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Universidade Federal da Paraíba
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-graduação em história
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s somos os outros:
s somos os outros:s somos os outros:
s somos os outros:
Hans Staden e a cultura histórica
Carlos Adriano Ferreira de Lima
JOÃO PESSOA – 2008
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Carlos Adriano Ferreira de Lima
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Quando nós
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s somos os outros:
somos os outros:somos os outros:
somos os outros:
Hans Staden e a cultura histórica
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em
História, do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes, da
Universidade Federal da Paraíba
UFPB, em cumprimento às exigências
para obtenção do título de Mestre em
História, Área de Concentração em
História e Cultura Histórica.
Orientadora: Profª. Drª.
Regina
Maria Rodrigues Behar
JOÃO PESSOA – 2008
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Carlos Adriano Ferreira de Lima
Quando nós somos os outros:
Hans Staden e a cultura histórica
Aprovada em ____ /____
/ 2008
Banca Examinadora:
_______________________________
Profª. Drª.
Regina
Maria Rodrigues Behar
(Orientadora)
________________________________
Prof. Dr. Ricardo Pinto de Medeiros
(co-orientador)
________________________________
Profª. Drª. Fátima Martins Lopes
(Membro Externo)
______________________________
Profª. Drª. Cláudia Engler Cury
(Membro Interno)
______________________________
Prof. Dr. Élio Chaves Flores
(Suplente)
4
Às mulheres de minha vida:
Josy, Dona Lúcia, Luca (Luciana),
Andreza
e Inara.
Dedico.
5
AGRADECIMENTOS
Sei que é incomum usar citações nessa parte do texto, mas sem essa em
específico, meus agradecimentos não seriam sinceros:
Não como reconhecer tudo o que devo aos inúmeros escritores cujas obras pilhei,
mesmo se muitas vezes em desacordo com eles, e ainda menos o que devo às idéias
recolhidas ao longo dos anos, em conversas com colegas e alunos. [...]
(HOBSBAWM, 2006:12)
Por isso, inicio agradecendo aos que invariavelmente deixarei de citar, fique
registrado que esse trabalho é conseqüência de toda uma vida convivendo com
pessoas muito mais inteligentes e capazes do que eu sonharia em ser.
À família, não aquele monte de parentes que a gente no Natal, mas meu
núcleo familiar verdadeiro: Dona Lúcia, Dona Neuza, Ivan, Inara e Seu
Francisco Carlos, meu pai e seus sempre divertidos causos.
A todos os professores do PPGH que contribuíram de diversas maneiras.
À minha orientadora Regina Maria Rodrigues Behar pela imensa paciência e
respeito as minhas escolhas, postura essencial para execução desse trabalho.
Ao professor Ricardo Pinto Medeiros meu co-orientador pelas valorosas
contribuições no trabalho como o todo e, em especial, nas partes dedicadas aos
índios Tupinambá.
À Prof. Dra. Fátima Martins Lopes pela disponibilidade e leitura atenciosa.
À Prof. Cláudia Cury pelo exemplo de profissional.
Aos amigos Maximiano Machado (Maxinho), Francisca de Oliveira, Luciana
Calissi, Alessandro Amorim, Cristiano Ferronato, Hadassa Kelly e Ricardo.
Aos alunos da UVA e UEPB em especial: Vera, Carol, Thiago, Pablo Pyerre,
Eduardo, Pautília, Rosângela, Ênio, Inácio, Maria da Paz, e Jammerson.
Aos velhos e eternos amigos: Allan Patrick, Almir Peixoto, Charles e Rose Rose.
6
Registrar o passado não é falar de si;
é falar dos que participaram de uma
certa ordem de interesses e de visão
do mundo, no momento particular do
tempo que se deseja evocar...
(HOLANDA, 2006:9)
7
RESUMO
A presente dissertação tem como objeto de discussão o filme Hans Staden (1999), em sua
relação com a cultura histórica, uma produção nacional do chamado “Cinema da Retomada”
que se utiliza do relato autobiográfico homônimo, como roteiro para narrar a “aventura” do
personagem alemão no Brasil século XVI. Assim, buscamos analisar que representação o
filme faz do personagem e da sociedade Tupinambá em seu cotidiano, suas práticas de guerra,
e seus rituais e nossa relação de alteridade com esses nossos antepassados. Buscamos analisar
o texto fílmico em sua relação com o contexto de produção e, na análise textual, identificar as
marcas da abordagem realista-naturalista que os realizadores buscaram imprimir à narrativa,
seu esforço em perseguir a verossimilhança e, a partir de indícios presentes em diversas
seqüências do filme, a problematização de sua visão da sociedade Tupinambá. A relevância
dessa discussão prende-se ao reconhecimento da importância cultural do cinema nas
sociedades contemporâneas e nossa preocupação com a representação dos eventos históricos
em espetáculos cinematográficos. Interessa-nos, pois, os termos em que essa produção cultural
dialoga com o conhecimento histórico e seu lugar na constituição de cultura histórica na
contemporaneidade.
Palavras-chaves:
Cinema da Retomada, Tupinambá, Cultura Histórica, alteridade e representação
8
ABSTRACT
This dissertation is a subject of discussion the film Hans Staden (1999), in its relationship with
the historical culture, a national production of “Cinema da Retomada” that is used to report
autobiographical homonym, as roadmap to narrate the" adventure " the German character in
the sixteenth century Brazil. Thus, we consider that the film does represent the character and
society Tupinambá in their daily lives, their practices of war, and their rituals. We consider the
text film in its relationship with the context of production and in textual analysis, identify the
brands of naturalist-realistic approach that the directors sought to print narrative, your effort in
pursuing the likelihood and, from present evidence in several sequences of the film, the
problematization of his vision of society Tupinambá. The relevance of this discussion relates
to the recognition of the cultural importance of cinema in contemporary societies and our
concern about the representation of historical events on film spectacles. Interested us down the
terms under which this cultural production and argue with the historical knowledge and its
place in the constitution of culture in contemporary history.
Key Words:
Cinema da Retomada, Tupinambá, Historical Culture and representation.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
........................................................................................... 10
CAPÍTULO I
Hans Staden e a cultura histórica ....................................................................... 19
1.1 Cultura histórica e Cinema .......................................................................... 19
1.2 Hans Staden e a dupla representação ........................................................... 37
CAPÍTULO II
Hans Staden visto de fora: Análise extra-fílmica .............................................. 52
2.1 Cinema da Retomada e os filmes históricos ................................................ 52
2.2 Hans Staden – O filme ................................................................................ 76
CAPÍTULO III
Leitura intra-diegética de Hans Staden .............................................................. 84
3.1 Paradigma Indiciário: mais que uma busca por indícios ............................. 84
3.2 A captura e chegada na aldeia ..................................................................... 92
3.3 Nairá, a mulherTupinambá? ...................................................................... 104
3.4 O ritual antropofágico e o ser canibal ........................................................ 118
3.5 Quando nós somos os outros .................................................................... 129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
............................................................... 135
BIBLIOGRAFIA
...................................................................................... 138
ANEXOS
10
Introdução
Imagens em movimento. Pouco importa o suporte. Desde monitores imensos até
pequenos dispositivos portáteis, as formas de visualizar o conteúdo m mudando, mas o
fascínio que as mesmas provocam permanece. Basta pensar na quantidade de informações
visuais em disponibilidade. O cinema em seu mais de um século de vida, ao contrário do que
poderia se imaginar, sobreviveu à TV e, mais recentemente, à Internet. Descobriu em seus
supostos rivais de primeiro momento, potenciais aliados. Contudo essa proliferação de
imagens não se encontra acompanhada na mesma dimensão por trabalhos de reflexão e
problematização.
Quando alguém nos diz que vai ler, associamos na grande maioria ao suporte impresso.
Contudo, a leitura consiste em processos de percepção que ultrapassam o suporte texto. As
sociedades contemporâneas, graças às mudanças tecnológicas, produzem uma quantidade
enorme de informações que parece ultrapassar sua capacidade de problematizar e mesmo de
visualizar. Pensemos no caso da produção de deos. Com a popularização da câmera 8 mm
em meados dos anos 1970 para 1980, temos um boom da produção caseira e alternativa,
mesmo que essa última limitada a um nicho específico do mercado.
Esse momento não é nada do ponto de vista mercadológico quando comparado com o
atual mercado das filmadoras digitais, que perdem o status de objeto e passam a ser função,
uma espécie de acessório, fazendo parte mesmo de boa parcela dos aparelhos celulares e
gadget´s dos mais diversos. A prova disso, é que a imprensa, em diversas ocasiões, faz uso
dessas imagens produzidas pelos anônimos, pois, mesmo de baixa qualidade, servem como
“provas” da testemunha ocasional do evento, em matérias para as quais não foi possível o
registro profissional. Faz-se necessário lembrar que as chamadas imagens não-oficiais sempre
estiveram presentes na história, mas nunca com tantas pessoas tendo acesso a tecnologias
disponíveis para esses registros.
Contudo, se a maioria tem uma “câmera na mão”, muitas vezes, nenhuma “idéia na
cabeça”, parafraseando a célebre assertiva de Glauber Rocha, em defesa de um cinema mais
autoral e democrático. Afinal, é cada vez mais comum em eventos e incidentes de qualquer
espécie, alguém em apontando seu celular para a cena, na tentativa de registrar aquele
11
momento, certo de que está registrando o evento em sua totalidade. Ao exibir seu registro, diz
enfaticamente que “filmou tudo o que aconteceu”.
Todavia, a facilidade em filmar não está aliada à perspectiva de problematizar. Nesse
sentido, está se tornando um processo mecânico ver algo trivial e sacar uma mera/celular e
registrar o dito “evento”, às vezes por curiosidade, outras, por mero fetichismo. Assim, cada
vez mais, entendemos menos porque filmamos algo.
O mesmo parece ocorrer com o ato de recepção dessas imagens no que se refere às
possibilidades de leitura que suscitam. É de nossa preocupação com a leitura das imagens,
numa dimensão mais global, que nasceu esse texto, produto de nossa reflexão sobre a relação
cinema/história.
Estamos falando até o momento das imagens ditas “não industriais”, aquelas
produzidas pelas pessoas aparentemente sem os filtros tão facilmente perceptíveis nos filmes
industriais. Esses são responsáveis pela explicitação de representações imagéticas construídas
com intenções específicas e que vêm a influenciar não as imagens produzidas fora do
esquema industrial, como, e principalmente, a leitura de realidades presentes ou passadas,
através dessas representações.
A partir dessas considerações gerais em relação as imagens em movimento produzidas
em nossa contemporaneidade, trataremos de delinear as motivações e objetivos de nosso
trabalho, que se volta para o filme ficcional como objeto de análise a partir das preocupações
com o poder do cinema na representação do passado histórico.
Assim, no âmbito da cinematografia brasileira, o foco principal de nossas
preocupações são as produções classificadas como filmes históricos, aquelas que se propõem
as narrativas a propósito de fatos ou personagens históricos, sendo essas representações
marcadas de maneira mais visível pela denominação de “produções de época”. Essa estética,
no sentido mais maniqueísta do termo, é facilmente reconhecida por adereços
cinematográficos, locações, sejam construídas apenas para tais filmes ou digitais. Em boa
parte desses filmes, a cenografia e fotografia geralmente deixam de lado certas especificidades
dos personagens ou mesmo distorcem os contextos nos quais ocorreram os fatos narrados. Por
esse motivo, estudantes e professores de história mais atentos notam ambigüidades, quando
não, casos de anacronismo, na representação de certos personagens cinematográficos e fatos
12
históricos quando confrontados com a leitura dos seus equivalentes na literatura especializada.
Mesmo que isso possa parecer um “problema” de adaptação, podemos notar que determinados
grupos ou conceitos o sumariamente desprezados. As representações da mulher, por
exemplo, tornam, geralmente, aquela personagem representada mais próxima de uma mulher
da mesma época em que o filme foi produzido do que necessariamente a época que se propõe
retratar. Além disso, as interpretações da história visíveis nas narrativas têm implicações no
tipo de análise histórica que as representações fílmicas legitimam.
Nosso objeto geral de estudos é o cinema histórico, mas, em específico na presente
dissertação, o filme Hans Staden (1999), dirigido por Luis Alberto Pereira. A escolha desse
filme se deve a uma série de motivações. A primeira delas é o fato de o mesmo ter sido
produzido no período de crescimento, ou melhor, “redescobrimento” da cinematografia
nacional, conhecido como Cinema da Retomada, expressão que carece de uma discussão mais
aprofundada de suas origens, causas e desdobramentos, e da qual trataremos no primeiro
capítulo. A segunda motivação vem da percepção de ser este um filme de inegáveis qualidades
técnicas e de representação que é geralmente desprezado pela crítica especializada, acusado de
apático e neutro. Nossa terceira motivação prende-se a própria temática, a representação da
sociedade Tupinambá, tão raramente presente em nossa cinematografia, nos remete a uma rica
discussão da relação com o estrangeiro, na trilha de outros filmes do mesmo período da
“retomada”.
Os motivos que nos levaram à escolha desse filme, descritos acima, são mais de ordem
técnica/estética e historiográfica, acrescido de outro ponto que não pode ser negligenciado: as
suas possibilidades educacionais. Afinal, em nosso país grande parte dos historiadores, que
alías, segundo o CBO
1
, não consta sequer como profissão, ingressa no mercado de trabalho no
setor de educação. Nesse viés, pensamos no filme como a possibilidade de demonstrar aos
alunos que a história pode ir além dos livros, que leitura é uma categoria mais ampla, pois “ler
um textoem nossa sociedade imagética também remete para os textos visuais obrigando-nos
ao exercício de leitura de “novas linguagens”.
1
Cadastro Brasileiro de Ocupações. Existe o Projeto de Lei 7321/06 para regulamentação da profissão, mas a
proposta original data de 1968.
13
Buscaremos, no presente trabalho, a sistematização de alguns saberes sobre a relação
cinema/história. Tentaremos dialogar com dois momentos: produção do filme e temática que
se propõe a retratar, buscando articular os termos em que dialogam e entendendo que a análise
do primeiro termo ilumina o segundo. Afinal, ao analisar a sociedade que produz
representações, analisamos também sua relação com os objetos representados, ou seja, as
sociedades que produzem os filmes projetam-se nos mesmos, pois elas formatam as
representações em questão.
Tratando-se de filme histórico, leia-se marcado por atributos de autenticidade, Hans
Staden dialoga com produções relativas ao conhecimento histórico e etnológico, e buscamos
explicitar esse diálogo. Afinal, graças ao conhecimento acumulado através da produção
historiográfica e etnográfica torna-se possível nossa sociedade representar
cinematograficamente uma sociedade extinta desde o século XVII. Procuraremos, na medida
do possível, não levar nossa discussão para o vel de questionamentos sobre imprecisões
fetichistas fixadas nas chamadas “falhas históricas”, pois consideramos problemática essa
abordagem em produções ditas ficcionais
2
.
Situamos a presente dissertação no âmbito dos exercícios de análise a partir do lugar
do historiador, cujo objetivo é interpretar o filme fazendo com que seus múltiplos textos
dialoguem com o conhecimento histórico. Reiteramos nossas intenções desde a mais remota
idéia da produção deste trabalho, como a perspectiva de produzir uma análise sobre a temática,
conscientes de que também produzimos uma leitura dentre tantas possíveis.
Afinal, com pouco mais de um século tendo acesso às imagens em movimento, nossa
sociedade ainda carece de instrumentais de leitura desses materiais. Basta pensar que os
telejornais são considerados como parâmetros de verdade por grande parte do público, que o
encara como um registro objetivo e imparcial do real sem se dar conta do processo de
produção das notícias.
Ao longo do período de definição desse tema, durante algum tempo, duas questões
estavam colocadas: Por que cinema brasileiro? E por que esse filme, que quase ninguém viu?
As respostas para as duas questões não poderiam ser mais simples.
2
O cinema até hoje possui uma relação problemática com a ficção. Basta lembrar que de todos os seus gêneros o
único que figura como tal em seu título é a ficção científica.
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A primeira pela necessidade de conhecer/reconhecer o cinema brasileiro. Afinal, o
mesmo não fala apenas do país, mas de nós mesmos ou, numa relação dialética, do que somos
com o que gostaríamos de ser/renegar. Não é necessário afirmação de nacionalismo sem
sentido, um filme deve ser analisado em critérios de qualidade, estética, em especial nos dias
atuais, e não pelo simples fato de ser brasileiro, norte-americano ou iraniano.
A segunda pergunta admitimos que muito nos incomodou no início do trabalho.
Geralmente precedida por uma sobrancelha arqueada, mostrando a desconfiança do
interlocutor, em especial, fora do ambiente acadêmico. Consideramos Hans Staden (1999) um
filme que merece ser redescoberto. Não apenas enquanto entretenimento, mas como um
importante texto visual disponível para professores de ensino médio e universitário no tocante
à uma leitura do país que não se reconhece representado em seus ancestrais. Para tanto,
permitam-nos fazer uma breve retrospectiva do que se tornou esse trabalho.
Em sua origem, o projeto tinha o nada criativo título de Hans Staden e a
Representação da História do Brasil, pois ainda consideramos muito difícil dar um título
decente a um texto. Esse trabalho tinha objetivos grandiosos e idéias que levariam anos para
sistematizar e algumas que nem assim seriam exeqüíveis. Felizmente, para limitar esses
desvarios temos orientadores e o programa de pós-graduação para nos auxiliar a entender as
possibilidades de trabalho, a exeqüibilidade e o limite cronológico que estabelece o tempo da
dissertação possível.
Na sua primeira versão, o texto tinha a pretensão, e não existe termo mais adequado
para designar suas intenções originais, de ser uma espécie de manual para os professores do
ensino fundamental e médio, contudo, tal idéia foi limada com a incisiva questão da professora
Cláudia Cury durante as aulas e mesmo na qualificação, se este não seria mais um daqueles
trabalhos sobre sala de aula verticalizado. A academia, nesse sentido,funciona como uma
espécie de general que dita estratégias que soldados/professores sabem ser de pouco ou
nenhuma utilidade no front/sala de aula, criando modelos que funcionam muito bem apenas no
plano das idéias mas, na prática, pouco oferecem aos processos de ensino/aprendizagem,
assim, desistimos dessa abordagem.
No primeiro momento, o objetivo geral era uma análise da caracterização dos europeus
e índios, bem como suas práticas rituais, no filme Hans Staden. Tínhamos como base, para
15
tanto, o roteiro e o livro homônimo
3
. Observamos ser uma leitura válida, contudo, textual,
porque estaríamos deixando de lado a especificidade do suporte fílmico. Reiterando um
modelo de análise histórica do cinema muito em voga, que é analisar o mesmo enquanto texto,
no sentido de análise do roteiro, deixando de lado sua composição cinematográfica.
Dessa forma, a primeira mudança significativa foi quanto ao objeto de estudo, que
conforme apresentamos, tem como cerne a análise do filme Hans Staden (1999). Isso torna
nossa discussão mais centrada, na medida em que todos os desdobramentos têm um ponto em
comum. Isso não significa que deixaremos de lado o roteiro ou o próprio relato do Staden. Até
porque não existe essa possibilidade de retirada da fonte de origem (relato) da versão (roteiro)
do material que serve de suporte textual e imagético a essa reconstrução do passado. Contudo,
esses não podem ser confundidos com o objeto desse trabalho, o filme.
Depois de definido o objeto, passamos aos objetivos. Nosso antigo objetivo geral se
tornou específico e faz parte do terceiro capítulo de nossa dissertação. Nosso objetivo geral é
analisar a relação que o filme faz com a história de Staden na sociedade Tupinambá do Século
XVI, proposta em sua narrativa fílmica, e como o mesmo interpreta e ressignifica esse
passado, na perspectiva de compreender como o cinema participa da constituição da chamada
cultura histórica. Mesmo que a história cultural viva essa espécie de boom, algo parecido com
o que ocorreu com a história econômica nos anos 1980, essa é uma abordagem recente no país
em relação ao cinema, campo no qual ainda carecemos desse tipo de leitura. Por parte dos
historiadores, principalmente em relação com a produção referente à Retomada (anos 90),
naquela complexa relação com a história do tempo presente.
Para melhor definir nossas escolhas, indicaremos o corpo do trabalho. Esse trabalho
está divido em três capítulos, aos quais se segue uma sessão intitulada considerações finais.
No primeiro capítulo, buscamos explicitar o diálogo do filme com elementos da
literatura acadêmica e centramos nossa discussão na relação história e “cultura histórica”.
Procedemos um breve apanhado do termo cultura e discutimos a importância da cultura
histórica na interpretação do passado pelo historiador. Sobre esse assunto, descobrimos um
fértil campo a ser desbravado, e serviram-nos de base teórica para o seu desenvolvimento,
3
Como o filme, relato e personagem principal possuem o mesmo nome, preferimos optar que no decorrer do
texto o nome Hans Staden refira-se ao filme. Quando se tratar do personagem ou de seu relato, faremos a
referência.
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principalmente as obras de Peter Burke, Michel De Certeau, Roger Chartier, Sergei Gruzinski,
Élio Chaves Flores e um texto bastante elucidativo de Ângela de Castro Gomes. Finalizamos o
capítulo analisando o personagem cinematográfico e literário Hans Staden e, como um indício,
a omissão de um trecho da obra original do relato, justamente aquele que se refere ao anti-
semitismo de Staden, e como isso pode mudar a relação do público com o personagem.
No segundo capítulo, apresentamos uma discussão sobre o que passou a ser
considerado Cinema da Retomada, buscando analisar a expressão e enveredando pela tentativa
de historicizar a mesma. Afinal, enquanto forma de arte coletiva e industrial, o cinema está
vinculado a uma estrutura complexa de condicionantes estéticos e financeiros. Dessa forma,
se faz necessário abordar a importância do lugar social a partir do qual se produz e de quem
produz. Essa análise permite-nos, dentro do nosso objetivo geral, entender melhor como o
passado é escolhido para ser representado e quais os possíveis condicionantes externos dessas
escolhas. Lembrando que,
uma tarefa desse tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações,
divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias
fundamentais de percepção e de apreciação do real.”
(CHARTIER, 1990: 17)
Assim, essa parte de nosso trabalho dedicado a leitura do extra fílmico, basea-se nas
palavras de Marc Ferro, “a crítica não se limita ao filme, ela se integra ao mundo que o rodeia
e com o qual se comunica, necessariamente.” (FERRO, 1992:87) Nesse momento, não se trata
de discutir o filme, mas o processo que o envolve e que influencia em sua estrutura narrativa e
de produção/recepção.
Nessa perspectiva, entendendo que o filme é notadamente influenciado pelo contexto
da retomada, procuramos discutir o tipo de cinema que utiliza acontecimentos históricos,
produzido pelo chamado “Cinema da Retomada”.
Ainda no segundo capítulo, apresentamos os aspectos técnicos do filme, como
informações sobre os envolvidos na produção e dados a propósito de participações em
festivais e premiações, um breve perfil profissional de seu diretor e discutimos sua influência
no processo de criação da obra.
17
No terceiro capítulo, nossa discussão volta-se para a reflexão a propósito da
representação da história feita no filme. Com essa questão, discutimos as possibilidades de
representação de fatos históricos pelo cinema e utilizamos alguns momentos do filme que
consideramos emblemáticos nesse processo de representação, buscando discorrer sobre essas
escolhas e suas possíveis interpretações.
Nesse ponto, trabalhamos em conjunto o texto base para a construção do filme, que é a
narrativa do próprio Staden, e as xilogravuras. Ao apresentar a captura e a chegada à aldeia, o
filme pretende nos mostrar peculiaridades do cotidiano Tupinambá. Essa relação no filme é
muito mais forte que no texto que o origina. Os motivos dessa “força” vão além das diferenças
entre imagem cinematográfica e literária e permitem discussões sobre o processo de percepção
e interpretação da sociedade indígena no próprio filme.
Em seu livro, Hans Staden nos apresenta a mulher Tupinambá como personagem
marcante daquela sociedade. As próprias xilogravuras presentes em seu livro demonstram
isso. Até que ponto essa mesma representação se encontra presente no filme? Qual a visão a
propósito das mulheres tupinambás no filme? Analisamos a saudação lacrimosa, que é um dos
momentos, dentro da sociedade Tupinambá, em que a mulher é o epicentro dos
acontecimentos. Essa leitura da mulher e sua representação nas imagens presentes no relato do
Staden
4
, bem como das iconografias produzidas com base no relato do mesmo por Theodore
De Bry
5
, podem nos demonstrar que a visão fílmica está vinculada a essa reprodução visual do
século XVI.
Essa mesma representação da mulher está intimamente vinculada à representação
fílmica da prática antropofágica. Mesmo que academicamente a prática do ritual de consumo
de carne humana seja entendida como um processo simbólico que encontra ecos até mesmo no
cristianismo
6
, o senso comum ainda interpreta o assunto como um ato de barbárie. Longe de
analisar qual a visão que o filme apresenta/representa, nessa interpretação encontramos um
4
Tratam-se de imagens de autoria desconhecida, cuja única referência a autoria são as iniciais D.H., presentes em
algumas imagens.
5
5
Nascido em Líege, 1528, Theodore de Bry é o responsável pelas iconografias dos relatos de Hans Staden e
Jean de Léry para a coleção Grandes Viagens. É importante lembrar que o se trata das xilogravuras originais e
sim de imagens inspiradas nas mesmas em conjunto com o relato.
6
A missa, como ritual cristão de referência, inclui o consumo da hóstia a partir de ritos e dogmas específicos,
simboliza a transubstanciação do pão e do vinho em carne e sangue.
18
importante aspecto da leitura que o filme produz sobre o povo Tupinambá a partir de suas
práticas. Nesse capítulo, dialogamos com a literatura etnológica a partir de Alfred Métraux e
Florestan Fernandes, e no âmbito da historiografia dois autores foram cruciais: João Azevedo
Fernandes e Ronald Raminelli.
Finalizando nosso trabalho, buscamos compreender as razões pelas quais o cinema
brasileiro, no início dos anos 90, usou de forma recorrente o outro (estrangeiro) na sua leitura
do país. Para desenvolver este trabalho de análise fílmica utilizamos uma metodologia que não
é própria do campo da história, mas do cinema: o procedimento de decupagem
7
das imagens,
texto e som que possibilitam uma análise mais apurada. Após esse procedimento, que permite
decompor o filme em suas partes constitutivas, podemos observar como os recursos técnicos
reforçam ou omitem dados presentes no relato do próprio Staden
8
, dando ao filme sua
especificidade e reforçando a idéia de versão cinematográfica do texto de Staden. Essa
perspectiva encontra-se presente, de certa forma, em todos os capítulos. Neste último capítulo,
foram fundamentais os trabalhos de Luiz Zanin Oricchio, Lúcia Nagib, Pedro Butcher, Sidney
Ferreira Leite e Eduardo Morettin.
De modo mais geral, em suas bases teóricas alguns autores foram cruciais na
construção desse trabalho. O primeiro é Carlo Ginzburg e seu conceito de Paradigma
Indiciário, Roger Chartier em sua discussão sobre representação e história cultural e Michel de
Certeau e sua análise da história cultural. Mesmo que não apareçam explicitamente em alguns
momentos, são as idéias e conceitos desses autores que norteiam esse trabalho como um todo.
7
Esse é um termo que apresenta um duplo significado. Na primeira proposição, a partir do dicionário Houaiss
seria “dividir (um roteiro) em planos numerados, com as indicações dramáticas e técnicas necessárias à
filmagem ou à gravação das cenas.” A segunda, essa sim relacionada com nossa proposta de trabalho, é de que “o
conceito de decupagem, oposto ao sentido técnico e prático, é definido então, como a feitura mais íntima da obra
acabada, a resultante, a convergência de uma decupagem no espaço e de uma decupagem no tempo.” (AUMONT,
2003:71)
8
A própria estrutura narrativa do filme segue a lógica do relato de Staden. Contudo, outros relatos de viajantes do
período são utililizados de forma mais sutil durante toda a película, como os de Jean Léry e alguns relatos de
Jesuítas.
19
Capítulo 1
Capítulo 1Capítulo 1
Capítulo 1
Hans Staden e a Cultura Histórica
I.I - Cultura histórica e Cinema
Não somos o primeiro povo no
mundo a compreender que a cultura,
como hoje a chamamos tem uma
história.
Peter Burke
Cultura. Nossa sociedade é marcada por esta palavra. Presente no meio acadêmico e,
em alguns casos, ultrapassando esses limites. Basta observar a quantidade de vezes em que a
mesma é citada nas mais diferentes obras. Podemos verificar sua ampla difusão pela
quantidade de matérias disponíveis nos periódicos e pela quantidade de livros em que o termo
está presente. Mas, ao que se deve esse uso recorrente? Vivemos uma espécie de fetichismo
pela cultura?
Em parte isso é conseqüência do caráter relativista que atribuímos na
contemporaneidade à palavra, que, aliás, consta entre os conceitos definidores da sociedade
atual. Pensar o conceito de cultura é, antes de tudo, compreender que o mesmo é marcado pelo
momento em que é construído, apropriado ou ressignificado.
O termo começa a ser utilizado como conhecemos hoje a partir do século XVIII e tem
sua origem, segundo Roque de Barros Laraia (2005:25), em duas palavras. A primeira, Kultur,
de origem germânica, estava vinculada às questões espirituais de uma comunidade, e a
segunda, o termo francês Civilization, tinha relação com as realizações materiais. Edward
Tylor foi o responsável pela incorporação dos termos no vocábulo inglês culture, cujo
significado,
Em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos,
crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábito adquiridos
pelo homem como membro de uma sociedade.
(TYLOR apud LARAIA, 2005:25)
Do ponto de vista acadêmico, temos na antropologia a primeira área do conhecimento
científico que fez uso do termo no sentido atual, em especial em Primitive Culture (1871).
Contudo, Peter Burke (2005:15) nos lembra que a importância do trabalho de Tylor está no
20
fato de sistematizar uma idéia cada vez mais difundida no culo XIX na Inglaterra e França,
tendo como um dos marcos fundamentais a publicação, em 1869, de Culture and Anarchy,
pelo poeta Matthew Arnold.
O conceito de Tylor, que aponta para a separação entre comportamento adquirido e a
predisposição genética, teria repercussão científica/acadêmica nas primeiras décadas do
século XX, com o trabalho de Kroeber no artigo intitulado O superorgânico. Para Laraia
(2005:28), essa teoria representa um marco na separação entre o cultural e o natural.
Indo além desse viés, Michel de Certeau (1995) acredita que a explicação
antropológica é apenas uma das várias possibilidades de utilização do termo Cultura, cujo
emprego estaria vinculado a diferentes abordagens. Para tanto, enumera seis tipos:
O primeiro está vinculado à noção de “homem culto”, aquele responsável pela
distinção social, em que o grupo dominante institui seu poder a partir da introdução de suas
normas. O segundo é a idéia de cultura relacionada com obras, produções humanas, enquanto
patrimônio e que, como tal, devem ser preservados e difundidos, estando implícito nesse
último item o papel dos criadores de tais obras. O terceiro ponto seria a composição de uma
imagem, seja de uma época, Idade Média, por exemplo, ou de um meio como o rural, urbano
entre outros. Nessa ótica, teríamos então uma “concepção que atribui a idéias tácitas o papel
de organizar a experiência” (CERTEAU, 1995:194). A quarta perspectiva é a que possuímos
na leitura das sociedades, em especial, nos seus quadros de referência, formados pelo
comportamento, instituições, ideologias e mitos, objetos de estudos cruciais da antropologia
cultural. Na quinta abordagem a cultura é encarada como ato criador, problematizando, dessa
forma sua relação com a natureza. Por fim, temos a sexta perspectiva, pela qual a cultura seria
fruto das teorias lingüísticas, a partir de seus modelos, criando um sistema de comunicação.
Nessa última, teríamos como principal agente a mídia.
Dessa forma, com tantas abordagens e com várias relações entre diferentes segmentos
da sociedade, o termo cultura não poderia ser deixado de lado pelos historiadores que devem
enfrentar o debate sobre sua historicidade.
Encontramos referência ao termo História Cultural, segundo Peter Burke (2000:14),
entre 1796-1799 no trabalho de Allgemeine Geschichte der Eichhorn, intitulado Allgemeine
Geschichte der Kultur (História Geral da Cultura). Em 1782 é publicado Versuch einer
21
Geschichte der Kulture des menschlichen Geschlechts (Ensaio de uma história da cultura da
raça humana), de Johan Cristoph Adelung. Ao historicizar o termo, Burke indica as origens
dessa dimensão de história no humanismo do século XVI.
A demarcação da História Cultural como disciplina acadêmica, no sentido mais
próximo do que conhecemos hoje, começa a ter forma a partir do século XIX, conforme Peter
Burke (2005:15), mesmo assim, o autor não deixa de apresentar ressalvas feitas a essa nova
forma de se pensar a história, em especial na oposição ao positivismo:
O século XIX testemunhou uma extensa lacuna entre história cultural, basicamente
abandonada à história amadora e profissional, e história “positivista”, cada vez mais
interessada em política, documentos e “fatos concretos”.
(BURKE, 2000:37)
O positivismo, com sua ênfase na história política e nos documentos oficiais, não
conseguia encarar a história cultural como um par intelectual, e sim, como uma área de
conhecimento menor, mesmo com a ascensão dos chamados Estudos Culturais. O que mudou
sensivelmente nas últimas décadas, que m vivido um verdadeiro boom em termos de
pesquisa e produção historiográfica.
Nosso foco é a história cultural dos dias atuais que, em seu desejo de separação do
primeiro uso do termo, desde a década de 1980, levou uma corrente histórica própria,
conhecida como Nova História Cultural:
A expressão nova história cultural” [...] entrou em uso no final da década de 1980. Em
1989, o historiador norte-americano Lynn Hunt publicou um livro com esse nome que
se tornou muito conhecido [...] A Nova História Cultural é a forma dominante de
história cultural alguns até mesmo diriam a forma dominante de história praticada
hoje. (BURKE, 2005:68)
Os motivos para essa nova expressão em alguns textos, conforme o autor, está
relacionado com uma nova dimensão da abordagem histórica. A cultura deixa de ser o objeto
de obras totalizantes como A cultura do Renascimento na Itália (1860), de Jacob Buckhardt e
Outuno da Idade Média (1919), de Johan Huizinga.
Nesse sentido, a Nova História Cultural, conforme já citamos, é uma das principais
correntes historiográficas do início do século XXI. Sua origem é relativamente recente,
cunhada no final dos anos 1980.
22
Entretanto, o termo é alvo de críticas, em especial do que seria a sua “novidade”. Isso
não significa que os Estudos Culturais sofreram algum ocaso. Podemos observar, pelo grande
número de trabalhos publicados e pela quantidade de pós-graduações cujas linhas de pesquisas
ou grupos de estudo dedicam-se aos estudos culturais
9
.
Ao longo do presente texto, faremos uso das expressões nova história cultural e história
cultural como sinônimos, baseados nas palavras de Roger Chartier (1990):
A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler.
(CHARTIER, 1990:16-17)
Deixando claro sua defesa dessa forma de se pensar historicamente a cultura, Roger
Chartier se defende das possíveis críticas quanto à validade desse método, em especial pela
mudança da abordagem e das fontes:
Espera-se acabar com os falsos debates desenvolvidos em torno da partilha, tida como
irredutível, entre a objectividade das estruturas (que seria o terreno da história mais
segura, aquela que, manuseando documentos seriados, quantificáveis, reconstrói as
sociedades como eram na verdade) e a subjectividade das representações (a que estaria
ligada uma outra história, dirigida às ilusões de discursos distanciados do real).
(CHARTIER, 1990:18)
Assim, um dos aspectos mais importantes de sua análise está na preocupação com a
chamada produção cultural, aquela que foi encarada por muito tempo como um processo à
parte, é posta em seu lugar como um dos principais elementos na construção e perpetuação dos
valores da sociedade em que é construída, segundo o mesmo:
Não há produção cultural que não empregue materiais impostos pela tradição, pela
autoridade ou pelo mercado e que não seja submetida às vigilâncias e às censuras de
quem tem poder sobre as palavras e os gestos.
(CHARTIER, 1990:137)
Ainda sobre a produção cultural, que, conforme nos aponta Chartier, é marcada pelo
aparato ideológico de sua época, se faz necessário refletir sobre a discussão levantada por
Michel De Certeau, da diferença entre termos aparentemente sinônimos:
Na linguagem, “a cultura” torna-se um neutro: o cultural”. É o sintoma da existência
de um bolso para onde refluem os problemas com os quais uma sociedade está em
9
PUC-Rio: História Social da Cultura; Unicamp: Educação Cultura e Sociedade; UFPB: História e Cultura
histórica; UFRPE: História Social da Cultura Regional; UFMG: História, Tradição e Modernidade: Política,
Cultura e Trabalho; UFPE: Cultura e Memória; UFJF: História, Cultura e Poder.
23
vida, sem saber como tratá-los. [...] Acaba-se, portanto, por imaginar que a cultura
possua uma autonomia indiferenciada e flexível.
(CERTEAU, 1995:199) (grifo nosso)
Mais do que uma mera mudança de termos, podemos observar que essa pretensa
neutralidade traz em seu discurso a tentativa de ocultar toda a complexidade ideológica das
chamadas produções culturais. Por esse motivo, os estudos culturais têm entre seus objetos de
estudo as instituições.
Sobre a discussão de produção cultural, Gombrich, um dos mais renomados
historiadores da arte, mesmo voltado para o estudo das iconologias, nos lembra da importância
do conhecimento das instituições,
La iconologia debe partir de um estúdio de las instituciones s que de um estudio de
los símbolos. Hay que reconocer que resulta más apasionante leer o escribir historias de
detectives que leer libros de cocina
(GOMBRICH, S/D: 48)
Tomando para o campo de nosso estudo as idéias de Gombrich falando da arte de
modo geral, nos interessa a discussão da arte enquanto instituição, uma vez que o cinema é
uma instituição. Não devemos entender o termo no sentido formal, no caso, uma empresa,
grupo ou mesmo uma major norte-americana, mas na acepção de um campo da cultura que
produz sentido e significados em nossa sociedade.
Apresentados de maneira breve os conceitos de cultura, história cultural e produção
cultural, chegamos ao conceito de cultura histórica, cerne da análise de nosso objeto de
pesquisa neste trabalho. Mas, antes de entrarmos no conceito propriamente dito, permitam-nos
uma breve digressão.
A sociedade atual, cada vez mais, entra em contato com temáticas históricas sem os
historiadores, a partir de espaços como cinema, televisão, teatro, internet e literatura, por
exemplo. Tentaremos tornar mais clara nossa linha de raciocínio. Com o aumento dos meios
de comunicação e da velocidade no tráfego de dados, a quantidade de informações cresce
exponencialmente, aumentando, por conseqüência, os meios e formas de se apresentar
conteúdos históricos, algumas, diga-se de passagem, muito mais agradáveis que a imagem do
mestre em sala de aula, cujo conteúdo é apresentado numa forma expositiva que destoa do
ritmo em que vive boa parte dos alunos. Esse acúmulo de informações em uma sociedade cada
24
vez mais baseada no consumo e na velocidade, tornam mais difícil as possibilidades de
filtragem do que seja relevante.
Pensemos, então, na frase de Roger Chartier o excesso de escrita, que multiplica os
textos inúteis e abafa o pensamento sob o acúmulo de discursos, foi considerado um perigo
tão grande quanto seu contrário.” (CHARTIER, 2007:9) Nesse sentido, o excesso de
informações pode ser o complicado quanto a falta. O que está sendo posto em dúvida não
são as possibilidades tecnológicas de armazenamento e transmissão de uma grande gama de
dados, mas, como a análise se torna mais complicada com a grande quantidade de discursos
para a identificação dos qualitativamente desejáveis, posto que também não nenhum crivo
impeditivo que garanta a origem do saber histórico veiculado, dificultando a triagem daqueles
vazios de qualquer sentido.
Um exemplo pode ser facilmente observado pelo fato da maioria das pessoas, em
especial, em idade escolar, preferirem assistir a um filme ao invés de ler o livro sobre a mesma
temática. A maioria considera que “é a mesma coisa”, ou então, “que é mais fácil”. Isso é
conseqüência de uma lógica do menor esforço, intelectualmente contraproducente, afinal, o
tempo de leitura depende de cada leitor. com o filme é o contrário, seu tempo de exibição é
fixo, devemos observar é que a ilusão do filme demorar menos tempo que o livro não significa
que sua compreensão seja mais rápida. Não estamos aqui de modo algum desvalorizando
nosso objeto de estudo, apenas discutindo conhecimento científico que possibilita a leitura e a
crítica desse próprio objeto, produto da cultura humana.
Ambos, com a mesma história como fonte, podem produzir resultados distintos, além
de que, suas leituras fazem uso de diferentes processos cognitivos, por isso requerem
diferentes abordagens. Um diretor pode concordar ou discordar da perspectiva do autor,
mesclar personagens, suprimir ou incluir cenas que não estavam presentes no suporte original.
No livro Passado Imperfeito (1997), o historiador Mark Carnes organiza uma das
principais coletâneas sobre a relação história e cinema e sua introdução é bastante elucidativa
sobre a relação do cinema hollywoodiano com o passado:
A história segundo Hollywood é diferente. Ela preenche os irritantes vácuos onde não há
registros históricos e elimina as ambigüidades e complexidades difíceis. O produto final
então brilha e excita a imaginação... A história hollywoodiana brilha porque é
moralmente sem ambigüidades, isenta de complexidades monótonas, perfeita.
(CARNES, 1997:9)
25
Podemos notar que o título do livro refere-se implicitamente a essa dimensão, o
tratamento histórico do cinema hollywoodiano. O passado representado pelos historiadores é
sempre imperfeito”, por sua multiplicidade de idas e vindas, gerando uma complexidade não
encontrada na grande maioria das produções cinematográficas. Outrossim, consideramos
emblemático nessa obra as entrevistas com os cineastas John Sayles e Oliver Stone, em
especial, o primeiro, que é bastante franco sobre a utilização da história pelos cineastas:
A história é um celeiro a ser pilhado. Dependendo de quem você é e de qual é a sua
agenda, ela pode ser útil ou não. Você seis livros sobre a história que vai filmar. Acha
parte do que leu útil e descarta o resto: personagens, idéias, países...
(CARNES, 1997:16)
Contudo, dependendo do diretor/autor do filme/livro a história pode ou não possuir
pretensões ideológicas diferentes em cada suporte. É importante lembrar que a maioria das
versões cinematográficas de livros, chamadas de adaptações
10
, são mais comuns, e
transliteração
11
, algo raro e problemático de ser realizado pela conseqüência das
especificidades dos suportes. Ou seja, um filme, por mais preciso que seja, nunca é uma cópia
do livro que o originou nem o contrário.
Vejamos o caso de nosso objeto de estudo, o filme Hans Staden. Por mais fidedigno
que tenha sido ao relato de viagem, conforme podemos observar no terceiro capítulo, e mesmo
fazendo referência a textos acadêmicos consagrados, o filme reconstrói o personagem
homônimo tornando-o mais adequado para o público para o qual é produzido, conforme
analisaremos mais adiante.
Mas, onde entra a cultura histórica nessa discussão? Vem justamente da compreensão
de que o conhecimento acerca do passado possui as mais variadas fontes, inclusive,
reconhecendo que os historiadores não são os proprietários” exclusivos desse espaço. Ou
seja, a constituição da cultura histórica é feita para além do fazer dos historiadores. Conforme
podemos observar na definição de Élio Chaves Flores:
10
Segundo Jacques Aumont, adaptação é, em certo sentido, uma noção vaga, pouco teórica, cujo principal
objetivo é o de avaliar ou, no melhor dos casos, de descrever e de analisar o processo de transposição de um
romance para roteiro depois do filme. (AUMONT, 2003:11)
11
Transliteração seria a passagem de um suporte, seja quadrinhos ou literatura, por exemplo, para outro, em
nosso caso o fílmico. Diferente da adaptação que converte e altera o ritmo a transliteração nos a impressão de
possuir um ritmo análogo ao do suporte original. Filmes tão diversos como Sin City(2003), 300 (2005) e Lavoura
Arcaica (1999) são alguns exemplos.
26
Entendo por cultura histórica os enraizamentos do pensar historicamente que estão
aquém e além do campo da historiografia e do cânone historiográfico. Trata-se da
intersecção entre a história científica, habilitada no mundo dos profissionais como
historiografia, dado que se trata de um saber profissionalmente adquirido, e a história
sem historiadores, feita, apropriada e difundida por uma plêiade de intelectuais,
ativistas, editores, cineastas, documentaristas, produtores culturais, memorialistas e
artistas que disponibilizam um saber histórico difuso através de suportes impressos,
audiovisuais e orais.
(FLORES, 2007:95) (grifo nosso)
Em sua definição, que consideramos uma das mais completas para o termo, produtores
culturais constam no grupo daqueles que produzem história fora do ambiente dos
historiadores. Nesse texto, o termo produtores culturais parece relacionado aos que
acreditamos serem captadores de recursos, organizadores de eventos ou equivalentes.
Contudo, acreditamos no termo numa perspectiva maior, em que todos os citados, incluindo os
historiadores, ao produzir cultura, sejam equivalentes ao que Michel De Certeau define como
agentes culturais:
Por agentes culturais, entenderemos aqueles que exercem uma das funções ou uma das
posições definidas pelo campo cultural: criador, animador, crítico, promotor,
consumidor etc.
(CERTEAU, 1995:195)
Independente da questão acerca dos produtores culturais representarem um dos
segmentos ou algo maior, podemos observar que essa noção de cultura histórica (figura 1)
baseada na “interseccção” termina por singularizar o saber. Temos nesse modelo dois grupos,
o primeiro é a historiografia que corresponde, conforme sabemos, à produção do historiador e,
em segundo, os demais produtores de conhecimentos (não-historiadores). Podemos observar
pelo gráfico que existe um ponto de confluência que seria justamente a cultura histórica.
27
Figura 1 – Cultura histórica individualizada
Contudo, essa primeira leitura termina por simplificar a relação entre cultura histórica e
historiadores por uma série de fatores. Primeiro, por excluir o público, item imprescindível
para a construção da cultura histórica. Essa imagem também omite outra informação: nem
sempre esse processo é realizado apenas pelo ponto de confluência entre os “produtores de
cultura” e os “historiadores”. Conforme observamos, ao deixar de lado o público e esquecer
que os historiadores também são influenciados pela cultura histórica, esquecemos que fazemos
parte do processo, conscientes ou não. Apesar de harmônico, no sentido da separação dos
elementos, ele não corresponde as múltiplas relações na formação da cultura histórica. Nesse
sentido, acreditamos que a figura 2 seja mais abrangente.
28
Figura 2
Cultura histórica como fonte de influência dos historiadores e produtores culturais
Podemos observar que a cultura histórica influencia o historiador e demais produtores.
Contudo, não podemos cair no truísmo de que tudo seja cultura histórica. Por isso a
importância de contextualizá-la e tentar demarcar seu território. Acreditamos que essa
delimitação não serve como uma espécie de camisa-de-força teórica, mas, permite torná-la
mais consistente. Ao ampliarmos a área de ação da cultura histórica incorporamos a discussão
de Jacques Le Goff sobre mentalidade histórica, que apresentaremos mais adiante. Seguindo a
lógica de que nós historiadores somos produtores culturais, não seria o trabalho do historiador
apenas produção cultural? A resposta para essa questão não é tão simples. Afinal, a mesma
põe em dúvida a cientificidade do conhecimento histórico. Discussão em que ambos os lados
(pró e contra) defendem sua leitura do tema de forma tão apaixonada que, às vezes, incorrem
em algo muito comum aos amantes, que é a passionalidade. Keith Jenkins nos apresenta uma
leitura bastante sensata dessa discussão:
29
A história não é arte nem ciência, mas uma coisa diferente uma coisa sui generis, um
jogo de linguagem que não está para brincadeiras, que está localizado no tempo e no
espaço e no qual as metáforas da história como ciência, ou da história como arte,
refletem justamente a distribuição de poder que põe essas metáforas no jogo.
(JENKINS, 2005:90)
Podemos observar que o importante da discussão não está na cientificidade do
conhecimento, mas no fato do historiador ser o único dos elencados que tem o passado como
seu principal objeto de trabalho e, por conseqüência, a construção de uma cultura histórica.
Mesmo não sendo seu produtor exlusivo, é o único que, invariavelmente, produz cultura
histórica, por sua relação bastante própria com o passado. A cultura histórica é um daqueles
raros termos que encontra campo livre entre os autores considerados modernos e pós-
modernos. Mesmo com leituras diferentes, ambas as correntes concordam que a sociedade
produz conhecimento histórico fora do ambiente acadêmico.
Ao escolhermos o termo cultura histórica, em detrimento de produção cultural, existe
mais que uma mudança de termos, deixamos claro, seguindo a gica de Certeau (1995:100),
que não acreditamos na pretensa neutralidade do termo cultural.
Indo mais adiante, temos uma zona de disputa. Afinal, a cultura histórica, que,
conforme observamos, não é obra exclusiva do historiador, partilha a tarefa de produzir
conhecimento. Nas palavras de José Jobson Arruda,
A cultura histórica não se reduz a um exercício diletante de erudição vazia, puro texto,
puro discurso, pura literatura, pois remete ao objeto central da nossa História, que é a
produção de conhecimento.
(ARRUDA, 2007:30) (grifo nosso)
Durante seu texto, o autor não deixa claro de que âmbito da produção do conhecimento
o mesmo está falando, pois acreditamos que se esse se refere a toda produção do
conhecimento, termina por expandir demais essa idéia e, por conseqüência, torná-la
inconsistente.
Jacques Le Goff faz uso do termo cultura histórica sob influência do trabalho de
Bernard Guenée, cujo conceito estaria vinculado ao lugar que o passado ocupa nas
sociedades” (LE GOFF, 1990:47), indo mais além, apresenta o que considera os principais
itens da perspectiva do autor que referencia:
30
Sob este termo, Guenée reúne a bagagem profissional do historiador, a sua biblioteca de
obras históricas, o público e a audiência dos historiadores. Acrescentou-lhes a relação
que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, mantem com o passado. (LE GOFF,
1990:47)
Levando sua discussão para o campo da historiografia, lembra que devemos observar
outros elementos constitutivos de um conhecimento histórico, produzindo o que define como
mentalidade histórica:
A história da história não se deve preocupar apenas com a produção histórica
profissional mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura
histórica ou, melhor, a mentalidade histórica de uma época.
(LE GOFF, 1990:48)
Consideramos que, para Le Goff, mentalidade histórica aparece como uma espécie de
sinônimo da cultura histórica. Contudo, o conceito de mentalidades não conseguiu tanta
adesão por parte dos historiadores quanto o de cultura, talvez em conseqüência de seu caráter
mais abstrato e metafísico. Mesmo não sendo sinônimos, podemos observar que estabelecem
uma relação. No fim das contas, ambos tratam de discutir o lugar do passado na sociedade.
A produção de conhecimento por parte dos mais diferentes segmentos desvinculados
do saber acadêmico pode ser considerada menos precisa ou verossímil do que aquela realizada
por historiadores. Esse tipo de análise prioriza a produção historiográfica como o
conhecimento legítimo acerca do passado. Por esse motivo, é tão importante compreender que
a cultura histórica é formada pelos mais diferentes olhares e abordagens:
Permite e mesmo exige a análise de um conjunto de iniciativas que abarca o o
conhecimento histórico em sentido mais estrito quem são os historiadores, quais são
as obras que, reconhecidamente, “narram” a história nacional e quais são seus eventos e
personagens fundamentais como a ultrapassa , abarcando outras formas de expressão
cultural que têm como referência o “passado”, como a literatura e o folclore.
(GOMES, 1996:46)
Podemos, então, observar que a diversidade é uma das palavras de ordem para os
produtores desse tipo de conhecimento, contudo, essa, que pode ser encarada como uma
vantagem, a multiplicidade de olhares, também significa um problema. O conceito de cultura
histórica, por seu caráter relativista, pode ser, ao mesmo tempo, tão grandioso quanto vago.
Afinal, se tudo e todos produzem cultura histórica, podemos incorrer na velha querela macro
explicativa de outrora, estaríamos apenas mudando o elemento estruturante, agora tudo seria
cultura.
31
Além disso, o conceito inclui até mesmo seu principal elemento de estudo, em nosso
campo, a história cultural. Não podemos esquecer que a historiografia também produz cultura
histórica:
No que se refere às relações entre cultura histórica e historiografia, o aspecto mais
evidente é o da amplitude do primeiro conceito, que vai além da historiografia definida
como a história dos historiadores, de sua obra e da disciplina. Tal constatação tem como
desdobramento importante o fato de assinalar que os historiadores de ofício não detêm
o monopólio do processo de constituição e propagação de uma cultura histórica,
atuando interativamente com outros agentes que não são homens de seu métier.
(GOMES, 1996:48)
Uma questão, à primeira vista simplificadora, pode nos fazer compreender melhor
nossa disciplina: se a história não passa de uma das múltiplas modalidades da cultura histórica,
o que a legitima enquanto leitura do passado?
A resposta para essa questão é que não existe apenas uma cultura histórica. Mas
culturas históricas. Cada momento produz diferentes modelos, conforme Angela de Castro
Gomes nos elucida:
Há, por conseguinte, diferenças evidentes de amplitude e de natureza entre o que se
pode considerar cultura histórica e o que se pode entender por conhecimento/saber
histórico produzido em uma época, não havendo sincronia necessária entre os dois. [...]
pode-se pensar em mais de uma cultura histórica convivendo, disputando, enfim,
estabelecendo vários tipos de interlocução entre si e com a produção historiográfica em
determinado período.
(GOMES, 1996:49)
Não obstante, devemos observar que, apesar de existirem várias “culturas históricas”,
um elemento pode ser considerado constante:
Nossa hipótese é que tal conceito nos possibilita entender melhor o quê especificamente
os homens consideram seu passado e que lugar (espaço e valor) lhe destinam em
determinado momento.
(GOMES, 1996:46)
Tendo em vista os argumentos expostos, compreendemos como culturas históricas os
conhecimentos que ultrapassam os limites acadêmicos e produzem saberes sobre o passado.
Pensar o conhecimento histórico vinculado às culturas históricas, mais que diminuí-lo, é
compreender a multiplicidade de discursos que formam o saber.
Contudo, é importante salientar que nosso conhecimento sobre o passado não é
constituído por uma, mas por múltiplas culturas históricas (figura 3). O gráfico pode parecer
confuso, mas tentaremos elucidá-lo. Tomemos como exemplo, a cultura histórica do século
32
XVI, constituída por cronistas, poetas, religiosos entre os outros, cujo suporte mais forte são
os escritos. Foram tais suportes que permitiram boa parte do conhecimento dos historiadores e
demais produtores do conhecimento sobre esse período.
Nunca é demais relembrar que cada momento, em nosso caso, cronologicamente
marcado pelos séculos, produz conhecimentos diferentes e, por conseqüência, relações
diferentes com a historiografia e o conhecimento de forma mais geral. Ou seja, mesmo que
influenciado pelo século XVII, a cultura histórica do XVIII não é uma mera cópia dos séculos
anteriores. Nessa perspectiva, a cultura histórica de qualquer século é fruto não apenas do
trabalho dos historiadores e dos produtores culturais, mas da(s) múltipla(s) cultura(s)
histórica(s) que a(s) antecedeu(ram), com elas dialogam ainda que como antítese, e quase
sempre permitem, dialeticamente, novas nteses. Nessa abordagem temos uma espécie de
entrelaçamentos dos séculos, tornando, dessa forma, mais fácil compreender porque diferentes
pessoas em um mesmo espaço possuem diferentes abordagens ou referências históricas. As
culturas históricas, nessa perspectiva, são dinâmicas, influenciadas e influenciadoras,
constituídas e constituidoras de representações de passados plurais.
33
Figura 3 – Cultura no plural: Culturas Históricas
Diante do exposto, dialogaremos com a produção cinematográfica e sua relação com a
história na produção da cultura histórica sobre o passado, lembrando que ambos possuem
especificidades. Um filme ou romance de cunho histórico, conforme já observamos, pode criar
personagens ficcionais inserindo-os em tramas históricas, produzir narrativas que sintetizam
vários personagens em um, omitir fatos relevantes ou simplificar um determinado
acontecimento para facilitar o entendimento e aceitação daquele filme por parte do público. O
trabalho do historiador, por seu turno, deve excluir essas alternativas, sob pena de se produzir
falseamentos passíveis de desmascaramento, como alerta Marc Ferro (1989:15).
Algo digno de nota é a relação problemática mantida com o audiovisual enquanto
representação do real. É uma espécie de consenso o caráter ficcional dos romances, mesmo
que situados em contextos históricos. O mesmo não ocorre com as imagens cinematográficas,
especialmente no que se refere aos filmes considerados filmes históricos”.
34
Um dos principais elementos de difusão do passado é a imagem. Seja estática ou em
movimento, elas povoam os pensamentos e. ao contrário do que possam aparentar, são ainda
mais complexas de serem analisadas. Ernest Gombrich. ao falar das obras de arte, afirma:
Aunque las tradiciones y funciones de las artes visuales difieren considerablemente de
las de la literatura, la importancia que para la interpretación tienen las categorías o
gêneros es la misma em ambas esferas
(GOMBRICH, S/D: 16)
Novamente reiteramos o fato da leitura de Gombrich, mesmo não analisando imagens
em movimento, ser perfeitamente aplicável a essas. Aliado a essa sensação de real das
imagens em movimento, vem a complexidade de sua análise. Não queremos incorrer na velha
questão sobre as dificuldades em se trabalhar com esse tipo de suporte, mas, conforme nos
apresenta Sergei Gruzinski acerca da capacidade da imagem enquanto veículo de divulgação,
Da mesma maneira que a palavra e o texto, a imagem pode, a seu modo, ser o veículo
de todos os poderes e de todas as resistências. O pensamento que ela desenvolve
oferece uma matéria específica, tão densa como o texto, mas que costuma ser
irredutível a ele, o que não facilita nada a tarefa do historiador obrigado a atribuir
palavras ao indizível.
(GRUZINSKI, 2006:17) (grifo nosso)
Devemos observar que sua análise não eleva a imagem em detrimento do texto, ao
contrário, coloca-os na mesma categoria de densidade. Um ponto importante de sua leitura
está na questão da irredutibilidade das imagens ao texto. Como processos de diferentes
complexidades, consideramos correta a compreensão de que, assim como para Gombrich em
relação à pintura, os discursos sobre as imagens são compostas de várias camadas.
Afinal, o historiador, numa sociedade baseada em imagens, não apenas deve agregar
esses novos objetos, como, em certo nível, transformar ou redimensionar seu olhar. Vivemos,
nas palavras de Gruzinski, um período marcado pelas “guerras das imagens”:
Talvez seja um dos acontecimentos maiores do fim do século XX. Difícil de
circunscrever, presa aos chavões jornalísticos ou aos meandros de um tecnicismo
hermético, ela abrange lutas pelo poder, tem implicações sociais e culturais cujo alcance
atual e futuro ainda somos um tanto incapazes de avaliar.
(GRUZINSKI, 2006:14)
Nesse sentido, devemos observar a importância do reconhecimento das imagens como
formadores da cultura histórica. Contudo, devemos lembrar que o termo não indica apenas a
presença de objetos, mas também das questões formuladas:
35
Mas a complexidade da relação entre cultura histórica e historiografia não fica por aí,
porque o que está sendo aqui compreendido como passível de ser designado como de
interesse para o campo historiográfico excede a análise da trajetória de historiadores, de
obras históricas e da própria disciplina (escolas, currículos). Ou seja, também se está
considerando como objeto do conhecimento desse campo de estudo o tratamento que
uma questão ou uma categoria vem recebendo da literatura, ao longo de um período, o
que inclui tantos os balanços bibliográficos como o acompanhamento da trajetória de
um conceito.
(GOMES, 1996:50)
Ou seja, as imagens, formadoras indiscutíveis da cultura histórica, devem ser
analisadas e discutidas pelos historiadores, ainda mais quando “o maior paradoxo seria
estarmos num mundo de proliferação de imagens e continuando a pensar que estamos sobre o
poder do texto?” (Hudrisier apud GRUZINSKI, 2006:14)
A resposta para essa questão está intimamente relacionada com a história enquanto
conhecimento escolar e acadêmico. Nossa forma de ensinar ainda é muito baseada em textos.
Por falta de formação, e mesmo por dificuldades em trabalhar com os suportes, as imagens,
em movimento ou estáticas, são quase sempre utilizadas de forma ilustrativa do conteúdo
escrito, poucas vezes em perspectiva crítica. Isso se torna ainda mais grave numa sociedade
tecnicista, em que as humanidades estão cada vez mais desprivilegiadas. Análises ou
discussões conceituais que não apontem para resultados considerados práticos são
considerados desimportantes, com a história não foi diferente. Nesse sentido, Jacques Le Goff
é bastante elucidativo:
Não reclamo poder para os historiadores fora do seu território, a saber, o trabalho
histórico e o seu efeito na sociedade global em especial, no ensino. O que deve acabar
é o imperialismo histórico no desenvolvimento da ciência e no da política. [...] A
história não deve reger as outras ciências e, menos ainda a sociedade. Mas, tal como o
físico, o matemático, o biólogo – e, de outro modo, os especialistas de ciências humanas
e sociais -, o historiador também dever ser ouvido, ou seja, a história deve ser
considerada como um ramo fundamental do saber. (LE GOFF, 1990:51)
Devemos entender que o conhecimento histórico ultrapassa os limites da sala de aula,
em especial na análise dos elementos formadores da cultura histórica. Entretanto, não
podemos perder de vista a importância do espaço educacional para a constituição do saber
histórico:
Ela é muito mais que um módulo no currículo escolar ou acadêmico, embora possamos
ver que o que ocorre nesses espaços educacionais tem importância crucial para todas
aquelas partes diversamente interessadas.
(JENKINS, 2005:42)
36
Uma das grandes questões com relação a cultura histórica é a aceitação por parte de
alguns historiadores de diferentes suportes e abordagens que dialoguem com o passado:
Devo acrescentar que tenho muitas vezes prazer em ler quando são bem feitos e
escritos os romances históricos e que reconheço aos seus autores a liberdade de
fantasia que lhes é devida. Mas naturalmente que, se pedirem a minha opinião de
historiador, não identifico como história as liberdades aí tomadas.
(LE GOFF, 1990:50) (grifo nosso)
Temos, nessa perspectiva, uma defesa do lugar social do historiador. Seguindo a gica
de Jenkins (2005:100), em que história seria o que os historiadores fazem com o passado.
Nessa perspectiva, questionamos: por que as liberdades dos autores não devem ser
problematizadas pelo historiador? Afinal, essas licenciosidades, seja na ausência, inclusão ou
adulteração do passado, não seriam tão história quanto o conceito, cada vez mais alvo de
crítica, o chamado fato histórico?
Nesse ínterim, podemos observar a importância da cultura histórica, ao analisar o que
antes era negligenciado como uma espécie de “não história”. Precisamos lembrar, contudo,
que não existe uma cultura histórica definitiva:
Podemos considerar que, em certos períodos específicos, a presença e o impacto sociais
da cultura histórica e do conhecimento histórico podem ser crescentes, mas também
podem ocorrer disjunções, sempre explicáveis por razões próprias a cada conjuntura
nacional específica.
(GOMES, 1996:49)
Essa multiplicidade de culturas históricas, acreditamos, ultrapassa até mesmo as
conjunturas nacionais. Afinal, os objetos e produtores também mudam. Pensemos no caso de
nosso objeto, o filme Hans Staden. Sua fonte de inspiração, o relato homônimo do século
XVI, foi um dos formuladores da cultura histórica sobre a sociedade Tupinambá.
Indiretamente, mas não acreditamos que de maneira inconsciente, também foi um texto
divulgador da nova religião (protestantismo) e seu poder salvador.
Observamos com maiores detalhes essa leitura em nossa análise dedicada ao
personagem cinematográfico Hans Staden e seu homônimo literário, ambos construtores de
cultura histórica em diferentes períodos.
37
I. II - Hans Staden e a dupla representação
Existe um elemento muito difícil de ser
captado por um leitor médio: o narrador de
uma história não é nunca o autor. É
sempre uma invenção.
Vargas Llosa
Duas Viagens ao Brasil. O Meu cativeiro entre os selvagens no Brasil. Viagem ao
Brasil. Hans Staden: Primeiros registros escritos e ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes.
Ou mesmo o mais próximo do original e atualmente pouco vendável título: A verdadeira
história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no novo mundo, a
América, e desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os
últimos dois anos passados, quando o próprio Hans Staden de Homberg, em Hessen, os
conheceu, e agora traz ao conhecimento público por meio da impressão deste livro. São
alguns dos títulos nacionais para essa obra que, curiosamente, não tem um título padrão.
Não importa o título conferido, geralmente o livro recebe o nome do autor e
personagem principal: Hans Staden, como elemento principal. Independente do rótulo,
estamos falando daquele que é considerado como o primeiro best-seller europeu, segundo a
historiadora alemã Zinka Ziebell-Wendt (1999), uma afirmação que aliás, não poderia deixar
de gerar controvérsias. Afinal, sempre encontraremos historiadores reclamando do caráter
anacrônico de tal definição. Decidimos não entrar nos méritos dessa discussão. Então, sem
participar de querelas etimológicas, nos propusemos a outra leitura de tal frase. Independente
de o termo ser apropriado ou não, uma regra é inerente a qualquer best-seller: sua capacidade
de ser publicado e republicado nos mais diversos idiomas com grande sucesso de público. E,
seguindo essa lógica, temos nesse livro um “best-seller”.
Nossa proposta é uma leitura de dois modelos. Um deles literário, composto pelo
próprio Hans Staden, e outro, cinematográfico, criado pelo diretor/roteirista Luis Alberto
Pereira. Mas, por enquanto, pensemos no homem que origem a esses dois personagens:
Hans Staden, o autor, nasceu em Homberg, na província de Hessen-Nassau - Alemanha,
38
aproximadamente em 1520
12
, como arcabuzeiro
13
, viajou para o Brasil duas vezes. Na
primeira, partindo de Kampen, na Holanda, em 29 de março de 1547, no navio comandado
pelo capitão Penteado, retornando para Lisboa em 8 de outubro de 1548. Sua segunda viagem
é na embarcação do espanhol Diogo de Sanabria, filho de João Sanabria, que herdou de seu
pai o direito de substituir Cabeça de Vaca, preso e desterrado, como governador do Rio da
Prata.
Nessa viagem ao Prata, ocorre um naufrágio na região de Itanhaém, São Vicente. Por
seu conhecimento com armas, fica no forte português da região. Um dia decide procurar por
seu escravo, um índio carijó que não tinha retornado, quando é capturado por tupinambás,
ficando em poder dos índios por nove meses, consegue ser resgatado por um capitão francês,
e, em 10 de abril de 1550, chega à cidade de Hounfler, na França. Decide, então, publicar o
relato de suas viagens, em 1557, na cidade de Marburgo. Esses dados estão presentes em
quase todas as traduções aqui citadas que possuam perfil biográfico, além disso, não
encontramos maiores dados bibliográficos. As informações sobre Hans Staden são escassas,
mas isso não deve ser pensado como algo exclusivo, conseguir informações sobre qualquer
homem de sua época que vivia do mesmo modo é uma tarefa bastante complicada. Por fim,
sobre o autor, em 1664, alguém chamado Winckelmann encontrou, em Cassel, seu
retrato
14
(figura 1) junto com os desenhos originais, essa imagem foi publicada na edição fac-
símile de Frankfurt, sendo de autoria desconhecida.
Figura 3 – Única imagem conhecida de Hans Staden
12
Não encontremoo registros efetivos sobre o nascimento de Hans taden.
13
Especialista em armas.
14
É curioso notar que as xilogravuras nos apresentam poucos detalhes físicos sobre Staden.
39
Um elemento que precisa ser realçado é a questão da autoria do texto. Não conhecemos
registros que contestem a autoria de forma total. Existem textos que colocam em dúvida a
veracidade dos acontecimentos, não sua autoria, contudo, sabemos que se não redigido
totalmente pelo próprio Staden, ao menos em parte foi revisado sob o intermédio do Dr.
Dryander
15
, prefaciador e revisor de seu texto. Ou seja, não temos o texto “puro, verdadeiro e
ingênuo” de um alemão em suas agruras por terras insólitas, mas algo com objetivos bastante
específicos
16
. Seguindo essa linha, temos várias versões e traduções do relato de Hans Staden
que é produzido muito depois do contato. Nesse aspecto, devemos lembrar que, Para que a
escrita funcione de longe é necessário que ela, à distância, mantenha intacta a sua relação
com o lugar de proteção.” (CERTEAU, 2000:217)
Por isso, pensamos que existem versões de Hans Staden. Essa nossa idéia de versão
vem pelas dimensões que essa obra alcança pela quantidade de traduções feitas da mesma e a
sua transposição para linguagens como o quadrinhos e cinema, por exemplo. A perspectiva de
afirmação do protestantismo, que acreditamos ter sido uma das motivações de Staden, levou a
obra aos registros no Index pela igreja católica. Estamos falando de um livro que pretende
servir como “prova” de que a nova (protestante) também salva. Na perspectiva das versões,
chegamos a uma segunda discussão, essa objeto central do presente trabalho: a construção de
outro Hans Staden agora o personagem cinematográfico, que tem intenções e objetivos
distintos daqueles de seu equivalente literário. Nessa gica, devemos lembrar que a
construção da autobiografia
Não implica uma posição “monolítica” e “linear” do sujeito de criação, uma vez que o
escritor, no processo de produção da narrativa, se move continuamente entre o que “é” e
o que “poderia ser”.
(ALBERTI, 1991:66)
Naturalmente que esse tipo de análise tem desdobramentos complexos, afinal, como
interromper uma travessia do imaginário que não pára de se desenrolar, a despeito das
periodizações habituais e das competências necessariamente limitadas do pesquisador?
(GRUZINSKI, 2006:18).
15
Dr. Johan Eichmann ou Dryander, reitor da faculdade de Marburgo, onde lecionava. Formado em medicina em
Bruges e em Paris.
16
A introdução dedicada ao príncipe mostra essa intenção que destacaremos durante o texto.
40
Diante desse impasse, não cabem leituras psicologizantes desses personagens. Por isso,
partimos do pressuposto de Hans Staden (literário) ser uma versão do Hans Staden (autor),
que, consciente ou não, acredita ser o personagem literário que constroí. Afinal, é importante
ressaltar que o relato não é produzido no dia-a-dia na aldeia, mas nas rememorações do Hans
Staden, já na Europa. Um simulacro do autor, capitaneado (em partes ou no todo, não temos
como saber, como dissemos antes) pelo Dr. Dryander, seu prefaciador e ao qual conferiu
poder de intervir na construção do texto, de modo que nós, leitores, não temos como aferir o
nível de participação do mesmo na feitura do relato em sua dimensão literária, ou mesmo
possível censura a trechos do autor. Essa nossa ênfase na importância do prefaciador está pelo
fato do mesmo servir como avalista da história de Staden. O historiador Eduardo Morettin
acredita que algo similar aconteça com o personagem cinematográfico: Assim como Staden
utiliza o aval do Dr. Dryander o diretor utiliza todos os recursos possíveis para avalizar sua
versão da história.” (MORETTIN, 2000: 52) Para o mesmo, a sensação de realismo
perseguida pelo diretor/roteirista, remete à busca de veracidade, ou de atributos de
autenticidade. Naturalmente que uma fala dessas é passível de ser percebida no primeiro
momento como anacrônica, mas não é essa a lógica. São, isso sim, dois momentos históricos
distintos, os processos de validação, apesar de diferentes, são os modelos válidos para o seu
momento histórico. Ou seja, para sua época, o aval de um acadêmico é tão importante quanto
o cuidado na reconstituição histórica por um filme em nossos dias o primeiro e, às vezes,
único item considerado importante em filmes históricos.
Essa tendência do filme em cercar-se de elementos históricos de maior ou menor
precisão, ou melhor, de elementos de “autenticidade”, para a representação do passado “assim
como foi”, nas palavras do próprio diretor em entrevista, está presente no cuidado da produção
com os detalhes. Para isso as produções empregam profissionais encarregados de fazer a
chamada pesquisa histórica, que, nesse ínterim, corresponde aos adereços de cena. Nós
historiadores somos usados, nas palavras do cineasta Jonh Sayles para os detalhes:
Eu, provavelmente uso os historiadores do mesmo modo como a maioria dos diretores:
costumo usar pessoas versadas em detalhes históricos, especificamente nos detalhes, não
no quadro geral.
(CARNES, 1997:18)
41
No caso do filme Hans Staden, esse cuidado na reconstituição histórica resultou numa
busca de autenticidade. O filme engendra a leitura de um realismo naturalista, cujos
desdobramentos são bem instigantes. Afinal, certas categorias utilizadas para definir a
autenticidade que o diretor de Hans Staden busca também são usadas, por exemplo, em Como
era gostoso o meu Francês
17
, como o idioma da época e cuidado na reconstituição, mas isso
não torna esse filme “neutro” (o que, aliás, nunca foi sua proposta), em clara oposição da
pretensa neutralidade proposta pelo diretor de Hans Staden.
Voltando à versão do relato escrito, se faz importante ressaltar que o personagem
literário não pode ser visto apenas como uma espécie de marionete do Dr. Dryander, mesmo
defendendo a idéia de que o livro sofre a influência do mesmo, não podemos deixar de notar o
tom coloquial e a linguagem simples do texto: seu imediatismo nos mostra um autor não
preocupado em parecer erudito, mas em fazer uma versão verossímil de seu contato com os
índios. Atualmente, discussões sobre a autenticidade do relato, no sentido de ser verdade o que
está escrito, são facilmente refutadas pelo fato de que as confirmações necessárias para essa
validação são impossíveis de serem realizadas:
O único remédio é o ler esses textos como enunciados transparentes e tentar, ao
mesmo tempo, levar em conta o ato e as circunstâncias de sua enunciação. Quanto à
justificativa, poderia ser expressa na linguagem dos retóricos antigos: as questões aqui
levantadas remetem menos ao conhecimento do verdadeiro do que ao do verossímil.
Explico-me: um fato pode não ter acontecido, contrariamente às alegações de um
cronista. Mas o fato de ele ter podido afirmá-lo, de ter podido contar com a sua
aceitação pelo público contemporâneo, é pelo menos tão revelador quanto a simples
ocorrência de um evento, a qual, finalmente, deve-se ao acaso.
(TODOROV, 2003: 74-75)
Nessa ótica, tão importante quanto ser “verdade”, o que está escrito é a credibilidade
que o leitor do texto atribui ao mesmo. O mais interessante nessa leitura é compreendermos o
que para essa sociedade seria aceitável ou desejável em um relato, ou seja, o mesmo nos
apresenta a própria forma pela qual a sociedade se representa. Afinal, o fato de se publicar um
texto que tem grande aceitação em sua época, ainda mais em um relato que se propõe verídico,
17
Os dois filmes têm vários pontos em comum: utilizam o mesmo texto base, são falados em Tupi, possuem uma
reconstituição histórica bem fiel. Sabemos do caráter alegórico de um em relação ao outro, relação que
exploramos anteriormente. Contudo, atributos de autenticidade não devem ser pensados como exclusivos de
“filmes realistas”, afinal, os mesmos podem ser encontrados em filmes alegóricos, como forma de contextualizar
a própria alegoria.
42
nos revela, em parte, algo sobre o que aquela sociedade aceita como real. O personagem
literário, em vários momentos, faz analogia do seu sofrimento com o de Jesus Cristo, e o
cinematográfico salva sua vida por meio de uma série de milagres.
Outro elemento de destaque na sua auto-representação é com relação à coragem do
personagem. Em nenhum dos dois suportes (literário e cinematográfico) vemos um Staden
hesitante: ele é representado como religioso ao extremo e essa fé opera em seu favor
(literário), ou como alguém astuto que, além da ajuda divina, conta com a sorte
(cinematográfico). Ambos estão em clara oposição a Darcy Ribeiro, para quem Hans Staden
por três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a
comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência. Não se comia um covarde”
(RIBEIRO, 2005:31).
Essa questão sobre sua “coragem” deve ser pensada a partir da perspectiva de que o
escritor de suas memórias não gostaria de se representar como um covarde. No filme, voltado
diretamente para o mercado e sua relação de aceitação pelo público, não é interessante um
personagem central da trama ser representado como medroso, e sim, como herói, a não ser nas
paródias ou comédias. Ao longo do filme, a maioria das cenas reiteram essa leitura de
coragem, salvo aquela em que o Staden cinematográfico foge de um índio para que o mesmo
não extraia seu dente, que parece funcionar como uma espécie de “alívio cômico”. A cena
parece nos sugerir mais um ato racional de preservação que de medo. Essa discussão sobre a
“covardia de Staden” no relato quinhentista
18
também não está presente em nenhuma das
traduções consultadas. Podemos até especular sobre a sua covardia, mas isso nunca está
explícito nos textos, essa é uma inferência de quem o lê. Sabemos, isso sim, da relação da
sociedade Tupinambá com a coragem do cativos, que, aliás, tinha grande valia para o ritual.
Afinal, acreditava-se que com o consumo da carne haveria uma transferência das
características daquela pessoa. Ainda no tocante às traduções, temos a exclusão de trechos da
obras (os prefácios de Staden e Dryander, por exemplo, somem de uma tradução para outra),
ou mesmo, a alteração de sentido de determinadas partes.
18
Expressão de uso comum por parte dos etnólogos para os relatos do período.
43
Preferimos nos deter nas principais traduções feitas no Brasil por serem o material que
utilizamos como base e pelo fato de as traduções e reedições internacionais terem sido muito
bem sistematizadas em duas versões da obra de Staden
19
baseadas no texto original.
No Brasil, a primeira tradução de Duas Viagens ao Brasil
20
em português data de 1892,
pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 55, parte I, tendo como autor
Tristão Alencar Araripe, a principal fonte para sua tradução foi a edição francesa da coleção
Ternaux Conpans, esta última, ao que tudo indica, teve como base a edição latina. Segundo
nos informa Löfgren (2006), trata-se de um trabalho bastante fiel ao original francês. Contudo,
não tem por base o texto em alemão.
Em 1900, temos a tradução de Alfredo Löfgren, com notas de Teodoro Sampaio,
realizada a partir da segunda edição em alemão, tendo como apoio para essa iniciativa o
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Em 1930, temos a reedição dessa obra na série
publicações da Academia brasileira, “corrigida e reeditada, com prefácio de Afrânio Peixoto”
(STADEN, 2006:15). Sobre essa edição, é importante lembrar que a mesma é fruto da
aquisição da segunda edição por Eduardo Prado, Alfred Löfgren faz a sua tradução, que é a
primeira em português, a partir do original em alemão.
Temos, na década de 1920, a famosa tradução de Monteiro Lobato, disponível na série
Brasil Antigo, pela companhia Editora Nacional, da qual temos três edições. A primeira de
1925, a segunda de 1926 e a última de 1927. É necessário ressaltar que essa tradução possui
apenas a primeira parte do relato de Hans Staden, Monteiro Lobato, ainda adaptou a história
para a literatura infantil.
A partir da tradução de Karl Fouquet, patrocinada pela “Sociedade Hans Staden” em
1941, temos a tradução de Guiomar de Carvalho Franco, com notas de Francisco Assis
Carvalho Franco, relançada em 1974
21
com o apoio da Universidade de São Paulo, numa co-
edição com a Livraria Itatiaia Editora, de Belo Horizonte. Essa edição é prefaciada por Mário
19
Com relação ao apanhado das traduções e versões, recomendamos as compilações de Alberto Löfgren e
Francisco de Assis Carvalho Franco sobre as reedições do livro.
20 Sobre essa versão é comum encontrar críticas à sua tradução e ausência de notas de rodapé.
21
Se faz necessário ressaltar que essa é a edição mais citada na maior parte dos artigos relativos a Hans Staden.
Por esse motivo, decidi pesquisar as demais traduções para o português do relato de Hans Staden.
44
de Guimarães Ferri e tem introdução e notas de Francisco de Assis Carvalho Franco,
publicada na coleção Reconquista do Brasil.
A partir de 1998
22
, vamos encontrar a tradução de Pedro Süsseking, numa edição que
se destaca da maioria das versões disponíveis pelo apuro visual e por preservar o grandioso
título original. O texto o apresenta sua fonte de tradução, mas tudo leva a crer ser a segunda
edição
23
. Em 1999, temos a tradução de Angel Bojadsen, a partir da edição alemã de Karl
Fouquet
24
, com prefácio de Fernando A. Novais, nomeado como O Brasil de Hans Staden. Em
2006, temos a reedição da tradução de Alfredo Löfgren pela Martin Claret, com mapas da
região percorrida por Hans Staden, disponibilizados pelo Instituto Hans Staden, conforme
podemos observar nos agradecimentos (STADEN, 2006:12) .
Sobre as traduções brasileiras, vamos nos deter durante o nosso texto a essas últimas
aqui citadas e na de Monteiro Lobato
25
. Por se tratar de um texto “realista”, não poético,
poderíamos supor não encontrarmos discrepâncias nas traduções. Nesse quesito, alguns pontos
nos revelam a complexa problemática das traduções e quanto o historiador deve ter cuidado ao
trabalhar com textos traduzidos. Isso nos remete ao fato de, tradicionalmente, usarmos textos
traduzidos e não nos darmos contas das divergências, ou mesmo escolhas, que tornam textos
finais em alguns casos tão diferentes do original.
Ainda no tocante às traduções, se faz necessário evidenciar que, a depender do texto, o
fato de ser uma tradução pode até não ser considerado relevante, algo muito comum em nossa
área de estudo com forte ênfase em autores franceses e ingleses. Em alguns casos, não se
considera que tradução pode ser também uma versão, e não apenas transposição do idioma
original.
22
Importante salientar que boa parte das traduções ocorrem ou próximo do lançamento ou posterior ao filme
Hans Staden (1999), de Luís Alberto Pereira, que também está relacionado com a comemoração dos 500 anos do
Brasil.
23
Essa nossa suposição é alimentada pela quantidade de colaboradores citados pertencentes à Biblioteca
Nacional, onde encontramos uma cópia da edição original. E pelo fato de mesmo com as inserções gráficas não
presentes no original, o livro segue a diagramação presente no original disponível na Biblioteca Nacional
(http://www.bn.br/).
24
Também utilizado por Guiomar de Carvalho Franco, conforme citado anteriormente
25
Felizmente, todas as edições citadas, com exceção da primeira edição de Alencar Araripe e a de Monteiro
Lobato, estão disponíveis no mercado.
45
Para compreender melhor a questão da tradução, procuramos dialogar com Umberto
Eco em sua obra dedicada ao tema da tradução, que não poderia possuir um título mais
adequado: Quase a mesma coisa (2007). Sobre o assunto, o autor assim abre seu texto:
O que quer dizer traduzir? A primeira e consoladora resposta gostaria de ser: dizer a
mesma coisa em outra língua. que, em primeiro lugar, temos muitos problemas para
estabelecer o que significa “dizer a mesma coisa” e o sabemos bem o que isso
significa por causa daquelas operações que chamamos paráfrase, definição, explicação,
reformulação, para não falar das supostas substituições sinonímicas. Em segundo lugar,
porque, diante de um texto a ser traduzido, não sabemos também o que é a coisa. E,
enfim, em certos casos é duvidoso até mesmo o que quer dizer dizer.
(ECO, 2007:9)
Podemos observar que, com relação à tradução, temos na expressão “dizer a mesma
coisa” um problema. A semiótica vem trabalhando com a questão da tradução há décadas,
contudo, sua abordagem não está vinculada ao conteúdo, e sim, à estrutura da língua,
conforme nos apresenta Umberto Eco (2007:55). Mas se traduzir não é dizer a mesma coisa
em outro idioma, o que seria então? Para essa questão, recorremos novamente ao famoso
semiólogo:
Traduzir quer dizer entender o sistema interno de uma língua, a estrutura de um
texto dado nessa língua e construir um duplo do sistema textual que, submetido a um
certa descrição, possa produzir efeitos análogos no leitor, tanto no plano semântico e
sintático, quanto no plano estilístico, métrico, fono-simbólico, e quanto aos efeitos
passionais para os quais tendia o texto fonte.
(ECO, 2007:18) (grifo nosso)
Acreditamos que essa noção sobre a tradução demonstra a complexidade por trás da
tarefa, que ultrapassa o que erroneamente poderia ser encarado como uma transposição fluída
e óbvia. Na tentativa de compreender a importância da tradução, nos deteremos em diversas
traduções do relato de Hans Staden, em especial, partes do texto em que elementos díspares ou
supressões nos demonstram as diferenças entre as traduções. Sobre os cortes, existe uma
leitura nada simpática à essa prática:
Vou considerar trapaça o corte de trechos ou de capítulos inteiros, ficarei irritado com
erros evidentes de tradução (como acontece com o leitor perspicaz, conforme veremos,
mesmo quando lê a tradução sem conhecer o original) e, com maior razão, ficarei
escandalizado se descobrir que o tradutor fez um personagem dizer ou fazer (por
imperícia ou por deliberada censura) o contrário do que dizia ou fazia. (ECO, 2007:23)
46
Queremos deixar claro que não entraremos nesse mérito, pois cada versão, ou mesmo
adulteração, são cruciais para entendermos o contexto em que foram realizadas tais traduções.
Não podemos deixar de lado em nossa análise dos textos, as supressões: afinal, ausências, em
muitos casos, são mais importantes que inclusões para o entendimento da obra no momento
em que é reeditada.
Em especial, nossa leitura será dedicada a dois momentos do texto, que não estão
“presentes” no filme: a primeira, relativa ao texto de abertura da obra, o prefácio do Dr.
Dryander, que consideramos de vital importância para a compreensão da narrativa de Staden, e
o segundo item é o caráter anti-semita da obra, sendo analisado para tanto um trecho do
capítulo XXII, no qual Staden faz uma analogia entre seus captores e os judeus.
No tocante ao primeiro item, temos também, antes do relato propriamente dito, o
prefácio do próprio Hans Staden, em que encontramos uma citação de trecho bíblico do
Antigo Testamento e dedicatória. Além do prefácio do Dr. Dryander, essa abertura do relato
da obra de Staden é suprimida na versão traduzida por Angel Bojadsen e na de Monteiro
Lobato. Nesse caso, sabemos não indicar um problema de tradução, mas de ordem editorial.
Essas escolhas nas traduções podem modificar os contextos de entendimento da obra. Afinal,
esse prefácio é a “carta de autenticidade” de Hans Staden para legitimar sua fala sobre sua
vivência entre os índios Tupinambá em sua época. Esse texto é o reconhecimento de uma
autoridade (intelectual) sobre sua fala, muito nos revelando. Afinal, sabemos que o relato
passou por uma triagem, conforme nos observa o próprio Dryander, Hans Staden, que acaba
de publicar este livro e história, pediu-me para rever, corrigir, e, onde fosse necessário,
melhorar seu trabalho. (grifo nosso)” (STADEN 2006:25).
Dryander, ao longo do texto, defende a veracidade argumentando com a própria
simplicidade da escrita de Staden, o que daria em sua ótica, o caráter verídico à narrativa. O
prefaciador continua atribuindo autenticidade ao texto, argumentando a propósito do autor
como um homem de bem, seja citando o pai do próprio Staden como homem de idoneidade,
ou apresentando nomes das pessoas que comprovariam sua versão facilmente ao retornarem à
Alemanha. Chega mesmo a “responder” aos possíveis questionamentos, e defender Hans
Staden de futuras acusações de falsidade sobre o relato, nos apresentando informações da ida
de Staden à corte, onde teria sido interpelado pelo príncipe:
47
Certos, muitos hão de interpretar isso em seu desabono, como se quisesse ele ganhar
glória ou notoriedade. Eu, porém, penso de outra forma e acredito seriamente que sua
intenção é muito diversa, como se percebe em vários lugares dessa história. Passou ele
por tanta miséria e sofreu tantos reveses, nos quais a vida tão amiúde lhe esteve
ameaçada, que chegou a perder a esperança de se livrar ou de jamais voltar ao lar
paterno. Deus, porém, em quem sempre confiava e invocava, não somente o livrou das
mãos dos inimigos, como também por amor das fervorosas orações... e tendo ele sido,
muito antes disto, interrogado por Vossa Alteza em minha presença e na de muitas
outras pessoas sobre a sua viagem...
(STADEN, 2006:29-30)
Mais adiante, o prefaciador de Hans Staden vai além, apelando para o caráter sagrado e
chegando a utilizar esse argumento como o verdadeiro motivo da impressão do relato. Não
podemos esquecer que esse relato foi utilizado como elemento de comprovação para a nova fé.
Afinal, ela também salva. O texto demonstra que o Deus protestante também salva os fiéis.
Além disso, sabemos que a despesa foi paga pelo próprio autor, o que serviria como elemento
para corroborar a verdade do relato:
Para que, pois, Hans Staden não seja taxado assim de esquecer a Deus que o salvou,
assentou ele de o louvar e glorificar com o imprimir esta narrativa, e, com espírito
cristão, divulgar a graça e obras recebidas, sempre que tiver ocasião. E se esta não fosse
a sua intenção (aliás honesta e justa) podia ele poupar-se a este trabalho e economizar a
despesa, não pequena que a impressão e as gravuras lhe custaram.
(STADEN, 2006:29-30)
Podemos observar que essa introdução é crucial para entender o sentido do texto e a
omissão desse prefácio numa tradução pode nos fazer perder boa parte do que seria o objetivo
da obra e dos motivos que a tornam tão popular. Afinal, observamos desde o início a ênfase no
Divino. Além de que, sabemos que o texto passou por revisão, recebeu autenticidade e que as
gravuras, apesar de aumentarem o custo final, também servem para reiterar a autenticidade da
obra
26
.
Para termos idéia da complexidade da questão das traduções, vamos pensar em um dos
elementos que, apesar de pouco analisado, sempre incomoda numa leitura atual, mais apurada
do texto: o caráter anti-semita
27
. Com relação a esse ponto é absolutamente necessário
26
Mesmo que as imagens estejam ali para confirmar a versão do texto as mesma se tornaram um objeto tão
importante quanto ao texto, afinal, temos a contestação dessas imagens (em especial representando as mulheres
tupinambás) com Ronald Raminelli apropriando-se do conceito de pseudometamoforsis de Parnofsky, para
maiores informações sobre o assunto recomendamos a leitura de Imagens da Colonização, de Gruzinski.
27
Compreendemos os problemas com o uso do termo, em especial, na análise do historiador Marc Ferro no livro
Tabus da história, contudo, utilizamos o termo anti-semita numa referência geral ao judaísmo.
48
entendermos o lugar social do autor. Afinal, estamos falando de um protestante, europeu, do
século XVI, em uma sociedade marcada por um forte sentimento anti-semita. Não estamos
fazendo um julgamento de valor, mas uma análise de como o tradutor, marcado por conceitos
de sua época, pode omitir certos trechos. Vamos utilizar, em nossa análise, um trecho do
capítulo XXII que, de acordo com a tradução, pode ter contornos totalmente distintos.
Na tradução de Guiomar de Carvalho Franco, encontramos a seguinte definição:
O que tinham em mente, quando assim me arrastaram, não sei. Pensei então nos
sofrimentos do nosso salvador Jesus Cristo, como foi inocentemente torturado pelos vis
judeus. Consolei-me nesse pensamento e, mais resignado, tudo aceitei.
(STADEN, 1947: 89)
Nesse trecho, podemos observar a analogia proposta entre Hans Staden e Jesus Cristo.
Isso em muito colabora na validação do seu relato para uma Alemanha eminentemente
protestante. Isso também é facilmente observável pelo prefácio e a dedicatória do texto para o
príncipe protestante H. Phillipsen
28
. Sua “via crucis” entre os tupinambás levaria, como
dissemos, à ascensão da religião protestante como salvadora. O simbolismo dessa comparação
é corroborado pelo resto do texto, em que o autor cita a tortura do Senhor pelos “vis judeus”.
Vil, do latim Vile, é um termo que remete a uma adjetivação nada agradável. Ao escolher o
termo, o tradutor, capitaneado pelos editores, deixa bem claro qual a sua visão sobre o
original, ou mesmo a versão de que se utilizou como base, nesse caso, mesmo sabendo que tal
definição não se justificaria em nossos dias, mas que é totalmente aceitável para um europeu
do século XVI.
Esse mesmo trecho pode ter contornos bem diferentes, a depender do tradutor.
Vejamos o exemplo de Monteiro Lobato, em sua tradução da década de 1920, no qual o termo
vil, ou qualquer equivalente, é suprimido, conforme podemos observar: Não sabendo o que
queriam fazer de mim, consolei-me recordando os sofrimentos de Jesus, tão maltratado pelos
judeus.”(STADEN, 1920:69)
Tal constatação não indica apenas a questão de supressão do termo, temos uma
mudança de contexto. Nesse ínterim, o Staden da primeira tradução, em clara analogia com o
Divino, aceita resignado, sem reclamar das adversidades. Afinal, tem o exemplo divino para
lhe dar a calma necessária para suportar esses seres “vis”, em oposição à tradução de Monteiro
28
Em algumas traduções é utilizado o equivalente em português, Felipe.
49
Lobato, no qual temos um personagem que Não sabendo o que queriam fazer de mim” em
oposição ao que tinham em mente, quando assim me arrastaram, não sei”. Observe que no
primeiro personagem temos incerteza, o segundo, não consegue racionalizar naquele
momento de adversidade, por não saber o que os tupinambás pensam. Ainda na tradução de
Lobato, a analogia dos percalços de Jesus Cristo serve apenas de consolo e não de inspiração.
Mesmo usando o termo consolo, o personagem Staden da tradução de Guiomar, vai além de
consolado e aceita os fatos, assim como Jesus Cristo.
Na tradução da década de 1900, encontramos o seguinte para o trecho analisado:
“Eu não sabia o que queriam fazer de mim e me lembrava do sofrimento do nosso
redentor Jesus Cristo, quando era maltratado inocentemente pelos infames judeus. Por
isso, consolei-me e me tornei paciente...
(STADEN, 2006:78)
Dentre as versões analisadas, esta potencializa o momento vivido pelo personagem ao
utilizar os termos “inocente”, relativo ao martírio Staden/Jesus, e “infame”, relacionado aos
judeus/tupinambás, mas termina sua fala mostrando a serenidade do personagem.
Ainda a tradução de Angel Bojadsen, que tem como base o mesmo texto que o de
Guiomar, segue uma linha muito próxima dessa versão: Nessa hora pensei no sofrimento de
nosso salvador Jesus Cristo, inocentemente supliciado pelos vis judeus. Consolava-me com
meus pensamentos e aceitava tudo com mais resignação.” (STADEN, 1998:57)
O mais interessante é notar que essa parte sequer é citada no filme. Afinal, para o
público moderno, o “herói” do filme ser anti-semita é inaceitável. Aliás, “A personagem
fílmica de Staden é mais permeável ao contato e suscetível à influências externas do que a do
livro de século XVI.” (MORETTIN, 2000: 53) Temos Jacó, o judeu que abandona Staden à
sua própria sorte no filme, ele que termina por se tornar um dos vilões ao lado do francês
Karawuata, por abandonarem o personagem principal à sua própria sorte na aldeia. Eles são
vilões por omissão, enquanto que os portugueses, que assassinam seu escravo, o são por
crueldade. O relacionamento de Hans Staden com as mulheres da aldeia também é
emblemático, conforme analisaremos no capítulo 2, enquanto que no relato quinhentista o
personagem não tem contato íntimo com nenhuma das índias (o que em sua condição de
cativo era prática comum), no filme o mesmo tem um par romântico: Nairá. Sobre esse
50
relacionamento, bem como o sonho de Staden com lurupari
29
, temos um personagem mais
próximo de nossa realidade. Conforme nos lembra Morettin, não podemos deixar de pensar até
que ponto Dryander em sua averbação da obra, podou certas licenciosidades do relato de
Staden, ou mesmo que o autor, no complexo processo de lembrar/esquecer (entre sua chegada
e a publicação do livro se vão sete anos), deixou ou acrescentou certos eventos à sua narrativa.
Infelizmente, não foi possível encontrar fontes sobre que partes foram alteradas, mas nunca é
demais lembrar que,
A falsa imagem, a réplica demasiado perfeita, mais real que o original, a criação
demiúrgica e a violência assassina da destruição iconoclasta, a imagem portadora de
história e de tempo, carregadas de saberes inacessíveis, a imagem que escapa a seu
conceptor e vira-se contra ele.
(GRUZINSKI, 2006:14)
Independente dos objetivos iniciais, os dois personagens (literário e cinematográfico)
são construídos conscientemente ou não, na defesa das obras das quais são o centro narrativo.
Eles estão ali para validar a obra em que se inserem, seja na alteridade e fé do literário, seja na
narração em over
30
do cinematográfico. Os personagens se tornam elementos representativos
das épocas em que foram construídos, mas devemos sempre atentar para não pensar os
mesmos a partir de categorias deterministas ou de oposição:
Tentei resistir, quando me foi possível, aos percalços costumeiros de um pensamento dual
(significante/significado, forma/conteúdo) e compartimentado (o econômico, o social, o
religioso, o político, o estético), cujos recortes demasiados cômodos acabam aprisionando,
mais do que explicando.
(GRUZINSKI, 2006:18)
Nessa ótica, o que percebemos desses dois personagens? Antes de responder essa
questão, queremos ressaltar o fato de não privilegiarmos nenhuma das traduções. Mesmo a
tradução “padrão”, em nosso caso entenda-se como a que citamos durante todo o trabalho, foi
escolhida não pelo seu maior grau de precisão, e sim, pela facilidade de ser encontrada,
estando presente na maioria dos artigos e livros que citam o relato. Ainda sobre as traduções,
não podemos esquecer que,
29
Figura mítica das águas, criada especialmente para o filme, numa junção de outros elementos míticos.
30
Narração em over ou off consiste em uma voz que conta a história, essa narração é evidenciada pela forma
como o som é diferente de outras vozes, em sua maioria nesse tipo de narração a voz dá uma impressão de
distância.
51
...por mais errada que seja uma tradução, é possível reconhecer o texto que ela pretende
traduzir; significa que um intérprete arguto pode inferir na tradução – evidentemente
incorreta de um original desconhecido o que, bastante provavelmente, o texto dizia na
verdade.
(ECO, 2007:52)
Ou seja, por mais que tenhamos demonstrado a ausência do prefácio ou as divergências
no trecho sobre a relação entre os índios e os judeus, o cerne é o mesmo em todas as obras: a
captura e adversidade pelas quais passa o personagem principal e sua necessidade de empatia
por parte dos leitores. Isso nos faz retornar à questão que nos propusemos um pouco antes,
sobre nossa percepção dos personagens.
A primeira representação, do próprio autor, é de um “homem comum” do século XVI,
em situações “extraordinárias”, que é salvo pela nova fé, algo presente durante todo o texto,
seja na sua fala sobre seu dia-a-dia na aldeia ou em sua dedicatória, enquanto que o outro
(cinematográfico) é o estrangeiro em oposição ao local, em sua tentativa de fuga de uma terra
inóspita em busca do paraíso (Europa). Contudo, essa relação dialética o é exclusiva desse
filme, mas de uma série de produções do cinema nacional brasileiro dos anos de 1990, em que
o “civilizado” é o estrangeiro, conforme analisaremos no terceiro capítulo.
Mesmo que Hans Staden fílmico esteja mais próximo de nós (enquanto sociedade
contemporânea) que seu equivalente literário do século XVI, ambos são versões do mesmo
homem que existe, agora, em sua própria representação literária e em todas as outras
realizadas, tendo seu texto como base. Contudo, independente de qual seja analisada, ambas,
assim como suas traduções, nos revelam muito sobre a sociedade em que foram produzidas e
também sobre aquelas em que são reproduzidas, traduzidas, adaptadas a novos suportes,
transformando-se em outras obras literárias ou cinematográficas.
52
Capítulo 2
Capítulo 2Capítulo 2
Capítulo 2 II
Hans Staden Visto de Fora:
Análise extra-fílmica
II.I - Cinema da Retomada e os filmes históricos
O Cinema da Retomada, fazendo uso do célebre aforismo de Sérgio Buarque de
Holanda, é um desterrado em sua própria terra”. Além de desconhecido por grande parte da
população, geralmente é rotulado de mal-feito, pornográfico, lento ou prosaicamente rotulado
de chato. Não é difícil encontrar quem não goste do que definem como filme brasileiro. Essa
falta de identidade com a cinematografia produzida no país muito nos revela sobre como nos
vemos e também nos representamos.
A questão é ainda mais preocupante. Não estamos falando de um problema exclusivo
do país, mas de algo constante na maioria das cinematografias do Terceiro Mundo. A
discussão está presente na coleção Cinema no Mundo: indústria, política e mercado (2007),
sob organização de Alessandra Meleiro, que, nos volumes dedicados à África, América Latina
e Ásia, mostra elementos em comum, ou melhor, dificuldades em comum nas produções
dessas regiões, pois,
Se fazer cinema pode parecer um luxo em algumas partes do mundo é porque a
realização, a distribuição e a conservação de um filme requerem uma gama de recursos
de que carece a maioria dos países do Terceiro Mundo.
(MELEIRO, 2007:17)
Ou seja, assistir filmes é apenas uma das várias etapas do processo e, por esse motivo,
devemos aceitar uma simples constatação: produção reduzida, sistema de distribuição sem os
aparatos de logística da indústria e exibição cada vez menor em relação a uma cinematografia
dominante que, por sua vez, perpetua valores ditos universais. Qual seria, então, o resultado de
tudo isso? Um público habituado a um modelo específico, ou seja, a falta de identidade com o
cinema produzido no país vai muito além da sua ausência de qualidades.
Aliás, de que qualidades, ou falta delas, estaríamos falando? A primeira questão
envolve o desconhecimento do grande blico sobre os filmes produzidos. Como qualquer
produto, o filme precisa ser divulgado, o que pode significar uma parcela considerável de seu
53
orçamento, algo complicado em se tratando de nosso cinema, onde o orçamento não permite
tais desdobramentos. Sobre essa questão, a quantidade de cópias é um dado muito importante;
com raras exceções, encontramos filmes nacionais lançados em várias salas no mesmo cinema.
Outra questão refere-se ao fato de ser considerado “mal-feito”. Entenda-se como de
baixa qualidade técnica e, em alguns casos, até estética. Como qualquer categoria valorativa,
este tipo de avaliação está vinculada a um referencial para confirmar sua baixa qualidade que,
em nosso caso, seria a indústria cinematográfica norte-americana. Ainda na leitura equivocada
dos filmes nacionais, a questão da pornografia é geralmente citada. Acreditamos que as
principais influências são as pornochanchadas
31
, com a presença invariável do erotismo,
responsável em sua fase considerada áurea (1972-1982), pela produção centrada em São
Paulo, na região conhecida como “Boca do Lixo”
32
. A importância desse período está presente
nos números dos filmes realizados na época:
A Boca do Lixo era responsável por cerca de 60 dos 90 filmes brasileiros produzidos
anualmente, em média, na década de 70, realizando todos os subgêneros possíveis da
pornoChanchada: o filão da comédia erótica, o pornodrama, o pornô-horror, o
pornôwestern, e até mesmo o pornô experimental como alguns filmes do Carlos
Reichembach.
(RAMOS, 2000:432)
Podemos dizer que, assim como as demais expressões depreciativas, a aparente
lentidão de algumas produções é conseqüência da relação feita com a cinematografia norte-
americana, que ditou uma espécie de modelo considerado correto pela maioria. Todas essas
adjetivações, conforme já lembramos, trazem explícitas a idéia de comparação.
Diante do exposto, mais que um discurso apaixonado contra o imperialismo norte-
americano, nosso objetivo é destacar as políticas desiguais de distribuição e divulgação que
terminam por desconsiderar um tema crucial: a diversidade cultural.
Mesmo que do ponto de vista conceitual seja alvo de críticas, segundo seus detratores,
existe uma idéia recorrente de que a diversidade antecede, inclusive, os processos sociais.
Entretanto, até mesmo a ONU, em seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), começa a
provocar reflexões sobre a questão.
31
Gênero marcado por “temáticas diversas mas com formas de produção aparentadas – identificado com
comédias eróticas” (RAMOS, 2004:432)
32
“Denominou-se Boca do Lixo o quadrilátero do bairro da Luz, no centro de São Paulo, formado pelas Ruas do
Triunfo e Vitória, nas imediações da estação da Luz e antiga rodoviária” ” (RAMOS, 2004:59)
54
Sem que aqui pretendamos discutir os termos em que se o debate sobre
imperialismo americano, temos uma predominância da cultura norte-americana que não se
resume apenas às produções cinematográficas. Ainda com relação ao cinema, as informações
são elucidativas:
Os dados da ONU se concentram nos movimentos de bilheteria de cinema e apontam
para o fato de que de cada 10 pessoas que entram em um cinema, 8,5 verão um filme
dos Estados Unidos.
(MARQUES, 2007:11)
Essa hegemonia mundial termina por reduzir ainda mais o interesse em
cinematografias que não estão alicerçadas por um grande aparato comercial. O “padrão” de
cinema, leia-se americano, faz o público perder interesse pela produção de seu país, o que
pode ser observado por uma pesquisa realizada pelo jornal O Estado de São Paulo:
Em dezembro de 1992, o diário Estado de S. Paulo encomendou e publicou uma
pesquisa. Os dados revelaram que 61% dos entrevistados não foram capazes de
responder qual filme nacional lhes tinha agradado, 39% por não se lembrarem do título
e – pior – 37% por nunca terem entrado numa sala para ver uma produção brasileira.
(ORICCHIO, 2003:25)
Assim, antes de nos debruçarmos sobre o nosso objeto específico, buscaremos fazer
um balanço do recente cinema produzido em nosso país, pelo qual usamos um duplo recorte.
O primeiro refere-se ao chamado Cinema da Retomada, expressão que compreende grande
parte da produção nacional recente, inclusive o filme Hans Staden (1999), objeto central de
nosso trabalho. Nosso segundo recorte diz respeito às produções de longas-metragens com
temáticas de cunho histórico, rotuladas, de modo geral, como filmes históricos.
Para tanto, compreendemos como Cinema da Retomada, toda a produção
cinematográfica brasileira a partir de meados dos anos 1990, cujos produtos possuem em
comum o apoio do governo, com base em duas leis: a Lei de Incentivo à Cultura (
8.685/93), promulgada em 20 de julho de 1993, e a Lei Rouanet (N° 8.313/91), promulgada
em 1991.
A expressão Cinema da Retomada não esteve necessariamente ligada a uma
uniformidade estética ou de gênero, ao contrário da denominação da produção de outros
períodos como Cinema Novo
33
, Chanchada
34
e da Boca do Lixo. Nesses aspectos, o Cinema
33
Movimento conhecido pelo seu engajamento político e ideológico tendo como principal expoente e difusor,
Glauber Rocha.
55
da Retomada é marcado pela pluralidade, e o termo parece articular-se com a promulgação das
Leis e modelo de financiamento, modelo este que sofre as mais diversas críticas.
Como todo conceito, este não é aceito de maneira unânime, sendo tão objeto de análise
quanto os filmes vinculados à noção da Retomada. Inicialmente havia, nos filmes produzidos,
uma espécie de preocupação de não figurar naquelas adjetivações pejorativas, de não cometer
os “erros do passado”:
Em seus primeiros anos, os filmes da retomada lutaram para reconquistar o mercado
interno e recuperar o prestígio internacional, assumindo para si o fardo de representar o
país e se auto-atribuindo uma missão semelhante à do futebol.
(BUTCHER, 2005:33)
Os detratores da retomada vão deixar claro que tal preocupação com o público diminui
a qualidade dos filmes, assim como o apoio da iniciativa privada, por meio dos incentivos
fiscais. Temos, neste caso, uma meia verdade. Não é o fato de ter uma preocupação com a
recepção que torna uma obra melhor ou pior. Contudo, a segunda parte da crítica tem
realmente um forte fundamento. Nenhuma empresa quer seu nome vinculado a uma obra que
destoe de concepções ideológicas que a norteiam ou que possuam uma mensagem com a qual
não concorde. Por este motivo, os filmes da retomada possuem um forte viés comercial”:
Como conseqüência direta, os projetos de filmes, de forma talvez subentendida, já
passaram a se constituir de maneira a não ferir a imagem das marcas que se associariam
a eles.
(BUTCHER, 2005:32)
Essa espécie de alívio de conteúdo vai ser denominado de “cosmética da fome”,
conceito preconizado por Ivana Bentes no artigo Da Estética à Cosmética da Fome, publicado
no Jornal do Brasil de 08/07/2001, em oposição ao termo “estética da fome” criado por
Glauber Rocha e utilizado por Ismail Xavier (1983) acerca do Cinema Novo.
O filme fundador do Cinema da Retomada, ou seja, seu marco zero (ORICCHIO,
2003:29) foi a farsa histórica Carlota Joaquina (1995), dirigido por Carla Camurati,
considerado pelos críticos e por grande parcela dos que fazem cinema, como o precursor da
retomada, que, ao contrário do que geralmente se credita, não foi financiado pelas leis de
apoio ao cinema nacional:
34
“Gênero cinematográfico de ampla aceitação popular que melhor sintetiza e define o cinema brasileiro das
décadas de 30, 40 e, principalmente, 50, produzido majoritariamente no Rio de Janeiro.” (RAMOS, 2004:117)
56
Carlota não estava dentro de nenhuma lei de incentivo, foi feito somente com dinheiro
de publicidade das empresas. O que ele teve foi o Prêmio Resgate do Cinema
Brasileiro, que o governo Itamar Franco na época estabeleceu, obtendo uma verba para
o roteiro no valor de R$: 100 mil. Os outros R$ 400 mil foram cedidos por empresas.
(NAGIB, 2002:146)
Essa fala da diretora, presente na entrevista para o livro O Cinema da Retomada
Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, mais adiante, chega a contestar esse modelo,
quando diz: “Até hoje não usei a Lei do Audiovisual. Uso sempre a Lei Rouanet, mas na época
nem essa eu utilizei.” (NAGIB, 2002:146), deixando claro que as duas leis-base da retomada
não estão presentes em sua obra inaugural do termo. A mesma postura persiste sendo
compartilhada por vários cineastas
35
do mesmo período. Contudo, concordarmos com a leitura
que considera o filme como o fundador da retomada, no sentido do retorno do público aos
filmes nacionais.
Se o “marco zero” é contestado pela diretora, na relação ao apoio das leis, a situação
persiste sobre o seu ocaso. Afinal, para muitos, a retomada não chegou ao fim mesmo que as
leis estejam mudando. Segundo Luiz Zanin Oricchio (2003), uma atividade não pode
recomeçar indefinidamente, para tanto, o mesmo define como marco do fim desse período o
lançamento do filme Cidade de Deus
36
(2003). Em sua lógica, esse filme fecha um ciclo
37
e
inaugura um novo momento, entretanto, tal raciocínio encontra um contraponto na leitura da
retomada enquanto um processo, conforme afirma o jornalista Pedro Butcher: Pode-se,
contudo, ver a retomada como um processo em curso e que não necessariamente terá um ‘fim’
ou ‘marco simbólico’.” (BUTCHER, 2005:94)
Por conseguinte, não existe consenso com relação à demarcação de um recorte
cronológico. Uma periodização aceita pela maioria corresponde ao período de 1995-2003
como possíveis datas de início e término do processo. Porém, os críticos reclamam da
primazia das datas de exibição dos filmes como parâmetro para tal definição. Entretanto,
35
Nesse sentido, recomendamos a leitura de O Cinema da Retomada: Depoimento de 90 cineastas dos anos 90,
em que vários cineastas, em formato de entrevista, falam de suas impressões sobre o cinema e Brasil, mas em
especial da questão da retomada e da Lei de Incentivo à Cultura.
36
Sobre este filme, a polêmica que o mesmo causou foi eclipsada por suas qualidades estéticas e narrativas, que
resultou em premiações nos mais diversos festivais de cinema.
37
Usamos o termo ciclo em referência às proposições de Alex Viany no livro Introdução ao cinema brasileiro,
mas não acreditamos nos mesmos como definidores absolutos da cinematografia nacional, funcionando mais
como facilitadores no estudo de determinadas produções.
57
acreditamos que esse recorte temporal pode ser utilizado, desde que observados certos pontos,
como o fato do mesmo ser muito mais uma escolha arbitrária baseada em sucesso comercial
que em inovações estéticas ou estilísticas, conforme podemos observar:
Muitos criticam esse batismo, que seria apenas um rótulo da mídia, ou mesmo um eco
dos velhos vícios de profissionais do cinema brasileiro, sempre inclinados a dar
prioridade ao setor da produção em detrimento de outros pilares da indústria
audiovisual (a distribuição e a exibição, sem os quais o filme não chegam ao público).
(BUTCHER, 2005:14)
Problema semelhante à falta de consenso com relação à temporalidade ocorre com o
uso da expressão retomada. Afinal, conforme observamos, esse período não marca um retorno
de gênero ou estética nem mesmo tem vinculação aparente com outros ciclos
cinematográficos.
No entanto, essa aparente “falta” de uniformidade, pelo fato de não seguir uma estética
ou “ideologia” possa ser visto como algo menor ou ruim. O Cinema Novo, eterno parâmetro
de comparação (em sua maioria, de superioridade) com o Cinema da Retomada, é construído
em um momento histórico no qual, dentro das suas especificidades, os “atores sociais” eram
mais bem definidos. Em nossa sociedade moderna (ou pós-moderna, como preferem alguns)
os modelos não são mais tão visíveis.
Essa variedade da oferta, que não é apenas de gêneros, mas de estilos, pode ser
entendida de outra forma. Ela refletiria também a fragmentação mental dos homens dos
anos 1990. Com o chamado “fim das utopias”, cada qual se sentiu liberado para
estabelecer sua própria agenda de prioridades.
(ORICCHIO, 2003:30)
Para melhor compreensão de porque o cinema brasileiro produzido nos anos 1990 é
geralmente colocado como contraponto na maioria das análises ao cinema dos anos
1960/1970, faz-se necessário compreender que esse é outro momento de nossa história. Nessa
ótica, consideramos Cinema Novo a produção brasileira marcada por uma forte carga
ideológica em que o cinema não é mais encarado como fonte de lazer, mas como veículo de
divulgação de uma mensagem de sublevação para as massas.
Temos como principal expoente Glauber Rocha, que criou a célebre frase, uma idéia
na cabeça e uma câmera na mão”, que define boa parte de sua produção, assim como o
próprio Cinema Novo. Ismail Xavier, um dos melhores estudiosos dessa corrente, ao prefaciar
58
Canibalismo dos Fracos, de Alcides Freire Ramos (2002), apresenta-nos o que acredita ser o
principal elemento deste momento, a alegoria:
O Cinema Novo, entre 1964 e 1974, fez largo uso da alegoria: fala indireta sobre o que,
de outra forma, dever-se-ia calar; ou fala totalizante sobre o que de outra forma, não se
poderia condensar
(RAMOS, 2002:11).
As incertezas dos nossos tempos transformam o entendimento sobre contra quem e o
que lutar, nosso “inimigo comum”, conceito utilizado por Eric Hobsbawm (1995:144) para
explicar as relações conflituosas durante a Segunda Guerra Mundial. As questões atuais são
tantas e de tal forma que não existe uma resposta, mas respostas. E, mesmo assim, não existe
“a resposta”, o que cria para nossas indagações um alto grau de complexidade e percalços que
categorias totalizantes não conseguiriam responder.
Vivemos num momento de incertezas, com várias questões que se interpenetram de tal
forma que parece não haver uma resposta certa. Esta discussão mostra a principal diferença
entre as duas vertentes. Afinal, não vivemos aquele período em que as lutas sociais unificavam
um movimento, como no caso do Cinema Novo nos anos 60. A alegoria existe no Cinema da
Retomada, mas os motivos são outros. Não nos é possível a utilização de conceitos separados
em categorias totalizantes, ou seja, em nossa sociedade, a luta ideológica não possui uma
definição tão clara quanto no passado, quanto um rosto, nome ou região geográfica. Por isso,
acreditamos que qualquer tipo de comparação entre a Retomada e o Cinema Novo deve ser
contextualizada para não se tornar anacrônica, respeitando os diferentes períodos e realidades
propostas, nessa lógica:
Ainda aqui a comparação, sem nenhum sentido valorativo, precisa ser feita com o
cinema dos anos 1960, época em que o mal-estar social podia ser associado a atores
políticos definidos. Sabia-se que o país convivia com um déficit social brutal, mas
também (ou pensava-se saber) a quem atribuí-lo. As elites econômicas, o regime militar
e o imperialismo norte-americano pareciam, sem qualquer dúvida, ser responsáveis por
essas mazelas nacionais. Combatê-los era combater diretamente as causas da miséria,
do subdesenvolvimento, da alienação em que vivia mergulhada grande parte do povo
brasileiro. Em outras palavras, os inimigos eram visíveis e o cinema empenhado os
tinha em mira.
(ORICCHIO, 2003:31)
Devemos ultrapassar, nessa análise comparativa, a questão de melhor ou pior, no
sentido de entendermos que dois momentos históricos distintos produzem questões e respostas
59
distintas, ou seja, o cinema tem outras preocupações e resultados. Com relação ao termo,
parece-nos sensato pensar que,
Possivelmente, essa é a primeira vez na trajetória da produção de filmes no Brasil que
uma fase de sua história é batizada com um nome que não subentende um novo começo
a partir do zero (como “Cinema Novo”, por exemplo), e nem propõe uma unidade
estética ou temática. “Retomada” apenas denota um processo.
(BUTCHER, 2005:15)
Como podemos observar, a temporalidade e a designação nunca foram encaradas de
maneira unânime, o que também ocorre com relação ao apoio governamental, aliás, faz-se
necessário apresentar a importância do mesmo para a retomada.
Durante o período de ditadura militar, o cinema brasileiro teve de corroborar uma idéia
muito específica de nação, e qualquer coisa que fosse diferente era considerada subversiva.
Dentro dessa ótica, observamos a vital importância do Cinema Novo como elemento de crítica
para esse momento adverso. Mesmo o período posterior, com abertura política, conforme
observa Sílvio Ferreira Leite (2005:119), foi marcado por um processo lento e gradual e pelo
trauma político (a morte de Tancredo Neves), aliado a desagradáveis fatores econômicos,
como o crescimento da dívida externa, que atinge a nação de forma geral, e as visitas
constantes do FMI. Nesse momento, os altos índices de inflação, aumento do desemprego e
crescimento da violência urbana terminam por trazer à tona um país que não gosta do que
representado na tela sobre si mesmo.
Todos esses problemas levaram ao descrédito com relação à nação, o que foi
potencializado com a rápida ascensão e queda do presidente Fernando Collor de Mello, em
nossa complexa relação com uma espécie de “retorno do desejado”, quando nossa política é
permeada por uma espécie de releitura do discurso messiânico em que tudo será resolvido com
a chegada de uma espécie de “escolhido”. Felizmente, a deposição desse governante não
conseguiu abalar as bases democráticas do país, recém-saído da ditadura, contudo, o saldo
para a produção cinematográfica não foi positivo, sendo invariavelmente marcada por esse
governo.
O principal motivo da estagnação do cinema nacional no país deve-se, então, à
extinção, durante o governo Collor, de órgãos fomentadores da produção cinematográfica no
60
país, como a EMBRAFILME, o Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro. Para se ter uma
idéia da crise, os festivais de cinema brasileiro como o de Gramado tiveram de mudar o seu
modelo. Em 1992, por falta de filmes brasileiros para exibir, este festival tornou-se uma
mostra internacional, depois ibero-americana e atualmente latina. Outro importante evento
cinematográfico do país seguiu uma via de mão oposta:
O Festival de Brasília participou ativamente da resistência e decidiu apresentar os
títulos disponíveis, deixando de lado o critério de qualidade para manter a mostra
competitiva no âmbito exclusivamente nacional.
(RAMOS, 2000:136)
Para o governo, a gica para essa acachapante ofensiva contra o cinema é a
econômica, em que a cultura também se torna um produto, sendo deixado “ao sabor do
mercado, conforme rezava o dogma das políticas neoliberais, na época no apogeu do seu
prestígio”. (ORICCHIO, 2003:25). Todavia, podemos pensar que Collor é o único responsável
pelo fim dos órgãos fomentadores do cinema no país, mas, nas palavras de Oricchio (2003),
ele apenas deu “o tiro de misericórdia”. Para entendermos melhor o que isso significa, convém
uma breve apresentação das duas principais instituições ligadas ao cinema no país:
EMBRAFILME e CONCINE.
A Empresa Brasileira de Filmes S/A (EMBRAFILME), principal instituição
fomentadora do cinema por décadas, surgiu como uma extensão do Instituto Nacional do
Cinema (INC), em 1969, e tinha como suas principais funções:
Distribuir e divulgar o filme brasileiro no exterior, promovendo a realização de mostras
e apresentações... difundir o filme brasileiro em seus aspectos culturais, artísticos e
científicos em cooperação com o INC... a finalidade principal não expressa no decreto
de criação da empresa era capitalizar o produtor nacional, aumentando-lhe os ganhos
com uma nova fonte de receita, a do mercado externo complementar -, e possibilitar à
obra cinematográfica nacional, no mercado interno, maior competitividade com o
produto estrangeiro.
(RAMOS, 2000:212).
Geralmente, é caracterizada por fases relacionadas pela ocupação do cargo de diretor
geral, conforme apresenta-nos Fernão Ramos (2000). Desde seu início, estava vinculada às
instabilidades, por ser uma empresa de economia mista (a União era o acionista
majoritário), a EMBRAFILME encontrava-se sujeita às intempéries econômicas e políticas do
momento” (RAMOS, 2000:212).
61
Como podemos observar, essa instituição estava marcada pela controvérsia. Primeiro,
porque em sua constituição inicial não tinha relação com os principais elementos envolvidos
no processo, tais como: produção, distribuição e exibição. Precisamos lembrar que estava
envolvida na distribuição e divulgação dos filmes brasileiros apenas no exterior, sendo que,
posteriormente, passou a agir no âmbito nacional. Durante todo o período em que existiu,
esteve marcada por críticas das mais diversas, em especial em sua fase final:
Era acusada de inoperância, má gestão administrativa, favoritismo e o não cumprimento
de compromissos. Em função da política estabelecida pelo governo central de não
cumprir contratos, muitos projetos de filmes foram interrompidos e outros em
andamento sofreram sérios problemas de produção, chegando até mesmo a ficar
paralisados na pré-produção.
(RAMOS, 2000: 215)
Os problemas econômicos que envolvem a produção cinematográfica no Brasil são
potencializados pelo governo de Fernando Collor de Mello, ainda mais quando reduz o
Ministério da Cultura a uma Secretaria de Cultura. Em sua lógica, a Cultura agora estaria
vinculada diretamente à Presidência da República, tendo como primeiro secretário Ipojuca
Pontes que, entre as suas medidas, retirou o Estado dos investimentos nas atividades
relacionadas ao cinema. Seu substituto, Sérgio Paulo Rouanet, não aceitou o leilão dos filmes
brasileiros, proposta do Ipojuca, para extinguir de vez qualquer relação do Estado com a
produção cinematográfica. Assim, a extinção da EMBRAFILME teve um longo caminho
jurídico, sendo iniciada em 1990 e finalizada em 1993, conforme nos informa Fernão
(2000:215).
Além da EMBRAFILME, outro forte golpe contra o cinema brasileiro veio com a
extinção do CONCINE (Conselho Nacional de Cinema), criado pelo Decreto77.299, em 16
de março de 1976, que veio em substituição ao Conselho Deliberativo e ao Conselho
Consultivo do antigo INC (Instituto Nacional de Cinema). O objetivo inicial do CONCINE era
apoiar o Ministro da Educação e da Cultura nas formulações da política e do cinema nacional.
A 15 de março de 1985, um novo Decreto, de nº 91.144, vinculou o Conselho ao
Ministério da Cultura. Entre as suas atribuições, estavam a
formulação, controle e cumprimento das normas e leis regentes do segmento
cinematográfico, além da política de comercialização e regulamentos do mercado,
incluindo filmes publicitários.
(RAMOS, 2000: 151)
62
Além dessas atividades, o CONCINE era responsável pelos selos de controle das fitas
cassetes, reduzindo a pirataria. Esta instituição sofreu críticas severas por seu alto grau de
burocracia, falta de fiscais, atraso para emissão de selos. Contudo, em todo o tempo que esteve
ativo, conseguiu montar um grande cabedal nas questões relativas à legislação, produção,
distribuição e exibição, o que foi perdido com sua extinção.
Podemos observar ainda que a dissolução da EMBRAFILME e do CONCINE
acentuam a franca decadência do cinema brasileiro. Sem uma proposta alternativa para o
cinema, temos uma acentuada redução da produção a um nível insignificante. Para se ter uma
idéia, em 1990, são produzidos sete filmes, em 1991, são dez, em 1992, três, conforme nos
aponta Oricchio (2003:27), a mudança desse quadro ocorre com a Lei de Incentivo à
Cultura.
Mas é necessário que o criemos, sobre esses adendos legais, a categoria de axiomas
para o retorno da produção cinematográfica, pois essas leis, de operação complexa como
qualquer dispositivo que envolva benefícios fiscais, demoraram a surtir efeito.(BUTCHER,
2005:20).
Durante o curto governo Collor, teve início o projeto do que seria a futura Lei do
Audiovisual (nº 8.695/93), do qual o presidente vetou 11 artigos da referida lei de tal forma
que a tornou inoperante. Após sua saída, o projeto foi reapresentado e aprovado sem vetos
pelo Congresso e assinada pelo novo presidente” (RAMOS, 2000:136), seu vice, Itamar
Franco, recria o Ministério da Cultura e define como uma de suas principais preocupações a
retomada de produção do cinema nacional. O primeiro passo nesse sentido é a Lei do
Audiovisual, em que podem,
ser deduzidos do Imposto de Renda os investimentos realizados na produção de obras
audiovisuais cinematográficas brasileiras de produção independente, mediante a
aquisição de cotas de seus direitos de comercialização, de projetos aprovados pelo
Ministério da Cultura. A dedução permitida está limitada a 5% do imposto devido.
(LEITE, 2005: 123)
Uma das principais críticas a esse modelo é que imperativos extra-cinematográficos,
vinculados à imagem que as empresas querem ter associadas as suas marcas, passam a definir
63
a produção nacional. Nesse ínterim, nos parece bastante sensato observar que tal ênfase no
patrocínio termina por criar vinculações problemáticas:
O sistema formado pela Lei do Audiovisual e pela Lei Rouanet, ao mesmo tempo que
abriu portas, revelou-se também de tendências conservadoras, uma vez que boa parte da
decisão sobre quais filmes estariam aptos a receber financiamento se transferiu para os
departamentos de marketing das empresas. (BUTCHER, 2005:32)
Temáticas não tão “simpáticas” aos patrocinadores são, partindo dessa gica,
sumariamente descartadas, numa espécie de padronização dos filmes produzidos, com um
caráter mais comercial. Mas, nesse ponto, não teríamos um contra censo, quando pensamos a
Retomada como marcada pela diversidade? A resposta para esta questão é que a padronização
refere-se à escolha de temas pouco polêmicos e não a gêneros cinematográficos. A Lei do
Audiovisual ainda influenciou em outro meio, o da distribuição, tornando possível a co-
participação das produtoras internacionais
38
nos filmes.
Mesmo no período mais tenebroso para o cinema nacional, foram criadas algumas
alternativas que viabilizaram a circulação dos filmes:
movimento importante foi a fundação da Rio-filme, em 1992. Criada pela prefeitura do
Rio de Janeiro, ela procurou ocupar o vazio deixado pela Embrafilme [...] tornando-se
praticamente a única distribuidora a trabalhar com filmes nacionais.
(BUTCHER, 2005:20)
No quesito distribuição, a Lei do Audiovisual é absurdamente limitada, deixando de
lado esta etapa importante do circuito cinematográfico. Nesse tocante, conforme já lembramos
procede a crítica daqueles que não aceitam o termo “retomada”. Afinal, para os mesmos, os
problemas estruturais persistem. Contudo, mesmo os críticos devem observar que o termo
não subentende um denominador comum ou qualquer forma de totalização estética ou
política, nem procura forjar um bloco de pensamento onde ele não existe” (BUTCHER,
2005:14).
Não podemos esquecer, conforme observa Sydney Ferreira Leite (2005), que a área de
distribuição no Brasil também sofre uma mudança considerável com o advento do Multiplex
39
,
38
Devemos observar que esse apoio leva obras do cinema nacional para os principais festivais de cinema do
mundo.
39
Padrão atual de cinema que consiste em várias salas instaladas em grandes centros comerciais,
preferencialmente shopping centers.
64
que resultou, segundo o autor, em aumento significativo na construção de salas, mesmo que tal
expansão seja vinculada ao aumento do circuito de produções hollywoodianas.
Mesmo com a construção de multiplexes, o número de cinemas em funcionamento no
Brasil na Retomada é menor que nos anos 1970. Dois itens não podem ser esquecidos nessa
mudança do modo de exibição do cinema: o tamanho das salas diminui para aumentar a
quantidade, além da segmentação apenas em grandes centros comerciais, ou seja, mesmo que
a quantidade de salas aumente, a cobertura de municípios diminui. O gráfico abaixo é
elucidativo na questão da quantidade de salas e público:
Salas em funcionamento e faturamento no Brasil
Ano
Salas
Público Total
(em milhões)
Ingressos Vendidos
Para filmes nacionais
(em %)
1971
2.154
203,020
13,83
1972
2.648
191,489
16,17
1973
2.690
193,377
15,94
1974
2.676
201,291
15,23
1975
3.276
275,380
17,74
1976
3.161
250,530
20,77
1977
3.156
208,336
24,45
1978
2.973
211,657
29,22
1979
2.937
191,908
29,10
1980
2.365
164,773
30,76
1981
2.244
138
,892
33,06
1982
1.988
127,913
35,93
1983
1.736
106,536
31,70
1984
1.553
89,936
34,07
1985
1.428
91,300
24,03
1986
1.372
127,603
22,99
1987
1.399
116,939
21,46
1988
1.423
108,567
22,09
1989
1.520
110,072
18,68
1990
1.488
95,101
10,51
1991
1.551
95
,093
3,15
1992
1.400
75,000
0,05
1993
1.250
70,000
0,06
1994
1.289
75,000
0,37
1995
1.335
85,000
3,70
1996
1.365
62,000
4,11
1997
1.075
52,000
4,59
65
1998
1.300
70,000
5,15
fonte: www.filmeb.com.br
Podemos observar uma queda drástica do público no início dos anos 1990, pelos
motivos que apresentamos ao longo do texto. Esse baixo índice também pode ser associado à
baixa auto-estima do público em relação ao ser brasileiro e, por conseqüência, ao cinema
nacional que tematiza sua identidade. Sobre esses dados, devemos lembrar que o cinema, de
modo geral, começa a perder espaço, nos anos 1980, para o home-vídeo e, nos anos 1990, para
a popularização da TV a cabo e advento do DVD. Atualmente passamos por mais uma
revolução com os vídeos on line sendo cada vez mais comum, como a exibição de programas
via web. O cinema baseado no modelo de sala de exibição vem deixando de ser diversão das
massas.
Considerado o baixo interesse do público no início dos anos 1990 e seu retorno ainda
tímido em meados de 1994, vamos discutir agora uma questão muito própria desse momento:
o ser brasileiro. Devemos lembrar também que termos generalizantes como “povo brasileiro”,
“cinema brasileiro” ou mesmo “cinema nacional” e “cultura nacional” fazem parte da tentativa
de construir um modelo no qual uma grande parcela de nossa sociedade não se
representada. Isso pode ser percebido pelo senso comum e sua relação, geralmente nada
favorável, com o que consideram a cinematografia nacional, com a frase: “não gosto de filme
brasileiro”. Mas, afinal, o que torna um filme nacional? Estas questões se revelam nas
pesquisas:
Reuniu-se uma amostra representativa da população brasileira e perguntou-se a cada
entrevistado qual o filme brasileiro que mais o tinha agradado. Do público consultado,
61% não responderam, ou por não lembrar do título, ou por nunca ter entrado em uma
sala para ver uma produção nacional. A parte restante dos entrevistados conseguiu citar
filmes mais antigos como Pixote, Bete Balanço ou o fenômeno Dona Flor e seus dois
maridos, produção de 1976 até hoje imbatível com seus 10.735.305 de ingressos
vendidos no mercado interno.
(RAMOS, 2000:137)
A pesquisa, como indício, nos permite afirmar que o público não se identifica com os
filmes produzidos no seu país. Nesta ótica, o que seria o cinema brasileiro da retomada para
vastos setores e grupos sociais brasileiros? Podemos pensar que todos os filmes realizados no
Brasil, ou quem sabe, especificamente de diretores brasileiros nos anos 1990. Mas, para o
66
brasileiro desse período, Cinema da Retomada é justamente aquele do qual não faz parte, onde
não se vê representado e, principalmente, não vai ao cinema assistir.
A falta de identificação do grande público não impede que alguns diretores falem de
seu país e, por conseguinte, de sua identidade nacional. Obviamente que poderíamos citar
vários exemplos, bons e péssimos, mas nos deteremos em um do início da Retomada e outro
de um período anterior. De antemão, os escolhidos são cineastas renomados. O primeiro, um
diretor brasileiro filmando fora de nosso país, que é o caso de Walter Salles em Terra
Estrangeira (1994), onde mostra nosso sentimento de desterrados. É um filme que fala do
Brasil e em especial do ser brasileiro. Mesmo que sua história seja retratada na Europa,
estamos falando de problemas de nosso país e, especificamente, sobre a sensação de
desconforto com nossa identidade ou falta dela. O outro diretor é o argentino Hector Babenco,
naturalizado brasileiro, que, em Pixote, a lei do mais fraco (1980), mostra-nos um país que
fazemos questão de esquecer. Então, pensemos em outra vertente, que é a produção de
temáticas “tipicamente” brasileiras, com enfoque social, centradas na discussão sobre o
tríplice modelo de filmes sobre o país: fome, seca e violência, que tem seu posicionamento
geográfico entre a favela e o sertão. Nesta vertente, está integrando outra, a produção com
ênfase no urbano, que revela a condição das grandes metrópoles, cada vez mais sujas e
inquietantes, reflexo de uma sociedade liquefeita em suas próprias contradições, com
predominância de personagens lacônicos e desesperançados.
Capitaneado por todos os elementos aqui apresentados, esses “problemas” dificultam
ainda mais nossa identificação com a produção cinematográfica feita no país, e nada poderia
ser considerado mais natural que as pessoas, em sua relação problemática consigo mesmas,
não se vejam representadas naquilo que consideram de baixa qualidade, difícil de compreender
ou mesmo cansativo, criando uma relação conflituosa com o cinema, reveladora de nossas
dificuldades históricas na construção de uma identidade nacional.
Nessa dificuldade de se identificar com a produção de seu país de origem, o Cinema da
Retomada teme por não agradar, segundo a visão de seus críticos, o que pode levar a
produções escapistas, ou a um cinema considerado “menor”:
67
Esse cinema que renasce das cinzas de fato apresenta uma variedade de temas e gêneros
muito grande. Há comédias, filmes políticos, obras de denúncia, de entretenimento
puro, filmes destinados ao público infantil, neochanchadas, policiais, épicos, etc. Quem
o lado positivo das coisas acha que a multiplicidade só pode ser benéfica num
momento em que se deseja instaurar uma indústria cinematográfica no país. Implica
uma “fábrica” de produtos audiovisuais destinados ao público plural o suficiente para
atender os gostos e expectativas distintas. Sob este ponto de vista prevalece inútil dizer,
a concepção de mercado, ou melhor, do supermercado, com suas gôndolas cheias de
produtos atrativos, capazes de satisfazer o gosto do consumidor já saturado pela oferta e
pela publicidade.
(ORICCHIO, 2003:29-30)
Nos parece que o mercado, entendendo essa falta de identidade, tenta mudar para
agradar ao público. Não vemos problemas nesse “mercado”, desde que seja possível ter acesso
a outros ambientes. O processo de percepção fílmica é complexo e demorado, talvez tenha
sido o grande problema do Cinema Novo, de nunca ter atingido as massas: a inacessibilidade
dos discursos. Nesse sentido, a Retomada tem muito a nos ensinar, tentando dialogar com o
maior público possível, mesmo que em alguns casos produza o que geralmente se categoriza
como “obras menores”.
Entendemos, então, que mais do que citar um filme, em nosso caso, Cidade de Deus
(2003) ou qualquer outro que seja, como o fim de retomada, não devemos seguir uma linha
que priorize a produção como elemento mor no processo cinematográfico, deixando de lado
outras etapas tão importantes, tais como exibição e distribuição. Podemos falar no fim da
Retomada quando tivermos uma mudança significativa na forma de se fazer (financiamento,
leis de mercado e relação com o governo) e distribuir, partes cruciais do processo. Nessa
perspectiva, a produção da Retomada pode não ser o ideal, do ponto de vista ideológico ou
mesmo estético, mas representa, com muita propriedade, alguns dos principais
questionamentos de uma sociedade marcada pela dúvida.
Depois de apresentado o contexto do cinema no país onde foi produzido Hans Staden e
do conceito que cerca os filmes do período, procuraremos agora compreender o gênero
conhecido por filme histórico, categoria essa à qual pertence o filme.
No entanto, precisamos compreender melhor o próprio termo “gênero”. Na lógica
aristotélica, refere-se a qualquer classe de indivíduos que possuam elementos em comum, que
podem ser subdivididos em espécies, modelo utilizado até hoje pela ciência moderna. A
origem do termo em latim está relacionada ao sentido de categoria. A partir do século XVII, o
68
conceito foi se tornando mais específico, sendo então utilizado para designação de conjunto de
obras com elementos em comum, que poderiam ser categorizadas pelo enredo ou estilo.
Contudo, não podemos esquecer que
Os gêneros só têm existência se forem reconhecidos como tais pela crítica e pelo
público; eles são, portanto, plenamente históricos, aparecendo e desaparecendo segundo
a evolução da própria arte.
(AUMONT, 2003:142)
Ou seja, os gêneros são construções de cada momento histórico, contudo, mais do que
partir para o truísmo de que os gêneros “aparecem” ou “desaparecem”, acreditamos que, na
maioria dos casos, são ressignificados, algo, por sinal, muito comum no cinema.
Os filmes são classificados de acordo com certos elementos em comum, criando os
gêneros cinematográficos que, por sua vez, dividem-se em subgêneros, gerando uma
infinidade de categorias, como o caso das populares e açucaradas comédias românticas em que
dois gêneros, comédia e romance, são mesclados em um tipo de filme permanentemente em
cartaz durante o ano inteiro, em razão do seu retorno financeiro. Nesse momento, chegamos a
outro ponto. O cinema, enquanto produto cultural tem, na ótica mercadológica, o objetivo de
dar resultados, entenda-se, resultados financeiros satisfatórios. Pelo desinteresse crescente do
público, gêneros consagrados no passado raramente encontram espaço no cinema atual, como
os musicais e westerns. O gênero, como qualquer processo de catalogação, pode ser arbitrário,
e o cinema, enquanto produto, não foge a essa regra. Afinal, como nas outras artes, o gênero
cinematográfico está fortemente ligado à estrutura econômica e institucional da produção.”
(AUMONT, 2003:142).
Em Hollywood, que definiu os gêneros considerados clássicos do cinema, os estúdios,
no início do século XX, tinham como ênfase um gênero, como o caso da Universal (horror),
Warner Bros. (ngster), MGM e RKO (musical) e Paramount (comédia). Essa escolha, mais
que a estética, estava vinculada a outros fatores; facilitou decisões de produção e
comercialização dos títulos, além de servir de modelo para os roteiristas, no auge da
produção de centenas de filmes em ritmo frenético.” (BERGAN, 2007:115). Cineastas
consagrados como John Ford e Alfred Hitchcock são facilmente reconhecíveis pelo público
graças ao gênero que marcam suas produções, no caso western e suspense, respectivamente.
69
Em nosso caso, um gênero nos interessa. Estamos falando do filme histórico.
Conhecido como filme de época ou, quando possui um grande orçamento de épico, essa
categoria abrange os demais gêneros, constituindo-se sempre em tentativas de representação
do passado. Existe uma querela, aparentemente sem fim, entre cineastas e historiadores. Os
primeiros defendendo que o passado não é posse dos historiadores; os cineastas sempre se
esquivam das críticas, dizendo não estarem preocupados em dar aula de história
40
, enquanto
outros acreditam representar o passado “tal qual ocorreu”, como Luis Alberto Pereira, no filme
Hans Staden, segundo Morettin (2000:52).
Para o historiador, a “impressão de realidade” que o filme causa no espectador é um
dos principais problemas, afinal,
O poder do filme é que ele proporciona ao espectador uma sensação de testemunhar os
eventos. [...] O diretor molda a experiência embora permanecendo invisível. E o diretor
está preocupado não somente com o que aconteceu realmente, mas também em contar
uma história que tenha forma artística e que possa mobilizar os sentimentos de muitos
espectadores.
(BURKE, 2004:200)
Essa é uma questão fundamental na diferença entre o cineasta e o historiador: a forma
artística numa obra cinematográfica pode alterar o conteúdo histórico sem maiores problemas,
vários personagens podem ser fundidos em um, acontecimentos criados, mesclados ou
sumariamente esquecidos para melhoria na funcionalidade da narrativa fílmica, o que não
pode ocorrer no trabalho histórico. Podemos observar então que ambos fazem interpretações
da história; a diferença está na “licença poética” que é permitida ao cineasta. Essa diferença de
abordagem sobre o material faz toda a diferença:
Ninguém imaginava, no início, que a indústria cinematográfica fosse qualquer outra
coisa que não fosse indústria. As histórias filmadas eram então sabidamente populares;
equivaliam aos espetáculos teatrais que eram, por sua vez, cheios de ufanismo. Uma
história conhecida era matéria-prima garantida de antemão.
(CARNES, 1997:12)
Chegamos à outra problemática. Definimos que o cineasta pode, com todo direito,
recontar o passado ao seu bel prazer ou do estúdio do qual faz parte, para desespero de alguns
historiadores, por meio de equivocada representação do passado. Contudo, existe um motivo
40
Edward Zwick, em entrevista presente nos extras do filme O último samurai, afirma ter conseguido realizar o
que considera um meio termo entre história e cinema.
70
bem prático para esse fetiche pelo passado por parte do cinema, e que tem a ver com questões
de mercado e recepção:
uma certa força que emana da história. ouvi produtores dizerem inúmeras vezes
que a única maneira de um filme funcionar é colocar no anúncio: “baseado em uma
história verdadeira.” Aconteceu ou não aconteceu, mas elas pensam que aconteceu, ou
sabem que aconteceu. Isto dá à história uma certa legitimidade na mente da platéia e, às
vezes, na mente do cineasta, ao passo que, quando a gente inventa tudo, não é a mesma
coisa.
(CARNES, 1997:17)
Nunca é demais lembrar que existe uma pequena distinção entre passado e história que
pode auxiliar no entendimento dessa questão. Concordamos com Keith Jenkins (2005) que faz
distinção entre ambos. Seguindo essa linha, história é o que os historiadores fazem com o
passado, nesse sentido concordamos que
Passado e história são coisas diferentes. Ademais, o passado e a história não estão
unidos um ao outro de tal maneira que se possa ter uma, e apenas uma leitura histórica
do passado. O passado e a história existem livres um do outro: estão muito distantes
entre si no tempo e no espaço.
(JENKINS, 2005:24)
Seguindo essa gica, são possíveis múltiplas leituras do passado, por que não
múltiplas áreas do conhecimento com objetivos distintos trabalhando com esse mesmo
passado? Não encontramos a definição de um filme “antropologicamente impreciso” ou
equivocado, do ponto de vista antropológico, pelo fato das áreas não criarem essa relação
problemática com o cinema, tão constante na história.
Nosso intuito não é dizer que o historiador não deva trabalhar com o cinema - afinal,
tal assertiva invalidaria nosso trabalho -, mas que analisar o passado proposto no filme vai
além do parâmetro comparativo e que sua participação na discussão vá além do trivial. Afinal,
na maioria das vezes, quando solicitado a falar sobre determinado filme de cunho histórico,
sua função não é fazer um discurso analítico e crítico sobre essa leitura do passado, e sim
para me chamar à ordem, em nome da técnica, em nome do público-que-não compreenderá
ou em nome da moral, da conveniência e etc” (BORDIEU, 1997:15). Sua presença, na
maioria das vezes, está em responder curiosidades históricas, geralmente pitorescas, sobre
personagens e situações presentes no filme.
71
A crítica ao conhecimento acadêmico usado em serviço desse tipo de participação é o
ponto central de Pierre Bordieu em seu livro Sobre a Televisão (1997), no qual, mesmo não
falando especificamente sobre historiadores, levanta questões sobre a relação complexa entre o
saber acadêmico, servindo como prova de algo, no seu caso, com a imprensa televisiva:
Acredito que em geral, não se pode dizer grande coisa na televisão [...] Se é verdade
que não se pode dizer nada na televisão, eu não deveria concluir, com certo número de
intelectuais, de artistas, de escritores, entre os maiores, que deveríamos abster-nos de
nos exprimir nela?
(BORDIEU, 1997:15)
O autor continua sua análise e nos lembra que não podemos pensar na questão da
participação em valores absolutos. Contudo, isso não o impede de questionar a validade do
discurso (ou pela falta de um) dos mais diferentes intelectuais que aceitam participar de
programas televisivos:
Tenho a impressão de que, ao aceitar participar sem se preocupar em saber se poderá
dizer alguma coisa, mas por razões bem outras, sobretudo para se fazer ver e ser visto.
Ser, dizia Berkeley, é ser percebido. Para alguns de nossos filófosos (e de nossos
escritores), ser é ser percebido na televisão, isto é, definitivamente, ser percebido pelos
jornalistas, ser, como se diz, bem-visto pelos jornalistas [...] é bem verdade que, não
podendo ser fiar muito em sua obra para existir com continuidade, eles não tem outro
recurso senão aparecer tão freqüentemente quanto possível no vídeo.
(BORDIEU, 1997:16)
O que deve ficar claro é que não defendemos que os historiadores deixem de participar
de debates sobre representações cinematográficas da história, mas que seu discurso não seja
apenas complemento de marketing.
Podemos perceber que o passado não é nossa propriedade, mas pelo que o historiador
Ronaldo Vainfas, em sua desconstrutora análise do filme Carlota Joaquina, no livro A história
vai ao cinema (2001:227), chama de “força do ofício”, possuímos uma relação com o
conhecimento histórico muito própria e diametralmente oposta do cinema no tocante à
representação da história.
No Brasil, segundo o historiador Eduardo Morettin (2000:53), desde a década de 1930,
o filme histórico estaria vinculado a uma tentativa de autenticidade e veracidade da
reconstituição da época encenada no filme. Isso seria conseqüência da preocupação com os
detalhes de produção e direção de arte e até com referências históricas. O descobrimento do
72
Brasil (1937), de Humberto Mauro, contém todos esses elementos, sendo o grande exemplo
desse tipo de filme.
Alguns estudiosos retrocedem ainda mais o início do cinema histórico, entendido aqui
enquanto representação de um passado. Afinal, um filme produzido nos anos 1920 é
atualmente considerado histórico, mesmo que o seu objetivo não seja o registro do passado.
Nessa perspectiva,
No Brasil o gênero histórico é quase o antigo como o próprio cinema de ficção.
que, nesses anos que se convencionou chamar de “Bela Época do Cinema Brasileiro”, a
temática histórica era exclusivamente portuguesa. a partir do surto paulista dos anos
10 é que aparecem filmes históricos de temas brasileiros.
(BERNARDET, 1980:50)
Os filmes desse período (1910) não existem mais; as informações disponíveis sobre
esse material são anúncios e comentários na imprensa. Em grande parte, foram dirigidos por
italianos e, sobre esse fato,
Pode-se fazer a hipótese de que estes imigrantes, num esforço de aculturação, estavam
se voltando para uma temática nacional, assimilando e assumindo os valores
considerados nobres da nacionalidade e, assim, reproduzindo uma imagem da história
constituída pela classe dominante.
(BERNARDET, 1980:50)
No concernente ao cinema e sua representação da história, Peter Burke (2004) nos
lembra que, em 1916, é publicado na Inglaterra o livro A câmera como historiadora, ou seja, o
“cinegrafista como historiador”. Nesse sentido, o autor, que entende a arte cinematográfica
como um processo, relativiza a autoria, o individualismo cinematográfico:
Falar de “cinegrafistas” no plural, uma vez que um filme é o resultado de um
empreendimento coletivo no qual o ator e a equipe de filmagem desempenham seus
papéis juntos ao diretor.
(BURKE, 2004:199)
José Honório Rodrigues, segundo Alcides Freire Ramos (2002) em seu trabalho A
pesquisa histórica no Brasil, acreditando na câmera como instrumento objetivo, em especial
os cinejornais, encara o filme enquanto documento histórico. E esses debates já começam a ser
constantes no âmbito da história:
73
Desde 1927, no Congresso Internacional de Ciências Históricas reunido em Göttingen,
se debateu o filme comum e o histórico como documento. Em 1924, quando se criou o
Arquivo Nacional dos Estados Unidos, mandava-se recolher aos seus depósitos [...]
filmes cinematográficos. Reconhecia-se a capacidade sem par oferecida pela câmara
cinematográfica de documentar os acontecimentos para fins históricos.
(RODRIGUES in RAMOS, 2002:19)
Devemos lembrar que, para Rodrigues, em sua postura positivista, as imagens do filme
documentário possuem uma objetividade que o deixa confortável na posição sobre
documentário. Sentimento não exclusivo do autor, afinal, o termo vem do próprio
equipamento cujo nome da parte de captação de imagem recebe a sugestiva designação de
objetiva.
No Brasil dos anos 1970, o cinema histórico recebe o apoio do principal órgão
fomentador no período: EMBRAFILME. Nesse período, é criada uma verba apenas para os
filmes de temática histórica. Contudo, tal apoio não é livre de segundas intenções, em especial,
a busca de um passado glorioso e uma história exemplo. O resultado não poderia ser outro:
foram recebidos apenas dois projetos, sendo aprovado Anchieta, Jodo Brasil (1977), de
Paulo Cesar Sarraceni.
Após uma conturbada produção, o filme não agradou: nem sucesso de público, nem de
crítica, nem institucional, nem a história como se queria: a burocracia não tem como
manipular este filme.
(BERNARDET, 1980:52)
Com os resultados nada positivos, muda-se o modelo e um maior investimento é
realizado. Solicita-se, agora, argumentos; se aprovados, os seus roteiros serão financiados pela
EMBRAFILME, mas a escolha final cabe ao ministro da educação, o que aumenta o resultado
de projetos que vão de dois, do antigo modelo, para 74. Os resultados, entretanto, são nada
favoráveis, em conseqüência de mudanças no corpo administrativo, situação financeira
precária e as mudanças de orientação ideológica do Ministério.
O único “resultado” do governo, nesse período, é Independência ou Morte (1972), que
não é conseqüência do apoio governamental. Na obra, D. Pedro I é visto sempre em trajes
militares e a versão da história representada é a oficial, nela temos um herói nacional, cujo
patriotismo exacerbado atende às expectativas ideológicas dos militares. O filme foi objeto de
74
crítica dos cineastas do Cinema Novo enquanto foi saudado pelo governo, chegando mesmo a
receber felicitações do general presidente no poder.
Em 1974, Joaquim Pedro de Andrade, um dos principais nomes do Cinema Novo,
realiza Os Inconfidentes (1972) que, “tirando proveito dos incentivos dados pelo governo
brasileiro à realização de filmes históricos, se articula exatamente em torno da crítica à
história oficial” (RAMOS, 2000:24). Trata-se de uma obra que fala mais do momento político
em que foi produzida do que da história que se “propõe” representar.
Sobre a questão da representação do passado pelo cinema, Peter Burke propõe que,
quanto mais distante o passado proposto na representação do filme, maiores são as
dificuldades:
É relativamente difícil encontrar um filme que trate de um período anterior ao século 18
que faça uma tentativa séria de evocar uma época passada como um país estrangeiro
com uma cultura material, organização social e mentalidade (ou mentalidades).
(BURKE, 2004: 202-203)
Essa é uma das grandes discussões: o filme vale apenas pelo momento histórico em
que é produzido? Devemos desconsiderar o passado representado e nos ater ao presente. Sobre
essa questão, o autor é bastante enfático:
Na minha experiência pessoal, é muito difícil para um historiador ver um filme que se
passa em um período anterior de 1700 sem ficar desconfortavelmente consciente dos
anacronismos, nas cenas e nos gestos bem como na linguagem e nas idéias.
(BURKE, 2004: 203)
Entretanto, o autor fala das exceções, como o caso de Akira Kurosawa e o Japão a
partir do século XVI, representado pelo cineasta em filmes como Os Sete Samurais (1954),
Ran (1985), Rashomon (1950), Yojimbo –O guarda-costas (1961). Sua obra é marcada por um
tom respeitoso com o passado, onde valores como honra e dignidade são considerados eternos.
Sua linguagem moderna e influência do ocidente são postas de lado e, mesmo quando
presentes, são absolutamente verossímeis à narrativa proposta. Além dele, teríamos Kevin
Brownlow (BURKE, 2004:204), com filme como It Happened Here (1965) e Winstanley
(1975).
No Brasil do Cinema da Retomada, também existem as boas exceções. Pelo menos
quatro filmes desse período são dignos de nota como produções em que o passado é
75
representado a partir de uma pesquisa que foge à mera espetacularização e incorpora a
pesquisa histórica de forma séria e contextualizada. Consideramos, nessa perspectiva, os
seguintes filmes: Hans Staden (1999), Quanto vale ou é por quilo? (2005), Desmundo (2003)
e Brava Gente Brasileira (2004).
Hans Staden (1999), objeto de análise nesse trabalho, é a versão cinematográfica do
relato quinhentista do alemão Hans Staden, dirigido por Luís Alberto Pereira, reconhecido por
sua cuidadosa reconstituição de época. Desmundo (2003), a partir da personagem principal,
Oribella, conta uma história pouco conhecida no país: das jovens órfãs, enviadas de Portugal
para o Brasil, no século XVI, para casar com os primeiros colonizadores. Inspirado no
romance histórico de Ana Miranda e dirigido por Alain Fresnot. Esses filmes possuem em
comum, além do fato de serem ambientados no Brasil colônia, a utilização de línguas da época
- Staden usa o Tupi geral, enquanto o Desmundo, português arcaico. Ambos possuem uma
requintada reconstituição de época e ótima direção de atores, que tornam suas representações
verossímeis para o público.
Os outros filmes possuem um forte ponto em comum, o fato de fazer relação entre
passado e presente sem recorrer a anacronismos. Quanto Vale ou é por Quilo?, dirigido por
Sérgio Bianchi, faz um paralelo entre os dias atuais e o Brasil escravocrata do século XVIII. Já
Brava Gente Brasileira, dirigido por Lúcia Murat, lança outro olhar sobre o índio, que foge ao
senso comum.
Cada uma dessas produções, à sua maneira, representa um momento de nossa história com
muita seriedade e contextualizada de forma coerente, produzindo filmes cujo gênero necessita
geralmente de grandes orçamentos para suas reconstituições. Os eventuais problemas que
todos possuem não diminuem sua importância enquanto representações do passado. Para
compreender melhor nosso objeto de estudo, dedicaremos especial atenção aos seus aspectos
de produção.
76
II.II Hans Staden – O filme
Um filme para ser realizado passa por três etapas básicas e inseparáveis. E nosso objeto
de análise não segue um caminho diferente. Esse percurso, com raras exceções, quando
ocorrem problemas graves em qualquer uma das etapas, pode significar o fracasso de um filme
tanto do ponto de vista comercial quanto estético. Por esse motivo, vamos apresentar o
processo de produção até a finalização do filme Hans Staden.
A primeira etapa é a pré-produção, que consiste na preparação e viabilização do
projeto para realizar o filme. Entre as atribuições desse momento, estão a elaboração ou
reelaboração do roteiro
41
, captação de recursos, escolha da equipe técnica e elenco, inclusive,
do próprio diretor, quando o mesmo não está envolvido na produção - aluguel de equipamento,
escolha das locações e produção dos cenários e figurinos.
Começaremos nossa análise em sua pré-produção. O filme ficou orçado em R$
1.700.000,00, valor que corresponderia aos custos de filmagem e pós-produção, conforme
apresenta o diretor do filme nos extras do DVD
42
. Grande parte desse dinheiro é proveniente
de seus principais financiadores, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, pela Lei do
Audiovisual, a HBO, na finalização, e a empresa Bayer. No tocante ao custo de produção,
podemos dizer que se trata de um filme de custo médio, muito próximo dos considerados de
baixo custo, mesmo para os padrões brasileiros.
O filme de ficção brasileiro de custo médio (em torno de 1.800.000 dólares), considerando
como filmes de baixo orçamento (BO) obras que custam entre 600 mil e 1,5 milhão de
reais; filmes médios, entre 1,5 milhão e 4 milhões de reais; e filmes grandes, aqueles que
custam mais de 4 milhões de reais.
(MARQUES, 2007:19)
Com relação à pré-produção, foi iniciada em janeiro de 1996, sendo o roteiro
preparado no ano anterior. Durante essa etapa, teve início a escolha da locação. Durante três
meses, os produtores percorreram todo o litoral do estado de São Paulo. A escolha do local,
próximo à cidade de Ubatuba, ocorreu por uma série de fatores que vão desde a boa locação
41
Lembramos que um roteiro pode ser realizado muito antes de qualquer possibilidade de filmagem, ou seja, ele
pode, em alguns casos, anteceder até mesmo a pré-produção.
42
Todos os dados técnicos e informações presentes nesse capítulo relativos ao custo de produção e demais
aspectos técnicos estão presentes no extra do DVD Hans Staden editado pela Versátil Vídeo que, até julho de
2008, encontrava-se esgotado.
77
natural, como cachoeiras, rios, trilhas e proximidade ao mar, como também o apoio recebido
pela prefeitura local. Nessa fase foi de grande importância o índio Álvaro Tukano, conhecido
como cacique Tukano, um dos responsáveis pela construção das ocas durante a ECO 92, que,
juntamente com o diretor de locações, auxiliou na definição do Corcovado de Ubatuba como o
local ideal.
A escolha estava vinculada ao principal cenário do filme, a aldeia Tupinambá. Foi
construída uma réplica sob a orientação do diretor de arte Chico de Andrade e Álvaro Tukano,
que esteve presente nas duas etapas, escolha e execução, sob o comando de “Seu Libório” e
seu filho Ezequias, marceneiros experientes da própria região.
A segunda etapa é a produção, que consiste na realização do filme propriamente dito,
ou seja, filmagem das cenas. Um ponto de destaque em relação ao filme está na caracterização
até a interpretação dos atores. Durante um ano, foram realizados testes com a população da
região para participação no filme, que, segundo o diretor, “aderiram completamente ao filme”,
assim como o elenco escolhido em São Paulo.
Fátima Toledo, especialista na preparação de atores no sentido de postura e
interpretação, contou com o apoio de Dani Hu, especializado em lutas marciais e preparação
de cenas de ação. Em entrevista, presente nos extras do DVD, somos apresentados aos que
foram os objetivos da preparação dos atores para que compreendessem
Como o índio pensa, como o índio se comporta, como é para o índio expressar as
emoções que são as mesmas emoções de uma cultura diferente. Então, por exemplo, eles
têm um relaxamento no braço, rigidez nas pernas, uma forma de sentar e toda essa
preparação inicial.
Ainda no tocante à interpretação dos atores, Fátima Toledo continua sua entrevista
observando outro elemento, a dificuldade dos atores na questão do nu:
Bom, inicialmente, sim. Aí, foi feito todo um trabalho de preparação para que isso
acontecesse com mais naturalidade. Primeiro, integração grupal; um tem de conhecer o
outro, tem de ‘tá’ à vontade com o outro. Depois, gradativamente, vão tirando a roupa.
No tocante à língua, o idioma utilizado no filme é o Tupi, também conhecido como
tupi geral, ngua geral ou língua brasílica. Estamos falando da sistematização da língua tupi
pelos jesuítas, no século XVI, que teve o intuito de catequizar os índios. Entretanto, seus
resultados extrapolaram os objetivos iniciais:
78
A partir do século XVII, e sobretudo no XVIII, difundir-se-ia a língua geral mesmo entre
grupos indígenas de outros troncos lingüísticos, de modo que a ngua geral passou a ser
uma espécie de língua da catequese e língua franca entre grupos de diferentes etnias.
(VAINFAS, 2000: 147)
O objetivo da utilização do Tupi é facilmente perceptível. Aliado aos aspectos técnicos,
busca corroborar a veracidade da narrativa fílmica. Esse recurso não é novidade no cinema
nacional. O filme Como era gostoso o meu francês (1971) também é falado em tupi (diálogos
sob supervisão de Humberto Mauro). A diferença está na abordagem dos filmes. Enquanto
Hans Staden utiliza a ngua como elemento para mostrar sua “veracidade” como tentativa de
registro histórico, no fim dos anos 1990, em Como era gostoso, serve para realçar ainda mais
o espetáculo alegórico.
A tradução dos diálogos para o Tupi geral foi realizada sob coordenação do professor
de lingüística da USP e especialista em Tupi do século XVI, Eduardo Navarro, a partir do
roteiro do diretor Luis Alberto Pereira. Isso nos faz pensar sobre a importância do consultor
que, por não intervir na produção do roteiro, funciona como um legitimador do discurso do
filme. Compreendemos que a grande maioria dos consultores para qualquer filme que possua
um substrato histórico, estão ali mais para legitimar a versão proposta pelos responsáveis por
aquela obra, do que para uma busca de verossimilhança histórica. Entretanto, acreditamos que
esses mesmos consultores, se presentes nas etapas de criação, podem auxiliar na construção de
um filme mais verossímil com relação à história que se propõe a narrar.
Além da transcrição, Eduardo Navarro também gravou, em fita cassete, todos os
diálogos do roteiro e, durante um ano, os atores foram decorando suas falas e aprendendo a
gramática do tupi. Após essa fase da tradução e gravação dos diálogos, entra em cena Helder
Ferreira, que trabalha com Eduardo Navarro, responsável pelo acompanhamento dos atores e
atrizes, durante dois meses e meio, ou seja, toda a filmagem, auxiliando na pronúncia.
A trilha sonora ficou sob supervisão de pessoas relacionadas com a causa indígena,
como Marluí Miranda e Lelo Nazário. A primeira, pesquisadora da cultura indígena por mais
de 25 anos, tendo recolhido cantos, mitos e danças de várias tribos do Brasil, inclusive a
tribo Tupari, de Rondônia, cujo canto serviu de base para a execução da trilha musical do
filme, em especial o tema principal “Miara Poro”, transmitida por Antonio Gogó. Com
relação ao seu trabalho nesse filme:
79
Para esse tipo de trabalho é uma música muito física, exige preparo físico grande não
para dançar como para poder interpretar a sica realmente difícil. O objetivo desse
trabalho também é criar um sentimento de tribo entre essas pessoas tão diferentes, é dar
uma coordenação interna, uma sincronia e uma sintonia entre as pessoas, que é o que
acontece na tribo. Então, isso acontece através do movimento corporal do canto, do
canto em coro.
Na questão dos detalhes de cena, os realizadores têm um grande cuidado com a
indumentária dos personagens e também com os adornos e enfeites indígenas, sob os cuidados
de Cleide Fayad. Sônia Silva, responsável pela maquiagem, fez largo uso de urucum (corante
natural), no caso dos personagens indígenas.
Ulrich Burtin, nome artístico Uli Burtin
43
, é o diretor de fotografia, que constrói um
filme com imagens claramente inspirada nas iconografias, seja nas originais de autoria
desconhecidas ou em De Bry, imagens presentes até mesmo nos enquadramentos, questão que
trataremos no terceiro capítulo.
Propositalmente, deixamos para falar do diretor após apresentar outros responsáveis
pela produção. Excluímos qualquer referência à equipe cnica para não causar a falsa
impressão de que estamos apresentando apenas “técnicos”, no sentido mais instrumental, sem
qualquer envolvimento estético com a obra. Nesse filme, em especial, isso é marcante. A
preparação dos atores de Fátima Toledo, a trilha sonora de Marlui Miranda, o cuidado com o
tupi de Eduardo Navarro e o apoio de Helder Ferreira, a fotografia de Eli Burtin e mesmo a
montagem parcimoniosa e coerente com a proposta do filme, de Verônica Kovensky. Partimos
da idéia que outro objeto totalmente distinto seria fruto dessa produção se estivéssemos
falando apenas de técnicos, numa perspectiva funcional, sem as pessoas aqui relacionadas em
nosso texto influenciando a obra. Isso nos leva à, aparentemente infindável, discussão sobre
autoria no cinema.
Longe de chegar a uma conclusão sobre a questão, propomos algumas possibilidades.
Afinal, mesmo sendo uma obra de arte coletiva em sua criação, o cinema de autor sempre
evidencia sendo o diretor. Outros envolvidos no processo, como roteiristas, sempre se
incomodam com isso e, de tempos em tempos, essa discussão volta à tona pela imprensa.
43
A utilização dessa abreviação de seu nome esteve presente apenas em dois filmes: Hans Staden e em Deus Jr.
(1999)
80
Nosso intuito não é eclipsar essa importante figura no filme, que é o diretor, mas compreender
que o chamado estilo do diretor também está vinculado à equipe com que trabalha.
Podemos pensar o filme Psicose (1960), de Alfred Hitchock, sem a trilha de Bernard
Herrmman, com quem alias fez parceria em outros filmes? Ou o Poderoso chefão (1972), de
Francis Ford Coppola, sem a sua fotografia marcada pela superexposição? Quem sabe então os
filmes de temáticas mais adultas de Steven Spielberg, com o seu nada eventual diretor de
fotografia, o polonês Janusz Kaminsky. Essa discussão sobre autoria no cinema não é recente.
O termo auter, no cinema, foi uma criação dos franceses para definir o que os mesmos
consideram o autor do filme. Cidadão Kane (1941), considerado pela maioria dos especialistas
como o melhor filme da história do cinema, teve sua autoria contestada pela crítica norte-
americana Pauline Kael, que o considera uma obra de arte coletiva, resultado da equipe que
acompanha o então novato Orson Welles.
Essa espécie de fetiche pelos diretores como criadores absolutos vem da tentativa de
mensurar o cinema usando os mesmos critérios de artes individuais como a pintura e a
literatura. Mesmo autores sérios, como Jacques Aumont, reconhecem esse problema:
Nesse livro, como em todos os outros, o interesse concentra-se apenas nos diretores.
Sem esquecer que outra opção mais ampla seria possível e que seria possível questionar
a contribuição teórica dos fotógrafos, dos roteiristas, dos produtores, dos montadores,
permaneço sem muitos remorsos na encarnação da arte na direção.
(AUMONT, 2002:9)
Longe de responder essa questão, que está ligada a discussões sobre autoria, não
podemos esquecer que não se faz filmes sozinho e que existem muitos envolvidos na maior
parte dos processos. Todavia, não se deve entender, em nossa leitura, o desmerecimento do
papel do diretor. Muito ao contrário, isso demonstra sua grande capacidade de articular
diferentes perspectivas para auxiliar na produção da obra final. Acreditamos que existam
diretores que detenham boa parte do processo criativo. Esses cineastas estariam próximos da
definição de autor; com o que não compactuamos é em acreditar que nesse tipo de arte
coletiva, valores de mensuração de artes individuais tenham muito sentido.
Em nosso caso, o diretor de Hans Staden também acumula as funções de roteirista e
produtor, estando, então, presente em todas as etapas do filme. Consideramos como o autor,
mas não deixamos de lado o envolvimento das pessoas aqui citadas durante a produção.
81
Evidenciando as qualidades do autor na sensibilidade em trabalhar com os mais diversos
profissionais na produção desse filme, coordenando um trabalho que figura facilmente entre os
bons filmes brasileiros de temática histórica. Acreditamos que, para compreender melhor essa
obra, se faz necessário uma breve apresentação biográfica do diretor com ênfase em sua
produção cinematográfica.
Nascido em Taubaté, interior de São Paulo, em 1951, Luis Alberto Pereira tem
formação em cinema pela Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo
(ECA/USP). Foi durante esse período que dirigiu, escreveu e montou o seu primeiro curta,
Monteiro Lobato (1972). Sua primeira produção em 35 mm foi O sistema do dr. Alcatrão e do
professor Pena. Trabalha por um tempo como câmera na Companhia Estadual de Tecnologia
de Saneamento Básico e Defesa do Meio Ambiente (Cetesb), onde realizou roteiros, e no
Globo Repórter (1976). Trabalhou como montador e ator até seu primeiro longa-metragem de
ficção, Efeito ilha (1994), muito elogiado pela crítica. Hans Staden foi o seu terceiro filme.
Apresentado o diretor, chegamos à pós-produção, que tem início ao término das
filmagens. Essa etapa consiste na escolha das cenas filmadas, montagem do filme de acordo
com o roteiro, que o filme quase nunca é realizado seguindo a seqüência do roteiro nas
filmagens, mixagem de áudio, inserção de efeitos especiais, entre outros.
Uma observação específica desse filme que é digna de nota é o cuidado com o som.
Afinal, uma das principais reclamações sobre o cinema brasileiro é relativo à péssima
qualidade do som nos filmes. Em grande parte, isso se deve à carência de bons profissionais
do gênero no país. Essa preocupação está presente no filme, mixado em Dolby Digital em um
estúdio THX, na cidade do México, e foi feito o som ótico digital na Sound One, em Nova
Iorque.
Não possuímos os dados referentes ao número de cópias do filme para exibição no
cinema, mas acreditamos, pelo padrão nacional, ser uma quantidade irrisória. Verificamos que,
em algumas regiões, como no caso do Nordeste, o filme foi exibido apenas em circuitos
alternativos. As edições em DVD foram distribuídas pela Versátil Vídeo e apresentam ótima
qualidade gráfica, com muitos recursos. Entre seus extras, inclui a trilha sonora, disponível
para escutar em faixas separadas, e um documentário sobre o filme, realizado pela TV Cultura.
82
Conhecido o processo de realização do filme, vamos apresentar o que foi realizado. A
premissa é simples: a história é uma versão do diretor (também roteirista), baseada no relato
de viagem do alemão Hans Staden que, no século XVI, foi capturado e ficou sob posse dos
índios Tupinambá durante nove meses.
O filme pode ser dividido em três atos. O primeiro seria a chegada e captura do
personagem principal. Este ato, apesar de curto, é marcado pela apresentação do personagem
ao espectador e serve também para contextualizar historicamente o filme. o ato seguinte,
que ocupa a maior parte do filme, apresenta o dia-a-dia na aldeia e o convívio entre o
personagem principal e todos os personagens reconhecíveis pelo espectador e que fazem parte
do imaginário sobre o período colonial: o negro fugitivo, judeu desonesto, a figura mítica das
águas e a índia ingênua. O ato final é justamente o retorno do personagem para a Europa.
Apresentadas as etapas de sua elaboração e breve sinopse, devemos observar a opinião
especializada: a crítica. O resultado é que temos os mais variados comentários. Os principais
elementos em comum na maioria das críticas, dizem respeito à cuidadosa reconstituição de
época e ao parâmetro de comparação com Como era gostoso o meu francês.
No site IMDB
44
(Internet Movie Database), considerado a principal referência da web
em cinema, o filme Hans Staden recebe nota seis. Apesar de não acreditarmos nessa
quantificação de uma obra, ainda mais baseada em critérios subjetivos, as cotações que a
maioria dos críticos cinematográficos atribuem criam uma média entre três e cinco (numa
escala de zero a cinco), o que significa um bom filme usando tais parâmetros quantitativos.
O filme teve participação em diversos festivais e ganhou vários prêmios. A primeira
premiação, antes mesmo de sua realização, foi de roteiro em concurso promovido pela
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em 1995. Participou do festival de Brasília, em
1999, onde recebeu dois prêmios de direção de arte e trilha sonora, e um terceiro de caráter
especial pela excelência da realização. No festival de Recife, no mesmo ano, recebeu os
prêmios de melhor fotografia e direção de arte e, em Portugal, no Festival de Santa Maria da
Feira, recebeu o prêmio de melhor filme.
44
Esse site é o maior repositório de informações sobre cinema do mundo disponível na Web.
83
No ano seguinte (2000), recebeu os prêmios de melhor fotografia e de melhor filme e
fotografia do 4th Brazilian Film Festival of Miami e Festival de Cinema Brasileiro, em
Cuiabá, respectivamente.
Participou de festivais em várias partes do mundo, em especial: Canadá (Festival de
Filmes do Mundo, em Montreal), Inglaterra (Festival de Londres do Filme Latino), Alemanha
(Festival de Filmes Brasileiros, em Munique), Índia (Festival de Calcutá), França (Festival de
Biarritz, Festival de Toulose e Mostra de Filmes Latinos de Paris) e Portugal (Festival de
Filmes e Festival de Figueira da Foz), todos os dados relativos a premiações e participações
em eventos constam nos extras do DVD. Após sua leitura externa, em suas múltiplas relações
com o mundo em que é produzida, partimos para leitura interna do filme em especial na leitura
dos indícios.
84
Cap
CapCap
Capí
íí
ítulo
tulo tulo
tulo 3
33
3
Leitura intra-diegética de Hans Staden
III.I. - Paradigma Indiciário: mais que uma busca por indícios.
Dentre as peças teatrais de maior destaque da literatura mundial, Romeu e Julieta
(1543), de William Shakespeare, sempre aparece nas listas das mais assistidas e encenadas. Os
motivos para tanto não faltam. Desde os diálogos envolventes, trama bem amarrada, à própria
composição do casal, em que cada diálogo é uma verdadeira declaração de amor. Mas o que
nos interessa especificamente nessa peça não é a composição da rima nas falas de Mercucio ou
mesmo a tão famosa dupla central que título a peça. Nosso objeto de interesse está no
seguinte diálogo:
Somente teu nome é meu inimigo. Tu és tu mesmo, sejas ou não um Montecchio. Que
é um Montecchio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem nenhuma outra
parte qualquer pertencente a um homem. Oh! Sê outro nome! Que em um nome? O
que chamamos de rosa, com outro nome, exalaria o mesmo perfume tão agradável...
(SHAKESPEARE, 1979:42)
Afinal, como Julieta questiona: que em um nome? Uma construção, nesse caso
arbitrária, pois destoa do objeto nomeado, afinal, o mesmo continua com suas características,
assim como a rosa, independente do título que ambos possuam. Ou seja, o ser ultrapassa
qualquer nomeação. Do ponto de vista da teoria da história essa relação palavra/objeto
também é bastante problemática nas palavras de Jenkins: a palavra e o mundo, a palavra e o
objeto, continuam separados” (JENKINS, 2005:57).
Tal discussão sobre o nome e o objeto, ou melhor, esse pequeno detalhe, que no final
das contas faz toda a diferença no contexto geral da enamorada Julieta, está mais que presente
em uma proposta de “modelo epistemológico”, nas palavras de seu criador e principal difusor,
o italiano Carlo Gizburg, que é o paradigma indiciário. Segundo o mesmo, esse modelo viria
para auxiliar as ciências humanas e tentar dirimir o dualismo racionalismo/irracionalismo.
85
Entendemos como Paradigma Indiciário a produção do conhecimento histórico a partir
de elementos considerados, numa primeira leitura, menores ou irrelevantes”, mesmo que
presentes em grande parte do objeto estudado. Assim, encontramos nesse tipo de análise,
A existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é
reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal
conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas sinais,
indícios – que permitem decifrá-la.
(Ginzburg, 2000:177)
Ou seja, o conhecimento é construído com o apoio de elementos “menores” que
auxiliam no entendimento do todo. Dessa forma, o paradigma indiciário se apresenta como a
observação dos detalhes para um melhor entendimento do todo, deixando claro que essa noção
de totalidade é apenas no sentido de conhecer com maior profundidade o objeto analisado.
Esse tipo de acesso ao saber está vinculado a uma observação dos elementos desconsiderados
na grande maioria das análises, aquilo que seria para a maioria “imperceptível”. O trabalho a
partir do índice exige percepção arguta pelo detalhe, tornando o trabalho de pesquisa um
aprendizado nos moldes que preconiza Guinzburg:
Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em
prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se
normalmente) elementos impoderáveis: faro, golpe de vista, intuição.
(GUINZBURG, 2000:179)
Não é a toa que Ginzburg usa como exemplo o famoso personagem de Sir Arthur
Conan Doyle, o detetive inglês Sherlock Holmes, ou as deduções de Freud, que infere do
efeito para a causa nas análises de seus pacientes. Nesse sentido, reiteramos que não estamos
falando de uma espécie de “clarividência”, como pode parecer numa primeira análise, mas na
observação e elucidação de múltiplos elementos. Nessa perspectiva, podemos observar que,
Pensadores consagrados como Michel Foucault, Walter Benjamin, Gilberto Freyre,
Lucien Febvre, Fernand Braudel, Mikail Bakhtin, Robert Darnton, Peter Burke, Carlo
Ginzburg, entre outros, escreveram obras marcadas pelo apreço aos pormenores e à
conciliação entre racionalidade e sensibilidade. Clássicos como Casa-grande e
senzala, de Freyre, Mediterrâneo, de Braudel, O grande massacre dos gatos, de
Darnton, e o Queijo e os vermes, de Ginzburg, foram elaborados pela pesquisa
minuciosa, detalhada e exaustiva, revelando o caráter detetivesco empreendido por
estes pensadores. O fio condutor destas diferentes obras é a pesquisa indiciária
baseada na investigação de micro-estruturas políticas, econômicas e sociais, de
aspectos corriqueiros do cotidiano e da intimidade social, de acontecimentos
pequenos na história.
(RODRIGUES:2006:5)
86
As origens desse método de análise estão vinculadas ao estudo da arte, seu precursor é
Giovani Morelli
45
, originalmente utilizado para análise de pinturas, a ênfase naquele momento
era nos detalhes das orelhas, unhas e dedos. Para o historiador que se dedica à análise
cinematográfica, a ênfase pode estar nas especificidades técnicas, como em elementos
filmados de maneira repetitiva, assim como nos planos, cortes e montagem, bem como no uso
da trilha sonora, entre outras especificidades.
Contudo, a mera observação pormenorizada, estaria mais para um “exercício
detetivesco” do que para um conhecimento histórico específico, em nada auxiliando a
construção, nas palavras do próprio criador, de um “modelo epistemológico”.
Nesse sentido, do ponto de vista teórico, o indiciarismo é também a possibilidade de
sistematizar um saber aparentemente “fragmentado”, mas em que as partes se interpenetram de
tal forma que não falamos em retirar mas estudar. Nosso olhar está concentrado em um ponto,
um fragmento que nunca está desvinculado do restante, e, por esse motivo, nos detemos tão
ativamente sobre o mesmo. O sentido disso é analisar com maior riqueza de detalhes, numa
espécie de “microscópio histórico”. Todavia, essa fragmentação, como dissemos, nunca é
retirada do todo e serve para sua compreensão, senão, perde seu sentido e nossa analogia do
“microscópio histórico” se torna apenas mais um ampliador de plaquetas de análise de um
laboratório, em nada contribuindo para a compreensão do objeto de que faz parte. Esse tipo de
análise é importante, na medida em que nos permite entender a partir dos detalhes e sua
multiplicidade.
Nesse momento, indicamos de que forma se insere o nosso trabalho numa perspectiva
indiciária. Afinal, uma questão não deixa de ser interessante: por que trabalhar com algo que,
nas palavras de seu criador, ainda não foi “devidamente” sistematizado?
Em nosso caso, trabalharemos com o suporte fílmico, no qual a fragmentação é parte
constitutiva da formulação de materialidade. A partir da decupagem, o trabalho com
indiciarismo se apresenta como uma rica alternativa. Compreendemos que o indiciarismo vai
muito além do estudo do micro, estando vinculado à compreensão dos múltiplos elementos
45
Os primeiros textos do autor com essa reflexão são de 1874 e 1876, com o título de Zeitschrift für bilbende
Kunst onde o mesmo usava o pseudônimo Ivan Lermolieff e foram traduzidos do Russo para o alemão por
Johannes Scharze, que na verdade também era o Giovanni Morelli.
87
desconsiderados na maioria das análises do mesmo objeto. A partir de sua metodologia,
podemos observar que uma análise historiográfica com base no método levaria à percepção de
que a maioria dos textos carece de análise da parte técnica, em especial, das especificidades do
cinema, partindo para uma leitura baseada apenas do texto fílmico, entendido aqui numa
preocupação com o roteiro. Elementos tão, e em alguns casos, mais importantes que o próprio
roteiro, como os cortes na montagem, movimentos de mera e, especialmente, a montagem
sonora, extremamente “indiciários”, são desprezados na grande maioria dos textos
46
.
Tal postura é ainda mais forte nos chamados “filmes históricos”, entre os quais se
insere o filme Hans Staden (1999), que exacerba essa tendência à fixação no roteiro, pois nos
remete à percepção de uma tentativa do filme em “naturalizar” seu registro, do ponto de vista
cinematográfico, numa espécie de “filmagem real”, com um uso bastante parcimonioso dos
cortes na montagem. Buscaremos, nesse sentido, fugir a tais reducionismos a partir da
perspectiva indiciária, buscando no detalhe, na especificidade, pistas analíticas da relação
entre o filme e a leitura .
O filme Hans Staden em alguns momentos parece simular um registro antropológico, e
poderia nos confundir se não soubéssemos que é uma ficção e que os Tupinambá foram quase
que totalmente exterminados no século XVII. A filmagem no estilo “câmera na mão” e
próxima dos personagens é muito mais constante durante o filme do que grande-angulares e
demais recursos cinematográficos, aliás, picos de super-produções. Essa obra é marcada, nas
cenas de maior dramaticidade, por muitos closes. Mesmo que a produção tenha construído
uma aldeia cenográfica, o filme não explora esse cenário, partindo para uma abordagem
algumas vezes mais “intimista”. Sabemos que certos recursos cinematográficos encarecem a
produção, sendo esse o principal motivo para a não utilização dos mesmos, ou seja, o caráter
intimista da obra nos aspectos técnicos, com planos mais fechados nos personagens, também é
fruto do momento em que o filme é produzido, em especial, numa produção de época do
Cinema da Retomada no fim dos anos 1990, em que as políticas de financiamento ainda
estavam em fase embrionária.
46
Como exemplo, podemos observar que a montagem não é objeto de preocupação de textos clássicos sobre a
relação cinema e história, como os de Marc Ferro, ou mesmo nas abordagens mais recentes, como nos livros
Passado Imperfeito (1997), Mark C. Carnes, e História e Cinema (2007), organizado por Maria Helena Capelato.
88
Contudo, não é apenas isso que torna o filme mais próximo de uma espécie de registro
documental, sua principal fonte de inspiração é o relato de um viajante do século XVI, uma
representação que, desde sua primeira versão, é alicerçada por imagens: as famosas
xilogravuras, mais conhecidas do grande público que o próprio relato, mesmo que sem o
suporte de grande-angulares e travelling´s, que muito podem revelar sobre as intenções do
diretor acerca da obra
47
. Nesse sentido, podemos dizer que o historiador, assim como “o
conhecedor de arte”, seria, dessa forma, comparável ao detetive que descobre o autor do
crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis a maioria(GINZBURG, 2000:145).
Assim, consideremos que é possível fazer uso do indiciarismo com recortes maiores,
desde que se atente para a importância que elementos considerados “micros” podem ter numa
compreensão maior.
Mesmo que a produção de saber histórico a partir de fontes cinematográficas venha
aumentando significativamente, ainda temos pouca reflexão nos campos da teoria e
metodologia aplicados à pesquisa histórica com base em fontes fílmicas. Mesmo do ponto de
vista “instrumental”, que aqui não é visto de uma maneira pejorativa, mas como a
possibilidade de pressupostos auxiliares na discussão que se pretende fazer, no campo da
história a maioria dos trabalhos sobre cinema se constituem em análises fílmicas à luz da
história e, sendo esta a perspectiva com a qual trabalhamos, consideramos haver carência de
reflexões mais teóricas da parte dos historiadores e mesmo de análises de gêneros
cinematográficos, por vezes entendidas como generalizantes, numa primeira leitura, mas de
vital importância para uma melhor análise da sociedade que produz e consome essas imagens.
Considerando essa discussão, é necessário indicar certamente o papel de Marc Ferro no
debate, e ressaltamos que não estamos negligenciando Marc Ferro e sua importante
contribuição nessa área, contudo, mesmo o eminente historiador declara que, decididamente,
yo no tengo tiempo disponible para escribir um livro acabado sobre el Cine, como he
tenido para tratar de la Revolución de 1917 o la Gran Guerra” (FERRO apud MORETTIN:
2000; 42).
Sabemos que não é “função” dos historiadores produzirem “teoria” sobre cinema,
contudo, defendemos que ao produzir análises dos filmes estamos auxiliando na construção de
47
Tais imagens têm ampla difusão nos livros didáticos e maioria dos impressos dedicados ao período colonial.
89
futuros referenciais teóricos, conscientes ou não da importância da sistematização do nosso
trabalho. Um outro aspecto do problema é a inegável falta de textos dedicados à análise dos
gêneros cinematográficos, seus aspectos teóricos ou mesmo de sua relação com o público a
quem se destina. Nessa perspectiva, é um campo pouco explorado, embora, existam suportes
possíveis para esse tipo de análise, ou seja, pensar na produção histórica como sem aportes
para uma análise cinematográfica é, na verdade, uma leitura equivocada. Faltam, isso sim,
referenciais teóricos específicos, mas isso não nos impede de trabalharmos com conceitos que
não foram produzidos especificamente para o cinema mas que em muito pode nos auxiliar.
Pensemos, por exemplo, na proposição do historiador Carlo Ginzburg a partir do que o
mesmo define como paradigma indiciário, trata-se de um modelo fortemente influenciado
pela semiótica e que tem preceitos válidos para os mais variados suportes, mas que ainda é
pouco explorado como referencial teórico pelos historiadores. Lembrando que Ginzburg não
tratou de imagens em movimento em seu trabalho, consideramos que elas são perfeitamente
passíveis de análise a partir dessa ótica, como tentaremos demonstrar em nosso texto.
Ao longo desse trabalho, dedicaremos especial atenção a determinadas seqüências do
filme e seguimos, nesse sentido, a tese de Marc Ferro:
A análise não incide necessariamente sobre a obra em sua totalidade: ela pode se apoiar
sobre extratos, pesquisar “séries”, compor conjuntos. E a crítica também não se limita
ao filme, ela se integra ao mundo que o rodeia e com o qual se comunica,
necessariamente. (FERRO, 1992:87)
Vejamos agora um exemplo dessa discussão. No texto quinhentista, somos
apresentados ao cotidiano da sociedade Tupinambá por uma série de xilogravuras. Uma delas,
em especial, nos chamou a atenção (figura 1):
90
Figura 1 – Staden cercado por índios fumando
Essa imagem muito nos revela sobre a importância das iconografias. Mais que a mera
reprodução do texto, as xilogravuras ultrapassam-no e ganham vida própria, assim, terminam
por “dizer” o que o texto não diz
48
. Essa xilogravura é um bom exemplo de nossa proposição.
Presente no capítulo XXX, não possui nenhum equivalente textual durante toda a obra, ou
seja, a única referência ao hábito dos índios fumarem, no relato de Staden está presente nessa
imagem.
No filme, a cena em que os índios se reúnem à noite sob o luar, presente no texto,
mostra a importância da iconografia para a obra, como se pode conferir, encontramos os índios
sentados fumando, assim como na xilogravura (figura 2).
48
Dentre as traduções consultadas durante esse trabalho, duas possuem essa informação sobre os índios fumando
nas xilogravuras: Guiomar Carvalho Franco e Alberto Löfgren. Contudo, ambas possuem como responsáveis
pelas notas autores diferentes. Todavia, estão com a mesma legenda, sendo a tradução de Löfgren anterior.
91
Figura 2 – índios fumando
Entretanto, as semelhanças param por aí, na xilogravura o personagem principal está
orando, enquanto que seu equivalente cinematográfico está sentado ao lado dos índios e
participa do momento fumando com os mesmos. Essa representação tem uma intenção muito
específica: para os leitores do século XVI, a quem era dedicado o texto original, o “natural”
seria o personagem que vive sob um momento de adversidade orando. No caso do cinema,
esse contato interétnico, Staden participando ativamente do cotidiano da aldeia, seria
considerado mais aceitável, como até desejável, para tornar o personagem mais simpático para
o público receptor.
Podemos observar, nesse exemplo, como os detalhes, podem nos auxiliar no melhor
entendimento do todo. O olhar aqui não é o do mero fetichismo pela análise microscópica,
mas na busca de compreender as possibilidades desse tipo de análise. Seguindo essa linha e a
partir da perspectiva indiciária, centramos nossa discussão nesse capítulo em três momentos.
O primeiro se refere à captura do personagem principal. Apesar de ser uma cena curta,
ela nos oferece a possibilidade de entender a complexidade da sociedade Tupinambá, mais
especificamente, do ritual antropofágico, que não se resume ao consumo da carne. Em
seguida, analisaremos a personagem Nairá, o par romântico de Staden no filme, e mesmo
como uma coadjuvante de aparente pouca importância, seja pelas cenas ou diálogos que
possui, tentaremos demonstrar que em suas cenas ela tem a função de personagem síntese da
mulher Tupinambá E, por fim, o ritual antropofágico, com ênfase na cerimônia de execução.
92
III.II- A captura e chegada na aldeia.
Nosso primeiro contato com a narrativa fílmica será marcada pelo conflito. A situação
pela qual passa o personagem principal nessa cena curta, entretanto influencia todo o restante
do filme:
“Si viene por ventura aqui la armada de Su Majestad, tiren un tiro y habrán recado”,
Hans Staden numa inscrição gravada no fundo de um barril. Ele, que estava agachado,
levanta e não hesita em disparar o seu arcabuz
49
, afinal, essa é a forma, segundo a mensagem,
de entrar em contato com índios aliados da região e, quem sabe, encontrar seu escravo
desaparecido alguns dias. O estampido provocado pelo disparo assusta alguns animais da
floresta. Depois de um breve silêncio, temos um som repetitivo e muito agudo que, por não
encontrarmos uma associação imediata, parece indicar alguma espécie de pássaro. O resultado
não é exatamente o esperado. Aquele som desconhecido até então, era o grito de um índio
Tupinambá - conhecidos rivais dos portugueses, para quem o arcabuzeiro presta serviços no
forte de Bertioga.
Hans Staden, cercado, coloca sua arma no chão, em sinal de paz, mas tem suas roupas
arrancadas e, em poucos instantes, está à mercê de seus inimigos. A ão se passa de forma
incisiva, sugerindo que o personagem não poderia esboçar qualquer reação.
A cena que narramos poderia ser encarada como um ataque caótico e pouco
estruturado, numa primeira e equivocada leitura, contudo, quando observada em seus detalhes,
mostra o funcionamento de um ritual com relações de poder sobre o cativo que continua a ser
visivelmente constatado até a chegada na aldeia.
Nesse momento, analisaremos a seqüência seguinte à captura pelos índios, e seu
transporte para a aldeia, onde o personagem tem seu primeiro contato com uma sociedade
indígena. A escolha da seqüência se deve a dois motivos: primeiro, por demonstrar, em sua
captura, a existência de relações de poder (decisão de quem fica com o cativo), e por nos
apresentar o quão complexo é o ritual antropofágico, no qual uma das etapas é a captura do
49
Antiga arma de fogo portátil muito utilizada no século XV.
93
cativo. Essas seqüências muito nos revelam numa visão geral sobre os “antagonistas” do
personagem principal: os índios Tupinambá.
A cena, objeto central de nossa análise, começa com Hans Staden à procura de seu
índio Carijó, que saiu do forte de Bertioga, onde o alemão ficou após o naufrágio do navio
com destino ao Prata, e termina com Staden cativo.
Nessa cena temos o nosso primeiro contato visual com os índios, que estavam
presentes no filme por narração em over e intradiegética
50
, pois o filme é visto a partir da
perspectiva do personagem principal.
Os índios são representados a partir dos olhos de Hans Staden, por isso aparecem, em
algumas cenas, com características sobrenaturais e amedrontadoras em relação a esse. Os
índios estavam presentes no filme antes de sua primeira aparição, na narrativa de Staden
sobre sua chegada ao forte e pela trilha sonora de abertura do filme, uma espécie de cântico
entoado pelas mulheres
51
. O fato gerador de toda a saga de Hans Staden é a procura de seu
escravo e, em relação ao mesmo, pelo relato quinhentista, não sabemos o seu fim, já na
película, é assassinado por dois portugueses. Não deixa de ser curiosa essa relação entre a
morte do índio e a ação dos seus algozes, que, no final, aparecem como vilões da história no
filme, ao assassinar o índio sem motivo aparente
52
. Qualquer “justificativa” para o fato é
refutada pelo personagem principal quando o mesmo descobre o trágico destino do escravo,
numa cena marcada pela tentativa de impor uma sensação de realidade que, aliás, é uma
constante em todo o filme. Essa representação nos remete àquela complexa relação com o
outro, discussão na qual nos detivemos no primeiro capítulo e retornaremos com a análise da
representação de Hans Staden. É importante salientar que o personagem só tem notícia sobre
seu escravo ao fim da película, enquanto que seu equivalente literário não descobre o desfecho
do mesmo.
50
Na verdade, sobre essa questão de narração, se faz necessária uma distinção, “quando ela provém do interior
da ficção (por um personagem), é intradiegética; ao contrário, quando o narrador é exterior à história, é
extradiegética.” (AUMONT, 2000:208).
51
Parte da trilha sonora faz parte do filme Como era gostoso o meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos.
52
Destacamos aqui a perspectiva lmica de autorizar certa leitura sobre a ação dos colonizadores portugueses e
lembramos que, mesmo na ótica da escravidão colonial, o assassinato de um escravo era a perda de dinheiro, na
idéia corrente do escravo como um bem.
94
A primazia do europeu no confronto entre o eu (Staden) e os outros (índios) compõe
uma diretiva que será constante durante todo o filme: estamos numa situação de risco para o
personagem principal, centro da trama, durante todo o desenvolver da narrativa, independente
de quantos personagens indígenas estejam em cena, os mesmos compõem, são ornamentos
para o principal. Isso é facilmente perceptível por três elementos: os diálogos que são
construídos com ênfase no personagem principal, e remetem direta ou indiretamente para
Hans Staden, o que é natural em uma obra de caráter biográfico, entretanto, uma ambigüidade
se coloca no letreiro final do filme. Neste, o diretor afirma ter feito uma homenagem à
sociedade Tupinambá, mensagem que, em nossa análise, não é perceptível durante o filme,
que não torna a sociedade, ou mesmo algum de seus componentes, personagens importantes
para a narrativa, de modo a promover seu destaque ou valorização da sociedade indígena.
Outro elemento que se destaca é a ausência de sub-tramas relevantes para o filme, mantendo-
se o centro absoluto sobre o personagem principal. Tal situação não permite que o público crie
uma relação de empatia com a sociedade indígena, com os personagens tupinambá, tornando
retórica vazia o letreiro: Nesse mesmo ano de 1555 uma epidemia de varíola trazida pelos
europeus matou mais de trinta mil Tupinambás. No século dezessete morreram todos. Ou com
as doenças contagiosas trazidas da Europa ou nas guerras com os portugueses e seus
aliados.” É importante destacar que os portugueses, durante o filme, são apresentados como
vilões da história e nessa epígrafe são responsabilizados pelas introdução das doenças. Nossa
leitura não isenta os portugueses de seu papel no extermínio da sociedade Tupinambá, mas
não podemos simplificar todas as relações desiguais mantidas durante a colônia.
Por fim, no tocante à representação dos índios, os mesmos são pensados como um
grupo tão homogêneo que até o célebre líder Cunhambebe, único índio em destaque nas
xilogravuras presentes na obra de Staden (figura 3), passa quase que despercebido no filme,
servindo mais de curiosidade para o público especializado. Esses mesmos índios não têm
personalidades definidas como o personagem principal, isso pode ser facilmente observado
pelo fato de que, ao término da película, não lembramos os nomes dos personagens indígenas,
e pela carência de diálogos relevantes dos mesmos.
95
figura 3 – Cunhabebe nas xilogravuras do relato original
Hans Staden personagem fílmico, está presente em todas as passagens importantes,
tornando os índios acessórios das cenas, uma espécie de elemento a mais na busca da
realidade, que está presente em sua tentativa de transliteração de um trecho do relato
quinhentista. A sua captura na película, por exemplo, segue com muita precisão o relato:
Quando eu caminhasse através da selva
53
, levantou-se de ambos os lados do caminho
um grande alarido, como é hábito entre os selvagens. Essa gente correu para mim, e
reconheci que eram índios. Eles cercaram-me, visaram-me com arcos e flechas e
assetearam-me. Então exclamei: “Que Deus salve minha alma”. Mal tinha pronunciado
tais palavras, abateram-me ao solo, atirando sobre mim e ferindo-me a chuçadas.
Porém machucaram-me apenas – Deus seja louvado! – numa perna, rasgando-me
entretanto as roupas do corpo, um o mantéu, outro o sombreiro, um terceiro a camisa, e
assim por diante.
(STADEN, 1972:81)
A tentativa de estabelecer um padrão realista é clara, desde a filmagem “câmera na
mão” (figura 4), remetendo à sensação de perigo pela qual passa o personagem principal.
Cortes secos
54
e planos curtos, na única cena marcada por esse tipo de montagem, toma
dimensões maiores que o relato escrito, pelo uso eficiente dos recursos cinematográficos
compondo uma cena, capaz de provocar no espectador uma sensação de perigo que não
encontramos no relato. O cinema constrói, desse modo, um espetáculo visual único da
sociedade Tupinambá para o blico atual, habituado ao suspense e à tensão das narrativas
53
Esse momento no filme é na verdade a junção de dois momentos distintos do relato quinhentista. Sendo o
capítulo IX o que o autor encontra a cruz com a inscrição e no XVIII, em que é capturado.
54
De acordo com Jacques Aumont: Chama-se corte seco a passagem de um plano a outro por uma simples
colagem.” (AUMONT, 2003:66)
96
hollywodianas. Durante essa cena, as agruras da captura de Hans Staden são mais bem
percebidas pelo espectador por conta da câmera irrequieta em um plano-seqüência
55
que se
estende da retirada de sua roupa até a colocação da corda em seu pescoço, e remete à sua
efetiva captura.
figura 4 – Captura de Hans Staden pelos índios Tupinambá
Nesta cena, o filme parece inspirar-se num trecho que encontramos na obra de Alfred
Métraux, dedicado à religião na sociedade Tupinambá, que possui elementos sobre os índios
que não se encontram no relato de Staden
56
, inclusive detalhes presentes na película. Tal
precisão nos faz crer que o texto serviu de base para sua composição:
55
Sabemos da controvérsia com relação ao uso do termo, afinal, o plano-seqüência sempre foi um objeto
incômodo: ele obriga a admitir que pode haver montagem no interior de um plano(AUMONT, 2005:231),
contudo, pensamos no mesmo como a possibilidade de montagem na construção de uma sensação de realidade
criando uma micro-história própria, em nosso caso, a captura do personagem principal.
56
Sabemos que o texto de Métraux é posterior ao relato de Staden, além disso, trata-se de uma leitura etnológica
na qual usa outras fontes além do relato.
97
Sendo a captura do inimigo uma façanha rigorosamente individual, a regra mandava
que o prisioneiro pertenceria àquele que primeiro o tivesse tocado; mas como, no ardor
da peleja, nem sempre era fácil saber a quem cabia tal honra, irrompiam muitas vezes,
querelas assaz violentas.
(MÉTRAUX, 1979:114)
Durante o momento da negociação (figura 5), temos novamente o investimento dos
realizadores na tentativa de exacerbação da estética realista, aproximando o filme de uma
dimensão naturalista que ênfase ao realismo almejado, acentuado pelo uso do idioma tupi.
A câmera, nessa cena, segue os passos do cativo e está no meio dos índios. Mesmo sendo uma
cena que prioriza o personagem, podemos perceber o cuidado na caracterização dos índios,
desde a tonsura frontal, até os adereços e, por fim, os tacapes, flechas e lanças, tão presentes
nas xilogravuras originais do relato de Staden, mantendo em alta a perspectiva de realismo
indicada anteriormente.
A sequência da captura se passa sem trilha sonora instrumental, que se apresenta no
final para marcar a tensão sobre o incerto destino do personagem principal. Nessa sequência,
utilizam-se apenas “sons ambientes”, falas e sons são potencializados, ou seja, não poderiam
ter sido captados “naturalmente” naquele ambiente, como o momento em que um dos índios
fere a perna de Hans Staden, onde o som amplificado cria um efeito cujas intenções realistas
dependem de um recurso que, na verdade, produz uma hiper-realidade.
98
Figura 5 – negociação para ver que aldeia fica com o prisioneiro
Após sua captura, o uso da trilha sonora instrumental aumenta o clima cinematográfico
de perigo para o personagem. A seqüência dos barcos segue, com muita precisão, as
iconografias do relato, e esse é um ponto que não pode deixar de ser observado. Mesmo que o
diretor sempre se refira ao filme como uma adaptação livre, consideramos impressionantes as
semelhanças do relato e das gravuras com a película. O próprio filme termina por ter um
formato de imagens (figura 6) que remete tanto as xilogravuras presentes na obra original,
quanto às imagens de De Bry, também influenciada pelas xilogravuras do relato original.
Esse caráter “estático” do filme pode ser percebido por sua parcimônia com os cortes
57
,
afinal, desde o disparo de seu arcabuz até a chegada à aldeia, temos apenas 16 mudanças de
posicionamento de câmera em um período de 2:41’, o que pode nos levar à incômoda questão:
por que se ater a uma cena tão curta e com poucos cortes? Nesse sentido, podemos pensar que
“é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas... pelo
57
Poderíamos definir cortes como as transições entre as imagens capturadas pela câmera. Os mais comuns são o
corte seco, já explicado em nota anterior, e o móvel.
99
contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis”(GINZBURG,
2000:144). Isso nos remete ao paradigma indiciário como metodologia apropriada para lidar
com fragmentos que são indícios importantes e que, neste filme, podem passar despercebidos
ao olhar menos atento. Ou seja, definitivamente esse corte não é o filme, mas uma parte
crucial para o entendimento do todo. Observamos nessa cena o tipo de síntese proposta pelo
filme, com sua montagem econômica e naturalista. É essa proposição inicial se mantém
padrão narrativo, e enuncia sua dinâmica sugerindo, desde o início, o que o espectador deve
esperar do filme.
Momento do sacrifício do
prisioneiro com o cativo ao
centro. Destaque para a
Ibirapema (tacape) e
Mussurana (corda)
Staden sendo levado para a
aldeia
Hans Staden e a cruz que o
mesmo coloca na aldeia
Figura 6 – Imagens do relato quinhentista funcionando como uma espécie de Story-board do filme
A interpretação cinematográfica de uma representação histórica com ênfase no
indiciarismo, deve ser encarada a partir das especificidades. No caso do cinema, são signos e
significantes próprios, e poderíamos dizer que a leitura cinematográfica se faz em múltiplas
100
camadas, o que torna sua apreensão uma atividade complexa. Contudo, essa mesma lógica não
intimida aos historiadores, que há muito sabem o quão difícil é trabalhar com documentos mal
conservados e péssimas condições de armazenamento, e as mais diversas dificuldades
inerentes aos mais variados suportes documentais:
[...]essa explicação não é satisfatória para quem conhece o infatigável ardor dos
historiadores, obcecados por descobrir novos domínios, sua capacidade de fazer falar
até os troncos das árvores, velhos esqueletos, e sua aptidão para considerar como
essencial aquilo que até então consideravam como desinteressante.
(FERRO, 1992:79)
Em nossa análise, procuramos responder à seguinte questão: por que certos recursos
cinematográficos são usados para determinadas cenas e quanto isso influencia na leitura final
desse filme? Para tanto, analisaremos outro momento: o primeiro contato de Hans Staden com
os índios Tupinambá na aldeia. Escolhemos esse momento pela continuidade narrativa com a
cena anterior e pelo fato de ser o local onde Staden passa boa parte de sua narrativa.
A chegada de Staden à aldeia é justamente esse momento, quando, em seu papel de
cativo, participa do ritual falando em tupi, demonstrando que parte do filme teve como base, o
texto de Métraux: aproximando da aldeia, a tropa encontrava as mulheres, obrigava-se o
prisioneiro a gritar-lhes: ‘Eu vossa comida, cheguei!’” (MÉTRAUX, 1979:116). Sua
recepção, conforme o relato, é marcada por comemorações. Na verdade, essa cena é o fim do
arco dramático iniciado com a captura, na construção de um novo ato: sua estada na aldeia.
Essas duas cenas, captura e chegada à aldeia, são eclipsadas pelo apoteótico “ritual
antropofágico” na maioria dos textos, mas as mesmas, conforme podemos observar, fazem
parte do processo ritual tanto quanto o ato de consumo da carne, que não é o ritual em si, mas
parte dele. Somos, então, apresentados a esse ritual desde o processo de negociação pelo
cativo, quando ocorre um jogo de interesses pela posse do prisioneiro, até a preparação que
antecede o ritual da devoração, bem como às peculiaridades do cotidiano Tupinambá, na
versão do filme.
Sobre a aldeia, o diretor Luis Alberto Pereira, inspirado nas iconografias, reproduz
cinco grandes ocas, apresentando-nos grandes estruturas coletivas, no que parece ter servido a
descrição de Florestan Fernandes:
O artista que entalhou as xilogravuras que ilustram o livro de Hans Staden, por
exemplo, representa invariavelmente Ubatuba constituído por quatro malocas, enquanto
101
o próprio Staden indica um número mais elevado de malocas. Em ntese, admito que
quatro malocas era a composição mais comum dos grupos locais... A oscilação mais
frequente situava-se entre quatro e sete malocas.
(FERNANDES, 1989: 61-60)
Ou seja, as iconografias vão além da reprodução visual dos elementos presentes no
texto, compondo uma versão própria daquele que utiliza como fonte, chegando a apresentar
dados diferentes ao relato. Essas aldeias eram cercadas, segundo o relato quinhentista e as
iconografias (figura 7), o que é mantido na narrativa cinematográfica, e torna-se um ambiente
de interação, servindo de cenário para o Hans Staden cinematográfico durante a maior parte do
filme. Ainda com relação às malocas, observamos que, com excepção das tendas de
campanha, a maloca constituía o único abrigo comum, de ordem cultural, que podia proteger
o homem contra as variações de temperaturas e contra a chuva” (FERNANDES, 1989: 65).
Assim, o filme, naquilo que denominamos como uma espécie de “tentativa de reproduzir a
realidade”, tem na concepção de cenário da aldeia um exemplo muito forte.
Figura 7 – Aldeia Tupinambá
Como se o cuidado com a reconstrução cenográfica e lingüística não fosse o bastante,
outro aspecto de caráter técnico não foi deixado de lado, trata-se da iluminação. Observando
um aspecto técnico como a iluminação dentro das malocas (figura 8), podemos notar que esse
cenário está marcado pela utilização de iluminação externa, vinda da entrada e do topo,
simulando a luz do dia. Não temos, nas cenas dentro das malocas, focos de luz internos, assim
102
como não existem em aldeias do século XVI, ou seja, fotografia e cenário interagem na
tentativa de buscar a verossimilhança necessária ao realismo da representação
cinematográfica, e isso se faz, em vasta dimensão, a partir de opções técnicas.
Ainda com relação à maloca, sua composição de iluminação contribui para compor o
cenário de terror que, paradoxalmente, se explicita na alegria dos índios com a chegada do
cativo, um registro bastante forte e rico em simbolismos, mesmo que o diretor tenha
pretendido eliminar qualquer caráter alegórico da película, conforme registrou em
entrevistas
58
. Estamos falando do momento de recepção do cativo e futuro alimento ritual da
aldeia, quando Hans Staden é assustado por mulheres e crianças gritando que irão comer o
português, mordendo os próprios braços em representação disso.
Figura 8 – Composição de luz para criar um ambiente de medo do personagem
Aos índios, Staden declara não ser português, os odiosos inimigos dos Tupinambá, e os
índios falam de seu relacionamento com os franceses, de quem o personagem principal declara
58
Eduardo Moretin utiliza como base de seu texto sobre Hans Staden, entrevista do diretor para o jornal Estado
de São Paulo em 09/2000 (MORETTIN, 2000:52).
103
ser amigo. Nessa cena, os índios falam sobre sua relação com seus inimigos Tupiniquim e o
apoio dos mesmos aos portugueses. É nesse momento que o personagem principal tem um
primeiro contato com as mulheres Tupinambá, objeto de nossa análise logo a seguir.
Podemos perceber que na captura e primeiro contato, a presença dos índios pode ser
interpretada como uma espécie de acessório, complemento imagético para a saga de Hans
Staden. Primeiro pelo fato de não possuírem uma cena de destaque que nos permita conhecer
suas motivações, por isso mesmo não temos personagens coadjuvantes de destaque, a não ser
o “par romântico” do personagem principal, que também não recebe muita atenção do roteiro.
Entretanto, com uma leitura mais detalhada, essa primeira e aparente análise da
película pode tomar outros contornos, pelos quais observamos que o resultado ultrapassa as
“intenções” do autor. E quais intenções seriam? Entre elas, a de verdade histórica, marcada
pela seriedade na reconstituição de época. A outra da tentativa de exclusão do alegórico, um
elemento de comparação com Como era gostoso o meu francês, que é marcado justamente por
uma perspectiva diversa. Mas os índios Tupinambá ultrapassam o espaço a eles determinados
em cena, pois, mesmo que não façam parte do epicentro da narrativa, terminam por dominar a
cena. Mesmo que estejam em segundo plano, sempre se sobressaem, pela altivez dos
personagens masculinos e o caráter sobrenatural que as índias evocam durante a dança,
conseqüência da ótima direção e interpretação dos atores. O personagem principal é o foco da
narrativa, mas não de nossas atenções quando ambos estão em cena. A sociedade Tupinambá,
mesmo não possuindo diálogos à altura de sua riqueza cultural, não deixa por menos, e se
firma, do ponto de vista imagético, como o elemento mais marcante da captura do arcabuzeiro
alemão.
104
III.II. – Nairá, a mulher Tupinambá?
Quando analisado pelo historiador, o filme Hans Staden tem um aspecto que se destaca
entre as muitas representações presentes na película: a mulher Tupinambá, em especial aquela
interpretada por Ariana Messias, intérprete de uma espécie de personagem síntese das
mulheres e também o “par romântico” do personagem principal. Essa interpretação nos levou
a questionar o que definimos como uma tentativa de representação cinematográfica histórica
de uma índia Tupinambá, em contraposição a uma personagem cinematográfica simplesmente
construída a partir de um viés documental, baseado em textos e descrições históricas.
Tentaremos explicitar o que definimos como representação cinematográfica histórica em
oposição a representação cinematográfica.
O personagem cinematográfico seria uma construção específica para a narrativa
fílmica, sendo, portanto, utilizado dentro do espaço imagético e, por se esse motivo, não tem
compromissos com supostas verdades ou verossimilhanças históricas como narrativa fílmica,
literária ou de qualquer fonte que use como base. Sua “função” está vinculada à participação
na história e, geralmente, o maior objetivo é apresentar um personagem reconhecível pelo
público a que se destina, sendo marcado, em grande parte, por características anacrônicas,
geralmente compensadas por uma produção de época requintada.
Por outro lado, a “representação cinematográfica histórica” de um personagem tem a
preocupação com a composição, o mais fielmente vinculada ao passado do qual o mesmo
participa, na tentativa de constituir uma verossimilhança histórica, seriamente embasada nos
escritos de época, evitando atualizações e, em alguns casos, essa representação pode levar à
apatia do público moderno, que não reconhece ou não se identifica com esse personagem,
sendo muito mais raro esse tipo de representação. Antes que pensemos no mesmo como uma
personificação do tipo ideal weberiano, uma espécie de representação “pura” da história,
estamos falando da construção de um personagem dentro de uma “realidade” que se acredita
ultrapassar os limites do fílmico, o que não ocorre com o personagem cinematográfico, cujo
comprometimento é com a verossimilhança da história em que está inserido, e não com
qualquer fonte que tenha sido utilizada como base. Devemos lembrar que um personagem
cinematográfico não é a negação dos elementos históricos, os mesmos estão presentes, mas
105
desde que não ultrapassem o seu principal papel de compor um personagem factível à
narrativa e que seja de fácil assimilação, modelo padrão do cinema comercial. Mesmo que os
dois termos possuam, em seus contextos, elementos sociais e culturais bem definidos, aquilo
que denominamos a representação cinematográfica histórica pode destoar daquilo que o
espectador espera de um “personagem histórico” tipicamente cinematográfico, agradando a
um segmento especializado, mas sendo considerado desinteressante por boa parte do público.
Isso, invariavelmente, leva os filmes a explorar uma quase esmagadora maioria de
personagens cinematográficos para compor seus personagens históricos, ou seja, embora
referidos ao passado, utilizando indumentárias de épocas, inseridos em cenários que simulam
aquilo próprio dos períodos, os diretores “atualizam” tais personagens, seja introduzindo falas
e comportamentos mais próximos do espectador, seja cometendo algum tipo de anacronismo
para facilitar a identificação com o público, seja mudando a própria história narrada.
Subtraindo ações, personagens, mudando até mesmo o final.
Por não existir um “tipo ideal”, acreditamos que seria de grande valia uma tentativa
de conciliação entre as especificidades do suporte fílmico e uma leitura histórica que
permitisse ao público compreender como a humanidade é dinâmica e se reinventa em cada
período histórico. Voltando à questão proposta na composição da personagem Nairá, a direção
optou por uma persona cinematográfica convencional, uma tentativa de representação
histórica, o que quebra o padrão de busca de verossimilhança que marca muitos dos trechos do
filme. Portanto, a opção foi a constituição da personagem que apresenta atributos de empatia
com o público moderno, tornando-a passível de identificação ou de simpatia por parte do
espectador.
Mas, independente da escolha no formato da personagem, o filme nos apresenta em
movimento, o que antes eram imagens descritas no relato de Staden, e material iconográfico
baseado no relato elaborado pelas mãos do ilustrador anônimo da edição original e de
Theodore De Bry, construiu a maior parte da composição imagética que possuimos sobre essas
mulheres. Tais imagens terminaram por servir de base, como enfatizamos, para a marcação
de cena do filme (figura 9).
106
Staden tem a sobrancelha
raspada por uma índia
Tupinambá.
Preparação da Ibirapema.
Preparação do prisioneiro
para o ritual antropofágico.
Figura 9 – A iconografia serve de base para marcação das cenas, nas quais queremos destacar a figura feminina
Analisar os usos dessas imagens em conjunto com o relato nos permite compreender
melhor a mulher na sociedade Tupinambá e suas representações. Com relação ao filme, ao
compararmos com o relato, podemos observar as escolhas feitas pelo roteirista/diretor em sua
representação. Afinal, mesmo em sua licença poética, o cinema é permeado por escolhas que
nos mostram, conscientes disso ou o, a visão dos realizadores, neste caso, em especial
aquela do diretor Luís Alberto Pereira sobre o tema, na tripla função de
diretor/roteirista/produtor que tornaram central. Enquanto obra de arte, o cinema não está
vinculado às mesmas exigências de um trabalho de cunho histórico. Ronaldo Vainfas, ao
analisar o filme Carlota Joaquina (1995), nos lembra que o cineasta não está preso à verdade
histórica da mesma maneira que o historiador se encontra, por força de seu ofício. Por mais
que isso incomode a maioria dos historiadores, esse é um ponto que devemos observar.
Entretanto, essa mesma licença poética das artes nos permite compreender, de forma mais
profunda, como a sociedade que produz o filme interpreta a história que se propõe a
107
representar. Essa proposição, aliás, já faz parte do corpus do historiador, tendo sua tese
formulada por Marc Ferro
59
na década de 1970.
No caso do filme Hans Staden, em se tratando da representação feminina da sociedade
Tupinambá, estamos falando de um grupo que, salvo em obras hoje consideradas clássicas,
como as de Florestan Fernandes
60
e Alfred Métraux
61
, nem mesmo disputava interesse central,
tratado de modo periférico, como uma espécie de sub-categoria da sociedade Tupinambá. A
historiografia, em especial, nas figuras de Ronald Raminelli (1996), João Azevedo Fernandes
(2003), Carlos Fausto (1992) e Manuela Carneiro da Cunha (1992), e a etnologia, com nomes
como Eduardo Viveiro de Castro (1986), Roque de Barros Laraia (2005), entre outros,
produziu, nos últimos 20 anos, uma nova leitura que vem mudando essas visões com novas
análises, não apenas da mulher Tupinambá em específico, mas das sociedades indígenas em
geral.
Todavia, ainda temos muitas omissões e mesmo trabalhos sérios, como o organizado
por Ronaldo Vainfas, Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), uma compilação dos
principais termos acerca da colônia, dedica apenas um verbete às mulheres da sociedade
colonial de maneira geral e com ênfase nas portuguesas. Não encontramos um verbete
específico sobre a mulher indígena nessa obra de referência, a não ser algumas linhas no
verbete relativo aos Tupinambá.
Encontramos dois autores que, apesar de seguirem linhas contrárias, são importantes
estudiosos da temática no Brasil. Ronald Raminelli e João Azevedo, que têm a mulher
Tupinambá como foco de seus trabalhos de maneira diametralmente opostas. Suas análises
sobre essas mulheres, além de revisionistas, nos permitem compreender de maneira muito
mais profunda a sociedade Tupinambá. Raminelli defende que,
O índio tem sido pouco estudado em nossa história. É verdade que nossos etnólogos,
assim como os estrangeiros, têm se debruçado sobre o papel da guerra, sobre a estrutura
da organização social, das relações de parentesco, e ainda sobre tantos outros assuntos,
59
Independente das críticas, Marc Ferro é uma referência mais que necessária a qualquer historiador que se
dedique ao estudo do cinema. Seu texto clássico é Cinema e História. Para uma crítica a produção desse
historiador recomendamos a leitura do artigo de Eduardo Morettin: O cinema como fonte histórica na obra de
Marc Ferro, presente no livro História e Cinema (2007).
60
Dois textos podem ser considerados os principais desse autor: A função social da guerra na sociedade
Tupinambá (1970) e A Organização social dos Tupinambá (1948).
61
O livro do autor que trata da temática é A religião dos tupinambás e suas relações com as demais tribus tupi-
guaranis (1950).
108
valendo-se, muitas vezes, dos pobres testemunhos que ainda restam em nossas reservas
e nas fronteiras que as extensões “brancas” e “civilizadas” não logrou exterminar
(RAMINELLI, 1986:7)
Em conseqüência da reduzida quantidade de estudos dedicados às sociedades
indígenas, e ainda menor quando pensamos na questão da mulher, teríamos uma leitura
equivocada sobre o papel feminino e isso se deve a uma série de fatores. No caso do texto de
Raminelli, tais equívocos levam mesmo a refutar a importância da mulher no ritual
antropofágico, retirando ainda mais sua importância na sociedade em que está inserida:
O papel social dos homens entre os Tupinambá está estreitamente vinculado ao
canibalismo e à vingança, sendo as mulheres apenas coadjuvantes, exercendo sempre
funções “amilitares”.
(RAMINELLI, 1986:84)
Em sua análise, um elemento nos parece crucial, o conceito de pseudometamorfose,
que se refere à transferência de características de um elemento para outro, alias algo muito
comum nas obras de arte. Esse conceito foi criado por Erwin Panofsky (1995) e é utilizado por
Raminelli, essa utilização do conceito não é necessariamente original, conforme nos informa:
Frank Lestringant também recorreu ao conceito de Panofsky para analisar a imagem do
ameríndio. Porém, ao meu ver, explorou-o de modo pouco sistemático.
(RAMINELLI, 1986:80)
Para uma melhor compreensão das representações da mulher tupinambá, Raminelli
utiliza, para apresentá-las, personagens portadoras de características típicas das bruxas
européias, especialmente nas iconografias. Nessa lógica, as xilogravuras não representariam
uma mulher Tupinambá, mas o que os homens do período entenderiam como uma “mulher
canibal”. As associações mentais iriam compor uma imagem diferente do que seria a mesma
índia representada na “realidade”. Utilizamos o conceito para falar das personagens
cinematográficas do filme Hans Staden, que são apresentadas a partir da caracterização visual
das iconografias e de textos etnográficos. Acreditamos encontrar, durante o filme, ecos de
Alfred Métraux, quando Nairá vai com Staden para outra aldeia, e de Florestan Fernandes, nas
109
descrições das funções das mulheres na sociedade, nesse sentido, a persona feminina
Tupinambá.
Ainda no tocante às mulheres, as mesmas são caracterizadas, segundo Florestan
Fernandes, de acordo com a idade, o que não ocorre no filme, uma vez que se volta apenas
para a mulher adulta, caracterizada na principal personagem feminina:
Uma Kugnatim-miry, cuja idade não ultrapassava os sete anos, era adestrada no
serviços de tecelagem e amassava o barro. De sete a quinze anos, ficando uma
Kugnatim, aprendia a fazer tudo o que uma mulher deve saber, após as cerimônias de
iniciação. Fiava algodão, tecia redes, trabalhava em embiras, participava dos trabalhos
agrícolas, semeando e plantando, participava da fabricação de farinha e dos diversos
tipos de cauim e preparava os alimentos. Depois tornando-se uma Kugnammuçu, de
quinze a vinte e cinco anos, assumia maiores obrigações nos serviços domésticos e no
auxílio da mãe. Casava-se nesse período e passava a cuidar do marido. Nas viagens,
devia transportar todo o equipamento da família e os filhos. Dos vinte e cinco aos
quarenta anos transformava-se em uma mulher completa, sendo tratada como uma
Kugnam... Quando passava dos quarenta anos, ficava uma Uainuy.
(FERNANDES, 1989: 119-118)
Coadunamos com a visão de João Azevedo Fernandes para quem a mulher Tupinambá
é, sem dúvida, de vital importância para a sua sociedade. O referido autor realiza um trabalho
complexo e consegue, além de compilar uma quantidade incrível de documentos, trazer à tona
essa mulher que, em geral, está ausente ou é considerada um elemento de menor importância
em detrimento dos homens.
O principal ponto de oposição entre João Azevedo e Ronald Raminelli está na
credibilidade que os mesmos dão às fontes coloniais, produzidas pela ótica dos europeus sobre
a mulher Tupinambá.
Na ótica de João Azevedo, ao contrário do que defende Raminelli, o papel da mulher
nessa sociedade não está baseado numa construção européia arbitrária, mas na sua vinculação
aos eventos mais importantes dentro da aldeia, em especial ao ritual antropofágico, no qual
possui uma grande contribuição. O texto de João Azevedo é posterior, e por isso o autor
termina complementando certas questões propostas por Raminelli, como no tocante ao
possível anacronismo dos etnógrafos ao usar fontes quinhentistas:
Embora seja justificada a preocupação de Raminelli com o perigo do anacronismo, é
bastante óbvia para qualquer um que possua alguma familiaridade com a produção
tupinólogica atual a pertinência da abordagem etnográfica dos relatos coloniais: como
se pode ter uma atitude diferente quando, por exemplo, se comparam os desenhos de
110
potes, e outras peças cerâmicas, incluídos no livro de Hans Staden – e as gravuras feitas
posteriormente por Theodore de Bry com o testemunho arqueológico que possuímos
atualmente e se percebe que os desenhos são quase perfeitos? De que “esferas
imaginárias” teriam sido retirados os termos de parentesco recolhidos pelos jesuítas,
muito deles idênticos aos usados pelos Tupis atuais?
(FERNANDES, 2003:43)
O autor segue um caminho oposto ao de Raminelli, ao citar o exemplo dos Wari´ e sua
prática antropofágica, em que a mulher tinha a função de cortar a carne e colocar no
moquém
62
, mostra os elementos que considera equivocados, mas sempre sendo respeitoso ao
texto:
Esse argumento é importante, que serve como base para o argumento aventado por
Ronald Raminelli: este autor que se inclui entre os que duvidam do valor etnográfico
das fontes sobre os Tupinambá acredita que as representações iconográficas da
antropofagia Tupinambá “hipervalorizam” o papel das mulheres no ato, sendo mais um
sinal da misoginia européia do que uma representação realista... Não sendo o caso de
analisar com profundidade o texto de Raminelli, de resto excelente enquanto estudo do
impacto da mulher indígena no imaginário europeu.
(FERNANDES, 2003:161-162)
Em nossa análise, acreditamos ser válido observar essas duas leituras, que m como
grande diferença a validação das fontes e, fora dessa área, se complementam como estudo de
historiadores sobre a sociedade Tupinambá. Afinal, graças a esses autores, dois elementos se
tornam cruciais nas leituras posteriores da sociedade Tupinambá: a mulher, que é apresentada
como de vital importância na sociedade, sendo um elemento ativo em seu principal ritual,
segundo João Azevedo Fernandes; e fica claro, a partir desse trabalho, que a compreensão
dessa sociedade se faz com a observação de como a imagem das mesmas foi construída
(Raminelli), ou seja, qualquer trabalho histórico sobre a sociedade Tupinambá deve atentar
para essas duas análises.
A discussão da pseudometamorfose, anteriormente colocada, nos leva a uma
especulação: até que ponto temos pseudometamorfoses no relato de Hans Staden? A resposta
para essa questão é que o relato é escrito posteriormente, e o mesmo ocorre com relação às
62
Moquém é uma armação feita de madeira com fogo embaixo onde se coloca carne de caça para assar com
fumaça, de uso constante dos indígenas brasileiros. Enquanto o moquém fica aceso as carnes se conservam boas
para comer por muitos dias, a fumaça evitando que as varejeiras pousem, o calor impedindo que as partes mais
grossas apodreçam.
111
famosas iconografias, que são produzidas alguns anos depois do relato. Nesse sentido, seja
pelos processos do lembrar/esquecer ligados ao consciente/inconsciente, certas partes podem
ter sido formadas por elementos que não estavam presentes no momento do personagem
cativo, em especial, na representação das personagens femininas. O grande mérito dessa
discussão é apresentar um método, muito utilizado nas obras de arte, mas pouco explorado
pelos historiadores de modo geral, afinal, esse modelo nos permite compreender melhor a
construção de uma obra e suas influências conscientes e não-conscientes. Todavia, por mais
que consideremos interessante, tal leitura leva a discussão sobre as validades da fonte. Não
defendemos a posição de que tudo o que sabemos sobre a mulher Tupinambá é uma
construção simbólica dos europeus do período, ainda que isso tenha inegavelmente
influenciado seus registros.
Uma leitura do relato, em comparação ao texto fílmico, nos leva a observar que, no
tocante ao personagem principal, o filme segue com relativa fidelidade, enquanto as
personagens femininas recebem tratamento diferenciado, que extrapola o conteúdo do texto
escrito. Elas estão mais presentes e ativas na narrativa cinematográfica que no relato
quinhentista.
O momento em que somos apresentados às mulheres tupinambás, é quando Staden,
cativo, chega à aldeia. Entretanto, a primeira referência a elas na película é durante sua
captura, quando os índios estão decidindo sobre seu destino. A posse do prisioneiro era
baseada em quem o tocasse primeiro, em alguns casos, quando não se conseguia chegar a essa
conclusão, matava-se o cativo ali mesmo e dividia-se a carne. No caso de Staden isso não
ocorre, pois a posse se configura e um dos índios decide levá-lo à aldeia para as índias
divertirem-se com ele. A trilha de abertura do filme é uma canção de mulheres, ou seja, as
mesmas estão mais presentes na película do que percebemos numa análise superficial que
desconsidere esses indícios.
Na aldeia, Staden é alvo de chacota das mulheres e crianças. Em seu relato, uma das
primeiras descrições desse contato é notadamente marcada pelo temor:
No interior da caiçara arrojaram-se as mulheres todas sobre mim, dando-me socos,
arrepelando-me a barba, e diziam em sua linguagem: anama poepika aé! Com esta
pancada vingo-me pelo homem que os teus amigos nos mataram.
(STADEN, 1972:87)
112
Em sua estadia, temos a primeira cena de destaque das mulheres, que levam o
prisioneiro pela aldeia quando as mesmas cantam e conversam com Staden, o que não é
possível identificar no relato quinhentista. Esses diálogos, construções cinematográficas, são
curiosos, pois tornam o Staden cinematográfico mais próximo do público atual, seja na troca
de olhares e leve sorriso de aprovação sobre as brincadeiras sexuais propostas pelas índias, ou
pelo “relativismo” com que trata um escravo negro, ao permitir que o mesmo continue
fugindo.
Isso nos leva à discussão sobre adaptação, a difícil tarefa de transposição de um
suporte para o outro, nesse caso, de um relato quinhentista para o cinema, que sempre sofre
com as diferenças de suporte. Com relação a isso, encontramos dificuldades conceituais que
podem ser indicadas na discussão sobre o assunto proposto por Aumont:
A adaptação é, em certo sentido, uma noção vaga, pouco teórica, cujo principal objetivo
é o avaliar ou, no melhor dos casos, de descrever e de analisar o processo de
transposição de um romance para o roteiro e depois para o filme: transposição dos
personagens, dos lugares, das estruturas temporais, da época onde se situa a ação, da
seqüência de acontecimentos contados...
(AUMONT, 2003:11)
Existem, na verdade, duas opções: uma é a transliteração, passagem de um suporte para
o outro, que remete muito mais a uma tarefa hercúlea que uma possibilidade real, a outra seria
em reconhecer as especificidades de cada suporte e entender a tradução enquanto adaptação da
essa temática em questão, conforme já indicamos no primeiro capítulo.
Optando pela segunda alternativa, pela qual analisamos o filme Hans Staden, a
adaptação construiu um personagem para dar verossimilhança à narrativa, seu nome é Nairá,
personagem cinematográfico que não encontra equivalente no relato, e será, conforme já
lembramos, “par romântico” de Staden durante o filme, chegando mesmo a sair da aldeia
quando este é mandado como presente para Abati-poçanga. No tocante ao relacionamento, a
personagem cinematográfica se aproxima da descrição acadêmica, conforme análise da
situação dos cativos na sociedade Tupinambá, presente na obra de Alfred Métraux:
A mulher concedida ao escravo devia responder por ele. Inbuia-lhe a tarefa de vigia-lo e
fazê-lo engordar. Contam alguns autores que, em certos casos, essas índias ajudavam
seus maridos a fugir e até não hesitavam em partir em sua companhia.
(MÉTRAUX, 1979:122)
113
Devemos pensar nas razões pelas quais, no relato quinhentista, o autor Staden não faz
qualquer referência a relacionamentos com mulheres tupinambás, mesmo porque isso
terminou por criar certo anedotário relativo a sexualidade do arcabuzeiro alemão, do qual o
diretor/roteirista escapou ao criar seu par romântico. Como analisaremos a seguir, o Staden
cinematográfico está mais para o arquétipo de herói contemporâneo que o seu equivalente
literário. É importante salientar que para um protestante do século XVI, o relacionamento com
uma índia, se é que ocorreu, e seria bastante plausível supormos que sim, não estaria
registrado numa obra dedicada a um príncipe protestante e que, ainda por cima, é intermédio
da influência divina:
Queira Vossa Serena Alteza, por benevolência, quando se apresente oportunidade, ouvir
a leitura de como eu, com a ajuda de Deus, transpús a terra e os mares, e como o Todo-
poderoso me conduziu através de estranhos acidentes e provações.
(STADEN, 1972:26)
Nesse sentido, não deixa de ser interessante recorrer à obra de Roger Chartier quando o
mesmo nos diz que: Embora temido, o apagamento era, necessário, assim como o
esquecimento também o é para a memória” (CHARTIER, 2007:9). No jogo do lembrar e
esquecer, quer seja consciente ou não, um relacionamento com uma índia não seria visto de
maneira favorável por uma corte européia do século XVI, onde Staden conta suas desventuras.
Contudo, para o espectador, que poderia ver nessa personagem indígena sua antepassada
direta, esse “contato interétnico”, capitaneado pela interação das raças, tão alardeada por
Gilberto Freyre (2004), não seria nada mais que natural. Alias, antinatural, na lógica da nossa
sociedade, seria negar esse contato. Esse duplo simbólico, natural/antinatural, nos permite
compreender melhor a produção de uma obra vinculada ao que interessa ao público a quem se
destina e que o tem como elemento de grande influência na obra cinematográfica, pois como
arte industrial de massas, o filme é produzido considerando seu receptor. Este recurso é
bastante comum para causar empatia do público com os personagens representados.
114
No desenvolver da narrativa fílmica, somos apresentados a cenas do cotidiano: vemos
as mulheres moendo mandioca, preparando cauim
63
, cantando e em outras cenas do dia-a-dia
na aldeia, inspiradas no relato de Staden e na iconografia. Dentre essas cenas, duas merecem
ser destacadas: aquela em que as índias dançam com Staden e a saudação lacrimosa. Afinal, as
mesmas estão presentes no relato, mas o impacto cinematográfico que causam demonstra
claramente a importância dessas mulheres naquela sociedade:
Os homens se retiraram com os arcos e flechas para suas moradias e deixaram-me com
as mulheres, que me rodearam. Algumas foram à minha frente, outras atrás, dançando e
cantando uma canção que, segundo seu costume, entoavam aos prisioneiros que
tencionavam devorar.
(STADEN, 1972:87)
Essa cena do relato, em sua adaptação fílmica, é marcada por closes nos rostos das
mulheres cantando e com ares assustadores, e quase nos remete ao sobrenatural. Em sua
narrativa, Staden nos dá mais detalhes que foram seguidos à risca pela produção do filme:
Duas mulheres amarram-me com um cordel alguns chocalhos a uma perna e por detrás,
no pescoço, de modo que me ficasse acima da cabeça, um leque quadrangular de penas
da cauda de papagaios, que eles chamam araçoiá. Depois começaram elas todas a
cantar. De acordo com seu compasso, devia eu bater o com a perna à qual estava
atados os chocalhos, de modo que choacalhasse acompanhando o canto.
(STADEN, 1972:91)
A visão das índias durante o canto nos remete ao elemento demoníaco, potencializando
um caráter sobrenatural. Isso é decorrência da própria opção do relato biográfico como
principal fonte do roteiro, conforme destaca Lúcia Nagib:
Como são vistos por olhos estrangeiros, os índios têm suas características “autênticas”
exageradas a ponto de beirar a deformação expressionista. Quando cantam e dançam,
tudo neles é ameaçador: o branco dos olhos ressaltado pela pintura vermelha do corpo,
as bocas, tomadas em close-up e movendo-se em esgares, os gestos e os cantos.
(NAGIB, 2006:112)
63
Bebida alcoólica de uso ritual preparada pelas mulheres.
115
Alias, o fantástico é tipicamente feminino nesse filme. Em especial, está representado
pelas índias e por Lurupari
64
, personagem sem equivalente no relato. Sua representação
cinematográfica é feita por uma mulher branca, e aparece ao Staden em decorrência de uma
cauinagem. Em sua tentativa de retirar qualquer elemento alegórico, deixando claro que isso é
algo impossível dada a subjetividade do elemento fílmico, o diretor/roteirista está tão imbuído
na busca de realismo que coloca a única cena “alegórica”, dentro de um sonho, como uma
justificativa para o sobrenatural separado dos acontecimentos dos personagens.
As mulheres tupinambás, representadas no filme, fazem uso de um costume pouco
conhecido: a saudação lacrimosa, que, mesmo entre as fontes mais famosas sobre essa
sociedade, é pouco explorada. Dessa forma, independente das ressalvas que se tenha, esse é
um daqueles momentos que mostra a importância dos chamados “filmes históricos”, afinal,
fora desse suporte seria pouco provável que o grande público tivesse acesso a esse costume da
sociedade Tupinambá. A cena em que se representa a saudação lacrimosa, ocorre quando
chega à aldeia o francês karauta-auara, aliado dos índios, saudado pelas índias com prantos de
felicidade. Naturalmente, para nossa sociedade, essa prática tão diferente das nossas pode
ser de estranhamento”, como reação do espectador moderno. Diante da importância e da
dificuldade em se conseguir informações sobre a saudação lacrimosa, acreditamos que a fonte
de inspiração para a inserção da cena na obra tenha sido o texto de Alfred Métraux:
Quando algum estrangeiro chegava a uma aldeia Tupinambá, dirigia-se diretamente
para a oca de seu hospedeiro. Ali entrando, sem dizer palavra, estendia-se na rede,
aonde acorria todo ou, pelo menos, parte do mulherio da maloca na qual se achava
acolhido. Essas mulheres, ajuntando-se em torno do hóspede, abraçavam-no, punham-
lhe as mãos nos ombros, no pescoço e nos joelhos, cobrindo-lhe o rosto com os cabelos
e, em seguida, acocoradas diante dele, caíam em choro.
(MÉTRAUX, 1979:157)
Podemos observar, a partir dessa informação, um traço importante da cultura
Tupinambá que não está presente no relato
65
e que está vinculado, na interpretação de
Métraux, ao culto dos mortos, nos permitindo conhecer mais sobre uma sociedade que, mesmo
64
Figura mítica.
65
Sempre que usamos a referência relato sem maiores explicitações é o que consideramos comum à todas as
traduções.
116
destruída fisicamente, ainda é parte importante do que somos. Durante a saudação era comum
o recém-chegado ser informado sobre sua importância para o mesmo:
Os índios recebem os seus hóspedes e as pessoas chegadas de viagem com
lamentações entrecortadas de discursos. Quando o hóspede entra na oca, assenta-se ao
lado do dono da casa e, então, as mulheres, rodeando-o, mas sem dizer palavra,
explodem em urros. Em seguida, falam dos pais do hóspede, de sua morte, das
façanhas e eventos da vida deles, assim como da boa ou da fortuna que lhes tenha
sucedido. Também os homens demonstram pesar, cobrindo-se os rostos e chorando do
mesmo modo. Em voz baixa, aprovam os queixumes manifestados pelas mulheres, e
quanto mais elevada é a posição social da personagem, mais ardentes são os lamentos e
os gemidos: tanto assim que, em derredor da choça, julgar-se-ia que morrera alguém
muito querido... quem não é assim acolhido, pode considerar-se desventurado.
(MONTOYA in MÉTRAUX, 1979:159-158)
Esse momento, conforme podemos observar, é um sinal de afeto e respeito ao recém-
chegado presente em diversos grupos indígenas como, por exemplo, os Carajás e Caiapós.
Qual seria a intenção desse tipo de saudação? Alfred Métraux, faz o seguinte comentário:
A meu ver, essa cerimônia deve ter origem mais complexa. Talvez esteja ela associada
ao culto dos mortos. Da maioria dos textos citados, ficou esclarecido que o tema do
pranto se relaciona com os mortos, sendo, nele, evocada a sua memória e suas
façanhas.
(MÉTRAUX, 1979:161)
Devemos relembrar que a saudação lacrimosa é, na sociedade Tupinambá, uma
celebração feminina e, apesar de pouco conhecida, está presente em um popular romance do
século XIX. Estamos falando da criação de Lima Barreto, o ufanista Policarpo Quaresma
(2008), defensor do retorno ao idioma tupi em oposição ao português que, em sua ênfase do
nacional, saúda um amigo aos prantos, numa clara alusão a essa saudação indígena.
Não poderíamos deixar de tentar responder à questão proposta no título. Seria então
essa personagem a representação da mulher Tupinambá? Podemos afirmar que, apesar de ser
construída de maneira unidimensional, termina por ser a única voz feminina do filme.
Consideramos, assim, que um personagem cinematográfico também nos ensina sobre história,
seja nos seus atributos de autenticidade ou em suas omissões. Afinal, no caso do filme Hans
Staden, a mesma é a única que dialoga com outros personagens de maneira individualizada e
participa da cena em que as índias estão raspando as sobrancelhas e barba de Staden, cena
117
claramente inspirada na iconografia. Nessa cena, as índias falam em “brincar” com o
personagem e o mesmo sorri afirmativamente. Não temos em seu relato, qualquer registro de
contato do mesmo com índias nas aldeias em que esteve, conforme citamos. Nairá está
presente desde a chegada do Staden cinematográfico à aldeia, entra na oca com os maracás,
leva-o para o centro da aldeia, onde as outras índias o esperam, e decide seguir Hans Staden,
além de participar ativamente das cerimônias.
Por suas escolhas numa representação realista da história, o filme pode ser acusado de
faltar aos personagens personalidades fortes e bem definidas. Assim, não teríamos pessoas em
cena, mas índios cinematográficos, ou seja, prevemos suas reações. Podemos refutar essa
aparente assertiva com o fato de que essa idéia de individualismo não existe no século XVI
como em nossos dias, ou seja, nesse aspecto, o filme é extremamente verossímil. Nessa
perspectiva, em sua preocupação com a autenticidade, a interpretação dos atores e uso do
idioma tupi produz personagens que estão muito além dos que encontramos naqueles que
popularmente definimos como “filmes com índios”. Perdemos certas especificidades dessa
sociedade nesse filme, mas, de modo geral, o mesmo está muito acima do que se produz sobre
essas sociedades.
Falar da mulher Tupinambá é falar não apenas dos excluídos da história em um sentido
panfletário, mas de nos reconhecer como excluídos e excludentes. Sua importância para a
sociedade não pode nem deve ser eclipsada pela figura masculina, tão predominante nos
relatos quinhentistas.
Lembremos também que esse duplo simbólico, excluído/excludente, nos permite
entender como a sociedade estabelece práticas e costumes que terminam por anular o que
consideram “estranho”, sendo que, nesse filme, são as nossas antepassadas diretas as
“selvagens”, “atrasadas” e “estranhas”, em oposição ao herói “civilizado”.
118
III.IV – O ritual antropofágico e o ser canibal
Alvo de controvérsias no meio acadêmico, mal-entendida pelo senso comum, a
antropofagia sempre foi considerada um assunto polêmico. Afinal, a ingestão de carne humana
pode ser tida como uma característica de “selvagens” ante os civilizados que não possuem tal
prática, espécie de caminho contrário ao que se define como “ordem natural das coisas”.
Decidimos, então, seguir uma postura mais acadêmica sobre a temática e não levar em
consideração querelas morais sobre essa prática. Para uma melhor compreensão, gostaríamos
de expor, em linhas gerais, uma distinção de termos entre canibalismo e antropofagia. Exposta
essa diferenciação, iremos observar a prática antropofágica na sociedade Tupinambá, mais
especificamente na representação proposta pelo filme Hans Staden, ou seja, a nossa análise
tem como principal objetivo, apresentar como esse ato é encarado nesse filme e também pelo
cinema nacional na construção do “mito fundador”
66
, em que o tema (canibalismo) aparece em
mais dois filmes: Como era gostoso o meu Francês e Macunaíma.
Mas antes de discutirmos a representação proposta pelo filme, vamos tentar
compreender melhor o que seria a distinção dos termos. Canibalismo pode ser definido como
o ato de consumo da carne de uma mesma espécie, prática existente em algumas espécies do
no reino animal, enquanto que a antropofagia é o consumo de carne humana numa dimensão
ritualizada.
Não é uma questão de eufemismo. O termo tenta distinguir e criar duas categorias.
Simbolicamente, ao classificarmos alguém como antropófago, terminamos por compreender a
sua prática no âmbito de uma perspectiva simbólico-religiosa, ainda que não a aceitemos.
Devemos entender essa aceitação do ponto de vista teórico, o exemplo disso é como a mídia
geralmente rotula os assassinos que consomem carne humana, seja nos noticiários ou no
cinema. Por isso mesmo que
66
Esse termo e nossa leitura sobre a antropofagia no cinema nacional são influenciados por Lúcia Nagib, no livro
A Utopia do cinema Brasileiro, em especial no capítulo: O eu e o outro antropófogo, com ênfase na escolha da
autora no filme que analisamos.
119
Antropófagos e canibais são, em princípio, termos idênticos, mas alguns estudiosos fazem
importante distinção: a antropofagia seria um ritual, enquanto o canibalismo ocorreria
motivado pela necessidade...
(VAINFAS, 2000:90)
Gostaríamos de deixar claro que mesmo o conhecimento dito científico tem
dificuldades nessa separação, na construção de divisão das práticas antropofágicas, os termos
relativistas como endocanibalismo e exocanibalismo remetem ao canibalismo:
Sob a classificação geral de “antropofagia” subclassificações de “endocanibalismo”
consumir amigos ou parentes mortos como um ato de respeito e “exocanibalismo” o
ato de ingerir inimigos mortos em batalhas ou como sacrifício a uma deidade menor e
enfurecida. Vale mencionar que, ao classificar os diferentes tipos de antropofagia,
mesmo a ciência recorreu ao termo comum “canibal”.
(DIEHL, 2007:31) (grifo nosso)
Em nossa abordagem, quando nos referirmos à sociedade Tupinambá, estamos
pensando no processo enquanto prática ritual e não selvageria e barbárie. Ao contrário do que
se possa pensar no primeiro momento, o termo antropofagia não foi criado com o sentido
atual, numa espécie de termo defensivo em relação ao canibalismo, sendo o mesmo mais
antigo que a terminologia canibal. Sua origem remonta à Grécia antiga, onde era denominado
Antropophagía o ato de comer carne humana, tendo sido resignificado depois, enquanto que
canibalismo é um termo difundido com a descoberta da América. A palavra seria, então,
derivada originalmente do arawak “caniba”, que seria a alteração de “cariba” palavra pela
qual os índios caribe das Pequenas Antilhas se autodesignavam, e que, em sua língua,
significaria “ousado”
(LESTRINGANT, 1997:27).
Cristovão Colombo seria o responsável pelo termo, segundo Franz Lestringant
(1997:35), cujo trabalho é um dos mais importantes sobre a construção do chamado “mito
canibal”. No Brasil - Colônia encontramos dois tipos de práticas canibais: o endocanibalismo e
o exocanibalismo.
Conforme já apresentamos, o primeiro é baseado no consumo de carne de entes
queridos, especialmente parentes, seguindo a lógica de que o melhor lugar para se guardar
alguém de quem se gosta é dentro de nós mesmos. Já o exocanibalismo, é o consumo da carne
dos inimigos com o objetivo de adquirir suas características heróicas, como coragem e
120
bravura. Essa ampliação dos termos não é isenta de significados, afinal, a própria construção e
ressignificação dos termos é uma tentativa de desconstruir esse caráter pejorativo.
Um dos pioneiros na relativização foi o francês Montaigne, que ficou conhecido como
um dos mais importantes dos relativistas culturais, segundo Tzvetan Todorov (2003), em seu
clássico livro Ensaios, especificamente no ensaio de número 31, denominado: Dos canibais, a
partir de uma série de argumentos ele defende a posição de que o consumo de carne
ritualizado não é uma prática desumana, chegando mesmo a defendê-la, em oposição a
práticas comuns de sua época. Essa que é uma das grandes teses de seu texto, muito citada na
defesa das sociedades que fazem uso dessa prática:
Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é
pior esquartejar um corpo entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-
lo aos cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como, não somente o lemos mas vimos
ocorrer entre vizinhos nossos contemporâneos; e isso, em verdade, é bem mais grave do
que assar e comer um homem previamente executado.
(MONTAIGNE, 1987:262)
Entretanto, essa defesa” é objeto de uma leitura bastante perspicaz de Lestingrant
(1997:35), segundo a qual, deveríamos analisar até que ponto podemos dar credibilidade a
essa leitura marcada pela “ironia e humor”.
Lúcia Nagib (2006) ainda nos lembra que esse ensaio é marcado pela retórica negativa
quando, mais que os selvagens, a definição se aplica à própria sociedade de Montaigne pela
negação. Quanto ao índio, permanece inteiramente idealizado e ignorado em sua estrutura
social” (NAGIB, 2006:96).
Como podemos perceber, não o tema, mas também as leituras sobre o mesmo,
sempre são marcadas pelo tom da polêmica, demonstrando um vasto caminho a ser explorado.
O mais importante, por hora, é entender que essa prática ritual foi utilizada como um dos
principais álibis para as arbitrariedades cometidas na América durante a colonização,
especialmente com o objetivo de justificar o extermínio dos “selvagens” quando não era
possível sua conversão. Esse duplo destino dependia muito mais de relações de poder do que
necessidade de cunho sagrado.
Apresentados esses conceitos elementares sobre os principais termos e a discussão
acerca do “mito canibal”, nos dedicaremos agora à apresentação da sociedade que tinha em
121
sua base o ritual antropofágico dos Tupinambá. Antes, convém apresentar o motivo da escolha
da grafia do grupo em decorrência de que
Considero muito justo a sugestão de Varnhagen no sentido que se deve adotar os
designativos genéricos consagrados pelo uso. Em resumo, a adoção do termo Tupinambá,
para designar os grupos tribais Tupi descritos sob este nome, tem apoio etnológico e
histórico.
(FERNANDES, 1989:18)
Estamos falando dos grupos indígenas predominantes no litoral do Brasil no Século
XVI, que, mesmo divididos em “nações”, nas palavras de Alfred Métraux
67
, conforme
apresentado, uma das principais referências na análise das práticas rituais dessa sociedade, nos
informa que esses grupos apresentavam uma forte unidade lingüística e cultural e praticavam o
exocanibalismo. O mesmo autor contesta esse termo em sua totalidade:
[...]na realidade, porém, tal designação, que semelhantes indígenas se davam a si mesmos,
historicamente cabia apenas aos tupis estabelecidos no recôncavo do Rio de Janeiro, na
região da Bahia e nas províncias do Maranhão.
(MÉTRAUX, 1979:23).
Na abordagem de Florestan Fernandes (1989), o mesmo faz uso do termo de acordo
com a forma pela qual é referenciado nas fontes consultadas
68
. Os Tupinambá figuram entre os
principais objetos de estudo sobre antropofagia no Brasil por uma série de fatores, entre eles o
seu extermínio no século XVII. Conforme observamos ao longo deste texto, dois autores
merecem destaque em suas análises sobre a sociedade Tupinambá: Alfred Métraux e Florestan
Fernandes. Com relação ao primeiro:
Uma introdução à bibliografia Tupi-guarani deve começar pelos trabalhos de Alfred
Métraux, o primeiro antropólogo a explorar sistematicamente os dados dos “cronistas”
quinhentistas e seiscentistas sobre os Tupinambá e Guarani, e a articulá-los com materiais
etnográficos contemporâneos (das primeiras décadas do séc. XX).
(CASTRO, 1986: 83)
67
Conceito pouco adequado atualmente em vista dos desdobramentos do termo nação, ligado a identidade
nacional e mbolos incompatíveis com a lógica indígena. Consideramos mais adequado o termo em voga que é
sociedade.
68
As principais fontes do trabalho de Florestan Fernandes sobre a sociedade Tupinambá são os relatos
quinhentistas.
122
Sua obra sobre a religião Tupinambá é um item obrigatório para entender o
funcionamento dessa sociedade, enquanto que Florestan Fernandes é lembrado por seu
trabalho com os relatos quinhentistas, considerando que
[...]é com Florestan que o vasto material deixado pelos cronistas será utilizado de maneira
exaustiva e sistemática. Consciente dos problemas e implicações epistemológicas
levantados pelo uso deste tipo de dado [...]
(CASTRO, 1986:83)
Esses dois autores, de grande importância no estudo dessa sociedade, fazem uso de
textos em comum, mesmo que suas produções estejam marcadas por temporalidades e
abordagens diferentes. Suas fontes, em grande maioria, são os relatos quinhentistas, textos de
vital importância para a etnografia, e, dentre essas obras, destacamos Duas Viagens ao Brasil
(1557), que narra as aventuras do arcabuzeiro alemão Hans Staden sob posse dos índios
Tupinambá por noves meses, Singularidades da França Antártica (1558), do monge
franciscano André Thevet, História de uma viagem a Terra do Brasil (1586), do pastor
calvinista Jean de Léry, e Tratado descritivo do Brasil (1587), do cronista português Gabriel
Soares de Sousa, além de História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e
terras circuvizinhas (1613), do Frei Claude d’Abbeville. Os cincos autores trazem, em suas
obras, os Tupinambá como objeto.
O filme Hans Staden (1999) utiliza trechos de vários dos relatos, mesmo que tenha
como referência maior o relato homônimo. Para possíveis questões sobre a “validade” com
relação a esse tipo de material, encontramos algumas respostas:
Há uma razoável homogeneidade de informações, que nos permite um certo grau de
segurança na reconstrução dessas sociedades, mas não nos dispensa de uma leitura crítica,
feita a partir da situação dos autores.
(CUNHA, 1992:381).
A prática antropofágica presente nos relatos é alvo de controvérsias, o antropólogo
Walter Arens (apud Fernandes, 2003:34) contesta a sua existência alegando que a pretensa
padronização dos relatos demonstra que algo não está certo. O autor acredita em um texto que
123
teria dado origem aos demais, uma espécie de história que sirva de base, o que justificaria esse
aparente padrão. Contudo, tal leitura não poderia deixar de ser alvo de contestações:
Por mais convincente porém que se apresente a estrutura geral de suas considerações,
Arens não consegue refutar os testemunhos de canibalismo...o mesmo ardor empregado
pelos antigos cronistas para provar com todos os meios possíveis seus preconceitos a
respeito do canibalismo, é usado por Arens para evidenciar seu preconceito ao
contrário. Ou seja, Arens aborda a questão de maneira quase criminalística na sua
procura de indícios para comprovar que os autores não viram o que acreditam ter visto,
acabando ele mesmo por cometer mal-entendidos. O problema reside no fato de que,
tanto o “lugar do crime” como a realidade dos fatos canibalísticos desapareceram para
sempre.
(FLEISCHMANN, 1991: 127-128)
Mesmo alvo desse tipo de controvérsia, os antropólogos encontram registros sobre a
antropofagia entre comunidade indígenas do Século XVI ou que não existem mais. Foram
encontrados registros dessa prática no início do século e algumas mais recentes, como entre os
Arawetés e Wari´
69
.
Independente da leitura acerca do canibalismo, seja contestando sua existência ou não,
essa é uma das sociedades indígenas mais estudadas do Brasil. Os motivos para isso podem
estar na tentativa de compreensão das causas que levaram à sua quase total extinção no fim do
século XVI para início XVII, ou o fato de nossa sociedade vinculada à antropofagia desde
nosso “mito fundador”, compreendemos como tal, a idéia de que em nossa sociedade o
canibalismo está presente desde o início. A antropofagia como metáfora, serviu ainda como
elemento de influência de correntes estéticas da década de 1920, gerando entre os modernistas
uma tendência que se denominou Movimento Antropofágico.
No que se refere a essa discussão, indicamos a relação de nossa identidade nacional
com o mito canibal, um aspecto importante da chamada “mitologia do descobrimento”,
conceito preconizado por Lucia Nagib (2006:114), que nos apresenta, em três filmes
nacionais, a representação de diferentes leituras sobre o canibalismo, dando ao mesmo três
significados.
O primeiro seria Macunaíma (1969), inspirado no romance de Mário de Andrade e
dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, filme no qual encontramos uma forte inspiração
69
Para melhor discussão sobre o tema, recomendamos a leitura de Arawete: Os Deuses canibais, de Eduardo
Viveiro de Castro.
124
modernista. Nessa obra, que é considerada como tropicalista
70
, somos apresentados a um país
em que a antropofagia esnas relações de poder entre opressores e oprimidos. Com relação a
isso, podemos observamos que,
Concebido como o representante do brasileiro por excelência, ele vai descrever um
percurso pelo Brasil em que o canibalismo se apresenta a cada passo. Em vários
momentos, Macunaíma come ou tenta comer carne humana[...] e ele mesmo é quase
cozido e devorado pela mulher do gigante Piaimã, o industrial, sendo este afinal atirado
numa feijoada humana pelo protagonista.
(NAGIB, 2006:101)
Macunaíma, assim como Hans Staden, são os personagens principais de suas
narrativas, sendo os seus nomes mais significativos do que qualquer subtítulo proposto,
servindo os mesmos como títulos para as histórias literárias e cinematográficas. Afinal, os
subtítulos são desnecessários frente ao poder desses personagens, cujo caráter biográfico das
narrativas torna-os centro das representações literária (Macunaíma) ou autobiográfica (Hans
Staden).
Temos, em seguida, Como era gostoso o meu francês, finalizado em 1970 e lançado
em 1973, o filme foi dirigido por Nelson Pereira dos Santos, um dos principais expoentes do
Cinema Novo, e seu filme foi fortemente influenciado pelo Movimento. Assim como
Macunaíma, possui um forte caráter alegórico, o que não ocorre em Hans Staden, do qual,
aliás, segue um caminho oposto, pois, segundo entrevistas, o diretor recusa o uso de alegorias
para não dificultar o entendimento do espectador. O personagem principal de Como era
gostoso o meu francês, o francês Jean, personagem inspirado em parte nos relatos de Jean
Léry, é capturado pelos tupiniquins, aliados dos franceses, e fica cativo em sua aldeia. O nome
do personagem principal é o mesmo do autor quinhentista e a principal fonte seria
Singularidades da França Antártica, entretanto, como podemos observar, o encadeamento
narrativo e a premissa são marcados pelo relato de Staden.
Não devemos simplificar a discussão, acreditando que essa influência do relato na
composição narrativa influencia de forma absolutamente ideológica. Afinal, o francês é
resignificado ao aderir ao ritual em seu sentido extremo: sendo canibalizado pela índia
Tupinambá Seboipepe, seu par romântico. O filme possui paralelos com Hans Staden que
70
O Tropicalismo foi um movimento cultural brasileiro que surgiu no final dos nos 60 e que sofreu mais
influências da música e do teatro que do cinema.
125
ultrapassam o personagem principal, entre eles, o uso de outros idiomas, como o tupi e o
francês. Para Nagib, a utilização do idioma nativo tem um sentido extrafílmico:
A opção pode ser vista também como uma homenagem a Humberto Mauro, o patriótico
diretor de O descobrimento do Brasil, no qual os índios também se expressam em tupi,
embora aceitem de bom grado a catequese européia
(NAGIB, 2006:104)
Aliás, o diretor foi o responsável pela construção dos diálogos. Esse “pontos em
comum”, no caso, o uso do idioma tupi, são importantes para mostrar as similaridades,
enquanto que o diretor Luís Alberto Pereira defende as diferenças entre os dois.
Outro ponto em comum é que, em ambos, os personagens principais têm pares
românticos. Mas as semelhanças acabam por aí. Afinal, Nairá (Hans Staden) é o par do
personagem principal, enquanto Seboipepe (Como era Gostoso meu Francês) não é apenas
uma companhia do personagem, sendo a “possível” responsável pelo título, que tem um ar
feminino e é marcado pelo duplo sentido. Além disso, pode ser vista como uma espécie de
narradora, não de maneira definitiva, como acontece em Hans Staden, que tem um narrador
muito bem definido e dialogando com os outros elementos fílmicos. O mesmo não ocorre em
Como era gostoso meu francês, que se configura pela multiplicidade de textos e elementos
visuais e sonoros, estes sim, os verdadeiros narradores, segundo Nagib (2006:102).
o filme Hans Staden (1999), tem uma maneira mais “realista”, o termo mais
adequado seria formal, de representar a sociedade Tupinambá e o ritual. Em sua busca de
representar o que o diretor acredita ser a sociedade colonial do século XVI,
[...]nas palavras de (Luis Alberto)Gal (Pereira, diretor) afirmou que sua idéia foi a de
transpor para a tela algo nunca antes feito, mostrando como era de fato o Brasil do século
XVI.
(MORETTIN, 2000: 52)
Essa busca pelo que ocorreu de fato, a debatida e hoje pouco crível “verdade histórica”
una e inequívoca, da qual os historiadores tentam se desvencilhar cada vez mais, é
potencializada, segundo Morettin (2000:53), em relação ao filme Hans Staden, que confunde
reconstituição histórica com uma história que considera verdadeira e se propõe representar.
126
Lembrando que entendemos o ritual como algo muito maior, que não pode ser reduzido
a momentos, afinal, o mesmo é o mote da sociedade Tupinambá baseada na guerra, ou seja,
inclui desde o momento da captura, que consideramos muito importante para a sociedade por
apresentar relações de poder entre diferentes grupos, passando pelo período do cativo na
aldeia, até a cerimônia antropofágica. Essa é uma leitura corroborada por Alfred Métraux que,
em capítulo dedicado ao ritual, abre o texto com a captura do cativo
71
. Dessa forma, todos os
eventos estão relacionados de tal maneira que nos parece inadequado considerar apenas o
momento do consumo de carne como o ritual, se o fizéssemos, não conseguiríamos
compreender como esse ritual está ligado ao próprio ser, no sentido ontológico, nessa
sociedade.
Outro ponto que merece destaque na relação entre Hans Staden e Como era Gostoso o
meu Francês é que no primeiro, em sua busca de representar fielmente a história, encontramos
os diversos meios, imagens, textos e sons, dialogando numa lógica de corroboração e, ao
contrário do que ocorre em Como era Gostoso, em Hans Staden não há contradição proposital.
Significa dizer que o filme reitera a idéia do personagem narrando a verdade. Do ponto de
vista estético, isso quase anularia as possibilidades alegóricas, tão presentes nos outros dois
filmes, se realmente isso fosse apenas uma escolha de quem produz, afinal, se o diretor tenta
anular o que considera alegórico, se faz necessário deixar claro que essa tentativa é uma
escolha consciente, segundo Morettin (2000:52), algo que não é pensado em Macunaíma e
Como era gostoso o meu francês.
Contudo, essa escolha termina por não relativizar o ritual. Somos apresentados a uma
sociedade que, em grande medida, não nos é apenas “estranha”, mas a antagonista do
personagem principal com o qual somos levados a nos identificar. A relação eu e outro é
levada a dimensões tais que, para “simpatizarmos” com o personagem principal, as licenças
poéticas lhe atribuem características heróicas, mesmo que às vezes incongruentes. Além disso,
nenhum personagem da sociedade Tupinambá é explorado de maneira mais profunda,
servindo mais de complemento para o protagonista naquilo que definimos como personagem
cinematográfico.
71
Para maiores detalhes sugerimos a leitura do capítulo XI de MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambá e
suas relações com as demais tribos tupi-guaranis. São Paulo, Cia. da Ed. Nacional, 1979.
127
A parte final do ritual no filme, claramente inspirada nas iconografias, como a cena em
que uma índia está sentada pintando a ibirapema
72
, ou quando o cativo está amarrado pela
cintura com a mussurana
73
, nos mostram, novamente, o cuidado na reconstituição histórica.
Nesse sentido, o filme continua a utilizar as xilogravuras da edição original e as imagens feitas
por De Bry parecem presentes na tela, numa releitura cinematográfica dessa iconografia, com
os atores reproduzindo as cenas que seguem o enquadramento das imagens e até mesmo a
marcação dos personagens.
Essa busca por precisão histórica, proposta pelo diretor, preocupado apenas com a
reconstituição do passado, em sua representação, gera polêmica, como aponta Morettin:
alguns consideram Hans Staden um filme “neutro”. Essa é uma definição no mínimo
problemática. Como conceituar de neutro uma obra que tenta cercar-se de atributos de
autenticidades
(MORETTIN, 2000:52).
Não podemos deixar de lembrar que o texto base, o relato quinhentista, não pode ser
encarado como neutro, ou seja, a versão cinematográfica respalda uma versão sobre a história,
a versão de Hans Staden.
Enfim, encontramos no filme Hans Staden uma visão européia do outro (Tupinambá)
que, em momento algum, é representado em posições tão “simpática” ou “próxima” do
público moderno. Isso não ocorre por uma tentativa de construção de uma representação
histórica, mas para criar um elemento de oposição ao protagonista. Afinal, uma questão não
deixa de ser pertinente: o que nos seria mais “estranho”, um europeu protestante do século
XVI ou um índio Tupinambá? Essa é uma resposta que não seencontrada assistindo a Hans
Staden, ao menos, lendo esse filme em sua tentativa de naturalização da história, que não
impede de transformar os índios em inimigos e, algumas vezes, até sobrenaturais.
Podemos observar que conceitos tão comuns em filmes nos quais se propõe
neutralidade, realismo e naturalismo podem terminar por construir uma imagem estereotipada,
seguindo o caminho contrário às pretensões, a rigor impossíveis em qualquer representação.
72
Tacape ornamentado pelas mulheres e utilizado durante o ritual.
73
Corda usada no momento final do ritual para “prender” o prisioneiro. Essa forte corda era trançada pelas
mulheres.
128
Sendo assim, tais elementos, ao invés de revelar atributos de verdade, terminam por construir
uma leitura que, sem conseguir ser imparcial, é mecânica, tornando o letreiro que aparece
junto com os créditos finais do filme, sobre o extermínio da sociedade Tupinambá, destoante
do que vimos durante toda a exibição, onde nossa empatia é para com o personagem principal,
pois não existe uma cena em que, em nosso conceito moderno de certo e errado, os índios nos
causem empatia. Por fim, a antropofagia ritual é relegada a um mero ornamento na película,
não nos sendo apresentado a importância dessa para uma sociedade que, conforme nos lembra
Florestan Fernandes, era baseada na guerra.
Entretanto, e porque não dizer felizmente, o diretor fez um uso parcimonioso das partes
mais sangrentas do ritual e, com um bom uso dos recursos cinematográficos, não chega a
chocar o público. Na cena em que um índio é devorado no ritual, os recursos cinematográficos
são bem explorados, impedindo a exposição gratuita de certas cenas. Não vemos o crânio
sendo esmagado com a ibirapema, apenas o som do impacto e em sequência a queda do corpo
e, em outra cena, com os pedaços dos corpos a iluminação não privilegia os detalhes. Ou seja,
mesmo com algumas objeções com relação à representação dos personagens, o diretor compôs
o ritual de forma bastante respeitosa e sem desumanizar os índios que o praticam. Hans
Staden, conforme sabemos, escapa ileso do ritual antropofágico: se foi por sua esperteza,
covardia ou mesmo ato divino, é uma questão que nunca conseguiremos responder, entretanto,
outra questão se faz presente: por que o personagem estrangeiro que foge de nosso país nos é
tão próximo em relação aos nossos antepassados diretos em suas representações
cinematográficas? Essa é uma questão que tentaremos problematizar a seguir.
129
III.V -
Quando nós somos os outros
Não somos europeus nem americanos do
norte, mas destituídos de cultural original,
nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A
penosa construção de nós mesmos se
desenvolve na dialética rarefeita entre o
não ser e o ser o outro".
(SALLES, 1980:77)
Hans Staden está sozinho. Ao menos, é uma impressão constante na leitura de seu
relato. Este sentimento, na verdade, está vinculado à relação que o mesmo mantém com o que
considera os outros, nesse caso, os índios tupinambás que o aprisionam. Contudo, essa não é
uma relação exclusiva apenas do personagem literário, estando presente, em outras
proporções, em seu equivalente cinematográfico.
Pode parecer óbvio que ambos possuam a mesma relação, em especial, pelo filme ser
uma versão do relato. Mas não é tão simples. Os comentários negativos contra judeus são
omitidos do equivalente cinematográfico, que também é mais relativista em relação aos outros,
conforme analisamos no primeiro capítulo.
Pela presença constante em nossa sociedade e fazer parte da discussão da história
cultural, decidimos analisar essa questão sob a eleição do diferente. Nosso objetivo é discutir a
questão da alteridade no filme Hans Staden.
A primeira coisa que precisamos ter em mente é que os outros não existem, ao menos
do ponto de vista da lógica formal. Tentaremos explicitar melhor a questão. Nenhum grupo se
define como outro; essa relação existe pela negação. Ou seja, “os outros” é a expressão
subjetiva do que acredito não pertencer. Nesse sentido,
Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão e eu estou aqui, pode
realmente separá-lo e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma
abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o
Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao
qual nós não pertencemos.
(TODOROV, 2003:3)
130
O que pode causar uma aparente confusão num primeiro momento, é bastante simples:
existe apenas um grupo (nós). Os outros seriam justamente todos que não fazem parte desse
grupo. Mais que uma simples questão retórica ou de lógica, estamos falando de uma relação
de distinção.
Não é à toa que a questão da alteridade está, conforme já lembramos, entre as
principais discussões da história cultural. Em oposição à identidade, esses são os conceitos
mais em voga dessa forma de fazer história. Contudo, não são certezas absolutas, afinal, como
todos os conceitos, estão atrelados ao momento histórico em que são legitimados. Ou seja,
atualmente,
Os outros são, também, muitos, e podemos conviver com eles em termos de admiração
ou emulação, de sedução e desejo, de estranhamento e distância ou, no caso-limite, em
termos de negação. Nesse caso, estaríamos diante da modalidade perversa da alteridade.
(PESAVENTO, 2005:92)
Quando a autora fala em modalidade perversa da alteridade, chegamos ao ponto que
nos interessa em nossa discussão: sistemas de exclusão. A diferença aqui é que o conceito
recebe múltiplas interpretações. Entretanto, a principal persiste. Ao criar categorias de
separação, estamos elegendo o único grupo que realmente importa: o de que faço parte.
Um dos primeiros textos a relativizar o outro são os ensaios de Michel Montaigne, em
especial, o Tratado dos Canibais. Nessa obra, o autor apresenta uma leitura em que
encontramos ecos do que, no futuro, seria conhecido como relativismo cultural. Contudo,
Lucia Nagib possui uma visão mais cética sobre o autor, dizendo que o mesmo estava mais
preocupado em fazer uma crítica à sociedade de seu tempo que compreender o
comportamento do índio brasileiro” (NAGIB, 2006:95).
Mas, qual seria a origem de tudo isso? Segundo Todorov, o extremo ocorre no contato
da Europa com a América, no século XVI. Certezas inelutáveis, ao menos até aquele
momento, como as antigas teorias da impossibilidade de habitação e navegação das zonas
tórridas ou dos antípodas, perdem sua razão de existir. A principal instituição de legitimação
do momento, a igreja tenta conciliar o Novo Mundo com a Palavra Sagrada. Sobre essa
questão,
131
A Bíblia continha, apesar de todos os voluntarismos, poucos elementos que
justificassem a descoberta do Novo Mundo. Também é verdade que em algumas
profecias bíblicas, que os cronistas tiraram de seu contexto original, estes perceberam
alusões à existência das Índias.
(GIUCCI, 1992:197)
Tzetan Todorov, o principal defensor da teoria segundo a qual o contato entre os
europeus e índios nos levou ao máximo dessa relação, nos diz que,
No início do século XVI, os índios da América estão ali, bem presentes, mas deles nada
se sabe, [...] O encontro nunca mais atingirá tal intensidade, se é que esta é a palavra
adequada. O século XVI veria perpetrar-se o maior genocídio da história da
humanidade.
(TODOROV, 2003:5-7)
A conquista da América, em suas palavras, leva ao extremo essa relação. Na abertura
de seu texto sobre a temática, afirma:
Mas não é unicamente por ser um encontro extremo, e exemplar, que a descoberta da
América é essencial para nós, hoje. Além deste valor paradigmático, ela possui outro,
de causalidade direta. A história do globo é, claro, feita de conquistas e derrotas, de
colonizações e descobertas dos outros; mas, como tentarei mostrar, é a conquista da
América que anuncia e funda nossa identidade presente.
(TODOROV, 2003:7)
Ou seja, nossa relação problemática com o que definimos como outro até hoje, seria
conseqüência desse contato extremo. Em nossos dias, essa ideologia complexa, que nos
coloca em posição ambivalente diante do Outro, ressurge a cada vez que se fala em
identidade nacional.” (ORICCHIO, 2003:64). Na Retomada, essa relação entre eu e o outro
possui até mesmo um tom jocoso:
Vendo o passado formador do país como uma piada para se rir sem culpa, até porque
somos colocados na condição de estrangeiros, desconectados de nossas origens e
alçados a um patamar superior, que nos permite debochar de um país que não é o nosso
quando se olha para trás, pois o passado brasileiro é tratado ali como sendo o do outro.
(CAETANO, 2005:142)
No caso do filme Hans Staden, possuímos um duplo simbólico muito forte na questão
da alteridade: Hans Staden e os índios Tupinambás, quem seriam os outros para nós? Luiz
Zanin Oricchio (2003) afirma que essa é questão recorrente em nossa cinematografia:
Não é de hoje que colocamos a discussão de nossa identidade em função daquele que
nos é exterior. O filme nos recorda que a cada passo da nossa formação reencontramos
essa figura de duas faces.
(ORICCCHIO, 2003:74)
132
Seguindo essa linha, o autor também apresenta o que define como “tendência de ordem
geral”, que é nossa relação com a “potência dominante”, a norte-americana. Neste caso, quatro
filmes servem de argumento a sua teoria: Carmen Miranda: banana is my bunisses (1995),
For All: Trampolim para a vitória (1997), Como nascem os anjos (1996) e O que é isso,
companheiro? (1997).
Mas ainda não seriam esses os filmes em que a discussão sobre o eu e o outro é
potencializada. Servem mais de exemplo de nossa relação problemática da admiração sem
limites ao confronto, passando pela inveja e pelo sentimento de inferioridade(ORICCHIO,
2004:58) em relação aos Estados Unidos.
Em todos os filmes citados, destaca-se o papel do narrador. Afinal, a voz que em nosso
caso é de Hans Staden, além de personagem principal, apresenta a narrativa e, por
conseqüência, a sua versão da história em que se encontra:
O narrador tanto pode ser o porta-voz do filme como desenvolver uma voz
independente; tanto pode nos conduzir de acordo com a visão pessoal do diretor como
pode ser um disfarce para o diretor não expressar sua visão sobre as questões colocadas.
(CAETANO, 2005:138)
Podemos, então, de um ponto de vista geral, observar a importância do narrador na
construção do que seria nosso elemento de identificação na película. Ainda sobre a questão do
narrador, não devemos pensar no mesmo como a voz do diretor, até mesmo porque
A visão do filme se articula na voz do personagem, mas essa voz não necessariamente
coincide com a visão do diretor, que pode legitimar o discurso do personagem ou tratá-
lo com um enfoque crítico. O limite entre a legitimação e a crítica é bastante tênue e
problemático e, exatamente por isso, fundamental. (CAETANO, 2005:137)
Contudo, o filme considerado símbolo nessa relação, para Luiz Zanin Oricchio
(2003:74), é a adaptação do romance de Chico Buarque, Estorvo (2000), produção que
representaria um mundo globalizado. Sem entrar em questões sobre qualidade estética,
consideramos inegável a importância desta obra na discussão sobre alteridade na pós-
modernidade, em especial, no cinema brasileiro.
Entretanto, um filme pouco considerado pelos especialistas e críticos entre os que
trazem essa discussão, é justamente Hans Staden, filme no qual a relação é explicitada ao
extremo. Quais motivos levariam a isso? O primeiro é conseqüência da falta de identificação
133
com o nós representado no filme: os índios tupinambás. Ou seja, o brasileiro não se
representado nos índios, que, aliás, são os antagonistas do personagem principal, o europeu.
Por este motivo, nada mais “natural” que considerar o filme fora dessa discussão, pelo simples
fato de não nos vermos representados no outro.
Consideramos de grande perda para o texto de Luis Zanin Oriccchio a ausência do
filme Hans Staden, em especial por não figurar sequer no capítulo dedicado à questão do
outro, afinal, seu texto é uma das principais obras de referência sobre a retomada. Para a
questão sobre o filme não constar no capítulo dedicado a questão do outro, poderia ser alegado
como conseqüência de uma discussão centrada em centro e periferia. Mas a questão aqui
proposta é mais complexa. Não podemos usar a categoria de periferia em Hans Staden, pois
tal categorização não funciona para o modelo de representação da película. Tudo no filme,
inclusive a natureza, opera de forma conspiratória contra o suposto nós, personagem principal
e também narrador da história, e único elemento pelo qual o público nutre simpatia.
Alguns autores acreditam que essa discussão não cabe mais. Nesta ótica, o chamado
“binômio oposicional de sujeito e objeto, eu e outro” (NAGIB, 2006:99), é deixado de lado
por um conceito considerado mais plural, conhecido como perspectivismo. Tal conceito opera
em múltiplas relações entre sujeitos e objetos, que se modificam à medida que as relações
mudam. Contudo, não acreditamos que a relação entre o eu e outro é definitiva. Muito ao
contrário, sua dinâmica é relacionada com o ponto de vista, ou seja, o foco muda o referencial.
Entretanto, tal perspectiva deixa de lado um aspecto importante da discussão, nesse
filme, mais do que em qualquer outro da chamada Retomada, somos os outros, não vemos, ou
pior, não nos importamos, nem nos damos conta de que o filme nos coloca frente à
representação de nossos antepassados. O personagem principal parte de nosso país em busca
da salvação no antigo continente e isso nos alivia. Estamos emocionalmente mais vinculados
ao estrangeiro que aos índios. Nossa relação complicada com identidade, aqui não pensada em
parâmetros de nação, mas no aspecto cultural. A cultura dessa sociedade Tupinambá, nos leva
a considerá-la tão distante de nós quanto qualquer outro povo estrangeiro sem que percebamos
vinculação direta com os mesmos, quando, na verdade, estão na base de nossa formação.
Devemos pensar que
134
O outro deve ser descoberto. Coisa digna de espanto, que o homem nunca está só, e
não seria o que é sem sua dimensão social. E, no entanto, é assim: para a criança que
acaba de nascer, seu mundo é o mundo, e o crescimento é uma aprendizagem da
exterioridade e da sociabilidade; pode-se dizer, um pouco grosseiramente, que a vida
humana está contida entre dois extremos, aquele onde o eu invade o mundo e aquele
onde o mundo acaba absorvendo o eu, na forma de cadáver e cinzas. E, como a
descoberta do outro tem vários graus, desde o outro como objeto, confundido com o
mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente dele, com
infinitas nuanças intermediárias, pode-se muito bem passar a vida toda sem nunca
chegar à descoberta plena do outro (supondo-se que ela possa ser plena). Cada um de
nós deve recomeçá-la, por sua vez; as experiências anteriores não dispensam disso. Mas
podem ensinar quais sãos os efeitos do conhecimento.
(TODOROV, 2003:360)
Como reflexão, devemos lembrar que os outros do filme, constituiram um universo
marcado pelo passado de atrocidades, do qual a maioria dos espectadores não tem plena
consciência e possui uma forte carga ideológica. Nossos antepassados nativos foram timas
de, nas palavras de Todorov (2003:7), um verdadeiro genocídio, e nem nos damos conta disso.
Essa categoria, o outro, em especial neste filme, no qual a representação dos antagonistas do
herói cinematográfico, o estrangeiro Hans Staden, nos coloca frente ao paradoxo da
identificação ao inverso, faz com que não reconheçamos, do ponto de vista ancestral, qualquer
vinculação com os tupinambás, eles são os outros.
135
Considerações Finais
Finalizar um trabalho é sempre apresentar um balanço. O que pretendemos o que
alcançamos e, em muitos casos, quantas questões ainda por responder. Assim, exige, na
maioria das vezes, um exercício de humildade, que mostra a certeza que o conhecimento é
construído coletivamente. A primeira questão diz respeito ao fato de que nosso trabalho não
termina por aqui, gostaríamos de pensar que ele apenas se inicia.
Após a leitura do texto, esperamos que seja possível observar que a divisão do trabalho
em três capítulos está correlacionada com abordagens possíveis de serem realizadas na leitura
fílmica.
Começamos com uma análise do filme, uma leitura de seu diálogo com a cultura
histórica e sua relação com seu equivalente literário. Novamente escolhemos a escala do
micro, em que nos detivemos em um “detalhe” do romance, que é a relação de Hans Staden
com o judaísmo.
Na análise externa do filme, presente no segundo capítulo, procuramos analisar o
contexto em que foi produzida a obra, a corrente da qual faz parte e sua relação com a crítica
especializada. Essa primeira abordagem privilegia as instituições que produzem a obra e sua
relação com o momento em que é produzida.
O terceiro momento é a análise interna da obra. Consideramos que a mesma é possível
de ser realizada após a leitura externa empreendida anteriormente e a discussão sobre cultura
histórica, constante no primeiro capítulo. Para tanto, escolhemos fazer algo que pode ser
considerado polêmico, dividir o filme. Não é preciso ir muito longe para observar que não
faltam teóricos para criticar o recorte, no qual o filme compartimentado seria outra obra: nosso
intuito, entretanto, foi compreender que, mais do que descaracterizar, permite entender
especificidades impossíveis de serem percebidas numa leitura totalizante. Além disso,
permite-nos utilizar o filme em sala de aula, em especial, pelo fato de que raramente os
professores de ensino médio dispõem de mais de duas horas para poder assistir e discutir o
filme com a turma. Por fim, discutimos a questão da alteridade, levada aos extremos nessa
obra.
136
Esses três momentos de nossa abordagem m como especial objetivo auxiliar o
professor que deseje trabalhar com o filme, na tentativa de redução das tensões que muitas
vezes envolvem o conhecimento histórico na sala de aula, parecido com um campo de batalha
geralmente formado, infelizmente, de um lado por professores com posturas tradicionais e do
outro, alunos desinteressados.
Sempre tivemos como um dos nossos objetos de preocupação “competir” com o fetiche
das imagens em movimento que falam das agruras, por exemplo, do rei Henrique VIII com
tanto calor, em oposição àquela monocórdia exposição oral, invariavelmente cessada por
constantes pedidos de silêncio nos primeiros níveis, e no ensino superior, pela triste
constatação dos raros alunos que têm o trabalho de ler o texto escolhido para a aula, mas que,
em sua maioria, assistiram no cinema ao triste desfecho de Ana Bolena.
Descobrimos, a duras penas, diga-se de passagem, que não existem receitas para
garantir o interesse dos alunos, mas que as imagens em movimento, definitivamente, não
devem ser consideradas rivais. Todavia, um filme em sala de aula sem a devida
contextualização pode ser contraproducente e engrossar o rol de estratégias que isentam o
docente da essência de seu trabalho. quando utilizado em conjunto com os textos e as
discussões acerca da representação histórica, o processo de compreensão pode alcançar os
objetivos inerentes à reflexão histórica de forma agradável e produtiva para todos.
No entanto, ainda é necessária a mudança de certas práticas que, em parte, explique
nossa relação com os suportes audiovisuais. Mesmo que a cada dia aumente a produção de
textos relativos ao uso do cinema em sala de aula, o que encontramos, na prática, são filmes
colocados nos mais diversos contextos, como quando um professor falta ou mesmo no caso de
não querer “dar aula”.
O principal problema dessa postura é que separa ainda mais esse tipo de suporte da
aula, causando, paradoxalmente, a sensação de que aula é trabalho e filme é lazer, ou seja,
reduzindo a possibilidade de sua articulação com o conhecimento e o debate das idéias. Dessa
forma, o professor perde um grande aliado, e eis aqui a grande questão. O filme é um texto,
seu conteúdo, o diálogo que estabelece com outros textos, a versão histórica que ele legitima,
devem servir para suscitar questões sobre ele próprio e sobre o conhecimento histórico . Ele
137
existe em sala de aula para ser problematizado e discutido e nunca como um fim em si, assim
como a música, fotografia e quadrinhos e outros.
Esses problemas estão presentes em todos os níveis escolares, inclusive na própria
academia. Estamos habituados, ao menos os que trabalham de maneira mais séria, a solicitar
uma ficha de leitura da obra. Contudo, as fichas são as mesmas anos a fio. As discussões
que perpassam um filme ambientado na antiguidade clássica, por exemplo, em nada
interessam ou funcionam para medieval, assim, é necessário ultrapassar as questões
generalizantes, trabalhando as especificidades de cada narrativa fílmica.
O mais importante é o espaço sempre aberto para o diálogo, o instigar das leituras
alheias, o apurar da visão e da escrita dessas fontes, possibilitando a descoberta e seu
compartilhamento. Quando não é assim, seu uso torna-se estéril, na medida em que não
engendram o debate. Recorremos, pois, a Certeau, em afirmação a propósito da necessidade
dialógica nas salas de aula:
Por conseguinte, se o escutam (mas não o ouvem), é porque ele é inevitável e
necessário, como guardião da porta do exame e de tudo que se acha atrás dela. Mas,
coagidos a se submeterem às suas condições, seus ouvintes sabem também da
inutilidade de uma discussão com ele. Em muitas universidades, constata-se, com
efeito, que os estudantes parecem desistir de falar. Seu silêncio espalha-se. Para que
falar se não nos ouvimos mais?
(CERTEAU, 1995:114)
Nesse sentido, a história cultural, com sua ampliação dos objetos e das abordagens,
torna-se de suma importância para o historiador. Tornando-se mais que um modismo, e sim,
uma possibilidade de interpretação de uma sociedade cada vez mais pluralizada.
Merece destaque, nessa nova abordagem da história cultural, a noção de cultura
histórica. Tal abordagem consagra a existência de outros produtores de saber sobre o passado
e considera em seus pressupostos que os mesmos constroem e ressignificam o passado: no
caso do cinema, por exemplo, com um poder de difusão maior do que é de qualquer trabalho
historiográfico, e também por esse motivo, não deve passar desapercebido do crivo do
historiador, que agora não é mais uma espécie de guardião do passado, mas um produtor
qualificado de versões/visões da história, produzidas no âmbito das culturas históricas por seus
diversos agentes culturais.
138
Trabalhar com imagens não é apenas tornar o conteúdo mais agradável, mas tornar as
pessoas mais críticas em relação às mesmas. Especialmente nas sociedades contemporâneas,
cujas novas gerações são, em grande medida, influenciadas pelas imagens produzidas nos mais
diversos suportes, sendo o cinema um dos mais antigos e importantes.
Por fim, gostaríamos de dizer que se essa dissertação servir de estímulo para que
alguém mais talentoso e competente produzir o que nossas limitações não permitiram, o
verdadeiro objetivo do trabalho terá sido mais que realizado.
139
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144
ANEXOS
ANEXOSANEXOS
ANEXOS
145
Ficha Técnica do filme Hans Staden
Elenco
Hans Staden Carlos Évelyn
Nairá Ariana Messias
Ipirí Guaçu Darci Figueiredo
Nhaepepó-oaçu Beto Simas
Alkindar-miri Milton de Almeida
Guaratinga-açu Reynaldo Puebla
Japi-açu Valdir Ramos
Paraguá Jefferson Primo
Joacy Carol Li
Abati-poçanga Walter Portela
Jacó Sérgio Mamberti
Pajé Stênio Garcia
Marabá Cláudia Liz
Perot Antonio Peyri
Cacique com Perot Daniel Munduruku
Cunhambebe Macsuara Kadiwel
Maracajá condenado Valdir Raimundo
Matador do Maracajá Jurandir Siridwê
Índias da saudação lacrimosa Fátima Ribeiro
Tânia Freire
Luiza de Albuquerque
Sônia Ribeiro
Lena Sá
Índios que vigiam Staden Mateus Lopes
Antonio Auá
Caruatá-uára Alfredo Penteado
Escravo em fuga Alfredo Maia
Índias Velhas Tereza Convá
Maria de Oliveira
Olga da Silva
146
Francês com Jacó Dizoneth Santos
Mulher de Abati-poçanga Cintia Grillo
Índia da ibirapema Hissa de Urkiola
Índia no ritual Cláudia Apóstolo
Mágico Ênio Benito
Caciques com Cunhambebe Roman Bolívia
Francisco Kokotch
Juan Cusicanqui
Sebastião Werá
Portugês Diogo Francisco Di Franco
Português Domingos Pedro Paulo Eva
Português de armadura Bartholomeu de Haro
Portugueses que enforcam Olair Coan
Pedro Homem de Melo
Guará-miri Celso Nascimento
Irmão de Nhaêpepó-oaçu Carlos Paixão
mãe de Nhaêpepó-oaçu Maria Contessoto
filha de Nhaêpepó-oaçu Andressa de Lima
filhos de Nhaêpepó-oaçu Daniel Zara
Josué Gulli
Índios da captura Júlio Guimarães
Adriano da Silva
Índio com a Ibirapema Karai Mirim
Índios da aldeia de Ubatuba Zilá de Oliveira
Marinete Conceição
Donizetti da Silva
Luca Martins
Andréa Conceição
Anne Duarte
Índios do ritual Séfora Mourão
Adriana Thomaz
Noelli de Abreu
Andreá Azevedo
Orlando Alves
Srillis Mourão
Cibele de Andrade
Daniel de Oliveira
Sandra do Amaral
Damião Celestino
Índias bebem no pote Elecktra Mourão
Cintia Fabiana
147
Jhully Raizer
Geraldina Mourão
Índios com Abati-poçanga Patrícia Contessoto
Yanay Mourão
Aline dos Santos
Cristiano da Silva
Luiz Guilherme
Raziel Cerqueira
Crianças das aldeias Janaína dos Reis
Ariane Damásio
Iendi de Almeida
Ian de Almeida
Renato Gulli
Rafael de Lima
Márcio de Oliveira
Iago da Silva
Arthur Mourão
Isaac Duarte
Tiago dos Santos
Índios Guaranis
da Aldeia Boavista Mário
Vitor
Abílio
Euzébio
Luiz
Nelson
Pedro
Fabiano
Marcos
Elenco de Portugal
Capitão da Caravela Mário Jacques
Remador do Bote Adelino Neves
Figuração da Caravela A tripulação
Equipe
Roteiro, produção & direção Luiz Alberto Pereira
Diretor de produção e
locações Ivan Teixeira
Casting Walderez Cardoso
148
Figurino / adereços /
acessórios Cleide Fayad
Maquiagem Sonia Regina da Silva
Maquiagem / efeitos e cabelos
Uirandê de Hollanda
Versão para Tupi Eduardo Navarro
Helder Ferreira
Canto e Dança indígena Marluí Miranda
Preparação de Atores Fátima Toledo
Direção de Arte Chico de Andrade
Cenografia
Zeca
Nolf
Clíssia Morais
Produção de Arte Clíssia Morais
Som direto
Jorge
Vaz
Microfonista Cláudio Bráz
Direção de Fotografia
Uli
Burtin
Assistente de Câmera Cristiano Conceição
2º Assistente de Câmera Fábio Burtin
Vídeo Assist Edvaldo Sales
Eletricista Chefe Adalberto Baduin
Eletricista Jorge de Alexandria
Chefe Maquinista João Carlos Reis
Maquinista Joelmo Reis (Reisinho)
Construção da Aldeia Seu França Libório
Ezequias Libório
Fotografia de cena Selene Lanzoni
Criação dos Créditos Chico, Clíssia & Lap
Informatização do Projeto Tereza Landgraf
Assistente de direção Juarez Mallavazzi
Música Marluí Miranda
Lelo Nazário
Tema Musical
Índios Tupari de
Rondônia
Antonio Tupari
Francisco Tupari
Anísio Aruá
Participação musical João Cuca - Oboé
Teco Cardoso - Flauta
Lelo Nazário - Teclados
Grupo vocal Vrap !
Preparadora Vocal Maru Ohtami
149
Integrantes do Coral André Ramos
Cecília do Val
Denise Matta
Guga Villas Bôas
Luiz Gayotto
Renato Nunes
René Misumi
Silas Oliveira
Montagem Verônica Kovensky
Assistente de Montagem Mayalu de Oliveira
Estagiário de Montagem Taiam Ebert
Produção Executiva
na pré e na filmagem Luiz Alberto Pereira
Produção Executiva
na preparação João de Bártolo
Secretaria de Produção
na pré e filmagem em SP Paulo Márcio Galvão
Em Ubatuba Isabela Vassão
Secretaria de Produção
na preparação Patrícia Zerbinato
Stella Alves
Daniela Pinheiro
Atália Rachel
Joane de Araújo
Ajudantes de Elétrica Timóteo Libório
Moisés dos Santos
Projeto Elétrico da Aldeia Engenheiro Edson Bettin
Eletrificação da Aldeia Francisco Messias e
Cristiano Briet
Produção de Casting Maria Júlia Bomilcar
Assistente de Casting Cláudia Gonzaga
Assistente de Produção Daniela Machado
Estagiário de Produção Marcus Levy
Produção de Set José Roberto Ferreira
Marcelo Pelluci
Cenotécnicos Ezequias Libório
Clair Alves
Assistente na produção
de arte David Parizolli
contra-regra Arnaldo Zidan
150
Assistente de figurino Paulo Baboni
Assiste
nte de figurino e
costureira Cleide Mezzacapa
Assistente de preparação
do elenco Daniela Thanus
Estagiário de maquiagem Jorge Lucas
Efeitos especiais e mock-ups Paulo Prado
Consultor de adereços
indígenas Rubens de Àvila
Paisagismo da aldeia Elias Santos
Confecção de objetos em
Ubatuba Valdecy Gonzaga
Vinturante de Assunção
Marciano Assunção
Manoel Assunção
Domingo dos Santos
Carlos Cassiano
Transporte do filme
Caminhão Baú José Carlos
Kombis Juvenil Cardoso
Maurício Domingues
Van Anamaria Morales
Mini van Sr. Leal
Alimentação Ismael Kilo
Suzana
Office Boys Júnior e Romeu
Vigias na aldeia Claudinei Alves
André Santos
Zecão
Rachel Libório
Aderecistas Adriano Correa
Cida Coelho
Gracita
Lúcia
Ajudantes de cenografia Izildinha Libório
Waldeci Mudinho
Claudinei Alves
Altino Alexandre
Lucimar Pacífico
Artesãos Marly Meyer
Paulo Baboni
Jânia Magalhães e Milton
151
Joana Teixeira
Joana Rodrigues
Estagiários Andréa Martinez
Lílian Parodi
Equipe de Portugal
Produção Executiva Jorge Neves
Direção de produção Henrique Espírito Santo
Line Producer Suzana Canelas
Assistentes de Produção Luís Campos
Analice Campos
Sandra Fanha
Assessoria de Imprensa Felipa Patusco
Secretária de produção
no Brasil Cláudia Buschel
Aderecista Thelma Jerusalém
Assistente de Câmera Yana Ferreira
2ª Assistente de Câmera Rita Palma
Eletricista Chefe Helder Mendes
Eletricista Pedro Curto
Maquinista chefe Vitó
Maquinista Paulo Miguel
Fotografia de cena Ivo Canelas
Microfonista Antônio Pedro (Copi)
Motoristas Gilberto Martelo
Manuel Almeida
Making off Roger Paleja
Sonia Llera
Assistente de decoração Maria Simões
Incentivo das Empresas
Recursos da lei 8685/93
Lei do Audiovisual
No
ssa Caixa Nosso Banco
S/A
Sci Equifax Ltda.
Krupp - Metalúrgica Campo Limpo Ltda.
Cia. Paulista de Força e Luz
Bndes Participações S/A
-
Bndespar
Mercocítrico Fermentações
152
S/A
Bba Creditanstalt Cia. De Cred. Fin. E
Inv.
Het Promotora de Vendas S/A
Tortuga
-
Cia. Zootécnica
Agrária
Imprensa Oficial do Estado
S/A
Eletropaulo - Eletric. De São Paulo S/A
Porto Freire - Engenharia e Incorp. Ltda.
Indusval S/A
-
Cor. De Til. E
Val. Mob.
Eurosul Com. Imp. E Exp.
Ltda
Banespa S/A
Colocação e coordenação
Sagres Dtvm Ltda.
Responsável:
Vitor Rogério M. Ferreira
Captação de Recursos
Sagres Dtvm
Luís Alberto Pereira
Carlos Cochrane Rao
Apoio Institucional da Prefeitura
do Município de São Paulo-Lei 10.923/90
Incentivo da Empresa
Merit Comunicações
Apoio Cultural do
Maré Hotel de Ubatuba
Apoio Cultural
Prefeitura Municipal de Ubatuba
Prefeito Luiz Euclides
Vigneron
Ex-prefeito Paulo Ramos
Hotel Recanto das Toninhas
Hotel Solazer
Fundação de Arte e Cultura
de Ubatuba-FUNDART
153
Presidente Eliana Inglese
Ass. Cultural Olívia de Carle
Design Gráfico Jorge Basso
Funcionários:
Roberta Nosé
Cristiane da Silva
Antonio Neto
Paulo de Mattos
José Briet
Antonio Candido
Lúcia Meyer
Maria Lúcia C. Mello
Comtur de Ubatuba
Jurandiau Lovizaro
Cesp Ubatuba
Engo. Antonio Barella
Megaestúdio
Posto Ultiyama /Ubatuba
Associação Comercial de
Ubatuba
Presidente Carlos Gomes
Costamar Transportes Ltda.
Sr. José Lúcio
Bayer do Brasil S. A.
Tianá Locadora de Veículos
João Oscarlino Maniglia
Agradecimentos especiais
Té e Diana
Augusto Sevá
Paulo Penna-Maré Hotel
Rubens Ewald
Plácido de Campos
Maria Inês Ladeira
Paulo Marcio Galvão
Agradecimentos no Brasil
Família Tozaki
Harume, Haru, Sueli e Akiwo
Bruno Pardini
Jurandir Siridwê
154
André Gatti
Prof. Valdemar Ferreira - Usp
Jorge Durigan
Dieter Bohnke
John Gottheiner
José Maria de Campos
Carlos Egashira
Marico Ultiyama
Ministro da Cultura
Francisco Welfort
Ex-Secretário do Audiovisual
Moacir de Oliveira
Coordenação Geral / Sdav
Sérgio Assunção
José Francisco
Coordenadora / Sdav
Fátima Martins
Moviecenter
Ernesto Scatena
HBO do Brasil
-
Fernando
Cardoso
César Noronha
Caio Pardini
Secretário da Cultura do
Município
de São Paulo
-
Marcos
Mendonça
TV Cultura
-
Ivan Isola e
Cunha Lima
Antonio Carlops M. Oliveira
Câmara Municipal de Ubatuba
Eunápio Ramos
João Roman Neto
Quirino
Casemiro Galvão
Alberto Guimarães Pereira
155
Ficha dos filmes citados:
Terra Estrangeira
(Terra Estrangeira, Brasil, Portugal, 1995)
Gênero: Drama
Duração: 100 min.
Tipo: Longa-metragem / P&B/Cor
Produtora(s): VideoFilmes
Diretor(es): Walter Salles, Daniela Thomas
Roteirista(s): Marcos Bernstein, Millor Fernandes, Walter Salles, Daniela Thomas
Elenco: Fernando Alves Pinto, Alexandre Borges, Laura Cardoso, Tchéky Karyo, João Lagarto, Carla
Lupi, Luís Melo, Ângelo Torres, Fernanda Torres
Cidade de Deus
(Cidade de Deus, Brasil, França, 2002)
Títulos Alternativos: City of God / La Cité de Dieu / God's Town
Gênero: Crime, Drama
Duração: 130 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Palavras-Chaves: Bem contra com mal, Violência urbana, Múltiplas histórias, mais...
Distribuidora(s): Imagem Filmes
Produtora(s): O2 Filmes, VideoFilmes, Globo Filmes, Lereby Produções, Lumiere Productions, Studio
Canal, Wild Bunch
Diretor(es): Fernando Meirelles, Kátia Lund
Roteirista(s): Paulo Lins, Bráulio Mantovani
Elenco: Alexandre Rodrigues (2), Leandro Firmino da Hora¹, Phellipe Haagensen, Douglas Silva,
Jonathan Haagensen, Matheus Nachtergaele, Seu Jorge, Jefechander Suplino, Alice Braga, Emerson
Gomes, Edson Oliveira, Michel De Souza Gomes¹, Roberta Rodrigues, Luis Otávio (1), Maurício
Marques
Tropa de Elite
(Tropa de Elite, Brasil, 2007)
Gênero: Ação, Crime, Drama
Duração: 115 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Palavras-Chaves: Relacionamento inter-racial, Crítica social, Universidade, mais...
156
Distribuidora(s): Universal Pictures do Brasil, The Weinstein Company
Produtora(s): Zazen Produções, Posto 9, Feijão Filmes, The Weinstein Company, Estúdios Mega,
Quanta Centro de Produções Cinematográficas, Universal Pictures do Brasil, Costa Films
Diretor(es): José Padilha
Roteirista(s): André Batista, Bráulio Mantovani, José Padilha, Rodrigo Pimentel, Rodrigo Pimentel,
Luiz Eduardo Soares (2)
Elenco: Wagner Moura, Caio Junqueira, André Ramiro, Maria Ribeiro (2), Fernanda Machado,
Fernanda de Freitas, Paulo Vilela, Milhem Cortaz, Marcelo Valle, Fábio Lago, Luiz Gonzaga de
Almeida, Bruno Delia, Marcelo Escorel, André Mauro¹, Thelmo Fernandes
Pixote - A Lei do Mais Fraco
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 127 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 1981
Estúdio: Embrafilme / HB Films
Distribuição: Embrafilme
Direção: Hector Babenco
Roteiro: Hector Babenco e Jorge Durán, baseado em livro de José Louzeiro
Produção: Paulo Francini e José Pinto
Música: John Neschling
Fotografia: Rodolfo Sanchez
Direção de Arte: Clóvis Bueno
Figurino: Carminha Guarana
Edição: Luiz Elias
Elenco: Fernando Ramos da Silva (Pixote), Marília Pera (Sueli), Jorge Julião (Lilica), Gilberto Moura
(Dito), Edílson Lino (Chico), Zenildo Oliveira Santos (Fumaça), Cláudio Bernardo (Garatão), Israel
Feres David (Roberto Pie de Plata), José Nílson Martins dos Santos (Diego), Jardel Filho (Sapatos
Brancos), Rubens de Falco (Juiz), Elke Maravilha (Débora), Tony Tornado (Cristal), Beatriz Segall
(Viúva) e Ariclê Perez (Professora)
Carlota Joaquina - Princesa do Brazil
(Carlota Joaquina - Princesa do Brazil, Brasil, 1995)
Gênero: Comédia
Duração: 100 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Distribuidora(s): Europa Filmes
Produtora(s): Elimar Produções Artísticas
Diretor(es): Carla Camurati
Roteirista(s): Carla Camurati, Melanie Dimantas, Angus Mitchell
Elenco: Marieta Severo, Antonio Abujamra, Thales Pan Chacon, Ludmila Dayer, Maria Fernanda,
Eliana Fonseca, Beth Goulart, Brent Hieatt, Chris Hieatt, Vera Holtz, Bel Kutner, Ney Latorraca, Aldo
Leite, Marco Nanini
O descobrimento do Brasil
(O descobrimento do Brasil, Brasil, 1937)
Gênero: Aventura
Diretor: Humberto Mauro
Roteiro: Bandeira Duarte (dialógos) e Humberto Mauro (roteiro)
157
Elenco: Alvaro Costa (Pedro Álvares Cabral), Manoel Rocha (Pero Vaz Caminha), Alfredo Silva
(Henrique de Coimbra), De Los Rios (Duarte Pacheco), Armando Duval (Nicolau
Coelho/Bartolomeu Dias), Reginaldo Calmon (Aracati), João de Deus (Ayres Correa), João
Silva (Artur Castro), J. Silveira (Alfredo Cunha), Arthur Oliveira (Pedro Escobar),Humberto Mauro e
João Mauro
Anchieta - José do Brasil
(Anchieta - José do Brasil, Brasil, 1977)
Gênero: Drama
Duração: 150 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Distribuidora(s): Warner Bros., Embrafilme
Produtora(s): Embrafilme
Diretor(es): Paulo Cesar Saraceni
Roteirista(s): Marcos Konder Reis, Paulo Cesar Saraceni
Elenco: Ney Latorraca, Luiz Linhares, Maurício do Valle, Joel Barcellos, Hugo Carvana, Maria
Gladys, Vera Barreto Leite, Paulo César Peréio, Ana Maria Magalhães, Roberto Bonfim, Dedé Veloso,
Manfredo Colassanti, Carlos Kroeber, Wilson Grey
Independência ou Morte
(Independência ou Morte, Brasil, 1972)
Gênero: Drama
Duração: 108 min.
Distribuidora(s): Vídeo Arte
Produtora(s): Cinedistri
Diretor(es): Carlos Coimbra
Roteirista(s): Dionísio Azevedo, Carlos Coimbra, Anselmo Duarte, Lauro César Muniz, Abilio Pereira
de Almeida
Elenco: Tarcísio Meira, Glória Menezes, Dionísio Azevedo, Kate Hansen, Emiliano Queiroz, Manoel
da Nóbrega, Heloísa Helena, Renato Restier, Anselmo Duarte, Jairo Arco e Flexa, Abilio Pereira de
Almeida, Maria Cláudia (2), Vanja Orico, Francisco Di Franco
Xica da Silva
(Xica da Silva, Brasil, 1976)
Gênero: Comédia
Duração: 107 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Distribuidora(s): Sagres
Produtora(s): Embrafilme, Terra Filmes
Diretor(es): Carlos Diegues
Roteirista(s): Antonio Callado, Carlos Diegues, João Felicio dos Santos
Elenco: Zezé Motta, Walmor Chagas, Altair Lima, Elke Maravilha, Stepan Nercessian, Rodolfo Arena,
José Wilker, Marcus Vinícius, João Felicio dos Santos, Dara Kocy, Adalberto Silva, Julio Mackenzie,
Beto Leão, Luis Motta
Os Inconfidentes
(Os Inconfidentes, Brasil, 1972)
Gênero: Drama
Duração: 100 min.
158
Distribuidora(s): Sagres
Diretor(es): Joaquim Pedro de Andrade
Elenco: José Wilker, Luis Linhares, Paulo César Peréio, Fernando Torres, Carlos Kroeber, Wilson
Grey
Quanto Vale ou é por Quilo?
(Quanto Vale ou é Por Quilo?, Brasil, 2005)
Gênero: Drama
Duração: 110 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Distribuidora(s): Riofilme
Produtora(s): Agravo Produções Cinematográficas
Diretor(es): Sergio Bianchi
Roteirista(s): Sabrina Anzuapegui, Eduardo Benain, Sergio Bianchi, Nilton Canito, Nireu Cavalcanti,
Iná Camargo Costa, Machado de Assis
Elenco: Antonio Abujamra, Caio Blat, Herson Capri, Ana Carbatti, Marcélia Cartaxo, Clara Carvalho,
Leona Cavalli, José Rubens Chachá, Caco Ciocler, Joana Fomm, Ênio Gonçalves, Silvio Guindane,
Umberto Magnani, Noemi Marinho.
Desmundo
(Desmundo, Brasil, 2003)
Gênero: Drama
Duração: 101 min.
Distribuidora(s): Columbia Pictures
Produtora(s): A.F. Cinema e Vídeo
Diretor(es): Alain Fresnot
Roteirista(s): Sabina Anzuategui, Anna Muylaert, Ana Miranda, Fernando Bonassi, Jean-Claude
Bernardet, Luiz Alberto de Abreu
Elenco: Simone Spoladore, Osmar Prado, Caco Ciocler, Berta Zemel, Beatriz Segall, José Eduardo (1),
Cacá Rosset, Arrigo Barnabé
Brava Gente Brasileira
(Brava Gente Brasileira, Brasil, Portugal, 2000)
Gênero: Drama
Duração: 104 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Distribuidora(s): Europa Filmes, Filmark
Produtora(s): BigDeni Filmes, Costa do Castelo Filmes, Quanta Centro de Produções
Cinematográficas, Skylight Cinema Foto Art Ltda., Taiga Filmes
Diretor(es): Lúcia Murat
Roteirista(s): Lúcia Murat
Elenco: Diogo Infante, Floriano Peixoto, Luciana Rigueira, Leonardo Villar, Buza Ferraz, Murilo
Grossi, Sérgio Mamberti, Adeílson Silva, Hilário Silva, Vanessa Marcelino, Sandra Silva, William
Soares, Vânia Matchua Leite, Edna Marcelino, Alvanir Matchua
Cidadão Kane
(Citizen Kane, EUA, 1941)
Títulos Alternativos: American / John Citizen, U.S.A.
159
Gênero: Drama, Mistério
Duração: 119 min.
Tipo: Longa-metragem / P&B
Distribuidora(s): Warner Bros.
Produtora(s): Mercury Productions Inc., RKO Radio Pictures
Diretor(es): Orson Welles
Roteirista(s): Herman J. Mankiewicz, Orson Welles
Elenco: Joseph Cotten (1), Dorothy Comingore, Agnes Moorehead, Ruth Warrick, Ray Collins (1),
Erskine Sanford, Everett Sloane, William Alland, Paul Stewart (1), George Coulouris, Fortunio
Bonanova, Gus Schilling, Philip Van Zandt, Georgia Backus, Harry Shannon
Psicose
(Psycho, EUA, 1960)
Títulos Alternativos: Wimpy
Gênero: Suspense
Duração: 109 min.
Tipo: Longa-metragem / P&B
Distribuidora(s): CIC, Universal Pictures do Brasil
Produtora(s): Shamley Productions
Diretor(es): Alfred Hitchcock
Roteirista(s): Robert Bloch, Joseph Stefano
Elenco: Anthony Perkins, Janet Leigh, Vera Miles, John Gavin, Martin Balsam, John McIntire, Simon
Oakland, Vaughn Taylor, Frank Albertson, Lurene Tuttle, Pat Hitchcock, John Anderson, Mort Mills,
Fletcher Allen, Prudence Beers
O Poderoso Chefão
(The Godfather, EUA, 1972)
Gênero: Crime, Drama
Duração: 175 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Distribuidora(s): Paramount Pictures do Brasil
Produtora(s): Paramount Pictures, Paramount Pictures do Brasil
Diretor(es): Francis Ford Coppola
Roteirista(s): Mario Puzo, Mario Puzo, Francis Ford Coppola
Elenco: Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Richard Castellano, Robert Duvall, Sterling Hayden,
John Marley, Richard Conte, Al Lettieri, Diane Keaton, Abe Vigoda, Talia Shire, Gianni Russo, John
Cazale, Rudy Bond
O efeito ilha
(O efeito ilha, Brasil, 1994)
diretor: Luís Alberto Pereira
Roteiro: Luís Alberto Pereira
Gênero: Comédia
Elenco: Elias Andreato (Jean), Antonio Calloni (Armando Torreds), José Rubens Chachá (Otávio),
Lígia Cortez (Fátima) Ângela Dip (Gina), Tuna Dwek (Tradutora), Jandir Ferrari (Paulo), Eliana
Fonseca (Coffee woman), Denise Fraga (Flávia Chip), Letícia Imbassahy (Emília), Luís Alberto
Pereira (João William)
Banana is my bussiness
160
(Banana is my business, EUA e Brasil, 1995)
Direção e Roteiro: Helena Solberg
Gênero: Documentário
For all: Trampolim para a vitória
Diretor(es): Buza Ferraz / Luiz Carlos Lacerda
Roteiro: Joaquim Assis e Buza Ferraz
Gênero: Comêdia
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Elenco: Betty Faria (Lindalva), José Wilker (Giancarlo), Paulo Gorgulho (João Marreco), Caio
Junqueira (Miguel), Erik Svane (Sgt. Frank Donovan), Alexandre Lippiani (Gilmar), Luiz Carlos
Tourinho (Sandoval), Flávia Bonato (Iracema), Daniela Duarte (Jucilene)
Como Nascem os Anjos
(Como Nascem os Anjos, Brasil, 1996)
Gênero: Drama
Duração: 100 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Palavras-Chaves: Criança, Crime, Favela, mais...
Distribuidora(s): Europa Filmes
Produtora(s): Empório de Cinema, Riofilme, Secretaria do Audiovisual/MINC, Prefeitura Municipal da
Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, BANESPA, Quanta Centro de Produções
Cinematográficas, Imagine Cinema Ltda., Tatu Filmes Ltda.
Diretor(es): Murilo Salles
Roteirista(s): Jorge Durán, Nelson Nadotti, Murilo Salles, Aguinaldo Silva
Elenco: Priscila Assum, Silvio Guindane, Larry Pine, Ryan Massey, André Mattos, Antônio Grassi,
Enrique Díaz, Maria Adélia, Enoc Albino, Fernando Almeida, Lyvia Archer, Fernando Baltazar,
Vicente Barcellos, Maurício Bello, Marina Beltrão
O Que é Isso Companheiro?
(O Que É Isso, Companheiro?, Brasil, EUA, 1997)
Gênero: Drama
Duração: 110 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Distribuidora(s): Columbia Tristar Pictures
Produtora(s): Columbia Pictures Television Trading Company, Filmes do Equador, LC Barreto
Produções Cinematográficas, Pandora Filmes, Quanta Centro de Produções Cinematográficas, Sony
Corporation of America
Diretor(es): Bruno Barreto
Roteirista(s): Fernando Gabeira, Leopoldo Serran
Elenco: Alan Arkin, Fernanda Torres, Pedro Cardoso, Luiz Fernando Guimarães, Cláudia Abreu,
Nelson Dantas, Matheus Nachtergaele, Marco Ricca, Maurício Gonçalves, Caio Junqueira, Selton
Mello, Eduardo Moscovis, Caroline Kava, Fisher Stevens, Fernanda Montenegro
Estorvo
(Estorvo, Brasil, Cuba, Portugal, 2000)
Títulos Alternativos: Turbulence
Gênero: Drama
161
Duração: 95 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Palavras-Chaves: Baseado em romance, mais...
Distribuidora(s): Europa Filmes
Produtora(s): D&D Audiovisuais, Instituto Cubano del Arte e Industrias Cinematográficos, Skylight
Cinema Foto Art Ltda.
Diretor(es): Ruy Guerra
Roteirista(s): Chico Buarque, Ruy Guerra
Elenco: Jorge Perugorría, Bianca Byington, Suzana Ribeiro, Leonor Arocha, Xando Graça, Athayde
Arcoverde, Candido Damm, José Antônio Rodriguez (1), Dandara Ohana Guerra, Tonico Oliveira
Como Era Gostoso o Meu Francês
(Como Era Gostoso o Meu Francês, Brasil, 1971)
Gênero: Drama
Duração: 84 min.
Distribuidora(s): Sagres, Riofilme
Produtora(s): Condor Filmes, LC Barreto Produções Cinematográficas
Diretor(es): Nelson Pereira dos Santos
Roteirista(s): Humberto Mauro, Nelson Pereira dos Santos
Elenco: Gabriel Araújo, Gabriel Archanjo, Ana Batista, João Amaro Batista, Arduíno Colassanti,
Manfredo Colassanti, Hélio Fernando, Eduardo Imbassahy Filho, José Kléber, Luiz Carlos Lacerda,
Maria de Souza Lima, Ana Maria Magalhães, Wilson Manlio, Ana María Miranda
Macunaíma
(Macunaíma, Brasil, 1969)
Gênero: Comédia
Duração: 110 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Palavras-Chaves: Humor absurdo, Elitismo, Absurdo, mais...
Distribuidora(s): Globo Vídeo
Produtora(s): Condor Filmes, Filmes do Serro, Grupo Filmes, Instituto Nacional de CinemaDiretor(es):
Joaquim Pedro de Andrade
Roteirista(s): Joaquim Pedro de Andrade, Mário de Andrade
Elenco: Grande Otelo, Paulo José, Jardel Filho, Dina Sfat, Milton Gonçalves, Rodolfo Arena, Joana
Fomm, Wilza Carla, Hugo Carvana, Leovegildo Cordeiro, Maria Lúcia Dahl, Rafael de Carvalho, Tite
de Lemos, Maria Do Rosario, Maria Letícia
It Happened Here
(It Happened Here, Reino Unido, 1965)
Gênero: Drama, Guerra
Duração: 93 min.
Tipo: Longa-metragem / Preto e Branco
Palavras-Chaves: Nazi, História Alternativa, Parte animado, Cinema independente
Distribuidora(s): Fotos Lopert Corporation, Image Entertainment, Milestone Film & Video, United
Artists Films
Produtora(s): Rath Films
Diretor(es): Kevin Brownlow
Roteirista(s): Kevin Brownlow, Andrew Mollo
162
Elenco: Pauline Murray, Sebastian Shaw, Bart Allison, Reginald Marsh, Frank Bennett, Derek
Milburn, Nicolette Bernard, Nicholas Moore, Rex Collett, Michael Passmore, Peter Dineley, Barrie
Pattison, Honor Fearson, Ronald Philips, Frank Gardner
Winstaley
(Winstaley, Reino Unido, 1975)
Gênero: Drama
Duração: 95 min.
Tipo: Longa-metragem / Preto e Branco
Palavras-Chaves: Nazi, História Alternativa, Parte animado, Cinema independente
Produtora(s): BFI Production
Diretor(es): Kevin Brownlow
Roteirista(s): Kevin Brownlow, David Caute
Elenco: Miles Halliwell, Jerome Willis, Terry Higgins, Phil Oliver, David Bramley, Alison Halliwell,
Dawson França, Bill Petch, Barry Shaw, Sid Rawle, George Hawkins, Stanley Reed, Philip Stearns,
Flora Skrine
163
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central - Campus I
Universidade Federal da Paraíba
L732q LIMA, Carlos Adriano Ferreira de.
Quando nós somos os outros: Hans Staden e a cultura
histórica / Carlos Adriano Ferreira de Lima. – João Pessoa, 2008.
162 p.
Orientadora: Regina Maria Rodrigues Behar
Dissertação (mestrado) – UFPB/ CCHLA
1. Historiografia. 2. Cinema brasileiro. -
crítica e interpretação. 3. Hans Staden (filme) –
crítica e interpretação. 4. Cultura Histórica.
UFPB\BC CDU: 930.2 (043)
Livros Grátis
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