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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
GLACI TERESINHA BRAGA DA SILVA
A MATERIALIZAÇÃO DA NAÇÃO ATRAVÉS DO PATRIMÔNIO: O
PAPEL DO SPHAN NO REGIME ESTADONOVISTA
PORTO ALEGRE
2010
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GLACI TERESINHA BRAGA DA SILVA
A MATERIALIZAÇÃO DA NAÇÃO ATRAVÉS DO PATRIMÔNIO: O
PAPEL DO SPHAN NO REGIME ESTADONOVISTA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
como requisito para obtenção do grau de Mestre
em História.
Orientador: Prof. Dr. Luciano Aronne de Abreu
PORTO ALEGRE
2010
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
S586m Silva, Glaci Teresinha Braga da
A materialização da nação através do patrimônio: o
papel do SPHAN no regime estadonovista. / Glaci
Teresinha Braga da Silva. – Porto Alegre, 2010.
138 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de
de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Orientação: Prof. Dr. Luciano Aronne de Abreu.
1. História. 2. Brasil – História - Estado Novo.
3. Autoritarismo. 4. Patrimônio. 5. Arquitetura.
6. Barroco Mineiro. I. Abreu, Luciano Aronne de. II.
Título.
CDD 981.510622
Ficha elaborada pela bibliotecária Cíntia Borges Greff CRB 10/1437
GLACI TERESINHA BRAGA DA SILVA
A MATERIALIZAÇÃO DA NAÇÃO ATRAVÉS DO PATRIMÔNIO: O
PAPEL DO SPHAN NO REGIME ESTADONOVISTA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
como requisito para obtenção do grau de
Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Luciano Aronne de
Abreu
Aprovada em 29 de março de 2010.
BANCA EXAMINADORA:
LUCIANO ARONNE DE ABREU (Orientador)
_______________________________
CHARLES MONTEIRO (FFCH – PUCRS)
__________________________
PAULO BICCA (FAU – PUCRS)
____________________________
AGRADECIMENTOS
Ao meu grande incentivador Paul, sem o qual esse mestrado não teria se concretizado,
pelo seu estímulo, carinho e paciência.
À amiga Suzana, pela amizade, leituras e apoio constantes.
Ao meu orientador Luciano Aronne de Abreu, pelo profissionalismo, carinho,
paciência e bom humor constantes, sem os quais com certeza eu não teria dado conta desta
etapa.
À secretária do Pós-Graduação em história, Carla, pelo apoio constante.
A todos aqueles que souberam entender a ausência que a escrita exigiu.
À Camila, por acreditar sempre que eu daria conta de tudo.
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo analisar a relação do regime autoritário do Estado
Novo com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico nacional — SPHAN —
órgão responsável pela preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. A dissertação
demonstra o quanto o Estado e o SPHAN atuavam a partir dos mesmos interesses e de que
modo essa relação acontecia.
A atuação do SPHAN e de seus colaboradores foi fundamental para dar concretude ao
projeto de criação da nação e da identidade nacional. Nesse sentido, o papel dos intelectuais
que atuaram no regime estadonovista também é analisado, pois foi através de seus discursos
que o Estado legitimou os princípios que fundamentaram o regime: autoritarismo,
nacionalismo e centralismo. Também foi a partir da relação entre o Estado e os modernistas
que se legitimou a arquitetura modernista que daria materialidade às políticas modernizadoras
do regime estadonovista.
No primeiro capítulo é feita uma crítica historiográfica sobre o Estado Novo, no
segundo é abordada a estrutura do SPHAN e no terceiro o trabalho se concentra na cidade de
Ouro Preto e no barroco mineiro, em sua utilização para legitimação da identidade nacional,
da nação e da arquitetura modernista.
Palavras-chave: Estado Novo. Autoritarismo. Patrimônio. Arquitetura. Barroco mineiro.
ABSTRACT
The objective of this dissertation is to analyse the relationship between the
authoritarian regime of the Estado Novo and the creation of Serviço do Patrimonio Histórico
e Artistico National (SPHAN), the organ responsible for the preservation of national cultural
and artistic heritage. The dissertation demonstrates how the state and SPHAN acted in the
same interests and how the relationship between them was formed.
The activities of SPHAN and its collaborators were fundamental in making concrete
the project of creating both a nation and a national identity. Accordingly, an analysis is also
made of the role of the intellectuals who participated in the estadonovista regime, since it was
through their discourses that the state legitimised its fundamental principles: authoritarianism,
nationalism and centralism. Also, it was the relationship between the state and modernist
intellectuals that legitimised the modernist architecture that gave material support to the
modernising policies of the estadonovista regime.
The first chapter of the dissertation makes a critical historical review of the Estado
Novo and the second chapter describes the structure of SPHAN. The third chapter
concentrates upon the city of Ouro Preto, and on barroco mineiro and its usage for the
legitimisation of national identity, the nation and modernist architecture.
Key-words: Estado Novo. Authoritarianism. Heritage. Architecture. Barroco mineiro.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 8
1 SÍNDROME DA MEMÓRIA .................................................................................... 13
1.1 O passado tão presente ............................................................................................... 13
1.2 O que havia de novo no Estado Novo? ....................................................................... 22
1.3 Intelectuais e poder ..................................................................................................... 33
2 O ESPELHO DA MEMÓRIA ................................................................................... 48
2.1 O SPHAN como espelho ............................................................................................ 48
2.2 A invenção do patrimônio .......................................................................................... 59
2.3 A materialização da nação .......................................................................................... 71
2.4 Construindo a nação entre o passado e o futuro ......................................................... 80
3 A NAÇÃO FUNDADA A PARTIR DE OURO PRETO ........................................... 90
3.1 O barroco ..................................................................................................................... 90
3.2 Barroco mineiro x modernismo .................................................................................. 93
3.3 Ouro Preto: entre a tradição e a modernidade ........................................................... 101
3.3.1 Ouro Preto e Belo Horizonte: duas faces do mesmo discurso ...................................117
3.3.2 A construção do grande hotel: a afirmação do novo ................................................. 119
4.4 Uma história de heróis – entre Tiradentes e Aleijadinho ...........................................122
CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 127
BIBLIOGRAFICA ................................................................................................................ 131
8
INTRODUÇÃO
A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — SPHAN — já
no primeiro ano do Estado Novo, em novembro de 1937, foi motivada pela necessidade de
construção da identidade nacional e da afirmação da nação brasileira como moderna, ao
mesmo tempo que portadora de arte e cultura de caráter universal, e reveladora de nossa
“brasilidade”. No momento da instalação do regime estadonovista a discussão em torno da
identidade nacional se dava a partir de parâmetros culturais, pois era a cultura que, na
ausência da participação política, seria utilizada para unificar a nação marcada pelas
diferenças culturais, econômicas e políticas.
Neste sentido, a atuação do ministro da educação e saúde, Gustavo Capanema, foi
fundamental para homogeneizar, através da cultura, um país marcado pela heterogeneidade. E
através do Ministério de Educação e Saúde — MES — foram realizadas diversas ações de
valorização e resgate da cultura nacional. Mas foi principalmente no SPHAN, a partir da
atuação de um grupo de intelectuais modernistas, que a política do ministro Capanema teve
sucesso e credibilidade, assentando princípios até hoje valorizados em relação à memória
nacional e à arte e arquitetura coloniais que consolidaram o conceito de patrimônio.
O grupo que atuou no SPHAN, apresentado como detentor de um conhecimento
técnico que o legitimava para pensar a nação e construir sua identidade, definiu o conceito de
patrimônio histórico e artístico nacional, ao mesmo tempo em que forneceu ao regime do
Estado Novo a materialidade necessária a seu discurso nacionalista e modernizador. Naquele
momento, os intelectuais sentiam-se aptos e seguros de serem os únicos capazes de fornecer a
fundamentação teórica necessária para a construção de nossa identidade. E, além disso, viam
a possibilidade de mudanças na instalação de um governo que se definia como novo,
acreditando na modernização das relações do Estado com a sociedade, e também na
possibilidade de entrada do país no conjunto de nações modernas que lhes servia de
parâmetro, principalmente as nações europeias.
Foi nesse cenário, onde se reuniram os interesses dos intelectuais e do governo, que
se tornou possível apresentar à nação aqueles que seriam os símbolos representativos de sua
existência e que dariam sustentação ao discurso nacionalista, centralizador e autoritário do
regime estadonovista.
9
A relação entre os regimes autoritários e nacionalistas e a preservação do patrimônio
histórico nacional permite levantarmos uma série de questionamentos que trazem à tona a
relação da memória e da história com a política, e o uso que os regimes centrados em
princípios autoritários fazem dessas duas. Nesse complicado jogo de seleção entre o que
esquecer e o que rememorar pesam as opções políticas e os valores de quem se encontra no
poder e tem o privilégio de determinar qual a história que será contada, quais os heróis, os
valores e as tradições culturais que deverão ser resgatados e valorizados. E durante o Estado
Novo quem teve esse privilégio, aliando os seus conhecimentos à estrutura recém criada pelo
governo, foram os intelectuais.
Com o objetivo de analisar a importância da construção do conceito de patrimônio
histórico e artístico nacional na consolidação do regime autoritário e nacionalista do Estado
Novo e de como o regime usou o patrimônio para legitimar os princípios que o nortearam, o
presente trabalho analisa o período situado entre os anos de 1937 a 1945, período de duração
do Estado Novo e também da criação do SPHAN, bem como da própria afirmação do
conceito de patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil. Esse período foi marcado pelas
principais ações de salvamento, inventário e tombamento do patrimônio histórico e artístico
nacional feitas pelo SPHAN e se caracterizou como “fase heróica” de atuação do órgão de
preservação.
O presente trabalho se justifica pela análise crítica tanto da historiografia que trata o
período do Estado Novo, quanto das fontes primárias, — correspondências entre líderes
políticos e colaboradores do SPHAN. A partir desta análise foi possível levantar questões
referentes á relação do patrimônio com a legitimação dos princípios do regime autoritário e
com a própria legitimação da arquitetura modernista e da profissão de arquiteto, apresentadas
naquele momento como representantes do novo. O que o torna relevante é o fato de apresentar
um novo olhar sobre a relação do SPHAN com o regime estadonovista, pois diferente do que
até então fora estudado, demonstra o quanto houve de afinidade entre os princípios do regime
e as políticas implantadas pelo SPHAN. Nesse sentido, rejeita as análises que descrevem o
órgão como independente do regime e situa a valorização da arquitetura colonial como o
principal instrumento de valorização da arquitetura modernista que materializaria o projeto
modernizador do regime.
Apresentado como o responsável pela salvaguarda do patrimônio histórico e artístico
da nação, o SPHAN passou a determinar as escolhas do que era importante para a memória da
nação e o que se utilizaria para compor sua identidade. Rodrigo Melo Franco de Andrade e
10
Lúcio Costa, respectivamente diretor e arquiteto responsável pelo setor de tombamentos,
tiveram papel de destaque na consolidação das políticas do órgão. Graças às argumentações
de Lúcio Costa, em defesa da arquitetura modernista a partir das mesmas características
percebidas nas obras coloniais, foi possível ao regime tecer um discurso que contemplava
tanto a tradição quanto a modernidade e remetia para o novo país, o país do futuro, moderno,
forte e industrializado. E Rodrigo Melo Franco de Andrade se empenhou na defesa das ações
desenvolvidas pelo grupo e na implantação de suas políticas, que foram defendidas com a
intenção de manter distância das políticas implantadas pelo regime.
No entanto, ao longo do desenvolvimento do trabalho, veremos o quanto há de
similaridade ou mesmo de complementaridade entre a atuação do SPHAN e o regime
estadonovista. Talvez a primeira das similaridades que possamos levantar é a defesa do
discurso técnico utilizado pelo grupo que atuava no SPHAN para manter distante os
oposicionistas. A mesma defesa era usada pelo regime na intenção de demonstrar que as
escolhas políticas eram apenas resultado de estudos científicos realizados por técnicos. É essa
espécie de blindagem que tanto o regime quanto o SPHAN usaram como recurso para
desqualificar opiniões contrárias a suas ações.
Reunidos em torno da ideia de redescobrimento do país, que já se dava desde a
década anterior — anos vinte — e de suas características originais que iriam remeter à
“brasilidade”, o grupo que atuou no SPHAN na época de sua fundação concentrou esforços na
intenção de encontrar símbolos da arquitetura e da arte que definissem a nossa identidade e
fornecessem a materialidade necessária para sua afirmação e, ao mesmo tempo, nos
permitissem a entrada na modernidade. É nesse contexto que o barroco mineiro foi alçado a
representante de nossa originalidade e, enquanto arte de caráter universal, permitiu nossa
entrada entre os países ditos civilizados.
A partir dessa escolha a cidade de Ouro Preto forneceu ao regime a base para o seu
discurso, demonstrando que tanto a tradição quanto a modernidade compunham a identidade
desejada pelo Estado Novo. Assim, Ouro Preto representava o início da nação e também o
contraponto à modernidade. E nesse processo de convencimento do valor tanto do antigo
como do novo, sob o conceito de patrimônio nacional, é que o SPHAN se concentrou nos seus
primeiros anos de atuação.
O resultado dessas ações, como veremos ao longo da análise, permitiu ao mesmo
grupo de intelectuais legitimar o antigo e também construir o novo. E, nesse sentido, atuavam
em perfeita sintonia com os interesses e as práticas do Estado Novo, pois o regime necessitava
11
não só construir a identidade nacional, mas também projetar o novo país que desejava. E o
novo seria também materializado a partir da nova arquitetura, a qual o grupo de arquitetos do
SPHAN defendia e se tornaria a principal representante no país, a arquitetura modernista.
Desse modo o SPHAN se tornou guardião da memória e da história nacionais e ao mesmo
tempo permitiu a construção de um discurso em defesa do novo, do moderno, ou seja, do
futuro.
Segundo José Reginaldo Santos Gonçalves os “objetos culturais” que compõem as
narrativas históricas, a partir do momento em que são preservados como monumentos
assumem o papel de “tornar possível a produção da realidade enquanto uma entidade coerente
e auto-idêntica”
1
. E foi com essa intenção, de produzir um efeito de realidade que permitisse
uma visão real e imediata do Brasil, que se deu a escolha da cidade mineira de Ouro Preto.
Ela concentrava em um mesmo espaço história, arte e arquitetura que permitiam tecer uma
narrativa convincente e coerente com os interesses tanto do regime quanto do grupo de
intelectuais que atuava no SPHAN. E permitia ao Estado legitimar sua proposta de governo a
partir de uma releitura de parte do passado, destacando o que era relevante para a
modernização do país. Intelectuais modernistas e Estado trabalhavam em completa sintonia,
pois partilhavam interesses comuns em relação à tradição e à modernidade que construíam
através do discurso nacionalista.
A constante busca da identidade nacional que é apontada tanto por José Reginaldo
Santos Gonçalves quanto por Maria Stella Bresciani, entre outros autores, parte de um
conceito estático de identidade, como se fosse possível determinar um momento em que se
situa sua origem e fixá-la a partir daí. No entanto, a identidade é um processo acumulativo
em constante transformação e que permite uma leitura polifônica. Mas esse era um conceito
que não interessava ao Estado Novo, determinado a construir a identidade nacional a partir da
tradição colonial.
As fontes utilizadas para a realização desse estudo foram as correspondências e os
documentos encontrados no Arquivo Central Noronha Santos, do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional · IPHAN – situado no Palácio Capanema, no Rio de Janeiro,
e as correspondências do Arquivo Gustavo Capanema, da Fundação Getúlio Vargas · FGV
·, no Rio de Janeiro. Em ambos os arquivos foram analisadas a troca de correspondência
entre os principais colaboradores do SPHAN com o diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade
e com o ministro Gustavo Capanema.
1
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. A retórica da perda, p.127.
12
Concomitantemente a essa pesquisa nos arquivos do IPHAN e da FGV, foram
realizadas leituras das Revistas do SPHAN, em especial os artigos publicados por Lúcio Costa
ou aqueles referentes a Ouro Preto e ao barroco mineiro. Em relação à bibliografia indicada, a
leitura se concentrou nos textos que tratavam da concepção ideológica do regime
estadonovista, da organização do órgão de proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional e de textos sobre a cidade de Ouro Preto e o barroco mineiro.
Quanto à estrutura, a dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro teve por
objetivo uma crítica historiográfica sobre o Estado Novo, abordando os princípios que
nortearam o regime, as ideias dos principais ideólogos, as políticas do Ministério da Educação
e Saúde e a participação dos intelectuais na construção da identidade nacional.
No segundo capítulo analisamos a criação do SPHAN, sua estrutura, colaboradores e
princípios que nortearam os trabalhos de inventário, tombamento e restauração, durante o
período do Estado Novo, a partir das fontes primárias e da bibliografia consultada. Foi
também analisado nesse capítulo o conceito de patrimônio implantado pelo órgão, a partir da
visão da equipe formada majoritariamente por arquitetos modernistas. A partir dessa análise
passamos a discutir a relação da arquitetura com a materialização do conceito de nação que se
dava no regime estadonovista. E passamos a analisar de que forma foi possível construir um
discurso que ao mesmo tempo valorizava o passado, através da arquitetura colonial, e a
construção do novo, através da arquitetura modernista.
No terceiro capítulo o estudo se concentra na cidade de Ouro Preto e no barroco
mineiro que, durante o Estado Novo, receberam atenção dos intelectuais e funcionaram como
semióforo da nação, remetendo a uma origem barroca e mineira. A partir da cidade de Ouro
Preto e da análise dos discursos sobre sua história, arte e arquitetura, é possível demonstrar a
relação do regime autoritário com as tradições do passado colonial e a valorização, através do
barroco mineiro, da arquitetura modernista, que permitiu aos intelectuais e ao governo a
construção de uma identidade que conciliava tradição e modernidade. Desse modo, o
governo se sentia à vontade para implantar as políticas modernizadoras necessárias para que o
país se industrializasse.
13
1. SÍNDROME DA MEMÓRIA
1.1. PASSADO TÃO PRESENTE
Por que temos a necessidade recorrente de retorno ao passado para legitimar,
explicar e justificar nosso presente? Parece que atualmente o uso do passado para compor o
presente ainda se dá pela busca de um lugar de repouso frente à fragmentação e à aceleração
do mundo capitalista contemporâneo. Conforme Andreas Huyssen, “Quanto mais memória
armazenamos em bancos de dados, mais o passado é sugado para a órbita do presente, pronto
a ser acessado na tela”
2
. Exatamente porque hoje o presente se sobrepõe como determinante,
é que há uma obsessão pelo que éramos - uma espécie de “revival” como se observa na
orientação das políticas culturais relacionadas à memória - e no caso dos projetos de
restauração dos Centros Históricos tombados pelo Instituto de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional — IPHAN — nas cidades de Salvador, Cuiabá e Porto Alegre, por
exemplo.
Essa volta ao passado é em geral determinada pela percepção de aceleração e
compressão do tempo. Vivemos uma época em que as referências de tempo e espaço são
constantemente alteradas em virtude da velocidade imposta pelo fluxo de informações e pelo
uso da tecnologia. Mudanças contínuas de um presente cada vez mais efêmero resultam em
perda de nossas referências e geram insegurança e ansiedade em relação ao futuro. Nesse
sentido, Andreas Hussey trabalha com a ideia de que a sociedade atual necessita de uma
“ancoragem temporal” que se daria através de “práticas de memória nacionais e locais” como
contraponto a um mundo de fluxo intenso onde o tempo se tornou instável e o espaço cada
vez mais homogeneizado.
Por isso, presenciamos uma tentativa de assegurar as referências culturais
ameaçadas, através da atualização constante do passado, passado este que o IPHAN,
principalmente através das ações de recuperação dos centros históricos, acaba por estetizar e
congelar transformando a arquitetura restaurada em um exemplar simbólico de um tempo
desprovido de conflitos. Jérômme Monnet considera que esse “passadismo” é “uma das
utopias fundadoras da ação urbanística contemporânea”, pois para ele “a proteção cria uma
representação idealizada do passado urbano, em que as violências de toda natureza são
2
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória, p.74.
14
excluídas”, apresentando uma “imagem simples e gentil da cidade de antes da crise”
3
. Nesse
sentido, o autor acredita que a proteção do patrimônio imobiliza a população em relação aos
problemas atuais, evitando que ela interfira com propostas inovadoras. O patrimônio remete a
um tempo que na verdade nunca existiu, mas que nos fornece garantia de nossas origens e nos
traz segurança em relação às incertezas de novos começos. Segundo Françoise Choay, a
imagem do patrimônio onde foram eliminadas as diferenças e fraturas “nos tranquiliza e
exerce sua função protetora graças, precisamente, à redução e à supressão fictícia dos
conflitos e das questões que não ousamos enfrentar [...]”
4
.
É nesse contexto, onde se tece uma história portadora de elementos que demonstrem
a nossa alteridade e forneçam subsídios e segurança para projetarmos o futuro, que o
patrimônio histórico nacional passa a receber maior atenção. Este se torna importante na
medida em que prova a existência de vínculos com o passado através de sua permanência,
material ou imaterial, pois tanto a arquitetura monumentalizada quanto a manutenção das
tradições, fornecem o que José Reginaldo Santos Gonçalves denomina de “garantia da
continuidade da trajetória histórica da nação”
5
.
A narrativa em relação ao patrimônio em que predomina a soberania do passado
sobre o presente atualiza-se na fala de grande parte dos autores ocidentais que trabalham com
o tema do patrimônio histórico, como é o caso do historiador Josep Ballart, para quem “O
passado nos provê de um marco de referências para que reconheçamos o entorno e nos
reconheçamos a nós mesmos. [...] É o ingrediente necessário ao sentido de identidade [...]
graças a que põe em evidência o fio ininterrupto da passagem do tempo e a noção mesmo de
continuidade”
6
.
Nesse sentido, podemos dizer que, mesmo passadas sete décadas de sua criação, o
IPHAN ainda mantém a superioridade do passado sobre o presente nas políticas públicas
relacionadas a tombamento, restauração e valorização do patrimônio histórico nacional,
tentando com isso “reconstituir esse fio partido da tradição [...] através de monumentos por
meio dos quais se pode estabelecer uma relação com o passado”
7
. Ainda hoje o patrimônio é
utilizado como elemento pacificador, pois a conservação patrimonial fornece a certeza de uma
3
MONNET, Jérôme. O álibi do patrimônio: crise, gestão urbana e nostalgia. In: Revista do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, nª 24, 1996.
4
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio, p.248.
5 GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Monumentalidade e cotidiano: os patrimônios culturais como
gênero de discurso, IN: OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cidade, história e desafio, p. 119.
6
BALLART, Josep. El patrimônio histórico y arqueológico: valor y uso, p.43.
7
Idem, p.118.
15
ordem e de uma organização do sentido do mundo e mantém a sociedade distante de conflitos
relacionados ao seu cotidiano.
O patrimônio é também utilizado como modelo pelo poder público, remetendo ao
que Henri-Pierre Jeudy denomina de “reflexividade”, que se aplica à “ideia de que uma
sociedade tem melhores condições de gestão quando se vê refletida em seu próprio espelho”.
Assim, para que o patrimônio seja reconhecível, é necessário que a sociedade que o gera “se
veja o espelho de si mesma, que considere seus locais, objetos, monumentos, reflexos
inteligíveis de sua história, de sua cultura”
8
. Para o autor, “O sentido mais corrente atribuído à
conservação patrimonial é o da manutenção da ordem simbólica das sociedades modernas”
9
.
Assim, a reflexividade promove a visibilidade de locais, objetos e narrativas fundadoras da
ordem simbólica de uma sociedade.
Nesse sentido, podemos dizer que a proteção do patrimônio histórico edificado,
principal foco de atuação das políticas de restauração do IPHAN, parece pensada para induzir
mais à contemplação do que à consciência crítica. Como salienta David Harvey em seu livro
Espaços de Esperança, as organizações de “proteção do patrimônio histórico [...] parecem ter
como objetivo o cultivo da nostalgia, a produção de memórias coletivas higienizadas, a
promoção de sensibilidades estéticas acríticas e a absorção de possibilidades futuras numa
arena não-conflituosa eternamente presente”
10
.
A precedência do passado sobre o presente é uma concepção recorrente nas políticas
de preservação do patrimônio histórico desde a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional — SPHAN — até os dias atuais. Cabe aqui salientar que apesar da
diferença entre os sistemas de governo atual — democrático — e o de 1937— autoritário —,
quando da criação do SPHAN, a estratégia de valorização do passado tem alguns pontos
recorrentes. Nos dois períodos o passado é utilizado como um recurso para a afirmação de
nossa identidade cultural e atua como uma espécie de reação contra a ameaça da perda de
sentido de nossa própria continuidade, pois a percepção do ritmo acelerado das mudanças é
uma realidade tanto nos dias atuais quanto o foi nos anos trinta. Além do fato, também
presente nos dois períodos, de as ações ligadas ao patrimônio promoverem o que Henri-Pierre
Jeudy trata como “válvula de segurança” para a gestão do social, na medida em que o
patrimônio possibilita, através da gestão cultural, que a identidade cultural compense “as
8
JEUDY. Henri-Pierre. Espelho das cidades, p.19.
9
Idem, p.27.
10
HARVEY, David. Espaços de esperança. p, 221.
16
debilidades da identidade social”
11
. Ou seja, o patrimônio atua como uma válvula de escape
para as tensões sociais.
No entanto, o que levou a uma revisitação do passado a partir de 1937, quando da
implantação do regime estadonovista, não foi somente a necessidade de um fio condutor que
ligasse passado, presente e futuro, ou a afirmação da identidade nacional. Naquele momento,
a política de valorização do passado e de suas tradições objetivava principalmente a
construção de um novo homem moldado aos princípios de um regime autoritário, nacionalista
e centralizado. Dessa forma, o Ministério da Educação e Saúde do governo de Getulio Vargas
teria concentrado muitas de suas ações na preservação da memória e na glorificação do
passado colonial, como veremos adiante. Esta estratégia seria fruto da necessidade de instituir
a nação brasileira como detentora de uma cultura própria, nacional, que deveria ser descoberta
e valorizada, sendo estes elementos importantes para a construção da identidade nacional.
A identidade nacional pretendida pelo Estado Novo estava centrada no sentimento
de pertencimento a uma mesma cultura — a cultura nacional — homogeneizada através da
língua, dos símbolos e das representações nacionais, e cuja criação era “missão” dos
intelectuais. Havia, no período, um intenso debate em torno das questões nacionais na
definição de um novo perfil para o Brasil e os brasileiros, então percebidos como atrasados
em relação à Europa e aos Estados Unidos.
Segundo Maria Stella Bresciani, a construção da identidade nacional se dava a partir
de uma visão negativa, de uma “imagem do país desencontrado consigo mesmo”, de “uma
nação de configuração inconclusa e identidade ressentida e recalcada.” A análise dos
intérpretes do país era pautada pela percepção do desencontro entre as ideias liberais
importadas e a “feia realidade brasileira”, e por uma visão pessimista da história do país que
atribuía a ausência da identidade nacional à “deformação imposta ao país pela cultura
européia”
12
.
Além disso, estudar o passado em bases “científicas e realistas”, como defendiam os
intelectuais do período, e narrar a história brasileira fornecendo sentido entre passado,
presente e futuro, tinha como propósito o reconhecimento do Estado nacional. Como nos diz
Ângela de Castro Gomes “[...] é nos momentos de grande esforço de implementação de
grandes projetos políticos que a atenção daqueles que dirigem o Estado volta-se para o
11
Idem, p, 67 e 68.
12
BRESCIANI, Maria Stella.Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre
os intérpretes do Brasil, p.21 a 48.
17
passado, buscando construir seu ‘lugar na história’ e [...] reescrevendo os fatos e as
interpretações do calendário cívico de um país”
13
. Daí a relevância do uso simbólico do
patrimônio na construção da identidade nacional, o que explica o investimento do Estado na
criação do SPHAN, responsável por grande parte da política de recuperação e valorização do
passado nacional.
Mas o debate em torno das questões nacionais e da definição de uma identidade para
o Brasil e os brasileiros demonstrava que não havia um consenso e sim uma disputa entre os
diferentes discursos construídos para legitimar a nação. A busca da singularidade necessária
para a construção da identidade revelava a tensão existente entre o regional e o nacional, e
entre a tradição e a modernidade, presentes no discurso nacionalista, como sugere Mônica
Pimenta Velloso em seu artigo A brasilidade verde–amarela.
Sem reduzir a complexidade da construção da identidade ao pensamento de dois dos
interlocutores do Modernismo— Mário de Andrade e Menotti del Picchia —, representantes
de grupos diferentes do movimento, a autora levanta duas questões pertinentes que, como
veremos, ainda estavam em aberto nos primeiros anos do regime estadonovista: a superação
do regional pelo nacional e a conciliação entre tradição e modernidade.
Assim, o grupo verde-amarelo, representado por Menotti del Picchia, defendia o
regionalismo por acreditar que ele representava a temporalidade e a espacialidade brasileiras,
possibilitando “delinear fronteiras, ambiente e língua local”. Com um “senso extremado de
localismo” não concordavam com a idéia de o brasileiro acompanhar o ritmo da vida
universal, pois para eles o universal era “abstrato, genérico e exterior”, não representando o
espírito nacional. O nacionalismo cultural do grupo levou-os à defesa do retorno às tradições
do país.
No entanto, possuíam uma visão da tradição como algo imóvel, desvinculada do
tempo cronológico e fixada no espaço, no mito das origens, tempo ideal, sem contradições e
conflitos, que deveria ser retomado. Para Velloso essa é “uma visão pitoresca e estática da
tradição, uma vez que o passado passa a coexistir com o presente. [...] Passado e presente
deixam de ser concebidos como etapas sucessivas para ingressarem numa mesma
realidade”
14
. A autora salienta que esta percepção da história que privilegia o espacial sobre o
temporal é uma das características centrais do pensamento conservador.
13
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
14
VELLOSO. Mônica Pimenta. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. IN: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 89-112.
18
Já Mário de Andrade, embora concordasse com a premissa de que “só a partir do
conhecimento de nossas tradições é possível encontrar um caminho próprio, uma cultura de
bases nacionais”
15
, defendia o conceito de “tradições móveis”, uma espécie de atualização
das manifestações da cultura popular, dentro de uma perspectiva histórica, em que seria
possível encontrar a temporalidade própria para o Brasil no contexto internacional. Em
relação ao regionalismo, Mário de Andrade o percebia como um meio de atingir a
nacionalidade e garantir a entrada do país na modernidade, pois era a ideia de unidade cultural
que deveria prevalecer e assim as tradições populares regionais eram percebidas e valorizadas
apenas como partes de um todo, a nacionalidade.
Desse modo, o desafio que se colocava aos pensadores na definição de nossa
identidade era o de demonstrar a originalidade da nação brasileira através da valorização das
tradições culturais apresentadas como um conjunto ao mesmo tempo legitimador da
autenticidade e da unidade de nossa cultura, e portador de referências universais. Era preciso
cruzar esses elementos — regional e nacional, tradição e modernidade — para compor a
identidade nacional pretendida pelo Estado Novo fornecendo uma imagem de um país
moderno, apto a fazer parte do mundo industrializado, ao mesmo tempo em que se
apresentava unificado através de suas tradições culturais.
Marcada pela discussão em torno dos atributos da brasilidade a construção da
identidade nacional demonstrava, segundo Velloso, a existência de duas visões distintas da
nacionalidade: uma histórica — critério temporal — e outra geográfica — critério espacial.
Defensor da visão histórica, Mário de Andrade sugeria que pensássemos em uma
temporalidade brasileira, que criássemos um tempo próprio, de acordo com a dimensão do
país, em que se afirmaria a singularidade brasileira.
Nesse sentido, o conhecimento aprofundado do passado proposto por Mário de
Andrade tinha como objetivo encontrar os traços que possibilitassem a coesão e a
identificação nacional, indispensáveis à inovação pretendida e a inserção do país na
modernidade. Traços estes que para o autor se encontravam nos elementos materiais e
simbólicos da cultura nacional.
Partindo de outro ponto de vista os verde-amarelos elegiam o espaço como
determinante de nossa singularidade, onde a natureza, o território, as fronteiras eram os
elementos utilizados para definir a brasilidade. Para Velloso esse discurso, no qual a natureza
15
Idem.
19
fornecia os subsídios para a construção da nacionalidade, demonstra a retomada do
pensamento romântico pelo grupo verde-amarelo e a partir dele a ideia de que a “uma
natureza sui generis deve necessariamente corresponder uma civilização sui generis avessa a
outros modelos civilizatórios”
16
.
No entanto, apesar das diferenças existentes dentre os participantes do movimento
Modernista, a respeito da concepção de brasilidade, é o consenso em relação ao lugar que a
cultura ocupa na construção da identidade nacional e o domínio do seu uso simbólico o
principal motivo para a participação dos intelectuais modernistas no Estado Novo. Essa
participação se deu através da ocupação de cargos no Ministério da Educação e Saúde, como
ocorreu no SPHAN, ou pela influência que as ideias do grupo verde-amarelo exerciam sobre o
ministro Capanema.
Velloso considera que a hegemonia política imposta pelo grupo modernista verde-
amarelo durante o Estado Novo permitiu explicar as origens do Estado nacional através de
uma visão geográfico-espacial, na qual a história era dada como fruto da geografia e onde a
ideologia ufanista encontrava terreno fértil para a criação de heróis apresentados como
desbravadores da natureza. Exemplo disso foi o caso dos bandeirantes paulistas, cuja
simbologia era resgatada com a “marcha para o oeste”, implantada pelo governo.
Além disso, a identificação entre nacionalismo e território, onde a extensão do país
aparecia como determinante de sua história, utilizava símbolos relacionados à geografia como
suporte para o sentimento de pertencimento à pátria. É o caso do uso do mapa do Brasil,
descrito por Velloso como “objeto de culto cívico e poético porque através dele se consegue
criar o sentimento nacional”
17
. A autora aponta como causa da aceitação desta visão espacial
o fato de que em geral os historiadores passam uma visão negativa do passado, enquanto a
geografia permite um discurso com outra linguagem, que ressalta a grandiosidade.
Essa oposição espaço/tempo também foi percebida por Angela de Castro Gomes em
sua análise a respeito do conteúdo da revista Cultura Política. O que a autora demonstra é que
no processo de recuperação do passado, a história que se apresenta nas páginas da revista
“com freqüência ímpar, busca ‘lugares geográficos’ para localizar sua existência e revitalizar
sua memória. [...] o passado construído por essa perspectiva assume forte dimensão espacial,
o que, no caso examinado, traduz-se por referências regionais”
18
.
16
Ibidem.
17
Ibidem.
18
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores, p. 161.
20
Mas Ângela de Castro Gomes salienta que a revista, no intuito de “construir uma
história política do Brasil”, mantinha uma espécie de dupla operação em seus editoriais, ora
valorizando “uma concepção espacial dos fatos de nossa cultura, organizada por regiões
geográficas”, ora tentando “libertar-se dessa preeminência geográfica”
19
. Desse modo, o que
percebemos é que o regime varguista utilizou-se de premissas dos dois pontos de vista, ora
valorizando a visão geográfica, ora a histórica, de acordo com o interesse político e o público
a que se direcionava.
A recuperação e valorização do passado já levantada em relação ao movimento
Modernista era um lugar comum nos anos que antecederam a instalação do regime varguista.
Mas o olhar dos intelectuais voltado à compreeno de quem éramos, era um olhar que, na
maioria das vezes, partia de um conceito já estabelecido, e que se valia do passado somente
para tornar crível a solução apontada, solução essa que já estava pré-determinada. Foi esse o
caso de intelectuais como Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Almir de Andrade e Francisco
Campos, que se afirmaram como ideólogos do regime estadonovista e que em suas
interpretações do passado buscavam legitimar os princípios do Estado Novo, justificando
desse modo o regime.
Caracterizado por ser um regime autoritário e centralizador em que o Estado
assumia o controle sobre todas as práticas poticas, sociais e culturais em troca da promessa
de um Estado de bem estar social, o Estado Novo mantinha um discurso que acusava o
liberalismo — passado recente — como responsável pela situação precária dos trabalhadores
e pela falta de direção política na condução do desenvolvimento do país, ao mesmo tempo em
que remetia ao passado colonial — passado distante — em busca de explicações para os
problemas atuais e das raízes do brasileirismo.
Nesse sentido, com a intenção de comprovar o quão inadequado era para o Brasil o
regime liberal, Oliveira Vianna destacou-se como um dos principais ideólogos do regime. O
autor se debruçou sobre o passado colonial para “ressaltar quanto somos distintos dos outros
povos, principalmente dos grandes povos europeus, pela história, pela estrutura, pela
formação particular e original”
20
. Já no prefácio de Populações Meridionais do Brasil, de
1920, Vianna demonstrava sua crença na superioridade do passado sobre o presente quando
afirmava que “Ele é que nos dirige ainda hoje com sua influência invisível, mas inelutável e
19
Idem, p.145.
20
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil, p, 51.
21
fatal”
21
. Quando publicou o Idealismo da Constituição, em 1927, manteve a defesa do estudo
e conhecimento do passado para melhor compreensão da “personalidade nacional, [...] cujo
conhecimento é essencial ao êxito de qualquer movimento renovador”. O passado é
legitimado como fonte da força e da unidade necessárias ao que chamava de “marcha
impetuosa para o futuro”
22
.
Para Oliveira Vianna, era a partir do estudo, da crítica e da compreensão do passado
que se tornava possível entender as variáveis que compunham a personalidade nacional, o que
o autor acreditava ser fundamental para o sucesso de “qualquer movimento renovador”. O
estudo do passado permitiria, segundo Vianna, fortalecer “a consciência do patriotismo em
cada um de nós, [...] o sentimento de respeito para com nossos maiores, para com o
patrimônio das grandezas morais e materiais [...]”. O estudo do passado seria “uma escola de
patriotismo e de dignidade cívica”
23
.
A concepção que Vianna tinha da história baseava-se na idéia de que ela forneceria
“uma lição de resignação [...], de entusiasmo e de fé, um maior sentimento de nós mesmos, e
do nosso próprio presente, uma consciência mais iluminada e mais robusta para o nosso
próprio futuro”. Referindo-se à história brasileira postulava que deveríamos buscar nela “[...]
uma lição de entusiasmo e de fé, um maior sentimento de nós mesmos, e do nosso próprio
presente, uma consciência mais iluminada e mais robusta do nosso próprio futuro”
24
.
Assim, o passado, ao mesmo tempo em que explicava a origens dos problemas
atuais, justificava a necessidade de implantação do modelo centralizador de governo, que
permitiria atingir a unidade nacional imprescindível ao desenvolvimento do país e à formação
do novo homem do Estado Novo. Porém, ao mesmo tempo em que criticava o passado nos
aspectos em que o identificava com os princípios liberais, Vianna enaltecia o passado paulista
e o espírito dos bandeirantes, os quais caracterizava como verdadeiros heróis nacionais.
Acreditava que a estruturação da nacionalidade só se daria a partir de um Estado
forte “centralizado, com um governo nacional poderoso, dominador, unitário, incontrastável,
provido de capacidades bastantes para realizar, na sua plenitude, os seus dois grandes
objetivos capitais: a consolidação da nacionalidade e a organização da sua ordem legal”
25
.
21
Idem.
22
VIANNA, Oliveira. O idealismo da constituição. Discurso pronunciado em 1924, no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, p. 344 a 355.
23
Idem, p. 342.
24
Ibidem, p. 341.
25
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Vol. I p.404.
22
Tomado como referência teórica importante, o pensamento de Vianna reverbera nas
análises de outros estudiosos do período que também se debruçam sobre o tema da identidade
nacional brasileira instituída a partir de um passado colonial. O que Lúcia Lippi Oliveira
26
nos
traz em relação a essa questão é que embora os intérpretes que fundamentam o Estado Novo
não tenham produzido uma doutrina oficial única — admitindo sempre enfoques distintos —
seus discursos partiam do que podemos denominar de matriz autoritária comum: a defesa de
um projeto político centralizador. E esse projeto estava ancorado nas referências culturais
resgatadas através da recuperação do passado.
1.2. O QUE HAVIA DE NOVO NO ESTADO NOVO?
O regime que se instalara, através de um golpe, em novembro de 1937, embora se
denominasse “novo” caracterizava-se mais pela manutenção da ordem política já estabelecida
e consolidada nas mãos da elite nacional. Apresentando-se como capaz de superar os
problemas relativos ao fraco desempenho econômico e social do país e apontando soluções a
partir da constituição de um governo forte e centralizador que concretizasse o Estado
nacional, o Estado Novo pode ser definido a partir de três princípios presentes durante o
período de 1937 a 1945: autoritarismo, centralismo e nacionalismo. No entanto, como
veremos, esse foi um momento em que também houve crescimento e modernização na
indústria e alterações nas leis que regulavam as relações trabalhistas.
As políticas implantadas pelo Estado Novo estavam centradas na consolidação da
nação, o que se daria a partir da inclusão do país na lógica industrial do mundo capitalista, e
através da homogeneização cultural que permitiria a afirmação da brasilidade e
consequentemente, da identidade nacional. Neste sentido, Lúcia Lippi Oliveira salienta que
“Os princípios doutrinários postos em prática durante o regime de 1937 nos remetem às
relações entre a cultura, as formas de organização política e econômica e o modo de
compreender a existência humana na sociedade brasileira”
27
.
A partir desta afirmação é possível demonstrar o quanto as políticas culturais
implantadas durante o Estado Novo foram importantes para a legitimação do regime, e em
que medida a cultura estava presente em áreas estratégicas do governo, principalmente
26
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Estado novo: ideologia e poder, p. 32.
27
Idem , p. 9.
23
aquelas voltadas para a educação e a formação de jovens e trabalhadores. Nesse sentido, a
homogeneidade cultural tornara-se o principal meio de atingir a unidade pretendida pelo
regime, e para aceitação do modelo autoritário e centralizador.
A necessidade de adaptar a sociedade ao novo modelo de governo em que os direitos
políticos haviam sido extintos e o poder se concentrado no governo federal, exigiu do regime
a elaboração de um discurso e de práticas convincentes que fossem capazes de assegurar o
apoio, ou, ao menos, a aceitação das políticas impostas. Assim, educação, propaganda e
cultura passaram a compor a ideologia do regime e possibilitaram a adaptação à nova
realidade. Para atingir seus objetivos o governo se utilizava dos manuais escolares em que
divulgava as imagens que se tornariam símbolos do novo regime, como é o caso da bandeira
brasileira e do busto de Getúlio Vargas.
Ao mesmo tempo, nos veículos de comunicação, divulgavam-se elementos da cultura
popular representativos da história que se queria legitimar, a fim de compor-se a identidade
nacional e aproximar a sociedade dos princípios do regime. Nesse sentido, utilizou-se a
música popular, em especial o samba, com caráter moralista e educativo, e a imagem de
líderes como Tiradentes ou os bandeirantes para resgatar a memória de uma época escolhida
como fundadora da nação. E onde o Estado não alcançava o resultado esperado o regime agia
com outra prática bastante comum: a repressão.
A doutrina do regime estadonovista partia da premissa de que o Estado era a única
instituição capaz de promover o bem-estar social e também de garantir a coesão nacional. Esta
coesão seria possível a partir de um regime que assegurasse a defesa dos interesses coletivos e
nacionais ao invés de privilegiar o individuo. Nesse sentido o Estado Novo se apresenta como
um regime em que o Estado assumia a defesa desses interesses coletivos, ou como dizia
Oliveira Vianna, “O Estado, é na verdade, uma organização posta a serviço dos interesses
coletivos. Onde quer que surja um interesse coletivo, aí deve estar o Estado com a sua ação
vigilante, com o seu direito de intervenção”
28
.
Seguindo essa linha de pensamento, Azevedo Amaral um dos ideólogos do regime,
justificava a autoridade como uma “intervenção protetora da sociedade”, mas essa autoridade
devia estar submetida à lei. E o Estado deveria “ter todo o poder necessário para assegurar por
meios políticos, a coesão nacional”
29
. Segundo Lúcia Lippi Oliveira, a concepção de
autoridade de Azevedo Amaral não está “[...] fundada na tradição. Por vezes é a história que
28
VIANNA, Oliveira. O idealismo da constituição, p. 213.
29
AMARAL, Azevedo. O estado autoritário e a realidade nacional, p.168.
24
aparece como elemento relevante, mas o que vale notar é o papel criador da autoridade. Esta
se baseia na capacidade de ser eficiente frente às questões da sociedade industrial moderna.
[...] É ela que dá autoridade à sociedade fragmentada”
30
.
Legitimando o grupo a que pertencia, Azevedo Amaral, tentou demonstrar que
somente a elite intelectual seria capaz de “compreender o bem comum e transpor os valores
sociais para a esfera das instituições políticas”
31
. Assim, os intelectuais eram imprescindíveis
ao Estado tanto na elaboração ideológica do regime quanto na interpretação das aspirações
das massas. Azevedo Amaral dizia que para que as massas despertassem era necessário que se
exercesse sobre ela a ação de inteligência só percebida em uma minoria, ou seja, a elite
intelectual à qual pertencia.
No entanto, os intelectuais responsáveis pela divulgação e aceitação do ideário do
governo tinham consciência da necessidade da fabricação de símbolos que fornecessem as
referências necessárias para assegurar àquele momento histórico a implantação das mudanças
desejadas pelo Estado sem que se alterasse substancialmente o lugar determinado pela divisão
de classes. Necessitavam de símbolos que reforçassem o caráter nacional, que remetessem às
tradições nacionais e que, ao mesmo tempo, permitissem a inclusão do novo. Tradição e
modernidade, como já vimos anteriormente, compunham a política cultural do Ministério da
Educação e da Saúde - MES.
É nesse sentido que os intelectuais elegeram o patrimônio histórico e artístico nacional
como um dos símbolos portadores das referências necessárias para a construção da identidade
e também para a aceitação de mudanças e da inclusão do novo. Sua conservação assegurava
um lugar de conforto no passado e um sentido de continuidade histórica que permitiria propor
mudanças na ordem política, pois a cultura, através de um dos seus símbolos mais
significativos — o patrimônio — garantia a estabilidade necessária. Nesse sentido, a atuação
do SPHAN assumia um lugar de destaque dentro do MES, pois fornecia os símbolos
identitários necessários, ao mesmo tempo em que contribuía para a afirmação do novo e
colocava o país no mesmo patamar das nações desenvolvidas.
O MES divulgava e reforçava os símbolos criados pelos intelectuais através de todo o
aparato do governo e contava com o apoio do Departamento de Imprensa e Propaganda —
DIP — para realizar com êxito tal tarefa. Desse modo conseguia atingir a toda a população
utilizando-se de manuais escolares para os estudantes, de publicações destinadas a
30
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Estado Novo: ideologia e poder, p. 53.
31
Idem, p.54.
25
trabalhadores e da divulgação na imprensa, rádio e cinema, ao restante da população.
Enquanto o MES concentrava-se na idéia de “formar e educar”, tanto os estudantes como a
classe trabalhadora, o DIP fazia propaganda do regime e organizava comícios em que o líder
da nação encontrava-se com a população, reforçando também toda a simbologia em torno da
imagem de Getúlio como benfeitor e doador de todas as benesses divulgadas pelo regime,
entre elas a ideia de doação dos direitos trabalhistas assegurados na constituição.
Mas, apesar desse discurso do governo, Edgar Carone demonstra que a reação dos
trabalhadores nem sempre foi pacífica. Para o autor a necessidade de repressão a partir de
1937 e as greves que têm lugar quando da abertura democrática em 1945 “demonstram a
vitalidade e consciência ideológica do trabalhador”
32
. O autor demonstra a insatisfação de
parte da classe trabalhadora com a proposta estatal, autoritária e centralizadora, que mantinha
os trabalhadores atrelados ao poder através dos sindicatos de classes subsidiados por verbas
públicas.
Já Ângela de Castro Gomes, ao contrário, não percebe a classe trabalhadora como ator
relevante ou mesmo central no sucesso conferido ao processo do trabalhismo brasileiro que
teve início no governo de Vargas. Atribui o sucesso muito mais à habilidade do governo em
absorver algumas das reivindicações das lideranças trabalhadoras tranformando-as em sua
própria agenda política. Privilegia em seu texto o lugar ocupado pelo discurso do Estado na
construção da identidade do trabalhador brasileiro e na positivação do trabalho
33
.
No contra-fluxo da maioria das interpretações dos modos de dominação, Adalberto
Paranhos reconhece na ideologia trabalhista os sinais da resistência da classe trabalhadora e
considera o discurso do trabalhismo “uma fala roubada aos trabalhadores, reformulada e a
eles devolvida como mito”
34
. E um dos maiores mitos do discurso trabalhista foi o “mito da
doação”, em que a legislação social do governo passa a ser propagandeada como uma dádiva
do líder que antecipa o desejo dos trabalhadores brasileiros. Utilizando-se do conceito de
“positividade” de Foucault
35
, Paranhos salienta que a função do mito “não se define pela
negação das coisas” e sim na sua deformação, pois a fala roubada e posteriormente devolvida
já não é mais a mesma, sendo agora revestida de outra representação que a caracteriza como
uma fala mítica.
32
CARONE, Edgar. O Estado Novo (1937-1945), p.121.
33
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo.
34
PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil, p.23.
35
Para Foulcault positividade consiste na produção de indivíduos politicamente dóceis, economicamente úteis,
saudáveis e normais, através da disciplina e da normalização.
26
O interessante na análise de Paranhos é que ele demonstra o processo de apropriação
do discurso do trabalhador, e, a partir daí, oferece subsídios para compreensão não só do mito
da doação, mas também da mitificação de Getúlio, pois, nas palavras do autor “[...] o mito da
personalidade e o mito do Estado se entrelaçavam”
36
.
No entanto, adverte-nos que essa
mitificação ideológica não representava uma simples manipulação de massas e sim de uma
convivência por vezes contraditória entre a manipulação das classes trabalhadoras e a
manifestação de seu descontentamento. O que indica as dificuldades enfrentadas pelo regime
autoritário e a necessidade da coerção e da propaganda, além da apropriação de símbolos da
cultura popular para manter o trabalhador sob controle.
A fala mítica trazia em si outro aspecto importante e determinante para o Estado
Novo: era uma fala despolitizada, sem historicidade, desprovida de memória e
conseqüentemente de valor. Era essa a intenção do Estado quando se apropriava da fala
operária e a transformava na doação das leis sociais.
Ao que tudo indica, a insubmissão e a indisciplina dos trabalhadores foram motivos
pelos quais as lideranças do governo ressaltavam constantemente a necessidade de
manutenção da ordem e da solidariedade, através do uso da propaganda oficial e de outros
recursos de representação disponíveis. Contudo, como nos adverte Chartier, a eficácia da
representação “depende da percepção e do julgamento de seus destinatários, da adesão ou da
distância ante mecanismos de apresentação e de persuasão postos em ação”
37
.
Nesse sentido, o Estado dilui o poder em um sistema de forças, através dos órgãos de
repressão, organização, ensino e cultura, que compartilhavam do mesmo interesse, a
valorização da brasilidade. Por esse motivo, acredita Bomeny, o exército se sentiu autorizado
a interferir no sistema educacional, por considerá-la questão de segurança nacional,
invertendo, assim, a lógica de que a educação gera ordem e disciplina, pois na verdade o que
se deu foi a necessidade de ordem e disciplina que teve na educação o seu canal de coerção
38
.
Apesar de abordarem diferentes aspectos do regime, o que todos os historiadores
relatam é o fato de que as ações do Estado estavam sempre voltadas à formação do novo
homem, e o Estado “fixando os postulados pedagógicos fundamentais à educação dos
brasileiros”
39
, impunha o culto à nacionalidade a partir de um ponto de vista elitizado,
coercitivo e disciplinador. Disciplina essa que iria perpassar todas as ações propostas pelo
36
Idem, p. 203.
37
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietações, p.178.
38
BOMENY, Helena. Três decretos e um ministério (...), In:. Repensando o Estado Novo, p.141
39
GOMES, Ângela de Castro. Ideologia e trabalho, In: Repensando o Estado Novo.
27
Estado Novo, que utilizou o discurso nacionalista na intenção de neutralizar as diferenças
políticas, culturais e econômicas, e unificar o país.
E o Estado se utilizou, para esse fim, da política cultural — baseada nos costumes, na
língua, nos símbolos, sentimentos e representações já existentes entre a população — como
recurso de convencimento que através da (re)significação dotou a população de um
sentimento de identificação com a nação que se formava. Desse modo o governo tentava
substituir a falta de participação política por meio da identificação cultural através dos
símbolos nacionais.
Segundo Schwartzman, Bomeny e Costa, “[...] havia que produzir os símbolos
culturais do Estado Novo, que substituíssem a iconografia da República, que mal conseguira
desmontar a hagiologia do Império”. Devido à natureza histórica e cultural destes símbolos o
ministério de Capanema foi o principal responsável por sua afirmação, buscando “suas raízes
nos mitos da cultura indígena e nas epopéias dos bandeirantes; os monumentos do passado
deveriam ser recuperados e preservados na memória nacional [...]”
40
. Nesse sentido a cultura
serviria como mediador estabelecendo uma espécie de ponte entre o passado e o presente e o
patrimônio cultural desempenharia um papel importante nesse processo de formação de
subjetividades individuais e coletivas, pois como nos diz José Reginaldo Santos Gonçalves
“[...] não há subjetividade sem alguma forma de patrimônio”
41
.
O uso desses elementos subjetivos durante o Estado Novo foi determinante para a
implantação e aceitação do Estado forte como única alternativa, pois ao mesmo tempo em que
o regime cerceava a liberdade política, utilizava-se de referências históricas e mitológicas que
forneciam o sentimento de pertencimento e lealdade à pátria. E de que forma o Estado as
utilizou e como a política cultural foi pensada de modo a perpassar todas as ações do
governo?
Concentrando seus esforços na construção da identidade nacional a partir da
homogeneidade cultural, o Estado dividiu a responsabilidade sobre a política cultural entre
dois dos mais atuantes órgãos do governo: o Ministério da Educação e Saúde — MES — e o
Departamento de Imprensa e Propaganda — DIP, ambos atuando em sintonia com o
Ministério do Trabalho, pois o trabalhador era um dos principais alvos das políticas públicas
destinadas à formação do novo homem e à constituição do Estado nacional.
40
SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria Bousquet e COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de
Capanema, p.23 e 24.
41
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como
patrimônios. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano II, n. 23, p. 15-36, jan/jun/2005.
28
O MES, sob o comando de Gustavo Capanema durante 11 anos, tinha como
preocupação central a formação do novo homem e a consolidação da identidade nacional,
através da educação e da cultura. O próprio ministro Capanema já demonstrava, em 1935,
como ele definia o programa de seu ministério, sintetizado em duas palavras: cultura nacional.
Para Williams Daryle tal denominação era “mais adequada aos empreendimentos culturais da
formação do corpo, do espírito e da alma dos brasileiros, de responsabilidade daquela
pasta”
42
.
Preocupado em formar o novo homem que se adaptaria ao Estado Novo, o ministro
Capanema implantou no MES, em relação à educação, a máxima já defendida na Constituição
de 1937, na qual a União fixava “as bases para determinar ao quadros da educação nacional,
traçando as diretrizes que deve obedecer a formação física, intelectual e moral da infância e
da juventude”
43
. Dessa forma, o Estado centralizou a organização e o controle da educação
em todos os níveis. Segundo Clarice Nunes, o modelo imposto por Capanema era “centralista,
segmentador e excludente. [...] Não respondeu às necessidades sociais que a industrialização
acabou provocando, [...] mas contribui para a expansão do ensino privado de nível médio
[...] ”
44
.
A influência de Alceu Amoroso Lima junto ao ministro foi determinante nesse
processo, interferindo tanto na abertura de novas universidades quanto no crescimento do
ensino secundário e na divulgação, através da educação estatal, dos princípios religiosos.
Segundo Daniel Pécault, “Alceu Amoroso Lima transformou-se em guardião vigilante de uma
ordem moral e, após 1930, em incansável defensor da tutela da Igreja sobre o ensino
público”
45
.
Embora o ministério de Capanema fosse responsável pela educação e pela saúde, é na
área cultural que sua atuação ganhou mais visibilidade. Capanema tinha “perfeita consciência
da importância da relação entre política e cultura”, o que deu ao MES “o caráter de gesto
fundador das relações entre Estado e cultura no Brasil, implantando um modelo não apenas
institucional como também de relação entre poder público e intelectuais, o qual só muito
recentemente começou a se transformar”
46
.
42
WILLIAMS, Daryle. Gustavo Capanema, ministro da cultura. In: Capanema: o ministro e seu ministério,
p.151.
43
NUNES, Clarice. IN: BOMENY, Helena (Org). Constelação Capanema: intelectuais e política, p. 113.
44
Idem.
45
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação, p.28.
46
LONDRES, Cecília. IN: BOMENY, Helena (Org). Constelação Capanema: intelectuais e política, p.101.
29
Segundo Ângela de Castro Gomes, “[...] é necessário e interessante, para o ministro,
estabelecer contatos com o meio intelectual, do mesmo modo que é eficaz para os intelectuais
participar desse novo espaço que se abre e oferece oportunidades tanto de tipo financeiro
quanto de prestígio sociocultural”
47
. A cultura era vista pelo ministro como uma área
estratégica que permitiria unificar a nação, construir a identidade nacional, criar o novo
homem e manter os princípios do regime, o que conferia uma ampliação da área de atuação do
ministério, segundo a visão de Capanema. E o SPHAN era parte fundamental nesse processo,
pois fornecia a materialidade necessária para a construção da nação.
No entanto a instalação do regime através de um golpe de Estado demandou a
organização de canais de divulgação que se destinavam mais à propaganda dos atos do
governo e à difusão da imagem do presidente do que à formação pretendida por Capanema.
Além disso, a necessidade de controle sobre a produção artística para que esta se adequasse
aos princípios defendidos pelo Estado Novo também se colocava fora da área de atuação do
MES. Estas funções de propaganda e controle, tanto dos veículos de comunicação como das
expressões artísticas, foram delegadas ao DIP, sob responsabilidade de Lourival Fontes.
O DIP foi criado em 1939 e vinculado diretamente à Presidência da República, com a
finalidade segundo Capelato, de “elucidar a opinião pública sobre as diretrizes doutrinárias do
regime, atuando em defesa da cultura, da unidade espiritual e da civilização brasileira”
48
.
Responsável pela propaganda e pela censura o órgão contava com as divisões de divulgação,
radiodifusão, cinema, teatro, turismo e imprensa. O departamento passou a interferir de forma
direta nas práticas culturais destacando-se por assumir a responsabilidade, como afirma a
autora, “pela defesa da unidade nacional e a manutenção da ordem”
49
.
E, embora o ministro Capanema reivindicasse que as áreas educativas tanto do rádio
como do cinema permanecessem em seu ministério, elas foram transferidas ao DIP. Nesse
sentido, a criação de “aparatos culturais” era vista por Mônica Pimenta Velloso como
resultado da compreensão que o governo possuía da questão cultural, que a partir de então
“passa a ser concebida em termos de organização política”
50
. Segundo Silvana Goulart, o DIP
exercia “uma função educativa e pedagógica”, impondo um “padrão de comportamento
47
GOMES, Ângela de Castro. O ministro e sua correspondência IN: Capanema: o ministro e seu ministério,
p.16.
48
CAPELATO. Maria Helena. Propaganda política e controle dos meios de comunicação. In: Repensando o
Estado Novo, p.172.
49
Idem. p.173.
50
VELLOSO. Mônica Pimenta. Estado Novo: ideologia e poder, p. 72.
30
público e privado em que o produtivismo se destacava como dos principais valores a serem
incorporados”
51
.
Ao mesmo tempo em que pretendia conquistar a classe trabalhadora e garantir seu
apoio às práticas do regime, o DIP preocupava-se também em assegurar a adesão das classes
dominantes, que “não viam com bons olhos a centralização e o autoritarismo estadonovistas e,
principalmente, a ingerência estatal na vida econômica do país”
52
. Assim, enquanto o
discurso destinado aos trabalhadores centrava-se na valorização do trabalho como forma de
reconhecimento e garantia de um sistema igualitário — ética cristã —, o conteúdo
direcionado às classes dominantes era diferente, pois diferentes eram seus objetivos. De
cunho político e filosófico, tentava justificar o regime salientando seu caráter inovador e sua
preocupação em coordenar e distribuir a riqueza do país, na tentativa de garantir a adesão e o
consentimento da elite
53
.
Utilizando-se tanto dos recursos de imagem quanto da linguagem do discurso religioso
o DIP teria explorado o imaginário popular através do que Alcir Lenharo denomina “de um
modo de pensar sacralizador da política”
54
. Nos textos dos ideólogos do regime que escreviam
nas revistas Cultura Política e Ciência Política, editadas pelo DIP, nos discursos do
presidente e na iconografia do regime, o apelo ao irracional dava-se através do intercâmbio
entre a teologia e a política, como veremos adiante.
Lenharo levanta alguns aspectos pertinentes referentes à fala do Estado mediada pelo
moral cristã: a imagem do Estado como salvador, a domesticação do corpo, a mediação dos
conflitos sociais e a pacificação dos trabalhadores através dos atributos que a Igreja
emprestava ao Estado. Nesse sentido, o regime empregava a imagem, como nos diz o autor,
com a finalidade política de disseminar uma “carga emotiva e sensorial, de modo a atingir
facilmente o público receptor, detonando respostas emotivas que significassem, politicamente,
estados de aceitação, contentamento, satisfação — reações passivas e não críticas”
55
.
O mesmo autor considera que o sucesso do uso da imagem durante o regime
estadonovista se deu porque a população já convivia com o uso das imagens e dos símbolos
religiosos. Aliás, toda a propaganda do regime voltada às massas utilizou-se de metáforas ou
de simbolismos religiosos visando não só à aceitação do Estado Novo, mas principalmente à
51
GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo, p.18.
52
Idem..
53
Ibidem.
54
LENHARO, Alcir. A sacralização da política, p. 153.
55
Idem, p.16
31
adesão através de um comprometimento com a pretensa “salvação da pátria”. Um exemplo
facilmente identificado é a sacralização do corpo que, conforme Lenharo, assumiu um valor
de oferenda, onde “[...] cada cidadão é convidado a dar sua vida, verter seu sangue [...]”
56
pela pátria.
Ao mesmo tempo em que se apoiava no universo cristão de forte apelo emocional o
órgão controlava os veículos de comunicação através da censura. Exercia uma forte
fiscalização sobre os jornais da época para que não desqualificassem a política estadonovista,
valorizava a música como elemento de coesão social — canto orfeônico — e mantinha o rádio
como um forte aliado na divulgação de seu ideário e no contato direto de Getúlio Vargas com
os ouvintes. Na música podemos perceber claramente a incorporação de símbolos da cultura
popular na louvação ao regime e ao presidente, ao mesmo tempo em que se glorificava o
trabalho.
O DIP e o Ministério do Trabalho exerciam forte pressão sobre os trabalhadores,
restringindo sua participação política e regulando seus hábitos sociais e culturais, pois o
crescimento da indústria brasileira, sinal da modernização do país, exigia um homem moldado
aos princípios morais do Estado — um homem sadio, educado, disciplinado — apto a
transformar o Brasil em uma nação desenvolvida e moderna.
Desse modo, através da centralização dos postos de controle dos canais de afirmação e
propaganda da ideologia estadonovista nas mãos dos principais ideólogos conservadores, o
governo foi capaz de executar seu projeto político criando uma rede de comunicação em que
cada um dos meios de divulgação utilizados mantinha características individuais tanto em
relação a seus colaboradores e leitores como em relação ao conjunto. Parte dessa bem
sucedida articulação pode ser percebida através da análise comparativa das revistas Cultura
Política e Ciência Política, feita por Mônica Pimenta Velloso. A autora demonstra o lugar
ocupado pelos intelectuais, em que se percebe a clara divisão de papéis entre aqueles que
definem o rumo político e os que apenas divulgam e enaltecem o regime.
Esse processo deu-se de maneira distinta dentro do campo intelectual, pois, da mesma
forma que a nova sociedade proposta pelo Estado Novo mantém uma hierarquia que define o
lugar de cada indivíduo em relação ao poder, há uma divisão clara entre os detentores do
conhecimento, em relação ao que e para quem produzem. Enquanto os intelectuais ligados à
execução das políticas públicas ou envolvidos na concepção do regime discutem temas
56
Ibidem, p.18.
32
relevantes — política, filosofia e sociologia — e ocupam espaços de destaque, pois são
responsáveis pela elaboração do discurso nacionalista, aos outros destina-se o espaço
“menor”, demonstrando a importância e o grau de proximidade de cada um deles com o poder
e sua ideologia, e a eficácia e coerência do regime
57
na execução dessa estratégia.
Espaço privilegiado para a compreensão da atuação dos intelectuais, a revista Cultura
Política, dirigida por Almir de Andrade entre 1941 e 1945, era o principal veículo de
afirmação dos teóricos atraindo a todos os que se identificavam com o novo conceito de
cultura relacionado e determinado pela política. Almir de Andrade, um dos ideólogos do
governo Vargas, trabalhou com a temática nacionalista a partir de um enfoque diferente:
concebeu o projeto ideológico centrado na cultura. Para Almir de Andrade, “A cultura põe a
política em contato com a vida, com as mais genuínas fontes de inspiração popular. A política
empresta à cultura uma organização, um conteúdo socialmente útil, um sentido de orientação
para o bem comum”
58
.
Sua proposta político-cultural ia ao encontro da necessidade do governo de
fundamentar a criação da nacionalidade brasileira unindo a demanda política do governo às
tradições culturais brasileiras. Partia do princípio de que cada povo possui uma cultura única e
que cada cultura deveria possuir seu sistema de vida política, originalmente sua, adaptada à
própria realidade. Definia cultura como tudo que o homem produziu em sociedade, tudo que é
gerado pelo esforço coletivo de adaptação ao meio e de racionalização de suas contingências.
Nas páginas da revista que Almir de Andrade dirigiu apresentavam-se todos os
fundamentos e discussões teóricas do Estado Novo, que se tornariam referência para outros
veículos e artigos publicados no período. Destinada a um público mais culto e formador de
opinião Cultura Política foi um canal estratégico de discussão dos problemas brasileiros e
difusor dos princípios do Estado, o que não impediu a participação de pensadores menos
alinhados às práticas do regime.
O que se percebe em relação à revista é que ela contém significados que autorizam o
discurso estadonovista justamente por pressupor o que Bordieu denomina de “acordo nos
terrenos do desacordo”, o que significa que a aproximação dos intelectuais se dava devido ao
fato de terem frequentado as mesmas escolas e de compartilharem um “repertório de
expressões e signos da cultura e da ciência que lhes permitem estabelecer consensos”
59
.
57
VELLOSO, Mônica Pimenta. Cultura e poder político In: Estado Novo: ideologia e poder p.71 a 104.
58
ANDRADE apud OLIVEIRA, 1982, p.34.
59
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.207.
33
Assim, mesmo que os intelectuais discordassem das práticas do regime estadonovista, o que
os levava a participarem da discussão nas páginas da Cultura Política era também o fato de
possuírem uma base cultural comum, o que acarretava consenso em relação a alguns pontos
de vista, como por exemplo, a necessidade, para um governo autoritário, de promover o
ingresso do país na modernidade.
Ao analisarmos a atuação do DIP, percebemos que a própria necessidade de um órgão
com tamanha abrangência e poder, já demonstrava as dificuldades enfrentadas pelo governo
para justificar as suas práticas autoritárias e centralizadoras, e para manter sob controle os
conflitos de classes. Por isso, o regime concentrou esforços para impedir a participação
política da população e garantir sua adesão através da utilização de elementos simbólicos do
universo popular, explorados através da música, da imagem e de festas e comemorações
cívicas.
Então, a partir dessas colocações, concluímos que as inovações que tiveram lugar
durante o Estado Novo estão relacionadas muito mais às formas de divulgação do ideário do
regime, suas estratégias de convencimento, ao uso da cultura e à participação dos intelectuais,
do que à alteração das práticas do poder ou das relações de classe.
1.3. INTELECTUIAS E PODER
Atuando de forma diferenciada, tanto o ministério de Capanema quanto o
departamento coordenado por Lourival, contaram com a participação dos intelectuais na
definição, divulgação e legitimação da cultura nacional. Artistas e intelectuais percebiam a
participação no governo como uma oportunidade de pôr em prática suas teorias e colaborarem
com a construção do Estado de bem-estar, ao mesmo tempo em que não ignoravam o uso
político de suas ações. Chamados a ocupar o espaço de reflexão necessário à sustentação das
políticas culturais, os intelectuais utilizaram-no para obter reconhecimento profissional e se
uniram na “missão” de estabelecer os parâmetros da uma cultura de massa. Determinar o que
merece destaque é uma função política que demonstra o lugar em que o sujeito da escolha
ocupa na sua relação com o poder.
Sabiam que a criação da nação necessitava de um suporte teórico que o Estado só
encontrava neles, portadores de conhecimento que permitia referenciar tanto a tradição quanto
a modernidade, tão necessárias ao desenvolvimento do projeto político do Governo Vargas.
34
Segundo Lauro Cavalcanti a participação dos intelectuais “[...] deixa transparecer a crença
moderna de que era o Estado o lugar da renovação e da vanguarda naquele momento, assim
como o vislumbre da possibilidade de aplicar na realidade ideias de reinterpretação ou
reinvenção de um país que estava sendo praticado nas páginas de seus livros”
60
.
E a questão que estava na ordem do dia da intelectualidade brasileira era a nação e a
nacionalidade. Dominar o sentido da nação, conferindo-lhe imagem e texto que permitissem
desvendá-la e encontrar sua singularidade, era o interesse que os aproximava. No entanto,
percebemos que os discursos — como o dos intelectuais — que buscavam a homogeneidade,
acabaram por trair a própria intenção quando reforçavam características regionais para
fundamentar a identidade nacional, trazendo à cena ora o bandeirante como símbolo de
resistência e da nacionalidade, ora o nordestino, dependendo de que lugar falava o
interlocutor. Embora destacassem o regional na medida em que esse se inseria no nacional,
esta atitude revela a fragilidade do discurso nacionalista que pretendia a unidade política em
um país marcado pela tensão permanente entre o regional e o nacional. Segundo Albuquerque
Júnior, “mesmo partindo de conceitos que operam uma homogeneização da realidade, a nação
é vista como uma projeção do lugar do qual se emite o discurso, o que ressalta as diferenças
entre os vários Brasis”
61
.
Ao mesmo tempo, os intelectuais firmavam-se enquanto grupo social dando
prioridade, como nos diz Daniel Pécaut, à “intervenção no domínio cultural”, por estarem
“convencidos de que a essência do político era o processo que conduziria ao advento de uma
identidade cultural”. Os intelectuais de trinta assumiram assim um papel importante, porque
“O Estado, apresentando-se como responsável pela identidade cultural brasileira, desejava
realizar a unidade orgânica da nação e recorria aos intelectuais para alcançá-la”.
Para o autor,
o Estado estava tão propenso ao “realismo” quanto os intelectuais e “necessitava destes para
fazer a teoria dessa realidade e tomar parte no desenvolvimento da propaganda
nacionalista”
62
. Oliveira Vianna já defendia em seus textos que a solução para os problemas
do Brasil ocorreriam através da adoção de um regime adequado à realidade nacional e que
esse realismo político seria uma espécie de idealismo orgânico em oposição ao idealismo
60
CAVALCANTI, Lauro. Modernistas, arquitetura e patrimônio. In: Repensando o Estado Novo / Dulce
Pandolfi, organizadora. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. p. 179-189.
61
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A moldura das nacionalidades: a construção imaginária da nação
brasileira no século XX, p.11.
62
PÉCAUT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil, p.32.
35
utópico proposto pelos liberais, segundo sua definição.
63
A mesma ideia de elaboração “de
formas orgânicas de sociedade e a harmonia entre formas organizacionais e a realidade”
64
era
um dos pontos centrais do pensamento de Azevedo Amaral, segundo Lúcia Lippi Oliveira.
Ainda sobre o realismo, Daniel Pécaut salienta que esse lugar-comum no período tinha
como objetivos “[...] mostrar que não existe o indivíduo isolado: ele está já de início, inserido
numa coletividade. [...] destacar a interdependência entre aqueles que ocupam posições
sociais desiguais; desse modo caducavam todas as teorias fundadas na divisão de classes”.
Para o autor, o que os intelectuais pretendiam com esse discurso realista era “provar que
existia uma unidade nacional de fato, que faltava apenas fortalecer pela via institucional”. O
intelectual, “apaixonado pelo realismo, desejava descobrir esta mistura de uniões e desuniões
sociais anteriores a toda instituição política”. Pécaut vê nessa atitude do intelectual que tenta
buscar em outro plano o controle político e um modelo ideal de organização social, uma
negação da própria dimensão do político. O que acarretou, segundo o autor, uma margem
ilimitada de ação ao Estado para que promovesse “politicamente a cooperação orgânica entre
os diversos segmentos sociais”
65
.
Nesse sentido têm destaque os intelectuais modernistas que procuravam romper com
o romantismo e buscavam a objetividade através de métodos científicos que permitiam uma
análise mais apurada da realidade. Segundo Afrânio Coutinho esse movimento, que se deu
primeiramente em relação à literatura, coincidiu “com o início do trabalho de valorização,
análise e interpretação da realidade brasileira, graças aos estudos antropológicos, etnográficos,
folclóricos, sociológicos, históricos e lingüísticos, [...] olhou para o mundo brasileiro, [...] não
mais com o sentimentalismo do romântico”
66
.
Instrumentalizados através do conhecimento da “verdadeira” história do país e atraídos
pela possibilidade de produção intelectual que o Estado oferecia através de seus mecanismos
de divulgação — publicações de artigos, jornais e revistas — e da possibilidade de atuação
nos órgãos recentemente criados pelo aparato burocrático, cumpriram o duplo papel de formar
a nação e o povo brasileiro e de ocupar um espaço de influência e reconhecimento.
67
E esse
olhar especializado transporá as áreas obscuras de nosso passado, a partir de então
63
Idealismo utópico, segundo Oliveira Vianna, “é todo e qualquer sistema doutrinário, todo e qualquer regime
de aspirações políticas em desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e
dirigir”. Já o idealismo orgânico seria o resultado da evolução orgânica da sociedade e se caracterizaria por uma
evolução antecipada da evolução.
64
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. In. Estado Novo: Ideologia e Poder, p.52.
65
PÉCAUT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil, p.47
66
COUTINHO, Afrânio (Coord.). A literatura no Brasil. p.14.
67
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira, p.198 e 199.
36
historicizado e identificado com o poder e suas intenções, e reunirá as diferentes classes
sociais em torno da nação.
No entanto, cabe salientar que a participação dos intelectuais na tarefa de resgate das
tradições brasileiras e da construção da identidade nacional não deve ser tratada somente
como “cooptação” dos intelectuais envolvidos, conforme análise de Sergio Miceli
68
. Naquele
momento o Estado se apresentava como o único espaço portador das ferramentas necessárias
à pesquisa, participação e visibilidade da produção intelectual. E essa confluência de
interesses, na qual o Estado forneceu os meios de acesso à pesquisa e ao reconhecimento da
inteligência nacional e os intelectuais perceberam a possibilidade de interferirem na produção
da “nova” história brasileira, resultou em uma política cultural formulada a partir de múltiplos
pontos de vista unificados através do controle e da centralidade do Estado.
Entretanto, como nos diz Ângela de Castro Gomes, há uma distinção entre
manipulação de massas e envolvimento consciente de intelectuais e burocratas no uso dos
símbolos que se utilizam para dotar de sentido a história nacional e a partir daí a própria
nação. Esse foi o caso da equipe que atuou junto ao ministro Capanema na consolidação do
patrimônio histórico e artístico nacional. É inegável que a seleção de signos encontrava
ressonância em tradições do passado e são esses vínculos que deveriam ser “observados e
respeitados, para então serem tratados pela propaganda oficial”
69
.
A ressonância estaria relacionada ao poder de um objeto ou lugar “evocar no
espectador as forças culturais complexas e dinâmicas, das quais ele emergiu [...]”
70
. Por isso a
aceitação e a legitimação do patrimônio não dependiam apenas da escolha do Estado, o que
significaria que a construção da identidade e da memória coletiva precisava eliminar as
ambigüidades, fornecendo símbolos e bens culturais capazes de representarem memórias e
identidades unificadas e homogêneas. Para Gomes “É nesse difícil equilíbrio que a
diversidade social e intelectual pode se transformar em homogeneidade política, que inclui
áreas significativas de unidade cultural”
71
.
Reunidos em torno da ideia de um Estado forte e atuante, que solucionasse os
problemas sociais e promovesse a modernização através da industrialização do país, os
intelectuais contribuíram para estabelecer a relação entre educação, cultura e trabalho
68
Idem.
69
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro:
Fundação Getulio Vargas, 1996, p.23.
70
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como
patrimônio. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano II, n. 23, p. 15-36, jan/jun 2005.
71
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores, p.21.
37
voltados à formação do novo homem capaz de se submeter e aceitar as condições impostas
pelo Estado. Educação e cultura passaram a fazer parte do discurso que permeou todas as
ações políticas do Estado, o que resultou em uma discussão que foi além da área de atuação
do Ministério de Educação e Saúde e as colocou no centro do projeto político do Estado. E o
que tornou a educação e a cultura centrais foi exatamente a possibilidade de fornecerem e
reforçarem os símbolos necessários na construção da nacionalidade.
Entre os símbolos utilizados para reforçar o sentimento de pertencimento à nação, o
patrimônio conquistaria um lugar de destaque na medida em que era portador de valores
históricos e artísticos que, segundo Maria Cecília Londres Fonseca, assumiram uma
“dimensão instrumental, e passam a ser utilizados na construção de uma representação da
nação”
72
. O reconhecimento do patrimônio, segundo a autora, cumpre algumas funções
simbólicas que foram ao encontro das necessidades do regime estadonovista: “funcionam
como documentos, ‘provas materiais’ das versões oficiais da história nacional, que constrói o
mito de origem da nação e uma versão da ocupação do território, visando a legitimar o poder
atual”
73
.
Londres Fonseca evidencia ainda a função pedagógica da conservação do patrimônio,
“a serviço da instrução dos cidadãos”, na medida em que ele fornece elementos históricos e
artísticos que contribuem para a educação formal. As palavras do ministro Capanema
demonstram a relação da educação com o patrimônio, pois o ministro, ao proferir um discurso
na formatura da primeira turma de professores de pedagogia, referiu-se à importância do
ensino secundário afirmando que “Cumpre-lhe dar à juventude o sentimento de pátria, a
compreensão da pátria como terra dos antepassados, a compreensão da pátria como um
patrimônio construído e transmitido pelos antepassados [...]”. Reforçando que cabia a esta
“além da compreensão e do sentimento da pátria, a decisão, a vontade e a energia de guardar
ileso, à custa de qualquer sacrifício, esse patrimônio dos antepassados, e de continuamente
enriquecê-lo e ilustrá-lo.”
74
.
E nesse momento, a centralidade da educação se impõe justamente por ser através dela
que, segundo Helena Bomeny, se dá “o processo de adaptação do homem às novas
situações”
75
. A educação era esse lugar onde se daria o processo de conformação e construção
do sentimento de brasilidade e que se formou em duas frentes: na preparação do trabalhador e
72
FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo, p.31.
73
Idem, p.59.
74
Ibidem, p.63.
75
BOMENY, Helena. Três decretos e um ministério (...), In: Repensando o Estado Novo, p.138 e 139.
38
na formação do intelectual. A necessidade de formar o trabalhador com os valores da nova
sociedade e preparado para o mundo do trabalho industrial coexistia com a obrigação de
preparar o intelectual para a ocupação dos postos de comando e direção do país.
Estabelecendo uma falsa oposição entre prática e teoria, o Estado Novo separou a educação
humanista da profissionalizante nos seguintes termos: enquanto um pensava e decidia o outro
executava e obedecia.
O caráter autoritário da proposta educacional de Gustavo Capanema é demonstrado
por José Silvério Baia Horta em seu artigo sobre a I Conferência Nacional de Educação
quando relata a imposição do projeto ministerial, sintetizada na ideia: “educar para a pátria” e
não “educar para a sociedade” conforme defendiam os educadores da Escola Nova.
Capanema acreditava que a concepção da Escola Nova não preparava o homem com a
unidade moral necessária para os fins cívicos propostos pelo regime, percebendo o cidadão
formado a partir desta escola como “um cidadão qualquer” e não como um
“cidadão do Estado Novo”.
Essa diferença era fundamental, pois o objetivo de formar o cidadão, para Capanema,
era “construir a nação, nos seus elementos materiais e espirituais conforme as linhas de uma
ideologia precisa e assentada, e ainda tomar as posições de defesa contra as agressões de
qualquer gênero que tentem corromper essa ideologia [...]”
76
. E o cidadão “peculiar” do
Estado Novo estava preso à pátria no sentido de pater, pai, que Chaui designa como poder
patriarcal, no qual “a pátria é o que pertence ao pai e está sob seu poder”
77
.
Contudo, todo esse esforço do Estado na construção de uma imagem que mantivesse
um canal direto de comunicação com o trabalhador exigia que o governo fundamentasse o seu
discurso em referências históricas, pois a censura e o controle dos meios de informação por si
só não garantiriam o sucesso da propaganda e a legitimação dos princípios do regime. Em um
ambiente em que mudanças sociais são impostas pelo novo jogo do poder, principalmente nas
relações de trabalho e produção, a história se tornaria uma ferramenta importante para formar
a nova nação, pois o passado atuaria como modelo para o presente e a partir dele surgiriam
mitos e invenções que reforçavam a identidade nacional. Indo ao encontro dessas
necessidades do governo, as referências ao patrimônio histórico permitiriam demonstrar a
existência de uma história nacional permeada de heróis, inclusive de heróis mestiços como é o
76
Arquivo Gustavo Capanema apud: HORTA, José Silvério Baia. A I conferência de educação (...), p. 150.
77
CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária.
39
caso de Aleijadinho que veremos a seguir. E forneceria também a possibilidade de construção
de uma sociedade isenta de contradições e conflitos, onde estariam depositadas as origens da
identidade nacional.
Foi essa necessidade de afirmação em símbolos e referências que reunissem a
população em torno de um mesmo código de afirmação e pertencimento que levou o governo
a valorizar a história e, a partir dela, a elaboração de uma narrativa que desse conta de um
passado revestido de sentido, com justificativas para o presente, ao mesmo tempo em que
possibilitasse a inovação e a mudança nas relações sociais e de produção pretendidas. Mas
como a narrativa histórica não é um processo imparcial e o passado é uma construção a partir
de um olhar contemporâneo, podemos dizer que a escolha do que será restituído de
significado é determinada pelo regime em que essa está inserida e passa a ser determinante
enquanto elemento da memória para sua sustentação.
Ângela de Castro Gomes, em seu livro História e historiadores, levantou algumas
questões pertinentes a esse respeito, focalizando seu estudo na “construção intelectual da
história do Brasil” produzida durante o Estado Novo. A autora relaciona esse investimento na
produção de uma história brasileira como parte da política cultural, ampla e complexa,
desenvolvida pelo governo e justificada pelo fato de que nesse momento o Brasil constituía-se
como Estado nacional. Partindo de algumas premissas já estabelecidas sobre a formação dos
Estados nacionais — a necessidade de um passado e de “um lugar na história” — afirma, em r
elação à importância de uma história brasileira, que essa reside na “capacidade de construção
de homogeneidade política que a historia nacional de um país pode produzir, transcendendo
as diversidades culturais, sejam elas classificadas como geográficas, folclóricas, etc.”
78
. A
história interessa ao Estado, pois é através dela que se torna possível a mobilização do “povo-
nação” que passa a compartilhar um passado único
79
.
Segundo Gomes, “[...] durante os anos do Estado Novo faz-se um esforço consciente e
avultado para redescobrir o passado histórico enquanto realidade antecedente e passível de
compreensão”
80
, um passado construído através do tempo histórico e não da tradição, que
fornecesse os subsídios para explicar o novo. A eficácia dessa estratégia política de
revalorização do passado dependia da articulação promovida pelo ministro Capanema em
duas áreas distintas, mas complementares: a da produção intelectual que fornecesse os
78
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores, p.22 e 23.
79
Idem, p.145.
80
Ibidem, p.145.
40
subsídios de defesa da escrita de uma história do Brasil — através da revista Cultura
Política
81
— e aquela ligada às tradições populares que permitissem recuperar um passado
sem conflitos, apaziguado, que fundamentasse a nacionalidade e fornecesse as raízes da
brasilidade.
O levantamento das tradições populares tão insistentemente apontado por Mário de
Andrade quando tratava do patrimônio histórico nacional era percebido por Capanema como
um meio de garantir a moralização da cultura nacional, e daí resultava o controle exercido
sobre expressões tradicionais populares, como é o caso do carnaval. O ministro assegurava ao
patrimônio histórico e artístico — em geral as edificações representativas da classe dominante
— um lugar de destaque enquanto símbolos do passado e da cultura nacionais. O patrimônio,
em oposição às tradições culturais, remetia a um passado idealizado em que não se alteravam
as tradições, como era o caso da cultura popular, e que permitia contar a história nacional que
se adequasse aos princípios e propostas do regime.
Projetar o futuro e alterar as formas conhecidas do fazer político exigia um
conhecimento aprofundado da história que permitisse ao Estado alcançar o sentido de
continuidade fundamental para a aceitação das mudanças a serem implantadas. Mas esse olhar
dos anos trinta para o passado tinha a clara intenção de “pinçar” os acontecimentos e fatos que
justificassem o regime autoritário, centralista e ao mesmo tempo modernizador. A história,
nesse contexto, é movimento e continuidade — presente e futuro — ao mesmo tempo em que
idealização de um tempo estático — passado — em que a narrativa fornece os elementos
necessários à consolidação do nacionalismo. Uma nação sem história que lhe dê visibilidade e
ao mesmo tempo forneça uma interpretação que a aproxime do povo seria algo anacrônico.
É também através da história – com seus heróis, acontecimentos e atos significativos
— que o Estado se utiliza dos símbolos essenciais à construção da identidade nacional. E a
divulgação e consolidação desses símbolos deram-se novamente através da inter-relação entre
cultura e educação. Os suportes necessários para a recuperação do passado foram fornecidos
pelo Ministério da Educação através da consolidação da história do Brasil como disciplina, na
publicação da revista Cultura Histórica, no apoio à publicação da produção histórica e no
calendário de comemorações que serviram para valorizar fatos e líderes políticos, entre eles
Getúlio Vargas. Além disso, nesse período foram ampliadas as sedes do
81
Uma análise mais aprofundada do discurso da revista Cultura Política encontra-se no artigo de Mônica
Pimenta Velloso, Uma configuração do campo intelectual ( capítulo 3), do livro Estado Novo: ideologia e poder,
de Lucia Lippi Oliveira, Mônica Pimenta Velloso e Ângela Maria de Castro Gomes.
41
Instituto Histórico e Geográfico (IHGB) e criado o SPHAN, iniciativas que demonstram a
importância da história brasileira e, a partir dela, da valorização do passado nacional.
Como já dissemos anteriormente, a política cultural idealizada no MES era marcada
também pela ambiguidade e conciliava tradição e modernidade utilizando-se da primeira para
reforçar a segunda, e beneficiando-se, ora de sua aproximação, ora de seu distanciamento.
Essa oposição entre antigo e moderno que, segundo Le Goff, se situa essencialmente no nível
cultural, sofre a partir do século vinte uma alteração quando “o ponto de vista dos ‘modernos’
manifesta-se acima de tudo no campo da ideologia econômica, na construção da
modernização, isto é, do desenvolvimento e da aculturação, por imitação da civilização
européia”
82
. Nessa linha de pensamento cabe dizer que uma das metas do Estado Novo era a
modernização tanto da economia quanto da cultura.
Em relação à implantação das políticas culturais o MES contou com a participação de
um grupo de intelectuais ligado ao movimento Modernista, que passou a exercer papel
importante em relação à produção e à organização da cultura nacional. Eram detentores do
que Michel Foucault denominava de um dispositivo de verdade, referindo-se à posição
ocupada pelos intelectuais que definem o que é verdadeiro “[...] atribuindo ao verdadeiro
efeito específicos de poder [...]”
83
. Esse dispositivo os autorizava a atuarem como
“organizadores” da sociedade, ocupando um lugar estratégico no regime e contribuindo para a
transformação da diversidade cultural na unidade necessária à nacionalidade brasileira.
Foram estes intelectuais ligados ao ministro Capanema — Carlos Drumond de
Andrade, Mário de Andrade, Lúcio Costa e Rodrigo de Melo Franco de Andrade — que
atuaram imbuídos do desejo de definir a nação e seu povo, e assumiram cargos estratégicos na
criação de mecanismos que dessem conta de interpretá-la a partir de um discurso estatal que
pressupunha a homogeneidade cultural.
Esse grupo de intelectuais modernistas atuou principalmente no SPHAN na elaboração
da identidade nacional, através da promoção do patrimônio histórico nacional como símbolo
dessa identidade. Embora participassem da construção da identidade nacional e da afirmação
da nação brasileira, encontravam-se ligados ao poder sem estarem diretamente ligados à
fundamentação ideológica do regime. Para eles a relação com o passado deu-se de forma um
pouco diferenciada, pois o que buscavam não era só a afirmação da “brasilidade”, mas
82
LE GOFF, Jacques. História e memória, p.173.
83
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, p.13.
42
também a legitimação de um projeto modernista que assegurasse lugar ao novo e às mudanças
pretendidas pelo regime.
Como resultante desse processo de historização do país, em que a construção da
memória da nação passou a ser prioritária, houve um empenho do Estado em fortalecer os
símbolos nacionais que demonstrassem a unidade, como foi o caso da bandeira brasileira que,
após a queima das bandeiras estaduais promovida por Vargas, em dezembro de 1937, passou
a representar a nova ordem estabelecida e também o uso do mapa do Brasil como já citamos
anteriormente.
Sabemos que um dos atributos da construção da identidade é a memória, pois é através
do recurso da memória que o indivíduo adquire a autoconsciência e constrói uma imagem de
si mesmo. Por isso, as recordações e construções do passado tornam-se relevantes para a
criação da identidade. Segundo o sociólogo Maurice Halbwachs a memória individual só
existe a partir da memória coletiva, que por sua vez se distingue da memória histórica.
Enquanto a memória coletiva se apoia apenas “no que ainda está vivo [...] na consciência do
grupo que a mantém”, a memória histórica “se situa fora desses grupos e acima deles” e tenta
pautar-se pela objetividade e pela imparcialidade. Portanto, é através da manutenção da
memória coletiva que o grupo toma consciência de sua identidade.
Consciente da importância da memória e da identidade nacional para a sustentação do
regime nacionalista, o ministro Gustavo Capanema definiu e implantou políticas educacionais
e culturais, concentrando seus esforços na criação de instituições federais voltadas para a
cultura nacional, com o objetivo de fortalecer a identidade nacional. Dentre as ações
incentivadas pelo ministro é significativa a criação do SPHAN, que já contava com um
anteprojeto elaborado por Mário de Andrade a partir de uma encomenda do ministro, antes
mesmo da instalação do Estado Novo.
O órgão fora criado com o objetivo de promover e conservar o patrimônio histórico e
artístico nacional, definido como, “[...] o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no
País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis
da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico.”
84
, sendo percebido como um forte apelo simbólico para a
ancoragem de nossa origem enquanto povo independente e soberano, representando a
identidade e a memória da nação.
84 Segundo o decreto-lei n° 25, de 30 de novembro de 1937. Disponível em
<http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/
> acessado em 10/09/2009.
43
Segundo o antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves, “Para que a nação possa
existir, enquanto uma entidade individualizada e independente, ela tem que identificar e
apropriar-se do que já é sua propriedade: seu patrimônio cultural”
85
. Nesse sentido, o
reconhecimento da existência de um patrimônio histórico e artístico nacional do qual o Brasil
deveria se apropriar fornecia tanto a singularidade necessária à construção da identidade
nacional quanto à própria legitimação da nação através da autenticidade de sua cultura.
A partir da valorização do passado colonial os intelectuais demonstravam interesse em
aproximar o Brasil de si mesmo, o que para eles só se daria através da valorização das
tradições nacionais identificadas com o período colonial. Assim, revelavam a convicção de
que somente o caráter universalista da arte e da cultura existente naquele período era capaz de
incluir o Brasil entre as nações modernas ao mesmo tempo em que fornecia as representações
da nossa alteridade. É nesse sentido que estes intelectuais ligados ao SPHAN defendiam a
preservação da arquitetura da cidade de Ouro Preto e valorizavam o barroco mineiro como
arte genuinamente nacional e como símbolo da originalidade brasileira revelada pela
genialidade de Aleijadinho, artista mestiço e brasileiro.
Através da escolha de Ouro Preto e do barroco mineiro como representantes de nossa
identidade, os intelectuais associavam a tradição proveniente da história e a arte do período
colonial ao discurso do regime e acabavam por legitimá-lo. Nosso passado colonial forneceria
as raízes de nossa brasilidade, que era percebida a partir de então através de monumentos
historicizados, capazes de exaltar a nacionalidade, e de servir como símbolo de coesão social
e cultural. Assim, a cidade de Ouro Preto fornecia os elementos necessários para a construção
da identidade nacional, pois através de sua arquitetura, arte e história, aproximava o Brasil de
si mesmo.
A cidade de Ouro Preto possuía as referências necessárias — históricas e culturais —
para a concretização da identidade nacional, pois além de uma arquitetura representativa de
uma arte universal fora palco de fatos históricos significativos para a formação da
nacionalidade, segundo o texto do Decreto nº 22.928, de 12 de julho de 1933 que elevara a
cidade a Monumento Nacional. Assim, a Inconfidência Mineira passaria a ser referenciada
como um momento importante da luta pela independência do país e Tiradentes simbolizaria o
herói capaz de “dar a vida” em defesa dos interesses nacionais. Mais uma vez as
representações religiosas são portadoras dos elementos necessários à história que se dá a ver
como nacional. Tiradentes e sua participação na Inconfidência Mineira são narrados com a
85
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. A retórica da perda, p. 32.
44
intenção de demonstrar sua relação com a imagem cristã, apresentando-o como um Cristo
cívico, na expressão de José Murilo de Carvalho.
Há um aspecto interessante sobre a escolha do estilo barroco como representativo das
tradições culturais brasileiras. Segundo o historiador de arte Giulio Carlo Argan, o barroco,
em relação à arquitetura, é a valorização do monumento como “unidade plástica e
arquitetônica representativa de valores ou da autoridade – e que tem, por isso, uma função
retórica ou persuasiva -, está associada à ideia da cidade-capital, assim como esta se associa à
idéia do Estado-absoluto”. Para Argan “a arte barroca é certamente a que pela primeira vez se
deu conta daquilo que na Retórica é definido como ‘o destino diverso dos Estados’; e, assim
como acontece na oração, ela se dirige ora às classes mais cultas, ora às mais humildes, sem
por isso baixar de tom”
86
.
Do mesmo modo, podemos dizer que a arte barroca fora utilizada pelo ministério de
Capanema com o objetivo de persuadir a nação na crença de sua originalidade e na
universalidade da arte nacional. A imagem do barroco mineiro passou a ser a imagem de
nosso nascimento enquanto nação civilizada. Almir de Andrade em seu livro Aspectos da
cultura brasileira já percebia a arte de Aleijadinho como representante de um estilo
genuinamente brasileiro. Segundo o autor, Aleijadinho “pôs um colorido da sua alma de
artista e de brasileiro” em toda sua obra, o que “dá a sua arte esse sentido renovador e social,
que faz dele um precursor da verdadeira arte brasileira, revolucionário na sua época por se ter
libertado demasiadamente dos moldes portugueses, [...]”
87
.
E essa foi, possivelmente, a motivação da equipe do patrimônio ao eleger o barroco
como representação da identidade nacional, pois a arte barroca se tornaria unânime entre
diferentes classes e simbolizaria tanto a unidade cultural quanto a universalidade pretendidas,
esta última responsável por garantir a inclusão do país entre as nações modernas.
Essa preocupação em “construir” uma arte nacional que pudesse se enquadrar nos
padrões universais apoiava-se também em publicações onde, segundo Márcia Chuva, “se
afirmava que o Brasil era uma nação porque possuía cultura, era civilizado porque suas raízes
advinham da arte universal”
88
. Por isso, a Revista do Patrimônio, publicação do SPHAN,
incentivava a produção de artigos vinculados à classificação da arte nacional, na categoria de
arte barroca, modo de vincular o Brasil à história universal da arte.
86
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão – ensaios sobre o barroco. Companhia dasLetras, São Paulo,
1986, p. 78.
87
ANDRADE, Almir. Aspectos da Cultura Brasileira, p.15.
88
CHUVA, Márcia. Topoi, v.4, n.7, jul-dez. 2003 p.322.
45
A força e o empenho da ação do Estado e de seus intelectuais em produzir ícones que
mantivessem a unidade nacional através da memória de um passado inventado, nos remetem
ao termo utilizado por Marilena Chaui em sua análise da construção da nação e da força
simbólica que a sustenta. A autora apresenta a nação como semióforo
89
, ou seja, um signo
carregado de sentido e capaz de fomentar contínuas significações, dotado de poder e prestígio.
Segundo Chaui, apesar de o semióforo não se caracterizar pela utilidade “[...] ele é também
posse e propriedade daqueles que detêm o poder para produzir e conservar um sistema de
crenças ou um sistema de instituições que lhes permita dominar o meio social”
90
.
Levando em conta que na sociedade capitalista a disputa pela posse e produção dos
semióforos se dá entre a religião, o poder político e o poder econômico, Chaui afirma que o
patrimônio artístico e o patrimônio histórico-geográfico da nação nascem a partir do poder
político e representam “[...] aquilo que o poder político detém como seu contra o poder
religioso e o poder econômico”. No entanto, a autora adverte que para salvaguardar esses
semióforos públicos o poder político constrói o que ela chama de “semióforo-matriz”: a
nação. Assim, por meio de seus intelectuais, de seu patrimônio histórico e artístico e da
manutenção de seus acervos, a nação, através do poder político, torna-se ao mesmo tempo
“sujeito produtor dos semióforos nacionais e [...] objeto do culto integrador da sociedade una
e indivisiva”
91
.
A necessidade de encontrar um semióforo que contivesse toda a significação
imprescindível para unificar o que se encontrava fragmentado permitindo a cada um dos
brasileiros reconhecer-se e identificar-se com sua imagem e ideais foi determinante na escolha
de Tiradentes como mártir brasileiro e da cidade de Ouro Preto como cenário da história de
luta e espírito inovador.
É com essa intenção que os intelectuais do período, participando como descobridores e
gestores de nossa riqueza cultural e interferindo sobre as escolhas do que era realmente
importante para determinar a identidade brasileira, demonstraram consenso em relação à
necessidade de preservar e restaurar o legado colonial e conseqüentemente a cidade histórica
de Ouro Preto, revestida do simbolismo que remete a independência da colônia e ao
nascimento da autonomia política e da arte brasileiras. Desse modo, a arquitetura colonial, o
89
No sentido por ela empregado em seus textos “semióforo é um signo trazido à frente ou empunhado para
indicar algo que significa alguma coisa e cujo valor não é medido por sua materialidade e sim por sua força
simbólica”.
90
CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, p.15.
91
Idem, p.14.
46
barroco mineiro e o líder da inconfidência são alçados do passado para dar significado ao
presente.
Mas sabemos que os governos nacionalistas se servem do passado para perpetuar a
memória, e se utilizam de suportes afetivos materiais e imateriais para reforçar o sentimento
de pertencimento à pátria, tornando-a um instrumento do poder. Não é por acaso que os
nacionalistas valorizam a pesquisa histórica, a construção de museus, a constituição de
arquivos e as publicações que registram e armazenam o conteúdo histórico que permitirá
alimentar um calendário de festas e comemorações de datas cívicas. A memória coletiva
ocupa um lugar central nesse discurso, pois ela fornece o sentimento de identificação entre os
membros da coletividade a partir do compartilhamento e valorização dos mesmos
acontecimentos. E embora não possamos ignorar a importância da memória coletiva, sabemos
que ela não é apenas uma conquista da sociedade. Como nos diz Jacques Le Goff o que se
passa é “a luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória”
92
.
Pierre Nora trata desses espaços — museus, arquivos, monumentos e festas
comemorativas — como “sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa
sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos”. E, para o autor, esses
lugares de memória só se concretizam “se a imaginação os investe de uma aura simbólica”
93
.
A partir dessas afirmações podemos compreender a necessidade que o regime Vargas
teve de organizar e centralizar a produção histórica, a construção da memória e o uso do
passado para que fosse possível construir uma identidade nacional desprovida de
contradições. Utilizou-se para isso da burocracia estatal que permitia o controle absoluto das
práticas e rituais de rememoração e da participação em seus quadros técnicos de intelectuais
que possuíam o conhecimento científico capaz de legitimar o próprio discurso histórico.
Nesse cenário é que foi criado o SPHAN e que o ministro Capanema conseguiu executar um
ousado projeto de políticas culturais nacionalistas cujo intuito era trazer à tona a ideia
existencialista de memória, identidade e passado da nação.
92
LE GOFF, História e memória, p.470.
93
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares, p.13 e 21.
47
2. O ESPELHO DA MEMÓRIA
2.1. O SPHAN COMO ESPELHO
Em que medida a política de preservação do patrimônio histórico desenvolvida hoje
pelo IPHAN consegue atender as necessidades culturais e contemplar a diversidade da cultura
brasileira, fornecendo um sentimento de identificação? Ou mesmo, em que medida essas
políticas contribuem para o alcance da cidadania? Ao analisarmos a atuação do IPHAN nos
dias atuais ainda nos deparamos com um modelo centralizador e autoritário que tem
dificuldades em dialogar com a maior parte da população. Apesar de reconhecermos que as
políticas do IPHAN evoluíram em relação ao ano de sua criação — 1937 — ainda
percebemos um modelo elitista, pouco democrático e relativamente distante das necessidades
da população brasileira.
Além disso, o órgão ainda se concentra na preservação e restauro do patrimônio
edificado. Podemos mesmo questionar, como o faz Maria Cecília Londres Fonseca
94
, por que
o patrimônio não consegue envolver a população e tornar-se importante atingindo o mesmo
status hoje alcançado pela preservação do meio ambiente? Talvez a resposta para estas
questões se encontre na própria concepção de patrimônio defendida pelo IPHAN, concepção
essa que se baseia nos aspectos formais e estéticos dos bens e que possui um caráter pouco
representativo frente à riqueza e à diversidade de nossa cultura.
Nos anos trinta essas políticas públicas implantadas pelo SPHAN estavam
diretamente relacionadas à construção imaginária da nação que era sustentada pelo discurso
dos intelectuais ligados ao órgão, em sua defesa da cultura nacional baseada em tradições do
passado colonial. A legitimação e a materialidade desse discurso foram obtidas através da
utilização da arquitetura colonial, que teve um papel importante tanto na defesa da identidade
nacional quanto na necessidade de criação de um órgão de proteção a esse patrimônio. Tendo
como meta o sentimento de pertencimento à nação e de reconhecimento da brasilidade,
governo e intelectuais empenharam-se na legalização das práticas de preservação através da
criação de uma legislação específica que respaldasse as ações do órgão recém criado.
94
FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo, p.247 a 261.
48
Ao tomarmos como ponto de partida a atuação do IPHAN nos dias atuais, podemos
fazer um paralelo entre as duas temporalidades para melhor compreendermos a influência das
idéias de 1937 nas políticas públicas existentes ainda hoje.
Atuando nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, o IPHAN conta com uma
estrutura administrativa composta de um Conselho Consultivo, quatro departamentos —
planejamento e administração, patrimônio imaterial, patrimônio material, e fiscalização e
articulação e fomento — incluindo 21 superintendências regionais e seis sub-regionais que
cobrem todo o Estado nacional e que se responsabilizam pelas ações locais de inventário,
tombamento e fiscalização do patrimônio histórico. Além disso, o IPHAN é responsável por
26 museus e 27 escritórios técnicos — a maioria nos estados de Minas Gerais e Bahia — pelo
Palácio Gustavo Capanema e por quatro unidades especiais. Mas embora a administração
central do órgão esteja situada em Brasília o arquivo central ainda permanece no Rio de
Janeiro, cidade que na época de sua criação era capital federal e que foi a primeira sede do
SPHAN. Conta com um Conselho Consultivo coordenado pelo presidente do órgão e
constituído por 18 membros da sociedade civil (antropólogos, museólogos, arquitetos,
urbanistas e historiadores), além de um representante do Instituto dos Arquitetos do Brasil —
IAB —, do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Históricos — ICOMUS —, do
Museu Nacional, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis — IBAMA
95
.
Se compararmos a atual estrutura do órgão com aquela que deu início a sua
formação em 1937 podemos perceber que algumas práticas em relação à organização e
atuação do serviço ainda são recorrentes. Entre elas encontra-se a forma de atuação do seu
Conselho Consultivo. Nos anos trinta esse conselho era formado pelo diretor do órgão e o
diretor do Museu Nacional, além de conhecedores de outros acervos, e membros escolhidos
pelo presidente do país. Muitos desses membros exerciam cargos públicos em instituições
culturais do governo, como na Academia Brasileira de Letras, no Instituto Histórico e
Geográfico e no Conselho Federal de Cultura.
Por já exercerem cargos públicos e também para dar um caráter de adesão à causa do
patrimônio, os intelectuais que atuavam no Conselho Consultivo o faziam sem receber
remuneração extra, o que ocorre ainda hoje. Desde sua formação, o Conselho Consultivo atua
95
Disponível em < http://portal.iphan.gov.br > Acessado em 9 de dezembro de 2009.
49
na autorização dos tombamentos que eram indicados pelos profissionais do órgão, e até hoje a
maioria das decisões em relação às indicações de tombamento dá-se por consenso.
Em relação à abrangência da atuação do SPHAN, desde o início houve uma tentativa
de cobrir todo o estado nacional, e Rodrigo Melo Franco de Andrade organizou as atividades
do órgão em todos os estados, com exceção do Amazonas, Mato Grosso e Goiás, que só mais
tarde passaram a ter unidades representativas. O motivo da não inclusão desses estados desde
o início, foi provavelmente a falta de estrutura do órgão que se organizava com pouca verba e
número reduzido de profissionais, o que é visível na troca de correspondência entre o diretor e
o ministro Capanema. Entre junho e setembro de 1936, por exemplo, quando o serviço de
proteção ao patrimônio histórico funcionava ainda de forma provisória, Rodrigo Melo Franco
de Andrade reclama da falta de verba em quatro correspondências — 10 de junho, 1º de
agosto, 18 de setembro e 04 de outubro — enviadas ao ministro Capanema
96
.
Em relação à estrutura do órgão, já em 1936, antes da publicação da lei, funcionava
apenas com um pequeno grupo de colaboradores que se resumia, além do diretor Rodrigo
Melo Franco de Andrade, em um assistente técnico, nos arquitetos Lúcio Costa, Oscar
Niemeyer, Carlos Leão, José de Souza Reis, Paulo Thedim Barreto, Renato Soeiro e Alcides
da Rocha Miranda, em um secretário e duas datilógrafas. Além dessa equipe, contava com a
colaboração de intelectuais de outros estados que se responsabilizavam pelo levantamento do
patrimônio de sua região e que ficavam responsáveis pela contratação provisória de
profissionais — fotógrafos, desenhistas — em cada trabalho de inventário ou tombamento
realizado.
Assim como ocorre hoje, os representantes estaduais eram uma escolha pessoal do
diretor, endossada pelo ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. Em 1937 essa
escolha recaía sobre os intelectuais de maior peso em cada uma das oito regionais em que
dividiu o país, desde que alinhados com a política do Ministério da Educação, o que ocorre
ainda hoje na escolha dos superintendentes de cada uma das unidades. É interessante ressaltar
que essas escolhas são políticas e estão sempre vinculadas aos partidos que detêm o controle
das políticas nacionais. Outro aspecto interessante que também se mantém é a participação
majoritária dos arquitetos, apesar da ampliação dos interesses nos atos de tombamento.
Assim, como na década de trinta, a avaliação dos bens patrimoniais segue tendo por base
critérios estéticos e arquitetônicos e, mesmo nas decisões referentes ao tombamento imaterial,
96
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN/RJ – Correspondência Capanema, caixa 01, pasta 42. Carta nº 13, de
Rodrigo Melo Franco de Andrade a Gustavo Capanema.
50
que foi recentemente incluído na legislação, os arquitetos ainda compõem a maioria das
equipes.
Já na elaboração do conceito de patrimônio histórico e artístico nacional, quando
apresenta seus propósitos e áreas de atuação, o IPHAN define o patrimônio cultural com um
sentido bastante amplo, compreendendo suas formas e modos de expressão e criação: “as
criações científicas, artísticas e tecnológicas; das obras, objetos, documentos, edificações e
[...] espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e dos conjuntos urbanos e sítios
de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
científico”
97
. Esta definição demonstra uma visão em que o patrimônio é o instrumento eficaz
para que não esqueçamos nenhum momento relevante da história nacional. Caracteriza o que
Henri-Pierre Jeudy descreve como o “dever de memória”, que seria “um estado culpabilizante
estimulado pela necessidade moral de rememoração”
98
. Nesse sentido, segundo Jeudy,
perdemos a liberdade de esquecer, pois “esquecer é ocultar”, e ocultar seria uma forma de má
gestão da memória. Assim, somos obrigados a relembrar e a sentir vergonha do desejo de
esquecer. “A conservação patrimonial se encarrega do depósito das lembranças e nos libera
do peso das responsabilidades infligidas à memória. A profusão de locais de memórias
oferece uma garantia real contra o esquecimento”
99
.
Em relação a suas diretrizes, o IPHAN as descreve como voltadas para um trabalho
de “desconcentração, diversificação, democratização, sustentabilidade, defesa, gestão
compartilhada, fomento, aperfeiçoamento e fiscalização da legislação e das ações, e
desenvolvimento profissional e tecnológico”
100
.
A definição atual do que pode vir a ser considerado patrimônio histórico sofreu tal
ampliação que acabou por abranger quase que a totalidade dos bens, e, em termos de
definição, diferencia-se daquela legitimada pelo decreto de novembro de 1937, que
considerava patrimônio histórico e artístico nacional “o conjunto dos bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja conservação seja de interesse público [...]”
101
. Mas apesar da
ampliação do conceito, ainda, como em 1937, a atuação do IPHAN se concentra nos imóveis
97
Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Disponível em < http://portal.iphan.gov.br > Acessado em 9 de
dezembro de 2009.
98
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades, p.15.
99
Idem.
100
Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Disponível em < http://portal.iphan.gov.br > Acessado em 9
de dezembro de 2009.
101
Idem.
51
de valor artístico e arquitetônico considerados relevantes, ou seja, os critérios de avaliação
predominantes ainda são o artístico e o arquitetônico.
Embora o IPHAN tenha representatividade em todo o território nacional e,
considerando as diferenças culturais regionais que hoje, diferentemente dos anos trinta, são
valorizadas, a decisão do tombamento ainda se dá a partir do governo federal. Ainda hoje o
processo de indicação para registro no Livro do Tombo se dá da mesma forma em que eram
encaminhadas as defesas dos tombamentos nos anos trinta, pelos representantes de cada
região, e a decisão final por parte do Conselho Consultivo, com o aval da presidência do
órgão. O que se percebe é que apesar do crescimento da área de abrangência do IPHAN, o
poder de decisão ainda não é regionalizado e embora a defesa de um tombamento local possa
ser aceito pelo Conselho Consultivo, não é garantido seu tombamento sem o aval deste
último.
Ainda que algumas das características originais do SPHAN mantenham sua
influência sobre o atual IPHAN, estas devem ser pensadas a partir do seu contexto e em
relação com o modelo político-ideológico do Estado Novo. A própria hierarquia do órgão, em
que toda a estrutura estava submetida às decisões do seu presidente e à concordância do
ministro Capanema, sem que houvesse autonomia dos estados, baseava-se no mesmo
princípio centralizador em que se estruturou o governo do Estado Novo. É interessante
perceber que, embora o SPHAN tentasse legitimar-se através do discurso da competência
técnica de seus membros, com frequência solicitava a intervenção política do ministro
Capanema, autoridade máxima do órgão.
É o que demonstra, por exemplo, a correspondência enviada por Rodrigo Melo
Franco de Andrade ao ministro Gustavo Capanema no dia 18 de maio de 1936, que fala sobre
a importância da necessidade de cooperação das autoridades eclesiásticas, e sugere ao
ministro que compareça às comemorações do jubileu episcopal do cardeal D. Sebastião Leme
“usando de seu incontrastável prestígio para encarecer a urgência de serem adotadas medidas
tendentes a preservar o valioso patrimônio de arte e de história confiado à guarda das
autoridades eclesiásticas [...] a fim de obter a preciosa cooperação de Sua Eminência[...]”
102
.
Isso deixa claro que as ações do SPHAN faziam parte de uma estratégia política, à qual se
vinculava, embora tentassem neutralizá-la a partir do caráter científico atribuído às decisões
tomadas por seus representantes.
102
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN/RJ – Correspondência Capanema, caixa 01, pasta 42. Carta nº 07
de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Gustavo Capanema em 18 de maio de 1936.
52
É possível perceber também na defesa do diretor do SPHAN a respeito da autoridade
de seus colaboradores, o predomínio do discurso que legitimava o caráter técnico da
instituição, que foi a mesma defesa feita por Oliveira Vianna e outros ideólogos do regime
estadonovista quando de sua implantação. O diretor, em uma entrevista ao jornal O Globo que
descreve a política implantada pelo SPHAN, afirma que, “Neste serviço eu sou auxiliado por
uma verdadeira equipe de técnicos
103
. É interessante que no próprio subtítulo da matéria já é
ressaltada a participação dos técnicos, onde pode ser lido “colaboram os técnicos”, o que
demonstra que a legitimidade do trabalho através da competência técnica utilizada pelo
diretor do órgão era compartilhada pela imprensa.
Para legitimar esse discurso em que a técnica é realçada em detrimento do caráter
político e ideológico, foi fundamental a atuação dos arquitetos que se apresentavam como
portadores do conhecimento técnico necessário para a atuação do SPHAN. Eram os
arquitetos, ao invés de historiadores ou artistas, que possuíam a formação necessária para
respaldar um governo que se legitimava a partir do discurso em defesa do conhecimento
científico. Sua formação os autorizava a determinarem o que era representativo da arquitetura
nacional e que, a partir daí, poderia simbolizar a cultura nacional. Possuíam o discurso
científico que explicava e dotava de sentido a materialidade da nação através de sua
arquitetura. Assim, apesar das decisões tomadas serem fundamentadas em um caráter político
e atenderem a interesses do modelo ideológico do regime, pois serviam à construção do
discurso nacionalista, — como é o caso da materialização da nação através da arquitetura
colonial —, eram sempre apresentadas como se fossem desprovidas do conteúdo político e
embasadas em conhecimentos técnicos.
Nesse sentido, a criação do SPHAN atendia aos interesses políticos do regime que
via na cultura um instrumento de unificação importante para garantir a unidade nacional.
Além do fato de que a identidade que foi construída durante o Estado Novo necessitava de um
suporte material para sua efetivação, pois o conceito de identidade é uma construção social
que se ancora em elementos que a tornem inquestionável. Nesse sentido, Lauro Cavalcanti diz
que o SPHAN “Ao operar mesclando padrões estéticos com conceitos de nacionalismo e
identidade, logra atingir a inquestionabilidade e um tom ético-emocional que confere certo ar
perene e absoluto a regras visuais e noções de memória [...]”
104
. Assim, foi a materialidade da
arquitetura que forneceu esse suporte necessário para a legitimação da identidade nacional dos
103
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN/RJ. Recortes de jornais, caixa 10, pasta 9. Entrevista de Rodrigo
Melo Franco de Andrade para o jornal “O Globo”, Rio de Janeiro, 4 de dezembro de 1937.
104
CAVALCANTI, Lauro. Encontro moderno: volta futura ao passado, in: A invenção do patrimônio, p.46.
53
anos trinta, que foi em parte construída e se afirmou através do discurso técnico dos
arquitetos.
Essa estratégia, ao mesmo tempo em que reforçava a ideologia do regime, permitia
tanto aos intelectuais quanto ao regime a defesa de suas políticas públicas como se fossem
apenas fruto do conhecimento científico, o que tinha por objetivo manter afastadas as opiniões
contrárias e esvaziar o conteúdo político das contestações às suas práticas. O conhecimento
científico dos arquitetos os autorizava a fazer as escolhas do que representava a memória e a
história da nação através de um discurso cientificista que se baseava em critérios estéticos,
mas que na verdade era uma escolha política, tanto na busca da tradição fornecida pela
arquitetura colonial como na legitimação da arquitetura modernista. Esse discurso construído
a partir de uma linguagem técnica tentava manter os intelectuais que atuavam no órgão
afastados das disputas políticas e construía uma espécie de “blindagem” em relação ao
SPHAN e seus colaboradores.
Nessa linha de raciocínio Cecília Londres levantou alguns dos motivos, em relação
às políticas atuais de preservação do patrimônio cultural, que demonstram o quanto o IPHAN,
em diversos aspectos, ainda mantém algumas das estratégias de atuação de 1937,
principalmente em relação aos critérios de tombamento e ao poder de escolha do que deve ser
preservado. Para a autora, “dificilmente o universo do patrimônio se tornará realmente
representativo da diversidade cultural brasileira enquanto persistirem [...] uma forma fechada
e altamente centralizadora na tomada de decisões”
105
. Esta afirmação remete a um fato
bastante comum entre os profissionais do órgão, que é a tomada de decisões baseada em
critérios supostamente técnicos, o que afasta a participação dos leigos da discussão e da
escolha sobre o que é representativo de nossa identidade cultural. Tal postura demonstra que
ainda há uma visão elitista em relação à cultura, que acaba por impor de forma autoritária um
conceito de patrimônio que nem sempre é representativo da identidade local, pois o que ainda
prevalece é o conhecimento científico da equipe responsável pela preservação do patrimônio
histórico.
Estes critérios, embora sejam importantes e devam ser considerados como parte da
avaliação, nem sempre são representativos da diversidade cultural e normalmente são
incompatíveis com uma proposta que se diga democrática, pois se referem a conhecimentos e
gostos estéticos que contemplam uma pequena parte da sociedade. Desse modo, podemos
dizer que, embora já se tenham passado mais de setenta anos de sua criação, e a sociedade
105
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo, p. p.256.
54
tenha conquistado o direito a participação em muitas instâncias das políticas públicas, as
políticas de inventário, tombamento e preservação do patrimônio histórico nacional ainda
podem ser descritas como um processo centralizado e justificado a partir da defesa do
conhecimento científico, o que limita o direito de escolha aos representantes das políticas
públicas definidas para a área da cultura.
Ainda hoje as questões relativas à preservação e tombamento do patrimônio
histórico e artístico nacional encontram-se distantes das preocupações e interesses da maioria
da população. E mesmo quando nos deparamos com projetos de restauração de espaços
bastante ocupados pelos habitantes da cidade, como é o caso, por exemplo, das restaurações
dos centros históricos, podemos dizer que não há uma interação ou uma participação efetiva
da sociedade nesses projetos. O que se percebe é que a indústria cultural
106
incorporou e re-
significou esses símbolos fornecidos pelo patrimônio utilizando-os de forma muito mais
efetiva do que os habitantes e usuários do espaço restaurado. Isso muitas vezes resulta em
ambientes e espaços públicos “museificados” e desprovidos de sentido. Além disso, a
museificação normalmente traz consigo o retorno do julgamento estético e acaba por suprimir
o confronto de olhares, de percepções e de sensações, tendendo a pacificar o espaço e a
excluir dele o conflito, o que em muitos casos imobiliza a população frente às escolhas
públicas. Acaba por transformar o patrimônio cultural em mercadoria ou em fetiche,
desconsiderando sua densidade simbólica.
Segundo Antonio Gilberto Ramos Nogueira, “A maioria da população não se
reconhece nesses símbolos diante da dificuldade de decodificar um saber específico, ainda
que considere a preservação atividade importante
107
. O que Nogueira salienta é que as
escolhas em relação ao patrimônio remetem a um jogo de forças entre grupos que tentam
impor suas opções, revelando dessa forma o caráter político do universo cultural, geralmente
encoberto por um discurso de harmonização e integração social que ainda hoje é percebido
nas políticas públicas do IPHAN, onde muitas vezes o que predomina é a estetização.
A partir dessas colocações é relevante a sugestão de alteração das práticas do
IPHAN feita por Cecília Londres em relação ao patrimônio histórico e artístico brasileiro.
106
Segundo a socióloga Maria Geralda Barbora, a expressão indústria cultural “Em essência, significa a
transformação da mercadoria em cultura e da cultura em mercadoria, ocorrida em um movimento histórico-
universal, que gerou o desenvolvimento do capital monopolista, dos princípios de administração e das novas
tecnologias de reprodução (sobretudo, a fotografia e o cinema). Em linhas gerais, a indústria cultural representa a
expansão das relações mercantis a todas as instâncias da vida humana”. Revista Urutágua – revista acadêmica
multidisciplinar (CESIN-MT/DCS/UEM), nº 05 - dez/mar - Paraná- Brasil. Disponível em
<http://www.urutagua.uem.br//005/14soc_barbosa.htm
> Acessado em 11 de dezembro de 2009.
107
NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos, p.233.
55
Para a autora, “No estágio atual da questão do patrimônio no Brasil, a atuação do órgão
federal de preservação deveria ter um caráter eminentemente didático e exemplar”
108
. E o que
ela entende por didático não se trata apenas de difundir um “sentido de patrimônio” e sim de
se utilizar de todos os canais de comunicação com a sociedade, seja através da educação
formal ou dos veículos de comunicação. Dessa forma, haveria uma democratização do acesso
à informação e ao conhecimento das ações estatais.
Maria Cecília Londres acredita que “[...] no momento atual, a ênfase deve se voltar
para ações, pontuais ou não, que contribuam para introduzir a questão do patrimônio no
universo das questões de interesse para a sociedade brasileira”
109
. A autora adverte que essas
ações só farão sentido na medida em que os bens “possam ser ‘lidos’ e apreciados, numa
apropriação ativa, que contribua para o enriquecimento de cada cidadão e da coletividade
como um todo”
110
. O que significaria a participação efetiva da população na discussão e na
escolha dos bens a serem valorizados e tombados de modo a garantirem algum sentimento de
identificação com os mesmos.
No entanto, o que ocorre hoje é que apesar de vivermos em um mundo fragmentado
e acelerado, no qual a tecnologia vem nos fornecer um leque de alternativas cada vez maiores,
o que percebemos em relação às políticas referentes ao patrimônio histórico é que elas têm
produzido cada vez mais ambientes “idênticos”, ou seja, desprovidos da tão propalada
alteridade pretendida na construção da identidade nacional. Aliado a isso, apesar de estarmos
inseridos em uma sociedade democrática onde o cidadão tem conhecimento e passa a
reivindicar seus direitos políticos, a cultura efetivamente reconhecida como tal ainda continua
sendo uma imposição das classes dominantes e o patrimônio cultural tende a representar
apenas os interesses e escolhas desta classe.
Além disso, a política relativa ao patrimônio é despolitizada no sentido de
“apropriação” simbólica dos bens patrimoniais por todas as camadas sociais, pois, na medida
em que esse patrimônio é selecionado por técnicos que representam apenas uma parcela dos
interesses e gostos da sociedade, não há identificação desses bens com as outras classes
sociais, que não se apropriam dos lugares de memórias por não se sentirem representadas.
Nesse sentido, em relação ao patrimônio histórico e as políticas relativas à sua
legitimação e preservação, o que percebemos hoje é que o IPHAN ainda pode ser definido
108
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo, p.258.
109
Idem, p.259.
110
Ibidem.
56
como um órgão centralizador como o era nos anos trinta, em que fazia parte de um governo
portador dessa mesma característica. E isso se dá tanto em relação as suas políticas de
tombamento, que em grande parte ocorrem sem o conhecimento da sociedade diretamente
relacionada aos bens, quanto na forma como as comunica com a sociedade, e também em
relação a sua organização interna que possui a mesma estrutura hierárquica dos anos trinta,
tendo se ampliado somente em relação ao número de profissionais que hoje atuam.
Nos anos trinta a noção de patrimônio serviu para objetivar a idéia da nação e da
identidade nacional em construção. José Reginaldo Gonçalves usa a noção de “objetificação
cultural”
111
para tratar dos processos de invenção de “culturas”, “tradições” e “nações”, que,
segundo ele, a partir do momento em que são tratadas como entidades “objetivas”, dão a idéia
de que existem independentes das “ações, desejos, idéias e valores humanos, prontos para
serem representadas por um sujeito epistemológico ou político”
112
. O que o autor trabalha é a
ideia de transformação da nação “em um ‘distante objeto de desejo’ — o distante passado
nacional, a identidade nacional autêntica — contaminado pela coerência com que é narrado e,
simultaneamente, buscado [...]”
113
.
Assim, o presente se apresenta como a perda da coerência, da integridade e da
continuidade em relação à situação original e que são presentificadas através das narrativas
sobre passado e identidade nacional nas quais a “nação é objetificada na forma de uma
entidade distante, integrada, unificada, idêntica a si mesma, presente, ainda que ausente,
próxima, ainda que distante”
114
. A partir dessas colocações José Reginaldo Gonçalves
salienta que, na medida em que é inevitável a objetificação da nação através de metáforas
como a do “patrimônio cultural”, hoje “essas estratégias de objetivação cultural” devem ser
percebidas e compreendidas como “atos contingentes provisórios de invenção cultural,
viabilizados pelos códigos culturais a partir dos quais nos representamos coletivamente”
115
.
E nem mesmo o discurso de resistência à globalização pode por si só justificar a
defesa da proteção do patrimônio histórico como representação de nossa identidade, pois cada
vez mais as restaurações e preservações dos espaços públicos têm uniformizado esses
“espaços de memória” ao invés de destacar suas singularidades, o que acaba por inviabilizar o
111
Essa noção surgiu a partir de Benjamin Whorf, para quem a “objetificação refere-se à tendência da lógica
cultural ocidental a imaginar fenômenos não matérias (como o tempo) como se fossem algo concreto, objetos
físicos existentes”. GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda, p.13.
112
Idem, p.15.
113
Ibidem, p.21.
114
Ibidem, p. 22.
115
GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. 136/7.
57
discurso da alteridade. Jérôme Monnet trata dessa questão afirmando que nos encontramos
diante de um paradoxo: “a luta pela defesa se apresenta como uma luta contra a adaptação
destrutiva à mundialização, ideológica e econômica. Em todos os lugares os mesmos modelos
de consumo e de relações sociais, [...] levariam a uma [...] desafeição pelo patrimônio [...]”
116
.
Entretanto, o autor destaca que embora o discurso em relação ao patrimônio seja
embasado na ideia de que a proteção depende da defesa dos particularismos e da diversidade
não há nada mais universal que a “ideologia do patrimônio”
117
. Além disso, o autor ressalta
que as técnicas de conservação são as mesmas em todos os lugares, o que por sua vez produz
resultados similares. Assim, “Apesar dessa ‘mundialização’, as políticas de proteção do
patrimônio, fundem a legitimidade de sua intervenção sobre o espaço urbano [...] invocando a
preservação de uma identidade ameaçada pela mundialização [...]”
118
.
O critério estético leva muitas vezes a restaurações que resultam na destruição dos
vestígios do passado e em signos desprovidos de conflito e de temporalidade, conduzindo a
um paradoxo: na mesma medida em que se tenta resgatar o passado através de sua arquitetura
acabamos por destruir as referências do tempo e produzir bens sempre atualizados. Nesse
sentido, as políticas de patrimônio se distanciam mais das questões identitárias e dos
interesses da coletividade, apresentando objetos estetizados e que remetem à pacificação ao
invés da identificação.
Jérôme Monnet levanta ainda outra questão relevante em relação às políticas de
proteção do patrimônio, ao relacioná-las aos instrumentos gestores das cidades. Ele percebe
uma grande vantagem para os administradores públicos, pois considera que essas políticas
“são verdadeiros instrumentos de gestão das cidades. Entretanto, [...] têm a imensa vantagem
de parecerem... apolíticas!”
119
. O que as fundamenta é o consenso que acaba por transcender
as diferenças ideológicas e as diferenças culturais.
Enquanto na década de trinta o passado garantia a alteridade necessária para a
construção da identidade nacional que era assegurada através da arquitetura colonial, e em
particular do barroco mineiro, hoje o uso do passado interessa aos governantes, pois contribui
para anular os conflitos urbanos e as diferenças sociais.
116
MONNET, Jérôme. O álibi do patrimônio: crise da cidade, gestão urbana e nostalgia do passado. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, 1996, p. 220-228.
117
Para Jérôme Monnet a proteção do patrimônio histórico se tornou um instrumento de gestão urbana e nesse
sentido atua como condutora das ações urbanísticas e é utilizada pelos governos como uma forma de controle
sobre a memória e a história.
118
Idem.
119
Ibidem, p.226.
58
Levando em conta estas questões relativas aos usos do patrimônio pelos governos e
a forma como se elaboram estes discursos, nos reportamos aos anos iniciais do IPHAN,
analisando sua criação, organização, estrutura e proposta política, para que possamos
entender como o patrimônio histórico e artístico foi concebido, com que objetivos e através de
que políticas públicas ele foi legitimado. Essa volta ao passado se faz necessária para
compreensão da atualização de muitas dessas práticas e dos novos usos que o poder faz do
patrimônio.
2.2. A INVENÇÃO DO PATRIMÔNIO
No cenário dos anos trinta foi fundamental para a construção do conceito de
patrimônio histórico e artístico nacional a participação dos intelectuais modernistas. A
contribuição desses intelectuais com o governo forneceu ao Estado Novo a base teórica para a
legitimidade das ações voltadas à construção da identidade nacional e ao fortalecimento do
nacionalismo. Os modernistas aliaram-se ao regime autoritário e nacionalista do Estado Novo,
preocupados em definir ou mesmo descobrir a nação brasileira e consolidar sua posição social
e, nesse sentido, aproximaram-se dos interesses do Estado e contribuíram para sua
consolidação, embora constantemente defendessem o caráter científico de suas ações.
A necessidade de demonstrar a alteridade da nação em relação ao modelo europeu e
americano e de construir a identidade nacional brasileira demandou uma série de ações de
afirmação de nossa cultura. Fazia-se necessário elencar todos os elementos que tornassem
possível um discurso unificador, principalmente levando-se em conta a extensão da nação e a
consequente fragmentação daí resultante. O patrimônio histórico e artístico nacional era
portador das características ideais para ser eleito como uma das principais referências de
nossa identidade nacional, pois fornecia a materialidade necessária — a arquitetura — para
ancorar a subjetividade que compõe a identidade. Além disso, reforçava seu sentido histórico
e possibilitava a construção de um discurso que legitimava nossa diferença em relação às
nações desenvolvidas — apresentando a arte barroca mineira como genuinamente nacional.
Em um mesmo suporte poderíamos encontrar o estilo arquitetônico representativo de um
período, a expressão artística e estética e as referências históricas que permitiam construir um
sentido histórico e incluir o Brasil entre os países portadores das características
universalizantes da arte e da arquitetura ao mesmo tempo portador de atributos nacionais.
59
Com esse objetivo os líderes do regime estadonovista deram espaço à questão da
preservação do patrimônio histórico e artístico nacional e incluíram sua proteção na
legislação vigente no período. Mesmo antes da criação do SPHAN, através da lei nº 378, de
13 de janeiro de 1937, ou da regulamentação do estatuto do tombamento legalizado pelo
decreto-lei nº 25 de novembro do mesmo ano, já havia uma intensa discussão sobre a
importância de reconhecimento e preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, que
resultou em tentativas de regulamentação de sua proteção. A preocupação era em proteger os
monumentos públicos e as construções de valor artístico ou histórico da destruição, e neste
sentido algumas iniciativas foram tomadas tentando regular a proteção destes bens.
Em 1917, por exemplo, José Wanderley de Araújo Pinho apresentou ao Instituto
Geográfico da Bahia uma proposta de constituir uma Comissão dos Monumentos e das Artes,
e em 1920 o arqueólogo Alberto Childe elaborou um anteprojeto de lei para proteção dos
monumentos arqueológicos a pedido do presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes,
Bruno Lobo. No entanto, é só em 1923 que surge o primeiro projeto de lei federal apresentado
pelo deputado pernambucano Luis Cedro e que tinha por objetivo preservar o patrimônio
histórico e artístico brasileiro. Seguem-se a este mais dois projetos de lei federal, em 1925 por
uma comissão mineira e em 1930 pelo então deputado baiano José Wanderley de Araújo
Pinho, autor do projeto apresentado ao IHGB da Bahia
120
. A defesa comum em todas essas
tentativas de legalizar a proteção do patrimônio histórico era a proteção da arte e da história
nacionais, com objetivo de demonstrar que a nação possuía cultura própria que se constituía
de seu patrimônio histórico, permitindo ao Brasil equiparar-se às nações desenvolvidas.
Tendo em vista que nenhuma das propostas de criação de um órgão de proteção do
patrimônio histórico e artístico fora aceita pelo governo federal durante os anos vinte, os
estados passaram a adotar medidas legislativas de proteção de seus patrimônios, como é o
caso da Bahia em 1927, e Pernambuco em 1928. Todas essas iniciativas ou falas dos
intelectuais ligados ao SPHAN — Rodrigo Melo Franco de Andrade, Mário de Andrade,
Carlos Drummond de Andrade e Lúcio Costa — eram baseadas na retórica da perda, da
ameaça, da destruição do patrimônio histórico e artístico nacional. Era sempre a possibilidade
de perda e destruição que permitia a construção do discurso em defesa do patrimônio histórico
e artístico nacional, pois a preservação do patrimônio se relacionava sempre à preservação da
própria nação enquanto construção cultural. No período em que Rodrigo Melo Franco de
120
MENICONI, Evelyn Maria de Almeida. Monumento para quem? a preservação do patrimônio nacional e o
ordenamento do espaço urbano de Ouro Preto (1937-1967) Dissertação de mestrado em Ciências Sociais da PUC
Minas, Belo Horizonte, 2004.
60
Andrade esteve à frente do SPHAN este discurso centrava-se na ameaça de a nação perder
sua “tradição”. Para José Reginaldo Gonçalves “[...] essa ameaça é concebida como um risco
para o próprio processo de ‘civilização’ ou para o ‘desenvolvimento autônomo’ do Brasil
como uma nação moderna”
121
.
No entanto, essas legislações acabaram não funcionando por serem consideradas
inconstitucionais ao restringirem o direito de propriedade, ou seja, é somente a partir da
iniciativa do governo provisório, na década de trinta, que o governo federal expede decretos
com o objetivo de proteger o patrimônio, incluindo a elevação da cidade de Outro Preto a
monumento nacional, e a criação do Museu Histórico Nacional. A maior oposição neste
momento vinha da Igreja, que era proprietária de grande parte dos prédios tombados, levando-
se em conta que suas construções representavam o que havia sido eleito como arte brasileira:
o barroco. A Igreja rejeitava a proteção e preservação por se sentir ameaçada no direito de
propriedade e de autonomia sobre seus bens, não vendo com bons olhos a possibilidade de
interferência legal sobre o uso e a manutenção de suas posses. Com o início do governo
provisório a organização e a responsabilidade por essa proteção ficaram a cargo do MES,
criado em novembro de 1930, que foi responsável pela elevação da cidade de Ouro Preto a
monumento nacional em 1933, e posteriormente com o SPHAN, que passou a funcionar em
caráter provisório a partir de abril de 1936, já sob a direção de Rodrigo Melo Franco de
Andrade, que viria a dirigir o órgão até o ano de 1967.
A ideia de patrimônio era fundamental para a construção da nação e da identidade
nacional e por isso nos anos vinte já se debatia sobre a necessidade de conhecer e preservar as
riquezas culturais brasileiras. No entanto, é a partir da iniciativa de um grupo de intelectuais
modernistas e, em sua maioria, mineiros, que se estrutura a ideia de patrimônio nacional como
forma de autenticar a nação e demonstrar sua alteridade. Os modernistas tomaram por base o
critério estético e artístico na concepção do patrimônio representativo da identidade nacional e
merecedor de proteção do SPHAN, enquanto os intelectuais conservadores pretendiam a
valorização de monumentos históricos representativos dos fatos memoráveis e privilegiavam
os aspectos morais e patrióticos. O olhar dos conservadores era um olhar voltado somente ao
passado, enquanto os modernistas vincularam histórica e estéticamente, através da arquitetura,
o passado e o futuro. E foram esses intelectuais que passaram a ocupar o órgão de proteção
ao patrimônio histórico, construindo um diferencial em relação à postura dos modernistas no
121
GONÇALVES José Reginaldo dos Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil,
p.90.
61
resto do mundo, pois no Brasil são os mesmos intelectuais que defendem a modernidade e que
zelam pela tradição do passado.
Para Lauro Cavalcanti “A singularidade do Modernismo brasileiro reside na ação
concomitante e dialética de nossos intelectuais no desejo de construção utópica de um passado
e de um futuro para a arte e para o próprio país”
122
. Enquanto na Europa os modernistas se
opunham aos tradicionalistas, no Brasil a oposição “se deu em relação aos estilos ecléticos
provenientes do final do século XIX”
123
. Os modernistas possuíam o conhecimento e a
linguagem para a construção de um Estado que se apresentava como novo, ao mesmo tempo
em que eram autorizados a revelar à nação as suas riquezas, escolhidos justamente por sua
habilidade em lidar com o monumental, o que para Lauro Cavalcanti explica tanto a
construção de novos monumentos como a do prédio do MES quanto a capacidade de
elegerem e gerirem os monumentos representativos do passado da nação. Cavalcanti salienta
que isso se dava pelo fato de que o Estado em 1937 desejava “marcar a sua presença em
grande escala” e para isso tanto a arquitetura colonial como a modernista ocupavam um lugar
de destaque, pois revelavam a grandiosidade da nação. Assim, os modernistas do SPHAN ao
mesmo tempo em que elegiam a arquitetura monumental da época colonial como
representativas da identidade nacional, participavam da construção e da legitimação do maior
monumento modernista do período: o prédio do MES.
Para os modernistas do SPHAN o patrimônio era um testemunho da história e nesse
sentido podia ser pensado como um documento
124
que comprovaria nossa inserção no mundo
moderno. Mas como nos diz Cecília Londres, “Monumentos e documentos são [...] materiais
de memória e fruto de uma seleção que depende tanto das condições do desenvolvimento de
uma sociedade quanto da ação específica daqueles agentes que se dedicam à ‘ciência do
tempo que passa’, os historiadores em sentido amplo”
125
.
Reunidos em torno da ideia de uma temporalidade que se espelhava no passado para
construir o futuro da nação, a interferência dessa equipe formada por Carlos Drummond de
Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lúcio Costa, com a colaboração de Mário de
Andrade e liderança e apoio de Gustavo Capanema, organizou a estrutura do SPHAN e
consolidou o conceito de patrimônio histórico e artístico nacional atrelado ao projeto de uma
122
CAVALCANTI, Lauro. Modernistas na repartição, p. 9.
123
Idem.
124
A relação entre monumento e documento é desenvolvida por Jacques Le Goff em seu livro História e
memória.
125
FONSECA, Maria Cecília Londres. A invenção do patrimônio e a memória nacional, In: Constelação
Capanema: intelectuais e política. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p.87.
62
nação moderna. Ao mesmo tempo em que buscou na tradição e na arquitetura dos tempos do
Brasil-colônia os elementos para a construção da identidade nacional, a equipe do SPHAN
legitimou a arte e a arquitetura modernas, através da arquitetura modernista, como veremos a
seguir.
As iniciativas de preservação do patrimônio histórico que já vinham acontecendo
desde a década de vinte não alcançaram sucesso naquele período por se depararem com o
direito à propriedade garantido por lei, direito este que se via ameaçado pelas propostas de
defesa do patrimônio, pois não havia um instrumento legal que mantivesse a garantia de posse
ao proprietário não deixando claro quais as obrigações e direitos desses proprietários dos
imóveis tombados. Era necessário encontrar um instrumento jurídico que tornasse possível
regulamentar a proteção do patrimônio sem que o proprietário perdesse o direito sobre o
imóvel.
A proteção do patrimônio histórico e artístico deveria concentrar sua ação somente
nos valores culturais dos bens, fossem eles arquitetônicos, artísticos ou históricos. Foi
somente depois de regulamentado por lei o recurso do tombamento, em que os bens eram
listados e incluídos em um dos Livros do Tombo, que se tornou possível ao SPHAN ampliar a
sua área de atuação para além dos imóveis públicos passando a atuar de forma mais intensa
nos prédios privados ou naqueles pertencentes à Igreja. Essa foi uma das principais
preocupações do diretor do órgão no início de sua gestão, pois a proteção jurídica do direito à
propriedade foi alcançada através do recurso do tombamento, em que o proprietário mantém a
posse do bem e o órgão de proteção exerce apenas o direito de legislar sobre as características
arquitetônicas ou artísticas que levaram ao tombamento.
Embora o ministro solicitasse a Mário de Andrade que o projeto de São Paulo fosse
apresentado depois do projeto nacional, podemos constatar através da correspondência de
Rodrigo Melo Franco de Andrade com Mário de Andrade que o futuro diretor do órgão não
compartilhava da idéia de que o estado de São Paulo deveria esperar a legislação federal para
poder formalizar a sua. Chegou a dizer, em 25 de setembro de 1936, que, “Por mim, não será
inconveniente nenhum em vocês adiantarem aí o empreendimento desde que tivessem mais
ou menos em vista aquele anteprojeto extraído de seu trabalho”
126
. Isso demonstra que para
Rodrigo o que interessava não era o ineditismo da lei e sim a unidade dos critérios a serem
empregados em sua aplicação.
126
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN/RJ – Correspondência Rodrigo Melo Franco de Andrade, caixa 01,
pasta 06. Carta nº 012 de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Mário de Andrade, em 25 de setembro de 1936.
63
Em relação ao anteprojeto, apesar do esforço de Mário de Andrade em redigir um
projeto que contemplasse a diversidade da cultura brasileira e que demonstrasse uma visão
pluralista de arte e cultura, incluindo muitas das ideias desenvolvidas no Departamento de
Cultura de São Paulo, acabou por prevalecer na lei que criou o SPHAN uma visão elitista e
centralizadora a respeito da cultura e da arte nacionais. Rodrigo Melo Franco de Andrade, já
na diretoria do SPHAN, alterou o anteprojeto para que esse se adequasse à ideologia do
regime estadonovista e aos interesses de uma elite intelectual que detinha o poder e que se
legitimava a partir de sua atuação no SPHAN.
No anteprojeto apresentado por Mário de Andrade a proposta de criação do Serviço de
Patrimônio Artístico Nacional partia, como nos diz Cecília Londres, de um conceito de arte
que reunia as manifestações eruditas e populares. Nesse sentido, a noção de arte era “o
conceito unificador da idéia de patrimônio no anteprojeto [...]”
127
. O anteprojeto apresentava
a definição do patrimônio artístico nacional no capítulo II com o seguinte texto: “Entende-se
por Patrimônio Artístico nacional todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou
erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a
particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil”. E a partir dessa
definição apresentava oito categorias às quais deveriam pertencer as obras de arte a serem
tombadas: arqueológica, ameríndia, popular, histórica, erudita nacional, erudita estrangeira,
aplicadas nacionais e aplicadas estrangeiras, desenvolvendo para cada uma delas uma
definição que contava inclusive com exemplos.
Mário de Andrade define arte no anteprojeto como “uma palavra geral, que neste seu
sentido geral significa a habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das
coisas e dos fatos” demonstrando, segundo Cecília Londres, uma concepção de arte que “se
aproxima da concepção antropológica de cultura”
128
, concepção essa que não foi assimilada
pela equipe do governo. Esta postura de Mário de Andrade não era uma visão esteticista e sim
uma visão mais ampla de arte onde ele inclui a arte popular contemplando o folclore, as
danças e músicas regionais que percebia com a raiz de nossa identidade, “uma visão
abrangente e avançada para sua época em relação às noções de arte e de história vigentes,
inclusive nos serviços de proteção já existentes na Europa”
129
.
127
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo, p.108.
128
Idem, p.144.
129
Ibidem.
64
É nessa definição de patrimônio que se encontra a primeira diferença entre o
anteprojeto e o decreto-lei nº 25, de novembro de 1937. O decreto aprovado, além de incluir a
pedido de Capanema a expressão histórico, ao lado de artístico, define o Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional como “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja
conservação seja de interesse público quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história
do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico”
130
.
Assim, ao invés de um projeto abrangente — incorporando a cultura popular, o
folclore e promovendo o acesso às pesquisas através da divulgação dos trabalhos de
inventário — como sugerira Mário de Andrade, o texto aprovado privilegiou os bens de
“pedra e cal” que, como veremos a seguir, serviu a dois propósitos: reforçar a identidade
nacional através da valorização do passado colonial promovendo a afirmação do patrimônio e
da nação, e legitimar a arquitetura moderna proposta e incentivada pelo grupo modernista que
formava o SPHAN, além de garantir a valorização da profissão dos arquitetos e projetar
aqueles envolvidos com as questões relativas ao patrimônio na década de trinta.
Para Mário de Andrade os elementos da cultura popular, como o folclore, deveriam
ser inventariados, pois mereciam registro como patrimônio nacional da mesma forma que
aqueles representativos da arquitetura ou arte coloniais. Além disso, sua preocupação maior
em relação ao patrimônio residia na função social que ele percebia no trabalho do SPHAN,
pois entendia que a participação do Estado na área cultural deveria ter como objetivo a
coletivização do saber. E nesse sentido ele reservou no anteprojeto um espaço para detalhar a
publicidade do órgão, que segundo ele, constituía-se da publicação dos quatro Livros do
Tombo e na Revista do SPHAN. Acreditava que “A revista é indispensável como meio
permanente de propaganda e força cultural”
131
. E na revista previa a publicação de matérias
de críticos, as pesquisas estéticas e todo o material folclórico do país. Além disso, como
forma de publicidade incluía os livros, monografias, catálogos dos quatro museus federais e
dos regionais que pertencessem ao poder público e cartazes e folhetos de propaganda turística.
Mas, apesar de se preocupar com a divulgação de todo o material resultante das pesquisas
Mário de Andrade não avançou na questão relativa à participação popular em relação às
políticas de inventário, tombamento e preservação do patrimônio nacional.
130
Ibidem.
131
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Mário de Andrade: cartas de trabalho, p 45.
65
No entanto, preocupado com a relação do patrimônio com a propriedade privada,
principal motivo da reação contrária à aprovação de um projeto de proteção ao patrimônio
histórico, Rodrigo Melo Franco de Andrade, formado em Direito, concentrou seus esforços no
caráter jurídico da constituição do SPHAN. E foi com esse objetivo que o ato do tombamento
foi proposto, pois era uma forma, reconhecida juridicamente, de proteger o interesse histórico
e artístico sem privar o proprietário do direito a posse do bem tombado.
O tombamento se dava a partir de um inventário dos monumentos espalhados pelo
território nacional e de um levantamento histórico desses bens, e significava o registro em um
dos livros de Tombo do SPHAN. Um bem só era considerado tombado pelo serviço quando
seu registro constava em um dos livros de Tombo e a partir daí passava a compor o conjunto
de bens históricos e artísticos nacionais. No entanto, como nos diz Nogueira, a principal
função do inventário “de identificar e registrar as manifestações culturais de um povo, ou seja,
conhecer para valorizar, perde essência, constituindo-se num instrumento técnico para apenas
‘informar’ sobre e ‘reconhecer’ aqueles valores preestabelecidos pela intelligentsia do
SPHAN, detentores do privilégio do tombamento”
132
. Nesse sentido, o inventário ao invés de
produzir o conhecimento e a investigação sobre o patrimônio cultural acabou por apenas
buscar os exemplares que se enquadravam às características determinadas e já consagradas
pelo SPHAN. Tornou-se um forte aliado do tombamento, contribuindo para que Rodrigo
Melo Franco de Andrade realizasse seu trabalho na chamada “fase heróica”
133
do SPHAN,
em que se deu o maior número de tombamentos.
Imbuído da missão de educar a população em relação ao valor de seu patrimônio
herdado do passado, ao mesmo tempo em que fornecia os elementos que iriam compor a
identidade nacional, Rodrigo Melo Franco de Andrade definiu os objetivos do SPHAN de
forma clara. E o principal objetivo no momento inicial dos trabalhos do serviço era o
tombamento, que amparava legalmente as ações federais. Em uma palestra proferida na
Escola Nacional de Engenharia, em 1939, Rodrigo Melo Franco de Andrade afirmou que
“Vê-se, portanto, que a tarefa principal que o legislador brasileiro cometeu ao Serviço
incumbido da proteção àqueles bens é o seu tombamento”
134
.
132
NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de
patrimônio e inventário, p.250.
133
Os anos de atuação de Rodrigo Melo Franco de Andrade, de 1937 a 1967, são reconhecidos a partir do
discurso dos próprios intelectuais que atuavam no órgão e posteriormente pela historiografia sobre o período
como “fase heróica”.
134
Idem, p.51.
66
A necessidade de realizar o inventário contribuiu para legitimar o trabalho da equipe
através da justificativa do conhecimento científico necessário sobre os assuntos referentes à
pesquisa histórica e artística. Rodrigo Melo Franco de Andrade tentou, a partir desse discurso
técnico, manter o SPHAN distante do discurso político nacionalista, mas não deixou de
contribuir na sua afirmação, fornecendo os símbolos materiais de que o discurso
governamental necessitava para legitimar a nação e as políticas implantadas. O inventário
servia como uma espécie de legitimidade do trabalho científico, pois nele constavam as
características arquitetônicas, artísticas e históricas que permitiam e garantiam o tombamento
dos bens inventariados, aos quais eram atribuídos valor através do conhecimento científico
dos profissionais do SPHAN.
No entanto, não podemos desvincular o caráter político dessas escolhas, que eram
determinadas a partir do conceito de patrimônio que o órgão estabeleceu, e do papel que tanto
a arquitetura colonial quanto a modernista tiveram na construção da nação e na legitimação do
discurso modernizador do regime. Enquanto os bens representativos do Brasil-colônia
demonstravam a tradição cultural brasileira e reforçavam datas e heróis nacionais, a
arquitetura modernista preparava o Brasil “novo” e moderno que o regime defendia através da
modernização da indústria.
Foi com base no princípio de legitimação do conhecimento científico que se
organizou o SPHAN, priorizando o tombamento de bens imóveis representativos da
arquitetura colonial e religiosa, e relegando a um segundo plano a proposta abrangente de
Mário de Andrade, em que seria contemplada a cultura popular— música, dança e folclore —
que permitiria demonstrar a diversidade cultural brasileira. Sabe-se que a valorização da
diversidade cultural não era a intenção do governo Vargas, que naquele momento desejava
consolidar a unidade nacional através da homogeneidade cultural que era dada a partir da
concepção de arte que a elite possuía.
O que se passava na gestão do SPHAN era uma espécie de “blindagem” às eventuais
críticas justamente pelo caráter científico que os intelectuais davam aos seus trabalhos, o que
acabava por desautorizar a maioria dos julgamentos contrários a suas práticas. Esta era uma
característica presente no regime estadonovista, que tentava justificar suas escolhas políticas
legitimando-as através da defesa do conhecimento técnico. Atuando em sintonia com o
regime, o SPHAN conquistou certa independência em relação à condução dos trabalhos de
tombamento, pesquisa e mesmo contratações, até porque o órgão não representava uma
ameaça aos ideais do Estado Novo. Ao contrário, fornecia o suporte necessário para a
67
concepção de nação e de identidade nacional homogênea e desprovida de conflitos. Na
medida em que se legitimava através do discurso cientificista, também defendido pelos
ideólogos do regime, o SPHAN conquistava certa liberdade na condução de seus serviços,
pois o regime necessitava dos elementos fornecidos — tradição e modernidade — pelos
intelectuais do órgão para a legitimação do Estado Novo. E foi justamente essa situação a que
transformou o SPHAN em um dos pilares de sustentação da credibilidade das ações do
governo.
Rodrigo Melo Franco de Andrade conseguiu listar o que considerava o símbolo mais
representativo da cultura nacional — a arquitetura colonial barroca — em todo o território
brasileiro, através de uma divisão do país em regiões. Em cada uma das oito regiões em que
mapeou o patrimônio do país forneceu condições para que se fizesse um levantamento
histórico que seria utilizado no inventário e tombamento dos principais bens culturais. Em
correspondência
135
a Mário de Andrade demonstra a forma como os trabalhos de inventário e
tombamento seriam conduzidos. Nas cidades em que o valor estético e artístico da arquitetura
se sobressaía, este seria o principal motivo de tombamento, pois o padrão estabelecido como
critério para a escolha dos bens históricos e artísticos a serem tombados concentrava-se
primeiramente em critérios estéticos em relação à arte e à arquitetura. Mas, no caso de São
Paulo, em que não era essa a realidade, o diretor do SPHAN recomendava a Mário: “Penso
como você que, em São Paulo a preocupação histórica deve primar a estética [...]”
136
. Mário
de Andrade já havia alertado Rodrigo Melo Franco de Andrade que a arquitetura de São Paulo
não poderia ser enquadrada a partir dos critérios estéticos utilizados em outras cidades, como
por exemplo, Ouro Preto, pois o patrimônio de São Paulo não possuía tal beleza, o que o
levava a defender a importância histórica vinculada aos fatos marcantes da história do estado.
Para a organização dos trabalhos de tombamento o SPHAN contou com a criação de
um Conselho Consultivo que recebia as indicações de bens patrimoniais para tombamento dos
técnicos que realizavam o inventário e a partir daí analisava e indicava o que deveria ser
tombado. Era formado por dez membros, nomeados pelo presidente, através de um decreto-
lei, além dos diretores dos museus históricos do país. O Conselho exercia sua função em
caráter vitalício e não recebia remuneração, mas mantinha sua atuação, pois era uma posição
de prestígio entre as elites intelectuais e políticas. O Conselho era considerado pelo diretor do
SPHAN “de grande importância”, pois além de participar das discussões de tombamentos,
135
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN/RJ – Correspondência Mário de Andrade, caixa 02, pasta 12. Carta
nº 03, de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Mário de Andrade, datada de 15 de abril de 1937.
136
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de, Rodrigo e o SPHAN, p. 127.
68
tinha atribuições jurídicas, cabendo a ele julgar em última instância os recursos que
porventura os proprietários de bens tombados viessem a executar. Assim, além do julgamento
dos recursos, o Conselho Consultivo era responsável pela efetivação do tombamento, o que
acontecia em geral por unanimidade, havendo segundo Cecília Londres raras declarações de
voto. E embora tanto o Conselho quanto o SPHAN afirmassem a autonomia de um em relação
ao outro, havia “uma evidente sintonia de ambos na defesa dos mesmos princípios e critérios,
e, sobretudo, do decreto-lei nº 25 [...]”
137
.
Outro aspecto importante e distinto do anteprojeto de Mário de Andrade refere-se à
organização da estrutura do SPHAN, principalmente no que define a formação do conselho
consultivo. Para Mário de Andrade ele deveria ser formado por cinco membros fixos (diretor
do órgão e chefes dos museus) e vinte móveis que incluíam: dois representantes de cada uma
das categorias a seguir: história, etnografia, música, pintura, escultura, arquitetura,
arqueologia, gravação, artesanato e crítica de arte. Interessante é a idéia de Mário de Andrade
em relação aos membros móveis do Conselho que deveriam ser escolhidos de “forma a conter
um representante com mais de 40 anos de idade e outro com menos de 40, de preferência, um
do par representando as idéias acadêmicas e outro as idéias renovadoras”
138
.
Mas ao invés disso o SPHAN legitimou através da lei nº 378 de janeiro de 1937, que
o Conselho Consultivo “se constituirá de diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, dos diretores dos museus nacionais e coisas históricas ou artísticas, e de
mais dez membros, nomeados pelo Presidente da República”
139
. Isso demonstra o
desinteresse em tornar o Cnselho um espaço representativo da pluralidade cultural brasileira e
um fórum democrático de discussão sobre o que deveria ser tombado, pois seus membros
representavam as mesmas concepções estéticas e artísticas já legitimadas dentro do grupo que
atuava no SPHAN. O Conselho era, nesse sentido, mais uma instância de legitimação das
práticas do SPHAN do que um canal representativo das múltiplas atividades culturais
desenvolvidas no país.
No entanto, a atuação do órgão, seguindo determinações do ministro Capanema e de
seu diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade, norteava-se por um teor doutrinário e elitista,
acabando por divulgar e impor um padrão estético e cultural que na maioria das vezes se
restringia à classe à qual os técnicos e intelectuais do SPHAN pertenciam ou representavam.
137
FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil. p. 131.
138
Cavalcanti, Lauro. Modernistas na repartição. Rio de Janeiro: UFRJ: MINC – IPHAN, 2000, p.46.
139
Disponível em <www.iphan.gov.br>, acessado em 15/12/2009.
69
Por esse motivo não tinham interesse em uma divulgação dos trabalhos do SPHAN no
formato e abrangência pretendidos por Mário de Andrade.
Nesse sentido, é que Sergio Miceli, ao analisar a política preservacionista do
SPHAN em relação à França e aos Estados Unidos, descreve o órgão como uma “espécie de
refrigério da cultura oficial” considerando que a atuação do SPHAN se legitimara a partir de
“um status puramente técnico, impermeável ao clientelismo de balcão, cujas atividades
poderiam ser avaliadas apenas por especialistas”
140
.
Aliado a isso o autor salienta o fato de que não houve desde a fundação do SPHAN
até hoje uma preocupação em divulgar em escala adequada as suas atividades e os frutos que
ela rendeu. Essa postura vai de encontro à proposta de democratização da informação
proposta por Mário de Andrade que pretendia divulgar o patrimônio e utilizar os bens
patrimoniais nas atividades educativas como no caso de sua sugestão de criação de museus
municipais. Mas com certeza a reduzida divulgação dos trabalhos do SPHAN se enquadra na
lógica do regime implantado pelo Estado Novo e que acabou por ser aceita por Mário de
Andrade na medida em que também participou para sua consolidação através de sua
colaboração com o órgão. Miceli levanta ainda outra questão importante em relação às
escolhas de estilos aliadas à lógica de restauração, que se dava a partir de critérios de
embelezamento onde havia a preponderância do ornamental, o que, para o autor, acaba por
diluir as marcas sociais.
Percebe-se a partir da comparação do anteprojeto com o decreto-lei nº 25 que este
último estava bastante preocupado com a questão legal que permitiria sua atuação e que
estava relacionada à propriedade, pois é em relação à descrição e à regulamentação do
tombamento que o projeto concentra a maior parte de suas determinações legais.
Na historiografia sobre o SPHAN muito se fala sobre o anteprojeto de Mário de
Andrade, que é quase sempre percebido como o “ideal” em comparação com o que foi
aprovado pelo Congresso Nacional. Nesse sentido, Silvana Rubino
141
observa que a própria
história do SPHAN passou então a ser contata situando o anteprojeto como a origem mítica
do órgão. Em suas palavras: “A instituição exemplar que é o SPHAN tem seu mito de origem
140
MICELI. Sergio. Intelectuais à brasileira, p.363.
141
RUBINO, Silvana. As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937-1968. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, janeiro de
1991.
70
repetido de modo intermitente, com poucas variações”
142
. E a partir daí ela enumera quatro
momentos do que o constitui: a encomenda do anteprojeto feita por Capanema a Mário de
Andrade, o trabalho de Mário de Andrade que resultou em um texto modelo, mas que recebeu
alterações para virar texto de lei, a criação do SPHAN e por último a “fase heróica” do órgão.
E a autora conclui que embora o mito se encerre na fase heróica sua origem ainda
permanece, seja na forma de uma história linear do órgão que vai desde o trabalho de Mário
de Andrade até a atualidade, ou na fase posterior, em que Aloísio Magalhães assumiu a
direção e passou-se a um resgate do anteprojeto de Mário de Andrade. Segundo Rubino “No
período posterior a fase heróica, fala-se na lição de Mário, no exemplo de Mário, que aparece
como que reivindicando um resgate, como se houvesse um verdadeiro SPHAN, o de seu
projeto, uma origem a ser recuperada — o SPAN sem ‘h’ de Mário torna-se uma meta”
143
.
Essa história que é repetida inúmeras vezes “além de fornecer base, legitimidade,
fundamentos, [...] aponta para o futuro: [...], tudo se passa como se o projeto do SPHAN fosse
o projeto de Mário, e qualquer desvio é então algo a se corrigir. É uma história que opera
como meta, como o contraponto perfeito do SPHAN real [...]”
144
.
Em relação a essa discussão podemos concluir que era impossível dentro de um
regime autoritário implantar um órgão burocrático com uma visão tão abrangente de arte e
cultura, principalmente se levarmos em conta que o regime nacionalista buscava a
homogeneidade cultural e não a demonstração da pluralidade de nossa cultura. No entanto, é
preciso ressaltar que o anteprojeto de Mário de Andrade, tido como “ideal”, engessa a
discussão em torno das mudanças nas políticas de preservação e na democratização do acesso
tanto das informações quanto das tomadas de decisões em relação às escolhas dos bens
tombados. O modelo “ideal” acaba por desqualificar e desautorizar as mudanças de paradigma
que se fazem necessárias.
2.3. A MATERIALIZAÇÃO DA NAÇÃO
O conceito de patrimônio histórico está atrelado ao nascimento da nação moderna e
da necessidade de construção de uma identidade nacional. A partir da identificação dos bens
representativos da nação é possível dar materialidade e unidade à história nacional. A partir
142
Idem.
143
Ibidem.
144
Ibidem.
71
do momento em que são identificados como símbolos da nação, os bens patrimoniais
justificam sua existência, atribuindo um valor a sua história. Esse processo de legitimação da
nação através do patrimônio histórico passou a ser utilizado pelas nações modernas no
ocidente como uma forma de validar a sua existência.
Segundo Cecília Londres, “O que caracteriza um monumento é o sentido que lhe é
atribuído de feito para lembrar. A memória é uma das funções do espírito e precisa de
suportes para a sua perpetuação”
145
. Para a autora, a capacidade para “constituir e preservar
esses suportes é fator fundamental para a manutenção de uma identidade coletiva, e a seleção
desses suportes, assim como os sentidos que lhe são atribuídos na produção do passado,
indicam as relações de poder que prevalecem [...]”
146
. E é a partir do Estado Novo que, “na
instalação, mais que de um governo, de uma nova ordem política, econômica e social, o
ideário do patrimônio passou a ser integrado ao projeto de construção da nação pelo
Estado”
147
.
E é nesse sentido que se constituiu e se deu a legitimação do SPHAN, enquanto
órgão competente e autorizado — intelectual e moralmente — a determinar o que seria de
interesse nacional e a partir daí indicar o tombamento. Munidos de um discurso cientificista e
nacionalista os intelectuais do SPHAN mantinham uma postura compatível com o regime do
Estado Novo, na medida em que legitimavam a autoridade do Estado como guardião do
patrimônio cultural da nação, por acreditarem que a maior parte da sociedade ainda não
possuía a consciência desses valores. Ao mesmo tempo se credenciavam como portadores de
um saber científico que os elevava como únicos técnicos habilitados a gerenciar o patrimônio
da nação, como se concepção e administração do patrimônio não fosse uma questão de
escolhas políticas e seu uso como símbolos da nação não estivesse atrelado ao projeto
nacionalista e autoritário do regime estadonovista.
Essa postura tem similaridade com a dos ideólogos do regime que percebiam o povo
como uma massa desinformada e incapaz de decidir por conta própria o seu destino, o que
colocava nas mãos da classe dirigente a necessidade de “educar e formar” transformando a
massa em cidadãos, pois eram os intelectuais que estavam dotados do conhecimento científico
que autorizava suas ações. Nesse sentido o argumento da competência técnica serve tanto para
solidificar a posição dos intelectuais como para afastar o caráter político das decisões estatais.
145
LONDRES, Cecília. A invenção do patrimônio. In: Constelação Capanema: intelectuais e políticas/ Org.
Helena Bomeny, p.87.
146
Idem, p. 88.
147
LONDRES, Cecília. O Patrimônio em processo, p.104.
72
No entanto, o conhecimento técnico correspondia apenas a características arquitetônicas,
artísticas ou históricas, enquanto que o caráter político das escolhas era determinado com
antecedência, a partir das escolhas do que seria eleito como representativo da cultura e da
identidade brasileiras. Essa escolha com certeza estava intimamente relacionada ao projeto de
construção da nação e ao modelo de governo implantada pelo Estado Novo. E sem dúvida
eram as escolhas políticas que determinavam a condução das políticas públicas voltadas à
construção do conceito de patrimônio e a sua preservação, fundamentais para o projeto de
construção da identidade nacional e de um novo Estado.
Cientes de que a importância da criação do SPHAN atingia apenas uma pequena
parcela da população, os funcionários do órgão muitas vezes se utilizaram dessa realidade
para protegerem e legitimarem suas ações, as quais o diretor defendia a partir de critérios
técnicos, que em grande parte estavam distantes dos conhecimentos da sociedade a qual
diziam representar. Desse modo, Rodrigo Melo Franco de Andrade mantinha sob proteção o
trabalho dos técnicos do SPHAN na mesma medida em que impunha um padrão cultural e
estético que viria a ser valorizado como genuinamente nacional, apesar de representar apenas
uma parte da cultura nacional. Segundo Cecília Londres
148
essa autoridade — intelectual e
moral — dos funcionários do SPHAN, era a base dos critérios adotados para os tombamentos
muito mais que os estudos e as pesquisas, o que demonstra que o critério de inventário e
tombamento era determinado por uma escolha prévia vinculada aos interesses políticos do
órgão em relação à construção da identidade nacional.
Assim, o SPHAN passou a atuar com base em um modelo que se assemelhava ao
ideário proposto pelo regime estadonovista: centralizado, autoritário e nacionalista, em que as
decisões eram tomadas por um pequeno grupo de funcionários, sem a participação da
comunidade ou proprietário diretamente envolvido. Apesar dessa identificação com o regime
Rodrigo de Melo Franco de Andrade tentava passar uma imagem de órgão independente em
relação ao governo de Getúlio Vargas, inclusive desvinculando-o das diretrizes políticas do
Estado Novo. Cecília Londres acredita que a relativa autonomia de que o SPHAN gozava
devia-se em parte ao pouco interesse de Getúlio Vargas nas defesas realizadas pelo órgão e
também à necessidade que o governo tinha de acolher os intelectuais modernistas ratificando
a imagem de coesão em torno do projeto de construção da nação”
149
.
148
Idem, p.120.
149
Ibidem, p.137.
73
Em relação ao perfil dos profissionais que atuavam no SPHAN, embora conste na
correspondência trocada entre Rodrigo Melo Franco de Andrade e Capanema
150
a solicitação
de contratação de historiadores e arqueólogos para os primeiros levantamentos a serem
realizados, o que predominava era a orientação do valor arquitetônico. Esse é um dos aspectos
mais destacados pela historiografia quando se trata de diferenciar as propostas de Mário de
Andrade e de Rodrigo Melo Franco de Andrade, pois na proposta de Mário de Andrade havia
um equilíbrio em relação à participação dos profissionais das ciências humanas — história,
antropologia — e também em relação aos critérios para a valoração dos bens patrimônios, nos
quais considerava tão importante o caráter artístico e o estilo arquitetônico quanto a história
ou seu significado para a cultura popular. E veremos o quanto essa escolha em que
predominou o valor arquitetônico foi importante para que a arquitetura modernista se
legitimasse tanto quanto a colonial e para que a participação predominante dos arquitetos se
mantivesse até os dias atuais.
Segundo Cecília Londres, “em função do perfil profissional preponderante no corpo
técnico do SPHAN, em que predominavam os arquitetos, o critério de seleção de bens com
base em sua representatividade histórica, [...] ficou em segundo plano [...]”
151
. Assim, o que
predominou foi a lógica da arquitetura que acabou por ditar uma determinada versão da
história e essa leitura que era feita pelos arquitetos modernistas era resultado das “afinidades
estruturais entre as técnicas construtivas do período colonial e os princípios da arquitetura
modernista”
152
.
Esta postura de valorização da arquitetura era reforçada pela participação do
arquiteto Lúcio Costa no setor de tombamentos, pois ele defendia que a arquitetura daria
materialidade à nação. Nesse sentido, os bens tombados por sua excepcionalidade e
antiguidade forneciam ao conceito de nação os suportes para sua materialidade e para a noção
de civilização. Segundo Lúcia Lippi Oliveira “Se tínhamos uma civilização, ela advinha do
barroco mineiro, que passou a ser considerado expressão da totalidade da nação”
153
.
Esse seria o principal papel da arquitetura na construção da nação, e da escolha de
um grupo de arquitetos modernistas para atuarem no serviço de proteção do patrimônio, pois a
arquitetura demarcava com clareza o momento em que se dava o nascimento da nação e
150
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN/RJ – Correspondência Capanema, caixa 01, pasta 42. Carta nº 23,
de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Gustavo Capanema, sem data.
151
Ibidem, p.120.
152
Ibidem, p.122.
153
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: um guia, p.123
74
permitia tecer um discurso que projetava para o futuro — novo e moderno — que tanto
interessava ao regime quanto aos arquitetos modernistas. Isso foi determinante na imagem do
órgão, relacionada principalmente ao tombamento de edificações que se salientassem por seu
valor histórico ou artístico. Concentrando-se na preservação de imóveis dos séculos XVI,
XVII e XVIII, a maioria constituída de arquitetura religiosa, os profissionais do SPHAN
acabaram por formar um saber que se tornara quase uma jurisprudência na orientação dos
trabalhos de tombamento e restauração.
A valorização da arquitetura colonial como patrimônio representativo e simbólico do
nascimento da nação fornecia a materialidade necessária para sua constituição, e, neste
sentido legitimava sua criação. Mas, segundo Márcia Chuva, além dessa materialidade dos
monumentos, outra estava sendo construída, através da publicação da Revista do Patrimônio,
ainda em 1937, no primeiro ano de atuação do SPHAN. Para a autora, “A política editorial do
SPHAN foi marcada por uma produção discursiva descritiva e classificatória do patrimônio
histórico e artístico nacional, capaz de conquistar legitimidade para prescrever os atributos
desse patrimônio e para fixar um mapa de possibilidades”
154
.
Por isso, desde o início houve uma grande preocupação com a legitimação e
divulgação dos trabalhos dos técnicos do órgão, através do registro de suas pesquisas na
Revista do Patrimônio
155
. Assim, na mesma medida em que se constituía enquanto veículo
qualificado através da produção intelectual sobre o patrimônio e arte nacionais a revista servia
para assegurar a esse mesmo patrimônio a legitimidade de que necessitava enquanto símbolo
do nacional, da brasilidade. Legitimava a arte, arquitetura e história que o SPHAN valorizava
e elegia como representantes de nossa nacionalidade e, a partir daí, habilitava a própria nação,
fornecendo subsídios para a construção da identidade nacional e para o reforço do sentimento
de brasilidade. Nesse sentido, tanto o patrimônio tombado quanto a revista eram os
documentos de autenticação da nação e estavam diretamente relacionados ao projeto político
do regime estadonovista.
Segundo Márcia Chuva, “[...] a Revista do Patrimônio foi muito bem sucedida na
construção de uma identidade nacional que, associadamente, revelasse uma nação moderna e
154
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi, v.
4, n. 7, jul-dez. 2003 p. 313-333.
155
A Revista do Patrimônio atendia mesma linha de publicação da revista Cultura Política, em que os artigos
eram voltados para o público intelectual com o objetivo de registrar o trabalho em que estavam envolvidos e
legitimar o seu papel social, sendo autorizados à publicação somente os que estavam de acordo com a concepção
política.
75
pertencente ao mundo civilizado”
156
. E a afirmação da competência do órgão se dava pela
justificativa de critérios técnicos baseados em pesquisas científicas realizadas em uma área de
conhecimento novo, em que tudo estava por ser feito. Assim, o SPHAN, a partir das pesquisas
necessárias para fundamentação do inventário e tombamento, produziu o que podemos
denominar de primeiros estudos aprofundados sobre história da arte do Brasil. No entanto, a
publicação era voltada para especialistas e estudiosos e não para a divulgação do trabalho
realizado para o SPHAN, como desejava Mário de Andrade. Embora fosse vendida a um
preço acessível não era dirigida a um público mais amplo justamente por seu caráter científico
e porque não tratava de temas de interesse da população em geral, como é o caso do folclore e
da arte popular.
Para dar conta dessa lógica patrimonialista, em que conceito de patrimônio estava
relacionado à preservação de bens portadores de materialidade como é o caso dos prédios
históricos, o SPHAN teve sua estrutura reforçada em diversos estados do país contando com
colaboradores que representavam cada uma das regiões portadoras de patrimônio histórico e
artístico de interesse nacional. Pela quantidade de edificações religiosas e civis do período
colonial os estados de Minas Gerais, Pernambuco e Bahia tornaram-se núcleos importantes
através dos quais era possível resgatar a memória do período colonial, seus heróis e sua
história como símbolos do nascimento da nação.
Helena Bomeny
157
chega a citar a predominância de Minas Gerais como a “ideologia
da mineiridade”, que seria a ideologia compartilhada pelos intelectuais mineiros que
consideravam Minas Gerais representante de valores morais e religiosos que a colocavam
como uma metáfora para o país. Segundo o sociólogo Paulo Gracino Júnior a mineiridade
pode ser definida como a tradução “de diversos elementos que constituem o povo mineiro,
tais como: apego à tradição, valorização da ordem, prudência, aversão a posições extremistas
e, portanto, o centrismo, a moderação, o espírito conciliador, a capacidade de acomodar-se às
circunstâncias [...]”
158
. É com base nesses princípios morais que a cultura e a arquitetura
dessa região, bem como seus intelectuais, passam a obter maior visibilidade levando-se em
conta que esses eram também alguns dos princípios que norteavam o regime varguista.
Assim, Minas Gerais é alçada como modelo para a nação a partir de sua história, arte e
arquitetura, bem como através do temperamento e do comportamento de sua elite.
156
Idem.
157
BOMENY, Helena. Os guardiães da razão: modernistas mineiros, p.39.
158
GRACINO JÚNIOR, Paulo. Minas são muitas, mas convém não exagerar: identidade local e resistência ao
pentecostalismo em Minas Gerais. Sielo. Cad. CRH vol.21 no. 52 Salvador Jan./Abr. 2008.
76
E nesse aspecto o SPHAN era um instrumento importante, pois o Estado Novo,
como já vimos, construiu a ideia de soberania nacional interligando política e cultura, em que
a hegemonia da cultura era fundamental para a centralização pretendida pelo regime
autoritário. No entanto, como salienta Cecília Londres
159
, o grupo que atuou no SPHAN
tentava evitar que o trabalho do órgão fosse interpretado como se tivesse por objetivo
legitimar a ideologia do Estado. Esses intelectuais tentavam passar a ideia de independência,
sempre se utilizando da competência técnica como subterfúgio, para serem mantidos distantes
do discurso político e das críticas em relação a suas aproximações com o governo autoritário.
No entanto, essa é a mesma lógica utilizada pelo regime estadonovista em relação às outras
áreas de atuação.
Mas, apesar desse discurso muitas das ações do SPHAN necessitavam da
intervenção direta do ministro Capanema, pois nem todas as relações desencadeadas no
SPHAN se deram de forma tranqüila, demonstrando o caráter político dessas ações em
detrimento do discurso científico. Por isso, no início de sua gestão Rodrigo Melo Franco de
Andrade enfrentou problemas com a igreja católica que não via com bons olhos o direito do
Estado em interferir no seu patrimônio. Foram necessárias muitas intervenções de líderes do
governo, em parte valendo-se da relação do ministro Capanema com Alceu Amoroso Lima —
líder político católico — para que a ideia de tombamento fosse aceita no meio eclesiástico.
Na troca de correspondência dos primeiros anos do órgão é possível encontrar cartas
de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Capanema em que o problema é citado e em que se
solicita a intervenção do ministro
160
. Esta atitude demonstra o quanto o ministro endossava as
práticas do SPHAN e o quanto essas se transformaram em um canal de legitimação de suas
políticas culturais, pois o ministro desejava construir uma imagem de um gestor moderno e
inovador e necessitava para isso dos conceitos inovadores do grupo modernista, o que iria se
concretizar principalmente através da arquitetura modernista, como veremos a seguir. A
intervenção do ministro trai a legitimidade do discurso científico tornando visível o caráter
político das ações do SPHAN.
Pelo elevado número de edificações religiosas, o estado de Minas Gerais concentrou
boa parte dos estudos e dos tombamentos realizados, chegando a possuir setenta por cento do
patrimônio cultural brasileiro tombado pelo SPHAN
161
, o que ocorreu em parte porque a
159
LONDRES, Cecília. O Patrimônio em processo, p. 124.
160
Arquivo central IPHAN/RJ – Correspondência Capanema, caixa 01, pasta 42. Carta nº 13, de Rodrigo Melo
Franco de Andrade a Gustavo Capanema, datada de 18 de maio de 1936.
161
Segundo dados de um relatório do SPHAN/Pró-Memória de 1982.
77
equipe era formada por muitos intelectuais da região, e em parte porque possuía um elevado
número de obras de estilo barroco, estilo esse eleito como representativo de nossa alteridade
cultural em relação à Europa, tida como referência para a intelectualidade nacional. Tal
postura demonstra que mesmo partindo de um discurso baseado na unidade cultural para
construir a identidade nacional, o regionalismo sempre se impunha, pois no caso da escolha
de Minas Gerais, além da arquitetura e da arte, também sua história, a partir da Inconfidência
Mineira, foram eleitas como símbolos do nascimento da nação brasileira.
Assim, um mesmo estado forneceu todos os elementos necessários para a construção
da identidade nacional — história, cultura e heróis — que seriam apropriados como símbolos
da brasilidade. A escolha de Minas Gerais e em particular de Ouro Preto contava também com
a defesa do ministro Capanema e de seu chefe de gabinete Carlos Drummond de Andrade,
ambos mineiros, o que com certeza contribuiu para a valorização e para o predomínio dos
tombamentos na região.
Entre os “lugares de memória” eleitos pelo SPHAN a cidade de Ouro Preto teve
destaque pelo grande número de edificações coloniais e pela obras de Aleijadinho, além dos
fatos históricos relevantes que lá tiveram lugar. Por esse motivo também é que boa parte das
matérias publicadas nos primeiros anos da Revista do Patrimônio estavam relacionadas a
Ouro Preto, a Aleijadinho e ao barroco mineiro. Segundo Gonçalves, “Desde os anos trinta, o
barroco tem sido oficialmente usado como um signo totêmico de expressão estética da
identidade nacional brasileira”
162
.
Para Pierre Nora o interesse pelos lugares onde a memória se cristaliza está ligado ao
“momento de articulação onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o
sentimento de uma memória esfacelada [...]. Há lugares de memória porque não há mais
meios de memória”
163
. Esta afirmação de Pierre Nora se baseia na ideia de que a aceleração
do tempo e a percepção de uma “ruptura de equilíbrio” é o que levaria a uma busca do
passado como um sinal de reconhecimento de um tempo contínuo, “sinais de reconhecimento
e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e
idênticos”
164
. Nesse sentido a escolha da cidade de Ouro Preto como um “lugar de memória”
deu-se em virtude de que naquele momento havia uma percepção da aceleração do tempo e
162
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil,
p.68.
163
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, In: Projeto História. São Paulo: PUC,
n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.
164
Idem.
78
das mudanças associadas ao modelo industrial que era implantado no país. Além disso, como
“lugar de memória” fornecia a materialidade necessária à construção da nação e da identidade
nacional.
Mais uma vez em relação à revista, podemos perceber que o SPHAN tinha
consciência da importância dos canais de divulgação para legitimação de suas idéias e nesse
sentido agia de acordo com a lógica do regime estadonovista que soube se utilizar dos canais
de informação para divulgar seu ideário nacionalista e autoritário. Nesse sentido, direcionava
os seus artigos para a construção da homogeneidade cultural que ia ao encontro da concepção
de identidade do regime. Outra semelhança da revista com as publicações do regime é a
seleção dos temas que apareciam em suas páginas, sempre evitando tratar da diversidade
cultural como é o caso do tema folclore que o próprio diretor do SPHAN sugere a Mário de
Andrade que fique para publicações futuras. Em correspondência datada de 11 de junho de
1937, Rodrigo Melo Franco de Andrade escreve a Mário de Andrade que “A respeito do
folclore, desconfio de que não haverá por enquanto lugar para ele na revista, atendendo-se às
atribuições atuais do serviço”
165
.
Isso demonstra que a publicação tornara-se forte instrumento de consolidação da
identidade nacional que naquele momento deveria ser percebida como coesa e homogênea e
por isso sua edição passava por uma espécie de censura, evitando qualquer tipo de abordagem
que desagradasse ao regime ou que fosse de encontro aos seus interesses. Percebe-se aqui uma
similaridade com a orientação da publicação Cultura Política, também editada pelo regime e
que passava pelo mesmo tipo de controle na edição de suas matérias, como demonstrou
Mônica Pimenta Velloso em sua análise do conteúdo da revista
166
.
Em relação à proposta do SPHAN, a política implantada por Rodrigo Melo Franco
de Andrade embasava-se na ideia de educar e formar o novo cidadão, mesmo princípio
defendido por Capanema em sua gestão tanto da educação quanto da saúde e da cultura. Além
disso, Rodrigo Melo Franco de Andrade fazia parte de um grupo de intelectuais, em grande
maioria pertencente ao movimento modernista, que percebiam a si mesmos como portadores
da missão de “modernizar” e “civilizar” o Brasil, ao mesmo tempo em que construíam uma
imagem singular para o país.
165
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN/RJ – Correspondência Capanema, caixa 07, pasta 23. Carta nº 28,
de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Mário de Andrade.
166
VELLOSO, Mônica Pimenta. Cultura e poder político In: Estado Novo: ideologia e poder p.71 a 104.
79
Partindo da concepção de que o intelectual ocupava um lugar privilegiado que o
autorizava e legitimava para postular o que era melhor para a nação, o diretor do SPHAN
creditava ao grupo de intelectuais que formavam sua equipe a missão de “dar continuidade à
‘obra de civilização’ que vem sendo desenvolvida no Brasil desde os tempos coloniais”
167
.
Segundo José Reginaldo Gonçalves, “A estratégia assumida por Rodrigo Melo Franco de
Andrade ao narrar o que ele chama de ‘uma obra de civilização’ é, por um lado, a de um
observador objetivo e racional, cujo propósito é registrar, do modo mais rigoroso, os
acontecimentos, personagens e objetos associados ao ‘patrimônio’ [...]”
168
. Na medida em
que preservava e defendia a existência de um patrimônio histórico, identificava-se com o
discurso nacionalista do regime e contribuía para o fortalecimento do Estado Novo. Além de
atender a outra demanda do ministro Capanema, que desejava promover a cultura brasileira
em nível nacional através da “educação” do olhar voltado à arte e história locais,
concentrando-se principalmente na cultura da elite, pois acreditava ser esta a portadora dos
atributos morais, éticos e estéticos necessários para a educação do povo brasileiro e, por isso,
ela deveria impor-se sobre a cultura popular. O que explica porque predominavam entre as
obras tombadas as edificações religiosas ou pertencentes a uma elite de gosto considerado
mais rebuscado, e explica também a ausência de elementos da cultura popular nos anos em
que Rodrigo Melo Franco de Andrade dirigiu o SPHAN.
2.4. CONSTRUINDO A NAÇÃO ENTRE O PASSADO E O FUTURO
A concretização do projeto do ministro Capanema de educar e formar um novo
homem tinha como objetivo não só a construção de uma identidade nacional e da afirmação
do Brasil em um contexto internacional. Havia um claro interesse em conciliar tradição e
modernidade e preparar a sociedade brasileira para a implantação de um novo modelo
econômico e social ao qual ela deveria se adaptar para que o projeto industrial fosse bem
sucedido. Por isso, também na cultura o ministro apoiava ações consideradas ousadas,
propostas pelos intelectuais modernistas. E mantinha em sua equipe intelectuais que embora
nem sempre se sentissem confortáveis com as práticas políticas autoritárias do regime
colocavam as obras de arte — patrimônio — acima dessas questões. Como nos diz Helena
167
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil, p.
43.
168
Idem.
80
Bomeny, “A defesa da arte minimiza o constrangimento dos vínculos de seus criadores com
programas, projetos, ideologias e políticas criticáveis”
169
.
Apesar de manter-se fiel às tradições do passado, é significativa a defesa do ministro
na construção de um novo prédio para seu ministério em estilo modernista. Já no início de
seu mandato, realizou um concurso para a construção do novo prédio do MES que sediaria
não só o Ministério da Educação e Saúde como o próprio SPHAN. Como já vimos
anteriormente, a arquitetura foi utilizada como meio para dar materialidade à nação e no caso
da construção do novo prédio não foi diferente. Capanema desejava construir um monumento
que representasse sua administração e que “fosse símbolo de um projeto do governo Vargas
para a cultura”
170
.
O prédio passou a ser símbolo da administração Capanema e contou com a defesa do
próprio ministro, que rebateu muitas críticas durante o longo período de sua construção, de
1936 a 1945. A partir da construção do prédio fez-se necessária a elaboração de uma narrativa
histórica para justificar a escolha do estilo, e foi Lúcio Costa que a forneceu, vinculando a
arquitetura moderna com o passado e fornecendo-lhe um caráter nacional. Seu discurso foi
construído tendo por base a referência da arquitetura grega e, a partir daí, encontrou
argumentos para relacioná-la também com a arquitetura colonial. Para Cecília Londres,
“Universalizando não o próprio estilo, mas seus princípios, e inserindo-os no melhor da
tradição ocidental, Lúcio Costa dá um passo para, em seguida, identificar esses mesmos
princípios no período que seria fundador de uma arquitetura brasileira — os séculos XVII e
XVIII”
171
.
Lúcio Costa em seu artigo intitulado Arquitetura Jesuítica no Brasil, publicado na
Revista do Patrimônio nº 5, de 1941, classificou a arte barroca no Brasil, situando-a
cronologicamente em relação à evolução da arte do mundo europeu civilizado. Para tanto, o
autor dividiu a arte barroca brasileira em quatro períodos essenciais — classicismo,
romanicismo, goticismo e renascimento barroco — tentando atualizar a arte brasileira aos 250
anos da evolução da arte europeia. Para Márcia Chuva, “Aparentemente queimando etapas,
169
BOMENY, Helena. Infidelidades eletivas: intelectuais e política. In: Constelação Capanema: intelectuais e
políticas/Org. Helena Bomeny, p.32.
170
LONDRES, Cecília. A invenção do patrimônio e a memória nacional. In: Constelação Capanema, p. 93.
171
Idem.
81
essa cronologia sintetizava experiências e tirava-lhes o sumo essencial de forma a atualizar a
nova nação que, num curto espaço de tempo, alcançava o tempo do velho mundo”
172
.
A preocupação com a tradição explica a criação do SPHAN, enquanto a necessidade
de modernização permite justificar o apoio ao projeto modernista. Assim, a habilidade dos
modernistas que ocuparam o MES estava justamente em conseguirem conciliar a tradição do
passado colonial com a defesa da modernidade. Esta foi sem dúvida a principal razão para que
Capanema se cercasse dos modernistas na elaboração de um discurso patrimonial que
concebia a nação brasileira representada através da tradição e da modernidade, pois percebia
seu projeto político como modernizante, ao mesmo tempo em que buscava sua legitimação na
continuidade da tradição do passado. O modelo político do regime necessitava o suporte da
arquitetura colonial para dar visibilidade à concepção de nação a partir de símbolos universais
— como é o caso do barroco — ao mesmo tempo em que se afirmava como um regime
moderno em que se articulavam as políticas necessárias para projetar o futuro da nação,
equiparando-a aos países desenvolvidos.
Em relação ao SPHAN, a defesa da tradição do passado, feita por Rodrigo Melo
Franco de Andrade, e a participação de Lúcio Costa estabelecendo uma relação da arquitetura
modernista com o que considerava a “boa arquitetura” do passado foram significativas para o
sucesso do projeto cultural do ministro Capanema e também do projeto dos arquitetos
modernistas. Lúcio Costa defendia “uma leitura da arquitetura moderna que a vincula com o
passado e lhe confere um caráter nacional”
173
. Para ele, a nova arquitetura mantinha a
tradição com o passado, recuperando o que ele tinha de melhor: a pureza das formas, o lirismo
e o equilíbrio, valores latinos da tradição grega. É devido a esse cenário favorável tanto
política quanto culturalmente que a arquitetura modernista brasileira é considerada hoje uma
das mais relevantes do mundo.
Rodrigo Melo Franco de Andrade, através da valorização do passado construía a
idéia da nação una que ia ao encontro dos princípios defendidos pelo governo varguista.
Segundo ele, “[...] não há meio tão eficaz para incutir-nos a convicção da unidade e da
perenidade da pátria quanto um balanço, ainda que sumário, dos monumentos herdados de
nossos maiores, ao longo de toda a superfície do Brasil”
174
. Sua indicação para a inscrição
dos bens nos Livros do Tombo baseava-se, segundo Cecília Londres, “[...] em uma noção
172
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi, v.
4, n. 7, jul-dez. 2003 p. 313-333.
173
Ibidem.
174
GONÇALVES, José Reginaldo Santos, apud ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de, 1987, 57.
82
canônica de monumento histórico em que os valores artísticos identificados na arquitetura
moderna inspiravam a leitura dos monumentos-documentos do passado”
175
.
O anteprojeto encaminhado por ele ao presidente da república definia que o
patrimônio histórico e artístico nacional deveriam ser preservados levando em conta “[...] a
sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”
176
. Por essa definição, que é resultado
das alterações que Rodrigo Melo Franco de Andrade fez no anteprojeto de Mário de Andrade,
percebemos a exclusão da arte popular, um dos possíveis motivos do distanciamento da
população em relação às políticas de preservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
Mas, apesar da exclusão da arte popular na redação de sua autoria, é possível
encontrar nos textos de Rodrigo Melo Franco de Andrade a inclusão da necessidade da
educação popular, o que demonstra sua visão elitista em relação ao povo, pois, na mesma
medida em que desconsiderava suas expressões artísticas, queria educá-lo através do que
considerava a “boa arquitetura”, que, como já vimos, representava o gosto da elite, para que a
apreendesse e valorizasse. Segundo ele, “Ter-se-á de organizar e manter uma campanha
ingente visando a fazer o povo brasileiro compenetrar-se do valor inestimável dos
monumentos que nos ficaram do passado”
177
. No entanto, esse passado é sempre
representado pelos signos das classes que detêm o poder econômico, como é o caso das
construções coloniais.
Em alguns momentos de sua gestão Rodrigo de Melo Franco de Andrade enfrentou
resistências da ala conservadora quanto a indicações para chefia das diferentes regiões, como
é o caso da objeção de Alceu Amoroso Lima à indicação do nome de Gilberto Freyre, por
considerá-lo comunista. No entanto, Rodrigo Melo Franco de Andrade ao mesmo tempo em
que contava com o apoio do ministro Capanema, tentava manter distância das disputas
políticas do governo e caracterizar o SPHAN como um reduto despolitizado e desvinculado
do regime político autoritário e centralizador. Aliás, essa idéia de cultura desvinculada da
política é uma tentativa constante do regime que procurava desmobilizar a sociedade através
de um discurso de igualdade através da identidade cultural.
175
LONDRES, Cecília. A invenção do patrimônio. In: Constelação Capanema: intelectuais e políticas/ Org.
Helena Bomeny, p.97.
176
Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Disponível em < http://portal.iphan.gov.br > Acessado em 9
de dezembro de 2009.
177
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN, p. 64.
83
Outro objetivo importante do SPHAN em relação ao trabalho de sua equipe era
qualificá-la como objetiva, científica e capaz de subsidiar o trabalho de inventário e
tombamento ao mesmo tempo em que divulgava a arte e a história do Brasil. A partir dessa
qualificação o trabalho da equipe se legitimava para defender investimentos em uma
arquitetura modernista ao mesmo tempo em que permitia aos intelectuais, em especial os
arquitetos, tornarem-se reconhecidos, como já vimos em relação à construção do prédio do
MES. Além disso, mantinha a autonomia e a independência desses profissionais, permitindo
que apresentassem propostas mais ousadas, como é o caso da arquitetura modernista que foi
realizada durante o período do Estado Novo e contou com o apoio do próprio ministro
Capanema, como no caso já citado da construção do prédio do MES..
Nesse sentido, os arquitetos do SPHAN foram responsáveis tanto pela recuperação
do passado — arquitetura colonial — quanto pela aceitação de grandes obras do presente —
construção do prédio modernista do MES. E essa era também uma estratégia que interessava e
era estimulada pelo regime do Estado Novo, pois como nos diz Lauro Cavalcanti, “Um ponto
que muito contou na conquista do aval de um Estado sequioso de marcar sua presença em
grande escala foi a habilidades dos ‘modernos’ em lidar com o monumental: [...] a construção
de novos monumentos para o futuro é exercida com maestria do MES até Brasília [...]”
178
. A
autoridade dos técnicos em relação às escolhas realizadas pelo SPHAN encontra-se entre os
principais norteadores do conceito de patrimônio nos anos do Estado Novo. Outros fatores
que compunham esse conceito eram o caráter estético que prevaleceu tendo por base os
cânones da arquitetura modernista, a autenticidade das fontes históricas e a inscrição nos
Livros do Tombo.
Em relação às escolhas do tipo de bens a inventariar ou tombar, Cecília Londres nos
diz que foi “[...] a noção de civilização material, que fundamentava a história dos
monumentos e objetos, e à qual o patrimônio tombado devia se referir, e a interpretação que
os arquitetos modernos fizeram da arquitetura brasileira, que justificaram os tombamentos da
“fase heroica”
179
. Assim, o critério de escolha com base na representatividade histórica ficou
em segundo plano e por isso em 1938 o SPHAN já havia tombado “261 monumentos, seis
178
CAVALCANTI apud LONDRES, 1993:173.
179
FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil., p.121. Na historiografia oficial produzida no interior do próprio SPHAN, os primeiros trinta anos de sua
atuação, entre 1937 e 1967, sob comando de Rodrigo Melo Franco de Andrade, é denominado “fase heróica”
Segundo Lauro Cavalcanti a expressão “heróica” é utilizada “por conta do ‘romantismo’ das viagens para
desvendar a realidade brasileira tão exótica e desconhecida no próprio país; pela escassez de recursos e número
de funcionários para a hercúlea tarefa de classificar e tomar conta dos bens em todo o território nacional.
(CAVANCANTI, Lauro. Modernistas, arquitetura e patrimônio, in: Repensando o Estado Novo, p.75)
84
logradouros e nove conjuntos arquitetônicos [...]”
180
, embora encontrasse dificuldades em
proceder ao tombamento de bens móveis alegando dificuldades de acesso as coleções
particulares.
Desse modo, a política de preservação do patrimônio se consolidava a partir da
preservação da arquitetura colonial, o que acabou por prevalecer nas publicações do SPHAN
e nos debates dos intelectuais envolvidos com o patrimônio histórico. Essa mesma concepção
de patrimônio, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lúcio Costa utilizaram na defesa do estilo
arquitetônico do novo prédio do ministério que se tornou referência da arquitetura modernista
no Rio de Janeiro e no Brasil, e teve o aval de Capanema. O ministro, com essa estratégia,
tratou as obras tanto do passado como as do presente como monumentos, com o objetivo,
segundo Cecília Londres, “de perpetuar valores coletivos que foram identificados a uma
imagem da nação que se queria construir”. Buscavam-se, assim, no passado, “valores que
transcendiam seus tempo” e no presente esses valores eram “reencontrados e reelaborados
esteticamente, de modo a indicar um projeto para o futuro”
181
.
Segundo Cecília Londres, “Gustavo Capanema soube selecionar, no estoque de
possibilidades disponíveis no seu tempo, propostas qualificadas e identificadas com um
sentido de mudança, o que resultou numa atuação integrada na promoção das artes do passado
e do presente”
182
. Interessado em manter uma imagem de líder moderno e atualizado
Capanema incentivou, além dos arquitetos modernistas, o trabalho de pintores ligados ao
grupo, como é o caso de Cândido Portinari que foi chamado pelo próprio ministro para pintar
o painel do novo prédio do ministério.
Para Cecília Londres, o fato de o ministro delegar ao mesmo grupo — modernistas
— a responsabilidade sobre os dois processos, de preservação do patrimônio histórico e de
legitimação da nova arquitetura, conferiu “uma certa organicidade ao projeto do governo
Vargas para o patrimônio histórico e artístico, o que contribuía para ocultar a perda, nesse
projeto de construção da memória nacional [...] de um sentido plural que Mário de Andrade
buscava [...]”
183
.
No entanto, apesar da pluralidade da proposta de Mário de Andrade em relação à
concepção de cultura e patrimônio, seu anteprojeto também possuía o caráter elitista e
180
Idem, p. 123.
181
FONSECA, Maria Cecília Londres. A invenção do patrimônio e a memória nacional IN: BOMENY, Helena.
Constelação Capanema: intelectuais e políticas, p.89.
182
Idem p, 99.
183
Ibidem, p. 89.
85
autoritário que caracterizou as ações do SPHAN, pois não previa a inclusão da sociedade no
processo de escolha dos bens a serem tombados, restringindo sua participação apenas como
registro etnográfico.
Em relação à atuação do grupo modernista que trabalhava no SPHAN Lúcia Lippi
Oliveira levanta um aspecto interessante relacionado às duas áreas de atuação em que se
envolviam esses intelectuais, a preservação do passado e a construção do presente. A autora
diz que a exemplo de Rodrigo Melo Franco de Andrade, os intelectuais do órgão ao
escolherem “o barroco como expressão da identidade nacional, o fazem construindo uma
linha de continuidade que vai do barroco ao estilo moderno, isto é, em que o barroco aparece
como predecessor do moderno. Segundo eles, barroco e moderno seriam estilos associados a
valores universais”
184
. Para Lúcio Costa, que atuava no SPHAN e era o principal defensor da
arquitetura moderna, “a produção arquitetônica colonial brasileira se enquadrava numa
classificação universal [...]”
185
que permitia ao arquiteto comparar as fases do barroco às
fases de periodização da arte européia.
Assim, o barroco permite a atualização da nação em sincronia com o mundo
civilizado. Além disso, a justificativa para a escolha deste e não de outro estilo arquitetônico
é justamente o fato de que “poderia muito bem ser usado como exemplo de valores
singularistas”
186
. É esse duplo sentido que podia ser atribuído ao barroco mineiro e o tornou
um elemento tão importante na construção da identidade nacional. Ao mesmo tempo em que
estava relacionado à arte universal era considerado uma expressão artística portadora de
características genuinamente brasileiras.
E embora fosse difícil manter a defesa da arquitetura modernista de estilo
internacional dentro de um governo nacionalista, o ministro apoiou o projeto com a intenção
de construir um monumento arquitetônico identificado com o novo, tornando-se símbolo do
projeto do Estado Novo para a cultura. Para Cecília Londres, “No caso do prédio do MES,
[...] pode-se dizer que a intenção inicial era construir um monumento que fosse identificado
com o novo, via linguagem da arquitetura, vazio de outras referências que não o seu estilo”
187
.
E não tardaram a encontrar justificativas históricas dentro do próprio SPHAN para
legitimar sua existência. Lúcio Costa, um dos principais arquitetos brasileiros do movimento
184
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Memória do Rio de Janeiro. In: Cidade, história e desafios, p.167.
185
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi,
v.4, n.7, jul-dez. 2003..
186
OLIVEIRA apud GONÇALVES, José Reginaldo, 1996.
187
Ibidem, p.93.
86
modernista, saiu em defesa do novo prédio, pois, para que fosse aceito, era fundamental
construir uma narrativa histórica que incluísse esse novo estilo de construir que o prédio do
ministério apresentava. Para convencer a oposição de que havia uma relação histórica entre o
passado colonial, valorizado pelo SPHAN, e a nova arquitetura o arquiteto retoma o discurso
da competência para o julgamento do que é ou não considerado de qualidade tanto artística
quanto cultural e estabelece uma relação entre a temporalidade da arquitetura colonial e da
arte européia
188
.
Em sua fala é possível percebermos repetidas vezes o uso da expressão “boa
arquitetura” utilizada quando ele se refere à arquitetura clássica, à qual relacionava a pureza
das formas e o equilíbrio da nova construção modernista. Ao assumir a Divisão de Estudo e
Tombamentos, Lúcio Costa deixara claro como percebia essa relação ao dizer que “a boa
arquitetura de um determinado período vai sempre bem com a de qualquer período anterior —
o que não combina com coisa nenhuma é a falta de arquitetura”
189
.
Mas apesar dessa vinculação com o moderno na defesa da nova arquitetura na
condução dos critérios de seleção ou em relação aos trabalhos de restauração dos bens
tombados, a atitude dos profissionais do SPHAN baseava-se na busca de um rigor imposto
através da visão de Rodrigo Melo Franco de Andrade, que estava assegurado em critérios
limitados da formação histórica nacional e de uma visão limitada da história da arquitetura
brasileira, pois reduzia sua valoração somente a um período histórico — o colonial — e a um
estilo arquitetônico — o barroco. Deve-se a essa atitude o fato de terem sido preteridos alguns
estilos importantes como o ecletismo representativo da Primeira República e também a
inclusão do patrimônio cultural que fugisse ao critério de monumentalidade, como foi
proposto por Mário de Andrade. O que Mário de Andrade propunha se caracterizava muito
mais como um “inventário dos sentidos”, onde se catalogariam todas as manifestações do
povo com o objetivo de garantir uma estética nacional e de construir a identidade nacional.
Mas, tendo clara a relação entre a política e a cultura, o ministro Capanema não
pretendia estimular uma visão plural, fragmentada e descentralizada do Brasil, que era a
imagem resultante do anteprojeto de Mário de Andrade. Para Mário de Andrade o patrimônio
era portador de valor e merecia ser restaurado e preservado por ser esse um serviço de
interesse público voltado à população. Embora saibamos que Mário de Andrade participou da
188
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi,
v.4, n.7, jul-dez. 2003..
189
LONDRES, Cecília apud COSTA, Lúcio, 1992.
87
equipe do SPHAN aceitando as alterações em seu projeto, ele nunca teve visibilidade ou
mesmo ocupou cargos de destaque no serviço de patrimônio. Na troca de correspondências
entre ele e Rodrigo Melo Franco de Andrade e também com o ministro Capanema
190
percebe-
se que suas ideias sobre cultura e arte eram muitas vezes relegadas a segundo plano e só era
aproveitado de seus discursos o que se referia à construção da nacionalidade, ou o que poderia
ser utilizado como referência da brasilidade. No entanto o SPHAN e o ministro voltavam suas
ações à construção da nação baseados em um critério de unidade nacional e hegemonia
cultural, o que acabou por distanciar o órgão dos interesses da sociedade.
Por esse motivo a política de valorização e preservação do patrimônio histórico e
artístico nacional foi centralizada nas mãos de um diretor que partilhava dos mesmos
interesses do regime estadonovista. Pretendia valorizar o caráter nacional das obras tombadas
e a partir daí legitimar a existência de uma cultura genuinamente nacional. Mantinha a
organização do SPHAN centralizada no estado do Rio de Janeiro e sob sua orientação
uniformizando os critérios de seleção dos bens tombados com o propósito de homogeneização
cultural. Distante do cotidiano da maior parte dos brasileiros o SPHAN tentava manter a
imagem de um órgão desvinculado da política pela defesa do caráter técnico utilizado pela
equipe do órgão.
No entanto, as práticas de preservação e tombamento de bens considerados de valor
artístico e nacional são a materialização do discurso político construído no regime e como
construção ideológica pressupõem escolhas que são determinadas politicamente. Assim,
apesar da intenção, tanto do governo quanto do próprio grupo que atuou no SPHAN, de
desvincular as suas decisões dos princípios políticos do regime, é evidente que o SPHAN agia
a partir de um modelo político autoritário e centralizador que orientava as suas ações e para o
qual forneceu subsídios fundamentais para a construção de um discurso baseado na
homogeneidade cultural.
Atuando com o que parecia ser uma relativa independência e mantendo-se distante
da formulação ideológica do Estado Novo, podemos caracterizá-lo como um dos órgãos que
mais serviu aos ideais nacionalistas do regime e, justamente por legitimar-se a partir de um
caráter técnico, foi a instituição que mais obteve credibilidade. Assim, o SPHAN, embora não
190
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN/RJ – Correspondência Rodrigo Melo Franco de Andrade, caixa 05,
pasta 01. Carta nº 50, de Mário de Andrade a Rodrigo Melo Franco de Andrade, datada de 26 de janeiro de 1938
e carta nº 41, pasta 02 datada de 16 de outubro de 1937. Nessas correspondências Mário de Andrade fala de seu
trabalho no Departamento de Cultura em São Paulo e sobre folclore demonstrando uma visão que respeitava a
pluralidade cultural.
88
atuasse diretamente na concepção do ideário do Estado Novo teve um papel importante no
fornecimento dos símbolos que o legitimaram e na ligação dos intelectuais da cultura,
principalmente os modernistas, com o Estado.
89
3. A NAÇÃO FUNDADA A PARTIR DE OURO PRETO
3.1. O BARROCO
A necessidade de construir uma nação coesa e de consolidar a identidade nacional
demandava a escolha de símbolos que permitissem a materialização do ideário estadonovista,
ao mesmo tempo que representassem a nação como moderna e civilizada. Para atingir tais
objetivos, o grupo de intelectuais modernistas que atuou no SPHAN elegeu a arquitetura
barroca do período colonial como semióforo da nação. A escolha do barroco tornou possível a
adoção de um discurso que iria entrelaçar tradição e modernidade, sempre se utilizando da
arquitetura como suporte.
Alçando o barroco a símbolo de nossa identidade, foi possível demonstrar a
homogeneidade cultural pretendida pelo regime e, ao mesmo tempo, situar o Brasil entre as
nações modernas e civilizadas. E foi a partir dessa positividade fornecida pelo barroco que se
tornou possível tanto ao regime estadonovista quanto aos intelectuais do SPHAN a adoção do
discurso em defesa do novo. Para o regime, o “novo” se daria através da implantação de
novas relações políticas e econômicas asseguradas através de um Estado forte e centralizador.
Para o SPHAN e seus colaboradores, o novo se afirmava através da arquitetura modernista,
com suas técnicas de construções simples, funcionais e racionais. Nesse sentido, a escolha do
barroco simbolizou tanto o nascimento da nação quanto a possibilidade de um salto em
relação ao novo.
A própria importação da arte barroca pelos colonizadores, como veremos a seguir,
tinha como objetivo a exploração de seu apelo visual, inicialmente utilizada na Europa do
século XVII e, a partir da expansão europeia, retomada nas colônias, como é o caso do Brasil,
por exemplo.
A arte barroca nasceu na Itália no século XVII com a intenção de proteger e propagar
a fé contra o protestantismo. Foi uma espécie de reação a Reforma de Martinho Lutero e nesse
momento a igreja passou a ser o núcleo da organização da vida citadina, prevalecendo no
traçado urbano. Utilizava a imagem como forme de persuasão dos fiéis, pois ela tornava
possível a comunicação a um número elevado de pessoas, independentemente de seus status
ou nível cultural. A imagem, a partir do século XVII, tornara-se assim um processo produtor
90
de valor e nesse sentido também a arquitetura passou a ser considerada como uma alegoria
bastante explorada pelo movimento barroco.
Giulio Carlo Argan, em seu livro de ensaios sobre o barroco, o descreve como o
responsável pela invenção da modernidade “como atributo primeiro e essencial de qualquer
produto de cultura”
191
. Assim, a partir do século XVII a modernidade passou a ser vista como
qualidade fundamental da produção cultural. Mas o autor coloca ainda uma questão
importante em relação ao nascimento do barroco, que é a associação da arte barroca com o
poder do Estado. “A arte e literatura do século XVII não eram poesia, mas artifício e
calculada retórica, tinham um fim prático político e religioso — ou melhor, como a religião
desaguava na política, o fim era simplesmente político”
192
. Assim, como o conflito religioso
permeava a vida política e o poder necessitava de consenso, acabava por recorrer à persuasão
e à propaganda. E a arte do século XVII “era animada por um espírito de propaganda [...]”
193
.
Impregnada pelo espírito de propaganda e persuasão também foi a arquitetura, e a
partir dela a ideia de monumento. Segundo Argan, “A idéia de monumento como unidade
plástica e arquitetônica representativa de valores ou da autoridade —, está associada à ideia da
cidade-capital, assim como esta se articula à idéia do Estado absoluto”
194
. E a partir desse
conceito se erigiam não só os prédios monumentais da arquitetura barroca, mas o próprio
traçado urbano, que também era influenciada pelo que Argan denomina de “politicidade” da
arte barroca, onde o espaço das festas, cerimônias e espetáculos é pensado, e onde as avenidas
são abertas para dar perspectiva aos monumentos, determinando o controle sobre os usos do
espaço público. A cidade tornava-se também um meio de persuasão e controle que induzia a
população “a viver segundo a ordem do ambiente, isto é, segundo os valores ideológicos dos
quais a cidade quer ser a expressão visível e ‘monumental’”
195
.
É interessante observarmos que ao se utilizar da imagem como meio de persuasão e
devoção que remetia a salvação, a igreja se aproximava do discurso político do Estado, que
era então percebido como um meio de salvação através da regulação do comportamento
coletivo. Estado e igreja se utilizavam de algumas técnicas semelhantes para a persuasão
política na medida em que ambos se dirigiam às massas e necessitavam persuadi-las para a
realização de seus projetos políticos e religiosos.
191
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco, p.5.
192
Idem, p.7.
193
Ibidem, p.60.
194
Ibidem, p.78.
195
Ibidem, p.44
91
E foi com essa intenção que a arte barroca foi trazida para o Brasil pelos jesuítas, pois
na arquitetura colonial o monumento barroco é uma forma de autoridade e de persuasão. Em
um país ainda pagão era necessário explicar a doutrina e a moral católica e, nesse sentido,
tanto a propaganda quanto a persuasão são instrumentos eficazes para a conversão à nova
religião. E a partir da aceitação da nova doutrina religiosa, impôs-se um modelo político e
econômico que regulava a vida em sociedade. O barroco não representava um estilo
arquitetônico ou artístico, e sim um estilo de vida em que a comunicação era utilizada para
persuadir, organizar e controlar a vida em sociedade.
Esse processo que se deu no momento do nascimento do barroco na Europa foi
reproduzido no Brasil quando os colonizadores trouxeram esta cultura para a colônia. E, mais
uma vez, quando o barroco mineiro foi redescoberto pelos modernistas nos anos trinta, o
Estado se apropriou das técnicas de persuasão que a imagem deste estilo suscitava para o
convencimento da população em relação às nossas origens, e para a construção da identidade
nacional. Assim, a arquitetura e a arte barrocas do período colonial, principalmente de Ouro
Preto, permitiram dar materialidade a nação e fundamentar a identidade nacional. E a cidade
de Ouro Preto passou a representar o nosso passado, a partir do qual modernistas e governo
encontravam-se aptos a construir um futuro, novo e moderno, o qual também se materializaria
a partir da arquitetura, nesse caso a arquitetura modernista.
Nesse sentido, os arquitetos modernistas que atuaram no SPHAN foram construtores
tanto do passado quanto do futuro da nação, utilizando-se de um discurso que consolidou dois
estilos arquitetônicos que forneceram ao regime estadonovista tanto a base teórica quanto a
materialidade necessárias para afirmação de seu discurso nacionalista e modernizador. A
arquitetura permitiu, a partir de então, a materialização do passado construído como ideal de
nossa nacionalidade, e do futuro que representaria a nação como moderna, industrial e
civilizada.
Em relação ao barroco trazido da Europa, embora Argan considere em seus ensaios
que tanto a arquitetura quanto a decoração do barroco latino-americano são o oposto do
“monumento” pela mistura que ocorreu entre a iconografia sacra e as imagens pagãs, o autor
ressalta que esse contato entre as diferentes culturas fez nascer “uma arte popular autêntica,
um folclore multiforme e colorido
196
. Tais características são também percebidas pelos
modernistas nos anos trinta, e referenciadas como exemplos de nossa brasilidade. O próprio
Argan destacou, em relação ao Brasil, que o país acabou por adquirir um estilo barroco
196
Ibidem, p.83.
92
próprio, ressaltando tanto a riqueza de Ouro Preto quanto a importância de seu mestre,
Aleijadinho, tratado em seus textos como o maior escultor sul-americano daquele período.
Desse modo, percebido como gênio da arte barroca, Aleijadinho foi reconhecido por
seu trabalho, tanto nacional como internacionalmente, o que permitiu à cidade de Ouro Preto
e ao barroco mineiro manterem o discurso dos anos trinta sempre atualizado em relação a
nossa ancestralidade. E embora hoje reivindiquemos a diversidade cultural como marca
essencial da cultura brasileira, o que nos permite uma comparação com a cultura dos países
desenvolvidos, é sempre nossa origem barroca, colonial e mineira, construída pelos
modernistas que atuavam no SPHAN durante o regime estadonovista, que permitiu nossa
inclusão na arte e na cultura internacionais. É a partir dessa origem, barroca e tradicional,
construída a partir de um passado colonial, em que a arquitetura e a arte foram os suportes
para a materialização da identidade nacional, que foi possível projetar o novo.
Segundo Márcia Chuva, “Foi com base numa concepção de origem que contém a idéia
de salto em direção ao novo, como algo que se liberta e rompe com a continuidade num
processo de renovação, que os intelectuais do SPHAN fundaram as origens de uma produção
artística autenticamente brasileira”
197
. A autora acrescenta ainda que “A noção de patrimônio
histórico e artístico nacional, constituída nos anos 30 e 40, consagrou-se, [...], vinculando o
Brasil à civilização: nem exclusivamente o barroco, nem somente a arquitetura moderna, mas
ambos enlaçados — trama e urdidura — constituíram o tecido ‘autenticamente nacional’”
198
.
3.2. BARROCO MINEIRO X MODERNISMO
A originalidade do barroco mineiro, que Lourival Gomes Machado caracteriza como
“independência em relação ao modelo europeu”
199
, foi um dos aspectos sempre realçado
pelos intelectuais que redescobriram a arte e arquitetura coloniais como referências
importantes para a inclusão do Brasil entre os países desenvolvidos e modernos do ocidente,
ao mesmo tempo em que essa originalidade demonstrava o caráter peculiar de nossa cultura.
Minas Gerais, distante do litoral, apresentava soluções para realização da arquitetura e
escultura que demonstravam a criatividade dos artistas locais.
197
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi,
v.4, n.7, jul-dez. 2003.
198
Idem.
199
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco mineiro, p. 123.
93
Justamente pela dificuldade geográfica de acesso aos materiais, que no litoral eram
recebidos do exterior, os artistas mineiros passaram a se utilizar de pedra sabão e de madeiras
nobres nacionais a que tinham acesso, para a realização de esculturas e da ornamentação dos
interiores das igrejas. O material local permitiu maior plasticidade à forma das esculturas e às
fachadas das igrejas, produzindo o que passou a ser considerado, nos anos trinta pelos
modernistas, como obras de arte genuinamente brasileiras. Aliado a isso, Minas Gerais
contava com um dos maiores escultores do período, o Aleijadinho, que imprimiu em suas
obras um caráter particular que se diferenciou desse modo da escultura e arquitetura litorânea,
ainda fortemente marcada pelo modelo europeu.
O processo de legitimação do barroco mineiro se dava a partir da comparação com o
barroco da região litorânea para afirmar ainda mais sua identificação com o nacionalismo,
pois a arquitetura do litoral era vista como imitação da arquitetura europeia. Essa relação de
oposição entre o litoral e o interior já era percebida na obra dos ideólogos do regime, que
consideravam, como exemplificado no livro O idealismo da constituição, de Oliveira Vianna,
os moradores do interior do país mais autênticos, por não sofrerem as influências que o litoral
vivenciava através das novidades que chegavam do exterior. Em contrapartida, o barroco
mineiro, por sua simplicidade e capacidade de expressão simbólica, representava uma
sociabilidade nacional.
Desse modo, o barroco mineiro foi apresentado como mais original e mais brasileiro
pela equipe do SPHAN, e tornou-se objeto de estudos passando a representar a tradição
brasileira. A ideia de nação era construída a partir do conceito de testemunho, e estava
atrelada ao conceito de patrimônio. Com isso, eram referendados não somente os traços
arquitetônicos ou artísticos e históricos, mas também a moral mineira e sua forma de fazer
política, bem representada nas ações do ministro Capanema, que conseguiu reunir em torno de
si um grupo que era alvo de oposição dentro do próprio governo — os modernistas — sem se
afastar da ala mais conservadora do governo. Segundo Lúcia Lippi Oliveira, “[...] isso
confirmaria a importância de Minas na formação histórica e cultural brasileira. E o passado
mineiro — barroco e católico — seria exemplar”
200
.
Por esses motivos a cidade de Ouro Preto, sede do maior conjunto arquitetônico de
arte e arquitetura colonial entre as cidades mineiras do período, passou a ser percebida como
símbolo do nascimento da nação brasileira moderna e civilizada, portadora de referências da
arte e da cultura universais, mantendo traços distintos que demonstravam a existência da
200
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Memórias do Rio de Janeiro. In: Cidade: histórias e desafios, p.167.
94
cultura local de alto valor artístico. E as características do barroco produzido na cidade são
apontadas por Lourival Gomes Machado
201
como superiores àquelas encontradas no barroco
europeu.
Segundo sua narrativa, através da adaptação dos materiais e da ação criativa de
Aleijadinho, que dominava as técnicas artísticas com maestria, “[...] a arte da zona do ouro
apega-se ao elemento mais evidente, de caráter formal mais marcado e, também, menos
regrado: o movimento sem fim, a agitação das formas”
202
. O que foi apontado como clara
evolução do barroco mineiro é a qualidade atingida através do “ordenamento racional, e o
aproveitamento de materiais seguindo sua natureza, e das técnicas segundo sua índole
específica”.
203
O que, segundo Lourival Gomes Machado, resultava, ao mesmo tempo, na
“exatidão técnica” em relação à construção, no uso das cores e na plasticidade, e “na
reintegração do decorativo na sua função específica”
204
em busca de organização e ordem
próprias. Algumas dessas qualidades eram apontadas também pelos modernistas em relação à
arquitetura moderna, como veremos a seguir.
Um aspecto constantemente apresentado como distinção da arquitetura e da decoração
do interior das igrejas de Ouro Preto está relacionado ao fato do barroco mineiro expressar
movimento e agitação das formas, efeitos que são conseguidos através da busca da sugestão
ótica. O objetivo é “suscitar, a partir do absoluto enlevo dos olhos o embevecimento
arrebatador e total dos sentidos”
205
. Como já vimos, esse era um dos elementos importantes
para a propaganda da nova religião e para persuasão da comunidade pagã. E coincidentemente
esse é um dos princípios atuais da propaganda, que se utiliza da exploração dos sentidos para
persuadir. Segundo Affonso Ávila, no uso “natural e ordenador da visão [...] o sentido da
vista passou a prevalecer como fator fundamental a ser explorado no processo de expansão e
comunicação não só das formas criativas da arte, como igualmente de idéias ou
mensagens”
206
.
Nesse sentido, a arte e a arquitetura barrocas revolucionaram a forma de comunicação
com as massas e permitiram, tanto ao Estado como a igreja, atingirem de maneira uniforme a
um grupo nem sempre homogêneo. Esse processo foi retomado pelo SPHAN quando elegeu o
barroco mineiro como metáfora da nação, pois foram transferidas para a arte e a arquitetura
201
Idem, p.138.
202
Ibidem, p.145.
203
Ibidem.
204
Ibidem.
205
ÁVILLA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco, p. 197.
206
Idem, p.198.
95
barrocas as mensagens e representações que o Estado desejava consolidar naquele momento.
O que o Estado Novo desejava construir era uma imagem da nação homogênea, sem
contradições, imagem essa de fácil compreensão e leitura, independente da classe social a que
pertencesse o receptor da mensagem. O barroco mineiro permitiu essa comunicação, pois se
tratava de uma arte monumental e exuberante em seus ornamentos e passou a simbolizar
nossa entrada no mundo moderno e civilizado garantindo o sentimento de pertencimento à
nação homogênea e genuinamente brasileira.
A necessidade de representação da nação brasileira e da afirmação da identidade
nacional baseada nos princípios que norteavam o novo regime dos anos trinta —
autoritarismo, nacionalismo e centralismo — contava com o apoio dos intelectuais
modernistas mineiros e com o suporte necessário fornecidos pela história, arquitetura e arte
das cidades mineiras, em especial a cidade de Ouro Preto, eleita semióforo da nação. O
Estado Novo desejava romper com as idéias construídas sobre o Brasil até aquele momento,
anos trinta, e apresentar o país como uma nação moderna e industrializada, ao mesmo tempo
em que portadora de referências culturais que a equiparavam aos países desenvolvidos. Usou
como suporte para essa construção principalmente a arte e a arquitetura coloniais e valeu-se
da participação dos intelectuais que forneceram a base teórica desse processo, pois
necessitava de seus conhecimentos para viabilizar a construção de um discurso que inventasse
a nação, a partir de então barroca e moderna.
Para que tal projeto lograsse sucesso foi fundamental a atuação do órgão burocrático
— SPHAN — criado em 1937, no início do Estado Novo, para inventariar, tombar e preservar
o que seria considerado, a partir de critérios determinados por seus técnicos, como o
patrimônio histórico e artístico da nação, e que daria autenticidade à existência da nação.
Exercendo cargos técnicos no SPHAN, onde atuaram desde sua criação, esses intelectuais
modernistas contribuíram para a construção da identidade nacional e para a escolha dos
símbolos arquitetônicos que passaram a representá-la. Segundo Lia Motta “Os modernistas
criticavam o Brasil ‘europeizado’ do século XIX e valorizavam os traços primitivos da cultura
brasileira do século XVIII, [...]. Esse ‘abrasileiramento’, no que se refere às cidades, era
encontrado nos centros históricos de Minas Gerais”
207
.
Entre os intelectuais que se debruçaram sobre a construção da nação moderna, o
arquiteto Lúcio Costa, que atuou na coordenação do setor de tombamentos do SPHAN, teve
207
MOTTA, Lia. Cidades mineiras e o IPHAN. In: Cidade: história e desafios (org.) OLIVEIRA, Lúcia Lippi, p,
125.
96
papel de destaque. Lúcio Costa era profundo conhecedor da arquitetura colonial e soube
utilizar seus conhecimentos para torná-la referência de nossa nacionalidade, assim como,
remetendo às suas qualidades, construir a partir dela uma ponte para a nova arquitetura
modernista que o grupo de arquitetos defendia e era o precursor no país. O barroco mineiro
era considerado pelos técnicos do SPHAN, e particularmente pelo arquiteto Lúcio Costa,
como portador de características que permitiam a refundação da nação a partir dos paradigmas
da modernidade.
Constantemente descrito por Lúcio Costa como representativo de nosso espírito de
invenção, ou como seiva criadora, espontaneidade e sentido plástico, o barroco “passou a ser
visto como um movimento artístico considerado profundamente renovador, que desde a
‘pureza’ e a ‘verdade’ das construções gregas jamais havia se repetido, e que, a partir do
barroco, só teve novo momento renovador com a arquitetura moderna”
208
. Assim, ao mesmo
tempo em que o barroco era alçado a símbolo do nascimento da nação remetia também a
originalidade e a liberdade da arquitetura contemporânea dos anos trinta — a arquitetura
modernista.
Lúcio Costa reiterou, através de seus artigos, que a arquitetura modernista era uma
evolução da arquitetura colonial, à qual se ligava através da utilização dos mesmos princípios
— a pureza das formas, o lirismo e o equilíbrio. A partir desta defesa ele descreveu as
similaridades que a arquitetura colonial possuía com a arquitetura modernista, sendo que a
arquitetura modernista seria o último estágio da evolução das formas e dos métodos de
construção que tiveram início com a chegada dos portugueses no Brasil. Ambas eram
consideradas por Lúcio Costa como “boa arquitetura” e passaram a ser reverenciadas e
legitimadas como tal.
Esse discurso, construído em um momento em que a arquitetura modernista tentava
se afirmar e sofria diversas críticas, principalmente relacionadas à sua estética, como foi o
caso da construção do prédio do Ministério da Educação e Saúde — MES, que chegou a ser
chamado pelos oposicionistas de “Sinfonia inacabada”, buscava a positividade já consolidada
da arquitetura colonial das cidades mineiras como referência histórica para a modernista. Ao
mesmo tempo, fornecia dois argumentos caros ao regime estadonovista: a arquitetura colonial
barroca como símbolo de nossa identidade nacional e da materialidade da nação e a
modernista como uma alegoria do novo projeto de nação que era apresentado pelo Estado
Novo.
208
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado.
97
Em seus três artigos — em 1937 publicou Documentação Necessária, em 1939
Notas Sobre a Evolução do Mobiliário Luso-brasileiro e em 1941 A Arquitetura dos Jesuítas
no Brasil — publicados na Revista do Patrimônio durante os anos do Estado Novo, Lúcio
Costa defendia as qualidades da arquitetura colonial e a partir dessa defesa argumentava que a
arte e as técnicas de construção portuguesas tornaram-se genuinamente nacionais a partir de
um processo de amolecimento e abrasileiramento que as legitimava enquanto produtos
nacionais.
Mas é em seu primeiro artigo, Documentação Necessária, de 1937, que o discurso
com base na defesa da arquitetura colonial e sua estreita relação com a arquitetura modernista
é apresentado pela primeira vez na Revista do Patrimônio. Nesse artigo Lúcio Costa fez um
levantamento detalhado dos métodos utilizados nas construções do período colonial, em
especial as casas populares, as quais considerava portadoras de técnicas construtivas
“despretensiosas e puras”, capazes de solucionar problemas relativos à climatização do
ambiente e à proteção das intempéries do clima tropical. Desse modo traçou um paralelo entre
essas técnicas, que descreve como “boa arquitetura”, e a arquitetura moderna, como veremos
a seguir. Chegou a dizer que, “Aliás, o engenhoso processo de que são feitas — barro armado
com madeira — tem qualquer coisa de nosso concreto armado [...]”
209
.
Lúcio Costa salientava ainda que o mesmo método de construção deveria ser
utilizado nas construções populares ou de veraneio, “[...] com as devidas cautelas, afastando-
se o piso do terreno e caiando-se convenientemente as paredes, para evitar-se a umidade e o
‘barbeiro’[...]”
210
. Segundo ele, no projeto apresentado para a vila operária de Monlevade, da
Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, os arquitetos modernistas já haviam procurado
utilizar essas técnicas de estilo português, mas o projeto não fora levado a sério, embora Lúcio
Costa não deixe claro o motivo dessa reação.
Chegando com sua análise ao ano de 1910, Lúcio Costa identificou, nas construções
desse ano, o uso das “novas possibilidades da técnica moderna” através do uso das colunas de
ferro, das fachadas quase completamente abertas e dos pisos de varanda armados. Em duas
das imagens que acompanham o artigo, o arquiteto ressalta o equilíbrio plástico diferente e
chega, em uma delas, a comparar a liberdade de tratamento dada ao jardim como “puro Le
Corbusier”
211
.
209
COSTA, Lúcio. Documentação necessária. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 01,
1939, p.31-39.
210
Idem.
211
Ibidem.
98
O que se percebe é que Lúcio Costa, através desse artigo, tentou ligar a arquitetura
colonial — principalmente o barroco mineiro — com a arquitetura que o grupo de intelectuais
modernistas defendia, demonstrando que esta era uma evolução do estilo trazido de Portugal.
Segundo o arquiteto, “Resultariam, de um exame assim menos apressado, observações
curiosas, por isto que em desacordo com certos preceitos correntes e em apoio das
experiências da moderna arquitetura, mostrando, mesmo, como ela também se enquadra
dentro da evolução que se estava normalmente processando”
212
.
Ao mesmo tempo em que alçava a arquitetura colonial a um lugar de destaque
construía um discurso que fornecia à modernista um passado nacional, uma história que a
legitimava e que a situava como o resultado da evolução da “boa arquitetura”. Esse passado,
que passaria a legitimar a arquitetura modernista, localizava-se na cidade de Ouro Preto,
representada através de sua arte e arquitetura barrocas. E essa relação era necessária para dar
um caráter nacional à arquitetura modernista brasileira que era percebida como desprovida de
identidade e vinculada a parâmetros internacionais de construção.
Lúcio Costa estava autorizado a essa fala por ser um dos maiores especialistas em
arquitetura colonial, e pela credibilidade que lhe era conferida por seu trabalho junto ao
SPHAN, além do fato de ser um dos principais arquitetos modernistas do período e principal
colaborador na Revista do Patrimônio Segundo o historiador Abílio Guerra, “O discurso de
Costa era mais culturalista do que arquitetônico", [...]. O que ele fez, de maneira inteligente,
foi dar um caráter nacional a nossa arquitetura moderna, que nada mais era do que uma
arquitetura internacionalizante [...]"
213
. E seus dois artigos subsequentes só fizeram reforçar
essa idéia da arquitetura colonial como precursora da contemporânea dos anos trinta.
Em Notas Sobre a Evolução do Mobiliário Luso-brasileiro, de 1941, Lúcio Costa
demonstrou, através de uma análise que vinculou a evolução do mobiliário à própria evolução
econômica do país e ao aprimoramento das técnicas de produção, a relação entre as peças
modernas e aquelas produzidas no período setecentista. Afirmou que as peças “concebidas
com espírito verdadeiramente moderno” se distinguem “[...] pela leveza, de aspecto e de peso;
as armações, sejam elas de madeira, junco ou metálicas [...], reduzem-se estritamente ao
necessário, procurando assegurar, como o mobiliário setecentista, uma estabilidade perfeita e
212
Ibidem.
213
GUERRA, Abílio. Lúcio Costa, Modernidade e tradição – Montagem discursiva da arquitetura moderna
brasileira, Tese de doutorado. IFCH-Unicamp, fevereiro 2002, 286 p. Disponível em: <
http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000237827
> Acesso em: 10 fev.2010.
99
proporções ajustadas ao corpo”
214
. Mais uma vez o arquiteto relacionava a modernidade e
suas técnicas de construção com aquelas do período colonial, realçando a pureza das formas e
o domínio dos materiais encontrados nos dois períodos, dois argumentos essenciais e
fartamente utilizados na defesa da arquitetura modernista.
E, finalmente, em seu terceiro artigo, A Arquitetura dos Jesuítas no Brasil, de 1941,
Lúcio Costa fornece os argumentos para legitimação do barroco, apresentando os
monumentos barrocos como “autênticas obras de arte, que não resultaram de nenhum
processo de degenerescência, mas, pelo contrário, de um processo legítimo de renovação”
215
.
É nesse artigo que Lúcio Costa equipara a evolução da arte colonial brasileira às várias fases
da arte europeia, da idade clássica à renascença e, assim, atualiza a cultura e a arte brasileiras
com a europeia. A partir dessa relação fala de um “classicismo barroco”, de um
“romanicismo”, de um “goticismo” e de um “renascentismo barroco”, justificando o uso
dessas expressões como forma de facilitar a compreensão da evolução do barroco àqueles
menos familiarizados.
Nesses três artigos Lúcio Costa buscou legitimar a arte e arquitetura coloniais em
sua especificidade local — o barroco mineiro — fornecendo ao regime a materialidade
necessária para a construção da identidade nacional, através da escolha do barroco mineiro
como símbolo desta identidade. Ao mesmo tempo, ao equiparar a evolução do barroco à
evolução da arte europeia, conseguiu atualizar a cultura brasileira em relação à Europa
permitindo o ingresso do país entre as nações civilizadas. E essa atualização permitiu traçar
um paralelo entre as duas arquiteturas — colonial e moderna — fornecendo mais uma vez ao
regime os argumentos necessários para a defesa do modelo de governo que se estabeleceu a
partir da relação entre tradição e modernidade. A tradição — materializada na arte e
arquitetura colonial barroca — fornecia subsídios para a construção da identidade nacional,
enquanto a modernidade — materializada na arquitetura modernista — permitia avançar em
relação ao novo, ao futuro.
Desse modo, mesmo sem participar diretamente da construção ideológica do Estado
Novo, Lúcio Costa foi, sem dúvida, um dos intelectuais, que através de sua atuação no
SPHAN e de sua defesa das arquiteturas colonial e moderna, mais contribuiu para a
legitimidade do regime, fornecendo a fundamentação teórica e a materialidade de que esse
214
COSTA, Lúcio. Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional , nº 03, 1939.
215
COSTA, Lúcio. A arquitetura dos jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº
05, 1941.
100
necessitava para a consolidação de seu projeto político-ideológico. Tradição e modernidade,
assim legitimadas, conviviam harmoniosamente fazendo parte de uma mesma tecedura.
3.3. OURO PRETO: ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE
A legitimação da arquitetura colonial pelos intelectuais modernistas do SPHAN
buscou em Minas Gerais os elementos que atuariam como suporte para o discurso nacionalista
do regime. E entre as cidades mineiras Ouro Preto assumiu o lugar de representação da nação
construída pelo SPHAN e seus colaboradores, e também do próprio conceito de patrimônio
que se impôs a partir de então. O caráter considerado excepcional de suas obras de arte e da
arquitetura, referenciadas pelos arquitetos do SPHAN, foi a base da construção da identidade
nacional, a partir de suas características apresentadas como genuinamente nacionais.
Reconhecida pela uniformidade de estilo a cidade é descrita “como o mais extenso e
mais preservado conjunto urbano colonial da zona, [...]”
216
. Era o cenário mais homogêneo
em que se tornou possível encontrar tanto a arte quanto a arquitetura barrocas coloniais, o que
permitia demonstrar a nação homogênea que o Estado Novo construía através do discurso
político da unidade nacional e da homogeneidade cultural.
A uniformidade das cidades históricas de Minas Gerais possibilitava a construção de
uma imagem homogênea do país, da unidade necessária para a implantação do modelo
político e ideológico do Estado Novo. Essa uniformidade também seria atingida através dos
processos de restauração e de autorização das novas construções que foram realizadas nos
primeiros anos de atuação do SPHAN na cidade de Ouro Preto. A orientação dos técnicos do
órgão para os novos projetos arquitetônicos era a manutenção das características coloniais.
Desse modo, as diferenças tanto regionais quanto sociais eram amenizadas para a manutenção
do poder central e para a implantação de um projeto político que defendia a primazia do
coletivo sobre o individual.
Segundo Henri-Pierre Jeudy, “Certa uniformidade de pontos de vista pode vir da
restauração, a mesma que anula a ‘espessura do tempo’. O monumento modificado ao longo
de períodos sucessivos é mais do que reflexo da história da cidade, sua história se compõe de
fragmentos de relato, relativos à atualidade de sua própria crônica”
217
. Para o autor, o
216
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco mineiro, p.99.
217
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades, p.87-88.
101
problema resultante do “congelamento” de um monumento ou de uma cidade na tentava de
manter suas características originais, “[...] é produzir uma equivalência estética da cidade, de
sua história, de seus estratos orgânicos, e introduzir uma convergência de olhares na direção
de um único ponto de vista indiferenciado”
218
. Assim, a restauração restabelece a ordem a
partir dos vestígios do passado e nos fornece uma imagem da cidade estetizada, como um
produto belo e acabado.
Foi a partir da instalação do Estado Novo e da criação do seu órgão de proteção do
patrimônio que a arquitetura colonial passou a representar a ausência de conflitos e de
diversidade de estilos. Levando em conta que as cidades possuíam um número expressivo de
construções coloniais e que após a intervenção do SPHAN este estilo também predominou
durante os primeiros anos, nas novas construções realizadas e autorizadas pelo órgão,
podemos dizer que o órgão acabou por legitimar a imitação quando na verdade se propunha a
legitimar a autenticidade da arquitetura colonial. Tal postura foi responsável pela constante
busca da fisionomia colonial e resultou na retirada de qualquer vestígio do desenvolvimento
histórico, através da eliminação de outros estilos, para atingir uma imagem coesa e
hegemônica da cidade e, a partir dela, da nação, contribuindo para a falsificação do conjunto
na medida em que novas construções eram autorizadas no estilo arquitetônico colonial,
embora se tratassem de obras contemporâneas.
Por isso, o SPHAN direcionou recursos financeiros e humanos com o objetivo de
inventariar e tombar as cidades históricas de Minas Gerais elegendo “um critério para
valoração do patrimônio urbano que considera exclusivamente as características estético-
estilísticas de sua arquitetura”
219
. Isso pode ser percebido pelo fato de que Ouro Preto teve
registrado o seu tombamento no Livro do Tombo de Belas Artes, o que demonstra que antes
de qualquer referência histórica ou arquitetônica, era o reconhecimento como produto artístico
que a legitimava, autorizando seu tombamento e preservação.
Assim, ao optar pelo critério estético-estilístico como indicação para tombamento e
preservação, o órgão desconsiderou outras cidades que possuíam referências importantes para
a identidade brasileira, ou que haviam conquistado valor simbólico para as comunidades que
as habitavam. Pesaram para essa escolha das cidades mineiras a influência dos mineiros que
atuavam no MES e o interesse em transformar a cultura mineira — religiosidade e modo de
218
Idem.
219
MOTTA, Lia. Cidades mineiras e o IPHAN, In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi (org.), Cidade: história e desafios,
p.126.
102
fazer política — em uma referência a ser seguida pelo resto da nação, como um modelo para o
país atingir a modernidade.
No entanto, a opção do grupo acabou por desprezar parte importante da história da
arquitetura, por considerar que seus estilos arquitetônicos não eram puros. Segundo Lia
Motta, a delimitação dos tombamentos a partir “do ponto de vista estilístico e de
excepcionalidade reduziam a história a aspectos parciais da forma urbana, apreendida pela
experiência estética”
220
. Para a autora, a prevalência do critério estético em relação a outros
aspectos dos sítios e prédios históricos resulta em projetos que desconsideram esses espaços
como representativos de uma comunidade heterogênea e diversificada que se percebe e
reconhece como ator, através dos aspectos de sua história e identidade em relação ao local.
Mas com certeza a diversidade cultural ia de encontro ao projeto político de homogeneidade
cultural que o Estado Novo implantava no país.
Nesse sentido, José Reginaldo dos Santos caracteriza o discurso utilizado na defesa
da preservação de Ouro Preto como “narrado sob o registro da monumentalidade”, o que
resulta na definição de patrimônio cultural a partir da tradição, e segundo o autor, desloca
“[...] para segundo plano a ‘experiência’ individual e coletiva dos bens culturais. Há uma
visão homogênea da nação. A relação entre ela, como uma totalidade homogênea, e os
indivíduos se faz pela predominância da primeira”
221
.
E foi esse discurso e essa prática adotados pelo SPHAN, desconsiderando os
processos sociais e valorizando os critérios estéticos, que respondeu pela maioria dos
tombamentos realizados nos anos em que Rodrigo Melo Franco de Andrade esteve à frente da
instituição. E, serviu, ao mesmo tempo, para alçar os dois estilos arquitetônicos — colonial e
modernista — a categoria de “boa arquitetura” e a representantes de nossa brasilidade. O
resultado dessa escolha política feita pelos modernistas tinha como objetivo fornecer um
passado uniforme que pudesse ser “lido” pelos brasileiros e percebido como parte da
produção artística da nação, ao mesmo tempo em que fornecia referências históricas para a
nova arquitetura que defendiam — a arquitetura modernista. Para isso, desqualificou todo e
qualquer aspecto que pudesse interferir nessas leituras, por não preencherem os quesitos
estético-estilísticos pré-estabelecidos pelo grupo e não atenderem aos interesses do projeto
político do regime de construção da nação homogênea, projeto esse de cunho autoritário e
220
Ibidem, p.135.
221
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Monumentalidade e cotidiano: os patrimônios culturais como
gênero de discurso, in: OLIVEIRA, Lúcia Lippi org. Cidade: História e desafios, p. 119.
103
centralizador, pois permitiu que somente uma parte de nossas representações culturais fosse
eleita como genuinamente nacional.
Desse modo, acabou por neutralizar uma das principais funções referentes à
memória, que trata do conhecimento da dimensão temporal do homem e da utilização do
passado como um canal de informação sobre as mudanças e todo o processo que as envolve.
A memória, segundo a interpretação de Ulpiano Bezerra de Meneses, “[...] funciona como
instrumento biológico-cultural de identidade, conservação, desenvolvimento, que torna legível
o fluxo dos acontecimentos”
222
. A orientação dos técnicos do SPHAN privilegiava a
uniformidade que permitisse um conjunto de fácil “leitura”, e por isso desconsiderava toda e
qualquer evolução social que fosse percebida sobre as técnicas de construção. Optou assim
por eliminá-las, e com isso eliminou parte da história da evolução da cidade e a influência da
sociedade atual sobre o espaço urbano.
Mas, além do critério estético-estilístico, Ouro Preto fornecia outros atrativos para
que a escolha da cidade como símbolo nacional se concretizasse. Permitia em um mesmo
espaço conciliar história — Inconfidência Mineira — e alçar ao lugar de herói e gênio,
respectivamente, Tiradentes e Aleijadinho. Este último, contribuindo para o discurso da
brasilidade através de sua obra, reconhecida como portadora de características genuinamente
nacionais e também pelo fato de ser mestiço.
Assim, foi possível eleger a cidade de Ouro Preto como representante de nossa
inclusão na arte de caráter universal — o barroco — ao mesmo tempo em que se afirmavam
suas características genuinamente nacionais, através de sua história, seus heróis e também de
sua arte original, revestida de características locais — o barroco mineiro. A partir de então, a
cidade se tornou o modelo ideal de cidade colonial e de arte nacional a ser seguida e
referenciada por seu caráter identitário e universal, e nela se concentraram a maior parte das
ações de tombamento e restauração realizados pelo SPHAN. E, apesar de a cidade ser
tombada por seu conjunto arquitetônico, ainda houve tombamentos individuais, que chegaram
a 46
223
, entre igrejas, capelas, oratórios, passos, chafarizes, pontes e edifícios de arquitetura
civil, o que demonstra a reafirmação da cidade como símbolo da nossa nacionalidade, símbolo
esse materializado na arte e arquitetura coloniais.
222
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Identidade cultural e arqueologia. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, nº 20, 1984.
223
MENICONI, Evelyn Maria de. Monumento pra quem? A preservação do patrimônio nacional e o
ordenamento do espaço urbano em Ouro Preto (1937-1967).
104
Ouro Preto passou então a ser tratada como obra de arte acabada, a qual deveria ser
mantida intacta e congelada no tempo para permitir que nos lembrássemos de um passado
construído como ideal e homogêneo, tanto do ponto de vista arquitetônico quanto do ponto de
vista histórico. Isso ocorria porque no cenário de Ouro Preto era possível encontrar elementos
da brasilidade e do espírito patriótico que eram referências importantes a serem resgatadas
pelo governo nacionalista do Estado Novo, referências essas fundamentais para a construção
da identidade nacional, da homogeneidade cultural e da inserção do país na modernidade.
Nesse sentido, os intelectuais do SPHAN deram ao regime um dos seus mais fortes
símbolos para a ancoragem das referências identitárias, pois mais do que a arquitetura
enquanto materialidade da nação, a cidade de Ouro Preto representava um conjunto
arquitetônico harmônico, hegemônico e compreensível, assim como um cenário de
importantes fatos históricos, fornecendo um dos maiores heróis construídos pela República —
Tiradentes.
A história da cidade de Ouro Preto teve início a partir da descoberta de ouro em seus
rios no ano de 1698. No início, o que conhecemos hoje como Ouro Preto deu lugar a dois
povoados, Antônio Dias e Ouro Preto, que em 1711, formando um só povoado, foi
proclamado a Vila, recebendo o nome de Vila Rica. Com o objetivo de controlar a retirada de
ouro da região a Coroa, proibiu a atuação do clero regular formado por frades e monges,
conventos e mosteiros. Somente as Ordens Terceiras, formadas por leigos, e o clero secular,
formado de padres e bispos, tinham o direito de atuar na região de mineração.
Em geral essas Ordens se organizavam a partir de critérios raciais e de riqueza. Por
isso, elas acabaram por construir um elevado número de igrejas destinadas aos diferentes
grupos — pretos, brancos, ricos e pobres. Como havia grande concorrência entre elas o
resultado foi uma espécie de competição em que cada uma queria erguer a igreja mais rica e
bonita. Essa situação é possivelmente a responsável pela riqueza de detalhes e de igrejas
construídas em um mesmo período da história da cidade, riqueza essa advinda da exploração
de ouro facilmente encontrado na região
224
.
Portadora de um rico conjunto arquitetônico e artístico, a cidade de Ouro Preto
recebeu o título de patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO, em 1980. Este
reconhecimento colocou a cidade mineira no mesmo patamar de algumas cidades europeias,
como Veneza, por exemplo, trazendo consigo algumas questões relevantes para seu
224
FIGUEIRA, Divalte Garcia. Cidades históricas e o barroco mineiro: um roteiro de visitas, p.42.
105
desenvolvimento e para a relação do patrimônio com os moradores do local preservado. E a
principal discussão que envolve Ouro Preto hoje é até que ponto ela se tornou um espaço
museificado em que não mais nos reconhecemos, perdendo sua principal função enquanto
marco identitário. Ou mesmo, qual é o limite em que a cidade deve ser “congelada” dando
prioridade à preservação do patrimônio em detrimento da modernização urbana e do
atendimento às necessidades de conforto de seus habitantes.
Essa é uma discussão que envolve todas as cidades ocidentais com alto potencial
turístico, a partir do seu patrimônio histórico e do conceito de antigo. Nesse sentido,
Françoise Choay analisa o papel histórico das cidades antigas e afirma que “A cidade antiga,
como figura museal, ameaçada de desaparecimento, é concebida como um objeto raro, frágil,
precioso para a arte e para a história e que, como as obras conservadas nos museus, deve ser
colocada fora do circuito da vida. Tornando-se histórica ela perde a sua historicidade”
225
.
E ainda outra questão relevante é para quem a cidade está direcionada hoje, tendo
em vista que se tornou um centro turístico e acabou por ignorar algumas necessidades dos
habitantes locais que foram preteridos em relação aos turistas e à manutenção de um cenário.
E isso talvez ocorra pela forma com que hoje a indústria cultural lida com as questões
relativas ao patrimônio histórico e artístico nacional. Segundo Françoise Choay “[...] os
monumentos e o patrimônio históricos adquirem dupla função — obras que propiciam saber e
prazer, postas à disposição de todos, mas também produtos culturais, fabricados, empacotados
e distribuídos para serem consumidos”
226
. Para a autora, a “engenharia cultural” seria a
responsável pela transformação do valor de uso do patrimônio em valor econômico, o que por
vezes acarretaria a perda justamente do sentimento de pertencimento e identidade evocados
no ato de sua preservação. E ainda podemos questionar até onde a museificação do espaço
urbano não age justamente destruindo o seu objeto de preservação, tornando esses espaços
apenas lugares em que se percebe a materialidade do passado, mas destroem as práticas
sociais que haviam evoluído e por isso mesmo eram tradições vivas de um tempo que não é
mais possível reconstruir.
Devemos levar em conta que a legislação sobre o patrimônio prevê que o bem
tombado deve manter suas características originais cabendo ao Estado a tutela dos valores
culturais que o imóvel representa. No entanto, os valores culturais são sempre os de um grupo
social, e é nesse aspecto que se expõem as fragilidades da relação dos moradores locais e
225
CHOAY, Françoise, A alegoria do patrimônio, p.37.
226
Idem, p.211.
106
portadores dos valores culturais, com os monumentos tombados pelo governo. Até porque em
grande parte dos centros históricos e cidades preservadas percebe-se um processo de
gentrificação
227
resultante da valorização do espaço restaurado, o que acaba por afastar o
morador original que dava vida a cidade e legitimava as práticas sociais fornecendo a sua
identidade cultural, social e política.
Eleita Cidade Monumento Nacional em 1933, por seu valor arquitetônico, artístico e
cultural, Ouro Preto foi uma das metáforas de nossa nacionalidade no período do Estado
Novo. Naquele momento se fazia necessário eleger um “local de memória” que legitimasse
nossa cultura e demonstrasse o quanto éramos portadores, ao mesmo tempo, de uma cultura
particular e universal, o que foi conquistado através do barroco mineiro, considerado
expressão nacional de uma arte universal. Através da genialidade de um artista local
atingíamos a linguagem universal da arte e passávamos a fazer parte de um mundo moderno e
civilizado. Nesse sentido, o barroco mineiro serviu para atualizar a relação temporal entre o
Brasil e as nações desenvolvidas, permitindo superar o atraso que antes percebíamos quando
da comparação com a Europa civilizada.
Segundo Márcia Chuva, dentre as concepções que legitimaram o barroco “[...] a
questão do pertencimento à civilização ocidental foi talvez a mais significativa na
configuração que tornou o processo de invenção de ‘um patrimônio nacional’ no Brasil”
228
.
Esse discurso dos intelectuais do SPHAN, que acabou por valorizar o barroco mineiro e torná-
lo referência como uma arte genuinamente nacional, foi construído e respaldado através de
artigos publicados pela Revista do Patrimônio. Nesses artigos, Minas Gerais, Ouro Preto e o
barroco foram citados e analisados com frequência, como representativos de um passado
glorioso e da genialidade de nossos artistas. Durante o período do Estado Novo, entre 1937 e
1945, foram publicados nove números da Revista do Patrimônio, onde aparece 262 vezes o
estado de Minas Gerais, 116 vezes a cidade de Ouro Preto e 75 vezes o barroco.
Só no primeiro número da revista, dos dezessete artigos publicados, três deles citam
ou tratam diretamente de Ouro Preto ou do Aleijadinho. É o caso do artigo de Raimundo
Lopes, A natureza e os monumentos culturais, em que o autor, ao tratar da proteção da
natureza como um benefício cultural, cita a cidade de Ouro Preto não só por seus
monumentos coloniais, mas também por sua geografia e natureza. Na primeira parte do artigo
227
Refere-se ao processo de saída dos moradores locais em virtude das melhorias que ocorrem no espaço urbano
por eles ocupado. Em conseqüência, esse espaço passa a ser ocupado por classes sociais com maior poder
aquisitivo.
228
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado.
107
intitulada “Caracteres antropogeográficos das cidades históricas e dos fortes coloniais” o autor
inicia relatando a sua impressão sobre a cidade de Ouro Preto: “Visitando Ouro Preto, a antiga
‘Vila Rica’, o que mais feriu a minha atenção foi o íntimo acordo entre as características
artísticas e tradicionais da cidade e o seu ambiente”
229
. E em seguida fala dos materiais
utilizados tanto para as construções populares como para as esculturas, remetendo ao
Aleijadinho: “A própria escultura do Aleijadinho emprega a pedra-sabão, material tirado
dessa série geolítica, a que a velha capital deveu a sua grandeza”
230
.
E ainda, o artigo de Lúcio Costa, Documentação necessária, em que o arquiteto cita
o Aleijadinho para demonstrar que a maioria dos estudos se situa em torno de sua obra, e que
ainda não havia sido realizado um estudo conveniente da “antiga arquitetura”, embora o tema
abordado no artigo fossem as construções populares da arquitetura portuguesa. Lúcio Costa
inicia o artigo dizendo que “A nossa antiga arquitetura ainda não foi convenientemente
estudada. Se já existe alguma coisa sobre as principais igrejas e conventos — [...], e girando o
mais das vezes em torno da obra de Antônio Francisco Lisboa, cuja personalidade tem
atraído, a justo título, as primeiras atenções —, com relação à arquitetura civil [...] quase nada
se faz”
231
.
Do mesmo modo, em todos os artigos sobre a necessidade de preservação do
patrimônio histórico e artístico nacional, publicados entre 1937 e 1945, seja da arquitetura
colonial, do barroco, dos móveis tradicionais ou dos artistas envolvidos na execução das
talhas e pinturas das igrejas barrocas, Ouro Preto era, quase sempre, a referência em relação à
qual se situavam todas as outras cidades históricas. E, nesse sentido, as pesquisas e
levantamentos se concentraram na cidade, fornecendo riqueza de detalhes sobre a arte
religiosa — pintura, talhas, douramento — construções, esculturas, móveis e artistas
relacionados àquele que era considerado o mais importante sítio histórico do país e que
representava o nascimento da nação brasileira.
E ainda nas últimas três edições publicados pelo regime estadonovista, entre 1943 e
1945, é possível encontrar referências sobre Minas Gerais e Ouro Preto, mesmo que esse não
seja o tema central dos artigos. Esses artigos seguem a mesma linha dos anteriores em relação
à cultura, à arte e ao modo de vida mineiros, sempre realçando as qualidades estéticas ou o
229
LOPES, Raimundo. A natureza e os monumentos culturais. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, nº 01, 1937.
230
Idem.
231
COSTA, Lúcio. Documentação necessária. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 01,
1937.
108
caráter mineiro. Assim, em 1943, com a publicação de Móveis antigos de Minas, J. W.
Rodrigues retoma o tema das cidades coloniais mineiras atribuindo a presença dos móveis
antigos na região ao fato “[...] dos usos e a tradição da família continuarem a ser conservados
e transmitidos, com apego de pai a filho”
232
. E a partir dessa colocação passa a elogiar o
caráter mineiro como o responsável pela existência e conservação do móvel antigo. Segundo
o autor, “São estas provavelmente as causas do caráter tradicionalista do povo mineiro, do seu
aspecto social peculiar e a razão da existência e conservação em seu território de outra
insuspeitada riqueza: o móvel antigo”
233
.
Em 1944, Hannah Levy, em seu artigo Modelos europeus na pintura colonial, citou
Minas Gerais e Ouro Preto como referências importantes, através de uma análise da pintura de
Manuel da Costa Ataíde na igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Preto, considerada
obra-prima do Aleijadinho. Nesse artigo, Ataíde é apresentado como “um dos maiores
representantes da arte colonial mineira”
234
e os seis painéis da capela-mor da igreja de São
Francisco de Assis, por ele pintados, são analisados favorecendo a construção de um discurso
que apresenta o pintor como um artista de alto valor.
E, finalmente, em 1945, no artigo A casa de moradia no Brasil antigo, J. Wasth
Rodrigues também se refere a Minas e suas cidades coloniais, entre elas Ouro Preto, como
exemplos da “boa arquitetura”. Embora faça referência às residências da Bahia e Pernambuco,
é nas obras de Ouro Preto que são realçadas a ousadia e a originalidade. O autor salienta que,
“A esta altura devemos lembrar mais uma vez a ‘Casa dos Contos’, construída em 1787, é
única pela ousadia e originalidade, a qual fugia ao padrão geral, [...]”
235
. E segue na mesma
linha de argumentação a respeito das construções não residenciais de Ouro Preto, “[...] ocorre-
nos fazer especial menção da antiga Câmara e Cadeia de Ouro Preto, [...], hoje Museu da
Inconfidência, pela sua concepção arquitetônica elevada, e pelos pormenores raros, como a
platibanda de balaústres. Lembra esse edifício, ao primeiro exame, o Capitólio de Roma”
236
.
232
RODRIGUES, J. W. Móveis antigos de Minas, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 07,
1943.
233
Idem.
234
LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do Patrimônio nº 07, 1943.
234
RODRIGUES, J. Wasth. A casa de moradia no Brasil antigo. Revista do Patrimônio, nº 09, 1945.
235
Idem.
236
MACIEL, Felipe Esteves Lima. Impressões do “Barroco”: A Revista do IPHAN (1937-1978). Anais das
Jornadas de 2007. Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ.
236
Idem.
236
Ibidem.
236
Ibidem.
109
Isso demonstra que, mesmo já consolidada como símbolo da nação, a cidade de
Ouro Preto concentrou a maior parte das pesquisas dos técnicos e colaboradores da Revista do
Patrimônio, representando a unidade cultural pretendida pelo regime, que, enquanto símbolo
da nacionalidade, acabou por ultrapassar o próprio regime. Nesse sentido, o esforço do
SPHAN em legitimar o barroco mineiro como símbolo de nossa identidade acabou por
fornecer ao regime estadonovista a legitimidade que este necessitava para ancorar seu
discurso nacionalista.
Sem dúvida era importante para o regime estadonovista ancorar a identidade em um
sítio histórico que era consenso entre os intelectuais e os representantes do regime. Que
permitia a construção de um discurso centrado na homogeneidade, ao mesmo tempo em que
alçava o país à condição de portador de uma arte de características peculiares e universais, o
que nos possibilitava dar um salto em relação ao futuro, pois já nos atualizara em relação à
arte e à cultura dos países modernos e desenvolvidos. Nesse sentido, tanto o governo,
nacionalista e autoritário do Estado Novo, quanto o SPHAN, trabalhavam em prol dos
mesmos interesses: a construção da identidade nacional e a inclusão do Brasil na
modernidade.
Felipe Esteves Lima Maciel, em análise sobre o espaço destinado ao barroco na
Revista do Patrimônio, afirma que se observa nas páginas desta revista, que os intelectuais
tomaram a arquitetura colonial como mito de origem da nação brasileira, pois “apresentava
especificidades obtidas na adaptação ao ‘meio brasileiro’ que lhe conferiam o caráter
nacional”
237
. Além disso, os artigos da revista apresentavam o barroco como “ponto de
ligação entre o Brasil e o mundo europeu, ponto de inserção no moderno ‘Concerto das
Nações’, ligação que teve como corolário dessa especificidade o ‘barroco mineiro’ e suas
igrejas setecentistas [...]”
238
.
Mas a descoberta da cidade pelos modernistas nos anos vinte não era a primeira que
se dava com Ouro Preto. Segundo Otto Maria Carpeaux a cidade fora descoberta três vezes:
pelos bandeirantes em 1668, pelos intelectuais boêmios do Rio de Janeiro em 1893 e pelos
modernistas de São Paulo na década de vinte
239
. E esta última descoberta, a dos modernistas,
foi a que permitiu ao país, tido agora como moderno, conquistar sua consciência histórica. E
a partir de então Ouro Preto deveria representar no imaginário coletivo nacional um forte
237
Ibidem.
238
Ibidem.
239
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos
patrimônios culturais
. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p.264-275.
110
símbolo de nossa identidade; o culto à cidade foi mantido e alimentado por publicações, pela
indústria turística e, em particular, pelo estado de Minas Gerais, portador da maior parte dos
bens tombados pelo SPHAN, como já vimos anteriormente.
Por isso, é possível encontrar em publicações recentes sobre a cidade, como é o
caso, por exemplo, do livro Cidades Históricas e o Barroco Mineiro, de 1998, a mesma
glorificação em relação a Ouro Preto que havia no período em que a cidade foi alçada a
semióforo da nação. Isso demonstra que o modelo de patrimônio implantado pelo SPHAN,
baseado em critérios estéticos, ainda se mantém como referência cultural importante, tanto
para a afirmação da cultura nacional como para os futuros projetos de preservação de nosso
patrimônio histórico e artístico. Isto acaba por dificultar qualquer discussão em torno do
conceito de patrimônio e subordina tanto os inventários quanto os tombamentos a uma
hierarquia de valores em que o barroco mineiro é sempre apresentado como referência do que
seria o patrimônio ideal e de maior valor.
Além de sua monumentalidade, a cidade de Ouro Preto fornecia o que Márcia Chuva
chamou em seu artigo sobre a representação do barroco de “unidades das origens”. No Estado
Novo há um deslocamento do individual para o público e a necessidade de demonstrar a
ancestralidade comum de toda a nação. A cultura, e no caso a preservação de um passado
comum, isentos de conflitos e ambiguidades, estavam no centro do projeto governamental, e é
nesse cenário que se deu a criação do SPHAN, e que se efetivou e legitimou a necessidade de
conhecimento e preservação de nosso passado. Segundo Lúcia Lippi Oliveira. “O SPHAN
[...], como espaço da produção de um saber definiu o barroco como lugar de origem, e Minas
como lugar da civilização brasileira. [...] Se tínhamos uma civilização, ela advinha do barroco
mineiro, que passou a ser considerado expressão da totalidade da nação”
240
.
Mas a construção da identidade nacional e a afirmação de um passado comum não
deveriam cair em regionalismos, pois a unidade nacional nos anos trinta dependia da redução
das forças locais e da centralização política, econômica e cultural do governo. Nesse sentido,
Ouro Preto também permitia superar os regionalismos, pois, como já dissemos anteriormente,
era consenso entre os intelectuais, mesmo aqueles que não eram mineiros, a relevância de sua
preservação e de sua história, além do caráter universalista de sua arte e arquitetura,
fundamentos importantes para a proposta do regime nacionalista do Estado Novo.
240
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: um guia, p.123.
111
Desse modo, o consenso em relação ao valor e à importância do patrimônio artístico
e cultural de Ouro Preto, reuniu em torno da ideia de sua preservação e elevação a patrimônio
nacional um grupo de pensadores e políticos bastante heterogêneo. Envolveu tanto os
modernistas, em sua redescoberta do Brasil, quanto os conservadores que atuavam no governo
ou que representavam os interesses religiosos. É o caso, por exemplo, da defesa de Alceu
Amoroso Lima, intelectual conservador, que ao visitar a cidade, no início do século XX,
escreveu um artigo na Revista do Brasil, e apresentou Ouro Preto como uma relíquia nacional,
realçando a importância de preservar a cidade antiga, pois esta era palco da tradição do
passado, que segundo o autor, permitiria “[...] acordarem nossas almas o respeito pelas coisas
de antanho, penhor seguro de um amor positivo às coisas do presente. Para sermos
verdadeiros patriotas, [...] precisamos comover o espírito ante o especulo da tradição”
241
.
A defesa de Alceu Amoroso Lima, embora se concentrasse apenas na tradição do
passado tinha similaridades com o discurso que foi posteriormente construído pelos
intelectuais do SPHAN em relação a Ouro Preto. Era sempre a partir da perda que esse
discurso se dava, seja ela das tradições ou das relíquias arquitetônicas ou artísticas. Do mesmo
modo, Afonso Arinos e Tarsila do Amaral valorizavam as tradições coloniais mineiras que
dariam início ao processo de “redescoberta” do Brasil pelo grupo de intelectuais modernistas.
Tarsila chegou a dizer que “[...] o conjunto com a terra cheia de tradição, as pinturas das
igrejas e das moradias [...] despertaram em mim o sentimento de brasilidade”
242
.
Do mesmo modo, o Guia de Ouro Preto, escrito por Manuel Bandeira e publicado
em 1938 pelo SPHAN, sintetiza o sentimento dos intelectuais, conservadores ou modernistas,
em relação à cidade e seu papel na construção da nação. Descrevendo a cidade que não
mudara como portadora de “incomparável encanto”
243
o autor demonstra o consenso que se
deu a partir da unidade plástica e arquitetônica de Ouro Preto, que passaria da “cidade morta”
percebida por Alceu Amoroso Lima
244
, a local de referência de nossas tradições culturais.
No entanto, há ainda outro aspecto, ao qual já nos referimos, que remete à
mineiridade. Ouro Preto representava o ideal da cultura mineira e permitia ao grupo
majoritariamente mineiro que atuava no Ministério da Educação e Saúde transformá-lo em
241
LIMA apud MENICONI, Evelyn Maria de. Monumento pra quem? A preservação do patrimônio nacional e o
ordenamento do espaço urbano em Ouro Preto (1937-1967).
242
Idem.
243
BANDEIRA, Manuel.
Guia de Ouro Preto.
Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde - SPHAN, 1938,
p.49.
244
DPHAN. A Lição de Rodrigo, Recife, 1969.
112
uma referência para a nação. Resultou daí a unanimidade em relação à escolha da cidade
como berço da cultura, arte e política nacionais.
Mas mesmo que o discurso da identidade se centrasse em nossas peculiaridades e na
valorização da arte e arquitetura coloniais, os modernistas a forjaram, segundo Márcia Chuva,
através do “espírito moderno”. O principal articulador desse discurso foi o arquiteto Lúcio
Costa, que, em seu estudo sobre a arquitetura jesuítica conseguiu, a partir do conceito do
barroco como origem, construir a idéia de “salto em direção ao novo, como algo que liberta e
rompe com a continuidade num profundo processo de renovação [...]”.
245
E esse salto fora
dado pelos “renovadores” do século XVIII, portadores das mesmas qualidades que eram por
ele atribuídas à arquitetura modernista. Ao analisar os retábulos do século XVIII o arquiteto
resgata a força desse estilo e vincula a ele algumas das características da arquitetura
modernista, como a clareza das composições, por exemplo. Ao mesmo tempo equipara a arte
e a cultura brasileiras ao desenvolvimento da arte européia concentrando na evolução do
barroco todas as fases do desenvolvimento da arte europeia, como já foi dito anteriormente.
Para Lúcio Costa, o estilo do século XVIII, que era também o “das grandes matrizes
mineiras, e já tratado pela nova geração modernista da segunda metade daquele século, isto é,
dos artistas que ergueram as igrejas das irmandades — como ‘antigo’ e de ‘gosto gótico’ —
[...] passou muito tempo despercebida”
246
. A partir daí o autor passa a tratar esse estilo
“moderno” como “um verdadeiro renascimento, com a volta às composições mais claras e
arrumadas da primeira época”
247
. O barroco mineiro seria o resultado da genialidade brasileira
que rompeu com o modelo europeu e por isso permitiu a renovação da arte e arquitetura
locais, possibilitando o processo de renovação que culminaria na arquitetura modernista.
São essas características enaltecidas por Lucio Costa na arquitetura do século XVIII
e a linguagem por ele utilizada para elevar tanto o barroco quanto a arquitetura modernista ao
patamar de “boa arquitetura”, que Márcia Chuva denominou de “espírito moderno” que
permeia todo o artigo. Assim, o instrumento utilizado para alcançar o estágio de civilização
em que se encontrava a Europa era a elevação do barroco mineiro a um estilo portador das
especificidades brasileiras, “revelando à nação sua origem barroca”
248
.
245
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi,
v.4, n7, jul-dez., 2003, pp.313-333.
246
COSTA, Lucio. A arquitetura dos jesuítas no Brasil. Revista do Patrimônio, Histórico e Artístico Nacional
nº 05, 1941.
247
Idem.
248
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Topoi,
v.4, n7, jul-dez., 2003, pp.313-333.
113
A análise de Márcia Chuva trás o resgate do barroco como parte de uma estratégia
que legitima não só o momento originário — referente à ancestralidade da nação — mas
também o momento presente — de refundação — unindo-os através da relação entre o
espírito criativo e espontâneo percebido tanto no barroco mineiro como na arquitetura
modernista. Para a autora, “a ‘barroquização’ do patrimônio [...] implementada pelos
modernistas foi, [...] sem dúvida, uma impressionante estratégia de consagração de ambas as
partes, que se tornaram constituintes do patrimônio [...]. O conceito de barroco, bastante
difuso, sempre foi perseguido como origem mítica de nossa nacionalidade”
249
.
A cidade de Ouro Preto tornou-se uma referência nacional de um passado que
remetia à origem da nação ao mesmo tempo em que fornecia elementos que a atualizavam em
relação ao desenvolvimento cultural e artístico europeu, unindo dois pontos distantes e
difusos para a nação que se constituía: a identidade nacional e a inclusão no contexto
universal. Os intelectuais atuaram como mediadores simbólicos nesse processo contribuindo
para que o Estado ancorasse em Ouro Preto o ideário nacionalista do regime, através de uma
cidade-símbolo da cultura nacional, mas ao mesmo tempo responsável por nossa inclusão no
mundo civilizado.
Pela fala dos intelectuais era possível ao SPHAM inventar tradições em um passado
distante, selecionado de acordo com seus interesses e os do regime dos anos trinta, e
compatíveis, tanto com os princípios — nacionalismo e autoritarismo — do Estado Novo
quanto com as necessidades de afirmação do grupo modernista, através da valorização da
arquitetura moderna. É esse o caso da retomada de Aleijadinho e Tiradentes como artista
genial e líder revolucionário, respectivamente. A partir da obra de Aleijadinho foi possível ao
grupo do SPHAN construir um discurso que forneceu à arte brasileira uma continuidade
histórica baseada na tradição da arquitetura colonial barroca do século XVIII e legitimar a
arquitetura modernista, além da própria profissão de arquiteto. Do mesmo modo, o resgate de
Tiradentes fornecia um passado de luta, de rompimento com a metrópole e também a
reafirmação do herói nacionalista e patriótico que o regime estadonovista necessitada para
construir a identidade nacional.
Nesse sentido, levando em conta a autoridade do discurso dos profissionais do
SPHAN, sempre legitimados, assim como o regime, a partir do caráter supostamente
científico de suas ações, o órgão é citado em muitos artigos como a “academia SPHAN”, o
que demonstra o quanto a fala desses intelectuais era tida como uma fala especializada e por
249
Ibidem.
114
isso autorizada. E esta fala autorizada construiu um discurso cientificista que permitiu elevar a
escolha de uma cidade e de sua arquitetura como símbolo de nossa identidade e transformá-la
em metáfora da nação. Isso se deu pela própria formação do grupo — majoritariamente de
arquitetos mineiros — e também pelas possibilidades de recepção que a própria arquitetura e
história de Ouro Preto ofereciam.
Segundo Walter Benjamin, “Desde o início, a arquitetura foi o protótipo de uma
obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério de dispersão. [...] é
importante ter presente a sua influência em qualquer tentativa de compreender a relação
histórica entre as massas e a obra de arte”
250
. E essa relação com as massas era um dos
objetivos de um regime autoritário construído a partir da idéia do coletivo e da unidade
nacional, e também o motivo pelo qual um dos mais importantes arquitetos do SPHAN, Lúcio
Costa
251
, defendia a ideia de que a arquitetura daria materialidade à nação.
Nessa perspectiva, política e arte andavam juntas, legitimando e defendendo seus
próprios interesses, em um cenário político em que as ações do SPHAN eram sempre
defendidas como se fossem desvinculadas do regime político do Estado Novo. Sua defesa
dava-se a partir do conhecimento científico, como se as escolhas não fossem determinadas
pela política, o que caracterizava a mesma prática do regime em relação a todas as suas ações,
defendendo-se sempre que essas eram decisões tomadas por técnicos, o que inviabilizaria a
contestação.
Veremos a seguir como o barroco foi utilizado enquanto linguagem capaz de
comunicar às massas o sentimento nacionalista do regime. O próprio Mário de Andrade
forneceu os argumentos que reforçariam a intenção do governo ao utilizar-se da arte e
arquitetura barroca para comunicar sua ideologia, pois ele diz em uma carta enviada a
Rodrigo Melo Franco de Andrade que “existe na arte uma ‘necessidade de
comunicação’[...]”
252
. E tanto o regime quanto os intelectuais modernistas souberam utilizar-
se do poder de persuasão e comunicação que a arte e a arquitetura barrocas ofereciam,
tranformando-as em símbolos de nossa identidade e transmitindo através delas valores e
ideias que eram fundamentais para a consolidação do regime estadonovista.
250
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras
escolhidas, v.1, p.193.
251
O pensamento de Lúcio Costa remetia às ideias do inglês John Ruskin que afirmava que “nós podemos viver
sem a arquitetura, adorar nosso |Deus sem ela, mas sem ela não podemos nos lembrar.” (A lâmpada da
memória).
252
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN - Rio de Janeiro. Carta de Mário de Andrade a Rodrigo Melo
Franco de Andrade, caixa 03, pasta nº 3, de 27 de fevereiro de 1942.
115
Com essa intenção, a arquitetura colonial e o barroco mineiro eram sempre
utilizados para ressaltar a unidade ou a espiritualidade, ambas importantes para o regime que
valorizava os princípios cristãos e que se utilizava de símbolos sacros para comunicar-se com
a população, como já vimos no caso de Tiradentes, por exemplo. É nesse sentido que nos
primeiros números da Revista do Patrimônio a questão da unidade proveniente da arte e
arquitetura barroca é citada com freqüência e que no artigo de Augusto de Lima Junior, sobre
arte religiosa brasileira, ele remete a símbolos e alegorias provenientes do barroco português e
nos diz que, “[...] tudo nas igrejas tem significação mística, representa uma idéia, um
princípio, uma orientação espiritual [...]”
253
.
Ao mesmo tempo, o barroco mineiro fornecia à arquitetura modernista as referências
históricas que essa necessitava e que foram cuidadosamente construídas pelo discurso dos
arquitetos do SPHAN com o objetivo de legitimar o movimento arquitetônico modernista
como portador de características nacionais, com obras de alto valor artístico que passaram a
ser listadas e tombadas pelo SPHAN a partir de uma defesa que as equiparava ao núcleo
histórico de Ouro Preto. Na mesma medida, os arquitetos modernistas eram comparados ao
principal artista do período, Aleijadinho. É o caso, por exemplo, do conjunto da Pampulha e
do arquiteto Oscar Niemeyer, que eram sempre referenciados e comparados ao Aleijadinho e
sua obra em Ouro Preto.
Assim, os intelectuais responsáveis pela seleção, inventário e tombamento dos bens
patrimoniais forneceram as referências necessárias para a criação da identidade nacional que
iria forjar a nova nação, através de Ouro Preto, na medida em que a cidade possuía os
símbolos que representavam a nação — um herói revolucionário, uma arte brasileira e um
artista mulato — demonstrando os traços que compunham nossa identidade e, paralelamente,
legitimavam o novo a partir da arquitetura modernista.
Estes elementos, reunidos a partir de uma visão nacionalista, acabaram por elevar a
cidade de Ouro Preto a berço da nação brasileira, à qual eram transferidos todos os símbolos
do mito de origem que serviram aos propósitos do regime estadonovista de fortalecimento do
nacional. Ao mesmo tempo, atuando como ponto de partida para a legitimação do novo estilo
arquitetônico dos anos trinta, autorizavam o trabalho dos arquitetos modernistas, que
elevavam o Brasil ao mesmo patamar das nações civilizadas e modernas e permitiam ao
regime estadonovista implantar seu modelo modernizador.
253
LIMA JUNIOR, Augusto. Ligeiras notas sobre arte religiosa no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, nº 2, p.97-107, 1938.
116
3.3.1. OURO PRETO E BELO HORIZONTE: DUAS FACES DO MESMO DISCURSO
Lúcia Lippi Oliveira apresenta outra motivação para a escolha de Ouro Preto como
metáfora do nascimento da nação brasileira. Segundo a autora, a cidade contém um duplo
interesse para os modernistas na medida em que também serve para legitimar o nascimento da
capital moderna e planejada: Belo Horizonte. “De um lado, era preciso consagrar a tradição
representada por Ouro Preto, onde nascera o movimento libertário da Inconfidência Mineira.
[...] De outro, era urgente criar o futuro, o espaço do homem novo, [...]”
254
. Belo Horizonte,
construída em três anos — de 1894 a 1897 — serviria de contraponto a Ouro Preto e por isso
“deveria ser cosmopolita, nacional e contrastar com a antiga capital. [...] Ouro Preto e Belo
Horizonte são, assim, as duas faces da mesma moeda”
255
. O lugar inicialmente ocupado por
Belo Horizonte será no futuro o espaço referenciado da arquitetura modernista nacional
dedicado à Brasília.
Belo Horizonte fora a primeira capital do país construída de forma planejada. O
projeto de sua construção previa espaços públicos destinados ao lazer e à sociabilidade, como
os parques, mas ao mesmo tempo organizava a vida coletiva separando as áreas nobres
daquela em que residiriam os menos favorecidos. Colocava cada coisa no seu lugar, segundo
os princípios positivistas que vigoravam à época de sua construção, e aos quais se filiavam os
engenheiros que participaram desse processo. Segundo Luciana Mariano Nascimento, Belo
Horizonte, “construída segundo os padrões europeus de urbanismo, foi inaugurada no final do
século XIX como uma cidade clara, com ruas retas, traçado linear, permeada por um desejo
de uma legibilidade total [...]”
256
.
A construção da capital onde antes se localizava o vilarejo denominado Arraial de
Curral Del Rei traz consigo uma questão interessante em relação à memória, que foi relatada
em 1903, no livro de ficção, A Capital, do escritor mineiro Antonio Avelino Fóscolo: o
apagamento da cultura e “a perda dos elos comuns que antes uniam as pessoas a uma tradição
cultural”
257
. O que resultou no surgimento de uma cidade sem tradição capaz de lhe fornecer
uma identidade e que a partir de então passou a construí-la sempre sob o paradigma da
modernidade.
254
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: um guia, p, 57.
255
Idem.
256 NASCIMENTO, Luciana Mariano. Belo Horizonte: a cidade de papel. Belo Horizonte, vol.3, p. 67-75,
dez.1999.
257 FÓSCOLO, Antonio Avenino, apud NASCIMENTO, Luciana Mariano.
117
Mas, embora se apresentasse como solução moderna e planejada, Belo Horizonte
ficou muito tempo estagnada, e foi durante o Estado Novo que a cidade vivenciou, sob a
administração do prefeito Juscelino Kubitschek, um processo de reurbanização e crescimento,
retomando o discurso da cidade moderna. No momento em que o Estado construía a
identidade nacional, a partir das referências da arquitetura colonial e da escolha de Ouro Preto
como símbolo dessa identidade, Belo Horizonte era resgatada como exemplo da modernidade,
como cidade cosmopolita, onde era possível materializar o projeto modernizador do regime. E
essa materialização, como já vimos, deu-se através da arquitetura modernista, a partir de um
projeto de Oscar Niemeyer e de Roberto Burle Marx, sob encomenda do prefeito Juscelino
Kubitschek, do conjunto da Pampulha — Igreja de São Francisco de Assis, Cassino, Casa de
Baile, Iate Clube a casa de JK — entre 1942 e 1945.
Desse modo, a cidade passou a ser consolidava como referência importante da
arquitetura modernista e apresentada como prova de que era possível dar um salto no tempo,
pois, onde antes existia um pequeno povoado de Curral d’El Rei agora nascia uma capital
planejada em seus mínimos detalhes e que passou a ser definida como moderna e civilizada.
Para a afirmação da importância da arquitetura modernista de Belo Horizonte é
interessante ressaltar que tanto o SPHAN quanto os arquitetos modernistas se empenharam
para que houvesse uma relação direta entre a tradição de Ouro Preto e a modernidade da Belo
Horizonte, e para isso se utilizaram mais uma vez do suporte fornecido pela arquitetura. Nesse
sentido é que a igreja modernista São Francisco de Assis, mesmo nome daquela considerada
como obra-prima do Aleijadinho, projetada por Oscar Niemeyer e construída em 1945, teve
autorizado seu tombamento pelo SPHAN em 1947, o que comprova a teoria de legitimação da
nova capital a partir de referências encontradas em Ouro Preto.
Assim, Ouro Preto e Belo Horizonte, cidades mineiras, são símbolos de um projeto
identitário no qual conviviam tradição e modernidade, tornando-se fundamentais para a
legitimação da arte e cultura nacionais e também para a percepção do país como moderno.
Segundo Mariza Veloso Motta Santos
258
, entre os estudiosos que contribuíram para
o estabelecimento da relação entre o barroco e a arquitetura modernista, destacou-se o
arquiteto mineiro Silvio de Vasconcelos. Assíduo colaborador do SPHAN, ele chegou a
assumir a chefia da 30ª Regional, em Minas Gerais, e forneceu através de seu artigo
Arquitetura colonial mineira argumentos que seriam utilizados pelo grupo modernista que
258
SANTOS, Mariza Veloso Motta. Nasce a academia do SPHAN, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, nº 24, 1996.
118
atuava no SPHAN para comparar as soluções barrocas e modernas. Para isso, salientou os
traços de singeleza, simplicidade e capacidade de expressão da arte barroca, se utilizando das
igrejas barrocas mineiras como exemplo. Em uma descrição em que está falando da
simplicidade das soluções arquitetônicas ele comparou a arquitetura de uma igreja barroca ao
trabalho de Oscar Niemeyer, afirmando que “[...] a torre é separada do corpo da capela, como
ocorre em Nossa Senhora do Rosário, em Ouro Preto, solução adotada tamm por Oscar
Niemeyer na igreja da Pampulha, em Belo Horizonte”
259
.
Mas entre os habitantes da cidade, nem sempre a relação patrimônio-comunidade foi
uma relação tranquila. Sabemos que a própria teatralização que se impõe ao patrimônio para
que esse seja legitimado acabou por alterar o cotidiano dos habitantes de Ouro Preto em um
espetáculo que agregou uma forte carga simbólica e transformou a cidade em um teatro de
narrativas históricas relevantes para a arte, a arquitetura e o passado da nação.
Segundo Jérôme Monnet, “A própria seleção dos monumentos, a própria idéia de
patrimônio são exclusivas, sacralizadoras: declarar e classificar tal espaço como fora do
destino comum faz dele, precisamente, um lugar fora do comum”
260
. Mas esse lugar fora do
comum nem sempre trouxe para os habitantes da cidade o retorno que se poderia esperar, pois
além da imposição de algumas regras que limitavam o processo de urbanização da cidade
houve também uma valorização do solo urbano, o que acabou por afastar do núcleo tombado
parte de sua população original.
3.3.2. A CONSTRUÇÃO DO GRANDE HOTEL: A AFIRMAÇÃO DO NOVO
O processo de teatralização e afirmação da cidade, enquanto espaço de memória e
história, imposto pelo grupo modernista, nem sempre era compreendido pelos habitantes da
cidade. Algumas vezes não eram claras suas intenções, como pode ser visto no processo em
que, ao mesmo tempo, os intelectuais defendiam a arquitetura colonial por sua beleza e estilo
e autorizavam a realização de obras de arquitetura modernista dentro do conjunto urbano
preservado e tombado. Embora essa estratégia de equiparação da arquitetura moderna com a
259
VASCOCELOS apud SANTOS, Mariza Veloso Motta. Nasce a academia do SPHAN. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, nº 24, 1996.
259
MONNET, Jerome. O álibi do patrimônio: crise da cidade, gestão urbana e nostalgia do passado. In: Revista
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 24. Rio de Janeiro: IPHAN, 1996.
119
colonial, em termos de grandiosidade e estilo, fosse uma forma de os modernistas
consolidarem a sua proposta de inovação arquitetônica e legitimarem os trabalhos dos
arquitetos modernistas — como é o caso de Oscar Niemeyer com a construção do Grande
Hotel em meio ao sítio histórico tombado de Ouro Preto — essa lógica acabava por confundir
parte da população que não absorvia os princípios modernistas.
A construção do Grande Hotel envolveu uma disputa entre o próprio grupo dos
arquitetos modernistas que eram colaboradores do SPHAN, pois o arquiteto escolhido para a
elaboração do projeto que fora encomendado pelo governo de Minas Gerais, Carlos Leitão,
havia participado com Lúcio Costa e Oscar Niemeyer da equipe modernista que projetou o
prédio do MES. E essa disputa se daria justamente em defesa do estilo arquitetônico do novo
hotel, pois o projeto apresentado por Carlos Leitão indicava que deveriam ser respeitadas as
construções antigas propondo o menor contraste possível entre a nova construção e os imóveis
coloniais. O projeto foi rejeitado, a princípio por Lúcio Costa e posteriormente pelo próprio
Rodrigo Melo Franco de Andrade, pois havia um receio de que pudesse “parecer ser uma
capitulação ao movimento neocolonial‰
261
, ao qual os modernistas se opunham e com o qual
disputavam espaço para a legitimação dos princípios da arquitetura modernista.
É Lúcio Costa, em correspondência a Rodrigo Melo Franco de Andrade, quem
fornece a defesa do projeto de Oscar Niemeyer, em relação às antigas construções, com o
argumento de que “[...] o projeto do O. N. S. [Oscar Niemeyer Soares] tem pelo menos duas
coisas de comum com elas: beleza e verdade. (...) De excepcional pureza de linhas, e de muito
equilíbrio plástico, é na verdade, uma obra de arte [...]”
262
. Para Lia Motta, Lúcio Costa
“abordou a cidade da mesma forma que abordou o projeto de Oscar Niemeyer — como duas
obras de arte. Justificava-se na ocasião, por se tratar de um arquiteto em luta pela implantação
e sobrevivência da recém-nascida arquitetura modernista no Brasil [...]”
263
.
A defesa da construção do novo hotel em estilo modernista forneceu ao SPHAN, e
em especial a Lúcio Costa, a materialidade necessária para a ligação entre os dois estilos
arquitetônicos — o colonial e o moderno — defendidos em seus artigos publicados na Revista
do Patrimônio como exemplares da “boa arquitetura”. Além disso, a construção de um prédio
modernista, considerado de boa qualidade, em um sítio histórico colonial trazia consigo,
261
MENICONI, Evelyn Maria de Almeida. Monumento para quem? A preservação do patrimônio nacional e o
ordenamento do espaço urbano de Ouro Preto (1937-1967).
262
COSTA apud MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 22: 108-122.
263
MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, nÀ 22: 108-122.
120
segundo Lia Motta, outra questão importante para o regime e para os intelectuais modernistas:
“Eternizariam, dessa forma, como um santuário, o ideal de atualização e nacionalidade
modernista”
264
.
Assim, ao mesmo tempo em que servia para a legitimação do trabalho do grupo
modernista que atuava ou colaborava com o SPHAN, a inclusão do novo em meio ao
conjunto arquitetônico tombado também fazia parte da estratégia política e do discurso do
regime. O governo estadonovista tentava conciliar tradição e modernidade, investindo na
construção de um passado para o país ao mesmo tempo em que se apresentava como um
modelo para o futuro, como capaz de construir o novo país, cultural, política e
economicamente moderno. O Grande Hotel representava o novo, aquilo que estava por fazer,
em oposição à arquitetura tombada de Ouro Preto, já pronta. Mas, segundo Lia Motta, o que
os relacionava era a qualidade, “sem imitação e sem integração, como dois volumes bem
distintos e distantes (emocional e temporalmente)”
265
.
Se o Grande Hotel representava uma vitória do estilo arquitetônico modernista, era
também símbolo de um regime que se apresentava como novo e capaz de transformar o Brasil
em uma nação moderna, através de soluções técnicas, “puras” e “verdadeiras”, como aquelas
encontradas pelos arquitetos modernistas em suas obras. Desse modo, a construção do Grande
Hotel, mais do que uma disputa de estilo arquitetônico era a materialização do discurso do
regime estadonovista, que, como já vimos, conciliou tradição e modernidade de acordo com
os seus princípios, nacionalistas e centralizadores.
Na verdade, essa dicotomia entre tradição e modernidade, que os intelectuais
modernistas tentavam transformar em uma relação tranquila e linear, como se a modernidade
fosse uma etapa evolutiva da tradição e que necessariamente se contrapunha a ela, significa
ignorar a complexidade da relação entre ambas. Não há um antagonismo entre uma e outra e
sim a existência de conflitos e complementaridades em um processo que traz consigo tanto a
continuidade quanto a ruptura, pois uma não exclui a outra. Mas o interesse em apresentá-las
dentro de um esquema evolutivo e antagônico tinha como objetivo a aceitação de valores e
padrões tidos como tradicionais, ao mesmo tempo em que se dava a aceitação das mudanças
vinculadas à modernidade e que permitiriam o movimento em direção ao novo, ao progresso,
ao mundo industrial.
264
Idem.
265
Ibidem.
121
Para os modernistas, que se apresentavam como detentores de um saber atualizado e
capaz de construir um futuro à altura de uma nação moderna, a aprovação da construção do
Grande Hotel em Ouro Preto materializava o nascimento da arquitetura modernista. Assim,
Ouro Preto se constituía em um lugar de memória, tanto da arquitetura colonial barroca
quanto da própria arquitetura modernista. E estavam assentadas as bases da nação barroca e
moderna.
Nesse sentido é que Lauro Cavalcanti trata de Ouro Preto e Brasília como frutos do
movimento modernista. Para o autor, “[...] Ouro Preto e Brasília corporificam tal estilo e a
especificidade de nosso movimento ‘moderno’. Lúcio Costa e Oscar Niemeyer projetaram a
capital do futuro, ao mesmo tempo em que remodelaram a face da capital simbólica do
passado colonial”
266
.
3.4. UMA HISTÓRIA DE HERÓIS – ENTRE TIRADENTES E ALEIJADINHO
No momento de construção da identidade nacional em que o Estado Novo
necessitava de heróis que lhe permitissem reforçar o nacionalismo e o patriotismo, Tiradentes
e Aleijadinho foram novamente resgatados e, junto com o patrimônio histórico e artístico de
Ouro Preto, tornaram-se símbolo do nascimento da nação moderna e civilizada que o regime
se propunha a construir. Tiradentes fornecia a fundamentação histórica necessária para a
defesa da cidade como metáfora de nossa nacionalidade. A arte barroca e a criatividade de
Aleijadinho forneceriam os elementos de inclusão do país no conjunto das nações civilizadas
portadoras de uma arte de caráter universal, com referências nacionais. E a arquitetura
materializava, como bem disse Lúcio Costa, o conceito de nação elaborado pelo regime
estadonovista.
A escolha de Tiradentes como herói da nação e da Inconfidência Mineira como fato
histórico relevante para a história nacional não se deu de forma pacífica. Quando da instalação
da República, seus lideres saíram em busca de uma representação simbólica que se daria,
entre outros símbolos de legitimidade, através da escolha de um herói que pudesse representar
o momento cívico em toda a sua grandiosidade. Assim, teve início uma disputa que, segundo
Lúcia Lippi Oliveira, opunha duas figuras para serem eleitas como herói nacional.
266
CAVALCANTI, Lauro. Encontro moderno: volta futura ao passado, in: A invenção do patrimônio, p.52.
122
De um lado, Tiradentes e a Inconfidência Mineira, e do outro, frei Caneca e a
Confederação do Equador. Tiradentes saiu vitorioso desta disputa e foi representado como um
mártir, “e sua imagem ganhou traços que o identificavam com Cristo, [...] Assim, de herói
republicano radical passou a herói cívico-religioso, [...] e não só ele como a Inconfidência
Mineira assumiram um especial significado no desenho do patrimônio histórico”
267
. É
significativo que a escolha de Tiradentes e o uso de sua imagem sacralizada tenham sido
retomados na década de trinta pelos intelectuais do Estado Novo, pois enquanto líder
revolucionário que se aproximava da imagem de Cristo ele atingia o imaginário popular, tão
caro às práticas autoritárias e à propaganda nacionalista do regime.
Segundo José Murilo de Carvalho, “A elaboração de um imaginário é parte integrante
da legitimação de qualquer regime político. É por meio do imaginário que se podem atingir
não só a cabeça, mas o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um
povo”
268
. Para o autor, é a partir do imaginário que se definem as identidades, os inimigos, o
passado e o presente das sociedades. E as características que eram relacionadas ao herói da
Inconfidência Mineira vinham ao encontro da identidade nacional que o regime estadonovista
se empenhava em construir, e por isso durante o período em que o regime se manteve, o
Estado investiu na imagem de Tiradentes realçando seu patriotismo, que o teria levado a
morrer pela independência do Brasil. Para reforçar essa imagem, durante o Estado Novo, o
governo patrocinou várias peças de teatro em que Tiradentes era apresentado e exaltado como
herói nacional
269
.
Desse modo, tanto Tiradentes quanto a Inconfidência Mineira tornaram-se símbolos
da luta política pelo nascimento da nação brasileira e passaram a receber a atenção de
políticos e intelectuais que durante o Estado Novo buscavam em nossa história referências
capazes de legitimar a identidade nacional, construída a partir de tradições e heróis
inventados, como é o caso do próprio Tiradentes.
Nesse sentido, a cidade mineira de Ouro Preto tornou-se palco perfeito para as ações
estatais de valorização da memória e construção da identidade nacional, pois permitia resgatar
a luta dos inconfidentes pela independência da colônia, que passou a ser enunciada como um
ato patriótico do qual deveríamos nos orgulhar. Para Lúcia Lippi Oliveira “A identidade,
entendida como patrimônio de símbolos e significados, condensa a evocação da memória e
267
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: um guia, p.53.
268
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas, p.10.
269
Idem, p.71.
123
um projeto de futuro, envolve discursos e práticas capazes de legitimar o pertencimento,
capazes de incorporar os indivíduos na esfera pública”.
270
E o sentimento de pertencimento e
identificação era fundamental para que a população aceitasse o novo modelo político e
econômico que o governo implantava.
José Murilo de Carvalho acredita que um dos principais segredos do êxito na escolha
de Tiradentes como herói da nação é “O fato de não ter a conjuração passado à ação concreta
[...]”
271
. Para o autor isso fez com que não houvesse derramamento de sangue, ou violência.
Assim, Tiradentes era o mártir ideal, pois sua imagem mantinha-se imaculada e desse modo
atingia o “[...] sentimento popular, marcado pela religiosidade cristã. Na figura de Tiradentes
todos podiam identificar-se, ele operava a unidade mística dos cidadãos, o sentimento de
participação, de união, em torno de um ideal, fosse ele a liberdade, a independência ou a
república”
272
. E durante o Estado Novo o sentimento de união e amor à pátria eram
fundamentais para a garantia do projeto nacionalista e autoritário que estava sendo
implementado.
Em relação ao Aleijadinho, deu-se um processo semelhante durante os anos trinta.
Sua obra, constantemente referenciada, pelo grupo que atuava no SPHAN, como “genial” e
“autenticamente brasileira”, transformou o artista mestiço em um dos heróis da nação.
Através do barroco mineiro, que resgatava uma arte universal, mas com características
genuinamente nacionais, conquistadas pela genialidade e criatividade do Aleijadinho, tornou-
se possível aos intelectuais modernistas fornecer ao regime os subsídios para a construção da
identidade nacional. Nesse momento, o artista mineiro foi elevado a herói nacional,
representando a miscigenação da raça brasileira que permitiria a construção de nossa
identidade cultural.
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, era descrito por Mário de Andrade como
um gênio e “como precursor da nacionalidade, como exemplo primeiro da solução brasileira
da colônia, da genialidade do mestiço que ultrapassava a herança recebida”
273
. Percebe-se
também na troca de correspondência entre Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de
Andrade que o reconhecimento da obra do Aleijadinho conferia certo status aos seus
270
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas, p.09.
271
Idem, p. 68.
272
Ibidem.
273
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: Um guia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 20.
124
estudiosos, como é o caso de Rodrigo José Ferreira Bastos, bisavô do diretor do SPHAN,
citado na correspondência pelo artigo que escrevera sobre o Aleijadinho em 1858
274
.
Aleijadinho era frequentemente comparado a Tiradentes através de características
que eram referenciadas na personalidade dos dois heróis nacionais. Lúcio Costa, em 1978,
publicou na Revista do Patrimônio
275
um artigo sobre Aleijadinho estabelecendo uma relação
entre artistas e intelectuais que conviviam em Ouro Preto com o que chamou de “anseio de
independência”, de Tiradentes. O autor nos diz que “Poetas e eruditos, [...], músicos,
arquitetos, pintores, escultores, professores de artes mecânicas e mestres de ofícios — todos
conviviam, [...] e esse desenvolvimento intensivo, [...] levou, naturalmente, àquele anseio de
independência que o Tiradentes, afinal, catalisou”
276
.
Esse discurso dos intelectuais modernistas, que amalgamava história e arte
nacionais, ia ao encontro das necessidades do governo estadonovista que naquele momento se
empenhava na construção da nação e da identidade nacional e necessitava construir um
discurso histórico que permitisse a identificação com os heróis nacionais. E essa identificação
se daria através da valorização de um artista mestiço e de um mártir que se assemelhava à
imagem de Cristo.
Há ainda um aspecto que pode ser percebido com frequência nos textos sobre o
Aleijadinho, que é a legitimação do seu trabalho como arquiteto indo ao encontro dos
interesses dos profissionais que atuavam no SPHAN, pois a partir daí foi possível construir
uma imagem da profissão de arquiteto vinculando-a aos atributos que definiam o artista —
genialidade, ousadia e criatividade.
Esse é o caso do artigo de Lúcio Costa para a Revista do Patrimônio
277
, em que o
artista é apresentado como “arquiteto”, com o objetivo de legitimar tanto seu trabalho como o
do próprio grupo de arquitetos do SPHAN, e a partir daí estabelecer uma relação entre as
obras do Aleijadinho e a arquitetura moderna por eles representada. Aleijadinho é apresentado
como arquiteto em um texto escrito de forma quase coloquial em que Lúcio Costa enaltece o
artista a partir da qualidade de seu trabalho nas cidades mineiras, onde era bastante solicitado
274
Arquivo Central Noronha Santos, IPHAN – Rio de Janeiro. Caixa 01, pasta 04, carta de Rodrigo Melo Franco
de Andrade a Mário de Andrade, datada de 1º de agosto de 1936.
275
COSTA, Lúcio. Antônio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional n.18, 1978, p.76.
276
Idem, p.76
277
Idem, p.75.
125
pelos líderes das Irmandades locais, constantemente “empenhados na procura do arquiteto
‘em Vila Rica, ou em qualquer parte onde se achasse’”
278
.
Novamente nos anos setenta, em 1978, o mesmo termo é utilizado pela museóloga
Lygia Martins Costa em seu artigo Inovação de Antônio Francisco Lisboa na estruturação
arquitetônica dos retábulos, no qual a autora, ao tratar do estilo dos retábulos brasileiros, nos
diz que “Antônio Francisco Lisboa, arquiteto que era, intui ser preciso uma estrutura
articulada, dinâmica e fluente, para expressar o novo gosto”
279
. E, em 1984, pelo arquiteto
Augusto C. da Silva Telles
280
em um artigo, publicado na Revista do Patrimônio, em que
analisa a bibliografia sobre o barroco no Brasil, ele trata o Aleijadinho como arquiteto-
escultor, retomando a ideia de valorização de sua obra a partir de sua relação com o
conhecimento científico vinculado à profissão de arquiteto. Isso demonstra que a intenção de
equiparar a genialidade do Aleijadinho à dos arquitetos modernistas dos anos trinta, no
processo de valorização da profissão, foi plenamente aceita pelos profissionais da área, pois
mesmo passados quase 40 anos, ainda é possível fazer tal analogia.
Desse modo, tanto o Aleijadinho quanto Tiradentes, afirmaram-se como heróis da
nação durante o Estado Novo, nação essa que fora construída a partir do barroco mineiro e das
referências históricas vinculadas à cidade de Ouro Preto. Ambos passaram a representar a
brasilidade que os modernistas almejavam, e forneciam ao regime as imagens necessárias para
a construção do discurso nacionalista. Nesse sentido, é inegável a contribuição do SPHAN na
consolidação dos princípios que nortearam o regime do Estado Novo.
278
Ibidem, p.80.
279
COSTA. Lygia Martins. Inovação de Antônio Francisco Lisboa na estruturação arquitetônica dos retábulos.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 18, 223-236, 1978.
280
TELLES Augusto C. da Silva. O barroco no Brasil: análise da bibliografia crítica e colocação de pontos de
consenso e de dúvida. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 19, p.124-137, 1984.
126
CONCLUSÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o papel do SPHAN, órgão de proteção
do patrimônio histórico e artístico nacional, no processo de construção e legitimação da
identidade nacional, analisando, também, o próprio regime implantado pelo Estado Novo,
entre 1937 e 1945, e demonstrando como se deram as relações entre os colaboradores do
SPHAN e os políticos e ideólogos do regime, e qual a importância do patrimônio na
consolidação das práticas do regime.
Através da análise das relações dos ideólogos e políticos do Estado Novo com os
intelectuais modernistas do SPHAN percebemos a existência de interesses comuns. Tanto os
ideólogos e políticos do regime, quanto os intelectuais que atuavam no SPHAN estavam
envolvidos no projeto de construção da nação e, a partir dela, da identidade nacional. A
construção da nação é um processo coletivo que envolve interesses múltiplos e diferentes
correntes de pensamento. No ano de instalação do Estado Novo, 1937, o interesse em
colaborar na consolidação de uma nação forte e moderna reuniu em torno do governo
autoritário de Getúlio Vargas tanto intelectuais modernistas quanto conservadores. O que os
mantinha unidos, na década de trinta, eram os princípios nacionalistas que os identificavam
com o governo, e a percepção de que o Brasil, através de sua identidade cultural, poderia ser
incluído entre as nações civilizadas.
Por isso, ao invés de uma postura independente e desvinculada da política,
fundamentada através do conhecimento técnico, como era feita a defesa da atuação do
SPHAN, o que ocorria na verdade era o fato de esses grupos compartilharem os mesmos
interesses. Cientes das dificuldades em demonstrar a homogeneidade necessária para a
construção da nação e da identidade nacional em um país fortemente marcado pela
heterogeneidade, os intelectuais modernistas também acreditavam que só um governo forte
seria capaz de executar tal projeto. Nesse sentido, apoiavam o regime centralista e autoritário
do Estado Novo valendo-se de muitas de suas práticas para a implantação do serviço de
proteção ao patrimônio, como se demonstra ao longo desse trabalho.
Entre as ações desenvolvidas pelo regime estadonovista para a consolidação de seu
ideário político, destacou-se o papel do SPHAN como órgão responsável pela criação de
símbolos que deram materialidade ao discurso nacionalista. Nesse momento, a cultura tinha
um importante papel, pois era através da identidade cultural que os dirigentes e ideólogos do
127
regime combatiam os regionalismos e tentavam construir uma nação homogênea, capaz de
superar o atraso até então percebido, e tornar-se industrializada e moderna.
É nesse sentido que se percebe a importância do patrimônio na legitimação das
práticas do regime. A partir da valorização e preservação do patrimônio histórico e artístico
nacional foi possível dar materialidade ao discurso nacionalista do regime e inventar tradições
e heróis que seriam fortemente utilizados para reforçar o sentimento de pertencimento a
nação, também permitindo aos líderes do regime utilizarem-se desses símbolos para reforçar o
patriotismo e promover a unidade necessária às mudanças que o regime propunha. O passado
colonial preservado, a arte barroca e os artistas e heróis resgatados, a partir da escolha de
Ouro Preto como símbolo do nascimento da nação, representavam a existência de uma cultura
historicizada que incluía o Brasil entra as nações modernas e civilizadas.
Seria através da atuação dos intelectuais e de seus conhecimentos científicos que o
discurso do regime se legitimaria e se consolidaria, fornecendo suportes para a construção e
consolidação da identidade nacional. Entre esses intelectuais, foram os modernistas, em
especial os arquitetos que atuaram no SPHAN, aqueles que mais colaboraram com a
credibilidade das ações do Estado Novo, em relação ao resgate da memória e história
nacionais. E, como já vimos, esse processo de consolidação da nação e da identidade nacional
permitiu também que se legitimassem os princípios da arquitetura modernista, bastante
identificados com o discurso modernizador do regime.
O passado e a memória são fundamentais nos processos de construção da identidade,
seja ela individual ou coletiva, e no momento em que se deu sua construção foram os
arquitetos modernistas do SPHAN os principais mediadores do discurso que resgatava o
passado nacional, utilizando-o simbolicamente para o fortalecimento da identidade nacional.
E nesse processo, a arquitetura tornou-se forte símbolo da materialização da nação, tanto em
seus aspectos tradicionais quanto modernos. Utilizando como referência tanto a cidade de
Ouro Preto e suas edificações coloniais quanto as obras modernistas, como prédio do MES e a
própria cidade de Belo Horizonte com seu conjunto modernista, foi possível tecer um discurso
linear em que o passado explicava o presente e justificava as escolhas futuras.
O regime estadonovista tinha interesse nessa dicotomia entre tradição e modernidade,
pois enquanto a identidade nacional repousava no passado idealizado, permeado de arte e de
heróis nacionais, e o discurso da preservação era consensual, concentrando todos os olhares e
esforços, era permitido ao governo projetar o novo modelo político de país que desejava, e
128
implantar seu projeto modernizador. O patrimônio, segundo Jérôme Monnet
281
, torna-se nesse
sentido, o “álibi” perfeito que distancia a população das escolhas feitas pelas autoridades para
o presente. E, para além da construção da identidade vinculada ao passado colonial, a intenção
do regime era manter a população afastada da discussão sobre o futuro da nação.
A análise da troca de correspondência entre os colaboradores do SPHAN, o diretor do
órgão, Rodrigo Franco Melo de Andrade e o ministro Gustavo Capanema, demonstra que os
intelectuais modernistas atuavam em perfeita sintonia com as intenções políticas e os
princípios do regime. Os arquitetos que exerciam cargos públicos no SPHAN defendiam suas
atuações a partir dos conhecimentos técnicos que possuíam. Sabemos que essa defesa era a
mesma utilizada pelo regime na implantação de suas políticas, demonstrando mais uma vez o
quanto o grupo do SPHAN se legitimava através dos mesmos argumentos e práticas dos
políticos e ideólogos do Estado Novo.
Por isso, mesmo defendendo a ideia de que não interferiam ou atuavam na política do
regime, eles foram os principais colaboradores para que os princípios do regime
conquistassem a legitimidade. Nesse sentido, as políticas de preservação do patrimônio deram
a sustentação necessária ao discurso do regime. Em um primeiro momento, através da cidade
mineira de Ouro Preto, foi possível resgatar a tradição do período colonial e fornecer os heróis
necessários para alavancar o patriotismo e o orgulho de pertencimento à nação que o Estado
Novo se empenhava em construir.
A partir da análise das correspondências e da revisão bibliográfica, e mesmo do
cruzamento de ambas, é possível afirmar que foi a política de preservação e consolidação do
patrimônio histórico e artístico nacional que forneceu os principais símbolos para a
consolidação do discurso nacionalista do regime estadonovista. E nesse processo de
legitimação do governo de Getúlio Vargas foram também legitimados a arquitetura
modernista, a profissão de arquiteto e o trabalho dos intelectuais. Aqui também devemos levar
em conta que essa legitimidade não atendia só aos interesses dos intelectuais, pois para o
regime era importante contar com a participação de um grupo de pensadores que lhe
fornecesse a base teórica para as políticas implantadas.
Além disso, os arquitetos modernistas possibilitaram ao governo a defesa do novo
através da arquitetura modernista que era por eles defendida. A partir de então ela passou a
representar o Brasil moderno e industrializado, consolidado pelas técnicas de construção
281
MONNET, Jérôme. O álibi do patrimônio: crise da cidade, gestão urbana e nostalgia do passado. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 24, 1996.
129
claras e objetivas, baseadas no uso do conhecimento científico dos arquitetos. Nesse processo
percebemos a presença de muitos aspectos presentes no discurso dos políticos e ideólogos na
defesa do regime: clareza, conhecimento científico, objetividade.
No entanto, a atuação do SPHAN a partir dessa identificação com o regime, acabou
por restringir o conceito de patrimônio ao chamado patrimônio de “pedra e cal”,
contemplando um só estilo de arquitetura e negligenciando a diversidade cultural brasileira,
revelando um passado homogêneo. Além do fato de que as escolhas, em sua grande maioria,
eram determinadas pelo caráter estético das obras a serem tombadas e preservadas.
O resultado dessas escolhas políticas foi a exclusão das práticas e saberes antigos, bem
como da oportunidade de participação da população nas escolhas do que seria o conjunto de
bens a serem valorizados e preservados.
Hoje, as discussões e políticas públicas de preservação ampliaram o conceito de
patrimônio e permitem a inclusão de patrimônios imateriais, tentando manter uma
aproximação com os interesses das populações locais. Mas percebemos que o processo de
tombamento e valorização dos bens culturais ainda se concentra, como nos primeiros anos de
atuação do SPHAN, nos imóveis — pedra e cal — que se distinguem por suas características
estéticas. Além disso, as políticas de preservação do patrimônio implantadas pelo atual
IPHAN ainda não foram, com raras exceções, incorporadas ao cotidiano dos cidadãos, pois a
grande maioria dos brasileiros não se apropria dos bens escolhidos pelo órgão como
representativos de sua cultura.
130
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