos a pressões físicas e extorsões.
Os versos dizem que nem sempre é inteligente enfrentar um policial fardado alucinado
(drogado), que agride e ofende para levar alguns trocados.
A viatura foi chegando devagar
E de repente, de repente resolveu me parar
Um dos caras saiu de lá de dentro
Já dizendo, ai compadre, você perdeu
Se eu tiver que procurar você ta fodido
Acho melhor você ir deixando esse flagrante comigo
No início eram três, depois vieram mais quatro
Agora eram sete samurais da extorsão
Vasculhando meu carro
Metendo a mão no meu bolso
Cheirando a minha mão
De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição
Eu ainda tentei argumentar
Mas tapa na cara pra me desmoralizar
Tapa na cara pra mostrar quem é que manda
Porque os cavalos corredores ainda estão na banca
Nesta cruzada de noite encruzilhada
Arriscando a palavra democrata
Como um santo graal
Na mão errada dos homens
Carregada de devoção
De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição
O cano do fuzil, refletiu o lado ruim do Brasil
Nos olhos de quem quer
E me viu o único civil rodeado de soldados
Como seu eu fosse o culpado
No fundo querendo estar
A margem do seu pesadelo
Estar acima do biotipo suspeito
Mesmo que seja dentro de um carro importado
Com um salário suspeito
Endossando a impunidade a procura de respeito
Mas nesta hora só tem sangue quente
98
E quem tem costa quente
Pois nem sempre é inteligente
Peitar um fardado alucinado
Que te agride e ofende para te
Levar alguns trocados
Era só mais uma dura
Resquício de ditadura
Mostrando a mentalidade
De quem se sente autoridade
Nesse tribunal de rua...
87
A força do protesto constrói o relato de fatos corriqueiros para aqueles que têm o
biotipo suspeito”. Também a grande mídia reforça a estigmatização do jovem de periferia ou
favelado, como potencialmente criminoso, como problema social. Como citado, Silva e
Barbosa (2005) alertam para a necessidade de construção de um novo olhar em relação à
favela e seus moradores, que deve estar pautado no reconhecimento do valor de suas
potencialidades criativas e na reconstrução afirmativa de uma identidade plural. Os autores
rejeitam discursos preconceituosos, que freqüentemente sustentam a elaboração de projetos
sociais para favelas, nos quais a juventude é lida como potencialmente violenta e criminosa.
Alem da luta contra a estigmatização, as letras representam o espaço-tempo das
manifestações políticas que interrompem, por curtos instantes, a vida urbana. Esse tipo de
protesto, apreendido em pesquisas sobre a ação social, evidencia a vitalidade dos processos de
organização social e de reivindicação popular que, geralmente, são interpretados de forma
redutora ou equivocada pela grande imprensa e pelos governos
88
. “Ritmos, ações e manifestos”
(“R.A.M.”), título e refrão de outra música de Marcelo Yuka, retrata as luta travadas nas ruas da
cidade.
[...] Novos satélites nos aproximam mais e mais
Então a gente se vê nos telejornais
Agora mesmo pedras estão voando na direção certa
Confie nisso, ‘véio’
Ritmos, ações e manifestos
Atirados em passeatas ou em casos solitários
Como batuques diferentes numa mesma pulsação
Que não vão mudar o mundo, mas fazem a diferença
Fazem nossa diferença ao fascismo que cresce com a crise
Fazem nossa diferença na maneira de encarar
Cidadania, ruas e microfones
89
A letra revela que o sujeito, mesmo que não tenha a pretensão de mudar o mundo,
87
O Rappa. “Tribunal de Rua”. M. Yuka, O Rappa [Compositores] In: - Lado B Lado A. Op. Cit.
Faixa 1.
88
RIBERO (2006b).
89
O Rappa. “RAM”. M. Yuka e O Rappa [Compositores] In: - O Rappa. Op. Cit. Faixa 6.
99
sabe que sua ação faz diferença em um contexto de crise. Em busca da afirmação da
cidadania, novos personagens apropriam-se das “ruas, atirados em passeatas ou em casos
solitários”, conforme protestos contra a violência registrados pelo Observatório de Favelas
90
.
Figura 12: Protestos nas ruas do Complexo da Maré
91
O confronto ideológico e dos diferentes modos de viver é ainda mais evidente nas
músicas em que a cidade é a temática central, como em “Ego City”, da Frente Urbana de
Trabalhos Organizados, banda carioca conhecida pela sigla O F.U.R.T.O.
92
. Ao tratar das
distâncias e violências simbólicas entre os grupos sociais que coexistem na cidade, o
compositor Marcelo Yuka critica a experiência urbana marcadamente individualista,
preconceituosa e consumista.
Carros à prova de bala, com vidros à prova de gente, cor fumê da
indiferença
E vão lambendo os cartões de crédito
Comprando de quase tudo; do orgulho à cocaína; de dólares a meninas
Passando em frente à réplica da Estátua da Liberdade
que nos prende ao consumo siliconizado e farpado urgente
que diz: Bem-vindo a Ego City
Lutadores sem filosofia, crianças sem esquinas
Realidade da portaria, mas só se for pela porta dos fundos
De frente pro mar, de costas pro mundo
90
http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatorio/index2.asp
91
Fonte das imagens: www.observatoriodefavelas.org.br
92
Marcelo Yuka, ex-baterista e principal compositor dos primeiros CDs da banda O Rappa, trata
de maneira crítica e contundente a experiência urbana atual. Yuka ficou paraplégico após ter
sido baleado durante uma tentativa de assalto no Rio de Janeiro. Trocou a bateria pelos efeitos
sonoros eletrônicos e elevou o tom da indignação contra as perversidades da desigualdade
social, ao sair da banda O Rappa e fundar O F.U.R.T.O. Em 2007, passou a dedicar-se mais ao
tratamento fisioterápico e interrompeu temporariamente a trajetória de O F.U.R.T.O.
100
Perderam o governo, mas ainda seguram os trunfos
Quando cair, delete o meu nome dos seus computadores
Se você insistir, o meu descanso será seu pesadelo
Lembre-se do mistério de PC, dono do Avião Negro
Porque o terno e o uniforme ainda
são os disfarces mais usados pelo crime
Tráfico de influência, tráfico de vaidade, tráfico pra ocupar melhor lugar na corte
Bem-vindo a Ego City
93
A referência à “réplica da estátua da liberdade que nos prende ao consumo”
questiona a lógica do consumo alienante e localiza a narrativa no bairro da Barra da Tijuca,
cenário mais adequado para a observação da espetacularização seletiva de áreas urbanas e a
consolidação de imagens e símbolos dessa cultura global” - Avenida das Américas repleta de
condomínios, shoppings e outros ícones do capitalismo avançado. Conforme Ribeiro (2006)
destaca, a nova posição ocupada pelo consumo ampliou a intervenção privada na cidade,
interferindo na psicosfera dos lugares (SANTOS, 1997).
Em outra letra de Yuka, O F.U.R.T.O. fala dos valores trocados e sugere um ato
político inusitado: roubo de livros como manifestação. Um ato de violência educada ou um ato
de educação para violar a situação.
Um atentado contra golpe contra tudo que já se foi falado, jurado, esperado e
prometido como solução
Um atentado contra golpe contra tudo que já se foi um ato de violência educada ou
um ato de educação
para violar a situação
Antes do momento exato da intolerância virar desafeto
e o desafeto virar tonteira
na ciranda dos valores trocados pelo Deus Dinheiro
Eles roubaram livros e fugiram em manifesto
Eles roubaram livros como vacina antivírus
Eles roubaram livros e fugiram em manifesto
Eles roubaram livros
Reconhecidos e procurados como uma tribo de índios, negros, coloridos como todos
nós
Fugiram da favela dos sentidos
cavando de dentro pra fora um novo dia de sol
porque o futuro começou quando dormíamos numa noite
longa e aflita
que aos poucos começa a escurecer a pista
a escurecer a pista
a pista, a pista
Eles roubaram livros e fugiram em manifesto
Eles roubaram livros
93
O F.U.R.T.O Egocity”. Marcelo Yuka [Compositor] In - Sangue Audiência. Rio de Janeiro.
Sony-BMG. p2005. 1 CD Faixa 2.
101
Reconhecidos e procurados como uma tribo de índios, negros, coloridos como todos
nós
94
As apropriações e representações simbólicas do espaço que reunimos neste
primeiro capítulo ajudam a apreender as formas pelas quais a música permite o reconhecimento
das diferentes racionalidades constitutivas da vida urbana. Se primeiro enfocamos a forma
como o espaço é produzido pela dominação pragmática e objetiva do território, através da
gestão urbana calcada em modelos espetacularizantes, em seguida procuramos demonstrar
que nem todos os habitantes se comportam como espectadores. As letras são reveladoras de
uma postura indignada e questionadora.
Muitos indivíduos têm demonstrado que a cidade abriga e reúne diferenças que
podem ser positivas, se reconhecidas e legitimadas. A música dos compositores citados neste
primeiro capítulo evidencia a existência de vozes dissonantes em relação às que visam a
construção de uma cidade-mercadoria. Estas vozes revelam a insatisfação popular com relação
a determinados imaginários de cidade difundidos para atender a interesses privados. Os
compositores que reunimos neste capítulo falam da cidade que muitos não querem enxergar. A
cidade que abriga a desigualdade, a exclusão, a violência e o medo. Mas esta cidade também
se evidencia na poesia, na música e na criação artística libertária.
Para além da materialidade que se transforma a partir da prática musical coletiva,
como é o caso do uso renovado e múltiplo da Lapa, a música revela-se como elemento
aglutinador e promotor do encontro. As músicas reunidas neste primeiro capítulo permitiram-nos
observar uma resistência ao desgastado modo de vida, que promove medo do Outro e
desintegração social, indicando o encontro possível na cidade.
A proposta era iniciar a Tese dando voz ao Outro, reconhecendo-o através de sua
própria fala, de modo a aproximar as vozes do senso comum dos acúmulos teóricos abarcados
na pesquisa teórica sobre a cidade. Os sujeitos que animaram este primeiro capítulo têm em
comum a capacidade de se indignar e fazer desta insatisfação a inspiração de sua música. Mas
esta indignação se expressa também nos modos de ver a música ser difundida até chegar ao
ouvinte. Este é o tema do próximo capítulo: as racionalidades alternativas dos modos de
produzir, difundir e consumir música.
94
O F.U.R.T.O “Terrorismo Cultural”. Marcelo Yuka [Compositor] In - Sangue Audiência. Rio de
Janeiro. Sony-BMG. p2005. 1 CD Faixa 1. In. CD Tese Música e Vida Urbana, faixa 13.
102
CAPÍTULO 2 A PRODUÇÃO MUSICAL DOS ANOS 90: PASSANDO DE MONO PARA
ESTÉREO
A racionalidade dominante não impede a coexistência de outras racionalidades, isto
é contra-racionalidades que, equivocadamente, e do ponto de vista da racionalidade dominante,
são denominadas “irracionalidades” (SANTOS, 2007, p. 115). insubordinação frente à
racionalidade dominante e freqüentes manifestações contrárias ao pragmatismo na vida
cotidiana. Neste capítulo, destacaremos as ações do sujeito em movimento, que ocorrem em
diferentes etapas do circuito produtivo da música. Estas ações podem ser lidas como contra-
racionalidades ou como alternativas à ação dominante.
A produção musical envolve desde a criação das letras - analisadas no capítulo
anterior -, a produção propriamente, a difusão musical e o consumo em seus vários formatos e
suportes. Até chegar à forma de produto, a criação musical pressupõe um processo produtivo
que adiciona técnica à sensibilidade poética. Esse processo faz da música – imaterial – um bem
comercializável. Trata-se de um processo que exige extrema sensibilidade e, ao mesmo tempo,
frieza e objetividade. Os criadores precisam ter a capacidade de transformar sua criação em
matéria prima de um processo de produção que exige organização e realização para que a obra
ganhe visibilidade ou, no caso da música, audibilidade.
Quando o sujeito cria novas formas de fazer música, quando um diálogo com
formas anteriores ou quando rompe com os modos dominantes de produzir, difundir,
comercializar ou usar música, a produção musical pode ser compreendida como uma forma
alternativa de agir politicamente. O sentido político da ação encontra-se na insatisfação com
relação à ordem social e aos limites impostos à ação, como as restritas possibilidades de
acesso aos canais de comunicação com o público.
No entanto, para reconhecermos a ação musical insurgente reveladora da
insatisfação com a ordem dominante, precisamos conhecer melhor a dinâmica da ordem
desordeira e sem limites de que fala Santos (2007), que vinculada ao próprio processo
produtivo da economia globalizada. Concordamos com Ribeiro, para quem “a ordem dominante
impõe-se como nova espacialidade: difusa e, ao mesmo tempo, hiperconcentrada e
hermeticamente fechada” (RIBEIRO, 2005, p. 101).
Para Santos (2007, p. 86) o novo poder das grandes empresas, cegamente
exercido, é, por natureza, desagregador, excludente, fragmentador seqüestrando autonomia ao
resto dos atores”. De acordo com o autor (id, p.94) o processo produtivo reúne aspectos
103
técnicos e aspectos políticos”, sendo “a parcela política do processo produtivo, relacionada com
o comércio, os preços”. Ressalta, ainda, que “freqüentemente escapam ao controle (e até
mesmo ao entendimento) dos principais interessados”. Este recrutamento parece acontecer
com a produção musical que buscamos analisar como movimento do real que o pensamento
(também em movimento) busca alcançar.
Como em qualquer outro setor produtivo, o desafio da indústria fonográfica é
obter e ampliar o lucro a partir de seu produto: a música. Muitos autores ressaltam que a
música é imaterial por natureza e que os atores sociais ligados a esta atividade, ao longo da
história esforçaram-se por transformar essa experiência intangível, auditiva e limitada no tempo
em algo que poderia ser comprovado e vendido (FRITH, 2006, p. 53, apud HERSCHMANN,
2007, p. 15). Mas, se podemos reconhecer que a indústria fonográfica passa por intensas
transformações, também é possível constatar que a música ao vivo ou gravada é
onipresente no cotidiano da sociedade contemporânea (HERSCHMANN, 2007, p. 15).
O fato de o Brasil ser um país rico em produções artístico-culturais e, ao mesmo
tempo, estar tão marcado pela desigualdade social, interfere na produção e no acesso aos bens
culturais. Neste contexto, a luta pela democratização do acesso aos produtos culturais contribui
para que outras demandas, também subjetivas, como o direito à festa e o direito à informação
sejam reconhecidas como essenciais à vida. Assim, é preciso compreender, ao mesmo tempo,
as decisões econômicas que sustentam a ordem social e as respostas criativas de sujeitos que,
de alguma maneira, solapam esta ordem.
Em conseqüência, se por um lado, é necessário apreender as estratégias criadas
por agentes hegemônicos do campo, a indústria fonográfica e os responsáveis pela difusão
musical (grandes produtoras, empresários, meios de comunicação), por outro, é preciso
considerar a existência de diferentes lógicas e práticas em disputa no circuito produtivo da
música. Se quisermos utilizar a reflexão feita por Santos sobre os circuitos inferior e superior da
economia, veremos que seria impossível estudá-los separadamente
95
. Ainda que o circuito
superior seja dominante, interação entre os dois, pois também uma oposição dialética
entre os circuitos. Isto porque, segundo Santos, as características do circuito inferior são
explicadas, também, pela economia como um todo, na qual o circuito superior está em posição
95
Santos (1978) define os circuitos inferior e superior como partes de uma mesma estrutura
urbana global, formada pela inter-relação das atividades que se dão nestes subsistemas.
Segundo o autor, cada circuito é explicado pela combinação de atividades desempenhadas
dentro de um certo contexto, pelo setor da população a ele vinculado através, principalmente,
da atividade e do consumo. Mas é importante ressaltar que esta definição não é rígida, pois
todos os setores da população podem consumir fora do circuito ao qual estão mais ligadas,
ainda que seja ocasional ou parcialmente.
104
dominante. É por esta razão que Santos (1978, p. 51) afirma que os dois circuitos formam dois
subsistemas dentro do sistema urbano. Ambos são opostos e complementares.
Entretanto, este autor nos orienta a refletir sobre as diversas racionalidades
econômicas que marcam o circuito inferior sobre o qual nos debruçaremos nesta análise. Este
circuito inferior, apesar de depender do circuito superior, tem sua própria organização, suas leis
operacionais e de evolução. Uma das principais características deste circuito inferior é a
possibilidade de nele encontrarmos outras racionalidades paralelas, alternativas, contra-
racionais sustentadas por intencionalidade múltiplas, mas que têm em comum o projeto de
não se limitar às imposições da racionalidade econômica dominante. Esta racionalidade
fundamenta-se na lógica de um sistema de valores sustentado pelo lucro e pela busca da
acumulação.
Os modos criativos de agir no campo da música evidenciam que a realidade não é
composta apenas pela dominação e seus instrumentos, pois existem vivências e experiências
alternativas à lógica dominante. A ação musical alternativa indica o campo de possibilidades
que estamos analisando a partir da trajetória de alguns artistas e bandas que se projetaram e
ganharam visibilidade. O sujeito criativo desenvolve estratégias para a realização da crítica
social e uma postura interrogante que faz da música um interessante campo para
reconhecermos encontros e confrontos que marcam a vida urbana atual.
A insurgência contra os mandamentos da indústria fonográfica denuncia a
reprodução das desigualdades socais, assim como ressalta os graus de liberdade do Outro. A
produção, que trazemos para esta reflexão, permite-nos reconhecer os limites impostos pela
ordem dominante, ao acesso a canais de difusão da música que, por vezes, reproduzem a
desigualdade social e os estigmas territoriais presentes na vida urbana. Assim, é de
fundamental importância reconhecer que o sentido contestador da música também reside nos
modos alternativos de produção, de difusão e de consumo que propagam outras falas sobre a
experiência urbana.
Para determinados sujeitos da criação musical, a adoção de uma postura crítica
diante dos valores difundidos pela cultura dominante constitui-se em sua maneira de propagar
outra visão de mundo, pautada pelo compromisso com a coletividade e por uma reflexão crítica
sobre a vida social. A música tem, efetivamente, uma capacidade de reunir pessoas ou de
simplesmente nos fazer sentir como parte de uma coletividade ao compartilharmos gostos e
códigos sociais. A proposta da Tese inclui, assim, a reflexão sobre como alguns agentes lidam
com as determinações da ordem dominante no campo da música e como superam seus limites
105
estabelecidos através de sua ação criativa
96
.
2.1 - PRODUÇÃO SOCIAL TOTAL: GLOBALIZAÇÃO E VIDA SOCIAL
De acordo com Lefebvre (2001b, p. 44), “a produção em sentido amplo (produção
do ser humano por ele mesmo) implica e compreende a produção das idéias, das
representações, da linguagem”. Segundo o autor, “há produção das representações, das idéias,
das verdades, assim como das ilusões e dos erros” e essa produção da consciência ocorre por
meio da linguagem. Há, também, a produção no sentido estrito da produção de bens,
dependente das forças produtivas e dos seus suportes materiais e culturais. Mas para Lefebvre
(1974), as relações sociais de produção vão muito além do processo de produção das coisas. A
produção, no sentido amplo, é a produção das relações sociais e a reprodução de
determinadas relações.
Para Sahlins (2003, p. 190), a produção é um fenômeno funcional de uma estrutura
cultural. Sahlins (id, p. 189) mostra que uma explicação cultural da produção que permite
reconhecer o significado social dos objetos. Para o autor, na cultura ocidental a economia é o
principal locus da produção simbólica e as relações de produção estruturam o principal quadro
classificatório da sociedade, sendo que nenhuma instituição, não importa se dirigida por outros
princípios ou orientada por outros propósitos, é imune a essa estruturação das hierarquias
sociais pelas forças econômicas. “Assim procede a economia, como locus institucional
dominante: produz não somente objetos para sujeitos apropriados, como sujeitos para objetos
apropriados” (SAHLINS, 2003, p. 214).
Não é nossa intenção tratar de forma simplificada um tema tão complexo como o da
produção social total, mas ressaltar que a produção fonográfica integra uma produção industrial
(que recentemente passou por um processo de reestruturação no padrão produtivo), que, por
sua vez, reflete e mantém vínculos com a experiência vivida no cotidiano. Para Lefebvre (1974),
96
Algumas ações culturais podem expressar insatisfação com a ordem social dominante e, ao
mesmo tempo, submissão ao jogo do mercado para ganhar visibilidade e alcançar o objetivo de
contribuir para a ampliação da conscientização das desigualdades sociais. O hip-hop
exemplifica este tipo de experiência estético-cultural que movimenta o campo fonográfico
contemporâneo, mas que, ao mesmo tempo, constitui um movimento social que questiona
valores e ações de dominados e dominadores, com uma intenção propositiva de contribuir para
uma nova postura política da juventude urbana. O termo hip-hop foi criado pelo DJ Afrika
Bambaataa, em 1968, para designar os encontros de dançarinos de break, DJs e MCs nas ruas
do Bronx. Uma tradução literal para Hip-Hop seria movimentar os quadris (to hip) e saltar (to
hop), reforçando a idéia de movimento e de ação.
106
além de produzir bens que dão suporte à produção das idéias, o capitalismo precisa garantir a
reprodução dos meios de produção e, principalmente, a produção capitalista do espaço.
Para Santos (2007, p. 118) “os fenômenos a que muitos chamam de globalização e
outros de pós-modernidade (Renato Ortiz, Mundialização e Cultura, 1994) na verdade
constituem, juntos, um momento bem demarcado do processo histórico”, que Santos considera
como um período. A globalização, entendida como ápice do processo de internacionalização do
mundo capitalista (SANTOS, 2007, p. 23) consolida-se a partir da tirania do dinheiro e da
informação, conduzindo à aceleração dos processos hegemônicos, legitimados pelo
pensamento único, enquanto os demais processos acabam por ser deglutidos ou a se
adaptarem passiva ou ativamente, tornando-se hegemonizados (id. p. 35).
Para Santos (2007, p. 19), “um mercado avassalador dito global é apresentado
como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são
aprofundadas”.
[...] os processos não-hegemônicos tendem seja a desaparecer
fisicamente, seja a permanecer, mas de forma subordinada, exceto em
algumas áreas da vida social e em certas frações do território onde
podem manter-se relativamente autônomos, isto é capazes de uma
reprodução própria (SANTOS, 2007, p. 19).
Essa política do mercado global - que não é exatamente um ator, mas uma
ideologia, um símbolo (SANTOS, 2007) - tem como atores principais as empresas
transnacionais, que não têm preocupações éticas ou finalísticas. Num momento em que “cada
vez mais as coisas tendem a se tornar objeto de intercâmbio, valorizado cada vez mais pela
troca do que pelo uso” (SANTOS, 2007, p. 98) e num momento em que “o dinheiro aumenta sua
indispensabilidade e invade numerosos aspectos da vida econômica e social”, refletir a ação
contra-hegemônica dos que trabalham para fazer música por prazer e por razões menos
objetivas do que o lucro imediato, é um indicativo da opção metodológica que valoriza uma
outra racionalidade.
Para Santos (1997), a técnica presente em todos os aspectos da vida constitui em si
mesma uma ordem, a ordem técnica, sobre a qual se assenta uma ordem social planetária da
qual é inseparável. Assim, a técnica e a ordem técnica criam, juntas, novas relações entre o
espaço e o tempo, agora unificados empiricamente. Em sua versão atual como tecnociência, a
técnica forma a base material e ideológica em que se fundam o discurso e a prática da
globalização: a articulação entre ciência e técnica, longamente preparada desde o século XVIII,
que reforça as relações entre ciência e produção.
Para Santos, as técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os
107
quais o homem realiza sua vida e produz espaço. Os sistemas técnicos envolvem formas de
produzir energia, bens e serviços, e, também, de relacionar os homens entre si, constituindo
formas de informação e interlocução (SANTOS, 1997, p. 141). No caso desta análise o que
mais interessa é identificar a técnica que envolve a produção musical e a forma como ocorreu a
reestruturação produtiva da indústria fonográfica. Para Santos (1997, p. 204), “ao mesmo
tempo em que se instala uma tecnosfera dependente da ciência e da tecnologia, cria-se,
paralelamente, e com as mesmas bases, uma psicosfera”. A tecnosfera se adapta aos
mandamentos da produção e do intercâmbio e, desse modo, freqüentemente traduz interesses
distantes. Por sua vez, a psicosfera - reino das idéias, crenças, paixões e lugar da produção de
um sentido - também faz parte do ambiente, entorno da vida, fornecendo regras à racionalidade
ou estimulando o imaginário (SANTOS, 1997). Para Ribeiro (1991, p. 48 apud SANTOS, 1997),
a psicosfera consolida “a base social da técnica e a adequação comportamental à interação
moderna entre tecnologia e valores sociais” e é por isso que a psicosfera “apóia, acompanha e,
por vezes, antecede a expansão do meio técnico-científico”.
Para Santos (1997, p. 204), a tecnosfera é o mundo dos objetos e a psicosfera é
esfera da ação. “Ambas tecnosfera e psicosfera são locais, mas constituem o produto de
uma sociedade bem mais ampla que o lugar. Sua inspiração e suas leis têm dimensões mais
amplas e mais complexas” (SANTOS, 1997, p. 204). Segundo o autor, tecnosfera e psicosfera
são dois pilares com os quais o meio científico-técnico introduz a racionalidade, a
irracionalidade e a contra-racionalidade, no próprio conteúdo do território.
A racionalização da produção é devida essencialmente à emergência de um meio
técnico-científico-informacional (MTCI), que produz espaços da racionalidade e, assim, o
suporte das principais ações globalizadas. O meio técnico-científico-informacional, este
conjunto de técnicas que tem como base a ciência e a informação, torna-se hegemônico, forma
a base material da vida da sociedade. Este meio é, para Santos (1997), a expressão geográfica
da globalização.
2.2 ESPACIALIDADE DA PRODUÇÃO: VERTICALIDADE E HORIZONTALIDADE NA
INDÚSTRIA FONOGRÁFICA
Para refletir como a música é produzida e difundida nos dias atuais, é interessante
buscar compreender a dinâmica produtiva do campo fonográfico e reconhecer os seus nexos
com a produção em geral. Tanto a produção de bens ligados à música, quanto a ordem social,
108
vem sendo amplamente transformadas pelo desenvolvimento da técnica, da ciência e da
informação.
A caracterização do meio técnico-científico-informacional e a realidade das redes
fazem parte da análise do espaço. Segundo Santos (1997), espaço é constituído por fixos
(pontos, objetos) e fluxos (ações), que criam verticalidades e horizontalidades, ou seja, espaços
hierarquizados e espaços contíguos.
As verticalidades podem ser definidas, num território, como um conjunto de pontos
que formam um espaço de fluxos. Santos, de certo modo inspirado em François Perroux
(L’économie du XX siècle, 1961 apud SANTOS 2007, p.105) e citando “A sociedade em rede”
de Manuel Castells (1999), afirma que esse espaço de fluxos seria
um subsistema dentro da totalidade-espaço, que para os efeitos dos
respectivos atores o que conta é, sobretudo, esse conjunto de pontos
adequados às tarefas produtivas hegemônicas, características das
atividades econômicas que comandam este período histórico (SANTOS,
2007, p. 106).
Isto significa que o sistema de produção é constituído por redes sistema reticular
exigente de fluidez e velocidade que possibilitam uma integração vertical, dependente e
alienadora, que as decisões essenciais concernente aos processos locais são estranhas ao
lugar e obedecem a motivações distantes (SANTOS, 1997, 2007).
Este autor alerta para o fato de que prevalece, atualmente, a tendência dos
interesses corporativos se afirmarem sobre os interesses públicos (2007, p. 108). Esta lógica
vertical - impositiva da velocidade e da fluidez - impera no mercado fonográfico hegemônico,
constituído pelas grandes corporações transnacionais. A conseqüência desta verticalização
para a produção fonográfica é a redução das oportunidades para a criatividade na música, em
nome do imediatamente rentável que favorece a poucos.
A aceleração do tempo é outro processo importante para a interpretação da
realidade atual, pois no processo global da produção, a circulação prevalece sobre a produção
propriamente dita e os fluxos ainda se tornam mais importantes para a explicação dos contextos
da criação musical. Os fluxos são um resultado direto ou indireto das ações que atravessam ou
se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que,
também, se modificam (SANTOS, 1997, p. 50).
Na escala mundial, o motor implacável de tantas reorganizações, sociais, políticas,
econômicas e geográficas é a mais-valia global, cujo braço armado é a competitividade. Porém,
a música, ainda que em seu formato de bem de consumo, não pode ser fabricada
exclusivamente em direção à competitividade. A racionalidade orientada para o lucro e para o
mundo, no campo musical traz como conseqüência uma homogeneidade limitante. A
109
concentração das oportunidades em poucos agentes faz da cultura de massa uma experiência
repetitiva e pouco criativa.
Nesta direção, cabe acrescentar que o funcionamento vertical do espaço geográfico
contemporâneo tem como base as redes que transportam o universal ao local (SANTOS, 1997).
Por isso, para Santos, não existe um espaço global e sim espaços mundializados, reunidos por
redes, que podem ser materiais ou imateriais.
Em contraposição ao espaço de fluxos, Santos ressalta a co-existência no espaço
banal, Santos (2007, p. 108) definindo as horizontalidades como zonas de contigüidade que
formam extensões contínuas e se vale, outra vez, de Perroux para falar do “espaço banal como
espaço de todos: empresas, instituições, pessoas; o espaço das vivências”. Para Santos,
assim, o espaço banal sustenta e explica um conjunto de produções localizadas,
interdependentes, dentro de uma área cujas características constituem, também, um fator de
produção. É esse processo dialético que impede que o poder sempre crescente dos atores
hegemônicos, fundado nos espaços de fluxos, seja capaz de eliminar o espaço banal e, logo, as
formas banais de solidariedade e cooperação.
Para Santos (1997), é no espaço banal que são recriadas a idéia e o fato da política.
Por meio de encontros e desencontros e, ainda, de debates e pactos, busca-se explicita ou
tacitamente a adaptação às novas formas de existência. A cidade, o bairro, a rua são espaços
de encontro e confronto, de experiências coletivas e individuais, que revelam tanto a
apropriação, quanto a dominação, tanto organizações horizontais como verticalidades. Os
indivíduos se unem horizontalmente, para ampliar suas possibilidades de produção e difusão de
produtos e idéias e para superar as barreiras impostas pelas verticalidades – normas egoístas e
utilitárias que expressam o ponto de vista dos atores hegemônicos.
Para Santos (1997, 2007), as horizontalidades, além das racionalidades típicas de
verticalidades que as atravessam, admitem a presença de outras racionalidades, consideradas
irracionalidades pelos que desejariam que a racionalidade hegemônica fosse reconhecida como
única. Além disso, as horizontalidades são regidas por diversas temporalidades; pois, as
relações horizontais também podem se beneficiar da velocidade das redes técnicas e, assim,
constituir as condições necessárias ao trabalho, do mesmo modo que as redes globais
asseguram a divisão do trabalho e a cooperação, mediante as instâncias não-técnicas do
trabalho – a circulação, a distribuição e o consumo (SANTOS, 1997).
As redes horizontais viabilizam uma produção que emerge também com base na
técnica, mas sua riqueza está na possibilidade de aliar à técnica, elementos menos
pragmáticos, vinculados às ações solidárias, cooperativas e colaborativas, como veremos mais
110
à frente, ao analisarmos a produção fonográfica alternativa, que expressa uma racionalidade
concorrente à hegemônica ou, até mesmo, contra-hegemônica.
2.3 – TRANSFORMAÇÕES DO MTCI E BREVE HISTÓRICO DA PRODUÇÃO FONOGRÁFICA
DOS ANOS 90 AOS DIAS ATUAIS
Com base em Frith (2006a), Herschmann (2007, p. 73) divide a história da indústria
da música em três momentos: o primeiro foi quando surgiu a prensa, que permitiu o
armazenamento das partituras musicais. O segundo momento foi quando surgiram as
tecnologias de gravação, que permitiram o armazenamento da música em suportes ou meios
como os discos. Ainda nesta etapa, surgiram a propriedade dos direitos dos sons gravados e
das obras musicais e os usos públicos da música, que passaram a ser tão importantes quanto a
música gravada. O terceiro momento revolucionário da indústria da música está relacionado à
revolução atual, em que se dá o desenvolvimento e a aplicação da tecnologia digital ao universo
musical. Segundo Herschmann (2007), essa tecnologia amplia a definição da propriedade de
um produto musical – desde a obra em si (partitura), passando pela interpretação (disco), até os
sons empregados (a informação digital) – e as possibilidades de roubo e pirataria.
Toda a transformação que a tecnologia digital propicia ao ato de produzir música
altera a noção de criação musical, que é cada vez mais uma prática multimídia e na maior parte
dos casos, uma prática coletiva e dependente de colaboração. Ao mesmo tempo, a música, por
incorporar crescentemente a eletrônica, permite ao usuário de computadores, fazer música sem
sair de casa. Sobre o tema, Moraes afirma que:
O cerne das mutações comunicacionais reside principalmente na
convergência entre tecnologias digitais, multimídia e realidade virtual. Os
sinais de áudio, vídeo e dados, antigamente processados de forma
independente, passaram a ser tratados do mesmo modo, depois de
digitalizados, compondo um imensurável conjunto de bits, com amplo
espectro de difusão (MORAES, 1998, p. 29)
O acelerado avanço tecnológico vivido no campo das comunicações nos últimos
anos justifica o recorte temporal adotado pela pesquisa, principalmente se consideramos as
transformações culturais decorrentes da comunicação global e instantânea observada desde o
início dos anos 1990. A chamada era das telecomunicações baseada na combinação entre
novas tecnologias, política neoliberal e mercados globais conta com o reforço da revolução
microinformática que faz do computador o símbolo do período atual, principalmente em
decorrência do amplo poder da Internet e da possibilidade de unificação de diferentes
111
processos produtivos.
Agudas mutações comunicacionais e culturais permitem-nos compreender como se
alteram os modos de produção da música no contexto da globalização. Para Moraes (1998, p.
10), não podemos isolar a forma dominante de produzir da comunicação, isto é, da
“mercantilização generalizada e dos impactos provocados pelo turbilhão de cabos, fibras
ópticas, ondas satelitais, chips e antenas parabólicas”. O autor sugere o desvendamento das
matrizes de pensamento e das estratégias dos megaconglomerados de mídia e entretenimento
motores da convergência tecnológica que fomenta a globalização para que seja
desvendada a maneira como os complexos empresariais de dia azeitam o mandamento
primeiro da panacéia capitalista: otimizar as performances do sistema produtivo (MORAES,
1998).
O encurtamento das distâncias via satélite caracteriza a produção global e a
informatização ativa a economia baseada na toca de dados (MORAES, 1998:29). uma
década, o autor afirmava que “televisão, rádio, telefone e computador tendem a confluir para
uma via de circuitos integrados on line, cujos fluxos hipervelozes reconfiguram irreversivelmente
as trocas comunicacionais e os acessos à informação e ao entretenimento”. Segundo Moraes
(1998, p. 220), a tendência dos conglomerados de infotelecomunicações, que em 1998
controlavam dois terços das informações e dos entretenimentos na escala mundial, seria de
investir cada vez mais fortemente na América Latina, através, sobretudo, de acordos,
consórcios e fusões com empresas locais.
Para Moraes (1998, p. 247), “não é difícil concluir que as bolhas de consumismo
não prosperariam sem a confluência da tecnologia com os complexos de mídia e
entretenimento”. O autor acrescenta, ainda, que estes complexos qualificam-se como “atores de
primeira linha no processo de reprodução do capital em dimensão planetária”. Ainda de acordo
com Moraes, os pólos difusores de conteúdos aceleram a convergência que serve de lastro a
um vasto conjunto de interseções produtivas que tende a se aprofundar. Desse modo, “as
corporações transnacionais põem em órbita valores essenciais da ideologia hegemônica, como
o consumo, a cultura sem fronteiras, a privatização, o individualismo e a competição
desenfreada” (MORAES, 1998, p. 249).
2.3.1 Majors e racionalidade dominante
112
A grande indústria fonográfica insere-se na máquina tecnocultural que reverbera a
organização da economia globalizada; pois, as majors pertencem aos conglomerados de mídia
que se configuram como “arquipélagos transcontinentais, cujos parâmetros são a produtividade,
a competitividade, a lucratividade e a racionalidade gerencial” (MORAES, 1998, p. 11). A
racionalidade gerencial controla a ação das grandes gravadoras do setor fonográfico, buscando
“conferir escala a seus produtos, por intermédio de alianças e parcerias entre si e com grupos
regionais; absorvem firmas menores ou concorrentes” e concentram suas atividades em poucas
companhias. Segundo Moraes (1998, p. 11), na atmosfera de concorrência exacerbada, os
players da mídia, das telecomunicações e da informática apressam interseções operacionais e
acordos planetários, mediante uma linguagem digital única e a simbiose de infra-estrutura,
plataformas e sistemas de transmissão constituem o vetor decisivo da expansão transnacional
dos setores aliados (MORAES, 1998).
Em 1997, a indústria fonográfica movimentava US$ 40 bilhões de forma
concentrada nas chamadas “cinco irmãs”, que, juntas, concentravam 78% das vendas
mundiais. A Polygran ficava com 23% do mercado; a Sony com 16%; a Warner com 15%; a
BMG Ariola com 14%; e EMI com 11%. Os 22% restantes dividiam-se entre pequenas
gravadoras (MORAES, 1998). Na época, das grandes gravadoras do campo fonográfico,
apenas a EMI não pertencia a um conglomerado de mídia. Com a aquisição da Polygran em
junho de 1998, o conglomerado canadense Seagram aumentou sua participação no ranking
mundial e, também, incorporou o selo Universal (Universal Studios que além da gravadora,
possui atuação nas áreas de TV, cinema e parques). Para Moraes,
As cinco majors têm estruturas organizativas muito parecidas: filias em
cinco continentes, controle estrito dos suportes de distribuição,
marketing audacioso, acordos com firmas regionais e selos
independentes. Seus catálogos combinam gêneros e artistas globais
com fenômenos musicais específicos (como, por exemplo, a música
sertaneja e o pagode romântico brasileiros), que, algumas vezes,
acabam reprocessados e difundidos na cadeia global (casos do reggae
e do rap). A indústria do disco articula-se com interesses conexos,
envolvendo cinema (trilhas sonoras), televisão aberta e paga
(programas, videoclipes e telemarketing), rádio (execução intensiva de
CDs preferenciais), imprensa escrita (divulgação, promoção e marketing
direto), showbizz (trilhas de espetáculos e shows) e Internet (sites
musiciais, ciberradios e lojas virtuais) (MORAES, 1998, p. 151).
Segundo Moraes (1998), é praticamente impossível refletir sobre a indústria cultural
sem atentar para o seu progressivo acoplamento às malhas de infotelecomunicações. Pelo fato
da mesma empresa atuar em diferentes ramos comunicacionas música, mídia e
113
entretenimento a concentração das oportunidades nos agentes mobilizados pelas majors é
cada vez mais evidente. Muitas vezes essa associação torna-se perversa porque bloqueia o
acesso a veículos de comunicação de massa que são de propriedade da mesma holding,
dificultando ou impedindo a presença das pequenas e médias empresas do setor as indies -
nos principais canais de difusão musical, como o rádio e a televisão.
Os termos majors e indies foram adotados seguindo a mesma perspectiva utilizada
por Herschmann (2007, p. 22) ao designar, respectivamente, as grandes companhias
transnacionais do disco e as pequenas e médias gravadoras e selos independentes que
registram e comercializam gêneros musicais geralmente relegados a uma condição marginal
pelas grandes empresas do setor fonográfico. Esta designação é usada pela Associação
Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), responsável por pesquisas de mercado, produção e
divulgação de dados estatísticos e pelo controle da vendagem do setor fonográfico no Brasil e,
ainda, pela emissão dos certificados que autorizam as gravadoras a premiar intérpretes com
"discos especiais" (discos de ouro, platina e diamante), em decorrência do grande volume
comercializado.
Cada vez mais, as etapas de criação, produção, distribuição e consumo da grande
indústria da música parecem determinadas ou condicionadas à lógica do imediatamente
rentável. Entretanto, algumas manifestações nas ruas da cidade indicam que, na música, nem
tudo é determinado pelos interesses dos grandes conglomerados do setor e que nem sempre é
possível desconhecer ou deslegitimar as propostas alternativas ou contestadoras.
Para refletir sobre as transformações ocorridas na indústria fonográfica, é preciso
estar atento para não cristalizar uma realidade que é bastante dinâmica, criando, por exemplo,
uma oposição rígida entre majors e indies, pois o mainstream do mercado fonográfico e a ação
independente ou alternativa das pequenas e médias empresas do setor, por vezes, encontram-
se articulados
97
. Um artista indie pode ganhar projeção e visibilidade através de caminhos
alternativos, tornando-se pop, mesmo que o seu projeto seja criar um caminho independente,
ou contra-hegemônico
98
. O fato do artista ser alvo do interesse das majors pode ser
determinante para sua carreira; mas estar numa grande gravadora não é, necessariamente,
sinal de sucesso.
97
O termo mainstream caracteriza-se por seus objetivos comerciais que tende a provocar a falta
de inovação e criatividade como conseqüência desta proposta de lucro imediato. A posição
elevada na estrutura do campo pode ser definida através da popularidade, da quantidade de
CDs e shows comercializados e do montante do cachê do artista, mas isso não significa um
reconhecimento no interior do próprio campo, medida através de outros capitais simbólicos.
98
Usamos a expressão independente para nos referirmos ao artista do circuito inferior da
música que procura caminhos alternativos ao mercado fonográfico corporativo e transnacional.
114
Por outro lado, tal como Herschmann (2007, p. 24) ressalta, a articulação entre
majors e indies torna-se evidente quando as pequenas gravadoras buscam ampliar sua
competitividade no mercado articulando-se às grandes empresas do setor. Por sua vez, buscam
incorporar o capital cultural que as indies têm a oferecer. Segundo Hermano Vianna
(HERSCHMAN, 2007),
Que a indústria fonográfica “tradicional” está em declínio, disso ninguém
duvida. Mesmo assim no meio da crise nunca se produziu e
consumiu tanta música como hoje. certamente artistas e públicos
para todos os estilos, contudo obstáculos e problemas graves na
mediação entre produção e consumo. A verdade é que o modelo
desenvolvido pelas gravadoras do século XX não mais conta dos
negócios. (...) algum tempo, o público vem se conscientizando de
que as novas músicas pop de periferia produzidas no Brasil tais como
o funk carioca, o tecnobrega paraense e o forró eletrônico cearense,
entre outras não dependem das grandes gravadoras e tampouco da
grande mídia para manter sua enorme popularidade nas ruas e grandes
festas da maioria das cidades do país. São novos business musicais
(cada um com seu modelo diferente) apresentando propostas e soluções
bem criativas para os dilemas gerais da indústria fonográfica (VIANNA,
2007)
99
.
O que os novos business musicais” estão revelando é que os formatos ou suportes
estão sendo constantemente transformados. E esta é a causa de importantes mudanças na
indústria da música, seja nas formas de produzir ou de comercializar o produto. reflexos
especialmente sobre o marketing de gêneros e, conseqüentemente, sobre o comportamento do
consumidor e a cultura da música (HERSCHMANN, 2007, p. 72). Para muitos autores (FRITH,
2006a; SHUKER, 2005 apud HERSCHMANN, 2007), a indústria fonográfica, não consegue
manipular a cultura da música em decorrência de uma imensa rede de comunicação que
comportaria relações diretas entre consumidores/aficionados, membros de fãs-clubes e bandas,
mediações entre companhias fonográficas, emissoras de rádio ou empresas de mídia e
pessoas influentes no mercado musical. Entretanto, o próprio Herschmann ressalta que adia
tem grande influência sobre a vida social, o que se reflete nas práticas ligadas ao setor musical.
Concordamos com o autor quando diz que
vivemos numa cultura midiática, espetacularizada e performática, na
qual as formulações identitárias, estilos de vida, bem como as diversas
estratégias narrativas que contribuem para a organização de nossa vida
social são forjadas no interior do ambiente comunicacional
(HERSCHMANN, 2007, p. 78).
A oligopolização dos centros difusores de informação tem conseqüências sobre os
hábitos de consumo musical. No Brasil, a década de 1990 foi marcada por uma nova fase do
99
Texto publicado na orelha do livro de Herschmann (2007) Op. cit.
115
mercado fonográfico, a era do CD. Iniciada no final da década de 1980, esta fase atingiu seu
auge com a implantação do Plano Real (em 1994), que criou as condições econômicas para um
aumento significativo das vendas de discos nacionais, que passaram a atingir a marca de
milhões de cópias vendidas, destacando-se o sertanejo, o pagode romântico e o axémusic,
principais apostas da grande indústria.
Conforme afirmado por muitos críticos musicais, a qualidade artística deu lugar aos
recordes de vendagem e ao uso intensivo de instrumentos de marketing, como principal
estratégia de difusão de artistas e gêneros musicais. Não vamos aqui tratar da complexa
questão do valor diferencial dos gêneros musicais, mas, no que se refere à produção, o que
vimos durante toda a década de 1990, foram os impactos da reestruturação produtiva na
indústria fonográfica. Esta indústria teve que se adaptar à lógica do mercado global, através de
fusões, redução de custos, enxugamento de pessoal e cancelamento de contratos de artistas
consagrados para concentrar recursos em artistas com sucesso comercial.
Além da homogeneização trazida por esse novo tempo da produção fonográfica
nacional, a música do início dos anos 1990 foi bastante influenciada pela chegada da MTV
(Music and Television) no Brasil - uma década depois de tornar-se mundialmente conhecida. A
MTV trouxe mudanças significativas para uma parcela específica do campo da produção
musical nacional; pois, com o canal dedicado exclusivamente à música, surgiram novas
tendências e referências em termos de atitude e comportamento, não para o público do
canal, como também para os artistas.
No início, a programação da MTV era composta basicamente por videoclipes
estrangeiros, produzidos pelas grandes gravadoras; mas, à medida que artistas brasileiros
passaram a produzir mais clipes, foi ampliada a exibição de vídeos nacionais, ainda que a
música estrangeira sempre tenha sido dominante na programação do canal. É importante
lembrar que a restrita exibição relativa de clipes nacionais decorre de decisões de marketing
tomadas por acordos estabelecidos entre o canal e as gravadoras e não pela ausência de clipes
nacionais. Dos anos de 1990 aos dias de hoje, a MTV também passou por numerosas
mudanças. Atualmente, o tempo dedicado à exibição de clipes é bem menor do que antes. O
canal tem investido em programas interativos que, muitas vezes, não tratam de música. Nestes
últimos anos a MTV também investiu em outros canais de comunicação com seu público, como
demonstram o portal MTV overdrive na internet e a Revista MTV, de circulação mensal e
apenas para assinantes.
o canal da televisão por assinatura Multishow, como sugere o próprio nome,
oferece uma programação variada, boa parte dedicada à música. O canal transmite shows,
116
entrevistas, clipes e variedades em música, como o extinto Ensaio Geral
100
, o Trama virtual
101
e
o Que Rock é esse
102
, além do programa de clipe TVZ e do Multishow Music Live, ambos
apresentando artistas contratados pelas majors. Como acontece com freqüência nas rádios, a
programação de clipes e as premiações anuais promovidas pelos canais de tv por assinatura,
caso observadas em profundidade, confirmam a obediência a um certo padrão de promoção da
produção musical, pautado no marketing, o que interfere nos rumos da difusão musical do país.
As majors utilizam fortemente o marketing como forma de atrair consumidores, pois
tal como Heschmann (2007, p. 74) ressalta com base em Negus (2005) e Frith, (2006a), as
companhias fonográficas adotam estratégias para minimizar prejuízos, que quase 90% dos
produtos geram perdas, no que se refere às expectativas de lucro. Negus (2005 apud
HERSHMANN, 2007) recorda que qualquer gravadora mesmo as majors consegue, em
média, obter êxito com um trabalho a cada oito lançados no mercado. Os autores vêem a
indústria da música como um negócio complexo, no qual é preciso adotar uma forma de
organização que permita gerir vetores “irracionais” como o talento e o gosto (NEGUS, 2005 e
FRITH 2006b apud HERSCHMANN, 2007, p. 73).
As grandes companhias acionam estratégias - como concentração de investimentos
em artistas que tenham produzido grandes êxitos de mercado – que garantem a redução dos
prejuízos causados pela variedade de gostos e preferências dos consumidores. Os
100
O programa Ensaio Geral, comandado pela jornalista Lorena Calábria durante seis anos
(2000-2006), dedicava-se exclusivamente à música brasileira e resgatava momentos e
encontros de novos e antigos artistas, através de entrevistas, imagens de shows e de
bastidores, além da veiculação de curiosidades sobre o meio musical. O programa deu origem a
dois DVDs, Ensaio Geral, com Lorena Calábria, com apresentações de nomes consagrados do
samba, como Jorge Aragão, Alcione, Fundo de Quintal e Bezerra da Silva, lançado pela Indie
Records em 2005, e Ensaio Geral, com bandas de rock nacional, lançado em junho de 2006.
101
Assim como o site Trama Virtual, que fornece informações sobre a chamada cena musical
independente, a versão para a TV do site Trama Virtual, apresentado por João Marcelo Boscoli,
sócio da gravadora Trama, busca divulgar o trabalho de bandas independentes do país. O
formato do programa, que estreou em julho de 2006 e chegou pronto à direção do canal,
adota uma linguagem dinâmica composta por cinco quadros fixos: o Ao Vivo, que mostra a
performance dos artistas nos palcos, além de uma entrevista; o Banho de Estúdio, no qual uma
banda de garagem tem oportunidade de tocar em um estúdio profissional pela primeira vez; o
Arquivo, que resgata trechos de antigas entrevistas e apresentações (com imagens do
programa Ensaio, da TV Cultura/SP); o Reportagem, cujo forte são matérias diversas sobre o
cenário independente; e o Visitando a Cena, que abre espaço para a cobertura de eventos,
shows e festivais independentes do país. Talvez pelo fato da Trama ser uma gravadora de São
Paulo com uma ação orientada para todo o país, a freqüência de artistas cariocas em sua
programação não é significativa.
102
Que Rock É Esse é uma serie de 13 episódios que contam a história do Pop e do Rock
Nacional através de entrevistas e depoimentos de personagens importantes do cenário musical
nacional dos anos 1980 a 2000.
117
investimentos em publicidade são feitos em sua maioria na rádio, que por sua capilaridade
social, continua sendo o principal veículo da promoção musical; mas, fortes indícios da
aliança da indústria fonográfica com a televisão, mesmo antes da existência de emissoras como
a MTV (ibidem) e o Multishow.
Para Moraes, a oligopolização das mídias insere-se no painel geral de forte
concentração de comandos estratégicos de megamercados e de mundialização de conteúdos,
bens e serviços, facilitada pela desregulamentação, pela supressão de barreiras fiscais, pela
brutal acumulação de capital nos países altamente industrializados, pela deslocação geográfica
das bases de produção e, evidentemente, por redes integradas de múltiplos usos (MORAES,
1997, p. 27).
A combinação entre política neoliberal e novas tecnologias na reorganização do
capitalismo na escala global permitiu o aumento da concentração da produção industrial e a
limitação das oportunidades oferecidas pelo mercado fonográfico aos numerosos artistas que
procuram se lançar no mercado. Como conseqüência deste processo, surgiram ou se
fortaleceram pequenas e médias empresas envolvidas na garantia da sobrevivência de novos
nomes da cena musical nacional. Além dos novos, estas empresas também trabalham com
artistas consagrados que, de uma hora para outra, perderam seus contratos com as majors
ou que não receberam das majors a valorização que julgavam merecer.
A concentração de capital que norteia a ação dos grandes conglomerados de
comunicação e cultura dificulta o pluralismo e a inovação que caracterizam o circuito alternativo
da música carioca. E reside o interesse das majors no que é criado no ambiente das indies.
Se as majors detêm grande poder econômico - cada vez mais determinante nas etapas da
difusão e da circulação - as indies concentram um capital cultural, já que, freqüentemente, é nas
pequenas e médias empresas que criadores encontram oportunidades para inovar e arriscar
novos caminhos na música.
Para Herschmann, majors e indies constroem uma relação de complementaridade,
na qual “as indies descobrem os músicos e logo os vendem ou licenciam os contratos com as
majors. para que os promovam e distribuam” (YÚDICE, 1999, p. 117 apud HERSCHMANN,
2007, p. 83). Foi assim com Teresa Cristina, que teve o quarto CD Delicada (2007) produzido
pela indie DeckDisc, vendido para a EMI que ficou responsável por sua distribuição e
comercialização. A opção de Teresa Cristina pela major decorreu da busca por maior difusão de
sua música. “Quero chegar a quem não me conhece, ao cara que fala: ‘Teresa Cristina,
quem?’” A artista ainda expressa o desejo de conhecer o Brasil, “Eu não posso conhecer o
118
Japão (onde cantou logo no início da carreira fonográfica) e não conhecer Goiás”
103
.
A articulação entre majors e pequenos selos também se evidencia na trajetória mais
recente de artistas renomados, como a cantora Fernanda Abreu, que, após muitos anos de
contrato com a EMI, resolveu abrir uma editora e um selo, o Garota Sangue Bom, para editar
suas próprias músicas, frente ao fato de que com contratos que exigem exclusividade o artista
perde o direito sobre sua obra pelo tempo determinado pela gravadora no contrato. Tal como
Fernanda Abreu relata sobre sua relação com a gravadora:
(...) na EMI eu assinei um contrato com a Blitz, a Blitz acabou e eu fiz
meu disco assinei um contrato de artista exclusivo e nesse contrato é o
seguinte: você grava uma música, esta música é da gravadora. ok,
você ganha os royalties lá, a gravadora faz o que tem que fazer
(Fernanda Abreu, cantora e compositora, em entrevista a autora em 05
de Dezembro de 2007).
Fernanda Abreu questiona a lógica impositiva da cessão dos direitos autorais no
campo fonográfico. Mesmo afirmando que sempre teve total liberdade de criação, a cantora
optou por criar seu próprio selo e editora, julgando que poderia “fazer discos de outras
pessoas”, como Fausto Fawcett, para os quais “as gravadoras não tinham olhos”. Entretanto,
questões jurídicas adiaram seus planos relativos à produção de CDs de parceiros. A criação do
selo decorreu, também, de uma certa insatisfação com relação à distribuição e à divulgação do
CD Entidade Urbana (2000), que para ela “não foi um disco bem trabalhado pela gravadora”
104
.
(...) eu comecei a não me entender muito bem com a direção da
gravadora que eu tava na época [EMI] e tive uma conversa super franca
sobre a possibilidade de eu ter meu selo e [o CD] ser distribuído pela
gravadora. Isto significava o que? Que eu tinha que ter meu estúdio pra
gravar meu disco. (...) Então, eu abri minha editora, editei minhas
músicas pela minha editora, abri meu selo, pra gravar o meu disco pelo
meu selo, e eu distribuía pela multi [EMI] (Fernanda Abreu, cantora e
compositora, em entrevista a autora em 05 de Dezembro de 2007).
Foi assim que lançou o disco Na paz (2004), seu manifesto anti-bélico, no qual trata
103
Teresa Cristina revela uma postura mais coletiva. O Grupo Semente formado por Pedrinho
Miranda (voz e pandeiro), João Callado (voz e cavaco), Bernardo Dantas (violões) e Mestre
Trambique, que entrou depois (tamborim, surdo ganzá e vários outros instrumentos) é parte
importante de sua carreira. Teresa e o Grupo Semente estiveram na Espanha, Índia, México,
Holanda e Equador, onde conquistaram uma certa projeção antes de ficarem conhecidos no
Brasil. Não é raro entre músicos que movimentam o circuito alternativo da música carioca atingir
a escala mundial, sem ter tido a mesma oportunidade na escala nacional.
http://www.interney.net/blogs/dbasica/2007/10/16/teresa_cristina_aamp_grupo_semente/
104
A própria cantora reconhece que seu trabalho, muitas vezes tratado como pop, não tem um
apelo comercial, a começar pela temática que nome ao CD, que segundo a cantora, foi
rotulado pela gravadora como um disco “difícil para o mercado”.
119
de um tema que a angustia fortemente: a violência das armas
105
. Para Fernanda Abreu,
“importa também [refletir sobre] a violência que está dentro das pessoas”. Por isso, um CD que
abre-se para o aproximativo é, em si, uma ação de resistência, num contexto marcado por alta
competitividade e individualismo exacerbado.
Figura 12: O protesto anti-bélico de Fernanda Abreu – Fotos do CD Na paz (2004)
Mas, são poucas as oportunidades de trabalho para os pequenos e médios grupos
do campo da música. Na indústria fonográfica, além da alta competição e da pouca regulação
do mercado mundial, os interesses dos grandes conglomerados de comunicação e
entretenimento prejudicam os produtores e distribuidores independentes, pois diminuem o
acesso aos canais de distribuição e divulgação.
No caso da indústria da música, observa-se um processo de
concentração preocupante e acentuado: se, na década de 1980
tínhamos seis companhias transnacionais concentrando 55% do
mercado mundial, no ano de 2000 elas passaram a ser cinco,
concentrando 70%, e em 2004 eram apenas quatro e controlavam mais
de 71,6% do mercado mundial (HERSCHMANN, 2007).
O jabá, expressão cuja origem está na palavra jabaculê (gorjeta, propina), é uma
prática comum entre gravadoras, rádios e tvs. Acontece quando um representante dos
interesses da rádio (diretor comercial) recebe dinheiro de empresários ou de representantes de
gravadoras para executar determinadas músicas uma certa quantidade de vezes ao longo do
dia. Esta prática tem prejudicado o acesso do grande público à maior parcela da atual produção
musical brasileira, pois tende a favorecer os artistas ‘mais lucrativos’, recordistas em vendagem
105
O disco “Na paz” lançado pelo Garota Sangue Bom, selo inaugurado no fim de 2003, foi
distribuído pela EMI. Na época do lançamento deste CD. Fernanda Abreu participou ativamente
da Campanha Nacional pelo Desarmamento, incentivando a entrega de armas e o voto no Sim
(pela proibição da comercialização das armas) no Referendo Popular que acabou decidindo
pela não proibição. Durante a campanha, uma promoção fruto da parceria com a ONG Viva Rio
e o Instituto Sou da Paz, buscava incentivar a entrega de armas no Rio e em São Paulo
distribuindo para a população que se desarmava, CDs e ingressos para o show Na paz, da
cantora. http://www.comunidadesegura.org/?q=pt/node/23989/print
120
de CD/DVD. Esta prática tem sido aceita como uma etapa da promoção de produtos realizada
pelas gravadoras; mas, é bastante combatida por representantes das “culturas independentes”
por contribuir para a redução das oportunidades de divulgação de artistas novos ou
“independentes”, que não estão vinculados às grandes gravadoras.
Artistas e dirigentes das indies denunciam o fato do jabá, isto é, do suborno que se
naturaliza no cotidiano (LICHOTE, 2006 apud HERSCHMANN, 2007) dificultar ou interditar o
acesso às rádios das músicas das pequenas e médias gravadoras. Segundo Maurício Carrilho
(apud HERSCHMANN, 2007, p. 77), proprietário da gravadora indie Acari Records,
especializada em chorinho, “as grandes gravadoras começaram a comprar horário do rádio, dar
propina aos programadores, para tocar ou para deixar de tocar essa ou aquela música, então
se institucionalizou o jabá”.
Para os que defendem o fim do jabá, esta estratégia de difusão musical converteu-
se numa forma de censura daqueles artistas que não usufruem do forte esquema de marketing
corporativo das multinacionais do setor
106
. Sabe-se que o jabá é responsável por boa parte do
faturamento das emissoras de rádio. Segundo apuração preliminar do jornal Folha de São
Paulo, grandes redes de rádio chegam a cobrar R$ 20 mil para inserir um lançamento musical
em sua programação
107
. Porém, artistas que afirmam que esta negociação atinge cifras bem
mais elevadas. Segundo Zornitta, as rádios chegam a receber até R$ 70 mil para transmitir de
três a cinco vezes por dia uma determinada música a pedido de grandes gravadoras,
empresários da indústria fonográfica ou intermediários
108
.
As maiores conseqüências desta prática são a significativa queda da audiência das
rádios, por sua programação repetitiva, e o aumento do preço do produto final, que o custo
das operações de marketing, que inclui o jabá, é repassado ao consumidor, uma vez que
encontra-se embutido no preço final de CDs e DVDs.
Apesar de muitos artistas afirmarem que o forte investimento em propaganda é a
verdadeira causa do aumento do preço dos CDs, a indústria prefere responsabilizar a pirataria
por seus prejuízos. De fato, as majors têm atribuído a crise do setor fonográfico, nas últimas
106
André Midani, alto executivo da indústria fonográfica por mais de 40 anos, em entrevista na
Folha de São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u33268.shtml) confirma
que esta prática, que não é recente, tem comprometido nos últimos anos cerca de 70% das
verbas de divulgação das gravadoras. Acessado em 27/12/2007.
107
Pedro Alexandre Sanches e Laura Mattos. Gil apóia projeto de criminalização do jabá; rádios
se opõem. Folha de S.Paulo 15/04/2003 -
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u32094.shtml Acessado em 27/12/2007.
108
Zornitta, Bruno. "Sem-mídia" pedem fim do jabá: trabalhadores da indústria musical querem
aprovação de lei que criminaliza propina midiática acessado em 28/12/07
http://movimentopelofimdojaba.blogspot.com/2006/04/sem-mdia-pedem-fim-do-jab.html
121
décadas, à pirataria. Entretanto, é possível verificar que a venda de CDs falsificados é apenas
uma das conseqüências e talvez não a mais grave da lógica que promove também a
corrupção dos meios de comunicação, manipulando a demanda de produtos musicais e
concentrando investimentos em um número reduzido de lançamentos. Assim, concordamos
com Torres, quando afirma que a crescente opção das multinacionais pela venda de um
máximo de unidades de um mínimo de títulos - trouxe a crise ao mercado fonográfico
109
.
A concentração de investimentos no imediatamente rentável é determinante para a
crise, também na visão de quem viveu de perto o cotidiano das majors, como André Midani, ex-
executivo da Warner (apud HERSCHMANN, 2007, p. 107),
(...) assistimos hoje ao fim de um ciclo (...) Na época em que trabalhava
como gerente de uma grande gravadora, a gente mandava um
orçamento, ele era aprovado ou não, e, no fim do ano seguinte, a gente
apresentava o resultado. Passados alguns anos, em vez de ser no fim
do ano, passamos a apresentar relatórios a cada seis meses. Depois
passou para três meses e a cada mês. (...) Com isso, passou-se a ter
menos liberdade, a não se ter como planejar a médio e longo prazo. É
tudo realizado a curto prazo, atendendo a necessidades imediatas. (...)
Portanto, se você pegar esse conjunto de fatores, tais como tamanho, a
pressão por resultados imediatos e o distanciamento da companhia de
disco dos artistas... você toma esses elementos todos e entende um
pouco da catástrofe que estamos vivendo hoje nas grandes companhias.
(HERSCHMANN, 2007)
Segundo a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI, sigla em inglês),
entidade que representa mundialmente o setor, as vendas de CDs, DVDs musicais e fitas
cassete, no Brasil, declinaram 16,5% no primeiro semestre de 2005, em relação ao mesmo
período de 2004
110
. O mercado como um todo sofreu queda de 5% em relação a 2005,
movimentando U$19,6 bilhões no ano passado, em comparação com U$20,7 bilhões no ano
anterior
111
.
Os dados indicam que a indústria da música não vive exatamente uma crise porque
apenas a venda de CDs foi reduzida em relação aos outros anos, enquanto cresce a
comercialização da música digital, evidenciando a força dos novos produtos. Na Europa, por
109
Sérgio Rubens de Araújo Torres, artigo publicado no site
http://www.horadopovo.com.br/2004/julho/16-07-04/pag8a.htm. Acessado em 27/12/2007.
110
Faturamento da indústria fonográfica cai 16,5% no Brasil. Por Bruza em 03/10/2005 Site:
central MP3 http://sombrasil.ig.com.br/centralmp3/noticias/comments.php?id=01036
111
Segundo dados divulgados pela IFPI e pela consultoria Nielsen SoundScan, as vendas de
CDs movimentaram 229,8 milhões de dólares no mercado norte-americano no primeiro
semestre de 2007, o que representa uma queda de 15% sobre o mesmo período do ano
passado. Já as músicas digitais movimentaram 417,3 milhões de dólares no período, crescendo
49%. Acesso em 27/12/2007 www.infonova.com.br/detalhe.asp?
f=artigos_noticias_detalhe.asp&id_noticia=956
122
exemplo, aumenta o lucro gerado por shows, ringtones, licenciamento para TV e videogames e
até mesmo com a venda de compactos em vinil. O mesmo vale para negócios com download
legal. A informatização e a troca instantânea de dados criou um novo ambiente para a produção
propriamente dita, e para o uso/consumo de bens ligados à música, sendo o fluxo de músicas
na Internet é um claro indício da transformação do setor.
Para a IFPI, a demanda por música através da internet e telefones celulares que
somou US$ 13,2 bilhão, praticamente, compensou a queda de 1.9% da venda de discos físicos
no primeiro semestre de 2005
112
. A venda digital de música atingiu cerca de US$ 790 milhões,
ante os US$ 220 milhões registrados nos primeiros seis meses de 2004. Este valor representa
cerca de 6% do total do faturamento da indústria fonográfica mundial
113
.
Tal como alerta Moraes (1998), a combinação de redes de telefonia, TV a cabo, TV
digital por satélite e Internet localiza-se no centro dos megaprojetos empresariais, que se
beneficiam da desregulamentação, da privatização e de concessões de serviços de
telecomunicações. Por outro lado, consumidores têm utilizado esta nova base tecnológica para
ampliar o seu acesso à música através de rádios online, podcasts, iTunes e outros instrumentos
que permitem que a música seja adquirida (de forma legal ou ilegal, gratuita ou paga) através
do MP3.
Este formato de compressão de músicas surgiu no Brasil em 1998, tendo sido
imediatamente reconhecido como uma ameaça pelas grandes gravadoras. Por outro lado, para
programadores musicais de rádios e para DJs, o formato MP3 representa a perde da qualidade
sonora, mas amplia a velocidade e a quantidade de músicas armazenadas, que um HD de
8Gb armazena cento e trinta e três horas ou cinco dias e meio ininterruptos de música.
Hoje, é possível ter acesso a músicas, CDs, DVDs, clipes, making-offs e arquivos de
computadores remotos na Internet. A tendência é que esta prática modifique, de forma ainda
mais drástica, a dinâmica do mercado fonográfico. O controle da arrecadação e distribuição dos
direitos autorais dependerá de grandes investimentos em tecnologia para acompanhar a
transmissão imediata de dados. O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), de
natureza privada, é o órgão responsável, no Brasil, pela arrecadação de direitos autorais. Esta
instituição tem procurado demonstrar que mesmo em meio a tanta fluidez, é possível controlar a
difusão musical no país
114
. De acordo com dados divulgados pelo ECAD, o controle de
112
idem
113
ibidem
114
Instituído pela Lei Federal 5.988/73 e mantido pela atual Lei de Direitos Autorais
9.610/98, o ECAD, administrado por dez associações, realiza a arrecadação e a distribuição de
direitos autorais decorrentes da execução pública de músicas nacionais e estrangeiras,
permitindo que o Brasil seja um dos países mais avançados em relação à distribuição de
123
informações é realizado por um sistema de dados informatizado e centralizado que possibilitou,
entre 2000 e 2006, o aumento da receita do órgão em mais de 100%, mas, muitos músicos
estão insatisfeitos com a atuação da entidade.
De qualquer modo, não se pode falar em crise da produção fonográfica, quando a
venda de CD constitui-se no único segmento do mercado de fato em declínio como pondera
Ronaldo Lemos, professor e diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito
da FGV
115
. Para Lemos,
os suportes físicos estão mudando, que são renováveis e maiores.
Um iPod armazena mais de dez vezes o que cabe em um CD. Então, é
preciso considerar isso e observar toda a indústria, e não a que está
vinculada ao CD
116
.
A análise da produção fonográfica evidencia transformações decorrentes da nova
dinâmica da economia global, baseada na alta tecnologia e na informação. Todas as etapas da
produção da música foram profundamente alteradas pela oligopolização dos mercados e pelo
encurtamento das distâncias propiciado pelo avanço técnico. A reestruturação produtiva da
indústria fonográfica decorrente de sua adaptação à lógica do mercado global, competitivo e
veloz - gerou o corte de gastos e cancelamento de contratos de artistas com menor vendagem.
Segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), a redução de cerca
de 50% dos postos de trabalho diretos na grande indústria do disco entre 1997 e 2003, afetou
artistas, técnicos de estúdio, departamentos de marketing e pessoal de apoio (HERSCHMANN,
2007, p. 128).
As grandes gravadoras - majors ampliaram seu poder de decisão através de
fusões: Universal, EMI, Sony-BMG e Warner Music são empresas transnacionais que atuam de
forma cartelizada. Atualmente, com a reestruturação da indústria fonográfica, os recursos estão
ainda mais concentrados nas quatro maiores gravadoras do mercado. De acordo com dados
fornecidos pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (apud HERSCHMANN,
direitos autorais. Com sede na cidade do Rio de Janeiro, 23 unidades arrecadadoras, 600
funcionários, 84 advogados prestadores de serviço e, aproximadamente, 240 agências
autônomas instaladas em todos os Estados da Federação, a instituição possui ampla cobertura
em todo o território brasileiro. www.ecad.org.br
115
http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=712486&tit
acessado em 11 de dezembro de 2007
116
O lançamento do último trabalho da cantora Marisa Monte é um contraponto interessante à
leitura hegemônica da indústria do disco. Esta consagrada cantora ficou 6 anos sem lançar
nenhum disco por opção. No auge da suposta crise da industria fonográfica - lançou,
simultaneamente, dois CDs – Infinito Particular e Universo Ao Meu Redor (2006), mesmo diante
do crescente número de CDs falsificados e baixados da Internet (de forma autorizada ou não).
Marisa Monte afirmou não saber se lançará outros CDs, pois reconhece que o campo musical
está em transformação, exigindo a criação de novas formas de divulgação.
124
2007:106), o mercado da música, em 2004, estava assim dividido: Universal (25,5%), Warner
(11,3%), Sony-BMG (21,5%), EMI (13,4%) e indies (28,4%)”.
Entretanto, no segmento reconhecido pela IFPI como detentor de 28,4% do
mercado e que seria controlado pelas indies, há, de fato, uma grande variedade de
experiências, inclusive a da Som Livre (Sistema Globo de Gravações Audiovisuais Ltda), que é
uma empresa das Organizações Globo que atua no mercado fonográfico e no mercado de
vídeo, DVDs e similares. A Som Livre, que na década de 1990 concentrou seus investimentos
nas trilhas de novelas e em compilações, teve seu cast reduzido a uma única artista com
contrato de exclusividade: Xuxa. Outra característica que distancia a Som Livre das indies é a
forte ligação dos seus produtos com a TV Globo. A Som Livre atua como parceira de selos e
gravadoras como a EMI, Warner e SonyBMG em compilações e coletâneas. Também é
parceira de indies e, como distribuidora constitui-se numa importante aliada para o lançamento
nacional de alguns artistas, como a Orquestra Imperial que teve seu CD Carnaval no ano
que vem (2007) gravado de forma independente, distribuído pela empresa e divulgado em
horários nobres da TV Globo, ainda que por poucos dias.
Dentre as majors, de acordo com dados fornecidos pela Associação Brasileira de
Produtores de Discos (ABPD), a EMI Music é uma empresa com presença em cerca de 70
países, que detém um catálogo de aproximadamente 1.500 artistas em selos mundialmente
famosos. Esta empresa lança, a cada ano, mais de mil novos títulos. A Sony-BMG, que também
produz em associação com selos como Arsenal Music, Epic e RCA é a contratante de inúmeros
artistas brasileiros (como Paulinho da Viola, Lenine, Marcelo D2 e Vanessa da Mata) e
estrangeiros (como Shakira, Beyoncé, Rick Martin). A Warner Music Brasil da Warner Music
Group, afirma ser “a maior gravadora independente do mundo”, tendo se tornado uma
companhia de capital aberto através da oferta de suas ações, em maio de 2005, nos EUA. Atua
em mais de 50 países através de suas associadas. No Brasil, divulga desde 1976, artistas
brasileiros (como Gilberto Gil, Maria Rita e O Rappa) e estrangeiros (como Madonna, Eric
Clapton e Green Day). A empresa desenvolve forte atuação no segmento digital, desde 2005,
disponibilizando seu conteúdo para venda através da Internet e da telefonia celular. a
Universal Music Group, é resultado de fusões e incorporações, como a compra da Polygram do
Brasil Ltda pela empresa canadense Seagram, detentora dos direitos da gravadora Universal
Music, em 1997. Em 2000, a Seagram associou-se à Vivendi. Estas empresas formam juntas,
atualmente, uma das maiores empresas de entretenimento do mundo, com gravadora, parques
temáticos, estúdios de cinema e canais de televisão. Alguns artistas da Universal - como Ivete
Sangalo, Zeca Pagodinho e Caetano Veloso exemplificam a forma verticalizada pela qual atua
125
esta companhia de discos que, através de uso intensivo de publicidade, difunde produtos e
garante a comercialização de CDs, DVDs e shows de seus contratados.
Se, por um lado, as majors produzem de forma globalizada e massificada em
diferentes territórios, por outro, experimentam uma certa limitação na capacidade de penetração
nos mercados locais. Para Herschmann, “por mais que as empresas busquem manipular o
consumo, impondo produtos, as companhias esbarram em limites culturais”. E por existir esta
limitação que a articulação majors-indies se explica e se torna cada vez mais freqüente no
mercado da música.
Herschmann (2007, p. 88) apresenta numa interessante tabela, com registros de
mudanças e continuidades no circuito produtivo da música, que revelam transformações no
regime de acumulação da grande indústria responsáveis pela emergência de novas formas de
organização da produção e do consumo.
126
Segundo o autor, um deslocamento da própria função produtiva para as
atividades imateriais ou trabalho imaterial”, ligado à circulação, à comunicação e à inovação
(LAZZARATO e NEGRI, 2001; GORZ, 2003, apud HERSCHMANN, 2007, p. 89).
De acordo com Hardt e Negri (2000), percebe-se uma crescente
hegemonia de um novo tipo de trabalho imaterial, intelectual, afetivo e
tecnocientífico – que não constitui um recurso específico de determinada
combinação fabril. Trata-se de um recurso geral que advém do território,
do tecido social e cooperativo dos próprios fluxos comunicacionais que
se tornaram produtivos. A produtividade depende dos níveis de
subjetividade e está crescentemente relacionada aos níveis de
socialização comunicativa do trabalhador (HERSCHMANN, 2007:89).
127
Com as transformações em curso, as grandes empresas do setor fonográfico
necessitam da capacidade de inovar e criar das indies, que estas estão mais próximas da
música que “vem das ruas”. Além dos novos lançamentos, as indies criam novos modos de
produzir, difundir e comercializar a música, fortemente vinculados ao território.
Se, do ponto de vista da grande indústria fonográfica, a padronização do gosto é
necessária ao controle do uso dos instrumentos no setor uma padronização que acontece
através de instrumentos como propaganda, listas de top 10, premiações anuais e aumento da
freqüência da execução de determinadas músicas e artistas do ponto de vista do ouvinte,
usuário ou consumidor, a pluralidade das opções constitui-se num direito. As escolhas e gostos
são plurais e as majors se ajustam, neste momento de transição, buscando conhecer as
preferências do público/consumidor.
Produzir algum nível de integração das organizações com os territórios também
torna-se parte das estratégias empresariais do setor fonográfico. Neste processo de integração
com os territórios, as pequenas empresas contam com a vantagem de terem acesso direto aos
artistas, produtores musicais, DJs, colaboradores, além de consumidores que disponibilizam
informações aplicando-as estrategicamente em novos modos de produzir e difundir música.
2.3.2. Indies: Pequenas e médias gravadoras e novos selos no mercado fonográfico
Cada vez mais, pequenas e médias empresas destacam-se no mercado
fonográfico, por sua capacidade de desvendar novos caminhos para a música. As organizações
em rede e as associações e parcerias tornaram as indies importantes mediadoras entre novos e
renomados artistas e o público. A segmentação do mercado e a sua pulverização em nichos
especializados caracterizam a atuação destas empresas. Grande parte do trabalho das indies
acontece através da Internet e da interatividade. Mas, o que mais diferencia este setor do
campo fonográfico é a sua proximidade do artista, do público e do lugar. Este é o caso da
contratação de músicos que se consagraram a partir de suas freqüentes apresentações em
bares e pequenas casas de espetáculo da cidade. Teresa Cristina, após lançar três CDs de
forma alternativa, lançou seu último CD pela major EMI Music. Segundo Herschmann (2007,
p.90),
Quando a EMI contrata uma cantora como a Teresa Cristina da indie
Deckdisc que está profundamente articulada à cultura local e ao
território da Lapa -, está capitalizando o trabalho imaterial e a produção
flexível realizados por alguns profissionais e pelas pequenas
128
empresas do setor (HERSCHMANN, 2007, p. 90).
O circuito do samba-choro encontrou na Lapa o cenário ideal para se afirmar local e
nacionalmente a partir de pequenas e médias gravadoras que sobrevivem da intensa produção
musical alternativa. Assim, conta a favor das indies a possibilidade de “trabalhar o artista” na
escala local, através da música ao vivo e do contato direto com o público. Novos artistas,
grupos de samba e cantores que vivem o cotidiano da Lapa afirmam que se uma crise na
música, esta refere-se exclusivamente a uma aguda retração das vendas de CD e DVD, que
numerosos outros produtos foram criados no mesmo período e exibem sua potência nas noites
do lugar.
A valorização das apresentações ao vivo constitui um indício do dinamismo setor
fonográfico, sendo a Lapa o cenário ideal para a verificação de que a música está mais viva do
que nunca. A oferta musical, especialmente no verão, evidencia o fato de que o campo
fonográfico não se restringe ao formato do CD. Outros formatos surgem através da iniciativa de
novos artistas.
O rico universo dos pequenos selos e gravadoras indies evidencia as numerosas
formas de associação e colaboração entre artistas, produtoras e gravadoras que compõem este
universo alternativo. A Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), criada em São
Paulo em 2002, representa cerca de 90 associados, entre selos, gravadoras e distribuidoras de
todo o Brasil. A proposta da entidade é identificar e promover a produção musical independente,
representar seus anseios e demandas no país e no exterior e capacitar profissionais para o
mercado fonográfico
117
.
Enquanto as grandes gravadoras, que atuam no país, privilegiam a importação de
artistas lançados por suas matrizes, visando a redução de custos, as indies investem em nomes
nacionais, que as vendas de CDs de repertório brasileiro totalizam 77% do mercado nacional
(HERSCHMANN, 2007, p. 127) e as apostas locais têm trazido grandes retornos de público e
venda. Como exemplo, citamos o grupo de samba Casuarina, consagrado a partir das
apresentações semanais em bares como o Severyna em Laranjeiras e o Bar Semente da Lapa,
mesmo lugar que consagrou Teresa Cristina. Este grupo de samba de jovens da zona sul
carioca foi criado em 2001 e, desde então, lançou dois discos pela Biscoito Fino, o primeiro CD,
Casuarina (2006) é uma seleção de sambas, em sua maioria pouco conhecidos, que faziam
parte do seu repertório dos shows.
As temporadas de verão do grupo na Fundição Progresso atraem especialmente
jovens universitários e as vendas de CDs surpreende até mesmo à gravadora.
117
http://www.abmi.com.br/
129
Figura 13: Novos grupos de Samba animam a Lapa - Casuarina
118
Mas este grupo precisou de algum tempo para ser respeitado por sambistas mais
tradicionais. Muitos ainda dizem que pertencem a “esta turma da Lapa que faz samba pra Zona
Sul”, como se este samba “da Lapa” estivesse referenciado às camadas médias
intelectualizadas. O grupo, formado por Daniel Montes, Gabriel Azevedo, João Cavalcanti, João
Fernando e Rafael Freire, tem quase sete anos de existência e gravou dois discos: o primeiro
CD tem o nome do grupo e o segundo, Certidão (2007), é um disco autoral, que dez das
quatorze faixa são próprias dos integrantes. Certidão, dos compositores João Fernando e João
Cavalcanti, é a faixa que nome ao álbum e que introduz o disco, e como explica João
Cavalcanti, “não é um samba de cartório, é de rua”.
Certidão é um grito. De quem vem sendo posto em cheque por fazer
samba. Logo o samba, sempre tão popular e acessível, agora tinha uma
cartilha determinando quem o podia ouvir e fazer. Certidão é a resposta
dos músicos-não-sambistas-que-fazem-samba-ainda-assim.
Quando João Fernando me mostrou a melodia, vi na hora que ela se
prestava, como uma luva, a esse propósito de gritar que não pedimos
endosso, não pedimos para ser sambistas, apenas ouvimos sambas,
fazemos sambas e vivemos do samba. Um pouco por vocação, um
pouco por contingência, muito porque ninguém faz samba por preferir
119
.
118
Fonte: O Globo 09/09/2006 Foto: Marcos Ramos.
119
http://www.casuarina.com.br
130
A gravadora Biscoito Fino consagrou-se, justamente, com os artistas que apóia.
Quase cinco anos depois de lançar o primeiro CD, ultrapassou os cento e cinqüenta
lançamentos, editando músicas de antigos e novos compositores, e, gravando e distribuindo
CDs, DVDs e coleções exclusivas ou em parceria com outros selos
120
. A Biscoito Fino é uma
gravadora carioca, presidida pela empresária Kati Almeida Braga e pela cantora Olívia Hime.
Entre os artistas renomados que integram o casting, destaca-se Chico Buarque, que,
contratado desde 1986 pela multinacional BMG, lançou o CD Carioca (2006) pela indie.
Segundo Herschmann,
A gravadora Biscoito Fino vem crescendo nos últimos anos e se
consolidando como uma empresa do ramo fonográfico de porte médio
no Brasil porque vem executando uma estratégia bem sucedida em
que a companhia vem priorizando o investimento em músicas nacionais
e que, em sua maioria goza de um status quase canônico junto à crítica
especializada. (...) Certamente é uma empresa que não consegue
competir com as majors no terreno das estratégias corporativas
massivas e dificilmente inovará no plano tecnológico, contudo tem sido
exitosa junto a um segmento A e B que aprecia MPB e a chamada
música de raiz (HERSCHMANN, 2007, p. 94)
O nome Biscoito Fino é uma referência à qualidade do produto vendido. Tal como o
site da gravadora informa
Desde que o escritor Oswald de Andrade criou a expressão ‘biscoito
fino’, ela virou sinônimo de algo selecionado, de qualidade. Como
resposta aos comentários de que não era entendido pelo homem de rua,
vociferou Oswald, ‘a massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico’
- profecia relembrada, 60 anos depois, por outro poeta e escritor,
Geraldinho Carneiro, que ao saber que as amigas Kati e Olivia
pretendiam criar uma gravadora comprometida com o supra-sumo da
música brasileira, exclamou: ‘Mas o que vocês vão fazer é biscoito fino!’.
E o batismo estava feito.
Ainda com relação à qualidade que as indies buscam oferecer frente ao produto
pasteurizado das majors, Maurício Carrilho, músico e proprietário da indie Acari Records (apud
HERSCHMANN, 2007, p. 103) diz que “há duas crises hoje. A crise de venda de disco, que as
grandes gravadoras enfrentam, com a pirataria, e a crise da qualidade do produto que é
vendido por elas”. Carrilho ainda ressalta que, “diferente da maioria das indies que estão
comprometidas com as culturas locais e a experimentação, as majors que sofrem mais
diretamente com a pirataria – não estão preocupadas com a qualidade”.
120
Quelé (uma parceria entre BF e Acari Records), Jobim Biscoito Fino (que em 2004 lançou o
inédito CD Antonio Carlos Jobim em Minas ao vivo Piano e Voz), Biscoitinho (o selo de música
infantil da Biscoito Fino) e o Quitanda (parceria de Maria Bethânia com Kati Almeida Braga,
responsável por lançamentos como Brasileirinho, de Bethânia).
131
Por estarem menos comprometidas com a quantidade, as indies investem na
qualidade técnica ou artística, procurando destacar o que as distinguiria das majors. No
mercado fonográfico dez anos, a indie Dubas “trata cada disco, independente de seu estilo,
como uma obra de arte”; mas, a distribuição é feita em associação com a Universal Music.
Através do catálogo da Dubas é possível conhecer novos artistas, como o Fino Coletivo e a
Orquestra Popular Céu na Terra.
Figura 14: CDs da indie Dubas: Orquestra Popular Céu na Terra - Bonde Folia (2007) e Fino Coletivo (2007)
121
De acordo com o site da gravadora, o que distinguiria a Dubas é o cuidado em
“cada aspecto da produção fonográfica, da seleção do repertório ao meticuloso tratamento do
som; da pesquisa que torna disponível o máximo de informações sobre cada artista e título, ao
cuidado no planejamento gráfico de cada CD”
122
.
A gravadora DeckDisc iniciou suas atividades em abril de 1998, com a distribuição
de sua produção pela Universal Music. Mas, em novembro de 2001, tornou sua produção
“100% independente”, ao inaugurar sua própria distribuidora, com sede no Rio de Janeiro. Entre
os artistas e bandas lançados pela DeckDisc estão Pitty - cujas vendas superam a marca de
400 mil cópias -, e bandas como Nação Zumbi, Cachorro Grande, Dead Fish, Matanza, Ratos
de Porão e Ultraje a Rigor. A gravadora lançou grupos de pagode hoje recordistas em vendas
como Sorriso Maroto, Swing & Simpatia e o Grupo Revelação, que, em 2002, foi o responsável
pelo segundo CD mais vendido no ano (690 mil cópias). A DeckDisk é uma pequena gravadora
que tem contrato com alguns artistas importantes. Em 2003, detinha 1,78% do mercado; em
2004, 2,66% e, em 2005, 3,28%. Este movimento revela a potência dos pequenos selos e
121
A imagem do ônibus incendiado utilizada na capa do CD da banda Fino Coletivo é uma
reprodução da obra do artista plástico Guga Ferraz, morador de Santa Teresa que faz
intervenções urbanas enfocando a violência e sua banalização. http://www.dubas.com.br
122
http://www.dubas.com.br/
132
gravadoras independentes. As indies também editam músicas e, de acordo com informações
obtidas no site da gravadora DeckDisk, a Editora Musical Deck conta com cerca de 4 mil
músicas editadas e mais de 2 mil gravadas. Entre seus autores, encontram-se nomes com
grande capacidade de arrecadação de direitos autorais, como Tato (do grupo de “forró
universitário” Falamansa), Pitty, Teresa Cristina, Pedro Miranda, integrantes do Grupo
Revelação, do Sorriso Maroto e as bandas de pop-rock Dead Fish, Gram, Cachorro Grande e
Ludov. Em 2007, a editora da indie adquiriu mais de 3 mil copyrights da Abril Publishing, ligada
ao Grupo Abril de Comunicação.
Em busca da promoção de artistas pouco requisitados pelo mainstream, a
Distribuidora Independente surgiu no ambiente da música on line para “colaborar com a cena
independente para que se torne cada vez maior, mais variada e democrática”
123
. Apoiada na
estrutura da gravadora Trama, a Distribuidora Independente foi formada pela associação de
artistas ou selos que ficam responsáveis pelo conteúdo musical, projeto gráfico, fabricação e
divulgação do álbum - enquanto à distribuidora cabe a colocação dos produtos no mercado, o
pagamento de royalties, a garantia de crédito e a exploração internacional dos álbuns. Por outro
lado, o site da Trama, criado em 2004, surgiu para ser uma gravadora virtual e uma ferramenta
destinada exclusivamente à cena independente. Possibilita a divulgação gratuita de músicas, da
história dos artistas/bandas e shows e a troca de informações
124
. O site, que reúne mais de 26
mil artistas e 67 mil músicas, foi mencionado, numa reportagem do The New York Times, ao
entrar numa lista dos 11 sites internacionais que distribuem legalmente MP3 pela internet.
O bom aproveitamento dos canais de distribuição e comercialização vinculados à
Internet é determinante para o sucesso das indies. A presença nos canais interativos da rede
mundial - como em portais e sites ou no orkut - consolida-se como uma indispensável estratégia
para a divulgação de obras, para a ampliação dos canais de comunicação entre artista/banda e
público. Aliado ao bom aproveitamento das oportunidades de comunicação vinculadas à
Internet, as indies articulam-se ao circuito de livrarias e lojas como a Livraria da Travessa, Fnac
e a Modern Sound, para distribuição e comercialização de seus produtos. As empresas deste
circuito oferecem um serviço mais especializado, com produtos de qualidade e poquet-shows
que divulgam os lançamentos que reforçam o perfil desejado para sua própria clientela.
Outra vantagem das indies é que enquanto as majors divulgam os seus produtos
através principais jornais do país, do rádio e da tv, as indies contam uma mídia espontânea.
Proprietários de indies afirmam que a imprensa escrita é uma grande aliada da produção
123
http://www.dind.com.br/home/index.jsp
124
http://www.tramavirtual.com.br,
133
independente, principalmente porque existe uma identificação espontânea entre jornalistas e
outros formadores de opinião com relação aos artistas que se consagram neste mercado local e
alternativo da música (HERSCHMANN, 2007, p. 78).
2.4. EM BUSCA DE UMA OUTRA RACIONALIDADE NO FAZER MUSICAL
Artistas e bandas “independentes” criam caminhos alternativos para sua afirmação
no campo fonográfico. Muitos dizem que ser independente é agir de forma livre, e que, portanto,
fazer música independente é buscar caminhos alternativos às determinações das
transnacionais que monopolizam o setor fonográfico. No entanto, a noção de ‘independência’
precisa ser melhor refletida, na medida em que os próprios ‘independentes’ consideram-se um
tipo de indústria fonográfica com capacidade de criar rotas paralelas ou alternativas ao
mainstream musical. O acionamento destas rotas depende da constante profissionalização da
cadeia produtiva ‘independente’ - da gravação à distribuição.
Enquanto recurso operacional da reflexão sobre as racionalidades alternativas, a
música permite o reconhecimento de um outro fazer político, que se manifesta nos modos
alternativos de difusão de uma forma de pensar e agir também alternativa. A ação insurgente no
campo da música emerge nas vozes que rebelam-se contra a lógica que determina quem
estará no topo das paradas de sucesso. Essas vozes propagam outras falas que projetam a
vida em sociedade a partir da coletividade, do associativismo e da cooperação horizontal. As
lutas pela democratização dos meios de produzir e difundir música revelam a importância da
visibilidade na cena urbana para a conquista coletiva de direitos.
Se, de um lado, temos o pensamento hegemônico, calcado em orientações
baseadas em valores ligados à competição, ao consumismo e ao individualismo, de outro,
temos a força política da música que propõe alternativas que se contrapõem à lógica destrutiva
que é inerente à globalização da economia
125
. Essa força manifesta-se através do pensar/agir
coletivo, revelando que os lugares respondem ao Mundo segundo diversas racionalidades. E
esta resposta “do lugar” às imposições “do mundo” pode ser reconhecida na ação do sujeito
que contesta e se indigna.
Lobão, cantor, artista e agitador cultural, enfrentou a gravadora Universal Music e
toda a indústria do disco ao denunciar a ausência de numeração nas cópias dos CDs e a
125
Nesta Tese, a hegemonia corresponde ao controle do projeto societário mais amplo,
enquanto a dominação corresponde ao controle das relações sociais, aos modos de agir
relacionados às formas de exploração e de opressão.
134
impossibilidade do artista controlar a comercialização de sua obra. Para Lobão, a margem de
lucro das gravadoras sempre foi abusiva frente à remuneração do artista. Por isso, lutou pelos
direitos dos músicos, tornando-se sinônimo de confronto e de polêmica. A aprovação do decreto
que tornou obrigatória a numeração dos discos foi resultado de uma longa luta de alguns
poucos artistas, que se indispuseram com as grandes gravadoras
126
. O recolhimento dos
direitos de execução em rádios e TVs também fez parte das reivindicações, que tornaram
obrigatório o uso do padrão de identificação ISRC (da sigla em inglês International Security
Recording Code). Trata-se de um código usado pela indústria fonográfica que permite o
rastreamento de um CD no momento em que é reproduzido em rádios, na TV ou pela Internet,
em qualquer lugar do mundo.
A assessoria de imprensa de Lobão descreve, no release de seu último disco, a
trajetória do cantor e sua relação com o mercado da música “vivenciou a decadência sem
elegância do pop rock nacional dos 90” e (...) “às vésperas dos anos 00 se insurgiu contra a
indústria e abriu seu bocão pra reclamar”. Mas Lobão, além de atuar de forma crítica no setor
fonográfico, é fundador e diretor artístico da Revista OutraCoisa, um projeto que busca romper
barreiras impostas pela indústria do disco, criando canais de distribuição que ampliam a difusão
de novos CDs
127
. A proposta da Revista OutraCoisa de lançar CDs de novos artistas em bancas
de jornais tem como objetivo central “repensar, reinventar, reorganizar” a produção fonográfica
para se ter a liberdade de seduzir, apavorar, provocar, perceber, criar muitos problemas e,
quem sabe, agenciar algumas soluções”
128
. Para Lobão, a revista é “um projeto brido de
cultura independente e guerrilha poética e uma aposta em novas possibilidades de veiculação
da expressão e de arte em geral”.
Distribuída em bancas e livrarias de todo o país, a revista Outracoisa - inicialmente
vendida a R$11,90/64 páginas e com tiragem de 20 mil exemplares - foi lançada em
126
O Decreto 4.533, publicado no Diário Oficial da União em dezembro de 2002,
regulamentou o artigo 113 da Lei 9.610 - abrangendo todo o mercado fonográfico nacional e
tratando de produções apenas sonoras (CDs) e/ou com imagens (DVDs e CD-ROMs). Os
discos produzidos a partir de 22 de abril teriam que possuir um código de duas letras
designando o número do lote a que pertence e a tiragem do produto. Essa numeração dupla
deve vir impressa na face do próprio CD ou DVD e na "lombada" exterior da embalagem (junto
com as tradicionais informações de artista, título e gravadora). Numeração de CDs e DVDs é
realidade: A luta de artistas como Lobão e Beth Carvalho virou lei na semana passada; é o
começo de uma revolução no mercado fonográfico Marco Antonio Barbosa 29/04/2003.
http://cliquemusic.uol.com.br/br/Acontecendo/Acontecendo.asp?Nu_Materia=3978 Último
acesso em 23/12/2007.
127
Site da Revista Outra Coisa http://www2.uol.com.br/outracoisa/oc2_editorial.htm
128
idem
135
associação com a Editora Net Records, com uma periodicidade bimestral e sempre encartada
com um CD inédito
129
.
Figura 15: Nova estratégia de lançamento de CDs - encartados na Revista OutraCoisa
Tal como Lobão escreveu no editorial do primeiro número da Revista:
Uma revista? Um CD? Um projeto híbrido de cultura independente e
guerrilha poética? Uma aposta em novas possibilidades de veiculação
da expressão e de arte em geral? Sim. Tudo isso e muito mais paira por
nossas cabeças, nossos corações e nossos sonhos. (...) A gente quer
transitar para além desse Brasil oficial, rançoso, criador de
impossibilidades para vender facilidades. (...) A gente quer trazer para
nós a possibilidade real de elaborar uma nova forma de se fazer uma
cultura brasileira inventada e vivida por nós, para o Brasil e para o
mundo, e assim se enxergar, se produzir, se pertencer, reconhecer e ser
feliz. (...) essa tal de Outracoisa é uma idéia em aberto, um espaço
aberto, um início, uma brecha, um sinal, uma proposta, um convite, uma
esperança, uma ameaça de vida (LOBÃO, 2003)
130
.
A Revista, que para Lobão teria “fôlego inicial de um ano”, chegou ao seu quinto ano
e à 22ª edição. Mesmo ainda atuando como seu diretor artístico, Lobão assinou contrato com a
gravadora Sony & BMG em 2007 e após um longo período de crítica a artistas que optavam
pelo formato acústico da MTV e por esquemas promocionais das gravadoras multinacionais,
aceitou a gravação ao vivo do seu show em DVD e CD para a série Acústico MTV,
comprovando a hipótese da pesquisa de que a crítica ao mercado fonográfico não elimina nem
contradições e nem paradoxos vividos pelos sujeitos do campo da música.
De acordo com a resenha do disco lançado à beira dos seus 50 anos, Lobão
interrompeu sua atuação crítica porque “recebeu um tratamento que julga digno de seu
merecimento”. A trajetória de Lobão exemplifica os encontros, confrontos e articulações entre
“artistas independentes” e grandes gravadoras, ajudando-nos a demonstrar que a indústria da
129
Através da Revista OutraCoisa foram lançados os CDs de BNegão & Seletores de
Freqüência, Mombojó, Cachorro Grande e outros artistas que se destacaram na cena musical
da presente década.
130
www.revistaoutracoisa.com.br
136
música passa, atualmente, por um momento de intensas transformações, que exigem de todos
os agentes do setor fonográfico, flexibilidade e sagacidade.
Conforme antes afirmado seguidas vezes, o interesse da pesquisa é a ação que
evidencia a existência de múltiplas escolhas em contextos aparentemente submetidos à
uniformidade e à objetividade. Para Sartre, a realidade não é composta somente pela
dominação e seus instrumentos e mecanismos. Os sujeitos evidenciam a existência de uma
margem de liberdade nas diferentes formas de lidar com a dominação e seus determinantes.
Para Bourdieu (2004), em todo campo social, entre pessoas que ocupam posições
radicalmente opostas, observa-se que um acordo oculto e tácito a respeito das coisas que
estão efetivamente em jogo. Quando Lobão afirma que artistas no topo da hierarquia do campo
fonográfico como Caetano Veloso e Marisa Monte precisam ser mais solidários com a
classe e entrar na luta, provoca os que se beneficiam com as regras do jogo, tal como hoje elas
se encontram. Mas quando o revolucionário Lobão retorna ao mainstream, suas palavras
perdem força, indicando os limites do projeto que antes ajudava a difundir.
Por outro lado, podemos compreender que a visibilidade precisa ser alcançada no
mercado fonográfico. É neste mercado que pode ser acumulado o capital simbólico necessário
à transformação do próprio campo da música. Para Bourdieu (1996, p.140), a revolução em um
campo depende da concordância com o que é tacitamente exigido por esse campo. Segundo o
autor, o capital do artista é de natureza simbólica. No caso da música, ser o artista mais
vendido não significa, automaticamente, mais prestígio e poder. Inversamente, um artista pouco
reconhecido pelos critérios do mercado pode estar muito bem posicionado no interior do campo,
por sua produção ser considerada de qualidade, inédita, criativa ou revolucionária. Talvez seja
por deter essa posição que Lobão tornou-se uma aposta interessante para grandes
corporações da indústria fonográfica. Agora, muitos questionam se as reivindicações do artista
eram realmente “revolucionárias”.
De qualquer modo, a pluralidade de formas da produção musical citada neste
capítulo evidencia que uma inconformidade frente à dominação, pois existem gestos, falas e
atitudes marcados pela liberdade, pela espontaneidade e pela criatividade. Por outro lado,
sabemos que o campo musical exige o alcance de visibilidade, fato que está fortemente
associado à elaboração de um produto e sua comercialização apoiada em publicidade. A
visibilidade no campo artístico-cultural mantém fortes relações com o novo ambiente
comunicacional, que alimenta a economia e evidencia o avanço técnico-científico. Este avanço
tem permitido que a circulação e a promoção ganhem centralidade no circuito produtivo.
A importância da alta visibilidade é destacada por Herschmann (2005, 2007) como
137
condução estratégica do êxito em intervenções ou projetos sóciopolíticos e culturais. Graças à
moderna tecnologia de comunicação, a própria visibilidade cresceu exponencialmente. À
medida que aumenta a capacidade de propagação de imagens, aumenta também,
significativamente, a importância da visibilidade da ação que busca se opor à lógica dominante
(HERSCHMANN, 2005, p. 158). Para este autor, há um grande potencial de luta para os grupos
minoritários na esfera midiática, desde que saibam se espetacularizar, operar com as
linguagens e dominar a engenharia midiática, o que significa que devem saber explorar os
recursos midiáticos, especialmente os mais interativos
131
. Isso acontece com alguns agentes do
campo fonográfico, como veremos adiante, a partir da ação musical coletiva e das formas de
colaboração e associação que a internet ajuda a consolidar.
Para Herschmann (2005), a conquista de espaços de visibilidade - em canais de
diversão, circulação e comunicação é especialmente relevante para os grupos sociais
minoritários e marginalizados, que o discurso midiático dominante costuma apontar como
ameaças ao corpo social. No caso do funk, por exemplo, é possível notar que quando seus
agentes criam seus próprios canais de difusão e circulação - ainda que subterrâneos, paralelos
ou informais publicizam a seletividade social conduzida pelos grandes veículos de
comunicação. Fernanda Abreu relatou, em entrevista para a autora, que o que determina a
ausência do funk nas rádios é sua falta de aceitação por parte de grande parcela da sociedade:
“O funk teve momentos em que quase aconteceu, mas depois sempre voltava pro gueto”. Para
a cantora, acontecer é, “principalmente, ser aceito pela sociedade”.
Historicamente, as manifestações culturais vindas da favela e da periferia são
desprezadas ou, até mesmo, criminalizadas. O que aconteceu recentemente (e até hoje) com o
funk, aconteceu com o samba no passado. Herschmann (2005b), analisando artigos sobre este
gênero na mídia impressa, atestou que: a) o funk praticamente inexiste no cenário midiático
antes de 1992; b) entre 1992 e 1996, é possível identificar um duplo processo b.1) por um lado,
um processo de criminalização dividido em duas etapas (o primeiro ao longo do verão de
1992/1993 e outro que se inicia no final de 1994 e se estende por 1995); b.2) por outro, um
processo de afirmação e reconhecimento do funk como importante expressão cultural e como
um significativo segmento de mercado.
Herschmann (2005b) sugere entre outras hipóteses e sugestões, que é possível
identificar um marco da projeção e da criminalização do funk no Rio de Janeiro no período em
131
Existem numerosas ações sociais que utilizam mídias interativas para ampliar sua projeção.
Para mais informações, Herschmann sugere Pierre Lévy (in Cibercultura. São Paulo, Ed. 34,
1999) e Henrique Antoun (“Comunidades virtuais, ativismo e combate pela informação” In.
Lugar comum. Rio de Janeiro, CNPq/NEPCOM-ECO-UFRJ, n 15-16,2002).
138
que ocorreram os arrastões nas areias de Copacabana, Ipanema e Leblon, retratadas como
arenas onde eram resolvidas disputas entre galeras
132
. Com uma argumentação próxima, Luna
afirma que a figura do funkeiro ganhou destaque na dia no fim de 1992, com a onda de
arrastões nas praias da Zona Sul. Neste momento, a mídia veiculou um discurso alarmista, que
atribuía aos freqüentadores de bailes a responsabilidade pelos conflitos nas praias
133
. Alguns
bailes começaram a ficar mais violentos e a serem palcos de brigas de galeras. A pista de
dança era dividida e quem ultrapassasse as fronteiras, era agredido pela outra galera. Violência
e segurança assumiram o primeiro plano no debate público sobre o funk e, algum tempo
depois, a pressão da polícia e da imprensa e, a criação de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, operante entre 1999 e 2000,
fizeram com que diminuíssem as notícias relativas à violência em bailes funk
134
.
Buscando renovar a imagem deteriorada do funk, as músicas do gênero foram se
tornando mais dançantes e as letras mais leves. Esta nova fase é descrita por alguns como
new funk, ritmo que alcançou sucesso em todo o país no fim do século. Neste período de maior
projeção do funk, a indústria fonográfica lucrou com o surgimento da vertente mais melódica e
lenta, denominada funk melody, especialmente através da dupla Claudinho e Bochecha.
Segundo Abramo (2001), foi no ano 2000 que “o fenômeno explodiu”, numa bem construída
operação de marketing da gravadora Sony
135
. Para esta autora, a grande descoberta da
indústria fonográfica esteve relacionada à venda do funk carioca como alternativa ao axémusic,
um tanto desgastado pela superexposição
136
. Esse funk carioca - que tornou-se o ritmo do
132
Os grupos de jovens da mesma “comunidade” ou bairro que vão juntos ao baile são
chamados de "bondes" e "galeras" do funk e, neste período dos anos 1990 os bailes de briga
ocorriam com freqüência.
133
Marlucio Luna. O mundo funk é maior do que se pensa. In Admirável mundo funk / chave
funk rap http://www.multirio.rj.gov.br/seculo21/texto. Último acesso em 15/09/2006.
134
Após um período de criminalização do funk, relacionada à associação deste gênero musical
com os arrastões, em 1995, a indústria fonográfica soube aproveitar o sucesso do funk junto à
juventude de diferentes segmentos sociais através do lançamento da coletânea Demorou, mas
abalou Funk total, da rádio RPC FM. Nesta coletânea, a Sony Music lançou as duplas de
funkeiros Junior & Leonardo, com o rap Endereço dos bailes”; Willian & Duda, com Rap do
Borel” e MCs Marquinhos & Dolores, com “Rap da diferença”. Pouco depois, Cidinho & Doca
lançaram seu próprio LP “Eu quero é ser feliz”, como fez a dupla da Rocinha, Junior &
Leonardo, com o LP “De baile em baile”.
135
http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=1602 último acesso em
22/03/2008. Revista Teoria e Debate / nº 48 - junho/julho/agosto de 2001
136
Em comum com o axé baiano, o funk carioca poderia oferecer uma música com letras de
duplo sentido e inúmeras alusões mais e menos explícitas à sexualidade, uma batida fácil e
coreografias próprias desenvolvidas nos bailes, prontas para serem estilizadas em
apresentações na televisão. A figura da "popozuda", sinônimo de garota gostosa, substituiria as
loiras e morenas da axé music, enfraquecidas pelo tempo em que estiveram “no topo das
paradas”.
139
verão 2001, chegando aos bailes “mauricinhos” de São Paulo e ao carnaval baiano, principal
vitrine de ritmos pop-popularescos - não tratava da realidade da favela. Era um funk romântico,
pasteurizado e, em menor escala, um funk erótico.
Fernanda Abreu também relata que quis registrar as várias vertentes que compõem
o funk carioca em seu último CD, e, para tanto, incluiu o funk comprometido com as questões
sociais da favela, o funk melody “mais pop” (leia-se comercial) e também o funk sensual que,
para a cantora, aproxima-se da música urbana de épocas passadas, como as marchinhas de
carnaval, que, como o funk, seriam “a cara do Rio”.
(...) Tinha o funk raiz, tinha o funk sensual e tinha o funk melody e
depois a marchinhas de carnaval que eu achava que fazia um link com
essa coisa e duplo sentido mesmo, que o forró também tem, mas que
com o funk não pode! [ironiza] (...) E pra dar esse tom carioca, porque as
marchinhas de carnaval falavam muito do Rio. (...) é música urbana de
carnaval da época (Fernanda Abreu, compositora e cantora, em
entrevista à autora, em 5 de dezembro de 2007).
Os meios de comunicação de massa desenvolvem grande parte dos processos de
estigmatização ou mesmo criminalização das culturas minoritárias. A barreira que a música
BlocoFunk encontrou no acesso às rádios, para a cantora, é um sinal de que o gênero, ainda
hoje, sofre com o preconceito e não circula livremente.
Bloco Funk que foi a música que eu lancei do [cd] MTV ao vivo e
nenhuma rádio quis tocar, porque é proibido tocar funk em rádio normal
e toca funk em rádio de funk que é o programa do Marlboro,
programa do Rômulo Costa (...) Eu dizia, Jovem Pan, você não vai tocar
o “Blocofunk”? Mas eu sou branca, sou eu Fernanda Abreu, tem guitarra
não tem batida e os MC falando sem plural. (...) Rádio cidade... MPB
[FM]... (...) E isso independente de eu estar em qualquer multinacional,
de ser Fernanda Abreu, de tocar sempre nessas rádios. (...) Mas funk
não! Baile da pesada” tocou em todas as rádios do Brasil, com a
mesma batida e fazendo referência a esse universo (Fernanda Abreu,
compositora e cantora, em entrevista a autora em 5 de dezembro de
2007).
A cantora acrescenta ter telefonado pessoalmente para as rádios e, mesmo assim,
não ter conseguido incluir a música “BlocoFunk na programação das rádios contatadas, por
esta ser uma colagem de funks muito conhecidos, que ressalta o modo de falar dos funkeiros
(muita vezes gramaticalmente errado, sem concordância verbal e sem plural) e, principalmente,
ressalta demandas bastante vinculadas à sua experiência urbana. Muitas letras denunciam o
preconceito sofrido por funkeiros e indicam a atitude na moral esperada de um funkeiro sangue-
bom
137
. Tal como Essinger (2005) sintetiza
137
A cantora denuncia o fato desta música não ter recebido o mesmo tratamento que suas
outras músicas sempre receberam nas rádios. Ainda aproveita para deixar claro que faz
questão de dividir o direito sobre a música com os demais compositores. “Essa colagem em
140
Essa, de qualquer forma, é a língua do seu público, de quem são os
porta-vozes, a diversão do fim de semana e um exemplo o de que
uma forma a mais de se buscar dias melhores além de tentar a sorte no
futebol, no samba e na TV. Esse é o mundo funk carioca, onde o Rio de
Janeiro melhor conhece o Rio de Janeiro.
(...)
[Por ser representação simbólica da favela, o funk] foi olhado com rabo
de olho, registrado, louvado, perseguido, condenado, interpretado,
absolvido, condenado de novo, processado, defendido, criminalizado,
explorado, exaurido, esconjurado, amado, ridicularizado e até
escondido... só não conseguiu ser banido (ESSINGER, 2005).
Na letra de “Baile Funk música de Rodrigo Maranhão gravada por Fernanda Abreu
no referido CD/DVD ao vivo da MTV, questiona-se, de modo irônico, os critérios usados para
tentar acabar com essa festa:
Acabaram com o baile funk
Tinha muito preto e branco
Acabaram com o baile funk
Porque tinha muita festa
Acabaram com o baile funk
Tinha muito pobre
Acabaram com o baile funk
Porque isso aqui não presta
“cabaram” com o baile funk
Pois havia alegria
E alegria não se compra
Nem se ganha da titia
“cabaram” com o baile funk
Pois havia rebeldia
Na palavra do poeta
No barulho que se ouvia
"cabaram" com o baile funk
Porque a porrada comia
Antonio beijou Joana
e Pedro perdeu Maria
"cabaram" com o baile funk
Tamanha hipocrisia
Tá todo mundo fazendo
Do jeito que fazia
138
.
A estigmatização da favela e da periferia produz o ocultamento de estratégias
criativas, complexas e heterogêneas acionadas pelos moradores para enfrentar as dificuldades
termos de edição é o seguinte: ela é dividida igualmente por todo mundo, tanto que ela tem 17
trechos de música, mais eu, dezoito e é 100% dividido pelos 18 aí cada um pega 1/18... então é
uma colagem, um pot-pourri” (Fernanda Abreu, compositora e cantora, em entrevista a autora
em 5 de dezembro de 2007).
138
Fernanda Abreu. “Baile Funk”. Rodrigo Maranhão [Compositor]. In: - Fernanda Abreu MTV
Ao vivo. Rio de Janeiro. Universal Music, p.2006. 1CD/DVD. Faixa 2.
141
do dia-a-dia. A ação resistente e criativa nos espaços populares é evidenciada pelo funk e pelo
hip-hop, movimentos que rompem com o isolamento destes territórios da cidade e expõem a
presença do Outro, legitimando seu direito de manifestar a sua visão de mundo
139
.
Para Silva e Barbosa (2005), teremos uma cidade que favoreça o encontro das
diferenças quando reconhecermos a existência de uma cidade e um cidadão, sem que se deixe
de valorizar a pluralidade das identidades, práticas e territórios. Isto significa dizer que é preciso
reconhecer, constantemente, a favela como parte da cidade (idem), reconhecimento que pode
ser iniciado a partir da aceitação das práticas e criações culturais vindas dos espaços
populares.
A dificuldade de compreender as relações existentes entre a produção musical
hegemônica e as criações alternativas que se dão à margem do mercado fonográfico são
evidentes quando focamos a complexa história do funk carioca. Para alguns autores que se
aprofundaram na questão, a dinâmica do mundo funk contraria, em vários pontos, as teses que
afirmam que a indústria cultural, produtora da homogeneização, controla e subordina a
heterogeneidade (VIANNA, 1988). Apesar do gênero ser bastante difundido, o consumo de
funk, no Rio de Janeiro, não pode, de maneira alguma, ser considerado uma imposição dos
meios de comunicação de massa. Pelo contrário. Segundo Vianna, “as emissoras de rádio e
televisão quase não dão espaço para a música funk”, como confirma a entrevista de Fernanda
Abreu. Ainda segundo o autor, “os jornais não anunciam os bailes que, apesar de tudo isso,
permanecem lotados” e o “desejo por funk parece algo interno à comunidade carioca que o
consome, sem depender da ajuda ou do incentivo de instituições externas”. Para Vianna (1988):
É preciso questionar as teorias que pensam a indústria cultural como
uma instituição absolutamente coerente que busca transmitir um
conjunto de valores pré-estabelecidos (os valores da “classe
dominante”) através de todos seus produtos. Como mostra o caso do
funk carioca, existem produtos bem diversos colocados no “mercado
cultural”, que podem ser consumidos de maneiras diferentes por grupos
sociais diferentes e que podem circular (até mesmo internacionalmente)
por caminhos pouco convencionais, independentes dos grandes meios
de comunicação de massa. (...) a tendência mais importante do
funcionamento da indústria cultural é justamente uma tentativa de se
adaptar à heterogeneidade de seus diversos públicos, segmentando-se
ao extremo para satisfazer gostos diferentes e para possibilitar trocas
culturais entre grupos bem determinados, sem precisar para isso lançar
mão de abstrações como “o gosto brasileiro” ou mesmo a preferência
carioca (VIANNA, 1988).
139
No livro Favela: alegria e dor, os autores Jailson Souza e Silva e Jorge Barbosa (2005)
apresentam uma leitura original da dinâmica do espaço favelado, em termos temporais e
espaciais, optando por tornar mais visível o cotidiano plural destes espaços populares.
142
Para Vianna (1988, p. 143), o funk carioca criou, efetivamente, um mercado paralelo
e alternativo.
O mundo funk é um mundo “paralelo”, que se aproveita dos espaços
deixados em branco pela indústria cultural (que não tem um projeto
coerente e monolítico de dominação, sabendo lidar também com o
heterogêneo), se tornando mais uma opção de agrupamento
metropolitano (VIANNA, 1988, p. 143).
Quando citamos os modos alternativos de fazer musica, incluímos o funk engajado
por sua sagacidade e capacidade de se fazer presente nas brechas deixadas pelos grandes
canais de comunicação e por sua capacidade de construir caminhos alternativos ainda que
subterrâneos ou informais para a sua produção, que fala em nome daqueles que o discurso
midiático costuma apresentar como ameaçadores e violentos.
É importante dizer, no entanto, que não há, necessariamente, por parte dos
funkeiros, uma intenção contra-hegemônica ou uma busca consciente por uma racionalidade
alternativa. Esta produção musical indica alternativas ao modo dominante de pensar porque é
uma ação espontânea. Seu potencial de insurgência reside na fala do compositor e, também,
na criação de canais próprios de difusão, capazes de propagar demandas populares que
confrontam a ordem dominante
140
.
Como todas as expressões musicais de que tratamos até aqui, o ‘mundo funk é
repleto de contradições e articulações, inclusive com a indústria fonográfica. Isto não impede
que haja interdições e proibições, mesmo que no momento atual a presença do funk seja bem
mais aceita do que em momentos anteriores. Os encontros e conflitos revelados pelo funk no
campo fonográfico demonstram a luta pelo direito de dar visibilidade a um mundo que nem
todos querem ver. Os sujeitos deste movimento já não são, atualmente, tão invisíveis. É através
da música que a favela, a periferia e o subúrbio falam e constroem outros sentidos para a vida
urbana.
Tal como Chico Buarque ressalta em sua música Subúrbio, a população destes bairros
periféricos lida com a estigmatização e a segregação sócio-espacial e produz músicas que se
propagam por toda a cidade. A visão do compositor sobre o subúrbio revela um olhar “externo”
em relação ao lugar, mas que não deixa de reconhecer os modos criativos com que esta
população revela a insatisfação com a ordem que produz fragmentação. Através da visão
poética do choro-canção, o compositor torna visível o esforço poético de falar de uma parte da
140
Decidimos não incluir na Tese as expressões de funk denominadas de ‘Proibidões’, uma vez
que estas músicas fazem apologia do tráfico de drogas e das armas. Apesar destas músicas
descreverem aspectos da vida na favela, consideramos que este tipo de crônica do cotidiano,
que enaltece a violência, não contribui para a aproximação social e, sim, para a estigmatização
territorial, já tão freqüentemente realizada pela grande mídia.
143
cidade que ‘não figura no mapa’, mas que desbanca a outra cidade que abusa do fato de ser
tão maravilhosa.
Lá não tem brisa
Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contra-senha, é cara a tapa
Fala, Penha
Fala, Irajá
Fala, Olaria
Fala, Acari, Vigário Geral
Fala, Piedade
Casas sem cor
Ruas de pó, Cidade
Que não se pinta
Que é sem vaidade
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Desbanca a outra
A tal que abusa
De ser tão maravilhosa
Lá não tem moças douradas
Expostas, andam nus
Pelas quebradas teus exus
Não tem turistas
Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus
E está de costas
Fala, Maré
Fala, Madureira
Fala, Pavuna
Fala, Inhaúma
Cordovil, Pilares
Espalha a tua voz
Nos arredores
Carrega a tua cruz
E os teus tambores
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
144
Fala no pé
Dá uma idéia
Naquela que te sombreia
Lá não tem claro-escuro
A luz é dura
A chapa é quente
Que futuro tem
Aquela gente toda
Perdido em ti
Eu ando em roda
É pau, é pedra
É fim de linha
É lenha, é fogo, é foda
Fala,Penha
Fala, Irajá
Fala, Encantado, Bangu
Fala, Realengo...
Fala, Maré
Fala, Madureira
Fala, Meriti, Nova Iguaçu
Fala, Paciência...
141
Para o poeta que vive na abastada zona sul carioca, o Rio que não está nas fotos das
revistas, que não recebe turistas, que não se pinta, que é sem vaidade, expressa, ao mesmo
tempo, a cidade que é capaz de se fazer ouvir através de sua produção musical. A ode anti-
lírica buarqueana indica que essa parte suburbana da cidade se faz ouvir através dos acordes
do choro-canção, mas também através de funk, forró, pagode, reggae. O compositor o
subúrbio “de fora”, mas, enxerga nele uma rica produção artístico-cultural e uma postura ativa
deste Outro, que se faz enxergar através de sua arte.
2.4.1 – A produção independente: caminhos alternativos do fazer musical
A música que nos interessa nesta Tese é aquela que propõe alternativas à
racionalidade dominante no campo da produção fonográfica. Através da música, podemos
reconhecer a ação do sujeito que anima a vida social e que evidencia outras formas de pensar
e agir, resistentes à naturalização dos interesses que organizam a vida urbana e que fazem do
lucro a única forma legítima de racionalidade (RIBEIRO, 2005). A produção musical
“independente” poucas vezes é lucrativa, mas envolve ganhos em amizade, cumplicidade,
141
Chico Buarque. “Subúrbio”. Chico Buarque [Compositor]. In: Carioca. Rio de Janeiro. Biscoito
Fino, 2006p. 1CD Faixa 2.
145
parceria e vínculos sociais que podem significar muito do ponto de vista da convivência humana
e da sobrevivência em contextos adversos.
“Fazer música independente das condições” é o objetivo daqueles que reconhecem
na ação coletiva o caminho a ser trilhado. Ocupando uma posição inferior na hierarquia do
mercado musical, fundamentalmente resistem aos obstáculos, porque gostam de fazer música.
Seja buscando novos modos de produzir música, seja acionando novos instrumentos e canais
que ampliem o acesso à música, os sujeitos que se destacaram durante a pesquisa foram
aqueles que agiram de maneira criativa e coletiva, assim amplificando a potência de suas
vozes. Sua música não encontra-se calcada na competição individualista ou na busca
desenfreada do lucro imediato.
Santos (2007) afirma que as infra-estruturas “regulam” comportamentos, pois
“escolhem”, “selecionam” aqueles que podem desenvolver determinadas ações. No caso da
música, ser apoiado por uma grande gravadora não garante elevados investimentos na
etapa da produção (pré-produção, ensaios remunerados em estúdios, custos cobertos nas
etapas de gravação, mixagem e pós-produção) como também garante oportunidades de
divulgação do produto (CD, DVD) após seu lançamento no mercado, através da associação da
gravadora com empresas de comunicação e seus serviços relacionados à comercialização.
Na produção de bens ligados à música diferenciam-se as temporalidades a que se
encontram submetidos os agentes que ocupam posições distintas no mercado fonográfico. Os
que não pertencem mainstream musical - e que por falta de um nome melhor denominaremos
“artistas independentes” experimentam a lenta produção de seus CDs, relacionada à falta de
recursos para a remuneração de músicos; aluguel de estúdio para ensaios e gravação, e, ainda,
para a mixagem, para a pré e a pós-produção, entre outras despesas.
Um “artista contratado” por uma grande gravadora pode concentrar-se na criação,
despreocupando-se da sua transformação em produto. o “artista independente”, precisa
envolver-se em cada etapa da produção, assumindo, muitas vezes o papel de instrumentista,
arranjador, produtor e diretor musical de seus shows, quando não assume a própria venda de
CDs após cada show. O fato do “artista contratado por uma grande gravadora” poder fazer
música sem ter que acumular tantos papéis acelera o processo de produção, ao passo que a
lentidão deste processo é sofrida, em suas diferentes conseqüências pela maior parte dos
“artistas independentes” que usualmente acumulam várias funções.
Por outro lado, o que aparentemente se configura como uma ação solitária do
“artista independente” acaba por revelar uma complexa rede de solidariedade e cooperação. O
acionamento da rede de amigos quando um “artista independente” pretende lançar um CD é
146
realmente indispensável. Freqüentemente este artista depende dos amigos que trabalham com
música. Na camaradagem um amigo faz um desconto ou não cobra pelo estúdio de ensaio.
Outro amigo responsabiliza-se pela criação da capa e encarte do CD, foto de divulgação na
imprensa, filipeta, flyer, panfleto que divulga o show. Os músicos da banda que acompanham o
artista também podem ser outros amigos que não cobram cachê, visando uma oportunidade
futura ou simplesmente pelo prazer de fazer música. Essa rede de amigos acionada no cenário
indie muitas vezes trabalha sem remuneração ou ganhando muito pouco nas etapas de ensaio,
gravação do CD e nos primeiros shows, quando o objetivo é “ganhar público”. Além da banda, o
“artista independente” precisa de uma mínima equipe técnica (produtor executivo, técnico de
som e roadie) para que o show possa acontecer. Muitas vezes, a rede de amigos ajuda também
a pensar as estratégias de divulgação do CD criação de sites, montagem de clipe de
divulgação, ampliação de redes de contatos que podem contribuir na realização de shows
através da citação do CD nas mídias impressa e eletrônica.
Como as oportunidades oferecidas pelas grandes gravadoras são cada vez mais
restritas, os obstáculos no acesso à grande indústria fonográfica são cada vez mais evidentes.
Também por esta razão, multiplicam-se as táticas usadas na disputa por oportunidades nos
canais de produção e difusão da música. O grupo de artistas -músicos, compositores, poetas,
cantores - reunido nesta Tese possui uma visão de mundo bastante próxima, mas que não
elimina diferenças e contradições que estão presentes na vida social. Em comum estes artistas
têm uma visão mais coletiva e solidária da vida. Esta visão também mostra os valores de uma
“classe média intelectualizada”, que deseja estar próxima das classes populares, colaborando
para a mediação de diversas formas de conflito existentes no campo da música, mas não
apenas nele. Alguns artistas pertencentes a este segmento social, apesar de não morarem em
favelas, falam em nome de seus habitantes, que são quase um terço da população da
cidade.
Através de artistas famosos posicionados como mediadores dos conflitos entre
grupos sociais distintos, a música aparece como canal de representação e de mediação,
envolvendo a transformação das demandas de grupos populares em demanda de todos que
vivem a cidade, já que o seu atendimento é imprescindível para a vida da coletividade. Esta fala
pode ser compreendida como liberdade possível, cuja conquista permite tratar de temas sérios
sem pedir, à diferença da ciência, para ser levada completamente a sério (BOURDIEU, 1996, p.
49).
Estes sujeitos aos quais estamos nos referindo como cronistas da vida urbana
ocupam posições diferenciadas na estrutura do campo musical e usam os canais que possuem
147
para difundir uma fala insurgente, que ora visibilidade a uma existência negligenciada e ora
promove novos vínculos e relações sociais que indicam a possibilidade da música ser um canal
de representação simbólica desta metrópole (veloz, violenta e excludente) que também pode
ser vivida como cidade, como lugar da negociação das diferenças, onde a aproximação social é
possível e necessária. Através destes sujeitos é possível reconhecer o caráter político da
música, através de letras ou sonoridades que retratam ou reinventam a vida social e, também,
através do confronto entre modos de produzir, fazer circular e ter acesso à criação musical.
Neste item, destacamos a produção musical que apresenta alternativas aos modos
de produzir vigentes na grande indústria fonográfica e comprometida com uma visão crítica da
realidade. Novos modos de produzir música evidenciam que o espaço banal é formado por
diversas temporalidades, permitindo a existência de estratégias inovadoras que evidenciam a
força dos fracos e sua capacidade de pensar-agir de modo mais coletivo e horizontal.
Freqüentemente, um modo alternativo de produzir, por ser pouco conhecido, gera
estranhamento entre os que trabalham exclusivamente para o lucro e, mais ainda, para o lucro
imediato. Durante a pesquisa, acompanhamos de perto o processo de lançamento do CD do
músico BNegão, o que permitiu o resgate das diferentes temporalidades que coexistem no
espaço banal. Este registro permitiu a comparação do caminho alternativo trilhado pelo artista
independente” com o trilhado por “artistas contratados” e com mais visibilidade no mercado
fonográfico.
Como “artista independente”, BNegão investe alguns anos na divulgação do seu
primeiro trabalho solo, o CD “Enxugando Gelo” (2003). BNegão gravou seu primeiro ‘disco-solo’
contando com o apoio de vários amigos, integrantes da banda Os Seletores de Freqüência,
“parceiros de longa data”, oriundos da cena alternativa carioca. O CD foi gravado de forma
independente e distribuído nacionalmente no encarte do primeiro número da revista
OutraCoisa”.
148
Figura 16: BNegão e Os Seletores de Freqüência, CD Enxugando Gelo (2003)
BNegão, numa atitude crítica ao capitalismo, disponibilizou suas músicas para
download completo e gratuito um mês após o lançamento do CD nas bancas e livrarias do
país
142
. Essa ação, que o artista define como “totalmente ideológica”, confronta o direito autoral,
tal como atualmente concebido. Ao permitir que sua música fosse acessada, ouvida e
apropriada de forma gratuita, BNegão criou a possibilidades de que a sua mensagem circulasse
de forma mais livre e libertária.
A opção por um modo “anti-capitalista” de difusão da música, sem nenhum controle,
fez com que a obra de BNegão chegasse a lugares que o músico não imaginava atingir de
forma tão rápida. Em decorrência de sua atitude, o músico fez cinco turnês do disco pela
Europa, levando seu show a países como Alemanha, Dinamarca, Espanha, Holanda e
Inglaterra. Ao fazer com que sua música não ficasse restrita aos que pudessem comprar o CD,
BNegão “abriu mão” de alguns ganhos vinculados aos direitos autorais, mas ganhou a
possibilidade de difundir a sua criação de forma mais livre e independente.
As temáticas tratadas por BNegão evidenciam uma certa proximidade com o
pensamento de Milton Santos. Esta proximidade permitiu sua inclusão na trilha sonora do filme
“Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá” de Silvio Tendler,
evidenciando a existência de um patamar reflexivo compartilhado pela música deste compositor
e a leitura do cineasta da obra deixada pelo geógrafo.
Na música O processo, BNegão fala da “ciência da persistência” e das
potencialidade do tempo lento por exemplo, daqueles que vivem fora da dinâmica competitiva
baseada na velocidade e no marketing. Este tempo lento pode, para o artista, superar a rapidez
devastadora do mundo atual. A letra questiona a velocidade da destruição diante da lenta e
142
www.bnegao.com.br
149
gradual construção de novas atitudes, reconhecendo o valor de uma postura crítica e reflexiva
numa época marcada pela busca incessante do lucro. De forma indireta, BNegão fala da
dificuldade de percorrer caminhos alternativos na música, mas também além dela. Indica que
de modo “lento, o novo pensamento vai dando sinais sutis de sua existência”. O rápido, nesta
letra, encontra-se associado à precariedade, à insegurança, à degradação ambiental e às
banalidades vendidas pela TV. O lento por outro lado, relaciona-se à valorização da educação,
da percepção espiritual, do aprendizado e à construção de atitudes ambientalmente
responsáveis, baseadas no respeito à coletividade.
O processo é lento...
Rápido se constrói uma casa precária
Lento se constrói uma casa segura
Rápido a tv te entope de banalidades
Lento uma leitura certeira te dá um levante [...]
Rápido se faz um aterro para cobrir o mar
Lento o mar retoma de vez o seu lugar
Rápido se derruba uma árvore secular
Lento desenvolve-se uma planta curativa
Rápido a violência tenta se justificar
Lento se percebe aonde tudo isso vai chegar
Rápido o mundo acelera sua degradação
Lento o novo pensamento vai dando sinais sutis de sua existência
Processo de justiça (lento)
Educação (lento)
Processo de informação (lento)
Percepção (lento)
Aprendizado (lento)
O processo é lento...
(...) Não tô dizendo que é fácil...
Tem que trabalhar, trabalhar duro,
feito um operário, só que sem horário...
O processo é lento[…]
143
Quanto à sonoridade, seria um equívoco reduzir o repertório do disco de BNegão ao
rap. “Enxugando Gelo” é ecumenicamente dominado pelo que o artista costuma chamar de
“LadoB da Black Music”: leia-se dub, hip-hop, jazz, funk 70, ragga, Miami bass e até samba,
podendo envolver, ainda, o hardcore e o grind-core. Com letras profundas e críticas, inscritas
num instrumental variado, o CD não é de fácil classificação, apontando para a dificuldade
encontrada na rotulação de músicas a partir de um único gênero. Em entrevista, BNegão
declarou que considera positiva a mescla de sonoridades, acrescentando que no Brasil esta
mescla ainda constitui-se num entrave no acesso a festivais, normalmente mais segmentados
por gêneros musicais.
143
BNegão & Os Seletores de Freqüência. “O processo”. BNegão [compositor] In: - Enxugando
Gelo. p. 2003, 1CD.
150
A rígida definição do gênero musical interessa aos que vendem música e não aos
que a criam. A indefinição do gênero musical, que para o artista representa liberdade, para a
indústria fonográfica é um entrave na divulgação de produtos. Enquanto recorrer a diversos
ritmos e gêneros musicais constitui-se numa experiência importante e vital para os
compositores, para os que se interessam pela música como bem comercializável a indefinição
sonora” cria obstáculos à padronização e à segmentação que orientam a configuração e a
disputa do mercado.
Artistas e selos independentes estão sujeitos aos entraves comerciais de um setor
corporativo multinacional, mas constroem uma identidade, ao mesmo tempo original e diversa,
que possibilita o uso de outros canais de comunicação para atingir metas comerciais mais
adequadas à nova produção musical
144
. Algumas experiências de produção parecem gerar um
sentido novo - criativo, inventivo e libertário – para o sujeito que questiona e rompe as regras do
circuito produtivo dominante.
BNegão, Lobão e outros poucos artistas falam sobre as restrições impostas pelas
majors, que dominam o mercado fonográfico, citando a questão do jabá como indispensável à
compreensão estas restrições. Para estes músicos, que são constantemente convocados para
debates e palestras sobre democracia no acesso à música, o jabá não é uma preocupação
apenas dos artistas, mas também de ouvintes submetidos às conseqüências negativas desta
operação de marketing. Prova disso é que o movimento anti-jabá no Brasil não é composto
apenas por músicos prejudicados por esta prática. Este movimento envolve milhares de
pessoas afastadas de um importante meio de comunicação como o rádio, em decorrência das
operações comerciais que são do exclusivo interesse das grandes gravadoras.
144
http://www.fmi2006.com.br/apresentacao.htm
151
Figura 17: músicos protestam e pedem fim do jabá
145
Recentemente, a mobilização social contra o jabá no Brasil ganhou apoio no poder
legislativo, através de Deputados Estaduais como Carlos Minc (ex-deputado do PT-RJ e atual
ministro do Meio Ambiente) e Gilberto Palmares (PT-RJ). No Congresso Nacional, o projeto de
lei 1048/2003, de autoria do Deputado Federal Fernando Ferro (PT-PE) torna crime a prática do
jabá, buscando impedir “as emissoras de rádio e televisão de receberem dinheiro para
privilegiar a execução de determinada música”
146
. O projeto de lei em tramitação na Câmara
Estadual, “Veda a repetição fraudulenta ou paga de músicas nos veículos de mídia concedidos,
visando a garantia do acesso democrático dos músicos, compositores e artistas aos serviços de
radiofusão, respeitando a diversidade cultural”. Este projeto pretende defender “igualmente o
direito do ouvinte, o telespectador, o cidadão” que, em virtude da sistemática prática do jabá, é
obrigado a “consumir um produto cultural veiculado não pela excelência do seu conteúdo, mas
unicamente pelo mérito do pagamento, fato que não é informado ao consumidor”
147
.
Outro problema mencionado neste projeto de lei é que a transação financeira
envolvida no jabá, por ser secreta na maioria das vezes, pode acarretar em sonegação fiscal”.
o texto da lei nacional prevê restrições às "verbas de divulgação", como é denominado o
145
Parlamentares e representantes da classe artística se reuniram no Palácio Tiradentes, para
discutir acréscimos ao projeto de lei 3323/06. Para Carlos Minc, "é preciso acabar com todos os
resquícios que colocam o dinheiro acima da criatividade. Esse não é um movimento legislativo,
mas cultural e político”, advertiu o parlamentar. http://www.alerj.rj.gov.br/escolha_legenda.asp?
codigo=17102 ou idem
146
http://www2.camara.gov.br/proposicoes
147
http://www.alerj.rj.gov.br/escolha_legenda.asp?codigo=17102 último acesso em 27/12/07
152
pagamento, com nota fiscal, das gravadoras às rádios com nota fiscal. Com nota fiscal, ou
sonegando impostos, o fato é que o jabá é uma prática recorrente. Por este motivo, o Jabasta,
o Movimento pelo Fim do Jabá, formado por artistas independentes no início de 2006, focaliza
sua atuação na denúncia e na busca de adesões de ouvintes insatisfeitos que, através da
Internet, reforçam a luta contra o que o relator do projeto de lei classifica como “consumo de
uma operação financeira, e não uma opção de programação musical”
148
.
Em países como os EUA, a repressão a esta prática, conhecida como "payola”,
começa a afetar as gigantes do mercado fonográfico: a Universal Music foi condenada a pagar
multa de U$12 milhões por ter pagado a veiculação de músicas de seus artistas em emissoras
de rádio. A Sony-BMG foi flagrada pelo Procurador Geral de Nova Iorque, Eliot Spitzer, em atos
explícitos de "pay for play" e multada em U$10 milhões. Spitzer descobriu que gravadoras
subsidiárias da Sony presenteavam radialistas com laptops, iPods e viagens, visando o
aumento da execução de músicas de artistas como Jennifer Lopez e Celine Dion. A Warner
Music internacional teve que pagar U$5 milhões e garantiu formalmente que não repetiria
pagamentos que visassem a difusão de seus artistas, além de ter assumido publicamente que
recorria a esta prática para interferir na programação das rádios. Atualmente, a lei norte-
americana até permite o payola desde que a rádio explicite aos ouvintes que a música está
sendo tocada, naquele momento, por patrocínio da gravadora
149
.
Com estas informações, pretendemos refletir tanto os processos que geram
conformidade às diretrizes das grandes corporações do campo fonográfico, quanto os
processos geradores de práticas culturais que buscam subverter as ‘regras do jogo’. Na música,
tais regras, historicamente estabelecidas pelas grandes companhias transnacionais do setor,
são cada vez mais questionadas. A subversão destas regras pode ser motivada pela
insatisfação de artistas ou dos ouvintes. Lobão, ao lutar pela numeração das cópias dos CDs,
tinha por objetivo controlar a comercialização de sua produção. Mas, sua atitude beneficia
numerosos outros artistas e a subversão da ordem” indica a necessidade que se reflita mais
profundamente a questão dos direitos autorais.
A expansão e o acesso a meios de produção e o baixo custo dos aparatos técnicos
necessários à montagem de uma estrutura de gravação possibilitaram o surgimento de novos
148
PEDRO ALEXANDRE SANCHES e LAURA MATTOS. Gil apóia projeto de criminalização do
jabá; rádios se opõem. Folha de S.Paulo 15/04/2003 -
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u32094.shtml último acesso em 27/12/07
149
Muitas informações sobre o jabá circulam nos blogs e fórum da Internet. Entendemos esses
ambientes de discussão virtual como “fontes alternativas” de informação, já que não é comum a
veiculação deste tipo de informação da mídia televisiva e até mesmo pela mídia impressa. Para
mais informações ver: http://www.verbeat.org/blogs/stuckinsac/2005/11/jabas-payolas-e.html
153
músicos e produtores e, ainda, a criação de condições para que profissionais renomados,
relegados pelas grandes gravadoras, pudessem atuar nas brechas deixadas pelas gigantes do
setor. Com a redução dos custos de produção, o desafio maior dos artistas que querem lançar
seus trabalhos, passa a ser a circulação e a comercialização da obra. Num momento em que o
CD começa a ser questionado como formato ideal de divulgação musical, muitos outros
caminhos surgem para aproximar o ouvinte da música.
A subversão das regras deste jogo torna-se ainda mais evidente quando analisamos
as novas formas de acesso à música, geradas a partir do surgimento de uma rede espontânea
de ouvintes que compartilham música, independentemente de seus formatos físicos. Milhões de
pessoas, no mundo todo, passaram a ter acesso à música em seu formato digital, como
veremos no próximo item, dedicado às conseqüências da tecnologia para o campo fonográfico.
2.4.2 Novos instrumentos técnicos e transformação dos meios de difusão e consumo
da música
Fazer música é uma ação compartilhada por vários grupos sociais. Tal como
Herschmann afirma,
a música especialmente a popular - ao longo da história esteve
associada a ocasiões e acontecimentos festivos e à vida cotidiana. À
medida que foi se desenvolvendo a capacidade das sociedades
armazenarem música, ela foi se tornando e se fazendo, cada vez mais,
presente no cotidiano, e então começou a se desenvolver a capacidade
de comercializá-la de forma mais efetiva (HERSCHMANN, 2007).
No “mundo” da música é relativamente fácil distinguir os que fazem música pra
enriquecer e os que fazem música pra “enriquecer os corações e o planeta”, como diz Pedro
Luís na letra de Fazê o que?: “música pra enriquecer os corações e o planeta. Basta o papel e
uma caneta”
150
.
Entretanto, atualmente, mais importante do que produzir é alcançar a circulação, a
difusão da música. Transformações no mercado fonográfico surgem diretamente vinculadas a
avanços tecnológicos que permitem que a música seja produzida de forma muito mais rápida e
fácil, o que inclui sua circulação livre e ampliada e sua comercialização.
A música, que sempre foi impalpável, torna-se ainda mais fluida e imaterial. O
surgimento do MP3 e de novas ferramentas técnicas que permitem a troca instantânea e
150
Pedro Luís e A Parede. “Fazê o quê?”. Pedro Luís [Compositor]. In: - Astronauta Tupy. Dubas
Música/ Universal Music. p1997. 1CD. Faixa 4
154
remota de músicas na Internet, afetou de forma significativa toda a produção musical. No Brasil,
a prática do download se popularizou através de programas de compartilhamento de arquivos
como o e-mule e o Kazaa. Pelo fato desta rede de trocas não incluir o pagamento de direitos
autorais, o compartilhamento de música é considerado uma prática ilegal. Independente deste
fato, a troca de música na Internet tornou-se tão comum, que o Brasil chegou a ser responsável
por 5% do total de downloads ilegais de músicas em todo o mundo. Por isso, hoje o país tem
sido alvo de uma campanha da indústria fonográfica contra a pirataria digital, tendo sido
iniciadas 20 ações judiciais contra internautas brasileiros
151
. A IFPI afirma que os processados
são responsáveis, cada um, por disponibilizar na web entre 3 mil e 5 mil músicas para
download sem pagamentos de direitos autorais.
O diretor da IFPI na América Latina, Raúl Vasquez, afirmou que o Brasil é,
atualmente, o segundo maior mercado ilegal de música pirateada pela internet na região. O
primeiro lugar fica com o México, responsável por cerca de 1,6 bilhão de downloads ilegais. Em
terceiro lugar vem a Argentina, com 500 milhões, seguida do Chile, com 400 milhões. Este
dirigente informou, ainda, que o México e a Argentina também fazem parte da lista de
processos abertos em 2007
152
.
Apesar da repressão, muitos internautas continuam compartilhando músicas sem
pagar por elas. Para Felippe Llerena, sócio-diretor do iMusica, ainda que os preços para
downloads legais sejam convidativos, seria necessária uma grande campanha de incentivo para
que os internautas aceitassem pagar por músicas que atualmente conseguem gratuitamente.
"Não sabemos como fazer para essas pessoas simplesmente deixarem de baixar música de
graça e pagar por elas. Acho que os artistas poderiam participar disso junto aos jovens, talvez
essa seja a única maneira". Na mesma entrevista à Reuters, Llerena acrescenta que o iMusica
tem média de 25 mil canções vendidas por mês com custo unitário entre R$ 0,99 e R$ 2,49
153
.
Nos últimos cinco anos, com o crescimento das redes ponto-a-ponto (peer-to-peer,
P2P) de compartilhamento de arquivos, a indústria fonográfica tem procurado por recursos
tecnológicos que impeçam a reprodução não autorizadas de seus produtos
154
. O fato é que
avanços tecnológicos modificaram a produção musical de diferentes formas. Afetaram tanto as
grandes gravadoras, quanto os artistas independentes, os selos e as gravadoras de pequeno
porte. Hoje, todas as gravadoras vendem música por faixa a um preço mais acessível. Esta é
151
http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1196311-EI4802,00.html 28/12/07
152
http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2006/10/17/materia.2006-10-17.6090550408/view
acesso em 29/12/2007
153
http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1196311-EI4802,00.html acesso em 28/12/2007
154
Líder da Apple classifica indústria fonográfica como "ambiciosa”. Por Bruza em 20/09/2005
Fonte: Folha Online
155
uma resposta da indústria ao compartilhamento de músicas em formato digital nos canais
‘ilegais’ de troca da Internet.
Recentes pesquisas realizadas por Felix Oberholzer-Felix, professor de
administração em Harvard e Koleman Strumpf, da Universidade da Carolina do Norte,
divulgadas pela MTV, afirmam que a prática do download legal não reduziu as vendas de CDs
no mundo
155
. Para os autores da pesquisa, embora os downloads “ilegais” sejam abundantes
(500 milhões no período analisado), os integrantes destas redes de compartilhamento não
comprariam CDs mesmo com a abolição dos sistemas de troca. Os autores afirmam, também,
que os downloads gratuitos podem até mesmo ter ajudado a indústria fonográfica, que,
segundo o estudo, para 25% dos títulos lançados os que venderam mais de 600 mil cópias –,
um CD a mais foi comercializado a cada 150 downloads. Essa pesquisa reforça o argumento de
que alguns usuários de programas de compartilhamento gratuito estariam revolucionando o
mercado fonográfico ao provocarem a queda dos preços de CDs. Os consumidores, de fato,
desenvolveram diferentes atitudes: alguns dizem que compram o CD depois de ouvir e
gostar da música; alguns pegam CDs emprestado ou alugam em lojas especializadas; os
colecionadores preferem catalogar os CDs e ter o encarte sempre disponível; outros dizem que
o CD não é um bem necessário porque o valor está na música acessível no tocador de MP3
(MP3 player).
O confronto entre a indústria fonográfica e os usuários dos programas de downloads
ilegais têm provocado intensos debates sobre direitos autorais. Os registros desse confronto
revelam que os consumidores desejam discutir os direitos dos autores, mas também os seus
próprios direitos, que antes do download gratuito as regras do jogo eram ditadas pela
indústria e, hoje, o debate está mais equilibrado, pois tem aumentado a mobilização social em
torno da questão.
Através de iniciativas da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, alguns
agentes têm participado de debates em torno de possíveis mudanças na lei do Direito Autoral.
Durante o lançamento da Campanha da Federação Internacional da Indústria Fonográfica no
Brasil contra downloads ilegais, esta instituição anunciou a abertura de oito mil processos
judiciais contra pessoas acusadas de pirataria online em diversos países. O confronto entre
diferentes modos de pensar os atuais desafios da música ficou evidente com a manifestação
popular que ocorreu paralelamente à cerimônia da IFPl:
Do lado de fora, impedidos de entrar na cerimônia do lançamento da
campanha da IFPI, membros da Escola de Direito da Fundação Getúlio
Vargas no Rio de Janeiro entregaram um manifesto criticando as ações
155
http://mtv.uol.com.br/drops/drops.php?id=4623
156
contra internautas brasileiros e propondo mudanças na lei de direitos
autorais.
Os manifestantes afirmaram que essas mesmas ações em outros países
não diminuíram o número de downloads ilegais e defenderam uma
mudança no modelo de negócios, minimizando o papel das
gravadoras em favor do repasse direto do consumidor para os
artistas.
A lei de direitos autorais brasileira é incompatível com os
desenvolvimentos tecnológicos recentes. Nosso atual regime de
direito autoral transforma qualquer usuário de Internet em um
potencial criminoso e infrator de direitos’, afirma o comunicado
divulgado pelos manifestantes a jornalistas
156
[grifos nossos].
Segundo Gilberto Gil, atual Ministro da Cultura, a Lei de Direito Autoral brasileira é
uma das mais restritivas do mundo, do ponto de vista do consumidor, e está em desacordo com
a realidade social e econômica do país
157
. No que tange ao uso pessoal ou privado, em termos
de reprodução, a Lei 9.610/1998 é mais restritiva do que a antecedente, de 5.988/1973,
que mesmo sendo mais antiga seria mais adequada aos recursos tecnológicos hoje
existentes
158
. Atualmente, comprar um CD original e copiar as músicas para um arquivo de MP3
e para um tocador de MP3 - também comprado legalmente pode ser considerado uma
reprodução de fonograma sem equivalente pagamento do direito autoral, o que poderia ser
interpretado como crime. Mas não podemos ter um olhar estreito para uma questão tão ampla.
O direito de autores/compositores sobre sua obra é, sem dúvida, uma questão
polêmica. Neste momento de transformação do mercado fonográfico, o direito autoral, ou
copyright, criado para proteger obras intelectuais (música, textos, imagens) tem, em sua base, o
modelo de todos os direitos reservados”, impeditivo da livre circulação da música. Na forma
rígida e inflexível como foi concebido, este instrumento jurídico dificulta ou impede a descoberta
de novos processos de apropriação e uso de bens culturais.
Dentre as estratégias inovadoras, o movimento pelo copyleft, pela livre circulação
da cultura e do saber”, ganha centralidade na luta pela democratização do acesso a bens e
informações culturais. Oposto ao copyright, o copyleft é uma forma jurídica que permite a livre
circulação de textos, vídeos, sons e imagens. Longe de pretender esgotar o debate sobre a
propriedade intelectual (nome genérico que abrange direitos autorais, patentes e marcas), o
156
http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1196311-EI4802,00.html
157
http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2006/12/12/materia.2006-12-12.4257978309/view
158
Esta Lei regula os direitos autorais e considera reproduçãoa cópia de um ou vários
exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma
tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos
ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido”.
http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1998/9610.htm último acesso em 22 de Março
de 2008.
157
movimento pelo copyleft encontra-se cada vez mais presente na produção literária, científica,
artística e jornalística
159
. Na música, poucos artistas estão dispostos a abrir mão dos direitos de
autor. Neste contexto, BNegão optou pelo copyleft por uma decisão que considera “totalmente
ideológica”:
Foi totalmente ideológica essa parada de colocar o CD em copyleft. (...)
Eu acredito no que ‘tô escrevendo e pela questão de acreditar que
quanto mais pessoas ouvirem, quanto mais pessoas tomarem
conhecimento, melhor. (BNegão, cantor e compositor, em entrevista
concedida à autora)
BNegão relata que no final dos anos 90, conheceu o copyleft através de um amigo
que hoje colabora com o Centro de Mídia Independente (CMI). Na época em que tomou
conhecimento desta licença, já existia um movimento das gravadoras apoiado por bandas como
Metálica, contrário ao download ilegal. A parceria com o CMI fortalece a ação de artistas como
BNegão. Este centro de mídia define-se como “uma rede de produtores e produtoras de mídia
independentes, que busca oferecer ao público, informação alternativa e crítica de qualidade,
que contribua para a construção de uma sociedade livre e igualitária e que busca ser uma
alternativa consistente à mídia empresarial”. O CMI pauta-se por uma “ação anticapitalista”
seguindo suas próprias palavras, pelo fato de “agir no sentido de se opor à propriedade privada
e ao sistema de mercado” surgindo como uma ação social articulada através da Internet, que
tem por objetivo criar canais alternativos de comunicação e de acesso à cultura.
O sucesso do sistema operacional GNU/Linux e do movimento do
software livre trouxe um exemplo concreto da possibilidade de se
constituir um sistema de criação onde a remuneração não fosse a
forma principal de estímulo e onde o interesse coletivo de usufruir
com liberdade a cultura humana fosse mais importante do que a
exploração comercial das idéias. (...)
Hoje o movimento pelo copyleft, pela livre circulação da cultura e do
saber ampliou-se muito além do universo dos programadores. O
conceito de copyleft é aplicado na produção literária, científica, artística
e jornalística. ainda muito trabalho de divulgação e esclarecimento a
ser feito e é preciso que discutamos politicamente os prós e os
contras dos diferentes tipos de licença. Precisamos discutir se
queremos conciliar a exploração comercial com a utilização não
comercial livre ou se devemos simplesmente nos livrar dos
mecanismos de difusão comercial de uma vez por todas;
precisamos também discutir questões relativas à autoria e à integridade
da obra, principalmente numa época em que o sampleamento e a
colagem constituem formas de manifestação artística importantes;
temos, finalmente, que discutir as inúmeras peculiaridades de cada tipo
de produção adequando a licença ao que estamos fazendo (a ênfase na
159
Para mais informações ver www.midiaindependente.org
158
possibilidade de modificação de um programa de computador tem pouco
cabimento quando aplicado à produção científica, etc.). Esse trabalho
não é o trabalho de imaginar um mundo possível, mas de passar a
construí-lo, aqui e agora
160
[grifos nossos].
Agora, depois dos CDs falsificados, é a prática do download ilegal o principal alvo
da indústria fonográfica na batalha pela preservação do lucro obtido com produtos musiciais. O
download, tratado como uma modalidade da pirataria, não constitui-se numa questão simples,
pois envolve diferentes ações com sentidos diversos. Atualmente, a denominada pirataria não é
um fenômeno único, pois isto significaria incluir, na mesma categoria o indivíduo que reproduz,
de forma caseira, um disco para um amigo e um grande traficante internacional de produtos
contrabandeados. Há, também, tanto a pirataria física como a virtual. A gravação de um CD ou
DVD para um amigo é a versão atualizada de uma prática antiga de reproduzir discos (LP -
Long Play) em fitas cassete. Assim como era com as fitas K7s, os aparelhos que gravam CDs e
DVDs e seus respectivos acessórios - como discos graváveis, CDR, DVDR - são vendidos
livremente e, por vezes, produzidos pelas mesmas empresas que protestam contra a pirataria,
como é o caso da Sony. A possibilidade de gravação de CDs e DVDs de forma caseira e o
compartilhamento de músicas na rede mundial, multiplicados pelo número de pessoas que
buscam acesso alternativo à música contribuem para a queda do faturamento da indústria
fonográfica.
Evidente, como dito antes, uma evidente queda na venda de CDs. No entanto,
além da pirataria cabe enfatizar o fato de que o custo das operações de marketing, incluindo o
jabá, vem sendo repassado ao consumidor no preço final de CDs e DVDs
161
. As gravadoras
desconsideram este fato quando atribuem a responsabilidade pela crise do setor fonográfico
exclusivamente ao download ilegal de seus produtos.
Entre os artistas nacionais não um consenso de que a pirataria seja responsável
pela queda observada no faturamento do setor fonográfico. Alguns artistas independentes
chegam a propor que a pirataria e os canais alternativos de produção e acesso à música sejam
reconhecidos como solução, quando a questão é a circulação de bens culturais como CDs e
DVDs. BNegão acredita que a pirataria é uma conseqüência do alto preço dos CDs originais
160
http://prod.midiaindependente.org/pt/blue//2002/06/29908.shtml
161
A Universal Music gastaria, anualmente, algo em torno de U$136 milhões com jabá, mas os
números não são divulgados com precisão. Em 2002, José Antonio Eboli, presidente da Sony,
afirmou em entrevista à revista Isto é Gente, que o custo de um CD é cerca de R$ 1,50, mas
que um disco como o de Djavan tem um custo de gravação de R$ 300 mil, além de R$ 500 mil
a R$ 1 milhão com gastos em marketing, fora os royalties do artista, que ficam entre 15% a
20%, além do royalty autoral, que é de 10%.
http://www.terra.com.br/istoegente/161/entrevista/index_2.htm
159
que não poderiam custar cerca de 10% do salário mínimo nacional
162
. Para o músico, as
gravadoras têm como finalidade aumentar o seu lucro, o consumidor de CDs piratas deseja
apenas ouvir música, submetendo-se à compra de três CDs por dez reais, sabendo que está
consumindo um produto de baixa qualidade.
Com a letra de “Nova Visão”, que inclui a frase “O microfone, meu megafone,
passando de mono pra estéreo a sua compreensão” BNegão desejava demonstrar que é
possível romper as amarras da dominação em busca de um pensamento mais amplo, capaz de
observar vários lados de uma mesma questão. O músico fala que pretendeu ainda mostrar que
nem tudo o que a indústria do disco costuma dizer sobre jabá ou download pode ser entendido
como verdade absoluta, pois é necessário ouvir outros lados da mesma questão.
O mono é um canal só, é uma ida. É uma metáfora sobre esse
negócio que diz: você baixa disco e o artista ‘tá sendo prejudicado. Você
é um ladrão, você ‘tá errado! Jabá não existe... E o estéreo são os dois
fones dizendo que tem jabá sim! Que isso aqui não é bem assim...
(BNegão, cantor e compositor, em entrevista à autora em 02/12/07)
O fato é que o mercado fonográfico vem sendo intensamente transformado pelo
desenvolvimento tecnológico. E, pela primeira vez, a regra do jogo parece ter sido sugerida pelo
ouvinte-consumidor. Se o preço do CD impede a compra, aquele que gosta de música poderá
ter acesso à produção musical, nem que para isso precise transformar-se em usuário de redes
de compartilhamento ilegal de música on line ou em comprador de produtos piratas. Para
Lefebvre (1987, 2001), por mais que estejamos numa sociedade burocrática de consumo
dirigido, existe um potencial princípio de liberdade nas práticas sociais e, mais ainda, nas
relacionadas à arte. Sem dúvida, as músicas questionadoras e críticas criam mercados e canais
de circulação e consumo.
Se, por um lado, é necessário refletir as estratégias criadas por agentes
hegemônicos do campo fonográfico grandes produtoras, empresários, meios de comunicação
- por outro, é preciso considerar as diferentes racionalidades e práticas em disputa no circuito
produtivo da música. Existem respostas criativas à grande indústria que, de alguma maneira,
solapam a ordem dominante. Através do sujeito criativo, revelam-se diferentes modos de agir e
resistências sociais que evidenciam a ações que projetam a liberdade.
No campo fonográfico, existem iniciativas relacionadas à criação de novos
mercados necessários à difusão da música insurgente e resistente. Os movimentos que
questionam a rígida concepção dos direitos autorais, a produção musical independente e as
trocas remotas de música na Internet revelam a necessidade de uma cuidadosa reflexão sobre
162
Entrevista de BNegão concedida à Revista MTV de março de 2006.
160
as novas formas de produção, difusão e uso/consumo da música.
Outra forma de colaboração na produção artística surgida recentemente e que vem
encontrando muitos adeptos no Brasil é o Creative Commons (CC), uma organização não-
lucrativa que se destaca por propor um novo formato de licenciamento autoral que reserva
alguns direitos para o autor e, ao mesmo tempo, permite certos usos da obra por outros
agentes. Na música, o Creative Commons permite regularizar a prática do sampling, uma forma
de remixar obras de modo criativo, com prévia autorização do compositor. Atualmente existem
softwares de edição de áudio e de extração de fragmentos sonoros de fonogramas de fácil
acesso, o que iniciou um amplo debate sobre a prática de “samplear”. Os divulgadores do CC
têm se empenhado na implementação de uma lei de direitos autorais atualizada, capaz de fazer
com que a troca de MP3 e os samples não sejam mais considerados crimes.
A licença Creative Commons aparece como “complementar às formas anteriores de
direito autoral”. Visa permitir “a co-autoria criativa” de músicas e “novas formas de colaboração
entre indivíduos que não se conhecem ou que estejam separados no espaço e no tempo”,
assim, ampliando as possibilidades de criação horizontal no âmbito mundial. No prazo de um
ano, mais de um milhão de licenças deste tipo possibilitaram que novos artefatos culturais
fossem criados, recriados e disponibilizados, tornando mais livre a cooperação entre indivíduos
e diminuindo barreiras que limitam a produção, a circulação e o uso desses artefatos
culturais
163
.
O CC possibilita ao autor a publicação de sua obra online, esclarecendo os usos
permitidos da obra licenciada. Essa licença opõe-se à lógica do copyright que determina: todos
os direitos reservados. O CC tem como princípio básico o estímulo a novos formatos de co-
autorias, envolvendo pessoas que nunca se encontraram antes, e, também, a livre circulação
de obras assim criadas. Em seu primeiro ano, o CC disponibilizou mais de um milhão de obras
licenciadas estabelecendo seus possíveis usos. Enquanto o direito autoral rígido proposto pela
licença copyright tem como base a propriedade privada, a proposta do Creative Commons
revela a possibilidade da re-criação. Favorece assim o mosaico que pode ser criado a partir de
uma obra existente. Tal como divulgado no site do CC, “Parceiro do grande direito autoral,
163
Para mais informações, ver http://www.creativecommons.org.br. Recentemente, o
Freeculture.org anunciou o lançamento de um novo site, http://freemusic.freeculture.org,
dedicado ao compartilhamento de músicas, ao incentivo de lançamentos musicais criados com
licenças livres e provendo o acesso a gravações e produções sob este tipo de licenciamento.
Usuários podem fazer upload de músicas livres a partir de seus próprios computadores ou criar
links para músicas de outros sites que as distribuam livremente. Músicas que forem carregadas
podem ser tocadas no site, além de baixadas e remixadas (sampling) em novos trabalhos,
ampliando as possibilidades de colaboração e de co-autoria que vem provocando uma grande
transformação do mercado fonográfico.
161
mas disposto a tornar a obra livre para ser compartilhada”, o CC pretende que músicas estejam
disponíveis para remix e compartilhamentos “sem intermediários, sem dúvidas legais, sem
atrito, simplesmente cultura livre”
164
.
Na Europa e nos EUA o CC não foi tão bem assimilado e não vem sendo tão
amplamente utilizado como no Brasil. Quem é contrário a este tipo de licenciamento considera
que países pobres e criativos correm o risco de, novamente, terem as suas riquezas roubadas,
agora riquezas imateriais, o que viabilizaria novas formas de injustiças. Não temos resposta
para esta questão. O que sabemos é que download, Emule, Copyleft, Creative Commons e
outras novidades do campo fonográfico têm alterado, profundamente, as formas de difusão
musical na escala mundial.
As novas experiências relacionadas à música revelam que a criatividade não
encontra-se apenas nas idéias presentes em letras e sonoridades. A criatividade e a busca por
alternativas evidenciam-se também nas maneiras como esta música - que se manifesta com
poesia e sagacidade - chega até o público.
Através dos novos canais de comunicação direta com o público bloggs, myspace,
orkut ou mesmo através de sites e do youtube - algumas vozes insurgentes aproveitam a
inovação tecnológica para difundir a produção alternativa. As ações que reunimos neste
capítulo mostram associações entre majors e indies; mas, também, evidenciam uma luta pelo
direito à liberdade de expressão e pelo acesso à cultura, entendida de forma ampla. Apoiada
em um instrumental técnico cada vez mais veloz, a ação musical contestadora torna-se mais
potente e visível.
Tal como sugere Herschmann (2005, p. 90), não a mídia se constitui numa arena
na qual concorrem diferentes discursos, engendrando diferentes sentidos, como também cada
discurso, em si mesmo, pode abrigar perspectivas diversas e, posicionamentos, por vezes,
contraditórios. A inserção do sujeito crítico e criativo nos novos e velhos espaços midiáticos
revela novas formas de ação política, baseadas na utilização de linguagens, estéticas e
estratégias adequadas à (re)construção da subjetividade e ao enfrentamento da opressão.
Através do funk, do hip-hop ou da produção que não obedece a gêneros musicais,
jovens e, especialmente, os negros, pobres e favelados que são os mais atingidos pela
violência urbana - encontram na música novas condições de ação, incluindo as condições
relacionadas às inovações tecnológicas. Através da criação musical, o sujeito revela o sentido
libertário e contestador de sua ação, pois o racismo, a estigmatização e o isolamento social são
questões levantadas e trabalhadas por artistas que revelam territorialidades insurgentes e que
164
http://www.creativecommons.org.br
162
expressam uma luta pelo direito à cidade, como vimos no caso da relação que Fernanda Abreu
tem com o funk ou na atitude de BNegão ao optar pelo copyleft.
Nesse sentido, Herschmann (2005) ressalta que as colagens, apropriações,
agenciamentos, mesmo de outros segmentos sociais e a partir do mercado, não esvaziam o
conteúdo dessas manifestações culturais; mas potencializam-no. Visibilidade e recursos são
necessários para que esses sujeitos possam tecer suas ações e construir redes horizontais e
laços solidários.
Se a indústria fonográfica lucra com a contratação de contestadores e com a
pasteurização de expressões musicais, os consumidores têm a oportunidade de ter acesso a
músicas que contribuem na ampliação da reflexão da experiência urbana, na medida em que
destacam territorialidades insurgentes e realidades até recentemente pouco conhecidas. Tal
como Ribeiro aconselha,
A compreensão das circunstâncias da ação humana pressupõe a
observação de contextos e a cuidadosa escuta das falas fragmentadas
que substituem, para o homem lento, os grandes discursos daqueles
que penetram, com facilidade, o espaço público.
Esta escuta precisa ser acompanhada de uma leitura
interpretativa de gestos, na medida em que, por vezes, nem mesmo a
fala chega a ser articulada (RIBEIRO, 2005, p. 99).
Ainda que a música seja um importante aliado na luta pela conscientização das
condições urbanas de vida, é preciso reconhecer que os sujeitos do campo da música não se
expressam apenas através de letras e narrativas. Aproximações e distanciamentos revelam que
a luta contra os códigos da cultura dominante pode acontecer através de gestos, como
exemplifica a organização do movimento pelo copyleft. Para Ribeiro (2005, p. 105), se o
mercado manifesta-se através de personas, isto é, de defensores de interesses privados
inseridos em diferentes entidades da sociedade civil e do Estado, existe uma outra forma de
produzir e veicular a criação musical contestadora que revela a existência de indivíduos
comprometidos com a difusão de outros valores, projetos e imaginários.
Talvez, a ação da IFPI e da ABPD que acionam o direito autoral na defesa da
concepção hegemônica de mercado seja apenas a evidência da força dos fracos, que não
obedecem às regras do jogo, antes determinadas unilateralmente pela grande indústria da
música e que agora são questionadas através destas ações insurgentes. A troca remota de
músicas pela Internet tem como motor a ação coletiva, ainda que os envolvidos sejam
completamente desconhecidos. O copyleft pode ser interpretado, neste contexto, como uma
espécie de adequação jurídica de práticas sociais que rompem os limites da legislação relativa
aos direitos autorais.
163
As trocas regidas pelo valor de uso da música podem ser entendidas como trocas
simbólicas, experiências de compartilhamento e apropriação que indicam que a concepção
hegemônica do mercado não é a única forma possível para o intercâmbio social. Segundo
Ribeiro (2005, p. 107), o mercado socialmente necessário, como memória e projeto, possui
raízes ancestrais, ainda anteriores àquelas que alimentam a concepção hegemônica de
mercado. Este outro mercado permite pensar a música a partir do compartilhamento. As trocas
de música através da Internet podem ser reconhecidas como legítimas, ainda que ilegais. Essas
trocas, calcadas no interesse pela música, são trocas solidárias que favorecem o intercâmbio
social, contribuindo para o reconhecimento de identidades e diferenças. Insurgências
reconhecidas através da música revelam, ainda, uma vida de relações, resistente e tenaz, que
se opõe à abstração exigida pelo capitalismo (RIBEIRO, 2005, p.107).
Já Certeau (1994, p. 44) diz que, para além da produção racionalizada,
expansionista, centralizada, barulhenta e espetacular, existe outra produção, relacionada ao
consumo. Esta é astuciosa e dispersa; mas, ao mesmo tempo, insinuante, sutil e quase
invisível. Esta última produção não se faz notar através dos próprios produtos, mas nas
maneiras de empregar os produtos oriundos da ordem econômica dominante. Nesta direção,
mais do que exclusivamente o mercado de bens culturais, esta Tese preocupa-se com os
modos de operação e esquemas de ação dos agentes
criadores/produtores/usuários/consumidores - que fabricam” maneiras de agir e
comportamentos que traduzem escolhas, gostos e preferências. Como disse Milton Santos,
especialmente em razão das carências, os homens menos velozes criam soluções originais
para se conectarem ao fazer social,
Por serem “diferentes”, os pobres abrem um debate novo, inédito, às
vezes silencioso, à vezes ruidoso, com a população e as coisas
presentes. É assim que eles reavaliam a tecnosfera e a psicosfera,
encontrando novo usos e finalidades para objetos e técnicas e também
novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva (...)
É na esfera comunicacional que eles diferentemente das classes ditas
superiores, são fortemente ativos (SANTOS, 1997, p. 261).
Para que a criação musical vinda de baixo se realize é preciso que sejam
estabelecidas horizontalidades solidárias. Ainda de acordo com Santos (1997, p. 227), “as
horizontalidades são tanto o lugar da finalidade imposta de fora, de longe e de cima, quanto o
da contrafinalidade localmente gerada”. Seriam, simultaneamente, lugar da cegueira e da
descoberta, da complacência e da revolta. Assim, a criação musical insurgente pode ser vista
como produto desse desconforto criador que alimenta a produção de uma nova consciência
(SANTOS, 1997, p. 261).
164
Tal como também afirma Santos (2007, p. 117), a análise do fenômeno da
globalização ficaria incompleta se, após reconhecer os fatores que possibilitaram sua
emergência, apenas nos detivéssemos em seus aspectos dominantes, de que resultam tantos
inconvenientes para a maior parte da humanidade. Segundo o autor, um certo limite dessa
evolução permite reconhecer a emergência de inúmeros sinais de que outros processos surgem
paralelamente, autorizando pensar que vivemos uma fase de transição para um novo período
histórico, que não encontra-se completamente definido.
As outras possíveis racionalidades trabalhadas por Santos aproximam-se da
presente análise quando este autor destaca a força do lugar na construção de contra-
racionalidades e de racionalidades paralelas. Essas, por sua vez, levantam-se como realidades
alternativas frente à racionalidade dominante e apontam caminhos ao pensamento e à ação
(SANTOS, 1997). Frente a um cenário de crise experimentado pelas majors do campo
fonográfico, fortalecem-se relações orientadas por novos parâmetros nas bases em que operam
as gravadoras indies e os “independentes”. A capacidade de inovação das pequenas e médias
empresas do campo fonográfico alia-se à produção local, evidenciando a busca de soluções
alternativas às regras do mercado hegemônico. O mercado alternativo apresenta-se de
diferentes formas; mas, em todos os casos, apóia-se em novas tecnologias que conectam o
indivíduo ao mundo através da propagação da música no ambientesem fronteiras” e interativo
da Internet.
Aliadas à virtualidade das formas de difusão musical, novas redes solidárias e
horizontais emergem no território, evidenciando que a música não vive da propagação de
ondas sonoras. A música alimenta a festa sustentando a ocorrência de eventos que dão
vitalidade ao tecido urbano. No caso do Rio de Janeiro, a música é vital e a cidade se
transforma para receber eventos musicais. O consumo da música efêmero ou territorialmente
consolidado - é o tema do terceiro capítulo da Tese.
165
CAPÍTULO 3 – A MÚSICA NA CIDADE EM FESTA: CONSUMO E MANIFESTAÇÃO
Poema obsceno
Ferreira Gullar
Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do
país
- e espreitam.
A música evidencia que existem alternativas ao pseudo consenso que sustenta o
domínio da vida social pela racionalidade hegemônica. A proposta deste capítulo é sugerir que
a presença de racionalidades alternativas na música não encontra-se somente nas letras
críticas e de postura propositiva - como destacamos especialmente no primeiro capítulo - e nos
modos de produzir e fazer circular a criação musical - como vimos no capítulo anterior. As
racionalidades alternativas encontram-se também nos modos alternativos de usar/consumir
música.
O consumo da música que mais nos interessa destacar é aquele que evidencia um
uso e uma apropriação coletiva da cidade. Por esta razão, a espaço-temporalidade dos eventos
festivos será o alvo da reflexão realizada neste capítulo. As práticas musicais coletivas revelam
166
encontros, reuniões, usos e apropriações territoriais indicativos de diferentes formas de
experimentar a vida urbana através da música.
vimos como a música expressa textualmente a insatisfação com a ordem
dominante, através de letras críticas que questionam o modo de vida proposto pelo capitalismo:
acelerado, competitivo e predatório. Também percorremos os caminhos alternativos que os
sujeitos da criação precisam encontrar para que suas idéias possam ser difundidas e
propagadas. Nesta etapa da produção musical, vimos como a criatividade vinda de baixo é
retrabalhada pela indústria e pelos canais hegemônicos de comunicação que, por sua vez,
podem garantir visibilidade aos sujeitos da contestação.
Nas etapas de produção e difusão da música insurgente, emerge a postura contrária
à lógica do imediatamente rentável. Reveladora de uma visão de mundo compartilhada por
alguns dos compositores citados, a música que valorizamos, neste trabalho, posiciona-se
criticamente frente a determinadas imposições da realidade atual. Reside seu conteúdo
político. A música, como toda arte, pode adquirir as características de um ato político, ao revelar
determinadas relações espaço-temporais e formas de representação da vida coletiva. Mesmo
que a intenção do compositor não seja fazer política, a arte muitas vezes é, em si mesma, uma
ação política, quando rompe ou confronta formas estabelecidas de pensar e agir.
Sem dúvida, a música é criação, representação e comunicação. Por isto, interessa-
nos, particularmente, valorizar a música que é feita por prazer, por diversão ou com a
consciência de que fazer arte pode ser um ofício” que exige sensibilidade e liberdade. A
criação musical pode transportar emoção e subjetividade e sua potência encontra-se,
justamente, na capacidade de estimular a reflexão e, ao mesmo tempo, sustentar os momentos
de festa, diversão e alegria, que rompem a opressão cotidiana.
Trata-se de revelar posturas e atitudes que marcam uma oposição à lógica do luco.
A racionalidade alternativa que buscamos reconhecer na música dos anos 1990 aos dias atuais,
na cidade do Rio de Janeiro, revela-se nas práticas musicais coletivas, nos encontros que
ocorrem em shows, festas e festivais. Através das festas, a música revela seu poder aglutinador
e o sentido da cidade como “lugar do desejo, desequilíbrio permanente, sede da dissolução das
normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível” (LEFEBVRE, 2001a, p. 79).
3.1 – O ESPAÇO-TEMPO DA FESTA
É na festa que o sujeito pode se tornar livre para inventar e criar o novo. O uso dos
167
lugares escapa às exigências usuais da troca, ainda que apenas por alguns instantes, como na
roda de samba que ocupa a praça ou invade a feira-livre para evidenciar que “a satisfação de
necessidades elementares não consegue matar a insatisfação dos desejos fundamentais (ou do
desejo fundamental)” (LEFEBVRE, 2001a, p.79).
Mas, a festa é também um momento de diversão. É na festa que, por um certo
período de tempo, a “racionalidade urbana” é subvertida e transformada. Como diz Vianna
(1987), o divertimento é uma rápida fuga das obrigações cotidianas, não tendo, a princípio,
nenhuma utilidade. Entretanto, o autor lembra que a festa deixa de ser “inútil” e passa a ser
funcional quando, depois da festividade, o indivíduo retorna à vida séria com mais coragem e
ardor. Ainda que a festa tenha a função de recarregar as energias da força de trabalho e seja
cada vez mais industrializada e menos espontânea, é através dela que se busca o alívio das
tensões e exigências cotidianas.
Lefebvre (2001a) propõe que a utopia seja considerada experimentalmente, de
forma a permitir a observação empírica de espaços “bem-sucedidos”, ou melhor, de espaços
“favoráveis à felicidade”. Na cidade do Rio de Janeiro, existem vários lugares “favoráveis à
felicidade” cujo acesso não é determinado pela lógica do mercado. Este é o caso das pequenas
festas nas praças, nas ruas, como o samba da feira (General Glicério, em Laranjeiras), o
samba da praça (São Salvador, no Flamengo), o Samba do Juarez (Santa Teresa), onde a roda
de samba é aberta, a entrada é livre e ocorre a apropriação espontânea dos espaços públicos.
O Bar do Juarez existe desde a década de 80, em alguns momentos com boas
rodas de samba. Mas a sua maior projeção ocorreu em 2002, quando se destacou através de
uma roda de samba nas noites de sexta-feira. Localizado no alto de Santa Teresa, passou a ser
freqüentado por jovens das camadas médias de toda a cidade, de forma espontânea e sem
nenhuma divulgação pela mídia. O sucesso do bar somente foi objeto de reportagem, publicada
no JB meses depois, em novembro do mesmo ano, quando mais de 500 pessoasse reuniam
semanalmente nas rodas de samba comandadas por Eduardo Gallotti e Pedro Hollanda. No bar
(uma pequena estrutura semi-aberta e bem simples), aproveitando a paisagem e a
possibilidade de ir a uma roda de samba de excelente qualidade sem ter que pagar para ouvir,
cantar e sambar, grande parte dos freqüentadores não consumia nada, apenas sambava,
cantava ou ficava conversando na rua do bar, durante os eventos que chegavam a ter mais de
5 horas de duração. A freqüência desta roda de samba, por meses, revelou a assiduidade do
público no lugar, um ponto de encontro de amigos de várias partes da cidade, o que não
impedia a presença de pessoas menos identificadas com o lugar.
168
Mas não é de samba que a espontaneidade se revela no uso da cidade para o
encontro e a festa. Qualquer reunião de músicos e aficionados pode transformar-se numa festa,
numa reunião de pessoas que se encontram pelo prazer de fazer música. Outro exemplo
interessante, nesta direção, é o baile charme do “viaduto de Madureira”
165
.
Também tipos de festa e ambientes constituídos menos espontaneamente e que
são propagados como “favoráveis à felicidade”: os grandes eventos, inscritos no calendário
da cidade, como carnaval, reveillon e os shows nas praias da Zona Sul; os eventos
patrocinados por empresas privadas, como o TimFestival, o Oi Noites Cariocas, o SkolRio; e os
eventos reconhecidos como “independentes”, como o Humai Pra Peixe e tantos outros
festivais.
Sem dúvida, a festa mais conhecida da cidade do Rio de Janeiro é o carnaval.
Muitas outras festas e eventos buscam reproduzir a alegria carnavalesca. No carnaval, são
permitidos comportamentos que invertem o cotidiano e até a cidade muda, se transforma e se
fantasia. Na preparação para o carnaval, várias áreas da cidade têm o trânsito modificado; o
acesso às ruas é alterado e numerosos vendedores ambulantes ocupam os trajetos de maior
movimentação popular. Uma outra cidade, ambulante e portátil, revela-se no âmago da cidade
legal, formal. A informalidade das atividades que dão suporte à festa constitui-se num relevante
objeto para a observação da vida urbana. A venda de bebidas alcoólicas torna-se o principal
serviço, com barracas ou venda ambulante e o álcool parece ser o combustível lícito da festa
profana, ainda que obediente ao calendário religioso.
Inspirando-se em Da Matta (1978), Vianna (1988) afirma que numa festa como o
carnaval, “entramos temporariamente no reino da liberdade, universalidade, igualdade e
abundância, abrindo espaço para a renovação da vida social”. Em certo sentido, o carnaval
opõe-se à ordem que se expressa nas hierarquias sociais. Citando Bakhtine (1970), Vianna
(1988) diz que no carnaval, ao contrário do artificialismo das regras e das ordens, ocorre “um
ritual de inversão, onde as hierarquias momentaneamente se apagam: o pobre se fantasia de
rico, o homem de mulher e assim por diante”
166
. Ainda segundo Vianna, Da Matta (1978:68)
segue as idéias de Bakhtine (1970) ao dizer que o carnaval brasileiro é um espaço “onde são
experimentadas novas avenidas de relacionamento social”.
165
O Viaduto Negrão de Lima, no bairro de Madureira, é um lugar de festa popular espontânea,
onde, desde março de 1993, é realizado o Baile Charme do Viaduto de Madureira. Em 2000, o,
Projeto Rio Charme na Rua ganhou apoio do poder legislativo através do projeto de lei que
criou o Espaço Cultural Rio-Charme. Após ter as dependências reformadas, visando o controle
e a segurança do lugar, o público do evento passou a pagar um preço simbólico pelo acesso ao
evento, que transforma a rua em espaço de intensa sociabilidade.
166
BAKHTINE, Mikhail. L'Oeuvre de François Rabelais, Paris, Gallimard, 1970.
169
Para Vianna (1988), a festa - da efervescência durkheimeana ao carnaval de
Roberto da Matta, passando pelo orgiasmo de Maffesoli (1985) - pressupõe a existência de uma
sociedade mais ou menos homogênea, que permite a reafirmação de valores comuns ou a
elaboração coletiva de novos valores, incluindo a contestação, a inversão ou a transgressão
das normas que organizam a vida social
167
.
A festa entra em cena como um outro “mundo”, onde as pessoas podem
experimentar uma alegria impossível nas atividades “comuns”. É a
natureza dessas festas que vai nos mostrar o que é condenável na vida
séria. De um lado, encontramos aqueles autores que, explicitamente ou
não, pensam que os indivíduos podem se sentir felizes quando
deixam de ser indivíduos e se entregam ao todo poderoso, mas
generoso, coletivo. De outro lado, nos deparamos com uma minoria de
individualistas convictos que enxergam no divertimento coletivo
benefícios contrários aos anteriores: a vida séria, com suas incontáveis
regras e hierarquias, não deixa que as pessoas expressem sua
individualidade; é na festa, com o abrandamento, o questionamento e
até a inversão dessas regras, que o indivíduo descobre a ocasião para
ser senhor de sua própria vontade, “dono de seu nariz” (VIANNA, 1987,
p. 128).
E ser “dono do seu nariz” é ter a liberdade de expor sua individualidade diante do
coletivo. Da Matta chama a atenção para a passagem da individualização (e da individualidade),
que são experiências intrínsecas à condição humana, para o individualismo, que é uma
ideologia (um valor ou uma determinação social coercitiva e consciente) central apenas na
chamada civilização ocidental
168
.
Do indivíduo ao coletivo, refletindo a festa como um momento de subversão da
ordem ou mesmo de coesão social, temos que levar em consideração o fato de que o Rio de
Janeiro é uma cidade onde coexistem numerosos estilos de vida e visões de mundo. Para
Vianna (1988), essas diferenças podem gerar graves conflitos ou acordos momentâneos, mas
167
Segundo Vianna (1987, p. 15), para Durkheim (1968, p. 536), as principais características de
toda festa são: 1) superação das distâncias interindividuais; 2) produção de um estado de
efervescência coletiva; 3) transgressão de normas sociais. Inspirando-se em Maffesoli (1985),
Vianna (op cit, p. 21) considera que o orgiasmo é a essência da festa e o que permite a
estruturação e a regeneração da sociedade. O autor sugere, ainda, que a capacidade holística
das festas seria a solução contra o individualismo do presente.
168
DAMATTA, Roberto. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de
passagem e a modernidade. Mana. [online]. Apr. 2000, vol.6, no.1 [cited 29 October 2005],
p.7-29. Available from World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104-93132000000100001 Segundo o autor, a individualização é uma
experiência universal, destinada a ser culturalmente reconhecida, marcada, enfrentada ou
levada em consideração por todas as sociedades humanas, o individualismo é uma sofisticada
elaboração ideológica particular ao Ocidente, mas que, não obstante, é projetada em outras
sociedades e culturas como um dado universal da experiência humana (DA MATTA, 2000).
170
nunca estabilidade ou consenso, de forma a permitir a existência de uma possível cultura
carioca ou, até mesmo, de uma cultura dominante carioca.
Uma observação cuidadosa permite reconhecer que a festa não contradiz,
necessariamente, a lógica da acumulação. A festa não tem o poder de eliminar as marcas de
uma sociedade desigual, como demonstram os preços cobrados durante o carnaval ou em
qualquer casa de show de grande porte. Por vezes, inverte-se a própria inversão e a festa
passa a ser simplesmente um negócio, momento do trabalho e do lucro. Afinal, fazer a festa é o
ofício de muitos.
Mas a festa pode ser apenas uma festa, pura diversão, sem nenhuma outra
“utilidade” além de divertir, como nos revelam as reuniões festivas que surgem quase de forma
espontânea e sem o objetivo de promover a venda de bens ou serviços. Encontros provocados
pela música, como as rodas de samba que ocupam espaços públicos, acontecem apenas em
decorrência da satisfação de “estar junto”. A música é a base das festas, cujos objetivos são o
encontro, a dança, o canto coletivo e o imprevisível.
Neste capítulo, buscamos apresentar os modos alternativos de pensar e agir no
urbano, incluindo a espaço-temporalidade da festa. Procuramos demonstrar a existência de
uma outra racionalidade que confronta o racionalismo limitado que valoriza as coações e as faz
passar por racionais (LEFEBVRE, 2001, p. 82). É esta outra racionalidade que nos leva a
considerar mais livres os sujeitos que animam a vida urbana através dos múltiplos caminhos de
música. Alguns protestos utilizam a espaço-temporalidade da festa para ganhar visibilidade e
empatia.
Em fotos publicadas na edição da segunda-feira de Carnaval 2008 do jornal O
Globo, é possível reconhecer a insatisfação da população com a atual gestão da Prefeitura da
cidade, expressa em faixas exibidas no Sambódromo e nos Arcos da Lapa. Os protestos
começaram com o aumento (de quase 300%) do Imposto Predial Territorial Urbano ocorrida
pela suspensão do desconto dado às unidades consideradas ‘de moradia popular’. Após
decisão judicial, a Prefeitura desistiu da decisão de alterar os critérios norteadores do IPTU e
emitiu novos carnês com valores corretos. Entretanto, a mobilização social gerou uma
campanha que incentivava o pagamento do imposto somente após as eleições municipais,
marcadas para outubro deste ano.
Foto: Gabriel de Paiva (O Globo 04/02/2008)
171
Figura 18: População protesta contra a PCRJ na arquibancada do Sambódromo durante o Carnaval 2008.
Os limites da espetacularização evidenciam-se nos protestos em lugares
estratégicos como o Sambódromo e a Lapa demonstram que a população resiste à lógica do
espetáculo através da luta pelo direito à cidade. A insatisfação indica que grandes
equipamentos e eventos nem sempre visam a satisfação das carências sentidas pelo habitante.
Tais protestos indicam ainda o sentido de pertencimento à cidade e a resistência a um ‘modelo
de gestão urbana’, que ignora a população local. Questiona-se, sobretudo, a postura da
prefeitura que afirma agir para “combater a desordem urbana”, enquanto renega o diálogo com
o habitante.
Os Arcos da Lapa são representados de forma distinta nas referidas reportagens do
jornal O Globo, evidenciando-os como lugar da boemia festejada no desfile do Salgueiro, cujo
enredo foi “o Rio de Janeiro continua sendo...” e, também, como lugar da manifestação popular
e cenário de protestos de associações de moradores que buscam visibilidade para suas
reivindicações, como a Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa, que luta por
melhorias no transporte coletivo e na segurança do bairro.
Foto: Ricardo Leoni (O Globo
04/02/2008)
172
Figura 19: Carro Alegórico do Salgueiro que mostra a Lapa como lugar do samba e da boemia
169
Em trabalhos anteriores
170
, verificamos como ocorre uma espetacularização precária
da cidade, que, muitas vezes, o espaço urbano é “preparado” para o turista, enquanto a
insatisfação do morador se evidencia. A imagem dos Arcos da Lapa mal conservados, exibindo
o protesto contra o atual governo municipal, evidencia a cidade que nem sempre é publicizada
com problemas que afetam a vida cotidiana.
]
Foto: Ana Branco (O Globo 04/02/2008)
169
As figuras 18 e 19 são fotos publicadas na primeira página do jornal O Globo, de 4 de
Fevereiro de 2008.
170
Oliveira, Anita Loureiro de. A distribuição dos centros culturais na cidade do Rio de Janeiro:
uma reflexão sobre práticas culturais e produção do espaço. Monografia de Bacharelado em
Geografia. UFF: 2002 e Oliveira (2004) Op. cit.
173
Figura 20: Protesto dos Moradores de Santa Teresa nos Arcos da Lapa durante o Carnaval 2008
171
Mas, se a ação hegemônica revela uma intencionalidade ligada ao imediatamente
rentável, através da mercantilização dos lugares e das culturas, por outro lado, a ação cujo
sentido é o prazer e a apropriação simbólica da cidade constrói o pertencimento e o valor de
uso da rua. Evidentemente, os modelos de gestão urbana que nortearam a ação da prefeitura
nas últimas décadas não estão focados nas carências da maior parte da população. Este
modelo, como vimos no primeiro capítulo desta Tese, baseia-se em modelos exógenos, que
pouco se identificam com a experiência urbana dos mais pobres.
Para compreender a ação, é preciso identificar seus sentidos e tendências, a partir
de dados e informações obtidos por meio da sua observação direta. Para Weber (2001), a ação
social contém e expressa sentidos atribuídos pelo sujeito. Assim, transmite valores que podem
não estar na lei ou na norma institucionalizada; mas, sim, na cultura em movimento. E os
valores propagados pela cultura dominante contrastam com a ação que buscamos destacar
com os exemplos extraídos da música. Acreditamos que a música é um recurso importante para
evidenciar representações do espaço e práticas espaciais indicativas de racionalidades
alternativas, ainda que não completamente elaboradas.
A reflexão da ação musical precisa, portanto, considerar a subjetividade e os valores
que orientam escolhas de agentes e sujeitos, incluindo tanto as escolhas de representantes da
municipalidade como as de homens comuns. Cada sujeito, através de sua ação, transmite
171
Foto publicada no jornal O Globo, de 4 de Fevereiro de 2008. Moradores de Santa Teresa
protestam contra a falta de transporte coletivo e segurança no bairro.
174
valores que revelam as condições objetivas e subjetivas da sua experiência social concreta.
Além disso, a pesquisa indica que, na festa ou no protesto, a prática musical coletiva revela
usos múltiplos do lugar e formas criativas de apropriação da cidade.
A experiência urbana não acontece na totalidade do espaço urbano. Afinal, “o que é
a cidade, senão o povo? Sim, o povo é a cidade”
172
. Para Mello (1991, p. 48), a casa, a rua, o
bairro e partes da cidade são lugares diretamente experienciados. Para o autor, a cidade,
parcialmente conhecida, é estimada por seus elementos simbólicos e geradores de emoção,
reconhecidos por indivíduos e grupos sociais. E a música pode transformar pontos do espaço
urbano ainda não experienciados em lugares (MELLO, 1991, p. 47), como retrata poeticamente
a apropriação freqüente ou efêmera de lugares e, principalmente, o contraste entre modos de
vida que coexistem na cidade.
3.1.1 – Grandes eventos e equipamentos-ícones urbanos: promoção da cidade-
espetáculo?
A cidade mantém relações com a sociedade no seu conjunto, com sua estrutura e
dinâmica. Assim, uma cidade muda quando muda a sociedade (LEFEBVRE, 2001a, p. 46).
Para Lefebvre, “a cidade é obra, a ser associada mais com a obra de arte do que com o simples
produto material”, como pretende a racionalidade economista e produtivista, que procura levar
para além de toda limitação a produção de produtos (de objetos permutáveis, de valor de troca)
suprimindo a obra”.
Entendendo a cidade como uma produção social e os indivíduos e grupos sociais
como realizadores desta produção, que acontece em determinadas condições históricas,
Lefebvre (idem) a cidade situada entre a ordem próxima (relações entre indivíduos e grupos
sociais mais ou menos amplos, mais ou menos organizados, e relações entre grupos) e a
ordem distante (a ordem social, regida por grandes e poderosas instituições, por um código
jurídico, por uma “cultura” e por conjuntos de significantes). Se a ordem distante projeta-se
na/sobre a ordem próxima, é possível à ordem próxima, em alguma medida, influenciar a ordem
distante?
Segundo Limonad e Lima (2003), para Lefebvre, “não se trata de substituir a
tendência dominante, mas de revertê-la, em um movimento que partiria dos produtos para a
produção”. Assim, a contribuição deste autor encontra-se na proposta de resgate do valor de
172
Tuan (1983:191) citando Shakespeare, Coriolano, ato 3, cena 1 apud Mello (1991:60).
175
uso e da apropriação social do espaço, em contraposição à dominação do espaço abstrato.
“Trata-se de lutar pela transformação social e, por conseguinte, que se lutar por criar um
espaço diferencial”.
A festa, o encontro, a sexualidade, seriam elementos a serem
resgatados em uma luta pelo direito à cidade. Trata-se não só de libertar
Prometeu de sua eterna labuta, mas de resgatar Dionísio. E este resgate
de Dionísio representa um resgate do corpo, do prazer, de certa forma
uma recuperação do caráter libertário da revolução. À idéia de
dominação, presente em Marx e em Hegel, Lefebvre antepõe a
possibilidade de apropriação próxima e distante a um tempo
apropriação possível e não possível de se realizar e mais uma vez sim
e não a um tempo. Contrapõe, assim, concebido e vivido, que no
capitalismo expressam-se na contradição entre valor de troca e valor de
uso, a partir da qual define a tríade da representação do espaço social e
a relaciona aos três momentos da produção do espaço a partir de três
esferas escalares de reprodução social. A possibilidade de
transformação social residiria, também, portanto, no conflito entre a
apropriação e a dominação social do espaço, na disputa pela construção
de um espaço diferencial (LIMONAD e LIMA, 2003).
Os autores ressaltam que Lefevbre recorre exaustivamente a seu método
progressivo-regressivo, em que a ordem próxima e ordem distante contrapõem-se e interpõem-
se de maneira incessante em um constante ir e vir da vida cotidiana. Os autores destacam que
o próximo e o distante na obra de Lefebvre não seriam dimensões numéricas, quantitativas que
em termos do tempo significariam duração e do espaço distâncias materiais, escalas
cartográficas, correlações físicas restritas ao assim chamado mundo material. Ao contrário,
Lefebvre refere-se às qualidades
que expressam diferenças em termos de escalas, esferas e formas de
representação e (re)produção do espaço social que representam uma
retomada da contradição latente entre o valor de uso e o valor de troca
entre a apropriação social, o vivido e a dominação, o concebido. Entre o
hegemônico e o não-hegemônico.
(...)
É a partir do reconhecimento que o espaço social contém uma multitude
de representações específicas desta tripla interação das relações sociais
de reprodução social que emerge a tríade conceitual das práticas
espaciais, das representações do espaço e dos espaços de
representação. Neste sentido Lefebvre (1991:32) adverte que, ao
mesmo tempo, que o espaço carrega em si simbolismos sexuais
explícitos ou clandestinos (representações das relações de reprodução)
próprios do cotidiano, do particular e do vivido, transmite também as
mensagens hegemônicas do poder e da dominação (representações das
relações sociais de produção) expressões do geral e do concebido
(LIMONAD E LIMA, 2003).
Lefebvre (1986 apud LIMONAD E LIMA, 2003) afirma que o espaço contém as
176
relações sociais (idem: 32) e, também, representações desta dupla ou tripla interferência das
relações sociais - de produção e reprodução (ibidem: 42). Segundo os autores, Lefebvre alerta
para o fato de que tais relações podem ser tanto frontais, públicas e declaradas, quanto ocultas,
clandestinas, reprimidas e capazes de conduzir a transgressões.
A cidade é obra dos citadinos, mas nem sempre existe diálogo entre o habitante e
as grandes instituições que se afirmam sobre a realidade prático-sensível. O Estado, principal
responsável pelo planejamento urbano, e as empresas privadas, principais beneficiárias da
ação do Estado, fazem do espaço urbano o lugar preferencial da acumulação capitalista.
Tal como Ribeiro (2006, p. 40) diz “áreas da cidade, monumentos naturais e
artificiais, corpos e gestos transformam-se em focos (ou nichos) da acumulação primitiva de
capital simbólico”.
Os impulsos globais que atingem a cidade de um país periférico
submetida a longo processo de involução urbana (SANTOS, 1990),
como é o caso do Rio de Janeiro, criam excepcionais oportunidades de
acumulação primitiva de capital simbólico (RIBEIRO, 2006, p. 48).
Através do uso instrumental da administração pública ocorre a realização de
investimentos que organizam a vida espontânea da cidade em direção à realização do lucro
global e a subordinação da vida espontânea a imposições da economia globalizada, alterando
usos do espaço urbano (RIBEIRO, op cit). Este parece ser o caso dos projetos e grandes
eventos organizados sob a orientação do modelo de gestão urbana adotado pela
municipalidade.
Legitimada através de noções neutras, do tipo parcerias público-
privadas, a ação considerada eficaz permite a fragmentação do espaço
urbano, através da criação de barreiras sociais visíveis e invisíveis, e a
implementação de políticas públicas que geram intolerância e
interrompem o diálogo interclassista espontâneo. Cabe salientar, neste
momento, que este diálogo, agora enfraquecido, constitui um dos
elementos mais relevantes da singularidade do Rio de Janeiro, como
demonstra a riqueza da música criada na cidade (RIBEIRO, 2006).
A espetacularização da cultura evidencia-se nos equipamentos culturais da cidade.
Os recentes projetos da Prefeitura como a Cidade da Música e a Cidade do Samba - revelam
o quanto as políticas urbanas estão desconectadas de processos culturais existentes, o que
demonstra que projetos dessa natureza - nos moldes como vem sendo concebidos e
implementados – pouco contribuem para a vida cultural da cidade.
A construção da Cidade do Samba, no bairro da Gamboa, como parte do plano de
recuperação e revitalização da área portuária foi orientada pelo modelo do marketing urbano,
que privilegia ações voltadas para o turismo e, não, as práticas cotidianas da população. A
177
Cidade do Samba recebeu um investimento inicial de cerca de R$91 milhões. Serve como
centro de produção de carros alegóricos, adereços e fantasias das quatorze maiores Escolas de
Samba. Construído a partir de uma parceria entre a PCRJ e a LIESA (Liga Independente das
Escolas de Samba), o empreendimento apóia a produção do espetáculo e, ao mesmo tempo,
apresenta, ao visitante, o Carnaval oficial do Rio. Neste “parque temático do samba”, é possível
assistir a um espetáculo com músicas internacionalmente conhecidas, mulatas, baianas,
mestres-salas e porta-bandeiras. Após o show, o visitante que quiser “se sentir um folião”, pode
alugar uma fantasia, tirar foto e ir atrás da bateria. Tudo encontra-se previsto para que o
espetáculo do Carnaval esteja acessível aos turistas durante o ano inteiro
173
.
Figura 21 – Cidade do Samba – Gamboa (RJ)
174
Guiada pela mesma lógica exógena, a Cidade da Música Roberto Marinho foi
concebida como um equipamento-ícone urbano, capaz de projetar a imagem da cidade no
exterior. Construída com base num projeto do arquiteto Christian de Portzamparc, premiado
especialista em projetos de grande porte, como alguns equipamentos culturais da Europa,
inclusive a Cité de la Musique, de Paris, a Cidade da Música do Rio de Janeiro terá um custo
aproximado de R$447 milhões. O complexo abrigará a maior sala de concertos de orquestra
sinfônica e ópera da América Latina e será a sede da Orquestra Sinfônica Brasileira da Cidade
do Rio de Janeiro.
173
Para saber mais sobre a Cidade do Samba, http://www.papodesamba.com.br/site/index.php?
a=lc&c=cidadedosamba último acesso em 22 de Janeiro de 2008.
174
http://www.riodejaneiro-turismo.com.br/pt/pagina/?Canal=343 último acesso em 22 de Junho
de 2008.
178
Figura 22 – Projeto da Cidade da Música Roberto Marinho – Barra da Tijuca (RJ)
175
A crítica incisiva ao projeto aproxima-se da análise feita por Jacques (2006, p. 85).
Segundo esta análise, o uso da cultura pelo marketing urbano resulta numa “culturalização”
associada à “espetacularização”, em que o turismo tem papel fundamental. Para a autora,
“neste modelo de planejamento, dito estratégico, a cultura urbana visa um público cada vez
menos identificado com a população moradora”, sendo assim criada “uma relação inversamente
proporcional entre espetáculo e participação (e cultura popular)” (JACQUES, 2006).
Concordamos com a autora quando afirma que quanto mais espetacular é o uso da cultura nos
processos de “revitalização” urbana, menor é a participação da população e da cultura popular,
como demonstram os exemplos da política cultural da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
176
.
Quando observamos alguns projetos recentes relativos à Lapa, constatamos riscos
de negação do sentido poético e lúdico da apropriação simbólica do lugar e de redução dos
contatos culturais espontâneos. É o que acontece com a restrição dos eventos ao interior das
casas de espetáculo. A resistência a esta restrição demonstra o inconformismo com as formas
de diversão programadas e previsíveis, que podem fazer do lugar mais um parque temático,
agora da boemia.
A proposta de criação de uma área exclusiva ou de transformação da Lapa num
parque temático passa pela conservação patrimonial em difusão no país, que, em geral, segue
a homogeneização proposta por organismos multilaterais como a Unesco, preparando a cidade-
cenário para o turismo internacional. O patrimônio reinventado serve, assim, para enfeitar a
cidade e vendê-la. Muitas vezes, esta conservação é conduzida de modo exógeno, implicando,
175
http://www.vitruvius.com.br/ac/ac014/ac014_1.asp último acesso 22/01/08
176
http://www.rio.rj.gov.br/culturas/site/cult.php?go=&id=240198 último acesso 22/01/08 O mérito
do projeto da Cidade da música está na promessa de que o lugar terá salas de aula e de
ensaios, indicando que poderá vir a ser apropriado pela população local.
179
inclusive, na remoção dos moradores e freqüentadores. O caso da Lapa pode nos ajudar a
refletir sobre a velocidade com que ocorrem processos que visam reinventar lugares, ainda que
este seja um lugar de uso espontâneo e, portanto, absolutamente vivo.
Embora recentemente esteja aumentando o interesse do capital imobiliário nesta
área, com a construção de novos empreendimentos, como condomínios, o casario antigo da
Lapa resiste porque pode ser lido como um cenário perfeito para a venda do samba-choro como
música tradicional da cidade (HERSCHMANN, 2007). Entretanto, a população resiste à
tendência mercadológica de transformação do lugar e talvez este seja o motivo pelo qual
possamos afirmar que a Lapa é um território plural, que afirma a dialeticidade da ordem próxima
e da ordem distante.
Além de alguns empresários, a Prefeitura começa a valorizar a Lapa como uma
área de interesse para a gestão urbana. No entanto, até o momento, as iniciativas da PCRJ
limitam-se a uma pequena propaganda no site da RioTur, que convida o turista a conhecer o
local. Nem ao menos as “obras de fachada” tem sido mantidas na Lapa pela PCRJ nos últimos
anos.
Considerando que a dinâmica urbana constrói-se através de práticas materiais e
simbólicas, Silveira (2004, p. 287) propõe o exame de intervenções urbanas recentes, como o
Projeto de Revitalização da Praça Tiradentes e Arredores, o Distrito Cultural da Lapa, a
legislação urbanística que prevê a implementação das Áreas de Proteção do Ambiente Cultural
APACs e o Plano e Recuperação e Revitalização da Região Portuária para a compreensão
da política urbano-cultural da cidade, como tratamos no primeiro capítulo desta Tese
177
. Nos
casos do Corredor Cultural (atualmente orientado pela legislação das APACs), do Distrito
Cultural da Lapa e da “revitalização” da Praça Tiradentes, nota-se uma continuidade espacial e,
até mesmo, uma sobreposição de ações de política urbano-cultural de distintas esferas de
governo, de modo a implementar, nesta área central da cidade, projetos de “requalificação”
urbana que se instauram a partir de uma temática preservacionista e de objetivos ambiciosos,
que dificilmente se concretizam.
Nossa proposta é reconhecer a fragmentação do espaço urbano “vinda de cima”
para, posteriormente, confrontá-la com as contra-racionalidades “vindas de baixo”. Na Lapa, o
que acontece é fruto, em grande medida, da ação dos atores locais. A resistência dos
177
De acordo com Silveira (2004, p. 18), o Programa Monumenta vem desenvolvendo ações em
âmbito nacional, abrangendo diversas cidades históricas”, através de parceria entre Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), Ministério da Cultura e prefeituras, com participação
da UNESCO. Esse programa inclui a “restauração e reciclagem do uso de imóveis nos
arredores da Praça Tiradentes”.
180
moradores e comerciantes locais à transformação vinda de cima pra baixo demonstra que a
espetacularização atinge apenas alguns fragmentos da cidade. A criação de áreas especiais,
protegidas ou renovadas através de políticas culturais, constitui-se numa das faces das
orientações ideológicas que norteiam as intervenções no espaço urbano. No caso da Lapa, da
“revitalização” da Rua do Lavradio e, em certa medida, do Corredor Cultural, o que houve foi
uma apropriação, por parte do Estado, de movimentos originados fora dele (SILVEIRA, 2004, p.
286).
Interessa-nos, neste momento, resgatar eventos que não necessariamente
modificam a materialidade urbana, mas que demonstram distintos usos e apropriações da
cidade. A ação hegemônica, no caso dos eventos festivos, revela a força e a velocidade do
capital na transformação do espaço urbano, como ocorre com os mega-eventos internacionais
realizados na cidade. Neste tipo de evento, organiza-se “a absorção lucrativa da efervescência
urbana” - como o carnaval corporativo que verticaliza atividades econômicas (RIBEIRO, 2006,
p. 41) ou o Reveillon do Rio sendo a cidade transformada em vitrine e em fábrica de bens e
serviços de consumo imediato (idem).
No Reveillon 2008, foram ocupados mais de 90% dos quartos oferecidos pela rede
hoteleira. Além da queima de fogos de artifício, a música foi a principal atração do evento, que
inclui uma intensa programação de shows por toda a cidade - palcos na Penha, Ramos,
Flamengo, Ipanema, Barra da Tijuca, Sepetiba, Ilha do Governador, Paquetá e Pedra de
Guaratiba.
A Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, por meio da Secretaria Especial de
Turismo/Riotur, foi responsável pela produção do evento que reuniu mais de dois milhões de
pessoas na orla de Copacabana
178
. A festa de 2008 inaugurou o palco em formato octogonal,
de 65 metros de largura e vazado para que o público pudesse assistir ao espetáculo de todos
os ângulos da praia.
Seis telões permitiram que a multidão acompanhasse o show
179
. A festa
contou com a participação do DJ Mam, tocando ritmos brasileiros, e com a apresentação do
178
Em Ipanema e na Barra da Tijuca, o patrocínio é da iniciativa privada.
179
A sonorização é sempre um problema nestes eventos e, por isso, foi um dos pontos
modificados para este ano, contando com 32 torres de som de 10 a 12 metros de altura,
instaladas do Leme ao Posto 6. Mesmo com amplos investimentos feitos na melhoria da
sonorização, a tradicional contagem regressiva foi feita fora do horário oficial, por uma falha do
responsável por acionar os fogos, que não havia sincronizado o relógio com os da praia. Após a
queima de fogos, que homenageou o Pan 2007, o Cristo Redentor e alguns bairros cariocas, a
festa continuou com o lançamento do Projeto Marlboro Live, no qual o DJ, acompanhado por
uma banda, comandou um baile funk com sucessos nacionais e internacionais. Foi a primeira
vez que o funk foi a atração principal do reveillon. Quatro escolas de samba do Grupo Especial
mais bem colocadas no Carnaval 2007: Beija-Flor, Grande Rio, Mangueira e Unidos da Tijuca,
fecharam a festa
181
sambista Diogo Nogueira, que comandou uma roda de samba, com clássicos do gênero. Em
seguida, o DJ Nado Leal apresentou mais sucessos nacionais, com composições de Tim Maia,
Rita Lee, Paralamas do Sucesso, Jorge Benjor. Minutos antes da meia noite, foi transmitida
uma trilha especial composta por músicas que enaltecem a Cidade Maravilhosa, excluindo “Rio
40 graus” do repertório
180
. Esse fato gerou uma rápida polêmica entre Laufer, um dos
compositores da música, que questionou a censura através da imprensa, e o organizador do
repertório da festa, que atribuiu a ausência da música apenas a uma questão de gosto
pessoal
181
.
Mega-shows nas praias são freqüentes na cidade. Muitos geram polêmicas, como
ocorreu com o show do Rolling Stones, no dia 18 de fevereiro de 2006, na praia de
Copacabana, que interferiu no trânsito da cidade e no cotidiano dos moradores do bairro e seu
entorno. O número de profissionais dos órgãos públicos trabalhando na área foi superior ao do
Reveillon e, segundo Ana Maria Maia, na época subsecretária Especial de Eventos, a PCRJ
disponibilizou efetivos dobrados em virtude da grande concentração de pessoas na área de dois
quilômetros, do palco até o Leme.
Figura 23 – A cidade preparada para sediar grandes eventos musicais promovidos pela PCRJ – Túnel que liga os
bairros de Botafogo e Copacabana
182
O estacionamento de ônibus de turismo foi proibido nos bairros de Botafogo, Leme,
Copacabana, Ipanema, Leblon e Lagoa e os que chegaram à cidade, na sexta-feira, tiveram
180
“Rio 40 graus”, foi recentemente eleita a música que mais representa a cidade do Rio de
Janeiro, através de uma votação popular promovida pelo RJTV, jornal local da TV Globo.
181
A notícia banal de que no dia 31, a Riotur anunciou que instalaria 300 banheiros químicos na
orla de Copacabana, pode ser útil mais à frente. Reserve.
182
http://copacabana.com/fotos/displayimage.php?album=10&pos=74
182
que utilizar o estacionamento do Teleporto, no Centro, e a Quinta da Boa Vista, em São
Cristóvão. Os veículos de caravanas foram deslocados para o Aterro do Flamengo. A Guarda
Municipal enviou trezentos e oitenta agentes para o dia do show, mas as ações de controle
tiveram início dois dias antes. Mais de cem agentes, vinte viaturas, três reboques e dois
caminhões de apoio bloquearam doze ruas transversais à Avenida Nossa Senhora de
Copacabana, para impedir o acesso de ambulantes à orla. O comércio de bebidas em garrafas
de vidro foi proibido por determinação da Prefeitura.
Figura 24: Show da banda Rolling Stones na Praia de Copacabana (2006)
183
A superprodução do show da banda Rolling Stones incluiu um palco móvel de vinte
e quatro metros de altura e mais de cem toneladas em equipamento. Não dúvida de que um
evento desse porte afeta a vida da cidade, como demonstramos com a descrição.
Figura 25: Cenas da cidade depois do show da banda Rolling Stones na Praia de Copacabana
184
183
A primeira foto foi publicada no site http://www.copacabana.com/rolling-stones-
copacabana.shtml#como; a segunda no site http://copacabana.com/fotos/displayimage.php?
album=10&pos=30 e a terceira da edição do dia 20/02/2006 no Segundo Caderno do jornal O
Globo.
184
Fotos do Segundo Caderno do Jornal O Globo 20/02/2006.
183
O show reuniu 1,3 milhão de pessoas, segundo o Corpo de Bombeiros, e um
milhão, de acordo com números da Polícia Militar. Os convidados dos patrocinadores tiveram o
privilégio de ocupar a maior parte da praia, de onde poderiam assistir ao show. Até uma
hierarquia na área VIP foi mostrada pela imprensa: duas cores de camiseta, com acesso
diferenciado ao show. Para obter uma vaga no Espaço Vip Claro Motorola era preciso ser um
dos quatro mil convidados da promoter Alicinha Cavalcanti ou dos organizadores e
patrocinadores do evento. O critério foi o mesmo usado em qualquer grande evento: é preciso
ser alguém com reconhecimento “publicitário”, ou seja, uma celebridade”: artista, esportista,
modelo, empresário, político. Trata-se do uso privado do espaço público, que o evento
promove a empresa patrocinadora, estando os melhores lugares da festa reservados para
“pessoas muito importantes” (VIPs).
Este tipo de evento patrocinado por grandes empresas e promovido com apoio da
prefeitura apesar de rotulados com populares (por serem shows gratuitos, em locais abertos),
revelam-se como eventos fechados que reproduzem hierarquias e exclusões sociais. Na melhor
das hipóteses, veiculam a “imagem da cidade no mercado internacional”, embora não sejam
conhecidas as suas conseqüências negativas para o habitante.
Tal como Limonad e Lima (2003) apontam, as interfaces engendradas pelo
enfrentamento entre ordem próxima e ordem distante tornam-se facilitadores metodológicos
para a compreensão do processo de espacialização, isto é, da produção do espaço.
Obviamente, Lefebvre não se referia apenas a “novos espaços” quando tratava da produção do
espaço, que a refuncionalização também precisa ser considerada pela análise. E a produção
do espaço se realiza também através da tensão entre apropriação e dominação, entre valor-de-
uso e valor-de-troca. Analisar os usos do espaço urbano através dos eventos musicais,
acompanhando as proposições lefebvrianas, que são mais associativas e menos
fragmentadoras é uma forma de afirmar que o espaço é, ao mesmo tempo, global e
fragmentado, do mesmo modo que é, a um só tempo, concebido, percebido, vivido.
3.1.2 - Festivais patrocinados: porque falar de limitação do consumo diante de tanta
diversidade?
Não é possível compreender os grandes festivais sem considerar os patrocínios. No
caso do Rio, os maiores eventos deste tipo são os patrocinados por marcas de cerveja e
184
empresas de telefonia. Mas este fato não condiciona completamente a ação possível. Mesmo
em festivais organizados com o objetivo de promover a marca que financia o evento, acontecem
contraditórias apropriações das condições de difusão da música.
Dois exemplos da produção musical vinculada ao hip-hop ilustram os diversos
interesses envolvidos nos festivais da cultura “das periferias”, ajudando-nos a compreender
relações entre cultura, política e mercado fonográfico. O primeiro deles é o Prêmio Hutúz e, o
segundo, o Skol Hip Hop Manifesta. Criado em 2000, com a finalidade de premiar os artistas de
maior destaque do hip-hop nacional, o Hutúz Rap Festival organizado pela Central Única das
Favelas CUFA - transformou-se em um festival anual que articula diversas atividades
artísticas. Além das premiações, shows, batalhas de DJs, MCs, B.Boys, intervenções de
grafiteiros e festivais de cinema, o evento promove palestras e debates, ganhando, a cada ano,
maior relevância na agenda cultural e política da cidade. O festival tem obtido financiamento e
patrocínio de instituições como: Unesco, Consulado Geral dos Estados Unidos da América,
Centro Cultural Banco do Brasil, Viva Rio, Cyclone. Ainda promovem o evento: a Rede Globo,
MTV, Rádio Transamérica FM, o Ministério da Cultura e Secretarias de Cultura dos governos do
Estado e do Município. Este exemplo indica que, em alguma medida, as ações da CUFA e de
outros articuladores da produção cultural periférica possuem, de um lado, caráter emancipatório
e, de outro, de reforço de vínculos com agentes da ordem dominante.
O segundo evento evidencia o interesse do mercado fonográfico no gênero hip-hop.
O Skol Hip Hop Manifesta no Rio de Janeiro – assim como o Skol Hip-Rock em Recife, Ribeirão
Preto e São Bernardo do Campo e o Red Bull Hip Hop Rua em São Paulo e Porto Alegre
mostram que o interesse pelo gênero pode estar limitado ao lançamento de CDs produzidos
sem qualquer tipo de vínculo com o movimento político-cultural das periferias, como os que são
produzidos pelo apresentador Luciano Huck ou pelo empresário Alexandre Accioly. Estes
empresários tornaram-se agentes da difusão do hip-hop gringo” que, para rappers engajados
na luta social, “esvazia o discurso crítico adotado pelo hip--hop produzido nas periferias e
favelas das cidades brasileiras”
185
.
Estes dois exemplos revelam a articulação entre diferentes circuitos da economia e
a interdependência entre “centro” e “periferia”, tema que, por si só, daria origem à outra tese.
Ressaltamos, ainda, que o mesmo patrocinador pode ter interesse em promover eventos como
o Festival SkolRio, que, na edição 2004, foi realizado em dois finais de semana na Marina da
185
Rappers como 50 Cent, Eminen, Snoopy Dog Dog e Ja Rule, cujas musicas são
freqüentemente difundidas pela industria fonográfica contribuem para a redução do Hip Hop a
uma imagem superficial, sem conteúdo político e que reforça atitudes violentas, mesquinhas e
machistas.
185
Glória e que na edição de 2005, teve seu público ampliado, com a concentração de uma série
de shows em dois dias de evento na Lapa. A proposta do festival de reunir diferentes ritmos e
tribos num mesmo local espelha o que acontece, espontaneamente, na Lapa. Nos dias 18 e
19 de novembro de 2005, as diversas casas noturnas da Lapa participaram do SkolRio, cada
uma com um estilo de programação: no Circo Voador, apresentaram-se Eletrosamba,
Paralamas, Motirô, Orquestra Imperial e Fernanda Abreu. Na Fundição foram realizadas
apresentações de BNegão e Embolada, Helião e Negra Li, Marcelo D2, do funk do DJ Marlboro,
da bateria do Suvaco de Cristo e do Asa de Águia. Outras casas, como o Rio Scenarium, o
Carioca da Gema, Sacrilégio, Dama da Noite, Estrela da Lapa, Clube dos Democráticos e
Mangue Seco seguiram com sua programação de samba de raiz, recebendo Dona Ivone Lara,
Nelson Sargento e outros ícones. O Teatro Odisséia oferecia blackmusic e uma mostra de
cinema. A música eletrônica e o forró também estiveram representados no Casarão Cultural dos
Arcos, na Casa de Cultura Humbu e no Asa Branca.
A dinâmica do lugar foi completamente alterada pela intensidade da programação e
pelo interesse comercial do patrocinador, que impediu a presença de vendedores ambulantes
nos dias de evento. A área reservada ao evento ficou cercada de seguranças que impediam a
venda de produtos concorrentes aos do patrocinador. No show gratuito, na praça da Lapa,
participaram cantores, coletivos musicais alternativos e bandas como o Bloco Céu na Terra, o
Rio Maracatu e Alceu Valença, na primeira noite e o samba de Arlindo Cruz, Dudu Nobre e a
bateria da Skol, com integrantes de várias escolas de samba na noite seguinte. Foram mantidos
os shows gratuitos de chorinho na Rua do Lavradio e a feira de antiguidades - a “Rio Antigo”.
Com este exemplo, procuramos demonstrar que alguns promotores buscam produzir eventos
que, aparentemente, reproduzem a dinâmica do lugar: um uso múltiplo do território, incluindo a
promoção simultânea de shows gratuitos e comerciais, misturando pessoas de diferentes
grupos sociais e de diferentes áreas da cidade, porém, com uma grande dose de artificialismo,
evidenciado pelo controle da área para atender ao interesse comercial do patrocinador.
Esta reprodução artificial da “alma do lugar” é precária, o que se evidencia na
dificuldade de impor limites a determinados usos do território. Sem dúvida, a Lapa desperta
interesses associados à lógica da dominação, mas isso não tem implicado em perdas
significativas de sua característica de território múltiplo. A Lapa revela que o território é mesmo
um campo de forças, no qual inscrevem-se diferentes formas de apropriação do lugar. No caso
do SkolRio, os promotores do evento não conseguiram controlar sua dinâmica plural; pois,
ainda que buscassem impedir a entrada de ambulantes na área reservada ao evento, inúmeras
outras atividades – ilícitas ou não – apropriaram-se da oportunidade construída pelo evento.
186
Para Limonad e Lima (2003), o espaço é atravessado por múltiplas ordens, que se
emblematizam nos extremos da ordem próxima e da ordem distante. Evidentemente, não são
abolidas as ordens intermediárias. Trata-se de um complexo jogo interescalar que se faz
acompanhar de um igualmente complexo jogo de representações. Da mesma forma que as
representações do espaço não aniquilam os espaços de representação e as práticas espaciais,
mas se articulam; o mundial não abole o local. Não se trata apenas da linguagem do espaço;
mas, como nos alerta o próprio Lefebvre (1986:46 apud LIMONAD E LIMA, 2003), dos
discursos sobre o espaço. Matrizes espaciais que se interligam a matrizes discursivas,
resultantes e produtoras de diferentes ordens articuladas no processo de produção do espaço
(idem).
A rua, e no caso da Lapa, a Ladeira da rua Joaquim Silva, não é apenas o espaço
concebido pelos planejadores da cidade e nem o espaço percebido somente como passagem.
Nas noites dos fins de semana, a Lapa e especialmente este trecho próximo aos Arcos,
evidencia apropriações simbólicas do território e usos que contradizem a lógica da propriedade.
A ladeira é ponto de encontro e a música, que extrapola os limites das paredes das edificações,
se propaga e passa a fazer parte da alma do lugar.
Evidentemente, a mídia contribui para a criação de novos territórios e centralidades,
que seus produtos difundem percepções da cidade e de determinados lugares. Mas a Lapa
evidencia que novos usos do lugar emergem de sua apropriação simbólica e espontânea e em
permanente recriação.
Foto: Dilmar Cavalher/Strana
187
Figura 26: A Lapa repleta de gente numa noite de fim de semana
O espaço vivido, apropriado simbolicamente e delimitado pelo uso, pode ser
interpretado como território usado, praticado, (SANTOS 1999 apud RIBEIRO, 2005). Outro
exemplo de que os eventos patrocinados podem gerar situações imprevistas é oferecido pelo
projeto Encontros TIM, que incluiu o show Carioca, de Chico Buarque, no Circo Voador. Com o
poder de atração de público de Chico Buarque, os ingressos esgotaram-se rapidamente. A
solução encontrada pelos organizadores foi instalar um telão do lado de fora do Circo Voador,
para que a multidão assistisse ao show da rua. O cantor e compositor escolheu o local para o
show ocorrido em maio de 2007, encerrando a turnê do CD ‘Carioca’
186
.
186
O show Carioca teve como base o cd homônimo, lançado em 2006 pela Biscoito Fino, que
teve mais de cem mil cópias vendidas.
188
Figura 27: CD Chico Buarque Carioca (2006), lançado pela indie Biscoito Fino
187
A partir destes exemplos procurarmos demonstrar que a “alma do lugar” interfere
nos usos e apropriações do espaço. A Lapa é movida e animada por práticas espaciais
fortemente vinculadas à música e esta apropriação cultural-simbólica contrasta os novos
projetos econômicos para o local. Entretanto, para além da Lapa e arredores, outras áreas do
Centro do Rio vêm sendo aproveitadas para o abrigo de atividades artístico-culturais.
Com base em estudo feito por Silveira (2004), podemos afirmar que a chamada
“revitalização” da área central da cidade inclui áreas como a Praça XV, a área portuária, o
Morro da Conceição, a Praça Tiradentes, o corredor viário formado pelas ruas Estácio de Sá,
Salvador de e Mem de (Projeto Sá’s), assim como a área do Teleporto, todas de
iniciativas da Prefeitura. Como as outras áreas do núcleo central da cidade, a zona portuária
sofre um processo de requalificação de seu uso, que inclui a implementação de políticas
urbanas e a construção de equipamentos-ícones, como a Cidade do Samba, pouco articulada à
iniciativa privada, que tem investido no bairro através da reforma de edificações antigas.
Alguns grandes eventos utilizaram os armazéns da área portuária do Rio de
Janeiro, como o Tim Festival de 2004 e o Hutúz Rap Festival 2005, realizados no Armazém
número 5 e, ainda, o Oi Noites Cariocas de 2008, realizado no Píer Mauá
188
.
187
Imagem do CD “Carioca” www.biscoitofino.com.br último acesso em 20 de Janeiro de 2008.
188
O festival Noites Cariocas, idealizado pelo compositor e produtor musical Nelson Motta no
Morro da Urca em meados da década de 80, ressurgiu com o patrocínio da empresa de
telefonia “Oi” no mesmo local em 2004. A cada final de semana cerca de 2500 pessoas subiam
o Pão de Açúcar para assistir a shows do festival resgatado por dois empresários Luís André
Calainho e Alexandre Accioly. Na temporada de 2008, após uma decisão da empresa que
administra os bondinhos do Pão de Açúcar de organizar, por conta própria, os eventos no lugar,
189
Figura 28: Hutúz Rap Festival no Armazém 5 do Cais do Porto - Zona Portuária (RJ)
189
Intervenções que visam a refuncionalização de construções abandonadas e
obsoletas de áreas portuárias são cada vez mais freqüentes na escala mundial; mas, no caso
da cidade do Rio de Janeiro, seria preciso que o entorno - Praça Mauá, Gambôa e adjacências
- fosse também beneficiado com políticas públicas para que um desenvolvimento local pudesse
de fato ocorrer. Um desenvolvimento horizontal e “de dentro” pressuporia a instalação de usos
renovados do lugar, através de políticas que estimulassem e apoiassem iniciativas locais. Ainda
que a Rua Sacadura Cabral apresente uma nova movimentação cultural, desde o início da
década atual, o porto do Rio está longe de ser uma área “revitalizada” ou “requalificada”, se
comparado ao que acontece em cidades que enfrentaram o esvaziamento de áreas centrais
com mais criatividade e recursos.
Nesta Tese, interessa-nos compreender os processos em curso na área central da
cidade, que estimulam mudanças nas formas de produção e apropriação do espaço urbano.
Interessa-nos, sobretudo, compreender como estes processos interferem nos usos dos lugares
e, em que medida, a cultura e, mais especificamente, a música, promove a valorização
simbólica de determinados trechos da cidade. Tal como revela a reportagem do jornal O Globo:
Como na Lapa, a renovação se deve à verve carioca e à iniciativa
privada. Uma verve que levou, por exemplo, à criação do Trapiche
Gamboa, aberto em novembro de 2004 pelo casal Claudia Melo Alves e
Clevison Homero, depois de nove meses em obras. Sem qualquer
o Oi Noites Cariocas foi transferido para o Píer Mauá (na área do Porto do Rio).
189
http://musica.uol.com.br/especiais/2005/hutuz/photo20051128032122.html último acesso em
25 de janeiro de 2008.
190
experiência de bar (“Só de fechar, nunca de abrir”, segundo os dois), (...)
e investiram as economias na casa (na verdade um imenso sobrado de
1867). Deu certo e o lugar, que começou abrindo só nas noites de sexta-
feira, virou um cultuado templo do samba que funciona de terça-feira a
sábado, sempre lotado.
(...)
Um pouco mais afastado, temos o Baixo Samba. Explica-se: na
esteira da Cidade do Samba, que reúne os barracões das 14 escolas do
Grupo Especial numa área de 98 mil metros quadrados (...), surgiu o
pagode Barracão Zero, organizado por Paulinho do Ouro e Bandeira
Brasil. (...) A idéia é transformar o lugar num centro cultural, com
exposições e lançamentos de livros e CDs
190
.
A área portuária da cidade exemplifica uma forma de ocupação que, recentemente,
vem estimulando a instalação de empreendimentos vinculados à promoção de atividades
artístico-culturais que ocorre simultaneamente, mas de forma desarticulada das iniciativas
pontuais da PCRJ. Além do Trapiche da Gambôa, o Sacadura foi inaugurado recentemente
com shows de Martin’ália, Thalma de Freitas e Rodrigo Maranhão.
A inauguração do Centro Cultural da Ação da Cidadania, no bairro da Saúde,
também encontra-se relacionada ao projeto de “requalificação” do Cais do Porto do Rio de
Janeiro
191
. A reforma do prédio construído em 1871, que abrigou o primeiro Armazém da Região
Portuária do Rio de Janeiro, foi iniciada em 2002, com o objetivo de abrigar um centro de
excelência em cultura e projetos de inserção social.
190
LESSA, Jefferson. Porto dos milagres Jornal O Globo – caderno RIO SHOW. 03 de fevereiro
de 2006.
191
Cedido pelo governo federal cinco anos à Ação da Cidadania, o prédio é singular em
termos de dimensão e características arquitetônicas: tem aproximadamente 14.000 de área
construída em dois pisos e um espaço interno com 168 metros de comprimento e 36 metros de
largura. A primeira etapa da reforma incluiu a restauração do interior do armazém e a
reestruturação da parte elétrica e hidráulica. Esta etapa foi financiada pela Petrobrás através do
Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, que o Centro Cultural irá oferecer oficinas
gratuitas de capacitação profissional, em áreas ligadas à arte e à cultura, para 3 mil jovens das
comunidades do estado onde estão localizados os comitês da Ação da Cidadania. Para o
término das obras, a Ação da Cidadania busca recursos junto a empresas privadas.
191
Figura 29: Centro Cultural Ação da Cidadania – Bairro da Saúde (RJ)
192
A proposta do CCAC é abrigar exposições, shows, bares, restaurante, pólo de
cinema e vídeo, com duas salas de exibição de 100 lugares cada, estúdio, salas de edição,
produção, aulas teóricas e teatro com capacidade para 350 espectadores. A área destinada aos
shows com 1.200m² de área livre, batizada de Espaço Renato Russo de Música e Cidadania,
está equipada com itens cênicos de iluminação e som adequados à programação diversificada,
com capacidade para receber três mil pessoas. Em julho de 2006, o CCAC começou a
funcionar antes da finalização de espaços específicos.
Locais destinados a eventos musicais multiplicam-se na cidade. Em alguns casos, a
Prefeitura e a iniciativa privada mostram-se desarticuladas, como na Zona Portuária. numa
área como a Lapa, evidencia-se a apropriação, por parte do poder público, das reivindicações
de determinados segmentos sociais. Os grupos sociais mais atuantes como associações de
moradores, de comerciantes, entidades de classe, grupos culturais beneficiam-se das
iniciativas que buscam a preservação da memória, sem desconsiderar as possibilidades de
novos usos. Procuram, assim, o apoio dos órgãos públicos responsáveis pelas políticas
culturais e urbanas. Ainda que esta articulação seja incipiente ou pouco significativa, serve de
inspiração para pensarmos a cidade sendo renovada através da iniciativa do habitante.
192
www.acaodacidadania.com.br/public/galeria%20de%20fotos%202005/index.htm
192
O uso renovado de certas áreas da cidade decorre, por vezes, da ação espontânea
do habitante, dando origem a lugares de abrigo da festa e da música. Através da música, torna-
se possível reconhecer lugares requalificados por manifestações culturais, como acontece em
centros culturais de bairros como Santa Teresa e Laranjeiras. No fim dos anos 90, eventos de
forró e samba criaram novos ambientes culturais. Através de festas como Xote Coladinho e
Pessoas do Século Passado, colaboraram para a criação de um centro cultural. A Casa Rosa
Centro Cultural oficializou o início de suas atividades em 2004. A reforma preservou a
arquitetura do início do século passado, ainda que o grafite no muro externo sinalize o encontro
com esta nova manifestação da arte urbana.
Figura 30: Casa Rosa Cultural – Bairro das Laranjeiras
193
Numerosos outros locais foram refuncionalizados para abrigar eventos culturais,
como as festas Soul Baby, Soul! e Phunk, no Cabaré Kalesa, na Rua Sacadura Cabral (Praça
Mauá), na Estudantina Musical, reduto da gafieira, ou as festas Soud! Realizadas no Cine Íris,
na Rua da Carioca, local onde durante o dia funciona um cine pornô
194
. O grupo Matriz também
tem evidenciado que a cidade do Rio de Janeiro ainda tem muitos espaços que podem sediar
193
Foto http://www.8p.com.br/dudaguima/flog/a856/34821/#a856-34823 último acesso em 29 de
Janeiro de 2008.
194
A festa Loud! inicialmente ocorria no Campus da UFRJ da Praia Vermelha, onde seus
organizadores estudavam comunicação social. Em março de 1999 a festa tornou-se semanal na
Casa da Matriz, aliando pista de dança e show de bandas como Los Hermanos. O Cine Íris fez
da festa um sucesso entre o público jovem ouvinte do Rock alternativo em função do formato
que mesclava 3 pistas de dança simultâneas, com shows de bandas indies, exposições e
terraço ao ar livre.
193
novos locais de diversão, como demonstram as recentes casas de festas e shows inauguradas
pelo grupo
195
.
Assim, espaços podem assumir novas funções através de eventos musicais
surgidos espontaneamente, como nos casos citados acima, a partir de formas de cooperação
entre novos artistas. Por outro lado, cada vez mais os eventos estão adaptados à lógica de
patrocinadores e financiadores, indicando a presença da ação vertical e comercial do mercado
fonográfico. Por este motivo, é muito difícil citar, atualmente, festivais de fato independentes.
Não se pode negar a existência de uma cena musical que independe das grandes gravadoras;
mas o patrocínio sempre será relevante para a realização deste tipo de evento.
Vejamos a complexidade deste processo. No início dos anos 1990, surgiu um
projeto voltado para novas expressões poéticas no Espaço Cultural Sergio Porto. O CEP 20.000
(Centro de Experimentação Poética) conduzido pelo poeta Chacal, consolidou-se como um
canal aberto a qualquer tipo de expressão poético-literária. Com a multiplicação das atividades
do CEP, alguns dos organizadores tiveram a iniciativa de criar o Humaitá Pra Peixe (HPP). Este
festival aproveitou a fertilidade musical dos primeiros anos da década de 1990, quando músicos
como Chico Science, afirmaram-se nacionalmente, influenciando a produção de bandas como o
Planet Hemp e O Rappa, que, em 1993, apontavam os rumos da cena musical alternativa da
cidade do Rio de Janeiro
196
. Após 14 edições, o festival HPP havia lançado mais de 300
artistas, dentre os quais se destacam: Paulinho Moska, Mundo Livre S. A., BNegão, Pedro Luís
e a Parede, Seu Jorge.
O termo "independente" é, hoje, radicalmente rejeitado por Bruno Levinson,
idealizador do festival que ressalta a importância de patrocínio. Desde a primeira edição, o
evento recebe apoio da RioArte, órgão da Secretaria Municipal de Cultura, através da liberação
do Espaço Cultural Sergio Porto. no Festival de 2004, o coletivo que organiza o evento
195
Após consolidar o sucesso da Casa da Matriz (uma casa de festas em Botafogo com duas
pistas de dança, sala de exposição, loja da Favela Hype, bar, sala de estar, sala de jogos), o
Grupo Matriz foi expandindo seus investimentos na cidade e hoje, além da Produtora Matriz,
reúne o Teatro Odisséia, o Cine Lapa, o Bar da Ladeira e a Choperia Brazzoka, na Lapa, além
do Pista 3, do Cinemathèque, do Boteco Salvação e da Drinkeria Maldita, em Botafogo. O
lendário Garage aparece no site Matriz on line como um futuro empreendimento do grupo.
http://matrizonline.oi.com.br/ - último acesso em 06 de Julho de 2008.
196
Chico Science e a Nação Zumbi revolucionaram a música brasileira dos anos 1990 por
evidenciarem à sua geração (e a quem mais quisesse ouvir) a possibilidade do encontro entre
referências da música nacional-regional-local com a música internacional. A mescla de
tambores e guitarras, letras contundentes e ritmos recifenses de batidas pulsantes revolucionou
a cabeça dos jovens urbanos, fossemgrungesou pertencentes a outras tribos. O fato é que o
manguebeat contribuiu para a valorização de culturas locais e de diferenças na música e para
além dela.
194
lançou os primeiros discos do selo Cardume, como os de Thalma de Freitas e do
Bangalafumenga, com distribuição pela EMI Music
197
.
Em 2005, Bruno Levinson conseguiu patrocínio da empresa de telefonia Oi para
promover a premiação “Oi Tem peixe na Rede”. A banda vencedora foi premiada com a
gravação de um CD pela major Sony-BMG. A reportagem do Jornal do Brasil confirma a
surpresa com que o meio musical recebeu a notícia do prêmio.
No momento em que a tendência entre artistas consagrados é fugir das
multinacionais [como fizeram Djavan, Chico Buarque, Gal Costa e tantos
outros], festival independente elege como prêmio gravação de CD em
‘major’ e gera debate sobre o mercado alternativo e a melhor maneira de
se construir uma carreira
198
.
Em 2006, o festival não teve patrocínio; mas, constituiu uma parceria com o Canal
Multishow, que resultou na produção de uma série de cinco programas que possibilitaram a
divulgação nacional de artistas da cena musical alternativa, como Céu, Rodrigo Maranhão e
Jonas Sá. Apesar de ainda afirmarem rejeitar o rótulo de “independentes” para evidenciar a
necessidade de apoios e patrocínios, os organizadores do HPP foram contemplados em 2008
no primeiro Edital para Festivais Independentes da Petrobrás. De acordo com o site do evento:
De olhos abertos chegamos até aqui e este ano o passo foi grande. O
HPP foi contemplado pelo primeiro Edital para Festivais Independentes
da Petrobrás. (...) E isto também não foi à toa. Se existe este Edital foi
também graças à Abrafin: Associação Brasileira dos Festivais
Independentes(...). Sim, agora temos uma Associação. Tem sido uma
experiência realmente muito boa vivenciar o associativismo dando
resultados.
A Associação Brasileira dos Festivais Independentes (ABRAFIN) expressa uma
busca por alternativas na produção de eventos; pois, segundo seus idealizadores, se as
grandes marcas de bebidas e de telefonia móvel promovem seus próprios eventos, os
“independentes” também devem organizar-se para a promoção conjunta de festivais. A
ABRAFIN, com sede em Goiânia, foi criada em dezembro de 2005 a partir da reunião de
produtores de festivais independentes de todo o país
199
. Como confirmou seu presidente,
Fabrício Nobre, os problemas conjunturais não são exclusivos dos pequenos produtores. A
associação seria, assim, uma forma de representação importante de interesses coletivos, ainda
que não pretenda representar todos os festivais independentes
200
.
197
Tal como Bruno Levinson afirma “O nome [do selo] não poderia ser mais apropriado:
Cardume. É assim que somos: Coletivo”.
198
Caldeira. João Bernardo. Os dois lados do disco. Jornal do Brasil. Caderno B. 12 de agosto
de 2005.
199
http://www.abrafin.com.br - último acesso em 25 de janeiro de 2008.
200
É de Nobre a melhor definição do que é ser “independente”: independente das condições,
nós vamos fazer”.
195
A gente percebeu que todos os festivais independentes, tanto os
pequenos quanto os maiores, passavam pelos mesmos problemas. Foi
aí que surgiu a idéia de se associar e criar a ABRAFIN. Nós não temos o
objetivo de representar todos os festivais do Brasil, mas sim de garantir
que os nossos festivais continuassem existindo, e que esses artistas
continuassem existindo”
201
.
Além da consultoria realizada por ocasião do lançamento do Edital da Petrobrás,
Ministério da Cultura e Instituto Moreira Salles de apoio aos festivais musicais do país, a
ABRAFIN organizou o calendário dos festivais cadastrados, evitando a coincidência de datas.
Além disso, publicou um folheto explicativo dos festivais, com seus respectivos endereços de
contato. Esta organização expressa a decisão política de fortalecer iniciativas em grande parte
informais e carentes de canais de representação, junto a governos e empresas.
O HPP 2008 foi apoiado pelo edital da Petrobrás porque, além de shows, promove
talk-shows, workshops e debates que revelam que a música que não encontra-se contemplada
pelas grandes gravadoras. Nesta edição, foram 28 dias de divulgação de artistas até então
pouco conhecidos, como a cantora Roberta Sá e as bandas Fino Coletivo e Do Amor.
40 artistas de várias partes do país. Uma programação bem variada em
todos os sentidos. Hoje se fala muito em crise e tal. Crise pra
quem?! Não faltam talentos e cada vez surgem mais possibilidades. A
tecnologia facilitou a produção musical e agora, positivamente,
ajuda em muito na promoção deste material
202
.
O festival HPP revela a diversidade das experiências musicais existentes no país.
Reúne bandas e músicos que ainda buscam caminhos para mostrar seu trabalho e artistas
localmente consagrados. O HPP evidencia a crescente organização dos “independentes”. Nesta
direção, o HPP promove a reflexão sobre a situação do artista frente às transformações
tecnológicas no campo fonográfico e se torna um ambiente de organização de agentes do
circuito alternativo da produção musical.
Também visando o debate de questões relativas à indústria da música pós-
revolução digital, foi promovido o evento CHAPPA. Encontros e debates, com entrada franca,
reuniram pessoas envolvidas na indústria da música para confrontar idéias, apresentar
alternativas e experiências e fazer, do evento, o início de um “canal carioca da nova música”
que articule “os agentes dos diversos níveis da cadeia produtiva fluminense, conectando-os
com o Brasil e com o mundo”
203
. O CHAPPA buscou debater as novas configurações de
201
www.chappa.com.br - último acesso em 26 de janeiro de 2008.
202
http://2008.humaitaprapeixe.com.br/ - último acesso em 27 de janeiro de 2008.
203
“A cadeia produtiva da música no estado do Rio de Janeiro”; “Rádios on-line e podcasts: de
ouvinte a programador”; “Youtube, myspace, napster, itunes: as novas plataformas on-line”;
“Mercado independente: experiências e viabilizações”; “Direito autoral na nova música”; Novos
consumidores e novas formas de marketing” foram temas tratados nos debates do evento. Para
196
mercado impostas pela revolução digital e as formas de inserção encontradas pelos agentes do
campo.
O último exemplo de evento que nos ajuda a refletir a importância da música para a
vida na cidade é oferecido pelo circuito de apresentações promovido pelo Conexões Urbanas.
Trata-se de uma iniciativa do Grupo Cultural Afro Reggae que recebe apoio do governo
municipal; inicialmente, através da Assessoria Especial de Eventos e, posteriormente, da
RioTur. Também recebe apoio da CUFA, da Rádio FM O Dia e de outros patrocinadores, como
a empresa de telefonia Tim. O apoio da PCRJ e de empresas privadas permite que o Conexões
Urbanas esteja presente em espaços populares e segregados, através de grandes eventos
musicais que contribuem para a consolidação de outras representações da favela. O circuito
Conexões Urbanas completou quinze anos de existência com cinqüenta edições de shows com
alto padrão de qualidade em termos de som, luz e palco, permitindo a apresentação de nomes
da música nacional nas favelas da cidade.
Figura 31: Público assistindo a um show do circuito Conexões Urbanas na Vila Vintém - 2004
204
Além da Banda AfroReggae e de MVBill, atuaram, no circuito do projeto, artistas
como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Lenine, Fernanda Abreu e O Rappa, apresentando-se na
Penha, Maré, Bangu, Acari, Vila Kenedy. A 47ª edição do projeto promoveu o show Universo ao
meu redor de Marisa Monte ao Complexo do Alemão, com a mesma estrutura utilizada em
outros palcos da cidade
205
.
mais informações ver http://www.chappa.com.br/musica_chappa_quente.php#quem - último
acesso em 26 de janeiro de 2008.
204
Foto: Ierê Ferreira. http://www.afroreggae.org.br/sec_fotos.php?language=pt_BR&id_tipo=10
205
O projeto Conexões Urbanas tenta não se restringir ao espetáculo e, em cada comunidade,
negocia com a Prefeitura a realização de melhorias estruturais na localidade. Na Canitá, a
Prefeitura gradeou a quadra onde aconteceu o show e limpou e iluminou a área do evento para
197
Figura 32: 47ª Edição do evento Conexões Urbanas – Canitá - Complexo do Alemão - 2007
206
Os eventos musicais são, portanto, múltiplos. São ambientes de consumo e
oportunidade para propaganda das empresas patrocinadoras; mas, também criam a
possibilidade de ampliação dos contatos culturais e a renovação musical. Nestes festivais,
bailes, shows, projetos e apresentações, o público interage com o artista, permitindo encontros
nos quais a música é um elemento central e aglutinador.
Através da música, a diversidade da vida urbana parece menos conflituosa e mais
harmônica. Reconhecida e vivenciada através da música, ainda pode ser considerada um lugar
de encontro, ainda que existam confrontos e conflitos. Nos casos resgatados neste item, os
eventos também evidenciam a importância do uso espontâneo dos lugares. A apropriação
simbólica da cidade evidencia, assim, práticas espaciais que revelam tanto a dominação
objetiva, quanto a apropriação subjetiva do território.
3.2 - MÚLTIPLAS IDENTIDADES/TERRITORIALIDADES NA CIDADE EM FESTA
Como dito no primeiro capítulo, a Lapa vem passando, nos últimos dez anos,
intensa transformação fortemente vinculada à música, à festa e aos encontros. Nos últimos dez
anos, o lugar demonstra a sua vitalidade através da refuncionalização do casario antigo e do
surgimento de centros culturais, casas noturnas e atividades que reforçaram seu
reconhecimento como abrigo da prática musical coletiva. Esta antiga área residencial do Centro
do Rio viveu momentos de decadência e estigmatização e, atualmente, vive um período de
a realização de atividades noturnas.
206
http://www.afroreggae.org.br/sec_fotos.php?language=pt_BR&page=2&id_tipo=74 Fotos do
show de Marisa Monte no Complexo do Alemão disponíveis no site do GCAR. Último acesso
em 30 de janeiro de 2008.
198
efervescência cuja base é a produção musical e o uso da rua
207
.
A organização de agentes locais tem permitido a requalificação de edificações,
combinando, aparentemente, renovação com preservação de memórias e tradições do lugar.
Mais de uma centena de estabelecimentos (em 2004, eram 116, de acordo com pesquisa do
DataUFF) fazem da Lapa um lugar de usos plurais: antiquários, bares e restaurantes com
atrações musicais, lugares destinados a festas e eventos - como a Fundição Progresso (antiga
fábrica e, hoje, maior equipamento cultural do bairro, além de sede de importantes grupos de
teatro, dança e música), o Clube dos Democráticos (fundado em 1867, que hoje abriga
gafieiras, forró e samba) e o Circo Voador (reduto histórico da produção musical alternativa de
rock dos anos 1980 e, hoje, um dos mais importantes palcos da cidade), além de escolas e
coletivos artísticos.
Diferentes gerações e grupos se reúnem na Lapa para produzir e consumir cultura.
Seus freqüentadores buscam um local para a reunião, a festa e a boemia. As rodas de samba
evidenciam o estado de ânimo que paira no lugar: o do encontro, que a roda de samba sintetiza
ao possibilitar que vários músicos cantem canções conhecidas, para que as pessoas que estão
em volta participem do coro. Em alguns lugares a roda de samba acontece num bar e as
paredes do estabelecimento não delimitam o acesso à música, como acontece no Bar Semente.
Para Herschmann, “a trajetória de sucesso, por exemplo, da cantora Teresa Cristina
(...) que se dedica ao samba e o choro se confunde com o renascimento recente da Lapa”
(HERSCHMANN, 2007, p. 39). Teresa Cristina e o Grupo Semente alcançaram o
reconhecimento por tocarem na Ladeira da Lapa, no Bar que empresta nome ao grupo, fechado
em junho de 2003. De acordo com o site Agenda do Samba-Choro
As dívidas, as multas aplicadas pela Prefeitura por causa do barulho, a
falta de experiência comercial da proprietária (a professora universitária
Regina Weissmann) e o som antidemocrático dos amplificadores das
bandas de rock, forró e música eletrônica que passaram a infestar a Rua
Joaquim Silva foram os principais motivos que levaram o Semente a
fechar as portas este mês.
O Bar foi um dos palcos do renascimento da Lapa e do samba e do
choro no Rio. Lançou artistas e grupos como Teresa Cristina, Pedro
207
Tal como a reportagem do jornal O Globo de 8 de junho de 2008 afirma, a Operação Lapa
Segura do Corpo de Bombeiros vistoriou 70 estabelecimentos comerciais no dia anterior à
elaboração da reportagem. Na operação, 60 bares e casas noturnas apresentavam
irregularidades nas condições de segurança, especialmente no que se refere à ausência de
saídas de emergência e extintores de incêndios sem condições de uso. A preocupação dos
Bombeiros com a Lapa passa pela reclamação dos freqüentadores do local que alegam a falta
de saídas de emergência e pelo fato de muitas edificações serem consideradas patrimônio
histórico da Cidade, fato que reforça a necessidade de alguns estabelecimentos se adaptarem
às normas de segurança.
199
Miranda, Abraçando o Jacaré, Mariana Bernardes, Tira Poeira e muito
outros. Era ponto de encontro de sambistas e chorões que
transformavam seu minúsculo palco num espaço de experimentações e
trocas musicais (...)
208
A matéria citada, relata os desdobramentos deste processo, que de origem a uma
inusitada forma de apropriação do lugar, que hoje denomina-se “Comuna do Semente”.
Quando a proprietária Regina Weissmann fechou o bar, muitos ficaram
órfãos. Sempre se falava em sua reabertura. Chegou-se a tramar um
show para arrecadar fundos para saldar as dívidas, mas a idéia não foi
pra frente. (...) Um grupo de cerca de 20 pessoas se cotizaria para pagar
as despesas de manutenção. (...) O bar foi reabrindo aos poucos, com
vários músicos se empolgando, a decoração sendo renovada e até uma
nova equipe montada para atender os clientes. (...) Os "novos donos"
assinam o contrato do aluguel se tornando responsáveis pela casa. (...)
Se antes o bar já era sem fins lucrativos de fato, agora o é de direito. Ou
melhor, me engano. Visa-se o lucro sim. No correr de cada evento, os
sócios comunitários sacarão seus polpudos dividendos em forma de
poesia, amizade, companheirismo e muita, mas muita mesmo,
música”
209
.
As rodas de samba do Bar Semente também projetaram o grupo Casuarina (que
ensaiava na Rua Casuarina, no Humaitá) e muitos outros sambistas de várias partes da cidade.
Herschmann (id., p. 26) considera que se desenvolveu, na Lapa, um “nicho de mercado de
grande vitalidade, embora à margem da grande indústria da música” e sem apoio de mídias
massivas como a televisão e o rádio. Ainda de acordo com o autor, a formação do circuito do
samba-choro esteve fortemente vinculada às tradições da Lapa
210
.
Apesar da expressividade do circuito de samba-choro, coexistem, na Lapa,
diferentes gêneros musicais (funk, hip-hop, maracatu, forró, charm, rock, ritmos afros). O
encontro e o confronto entre popular e erudito, antigo e novo, local e global, público e privado
revelam a singularidade e a face múltipla da Lapa
211
. Entretanto, os mais jovens se destacam
quando o foco da observação é o uso da rua como lugar do encontro, revelando a apropriação
subjetiva do território. As ruas são laboratórios de inovações (não necessariamente projetadas,
mas praticadas) e de experiências concretas que, segundo Carrano (2003) revelam o jovem e
seu sentido de mudança calcado no presente. Talvez os jovens não se preocupem em agir
208
www.samba-choro.com.br/noticias/6492 acessado em 29 de janeiro de 2008
209
www.samba-choro.com.br/noticias/8732 último acesso em 29/01/2008
210
Esses dois gêneros musicais associados produziram vantagens para ambos por oscilar entre
o popular e o erudito, entre o essencialmente instrumental e o seu irmão vocal. Para o autor, “se
o choro se converteu em uma garantia de qualidade” para o samba, o samba por sua vez
emprestou um pouco de sua popularidade e espaço de mercado para o choro”
(HERSCHMANN, 2007:45) e ambos combinam perfeitamente com o cenário da Lapa.
211
http://www.eefd.ufrj.br/ludicidade/lapa/home.html último acesso em 29/01/2008
200
politicamente, mas o convívio com a diferença é positivo numa cidade tão violenta e desigual
como o Rio de Janeiro.
Como resposta a uma dinâmica social complexa, o sujeito (no caso, o jovem)
manifesta sua individualidade por meio de diversas linguagens e a música assume certa
centralidade neste processo; pois,permite a expressão de subjetividades o que indispensável ao
reconhecimento de si mesmo e do Outro. Mesmo quando a experiência limita-se ao papel de
espectador, a música permite a expressão da emoção e de valores culturais. Outros encontros
são ainda possíveis quando observamos os coletivos formados pelo uso do lugar: nas filas para
entrar no Circo Voador, na Fundição Progresso ou no Teatro Odisséia é possível encontrar
amigos, ter um tempo pra uma conversa e para consumir produtos comercializados por
numerosos ambulantes, que a Prefeitura associa à “desordem urbana”. Entretanto, esta
atividade tão singela, revela a interdependência dos circuitos inferior e superior da economia
urbana
212
.
A vitalidade e a renovação do lugar devem-se mais ao fato da Lapa sediar práticas
musicais coletivas do que à decisão governamental de transformá-la em pólo turístico ou vitrine
da música carioca. A prosperidade da Lapa alerta para o confronto político-ideológico de
diferentes projetos, contribuindo para que a preservação/renovação da Lapa ocorra de forma
independente dos processos de espetacularização promovidos pela municipalidade. A Lapa
revela uma racionalidade alternativa que estimula uma experiência urbana coletiva e plural.
Para Lefebvre (2001a), os habitantes reconstituem centros e utilizam certos locais e
promovem encontros negados pela cidade. Assim, ainda que o lugar comece a sentir os efeitos
da ação pragmática do capital imobiliário e da dominação econômica, o uso da rua e a
vitalidade das manifestações culturais revelam que a cidade ainda pode favorecer uma
experiência alternativa de apropriação simbólica e subjetiva do território.
Para além da racionalidade urbanística, insinua-se uma outra forma de pensar a
cidade, baseada na prática concreta de numerosos grupos sociais. Evidenciando relações que
envolvem do popular ao erudito, do local ao global, do licito ao ilícito, do sagrado ao profano, do
homossexual ao heterossexual, do antigo ao novo (CARRANO, 2003)
213
, o território da Lapa é
212
Em setembro de 2003 a paisagem da Lapa ficou bem diferente após um decreto da PCRJ
que determinou a desocupação de logradouros públicos do Bairro da Lapa por comércio
ambulante”. A Rua Joaquim Silva (ladeira dos Arcos) e a Mem de foram as mais visadas. A
ausência dos ambulantes mudou a paisagem e a dinâmica do bairro, que o serviço informal
de venda de bebidas e os engarrafamentos acabavam incentivando a ocupação das ruas pelos
pedestres.
213
http://www.eefd.ufrj.br/ludicidade/lapa/home.html
201
“múltiplo, ‘diverso e complexo’, ao contrário do território ‘unifuncional’, da dominação político-
econômica proposto pela lógica capitalista hegemônica” (HAESBAERT, 2004)
214
.
Para além da materialidade urbana, interessam-nos as ações que evidenciam novas
características da produção musical urbana alternativa, tal como os projetos coletivos e
horizontais que emergem na Lapa e em outros bairros da cidade, como os blocos
carnavalescos e as novas orquestras que atraem um público jovem numeroso e diversificado. O
grande número de coletivos musicais (orquestras, grupos, cordões, blocos, bandas) chama a
atenção para a vitalidade de um mercado musical alternativo, no qual voltam a ter relevância as
apresentações ao vivo.
3.2.1 – Grandes Coletivos Musicais e racionalidade alternativa: a festa-baile de
orquestras e blocos
A cidade do Rio de Janeiro ainda é um importante pólo de produção artística do
país. Especialmente no carnaval, a cidade evidencia sua potência criativa e, nos últimos anos,
os blocos carnavalescos ganharam força revelando a insatisfação com o espetáculo do
carnaval oficial das Escolas de Samba
215
. Uma das principais características da renovação mais
recente do carnaval do Rio foi a multiplicação dos blocos e cordões carnavalescos de rua, cuja
principal característica é a liberdade organizacional dos grupos que se reúnem para “brincar”
nas ruas da cidade. Os mais de 160 blocos da cidade têm características bastante variadas, no
que se refere à sua formação, manutenção e reconhecimento social. Em comum têm a
capacidade de provocar encontros festivos que não dependem do consumo e onde não
restrições de acesso, como aquelas marcadas pelo pagamento de ingresso.
Os blocos desfilam pelas ruas de forma bastante espontânea. Alguns blocos são
agremiações antigas como o Cordão do Bola Preta, o Simpatia é Quase Amor e o Suvaco do
214
Nos últimos anos, a Lapa vem atraindo comerciantes e empresários estabelecidos na
cidade e que pretendem aproveitar a prosperidade do lugar. Além de filiais de botequins como o
Informal, o Belmonte, empreendimentos como os do grupo Matriz - como a Choperia Brazzoka,
o Casarão Cultural dos Arcos e o Teatro Odisséia - e o recém-inaugurado Lapa 40 graus:
sinuca & Gafieira, evidenciam a veloz e vertical dominação do território. Estes
empreendimentos comerciais ao mesmo tempo em que propiciam a determinadas atividades,
negam a tendência de desenvolvimento local endógeno que poderia diferenciar a evolução da
Lapa da promoção cultura em curso noutras partes da cidade.
215
Alguns dizem que o carnaval do Rio surgiu nas ruas, mas que o sambódromo e a forma
como se deu a oficialização e a espetacularização da festa afastaram as camadas populares e
médias, privilegiando o turista, transformado no principal consumidor do evento.
202
Cristo, que décadas desfilam pelas ruas da cidade. Mas, surgiram coletivos musicais
heterogêneos, como o Bangalafumenga, Vem Ni Mim Que Eu Sou Facinha, Rio Maracatu.
Vários destes blocos, de formação recente, tem sua origem no encontro de amigos e
freqüentadores de bares e casas de festas, como o Bloco do Carioca da Gema, o Empolga às 9
(ligado aos proprietários e freqüentadores da Casa da Matriz) e o Quizomba (do Circo Voador).
Alguns atraem multidões e diversificam suas atividades, como é o caso do Monobloco, que tem
uma formação de 150 batuqueiros envolvidos nos ensaios pré-carnavalescos semanais (estes
sim, eventos em locais fechados, com cobrança de ingresso) e no desfile anual, em locais
abertos, como a Praia de Copacabana, que chega a atrair cerca de 150 mil pessoas, como no
Carnaval de 2008. O Monobloco gravou CD e DVD e adota um formato mais enxuto para as
turnês de divulgação de sua música.
Alguns blocos carnavalescos desejam atrair mais foliões e se preparam com
equipamentos cada vez mais potentes e patrocinadores dispostos a arcar com os custos do seu
crescimento. Outros tentam combater a tendência ao gigantismo para garantir a viabilidade da
festa. O Cordão do Boitatá, visando preservar a tradição do uso de fantasias e sua opção por
músicas antigas de carnaval de forma acústica, organiza um desfile tradicional e um grande
baile no final do cortejo; este, sim, apoiado por uma estrutura de show grande palco e
equipamentos sonoros de longo alcance.
Criado em 1996, o Cordão do Boitatá surgiu do encontro de amigos que se reuniam
para tocar juntos e ouvir músicas que não eram veiculadas pelas rádios; músicas cujo arranjo
cuidadoso e qualidade sonora seriam mais atraentes do que as atuais. Inspirando-se em
Pixinguinha, Silas de Oliveira, Marcus Pereira e outros nomes da música popular, o coletivo
desfila como cordão no carnaval desde 1997 e também apresenta-se como grupo de samba,
jongo, choro, frevo, marchinha, forró maxixe e folia de reis, apresentando-se em casas de
espetáculo na Lapa e arredores. Em 2004, lançou o CD de música brejeira e cosmopolita”
intitulado Sabe lá o que é isso? pela indie DeckDisc.
No carnaval, o Cordão do Boitatá realiza seu desfile de maneira tradicional, sem
carro de som e com músicos tocando marchinhas com instrumentos de sopro e percussão. O
bloco circula com quase todos os foliões fantasiados e percorre os becos da Rua do Mercado,
onde a acústica favorece a escuta do canto dos participantes. Atualmente, os insatisfeitos com
a falta de “carro de som” no Boitatá, são contemplados pelo grande baile de Carnaval
promovido pelo Bloco na Praça XV, após o desfile.
203
Figura 33: Desfile do Cordão do Boitatá em 2006 na Rua do Mercado – Centro
Há alguns anos, tentando fugir da multidão, o Cordão do Boitatá modificou o horário
em que costumava desfilar e, na ocasião, os foliões que se dirigiram ao habitual local de saída,
no horário divulgado pelos guias informais da Internet, nada encontraram. Numa “magia
carnavalesca”, os foliões sem-bloco” criaram um novo cordão no local, denominado o Cordão
do Boi Tolo. Este cordão manteve, nos anos seguintes, o seu desfile, sem percurso definido,
nas ruas do Centro Antigo. Em 2008, não se registrou na prefeitura, buscando manter a
espontaneidade da festa manifestação festiva e se concentrou na escadaria da Assembléia
Legislativa.
Com relação ao Cordão do Bola Preta, um dos mais antigos e maiores blocos da
cidade, observa-se a insatisfação popular com a falta de apoio da PCRJ
216
. Um comentário no
site que divulga a programação do carnaval de rua revela a falta de estrutura que afeta
negativamente esse verdadeiro movimento popular, que, espontaneamente, se apropria da rua
para a festa:
216
Parte da falta de atenção da Prefeitura com o Cordão do Bola Preta está relacionado,
provavelmente, às dívidas que a agremiação tem com a PCRJ, relativa ao IPTU Imposto
Predial e Territorial Urbano e ao condomínio onde se localiza a sede do cordão, que pertence
ao município. Em compensação, o Governo do Estado garantiu à agremiação uma nova sede
em uma antiga edificação na Lapa, para onde o bloco transferiu-se em 2008.
204
É um barato ver todos os moradores da cidade brincando juntos na sua
mais antiga agremiação carnavalesca. Tem pobre, rico, branco, preto,
velhinhas e crianças, sem ter uma única confusão. É como a cidade do
Rio de Janeiro deveria ser todos os dias. Muita gente vai fantasiada e/ou
monta alas. (...) Uma das coisas mais lindas é ver a galera chegando
nos transportes públicos. A barca Niterói-Rio vem em festa. Todos
vêm cantando a marchinha do Bola. É emocionante assistir aos trens do
metrô parando na estação da Cinelândia com a multidão
desembarcando cantando. (...) O único ponto contra do Bola é culpa da
Prefeitura, que ignora solenemente a bela festa. Além de não colocar
nem um guardinha municipal orientando o trânsito, chega ao cúmulo de
deixar para colocar os banheiros químicos na [Rua] Rio Branco apenas
depois que o bloco desfila. As foliãs, em especial, são obrigadas a se
aliviar em improvisados banheiros feitos de caixas de papelão. A
impressão que fica é a de que a Prefeitura não gosta do povo desta
cidade. Se colocassem um décimo dos banheiros que colocaram no
show dos Rolling Stones já tava bom
217
.
A falta de segurança, de organização do trânsito e, principalmente, de banheiros
químicos revela a desatenção da PCRJ com a população e com a cidade, que manifesta-se,
inclusive nos eventos organizados pela Prefeitura, como os shows gratuitos na praça da Lapa.
O desconforto gerado por esta falta de atenção virou notícia por revelar, a um tempo, a
passividade e a criatividade no encontro de soluções:
O camelô Franklin Sales de Macedo, de 22 anos, foi mais esperto.
Acostumado, (...) a vender todo tipo de bugigangas, cercou um bueiro
com uma lona azul, montando uma espécie de "banheiro químico" na
Rua Senador Dantas. E cobra R$ 0,50 para que os foliões se aliviem. O
ambulante batizou o invento de ‘xixi no ralo’. ‘Está faltando banheiro
(...)
218
.
Em 2007, a promessa da PCRJ de que a instalação de banheiros químicos seria
providenciada não foi cumprida integralmente. Apesar da falta de apoio, os blocos se
consolidaram como uma alternativa do carnaval do Rio. O problema é que desfiles mal
planejados geram problemas como engarrafamentos. Reportagens referidas ao Carnaval de
2008, noticiaram a intenção da prefeitura de combater a “desordem urbana”. Algumas medidas
tomadas nesse sentido foram: a criação do Marchódromo, na Lapa, e a divulgação de alguns
eventos no site da PCRJ
219
. Anualmente, a Fundição Progresso organiza o concurso de
marchinhas e o Marchódromo, inaugurado no dia 13 de janeiro de 2007, passou a ser o
percurso oficial dos desfiles após as obras de urbanização realizadas em conjunto pela
217
Guia comentado do carnaval de rua carioca http://www.samba-
choro.com.br/carnaval/2008/porbairro - último acesso em 12 de janeiro de 2008.
218
http://g1.globo.com/Carnaval2007/0,,AA1460650-8037,00.html Carnaval 2007 - último
acesso em 12 de janeiro de 2008
219
http://www.riodejaneiro-turismo.com.br/pt/ - último acesso em 24 de janeiro de 2008
205
Prefeitura do Rio e pela Fundição Progresso, que arcou com os custos. O trajeto compreende a
Rua dos Arcos, desde a esquina com a Rua do Lavradio até a Praça dos Arcos, englobando
também a Praça Cardeal Câmara, localizada em frente à Fundição
220
.
Porém, a prometida organização dos horários e itinerários dos blocos, para evitar
“encontros que dificultassem a festa”, em outras áreas da cidade, não se deu de modo
satisfatório, como evidencia a falta de planejamento do tráfego nos locais dos desfiles nos dias
próximos ao carnaval.
Figura 34: O sucesso do tradicional desfile do Cordão do Bola Preta pela Av. Rio Branco
Mas não é no carnaval que surgem, a cada ano, blocos, grupos, cordões e
orquestras, mesclando gêneros musicais clássicos com ritmos contemporâneos. Estes coletivos
criam sites, gravam CDs independentes e registram seus shows em DVDs, criando um novo
mercado para a música, baseado em apresentações ao vivo e na venda de CD/DVDs após as
apresentações. Alguns destes eventos revelam a existência de identidades e territorialidades
que se insurgem e confrontam a “cidade-espetáculo”, não apenas durante o carnaval.
A tradicional Orquestra Tabajara, que décadas apresenta-se nas Domingueiras
Voadoras, do Circo Voador, certamente inspirou as novas gerações. Muitos músicos formam,
hoje, grandes coletivos musicais, como a Orquestra Imperial, a Orquestra Republicana e a
Orquestra Popular Céu na Terra. Com pretensões diferentes e propostas distintas, estes
220
http://revistaraiz.uol.com.br/portal/index.php?
option=com_content&task=view&id=340&Itemid=171 último acesso em 22 de maio de 2008.
206
coletivos têm em comum o fato de construírem um circuito alternativo, cujo principal atrativo são
apresentações ao vivo.
A apresentação de alguns destes coletivos são como pequenos carnavais, onde a
suspensão temporária das normas é permitida e estimulada. Da Matta (2000) chama a atenção
para “a alegria obrigatória dos estados carnavalescos caracterizada justamente por ser um
momento especial demarcado por uma festa que, simultaneamente, salientava o coletivo e o
individual, um ritual situado dentro e fora do mundo”. O carnaval, como revelou Mikhail Bakhtin
(1989 apud DA MATTA, 2000), constrói-se pela suspensão temporária do senso burguês,
aproximando-se da loucura, do descontrole, do exagero, da caricatura, do grotesco, do
desequilíbrio e da gastança. Para Da Matta, esta festa faculta "entrar" em um bloco, escola ou
cordão para relativizar velhas e rotineiras relações e viver transitoriamente novas identidades
que possibilitem leituras inovadoras do mundo (DA MATTA, 2000).
Relativizar relações vivenciando identidades transitórias parece ser uma das
propostas dos coletivos que reproduzem a magia carnavalescas em suas apresentações. A
Orquestra Imperial foi criada em 2002, por um grupo de amigos que, sem grandes pretensões,
organizou um baile-show na antiga casa de espetáculos The Ballroom, no Humaitá
221
.
Inicialmente, a Orquestra Imperial (O.I.) foi uma idéia dos músicos e produtores Berna Ceppas e
Kassin, que convidaram amigos como Seu Jorge, Rodrigo Amarante, Pedro Sá, Moreno Veloso
e outras duas dezenas de músicos pra tocar nesta festa-baile
222
. Apresentando repertório
eclético, os bailes da O.I. passaram a incluir desde samba de gafieira e boleros dos anos 1940
e 1950 a covers inusitados (como a versão sambalanço para Owner of Lonely Heart do grupo
de rock progressivo Yes, sucessos disco-brasil como “Vem Fazer GluGlu” cantada
originalmente por Sergio Malandro) e bem sucedidas composições dos seus próprios
integrantes do coletivo (como Artista é o Caralho, de Rubinho Jacobina e Gomalina, de Max
Sete).
Berna Ceppas afirma que a permanência da O.I. surpreende os próprios
integrantes, pois a proposta não objetivavadar certo”, nem “ser um trabalho sério”. A presença
221
Casa noturna de porte médio, localizada na Zona Sul da cidade, The Ballroom foi inaugurado
em 1995 e fechado em 2005. Tinha capacidade para 1200 pessoas (500 sentadas e 700 em
pé) e chegou a ter um público de 40 mil pessoas por mês no auge da moda do forró
universitário, nos ensaios das escolas de samba e nos shows da temporada de verão da
Orquestra Imperial de 2004.
222
Atualmente a O. I. é composta por Thalma de Freitas, Nina Becker, Moreno Veloso, Rodrigo
Amarante, Nelson Jacobina, Pedro Sá, Bartolo, Rubinho Jacobina, Berna Ceppas, Kassin
Domênico Lancelot, Leo Monteiro, Stephane San Juan, César Farias "Bodão", Wilson Das
Neves, Felipe Pinaud, Max Sette, Bidu Cordeiro, Mauro Zacharias.
207
de músicos famosos amigos nas apresentações da Orquestra Imperial, como Marisa Monte,
Fernanda Abreu, Marcelo Camelo, Caetano Veloso, Erasmo Carlos, Elza Soares atraiu a mídia.
A espontaneidade das apresentações e as improvisações eram conseqüência da ausência de
ensaios: os músicos estavam ali para se divertir, enquanto faziam o som do baile. Durante as
apresentações, os vocalistas se dirigiam à platéia afirmando que aquele não era um show para
ser simplesmente assistido; era “um baile para dançar a dois”. Os bailes do Dia dos Namorados
fizeram muito sucesso, assim como os bailes pré-carnavalescos e a O.I. apresentou-se no
Canecão, Morro da Urca, Claro Hall e realizando turnês pelo Brasil, Europa e EUA.
O sucesso desta orquestra contrastava com a tendência do mercado fonográfico de
transformar sucessos de público em produto, que seus integrantes desejavam que a O.I.
continuasse sendo um projeto paralelo de suas carreiras e um momento de diversão,
espontaneidade e prazer para os músicos. Apenas após quatro anos de apresentações ao vivo,
a orquestra lançou um disco. Primeiro um EP com quatro faixas de músicas consagradas nos
shows e, depois, o CD “Carnaval no ano que vem” (2007), autoral, gravado de forma
independente, com distribuição da Som Livre. Entretanto, apesar do título do CD, a O.I. não fez
a esperada temporada no verão de 2008; mas, apenas, uma única apresentação no festival Oi
Noites Cariocas, no Píer Mauá, com Marchinhas e o intervalo com funk do Big Mix
223
.
Na maior parte das apresentações da O. I. divide-se em dois blocos com
apresentação de um DJ convidado. Mas, os bailes à fantasia, na temporada pré-carnaval, e a
parceria inusitada com o DJ Marlboro, principal DJ do funk carioca, ampliaram o público da O. I.
Foto: Acervo Pessoal
223
A O.I. é contratada para eventos patrocinados e “festas fechadas” (eventos restritos a
convidados), em sua maioria de empresas que tem um intuito comercial. Esta intencionalidade
comercial também evidencia-se na temporada de junho de 2008, quando a O.I. transferiu suas
apresentações para o Clube Monte Líbano, no Leblon, cujos freqüentadores são bem diferentes
do público de suas primeiras apresentações. Se estes contratos podem parecer uma escolha
um pouco contraditória, por outro lado, evidenciam a capacidade do grupo de não levar nada
muito a sério, e fazer do trabalho algo mais divertido. Em vários destes eventos, especialmente
os que ocorrem fora do Rio, os integrantes encontram e fazem amigos (convidados especiais
das apresentações), conhecendo lugares, como a Ilha de Marajó (PA) e trazendo destas
viagens novas experiências musicais como tecnobrega da paraese Gabi, que participou de
apresentações da O.I. no Rio de Janeiro.
208
Figura 35: Baile à fantasia da Orquestra Imperial na temporada pré-carnaval do Circo Voador (2007)
224
.
Além dos méritos da Orquestra Imperial, que recebeu o prêmio da Associação
Paulista dos Críticos de Arte (APCA) em 2007, na categoria “melhor grupo”, não se pode negar
que o DJ Marlboro contribuiu para o sucesso do baile da O.I. no verão dos anos 2004 a 2007. A
presença do funk foi ampliada com a transferência das apresentações da O. I. para o Circo
Voador
225
.
No Circo, os bailes da O. I. são uma mescla de carnaval e baile funk. No caso do
funk, o DJ tem que “captar o desejo da massa” e saber como agradar aos dançarinos sem
nunca precisar consultá-los (VIANNA, 1988). Pioneiro na utilização do scratch, de baterias
eletrônicas, sintetizadores e samplers, Marlboro vive atualmente o auge de sua carreira
226
. O
baile funknão mais assusta, sendo realizado no Circo Voador (como no evento Eu amo Baile
Funk), no Canecão ou em qualquer boate da Zona Sul. Para Vianna (1988),
É necessário lembrar, mais uma vez: o baile não exige a adesão
completa dos dançarinos. Existe sempre, nas sociedades complexas, a
224
Descrição da foto da esquerda para a direita: Rodrigo Amarante (vocal), Nelson Jacobina
(guitarra), Thalma de Freitas (vocal), Nina Becker (vocal) Moreno Veloso (vocal), Berna Ceppas
(sampler) e DJ Marlboro.
225
O evento era quase uma maratona musical dançante, o público era recebido com som de DJ
e funk. A Orquestra Imperial entrava por volta das 23:30h, tocando por quase duas horas. Um
intervalo de trinta minutos trazia o funk do DJ Marlboro e duas dançarinas, seguido por outro
set de cerca de uma hora e meia de O.I.. O DJ seguia tocando funk até às 5 da madrugada.
226
No Reveillon 2008 do Rio de Janeiro, Marlboro comandou o show do palco principal de
Copacabana e os jornais trouxeram a notícia com destaque.
209
possibilidade de “mudar de mundo”, de circular entre os vários mundos.
O baile é a celebração da amizade, de certos laços de vizinhança, mas
isso não quer dizer que um dançarino não possa ter outros amigos, em
outros lugares, com quem vai a outras festas. Essa circulação
“intermundos” tem seus limites. A pobreza do dançarino funk é
certamente um deles. Mas não existe limite absoluto. Nas metrópoles,
as fronteiras culturais estão sempre sendo renegociadas (VIANNA,
1988)
Essa negociação implica na aceitação do funk como expressão cultural legítima e,
também, na apropriação do gênero por diferentes camadas sociais. No auge do sucesso, e em
meio às críticas dos mais puristas, os bailes da Orquestra Imperial já não permitiam a dança em
pares, como na gafieira. Eram bailes de carnaval com funk. Se o ritmo eletrônico ficava por
conta do DJ, o repertório da O.I. continuava incluindo marchinhas e clássicos do samba.
Freqüentando eventos como as apresentações da O.I. foi possível observar e
consolidar algumas reflexões sobre uma série de táticas de acesso a eventos realizados em
locais fechados: casas de show da cidade, como o antigo Ballroom, no Humaitá, a Fundição
Progresso e o novo Circo Voador, na Lapa. Geralmente, para as apresentações ao vivo, os
músicos e a produção do show recebem convites destinados à cortesia, além da possibilidade
de negociarem descontos para o ingresso dos amigos. As listas de ingressos de cortesia (ou
lista Vip) e a lista de convite-amigo são freqüentes nos shows destes coletivos e, geralmente,
funcionam como atrativo de um público “formador de opinião”. Pertencer a esta rede de
convidados é um privilégio; na medida em que garante o acesso a uma maior quantidade e
qualidade de apresentações. No caso desta pesquisa, foi enriquecedor para que a análise
destas apresentações pudesse ser feita de forma mais freqüente e com maior acesso às
informações que circulam no interior do campo musical.
O custo de um ingresso em locais como o Circo Voador gira em torno de trinta
Reais, podendo chegar a cem Reais no caso de uma atração internacional. Na Fundição
Progresso um show nacional pode chegar a oitenta Reais. Estes valores estão altos se
consideramos que grande parte do público destes locais e eventos é constituída por jovens e
estudantes, que, na sua maioria, não tem condições econômicas de ir a estes shows com a
freqüência com que gostaria. Já no Canecão, um ingresso pode custar entre trinta e trezentos e
trinta Reais e no Vivo Rio entre quarenta e cento e vinte Reais, no caso de atrações nacionais e
de cento e noventa a quatrocentos e oitenta, no caso das atrações internacionais
227
.
Os donos das casas de show argumentam que o valor do ingresso teve que ser
reajustado após a verificação de que grande parte dos ingressos vendidos eram beneficiados
227
Valores referentes aos shows realizados em Junho de 2008.
210
pela lei estadual que garante o pagamento de meia entrada aos estudantes. Muitos
estabelecimentos dizem que muita falsificação deste documento e que os não-estudantes
acabam tendo que pagar pela falta de controle sobre a emissão das carteiras estudantis no
país.
Entretanto, verificamos que, na prática, o alto custo dos shows acaba favorecendo a
freqüência a locais mais populares, como o Clube Democráticos, na Lapa, onde o ingresso das
apresentações custa cerca de vinte reais. Apresentando-se semanalmente no Clube dos
Democráticos - tradicional reduto boêmio, cujo prédio foi construído em 1867 a Orquestra
Republicana é um destes coletivos de artistas que evidenciam a renovação da música cariocas
nos anos 2000. Menos carnavalesca que a O. I., e mais próxima do imaginário tradicional da
Lapa, a Orquestra Republicana promete ser uma ‘gafieira renovada’. Desde sua criação em
2005, a Orquestra Republicana apresenta-se com clássicos do samba de gafieira nas noites de
sábado. Seus onze integrantes - Eduardo Galotti, Mariana Bernardes, Pedro Holanda, Alfredo
Del Penho e Samuel De Oliveira desenvolvem atividades paralelas à orquestra. Pedro
Holanda e Mariana Bernardes integram o grupo de samba Anjos da Lua - que também se
apresenta semanalmente no mesmo Clube Democráticos - e Eduardo Galotti é chamado de
‘onipresente’ por participar de rodas de samba e ter sido um dos principais responsáveis pela
retomada das rodas de samba por jovens músicos na última década e, ainda, por ser um dos
destaques da nova geração de sambistas cariocas, que inclui Pedro Miranda, Teresa Cristina e
Eduardo Krieger. A Orquestra Republicana gravou, recentemente, um CD autoral e ao vivo no
Clube Democráticos, com lançamento previsto para 2008
228
.
A Orquestra Popular Céu na Terra que no carnaval transforma-se num bloco de
Santa Teresa, surgiu em 2001 e lançou seu primeiro CD Bonde Folia (2007) pelo selo indie
Dubas. Como bloco carnavalesco, o grupo resgata o Bonde da Folia dos anos 40; seguindo de
bondinho do Curvelo até o Largo das Neves. O desfile acontece na manhã do sábado de
carnaval e na manhã do sábado anterior ao Carnaval, com bonecos gigantes e pernas de pau,
atraindo um público variado que percorre as ladeiras do bairro, animado por marchinhas
tradicionais e composições do coletivo. O grupo também apresenta-se, ao longo do ano, em
casas como Estrela da Lapa, Centro Cultural Carioca e Circo Voador.
228
Além dos coletivos citados, grupos como Orquestra Guanabara, Garrafieira, Casuarina,
Anjos da Lua e vários outros surgiram na década atual. A Orquestra Guanabara surge em 2004,
com o mesmo nome de uma orquestra dos anos 1930, aproveitando o sucesso da O.I. e
costumava se apresentar no antigo Ballroom. Os integrantes do Casuarina pertencem a uma
classe média intelectualizada e sofrem preconceitos por não serem “sambistas originais”, como
afirmam no release e no samba Certidão, que dá nome ao segundo CD do grupo.
211
O que estas iniciativas musicais têm em comum? Surgiram do encontro de amigos,
que fazem música por prazer. Acreditam na possibilidade da arte possibilitar momentos
imprevisíveis e que contrariem a lógica produtiva. Também compartilham o fato de terem
criações próprias, difundidas em apresentações ao vivo. A comercialização de CDs constrói um
mercado alternativo, algumas vezes “independente”, baseado em informações transmitidas
horizontalmente. As relações de proximidade transparecem nos encontros e parcerias musicais
que perpassam estes grandes coletivos, revelando que não basta ter talento. O
estabelecimento de novos vínculos com o público é o que movimenta o mercado alternativo da
música.
Estes coletivos criam músicas e reinventam tradições, evidenciando que não se
pode revitalizar algo que não morreu, como as rodas de samba, as marchinhas de carnaval ou
a gafieira. Inspiram-se na tradição e na memória, mas criam públicos para expressões musicais
que, mesmo através de referências ao passado, representam o presente, em conexão com as
novas tecnologias, popularizadas na passagem do século XX para o XXI.
Estes grupos também sinalizam para a importância do surgimento de eventos
menos vinculados ao consumo, como os desfiles de blocos e o uso de espaços mais
degradados ou menos valorizados para que as apresentações possam garantir a freqüência de
um público fiel e assíduo, como exemplificamos com o caso dos freqüentadores do Clube
Democráticos. Ressaltamos também as táticas de acesso alternativo aos shows como as redes
de convidados, as listas amigas e a emissão de carteiras de estudante que garantem descontos
aos locais e eventos culturais.
Freqüentadores destes eventos pertencem às camadas médias urbanas. Na maioria
jovem, mantém intensas relações com mestres do samba, da gafieira, do soul-funk. O objetivo
aqui não é definir, exatamente, quem são estes freqüentadores, mas refletir sobre a
possibilidade da música estimular racionalidades diferentes daquela que orienta a produção
fonográfica hegemônica, calcada no lucro imediato.
Como afirmamos anteriormente, não se trata de negar a lógica do mercado, mas de
revelar trocas regidas pela sociabilidade e pela apropriação simbólica do espaço urbano. A
criação musical tem a capacidade de interferir na transformação da arte apenas em mais um
nicho de mercado. A arte, no caso a música, estimula experiências e vivências que podem ser
de grande relevância para a afirmação de valores culturais que orientam a convivência entre os
diferentes segmentos sociais.
Estas práticas sociais conduzidas pela música encontram-se marcadas pelo
encontro das diferenças, revelando identidades configuradas a partir de determinadas escolhas:
212
eventos, bens e produtos. As diferenças evidenciam a existência de possibilidades de escolha
em contextos aparentemente submetidos à uniformidade e à objetividade. As experiências e
iniciativas aqui registradas não são frutos da dinâmica da grande indústria fonográfica. Seu
público formou-se ao longo de várias temporadas, sendo os principais meios de divulgação dos
eventos a indicação pessoal, a Internet e os muros da cidade. O “lambe-lambe” (grandes
cartazes colados em muros de forma não-autorizada) constitui-se numa destas formas de
divulgação informal, que funciona com regularidade em alguns pontos da cidade. Informa a
programação musical da semana, indicando o nome do artista, grupo ou banda; a data e o
bairro do evento.
Com estes registros, mais do que uma reflexão sobre o mercado de bens culturais,
a questão construída pela Tese destaca modos de operação e esquemas de ação de sujeitos
criadores/produtores/usuários/consumidores - que fabricam” maneiras de agir e
comportamentos que traduzam atitudes, escolhas e preferências (CERTEAU, 2003, p. 44).
Acreditamos que a produção musical aqui valorizada confronta a produção racionalizada,
expansionista, centralizada e espetacular da indústria fonográfica. Esta outra produção, mais
coletiva, insinua-se de forma sutil e persistente, distanciando-se do consumo massivo e
alienado.
3.2.2 – Contra-racionalidade na apropriação da música
Para apreender experiências pouco valorizadas pelo pensamento dominante, é
preciso valorizar a elaboração de subjetividades como uma experiência individual e coletiva,
construída através da ação e de práticas cotidianas. Para Certeau (2003), trata-se de esboçar
uma teoria das práticas cotidianas que permita extrair, de seu ruído, as maneiras de fazer que,
majoritárias na vida social, aparecem como resistência, inversão e subversão de sentidos pela
ação dos mais fracos ou como inércias em relação à produção sócio-cultural dominante
229
.
O uso da rua como lugar da sociabilidade, a busca por músicas que não estão nas
rádios ou na televisão e a transformação de um bairro a partir da iniciativa de comerciantes que
desejam preservar as características únicas do lugar, mesmo que isso implique em maior
lentidão em relação a outros processos de desenvolvimento local, são algumas das
características das experiências que reunimos neste capítulo.
229
Giard, Luce. Apresentação do livro A invenção do cotidiano 1. Artes do fazer de Michel de
Certeau. Petrópolis, Editora Vozes:1994
213
Foto: O Globo
Figura 36: A apropriação da rua para a festa – Lapa
230
.
Para Certeau (2003), os elementos necessários à concepção de uma teoria das
práticas encontram-se na cultura ordinária, sendo relevante enfatizar a “cultura comum e
cotidiana enquanto apropriação (reapropriação), considerando consumo ou recepção como uma
maneira de praticar” (CERTEAU, 2003, p. 16). Nessa direção, interessam-nos os usos coletivos
do espaço urbano,que estejam fortemente vinculados à música.
O espectador faz escolhas expressivas de seus gostos e hábitos. O fato da cidade
estar sendo renovada por meio de novas experiências musicais indica que, a seu modo, o
público também rompe com a uniformidade construída pela lógica dominante. Aceitamos o
desafio de Certeau, que busca compreender as astúcias do consumidor, que integra, no limite,
a rede de uma antidisciplina. Este desafio inclui a firme valorização da liberdade gazeteira das
práticas. Com isso, procuramos reconhecer microdiferenças onde outros vêem apenas
obediência, como propõe o autor.
230
No caso do Bloco Quizomba (foto), o encontro não acontece apenas no desfile de carnaval
de rua, mas também nas oficinas de percussão, em shows na própria lona do Circo Voador e
em outras casas de espetáculo, nos desfiles na orla de Ipanema e outras iniciativas da Escola
Livre de Artes do Circo Voador.
214
Figura 37: Desfile do Bloco das Carmelitas nas ruas de Santa Teresa
Esta concepção do agir é, em Certeau, inseparável da referência à “arte” e a um
“estilo”, conceitos utilizados na compreensão das práticas culturais, que ajudam a distinguir
maneiras de agir e de significar a ação. O estilo alternativo do consumidor da música
reconhecida como independente’ evidencia uma renovação do modo de ouvir música, manifesto
na centralidade das apresentações ao vivo. A música ao vivo envolve um investimento subjetivo
que reafirma o pertencimento a uma coletividade e, ainda, a um lugar.
Valorizamos o encontro das diferenças tanto na criação quanto no consumo da
música. A pesquisa realizada nos indica que posicionar-se contra tendências dominantes foi a
escolha feita por artistas aqui destacados e, em muitos casos, uma opção construída pelo
público. Para realizar uma teoria das práticas, é preciso reaprender operações comuns e
interrogar práticas supostamente expressivas, apenas, da passividade e da disciplina. Tal como
afirma Certeau (2003, p. 41),
Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede de
‘vigilância’, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade
inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também
‘minúsculos’ e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não
se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que ‘maneiras
de fazer’ formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou
dominados?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-
política (CERTEAU, 2003).
Para o autor (2003), essas “maneiras de fazer” constituem formas criadas pelo
consumidor, de reapropriação do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural.
Usar a rua como lugar do encontro e da sociabilidade, como acontece na Lapa e em outras
215
áreas da cidade, contradiz a complexa espacialidade capitalista. Uma parcela dos que se
dirigem à Lapa não pode ou não quer freqüentar bares e casas de espetáculos.
A rua, nos trabalhos de Lefebvre, não é apenas um lugar de passagem e
de circulação, mas o lugar do encontro, sem o qual não é possível
outros lugares de encontros como os cafés e os teatros. A rua tem uma
animação própria: “na rua, teatro espontâneo, eu me torno espetáculo e
espectador, às vezes ator. Aqui se efetua o movimento, uma mistura
sem a qual não existe vida urbana, mas separação, segregação
estipulada e fixa”.
(...)
A rua também é o lugar da desordem, na medida em que os elementos
da vida urbana, imóveis na ordem fixa, se liberam e para aí afluem. Para
Lefebvre, a rua e por meio deste espaço, um grupo (a cidade mesma)
se manifesta, aparece, se apropria dos lugares, realiza um tempo-
espaço apropriado; uma tal apropriação mostra que o uso e o valor de
uso podem dominar a troca e o valor de troca. Quanto ao movimento
revolucionário, ele se passa geralmente na rua (CARLOS, 2007b, p. 54).
O uso da rua, a apropriação simbólica do espaço urbano e as manifestações
artístico-culturais que reunimos neste capítulo expressam, portanto, a busca pelo direito à
cidade. Para Lefebvre (2001a), o direito à cidade significa a constituição ou a reconstituição de
uma unidade espaço-temporal, de uma união, em vez de fragmentação. Segundo o autor, esta
unidade não elimina em absoluto as confrontações e as lutas. Muito pelo contrário. O direito à
cidade implica e aplica um conhecimento sobre a produção do espaço (LEFEBVRE, 2001a, p.
20), que envolve a produção social do espaço e a produção política do espaço, porque “o
espaço é política” (id., p. 52).
(...) o direito à cidade é a negação do mundo invertido,
aquele das cisões da identidade abstrata, da indiferença, da
constituição da vida como imitação de um modelo de
felicidade forjado na posse de bens; na propriedade privada;
na importância da instituição e do mercado; do poder
repressivo que induz a passividade pelo desaparecimento
das particularidades; da redução do espaço cotidiano ao
homogêneo, destruidor da espontaneidade e do desejo.
Assim espaço amnésico e tempo efêmero caracterizadores
do momento atual podem ser superados pois os sujeitos se
insurgem contestando e confirmando suas diferenças e,
nesta ação, descobrindo possibilidades (CARLOS, 2007a)
Tratamos, no segundo capítulo, das inovações tecnológicas que possibilitaram a
troca de músicas pela Internet e que criaram novos canais de difusão, espaços de
representação, além de novas formas de consumo da música. Porém, quando trazemos a
música para o território, reconhecemos a apropriação da cidade e a efervescência criada por
múltiplas iniciativas e eventos.
216
Para Carlos (2007b), “o lugar é a porção do espaço apropriável para a vida
apropriada através do corpo dos sentidos dos passos de seus moradores, é o bairro é a
praça, é a rua”. As casas comerciais da Lapa, talvez por oferecerem além de bebidas e
petiscos, música ao vivo e toda a sua carga simbólica, são mais do que pontos comerciais, são
também pontos de encontro. O consumo do/no lugar é algo que não se pretende negar. Estes
lugares, espaços vividos e “apropriados através do corpo” (CARLOS, 2007b, p. 18) são também
espaços de consumo; mas nem por isso perdem seu simbolismo e significado para a
sociabilidade.
O consumo, para Canclini (1996), é o conjunto de processos sócio-culturais através
dos quais acontecem a apropriação e o uso de produtos. Para o autor, o consumo
é compreendido sobretudo pela sua racionalidade econômica. Estudos
de diversas correntes consideram o consumo como um momento do
ciclo de produção e reprodução social: é o lugar em que se completa o
processo iniciado com a geração de produtos, onde se realiza a
expansão do capital e se reproduz a força de trabalho (CANCLINI,
1996).
Nesta concepção, o consumo é o momento final de um ciclo que se inicia na criação
musical e passa pela elaboração e circulação do produto. No caso da Lapa, o consumo da
música ao vivo tende a estimular a compra de CDs que a atmosfera acompanha a aquisição
do produto. Os sentimentos despertados durante a apresentação estariam, supostamente,
prontos para serem revividos a qualquer momento a partir da aquisição do produto.
Nesta direção, Canclini (1996) sugere que o consumo não seja visto como uma
mera possessão individual e sim, como uma apropriação coletiva que envolve relações de
solidariedade e satisfações biológicas e simbólicas. Para o autor (1996, p. 68), em todas as
sociedades os bens exercem muitas funções, sendo a mercantil apenas uma delas. Sem
dúvida, no caso da música, muitos sentimentos e emoções podem estar envolvidos na de
aquisição de um produto.
Canclini parte da hipótese de que, quando selecionamos bens, deles nos
apropriamos, definindo publicamente o que consideramos valioso, assim nos integrando e
distinguindo. Sobre o consumo como forma de distinção, Bourdieu (1996) o consumo como
lugar de diferenciação e distinção entre classes e grupos, destacando os aspectos simbólicos e
estéticos da racionalidade que o orienta
231
.
Escolher freqüentar a Lapa, e não uma boate da Barra da Tijuca ou um pagode no
subúrbio ou um baile funk na favela constitui-se numa marca distintiva. Para Canclini, o
231
Para este autor, nas sociedades contemporâneas, grande parte da racionalidade que conduz
as relações sociais constrói-se na disputa pela apropriação dos meios de distinção simbólica.
217
consumo cultural fortalece o sentimento de pertencimento e de não-pertencimento, o que
permite que o habitante da cidade manifeste sua diferença no processo de enraizamento na
cultura urbana. Sua identidade é construída a partir da interseção de diversas identidades
culturais, acionadas na transmissão do sentimento de pertencer à cidade. Cada vez mais, esse
sentimento, para o autor, mantém fortes vínculos com o consumo.
Para o autor, as políticas culturais podem reforçar a cidadania, fortalecer
identidades e assegurar o acesso a bens culturais. Mas, ressalta que pelo fato destas políticas
estarem subordinada à lógica do mercado, onde as regras baseiam-se na competitividade é
difícil conceber uma forma menos desigual de acesso à cultura. Como o sistema econômico
capitalista tem como objetivo a acumulação, a escassez ou a impossibilidade de acesso a
certos bens culturais faz parte deste sistema baseado na desigualdade.
através da reconquista criativa dos espaços públicos, do interesse
pelo público, o consumo poderá ser um lugar de valor cognitivo, útil para
pensar e agir significativa e renovadoramente na vida social. Vincular o
consumo com a cidadania requer ensaiar um reposicionamento do
mercado na sociedade, tentar a reconquista imaginativa dos espaços
públicos, do interesse pelo público (CANCLINI, 1996, p 53).
Com estes exemplos buscamos evidenciar práticas espaciais que animam a cena
urbana e que constroem lugares. A música alimenta manifestações reveladoras de
racionalidades alternativas na experiência urbana e cria redes sociais com ampla capacidade
de propagar valores culturais. Acreditamos que, pelo apresentado nesta Tese, a geografia da
música demonstra a existência de sujeitos que (re)conquistam o espaço público, revelando a
potência societária dos encontros lúdicos e intrinsecamente voluntários.
218
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se “as cidades, no contexto de um mercado globalizado, assim transformadas,
sobretudo devido ao turismo, tornam-se imagens espetaculares, outdoors, imagens sem corpos,
espaços desencarnados, simples cenários” (JACQUES, 2006), a existência de manifestações
culturais contrárias à sua espetacularização evidencia a complexidade da espacialidade
capitalista. A proposta deste trabalho foi demonstrar que existem sujeitos que não se
conformam com a limitada função de espectador de ações alheias.
A análise de músicas e ações criativas visou o alcance da problemática do sujeito,
enfocando suas práticas, escolhas e táticas. O sujeito que buscamos destacar não pode ser
considerado uma simples engrenagem do circuito produtivo dominante de arte, pois vive a
cidade de forma coletiva e solidária; buscando se libertar dos comandos da ordem dominante
através da música. A música, como arte, possibilita novas percepções e experiências no âmago
da vida urbana.
Através da música, destacamos que o lugar surge, espontaneamente, como sede
da resistência (SANTOS, 1997), onde outra ordem, fundada numa racionalidade paralela - cuja
força está nos espaços do aproximativo, da criatividade e da solidariedade desafia a
perversidade difundida, como disse Milton Santos, pelos tempos rápidos da metrópole
(SANTOS, 1994, 2005).
Pensar a cidade significa pensar o direito à cidade e a plena apropriação do espaço
urbano. A apropriação simbólica da cidade, que buscamos apreender com o apoio da música,
indica que a cidade pode ser vivida como obra coletiva. Nesta direção, Lefebvre (1987, 2001a)
apoiou a reflexão metodológica da pesquisa para a Tese ao afirmar que sujeito e objeto estão
em perpétua interação e que o conhecimento é prático. Como dito anteriormente, antes de
elevar-se ao nível teórico, todo conhecimento inicia-se pela experiência, pela prática. E este é o
caso desta pesquisa. Interagimos com o objeto investigado e vivemos a cidade através dos
eventos musicais para tornar este conhecimento possível.
Lefebvre (2001b) ressalta também a possibilidade de pensarmos outra cidade, cujos
planos, projetos e ações possam ter outras finalidades e outras intencionalidades distanciadas
das normas e regras da acumulação capitalista. Na análise realizada, vimos que a renovação
da Lapa comprova a tese de Lefebvre (2001a) de que o habitante tem o poder de reconstituir
centralidades e de apropriar-se de certos locais para criar encontros, o que possibilita a
elaboração de identidades, ainda que estas sejam cada vez mais vinculadas ao consumo. O
219
acesso à música, mediado por relações de consumo, pode não perder a sua capacidade de
emocionar e oferecer novas percepções da vida urbana.
A escolha da música, como recurso metodológico, também foi inspirada em
Lefevbre; pois, para o autor, a arte cria momentos de negação que apontam para
transformações em curso e, assim, obras de “desconstrução construtiva” que manifestam o
devir do mundo (LEFEBVRE, 1978, apud BARBOSA, 2000, p. 69). É preciso ampliar as
possibilidades de reflexão da cidade, articulando a técnica e o conhecimento científico à
sensibilidade dos que escolheram a arte como meio de sobrevivência e que experimentam a
cidade como homens comuns. Pensar a cidade não pode ser uma atribuição exclusiva dos
especialistas. O sujeito, não-especialista, que vive a cidade de forma coletiva e solidária, pode
contribuir para que a vida na cidade possa melhorar.
A cidade é um viver plural. Concordamos com Mello (1991), quando afirma que “a
cidade não é explorada em toda sua dimensão, mas sim de maneira abstrata na escala da
cidade como um ponto no mapa e em outra escala, direta e afetivamente, envolvendo o
universo vivido”. Para o autor (MELLO, Op. Cit p. 59), as palavras e os versos permitem
múltiplas interpretações; pois, a linguagem poética é entrecortada por símbolos e devaneios
que constituem uma maneira de propagar outra visão de mundo, pautada pelo compromisso
com a coletividade e por uma reflexão crítica da vida social. Também concordamos com o autor
(MELLO Op. Cit. 61), quando afirma a existência de um complexo e heterogêneo mosaico,
construído por um leque riquíssimo de subjetivações e envolvimentos afetivos dos compositores
da música popular brasileira com a cidade, o que possibilita uma outra compreensão da
experiência urbana.
Na letra de Tudo Vale a Pena, parceria de Fernanda Abreu e Pedro Luís, o Rio de
Janeiro é retratado de uma maneira mais poética, com “uma visão mais praiana” como
Fernanda Abreu prefere dizer. O “povo bamba, carregado de calor e de luta”, cai no samba,
dança o funk e tem “suingue até no jeito de olhar, ter balanço no trejeito, no andar”.
Crianças nas praças
Praças no morro
Morro de amores, Rio
Rio da leveza desse povo
Carregado de calor e de luta
Povo bamba
Cai no samba, dança o funk
Tem suingue até no jeito de olhar
Tem balanço no trejeito, no andar
Andar de cima tem uma musica tocando
Andar de trem tem gente em cima equilibrando
220
Andar no asfalto quentes carros vão passando
Andar de baixo tem uma moça no quintal cantarolando
Rio de baixadas com seus vales
Vale a pena
Sua pobreza é quase mito
Quando fito seus contornos
Lá do alto de algum de seus mirantes
Que são tantos
Então
Tudo vale a pena
Sua alma não é pequena
Seus santos são fortes
Adoro seu sorriso
Zona sul ou zona norte
Seu ritmo é preciso
Seus santos são fortes
Adoro o seu sorriso
Zona sul ou zona norte
Seu ritmo é preciso
Então,
Tudo vale a pena sua alma não é pequena
232
A versão de “Tudo vale a pena” gravada por Fernanda Abreu incluiu a citação de um
trecho da música “Miséria no Japão” de Pedro Luís, que questiona a visão dominante da favela,
focalizada na miséria, nas ausências e na desconsideração da potência dos espaços populares.
O compositor indaga o ouvinte sobre a sua postura diante das contradições da vida urbana.
E quem te disse que miséria é só aqui?
Quem foi que disse que a miséria não ri?
Quem tá pensando que não se chora miséria no Japão?
Quem tá falando que não existem tesouros na favela?
233
Alguns criadores constroem instigantes mediações entre distintos grupos e
seguimentos sociais. A música é capaz de revelar reais carências e desejos do habitante, que é
consumidor, mas também usuário e produtor da cidade. A atenção às vozes que vêm das ruas
também cabe aos técnicos em planejamento urbano e aos estudiosos do tema; pois,
precisamos tratar a cidade de forma mais sensível e menos pragmática. Esta Tese valoriza a
voz e os gestos do Outro e sinaliza canais de diálogo que podem contribuir para que a cidade
232
Fernanda Abreu. Tudo Vale a Pena. Pedro Luís e Fernanda Abreu [Compositores] In: Da
Lata. EMI p1995, 1CD Faixa 3
233
Pedro Luís e A Parede.Miséria no Japão” Pedro Luís [Compositor] In: Astronauta Tupy. Rio
de Janeiro, Dubas Música/ Universal Music. p1997, 1CD Faixa 8.
221
possa ser menos desigual.
Na música Seres Tupy, Pedro Luís fala de áreas da cidade alheias ao saber
acadêmico. Diz de casas montadas sem arquitetos e de moradias feitas por quem fez sua casa
na rua ou em qualquer outro local renegado - beira de mangue, alto de morro, debaixo de
viadutos e marquises. A letra trata da pobreza, esta condição indesejável que está em toda a
parte, e faz rima com dialetos, acentos, palavras rasgadas, sons, raps e outros movimentos
culturais.
Seres ou não seres
Eis a questão
Raça mutante por degradação
Seu dialeto sugere um som
São movimentos de uma nação
Raps e Hippies
E roupas rasgadas
Ouço acentos
Palavras largadas
Pelas calçadas
Sem arquiteto
Casas montadas, estranho projeto
Beira de mangue, alto de morro
Pelas marquises, debaixo do esporro
Do viaduto, seguem viagem
Sem salvo conduto é cara a passagem
Por essa vida que disparate
Vida de cão, refrão que me bate
De Porto Alegre ao Acre
A pobreza só muda o sotaque
234
Podemos considerar os compositores que destacamos na Tese como mediadores
de encontros e confrontos vividos na cidade? Tal como Velho (2001) afirma, mediações que
simplesmente mantém o status quo, através de controle da informação e preservação de
valores. Esta é a mediação tradicional. Mas, mediadores portadores de projetos de
liberdade, na medida em que exista a possibilidade de escolha e de opção diante dos
condicionamentos e determinações socioculturais mais amplos (VELHO, 2001, p. 27).
Para reconhecer nos sujeitos do campo musical a figura do mediador, torna-se
necessário reconhecer que a arte tem a capacidade de expressar o sentido lúdico e poético da
vida social. Nesta expressão poética da vida, a música emerge como canal de manifestação de
sentimentos e vivências do compositor. Quando o compositor expressa seus sentimentos em
234
Seres Tupy. Pedro Luís [Compositor]. In. Vagabundo Ney Mato Grosso, Pedro Luís e A
Parede. Rio de Janeiro, Globo Universal, p2004, 1CD Faixa 2.
222
relação à vida urbana e critica o modo de vida marcado pela desigualdade, está, de algum
modo, revolucionando ou se manifestando politicamente.
Para Lefébvre, a Revolução (violenta ou não) adquire um sentido novo: ruptura do
cotidiano, restituição da Festa”. A invenção e a revolução, a criação e a manifestação, a festa e
o protesto, como procuramos dizer ao longo da Tese, surgem nas letras, nas maneiras de
produzir e difundir a criação e, também, nas escuta, individual ou coletiva, da música.
A escolha da música como recurso metodológico permite apreender múltiplas
representações da vida urbana e, ainda, revelar usos e apropriações do espaço, expressivas de
racionalidades alternativas. Através das práticas musicais, procuramos mostrar que o sujeito,
aparentemente sem saída, pode agir de forma inesperada e surpreendente, sob a orientação de
sua subjetividade. Quando nos referimos ao gesto de um compositor, procuramos apreender
este gesto em suas circunstâncias. A análise buscou amplificar, assim, a potência do gesto do
sujeito, articulando-o à teoria. Procuramos com esta atitude, evidenciar racionalidades
alternativas, ainda que não completamente elaboradas e refletidas.
Compreender a produção alternativa da música, as transformações do campo
fonográfico, as intencionalidades que o sustentam, os jogos de linguagem, os interesses e
apostas materiais e simbólicas que dão vida a este campo foi o caminho escolhido para
verificarmos como a criação musical dialoga com a diversidade da experiência social. O modo
de produzir, de difundir e de consumir música foi intensamente modificado nas últimas décadas.
O acelerado avanço tecnológico e as transformações culturais decorrentes da comunicação
instantânea, mais intensas a partir dos anos 1990, alteraram profundamente o campo
fonográfico, afetando as relações sociais estimuladas pela música.
Uma das conseqüências dessas transformações foi o debate gerado pela
emergência de práticas que escapam ou contradizem as formas de controle exercidas pelas
grandes gravadoras. Algumas ações no campo da música são, ao nosso ver, ações políticas.
Trazem à tona relevantes questões sociais, como a estigmatização territorial e a invisibilidade
social, sem perder a sensibilidade da poesia e a esperança. Mas, a música revela mais
plenamente sua capacidade de provocar a insurgência quando propõe novas formas de agir em
seu próprio campo. Novas formas de organização associações e movimentos sociais
demonstram que nem todos concordam com as regras do jogo proposto pela indústria
fonográfica, ou melhor, pela lógica econômica que a orienta.
A pesquisa revelou que estas ações insurgentes podem se dar no âmbito do
mercado e que a espetacularização e a alta visibilidade, construídas no ambiente midiático,
podem ser estrategicamente apropriadas para a difusão do discurso e da ação de grupos
223
estigmatizados. Foi nesse sentido que analisamos a possível espetacularização da música que
confronta a racionalidade dominante. Assim, o espetáculo nem sempre é negativo
(HERSCHMANN, 2005a). Uma análise mais detida das práticas culturais pode ajudar a
perceber a forma pela qual diferentes agentes e organizações apropriam-se da
espetacularizacão para garantir maior visibilidade à ação de resistência.
Essa articulação da ação musical contestadora com o mercado fonográfico não é
simples. A popularização, a conquista de espaços de visibilidade e a inserção do sujeito
insurgente no mercado e em canais midiáticos trazem fortes conflitos e temores. Apesar do
receio da pasteurização e do enfraquecimento do discurso de protesto diante da repetição
massificada de músicas e imagens, este sujeito compreende que sem as estratégias de difusão
da indústria fonográfica, é difícil fazer-se ouvir e lutar contra uma ordem que considera injusta.
Tal como Herschmann (2005a, p. 90) sugere, a mídia se constitui numa arena” na
qual competem diferentes discursos engendrando diferentes sentidos; mas, também cada
discurso, muitas vezes, abriga perspectivas diversas e posições até mesmo contraditórias. O
sujeito da contestação evidencia a existência de uma “cidade polifônica” (HERSCHMANN,
2005a), em que vozes dissonantes e ações insurgentes fortalecem e configuram a instabilidade
social; construindo, assim, uma luta simbólica pelo direito à apropriação da cidade.
Para Mello (1991, p. 57), a relação dos homens com os lugares possui,
freqüentemente, uma dimensão coletiva, permitindo que os lugares podem sejam convertidos
em símbolos de experiências compartilhadas. Para o autor, a literatura pode ser considerada
fonte de pesquisa para os geógrafos (1991, p. 58) por captar e descreve o cotidiano, o
transcendental, as viagens, a nostalgia e, enfim, uma ampla gama de motivações e privações,
humores e emoções. Também a música tem esta capacidade de vincular subjetividades e
lugares, fazendo com que se perceba que “é preciso força pra sonhar e perceber que a estrada
vai além do que se vê”, tal como sugere a letra de uma música da banda carioca Los
Hermanos
235
. A vida banal transforma-se em rica poesia, através de ritmos, textos e ações.
A música como recurso para o acesso a ordens alternativas e concorrentes -
revela encontros e confrontos entre diferentes modos de pensar e agir e, fundamentalmente,
esta é sua natureza política. O sentido político das letras e sonoridades das canções também
encontra-se nos modos de produzir, fazer circular e no consumo da música. Neste sentindo,
buscamos mergulhar na ação do sujeito da crítica a um modo de vida centrado no consumismo,
no individualismo e na competição.
235
Los Hermanos. “Além do que se vê”. Camelo, Marcelo [compositor] In: Ventura: BMG, p2003.
1 CD, faixa 9.
224
O sujeito que procuramos nos aproximar foi o que sinaliza a rejeição à lógica da
dominação do espaço, demonstrando a existência de racionalidades alternativas na vida
cotidiana. Consideramos que ao decifrarmos os espaços da cidade destinados à música,
estaríamos nos aproximando da prática espacial mais espontânea, que a festa, de algum
modo, rompe o automatismo que marca a experiência urbana. Numerosas ações no campo da
música evidenciam estratégias que visam a afirmação do sujeito que não se contenta em ser
apenas parte da engrenagem racional e objetiva da economia capitalista.
As ações e músicas analisadas evidenciam lutas pelo direito a uma vida urbana
renovada. Processos de apropriação simbólico-subjetivo de territórios evidenciam que o uso da
rua ainda sobrevive, fortalecendo a possibilidade de novos encontros que confrontem a
dominação pragmática e objetiva do espaço urbano.
Partimos do pressuposto de que pensar a cidade não é apenas uma função de
especialistas e que, rompendo com esta limitação poderíamos propor a articulação entre o
conhecimento científico, a técnica e a sensibilidade da arte. Na voz do não-especialista
procuramos por uma outra fala sobre a cidade, procuramos reconhecer a cidade vivida de forma
horizontal, coletiva e solidária.
A música contribui para que sejam construídos e difundidos novos imaginários
enriquecendo a vida coletiva, incluindo o diálogo entre o campo acadêmico e o campo artístico-
cultural. O sujeito insurgente da música rompe o silêncio conveniente. As vozes que reunimos
neste trabalho não querem “paz sem voz”, não querem seguir admitindo esta paz “conivente”. O
medo se materializa no espaço, como na letra de Marcelo Yuka, onde o compositor afirma que
“as grades do condomínio são pra trazer proteção, mas também trazem a dúvida de quem está
nessa prisão”
236
.
Encerramos com a música “As cidades”, outra composição de Marcelo Yuka,
gravada pela banda O Furto, que trata a cidade como obra humana.
Arranhando o céu por escadas de carne
Útero postiço de lâmpadas distantes
Cordão umbilical entre a fibra ótica e a ótica da fibra
Quando a arte se torna maior que a criação,
muitos a chamam de obra
Quando a obra se torna maior que o homem,
ela se chama cidade
Se todo homem tem um preço
236
O Rappa. Minha Alma (A paz que eu não quero) Marcelo Yuka [Compositor]. In. Lado B Lado
A. Rio de Janeiro, WEA, p.1999, 1CD Faixa 6.
225
Esse é o lugar do troco
Eu tô lá na esquina esperando seu rosto passar
Só os encontros vão salvar
237
237
O F.U.R.T.O “As cidades”. Marcelo Yuka, Maurício Pacheco, Berna Ceppas [Compositores]
In - Sangue Audiência. Rio de Janeiro. Sony-BMG. p2005. 1 CD Faixa 2.Marcelo Yuka,
226
Anexo 1 – Reportagens de jornais e revistas
227
228
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230
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240
241
242
243
244
245
246
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