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Humberto Moacir de Oliveira
POR UMA DESAPRENDIZAGEM:
LETRA E TRANSMISSÃO EM MANOEL DE BARROS
Belo Horizonte
2010
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1
150 Oliveira, Humberto Moacir de
O48p Por uma desaprendizagem [manuscrito] : letra e transmissão em Manoel
2010 de Barros / Humberto Moacir de Oliveira. - 2010 .
98 f.
Orientador: Jésus Santiago
Co- orientadora : Ana Maria Clark Peres
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
.
1.Barros, Manoel de, 1916- 2. Lacan, Jacques,1901-1981. 3. Psicologia –
Teses. 3. Poesia– Teses. 4. Psicanálise – Teses. 5. Aprendizagem – Teses. I.
Santiago, Jésus II. Peres, Ana Maria Clark. III. Universidade Federal de Minas
Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título
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Humberto Moacir de Oliveira
POR UMA DESAPRENDIZAGEM:
LETRA E TRANSMISSÃO EM MANOEL DE BARROS
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento
de Psicologia da Universidade Federal de Minas
Gerais, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Psicologia
Orientador: Prof. Dr. Jesus Santiago
Co-orientadora: Prof. Dra. Ana Maria Clark Peres
Belo Horizonte
2010
3
Humberto Moacir de Oliveira
POR UMA DESAPRENDIZAGEM:
LETRA E TRANSMISSÃO EM MANOEL DE BARROS
Aprovado por
_____________________________________________________
Prof. Dr. Jésus Santiago (Orientador)
_____________________________________________________
Prof. Dra. Ana Maria Clark Peres (Co-orientadora)
_____________________________________________________
Prof. Dr. Frederico Zeymer Feu de Carvalho
_____________________________________________________
Prof. Dra. Márcia Maria Rosa Vieira
Belo Horizonte
2010
4
aos meus pais, pelo apoio,
à Camila Vaz, pela arte e pelo amor,
à Rúbia Maroli, pelas boas influências,
à Luma Garcia, pela infância.
5
AGRADECIMENTOS
Meus profundos agradecimentos
a Ana Maria Clark Peres, pelo acolhimento e cumplicidade;
a Jesus Santiago, pelas precisas observações;
a Jefferson Pinto, pelo incentivo inicial;
a Ram Mandil, pela escuta e pelas palavras;
a Rosimeire França e a Clínica SOMAP, pelo apoio;
aos amigos do mestrado,
principalmente aos participantes do
unbewusstsein_theorie@googlegroups.com
;
aos professores Jussara Avellar, Arthur Parreiras e Lúcia Efigênia, pelos primeiros passos;
aos amigos Thiago Iwasawa, Loren Aline e Leander Matiolli, pelas dicas e companhia;
ao professor de teatro Tarcisio Homem, pelo incentivo, inspiração e leveza emprestada;
aos amigos e alunos da Faculdade Pitágoras, pela inquietação e trabalho na reta final;
a Cristiane Vieira e Aline Primo, pelo carinho das últimas semanas;
e a todos que de uma forma ou de outra deram a este trabalho um sabor mais doce.
6
Singular, tão singular
Ó passar-se invisível pela alma da alameda de casas espaçosas
Imaginando a feição ideal dentro de cada uma!
Ir recebendo um pouco de poesia no peito
Sem lembranças do mundo, sem começo...
Chegar ao fim sem saber que passou
Tranqüilo como as casas,
Cheio de aroma como os jardins.
Desaparecer.
Não contar nada a ninguém.
Não tentar um poema.
Nem olhar o nome na placa
Esquecer.
Invisível, deixar apenas que a emoção perdure
Fique na nossa vida fresca e incompreensível
Um mistério suave alisando para sempre o coração.
Singular, tão singular
Manoel de Barros, Face Imóvel, 1942, p.68
7
RESUMO
A presente dissertação visa fazer uma leitura da obra do poeta brasileiro Manoel de Barros,
buscando esclarecer, do ponto de vista psicanalítico, sua “poética da desaprendizagem”. Para
tanto, foram usados, como referência principal, textos do psicanalista Jacques Lacan e,
secundariamente, do semiólogo e crítico literário Roland Barthes. Baseando-se nessas fontes,
o trabalho tenta demonstrar como a poesia de Manoel de Barros, através do que ele chama de
“desaprendizagem” (mas também de “descascamento da palavra”, “desestruturação da
linguagem”, entre outros nomes), busca atingir um esvaziamento do sentido que pode ser lido
tanto como um processo de assemia, de acordo com Barthes, quanto como um uso peculiar do
significante que o faz funcionar como letra, do ponto de vista lacaniano. O trabalho tenta,
dessa forma, pensar a hipótese de que, através desse processo de fazer o significante funcionar
como letra, despindo-lhe de sua significação, o poeta empresta a seus escritos o que Lacan
chama de transmissão, que se revela como uma transferência de trabalho.
Palavras-chave: Manoel de Barros, poesia, letra, transmissão, psicanálise, Lacan.
8
ABSTRACT
In the present dissertation, the works of the Brazilian poet, Manoel de Barros, are analyzed in
an effort to elucidate "un-learning poetics". Psychoanalytic references have been utilised;
Jacques Lacan's writings are the primary source, along with those of the semeiologist and
literary critic, Roland Barthes. Based upon these sources, the author conjectures and will
herein try to demonstrate that Manoel de Barros' poetry seeks to attain a void in meaning by
using a method named by Barros, himself, as "un-learning", or "peeling off the word", or "de-
structuring the language". According to Barthes, the voidance of meaning can be interpreted
as a process of assemia (lack of meaning, in English) or, in line with Lacanian theory: a
unique form of using the signifier as if it were language itself. The author defends the
hypothesis that by transforming the function of the signifier into the function of language and,
in so, stripping the signifier of its meaning, Barros has endowed his writings with
"transmission" and consequently operated what is known as "work transference" - in the
Lacanian sense - or , in other words, he has transferred the work load to the reader.
Keywords: Manoel de Barros, language (letter), transmission, psychoanalysis, Lacan.
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................10
2 O NEGÓCIO DE MANOEL DE BARROS..........................................................................14
3 A LETRA E A DESPALAVRA..............................................................................................36
4 DESAPRENDIZAGEM, UMA TRANSMISSÃO..................................................................60
5 CONCLUSÃO.......................................................................................................................80
ANEXO - Dez perguntas a Manoel de Barros..........................................................................85
REFERÊNCIAS........................................................................................................................88
10
1 INTRODUÇÃO
Como aponta Octave Mannoni (1992), Freud, em 1895, em Estudos sobre a histeria
(antes, portanto, de A interpretação dos sonhos, de 1900), equipara a Psicanálise aos
processos de compreensão de que fazem uso os poetas. Esse fato indica o interesse de Freud
pela escrita literária desde o início de suas pesquisas e como a aproximação entre a Literatura
e a teoria psicanalítica se mostra presente desde a criação desta última e atravessa toda sua
história chegando até os dias de hoje. Também Lacan (1965) se mostrou seduzido a buscar na
arte literária recursos que lhe ajudasse a pensar a clínica psicanalítica, chegando mesmo a
dizer, em uma homenagem a Marguerite Duras, que, em sua matéria, o artista sempre precede
o psicanalista.
Ultrapassando os limites da psicanálise, Roland Barthes defende que a literatura pode
beneficiar muitos outros campos do saber, uma vez que o monumento literário contém, a seu
ver, todas as ciências. Em sua aula inaugural na cadeira de Semiologia Literária no Colégio de
França em 1977, Barthes (2007, p.17) dirá que, se por uma espécie de barbárie todas as nossas
disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, esta deveria ser a disciplina
literária, já que a Literatura trabalha, justamente, nos interstícios da ciência. Para o autor, a
Literatura faz girar os saberes, não fixando nem fetichizando nunca nenhum deles.
Se a Literatura serve como recurso metodológico para chegar-se a um saber (no nosso
caso, um saber psicanalítico), ressaltamos também a sugestão de Rafael Villari de retirar o
psicanalista da posição de crítico do texto literário para colocá-lo “... no lugar do não sabido,
da falta perante o texto” (VILLARI, 2000, p.6). Recorrendo novamente a Mannoni, não há
“verdadeiramente, nenhuma razão para colocar o poeta, mesmo de maneira metafórica, em
posição de analisando” (MANNONI, 1992, p.43). O mesmo autor ainda acrescenta que
também é uma ilusão “... acreditar que o poeta tem por função, como o analista, fazer passar o
sentido do inconsciente para o consciente, participar-nos suas descobertas” (MANNONI,
1992, p.45).
Por mais que acreditemos que a Literatura possa vir a oferecer um acesso distinto ao
conhecimento psicanalítico, sabemos que sugerir uma aproximação entre o trabalho de um
poeta e o trabalho do psicanalista é situar-se, tomando de empréstimo a metáfora lacaniana
usada em “Lituraterra” (1971), em um litoral: ponto de encontro entre dois campos
heterogêneos marcado mais pela indefinição do que pela delimitação clara entre eles. Para
Sueli de Melo Miranda (2002), o litoral entre Psicanálise e Literatura só pode ser marcado por
11
um encontro faltoso. Talvez nem mesmo possamos dizer de uma relação, principalmente se
entendermos relação como um encontro proporcional entre as duas áreas. Antes disso, trata-se
de uma “não relação”, uma relação “não toda proporcional”, mas que em alguns pontos
coincidentes sugere, ao menos, uma aproximação.
Para Ram Avraham Mandil (2005), a constância da aproximação das duas disciplinas
desde a criação da Psicanálise indica a suposição de um saber na Literatura do qual a teoria
analítica poderia extrair uma orientação para a prática do inconsciente. Mais do que usar a
obra literária para ilustrar os conceitos analíticos e tentar encontrar respostas aos enigmas
presentes na arte, a Psicanálise deve visar buscar nessas fontes o que ela não alcança - os
modos de apresentação do irrepresentável, o acesso ao impossível, a busca pelo real através
das palavras.
Para contribuir com a interface entre Psicanálise e Literatura, esta dissertação pretende
fazer uma leitura da obra do poeta brasileiro Manoel de Barros, deixando-nos tocar pelo estilo
literário do autor e pelo que apresenta de transmissibilidade, função almejada pela teoria
psicanalítica, principalmente depois das teorizações lacanianas a respeito da letra.
Mesmo distante da prática psicanalítica, o uso que Manoel de Barros faz da palavra,
do qual destacaremos o que ele chama de desaprendizagem, revela um trabalho com a língua
relacionado a uma escrita que visa contemplar um discurso fora da dimensão simbólica do
semblante.
Foi essa singularidade da obra do poeta, e sua coincidência com os projetos da prática
psicanalítica, que trouxe o presente trabalho e, naturalmente, a própria poesia de Manoel de
Barros, para o Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal de Minas Gerais. Afetado pela escrita literária, tanto como leitor quanto como
escritor, antes mesmo que pelo discurso analítico
1
, optei pela obra de Manoel de Barros não
somente como principal objeto de estudo desse trabalho, explorar a desaprendizagem através
de uma leitura psicanalítica, mas também como recurso metodológico para pesquisar a letra e
a transmissão na obra lacaniana.
Reconhecendo, como Ram Mandil (2005) e Jean-Guy Godin (2000), a presença da
Literatura na prática psicanalítica, seja através da associação livre do analisando, seja através
da leitura que o analista faz desse texto ou, ainda, através do modo como a psicanálise
1
Desde os 14 anos, escrevo poemas, contos e crônicas. Atualmente possuo um romance publicado com o
incentivo do Rotary Clube de Acesita: O dia em que conheci Sophia; uma peça teatral em circulação na cidade
de Ipatinga através da 7º. Campanha de Popularização do Teatro e da Dança do Vale do Aço: A Família de
Arthur; e dois livros de poesia por enquanto não publicados: De mim, da vida e da morte e Dezessete de Abril.
Todos assinados com pseudônimo de Beto Oliveira.
12
entende o inconsciente, o que ofertamos neste trabalho é uma pesquisa sobre o singularidade
da escrita de Manoel de Barros que o faz, através das palavras, esbarrar no real.
Para tal empreitada, foi realizada uma leitura de todos os livros do poeta lançados até
2009, dos quais tentamos depurar o que poderia significar aquilo que ele chama, através de
um neologismo, de desaprendizagem. O termo desaprendizagem, encontrado na poesia de
Fernando Pessoa (2006, p.71) e João Cabral de Melo Neto (1997, p.287), na crítica de
Octavio Paz (1991, p.224), e na teoria literária de Roland Barthes (2007, p.45), aparece de tal
maneira na obra de Manoel de Barros que podemos dizer que a palavra recebe uma função
singular em seu acervo literário.
Visando apontar o lugar que a desaprendizagem assume na obra de Manoel de Barros,
o primeiro capítulo da dissertação apresentará ao leitor o poeta pantaneiro procurando
estabelecer um panorama de sua obra. Para traçar esse panorama, lançaremos mão da
biografia do poeta que, embora difícil de ser encontrada em livros e artigos de literatura,
aparece em sua própria obra e em entrevistas como “memórias inventadas”. Da biografia do
autor faremos um percurso pela sua bibliografia que reúne, até o presente momento, mais de
vinte e quatro publicações, algumas inclusive em línguas estrangeiras. Discutindo algumas
características próprias da escrita de Manoel de Barros, recorreremos a vários poemas de
momentos diversos de sua carreira. Dessa forma, não nos deteremos em nenhum desses livros
especificamente, dando uma atenção um pouco mais especial somente a sua primeira
publicação, já que o próprio Manoel dirá que seus livros “... são todos repetições do primeiro”
(BARROS, 2003, p.45). Também é intenção do primeiro capítulo abrir uma discussão sobre a
escola ou o movimento literário em que se apóia a escrita manoelina, revelando a
singularidade que o poeta apresenta e a dificuldade encontrada pelos críticos em enquadrar o
estilo de Barros em qualquer dos rótulos habituais. Ainda que difícil de ser classificada em
uma escola literária, sua poesia encontra em outros artistas da letra ou das artes plásticas vias
de diálogo que serão, nesse momento, discutidas. Porém, o maior esforço da primeira etapa do
nosso trabalho, como já foi apontado no início do parágrafo, será apresentar ao leitor a poética
da desaprendizagem contida na obra de Manoel e sua busca pela palavra desprovida de
sentido e significação.
O segundo capítulo nos servirá para desenvolver teoricamente o que Manoel atinge
com essa poética. Para tanto, serão usados, como referenciais teóricos principais, o ensino do
psicanalista Jacques Lacan e a crítica literária de Roland Barthes. Nesse momento, a noção
lacaniana de “letra” e o conceito de “significância” encontrada, sobretudo, nas críticas de
Barthes, serão fundamentais para pensarmos a maneira como Manoel, em sua poética da
13
desaprendizagem, procura atingir um esvaziamento do sentido. O objetivo é realizar uma
reflexão a respeito da busca de Barros pelo significante que funcione como letra, o que fará
com que seu texto ganhe em significância e perca em significação.
O terceiro capítulo será decisivo para a aproximação das leituras de Lacan e Barthes à
obra de Manoel de Barros. Com uma apreensão melhor dos termos lacanianos e barthesianos
e, entendendo como eles podem dialogar com a poética de Manoel, faremos ainda uma última
aproximação. Destacando o caráter transmissivo que Lacan empresta à letra, e que Milner
(1996) ressalta em A obra clara, o terceiro capítulo buscará levar ao leitor um debate de como
a desaprendizagem de Manoel de Barros pode se revelar, também, como uma transmissão. Ao
fazer o significante funcionar como letra e aumentar assim a significância de seus versos, o
poeta transmite ao leitor o que Barthes chama de “produtividade”. Entendendo, como propõe
Lacan, que a transmissão é uma transferência de trabalho, a dissertação almeja chegar ao seu
fim sugerindo uma aproximação entre o desaprender de Barros e a transmissão sugerida por
Lacan.
Assim, o objetivo principal do trabalho é analisar a hipótese de que a desaprendizagem
na obra de Manoel de Barros consiste em buscar fazer o significante funcionar como letra
através de um processo que, como diria o próprio poeta, visa retirar o significado das
palavras, despi-las do sentido comum, descascá-las. Esse processo visa, em última instância,
alcançar algo que se aproxima do que Lacan chama de transmissão, revelado como uma
transferência de trabalho própria do uso que Manoel de Barros faz da letra.
14
2 O NEGÓCIO DE MANOEL DE BARROS
Manoel Wenceslau Leite de Barros, advogado, fazendeiro e poeta, nasceu em Cuiabá,
Mato Grosso, mas logo se mudou para o Pantanal de Corumbá, Mato Grosso do Sul, onde se
criou
2
. Aos oito anos de idade foi enviado a um colégio interno de Campo Grande e em
seguida ao Rio de Janeiro, onde completou seus estudos básicos e graduou-se como Bacharel
em Direito. Ex-integrante da Juventude Comunista, desligou-se do partido no final da década
de 30 após desiludir-se com o apoio dado por Luiz Carlos Prestes ao governo Getúlio Vargas:
“Quando escutei o discurso apoiando Getúlio — o mesmo Getúlio que havia entregue sua
mulher, Olga Benário, aos nazistas — não agüentei (...) Rompi definitivamente com o Partido
e fui para o Pantanal” (BARROS apud NOGUEIRA, 2009).
Desiludido politicamente, o poeta faz uma espécie de exílio voluntário e sai do país
em visita a Bolívia, Peru e Estados Unidos, país no qual residiu durante um ano na cidade de
Nova York. Nesse tempo, faz cursos de cinema e pintura e tem contato com obras de Picasso,
Chagall, Miró e Van Gogh, assim como filmes de Fellini e Buñuel. De volta ao Brasil, no
início dos anos 40, conhece a mineira Stella com quem é casado até hoje. Embora tenha
publicado seu primeiro livro em 1937, o reconhecimento e a consagração vieram somente a
partir da década de 80, quando recebeu declarado apoio do então colunista das revistas Veja e
Isto é, e do Jornal do Brasil, Millôr Fernandes. A partir de então, Manoel aumentará
significantemente o número de livros publicados chegando, atualmente, a ser considerado, ao
lado de Ferreira Gullar, um dos maiores poetas vivos do Brasil. Com mais de vinte livros
publicados, alguns inclusive fora do país (Portugal, França e Espanha), Barros já foi premiado
pela Academia Brasileira de Letras e pela Fundação Cultural do Distrito Federal.
Não muito adepto a entrevistas, sobretudo as televisivas, Manoel de Barros procurou
manter sua biografia e sua vida pessoal um tanto reservadas, se dando ao luxo, por exemplo,
de, durante um período de sua carreira, dar entrevistas apenas por escrito. Mesmo nas
entrevistas concedidas nos últimos anos ao Canal Futura na série Paixão pela palavra:
Manoel de Barros e no filme Língua de Brincar, de Lúcia Castello Branco
3
, Manoel procura
falar de sua vida sempre de maneira metafórica, poética, em uma aparente recusa a um projeto
2
Fontes biográficas retiradas da dissertação de Mirian Theyla Ribeiro Garcia (2003) e do artigo de Ligia Sávio
(2008).
3
Outro filme dedicado ao poeta com caráter documentário é o longa-metragem Só dez por cento é mentira, de
Pedro César Duarte Guimarães, que não pôde ser assistido. Algumas informações sobre esse trabalho, assim
como o trailer do filme, foram vistos através do site: http://www.sodezporcentoementira.com.br/
(Acesso em
05 mai. 2009)
15
biográfico. “Não sou biografável”, diz o poeta na já citada entrevista ao Canal Futura. Essa
recusa a uma biografia, ou essa opção de apresentá-la sempre no plano poético, lúdico,
justifica o nome de seu mais recente trabalho, Memórias Inventadas, uma coleção composta
de três volumes que formam, nos dizeres de Pascoal Soto
4
, a “Autobiografia Inventada” do
poeta.
Já no início de cada volume, Barros adverte: “Tudo o que não invento é falso.”
Em entrevista à Revista Bric-a-Brac, publicada em Gramática Expositiva do Chão, o
poeta dá pelo menos três possíveis motivos a essa reserva. O primeiro seria o que ele chamou
de “... meu temperamento de tímido, que é uma sem-graceira demais...” (BARROS, 1996b,
p.326); o segundo seria por orgulho: “... este esquivar-se de falcão, só querendo estar livre
para os vôos, – é o pior orgulho”; e o terceiro, como mais adiante irá acrescentar, por medo:
“Mas voltando à sua pergunta se seria por medo ou por tática poética que me escondo, digo
que é por medo.” (BARROS, 1996b, p.331). Se seu esquivar-se tem como objetivo estar livre
para os vôos, onde mais pensar esses vôos senão na sua própria poesia? Será mesmo o poeta
que irá dizer: “Poesia é voar fora da asa.” (BARROS, 1993, p.21).
Sua biografia, portanto, aparece, mais do que em entrevistas ou notícias, em sua
própria poesia, seja diluída e espalhada em fragmentos de poemas: “... tudo o que falo é
sempre de mim que falo” (BARROS, 1996b, p.331); seja, ainda, em poemas propriamente
denominados “Auto-Retrato”. Podemos encontrar esse tipo de “retrato” em pelo menos dois
momentos distintos, um em 1993 e outro em 2000, ambos fazendo referência a sua origem,
sua obra e, por fim, sua morte. Primeiro temos “Auto-Retrato-Falado” em O livro das
ignorãças:
Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves,
árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo
para o Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore. (BARROS, 1993, p.103).
Sete anos depois o poeta publica “Auto-Retrato” em Ensaios fotográficos (2000):
Ao nascer eu não estava acordado, de forma que não vi a hora.
4
Pascoal Soto é editor e idealizador dos livros Memórias Inventadas, e a referência usada aqui é o texto que o
próprio editor escreve atrás das caixas que embalam os três volumes da série.
16
Isso faz tempo.
Foi na beira de um rio.
Depois eu já morri 14 vezes.
Só falta a última.
Escrevi 14 livros.
E deles estou livrado.
São todos repetições do primeiro.
(Penso fingir de outros, mas não posso fugir de mim).
Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro.
Em pensamento e palavras namorei noventa moças, mas pode que nove.
Produzi desobjetos, 35, mas pode que onze.
Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um abridor de amanhecer, uma fivela
de prender silêncios, um prego que farfalha, um parafuso de veludo etc. etc.
Tenho uma confissão: noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por
cento é mentira.
Quero morrer no barranco de um rio: - sem moscas na boca descampada!
(BARROS, 2000, p.45).
Neste segundo retrato, Manoel dá ênfase a uma confissão: noventa por cento do que
ele escreve é invenção, apenas dez por cento é mentira. Se para Lacan (1971) a verdade, por
ser inseparável dos efeitos da linguagem, só progride por uma estrutura de ficção, já que a
ficção é a essência mesma da linguagem, na obra de Barros a verdade progride sempre através
do semi-dizer da invenção e da mentira. Nesse aspecto, Manoel de Barros põe em prática a
teoria de Lacan (1969/1970) de que, por não haver uma verdade sobre a verdade, a verdade
pode dizer tudo o que quiser. Servindo-se dessa liberdade que a verdade lhe proporciona, a
biografia do poeta, a exemplo de sua arte, se revelará recheada de mentiras e invenções. Em
oportunidade de fazer, via e-mail, dez perguntas a Manoel, este comentou sobre a dificuldade
em ser biografado: “...acho que o poeta é só inventado. Biografia acho que tem caminhos
diferentes.”
5
. É a partir da invenção e da mentira que Manoel entra na poesia fazendo com
que sua biografia se confunda com sua obra a tal ponto que nos questionamos se suas
entrevistas não fazem parte de seus poemas assim como se seus poemas não formam sua
própria história de vida. É também nessa vertente que o poeta explica, na mesma entrevista,
como seus livros são todos repetições do primeiro: “Tudo são repetições de mim por formas
diferentes. São invenções com as quais eu quero expor meu subconsciente”.
De fato, podemos identificar alguns elementos que se repetem ao longo da obra de
Barros, como o uso lúdico da palavra, o gosto por personagens populares e pelas falas do
povo, assim como a criação de desobjetos e a admiração pelas pequenas coisas do chão do
Pantanal. Já em seu primeiro livro publicado, Poemas concebidos sem pecados (1937),
encontramos uma coletânea de poemas que narram, em sua maioria, histórias ou casos de
personagens que supostamente teriam vivido com o autor e participado direta ou
indiretamente de sua infância. Quase todos os poemas de seu primeiro livro contam com
5
Vide entrevista em anexo.
17
personagens do campo ou “da sarjeta” que servem de meio para o poeta exercer sua ironia e
sua crítica social presente mais em seus dois primeiros livros do que no restante de sua obra.
Faz parte desses personagens a menina e prostituta Maria-pelego-preto, caso considerado por
um senhor respeitável “uma indignidade e um desrespeito às instituições da família e da
Pátria!”, ao que Manoel responde com ironia: “Mas parece que era fome.” (BARROS, 1937,
p.51). No mesmo livro, encontramos o aposentado Seu Zezinho-margens-plácidas, célebre
fazedor de discursos patriotas, que vivia em seu sítio Abóbora Celeste. Ou, ainda, Mário-
pega-sapo, um dos viventes da “draga”, abrigo de vagabundos e bêbados, que andava com os
bolsos estufados de jias e que só era entendido pelas crianças e pelas “putas do jardim”.
Se encontramos em 1937 alguns personagens que servem à crítica social do poeta, não
é difícil perceber, também, nessas e em outras passagens, o começo do que viria a ser uma das
principais características de Manoel de Barros: a crítica à própria língua. Assim, na história de
Mário-pega-sapo, encontramos em seu enterro um “literato oficial” que sentia nojo das
formas coloquiais e que, para não “macular” a língua nacional, o chama de Mário-Captura-
Sapo. Manoel, já usando sua ironia para criticar a linguagem formal e revelar sua admiração
pelo linguajar do povo, dirá que “... a vida tem suas descompensações.” (BARROS, 1937,
p.45). No mesmo poema, Barros irá dizer que da “draga”, abrigo de Mário-pega-sapo e de
outros vagabundos, restaram somente algumas expressões como “estar na draga” e “viver na
draga”, as quais Manoel oferece ao filólogo Aurélio Buarque de Hollanda para que esse as
registre em seus léxicos: “Pois que o povo já as registrou” (BARROS, 1937, p.45). A história
de Mário-pega-sapo ajuda Manoel a fazer um elogio à língua popular e a defender a idéia de
que a linguagem coloquial pode por vezes antecipar os registros nos léxicos dos grandes
“literatos oficiais”.
Como veremos adiante, a língua do povo exerce uma função significativa em toda a
obra de Manoel, principalmente pelo caráter lúdico que ela empresta à palavra. Assim, a
história de Cabeludinho, que também aparece nos poemas de seu primeiro livro, é relembrada
pelo próprio poeta, em ocasião da escrita de um de seus últimos livros publicados. Em 1937,
ao narrar suas aventuras como beque do Porto de Dona Emília Futebol Clube, o poeta cita os
gritos de Mário-Maria que ficava do lado de fora da quadra dando pontapés no vento:
“Disilimina esse, Cabeludinho!” (BARROS, 1937, p.15). Em 2003, ao relembrar a história, o
poeta diz que, embora não tenha “disiliminado” ninguém, o “verbo novo trouxe um perfume
de poesia à nossa quadra”. Manoel ainda complementa: “Aprendi nessas férias a brincar de
palavras mais do que trabalhar com elas.” (BARROS, 2003, p.VIII).
18
Embora possamos identificar, na obra de Manoel de Barros, alguns elementos que se
repetem desde seu primeiro livro, ela está longe de ser facilmente classificada ou enquadrada
em um determinado movimento literário. Definir sua obra através de qualquer de suas
características, mesmo aquelas que mais aparecem - como a poética da desaprendizagem -
seria correr o risco de empobrecer um projeto poético de rica amplitude e diversidade.
Sabemos que, cronologicamente, sua poesia se enquadra na Geração de 45, mas como
dirá o poeta (1996b) em entrevista concedida a José Otávio Guizzo, ele não sofreu as reações
de retesar os versos ou endireitar sintaxes tortas que seus contemporâneos sofreram. A
Geração de 45, ao contrário do movimento modernista de 22 que louvava o vanguardismo, é
conformada por um grito de redescoberta do passado, uma busca pelo equilíbrio entre a
emoção e a sua expressão verbal. Para Geraldo Vidigal (1995), ícone dessa geração ao lado de
João Cabral de Melo Neto, Ledo Ivo, e outros, o espírito da Geração de 45 é o de respeito à
dignidade da palavra, seu significado, sua musicalidade, tomando-a sempre pelos elos
próprios à gramática e ao idioma de forma geral.
Para José de Nicola (1998, p.377), a Geração de 45 nega a liberdade formal, ironias,
sátiras e outras “brincadeiras” modernistas, em prol de uma poesia mais “... equilibrada e
séria”. Está, assim, distante do movimento de 1922 e próxima do parnasianismo, movimento
do final do século XIX marcado pela objetividade temática e culto à forma e estética da arte.
De maneira ainda mais radical, José Guilherme Merquior (1996) dirá que a proposta da
Geração de 45, embora nunca tenha sido formalizada, era a de fazer um programa
antimodernista, o que do ponto vista literário seria uma “dege(ne)ração”, uma traição da
poesia. Para o ensaísta, os poemas dessa geração são marcados pelo culto às formas, pelo
afastamento da linguagem de sua fonte nacional e popular e pelo manejo de ritmos mecânicos,
de metros sem vida e de imagens em conserva.
O que Manoel nos mostra é que sua poesia seguirá rumos bastante distintos do da sua
geração. Posterior ao movimento de 22, a poesia de Manoel se afasta dos versos metrificados
e das rimas ricas, raras e perfeitas. Aproximando a linguagem de sua fonte nacional, popular e
pantaneira, o poeta buscará na poesia a revolução da língua, a crítica à linguagem culta e a
exaltação à palavra desacostumada, desatada dos elos gramaticais e semânticos que as
enquadram no idioma. A palavra a ponto, por exemplo, do que ele chama de “escombro”:
“Sou mais a palavra a ponto de entulho ou traste.” (BARROS, 1996b, p.308). O mais correto,
parece, é que, como propõe Luiz Henrique Barbosa (2003), o texto de Manoel de Barros não
se filia a nenhuma escola literária e não faz par com nenhum outro poeta.
19
Situado fora de qualquer escola literária, o poeta muitas vezes é chamado de poeta do
Pantanal já que, de sua terra natal, recolhe muitos dos elementos presentes em sua poesia.
Mas essa classificação geográfica parece ser tão ou mais insuficiente do que a cronológica.
Para Manoel de Barros, como para muitos de seus críticos atuais (Lúcia Castello Branco
(1994), Luiz Henrique Barbosa (1995) e Rogério Barbosa da Silva (1995)), sua poesia não se
resume a uma poesia pantaneira. Sua preocupação não é com a enumeração de bichos e
plantas que compõem a beleza da natureza, mas com a palavra.
Não tenho em mente trazer contribuição para o acervo folclórico do Pantanal. Meu
negócio é com a palavra. Meu negócio é descascar as palavras, se possível, até a
mais lírica semente delas. Nem uma, porém, se me entregou de nudez ainda.
(BARROS, 1996b, p.322).
O negócio do poeta é com a palavra e, mais, o uso que ele fará dela será mesmo no
sentido de descascá-la. Nessa busca pela palavra despida, ou palavra descascada, o poeta irá,
concomitantemente à sua poesia, ou melhor, dentro dela, elaborando e expondo seu projeto
poético, suas impressões da poesia e do fazer do poeta, que se revela num saber fazer com a
palavra.
Ligia Sávio (2004), assim como Luciete Bastos (2003), lembra que uma característica
de Manoel de Barros é sua preocupação com a elaboração de uma teoria poética que parece
sair de sua própria poesia. Para as autoras, o poeta consegue fazer a análise de sua poesia
dentro de seus poemas e de suas entrevistas. Bastos diz que, muitas vezes, ao invés de
dialogar com a realidade aparente das coisas, o poeta prefere dialogar com a realidade da
língua e do uso poético que faz dessa língua. Assim, o poeta acaba construindo uma crítica
própria de sua poesia e revelando o que é, para ele, o fazer do poeta: “A metalinguagem me
excita. Acho que é porque eu não tenho muito o que falar e falo do que eu faço. Que ao fim é
de mim mesmo que falo.” (BARROS apud BASTOS, 2003, s/p).
Assim, talvez possamos dizer que não seria muito difícil pensarmos uma teoria do
fazer poético a partir da poesia de Manoel de Barros. Em todos os seus livros, e na maioria de
seus poemas, encontramos sugestões, advertências e indicações de como um poeta deve
operar com a palavra, quais os melhores objetos que servem à poesia e, até mesmo, quais
tipos humanos e personagens são mais propícios à arte de escrever. No fundo, o que podemos
notar é que Manoel faz uma crítica do seu próprio modo de escrita, e a comunica não como
quem funda uma escola, mas sim como quem divulga suas descobertas sobre os usos
possíveis da letra e das palavras.
20
Nessa aventura de descobrir e inventar seu próprio projeto poético, descobrindo e
divulgando de que é feita e como é feita sua escrita, Manoel de Barros lança, em 1970, seu
livro intitulado Matéria de Poesia. Dentre outras definições, ele irá dizer: “Poesia é a loucura
das palavras: Na beira do rio o silêncio põe ovo” (BARROS, 1970, p.26). É a partir dessa
loucura das palavras que o poeta vai trabalhar sua matéria, se interessando sempre pelo que as
palavras têm de desarranjo, de louco, de delírio. Vinte e três anos depois, ele ainda diz,
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das
frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para
o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática. (BARROS, 1993,
p.87)
Manoel de Barros aponta Padre Ezequiel como seu primeiro professor de
“agramática”, neologismo que indica uma anulação da gramática a favor daquilo que ele
chama de doença das palavras. É preciso saber errar bem o idioma. Errar o idioma e negar a
gramática faz parte do projeto poético de Manoel, que vê nos “desvios” as possibilidades de
colher os melhores frutos. A exemplo dos bugres, o poeta não anda nas estradas, se as
entendermos como os caminhos habituais da palavra. A pena de Manoel vai atrás dos
caminhos incomuns, das trilhas defeituosas das frases, lá onde, para o poeta, estão as
“melhores surpresas” e os “ariticuns maduros”. Na teoria lacaniana, como veremos adiante,
esses desvios são ocasionados em função de uma ajuda que o próprio material pelo qual a
linguagem é feita oferece. Para Lacan, a lalíngua, “matéria prima” elucubrada pela
linguagem, nos oferece homofonias, neologismos, construções diversas que permitem a
invenção de outros caminhos para a linguagem. Esses desvios e trilhas nos permitem brincar,
mais que trabalhar, em algo que a linguagem, em sua função comunicacional, não nos
oferece.
Em Manoel, a reflexão feita de sua própria escrita, implícita e explicitamente, parece
sempre contemplar os defeitos da frase, a letra torta, a loucura das palavras, o errar o idioma a
fim de inventar um novo arranjo para a linguagem. Quem sabe até escrever uma nova língua.
É o que Manoel diz quando revela sua busca pelo “idioleto manoelês archaico”, e explica:
21
“Idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas”
6
; e, em
nota, complementa: “Falar em archaico: aprecio uma desviação ortográfica para o archaico.
Estâmago por estômago. Celeusma por celeuma. Seja este um gosto que vem de detrás.”
(BARROS, 1996, p.43). Aqui, vemos uma busca do poeta pelo arcaico, pela origem da língua,
o que não deixa de ser um dos “desvios” usado pelo “bugre” Manoel e que é encontrado em
muitas outras passagens de sua obra:
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano. (BARROS, 1996, p.47).
Para Lúcia Castello Branco (1995), Manoel de Barros tenta flagrar a poesia em seu
estado nascente, a palavra em sua fase afásica, em seu momento inicial de larva. Avançar
para o começo, pegar o estame do som, buscar o arcaico e a doença das palavras, é uma
constante sugestão do poeta à poesia. Daí a grande importância do universo infantil nos
poemas de Barros. Por demasiadas vezes o poeta lembra a consideração que nutre pelas
construções do infante que inicia seu trabalho com a linguagem: “A criança me deu a semente
da palavra” (BARROS, 2008, I), diz o poeta na última de suas Memórias Inventadas. Para
Luiz Henrique Barbosa, o poeta vê, nos gestos das crianças de transformar a língua, “...uma
saída virtual da aterradora pena que nos coloca a palavra.” (BARBOSA, 2003, p.60).
A criança, assim como o louco ou o andarilho, aparece muitas vezes nos poemas de
Barros como personagem que permite ao poeta alcançar o trabalho proposto em seu projeto
poético. Se Manoel apresenta uma carta de intenção, na qual indica o que busca fazer com as
palavras ou até onde pretende levar seu jogo poético, muitas vezes é aos personagens de seus
livros que atribui esse jogo. Muitos desses personagens são baseados em pessoas reais que,
através de um jogo que contempla mais uma vez a lógica de que a verdade tem a estrutura da
ficção, ou da invenção e da mentira, se tornam fictícios. Apuleio, Felisdônio, o pintor
boliviano Rômulo Quiroga, e outros tantos andarilhos, loucos e infantes, com ou sem nome,
servem como suporte para que a poesia aconteça. É assim que Manoel chega, por vezes, a
6
Lembremos que, no contexto apresentado, a explicação dada à palavra idioleto faz referência a um uso
totalmente particular e livre de Manoel de Barros. Segundo Celso Pedro Luft (2002), autor da Moderna
Gramática Brasileira: edição revista e atualizada, o “idioleto” é uma adaptação individual do sistema coletivo
de linguagem. Além da distinção entre a norma coletiva, chamada pelo autor de socioleto, e a norma
individual, o idioleto, Luft ainda ressalta a diferença entre a norma comum a toda uma nação, o idioma, e as
normas peculiares de uma região, o dialeto.
22
colocar na boca de um deles o que chama, em O Livro das ignorãças (1993), de delírio do
verbo. Este delírio do verbo é que vem a ser um dos exemplos citados pelo poeta de errar a
língua, de atingir a loucura das palavras, de promover um desarranjo na linguagem:
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio. (BARROS, 1993, p.15).
No poema acima, a criança empresta sua voz ao poeta para que esse faça uso de uma
sinestesia
7
. Como lembra Nicola (1998, p.219), a sinestesia, característica marcante do
simbolismo, consiste numa relação que se estabelece entre uma percepção e outra que
pertençam a domínios de sentidos diferentes. No poema de Manoel, o personagem usa a
audição para captar um estímulo exclusivamente visual: a cor. Embora o poeta lance mão de
um recurso típico do simbolismo, o que observamos é uma preocupação muito maior em nos
revelar as várias possibilidades da língua do que em exaltar a metáfora e o subjetivismo, tão
caros ao simbolismo. Se, para os simbolistas, a sinestesia serve como valorização da realidade
subjetiva, Barros a usa, primordialmente, como um exemplo de “delírio verbal”.
Da mesma maneira que Manoel recorre à criança para “contrair” o que chama de
doença da palavra, outros personagens que habitaram sua infância e, de alguma forma,
provocaram sua escrita, são recorrentes em sua obra. Já mencionamos Padre Ezequiel,
preceptor que o encorajou a fazer doença nas frases. Bernardo da Mata, por sua vez, pode ser
considerado um alter ego do autor que ilustra a paixão do pantaneiro pelas coisas simples da
vida e pela harmonia entre o homem e a natureza. Também parece afetar sua formação
literária o linguajar simples e popular dos habitantes de sua terra. Como exemplo dessa
afetação, o poeta cita uma preposição deslocada que se encontra em uma das frases de sua
avó:
7
A palavra homófona cinestesia abriga um significado completamente diferente. Enquanto sinestesia diz
respeito à fusão e relação de diferentes sentidos, como proposto acima, cinestesia, grafada com “c”, cuja raiz
grega, de acordo com José Pedro Machado (1952), é cinese (kinesis), expressa a percepção do movimento
(HOUAISS, 2001, p.720). Na Psicopatologia, como aponta Paulo Dalgalarrondo (2000), as alucinações
cinestésicas também dizem respeito a alterações na percepção do movimento, enquanto que as alucinações
cenestésicas, essas grafadas com “ce”, indicam alterações na percepção tátil, ambas com significado distintos
ao da sinestesia.
23
Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto.
Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela
preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval:
aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais.
Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia
fazer de uma informação um chiste. E fez. (BARROS, 2003, VIII).
O que poderia se designar como um erro do idioma apresenta-se para o poeta como
um encanto. Assim, ele exalta também os versos de um vaqueiro que parece entender tanto
quanto sua avó das regências verbais: “Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai
morena, não me escreve / que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir,
ampliava a solidão do vaqueiro.” (BARROS, 2003, VIII). A exemplo de Guimarães Rosa, que
anotava em suas cadernetas de viagem frases e palavras recolhidas nas falas do homem do
sertão, Manoel parece também recuperar da fala do povo a vivacidade de sua língua materna.
Dessa forma, o poeta incorpora à sua poesia as doenças das palavras encontradas naqueles que
lhe servem, ao mesmo tempo, de inspiração e alter-ego. A “preposição deslocada” na frase da
avó, o artigo “preposto ao verbo” nos versos do vaqueiro, e tantas outras modificações da
língua, passam a fazer parte da linguagem do poeta não só nos poemas em que se refere a tais
personagens, mas em toda sua obra, transbordando inclusive para suas entrevistas.
Mas os personagens que Manoel usa para fazer seu exercício de equivocar os sentidos
das palavras não se restringem ao povo com quem conviveu ou inventou. O próprio autor é
também um personagem de seus livros, não apenas implicitamente inserido em outros
personagens, como também explicitamente citado, seja enquanto o velho, o jovem, ou,
principalmente, o menino Manoel. Dessa forma, os personagens de Barros, incluindo ele
próprio, presente em suas “memórias inventadas”, permitem ao escritor colocar em prática o
que ele mesmo propõe quando aconselha ao poeta errar seu idioma.
É, portanto, através de seus personagens, que o poeta alcança a loucura das palavras.
Um exemplo é quando ele equivoca substantivos fazendo-os funcionar como verbo: “Ele me
coisa / Ele me rã / Ele me árvore.” (BARROS, 1993, p.75). Ou, então, quando perturba,
através das palavras, a dimensão temporal da natureza: “Ontem choveu no futuro.”
(BARROS, 1993, p.33).
São a esses desarranjos colocados ou retirados das bocas de seus personagens que o
poeta busca chegar ao que ele designa palavra desacostumada: “Não gosto de palavra
acostumada.” (BARROS, 1996, p.71). Desacostumada, podemos ler, do seu sentido comum.
Citar a criança que pega de empréstimo o verbo que serve para o som e o utiliza para a cor,
lembrar do menino Manoel encantado com a preposição deslocada na frase da avó, ressaltar o
artigo que aparece em excesso nos versos do vaqueiro, usar o substantivo rã como se fosse um
24
verbo. Essas são algumas maneiras de o poeta reinventar sua língua, abster-se da linguagem
acostumada e propor um novo funcionamento para seu idioma. Isso explica a escolha de
Manoel por personagens tão singulares, pobres e por vezes tão desprovidos de conhecimento,
títulos ou diplomas. A esse respeito, o poeta adverte que seus alter-egos são todos bêbedos ou
bocós, todos formados por ciscos e borras. Manoel ainda nos conta sua resposta à sugestão de
alter-egos mais dignos: “Um dia alguém me sugeriu que adotasse um alter-ego respeitável –
tipo um príncipe, um almirante, um senador. E eu perguntei: Mas quem ficará com os meus
abismos se os pobres-diabos não ficarem?” (BARROS, 2000, p.61).
É, portanto, através de seus personagens, dentre os quais o próprio Manoel de Barros
faz parte, que o poeta consegue praticar sua arte poética, dar lugar a seus abismos e exercer
seu “idioleto”. Nisto parece consistir a aventura poética de Manoel, em enlouquecer o idioma,
desestruturar a linguagem, usar as palavras distantes de seu sentido comum, fazendo com que
a tarefa mais lídima da poesia seja “equivocar os sentidos das palavras” (BARROS, 2000,
p.65).
Nessa tentativa de equivocar o sentido das palavras, vale lembrar a importância que o
prefixo
8
“des” alcança na obra de Manoel. Instrumento da língua portuguesa usado para a
descaracterização ou negação de uma palavra, esse prefixo aparece em vários momentos da
obra do poeta como dispositivo formador de neologismos clássicos de sua escrita, como
desutilidade”, “dessaber” ou “desúteis”. Como lembra Cristiane Azevedo (2007, p.2), essa
procura por uma “desconstrução semântica” instaura em sua obra “uma certa poesia do des”,
que consiste em uma poesia da negação, da desestruturação incessante e radical da língua
Ao instaurar sua “poética do des” na tentativa de desestruturar a linguagem ou
fornecer-lhe um novo arranjo – o “idioleto manoelês archaico” – o poeta apresenta uma
singularidade ainda maior quando faz uso do que ele chama de desaprendizagem. Para Lúcia
Castello Branco, como podemos ler na orelha da quinta edição de Livro Sobre Nada, o que
resta ao leitor de Manoel de Barros é “...ingressar na poética da desaprendizagem proposta
pelo autor, buscando, então, desler as letras: advinhar, diviná-las”. Essa poética da
desaprendizagem é marcada por uma poesia muito singular, onde o que se destaca não é a
8
De acordo com Celso Cunha (2001), do ponto de vista gramatical, a palavra é composta por morfemas, as
menores unidades gramaticais identificáveis. Um afixo é um morfema derivacional, freqüentemente de origem
latina ou grega, que se une a uma palavra ou a outro morfema para modificar, geralmente de maneira precisa, o
sentido desse último. O prefixo é uma espécie de morfema que se adiciona à esquerda de uma palavra ou de
outro morfema, enquanto que o sufixo é um morfema que se adiciona à sua direita. O des, tão usado por
Manoel de Barros, é um prefixo de origem latina que indica a ação contrária, a oposição, a negação ou a
anulação do significado original de uma palavra. Na língua portuguesa, entre os prefixos de negação, temos,
além do des, o a, o in, o im, o an, o dis, entre outros.
25
aprendizagem enquanto adição de conhecimento, mas o desaprender que resulta num novo
olhar, um olhar infantil, que abre, assim, maiores possibilidades para a criação:
A poesia, para mim, sempre foi um jogo à brinca. Nunca um jogo à vera. Acho que a
gente precisa desaprender um pouco o que aprendeu. Desaprender umas oito horas
por dia para adquirir um novo olho, digamos, um olho infantil, para olhar o mundo
como se fosse a primeira vez. (...) Criar, para mim, começa exatamente no
desconhecer. (BARROS apud MACIEL; XAVIER, 2000, p.86).
Sua poesia, ao invés de buscar a adição de sentidos, vai retirar do signo o máximo de
significação já cristalizada pela língua, buscando, por vezes, alcançar apenas a materialidade
sonora. Antecipando um pouco a discussão que faremos a partir da crítica literária de Roland
Barthes no segundo capítulo, podemos já antever em Manoel uma busca pelo o que o
semiólogo chama de erotismo da palavra. Em O rumor da língua, Barthes (2004) comenta
sobre três possibilidades de prazer que a leitura pode nos proporcionar, ou, como ele mesmo
acrescenta, três vias pelas quais a “imagem de leitura” pode capturar o “sujeito-leitor”. A
primeira delas seria aquela em que o leitor tem com o texto lido uma relação fetichista: ele tira
prazer das palavras, dos arranjos poéticos, dos jogos significantes, do rumor da língua. Esse
gozo pode ser comparado ao momento do balbucio infantil. Além do prazer causado pela pura
sonoridade da palavra, o leitor ainda poderia ser agraciado por mais duas formas de prazer: o
prazer pelo sentido que as palavras engendram e que fazem o leitor desejar sempre a próxima
página ou, ainda, o prazer causado pelo desejo de escrever que uma leitura pode vir a
despertar. É evidente que todas as três vias citadas por Barthes podem ser alcançadas através
dos poemas de Barros. Entretanto, o que podemos perceber em parte da obra do poeta, é um
privilégio pelo erotismo sonoro das palavras, uma busca pelo gozo que a manipulação da
letra, desvinculada de qualquer valor de significação ou sentido, pode promover. Mesmo que
não seja uma constância em sua obra, muitas vezes aparecendo mais como uma sugestão à
poesia do que como uma prática reiterada pelo autor, Manoel mostra-se preocupado em
valorizar mais o ritmo das palavras do que seu significado. Assim, por vezes, encontramos em
sua obra listagens de palavras que parecem destacar mais a dimensão do som causado pela
organização poética do que qualquer sentido que possa ser extraído dessa organização,
- E martelo
grama de castela, móbile
estrela, bridão
lua e cambão
vulva e pilão, elisa
valise, nurse
pulvis e aldabras, que são?
- Palabras.
26
E máquina
de dor
é de a vapor? brincar
de amarelinha
tem amarelos?
as porteiras do mundo
varas têm?
- Têm conformes. (BARROS, 1966, p.51/52).
Esse é um dos aspectos encontrados na poética da desaprendizagem proposta pelo
poeta: encontrar expressão mais na forma e no ritmo do encadeamento das palavras do que no
conteúdo que elas carregam.
Porém, mais freqüente do que isso, é a tentativa do poeta de retirar a significação
cristalizada de um significante para que se possa possibilitar uma criação. Talvez esta seja a
maior marca da “desaprendizagem”: caminhar entre dois pólos que constituem, quem sabe, o
que ele chama de “didática da invenção” (BARROS, 1993, p.07). De um lado, a
desaprendizagem e o desnomear, desfazer, desinventar; e, do outro, a criação ou a invenção. É
como se a sugestão do poeta em quase toda sua obra reduzisse a desaprender para criar:
“Criar, para mim, começa exatamente no desconhecer”. Por isso é que, mais do que negar a
aprendizagem antecedendo-a com o prefixo des, Manoel irá propor uma poesia que siga,
mesmo, o trilho inverso do aprender.
Sabemos da dificuldade encontrada pelos teóricos da aprendizagem em conceituar e
definir essa atividade tão complexa. Não é intenção deste trabalho abrir uma discussão
detalhada das diferentes visões encontradas na Psicologia da Aprendizagem, nem reduzi-la a
uma prática simplista que se oponha à poética de Manoel de Barros apenas por não apresentar
o prefixo des. De todo modo, situarmo-nos, mesmo que brevemente, nessa discussão, pode
nos ajudar a entender o que é a desaprendizagem do poeta e por que ele a chama assim.
Para Juan Ignácio Pozo (2002) encontramos, ao longo da história, três grandes
enfoques que reúnem as discussões a respeito do aprender: o racionalismo, o empirismo e o
construtivismo. Se, por um lado, o racionalismo, aos moldes do pensamento platônico, limita
à aprendizagem a descoberta de conhecimentos inatos que jazem dentro de nós, no mundo das
idéias, por exemplo, por outro lado, o empirismo encara o conhecimento como puro reflexo
da estrutura do ambiente, limitando a aprendizagem à ação de reproduzir a informação que
recebemos via experiência. Considerado pelo autor um enfoque mais maduro teoricamente, o
construtivismo, pautado mais num pensamento kantiano do que platônico ou aristotélico,
enxerga o conhecimento como uma interação entre a informação dada e o que sabemos a
priori. A aprendizagem, para os construtivistas, consiste num processo de construção a partir
da interação entre a informação nova e o conjunto de informações já adquiridas pelo sujeito
27
até o presente momento da aprendizagem. Embora se suponha, nos três modelos, alguma
reestruturação dos conhecimentos anteriores, o caminho percorrido parece sempre apostar ou
na informação externa somando-se ao conteúdo interno, ou no mundo interno fazendo uma
nova construção a partir da realidade externa. Manoel parece propor que, à poesia, cabe o
papel de fornecer não um estímulo externo que sirva de acréscimo de informação, ou que
facilite uma nova construção do saber, mas, ao contrário da aprendizagem, a permissão ao
leitor de desfazer-se de seu conhecimento habitual, corriqueiro, para alcançar um
esvaziamento de informação. Se, para o construtivismo, aprender consiste num processo de
assimilação e acomodação, a sugestão de Manoel de Barros é justamente incomodar e
desestruturar a linguagem, fazer vacilar o conhecimento existente a priori e questionar a
própria língua.
Seguindo esse raciocínio, podemos comparar o olhar de Barros ao de Alberto Caeiro,
heterônimo de Fernando Pessoa, que diz em “O Guardador de Rebanhos”:
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
9
(PESSOA, 2006, p.72).
Para Rogério Barbosa da Silva, a exemplo do que faz Alberto Caeiro, Manoel de
Barros sugerirá a desaprendizagem do mundo a partir de um novo modo de ver, “...próximo
da ‘coisa’, as coisas sem os mistérios e sem a inteligência que as deforma” (SILVA, 1995,
p.26).
Além de Fernando Pessoa, Manoel de Barros faz alusão a outros artistas que
compartilham com ele de uma desaprendizagem. E faz referência inclusive a James Joyce,
escritor que causou grande impacto na obra lacaniana. Ambos, Pessoa e Joyce, são
homenageados por Manoel de Barros em títulos de livro: O Guardador de águas faz
referência ao Guardador de rebanhos de Fernando Pessoa e O retrato do artista quando coisa
nos remete ao Retrato do artista quando jovem, de Joyce. Manoel de Barros também faz
alusão a Rimbaud quando diz ter colhido no poeta francês uma frase de seu poema: “Perder a
inteligência das coisas para vê-las. / (colhida em Rimbaud)” (BARROS, 1970, p.17). E
mesmo a Guimarães Rosa, quando narra seu encontro com o escritor mineiro:
Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no
9
Grifo nosso.
28
meio da Ilha Lingüística.
Rosa gostava muito de frases em que entrassem
pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no olho das garças.
E completou com Job:
Sabedoria se tira das coisas que não existem
(...)
O que resta de grandezas para nós são os desconheceres --- completou. (BARROS,
1998, p.33).
Guimarães Rosa talvez mereça um destaque especial ao tratarmos do diálogo possível
entre a obra de Manoel de Barros e a de outros grandes artistas. Mais do que aparecer no
poema de Barros como uma possível referência à desaprendizagem, ao “desconheceres” e ao
ato de “tirar sabedorias das coisas”, características marcantes em Manoel, a obra de Rosa
apresentará muitas outras facetas que podemos aproximar dos caminhos percorridos pelo
poeta pantaneiro. A começar pela já citada busca do escritor pela fala do sertanejo, do homem
simples, semi-analfabeto, mas que, como os personagens de Barros, provocam e questionam a
língua. Logo na abertura de Grande Sertão: Veredas, o personagem Riobaldo adverte seu
interlocutor: “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de
opiniães...” (ROSA, 2007, p.24). Contemporâneo de Manoel, embora consagrado pela crítica
algumas décadas antes que Barros, Rosa também usará seus personagens para promover uma
subversão em sua língua natal. Numa busca pela universalização do regional, o autor vai
encontrar em seus personagens um meio de extrair do “sertão” não só belas imagens e
metáforas a respeito do ser e do mundo, como, principalmente, um linguajar original que
produz, aos olhos do crítico lusitano Óscar Lopes, um efeito poético radical: “...o efeito de
ressaca do significado novo sobre o significado corrente.” (Oscar Lopes apud Nicola, 1998,
p.379). Em ocasião da inauguração do Museu da Língua Portuguesa, o poeta concretista
Décio Pignatari (2006)
10
dirá que Guimarães Rosa inventa uma língua e quase inventa um
país dentro de um país. Guardadas suas proporções, inventar uma língua em Rosa pode estar
próximo a buscar o “idioleto manoelês archaico” em Barros. Sobre essa operação, Rolland
Barthes (1971) dirá que os fundadores de uma nova língua, a quem ele se refere como “os
Logotetas”, e entre os quais inclui Sade, Fourier e Loiola, se distinguem não por fundarem
uma nova língua lingüística, uma língua de comunicação, mas, pelo contrário, por
“ilimitarem” a linguagem. Segundo o autor, para fundar, efetivamente, uma língua nova, é
necessário teatralizar. Ele próprio continua o raciocínio: “Que é teatralizar? Não é decorar a
10
Referência retirada do livro que acompanha a edição comemorativa dos 50 anos de Grande Sertão: Veredas
(2007) e que tenta compilar num material gráfico as diversas intervenções expostas na instalação Grande
sertão: Veredas, concebida por Bia Lessa para a inauguração do Museu da Língua Portuguesa, São Paulo,
março 2006.
29
representação, é ilimitar a linguagem.” (BARTHES, 1971, p.11). E é por insistirem nessa
busca pelo o que Manoel chama de “Os deslimites da palavra”
11
que as obras de Barros e
Rosa, em alguns pontos, podem se tocar. Não por acaso, a recriação da linguagem, a
diversidade do uso feito pela palavra, os neologismos, as sinestesias, e outros recursos do
gênero, serão encontrados na obra dos dois artistas. Outra aproximação possível entre os dois
escritores é a busca por uma poesia, um através do poema o outro através da prosa, que se
sustente pelo jogo fônico, pela materialidade sonora dos versos ou frases mais do que pelo
sentido neles contido. Aqui, vale notar as aliterações usadas pelos dois autores, talvez menos
por Manoel do que por Rosa, das quais destacaremos o som que o segundo faz ecoar ao narrar
a marcha de uma boiada no conto “O Burrinho Pedrês”:
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de
dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando (...) A
boiada vai, como um navio. (ROSA, 1968, p.23).
Sem nos atermos aos vários pontos de aproximação entre a obra de Manoel e de
Guimarães Rosa, passemos para outra notável alusão que Barros faz a um artista que
compartilha com ele do processo de desaprendizagem. No poema intitulado “Miró”,
encontrado em Ensaios Fotográficos, o poeta, fazendo clara referência ao pintor catalão, diz:
Para atingir sua expressão fontana
Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas
que aprendera nos livros.
Desejava atingir a pureza de não saber mais nada.
Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo
do quintal à busca de uma árvore.
E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo
que havia aprendido nos livros.
Depois depositava sobre o enterro uma nobre
mijada florestal.
Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de
insetos, cascas de cigarra etc.
A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia
de cores.
Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um
dejeto de mosca deixado na tela.
Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha
escura.
O escuro o iluminava. (BARROS, 2000, p.29).
Ainda sobre Miró, o poeta mexicano Octavio Paz, amigo do pintor, usa, para designar
o movimento da arte moderna em geral, e da arte de Miró em particular, o mesmo significante
usado por Barros para designar o processo de sua poesia:
11
Nome de um dos capítulos que compõem o Livro das ignorãças (1993).
30
A arte moderna foi uma desaprendizagem: um desaprender as receitas, os truques e
as manhas para recuperar o frescor do olhar primigênio. Um dos momentos mais
altos desse processo de desaprendizagem foi a obra de Miró. (PAZ, 1991, p.224)
12
.
Também o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto parece destacar no pintor esse
processo de desaprendizagem quando escreve em seu poema “O sim contra o sim” que:
(...)
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
13
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade;
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se. (MELO NETO, 1997, p.287).
Se Miró usa as tintas e a tela para atingir sua expressão fontana, “o negócio” de
Barros, como foi dito, é a palavra. Para isso, o poeta equivoca os sentidos delas:
Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamentos para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a de equivocar o sentido das
palavras (BARROS, 2000, p.65).
Mesmo no ensino, campo distinto da arte, podemos encontrar espaço para uma
desaprendizagem que, em sua estrutura, se assemelha às propostas dos poetas e pintores
citados acima. Ao falar do percurso acadêmico de um professor, Barthes distingue três
momentos importantes: Primeiramente, há uma idade em que se ensina o que se sabe; em
seguida, vem o momento em que se ensina o que não se sabe, que o autor define como sendo
a pesquisa; por fim, Barthes descreve a que ponto um bom professor pode chegar:
Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar
trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação
dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. (BARTHES, 2007, p.45).
E é justamente uma “desaprendizagem” o que identificamos como a maior
singularidade da obra de Manoel de Barros, ou pelo menos da qual nos ocuparemos na feitura
desta dissertação. O que mais nos interessará no projeto poético de Manoel, será esse processo
12
Grifo nosso.
13
Grifo nosso.
31
de “equivocar os sentido”, “errar a língua”, “desinventar objetos”, “desnomear as coisas”,
“desaprender oito horas por dia”, tudo para, através das “vadias palavras”, ir alargando seus
limites:
Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados
de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras. É botando apelidos,
contando lorotas. É, enfim, através das vadias palavras, ir alargando os nossos
limites. (BARROS, 1985, p.33).
É, portanto, através das vadias palavras que Manoel de Barros coloca em prática sua
desaprendizagem. Muito mais do que acrescer contribuições ao acervo folclórico do Pantanal
ou do país, o negócio de Barros é, através desse mecanismo de desaprendizagem, descascar as
palavras até chegar às sementes delas.
Se “seu negócio é com a palavra”, o uso que ele irá fazer dela, nesse processo de
descascá-la, é bastante peculiar, o que o torna, como declara Fausto Wolff na orelha da quinta
edição de O retrato do artista quando coisa (1998), um poeta incomparável, que está longe
dos demais poetas: “Mais fácil compará-lo a Picasso e De Kooning, os grandes
decompositores de artes plásticas que, como ele, des-essencializavam a forma até torná-la
pura.” Nessa perspectiva de que é mais fácil comparar Barros a Picasso e De Kooning do que
a outros poetas, lembremos de Luciete Bastos (2003)
14
que, ao falar do poeta, faz alusão a
uma litografia de Picasso,
14
Wanessa Cruz (2009), em apresentação de sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Minas
Gerais (inédita), faz referência à mesma obra de Picasso.
32
Figura 1. Pablo Picasso, Os 11 estados progressivos da litografia, O Touro,1945.
15
Picasso, aos poucos, retira do touro suas linhas supérfluas e a imagem vai perdendo a
cobertura, ou “a casca”, que a deixa em conformidade com a imagem comum, “imagem
acostumada” que a palavra TOURO nos remete. A figura é cada vez mais apresentada por
linhas imprescindíveis para a litografia, que parecem nos levar mais ao esboço de um touro do
que a imagem real do animal. Essa decomposição pode ser encontrada também na obra do
outro artista plástico citado por Fausto Wolf. Em proporções e estilo diferente de Picasso, o
pintor holandês Willem de Kooning apresenta, em 1947, um quadro
16
sem título que sugere a
presença de duas mulheres:
Figura 2. Sem título, 1947. Óleo em papel. 20 x 16 polegadas. Coleção particular.
Dois anos depois, em 1949, observamos, em uma tela de De Kooning intitulada
Woman, uma mulher que se apresenta ainda mais desconfigurada do que na primeira tela
citada:
15
Imagem retirada de “Fernand Mourlot, lithographe: Le Taureau de Picasso” disponível no site:
http://mourlot.free.fr/fmtaureau.html
(ACESSO 05/05/09)
16
Imagens retiradas de “Craig F. Starr Gallery”, disponível no site: http://www.starr-
art.com/exhibits/deKooning_Women/index.html (ACESSO 26/11/2009)
33
Figura 3. Mulher, 1949. Óleo em tela com esmalte e carvão. 60 1/2 x 48 polegadas. Coleção particular.
Finalmente, em 1951, quatro anos após a primeira tela referida, o pintor volta a
desenhar duas mulheres (Two Women); dessa vez, ainda mais decompostas do que as outras e
que, aos moldes do touro de Picasso, revelam-se apenas por linhas e traços básicos à figura:
Figura 4. Duas Mulheres, c. 1951. Lápiz em papel. 14 x 17 polegadas. Coleção particular.
34
Não só “os grandes decompositores das artes plásticas” apresentam essa
particularidade de revelar suas figuras através de traços essenciais, como também Manoel de
Barros tempera algumas de suas obras com desenhos próprios que se sustentam no traçado,
nas linhas imprescindíveis.
Figura 5. Desenhos de Manoel de Barros
17
A escrita de Barros e, principalmente, sua poética da desaprendizagem, apóia-se em
um movimento de decomposição semelhante ao que vimos nas artes plásticas, seja através de
Picasso ou De Kooning, seja ainda no próprio traçado de Manoel. O poeta retira dos seus
versos as palavras supérfluas e acostumadas para alcançar o que ele considera essencial, num
caminho que ruma, como foi assinalado, à pureza da forma. Mas, se Picasso e De Kooning
atingem a pureza no descascamento, na decomposição ou des-essencialização da imagem de
um touro ou de uma mulher, como Manoel descasca sua palavra? Qual pureza o poeta
pretende alcançar com sua arte? O que está no alvo de sua poética da desaprendizagem?
A hipótese é que a decomposição da linguagem contida na obra de Manoel de Barros
caminhará em direção ao que a psicanálise lacaniana chamará de letra. Assim como
indicamos que os desvios literários perseguidos por Barros são possibilitados pela
manipulação da lalíngua que sustenta a linguagem, sua desaprendizagem exercerá sua
verdadeira função através da transmissão que a letra, por se distanciar do campo simbólico da
articulação significante, possibilita. Nessa empreitada, também nos será útil a crítica literária
de Barthes que nos possibilitará identificar na obra de Manoel um exercício poético que
privilegiará mais o trabalho e a produtividade da significância do que os efeitos da
significação. Essas referências nos guiarão na pesquisa a respeito do lugar reservado na obra
17
Imagens retiradas da obra de Manoel de Barros O Livro das Ignorãças (1996, p.7 e p.73).
35
de Barros à semente (ou nudez) da palavra, tão constantemente almejada por sua
desaprendizagem.
36
3 A LETRA E A DESPALAVRA
Como foi antecipado, para nos ajudar na discussão a respeito do funcionamento da
poética da desaprendizagem de Barros, recorreremos inicialmente ao uso que Lacan faz da
lingüística para pensar o inconsciente, destacando, principalmente, a teoria que o autor faz
avançar a respeito da letra. Para tanto, traremos a tona uma discussão psicanalítica que nos
ajudará a analisar e comentar diversos pontos da desaprendizagem de Barros.
Em 1957, no texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”,
Lacan tentará extrair de A Interpretação dos Sonhos as leis do inconsciente. Para isso, lançará
mão não só do texto de Freud (1900), como também do curso de Ferdinand Saussure (1996) e
dos conceitos de significante e significado que constituem o algoritmo fundador da
lingüística. Vale lembrar que a opção lacaniana de pensar o inconsciente freudiano a partir das
leis da linguagem não pode ser, de maneira alguma, considerada um capricho. A própria obra
de Freud contempla o tema e sugere uma influência do significante na formalização do que
viria ser o inconsciente para a Psicanálise. Não só a condensação e o deslocamento, presentes
no “Capítulo VI” da Traumdeutung (1900), apresentam uma articulação significante que,
como veremos, pode ser comparada à metáfora ou à metonímia, como também a própria
técnica freudiana da associação livre sugere que algo da cadeia significante opere no
inconsciente. Além da interpretação dos sonhos, as teorias sobre a formação do sintoma, os
chistes, os lapsos ou o recalque, embora não se valham do termo, apresentam, da mesma
maneira, uma lógica que parece antecipar a teoria lingüística do significante.
Todavia, é em um trabalho considerado pré-psicanalítico que encontramos uma
ligação ainda mais estreita entre as formulações freudianas e a articulação significante. O
“Apêndice C” do texto O inconsciente (1915) apresenta um pequeno fragmento daquilo que
teria sido a monografia de Freud sobre as afasias, escrito em 1891. Nele, encontramos
algumas considerações a respeito das palavras e das coisas que vale a pena citarmos em nossa
discussão. No texto freudiano, a “palavra” é considerada a unidade da função da fala e é
definida como sendo uma “apresentação complexa” que combina elementos auditivos, visuais
e cinestésicos. A palavra adquiriria seu “significado ligando-se, através de sua imagem
sonora, a uma “apresentação do objeto” (ou, como sugere o editor, “uma representação da
coisa”), que, por sua vez, consistiria em outro complexo de associações formado por uma
grande variedade de apresentações visuais, acústicas, táteis, cinestésicas, etc.. A relação entre
a apresentação da palavra e a apresentação do objeto é descrita, então, como uma operação
37
“simbólica” que participa da aquisição da linguagem nos seres humanos. O que no texto é tido
como a “imagem sonora da palavra” – mas que também pode ser lido hoje como a “imagem
acústica” ou, simplesmente, como “significante” – se liga a outras “imagens sonoras”
formando o que Freud designou “discurso encadeado”. Essas considerações pré-psicanalíticas
nos ajudam a compreender que, a exemplo do que lembra Lacan (1957, p.448), as leis
presentes nas teorias a respeito dos sonhos, dos chistes, das psicopatologias da vida cotidiana,
enfim, do inconsciente, revelam que Freud antecipa as leis que Ferdinand Saussure só iria
trazer à luz alguns anos mais tarde.
É por acreditar nessa antecipação freudiana da teoria de Saussure que Lacan retoma a
fórmula lingüística que propõe pensar o signo como uma unidade que associa um significado
(s) – um conceito –, a um significante (S) – uma imagem acústica; essa última designando,
portanto, a marca psíquica do som material, ou a representação fornecida pelo testemunho dos
sentidos. Esses dois elementos, significado e significante, formariam, então, uma entidade
psíquica (s/S), ficando intimamente unidos e postulando-se um ao outro. Em texto
18
estabelecido pelo menos alguns anos mais tarde do que os textos freudianos citados até agora,
Saussure (1996), ao abordar a relação existente entre uma imagem acústica e um conceito, irá
desenvolvê-la de forma a expor duas características consideradas primordiais à entidade
psíquica denominada por ele mesmo de signo lingüístico. A primeira característica diz
respeito à arbitrariedade do signo, que significa dizer que não há nenhum elo intrínseco,
natural ou inevitável entre o significante e o significado. Outra característica, que será
essencial para a distinção lacaniana entre a letra e o significante, é o princípio de linearidade
do significante, ou seja, o significante, por ser de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo e
ao tempo vai buscar as suas características. Isso faz com que ele se disponha em linha, e
forme uma cadeia: um significante (S1) se liga a outro (S2). Essa cadeia fará com que a
significação de um elemento seja dada pela sua relação com os outros elementos, ponto
fundamental na diferença entre a letra e o significante.
A proposta de Lacan é de desfazer essa unidade saussuriana, separando e distanciando
o significado do significante, o que dá maior autonomia e maior possibilidade de articulação a
este último. Além disso, Lacan inverte a posição respectiva do significante e do significado,
procurando, com isso, destacar a primazia do significante sobre o significado, dizendo que
“fracassaremos (...) enquanto não nos tivermos livrado da ilusão de que o significante atende à
18
Curso de lingüística geral (1916), estabelecido por Charles Bally e Albert Sechehaye a partir de notas de
alunos de Saussure.
38
função de representar o significado” (LACAN, 1957, p.501). O significante, então, sempre se
antecipa ao sentido, precedendo e determinando, portanto, o significado.
Porém, Lacan (1957) insistirá na barra que separa o ‘S’, significante, do ‘s’,
significado (S/s); barra essa que deixa de indicar uma relação para dizer de uma separação de
ordens diferentes, o que, novamente, vai reforçar a autonomia do significante em relação ao
significado. Dizer que há uma separação entre significante e significado não anula a
articulação entre eles. Pelo contrário, a distância entre eles, e, conseqüentemente, a autonomia
significante, permite uma relação ainda mais ampla, produzindo possibilidades infinitas de
sentido na articulação entre um e outro, articulação que, para Lacan (1953), equivale à própria
estrutura da linguagem.
É, portanto, a partir dos textos de Freud e Saussure que Lacan irá tratar do
inconsciente sob a perspectiva da lingüística, e o designará como que constituído pelo
significante, equivalendo “as leis do inconsciente” às duas formas de articulação dos
significantes: a superposição de significantes, que constitui a metáfora, e o transporte da
significação, demonstrado pela metonímia. Podemos entender a metáfora como equivalente
ao que Freud (1900) chamou de condensação e a metonímia ao deslocamento. Se a articulação
entre significante e significado é o equivalente da própria estrutura da linguagem, e as duas
formas de articulação do significante são designadas como “leis do inconsciente”, é porque,
para Lacan, o inconsciente é estruturado aos moldes de uma linguagem.
Temos, portanto, uma subversão no signo lingüístico, principalmente, ao supormos
que o significante antecipa o sentido e o determina. Dessa forma, a teoria lacaniana reforça
ainda mais o fato de que o significante não designa um conceito, não dá nome a alguma parte
do real ao qual é referência. O significante apenas representa e uma representação não
consiste em significar um referente
19
. Uma representação só pode ser representação de um
significante para outro significante. Para ilustrar esse papel do significante de representar
sempre um significante para outro significante, Lacan (1964), no livro XI de seu Seminário,
19
No ponto em que estamos, vale lembrar a noção de “referência” de Gottlob Frege. Numa época anterior a
Saussure, Frege (1891/1892) elabora concomitantemente a suas investigações matemáticas e lógicas, uma
filosofia da linguagem. Nela, o autor designa como “sinal” o que ele desenvolve como sendo o nome próprio
dos objetos. Assim, o “sentido” para o autor designará o modo de apresentação do sinal e a referência dirá
respeito ao objeto que o sinal ou “nome próprio” designa, sendo que nos casos em que esse objeto [a
referência] não for sensorialmente perceptível, deverá, por ser uma imagem interna, ser chamada de
representação. De qualquer maneira, os termos referência e representação aparecem na lógica de Frege como
se fossem um pedaço do real que o significante [ou sinal] referencia. Temos então que 2 + 2, embora siga um
pensamento [um sentido] diferente de 2 x 2, obtém o mesmo referente que o último, a saber, o valor
representado pelo numeral 4. Tanto o termo “representação” quanto “sentido” serão usados no restante do
presente trabalho de maneira distinta ao uso que Frege fará dos mesmos. Já o termo “referente”, pouco usado
em nosso texto, nos remeterá, esse sim, propriamente a obra de Frege.
39
recorre à hipotética descoberta de uma pedra coberta de hieróglifos num deserto. As marcas
revelam que algum sujeito esteve ali inscrevendo cada um daqueles significantes na pedra,
mas tão certo quanto isso é o fato de que essas marcas não foram endereçadas ao sujeito que
os encontrou, possivelmente desconhecedor daqueles hieróglifos. Pelo contrário, a única razão
que leva o sujeito a encarar os hieróglifos como significantes, é o fato de ele supor que cada
um desses significantes se reporta a cada um dos outros significantes, e não ao sujeito. Sendo
mais preciso, é a conexão dos significantes, a cadeia que formam, que produz o efeito de
significação, e não a conexão entre um significante e um significado ou referente.
É por isso que, em “A subversão do sujeito e a dialética do desejo”, Lacan (1960) vai
dizer que o Outro, com O maiúsculo, é o lugar do tesouro do significante, e não um código,
pois nele não se conserva a correspondência unívoca entre um signo e “alguma coisa”. Se o
código sugere uma correspondência unívoca, a cadeia significante indica uma reunião
sincrônica e enumerável de significante, na qual eles se sustentam pelo princípio de oposição
a cada um dos outros. Em outros termos, a cadeia não se esgota, um significante sempre nos
remete a outro significante o que, por sua vez, faz com que a significação também não possa
parar. Se, como propõe Lacan (1957, p.505), somente as correlações do significante com o
significante fornecem o padrão de qualquer busca de significação, essa se sustenta sempre
pela remissão a uma outra significação.
Todavia, se a significação não cessa de se deslocar sobre a cadeia, nem por isso
podemos dizer que nenhum efeito de significação seja possível. Para Jean-Luc Nancy e
Philippe Lacoue-Labarthe (1991)
20
, a solução desse enigma está no que Lacan chamou de os
pontos de bastas [points de capiton]. Os pontos de bastas consistem em determinados lugares
da cadeia em que o significante interrompe o deslizamento do significado como que por um
fenômeno de pontuação, constituindo assim, mesmo que temporariamente, uma significação
como um “produto acabado”. O efeito de significação que a cadeia significante produz,
portanto, não se encontra preso a um elemento isolado da cadeia.
As conseqüências de se pensar o inconsciente estruturado como uma linguagem
extrapolam a dimensão significante alcançando a órbita de outro termo lacaniano que muito
nos interessará. Se Lacan faz uma nova leitura do signo saussuriano, demonstrando a
autonomia significante e reforçando a tese da linearidade de que o significante só pode
representar algo para outro significante, o autor avança ainda mais essa discussão quando
20
Autores de O Título da letra, obra citada por Lacan no Seminário XX. Nesse mesmo seminário, além de
aconselhar a leitura do livro, Lacan, embora fazendo algumas objeções a respeito do conteúdo das últimas
páginas da obra, diz não ter sido nunca tão bem lido quanto foi pelos referidos autores. O livro é uma leitura
do texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, escrito por LACAN em 1957.
40
propõe sua perspectiva para o problema da letra. Enquanto o significante se caracteriza por
representar um sujeito para outro significante, a letra não representa nada, é o próprio
significante sem significado, desprovido, portanto, de significação.
Em “O seminário sobre a carta roubada”, Lacan (1956) demonstrará, a partir de um
conto de Edgar Alain Poe (2007), a materialidade que se deve atribuir à letra. No conto, a
carta recebida pela rainha é interpretada pelo ministro como uma carta de conteúdo secreto, o
que se deve aos efeitos que a mesma causa a Sua Alteza. Percebendo o valor do documento, o
ministro, com habilidade, troca a carta secreta por outra que trazia no bolso, sem que o rei
percebesse. Porém, faz tudo isso aos olhos da rainha. A posse da carta empresta um poder ao
ministro que a rainha logo tenta destituir contratando a polícia para recuperar o objeto
roubado. A polícia, assim como o rei, não enxerga a carta, que está, justamente, no ponto
menos oculto da casa do ministro. O Chefe de Polícia recorre a Dupin, que visita o ministro e
enxerga a carta. Dupin, então, prepara uma falsa confusão na rua que leva o ministro à janela
de sua casa enquanto ele, a exemplo da primeira cena, troca as cartas de lugar. A carta agora
está com Dupin, detendo um poder sobre o Chefe de Polícia, que se sente obrigado a pagar
um preço pelo resgate do papel.
A carta baliza todo o enredo do texto, emprestando ou retirando poder a cada um dos
personagens, sem que o leitor saiba qual é sua mensagem. A carta (em francês escrito da
mesma maneira que a letra [lettre]) gera seus efeitos independentemente do significado, do
sentido que carrega em seu conteúdo. É a carta enquanto materialidade, enquanto objeto, que
provoca efeitos diferentes de acordo com a posição que ela ocupa no conto. É nessa vertente
que Lacan fará uso da homofonia francesa entre as palavras carta e letra. A letra, assim como
a carta (não só a carta do conto de Poe), ultrapassa sua função de transmitir a mensagem. Para
Mandil (2003), no conto, isso se apresenta com maior evidência quando refletimos que a carta
causa seus principais efeitos depois que sua mensagem já chegou à sua destinatária. Mesmo
que a carta tenha cumprido sua função de transmitir a mensagem à rainha, seus efeitos não
param; pelo contrário, é aí que se impõem ainda mais fortemente.
E é por se dar conta de que a carta não se limita à sua função mensageira que Dupin
pode encontrar o papel. O detetive de Poe antevê a materialidade da carta, e daí a enxerga
como um objeto manipulável, possível de ser rasurada, rasgada, virada ao avesso. Seguindo o
exemplo lacaniano e aproveitando a homofonia francesa entre a carta e a letra, podemos,
desde já, prever em quê a noção lacaniana de letra pode nos servir no estudo da obra de
Manoel de Barros. Assim como o detetive Dupin, que era poeta nas horas vagas, Manoel
também sabe da materialidade da carta/letra e por isso a manipula, empresta a ela outra
41
aparência, revira a palavra como o ministro revirou a carta, troca a letra de lugar como Dupin
faz no fim do conto. Manoel de Barros, como verdadeiro poeta que é, sabe que a letra pode se
destacar do seu contexto, deslocar de seu significado habitual. Sabe que um substantivo pode
ocupar o lugar de um verbo e um verbo que serve para captar um estímulo auditivo pode
servir para captar um estímulo visual: “Eu escuto a cor dos passarinhos.” (BARROS, 1993,
p.15). A carta/letra de Poe compartilha dessa capacidade e se desloca, se destaca, se
transforma, e a polícia, assim como o leitor mais desatento de Manoel, não sabe o que fazer
com a carta/letra, resiste a seus efeitos, embora a tenha ao alcance das mãos. Como lembra
Mandil (2003), esse é o sentido da citação lacaniana de Joyce: a letter, a litter: a letra não é só
mensagem, é também lixo, materialidade que se joga fora depois de consumida a mensagem.
Mas jogar fora não implica abrir mão do gozo que ela pode causar. E poetas como Manoel de
Barros sabem muito bem aproveitar esse material residual.
Convém lembrar, também, outra ocasião na qual Lacan (1985) chamará a atenção pra
essa materialidade da letra, usando como exemplo o objeto carta. É quando diz das cartas de
Gide queimadas por sua prima-esposa Madeleine Rondeaux. Mais uma vez percebemos que a
carta/letra não se limita à mensagem que carrega. Fato já observado por Lacan (1956) em “O
seminário sobre a carta roubada”, a carta não é usada pelos amantes apenas para fazer chegar
uma mensagem. Isso se torna explícito quando diante de um desfecho amoroso ocorre a
devolução, ou mesmo, como no caso de Gide, a destruição das cartas. Ao destruir as cartas
que Gide a havia encaminhado, Madeleine destrói o que ela própria tinha de mais precioso,
mas que também era o que mais podia fazer Gide lamentar. As possivelmente belas
mensagens da carta
21
são substituídas por um ato de Madeleine: a destruição das mesmas.
Assim como na carta roubada do conto de Poe, a mensagem não é decisiva para os efeitos
causados pela marca da carta/letra. Se o efeito da carta se restringisse à mensagem, não teria
nenhum valor sua destruição, uma vez que a mensagem já havia sido transmitida: Madeleine
havia lido todas as cartas antes de destruí-las.
A letra, portanto, pelo menos nos textos lacanianos citados até o presente momento,
corresponde à face real do significante. E, por isso, ainda se encontra dentro dessa dimensão
significante, funcionando como seu suporte, o que a torna comparável ao objeto material da
carta, que também suporta uma mensagem. Também no já citado texto “A instância da letra
ou a razão desde Freud”, a letra ainda é designada como um “suporte material que o discurso
concreto toma emprestado da linguagem” (LACAN, 1957, p.498). A letra, aqui, será
comparada ao caractere tipográfico e se apoiará na distinção já evocada entre o significante e
21
“Talvez nunca tenha havido correspondência mais bela...” (GIDE apud LACAN, 1958, p.773).
42
o significado. A letra seria como o caractere tipográfico sem o sentido ou o significado que
pode compor. Essa posição justifica a fala de Miller de que a letra presentifica o que descola o
significante do significado, ou de que a letra é o termo usado por Lacan para designar “o
significante despojado de qualquer valor de significação” (MILLER, 1996, p.97). Nesse
sentido, a letra seria o significante depurado de seu significado e localizado na sua
materialidade.
Embora a letra, mesmo enquanto suporte material do significante, sempre nos remeta a
algo do real, destacado da dimensão significante, sua materialidade totalmente independente
do sentido veiculado e do jogo entre significante e significado aparece com mais força na obra
lacaniana a partir do Seminário XVIII (1971) e do artigo “Lituraterra” (1971), recebendo
grande ênfase também no Seminário XX (1972-1973). Vale lembrar que, como aponta Ram
Mandil (2003), essa distinção entre letra e significante talvez tenha sido propositadamente
indiferenciada por Lacan, principalmente nos textos que antecedem a década de setenta.
Em “Lituraterra” (1971), a letra ganha outros contornos. O título do artigo será
resultado de um jogo com as palavras onde, a exemplo de um poeta, Lacan cunhará, a partir
dos termos em latim litura e de sua raiz lino, um neologismo que parece se opor à palavra
literatura. Lituraterra seria, portanto, a literatura da rasura (litura), o escrito do rabisco, da
marca que nada representa. Desenvolvido no mesmo ano de 1971, o Seminário XVIII terá
como meta encontrar um discurso que não esteja sustentado pelo semblante próprio à
dimensão simbólica. Nessa busca lacaniana, que fará parte da nossa discussão no terceiro
capítulo, o escrito vai se apresentar como uma saída possível justamente por se apoiar na letra,
enquanto que a fala se caracterizaria pelo uso do significante. A letra então receberá cada vez
mais uma dimensão real destacada não só de uma mensagem que possa suportar, mas também
de qualquer referência ao simbólico. A metáfora da carta que suporta uma mensagem é
substituída pelo sulco, pela rasura que suporta a marca. A letra é marca, é rasura que nada
representa. Diferentemente do significante, a letra se detém. Ela delineia um litoral entre o
simbólico e o real, desenhando a borda do furo no saber. É litoral que vira literal. Litoral este
que se situa entre centro e ausência, entre saber e gozo. A letra, portanto, se encontra fora do
jogo representativo, não representa; pelo contrário, se detém em sua própria materialidade.
Não forma cadeia, marca. Não engendra um sentido, faz furo. Assim, a letra vai aos poucos
deixando de ser apenas suporte material de uma mensagem para ser entendida também como
materialidade desconectada de qualquer sentido, o que, principalmente no Seminário XX
(1972-1973), será ilustrado pelo matema, mais do que pela carta.
43
Sem avançarmos demais nessa discussão a respeito da letra enquanto matema e das
conseqüências que Lacan retirará disso no âmbito da transmissão, meta do nosso próximo
capítulo, voltemos ao nosso principal objeto de estudo: a letra em Manoel de Barros. Ao
sugerir uma poética que se desenvolva a partir de uma desaprendizagem, que retira do texto a
significação ordinária e propõe um esvaziamento do sentido, podemos dizer que Manoel
busca alcançar algo da letra, da palavra “despida” de sua significação. Assim como a carta de
Poe se sustenta por sua materialidade, colocando em segundo plano sua mensagem, a poesia
de Manoel de Barros dará um tratamento semelhante à palavra. A palavra na obra de Barros
será manipulada de tal forma que sua materialidade ganhe força em detrimento de seu
significado, em detrimento da mensagem que comumente ela veicula. Esse raciocínio é que
nos fará prosseguir na hipótese de que, sem querer reduzir a obra do poeta a uma fórmula
psicanalítica, a poética da desaprendizagem pode ser encarada como uma tentativa de fazer o
significante funcionar como letra. A obra de Barros será marcada por essa busca em operar
com o significante em sua materialidade, lá onde ele se encontra em dissonância com a cadeia
significante em que ele está introduzido, produzindo um texto que, a exemplo do que Julia
Kristeva (1974) irá dizer a respeito da linguagem poética, é estranho à própria língua, não
condiz com a lei que rege o sistema lingüístico “cotidiano”. Por variadas vezes, a poesia de
Barros desloca um significante da cadeia que o regula e que o faz representar um significante
a outro significante, buscando, dessa maneira, atingir a materialidade própria da letra. É assim
que podemos observar que, ao invés de descrever os objetos a partir de seus conhecimentos, o
poeta prefere desinventá-los para que surja o novo:
Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear.
Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma. (BARROS, 1993, p.11).
Esse esvaziamento do significante, desvinculando-o do significado, tirando o sentido e
o “idioma”, e apontando, justamente, para o fora-do-significante, para o sem-sentido, pode ser
lido como uma busca do poeta por um significante que fizesse função de letra, um significante
despojado de qualquer idioma, de qualquer valor de significação. No poema acima, podemos
ver o poeta buscar por algumas palavras que estejam, justamente, desprovidas do idioma;
desprovidas, por que não dizer, de representações. É a busca de Manoel por significantes
carentes de um significado, carentes do sentido normal das palavras, carentes de um sentido
que pudesse, por exemplo, ser compartilhado em nossos dicionários.
Como vimos no primeiro capítulo, Barros chamará esse uso da palavra deslocada da
cadeia significante de “um desvio” próprio aos bugres. Também a chamará de um
44
“descomportamento semântico” (BARROS, 2000, p.65), nos indicando que o golpe de sua
poesia, como veremos, é dado, principalmente, no sentido que a palavra tenta veicular, em seu
semantismo. Em outras palavras, a poesia de Barros se desvia é do sentido. Destarte, o
significante, muitas vezes, é preservado – mas nem sempre; existem neologismos na obra do
poeta –; porém, mesmo quando preservado, o significante se encontra numa posição em que
se abstém ao que Manoel chama de sentido normal, obrigando, então, que a palavra receba
uma nova função, uma “finalidade” que rompa com o sentido cotidiano e lhe empreste um
“comportamento lingüístico” novo:
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento lingüístico que não ofende a natureza dos
passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo. (BARROS, 2000, p.65/66).
É hora de introduzirmos outra discussão que nos ajudará não somente a pensar a
significação que o uso da letra tenta excluir, como também a pensar como o processo de fazer
o significante funcionar como letra pode, ao invés de fechar uma significação, “abrir um
leque”
22
, o que faz com que um texto como o de Manoel de Barros possa se enriquecer de
uma infinidade de sentidos. Para isso, antes de voltarmos a Lacan, recorreremos a algumas
considerações do semiólogo e crítico literário Roland Barthes e a relação que suas críticas
podem ter com a obra de Manoel. Antes de explorarmos a oposição feita pelo autor entre
significação e significância – que mais nos interessará – vale recorrer a outras oposições
presentes em sua obra que nos ajudarão a localizar o texto de Barros na crítica barthesiana.
Não estando à procura do envio de uma mensagem: “Não queria comunicar nada. Não
tinha nenhuma mensagem” (BARROS, 1996b, p.325), a poesia de Manoel de Barros
aproxima-se do que Barthes (1987) chama de texto de gozo, ou, de acordo com algumas
traduções, texto de fruição (jouissance, em francês). O semiólogo francês, em O prazer do
texto, chama de texto de gozo aquele que põe em estado de perda, desconforta, faz vacilar as
bases históricas, culturais e psicológicas do leitor, faz entrar em crise sua relação com a
linguagem. Dez anos antes, Barthes (2007) já havia separado duas classes de escritores, a que
chama de “o escritor” propriamente dito e a que chama de “o escrevente”. Segundo o autor, o
material comum do escritor e do escrevente é a palavra; lembremos: “o negócio” de Manoel
de Barros. Porém, se o escrevente usa a palavra como um meio para atingir algum fim, como
22
Referência à fala de Lacan (1972-1973) sobre “significância”, assunto ao qual passaremos a discorrer.
45
um instrumento para transmitir uma mensagem, o escritor usa a palavra como seu próprio fim.
A palavra, para o escritor, não é um instrumento nem um veículo, não põe termo à
ambigüidade do mundo; pelo contrário, o interroga. Poderíamos localizar o texto de gozo do
lado do escritor, mas como alerta o próprio Barthes, essa distinção entre escritores e
escreventes não é estanque e raramente é pura, “...cada um hoje se move mais ou menos
abertamente entre as duas postulações, a do escritor e a do escrevente;” (BARTHES, 2007,
p.37-38). Em um suplemento ao livro Prazer do Texto, Barthes também faz uma ressalva à
oposição entre texto de gozo e texto de prazer, dizendo que essa distinção
...só é verdadeira em certos limites, que o são de modo algum referenciais, mas
discursivos. (...) Não esperem desse osso que contenha a mínima medula, não o
interroguem sob a relação das obras, da história. (BARTHES, 2004, p.259).
Ainda que essa distinção só seja verdadeira em certos limites, é de se considerar que a
poesia de Manoel de Barros traz muito mais um estado de desconforto, próximo da descrição
barthesiana do texto de gozo, do que uma prática confortável de leitura. Esse desconforto é o
que possibilita ao leitor de Manoel de Barros deparar-se com algo da ordem do
estranhamento, sem significação, do in-dizível próprio do gozo. E é a esse caminho – ou
atalho – que a desaprendizagem de Manoel de Barros nos conduz: ao rumo mesmo desse in-
dizível, dessa falta do sentido.
Para Barthes (2004), o sentido, embora um conceito muito geral e pouco preciso, ainda
é tido, a partir do esquema de Saussure, como a união entre um significante e um significado.
Barthes destaca três regimes antropológicos do sentido: a polissemia, existência de vários
sentidos para a mesma mensagem, ou seja, vários significados para o mesmo significante; a
monossemia, que seria um regime patológico onde todo significante e toda mensagem
comportaria um só sentido; e a assemia, que é a busca pela isenção do sentido. O autor ainda
alerta que a assemia não tem a ver com o absurdo, pois o absurdo é um sentido, e a assemia
seria um estado ainda mais difícil de realizar, pois é um vazio de sentido, ou melhor, um
sentido lido como vazio. Este estado é realizado por três práticas; a saber, pelas linguagens
formalizadas tais como a matemática e a lógica, pelas experiências místicas, como o zen
budismo, e por algumas vanguardas literárias.
23
Como exemplo de assemia, Barthes cita a
obra de Lautréamont
24
dizendo ser esta “...uma experiência de assemia ou de procura de um
23
O autor lembra ainda que “...os teóricos do zen entenderam muito bem que a tarefa mais difícil do mundo não
é dar sentido (fazemos isso naturalmente), mas, ao contrário, retirar o sentido...” (BARTHES, 2004 , p.119)
24
Segundo Leyla Perrone-Moisés (2000, p.85), Isidore Lucien Ducasse, conhecido como Conde de Lautréamont,
foi, apesar de cronologicamente anterior, uma das influências literárias mais fundamentais à Vanguarda
Literária Européia, principalmente ao movimento surrealista. O escritor, ainda segundo Perrone-Moisés, foi
46
discurso que esteja de algum modo desipotecado do sentido ou, em todo caso, do antigo
regime de sentido.” (BARTHES, 2004, p.121). Podemos encontrar no texto de Manoel de
Barros essa mesma sugestão de se chegar a um discurso desipotecado do sentido ou do antigo
regime do sentido:
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém. (BARROS, 1989, p.299).
Manoel evidencia sua recusa ao sentido normal das palavras quando, por exemplo, em
Arranjos para Assobio, propõe um “Glossário de transnominações em que não se explicam
algumas delas (nenhumas) – ou menos”. Aproveitando da estrutura de um dicionário comum,
o poeta fará uma subversão no seu Glossário, buscando, como antecipa seu título, a não
explicação das palavras. Ao invés de oferecer um significado que participe efetivamente de
nosso léxico, um complemento ao qual a palavra já esteja acostumada, o que o poeta fará será,
justamente, varrer de seu Glossário os sentidos comuns das palavras para oferecer ao leitor
sentidos outros a partir do que ele chamou de transnominações:
Lesma. S.f.
Semente molhada de caracol que se arrasta
sobre as pedras deixando um caminho de gosma
escrito com o corpo
Indivíduo que experimenta a lascívia do ínfimo
Aquele que viça de líquenes no jardim (BARROS, 1980, p.214/215/216).
Ao comparar a poesia de Manoel de Barros às composições para piano do músico
francês Erik Satie na orelha do Livro de Pré-coisas, Ênio Silveira diz da variabilidade de
sentidos contidos em cada palavra da poesia de Barros:
Com extraordinária economia de meios e enganosa simplicidade formal, ambos nos
revelam aos poucos, de mansinho, assim como quem não quer, denso e recôndito
universo interior de refinada sensibilidade, onde cada palavra e cada nota têm
sempre pelo menos mil sentidos possíveis além daquele que de pronto se evidencia.
(Ênio Silveira, orelha do Livro de Pré-Coisas, de Manoel de Barros).
Equivocar os sentidos possibilitando mil sentidos possíveis além daquele que de
pronto se evidencia, sugerir novos regimes para o sentido, ou atingir essa experiência de
assemia, parece uma forma, ou várias, de privilegiar o que Barthes chama de significância em
autor de uma obra irônica, imaginativa e transfiguradora que, mais do que a busca pelo sentido, explorava
coisas como o encontro de objetos aparentemente disparatados.
47
contraposição à significação. A significação, para Barthes (2004), está do lado do que Manoel
de Barros chama de palavra acostumada, do sentido normal. A significação, portanto, seria o
aprisionamento de um significante a um significado gerando um regime de sentido fixo, um
produto. Atingir algum efeito de significação, portanto, seria interromper o deslizamento do
significado sobre o significante, extraindo dessa operação uma significação que tanto Barthes
como Lacan chamam de “produto acabado”
25
. Já a significância traria para o texto uma nova
dimensão, a dimensão da produtividade, que desipotecando o discurso do sentido, ou do
antigo regime do sentido, traz a possibilidade de um trabalho. Se o texto é uma prática
significante, a significância é a maneira pela qual o texto revela esse trabalho, teatraliza esse
processo. O texto trabalha a língua, e é sua função mostrar esse trabalho, desestruturando a
linguagem e buscando reconstruir uma nova língua – por que não, o “idioleto manoelês
archaico”. É a revelação desse trabalho que encontramos no Glossário de Manoel,
Sol, s. m.
Quem tira a roupa da manhã e acende o mar
Quem assanha as formigas e os touros
Diz-se que:
se a mulher espiar o seu corpo num ribeiro florescido de sol, sazona
Estar sol: o que a invenção de um verso contém
Árvore, s. f.
Gente que despetala
Possessão de insetos
Aquilo que ensina de chão
diz-se de alguém com resina e falenas
Algumas pessoas em quem o desejo é capaz de irromper
sobre o lábio, como se fosse a raiz de seu canto (BARROS, 1980, p.214/215/216).
A oposição entre significância e significação na obra barthesiana se aproxima do
ensino lacaniano sobre esse mesmo tema. Embora Lacan se dê conta de que a significação
remete sempre à significação
26
, localizará essa operação do lado da “pontuação”, dizendo que
a significação, ou pelo menos o efeito de significação, pode se constituir como “produto
acabado”. No Seminário XX, o autor irá dizer que a significância é algo que se “abre em
leque”. Enquanto a significação se constitui como “produto acabado”, interrompendo o
deslizamento do significado sobre o significante e fechando um sentido, a significância, pelo
contrário, se abre.
Como exemplo de significância, Lacan (1972-1973, p.30) lembra a expressão francesa
à tire-larigot, traduzida por M.D. Magno por à beça. Segundo Lacan, se buscarmos no
25
Vide Lacan (1960, p.820) e Barthes (2004, p.271).
26
LACAN, 1966, p.354.
48
dicionário a expressão citada, encontraremos “coisas novas” e distintas, quem sabe até “um
senhor chamado Bessa” de quem a expressão derivou. Porém, nenhum dos significados
parece aprisionar o que quer dizer à tire-larigot. Para Lacan, a pergunta sobre o que quer
dizer essa expressão, assim como outras expressões chamadas por ele de extravagantes,
continua. Seguindo esse raciocínio, ele responderá à pergunta sobre o que é a significância
dizendo que “No nível em que estamos, é aquilo que tem efeito de significado.” (LACAN,
1972-1973, p.30). Algumas páginas antes, no mesmo Seminário, Lacan já terá dito que
também o significante é, primeiro, o que tem efeito de significado. Este raciocínio, se
levarmos em conta as considerações de Barthes, podem nos fazer crer que o significante,
antes de qualquer coisa (primeiro), se permite ao trabalho de significância; ele tem efeito de
significado, e é por isso que ele não só é autônomo ao significado, mas também antecipa o
sentido. Somente depois de sua associação ao significado, somente após representar um
significante para outro significante, é que pode fazer com que um ponto de basta capture uma
significação.
O significante, portanto, se despojado de seu valor de significação, se distante de um
significado que o aprisione, longe de “afivelar um sentido”
27
, longe de fechar uma
significação, abre uma significância, e o faz, justamente, por funcionar como letra, como um
suporte material que não representa, que não oferece um produto acabado, mas que se “abre
em leque”. Isso justifica a fala de Miller (1996) de que, quanto menor o semantismo, ou seja,
quanto mais o significante apresenta-se afastado de seu valor de significação, maior sua
significância. Em outras palavras, quanto mais separado, quanto mais funcionando “como
letra”, mais o significante produz significância em detrimento de seu valor de sentido
cotidiano, de sua significação. Pensando ser nesse trabalho de significância que reside o poder
poético das palavras, Miller concluirá seu raciocínio dizendo: “Esse mais-de-significante, é o
que podemos chamar de efeito poético.” (MILLER, 1996, p.98).
Nessa mesma perspectiva, Vanderveken (2000) dirá que o efeito poético surge no
momento em que o sentido toca o não-sentido, e isso nos remete à letra enquanto litoral,
borda. É, portanto, por meio de um movimento de suspensão de qualquer decisão semântica,
que surge o poder poético das palavras de evocar uma multiplicidade de significações.
Também Kristeva, citando os semioticistas soviéticos, irá ressaltar que as construções
poéticas só são consideradas como tais pelo fato de sua aparição ser muito pouco provável, o
que os leva (os semioticistas soviéticos) à fórmula de que “seria poético o que não se tornou
lei” (KRISTEVA, 1974, p.52/53). O efeito poético estaria, portanto, fora da lei da linguagem,
27
LACAN, 1957.
49
excluído da cadeia significante e inserido mais na prática da letra, na marca, do que na
representação própria ao significante.
Manoel de Barros também aposta nesse caminho para atingir o efeito ou o poder
poético de suas palavras. E é nessa busca de fazer o significante funcionar “como letra”,
litoral entre o sentido e o não sentido, que parece consistir sua desaprendizagem. Como já
vimos, o poeta, ao desinventar objetos, ressalta justamente a indecisão semântica da palavra.
Tira do significante pente “a função” de pentear e o deixa em suspenso, ou, para ser mais fiel
ao texto de Barros, o deixa “à disposição”. Nessa mesma direção, nessa mesma aventura
literária, o poeta usará ainda, como outro recurso à desaprendizagem, o que ele chama de
desnomeação.
Para entender a lógica da desaprendizagem do poeta, assim como a importância que a
prática de desnomear tem para ela, é interessante observar um poema no qual Manoel de
Barros dá uma pista do que seria para ele uma aprendizagem. O poeta começa descrevendo
com beleza a cena do rio que rodeava sua casa: “O rio que fazia volta atrás da nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa”. Continuando, o poeta irá dizer
de como que, ao receber um nome, o rio perdeu sua capacidade de inspirar a imaginação, em
outras palavras, perdeu em significância: “Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada.”. Barros concluirá seu poema fazendo um
alerta: “Acho que o nome empobreceu a imagem”. (BARROS, 1993, p.23).
Se o nome empobrece a imagem, é justamente porque fecha um sentido nele, solidifica
uma significação, fixa uma interpretação e diminui assim o trabalho de significância do texto.
Nesta mesma perspectiva de que o nome traz o empobrecimento, encontramos em O Livro
das ignorãças um personagem que, segundo o autor,
Gostava de desnomear:
Para falar barranco dizia: lugar onde avestruz
esbarra.
Rede era vasilha de dormir.
Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de
uma gruta, chamou: desenhos de uma voz.
Penso que fosse um escorço de poeta. (BARROS, 1993, p.79).
Da mesma forma que “enseada” empobrecia a imagem, fechava e antecipava um
sentido e encerrava as possíveis significações singulares que o poeta dava ao rio que fazia
volta atrás de sua casa, desnomear o barranco, fazendo esse significante funcionar “como
letra”, deixando-o sem significação, abre espaço para uma maior significância e,
50
conseqüentemente, traz a possibilidade de uma nova criação, de um trabalho: por exemplo,
“lugar onde avestruz esbarra”.
Manoel de Barros parece perceber o poder poético das palavras muito mais nas
desnomeações e transnominações contidas em sua poética da desaprendizagem do que na
nomeação ou na prática de aprendizagem. Ao poeta, segundo Manoel de Barros, cabe muito
mais a desformação do mundo do que a sua descrição:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo. (BARROS, 1996, p.75).
É interessante atentar novamente para a busca de um momento, mítico que seja, no
qual as palavras “ainda” não estavam presas a um sentido, um momento no qual as palavras
“ainda” não tinham idioma, ou como veremos adiante, um momento em que se pode captar
“...o som que ainda não deu liga” (BARROS, 1998, p.53). Em seu curso Seis lições sobre o
som e o sentido, Roman Jakobson (1977) irá definir a palavra como sendo um valor
lingüístico concebido por um grupo de fonemas que teriam como função a distinção do
sentido. Para Jakobson, a principal função dos sons é diferenciarem as significações das
palavras. Assim como um significante se relaciona com outros significantes da cadeia, o
fonema também se relaciona entre si através de uma distinção que afeta o sentido que o som
pode veicular. É por isso que podemos dizer que o som, para Jakobson, está intimamente
ligado à função do sentido e que os fonemas e suas qualidades distintivas também servem a
essa mesma função. Se na linguagem comum os sons estão ligados ao sentido, o que Manoel
de Barros busca é encontrar o som desvinculado do “...sentido normal das palavras...”
(BARROS, 1989, 299). Lembremos o apelo do poeta:
Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o canto – desde os pássaros. A
palavra sem pronúncia, ágrafa. Quero o som que ainda não deu liga. Quero o som
gotejante das violas do cocho. A palavra que tenha um aroma ainda cego. Até antes
do murmúrio. Que fosse nem um risco de voz. Que só mostrasse a cintilância dos
escuros. A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. O antesmente verbal:
a despalavra mesmo. (BARROS, 1998, p.53).
Vemos na desaprendizagem de Manoel de Barros uma valorização do som que ainda
não deu liga, do antes mesmo do murmúrio, da palavra incapaz de ocupar o lugar de uma
imagem. É como se o poeta fosse atrás da, digamos por enquanto, “matéria prima” da
51
linguagem, do som que ainda não foi articulado em um sentido que possa servir à
comunicação.
Vale, mais uma vez, recorrermos à monografia de Freud sobre a afasia que nos ajudará
a pensar sobre um momento em que a linguagem se encontra, nos arriscaremos dizer, em sua
fase “nascente”. Para entender os problemas da afasia, o pai da psicanálise acaba
desenvolvendo uma pequena teoria da aquisição da linguagem; esta começa pela emissão de
sons que a criança se presta a fazer e apresenta um caráter motor mais presente do que o
caráter simbólico. É o que chamamos, por vezes, de balbucio. A criança balbucia sem a
intenção ainda de controlar o som que produz. Porém, os sons gerados por elas somados aos
sons gerados por outros seres humanos e compartilhados pela língua, as fazem criar uma
“imagem sonora” da palavra que a criança tentará repetir. Existem, portanto, dois registros da
“imagem sonora”: um é aquele que nós criamos a partir do nosso próprio balbucio, o outro é o
que corresponde à língua de outras pessoas e que também tentamos imitar. Na transição
dessas duas fases presentes no desenvolvimento da fala é que podemos localizar o que o poeta
chama de palavra “ágrafa” ou, em conformidade com a monografia freudiana, a palavra
afásica. Aí temos o som que não deu liga, o rumor situado entre o balbucio e a língua
propriamente dita, a fase em que usamos uma linguagem que nós mesmos construímos, fora,
portanto, da utilidade comunicacional.
A respeito dessa busca de Manoel pelo momento embrionário da palavra, Lúcia
Castello Branco (1995) nota que o próprio título de alguns livros do poeta
28
já encerram a
idéia de uma poesia mergulhada no material de que ela se servirá: o conteúdo pré-discursivo
do assobio, o canto dos pássaros, as entranhas do chão e, sobretudo, o estado nascente da fala
na boca das crianças e dos loucos. Em seu poema intitulado “Línguas”, o poeta revela seu
fascínio por línguas tais como a dos Guaranis que, a exemplo da fala em sua fase primitiva,
priorizam mais o rumor, o som, do que o sentido articulado:
Contenho vocação pra não saber línguas cultas.
Sou capaz de entender as abelhas do que alemão.
Eu domino os instintos primitivos.
A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.
A língua dos índios Guatós é múrmura: é como se ao dentro de suas palavras
corresse um rio entre pedras.
28
Compêndio para uso dos pássaros, 1961, Gramática expositiva do chão, 1966, Matéria de Poesia, 1974, e
Arranjos para assobio, 1982, por exemplo.
52
A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito mais importante o rumor das
palavras do que o sentido que elas tenham.
Usam trinados até na dor.
Na língua dos Guanás há sempre uma sombra do charco em que vivem.
Mas é língua matinal.
Há nos seus termos réstias de um sol infantil.
Entendo ainda o idioma inconversável das pedras.
É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das palavras.
Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar. (BARROS, 2000, p.17).
Ao falar dos Guaranis, Manoel revela a admiração desse povo pelo rumor das
palavras, mais do que pelo sentido que elas têm. Em seu artigo “O Rumor da língua”, Barthes
(2004) define o rumor exatamente como uma operação que tornasse o aparelho semântico
irrealizado, deixasse o sentido indiviso, impenetrável e se valesse apenas do que ele chamou
de trama sonora que alojaria em si um gozo. Observa que “o rumor da língua” não exclui
brutal e dogmaticamente o sentido. Para o autor, ao rumorejar a língua, o sentido é posto ao
longe como uma miragem. O rumor não é mais que o ruído de uma ausência de ruído, o não-
sentido que faz ouvir ao longe um sentido liberto de todas as agressões do signo.
Em sua desaprendizagem, que almeja a palavra funcionando como letra, Manoel de
Barros acaba aproximando-se também do que Lacan chamou de lalangue
29
em O Seminário:
Livro XX. Nesse seminário, Lacan usará o termo para designar, justamente, uma relação do
sujeito com a língua que não passasse pelo campo comunicacional, localizando, nesse termo,
uma operação que diz muito mais do gozo enquanto satisfação pulsional que inclui tanto o
sofrimento quanto o prazer, do que da comunicação: “Lalangue serve para coisas inteiramente
diferentes da comunicação.” (LACAN, 1972-3, 188). Se lalangue difere da linguagem em sua
dimensão comunicacional, é bom reforçar que essa distinção precisa ser relativizada, já que a
linguagem não serve unicamente à comunicação e nem exclui o gozo; pelo contrário, a
linguagem é, para Lacan, um aparelho de gozo, e o é por conter nela o que chamou de
lalíngua.
A linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elocubração de saber sobre
alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se
pode fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de
linguagem. (LACAN, 1972-1973, 190).
29
O poeta Haroldo de Campos (1995), em seu ensaio “O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua”, discorda da
tradução comumente empregada a esse neovocábulo” de Lacan. Para Campos, alíngua, ao contrário da
palavra em francês lalangue, sugere, em português, uma negação da língua, uma carência da linguagem. O
poeta lembra que lalangue é o oposto da não-língua, é uma língua enfatizada, uma língua tensionada pela
função poética. Haroldo de Campos sugere, então, traduzirmos lalangue por lalíngua, termo que será usado
doravante neste trabalho.
53
Manoel parece, novamente, ao buscar o rumor da língua, procurar atingir algo da
vertente da letra, mas também do som que não deu liga, da origem da palavra: “Eu queria
avançar para o começo. / Chegar ao criançamento das palavras.” (BARROS, 1996, p.47). Essa
busca pela despalavra aparecerá não só em neologismos como “bestamento”, “necedade”,
“niquices”, etc., como na descrição do gozo causado pelas palavras na voz de quem as
profere,
Certas palavras têm ardimentos; outras, não. A palavra jacaré fere a voz. É como
descer arranhado pelas escarpas de um serrote. É nome com verdasco de lodo no
couro. Além disso é agríope (que tem olho medonho). Já a palavra garça tem para
nós um sombreamento de silêncios... E o azul seleciona ela! (BARROS, 1991, p.19).
Vemos, nesse trecho, a narração dos efeitos de gozo que a palavra jacaré gera na voz,
ela fere a voz. Manoel de Barros mostra que não só aos Guaranis, mas também a ele, o rumor
das palavras importa mais do que o sentido que têm. É como se o poeta esquecesse o
significado da palavra jacaré, ou da articulação, do trabalho feito pela linguagem sobre essa
palavra, para reparar no efeito quase orgânico que a palavra gera no ser falante. Não importa
aqui que o poeta busque nessa “organicidade” uma aproximação com o significado da palavra
ou com a imagem de um jacaré que também fere, vive no lodo e é revestido de couro. O que
importa mais do que isso parece ser o gozo que a palavra gera. É esse gozo que o poeta chama
de orgasmo com as palavras: “Uma semente genética de desencontros que veio desaguar
nessa esquisita coisa de ter orgasmo com as palavras” (BARROS, 1996b, p.331).
Outro exemplo desse gozo da palavra, presente na poesia de Barros, encontramos em
O Guardador de Águas,
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu,
ao fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor! (BARROS, 1989, p. 297).
Nesses exemplos, o poeta não se interessa pelo sentido das palavras, mas pelo rumor
que carregam e pelo gozo que ele alcança através delas. Em “A língua mãe”, poema que faz
parte do livro infantil O fazedor de amanhecer, o poeta deixa ainda mais claro seu
desinteresse pelo sentido quando compara duas palavras que, em línguas diferentes, buscam
capturar o mesmo sentido:
54
Não sinto o mesmo gosto nas palavras:
oiseau e pássaro.
Embora elas tenham o mesmo sentido.
Será pelo gosto que vem de mãe? De língua mãe?
Seria porque eu não tenha amor pela língua de Flaubert?
Mas eu tenho.
(Faço este registro
porque tenho a estupefação
de não sentir com a mesma riqueza as
palavras oiseau e pássaro)
Penso que seja porque a palavra pássaro em
mim repercute a infância
E oiseau não repercute.
Penso que a palavra pássaro carrega até hoje
nela o menino que ia de tarde pra
debaixo das árvores a ouvir os pássaros.
Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux
Só tinha pássaros.
É o que me ocorre sobre língua mãe. (BARROS, 2001, s/p).
Dentro do idioma próprio a cada uma dessas palavras, seja ele o francês ou o
português, o significante aponta para um significado – talvez nesse caso específico, pode-se
dizer, para um referente – quase idêntico. No entanto, a palavra “pássaro” repercute no poeta
algo da infância que seu equivalente, no francês, não repercute. O gozo, portanto, encontra-se
atrelado nesse poema ao som, muito mais do que ao significado. O significante antecipa o
sentido e provoca o gozo.
Esse desinteresse pelo sentido da palavra em prol de uma valorização do gozo, do
orgasmo com as palavras, juntamente com a busca da origem, contribui com a poética da
desaprendizagem do poeta. Talvez isso ajude a promover ainda mais o fascínio do autor pelo
campo da infância e das línguas arcaicas. É como se Manoel de Barros procurasse na criança
a origem do que Lacan chamou de elucubração de saber sobre lalíngua. Ou, para aproximar-
nos de Manoel, o “antesmente” dessa elucubração. Não é à toa que o poeta define a poesia
como sendo uma prática de crianças e loucos. Em seu “Glossário...” o autor reserva para o
verbete “Poesia” a seguinte definição:
Poesia, s.f
Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas
de um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos
com emprego de palavras imagens cores sons
etc. – geralmente feitos por crianças pessoas
esquisitas loucos e bêbados. (BARROS, 1980, p.215).
55
A busca pela origem da palavra aparece também sob a forma metafórica da nudez.
Para Lúcia Castello Branco, “Um dos processos de que se vale Manoel de Barros para
decifrar essa ‘gramática do chão’ consiste no descascamento da palavra até atingir seu estado
inicial de nudez” (CASTELLO BRANCO, 1995, 126). Se, para o dramaturgo Harold Pinter
(1976), uma forma de encarar a fala humana é a de considerá-la como um estratagema para
cobrir nossa nudez, para Manoel, “a língua é uma tapagem” (BARROS, 1985, p.68), e o
trabalho do poeta é de desmontar esse estratagema. Barros, como diz Lúcia Castello Branco,
vai tentar atingir a “nudez do inominável da ‘coisa que não faz nome para explicar’”
(CASTELLO BRANCO, 1995, p.126). O artista lança mão de versos que cultuam a palavra
despida de qualquer sentido e que revelam seu interesse por essa nudez: “Certas palavras
pediam para mostrar os pentelhos.” (BARROS, 1970, p.27), ou “Uma palavra abriu o roupão
pra mim. Ela deseja que eu a seja” (BARROS, 1996, p.70). Mais tarde, o poeta ainda
completará essa última frase: “Uma palavra abriu o roupão pra mim. / Vi tudo dela: a escova
fofa, o pente a doce maçã. / A mesma maçã que perdeu Adão. (...) Depois a palavra teve
piedade / E esfregou a lesma dela em mim.” (BARROS, 2004, p.69). Dessa maneira é que o
próprio poeta, em alguns de seus poemas, definirá sua arte como sendo essa busca pela
palavra despida. Aqui, podemos entender que a palavra se despe de seu significado, de seu
sentido normal e da mensagem que carrega, deixando à mostra toda sua nudez e
materialidade, para então, vir esfregar-se no poeta.
Além de sua busca pelo significante despido de seu idioma, o poeta destaca também o
uso que procura fazer desse seu “encontro” com a nudez da palavra que, como dirá, se baseia
numa espécie de “orgasmo”. Enfim, trata-se do gozo que ele retira desse “encontro” ou, se
nesses termos corremos o risco de uma imprecisão, diremos, então, do gozo que ele retira
desse “esfregão” que o poeta recebe da lesma da palavra. À sua maneira, o autor nos
testemunhará esse seu gozo através de versos como: “A lesma influi muito em meu desejo de
gosmar sobre as palavras / Neste coito com letras!” (BARROS, 1989, p.293); ou então,
“Experimento o gozo de criar. Experimento o gozo de Deus. Faço vaginação com as palavras
até meu retrato aparecer.” (BARROS, 1998, p.21); ou ainda, “Prefiro fazer vadiagem com
letras. Ao fazer vadiagem com letras posso ver quanto é branco o silêncio do orvalho.”
(BARROS, 1998, p.51). Assim é que Manoel de Barros, através de uma prática literária que
lhe é própria, goza, faz coito, obtêm orgasmos, enfim, faz vadiagem com as palavras.
Esse gozo retirado das palavras vai ao encontro do ensino lacaniano que localiza na
prática da letra e no uso da lalangue uma inutilidade própria do gozo. A linguagem, mesmo
que sirva à utilidade comunicacional, serve também, como já fizemos notar, ao gozo. Lacan
56
irá, inclusive, acentuar a distância existente entre esses dois aspectos da linguagem, a
utilidade e o gozo, evidenciando a diferença existente entre os termos, quando, por exemplo,
se pergunta: “O que é o gozo? Aqui ele se reduz a ser apenas uma instância negativa. O gozo
é aquilo que não serve para nada.” (LACAN, 1972/1973, p.11). Se o gozo é uma satisfação
que, como apontamos, inclui o conflito de atender o prazer e o sofrimento, e se essa satisfação
pulsional é marcada por uma não-serventia, o utilitarismo será encarado justamente como a
necessidade de servir: “O utilitarismo não quer dizer outra coisa senão isto – as velhas
palavras, as que já estão em serventia, é no para o que elas servem que é preciso pensar. Nada
mais.” (LACAN, 1972/1973, p.80).
Leyla Perrone-Moisés (2000), em uma declarada defesa à obra de Mallarmé, destacará
o quanto a sociedade é marcada pelo utilitarismo, pela necessidade de serventia,
principalmente, em se tratando da linguagem. Para ela, os textos que fogem a essa lógica do
utilitarismo, os poemas que não servem para nada, não defendem uma idéia política, não
criticam uma ideologia, e não louvam uma classe oprimida, são encarados com resistência.
Ao comparar os poemas de Mallarmé a outras linguagens confusas, como a do extrato
bancário ou mesmo a linguagem de uma matéria de jornal, a autora assinala que essas não são
encaradas com tamanha resistência devida à serventia que sugerem. No entanto, para Perrone-
Moisés, se nos dispusermos a penetrar na inutilidade própria de alguns poemas, será a
utilidade dos outros impressos que será posta em causa. Seguindo o raciocínio da autora,
poderíamos mesmo nos perguntar se a utilidade do poema, ou de uma classe de poemas, não
poderia ser, exatamente, a de por em questão a utilidade dos outros textos e da própria
linguagem. Se com isso emprestamos uma função para o que não tem função, o que não é
nosso objetivo, destacamos, ao menos, um dos efeitos que certos trabalhos com a língua
podem oferecer.
Afirmando coisas inverificáveis, irredutíveis a um referente, o poema questiona a
verificabilidade e a referencialidade das mensagens que nos chegam cotidianamente.
O poema vem lembrar que tudo é linguagem, e que esta engana. Que a linguagem
está o tempo todo fingindo-se de transparente, de prática e de unívoca, e nos enreda
num comércio que nada tem de essencialmente verdadeiro e necessário.
(PERRONE-MOISÉS, 2000, p.32).
Ora, ao retirar do significante seu sentido cristalizado, oferecendo à palavra outra
função que não a comunicação, Manoel abre mão, exatamente, da utilidade do idioma, da
serventia da palavra, em prol tanto do questionamento da língua, quanto do gozo da letra.
Chegamos então à desutilidade poética de Barros, que não se afasta de sua desaprendizagem;
pelo contrário, a enriquece. Ao optar por desutensílios, pela inutilidade dos objetos, pelo nada
57
que a nada serve, Manoel chega mais perto do significante funcionando como letra e retira
dessa aventura poética sua quota de gozo. O poeta, nesse sentido, além dos desobjetos que
produz, conta-nos também do seu gosto pelo inútil do gozo: “Prefiro as máquinas que servem
para não funcionar (...) Senhor, eu tenho orgulho do imprestável! / (O abandono me protege.)”
(BARROS, 1996, 57). Ainda nessa vertente de que a letra carrega consigo um gozo inútil,
Manoel dará mais uma das tantas definições para a poesia que podemos encontrar em sua
obra: “O poema é antes de tudo um inutensílio”. (BARROS, 1980, p.208).
Esse gosto pelo inútil desencadeará também o que poderíamos chamar de “poesia do
cisco”, que também faz parte da poética de Manoel. Haverá, nesse caso, uma exaltação não só
ao que não presta, ao inútil, mas também ao ínfimo, ao miúdo e, principalmente, ao resto. O
resto e o cisco são elementos constantes na obra de Barros. Sua admiração pelas coisas do
Pantanal se dá, exatamente, nesse campo. Como foi dito, sua poesia não se limita a descrever
as riquezas do Pantanal; porém, é importante ressaltar que grande parte de seus poemas,
embora tratem da palavra, lançam mão de um relato quase plástico dos seres de sua região. A
singularidade maior disso, no entanto, é que Manoel colhe para seus poemas não os grandes e
bonitos seres que compõem a paisagem pantaneira, mas, principalmente, os seres miúdos: as
larvas, as pequenas plantas, os dejetos e as sobras desse cenário. O cisco terá mais
importância do que uma catedral. O olhar do poeta estará mais voltado para o chão do que
para o horizonte. Somando-se aos objetos que não existem ou que não têm utilidade, esses
restos constituirão a rede de elementos constantemente presentes na obra de Manoel. Segundo
ele mesmo, os principais elementos do cisco são: “...gravetos, areia, cabelos, pregos, trapos,
ramos secos, asas de mosca, grampos, cuspe de aves, etc. Há outros componentes do cisco,
porém de menos importância.” (BARROS, 2001, p.10). Nesse mesmo poema, pertencente a
um livro que se chama, não por acaso, Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, o poeta citará
ainda duas referências que até então tem nos sido muito preciosas:
O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação dos poetas.
Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de contemplação dos restos.
E Barthes completava: Contemplar os restos é narcisismo.
Ai de nós!
Porque Narciso é a pátria dos poetas.
Um dia pode ser que o lírio nascido nos monturos
empreste qualidade de beleza ao cisco.
Tudo pode ser.
Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do
que a seres humanos.
30
(BARROS, 2001, p.11).
30
Grifo nosso.
58
Temos, então, o próprio Manoel de Barros fazendo referência, num mesmo poema, a
esses dois autores tão citados no presente trabalho. Em entrevista já referida acima, tive a
oportunidade de perguntar ao poeta sobre a origem dessa homenagem, ao que Manoel me
respondeu: “Gosto de Lacan e de Barthes. A citação foi para confirmar o gosto que tenho
pelas pobres coisas do chão. Pelos restos...” O poeta declara aqui seu gosto pelos dois
pensadores, mas, mais do que isso, seu gosto pelas pobres coisas do chão: pelos restos. Ao
poeta é reservada a tarefa de encontrar as grandezas das pequenas coisas do chão, a grandeza
do ínfimo, a grandeza dos objetos inexistentes e, principalmente, da inutilidade da poesia,
encontrada por Manoel através do uso que faz das palavras. O que não presta para a sociedade
prestará ao gozo da palavra poética.
À palavra, portanto, despida de sua significação, resta o gozo. O gozo da letra, que
consiste na materialidade do significante. Assim como a palavra se torna uma via de acesso ao
gozo, a palavra, na poesia de Barros, aparece também em outro aspecto característico à letra.
Trata-se da materialidade que exemplificamos com o comentário lacaniano a respeito do
conto de Poe. Assim como a carta roubada, a palavra em Manoel aparece como objeto, como
suporte material. Encontramos em sua poesia coisas como: “Não era normal o que tinha de
lagartixa na palavra paredes.” (BARROS, 1970, p.36); ou “Mexo com palavra / como quem
mexe com pimenta / até vir sangue no órgão” (BARROS, 1980, 214); ou “Do alto da torre
dizia o poeta: eu faço uma palavra equilibrar pratos no queixo” (BARROS, 1970, p.68). A
palavra “parede” não é mais veículo de seu significado ou significação, mas suporte material
para as lagartixas. A palavra agora equilibra pratos no queixo, a palavra é tempero comparado
à pimenta. Essa materialidade da palavra empresta a ela uma face real, material, que se
distancia de sua dimensão simbólica, de sua posição de significante que representa um
significante para outro significante. A palavra revela, agora, sua face real de letra, e Manoel
faz isso se valendo do simbólico, utilizando a própria palavra, lançando mão do próprio
significante, porém, para colocá-lo numa situação muito peculiar: no lugar de letra.
São essas as principais características da poética da desaprendizagem de Manoel:
tentar fazer o significante funcionar como letra, privilegiar o som e a materialidade da palavra
em detrimento do sentido que ela possa carregar, promover uma fuga ao sentido normal da
palavra e vir a encontrá-la no berço onde jaz ainda em fase embrionária, no escuro onde se
despe exibindo seus pentelhos, no momento em que é um desutensílio, prestável somente para
o gozo, para os orgasmos que Manoel inventa fazer com elas. É assim que o poeta se lança no
rastro da “despalavra”, da “palavra desacostumada”, fazendo com que o som e o significante
assumam, então, funções diferentes das que a linguagem “normal”, cotidiana, os oferece:
59
“Não gosto de palavra acostumada. (...) Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo
para ser séria” (BARROS, 1996, p.71).
E assim chegamos, finalmente, a um dos aspectos fundamentais do nosso trabalho, que
procurou até o momento discorrer e destrinchar as peculiaridades presentes na poética de
Manoel de Barros. Isso nos possibilitou abarcá-la pela vertente da letra lacaniana e do
encontro e desencontro entre os termos significância e significação, seja no sentido lacaniano,
seja no sentido barthesiano dos termos. Entendendo, agora, como a palavra em Barros
privilegia a letra e ganha em significância, partiremos para o capítulo final da nossa
dissertação. Este terá como objetivo demonstrar como a desaprendizagem de Barros, mais do
que um puro neologismo ou uma simples oposição à aprendizagem, apresenta um
funcionamento peculiar que nos levará, através do mesmo referencial teórico lacaniano e
ainda apostando no aporte que a noção de letra tem nos dado até agora, a aproximar sua
poética e seu estilo ao que a psicanálise chama de transmissão.
60
4 DESAPRENDIZAGEM, UMA TRANSMISSÃO
Se o poeta vai atrás da palavra desacostumada, fazendo uso da língua e do que essa
comporta de lalíngua para atingir o significante despojado de sua significação, é porque
atribui à sua desaprendizagem uma função, como o próprio neologismo indica, oposta, ou ao
menos diferente, da aprendizagem e, poderíamos acrescentar, do ensino em sua dimensão
pedagógica.
Se o poeta, em seu desarranjo da linguagem, atinge a letra e a lalíngua, é para fazer
gerar o que ele chamou de um novo olho, que agora poderíamos chamar de um “trabalho de
significância”. Mas em quê a desaprendizagem de Manoel de Barros diferencia-se da
aprendizagem?
Em “Alocução sobre o ensino”, Lacan (1970) se pergunta se o ensino é a transmissão
de um saber. Ao procurar por uma resposta, o autor chega a dizer que o primeiro pode, por
vezes, estabelecer uma barreira ao segundo. Para tal investigação, Lacan parte da análise do
próprio discurso psicanalítico e diz que esse “... não se sustentaria se o saber exigisse a
intermediação do ensino. Daí o interesse do antagonismo que enfatizo aqui entre o ensino e o
saber.” (LACAN, 1970, p.308). Se, para Lacan, o saber é antagônico ao ensino é porque,
como alerta Sueli de Melo Miranda, “...em psicanálise, o saber é diferente da aprendizagem, e
a transmissão, não sendo pedagógica, é diferente do ensino.” (MIRANDA, 2002, p.42). Se de
um lado temos o antagonismo entre o ensino e o saber, Miranda destaca aqui outro
antagonismo da mesma ordem entre a aprendizagem e a transmissão.
Para Quinet (1992), a escolha da orientação lacaniana opõe-se à conformidade da
transmissão de um saber de antemão já dado, “pré-digerido”. Vemos que o autor recorre a um
termo que o próprio Lacan havia utilizado em “Variantes do tratamento-padrão” onde, ao
discutir sobre a transmissão da psicanálise, principalmente em seus institutos, diz que
O desejável não é que os analisados sejam mais ‘introspectivos’, mas que
compreendam o que fazem; e o remédio não é que os institutos sejam menos
estruturados, mas que não se ensine neles um saber pré-digerido, mesmo que resuma
os dados da experiência analítica. (LACAN,1966 , p.358).
O antagonismo lacaniano entre o ensino e o saber se desdobra, então, em um
antagonismo entre um saber de antemão, pré-digerido, que pode ser ensinado, e um saber que
pode ser transmitido. Mas o que distingue um saber pré-digerido de outro ainda por digerir?
Podemos dizer que a diferença se encontra justamente no trabalho da digestão. A transmissão,
diferentemente da aprendizagem, lança o sujeito a um saber ainda por digerir, incompleto, um
61
não-saber. Enquanto a aprendizagem oferece um produto já trabalhado, a transmissão coloca
o sujeito a trabalho.
Antes de prosseguirmos, é importante ressaltarmos que, embora Lacan se refira à sua
obra, tanto em seus Seminários quanto em seus Escritos, como “seu ensino”, ele guarda ao
discurso psicanalítico um lugar diferenciado nesse campo do ensinamento: “...ao se oferecer
ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a não
produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma.”
(LACAN, 1970, p.310). No discurso psicanalítico, o saber que se produz a partir do ensino
não é nada que se possa dominar, não é nada pré-digerido. Ao se oferecer ao ensino, o
discurso psicanalítico faz exercer, na verdade, uma transmissão. Poderíamos arriscar, então, a
dizer que, quando Lacan (1970) opõe ensino e saber, ele opõe aprendizagem e saber, sendo
que ensino serve, em outros momentos de sua obra, como uma forma de transmissão.
Para Sandra Arruda Grostein (1992), em se tratando de Psicanálise, o que se transmite
é um saber, mas um saber do não sabido, aquilo que não é possível de significação. Estamos
novamente no campo da significação e da significância. Se fizermos valer o antagonismo
lacaniano entre ensino e saber, desdobrando-o, como sugere Miranda (2002), em um
antagonismo entre aprendizagem e transmissão, podemos pensar que a significação está para a
aprendizagem assim como a significância está para a transmissão. Se a significação encerra
em si um trabalho, apresentando-se como um produto, é porque no antagonismo lacaniano a
significação está do lado do saber pré-digerido, enquanto que a significância, por trazer, como
vimos em Barthes, a possibilidade de uma produtividade, se encontra do lado da transmissão.
Essa produtividade é o que Manoel de Barros chamará de “trabalho desnecessário”, o trabalho
desvinculado da utilidade prática que a informação e o conhecimento nos fornece: “Trabalho
arduamente para fazer o que é desnecessário. / O que presta não tem confirmação, / o que não
presta tem.” (BARROS, 1996, p.41).
Temos, aqui, outro ponto de aproximação entre a Literatura, não só de Manoel de
Barros, e a Psicanálise. Como atenta Mandil (2005), se no trabalho literário a utilidade vem
por acréscimo, no trabalho analítico, a cura também ocupa um papel semelhante. Na clínica
psicanalítica (lembremos a crítica de Freud (1915[1914]) ao fanatismo pela cura, ao furor
senandi da sociedade), a cura não é uma meta a se alcançar, mas, sim, algo que se pode
esperar. Da mesma forma, podemos esperar que uma obra literária venha a exercer alguma
função em nossa sociedade, mas é importante lembrar que essa utilidade, na maioria das
vezes, é posta ao longe, e o trabalho, mesmo que futuramente sirva a algum fim, inclusive
comercial, é, em sua essência, “desnecessário”. Provavelmente ciente disso, e visando
62
potencializar esse caráter inútil da Literatura, é que Manoel faz de sua poesia não um produto
acabado, mas um trabalho desnecessário.
Da mesma forma que a letra, e por causa dela, a transmissão, na obra de Lacan,
também não será causa de um produto, mas de uma produtividade, um trabalho, talvez
desnecessário. E é esse tipo de trabalho que o poeta transmite em sua obra. Não nos
esqueçamos do alerta de Lacan no “Ato de Fundação” da Escola Francesa de Psicanálise,
quando diz que o ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas
vias de uma transferência de trabalho. (LACAN, 1964/1971, p.242).
Jean-Claude Milner (1996), ao destacar a importância da letra na transmissão, nos
atenta também para a função da matemática na teoria lacaniana. Como o autor de A obra
clara sugere, Lacan vai depositar na matemática, mais precisamente no matema, a
transmissibilidade de seu ensino. A matemática se consagra no ensino lacaniano
principalmente a partir de 1972 com o artigo “O aturdito”. Um ano depois, em uma de suas
últimas lições do Seminário XX, Lacan dirá então que “A formalização matemática é nosso
fim, nosso ideal. Por quê? Porque só ela é matema, quer dizer, capaz de transmitir
integralmente.” (LACAN, 1973, p.161).
Baseando-se nessa perspectiva é que a matemática apresenta-se como o paradigma da
transmissibilidade integral. Essa afirmação é justificada exatamente a partir da noção de letra,
tão cara ao nosso trabalho. Estamos novamente trabalhando com a distinção entre letra e
significante que, como foi lembrado em capítulo anterior, talvez tenha sido propositadamente
indiferenciada por Lacan. Para Milner (1996), Lacan deixa a distinção entre letra e
significante confusa no primeiro classicismo, mas, segundo o autor, ela se aperfeiçoa no
segundo
31
. Um dos pontos-chave dessa distinção é que o significante, diferentemente da letra,
é apenas relação, ele representa para e é aquilo através do quê isso representa. O significante,
em si, não é nunca definível; só poderá aproximar de alguma definição como diferença para
com outro significante. A letra, por sua vez, mantém relação com as outras letras, mas não
consiste apenas em relações. A letra é idêntica a si mesma e possui qualidades, tem uma
fisionomia, um suporte sensível, e por isso pode ser manipulada, rasurada, destruída. Isso não
acontece com o significante, pois, não tendo uma identidade, sendo apenas relação,
representação, mesmo que ele possa faltar, não pode ser destruído, nem mesmo deslocado,
manipulado. São essas características que tornam a letra transmissível:
31
Essa distinção entre dois classicismos é feita pelo próprio Milner em A Obra Clara (1996), e diz de um corte
epistemológico na obra lacaniana.
63
A letra é transmissível; por essa transmissibilidade própria, ela transmite aquilo de
que ela é, no meio de um discurso, o suporte; um significante não se transmite e
nada transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se encontra, o sujeito para
um outro significante. (MILNER, 1996, p.105).
Mas, se no segundo classicismo lacaniano, a distinção entre a letra e o significante é
mais evidente, será que podemos ainda pensar em letra como um significante despojado de
qualquer valor de significação? Ou ainda, será que podemos pensar em letra como o suporte
material do significante? Em 1971, no Seminário XVIII, Lacan dirá que não se deve confundir
a letra com o significante e acrescenta que, ao lançar mão de letras para seus esquemas, ele
não chega a equivalê-las ao significante. Diferentemente do significante que habita o
simbólico, a letra está no real. Se o real na obra lacaniana aparece como o lugar por
excelência da falta de sentido, da não relação e da impossibilidade de representação,
podemos, mais uma vez, dizer que a letra não está inserida no jogo de representações próprio
ao significante. É nesse momento da obra lacaniana, quando a letra se destaca mais
vigorosamente do significante, que o matema irá aparecer como recurso metodológico para
melhor desenvolvimento da noção psicanalítica de letra. O matema, portanto, seria o que, na
matemática, apresenta-se como sendo idêntico a si mesmo, manipulável e destrutível. Nesse
momento, o matema seria o paradigma da letra, e estaria para a matemática assim como a
letra está para a linguagem.
Por isso, o mais correto é pensar que a concepção de letra trabalhada no nosso segundo
capítulo que destaca sua natureza de suporte material do significante seja válida mais
estritamente para o primeiro classicismo lacaniano, por exemplo, para o “Seminário sobre a
carta roubada”. A letra, no segundo classicismo de Lacan não deixará de ser pensada como
suporte material, mas mais do que isso, lhe será atribuída uma função de matema, o que lhe
emprestará uma transmissibilidade, mais do que uma significância. Entretanto, quando
Manoel de Barros parece alcançar algo da letra, não é de um matema que estamos falando.
Pelo contrário, o trabalho do poeta se faz na cadeia significante. Mas, por outro lado, como
bem nota Miller (1996) e Ram Mandil (2003), existe a possibilidade de o significante
funcionar ora mais, ora menos, como uma letra. Isso dependerá do quanto o significante se
separa de seu valor de significação. Quanto mais separado de seu valor de significação,
quanto mais isolado de suas possíveis significações, mais próximo ele estará da letra.
É por essa via que a desaprendizagem de Barros se avizinha, sem se confundir, à
transmissão lacaniana. Pois, mesmo que Manoel não faça matemas, seu trabalho, como foi
ressaltado, busca retirar o sentido das palavras, afastando o significante de seu valor de
significação. O “trabalho desnecessário” do poeta e de seus leitores não é com a escrita dos
64
matemas, mas com as palavras, com os substantivos e com os verbos: “Mudo apenas os
verbos e às vezes nem mudo. Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.” (BARROS, 2000,
p.65). Esse trabalho de mudar o significante conduz as palavras à desestruturação da
linguagem. Ciente de que somos mais efeitos das palavras do que seus algozes ou, em termos
lacanianos, somos mais empregados da linguagem do que a empregamos (LACAN,
1969/1970, p.69), Manoel atribuirá essa desestruturação mais à própria palavra do que a ele
mesmo:
Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma
palavra e tira o lugar de debaixo de mim. (...) Não era para terem retirado a mim do
lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.
(BARROS, 2000, p.57).
Mesmo que o poeta recuse ser o responsável pela desestruturação da linguagem, é em
seu trabalho poético que as palavras encontram os caminhos para tal “descomportamento
lingüístico”. O poeta, ao mudar o substantivo, o verbo, ou qualquer outro termo que exerça
uma função significante, afasta a palavra de sua dimensão simbólica e aproxima sua escrita ao
real próprio da letra. Isso faz com que o poeta deixe a significação em suspenso, “à
disposição”, “indecidível”, possibilitando um maior trabalho de significância.
Essa indecisão pela qual a poesia de Manoel nos conduz encontra, além de sua relação
com a letra e com a transmissão, sua relação também com o enigma. Na obra lacaniana, a
estrutura do enigma é expressa em termos próximos aos da estrutura da verdade. Se a verdade
não pode ser dita por inteiro, mas sempre ao nível de um semi-dizer, o enigma se apresenta,
também, nessa mesma dimensão. Mas, se o enigma é um semi-dizer, o que é que ele diz e o
que é que ele deixa por dizer? No livro XVII do Seminário de Lacan (1969/1970) vemos que
o enigma encontra sua expressão, sua semi-verdade, ao lado da enunciação que deverá ser
convertida em enunciado. No exemplo clássico de enigma que encontramos na tragédia de
Édipo, a enunciação se expressa através do animal com quatro patas matinais, duas patas
vespertinas e três patas noturnas. A conversão dessa enunciação em enunciado é trabalho do
qual Édipo se encarrega. Que a enunciação seja convertida em “animal homem” ou no próprio
Édipo
32
não é o que mais importa. Afinal, a verdade não pode mesmo ser dita por inteiro, o
que confere ao enigma uma impossibilidade de respostas ou, o que seria quase equivalente,
uma infinidade de respostas.
É esse funcionamento enigmático que leva Lacan (1972/1973, p.51) a comparar a obra
de Joyce, principalmente Finnegans Wake, ao que Freud chama de lapso. Para Lacan, os
32
Sugestão de Lacan (1969/1970) ao enigma da esfinge.
65
significantes se embutem, se compõem, se engavetam de tal modo na obra de Joyce que se
produz algo que, como significado, parece enigmático. Ao mesmo tempo, é o que há de mais
próximo do que um analista tenta ler num lapso. E é precisamente por suportar uma infinidade
de sentidos ou interpretações, justamente por poder ser lido de variadas e infinitas maneiras, é
que a leitura, tanto do lapso quanto do texto enigmático de Joyce, se torna impossível. Isso
justifica a afirmação de Lacan (1972/1973, p.38) de que seus textos publicados em Escritos
não eram para ser lidos. Também o estilo de Lacan é marcado pelo enigma, pela vacilação
entre uma significação e outra, pelo que o escrito suporta de indecidível. E é por isso que no
“Posfácio” ao Seminário XI, Lacan irá dizer que a dificuldade de leitura de seus Escritos não é
acidental.
Veremos, então, que a sugestão lacaniana de ler as páginas de Joyce sem procurar
compreendê-las, destacada por Ram Mandil (2003, p.150), serve também à sua própria obra.
E talvez sirva ainda à obra de outro pensador europeu, Wittgenstein. Comparando a
dificuldade de leitura dos textos de Wittgenstein aos seus próprios textos, Lacan, no livro
XVII de seu Seminário, irá criticar a ânsia dos pesquisadores na busca por uma significação,
por um fruto que se possa colher da escrita filosófica ou psicanalítica: “Vocês se ligam muito
em colher maçãs debaixo da macieira, e mesmo a pegá-las do chão. Seria melhor que não
pegassem as maçãs...” (LACAN, 1969/1970, p.61). Para Lacan, muitas vezes se ganha mais
ao habitar por certo tempo à sombra da macieira, do que a tentar desesperadamente pegar seus
frutos. Isso também pode ser útil à escuta analítica do lapso. Em “A direção do tratamento e
os princípios de seu poder”, Lacan irá dizer que “muitas vezes, mais vale não compreender
para pensar, e é possível percorrer léguas compreendendo sem que disso resulte o menor
pensamento”; no mesmo texto, o autor completa: “...ouvir não me força a compreender”
(LACAN, 1958, p.623). Pensar, habitar a macieira, seja através do lapso contido no texto do
analisando, seja através da dificuldade encontrada na filosofia de Wittgenstein ou ainda da
ilegibilidade própria aos textos de Joyce e Lacan, pode ser mais rico do que compreender,
pode ser mais importante do que apanhar seus frutos, muitas vezes impalpável.
Essa mesma sugestão, ou pelo menos uma sugestão semelhante, também é encontrada
na obra do próprio Manoel de Barros quando este responde sobre a dificuldade dos leitores de
entenderem seus versos:
Difícil de entender, me dizem, é sua poesia; / o senhor concorda? / - Para entender
nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da
inteligência que é o entendimento do espírito. / Eu escrevo com o corpo / Poesia não
é para compreender, mas para / incorporar / Entender é parede; procure ser uma
árvore. (BARROS, 1980, p.212).
66
A advertência do poeta faz coro às palavras de Lacan e defende o lugar do enigma
reservado à sua poesia e ao escrito. A dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de uma
leitura, se entendermos leitura como um processo que necessariamente inclui a compreensão,
não exclui o trabalho gerado pela escrita. Pelo contrário, quanto mais enigmática, quanto
maior for a multiplicidade de leituras possíveis a uma escrita, mais ela será capaz de exercer
sua função de transmissão, mais ela irá transferir um trabalho, uma produtividade. A isso se
deve a explicação de Ram Mandil (2003) à ilegibilidade dos textos tanto de Joyce quanto de
Lacan. Para o autor, o que a obra lacaniana critica na leitura é a leitura que se equivale à
compreensão, que seria aquela pela qual o significado guarda sempre o mesmo sentido.
Assim, ler seria compreender, e compreender seria eliminar a multiplicidade de leituras de um
significante, seria negar a ilegibilidade própria da letra. Se ler equivale a compreender, o
esforço de Lacan será o de produzir, a exemplo de Joyce, um escrito que não pode ser lido;
em outras palavras, um escrito que não pode ser compreendido, o que é razão, segundo Lacan
(1973b, p.273), para explicá-lo. Ainda Ram Mandil, ao fazer uma distinção etimológica entre
explicar e compreender
33
, nos alertará para o fato de que, enquanto a palavra “compreender”
indica “apreensão”, “abraço”, “inclusão”, a palavra “explicar”, cuja raiz é explanare, nos
remete a “espalhar”, “desdobrar”, “explanar”. Novamente, enquanto compreender fecha um
limite, explicar abre um leque de possibilidades. E, guardada suas particularidades, essa será
uma das riquezas presentes nos textos de Lacan, Joyce, ou Manoel de Barros: a abertura que a
letra nos lança quando sua multiplicidade de leituras intervém no leitor aos moldes de um
enigma.
Portanto, ao fazer o significante funcionar como uma letra, o poeta também enriquece
sua poesia com o caráter enigmático que presenteia seu texto. Essa relação entre a letra e o
enigma é ressaltada também por Miller (1996) que, além do lapso, recorre para tal discussão,
à própria interpretação dos sonhos. Para o autor, “afirmar que o sonho se lê como um enigma,
quer dizer que a imagem não vale como figura, um signo figurado, nem como pantomima,
mas como uma letra...” (MILLER, 1996, p.97). E a letra, ainda de acordo com o Miller, é,
sobretudo, para ser decifrada.
Já citamos algumas definições de Manoel à poesia; repitamos uma: “Poesia é voar fora
da asa.” (BARROS, 1993, p.21). Não se trata aqui de uma pergunta, como encontramos na
33
O que confirmamos através do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado (1952),
que reserva para o verbete compreender sua origem latina comprehendere (agarrar em conjunto, unir, ligar,
encerrar, fechar, etc.), e para o verbete “explicar”, sua origem latina explicare (desdobrar, desenrolar, estender,
alongar, etc.).
67
boca da esfinge; e isso já nos permite advertir que dizer que o trabalho do poeta comporta
algo de enigmático não é o mesmo que dizer que seu trabalho consiste em fazer enigmas. De
todo modo, também não se trata de uma resposta. Pelo menos de uma resposta compreensível.
A enunciação, nesse caso, também se encontra desvinculada de um enunciado, o que gera
uma multiplicidade de leituras que nos leva às margens do texto ilegível. Alguns críticos e
leitores de Manoel se encarregarão de converter essa enunciação num enunciado. Outros se
contentarão apenas em habitar a macieira, e assim deixar que a verdade faça aparecer seu
meio-corpo de Quimera
34
.
Em outra ocasião, Manoel relata um acidente: “O menino caiu dentro do rio, tibum, /
ficou todo molhado de peixe... / A água dava rasinha de meu pé.” (BARROS, 1960, p.11).
Ficar molhado de peixe não é uma enunciação que nos convida a um enunciado imediato.
Pelo contrário, a imagem, através da articulação engendrada pelo poeta, demora a aparecer, já
que estar molhado sugere a afetação de um líquido e não de um animal sólido como o peixe.
Assim, Manoel de Barros, além de enigmas expressados por enunciações que escondem ou
simplesmente carecem de enunciados, produzirá também imagens que misturam elementos
semânticos e visuais que, através de sua poética, impedem a formação de uma figura
harmônica ou racional. Isto confere a sua poética um teor surrealista. Maria Adélia
Menegazzo (2004), ao fazer um estudo comparativo da obra de Manoel de Barros com as
artes visuais, chama a atenção para a maneira como o poeta empresta força às imagens que
cria fazendo, a exemplo do que sugere Breton, que duas realidades de relações longínquas
apareçam aproximadas em seu texto. Assim, encontramos coisas como um “chevrolet
gosmento”, um “bule de Braque sem boca”, um “abridor de amanhecer”, uma “palavra que
equilibra pratos”, entre outros quadros e desobjetos.
A imagem surreal e o enigma aparecem na obra de Manoel como mais um recurso
para que o poeta alcance sua desaprendizagem e assim toque, através das palavras, algum
pedaço de real. Em outro texto, o poeta, ao narrar a queda de seu avô na escada, reúne o
absurdo da imagem e a falta do enunciado própria do enigma em um só poema:
O avô despencou do alto da escada aos / trambolhos. / Como um armário. / O
armário quebrou três pernas. / O avo não teve nada. / Ué! Armário não é só um
termo de comparação? / Aqui em casa comparação também quebra perna.
(BARROS, 2004, p.71).
As conseqüências do tombo do avô recaem no termo de comparação e a falta de
sentido do poema juntamente com a imagem absurda que propõe, conferindo às frases acima
34
Referência à fala de Lacan (1969/1970) no Seminário XVII.
68
um caráter enigmático. O sentido das frases fica em suspenso. Assim, o poeta encontra em seu
escrito um lugar para a letra e para o gozo causado pela falta de sentido. Se para Barthes, o
prazer faz parte do texto harmonicamente articulado, do conforto do sentido, o gozo faz parte,
exatamente, dessa desarmonia do não sentido onde, para Lacan (1971, p.82), repousa o chiste.
Freud (1905), um dos precursores do estudo do chiste, já havia atribuído um lugar ao não-
sentido nas técnicas chistosas. Segundo ele, um dos métodos usados para a produção do dito
espirituoso, assim como uma de suas fontes de prazer, é a retirada do sentido original de uma
palavra ou de uma situação e o absurdo que esse método provoca. Na escrita de Barros,
encontramos essa falta de sentido nas enunciações enigmáticas, nas imagens surreais e em
tudo o mais que nos convida a experimentar a letra, o gozo e o real.
Fazendo jus ao caráter impossível do real ao emprestar aos seus poemas alguma
literalidade, entendendo literalidade como uma referência à letra lacaniana, Manoel faz com
que suas frases pairem sobre a impossibilidade da decisão. O leitor experimentará essa
indecisão através do enigma sobre qual caminho seguir rumo à conversão da enunciação em
enunciado, mas também sobre qual caminho tomar rumo à significação conferida ao
significante ou a letra. Seguir por esses caminhos, sejam eles quais forem, é o trabalho que a
poesia de Manoel nos lança, nos transfere. E é nesse sentido que a poesia de Manoel comporta
uma transmissão. É ao promover o significante ao estatuto de letra, retirando-lhes os
significados cristalizados, que o poeta alcançará o “indecidível” de sua poesia.
Vemos essa indecisão aparecer também quando o poeta muda a função de um
substantivo, transferindo-o para a posição de verbo. O que aquele significante, afastado de sua
significação usual de substantivo pode agora significar enquanto verbo? Esse é o ponto de
indecisão em que se apóiam alguns dos poemas de Manoel de Barros. Já citamos um deles
que aparece em Livro das Ignorãças:
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos. (BARROS, 1993, p.75)
Citemos outros:
Nossa maçã é que come Eva
Estrelas é que tem firmamento
Mas se estrela fosse brejo, eu brejava. (BARROS, 1980, p.213)
Tenho que transfazer natureza. À força de nudez o ser inventa. Água recolhendo-se
de um peixe. Ou, quando estrelas relvam nos brejos. (BARROS, 1985, p.44).
69
Manoel usa recursos diferentes em cada exemplo. No primeiro, mantém o substantivo
em sua pronúncia cotidiana, enquanto no segundo e no terceiro busca adequar o substantivo à
sua forma verbal, conjugando-o em “brejava” ou “relvam”. Seja por uma via ou por outra,
Manoel de Barros inova a língua e introduz nesta um significante sem significação
cristalizada. Afinal, qual é o valor de significação de verbos como coisa, , brejar, ou
relvar? Esse parece ser o trabalho que a poesia de Barros nos transfere, lembrando que, para
Lacan, transmissão é uma transferência de trabalho.
Além de usar substantivos no lugar de verbos, existem outros exemplos em que Barros
opta por fazer uso de um significante sem atrelá-lo a uma significação contida em nossos
léxicos. Um deles, por aparecer mais de uma vez em sua obra, sugere ser especial. Refiro-me
ao uso da palavra gravanha. Perguntei a Manoel o que era e o que a palavra gravanha
representava em sua obra: “Gravanha é palavra que os pantaneiros usam quando querem dizer
que o lugar é impenetrável. É moita de gravatá que é áspera e impenetrável. Só formiga
penetra na gravanha sem se ferir.” (BARROS, 2009, entrevista em anexo). Ao ler a resposta
do poeta podemos pensar que a palavra encontra seu valor de significação, a saber: “lugar
impenetrável”. Mas, se buscarmos na obra de Barros os usos feitos dessa palavra, veremos
que essa significação não surge sem antes um trabalho de significância, revelado, por
exemplo, em sua homenagem ao pássaro socó-boca-d’água,
Desse pássaro ninguém sabe muito. Ouço que mora na gravanha – ou no gravanha.
Sabendo ninguém o que seja gravanha. A Palavra é bonita e selvagem. Não está
registrada nos léxicos. Ouço nela um rumor de espinheiro com água. Tem tudo para
ser ninho e altar de um socó-boca-d’água. (BARROS, 1985, p.82).
Esse trabalho de significância feito pelo poeta, assim como pelos seus leitores, é feito
ainda por um interlocutor bastante ilustre. No seu encontro com Guimarães Rosa, Manoel de
Barros o apresenta à palavra gravanha. É o próprio Manoel que narra os efeitos desse
encontro entre a palavra e o escritor poliglota:
Apresentei-lhe a palavra gravanha.
Por instinto lingüístico achou que gravanha seria
um lugar entrançado de espinhos e bem
emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.
E era. (BARROS, 1998, p.33).
Através desses trabalhos de tentar atribuir um valor de significação a essa palavra que
“não está registrada nos léxicos”, que “ninguém sabe o que é”, o poeta parece ter chegado a
um produto aparentemente satisfatório quando me responde que gravanha designa um lugar
70
impenetrável. Pode ser que a questão se feche aí e, por um momento, o significante encontre
seu significado, seu ponto de basta, mas também pode ser, não duvidemos da astúcia do
poeta, que a resposta seja uma provocação e, além de um lugar, gravanha possa ser também
uma palavra impenetrável. Impenetrável, quem sabe, no sentido de opaca, de indecifrável, ou
mais ainda, de incompreensível
35
. Não se pode penetrar a significância da palavra, não se
pode chegar à sua significação, não se pode decifrar o enigma que ela causa. À maneira da
expressão citada por Lacan no Seminário XX, à tire-larigot, podemos encontrar coisas novas
na busca pelo significado de gravanha, novidades oferecidas pelo próprio poeta ou por seus
leitores, mas nenhum dos significados, sejam os de Rosa ou de Manoel, parece aprisionar ou
cristalizar um significado que se refira ao significante gravanha. Diremos, nesse caso, que o
significante funciona como letra, aumentando o trabalho de significância e transferindo um
novo trabalho ao leitor, o que possibilita uma transmissão. O significante não encontra um
ponto de basta, tampouco uma representação. Gravanha não representa outro significante.
Isso é o que faz o significante alcançar um funcionamento próximo à letra. É dessa forma que
o poeta, ao nos oferecer uma palavra não digerida, a palavra a ponto de traste, deslocada de
seu sentido normal ou de qualquer outro sentido, nos oferece, além de um enigma, também
um trabalho.
Nesse sentido é que sua desaprendizagem não nos conduz à ignorância, mas à
produtividade. A ignorância, se atingida, parece ser de outra ordem. Para essa ignorância,
Manoel de Barros tem nome: ignorãça. Lembremos que, na psicanálise lacaniana, também
encontramos uma distinção entre duas ignorâncias. Para o psicanalista, uma ignorância pode
se reduzir à negação do saber, mas também pode encarnar o não-saber, que é uma forma mais
elaborada do saber: “O fruto positivo da revelação da ignorância é o não-saber, que não é uma
negação do saber, porém sua forma mais elaborada.” (LACAN, 1966, p.360). A forma mais
elaborada do saber seria, justamente, o não sabido, o que ainda está por saber, o saber
impossível de uma significação, o saber ainda não digerido.
Opondo-se à aprendizagem, negando-a com o prefixo des, a desaprendizagem de
Manoel busca operar com um saber que ainda não foi digerido, um saber que não se fixa em
35
Ram Mandil, sustentado pela teoria de Barthes, chama a atenção para a distinção entre as escrituras
indecifráveis e as escrituras incompreensíveis. As primeiras indicam uma falha do leitor na tradução, existe
uma cifra para a qual ele não encontra decifração, um enigma de difícil solução. Já no segundo caso, a
ausência de sentido é atribuída não à dificuldade na decodificação, mas à imaginação atribuída ao artista.
Acreditamos que a obra de Manoel de Barros contempla ambas as escrituras, estando a palavra gravanha mais
do lado da escritura incompreensível do que da escritura indecifrável, já que atribuímos o enigma da palavra
ao próprio estilo do poeta, embora saibamos também que esse fato, longe de cessar o trabalho de
decodificação, incita ainda mais a produtividade típica da significância. O mais certo é que, assim como a
distinção entre texto de prazer e texto de gozo, novamente esbarramos em uma vacilação terminológica da
obra de Barthes.
71
uma significação. Essa parece ser a ignorãça que a desaprendizagem nos conduz. Já citamos a
importância dada ao matema no Seminário XX de Lacan (1972/1973). Nesse mesmo texto,
encontramos uma discussão do autor a respeito da aprendizagem, que merece ser resgatada.
Para essa discussão, o psicanalista recorre à experiência do rato no labirinto. Inventados no
começo do século por W. S. Small, os labirintos para ratos, muito usados pela escola
funcionalista de Chicago comandada por William James e Harvey Carr e pela escola
behaviorista tanto de John B. Watson quanto de Burrhus F. Skinner são, por vezes,
considerados situações padronizadas para o estudo da aprendizagem
36
. Essas experiências
visam demonstrar ou conhecer que capacidade o animal tem para aprender. A diminuição da
taxa de ensaios e erros para a obtenção da comida demonstra que o rato é capaz de aprender
algo. Isso, no entanto, não prova que haja um saber. Para Lacan (1972/1973), a verdadeira
questão é saber se o rato vai aprender a aprender, se, após passar por essa prova, em alguma
outra situação o rato irá aprender mais depressa. A hipótese que encontramos é que tudo o que
o rato (ou a unidade ratoeira, para sermos mais fiel à nossa referência), tudo o que ele aprende
é a dar um sinal, um signo de sua presença de unidade. Não se trata de um saber, mas de um
conhecimento, principalmente se nos reportamos a outro texto lacaniano (LACAN, 1960,
p.818) que definirá o instinto, estejamos ou não sob a ótica da biologia, como um
conhecimento que não pode ser um saber. O inconsciente não é composto de um
conhecimento sem saber, de um instinto, mas, pelo contrário, de um saber do qual o sujeito
não tem o menor conhecimento (o que estaria mais próximo do conceito freudiano de pulsão).
É por essas vias que, à psicanálise, não interessa o conhecimento, o “acúmulo de informação”,
como veremos Manoel de Barros também dizer. À psicanálise interessará o saber e não
qualquer saber, mas um saber do não sabido, um saber que não permite uma significação.
Mais do que isso, à psicanálise interessará um saber que se transmite, que se transmite
integralmente. E essa transmissão, é da ordem da letra enquanto matema.
A aprendizagem, portanto, refere-se ao conhecimento sem que isso implique,
necessariamente, um saber. O saber, distinto do conhecimento aprendido, se situa no campo
da transmissão. O saber é, ele também, um enigma
37
, a enunciação carente de enunciado. Por
isso, o saber vai muito além do que o ser falante suporta de saber enunciado. A aprendizagem
“transfere” enunciados, conhecimentos, informações, produtos, mensagens. O saber transfere
o trabalho de converter a enunciação em enunciado, a produtividade, o gozo. Por isso a
36
Para maiores esclarecimentos sobre a Escola Funcionalista de Chicago e a Escola Behaviorista de Watson ou
Skinner, assim como as experiências sobre ratos, vide: MARX, M. H.; HILLIX, W. A. Sistemas e teorias em
psicologia. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 2003. 755p.
37
LACAN, 1972/1973, p.188.
72
aprendizagem, também para Manoel de Barros, consistirá em dar nomes, em descrever o
mundo, em atribuir enunciado ao objeto enigmático, enquanto que, à desaprendizagem,
restará a faculdade de “desformar” o mundo, retirar o nome das coisas, “criar desobjetos”,
“desinventar”, promover o enigma a partir da enunciação.
Para o poeta, a aprendizagem parece consistir em dar nome às coisas, acrescentar
sentidos, como faz o doutor com o rio que dava volta em sua casa. Já a poesia da
desaprendizagem, nos guia para um caminho inverso, do desnomear. Enquanto o poeta fala “à
brinca”, o doutor fala “à vera”. Assim é que, em mais de uma vez, a figura do doutor aparece
na obra de Manoel como o homem que “ensina”, que nomeia as coisas, mas que, ao mesmo
tempo, faz empobrecer a imagem, espanta as rolinhas...
... Aqui é lacuna de gente (...) Só quase que tem bicho andorinha e árvore. Quem
aperta o botão do amanhecer é o arãquã. Um dia apareceu por lá um doutor formado:
cheio de suspensórios e ademanes. Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros
comiam caranguejos. E era mesma distância entre as rãs e a relva. A gente brincava
com terra. O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina. Perto de
nós sempre havia uma espera de rolinhas. O doutor espantou as rolinhas. (BARROS,
1996, p.13).
Para Milner, durante muito tempo se supôs necessária à transmissão do saber a
intervenção de um sujeito insubstituível, a quem chamamos mestre. O doutor que aparece na
poesia de Barros aproxima da caricatura desse sujeito insubstituível que detém o saber e o
entrega a seus discípulos. Da mesma forma que a desaprendizagem de Manoel zomba e
dispensa o doutor, o matema, ao fazer uso da letra, dispensa o mestre: “Quando, sob a forma
do matema, a letra se torna necessária e suficiente para a transmissão, não mais existe par
mestre-discípulo, com seu cortejo de fidelidades e traições...” (MILNER, 1996, p.103).
Vale mencionar nesse momento a crítica que Barros reserva à ciência quando a situa
na mesma função que a do doutor, de espantar os pássaros:
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá / mas não pode medir
seus encantos. / A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem / nos
encantos de um sabiá. / Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare. / Os sabiás divinam (BARROS, 1996, p.53).
O doutor aparece como um mestre que espanta as rolinhas. A ciência, por sua vez,
encontra seus limites na classificação e nomeação dos órgãos de um sabiá, por isso espanta
seus encantos. À ciência, da mesma forma que ao doutor, cabe a nomeação e a acumulação da
informação, do conhecimento. Nisso parece consistir a aprendizagem científica segundo
Manoel de Barros, em acumular informação para nomear e classificar o mundo e os
73
fenômenos
38
. Mas, ao acumular informações, a ciência perde o condão de adivinhar, de
“divinar”. Para Barros, “Há muitas importâncias sem ciência.” (BARROS, 1985, p.69). Os
sabiás “divinam”. Poderíamos arriscar, ainda, alguma relação fonética entre sabiá e saber.
Será que, através dessa operação, poderíamos estender a função poética que Manoel reserva
aos sabiás também para o saber? O saber também “divina”? Pode ser. De qualquer forma, o
saber presente na transmissão parece encontrar mais ecos na desaprendizagem sugerida por
Barros do que no conhecimento que a aprendizagem pedagógica preza enquanto acúmulo de
informação. O sabiá está tão longe do mestre quanto o “saber do não-sabido” está longe da
informação advinda da aprendizagem.
E será exatamente indo em direção contrária ao mestre que Lacan vai situar o discurso
do psicanalista. Se o saber, no discurso do mestre, se encontra a serviço da figura do doutor, o
esforço do analista será colocá-lo na posição da verdade. Para Lacan, isso só será feito se o
analista se lançar em uma operação oposta à do discurso do mestre. Segundo Lacan,
É pela meia volta constituída pelo discurso do analista, pelo discurso que assume seu
lugar por ser de uma distribuição oposta à do discurso do Mestre, primário, que o
saber chega ao lugar que designamos da verdade. (LACAN, 1970, p.308).
Em sua teoria sobre os quatro discursos, Lacan (1969/1970) irá contrapor o discurso
do analista ao discurso do mestre de tal forma que todos os elementos, se comparados os dois
discursos, se encontram em posições opostas. Não nos deteremos na teoria dos discursos
apresentada por Lacan, mas, para o trabalho, se faz interessante marcar essa diferença tão
extrema entre um discurso que ordena um saber e seu avesso, um discurso que faz surgir um
novo saber. No discurso do mestre, o mestre, representado pelo S1, se dirige ao escravo de
maneira a fazê-lo trabalhar duro, de forma que, de tanto trabalhar, aprenda algo; o escravo
vem encarnar o saber, saber, nesse caso, entendido como algo produtivo, representado pelo
S2. O saber do doutor é útil, prático, produtivo, classifica os órgãos do sabiá, mas não mede
seus encantos. Como o mestre não pode mostrar suas fraquezas, ele oculta o fato de que,
como qualquer ser da linguagem, ele sucumbiu à castração simbólica. Por isso, Lacan (1972-
1973) coloca o representante do sujeito barrado, sujeito que falta, no lugar da verdade velada.
Na posição de produto/perda, está o objeto a, indicando que aí resta um gozo
39
.
38
Lembremos dos manuais de psiquiatria (DSM IV e CID-10).
39
É bom lembrar que o objeto a, assim como muitos termos lacanianos, sofre algumas alterações ao longo do
ensino de Lacan e ocupa funções um pouco distintas de acordo com o texto e o momento em que aparece. Para
Marco Antonio Coutinho Jorge (2003), o objeto a aparece na obra de Lacan como um objeto substituto da
satisfação total da pulsão. Por não existir um objeto que satisfaça plenamente à pulsão, o que ela pode
encontrar são objetos a, objetos variáveis que a satisfaz somente parcialmente. Isso permite que o mesmo
termo, num único texto (como, por exemplo, quando Lacan (1969/1970) aborda a teoria dos discursos) apareça
ora como satisfação parcial da pulsão, ora também como objeto causa do desejo.
74
O discurso do analista irá numa direção totalmente contrária, uma vez que o objeto a,
agora como causa do desejo, ocupará o lugar de agente, o que aponta para que o analista
desempenhe a função de pura condição desejante e interrogue o sujeito em sua divisão. Ao
analista não cabe a função didática de ensinar, de dar sentido ou significação ao texto do
analisante. Pelo contrário, a estrutura do discurso analítico será marcada por sua
descentralização em relação ao sentido. Dessa forma, o analista, esquivando-se do lugar do
conhecer, do mestre, transfere ao paciente o trabalho de “criar” um novo significante mestre
que ainda não se relacionou com qualquer outro significante.
Se a poesia de Barros exclui o doutor, o ensino de Lacan, com o uso cada vez maior da
matemática, exclui o mestre. Se para aprender precisamos dos “nomeamentos” e dos
significantes do doutor, para desaprender precisamos do esvaziamento do significante,
afastando-o de seu valor de significação ou do sentido comum das palavras. Não podemos
afirmar que a poesia de Barros faz operar o mesmo discurso do analista, mas que ela ocupa
uma posição diferente da qual se encontra o mestre é algo que nosso estudo nos revela com
segurança. Enquanto aprender, principalmente para os construtivistas, é uma construção,
desaprender nos aponta para a construção de uma “desconstrução”, mais precisamente, uma
ruína do sentido.
É assim que o projeto de Barros coincide com o de um de seus personagens de Ensaios
Fotográficos: “Um monge descabelado me disse no caminho: ‘Eu queria construir uma ruína.
Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução (...) Alguma coisa que servisse para abrigar o
abandono’.” (BARROS, 2000, p.31). A poética de Barros se funda nesse desejo de construir
uma “desconstrução”, uma ruína das palavras e do sentido que abrigue o vazio, o abandono, o
nada.
Em Livro sobre nada (1997), o poeta, no que chama de Pretexto, abre sua obra
dizendo do desejo de Flaubert de fazer um livro sobre nada, desejo este que é relatado a uma
amiga em 1852 e é encontrado por Manoel de Barros em Cartas exemplares, organizadas por
Duda Machado. Manoel de Barros diz que o nada de Flaubert não corresponde ao nada
existencial, ao nada metafísico, mas que Flaubert queria escrever um livro que quase não
tivesse tema e se sustentasse apenas pelo estilo. Logo em seguida, Manoel de Barros adverte o
leitor da diferença entre o nada de Flaubert e o nada de sua obra: “Mas o nada de meu livro é
o nada mesmo”. E continua discorrendo sobre de que nada trataria em seu livro:
É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer,
pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc etc. O que eu queria era
75
fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que
use o abandono por dentro e por fora. (BARROS, 1996, p.7).
Mais adiante dirá, ainda a respeito de sua poesia: “o que não sei fazer desmancho em
frases. Eu fiz o nada aparecer. (...) Perder o nada é um empobrecimento” (BARROS, 1997,
p.63). Se perder o nada é um empobrecimento, a poética de Manoel de Barros vai trabalhar
justamente para fazê-lo aparecer. Para Barbosa (1995), a poesia de Barros está do lado do
simbólico, mas procura a todo tempo uma aproximação com o real, com o não simbolizado,
com aquilo que é impossível de ser representado.
É na tentativa, portanto, de fazer o nada aparecer, de apresentar o impossível de ser
representado, que a poesia de Barros caminha para a construção de uma ruína que abrigue o
abandono. O poeta, como o monge descabelado, busca a construção de uma “desconstrução”.
E ao sugerir essa ruína, Manoel de Barros nos oferece uma proposta que tende a ir contra a
toda uma prática pedagógica baseada na construção do conhecimento e pautada na adição do
sentido. Portanto, uma aprendizagem construtivista. A aprendizagem, então, pode ser
entendida como que sustentada na adição de um sentido acostumado, de um saber pré-
digerido. A desaprendizagem, ao contrário, caminha pra ruína, pro abrigo do nada.
Mesmo com suas diferenças, Manoel de Barros e Lacan, o primeiro através da poesia e
da articulação significante, o outro através da psicanálise e da busca pelo matema, sugerem
uma escrita que se diferencia da construção da aprendizagem por portar nela um suporte que
funciona como letra. Para Lacan, seu próprio texto só se torna ensinável, talvez transmissível,
depois que é matematizado, transformado em letra.
Assim, um dizer como o meu, é por ex-sistir ao dito que ele permite o matema, mas
não constitui matema para mim e, assim, coloca-se como não-ensinável antes que o
dizer se tenha produzido, e como ensinável apenas depois de eu o haver
matematizado... (LACAN, 1972, 484).
Do não-ensinável, Lacan fez o matema. Do desejo de não dizer nada, Manoel de
Barros fez sua poesia. Enquanto um aposta na transmissão para a sobrevivência da
psicanálise, o outro sugere a desaprendizagem como caminho para apalpar as intimidades do
mundo. Mas ambos sustentam suas obras fora do campo simbólico, do campo da significação,
da representação. Lacan (1971) é muito preciso ao dizer que seus enunciados ganham êxitos e
esperança absoluta, exatamente ao não serem compreendidos. A não compreensão de seus
leitores e ouvintes é, para o autor, um sinal de que alguém foi afetado pela sua fala. Como o
autor ressalta, só se compreende o que já se tem na cabeça, e a transmissão vai além dessa
perspectiva. A transmissão está presente não somente no conteúdo da teoria lacaniana, mas na
maneira mesma, na forma, como ela é exposta, anunciada, principalmente em seus Escritos.
76
Como vimos, para Lacan
40
, o escrito é feito para não ser lido. Assim, encontramos em sua
obra uma distinção entre o escrito e a fala que faz do primeiro um recurso muito mais
próximo da letra e do matema do que o segundo. O escrito seria o osso do qual a linguagem é
a carne. O escrito, portanto, habita, como a letra, o real, enquanto que a linguagem se sustenta
na articulação significante própria do simbólico e, seguindo esse raciocínio, próprio do
semblante.
No Seminário XVIII, ao procurar por um discurso que não seja emitido pelo
semblante, Lacan (1971) recorrerá ao escrito acreditando ser através dele que encontraríamos
um discurso sustentado pela letra. O semblante se caracterizaria, portanto, por aquilo que
constitui o significante, a representação; já o escrito, feito para não ser lido, estaria, como
dissemos, do lado letra. Um ano antes, o próprio Lacan já havia justificado o uso cada vez
mais constante que faz do escrito ao dizer que as letrinhas que sustenta sua teoria dos
discursos não estão em seu texto por acaso, mas, justamente, por trazerem consigo pouco ou
nenhum significado. Isto, naturalmente, é condição de um discurso que se abstém do
semblante e pretende tocar algum pedaço do real.
Para Lacan, quem pode responder a pergunta a respeito de um discurso que não seja o
do semblante é a literatura de vanguarda. Lembremos que também Barthes (2004) reserva, ao
lado da lógica matemática e do zen budismo, um lugar especial a esse mesmo movimento
literário quando fala da assemia. A mesma atitude literária que leva Barthes a crer num
discurso desipotecado de sentido, leva Lacan a enxergar uma proposta vanguardista que visa
atingir um discurso que não se sustente no semblante. A poesia de Manoel, como já vimos,
procura por um texto desipotecado de sentido. Se acreditarmos que o significante na obra de
Barros funciona como letra, poderíamos também dizer que a obra de Manoel, de forma
próxima ao movimento vanguardista, se propõe a procurar por um discurso que esteja situado
fora do semblante.
A dificuldade, ou impossibilidade, de se chegar a esse discurso completamente
desvinculado do simbólico e sustentado apenas pelo real e pela letra é enunciada na obra de
Barros através de sua suspeita em relação à palavra ao ponto de osso:
Há quem receite a palavra ao ponto de osso, / de oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem. / Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida,
na sarjeta. / Sou mais a palavra ao ponto de entulho. / Amo arrastar algumas no caco
de vidro, / envergá-las pro chão, corrompê-las / - até que padeçam de mim e me
sujem de branco. / Sonho exercer com elas ofício de criado: / usá-las como quem usa
brincos. (BARROS, 1980, p.206).
40
LACAN, 1973, p.271 ou Lacan, 1972/1973, p.38.
77
Se, por um lado, o poeta busca, a todo o momento, a palavra despida, nua, que lhe
mostre os pentelhos, por outro, ele pretere o osso da linguagem a favor da palavra fodida que
ele busca dominar. A linguagem, uma vez que nos emprega mais do que nós a empregamos,
nos obriga a uma servidão, ao “ofício de criado”. Para Barthes (2007, p.16), a língua é
fascista, uma vez que fascismo não é impedir de dizer, e sim obrigar a dizer. Somos servos da
língua e a ela prestamos serviços. A única saída que nos resta contra essa escravidão, é a
trapaça, a esquiva que permite ouvir a língua fora do poder. Essa é a função que tanto Barthes
quanto Lacan parecem atribuir à literatura de vanguarda. Também Manoel, mesmo
reconhecendo o poder fascista das palavras, palavras essas que tiram o lugar debaixo dele,
mostra sua inclinação pra essa trapaça. Ao poeta, mais do que a palavra a ponto de osso, lhe
interessa a palavra a ponto de entulho, que se deixe dominar, que se deixe arrastar no chão e
ser usada como quem usa brincos.
Se o semblante se sustenta no simbólico e no pano que a articulação significante tece,
a nudez das palavras pode também nos remeter à ausência do semblante, da carne ou das
vestes que recobrem o osso. A palavra em Manoel procura se despir do semblante para atingir
sua nudez. Mas chegar ao osso da linguagem parece ser uma meta impossível. Talvez tão
impossível quanto fazer uso dela. Mas, então, será que todos os recursos de Manoel, de
alcançar a nudez das palavras, tirar o sentido delas, usar a linguagem como quem usa brincos,
fazer o significante funcionar como uma letra, desnomear as coisas e os seres, enfim, todas as
maneiras do poeta tentar sua desaprendizagem, tudo isso faz parte de um projeto impossível?
Se pensarmos que a desaprendizagem de Manoel, em todas as suas facetas, procura alcançar a
letra, estaríamos corretos em atribuir à sua obra uma impossibilidade própria do real
lacaniano. E mais, uma estrutura, próxima da estrutura de um escrito, que terá como função
impossível representar o irrepresentável.
A nudez da palavra, o osso da linguagem e o real que a letra carrega parecem ser
muito mais um alvo do que um objeto alcançado ou dominado pela poesia de Barros. O real,
como lembra Barthes (2007), é o objeto de desejo da literatura. Na poesia de Manoel, o osso
impossível da linguagem, o real recoberto pelo semblante, é habitat de lírio na fala dos loucos
que, juntamente com as crianças, aparecem em sua obra sempre ao lado dos poetas: “Poeta é
um ente que lambe as palavras e depois se alucina. / No osso da fala dos loucos há lírios.”
(BARROS, 1989, p.289).
Assim é que a poesia de Manoel torna-se um convite à desaprendizagem. Muito mais
do que funcionar como mestre capaz de adicionar conhecimentos ou histórias ao leitor,
78
Manoel sugere o vazio, o nada, o real, a letra. Em Livro sobre nada, em um capítulo
homônimo, o poeta escreve: “(...) sempre que desejo contar alguma coisa não faço nada; mas
quando não desejo contar nada, faço poesia” (BARROS, 1997, p.69). A poesia do poeta
surge, como foi dito, do desejo de não contar nada ou, como também diz o poeta, de fazer o
nada aparecer. Não há acréscimo de significantes, não há adição de conhecimentos; o que
move o poeta, antes de nomear as coisas, é desnomeá-las, é “fabricar brinquedos com
palavras” (BARROS, 1997, p.11).
Embora seja importante ressaltar que a desaprendizagem de Manoel de Barros não se
confunde com a transmissão lacaniana, da mesma forma que essa não se confunde com a
produtividade de Barthes, esses termos parecem ter alguns pontos de encontro e desencontros
que podem nos ajudar a pensar sobre eles. A Produtividade, trabalhada por Barthes, a
Transmissão, conceito lacaniano, e a desaprendizagem, neologismo de Barros, parecem não
se coincidirem, mas se aproximam em alguns pontos, principalmente no ponto referente ao
real. A transmissão consiste em uma transferência de trabalho, enquanto a produtividade se
apresenta como o trabalho proporcionado pelo texto de gozo, o que faz o leitor passar de
consumidor a produtor do texto. Já a desaprendizagem se caracteriza pela busca de um novo
olho, um “olhar infantil” que trabalha uma nova maneira de ver o mundo, como se fosse pela
primeira vez. Se a transmissão se dá pela letra enquanto matema, e a produtividade se dá pela
assemia, a desaprendizagem se dará pela palavra despida, pelo texto em ruínas, pelo
abandono do sentido. Todas elas parecem contornar algo do não sentido, do não simbolizável,
algo que parece estar para além do simbólico, próximo da letra, e que nos remete ao
impossível de significação. Impossibilidade que expressa o real que cada experiência busca
atingir. Se a significação é impossível, resta-nos, portanto, o trabalho de significância que a
abertura própria da falta de significação nos provoca. Se acreditamos que há alguma
aproximação entre a produtividade, a transmissão e a desaprendizagem, será justamente no
que cada uma dessas práticas alcançam de pedaços do real.
A desaprendizagem contida na poesia de Manoel de Barros aparece em seu texto sob
variados aspectos, desde a prevalência da significância sobre a significação, passando pelas
imagens surrealistas e pelos desobjetos que cria, pelo caráter enigmático a que ela nos lança e
pela tentativa de fazer o nada aparecer, até a desinvenção do mundo e desestruturação da
linguagem que ela propõe. Todas essas formas parecem servir à desaprendizagem se
emprestarmos a ela esse caráter de transmissibilidade sugerido em nosso derradeiro capítulo.
Caminhando opostamente à aprendizagem enquanto adição de conhecimento e buscando o
gozo que o exercício do saber representa, Manoel de Barros joga com a linguagem de maneira
79
a criar uma poesia singular que se sustenta, nos dizeres lacanianos, na letra e na transmissão
que ela carrega.
80
5 CONCLUSÃO
Através do diálogo entre a obra de Manoel de Barros e a teoria psicanalítica, nos foi
possível aproximar de sua poética da desaprendizagem e deixarmo-nos tocar por ela. Os
efeitos diversos dessa aproximação não podemos precisar com exatidão; no entanto,
esperamos ter atingido algumas metas, assim como, também, chegado a novas questões.
Acreditando ter o cuidado que exige toda aproximação entre Psicanálise e Literatura,
pretendemos ter feito com que a poesia de Barros, através de tudo o que ela comporta, tenha
nos tocado de forma a permitir que avancemos em direção a um saber tanto literário quanto
psicanalítico. Literário, uma vez que destacamos a análise feita de um aspecto da poesia de
Manoel de Barros que encontramos no uso peculiar que faz da letra através daquilo que o
próprio poeta denomina “uma desaprendizagem”. Psicanalítico, porque tentamos
problematizar, através desse mesmo processo de desaprendizagem, a maneira como, por meio
da palavra, um poeta encontra acesso ao real, o que, como lembra Ram Mandil (2005), pode
nos orientar na prática do inconsciente, já que também este é atravessado pela linguagem,
pelo significante e pela letra.
Tendo como objeto principal de nosso estudo a desaprendizagem de Manoel de
Barros, acreditamos ter o privilégio de nos situar em um espaço movediço que separa, de
maneira não tão evidente, nossas duas áreas de interesse, a Literatura e a Psicanálise. Se nosso
referencial, ao abordarmos os problemas da Psicanálise, foi os conceitos lacanianos de
significante, letra e transmissão, nosso ponto de apoio na crítica literária foi os textos de
Barthes que contemplam a significância, o texto de gozo, a assemia e a produtividade.
Como podemos verificar no primeiro capítulo do nosso trabalho, a poesia de Manoel
de Barros é marcada pelo que ele chama, além de desaprendizagem, de doença da palavra.
Manoel, ao longo de sua obra, se interessa cada vez mais pelo que a palavra carrega de
disfuncional, de doença, de equívoco, de erro. Ao se enveredar por esse caminho, o poeta faz
de sua aventura literária uma prática muito mais rica pela inutilidade do gozo que extrai das
letras do que pela vertente mensageira e útil da linguagem. Isso justifica seu interesse pela
palavra despida de qualquer valor de significação, da palavra desvinculada do sentido comum
que encontramos em nosso léxico, da palavra despida ou descascada, da palavra fodida e na
sarjeta.
Ao tirar o sentido das palavras, ao tentar a construção de uma ruína, Manoel, talvez
mais do que inventar uma nova língua, como ele mesmo chega a sugerir ao falar do “idioleto
81
manoelês archaico”, procura “desinventar” sua própria língua. Para isso, o poeta elabora,
dentro de sua obra, um acervo de sugestões e críticas do fazer poético que pretende executar.
Dentre essas intenções, explicitamente reveladas em diversos trechos de sua obra, nos chama
a atenção a insistência do autor na importância de o poeta errar seu idioma, de o poeta, a
exemplo das crianças, brincar com as palavras, a exemplo dos loucos, delirar com a língua ou
fazê-la delirar.
Se a principal atividade do poeta ou, ao menos seu principal objetivo, é fazer frases
que desestruturam a linguagem, que desloquem a significação de um texto, que provoquem
uma crise na cadeia significante, é porque ele reconhece, de alguma forma, o acesso que a
palavra pode lhe dar a algo irrepresentável, impossível, algo que nos remete ao real lacaniano.
Baseando-nos no ensino de Lacan, chegamos a propor que esse trabalho do poeta vai ao
encontro do que o psicanalista francês sugere ser chamado de letra. Se, para Saussure (1996),
o signo lingüístico é composto por um significante e um significado, a letra, para Lacan, vai
ser, ora o significante deslocado de qualquer significado, como no conto de Poe, onde a
letra/carta faz suas peripécias sem que precise recorrer a uma mensagem, ora como uma
marca distante de qualquer aspecto significante, como encontramos nos matemas.
Se dissemos que a desaprendizagem de Barros consiste em trabalhar com o equívoco
da palavra, retirando ou subvertendo seus significados, distanciando o significante de seu
valor de significação, é porque acreditamos que o uso que faz dos significantes aproxima
esses últimos aos aspectos fundamentais da letra. Mas antes de pensarmos a letra como traço
desvinculado de qualquer caráter significante e, por isso, portadora de uma transmissão,
pensamos a letra como o significante que se abstém de um valor de significação e portadora,
deste modo, de um trabalho de significância.
Para isso, recorremos, também, ao semiólogo e crítico literário Roland Barthes (2004),
que nos apresenta três regimes antropológicos do sentido: a monossemia, que seria um regime
patológico onde toda mensagem se fixaria a um só sentido; a polissemia, que seria a
existência de uma variedade de sentidos para a mesma mensagem; e a assemia, que seria a
falta de qualquer sentido. Mesmo que, em alguns momentos de sua obra, Barros se valha da
polissemia, e empreste a uma mesma palavra sentidos diferentes, o que vemos como
característica mais marcante no poeta é sua busca pela desestruturação da linguagem, pela
retirada e esvaziamento de sentido. Jogando com esses dois regimes de sentido, polissemia e
assemia, mas buscando cada vez mais atingir a falta de sentido, a palavra desipotecada de
qualquer significação, Manoel enriquece sua obra em significância.
82
Nossa hipótese foi que, nesse momento, as duas leituras, lacaniana e barthesiana, se
tocam. Para Barthes (2004), a significância contrapõe-se à significação por sua produtividade.
Se a significação fecha um sentido, dá um ponto de basta para a cadeia significante, servindo
de pontuação, a significância, justamente por suprimir qualquer possibilidade de fechamento,
de ponto final, por não conter nenhum sentido fechado, abre um leque de possibilidades de
significação que exige um trabalho, chamado por Barthes de produtividade.
A escrita marcada pela significância, mais do que pela significação, convida o leitor a
ser muito mais do que um consumidor do texto, uma espécie de co-produtor. Se a significação
não está pronta, se o texto se encontra em um estado de assemia, o material literário se
encontra aberto e provoca um trabalho de produção do qual, além do escritor, o leitor
participa. Se a teoria lacaniana coincide, nesse ponto, com a crítica literária de Barthes, é
porque, pelo menos durante um período de seu ensino, Lacan também situa a letra no jogo
saussuriano entre significado e significante. Se a letra é encarada como suporte material do
significante, será marcada pela falta de significação e por um aumento de significância. Ou
seja, se a letra é o significante sem ponto de basta, sem ponto final, é uma abertura que
fomenta o trabalho de significância que, como vimos, remete à produtividade referida por
Barthes.
Porém, Lacan, ao longo de seus seminários, afasta a letra do campo significante e
empresta a essa característica outras que a aproxima mais a metáfora do matema do que da
carta roubada do conto de Poe. Embora essa distinção entre letra e significante não seja, de
modo algum, um ponto claro na obra de Lacan, podemos perceber que a letra vai se
distanciando do significante principalmente em virtude de seu caráter não representativo. Se o
significante representa algo para outro significante, uma letra não representa nada, a letra faz
marca. Essa característica da letra vai justificar um afastamento de Lacan da teoria de Barthes
sobre a significância, embora novamente não estejamos tratando de algo claramente distinto.
Se o significante, despojado de seu valor de significação, ganha em significância, a letra,
enquanto estrutura de matema, ganha em transmissibilidade. Aí chegamos à nossa mais
fundamental hipótese: se a poesia de Manoel busca esvaziar o sentido das palavras, seu estilo
será marcado por uma tentativa, também notada por Lacan na literatura de vanguarda, de
construir um discurso que esteja fora da dimensão simbólica do semblante, e que alcance algo
do real próprio à letra. Em outras palavras, a hipótese é que a desaprendizagem de Barros
consiste em fazer com que o significante funcione como letra e se aproxime do matema, não
por sua dimensão matemática, mas por fugir a uma representação. Busca, assim, fazer marca,
83
seja através do rumor da língua, seja, mais freqüentemente, através do não sentido que ela
toca.
A hipótese, portanto, foi que, se a poesia de Barros é marcada por uma doença das
frases, a principal característica dessa doença seria ser transmissível, não como um vírus
maligno que impede o corpo de trabalhar, mas, pelo contrário, por uma marca da linguagem
que, justamente, possibilita a transferência de um trabalho. Trabalho este marcado pela
significância e pela impossibilidade de significação. Tentamos ter o cuidado de não confundir
as teorias apresentadas, seja por Lacan e Barthes, seja nas próprias propostas literárias
encontradas na poesia de Manoel de Barros. Porém, não podemos deixar de reconhecer uma
aproximação entre o uso que o poeta faz da palavra com a busca pelo não sentido teorizado
por Barthes ou pela letra trabalhada por Lacan. O ponto comum desses três projetos, além da
busca por atingir um pedaço do real, parece estar no trabalho a que a prática do poeta nos
remete. Se na teoria de Barthes encontramos uma exaltação ao texto desipotecado do antigo
regime de sentido que nos lançaria a um trabalho de significância, na teoria lacaniana
encontramos uma busca pela letra, pelo matema, objetivando alcançar uma transmissão. Na
poesia de Barros, encontramos a desaprendizagem como forma de se chegar a um novo olho,
um olho infantil, que vê o mundo pela primeira vez.
Nesse sentido, pensamos que o neologismo do poeta parece-nos agora mais propício
ainda do que no começo deste trabalho. Se a aprendizagem se desdobra em uma prática
pedagógica de acrescentar conhecimentos, de nomear, de aproximar as palavras dos sentidos
encontrados nos léxicos, a desaprendizagem seria rica por oferecer não uma transferência de
informação, mas uma transferência de trabalho; não um saber pré-digerido, mas um saber do
não sabido. Destarte, Manoel nos convida a desaprender oito horas por dia, a despir as
palavras e a se contagiar com a doença inerente às frases.
Dissemos que, além de algumas hipóteses trabalhadas e algumas conclusões
alcançadas, nossa pesquisa nos levou também a algumas questões novas. A principal delas
seria quanto ao valor clínico de nosso estudo. Acreditando na importância da dimensão clínica
em qualquer estudo psicanalítico, seja como fonte de inspiração, seja como finalidade prática,
perguntamos em quê o presente trabalho nos orienta na prática do inconsciente. Tendo em
vista principalmente os avanços teóricos do fim do ensino lacaniano, que concebe a prática
analítica como um trabalho que se orienta muito mais pela atualização da letra e pela
intervenção no real do que em produzir sentidos ou articular significantes, nos questionamos
se a desaprendizagem de Manoel, como uma tentativa de via de acesso ao real, pode nos
oferecer também uma inspiração de caráter clínico. Uma inspiração, por exemplo, de uma
84
clínica que se oriente muito mais por algo próximo a uma desaprendizagem do que pela
produção de sentido ou pela decifração do inconsciente. Sem aprofundarmos em uma nova
questão que nos demandaria, logicamente, nova pesquisa, contentemo-nos em aproximar a
invenção que o poeta indica como conseqüência de uma desaprendizagem à invenção que
Lacan sugere em seus últimos seminários como um objetivo da análise.
Como já destacamos, não podemos prever todos os efeitos da aproximação feita entre
a literatura de Manoel e a teoria psicanalítica de Lacan. Se o poeta pode nos trazer alguma
contribuição clínica, talvez ainda seja precoce dizer. Por enquanto, apenas ressaltemos a
maneira “singular, tão singular” que o poeta encontra de alcançar um pedaço do real.
85
ANEXO: DEZ PERGUNTAS A MANOEL DE BARROS
41
1) Manoel, em O Livro das Ignorãças, você sugere que, para apalpar as intimidades do
mundo, é preciso desaprender oito horas por dia. No que consiste essa
desaprendizagem?
A gente precisa de ser estudado em língua de sol, de água, de árvores, de conchas e
de pedras. É preciso ser estudado nas coisas para talvez humanizá-las depois. E uma
vez humanizadas as coisas a gente consegue até pegar na bunda do vento e mesmo
apalpar as intimidades do mundo.
2) Ainda sobre desaprendizagem, você sugere em entrevista o seguinte: "Desaprender
umas oito horas por dia para adquirir um novo olho, digamos, um olho infantil, para
olhar o mundo como se fosse a primeira vez. (...) Criar, para mim, começa exatamente
no desconhecer". Onde se situa a criação e a invenção em Manoel de Barros?
Sim. Acho importante a infância da palavra. Com ela podemos penetrar no absurdo
divino das imagens. Na pura graça verbal. Sem regências e sem sintaxe. Só apalpando
o mundo. A gente acaba gostando de escrever as coisas que não acontecem. Só a
graça verbal.
3) Também em entrevista, você diz que seu "negócio é com a palavra", que o que você
faz é "descascar palavras". O que você procura atingir com esse descascamento?
Usei o verbo descascar, mas não foi no sentido de tirar a roupa da palavra. Foi no
sentido de amá-la e ser desejado por ela.
4) Em Tratado geral das grandezas do ínfimo, você diz: "Lacan entregava aos poetas a
tarefa de contemplação dos restos. E Barthes completava: Contemplar os restos é
narcisismo". Qual é a influência desses autores em seu trabalho?
41
Entrevista concedida através de um e-mail encaminhado à secretária de Manoel de Barros, Eliane Sandra, em
Maio de 2009.
86
Gosto de Lacan e de Barthes. A citação foi para confirmar o gosto que tenho pelas
pobres coisas do chão. Pelos restos. As coisas desprezadas servem mais à pena do que
as coisas engalanadas.
5) Você diz ter apresentado ao Rosa a palavra "gravanha". O que é "gravanha" e o que foi
feito dessa palavra na obra de Manoel de Barros?
Gravanha é palavra que os pantaneiros usam quando querem dizer que o lugar é
impenetrável. É moita de gravatá que é áspera e impenetrável. Só formiga penetra na
gravanha sem se ferir.
6) Manoel de Barros "não é biografável". Por quê? Quem é biografável?
Porque eu acho que o poeta é só inventado. Biografia acho que tem caminhos
diferentes.
7) Um "abridor de amanhecer", uma "fivela de prender silêncio". Como funcionam esses
objetos, "inutensílios", que aparecem na obra de Manoel de Barros?
São brincadeiras de coisificar o amanhecer; de coisificar o silêncio. Tais objetos
fazem parte de meu trabalho de humanizar ou de coisificar as coisas. É brincadeira
poética de criança. Por exemplo: “Vi uma lesma ajoelhada na pedra”.
8) Em O Livro das Ignorãças, você diz: "Eu escrevo o rumor da língua". Em outros
momentos você diz procurar a palavra ágrafa, o som que não deu liga. O que a poesia
de Manoel atinge de "rumor"?
Penso que a poesia faz encantamentos através do rumor das palavras mais do que
pelas informações das palavras.
9) Você diz que todos seus livros são repetições do primeiro. No entanto, o primeiro
parece se diferenciar dos outros, por exemplo, quanto à metalinguagem e ao emprego
do que você chama de coisificação do homem, que vai ganhando espaço em sua obra.
87
Que visão panorâmica você tem do seu percurso literário? Desde o primeiro livro até
agora, o que se repete?
Tudo são repetições de mim por formas diferentes. São invenções com as quais eu
quero expor meu subconsciente.
10) Você sugere a desnomeação e a desaprendizagem, exercícios que parecem desarrumar
a linguagem. No entanto, cria um Glossário, de transnominações, é verdade, e que não
explica muita coisa. Mas como um Glossário entra na obra de um poeta como Manoel
de Barros?
Glossários são gestos de palavra para alcançar a poesia do trapo, da pedra, da água,
da lesma. Na verdade eu não sei usar a razão para explicar.
88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
42
ANDRADE, Maria das Graças Fonseca. Escrita e escuta de corpo inteiro: a lalíngua de Água
Viva. In: ALETRIA: REVISTA DE ESTUDOS DE LITERATURA, n.12. Belo Horizonte:
UFMG, 2005. p.171-184.
ATTIÉ, Joseph. O dito/o escrito: o necessário, o impossível, o contingente. Isso: Despensa
Freudiana. Belo Horizonte [s.n.], n. 1, p.26-30, 1989.
AZEVEDO, Cristiane Sampaio. A desutilidade poética de Manoel de Barros: Questão de
poesia ou de filosofia? Revista.doc, Ano VIII, n. 3, jan./jun 2007. Disponível em
http://www.revistapontodoc.com/3_cristianesa.pdf
. Acesso em: 19 ago. 2009.
BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica em
Manoel de Barros. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Fumec, 2003.
______. A matéria de poesia em Manoel de Barros. In: CASTELLO.
BARROS, Manoel de (1937). Poemas concebido sem pecado. 3ª. ed. Rio de Janeiro; São
Paulo: Record, 1999.
______ (1942). Face Imóvel. In: ______ Gramática Expositiva do chão (Poesia quase toda).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
______ (1956). Poesias. In:______ Gramática Expositiva do chão (Poesia quase toda). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
______ (1960). Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro – São Paulo: Record, 2006.
______ (1966). Gramática expositiva do chão. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
______ (1970). Matéria de poesia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
______ (1980). Arranjos para assobio. In: In: _______. Gramática Expositiva do chão
(Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
42
Para facilitar a busca por referências, os livros e textos de Freud, Lacan e Manoel de Barros estarão dispostos
segundo a data da primeira publicação e não da ordem alfabética.
89
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