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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
LEONARDO DINIZ DO COUTO
A IGUALDADE NA DEMOCRACIA LIBERAL: uma análise da suficiência do liberalismo
de John Rawls à luz de algumas críticas comunitaristas.
RIO DE JANEIRO
2010
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1
LEONARDO DINIZ DO COUTO
A IGUALDADE NA DEMOCRACIA LIBERAL: uma análise da suficiência do liberalismo
de John Rawls à luz de algumas críticas comunitaristas.
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
PPGF, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Filosofia
Orientadora: Maria Clara Marques Dias
RIO DE JANEIRO
2010
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C871
Couto, Leonardo Diniz do.
A igualdade na democracia liberal: uma análise da
suficiência do liberalismo de John Rawls à luz de algumas
críticas comunitaristas / , Leonardo Diniz do Couto. Rio de
Janeiro, 2010.
110 f.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
2010.
Orientador: Maria Clara Marques Dias
1. John, Rawls, 1921-2003. 2. Igualdade 3. Liberalismo.
5. Comunitarismo. 6. Filosofia – Teses. I. Dias, Maria Clara de
Marques (Orient.).
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Título.
CDD: 320.513
3
LEONARDO DINIZ DO COUTO
A IGUALDADE NA DEMOCRACIA LIBERAL: uma análise da suficiência do liberalismo
de John Rawls à luz de algumas críticas comunitaristas.
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
PPGF, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Filosofia
Aprovada em:
__________________________________________________
Prof.(a) Dra. Maria Clara Marques Dias (orientadora),
Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Álvaro de Vita,
Universidade de São Paulo, USP
4
Esta dissertação é dedicada a minha mãe e
à Lethicia.
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de reconhecer todo o apoio e o acompanhamento de minha
orientadora, Maria Clara Dias, com quem tive a grande honra e o enorme prazer de trabalhar.
Minhas palavras, com certeza, são insuficientes para expressar o quanto lhe sou grato por ter
aceitado o meu projeto; por toda sua atenção ao meu texto; por suas considerações sempre
cuidadosas e sinceras; e suas críticas sempre muito elucidativas; enfim, por todo o ambiente
propício para o desenvolvimento de um trabalho como este de mestrado. Sempre lhe serei
muito grato por tudo.
Gostaria de agradecer também ao professor Fernando Rodrigues por aceitar fazer parte
desta banca de mestrado. Sua presença me deixa muito feliz. Também gostaria de agradecer
ao professor Álvaro de Vita de quem tenho grande admiração –, por aceitar prontamente o
convite para compor esta banca.
Agradeço ao PPGF por acolher meu projeto de mestrado e por confiar no seu
desenvolvimento; às sempre acessíveis e dispostas, Dinah e Sônia; aos professores do
programa, dentre os quais destaco a professora Susana de Castro, com quem tive a agradável e
instrutiva oportunidade de discutir um pouco da teoria de Rawls, de Walzer, dentre outras.
Não poderia esquecer também da professora Marina Velasco, quem me apresentou, na
graduação, os autores, os temas dos quais me ocupo hoje em dia, sempre com muita
seriedade, rigor, comprometimento e dedicação. Sempre lhe serei grato.
Agradeço aos meus amigos e companheiros de estudos e debates, da graduação e do
mestrado, nas aulas da Clara, no SEFP, no NIS e nos corredores: Marcelo Alves, Carlos,
Fábio Shecaira, Príscila, Henrique, Fernando, Lara, Jacqueline, Juliana, Ana Luíza, Sérgio,
Antoine, dentre outros. Agradeço, em especial, ao Fábio Oliveira, por ler e criticar este texto.
Agradeço aos meus amigos, que por conta das circunstâncias encontram-se distantes,
como Felipe e Fernanda, Laete, Marcos, Fernando dentre outros, mas que sempre, cada um a
seu modo, ofereceram-me estímulos e me propiciaram, aliás, propiciam-me sempre que com
eles tenho contato, muita alegria. Agradeço àqueles que comigo leem Homero e tentam me
ensinar um pouco da cultura grega.
Agradeço a minha família, a minha mãe, meu pai, Cleide e Pedro, por todo carinho,
pela compreensão, estímulo, paciência, alegria, enfim, por tudo aquilo que pode ser dado
pela família.
Agradeço também, é claro, a minha família estendida: à Patrícia, Nathalia, Pakato e
todos os outros não citados por falta de espaço; agradeço à Dulce, ao Rafael e Cláudia
6
também por todo estímulo, alegria e carinho. Em especial, como não poderia ser diferente,
agradeço a minha querida Lethicia por todo auxílio e carinho.
E, por fim, gostaria de agradecer ao CNPq pela concessão do auxílio financeiro que
tornou este trabalho possível.
7
Nossa esperança para o futuro de nossa sociedade apóia-se na crença de que o
mundo social admite pelo menos uma ordem política decente, de tal forma que um
regime democrático razoavelmente justo, embora não perfeito, seja possível.
John Rawls
8
RESUMO
COUTO, Leonardo Diniz do. A igualdade na democracia liberal: uma análise da suficiência
do liberalismo de John Rawls à luz de algumas críticas comunitaristas. Orientadora: Maria
Clara Marques Dias. Rio de Janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Filosofia) Programa
de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2010.
O objetivo deste trabalho é investigar se o entendimento de igualdade apresentado
pelos liberais, tal como proposto por John Rawls através de sua justiça como equidade, é
suficiente para garantir que na sociedade democrática liberal atual todos os cidadãos serão
tratados realmente como iguais. A pretensão assumida aqui é mostrar que ele não é suficiente
e que, por isso, carece de algumas “correções”, tal como recomenda Michael Walzer e alguns
outros autores comunitaristas, ou, quem sabe, de alguns aprofundamentos para atingir o citado
objetivo. A ideia é sugerir alguns ajustes à teoria liberal de autores como Rawls – ajustes estes
propostos a partir da análise de tal conceito sob o ponto de vista da liberdade, da justiça e da
democracia –, sem, no entanto, descartá-la inteiramente, visando, com isso, indicar uma
compreensão liberal da igualdade mais próxima das intuições de igualdade e justiça
difundidas em geral nas sociedades democráticas liberais atuais.
Palavras-chave: Igualdade; liberalismo; comunitarismo; John Rawls; Michael Walzer.
9
ABSTRACT
COUTO, Leonardo Diniz do. A igualdade na democracia liberal: uma análise da suficiência
do liberalismo de John Rawls à luz de algumas críticas comunitaristas. Orientadora: Maria
Clara Marques Dias. Rio de Janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Filosofia) Programa
de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2010.
This work intends to investigate whether the liberal understanding of equality like
John Rawls’ is sufficient to ensure that all citizens are really treated as equals in the current
liberal democracy. The intended purpose is to show that such understanding is not sufficient.
Therefore, it needs to be adjusted or developed as recommended by Michael Walzer and
others communitarians. The main idea is to suggest some adjustments to the liberal theory of
authors such as Rawls - adjustments arrised by the analysis of the concept of equality from the
point of view of freedom, justice and democracy. Thereby, we intend to indicate a liberal
understanding of equality which is closer to the intuitions of equality and justice generally
accepted in liberal democracies today.
Key words: equality; liberalism; communitarianism; John Rawls; Michael Walzer.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 A IGUALDADE DE LIBERDADES ................................................................................. 26
1.1 A AUTONOMIA E A REAL CONSIDERAÇÃO DE TODOS ........................................ 26
1.2 IGUAL LIBERDADE NA SOCIEDADE BEM-ORDENADA ........................................ 30
1.3 CONSIDERAÇÕES COMUNITARISTAS E SEUS LIMITES ........................................ 39
1.3.1 Sandel e o “eu” radicalmente desfigurado ou dissolvido ........................................... 40
1.3.2 Taylor e a importância do contexto comunal .............................................................. 42
1.4 IGUAL STATUS, IGUAL AUTONOMIA ......................................................................... 46
1.5 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 50
2 A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E O LIBERALISMO ...................................................... 52
2.1 A VIRTUDE PRIMEIRA DAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS ............................................. 52
2.2 JUSTIÇA LIBERAL, A ESCOLHA INDIVIDUAL E O MÉRITO.................................. 55
2.3 RESPOSTAS COMUNITARISTAS .................................................................................. 59
2.3.1 A resposta de Taylor e a réplica de Jürgen Habermas .............................................. 60
2.3.2 Afinal, o Estado liberal pode ser neutro? .................................................................... 66
2.3.3 A resposta de Walzer ..................................................................................................... 69
2.4 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 74
11
3 A IGUALDADE POLÍTICA .............................................................................................. 76
3.1 NOSSO PROBLEMA: O QUE DEVE SIGNIFICAR A IGUALDADE POLÍTICA NA
DEMOCRACIA LIBERAL ATUAL? ..................................................................................... 77
3.2 RAWLS E A PERSPECTIVA LIBERAL ......................................................................... 81
3.3 CRÍTICA COMUNITARISTA .......................................................................................... 87
3.4 OBSERVAÇÃO LIBERAL ............................................................................................... 92
3.5 PARA ALÉM DO LIBERALISMO .................................................................................. 96
3.6 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 98
4 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 100
4.1 ........................................................................................................................................... 100
4.2 ........................................................................................................................................... 101
4.3 ........................................................................................................................................... 105
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 106
12
INTRODUÇÃO
Sem dúvida, um dos valores mais problemáticos e, por isso, um dos mais discutidos
contemporaneamente é a igualdade. Afinal, o que se deseja senão a igualdade quando se
reivindica por dignidade aos excluídos, maior atenção às minorias, inclusão social ou virtual?
Um problema importante é saber, na realidade em que nos encontramos, o que isso a
igualdade quer dizer precisamente, o que significa e, além disso, como podemos ou
devemos, de forma clara, caracterizá-la para concretizá-la. Ou, com mais precisão, um
problema importante é saber como nós, cidadãos de uma sociedade democrática liberal,
devemos tomá-la exatamente, de tal maneira que nos aproximemos realmente de pôr em
prática essa nossa intuição de que todos precisam ser igualados em algum aspecto.
A nossa história e a história da filosofia mostram que, a partir da instituição dos
Estados modernos, muitos foram os modos de lidar com esta e outras questões, que surgem
quando pensamos a igualdade dentro do contexto de uma democracia liberal. Ressalto a partir
da instituição dos Estados modernos, porque esta, a igualdade, com essas especificações, a
saber, entendida dentro do contexto de uma democracia liberal, surge flagrantemente com a
modernidade, sendo produto das experiências políticas revolucionárias do século XVII e,
sobretudo, das revoluções americana e francesa oitocentistas.
Não pretendo, com essa demarcação histórica, insinuar que antes da modernidade este
conceito era negligenciado. É evidente que podemos encontrar na antiguidade e na Idade
Média filósofos e estadistas tratando e, em diversos casos, defendendo tal valor, assim como,
a democracia, o modo de governo que normalmente lhe é associado, e até mesmo algumas
ideias que talvez hoje possamos associar ao liberalismo. Muitos, como Otanes
1
, acreditavam,
para ilustrar o que foi dito, que a melhor forma de governo é aquela na qual a autoridade é
exercida em comum. Aristóteles, outro exemplo, que defendia um governo que preservasse o
comando comum dos cidadãos, em sua Política diz: “homens diferentes podem julgar
aspectos diferentes do desempenho, e todos eles podem julgar o conjunto” (ARISTÓTELES,
1997, p. 98, 1281 b).
Com essa demarcação histórica, pretendo unicamente delinear com mais nitidez o
conceito geral de igualdade que tenho a intenção de abordar em todo este trabalho. Trata-se
do conceito de igualdade que se ancora em um princípio jurídico-filosófico universalista,
resultante, principalmente, das revoluções do final do século XVIII, com o qual, podemos
dizer de modo geral, passou-se a compreender que a noção de igual consideração deveria se
1
Otanes, ao discutir com Megabises e Dario acerca da melhor forma de governo para os persas, diz: “Sou […]
pela instauração do governo democrático, pois todo poder emana do povo” (HERÓDOTO, 1968, p. 285).
13
estender a todo ser humano, sendo justo que cada um fosse igualmente protegido pelas leis.
Sobre este princípio também conhecido como o princípio geral da igualdade ou o princípio
da igualdade perante a lei –, podemos dizer que de acordo com ele, enquanto uma construção
jurídico-formal, a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem distinção ou
privilégio de qualquer natureza. Ela, desta forma, alicerçada em tal princípio, não pode
considerar, por exemplo, alguém com menos ou mais dignidade do que qualquer outra pessoa.
Todos indistintamente devem ser tratados como portadores dos mesmos direitos.
A explicitação de tal princípio, nós podemos encontrar: na Virginia Declaration of
Rights, de 1776, que afirma que “all men are created equal, […] they are endowed by their
Creator with certain unalienable Rights, […] among these are Life, Liberty and the pursuit of
Happiness”; na Declaração dos direitos do homem e do cidadão, elaborada na França em
1789, na qual os artigos “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos” e “A lei
[…] deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir” são bastante
representativos; e também na 14th Amendment, que diz: “no state shall […] deprive any
person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within
its jurisdiction the equal protection of the laws”
2
.
Um comentário que não posso deixar de fazer aqui é que não ignoro a possibilidade de
que os legisladores franceses e americanos, bem como os filósofos que ajudaram a estabelecer
os fundamentos de tais textos, além, é claro, das instituições sociais, muitas vezes, quando
utilizaram expressões como “todos os homens”, não tivessem em mente todos os indivíduos
indistintamente e que mais claro para nós, talvez, seria se nestes documentos estivesse escrito
“todos os indivíduos do sexo masculino, brancos, letrados, proprietários”. Nos EUA, por
exemplo, até bem pouco tempo – ainda no século XX – havia instituições nas quais o acesso e
a permanência de negros eram proibidos. Do mesmo modo, as mulheres na França
adquiriram o direito a voto na década de 1940
3
. Contudo, também não ignoro que, embora
essa concepção de igualdade jurídico-formal talvez não tivesse, em origem, um caráter, de
fato, universalista ou, pelo menos, um caráter que nós consideramos hoje como tal –, foi ela
que possibilitou a luta pela inclusão dos grupos não enquadrados nas qualificações acima
descritas. Nela que se basearam movimentos como os movimentos pelos direitos civis das
últimas décadas que reclamavam não por uma revolução ou por uma mudança radical nas
2
Dentre diversos outros exemplos de influência destas enunciações do princípio geral de igualdade, encontramos
a Constituição brasileira, de 1988, na qual o artigo diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
3
Sobre isso, vide THÉBAUD, Mulheres, cidadania e Estado na França do século XX (2000).
14
cartas constitucionais, mas basicamente pelo reforço das mesmas, em síntese, pela igualdade
para todas as camadas da população, o que, sem dúvida, contribuiu para a concepção atual de
que todas as pessoas merecem um igual tratamento e devem, por isso, possuir de fato iguais
direitos.
Deste modo, podemos, então, delinear, embora em traços muito gerais, a apreensão da
igualdade que tenho como propósito trabalhar neste texto. Trata-se daquela surgida, por assim
dizer, com o advento do Estado moderno, no contexto do Estado de direito, aquele que tem a
responsabilidade de preservar iguais diretos a todos os seus membros, baseado na premissa
peculiarmente moderna de que são eles próprios que conduzem o processo legislativo ou,
noutras palavras, na premissa de que todos, em comum, são compreendidos como capazes de
se autodeterminar e, como consequência, de legislar para si mesmos
4
. Ou seja, trata-se da
apreensão da igualdade que apenas se tornou possível devido às mudanças radicais ocorridas
na concepção de ser humano com a modernidade, isto é, que ocorreram após as revoluções
política, científica e industrial dos últimos séculos, e que promoveram a emancipação dos
indivíduos das estruturas medievais tradicionais, deixando este de ser classificado como
súdito ou soberano, servo ou senhor, para ser considerado, ao menos formalmente, como
cidadão igual a qualquer outro, com os mesmos direitos e deveres, simplesmente por ser
dotado de razão e consciência.
Um autor que pode nos ajudar a perceber com mais acuidade tal apreensão é
Immanuel Kant, visto que ele dá conta desta noção como diretamente associada à instituição
de um sistema de direitos, fruto da autolegislação em comum de pessoas racionais, ou melhor
dizendo, visto que ele partilha das principais intuições do que mesmo atualmente é concebido
como o igualitarismo praticado e defendido pelo pensamento liberal nas sociedades
democráticas. Para Kant, o ponto de partida da consideração igual é o princípio moral da
dignidade humana, o princípio que assevera que todo ser humano possui um valor intrínseco
e, enquanto possuidor de tal valor, todo “homem, e duma maneira geral, todo ser racional,
existe como fim em si mesmo, não como meio para o uso arbitrário desta ou daquela
vontade” (KANT, 1986, p. 68). Para defender esta tese ele parte de três premissas: (1ª) que
nos seres racionais se pode encontrar a vontade, isto é, “a faculdade de determinar a si mesmo
a agir em conformidade com a representação de certas leis” (KANT, 1986, p. 67); (2ª) que o
fim é o que serve de princípio objetivo à vontade; e (3ª) que este é dado exclusivamente pela
4
Daí a ideia de separação do Estado em três poderes: o legislativo, que representa a voz do povo, sendo, por
isso, o poder soberano ou supremo, o executivo, personificado pelo governante, e o judiciário, personificado pelo
juiz. Sobre isso vide MONTESQUIEU, Do espírito das leis (1996), p. 167-168; ROUSSEAU, Do Contrato
Social (1973), p. 40 e 64; e KANT, A Metafísica dos Costumes (2003), p. 155.
15
razão, tendo, por isso, de ser válido igualmente para todos os seres racionais. Para Kant,
dessas premissas se segue que todo ser racional deve ser moralmente autônomo, o que
significa que ele próprio pode determinar sua vontade. Ninguém pode tê-la determinada
por um terceiro, isto é, por um indivíduo que o conceba como um mero meio em vista de um
fim que seja distinto e externo a ele.
Este princípio moral que assevera que todo homem deve ser tratado de acordo com sua
dignidade, conforme Kant, é atendido quando nenhum indivíduo é privado de sua liberdade,
isto é, quando se garantem iguais direitos a todos, ou, utilizando suas palavras, quando todos
são livres para “fazer um uso público de sua razão em todas as questões” (KANT, 1985, p.
104). Pois, em condições de liberdade, diz, é uma consequência quase inevitável, que os
indivíduos se esclareçam, ou se tornem autônomos moralmente, e, mais do que isso, que o
povo se retire progressivamente do estado de violência e estabeleça o Estado de direitos, no
qual todos são vistos igualmente como cidadãos. Desta feita, para que ninguém seja privado
de sua liberdade, conforme o autor, deve-se garantir a todos, igualmente, os três atributos que,
segundo ele, estão conectados intrinsecamente à essência de cidadão. São eles: (1º) o atributo
da liberdade legal, que possibilita ao cidadão obedecer unicamente à lei a qual o próprio deu o
seu assentimento; (2º) o atributo da igualdade civil, que lhe possibilita não reconhecer entre os
outros cidadãos qualquer um que lhe seja superior na faculdade moral de obrigar-se
juridicamente; e (3º) o atributo da independência civil, que, por sua vez, possibilita-lhe a
existência e a preservação de direitos e poderes não por conta do arbítrio de outrem, mas
unicamente porque se submete como membro, bem como todo outro cidadão, à legislação
pública
5
.
Sobre o terceiro atributo, como comenta o autor, dele se segue a personalidade civil
dos cidadãos, que lhes confere a capacidade de não precisar ser representado quando se
demandam direitos. Trata-se da capacidade que eles possuem de atuar politicamente a partir
de sua própria escolha. O caso é que, para esta perspectiva, nem todos os cidadãos contam
com esta personalidade, os chamados pelo filósofo de cidadãos ativos. Os cidadãos
passivos, que necessitam das providências materiais de outro cidadão para sua preservação
existencial, não de seus próprios negócios, justamente por serem dependentes, neste aspecto,
do amparo de outrem, não dispõem de personalidade civil. Entretanto, de acordo com este
autor, esta diferenciação no âmbito da cidadania não fere a igualdade fundamental de todos,
visto que a dignidade de cada um é respeitada, para ele, não com o poder de votar leis
5
Vide KANT, A Metafísica dos Costumes (2003), p. 156.
16
positivas para o Estado, mas com o respeito destas às leis naturais da liberdade e da igualdade,
que pertencem necessariamente e que são imprescritíveis a todos os seres humanos. Afinal de
contas, completa, qualquer um pode passar de um cidadão passivo a um ativo, e mesmo um
nobre pode por ser a nobreza um posto que se liga à posição e não à pessoa perder esta
posição e voltar a ser parte do povo
6
.
Notemos aqui que, com esses elementos abarcados pelo cenário exposto pela teoria de
Kant, um traço muito importante da igualdade que vamos tratar se mostra, qual seja, a
primazia da dignidade igual frente à participação política igual, dado que ela é tomada como a
base e a justificação para a igualdade dos cidadãos enquanto membros da sociedade na
estruturação da sociedade civil. Nesse sentido, segundo essa compreensão geral da igualdade
que tomaremos como ponto de partida, a primeira precede a segunda, o que requer que, deste
modo, os indivíduos que compõem a sociedade civil sejam considerados iguais enquanto
possuidores de igual valor como seres racionais, não necessariamente como iguais
participantes das decisões da mesma. Assim, seguindo o caminho de Kant, embora o poder
soberano do Estado, o poder legislativo, não possa encontrar-se em outras mãos senão as do
povo
7
, devendo, por conseguinte, a vontade geral unida do povo legislar, não é necessário que
todo cidadão, sem exceção, possa participar ativamente da determinação legislação. Antes
disso, basta que o citado princípio moral torne-se concreto, ou seja, que todos os indivíduos
que compõem a sociedade sejam encarados como iguais em dignidade, ou melhor, em
liberdade ou autonomia.
Em face desse quadro, ainda trilhando o caminho de Kant, o justo nada mais é do que
proteger a dignidade de cada um ou, sendo mais preciso, a liberdade de todos, que esta é
vista como o único direito inato a todo indivíduo em decorrência de sua humanidade
8
. A
função, então, da justiça, podemos observar, acompanhando esta perspectiva, é dar conta da
relação que se estabelece entre pessoas diferentes, que por terem cada uma resguardada a sua
liberdade natural, podem fazer escolhas diversas e até conflitantes entre si. Nesta conjuntura,
o seu papel primordial é conciliar estas escolhas de tal modo que elas possam ser conservadas
sem, no entanto, impossibilitarem-se reciprocamente. A pretensão é garantir espaços privados
nos quais os indivíduos tenham o direito de se autodeterminar livres de intromissões em seu
6
Vide KANT, À Paz Perpétua (1989), p. 34.
7
A ideia aludida aqui é que, por se pressupor que ninguém pode ser injusto consigo mesmo ou, dito de outro
modo, de que não é possível causar injustiça a si próprio quando se segue a sua própria lei, para que o povo seja
tratado com justiça, todo direito deve dele proceder.
8
Deste resguardo da liberdade salvaguarda-se, segundo esta concepção, a igualdade natural, que surge como
implicação necessária da primeira, o que, como foi notado, faz com que nenhum cidadão seja superior em
autoridade a outro qualquer, e que cada qual, desta maneira, seja senhor de si mesmo.
17
arbítrio. Com base nisso, uma circunstância justa, nas palavras de Kant, é aquela na qual a
liberdade de uma pessoa pode ser adequada à liberdade de todas as outras pessoas, conforme
uma lei universal da liberdade.
E em consonância com isso, o tratamento do Estado a seus membros deve ser, segundo
esta ótica, imparcial, não privilegiando nem prejudicando qualquer um deles. Ele deve tratá-
los considerando que eles têm a posse de si mesmos, que são civilmente independentes e que,
por esta razão, não uma vontade absoluta que supere a vontade de cada um. Frente aos
olhos deste não pode haver distinções. E mesmo quando este faz uso da coerção
prerrogativa exclusivamente sua –, o faz com o intuito de garantir a igualdade de direito a
todos, impedindo que a liberdade de uma pessoa impeça o uso da liberdade de outra e, com
isso, o exercício da igualdade de liberdades, de acordo com uma lei universal da liberdade.
Uma observação a ser feita neste ponto é que Kant não defende um governo
democrático. Ele chega a afirmar, inclusive, que quanto menor o número de dirigentes do
Estado, mais próximo se está da única constituição jurídica perfeita. Conforme ele, mais
importante para o povo é que o Estado seja organizado por meio de uma forma republicana de
governo, isto é, que ele seja constituído por três poderes autônomos, porém coordenados, de
tal forma que se complementem e se subordinem entre si: o legislativo, o executivo e o
judiciário. É somente nesta forma de governo que, entende Kant, o povo é o soberano, uma
vez que o poder legislativo, o poder de estabelecer leis para todos, pertence à sua vontade
concorrente e unida, apesar de nem todo cidadão poder contribuir, com voz ativa, no
estabelecimento dos rumos e prioridades do seu Estado. Na democracia, diz, todos querem ser
senhores, pois não se distingue o poder legislativo do executivo. Na república, por outro lado,
completa, como os poderes são separados, todos são igualmente cidadãos, e o governante, por
estar sujeito às leis promulgadas, tem a função de executar não o que desejar, mas o que
representar a vontade unida do povo. No entanto, é importante que observemos que, embora
Kant não defenda a democracia, na medida em que ele compreendeu como naturais aos seres
humanos, a liberdade legal e a igualdade civil, ele inevitavelmente contribuiu, de alguma
forma, para o desenvolvimento atual desta.
Com efeito, com o auxílio da teoria kantiana, podemos, enfim, demarcar com mais
clareza a noção geral de igualdade da qual nos ocuparemos neste texto. Trata-se, de maneira
geral, da igualdade concebida como intrinsecamente associada à liberdade, que se atribui aos
seres humanos única e exclusivamente porque são racionais. Em outras palavras, trata-se da
noção de igualdade que herdamos de nossa tradição ocidental moderna, da noção defendida,
muitas vezes, como a que concretiza, em nossas sociedades liberais democráticas, a nossa
18
intuição de justiça para com os seres humanos, considerados indistintamente como portadores
de direitos subjetivos fundamentais, direitos estes que, acredita-se, devem ser protegidos de
coações externas, tanto dos outros indivíduos como do próprio Estado. Trata-se, em suma, da
noção com base na qual se entende que justo é garantir como prioritário a cada pessoa um
espaço de ão privado por meio de uma postura neutra e imparcial do Estado para que cada
uma possa fazer o que lhe aprouver, dentro dos limites das possibilidades legais e concretas.
A questão que surge neste ponto da introdução, e que nos norteará no decorrer de todo
este texto, é saber se esse entendimento de igualdade dá conta plenamente de nossas intuições
de igualdade e de justiça ou se, às vezes, devemos admitir, ele nos leva a adotar posições
injustas e indevidamente não igualitárias. Em outros termos, podemos perguntar: são sempre
suficientes a garantia dos direitos individuais e a da estrutura estatal imparcial aos pobres, aos
negros e às mulheres, em sociedades com uma história marcada por classicismo, racismo e
machismo, para que eles sejam tratados, com justiça ou como iguais? Ou nestes casos, é
necessária uma atitude parcial do Estado, defendendo um pouco mais do que direitos e
oportunidades formais iguais a estas pessoas para que elas recebam realmente um tratamento
justo? De modo semelhante, basta a postura neutra do Estado em relação aos costumes dos
vários grupos sociais para que todos os indivíduos sejam considerados como iguais em
dignidade e autonomia ou, às vezes, ele precisa considerar, e quiçá até incentivar, alguns
costumes particulares para que tal igualdade se concretize? E quanto à igualdade política, é
suficiente que as leis promulgadas respeitem os direitos fundamentais de todos ou carece-se
de uma participação maior dos cidadãos na formação da opinião e vontade com respeito aos
objetivos e normas de interesse comum?
Em muitas ocasiões, ao que parece, a sociedade sobre a qual tal compreensão da
igualdade se assenta, qual seja, a sociedade democrática liberal, ao privilegiar a defesa dos
direitos individuais por via da adoção de um Estado neutro e imparcial, trata com injustiça
àqueles indivíduos que normalmente cremos que carecem de um tratamento mais sensível às
suas particularidades. Ao não considerar os costumes sociais, dentro dos quais as pessoas
expressariam suas identidades, ela ares de ferir a dignidade das mesmas e de dificultar o
desempenho de suas autonomias. E, ao defender que a igualdade fundamental se resume à
defesa de direitos individuais que representariam os limites da tomada de decisão política, ela
parece entravar algo de essencial a todo cidadão, a saber, o seu direito inalienável de
participar ativamente da deliberação e da tomada de posição no debate público, tendo mais do
que direito a um voto.
19
Por outro lado, todavia, é óbvio que não é por acaso que, em nossas sociedades, os
ditos direitos fundamentais são defendidos como invioláveis, através de uma estrutura estatal
que se pretende neutra, a todo ser humano. Eles são as garantias destes últimos de que não
sofrerão com arbitrariedades de seus governantes e de decisões majoritárias ou, como diz
Dworkin, são seus “trunfos”, e sua defesa significa a defesa de sua segurança. Eles
representam, assim, um dos pilares de nossa sociedade e seu declínio representa o fim do
Estado de direitos. Não é o caso, por conseguinte, de questionar a sua necessidade, mas, quem
sabe, a sua suficiência. Será que não temos que ampliar as garantias constitucionais e a
responsabilidade do Estado para que possamos considerar as sociedades democráticas liberais
como mais próximas da justiça e mais igualitárias? Deste modo, o nosso tema de investigação
fica, enfim, transparente. A nossa questão é: são suficientes os instrumentos tradicionais
liberais, advindos de nossa tradição ocidental, para, levando em conta nossas atuais intuições
de justiça e igualdade, considerar como iguais todos os indivíduos de uma sociedade
democrática e liberal, de forma que estes se compreendam como protegidos pelas leis e
também participantes com voz ativa nos debates públicos? Ou, em breves palavras, basta a
compreensão tradicional liberal da igualdade nas atuais democracias liberais? A nossa
pretensão ao colocarmo-nos esta questão é elucidar um pouco mais o igualitarismo a ser
buscado nas sociedades liberais.
Nesta dissertação, esta questão será analisada sob o ponto de vista da liberdade, da
justiça e da democracia a fim de verificar como se pode estruturar uma sociedade mais
igualitária, levando em conta nossas intuições gerais e nossa tradição liberal. Para tratar da
igualdade sob estes pontos de vista nesta dissertação tomarei basicamente a teoria conhecida
contemporaneamente como liberalismo político, de John Rawls, mas também a teoria política
de Ronald Dworkin, como modelos da retomada da tradição liberal moderna, por dar primazia
em suas interpretações da igualdade à defesa de um sistema de direitos subjetivos. A elas
proporei acrescer ainda algumas contribuições, aprofundamentos ou, quando muito,
“correções” advindas, especialmente, da concepção conhecida como comunitarista de Michael
Walzer e também de Charles Taylor, tendo a intenção de também verificar os limites desta.
No primeiro capítulo, abordaremos a liberdade, ou, mais precisamente, a autonomia,
talvez, o conceito capital das sociedades liberais. De maneira geral, podemos dizer que, dentro
destas sociedades, a liberdade consiste na possibilidade, que deve ser conservada a todo
indivíduo, de buscar a realização do que compreende ser aquilo que constitui a sua vida digna
ou o seu bem sem sofrer interferências impeditivas externas. É a garantia, portanto, do
comando da própria vida a todo e qualquer indivíduo racional. É claro que tal garantia, em
20
tais sociedades, não significa total permissão para fazer o que aprouver a cada sujeito. As
liberdades pessoais têm um limite, a saber, quando uma impossibilita a outra. Neste caso, elas
precisam ser ajustadas de modo a formarem um sistema coerente de liberdades que seja
garantido a todos igualmente. A liberdade assim concebida, entende-se, não conflita com a
igualdade. Ao contrário, tomando este sentido, elas se complementam ou, nas palavras de
Dworkin, representam dois aspectos do mesmo ideal humanista, já que se reforçam.
É essencial frisar que, nesta compreensão da liberdade, estamos pressupondo
claramente uma sociedade plural constituída de pessoas com concepções religiosas, morais e
filosóficas diversas. A diferença está vinculada, portanto, à figura do indivíduo, não a das
associações, grupos ou comunidades. A ideia é que são eles que discordam entre si e, por isso,
são eles que se diferenciam por professarem concepções de bem distintas.
Quase que natural para os liberais é que, em face dessa diversidade de projetos
pessoais de vida proferidos na sociedade, o Estado seja neutro e imparcial para que todos os
seus membros sejam igualmente livres ou autônomos. Para Rawls, por exemplo, o pluralismo
deve ser tomado pelo Estado como um fato, uma marca intrínseca de qualquer regime
democrático. Assim, o Estado, tratará a todos como iguais em liberdade se assumir uma
concepção de justiça que seja independente das diversas doutrinas religiosas, morais e
filosóficas e que se situe exclusivamente no domínio do político. Desta forma, ele não
intervirá na execução das diversas concepções individuais acerca do bem, sendo neutro em
relação a elas.
No entanto, se assumirmos que as identidades pessoais se relacionam tanto com as
escolhas de cada um como com os vínculos familiares, sociais e culturais não voluntários, e
que nas sociedades liberais alguns grupos sociais estão de fato mais vulneráveis do que
outros, por sofrerem com preconceito e discriminação, um problema nos aparece: será que
uma postura não parcial do Estado já não significa, na medida em que não considera a
vulnerabilidade de certos grupos, um desrespeito ou uma indiferença à consideração da
dignidade e da autonomia dos indivíduos a eles vinculados? Se esta for a situação, caso
queiramos indivíduos igualmente emancipados, seguros em suas ações, ou seja, realmente
iguais em liberdades, parece, não podemos aceitar que o Estado sempre adote uma postura
neutra ou indiferente com relação ao bom funcionamento da sociedade civil. Pois, caso este
queira a igualdade individual de liberdades, mostra-se como uma responsabilidade sua o
fortalecimento daqueles grupos em maior risco, grupos estes que apresentem, é claro, modelos
e objetivos compatíveis com os valores compartilhados por uma sociedade liberal ou, no
linguajar rawlsiano, que sejam razoáveis. Como observa Walzer, em sociedades imigrantes,
21
marcadas pela diversidade cultural, para que os indivíduos sejam realmente iguais em
liberdades ou em autonomia, é preciso que, muitas vezes, os grupos aos quais eles estão
vinculados sejam fortalecidos, e isto também precisa ser papel do Estado. Portanto, com base
nesta pressuposição, se quisermos uma sociedade mais igualitária em liberdades devemos
igualar o reconhecimento público ou o status social de todos. Afinal, é difícil acreditar que
alguém que tem a sua imagem associada à subalternidade e à inferioridade, por ser vinculado
a um determinado grupo cultural, social ou econômico, possui as mesmas possibilidades de
ação e escolha do que uma pessoa que não tem.
No segundo capítulo, passamos a lidar com os limites da ação estatal e da liberdade
individual, no contexto de uma democracia liberal, isto é, passamos a tratar da justiça. Como
diz Rawls logo na primeira frase da primeira seção de Uma Teoria da Justiça, “a justiça é a
virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de
pensamento” (RAWLS, 2008, p. 4). Com esta assertiva, vemos que a justiça constitui, para tal
compreensão, o suposto primordial da organização social, a sua condição de possibilidade.
Sem ela, as leis e as instituições, por mais bem organizadas e eficientes que possam ser,
precisam ser reformuladas ou abolidas.
Como observa Mill
9
, a importância da justiça apenas se mostra em determinadas
circunstâncias, a saber, quando escassez moderada de bens e riquezas e quando os seres
humanos são egoístas e competitivos, mas também generosos. Em situações de abundância de
bens, na qual todos têm o que desejam; de escassez total, onde ninguém tem o que deseja; de
grande benevolência humana, na qual todos ficam satisfeitos em suprir as necessidades dos
outros; ou de grande malevolência humana, na qual ninguém se importa com o bem do outro,
ela não é necessária, visto que, nestes casos, ou bem não conflito de interesses ou bem o
conflito é insustentável. Por conseguinte, somente nas condições sob as quais a justiça “é
tanto possível quanto necessária” (RAWLS, 2008, p. 153), na qual um conflito sustentável
de interesses, é possível pensar em uma distribuição de bens e riquezas sociais que viabilize a
cooperação humana.
Para a teoria liberal, em tais circunstâncias, nas quais, inclusive, podemos dizer que
nos encontramos, que os indivíduos são concebidos como autônomos, isto é, como
igualmente capazes de tomar as suas decisões por si mesmos, a distribuição de bens precisa
respeitar as escolhas de cada um feitas em liberdade, responsabilizando-os por elas, e
unicamente por elas. Autores como Rawls e Dworkin ressaltam este fato e salientam a
9
Vide NUSSBAUM, Frontiers of justice (2006), p. 46-47.
22
injustiça do sofrimento de consequências resultadas de condições não escolhidas. Assim,
vemos que não é por acaso que Rawls chega ao princípio da diferença, que prescreve que toda
desigualdade deve representar o maior benefício possível aos membros menos afortunados da
sociedade. Ele acredita que uma distribuição justa de bens é aquela na qual o proveito dos
talentos naturais, que são, segundo ele, arbitrários do ponto de vista moral porque resultantes
de circunstâncias não escolhidas, não beneficia unicamente os mais favorecidos pela “loteria
natural”, mas todos, especialmente, os menos favorecidos. Neste sentido, o princípio da
diferença diminui o impacto das circunstâncias sociais.
É importante dizer que nas sociedades liberais, em geral, para que a justiça da
distribuição de bens seja garantida, entende-se, é preciso proteger a cada um os direitos
individuais, basicamente, as liberdades de consciência, expressão e associação, os direitos de
ir-e-vir, de ter propriedades pessoais e de se dedicar a uma ocupação, e os demais direitos e
liberdades amparados pelo império da lei. A ideia é que ao proteger tais direitos, garante-se
que ninguém será tratado sem a consideração de sua dignidade, ou, nos termos de Kant, como
um mero meio para o bem de outro, em suma, garante-se o respeito à autonomia de cada um.
Daí o motivo de, no âmbito de tais sociedades, haver a atribuição de um papel proeminente à
Constituição e ao sistema de direitos inscritos nela contra eventuais procedimentos
majoritários. Nesta medida, frente à justiça, numa sociedade liberal, todos devem ser
concebidos como iguais em autonomia, o que significa, como portadores de iguais direitos.
O que se pode objetar com relação a este aspecto é que quando o indivíduo é
estigmatizado socialmente, ou seja, quando o seu reconhecimento pelos seus concidadãos é
negativo, talvez não baste para lhe garantir a justiça, uma distribuição de bens que seja
equitativa entre sujeitos abstratos ou hipotéticos. Afinal, como nota Taylor (1993, p. 44,
tradução nossa), o “falso reconhecimento” ou a falta do mesmo “pode ser uma forma de
opressão”, que confina o indivíduo a um “modo de ser falso, deformado e reduzido”. Se assim
o for, a justiça não pode se reduzir a uma mera distribuição de bens, um simples dar e receber.
Ao que parece, ela deve, antes, levar em consideração os significados sociais dos bens a
serem distribuídos, isto é, avaliar se eles ajudam a promover o devido reconhecimento dos
diversos indivíduos ou não e quanto, ou seja, ao que parece, ela precisa ser entendida com
princípios pluralistas, abrindo a possibilidade de os bens poderem ser trocados por diversos
meios e distribuídos por diferentes agentes e motivos, respeitando evidentemente os direitos
subjetivos de cada um.
Por fim, no terceiro capítulo, passamos a abordar o conceito de igualdade numa
democracia, a forma de governo característica das atuais sociedades liberais. De forma geral,
23
pode-se dizer que a democracia é o governo do povo, ou melhor, o governo no qual o povo
constitui a autoridade soberana, sendo ele o responsável por tomar as decisões importantes no
que concerne às políticas públicas. Embora seja o povo, o soberano, nas sociedades liberais
ele é limitado em sua atuação. Ele não pode em sua tomada de decisão ferir ou desrespeitar os
direitos subjetivos de sequer uma pessoa. Isto significa respeitar a dignidade de todos. Além
disso, como é todo o povo que governa, não um soberano que sobrepuje a todos em
autoridade. Todos são igualmente cidadãos, e, por isso, o poder político deve ser distribuído
igualitária ou equitativamente entre todos. Isto, por sua vez, significa respeitar a igual
cidadania de cada um.
Nas sociedades liberais, normalmente, a democracia é concebida como um modo de
governo onde as decisões são tomadas mediante deliberação e votação de agentes racionais,
limitados pelos direitos fundamentais, em âmbito institucional, tendo como base a regra da
maioria, ou seja, a regra que prescreve que a decisão de todos é aquela endossada pela maioria
dos cidadãos ou de seus representantes. Ela é vista, com efeito, por assim dizer, como uma
luta, uma disputa argumentativa entre pessoas racionais pelo endosso majoritário de uma
proposta. Como ilustração deste entendimento temos Rawls que defende que uma democracia
constitucional razoavelmente justa é aquela que é regulada por leis, endossadas pela maioria
dos cidadãos, ou melhor, a maioria de seus representantes, leis estas que devem ser passíveis
de ser apoiadas por legisladores racionais que obedeçam aos dois princípios de justiça.
A questão, neste caso, é que para que todos os cidadãos sejam considerados como
iguais no processo político democrático, parece não bastar o respeito aos direitos das pessoas
particulares e a reserva a cada um do direito igual a um voto na escolha de representantes que
decidirão sobre as questões políticas fundamentais dentro das instituições sociais. Se Dworkin
está correto, é preciso que todos sejam incentivados a participar mais ativamente do debate
público. Sendo assim, ao que parece, o autogoverno da democracia precisa significar mais do
que sufrágio igualitário e eleições frequentes, mas uma parceria de iguais, que refletem juntos
sobre o bem comum, sendo, desta maneira, os cidadãos entendidos como membros ativos e
iguais, entendidos como juízes das disputas políticas e participantes das mesmas nos vários
foros da sociedade civil. De outro modo, se Walzer está correto, é preciso considerar também
que no debate público mais do que agentes racionais insensíveis que, através de discussão
e votação, resolvem os seus conflitos e discordâncias. paixão nele também. pessoas
engajadas e apaixonadas nesse engajamento, com convicções, interesses e também razão. A
ideia é que considerando que nas democracias mais do que a deliberação racional, como a
influência, a persuasão, a pressão, a negociação, a organização etc, todos serão igualmente
24
respeitados no exercício do poder político, se, seja qual for a atividade política, deliberativa
ou não, ela aparecer de forma clara e aberta, de modo que todo cidadão tenha igual
oportunidade de participar do debate público, seja ele quem for, com os bens ou a formação
escolar que tiver.
Assim, fazendo todos esses reparos na concepção liberal ou, quem sabe, pequenos
aprofundamentos, isto é, compreendendo que (1) o Estado deve, algumas vezes, fortalecer
alguns grupos vulneráveis para que os indivíduos a eles vinculados tenham mais condições de
agir autonomamente, que (2) a justiça, para que todos sejam tratados como iguais na
distribuição de bens, não pode ser absolutamente cega às diferenças e desigualdades
estabelecidas entre os cidadãos e que (3) a democracia precisa ser concebida, para que se
promova entre os indivíduos a igualdade política, como um empreendimento coletivo no qual
todos os cidadãos agem em conjunto, por meio de debates e votações nos foros da sociedade
civil, como juizes e participantes plenos e iguais, é possível conceber as sociedades nas quais
vivemos, as sociedades democráticas e liberais, como mais engajadas na luta contra as
desigualdades políticas e sociais entre os cidadãos. Os ditos reparos (ou aprofundamentos),
portanto, apresentam um objetivo único e claro, qual seja, ajudar a “produzir um liberalismo
que […] esteja mais ao alcance da apropriação e utilização igualitárias” (WALZER, 2008, p.
xiii). A ideia, então, aqui é tentar mitigar as desigualdades indevidas e injustas resultadas da
apropriação convencional liberal da liberdade, justiça e democracia, e promover, de acordo
com nossas intuições igualitárias, sem perder de vista nossa história, nossa configuração
social e política atual, além, é claro, de nossa tradição liberal, uma versão do liberalismo mais
preocupada em tratar a todos como de fato iguais em autonomia, direitos e cidadania.
Antes de terminar esta introdução, gostaria de fazer um último comentário. Tomo,
nesta dissertação, sobretudo, a versão comunitarista de Michael Walzer, com algumas
contribuições de Charles Taylor e não a versão de autores como Michael Sandel e Alasdair
MacIntyre porque, primeiro, pretendo levar a rio e aprofundar a sua tese de que o papel da
crítica comunitarista é oferecer algumas correções à teoria e à prática liberais tendo em vista a
igualdade entre os indivíduos. Em segundo lugar, tomo-o porque entendo que este autor, de
certa maneira, sintetiza as posições comunitárias que parecem, às vezes, contraditórias, na
medida em que abarca tanto as posições que afirmam que a teoria política liberal representa
fielmente a prática social liberal, o lugar dos indivíduos cada vez mais isolados, como as
posições que afirmam que a teoria política liberal representa a vida real de uma forma
completamente distorcida, ao não considerar os vínculos de lugar, classe, família e político
quando lidam com tal isolamento individual. Para Walzer, algo de correto nos dois lados.
25
E, por fim, tomo esta versão comunitarista porque pretendo pensar ainda a sociedade
democrática liberal juntamente com seus objetivos e valores, tendo em vista a elucidação da
própria concepção de igualdade do liberalismo e não exatamente a elucidação das principais
discordâncias ou diferenças entre o liberalismo e o comunitarismo.
26
1 A IGUALDADE DE LIBERDADES
É um valor para a nossa sociedade que todos nós, indivíduos racionais, juridicamente
emancipados, possamos, isto é, tenhamos o direito de, autonomamente, buscar nossa própria
felicidade, nosso bem ou aquilo que nos realiza. Somos livres. Podemos casar, separar, não
comer carne, jejuar, fazer greve, votar em branco, mudar de cidade, de estado, ter cachorro
etc. Se não ferirmos a dignidade e nem obstruirmos o exercício da liberdade de ninguém com
nossa ação ou escolha, nem mesmo o Estado pode impedi-la. Nas democracias liberais
contemporâneas este é um dos aspectos que nos iguala, talvez o aspecto mais fundamental.
Esse será o tema deste capítulo. Trataremos da igualdade de liberdades ou, mais
precisamente, da igualdade de autonomia nas sociedades liberais. Investigaremos como os
indivíduos podem ser tratados como iguais neste aspecto e o que é preciso para tal, se é
necessário, por exemplo, uma postura neutra do Estado ou se ele pode e até deve abandonar
esta postura e em que medida. A pretensão aqui é defender que os indivíduos apenas podem
ser iguais em liberdade ou autonomia caso possuam igual status social. Neste sentido, entendo
que um reparo deve ser feito à concepção liberal tradicional. O Estado precisa ser, às vezes,
ativo, assumindo, de certo modo, a responsabilidade quanto ao fortalecimento da sociedade
civil e quanto ao estabelecimento das condições que possibilitem a todos os indivíduos
racionais que estão sob o jugo de suas leis ser, de fato, livres. O que pretendo, portanto, é
aprofundar um pouco mais a compreensão da igualdade de autonomia ou liberdades em nome
de uma sociedade liberal mais inclusiva e igualitária.
1.1 A AUTONOMIA E A REAL CONSIDERAÇÃO DE TODOS
Se a liberdade individual tal como se concebe nas atuais sociedades ocidentais se
origina com o advento da modernidade, um autor fundamental para esta compreensão é, sem
dúvida, o inglês John Locke, por assim dizer, um dos precursores da concepção de indivíduos
emancipados. Segundo Locke, todos os homens racionais são naturalmente iguais e na medida
em que são iguais, ou seja, na medida em que não são obrigados a se sujeitar à autoridade de
outrem, possuem igual direito por natureza à liberdade. Por racional, ele entende aquele que
atinge um estado de maturidade que lhe capacite conhecer a lei da razão de modo a regular-se
por ela e livre, aquele que é capaz de dirigir sua vontade e ações dentro dos limites de tal lei.
Para Locke, dizer que todos os indivíduos racionais são livres por natureza significa,
para descrever a sua concepção com mais exatidão, afirmar que todos têm o direito natural de
dispor de si próprio e de suas propriedades ou, em outras palavras, de sua vida, liberdade e
27
patrimônio. Note-se que ao asseverar que um direito natural não à vida, mas também à
propriedade, outorgado, segundo ele, pelo trabalho individual, este que, para o autor, cumpre
o papel de distinguir a propriedade privada do bem comum, é possível dizer que Locke ajuda
a estabelecer as bases da visão individualista, marca da concepção de mundo liberal. Afinal, é
o próprio indivíduo, conforme sua compreensão, quem decide o que fazer com os seus bens
privados, se os acumulará ou não, por exemplo, não mais a igreja, o rei ou o Estado. Deste
modo, que cada um é naturalmente livre, somente cada qual pode de forma voluntária
decidir o que fará de sua vida, se participará ou não de uma associação qualquer da
comunidade civil, tal como um partido político, um empreendimento empresarial ou uma
religião. Como ninguém é naturalmente vinculado ou desvinculado a uma associação, pelo
contrário, como todos são igualmente livres, ninguém pode ser coagido a alguma decisão. No
máximo, um pode tentar convencer o outro sobre um ou outro assunto qualquer.
Neste contexto, nem mesmo a mais alta autoridade política pode intervir com coerção
no processo de escolha pessoal. A sua atuação principal, de outro modo, deve ser, de acordo
com o autor, a de assegurar a fruição da liberdade a todos os indivíduos racionais que
compõem a sociedade que ela regula, uma vez que, entende este autor, é justamente por conta
desta garantia que os homens vivem numa sociedade civil. A busca deles, com ela, desta feita,
é, conforme Locke, viver com segurança, conforto e paz, de modo que possam usufruir suas
propriedades, protegidos contra qualquer intromissão arbitrária em sua liberdade de ação ou
escolha. Ao analisar a questão da tolerância religiosa
10
, este autor delimita de maneira mais
clara o âmbito de ação do Estado e o seu papel. Para ele, a comunidade política e a igreja
participam de esferas distintas. A primeira lida e se preocupa com a melhoria e a preservação
dos bens civis de seus membros, como visto, a vida de cada um, a liberdade e a
propriedade, além da saúde física e da libertação da dor. A segunda, por outro lado, lida com a
salvação de suas almas. Como as pessoas acreditam em caminhos diversos, às vezes
conflitantes, para esta salvação, o governo civil não pode impor ou negar este ou aquele
caminho. Sua jurisdição diz respeito apenas aos bens civis. Diferentemente, cabe à igreja a
“sociedade livre de homens, reunidos entre si por iniciativa própria para o culto público de
Deus” (LOCKE, 1973a, p. 12) – lidar com essas questões, que concernem ao outro mundo.
Desta maneira, seguindo a argumentação deste filósofo, o dever do Estado não pode
ser outro senão o dever de preservar e assegurar para o povo em geral e para cada um em
particular, por meio de um árbitro que julgue, conforme o autor, a partir de regras fixas e
10
Vide sua Carta acerca da tolerância (1973a).
28
indiferentes, e leis uniformes e iguais para todos os seus cidadãos, a posse justa dessas coisas
que pertencem a esta vida, ou melhor, dos bens civis. Pois são estes bens que possibilitam o
usufruto igual das liberdades – e o Estado deve fazer isso, acrescento, mesmo correndo o risco
de ser insensível àqueles que, por conta de um impedimento qualquer, não conseguem
usufruir como os outros as suas liberdades. Em face disso, o papel do governo civil é
basicamente reprimir a violação das ditas leis. Agindo desta forma, o Estado estabelecerá as
condições através das quais todos os seus cidadãos poderão de forma livre e igual buscar o
seu lugar neste e no outro mundo, sabendo que só pode ser proibido na igreja, por exemplo,
aquilo que também é proibido fora dela.
Com estas considerações, marcamos, em linhas gerais, baseando-nos na teoria de
Locke, o delineamento daquilo que tradicionalmente sob o liberalismo são as condições (a
defesa de um Estado neutro e de direitos iguais) tomadas como adequadas para a igualdade de
liberdades ou, propriamente, de autonomia, um direito tão importante para nós em nossa
sociedade. A seguir passaremos a outra compreensão, também importante nas sociedades
atuais, compreensão esta que antes de pretender estabelecer as condições para tal igualdade
aponta para outros valores tomados como tanto ou mais dignos de apreço. Passaremos, então,
à compreensão de Jean-Jacques Rousseau.
O ponto de partida de Rousseau é, por assim dizer, o mesmo que o de Locke apesar do
ponto de chegada o o ser: todos os homens racionais são naturalmente livres e,
consequentemente, iguais. Isso significa que, para esse autor, como para o primeiro, ao atingir
a idade da razão, todo homem tem o direito de tornar-se tão independente quanto os seus
tutores, configurando-se no único responsável pelos cuidados de sua conservação e no único
juiz com a autoridade de julgar sobre os melhores meios para tal. Assim, como consequência,
conforme a perspectiva deste autor, entre indivíduos racionais não pode haver quem tenha
uma autoridade natural sobre os outros. Todos são e devem ser igualmente livres. Nesta
medida, apenas o próprio indivíduo pode decidir o que é melhor para si e estatuir a lei que
obedecerá ou, nas palavras de Rousseau, só o próprio pode ser “senhor de si mesmo”
(ROUSSEAU, 1973, p. 43). Este entendimento da igualdade, segundo o autor, é o maior de
todos os bens e, por isso, deve ser a finalidade de todas as legislações.
Frente essa circunstância, a sociedade civil, segundo o autor, deve se originar
justamente para que se garanta a todos a possibilidade de viver livremente, conservando a
cada um a segurança de sua vida e de seus bens. E para que este fim seja alcançado, ainda de
acordo com ele, precisa-se de um Estado que, entendido como um corpo moral e coletivo, seja
formado pela reunião da vontade geral das pessoas da comunidade. Em outras palavras, faz-se
29
necessário um Estado que seja a expressão de um autogoverno de seus cidadãos, um Estado
no qual a liberdade e a igualdade de todos seja assegurada por meio da garantia da soberania
ou da direção suprema do povo. Afinal, como assevera o autor, apenas a vontade geral pode
dirigir as forças do Estado para o bem comum, dentre outros motivos, porque, na medida em
que, com ela, não se desconsidera a vontade de ninguém, assegura-se igual respeito a todo
individuo, dado que, ao se submeterem unicamente a ela, todos só obedecem a si mesmos.
Em meio a este contexto, seguindo o referido filósofo, o único caminho para a
autonomia individual é a subordinação à autodeterminação popular. Utilizando os seus
termos, um súdito até pode ter uma vontade particular diversa da vontade geral, da qual
participa enquanto cidadão, no entanto, se ele pretende preservar sua vida, seus bens e,
sobretudo, sua participação na autodeterminação pública, esta que lhe garante a igualdade
com relação aos outros membros da sociedade no que toca à liberdade, ele compreenderá que
ao “recusar obedecer à vontade geral, […] [ele deverá ser] constrangido por todo um corpo, o
que não significa senão que […] [deverá ser forçado] a ser livre, pois essa é a condição que,
entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal”
(ROUSSEAU, 1973, p. 42). Assim, a autonomia, tal como é compreendida usualmente nos
países liberais, se necessário, para esta percepção, poderá ser suprimida em nome da
autodeterminação do povo. A ideia é que se deve resguardar antes de tudo a igualdade moral
de todos os cidadãos e o direcionamento do poder governamental em favor dos governados.
Deste modo, visando preservar o autogoverno de todos e o melhor para o todo social,
Rousseau, de certa maneira, suprime a liberdade individual, relegando-a a um segundo plano.
Para ele, muito mais importante do que assegurá-la incondicionalmente é garantir que o povo
se autodirija, que a vontade de todos, e somente ela, determine o que é melhor para todos e
cada um. Ao privilegiar o autogoverno – diferentemente de Locke que crê que, pelo contrário,
a autonomia deve ter primazia a este para que todos sejam iguais –, ele acredita que todos
serão verdadeiramente considerados cidadãos moralmente iguais e, com isso, igualmente
livres, uma vez que, sendo a vontade geral de todo o povo a soberana, de jeito nenhum o
Estado correrá o risco de ser insensível a qualquer um de seus membros.
Assim, podemos ver com tais considerações que tanto as observações de Locke como
as de Rousseau nos ajudam a identificar alguns dos valores mais fundamentais de nossa
sociedade. Porém, das duas abordagens (ou, pelo menos, de suas caricaturas) também saltam-
nos aos olhos alguns dos problemas com os quais, com certeza, não gostaríamos de conviver.
Por um lado, parece claro o fato de não querermos uma comunidade tal como a estruturada
por Rousseau na qual o Estado possa ser altamente interventor, visto que não estamos
30
dispostos a aceitar que se negue a alguém, por exemplo, a liberdade de pensamento e
consciência, um direito, a nosso ver, essencial que deve ser resguardado a todo indivíduo. Por
outro, não queremos, quando, com Locke defendemos a autonomia mediante uma postura
imparcial do Estado, correr o risco de ser indiferentes aos indivíduos que, devido a uma
limitação qualquer, de ordem física, psicológica etc., encontram-se numa condição mais
desprivilegiada social e economicamente. Como, então, resolvemos esta situação? Podemos
com bons motivos não querer abrir mão da autonomia de cada um, todavia, também com bons
motivos podemos não querer um Estado insensível às desigualdades de seus membros, que
também valorizamos a igual consideração de todos. Melhor será, parece, se pudermos
encontrar uma organização social que combine os dois valores em questão, de forma que
todos os indivíduos, e não só alguns, possam de fato ser considerados como iguais em
liberdades ou autonomia. Vejamos uma tentativa liberal, a tentativa de Rawls.
1.2 IGUAL LIBERDADE NA SOCIEDADE BEM-ORDENADA
Combinar a liberdade de ação individual a autonomia e a igual consideração
factual de todos pelo Estado, este parece um dos propósitos básicos dos mais recentes autores
liberais, dentre estes Rawls. O que precisamos saber é se eles são bem-sucedidos nesta
ligação, ou seja, se a prática de suas teorias propicia realmente a todos os cidadãos a
possibilidade de se compreender como igualmente autônomos, sendo igualmente
considerados com reais oportunidades de fazer suas escolhas de forma livre. Neste texto,
investigaremos o projeto deste último autor, Rawls, que talvez possa ser caracterizado, grosso
modo, como consistindo justamente numa tentativa de fazer esta ligação, evidenciada,
principalmente, quando pensa que uma sociedade bem-ordenada é aquela regulada pelos dois
princípios de justiça
11
. A partir de agora analisemos este projeto.
Ao escrever Uma Teoria da Justiça em 1971, a busca de Rawls é por uma via que seja
diferente tanto do utilitarismo, que em nome do bem comum (ou da maioria dos cidadãos),
diz, pode aceitar ferir a dignidade de alguns, como das abordagens intuicionistas, que,
baseadas nas intuições morais em geral compartilhadas, normalmente apresentam uma
pluralidade de princípios de justiça sem apresentar uma regra de prioridade com relação a
eles, sendo, por este motivo, “teoricamente insatisfatórias” e “inúteis em questões práticas”
(KYMLICKA, 2006, p. 65). Em tal busca, a tarefa inicial que este autor toma para si é a de
estabelecer, através de uma moralidade alternativa a estas, alguma prioridade entre os
11
Pelo princípio da liberdade igual e pelos princípios da igualdade equitativa de oportunidades e da diferença,
como veremos.
31
preceitos que largamente aceitamos nas sociedades liberais mas que são conflitantes,
estruturando nossas diferentes convicções morais. Posteriormente, esta tarefa mudou e o seu
propósito passou a ser, como evidenciado pelo autor, o de, face ao fato do pluralismo de
concepções religiosas, filosóficas e morais professadas pelos indivíduos nas atuais
democracias liberais, encontrar, por meio de uma teoria ideal, a base para uma unidade social
estável, na qual todos os indivíduos indistintamente pudessem ser considerados livres e, com
isso, iguais. É neste último tópico que vamos nos concentrar. Perguntaremos até que ponto a
teoria deste autor e a teoria liberal convencional dão conta desse objetivo de realmente igualar
a todos em liberdades ou, em outras palavras, perguntaremos até que ponto Rawls e o
liberalismo dão conta de conciliar o respeito da autonomia de cada um e a igual consideração
de todos.
É importante, logo de início, deixar claro que o âmbito da teorização de Rawls é a sua
sociedade, qual seja, a sociedade democrática liberal. É dela que ele parte, de suas
preocupações particulares, de seus valores, morais e políticos, de suas crenças gerais etc.
Sabendo disso, quando este autor busca princípios de justiça para regulá-la, pretendendo, com
essa regulação, conciliar as tradições conflitantes que nela convivem, é ela que ele pressupõe
e nela que se baseia. Isto significa que ele não pressupõe sociedades abstratas e não tem como
foco a estruturação de princípios universais
12
. Antes disso, a sua pretensão é que tais
princípios estruturem justamente as intuições que na sua sociedade encontram-se amplamente
difundidas destas, a primeira e essencial, na ordem de sua argumentação normativa, é uma
noção de igualdade humana fundamental” (VITA, p. xx. In: RAWLS, 2008). Assim sendo, o
pano de fundo deste autor é a tradição liberal. A sua concepção de justiça, chamada por ele
como política, nesta medida, é uma forma de arbitrar entre as exigências conflitantes de seus
valores políticos mais importantes, a saber, a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
O modo como Rawls pretende ordenar esses valores é explicitado, portanto, através de
sua concepção política de justiça (political conception of justice), que, por sua vez, é expressa
por dois princípios de justiça, ordenados de uma forma que ele chama de “léxica” ou
“serial”
13
“é uma ordem que nos exige a satisfação do primeiro princípio da ordenação para
que possamos passar para o segundo; do segundo para passar ao terceiro, e assim por diante”
(RAWLS, 2008, p.52). Tais princípios são:
12
Isto é explicitamente reconhecido por ele em textos posteriores a Uma Teoria da Justiça. No Liberalismo
político, por exemplo, Rawls (2000, p. 354) diz: “na justiça como eqüidade, o objetivo é formular uma
concepção de justiça política e social afim às convicções e tradições mais profundamente arraigadas de um
Estado democrático moderno”.
13
Esta ordenação evidencia a atenção especial dispensada por este autor, e da tradição liberal, à liberdade, posto
que sendo os princípios assim ordenados, como veremos, uma liberdade só pode ser limitada por outra liberdade.
32
a. Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente
adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo
esquema de liberdades para todos; e
b. as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições:
primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em
condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm
de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade
(RAWLS, 2003, p. 60; 2000, p. 345).
Segundo o autor, a escolha por essa concepção política de justiça, pela chamada justiça
como equidade (justice as fairness), isto é, pelos dois princípios de justiça, é justificada
através de dois argumentos. O primeiro é o intuitivo: aquele que, conforme Rawls, evidencia-
se quando olhamos para a cultura política pública implícita nas democracias constitucionais,
na qual, diz, podemos ver que uma ideia básica intuitiva que compreende a sociedade
como um sistema equitativo de cooperação (society as a fair system of cooperation) entre
pessoas livres e iguais. Desta ideia, de acordo com ele, decorrem duas outras igualmente
intuitivas. A primeira é a de sociedade bem-ordenada (well-ordered society), que é estável e
que pressupõe uma concepção política de justiça que a regula, concepção esta independente e,
por isso, não conflitante com as diversas doutrinas abrangentes (comprehensive doctrines)
religiosas, morais e filosóficas professadas publicamente pelos indivíduos. A segunda é a de
que todas as pessoas são livres e iguais. Desta maneira, seguindo a compreensão deste autor,
poderíamos chegar à dita concepção política de justiça e seus dois princípios intuitivamente.
O segundo argumento é o do contrato social, o mais importante de acordo com o nosso
autor. Trata-se do argumento que diz respeito ao tipo de moralidade política que as pessoas
escolheriam, caso estivessem estabelecendo uma sociedade a partir de uma posição inicial,
tendo como pressuposto, não esqueçamos, as práticas políticas das sociedades liberais.
Seguindo a tradição de autores como Locke, Rousseau e Kant, Rawls utiliza uma
interpretação da ideia de contrato social como forma de concretizar os termos para a
organização de um sistema justo de cooperação entre pessoas livres e iguais. Assim, ele pede
que imaginemos uma situação hipotética, a denominada por ele posição original (original
position), na qual, um grupo de pessoas racionais que representaria os interesses egocêntricos
de cada um dos cidadãos considerados livres e iguais reúne-se, sob condições equitativas, para
deliberar sobre as regras fundamentais da sociedade que pretendem construir, isto é, sobre os
princípios que regularão as instituições básicas da sociedade e ordenarão o sistema de direitos,
as leis, os processos etc.
33
Nesta posição inicial, os representantes dos cidadãos encontram-se sob as restrições do
véu da ignorância (veil of ignorance). Isto significa que eles nada sabem a respeito de suas
particularidades, suas distinções pessoais, do tipo de contexto no qual vivem ou viverão etc
14
.
Eles também nada sabem sobre “a posição social ou a concepção de bem (seus objetivos e
vínculos particulares), ou as capacidades e propensões psicológicas realizadas, e muito mais,
das pessoas que representam” (RAWLS, 2000, p. 359). Da situação em que se encontram, os
representantes dos cidadãos só têm conhecimentos gerais. Deste modo, eles sabem apenas que
têm metas que desejam atingir, contudo, não sabem quais são e nem mesmo para que elas
servem, e assim por diante.
É importante grifar que, com esta restrição, Rawls pretende oferecer um ponto de vista
não distorcido por contingências e circunstâncias, sociais e naturais, particulares moralmente
arbitrárias. Como os representantes possuem somente uma sabedoria geral das condições nas
quais se encontram e ignoram todas as particularidades, as negociações baseadas no
autointeresse que beneficiam somente alguns são impedidas e a influência dos talentos
naturais individuais, neutralizada. Por isso, racional para os representantes nesta situação, vai
dizer o filósofo, será adotar princípios ótimos em relação à melhoria dos interesses de
qualquer pessoa menos favorecida por esses mesmos princípios. Afinal de contas, eles
próprios ou os seus representados podem vir a ser estas pessoas. Seguindo este raciocínio, a
única alternativa que eles têm, como veremos mais adiante, é tentar assegurar o melhor acesso
possível aos bens primários.
Quanto aos representantes, as partes, Rawls os caracteriza como racionalmente
autônomos, diferentemente dos cidadãos que ele caracterizará como plenamente autônomos,
isto é, como pessoas que possuem as duas faculdades morais, a capacidade de ser racionais e
razoáveis. Por racional (rational) ele entende a pessoa que é capaz de “formar, revisar e tentar
racionalmente realizar […] uma concepção do que consideramos que seja para nós uma vida
humana digna de ser vivida” (RAWLS, 2000, p. 356). Por razoável (reasonable), ele concebe
a pessoa que é capaz de “entender, aplicar e ser em geral motivado por um desejo efetivo de
agir em função dos (e não apenas de acordo com) princípios de justiça, enquanto termos
eqüitativos de cooperação social” (RAWLS, 2000, p. 356). Assim, as partes, quando
deliberam sobre os princípios de justiça, apenas focalizam o favorecimento da realização do
projeto racional de vida e dos interesses que representam. Elas em nada se interessam pelo
bem-estar dos outros, não se importam nem em promovê-lo nem em impedi-lo. O seu único
14
Vide RAWLS, Uma teoria da justiça (2008), seção 24.
34
propósito é tentar reconhecer os princípios que promovam da melhor maneira o sistema de
objetivos que representam.
Note-se que esta negociação, para Rawls, não tem uma base histórica, a sua função,
com efeito, não é descrever o que sucedeu, mas, seguindo o autor, servir como um meio de
reflexão e autoesclarecimento públicos. A pretensão, por conseguinte, é estabelecer uma
posição que seja passível de ser assumida por qualquer um de nós para avaliar a justiça como
equidade ou qualquer outra concepção política de justiça. Neste sentido, a posição original, do
modo como foi descrita, constitui um modelo estabelecido para produzir acordos justos. O
objetivo do autor é caracterizar com ela, deste modo, uma situação na qual os princípios que
serão escolhidos, os seus dois princípios de justiça, sejam aceitáveis do ponto de vista moral.
Nessas circunstâncias hipotéticas, as partes, enquanto autonomamente racionais, sob o
véu da ignorância, sabendo que inevitavelmente alguns cidadãos ficarão depois de
estabelecidos princípios que regularão a organização social numa situação pior que a de
outros, conforme esta perspectiva, tomariam necessariamente os dois princípios de justiça
apontados acima como os mais razoáveis. O motivo, de acordo com nosso filósofo, é que,
com base em tal situação, esses princípios se mostram como os mais adequados para lidar
com a loteria natural e, com isso, para a realização do entendimento difundido da liberdade e
da igualdade em nossa sociedade.
Vale neste ponto observar que ao descrever a posição original a intenção de Rawls é
que ela produza os princípios que julgamos intuitivamente aceitáveis. Desta maneira,
demonstra-se que uma junção ou uma dependência entre os dois argumentos acima vistos:
o argumento intuitivo e o do contrato social. Como admite o autor, ambos podem ser
modificados para que um possa se adaptar ao outro. “Nesse caso, temos uma escolha.
Podemos modificar a caracterização da situação inicial ou reformular nossos juízos atuais,
pois até os juízos que consideramos pontos fixos provisórios estão sujeitos a reformulação”
(RAWLS, 2008, p. 24). Assim sendo, como observa Will Kymlicka
15
, a posição original
constitui-se como uma maneira de tornar vívidas nossas intuições e de fazê-las mais precisas,
além de proporcionar uma perspectiva a partir da qual podemos testar intuições antagônicas,
que ela revela se estas seriam escolhidas a partir de uma perspectiva imparcial, que fosse
distanciada de nossa posição social. “Com esses avanços e recuos” de um e de outro lado, diz
Rawls (2008 p. 24-25), “[acabaremos] por encontrar uma descrição da situação inicial que
15
Vide KYMLICKA, Filosofia política contemporânea (2006), p. 87.
35
tanto expresse condições razoáveis como gere princípios que combinem com nossos juízos
ponderados devidamente apurados e ajustados”.
A este processo intelectual no qual podemos encontrar o meio-termo entre, de um
lado, nossas próprias reivindicações, intuições e convicções e, de outro, princípios gerais o
autor chama de equilíbrio reflexivo (reflective equilibrium). De acordo com Rawls, tal
equilíbrio é a base da justificação política pública, uma vez que ele constitui o elemento
fundamental da razão blica (public reason), isto é, da razão apresentada no “fórum político
público” por cidadãos livres e iguais que se governam a si mesmos
16
. Neste sentido, trata-se
do processo que exprime o meio através do qual podem-se obter acordos razoáveis acerca da
concepção de justiça, tal como a enunciada pelo autor com os dois princípios vistos acima. A
despeito do desacordo entre as doutrinas abrangentes, isto é, religiosas, morais e filosóficas
razoáveis, tal equilíbrio propicia, assim, o que o autor chama de consenso sobreposto
(overlapping consensus), o consenso que mantém a unidade e a estabilidade sociais, visto que
estabelece os termos que justificam publicamente a sua concepção política pública de justiça,
a justiça como equidade.
Vemos, portanto, que é, assim, através desses dois argumentos, o intuitivo e o do
contrato, que Rawls justifica a sua concepção política pública de justiça, aquela que, por ser
explicitada pelos dois princípios de justiça, escolhidos na posição original, e justificada pelo
consenso sobreposto, não contradiz as diversas concepções abrangentes razoáveis. Para
explicitar, enfim, a sua concepção da igualdade de liberdades, passemos agora a algumas
considerações sobre esta, ou seja, sobre a sua concepção política pública de justiça. Como o
seu próprio nome denuncia, trata-se de uma concepção de justiça pública que tem sua atuação
limitada ao âmbito do político, o que significa, conforme o autor, que ela não pretende
apresentar respostas a questões que versam sobre a verdade da vida e do mundo, mas apenas
fornecer um caminho possível para lidar com questões de justiça básica. Ela não tem como
“objetivo [portanto] […] ser capaz de afirmar a diferentes grupos de cidadãos [que
apresentam diferentes concepções sobre tais verdades] ‘eis os verdadeiros princípios de
justiça’, mas antes ser capaz de dizer ‘eis os princípios com os quais podemos viver’”
(KUKATHAS e PETTIT, 2005 p. 164). Ao delimitá-la deste modo ao campo do político,
Rawls pretende que ela seja como “um módulo, uma parte constitutiva essencial que se
16
A respeito do fórum político público, diz Rawls (2001, p.176): “[ele] pode ser dividido em três partes: o
discurso dos juízes nas suas discussões, e especialmente dos juízes de um tribunal supremo; o discurso dos
funcionários de governo, especialmente executivos e legisladores principais, e finalmente o discurso de
candidatos a cargo público e de seus chefes de campanha, especialmente no discurso público, nas plataformas de
campanha e declarações políticas.” Sobre a razão pública, discorreremos com mais detalhes no terceiro capítulo.
36
encaixa em várias doutrinas abrangentes razoáveis subsistentes na sociedade regulada por ela,
podendo [por esta razão] conquistar o apoio daquelas doutrinas” (RAWLS, 2000, p. 55). A
sua intenção com isso é pensar um liberalismo que seja independente, inclusive, dos ideais
morais liberais tradicionais, um liberalismo político (political liberalism), cujos princípios se
apliquem exclusivamente ao que ele chama de estrutura básica da sociedade (basic structure
of society), isto é, às “principais instituições sociais a constituição, o regime econômico, a
ordem legal e sua especificação de propriedade e congêneres, e como essas instituições se
combinam para formar um sistema” (RAWLS, 2000, p. 355). A sua intenção, portanto, é
pensar um liberalismo que forneça reais possibilidades a todas as pessoas racionais e
razoáveis de autonomamente buscar a realização de seus projetos de vida, sejam estes quais
forem.
Desta perspectiva, por conseguinte, não se admite o favorecimento de qualquer
doutrina abrangente. Pois, como notamos, as instituições básicas da sociedade têm sua
atuação limitada ao âmbito do político, o que quer dizer que, dentre outras coisas, não é
justificável, do ponto de vista da justiça, que elas ajam com base em suposições de
superioridade ou inferioridade intrínseca de uma ou outra concepção de boa vida. Como
consequência disso, a distribuição básica de recursos feita por elas deve ser independente das
várias doutrinas professadas e também das preferências pessoais. Nesta medida, de acordo
com a justiça como equidade, o liberalismo político deve nos levar a endossar um Estado
neutro em relação aos objetivos pessoais, um Estado que ofereça a todos os seus cidadãos
uma distribuição equitativa dos bens que são básicos para a realização dos diversos planos
racionais de vida
17
, os bens primários (primary goods).
Por bens primários, o autor concebe os bens que são distribuídos diretamente pela
estrutura básica da sociedade e que “consistem em diferentes condições sociais e meios
polivalentes geralmente necessários para que os cidadãos possam desenvolver-se
adequadamente e exercer plenamente suas duas faculdades morais, além de procurar realizar
as suas concepções de bem” (RAWLS, 2003, p. 81). São eles: “as liberdades fundamentais
(liberdade de pensamento, consciência e congêneres)”, a liberdade de movimento e livre
escolha de ocupação num contexto de oportunidades variadas”, “os poderes e prerrogativas de
posições e cargos de responsabilidade”, “renda e riqueza” e “as bases sociais do auto-
17
Lembremos que na posição original, as partes quando deliberam a respeito dos arranjos institucionais justos,
fazem-no de forma inteiramente racional.
37
respeito
18
19
(RAWLS, 2000, p. 363). Trata-se, em breves palavras, das “coisas de que os
cidadãos precisam como pessoas livres e iguais numa vida plena [em uma sociedade
democrática]” (RAWLS, 2003, p. 81; 2000, 362).
Do fato de que a distribuição dos bens primários deva ser neutra não decorre,
entretanto, segundo Rawls, que a porção de bens a ser distribuída deva ser a mesma para
todos. Relembrando o princípio da diferença, sob uma sociedade bem-ordenada, quando em
favor dos menos favorecidos socialmente
20
, toda desigualdade é justificada. A neutralidade da
distribuição de bens é respeitada, desta feita, não quando se distribui o mesmo quinhão de
bens a todos os cidadãos, mas quando, mesmo favorecendo os projetos das pessoas com
menor renda e riqueza da sociedade, consegue-se restabelecer a igualdade de condições para o
exercício das liberdades de todos os cidadãos. A ideia subjacente é que o papel da distribuição
neutra é mitigar as arbitrariedades da natureza e do acaso, visando com esta mitigação que
todos possam efetivamente ser iguais na possibilidade de usufruto de suas liberdades. Em
virtude disso, dado que a pretensão da justiça como equidade é que nenhum projeto de vida
seja favorecido pelas instituições básicas recebendo melhores condições para sua realização,
ou seja, dado que o que ela pretende é que a neutralidade de tais instituições quanto às
concepções de bem permaneça, a distribuição de bens primários, quando para igualar as
condições do exercício das liberdades, pode, ou melhor, deve ser desigual.
Assim, ao assegurar que, por meio de uma distribuição neutra dos bens primários, as
instituições básicas não favorecerão nenhuma doutrina abrangente em particular, a pretensão
da justiça como equidade é que, na sociedade bem-ordenada, isto é, na sociedade na qual as
instituições básicas são reguladas pelos dois princípios de justiça, todos os indivíduos
juridicamente emancipados que a compõem tenham realmente iguais possibilidades de buscar
a realização de suas próprias concepções de bem e também, quando acharem necessário,
tenham reais possibilidades de revê-las e reavaliá-las. Em breves palavras, o que se pretende é
que se estabeleçam as condições equitativas para que todos os cidadãos da sociedade em
18
A noção de autorespeito (ou autoestima) Rawls define como apresentando dois aspectos. Nas suas palavras,
são eles: “em primeiro lugar, […] essa idéia contém o sentido que a pessoa tem de seu próprio valor, sua firme
convicção de que vale a pena realizar […] seu projeto de vida. E, em segundo lugar, o autorespeito implica uma
confiança na própria capacidade, contanto que isso esteja ao alcance da própria pessoa, de realizar as próprias
intenções” (RAWLS, 2008, p. 544).
19
Além destes bens, Rawls acredita haver também os bens primários naturais, que são “a saúde, o vigor, a
inteligência e a imaginação” (RAWLS, 2008, p. 76). Estes últimos, no entanto, são bens que não são distribuídos
diretamente pela estrutura básica da sociedade, embora esta distribuição possa ser influenciada por ela.
20
Por menos favorecidos socialmente, Rawls compreende as pessoas que são afetadas por “três tipos de
contingências: […] [aquelas] cujas origens familiar e de classe são mais desfavorecidas […], cujos talentos
naturais (quando desenvolvidos) não lhes possibilitam se dar tão bem, e cuja sorte no decorrer da vida revela-se
menos feliz” (RAWLS, 2008, p. 116). Dito de outra forma, são as pessoas mais afetadas, do ponto de vista
econômico e social, pela “arbitrariedade do acaso natural e da sorte social” (RAWLS, 2008, p. 114).
38
questão possam, com igualdade, usufruir suas liberdades básicas, ou seja, para que todos
possam ser igualados quanto ao proveito das mesmas.
Ressalte-se o fato de que Rawls não tem como foco a simples igualdade formal de
liberdades fundamentais, mas a igualdade do proveito das mesmas. Para ele, o que importa é o
que as pessoas podem fazer com as suas liberdades, não apenas a mera igualação destas na
letra da lei. Por esta razão, o autor inclui a renda e a riqueza na categoria de bens primários,
pois, como reconhece, é claro que a ignorância, a pobreza e a falta de meios materiais em
geral impedem as pessoas de exercer seus direitos” (RAWLS, 2000, p. 381). Assim, a
consideração igual para Rawls se centra no proveito retirado da distribuição equitativa dos
bens primários que, como vimos, são os meios para igualdade de proveito das liberdades
básicas.
Desta maneira, podemos concluir que, para a perspectiva da justiça como equidade,
esse é o caminho utilizado para buscar dar conta de igualar todos os cidadãos de uma
sociedade bem-ordenada em autonomia, é com ele que ela visa conciliar, de alguma forma, a
autonomia de cada um e a igual consideração de todos. Para Rawls, ao garantir a igualdade
nesse aspecto a todo cidadão, a saber, na possibilidade de autodeterminação da própria vida
ou no usufruto de suas liberdades fundamentais
21
, através de uma distribuição equitativa de
bens primários, na sociedade bem-ordenada, regulada pelos dois princípios de justiça,
assegura-se o tratamento adequado para fazer com que todas as pessoas que a compõem,
indistintamente, possam ser igualmente autônomas, isto é, possam ser tratadas de acordo com
o sentido fundamental da igualdade nas sociedades ocidentais liberais.
Com essas observações, chegamos, enfim, à compreensão rawlsiana de como se pode
estabelecer a igualdade de liberdades na sociedade bem-ordenada. Aqui, no entanto, uma
questão pode ser levantada. Será que se pode dizer até numa sociedade bem-ordenada que se
garante verdadeiramente a igualdade de liberdades ou autonomia a duas pessoas que
apresentam situações econômicas semelhantes, assegurando para ambas parcelas equitativas
de bens primários, mesmo que uma delas sofra com preconceito e discriminação?
22
Em outras
palavras, para que essas duas pessoas tenham as mesmas possibilidades de escolha, basta que
21
Para explicitar estas liberdades o autor introduz a seguinte lista: “a liberdade de pensamento e de consciência;
as liberdades políticas e a liberdade de associação, assim como as liberdades especificadas pela liberdade e
integridade da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades abarcados pelo império da lei” (RAWLS, 2000, p.
345).
22
Acredito que um bom modo de compreender esta questão é aproximá-la da objeção de Amartya Sen que
desconfia que uma pessoa em desvantagem possa conseguir converter bens primários em liberdades igualmente
às outras que não estão na mesma situação. Como diz este autor, “nós temos de examinar as variações
interpessoais na transformação de bens primários (e recursos, mais genericamente) em respectivas capacidades
para buscar nossos fins e objetivos” (SEN, 2001, p. 142-143).
39
as instituições básicas da sociedade lhes assegurem certas liberdades, oportunidades e
recursos, ou, em ocasiões como esta, elas precisam fazer algo a mais? Quando pensamos no
exemplo dos homossexuais no Brasil, uma sociedade que não é bem-ordenada, a resposta a
estas perguntas parece ficar mais evidente. Pois, será que é possível acreditar que num país
como o Brasil, com um longo histórico de discriminação sexista, um homossexual realmente
tem as mesmas possibilidades de escolha que um heterossexual nas mesmas circunstâncias
sócio-econômicas? Os dois têm, por exemplo, as mesmas condições de se expressar
publicamente?
23
Ao que parece, em algumas situações a redistribuição de bens não é suficiente para tal.
Se este for o caso, parece, não poderemos negar que se realmente quisermos que todas as
pessoas, independentemente de quem sejam, tenham iguais possibilidades de se
autodeterminar, é preciso que, algumas vezes, para além de favorecer os economicamente
desfavorecidos, as instituições básicas da sociedade (ou o Estado) direcionem a certos grupos,
aqueles que sofrem com discriminação e preconceito, uma atenção especial. Se basearmo-nos
nesta leitura, entre Locke e Rousseau, Rawls ainda parece tender para o primeiro, na medida
em que a distribuição feita pelas instituições básicas, sob sua teoria, ainda se mostra
indiferente ao fato do preconceito e da discriminação. Afinal, se entendermos que a igualdade
de liberdades pressupõe uma igual consideração da dignidade de cada um, ou melhor,
pressupõe o respeito às identidades pessoais constituídas, não podemos aceitar que, para a
igual autonomia, baste uma redistribuição de liberdades, direitos e recursos. Fazer isso não
parece suficiente para que todos os cidadãos sejam, de fato, considerados. Seguindo assim,
muito dificilmente não chegaremos à ideia de que é preciso igual reconhecimento público.
Neste sentido, parece, nos aproximamos das teses comunitaristas. A seguir veremos se isto
ocorre e, se assim o for, em que grau.
1.3 CONSIDERAÇÕES COMUNITARISTAS E SEUS LIMITES
Em geral, costuma-se caracterizar os comunitaristas em contraste aos liberais. Assim,
grosso modo, os chamados comunitaristas podem ser tomados como aqueles que criticam a
prioridade dada pelos liberais dentre estes Rawls –, na estruturação de uma sociedade
igualitária, ao resguardo das liberdades e direitos individuais frente ao bem comum. Mais
alinhados, portanto, com a tradição da qual participa Rousseau, eles afirmam que antes dos
23
Os casos da bomba caseira lançada próxima aos bares frequentados tradicionalmente por Gays e também dos
espancamentos ocorridos logo depois da 13ª Parada do orgulho GLBT em São Paulo (GOMES, O Globo, 2009)
parecem indicar, no mínimo, ressalvas, a uma possível resposta positiva a esta pergunta.
40
indivíduos os seus grupos, as suas culturas, os seus vínculos. Uma configuração social
igualitária, neste sentido, isto é, uma configuração que real possibilidade aos indivíduos de
escolher o que é melhor para si, antes de considerá-los como seres racionais, desvinculados,
que autonomamente deliberam sobre sua vida, deve, através da política do bem comum,
reconhecê-los como membros de grupos com crenças e interesses já constituídos. Nesta
medida, enquanto os liberais focalizam o sujeito, crendo que fundamental é que, para ele,
resguarde-se a possibilidade de autonomamente decidir os rumos de sua própria vida, os
comunitaristas focalizam a comunidade, crendo, por outro lado, que fundamental, na verdade,
é que, antes de tal resguardo, os grupos, dentro dos quais os indivíduos formam a
compreensão de quem são e de quem querem ser, sejam protegidos e fortalecidos o que
evidencia o ponto central da divergência entre ambos: a unidade mínima da moralidade.
1.3.1 Sandel e o “eu” radicalmente desfigurado ou dissolvido
Uma crítica comunitarista que e em relevo esta divergência é aquela que acusa a
teoria política liberal de representar a vida real social de uma maneira completamente
distorcida, posto que esta a descreveria como individualista quando, na verdade, a estrutura
profunda de qualquer sociedade, mesmo a liberal, seria comunitária. Esta crítica, pode-se
dizer, foi feita, primeiramente, por Michael Sandel, em Liberalism and the Limits of Justice.
Para este autor, os liberais, representados por Rawls, sustentam uma visão falsa do “eu”, isto
é, da constituição do indivíduo, quando o descrevem como independente de seus interesses e
afetos particulares, e capaz de autonomamente questionar, e até mesmo rejeitar, os seus
valores e vínculos, podendo optar, por exemplo, por não participar de suas práticas sociais, se
estas parecerem que não valem mais a pena. Segundo Sandel, essa compreensão não pode ser
verdadeira, pois o “eu” não pode ser concebido como absolutamente desvinculado e nem,
como retrata Rawls (2008, p. 691), como “prévio aos fins que são afirmados por ele”.
A respeito desta visão de sujeitos, por assim dizer, pré-sociais, Sandel afirma que
Rawls é incoerente. É incoerente, justifica o autor, porque sua descrição pressupõe um “eu”
incapaz de deliberar, refletir e escolher, ou seja, incapaz de ser autônomo. Nas palavras do
autor, Rawls pressupõe um “eu” dissolvido e radicalmente desfigurado (radically
disembodied). Para deliberar, refletir e escolher, aponta Sandel, o “eu” necessita, antes de
qualquer coisa, da existência de desejos e vontades fundamentais que se refiram diretamente
ao que ele é, desejos e vontades estes que, conforme o autor, não são escolhidos pelo sujeito,
41
mas, antes, são descobertos, sendo o próprio sujeito, por conseguinte, em verdade, constituído
por eles.
No que se refere a esta crítica de Sandel, porém, parece que Rawls e o liberalismo
escapam ilesos. Em primeiro lugar, porque o “eu”, para os liberais, quando corretamente
entendido, não se mostra como radicalmente dissolvido ou desfigurado, isto é, como
completamente “esvaziado dos atributos que são essenciais à personalidade individual”
(VITA, 2007, p. 268). Como nota Kymlicka (2006, p. 272), “o que é central na visão liberal
não é o fato de que podemos perceber um eu anterior a seus fins, mas o de que nos
compreendemos como anteriores aos nossos fins no sentido de que nenhum fim ou objetivo
está isento de possível reexame”. Isto significa apenas, podemos dizer, que, seja qual for o fim
de que se trate, ele sempre pode ser reavaliado e substituído por um outro fim entendido, no
momento, como mais valioso. É claro que para este reexame, necessitamos de outras bases
motivacionais, afinal, todos sempre precisamos de critérios sobre os quais possamos nos
apoiar para avaliar os nossos fins. Todavia, tais bases nunca estão isentas de novos reexames.
Deste modo, vê-se que o “eu” sempre pode rever seus fins ou objetivos presentes, embora
nunca possa viver sem um fim qualquer.
Em segundo lugar, a acusação não atinge seu alvo porque, como observam Chandran
Kukathas e Philip Pettit, e também Kymlicka, a afirmação de Sandel de que a autodescoberta
e a autocompreensão substituem o julgamento de quem devo ser é implausível
24
. Tal como
argumentam estes autores, posso tanto me perguntar “quem sou?quanto “quem devo ser?”.
Uma pergunta não anula ou exclui a outra. Seguindo o que diz Kymlicka (2006, p. 274):
“realmente nos encontramos em vários relacionamentos, mas nem sempre gostamos do que
descobrimos. Não importam quão profundamente implicados nos encontremos numa prática
social, sentimo-nos capazes de questionar se a prática é valiosa ou não”. Posto isso, embora
possamos nos descobrir em nossos vários meios, podemos sem dificuldades perceber que
sempre temos a possibilidade de reavaliar estas descobertas, de estabelecer novos fins para
nós e de nos perguntar qual caminho, de agora em diante, devemos seguir. Sempre está a
nosso alcance, portanto, a possibilidade de nos autocriar e de decidir por nós mesmos quem
devemos ou queremos ser no futuro.
24
Vide KUKATHAS e PETTIT, Rawls: “Uma Teoria da Justiça” e os seus críticos (2005), p. 130; e
KYMLICKA, Filosofia política contemporânea (2006), p. 275.
42
1.3.2 Taylor e a importância do contexto comunal
Outro autor comunitarista, que insiste, de certa forma, na mesma crítica de Sandel,
embora com ênfase em outro aspecto, reiterando a censura ao liberalismo, é Charles Taylor.
Para Taylor, o problema do liberalismo e, consequentemente, de Rawls não está na sua
descrição do “eu”, mas, de outra maneira, na sua negligência das condições sociais exigidas
para a satisfação eficaz dos interesses de cada indivíduo. Conforme este autor, o liberalismo
demonstra uma insensibilidade ao fato de que a autonomia individual somente pode ser
exercida e desenvolvida em um determinado contexto comunal, isto é, em um determinado
ambiente social, ambiente este que, segundo sua interpretação, requer o abandono do Estado
neutro e a adoção de um Estado que sustente a política do bem comum.
O ponto de partida de Taylor para fazer essa crítica ao liberalismo se baseia na sua
concepção a respeito do que é essencial na vida humana, tal como diz, o diálogo. Usando as
suas palavras, “o traço decisivo da vida humana é seu caráter fundamentalmente dialógico”
(TAYLOR, 1993, p. 52; 1994, p. 68, tradução nossa). Nesta medida, segundo ele, apenas
somos o que somos porque adquirimos linguagens (em um sentido lato) através dos nossos
relacionamentos com os outros relacionamentos estes que, diz, podem ser conflitantes ou
não. Como consequência necessária disso, o nosso entendimento a respeito de quem somos,
isto é, a compreensão que temos de nós mesmos de acordo com este autor, pode ser
dependente de uma forma crucial das nossas relações dialógicas, abertas e internas, com os
outros e, por conseguinte, com o nosso contexto social. Saliente-se aqui o fato de que não se
trata para Taylor de algo do qual possamos nos libertar. Sobre isto ele diz:
Não se trata somente de algo que acontece na gênese e que pode ser ignorado
posteriormente. Não se trata simplesmente de que aprendemos as linguagens com o
diálogo e podemos depois usá-las para nossos próprios fins por nós mesmos. […]
não é assim como funcionam as coisas no caso das questões importantes, como a
definição de nossa identidade. Esta é definida sempre em diálogo, e às vezes em
luta, com as identidades que nossos outros significativos querem reconhecer em nós.
E ainda quando damos as costas a alguns destes últimos nossos pais, por exemplo
e desaparecem de nossas vidas, a conversação com eles continua dentro de nós
todo o tempo que duram nossas vidas (TAYLOR, 1994, p. 69, tradução nossa).
O problema, para esta concepção, é que nas sociedades liberais atuais a formação da
identidade, pessoal ou social, adquire um caráter dramático, algo não vivenciado
anteriormente. Seguindo as observações do autor, como nas sociedades hierárquicas o valor
dos indivíduos se associava ao título de honra concedido a cada um e como os títulos eram
desiguais, não era, portanto, uma necessidade que todos fossem tratados como iguais.
43
Contudo, na medida em que o título de honra é substituído pela dignidade humana, que tem
como premissa subjacente o entendimento de que todos a compartilham, um problema se
evidencia. Como nas sociedades atuais “a identidade original, pessoal, e internamente
derivada não goza deste reconhecimento [público] a priori”, é preciso, então, que ela seja
conquistada “por meio de um intercâmbio”; a questão é que este “intento pode fracassar”
(TAYLOR, 1993, p. 56, tradução nossa). Em outras palavras, o problema, portanto, é que em
tais sociedades enquanto uns podem se sair bem nesse empreendimento de conquista de seu
reconhecimento público, outros podem não conseguir e passar a ser associados a uma imagem
depreciada.
Diante de tal circunstância, segundo Taylor, o Estado não pode ser indiferente, o que
quer dizer, para o autor, ele não pode ser neutro e imparcial
25
. Por outro lado, conforme o
autor, ele deve assumir como responsabilidade sua a valorização do reconhecimento público
dos vários grupos sociais para que ninguém seja associado a símbolos de inferioridade,
criando, com isso, o contexto comunal que permita verdadeiramente o exercício da autonomia
por todos. O problema do Estado neutro, segundo o autor, é que ele “[luta] por formas de não
discriminação que […] [são] inteiramente cegas’ aos modos pelos quais se diferenciam os
cidadãos” (TAYLOR, 1993, p. 62, tradução nossa). Ou seja, o seu problema é que, na medida
em que oferece um mesmo tratamento a todos, ele não reconhece as singularidades e,
consequentemente, suprime as identidades próprias de cada um. Além disso, tal ação
supostamente neutra, acusa Taylor, seria, na verdade, “reflexo de uma cultura hegemônica”,
não neutra, portanto, o que faria dessa “sociedade supostamente justa e cega às diferenças não
só […] inumana (na medida em que suprime as identidades), senão também, numa forma sutil
e inconsciente, […] sumamente discriminatória” (TAYLOR, 1993, p. 67, tradução nossa).
Quanto às objeções de Taylor, em primeiro lugar, podemos dizer que os liberais não
negam que para o exercício da autonomia seja necessária a existência de uma comunidade
anteriormente constituída. Rawls (2008, p. 695), por exemplo, diz:
numa sociedade bem-ordenada […] a concepção do bem de todos provém de seu
projeto racional, que é subprojeto de um projeto maior e mais abrangente que rege a
comunidade como união social de uniões sociais. As muitas associações […]
oferecem ideais definidos e formas de vida que foram criados e testados por
inúmeros indivíduos, em certos casos durante gerações. Assim, ao elaborarmos um
plano de vida não começamos do nada.
25
Observe-se que por Estado neutro o autor entende aquele que tem as suas ações baseadas na concepção
kantiana de dignidade humana, que recomenda igualdade de respeito a todo indivíduo racional. Sendo mais
preciso, trata-se do Estado que, para evitar a classificação de seus cidadãos em classes ou ordens diferenciadas,
que poderia levar a uma diferenciação na valorização de cada um, entende a todos como igualmente portadores
de um mesmo título, e, com isso, busca oferecer o mesmo tratamento a cada um.
44
No entanto, que este reconhecimento leve ao endosso de um Estado não neutro, eles
discordam, embora, como veremos, defendam concepções de Estado, por assim dizer, não tão
conflitantes.
Por Estado neutro, Rawls tem um entendimento um pouco diferente do entendimento
de Taylor. Não se trata, como para este último, de um Estado que oferece o mesmo tratamento
a todos os seus membros, não distinguindo dentre estes, aqueles que se encontram numa
situação social melhor e aqueles que, por outro lado, encontram-se numa situação social mais
desfavorável. Não se trata, por conseguinte, de um Estado inteiramente cego e indiferente.
Para Rawls, a neutralidade estatal quer dizer, como vimos, nada mais do que neutralidade de
objetivos, o que significa unicamente que, sob uma organização social justa, não se pode
pressupor superioridade ou inferioridade intrínseca de qualquer doutrina religiosa, filosófica
ou moral abrangente em particular, mas, sim, deve-se pressupor uma concepção política de
justiça, que seja independente de qualquer uma dessas concepções. O Estado, desta maneira,
deixa de lado qualquer neutralidade de resultados ou de influência, porque, como diz Rawls
(2000, p. 242), trata-se de “algo impraticável”. Desta maneira, tal como observa Álvaro de
Vita (2007, p. 291), pode-se dizer que, para Rawls,
a norma de neutralidade liberal é de segunda ordem, isto é, não se aplica diretamente
à escolha de políticas e aos resultados do processo político mas somente às
justificações que são invocadas para os fundamentos constitucionais. Espera-se que
as divergências com respeito aos fundamentos constitucionais e às questões de
justiça básica possam ser resolvidas com base em valores que pessoas razoáveis,
independentemente da concepção do bem que cada uma julgue ser verdadeira,
reconheceriam como o fundamento de pretensões morais.
Em segundo lugar, contra o comunitarismo de Taylor ainda se pode dizer
acompanhando Kukathas e Pettit (2005, p. 128) que “parece um exagero afirmar que o meu
contexto social constitui a minha identidade, seja qual for o conceito de constituição”, dado
que, como notamos, podemos sempre reavaliar e reexaminar nossas crenças e valores, em
suma, podemos sempre nos recriar. Assim, como complementam estes autores, “na melhor
das hipóteses”, parece que somos “apenas parcialmente constituído[s]por nossos contextos
sociais, podendo a comunidade, utilizando as palavras de Maria Clara Dias (2003, p. 5),
“quando muito, incitar certos desejos ou suprir as condições para que os mesmos possam ser
expressos, […] [sem contudo] eliminar o aspecto decisivo da escolha individual”. Em face
disso, tal como a questão se mostra, o Estado não precisa ter a incumbência de, ao perceber as
particularidades de cada indivíduo, reafirmá-las, protegendo e preservando os vários grupos
45
sociais nos quais estes se encontram inseridos, dado que fazer isto pode significar nada menos
do que enclausurar o indivíduo em um modo de ser e, além disso, reforçar certas práticas
discriminatórias arraigadas. Ao comentar este perigo no tocante às mulheres, Susan Wolf
(1993, p. 109, tradução nossa) nos diz o seguinte:
a questão de saber até que ponto e em que sentido se deseja ser reconhecida como
mulher é, em si mesma, objeto de profundas controvérsias. Pois é evidente que as
mulheres foram reconhecidas como mulheres em certo sentido em realidade, como
‘nada mais do que mulheres durante muito tempo, e a questão de como deixar
para trás esse tipo específico e deformante de reconhecimento é problemática.
Assim, às criticas de Taylor pode-se responder que o Estado, sob a perspectiva liberal,
não é de todo indiferente à situação de seus membros, tanto que Rawls inclui na sua
concepção política de justiça o princípio da diferença. Isto não significa, porém, que ele tome
para si alguma responsabilidade quanto ao fortalecimento de determinados grupos sociais.
Significa apenas, de outro modo, que ele toma para si a busca por fornecer uma base estável
para que todas as pessoas, em condições de liberdade, “possam [por si próprias] reconhecer o
valor dos bons modos de vida” (KYMLICKA, 2006, p. 280). Desta feita, podemos dizer que a
busca do Estado liberal é, seguindo Rawls, ao reconhecer que os indivíduos podem se
encontrar vinculados a diversos grupos, sem suprimir, portanto, suas singularidades,
estabelecer as condições dentro das quais estes mesmos indivíduos tenham iguais condições
de escolher autonomamente se se emanciparão ou não em relação a esses grupos, ou em
outros termos, é estabelecer as condições dentro das quais eles próprios possam por si
mesmos determinar os rumos de sua vida, protegidos das interferências indevidas de outros
indivíduos, dos diversos grupos e até mesmo do próprio Estado.
Deste modo, encerramos as respostas às críticas de Taylor de que os liberais
negligenciam as condições sociais necessárias para o exercício da autonomia e de que a
neutralidade faz do Estado liberal completamente cego e indiferente. ainda, sabemos, uma
crítica deste que não foi tocada. Trata-se de sua acusação de que o chamado Estado neutro,
em realidade, seria reflexo de uma cultura hegemônica, visto que ele, na verdade, suporia uma
concepção de boa vida e a afirmaria em suas ações. Quanto a tal objeção, todavia, apesar de
sua importância, deixemos-na, por enquanto, em suspenso até o capítulo 2 no qual teremos
mais espaço para desenvolvê-la.
No momento, atentemos a outra crítica comunitarista, mais próxima daquela sugerida
acima por nós, de que talvez o liberalismo no que concerne à autonomia individual não seja
totalmente incapaz de provê-la, mas que em certos pontos ele se mostre insuficiente neste
46
provimento. Trata-se da posição que se apoia no que Michael Walzer (2008, p. xiv) chama de
“multiculturalismo feijão-com-arroz”, e que pretende, revisitando as críticas feitas por autores
como Sandel e outros, entender o comunitarismo menos como uma doutrina autônoma e mais
como um “corretivo” da teoria e prática liberais, com a finalidade de melhorá-las. Quanto à
questão aqui discutida, qual seja, se a teoria liberal conta de prover realmente a todos os
indivíduos a possibilidade de exercer a sua autonomia, Walzer assevera, como veremos, que o
liberalismo apresenta o problema de se restringir à distribuição de bens, quando pensa na
igualdade de autonomia. De acordo com este autor, é preciso visar uma configuração social
igualitária mais complexa do que esta estrita a certos bens sociais que são distribuídos
equitativamente levando em conta unicamente aspectos econômicos. Para ele, é preciso que as
pessoas sejam também, e sobretudo, reconhecidas como possuidoras de, utilizando os termos
de David Miller, igual status social, isso, é claro, se realmente se quer viver numa sociedade
não hierarquizada. Passemos agora à abordagem desta perspectiva.
1.4 IGUAL STATUS, IGUAL AUTONOMIA
Até aqui vimos que quando falamos em igualdade de liberdades, no contexto de uma
sociedade liberal, estamos pressupondo um conjunto de direitos, liberdades e recursos básicos
o qual deve ser atribuído a todo cidadão indistintamente. Para que estas liberdades não tenham
um significado meramente formal, ou seja, para que todos, na prática factual, tenham
condições de fazer suas escolhas de forma autônoma, uma saída liberal, a de Rawls, por
exemplo, é incluir na estruturação da sociedade igualitária, uma distribuição de bens ou
recursos que seja equitativa para atender os mais prejudicados economicamente. A questão,
em linhas gerais, que apresentamos a esta compreensão foi: tal distribuição equitativa de bens
é suficiente para garantir uma sociedade liberal igualitária? Isto é, é suficiente para de fato
possibilitar igualdade de autonomia a todos os cidadãos, mesmo quando há uma diferenciação
entre estes quanto ao seu reconhecimento público, ou seja, mesmo quando algumas pessoas
sofrem com o preconceito e a discriminação?
A nossa resposta insinuada a essa questão, ao menos, até aqui foi negativa. Sugerimos
que, nas sociedades liberais precisa-se reconhecer que as pessoas não se encontram em
situação desprivilegiada apenas quando estão desprovidas de bens, mas também quando a
imagem, a qual elas são associadas, é estigmatizada e depreciada. Vejamos a partir de agora,
com base na teoria de Walzer, o porquê de tal sugestão e também uma possível saída para dar
conta de tal insuficiência apontada pelo autor citado. De início, adiantemos que, por acreditar,
47
neste caso, que a distribuição de bens aos mais desprovidos de recursos materiais não é
suficiente para estruturar uma sociedade liberal que seja igualitária no que se refere às
liberdades de cada um, Walzer volta-se, mais uma vez, bem como Sandel e Taylor, para o
contexto comunal e reafirma a importância do reconhecimento e fortalecimento deste, isto é,
das associações e grupos aos quais essas pessoas estão ligadas.
Para Walzer, a distribuição de bens não é suficiente para igualar os cidadãos em
autonomia numa sociedade liberal porque as desigualdades mais duradouras e profundas
nestas sociedades não são principalmente econômicas em sua origem, mas resultam de
estigmas herdados de um passado marcado por etnocentrismo, machismo, racismo,
classicismo etc
26
. Conforme este autor, sabendo disso, não se pode, por conseguinte,
negligenciar que alguns dos problemas principais de desigualdades em que nos encontramos
têm um forte traço cultural, social, racial etc. Em suas palavras, “no mundo real da
desigualdade duradoura, os indivíduos não se tornam membros desses grupos porque são
desfavorecidos: são desfavorecidos porque são seus membros” (WALZER, 2008, p. 45).
Diante disso, a saber, assumindo que o estigma é coletivo e a discriminação,
sistemática, pode-se ver, acompanhando a perspectiva Walzer, que necessitamos também de
um fortalecimento coletivo não sendo suficiente, portanto, para a igualdade dos indivíduos
em autonomia unicamente uma distribuição de bens sociais. Ou seja, necessitamos também de
um fortalecimento dos grupos estigmatizados socialmente, fortalecimento este que, como
reconhece o autor, também precisa ser compatível, obviamente, com a emancipação
individual frente aos grupos e com a consideração da dignidade igualitária de cada um. Afinal
de contas, embora a discriminação possa ser sistemática e coletiva, a rigor, quem sofre com
ela é o indivíduo, não o grupo. Como diz Wolf (1993, p. 115, tradução nossa) “o insulto […]
se dirige fundamentalmente contra os indivíduos, não contra as culturas, e consiste ou bem em
desentender-se da presença desses indivíduos em nossa comunidade, ou bem em desdenhar ou
rebaixar a importância de sua identidade cultural”.
Um exemplo da necessidade da adoção de políticas que vão além da distribuição de
bens parece ser indicado, observa o autor, quando pensamos que nem todas as nossas
associações são voluntárias, que nem sempre escolhemos os grupos nos quais nos
encontramos embora, como foi ressaltado, sempre possamos escolher nos desligar deles.
Pois, embora cada vez mais, diz, tenhamos menos “doubt that we (in the United States [e,
26
Se falarmos em Brasil, estaremos nos referindo a um passado de invasão portuguesa que dizimou a população
nativa, escravizou índios e africanos e impôs uma estrutura basicamente patriarcal de organizar a família, a
sociedade e a cultura aos habitantes de cá.
48
acrescento, nos países liberais em geral]) live in a society where individuals are relatively
dissociated and separated from one another” (WALZER, 1990, p. 11), podemos verificar que
alguns de seus vínculos sociais, familiares, culturais, políticos e morais ainda assim tendem a
permanecer. Não parece tão fácil desligar-se de muitos deles, até porque, dentro desses
grupos, afirma, sempre espaço para oposição e a resistência, isto é, “como o caráter da
associação involuntária não é, de modo algum, completamente determinado, ele [sempre] está
sujeito à transformação política” (WALZER, 2008, p. 28). Deste modo, diz o autor, uma
sociedade realmente igualitária não só busca fornecer os recursos para a emancipação
individual, tal como os bens primários, mas também, ao mesmo tempo, busca fornecer as
condições para que nenhum grupo seja desrespeitado ou estigmatizado socialmente,
fortalecendo-o quando necessário.
É importante observar neste ponto que, para Walzer, é claro que, nessa situação em
que a distribuição de bens sociais não se mostra suficiente para fornecer as condições
necessárias a todo indivíduo para ser autônomo, a valorização do reconhecimento público,
bem como nos recomenda, por exemplo, Taylor, desempenha um papel de grande
importância. Pois, é óbvio que um grupo que sofre com discriminação precisa ser revalorizado
enquanto grupo. No entanto, como observa o autor, esta revalorização também não é
suficiente para estruturar uma sociedade liberal igualitária. Sobre isto ele diz:
O seu valor tem sido, por vezes, exagerado nos debates sobre política de identidade.
Os membros de grupos oprimidos têm sido estimulados equivocadamente, creio
a perceber-se como prejudicados, acima de tudo, pelo desrespeito do outro
dominante, e a buscar pelos sinais de respeito adequado. Mas um estado de
permanente desconfiança a respeito de coisas humilhantes ou mal-intencionadas que
estejam prestes a ser ditas ou feitas é autoderrotista. Conduz, com muita freqüência,
a uma política de raiva e ressentimento sem saída (WALZER, 2008, p. 55-56).
Assim, fica claro que, para Walzer, para construção de uma sociedade liberal de fato
igualitária no que concerne à autonomia, para além da distribuição equitativa de bens aos
indivíduos e também da elevação da estima dos mais oprimidos, entendidos como grupos,
precisa-se, conforme diz, de uma base segura para aqueles que se encontram numa situação
mais vulnerável, isto é, precisa-se de um fortalecimento coletivo dos grupos mais
estigmatizados socialmente. Ou seja, precisa-se de um Estado que ofereça recursos
econômicos e políticos, não aos indivíduos, mas também aos grupos. A ideia, portanto, é
fortalecer política e economicamente os grupos em situação pior, mais oprimidos, mais
discriminados, justamente para que os indivíduos que se encontram neles possam ter mais
possibilidades de serem autônomos. Pois, como acredita o autor, o grupo, quando fortalecido,
49
possibilita ao indivíduo, que a ele se encontra vinculado, autorrespeitar-se, isto é, poder olhar
para si próprio e ver-se como uma pessoa digna de respeito e consideração. Em outras
palavras, possibilita-lhe maiores condições de tornar-se, enfim, um agente livre e responsável,
em suma, um sujeito autônomo, “o […] ideal da teoria da justiça” (WALZER, 2003, p. 383).
Afinal de contas, seguindo suas palavras, “o fortalecimento ainda é um modelo individualista,
[…] [apesar de reconhecer] que os indivíduos vivem em grupos e que seu lugar na sociedade
é determinado, em parte, pela posição de seus grupos” (WALZER, 2008, p. 58).
Neste ponto, talvez se possa dizer que isso não traz nada de novo ao liberalismo ou,
pelo menos, nada de diferente ao que Rawls havia defendido. Afinal, entre os bens
primários que devem ser distribuídos a todos os indivíduos para que todos possam
autonomamente buscar a realização de sua concepção de bem este autor listou “as bases
sociais do auto-respeito” (vide seção 1.2 acima). Neste sentido, as observações de Walzer a
respeito da importância do fortalecimento dos grupos para que todos os indivíduos possam ser
de fato autônomos não passariam de, na melhor das hipóteses, alguns aprofundamentos da
teoria de Rawls. A isso respondo que a ideia é exatamente esta, aprofundar a compreensão
liberal, suprir algumas de suas insuficiências e, quando muito, oferecer correções pontuais.
Neste respeito, o que Walzer parece trazer de novo é o fato de ressaltar que para se oferecer
“as bases sociais do autorrespeito” – talvez possamos assim dizer –, deve-se, em alguns casos,
fortalecer os grupos dentro dos quais os indivíduos se encontram, ou seja, deve-se, para ajudar
a promover a autonomia dos indivíduos, dar atenção aos seus grupos.
Com efeito, podemos dizer que essa crítica comunitarista não quer evidenciar outra
coisa senão que, para a concretização de uma sociedade liberal justa, na qual todos os
indivíduos que se encontrem tenham melhores possibilidades de se tornar autônomos,
algo que precisa ser feito, uma condição a ser satisfeita. Caso não se queira indivíduos que
sofram com discriminação e preconceito, é preciso que haja uma distribuição de recursos não
diretamente para estes, mas, em certas ocasiões, também para os grupos nos quais eles se
encontram. Ou seja, é preciso entender que, em algumas circunstâncias, para realmente ajudá-
los a se emancipar de seus grupos, ou de alguma imagem estigmatizada, deve-se fortalecer os
próprios grupos, oferecendo serviços e recursos específicos para estes últimos. Dessa maneira,
o mérito da crítica comunitarista de Walzer, ao que parece, é justamente evidenciar isso, ou
seja, evidenciar que, uma condição para os indivíduos serem realmente autônomos é a de que,
numa sociedade bem-ordenada ou não, ninguém seja discriminado e para isso todos os grupos
aos quais eles estão vinculados devem ser fortes, ou fortalecidos, quando necessário. A ideia
50
ao fazer isso é garantir que todos, como diz David Miller
27
, possam se ver como portadores de
um status social igual, em suma, como membros igualmente completos e igualmente
participantes de uma mesma comunidade política não hierarquizada
28
.
1.5 CONCLUSÃO
Dado tudo isto, podemos concluir que se realmente pretendemos, seguindo a teoria de
Rawls ou qualquer outra teoria liberal, conciliar a tradição advinda de Locke, que valoriza a
liberdade individual de determinar a própria vida, e a tradição advinda de Rousseau, que, de
outro modo, salienta a valorização da consideração de todos, não podemos nos centrar
unicamente na distribuição de bens. Se de fato o que se quer é que todos possam ser
autônomos, precisa-se endossar um Estado que, o mais possível, considere a cada um em suas
peculiaridades, em seus vínculos e em seus grupos, não sendo ele nem completamente
indiferente nem completamente interventor.
Saliente-se aqui que o que se pretende não é afirmar que a teoria liberal tal como a
apresentada por Rawls seja de todo incorreta, mas, diferentemente, que talvez ela comporte,
nesse aspecto da igualdade de autonomia, um aprofundamento ou quiçá um pequeno reparo.
Se olharmos para as nossas sociedades liberais hoje, as sociedades que não são bem-
ordenadas, onde o preconceito, a discriminação e o desrespeito ainda são práticas difundidas
que impedem, muitas vezes, que todos os cidadãos reconheçam-se com um status de
cidadania igual, poderemos ver, com mais clareza, que juntamente ou talvez antes de uma
distribuição de bens algo mais precisa ser feito. Pois, é difícil acreditar que basta uma
distribuição especial de bens como renda e riqueza para que, por exemplo, os homossexuais
no Brasil sejam tão autônomos quanto os heterossexuais. Em certas ocasiões, o que eles mais
precisam, parece, é de outro tipo de recursos, recursos estes que os façam, por exemplo,
enquanto grupo, perceberem-se como mais fortes. E isso, de seu turno, parece ser algo que
precisa ser feito anteriormente a uma distribuição de bens. Essa anterioridade, no entanto, não
significa que teorias como a de Rawls devam ser abandonadas, mas simplesmente que para
sua realização, algumas providências prévias devem ser tomadas.
A ideia é que, com base na compreensão de que, pelo menos, em parte, os indivíduos
constroem a imagem de quem são através de seus vínculos, e que de alguns destes muito
dificilmente eles conseguem se desligar, não se pode escapar da necessidade de que, em certas
27
Vide Equality and justice (1997).
28
Embora, é claro, cada um possa ser valorizado diferentemente em particular, como, por exemplo, um médico
mais competente, um esportista mais habilidoso ou um artista mais talentoso.
51
ocasiões, alguns grupos precisam ser fortalecidos. Pois, se o que se pretende é que os
indivíduos possam realmente ser autônomos, é preciso, então, que todos se sintam seguros em
suas relações, que se sintam respeitados em sua sociedade, em suma, que se sintam iguais aos
demais. E se parte deste respeito passa pelo grupo ao qual ele está vinculado, logo o seu
grupo, necessariamente, precisa ser fortalecido. Assim, se realmente almeja-se uma sociedade
justa, tal qual a sociedade bem-ordenada de Rawls, não se pode negligenciar a importância de
além das políticas de emancipação individual, incentivar as políticas de fortalecimento grupal,
de tal modo que ambas operem juntas e simultâneas. Em outras palavras, se realmente se
almeja que todos tenham maiores condições de serem realmente autônomos, não se pode fugir
do fato de que por mais que os indivíduos sejam diferentes em muitos aspectos particulares,
eles precisam se ver em suas associações mais importantes como iguais, com igual status
social – e para isso, não se pode negar, é fundamental a ação do Estado.
Com isso, terminamos esse capítulo dedicado a saber se a abordagem liberal, tal como
a de Rawls, conta de construir uma sociedade, onde, de fato, todos os indivíduos racionais
são igualmente autônomos. Nossa conclusão foi a de que ela pode se aproximar de dar
conta disso, caso os grupos sociais mais vulneráveis, aqueles que são afetados com o
preconceito e a discriminação, sejam fortalecidos pelo Estado, de tal maneira que todos
possam se reconhecer como portadores de um status igual enquanto cidadãos. A seguir
daremos outro passo, perguntaremos se ela é de fato justa, ou seja, perguntaremos se ela
realmente considera a todos os cidadãos como iguais sob o aspecto da justiça distributiva.
52
2 A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E O LIBERALISMO
O que significa, ou melhor, o que deve significar a justiça ou o tratamento como igual
na atual sociedade liberal? Esta será a questão deste capítulo. Como visto no primeiro
capítulo, entendemos que essa mesma sociedade organizada sob os preceitos liberais tais
como apresentados por Rawls pode dar conta de prover igualmente a todos os seus cidadãos a
possibilidade de exercer realmente a sua autonomia, desde que, entretanto, esta teoria seja
amparada por certas ressalvas, como a noção de igualação do status social através do
fortalecimento dos grupos estigmatizados socialmente. Agora, investigaremos algo um pouco
diferente, embora diretamente ligado ao que foi tratado no primeiro capítulo, investigaremos
se os preceitos desta perspectiva política são suficientes para estruturar uma sociedade que,
respeitando a autonomia de todos os seus cidadãos, seja também justa.
Aqui, como no primeiro capítulo, a nossa resposta é que acreditamos que tal
perspectiva carece de um aprofundamento ou talvez de um reparo, neste caso, em dois
aspectos: primeiro, acreditamos que ela deve se fundar primariamente não em mérito ou
merecimento, mas no status igual da cidadania ou no reconhecimento dos cidadãos como
igualmente membros de uma mesma comunidade política; e segundo, quando sob a base do
merecimento, acreditamos que ela deve ser mais sensível aos diversos méritos das diversas
pessoas em seus vários contextos. Com estes reparos ou aprofundamentos entendemos que a
sociedade liberal estará mais próxima de ser realmente uma sociedade igualitária e justa ou,
utilizando os temos de Rawls, mais próxima de ser uma sociedade realmente bem-ordenada.
2.1 A VIRTUDE PRIMEIRA DAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS
Comecemos apresentando a noção de justiça que será tratada neste texto e, em
seguida, passemos ao problema relacionado a ela que servirá como o norte para nós neste
capítulo. A noção de justiça que tomaremos aqui é aquela identificada com o segundo sentido
apontado por Aristóteles no livro V da Ética a Nicômaco, ou seja, não a entendida, conforme
diz este autor, como a virtude que pode ser atribuída à disposição de caráter de um homem
que age corretamente ou de acordo com os mandamentos de uma dada moralidade, mas, de
outro modo, aquela entendida como a virtude “que se manifesta nas distribuições de honras,
de dinheiro ou das outras coisas que são divididas entre aqueles que têm parte na constituição
[os cidadãos] […] [e, além disso,] que desempenha um papel corretivo nas transações entre os
indivíduos” (ARISTÓTELES, 1973, p. 324, 1130 b). Trata-se, por conseguinte, da noção
53
caracterizada pelo autor como uma parte da virtude completa, posto que somente diz respeito
ao que é distribuído entre os indivíduos, como recursos e penas.
Assim, podemos dizer que se trata da noção que é normalmente denominada como
justiça distributiva e que lida com o que deve ser repartido entre as pessoas envolvidas em um
litígio ou em uma divisão de bens sociais. A ideia a ser assegurada com ela, entende-se em
geral, é que todos os indivíduos, quando têm de receber um bem social qualquer, positivo ou
negativo, sejam considerados sem ser lesados ou favorecidos, ou seja, recebam unicamente
aquilo o que merecem ou aquilo o que lhes pertence. Neste sentido, pode-se dizer que nessa
compreensão da justiça não está em jogo, então, se o sujeito de que se fala é de todo injusto
ou se ele apresenta uma disposição de caráter que o faz tender, no mais das vezes, para a
covardia, a intemperança e a ira, isto é, se não é virtuoso em sentido pleno; mas,
diferentemente, apenas se ele se beneficiará às custas de seu próximo, isto é, se tirará
vantagem frente àquele(s) com o(s) qual (is) lida.
É importante observar que em tal compreensão, seguindo ainda a exposição de
Aristóteles, o que se busca é proporcionar para as pessoas envolvidas ou bem a equidade ou
bem uma espécie de igualdade. Quando se trata da distribuição das posses comuns aos
cidadãos, conforme diz o autor, cada um deverá receber apenas aquilo que é consoante com o
seu mérito, nem mais nem menos. A distribuição, neste caso, completa, deverá obedecer a
uma espécie de proporção ou equidade tendo como base o merecimento de cada um. Por outro
lado, quando o caso é de um delito ou de um dano causado por uma das partes, diz, a outra, a
prejudicada, deverá ter uma espécie de compensação de sua “perda”, visando, com isso, o
restabelecimento da igualdade inicial. Assim, acompanhando Aristóteles, a justiça nesse
sentido mais restrito – nos dois casos citados pode ser expressa através da seguinte fórmula:
“igualdade […] para aqueles que são iguais entre si” e “desigualdade […] para aqueles que
são desiguais entre si” (ARISTÓTELES, 1997, p. 92, 1280a).
Um traço ainda, que é marcante e fundamental dessa compreensão da justiça e que não
podemos deixar de mencionar, como nota outro autor, Kant, é o fato de ela, em nossa
sociedade, associar-se diretamente à atribuição de direitos. Conforme assevera este autor, é
justamente para garantir a segurança de sua concretização, ou seja, é para garantir que ela será
realizada, que se estabelece, segundo ele, a condição chamada de jurídica, isto é, a condição
na qual todos os cidadãos se submetem à força de leis públicas
29
. O objetivo a ser alcançado
29
Seguindo a compreensão de Kant, uma sociedade que está sujeita a tal justiça ou mais precisamente, que está
sujeita à vigência de tribunais entendidos como a justiça do país, é uma sociedade que se encontra sob a
condição civil ou, simplesmente, é uma sociedade civil.
54
neste estabelecimento, diz, é que os indivíduos, ao participarem de uma sociedade civil e
constituírem-se enquanto povo, afetando-se reciprocamente, discordando entre si e em várias
ocasiões comprometendo-se com interesses completamente conflitante entre si, tenham
garantido, através de leis públicas, aquilo o que lhes pertence ou o que é de cada um por
direito, estando, assim, protegidos pelas leis contra a violência de outrem. Desta maneira,
vemos através do comentário deste autor, que a vigência, em nossa sociedade, dessa justiça,
que ele chama de pública, depende inteiramente da promulgação de um sistema de leis
aprovado para um povo (ou para uma multidão de povos), de uma constituição, que, ao lidar
com pessoas que interagem constantemente em suas relações externas e com grande
frequência se afetam no exercício de suas escolhas pessoais, regula-as, une-as e formula para
elas o que será tomado como direito.
Mas, se um traço marcante e fundamental dessa justiça pública em nossa sociedade é o
fato de ela se relacionar diretamente com a promulgação e a proteção de direitos para os
cidadãos, como observa o próprio Kant, um outro traço marcante e fundamental dela tem de
ser que ela, assim, está inteiramente entrelaçada com a competência de se exercer coerção.
Como justifica este autor, em nossa organização social, concebe-se como justo o exercício de
tal coerção por parte do Estado, desde que este exercício sempre se dê tendo em vista o
indivíduo que viola os direitos e as liberdades garantidas por leis públicas a terceiros, isto é,
contra o indivíduo que não respeita a liberdade e os direitos de qualquer outro e,
consequentemente, não respeita a própria justiça pública.
Assim, dado o exposto, podemos dizer, a justiça deste modo concebida, a justiça
pública ou distributiva, aquela que se relaciona unicamente com a distribuição de bens e penas
na sociedade e que se vincula diretamente à noção de direitos, é a chamada por Rawls (2008,
p. 4) de “virtude primeira das instituições sociais”. Ou seja, trata-se da virtude que
normalmente as pessoas, principalmente no contexto das sociedades liberais, querem ver
como prevalecente em suas comunidades políticas, regulando as relações dos indivíduos que
são considerados iguais e que vivem em comum sob o jugo das mesmas leis. Nada mais é,
sendo mais preciso, do que a virtude que se ambiciona encontrar nas instituições que
intermedeiam nas sociedades ocidentais em geral tanto a interação das pessoas entre si, como
a interação dessas mesmas pessoas com o seu Estado.
O que perguntamos com relação a essa compreensão da justiça é: como podemos
instituí-la corretamente nas sociedades liberais atuais? Ou em outros termos, em que base essa
virtude deve ser estabelecida entre os indivíduos? A partir de qual característica dos
indivíduos ela deve ser estruturada? Ou seja, que espécie de mérito ou qualificação deve ser
55
tomada como parâmetro para equidade? Em suma, o que deve ser assumido como relevante
nos indivíduos ou em que eles devem ser igualados para que sejam tratados realmente como
iguais ou com justiça nessas sociedades?
30
Vejamos agora um encaminhamento liberal destas
questões, olhando, principalmente, para a teoria da justiça de Rawls.
2.2 JUSTIÇA LIBERAL, A ESCOLHA INDIVIDUAL E O MÉRITO
Como vimos no capítulo anterior, para os liberais, a liberdade é um valor político
fundamental, um valor que, normalmente, entende-se, deve ser salvaguardado a todo
indivíduo racional. A ideia habitualmente pressuposta é que a partir do momento em que o
sujeito se torna adulto, ou emancipado juridicamente, por ser dotado de certas competências
racionais, ou seja, por apresentar a capacidade de definir por si mesmo os rumos de sua
própria vida, a ele, e a ninguém mais, cabe decidir autonomamente o que fará da mesma.
Ele é livre e essa liberdade é (e deve ser, segundo os liberais,) um direito que lhe é
inalienável, garantido inclusive contra decisões majoritárias. Tal liberdade, todavia, traz
consigo a noção de responsabilidade. Pois, se cabe apenas ao indivíduo escolher livremente,
de forma deliberada ou indireta, através de suas ações, os rumos de sua vida, somente ele
próprio, então, pode responder pelas consequências do que optou. Unicamente a ele se pode
imputar a responsabilidade de tal escolha.
Nas sociedades liberais, pode-se dizer que, em geral, é esta conexão entre a liberdade e
a responsabilidade que responde a questão da justiça explicitada acima. A resposta dada
normalmente é que a base dessa virtude nessas sociedades, ou seja, que aquilo a ser tomado
como relevante nos indivíduos para que eles sejam tratados com justiça, deve ser o exercício
da autonomia de cada um e somente ele, e a responsabilidade que lhe vem agregada ou, em
outras palavras, o mérito decorrente das escolhas de cada um. Assim, de forma geral, o que se
pressupõe, nessas sociedades, é que justo é receber tudo aquilo, e unicamente aquilo, o que
por esforço próprio e livremente foi cultivado e escolhido. Por outro lado, injusto é ter de
sofrer as consequências de algo não escolhido ou cultivado pelo próprio agente, mas que lhe
foi arbitrariamente imposto. Desta maneira, vê-se de onde se estrutura o entendimento comum
entre os liberais de Rawls e Dworkin, por exemplo de que a distribuição de bens e a
instituição do sistema de direitos devem respeitar as escolhas individuais feitas em liberdade,
30
Aristóteles, na Ética a Nicômaco (1973), p. 325; e Kant, em A Metafísica dos Costumes (2003), p. 80-81,
apontaram a dificuldade de se indicar uma característica entre as pessoas que servisse de base para uma
avaliação das mesmas de acordo com o mérito de cada uma ou, em outras palavras, que servisse para determinar
uma distribuição equitativa de um bem, característica esta que todos unanimemente pudessem aceitar como a
mais relevante e que levasse a resultados precisos.
56
responsabilizando cada um, única e exclusivamente, por aquilo que efetivamente escolheu. O
entendimento implícito, portanto, é que toda distribuição de bens entre os cidadãos e todo
sistema de direitos, para ser justos, precisam ter como objetivo, de um lado, proteger a
autonomia de cada um e, de outro, mitigar os efeitos de condições o escolhidas ou, em
outras palavras, precisam ter como objetivo possibilitar aos indivíduos determinar seu destino
mais por suas escolhas pessoais do que pelas circunstâncias do acaso ou da sorte, isto que é
feito, em geral, para estes autores, quando se distribuem diferenciadamente certos bens.
Para percebermos com mais clareza esse entendimento apontado acima passemos à
compreensão de justiça distributiva de Rawls. Como vimos, para Rawls, a sociedade justa é a
sociedade bem-ordenada, aquela que é regulada pelos dois princípios de justiça, o princípio da
liberdade igual e os princípios da igualdade equitativa de oportunidades e da diferença, que
constituem a sua concepção política de justiça. Nesta sociedade os cidadãos endossam essa
mesma concepção de justiça, apesar de suas discordâncias no que concerne ao âmbito de suas
doutrinas religiosas, filosóficas e morais. Este endosso é possível porque, segundo este autor,
tal concepção de justiça se restringe ao campo do político, isto é, ao campo da resolução de
questões da justiça básica, o que faz com que tal concepção, quando aplicada à estrutura
básica da sociedade, ou seja, quando adotada pelas principais instituições sociais e políticas,
possa ser compreendida como um módulo independente que se encaixa nas várias doutrinas
razoáveis professadas socialmente, sem, contudo, contradizê-las. Desta maneira, relembrando
o que foi dito, a sociedade justa rawlsiana pode ser entendida como uma unidade estável
capaz de abarcar todos os seus cidadãos, uma vez que todos eles endossam, através do que o
autor chamou de consenso sobreposto, a mesma concepção de justiça, apesar de professarem
doutrinas abrangentes que são diversas, conflitantes e, muitas vezes, irreconciliáveis.
É importante salientar que nesta compreensão de sociedade bem-ordenada, sustentada
pelo consenso sobreposto de doutrinas razoáveis abrangentes, um dos pressupostos básicos é a
noção de que os cidadãos que se encontram são pessoas que, diferentemente das partes na
posição original, são plenamente autônomas, isto é, são racionais, possuem “a capacidade de
ter uma concepção de bem”, e são razoáveis, possuem “a capacidade de ter senso de justiça”
(RAWLS, 2000, p. 62). Desta forma, pressupõe-se, nesta concepção, que eles são pessoas que
possuem as duas faculdades morais necessárias para participar de e cooperar com uma
sociedade bem-ordenada. Conforme diz Rawls, a ideia é que, por apresentarem tais
faculdades, eles estão plenamente capacitados para “fazer isso durante toda a vida” (RAWLS,
2003, p. 26).
57
Além disso, outra pressuposição é a de que a sociedade seja um sistema equitativo de
cooperação social
31
. Isso significa, primeiro, que nela, uma vez que os seus cidadãos são
vistos como membros plenos, isto é, racionais e razoáveis, eles são vistos como capazes de
aceitar os seus termos equitativos
32
, ou seja, como capazes de aceitar os direitos e deveres,
que são especificados por tais termos equitativos, e, além disso, como capazes de aceitar a
regulação da divisão dos bens sociais e a distribuição dos encargos a cada um, também
promovida por tais termos. Segundo, significa que, nessas sociedades, os cidadãos, por
possuírem tais faculdades, são, em questões de justiça social, considerados como livres e
iguais. São livres, segundo diz o autor, (a) no sentido de reconhecerem em si e nos demais a
capacidade de ter uma concepção de bem e o poder de revê-la; (b) por se considerarem com o
direito de fazer reivindicações as suas instituições com o intuito de promover tais concepções
de bem; e (c) por serem capazes de ajustar seus objetivos e aspirações ao que é razoável
esperar que possam fazer, isto é, por serem capazes de assumir a responsabilidade por seus
objetivos. E são iguais no sentido de que são considerados como portadores das duas
capacidades morais em um grau mínimo essencial, o que lhes possibilita participar durante
toda a vida da cooperação social. Sendo mais preciso, são vistos como iguais, apesar de suas
diferenciações nos talentos naturais, na medida em que podem tomar parte da cooperação
social durante a vida e estão dispostos a respeitar seus termos equitativos.
Neste sentido, para esta compreensão, pode-se notar, um papel básico das principais
instituições na sociedade bem-ordenada é assegurar que os seus cidadãos, por serem racionais
e razoáveis e, como consequência, livres e iguais, possam por si mesmos, isto é, com
autonomia, buscar a realização da concepção de bem que preferir, seja ela qual for
33
. A
31
Esta é ideia mais fundamental na justiça como equidade, para Rawls, já que é justamente dela que provém,
segundo ele, a ideia de sociedade bem-ordenada. Vide RAWLS, Justiça como equidade: uma reformulação
(2003), p. 7.
32
A essa compreensão de sistema equitativo de cooperação social, Rawls associa três aspetos, que afirma serem
essenciais. O primeiro é que tal cooperação não é uma atividade social coordenada, orientada para um fim. Ela
“guia-se por regras e procedimentos publicamente reconhecidos, que aqueles que cooperam aceitam como
apropriados para reger sua conduta”. O segundo é que ela implica a existência de termos equitativos, que “são
termos que cada participante pode razoavelmente aceitar, e às vezes, deveria aceitar, desde que todos os outros
os aceitem”. Estes termos incluem, conforme o autor, a ideia de reciprocidade ou mutualidade, que significa que
“todo aquele que cumprir sua parte, de acordo com o que as regras reconhecidas o exigem, deve-se beneficiar da
cooperação conforme um critério público e consensual especificado”. E o terceiro é que ela contém a ideia de
vantagem racional de cada participante. Tal ideia, por sua vez, “especifica o que os que cooperam procuram
promover do ponto de vista de seu próprio bem” (RAWLS, 2003, p. 8-9; 2000, p. 354-355).
33
É importante observar aqui, como diz Vita, que, para isso, muitas vezes, as instituições básicas precisam fazer
mais do que se abster de ferir ou intervir na esfera de autodeterminação pessoal de cada um dos cidadãos. Em
várias ocasiões, elas precisam tomar medidas efetivas, que geram, inclusive, grandes ônus aos recursos escassos
do Estado, como a implementação de políticas públicas, “tais como campanhas de escolarização e
esclarecimento sobre a legislação existente, a garantia de acesso à justiça para os pobres e a concessão de
benefícios aos desempregados” (VITA, 2007, p. 231).
58
intenção é que ela forneça as condições adequadas para isso, através, por exemplo, do
resguardo de iguais direitos e liberdades a todos, anulando, inclusive, sempre que possível,
toda influência das intervenções do acaso, da sorte etc., em suma, toda influência de qualquer
circunstância não escolhida pelos envolvidos. Neste caso, relembrando o que foi visto no
capítulo anterior, para dar conta disso Rawls inclui em seus dois princípios de justiça, o
princípio da diferença, aquele que, ao desempenhar o papel de garantir uma distribuição dos
bens primários diferenciada para os menos favorecidos socialmente (ou economicamente),
pretende exatamente, conforme ele, diminuir o impacto da influência de circunstâncias
naturais e sociais não escolhidas pelos indivíduos.
Assim, na sociedade bem-ordenada, a compreensão de justiça pública suposta é aquela
associada a uma concepção independente, não conflitante com as diversas doutrinas
abrangentes professadas socialmente, concepção esta que tem por função regular a sociedade,
estabelecendo os termos equitativos que serão compartilhados pelos cidadãos entendidos
como razoáveis e racionais, e como livres e iguais. Ou seja, em poucas palavras, não se trata
de nada mais do que a própria justiça como equidade, aquela concepção que, como vimos,
tem como pretensão fundamental não impossibilitar o exercício da autonomia de ninguém,
mas, ao contrário, proteger tal exercício, respeitando a liberdade de cada um e a igualdade de
todos. Deste modo, pode-se ver que a sua ideia principal, corroborando o entendimento liberal
geral, é justamente garantir que todos sejam igualmente livres e apenas respondam por aquilo
que efetivamente escolheram, não sofrendo com os efeitos de circunstâncias arbitrárias,
impostas por outros ou pelo acaso. Enfim, a pretensão é que, na sociedade bem-ordenada,
cada um receba unicamente aquilo que realmente cultivou, ou seja, aquilo o que fez por
merecer, não tendo que responder pelo que não é responsável.
Sobre essa compreensão da justiça distributiva, no entanto, pode-se dizer, como
apontam alguns autores, que ela, tal como descreve Kymlicka (2006, p. 90), “deixa espaço
demais para a influência das desigualdades naturais e, ao mesmo tempo, deixa muito pouco
espaço para a influência de nossas escolhas”. Por um lado, na medida em que define a pior
posição, aquela que deverá ser beneficiada pelo princípio da diferença, inteiramente em
função dos bens primários sociais, não considerando os bens primários naturais como visto
no primeiro capítulo –, ela parece deixar que o destino das pessoas seja demasiadamente
influenciado por fatores arbitrários, posto que, seguindo sua concepção, duas pessoas que têm,
por assim dizer, a mesma quantidade de bens primários, embora uma das duas seja deficiente
ou tenha uma saúde debilitada, estão na mesma situação. Ela não considera, deste modo, que
59
se uma das duas é deficiente, física ou mentalmente, ela está numa situação pior que aquela
que não apresenta deficiência.
Por outro lado, uma vez que o que se pretende com o princípio da diferença é que ele
seja aplicado para beneficiar os menos favorecidos socialmente não distinguindo dentre estes
quem se encontra nesta situação devido a circunstâncias arbitrárias e quem está nela devido a
escolhas custosas, ou seja, devido à opção por uma vida mais extravagante e insustentável
economicamente, ele acaba podendo ter como consequência a oneração de pessoas que não
escolheram tais custos. Em outras palavras, ele pode fazer com que algumas pessoas paguem
pelas escolhas de outras, se estas últimas se encontrarem numa pior situação devido suas
escolhas, não devido suas circunstâncias.
Deste modo, evidencia-se que Rawls, ao que parece, não consegue evitar
completamente que, de um lado, algumas pessoas sofram com circunstâncias não escolhidas
e, de outro, algumas outras tenham os custos de suas escolhas subsidiados indevidamente. Ele,
assim parece, não consegue dar conta satisfatoriamente da supracitada justiça distributiva
liberal, e estruturar uma teoria que garanta realmente que todos os cidadãos sejam tratados
como iguais, isto é, que cada um apenas seja responsabilizado por suas escolhas feitas em
liberdade e não tenha de responder por circunstâncias arbitrariamente impostas. O problema
de sua abordagem, contudo, talvez não esteja na mera aplicação de seus dispositivos de
justiça, mas, quiçá, na sua escolha inicial e dos liberais em geral por estabelecer a justiça
(o tratamento como igual dos cidadãos) de uma distribuição de bens, tendo inteiramente como
base um critério incerto de mérito, ou seja, tendo inteiramente como base a escolha individual,
a autonomia e a responsabilização correspondente, visto que, tal como assevera Miller (1997,
p. 229) “in real cases it is nearly always impossible to disentangle what someone is
responsible for from the effects of factors like their native endowments for which they are not
responsible”. Talvez seja o caso, então, de estabelecer a justiça sobre outra base, uma base
não mais apoiada completamente sobre tal incerteza, mas, quem sabe, sobre um critério mais
claro para todos, de modo que cada um possa realmente ser tratado com justiça, tendo de fato,
como todo outro cidadão, iguais direitos e oportunidades. Vejamos a partir de agora o que nos
oferecem sobre esse assunto as perspectivas comunitaristas.
2.3 RESPOSTAS COMUNITARISTAS
Uma outra maneira de tratar da justiça pública nas atuais sociedades liberais, isto é, de
buscar garantir que verdadeiramente seja assegurado um tratamento como igual a todos os
60
cidadãos que a compõem, é a sugerida por autores como Taylor e Walzer que podemos
dizer que, de forma geral, não fazem outra coisa senão, mais uma vez, reivindicar por uma
maior consideração às relações e nculos de cada um dos indivíduos concretos, quando
pensam em estruturar a distribuição de bens sociais e um sistema de direitos que concebem
como justos. Para tais autores um sistema de justiça público antes de se basear na nossa
possibilidade de escolha individual deve levar em conta as nossas diversas associações, os
nossos vários laços e os diferentes contextos dentro dos quais nossas escolhas são tomadas. O
que nos resta saber é se a tentativa destes autores é mais bem-sucedida do que a dos liberais,
ou seja, se eles conseguem se aproximar mais do que estes de estruturar um sistema
distributivo que seja realmente justo, que respeite e reafirme a igualdade dos cidadãos.
2.3.1 A resposta de Taylor e a réplica de Jürgen Habermas
No que se refere às considerações de Taylor, podemos dizer que, segundo ele, um
sistema distributivo, mesmo o liberal, para ser justo não pode considerar, antes de tudo e em
todos os casos, a dignidade igual derivada da autonomia de cada um. Na verdade, antes,
afirma o autor, ele precisa considerar a diversidade, respeitando as diferenças, isso se de fato
ele pretende tratar todos os cidadãos como iguais, devendo, deste modo, o sistema de direitos
que advém de tal compreensão da justiça, ser sensível às peculiaridades de cada um.
Conforme assinala este autor, nas atuais sociedades ocidentais estas duas
compreensões apresentadas da justiça distributiva são reflexos de dois caminhos concorrentes
e distinto, embora relacionados, enveredados normalmente pelo liberalismo. O primeiro,
caracterizado como liberalismo 1, o liberalismo eleito por autores como Dworkin e Rawls,
ressalta, diz o autor, a dignidade igual dos cidadãos, e iguala-os em direitos e títulos. A ideia
básica deste é que todos os indivíduos racionais e, com isso, autônomos são igualmente
dignos de respeito, e, por isso, não podem ser discriminados, ou seja, não podem ser tratados
de maneiras diferentes. O segundo, caracterizado como liberalismo 2, o liberalismo preferido
por ele, que, conforme diz, brota “organicamente da política da dignidade universal”
(TAYLOR, 1993, 62, tradução nossa), salienta, por outro lado, as diferenças dos cidadãos, e
busca reconhecer a identidade única de cada um. A ideia básica deste, por sua vez, é que,
diferentemente do primeiro, a igual consideração exige o reconhecimento e, além disso, o
fomento das particularidades culturais de cada um dos cidadãos, e cobra que, por meio de
programas redistributivos diversos, algumas vezes, ofereçam-se oportunidades especiais a
certas pessoas, grupos e / ou populações.
61
Conforme Taylor, o problema do liberalismo 1 e, consequentemente, da compreensão
da justiça distributiva ancorada na consideração igual da dignidade de cada um, é que ele ao
privilegiar a consideração da dignidade igual, insiste no tratamento uniforme às pessoas, isto
é, “cego” às diferenças destas. É por esta razão que este autor opta pelo segundo, que propõe
que se compense o universalismo homogeneizante do primeiro com o reconhecimento das
várias identidades pessoais e, consequentemente, com a discriminação, além da ênfase do que
há de próprio a cada um dos cidadãos. Sobre isso, em uma passagem, Taylor assevera que em
lugar de uma compreensão de sociedade liberal que “(a) insiste em uma aplicação uniforme
das regras que definem […] direitos, sem exceção, e (b) desconfia das metas coletivas”
(TAYLOR, 1993, p. 90, tradução nossa), ou seja, em lugar de uma compreensão de sociedade
liberal que, segundo ele, não tolera as diferenças culturais, deve-se optar por uma sociedade
liberal mais sensível à diversidade cultural e, com isso, mais inclusiva. Isto é, deve-se optar
por uma sociedade na qual o governo não tenha como pretensão principal o resguardo dos
direitos e imunidades individuais frente às metas coletivas, embora resguarde espaço para a
defesa de certos direitos fundamentais, mas que, antes disso, possa se organizar em torno de
uma definição de boa vida. Em suma, é preciso que se estabeleça uma sociedade liberal na
qual o Estado possa endossar certas metas coletivas, sem desconsiderar, é claro, as minorias
culturais que não compartilham tais metas, assim como o resguardo adequado dos direitos
fundamentais
34
.
Com esta opção pelo segundo entendimento, Taylor, em lugar de como os liberais
privilegiar a defesa de direitos individuais quando pensa em estruturar uma sociedade liberal
justa, mostra considerar como primordial o pertencimento dos indivíduos a determinados
grupos ou comunidades. Para ele, tal pertencimento é anterior ao processo de distribuição de
direitos e bens, sendo ele que a base para o aparecimento desses últimos, visto que esses,
segundo a perspectiva deste autor, uma vez que pressupõem e, como consequência, estimulam
34
Como ilustração do quanto uma sociedade pretensamente neutra, baseada no liberalismo 1 pode ser, na
verdade, homogeneizante, Taylor apresenta-nos o caso de Quebec, província canadense que se recusou a assinar,
em 1982, A Carta Canadense de Direitos, que instituía a proteção de direitos e liberdades a todos os cidadãos
deste país. O argumento do governo desta província para não assinar tal carta foi de que para preservar língua e
cultura franco-canadenses, presentes nesta região do país, era necessário em algumas situações impor restrições
aos seus cidadãos – por exemplo, a proibição do envio de seus filhos a escolas de língua inglesa, dentre outras –,
não permitindo, assim, o exercício por estes de certas liberdades individuais. O caso é que o argumento do
governo de Quebec não foi considerado, e a Carta de Direitos mesmo sem a assinatura de Quebec foi aprovada.
E mesmo posteriormente quando surgiu a ideia de tornar Quebec uma sociedade canadense distinta, sociedade
esta que, como diz Taylor, poderia não privilegiar os direitos individuais frente às metas coletivas, neste caso,
frente às metas que se relacionam com a sobrevivência cultural franco-canadense, houve o rechaço, o que, para
Taylor, representa um claro exemplo da pretensão homogeneizante do Canadá inglês ao não permitir que o
governo de Quebec pudesse promover um objetivo comum e ao impor “uma forma de sociedade liberal que lhe
era estranha, e à qual Quebec jamais poderia acomodar-se sem sacrificar sua identidade” (TAYLOR, 1993, p. 90,
tradução nossa).
62
o desenvolvimento de certas capacidades dos indivíduos, como a autonomia, precisam de uma
sociedade com certas práticas culturais para lhes garantir. Daí a importância dada pelo autor,
ao pensar na justiça, mesmo numa sociedade liberal, à consideração dos indivíduos em suas
inserções sociais.
Neste sentido, sob o ponto de vista deste autor, um sistema de direitos liberal justo não
pode ser fruto senão de práticas constituídas entre cidadãos diversos culturalmente. A sua
base, assim, deve resultar de uma concepção concreta compartilhada por eles, e também de
suas relações sociais. Desta maneira, a constituição, para esta perspectiva, deve ser não um
mecanismo para garantir o usufruto de direitos e liberdades individuais, homogeneizante, que
simplesmente impõe certos direitos e liberdades individuais a todos os cidadãos e não
considera as suas peculiaridades culturais, tal como para os defensores do liberalismo 1. Ela
deve ser, “na verdade, uma matriz, um projeto social integrado por um conjunto de práticas
comuns” (CITTADINO, 2000, p. 162), projeto este definido e determinado é importante
salientar – pela vontade soberana do povo.
Assim, podemos concluir que, de acordo com Taylor, para realmente garantir um
tratamento justo a todos os cidadãos, a justiça pública precisa ser concebida como a expressão
da fragmentação e dos antagonismos sociais. Isto significa, para ele, que os direitos que dela
provêm, em virtude de traduzirem “mais a vontade e a autodeterminação da comunidade do
que um espaço de independência individual em relação à autoridade estatal ou aos demais
indivíduos” (CITTADINO, 2000, p. 161), não podem ser concebidos como um conjunto
único de liberdades negativas, imposto aos cidadãos, com o qual se pretende garantir
igualmente a todos o exercício da autonomia, possibilitando, assim, a construção de um
sistema distributivo que se baseie no mérito derivado de tal autonomia. Em lugar disso, para
Taylor, eles devem ser concebidos como um meio para assegurar e promover a diversidade
cultural. A sua função deve ser a de preservar as identidades culturais diversas, o que,
segundo o autor, é feito pelo liberalismo 2, que deixa a cargo do Estado endossar ou não uma
concepção de bem, tal como a sobrevivência de sua cultura, e, como consequência, deixa a
cargo dos cidadãos escolher afirmar ou não os objetivos coletivos derivados desta concepção.
Desta maneira, o papel da justiça pública, para esta perspectiva, pode-se dizer, não é o de
proteger ou impor uma esfera privada aos cidadãos, recompensando-lhes conforme o que
fazem em liberdade, mas, antes, garantir a consideração de suas diferenças e a participação
deles na vida pública.
No entanto, sobre essa concepção de Taylor uma dúvida pode ser levantada: é
realmente necessário que o Estado tenha a possibilidade de endossar uma concepção de bem
63
para que se garanta e respeite a diversidade cultural? Em outras palavras, é realmente
necessário trocarmos o liberalismo 1, que privilegia a defesa dos direitos individuais e da
autonomia, pelo 2, que privilegia a defesa dos direitos de participação política, para que todos
possam ser tratados com justiça? De acordo com Habermas, a resposta é negativa. Não
precisamos adotar, com Taylor, “uma espécie de direitos coletivos que faz ir pelos ares a
autocompreensão do Estado democrático de direito que herdamos, moldada segundo direitos
subjetivos, e portanto de caráter ‘liberal’” (HABERMAS, 2002, p. 231). Conforme este autor,
a leitura feita por Taylor do liberalismo 1 é seletiva, pois não leva em consideração o que
legitima a defesa dos direitos individuais, a saber, o fato de que os indivíduos para serem
autônomos precisam participar do processo que os torna autônomos. Ela não leva em
consideração, portanto, que “a ordem jurídica das sociedades contemporâneas [que] assegura
[…] iguais liberdades subjetivas para todos os cidadãos […] o faz através de um
procedimento legislativo democrático do qual todos devem participar” (CITTADINO, 2005,
p. 162), ou, usando os termos de Habermas, que nessas sociedades uma “concatenação
interna entre o Estado de direito e a democracia” (HABERMAS, 2002, p. 235).
Segundo este autor, uma leitura correta do liberalismo 1 demonstra que as diferenças
culturais não são negligenciadas nas sociedades democráticas liberais e na sua concepção de
justiça pública. Ela demonstra que, que é a vontade dos próprios cidadãos, em meio as suas
diferenças, que faz viger o sistema de direitos, “não como supor que […] [tal sistema]
deixará de considerar seriamente as diferenças culturais existentes em comunidades
específicas” (CITTADINO, 2005, p. 163). Nesta medida, não se faz necessária, conforme
Habermas, a criação de uma categoria do direito direcionada aos grupos para corrigir o
modelo liberal individualista e realmente igualar os cidadãos em direitos, uma categoria que
tenha como função garantir a sobrevivência de determinadas culturas. Basta apenas
compreender este último corretamente e, em face disso, entender que o papel do direito não
deve ser preservar certas culturas, mas, diferentemente, garantir espaços estes que,
conforme este autor, têm poucas chances de se formar sem os movimentos sociais e as lutas
políticas para que os indivíduos possam escolher afirmá-las, transformá-las, afastar-se delas
ou romper com elas. Afinal de contas, assevera o autor, “uma garantia de sobrevivência iria
justamente privar os integrantes da liberdade de dizer sim ou não, hoje tão necessária à
apropriação e manutenção de uma herança cultural” (HABERMAS, 2002, p. 250).
64
Assim, podemos ver que a pretensão de Habermas, bem como, podemos dizer, de
Rawls
35
e de outros autores liberais, não é proibir ou impossibilitar a diversidade cultural ou a
afirmação dos cidadãos de suas concepções de bem concepções estas que podem ser
compartilhadas com seus grupos ou comunidades. A ideia é proibir que no interior do Estado
se privilegie uma forma específica de vida ou, utilizando os termos de Rawls, uma concepção
particular de bem, o que, segundo este autor, não se devido ao próprio fato do pluralismo
razoável
36
. Neste sentido, como nota Kymlicka, a discordância evidenciada aqui, entre, de um
lado, os liberais e, de outro, o comunitarista Taylor, não é sobre a importância da diversidade
cultural. “Sua discordância é quanto ao ponto em que os ideais perfeccionistas devem ser
invocados. […] A disputa, portanto, talvez deva ser vista como uma escolha […] entre o
perfeccionismo social e o perfeccionismo estatal” (KYMLICKA, 2006, p. 282-283). A
questão central a ser resolvida neste ponto é, com efeito, não sobre a preservação ou não de
certas culturas, mas, antes disso, se, para estruturarmos uma sociedade justa, isto é, uma
sociedade na qual se asseguram iguais direitos a todos os cidadãos e uma distribuição justa de
bens, precisamos ou não de um Estado que intervenha na vida cultural da mesma. Em síntese,
de qual liberalismo precisamos para organizar uma sociedade realmente justa, do liberalismo
1, tal como entendido pelos liberais e por Habermas, ou do 2, tal como defendido por Taylor?
Aqui, parece, chegamos a um problema maior do que inicialmente esperávamos
encontrar e, se Kymlicka tem razão, a um problema não resolvido e que, em última instância,
depende de fé. Pois, como diz este autor, “na verdade, assim como os críticos da neutralidade
não conseguiram defender sua na política [para o desenvolvimento, consideração e respeito
da diversidade cultural], os liberais não conseguiram defender sua em fóruns não estatais”
(KYMLICKA, 2006, p. 287). Desta maneira, talvez um bom modo de sair de tal problema
seja não perguntar qual, mas, acompanhando os comentários de Walzer (1993, p. 140,
tradução nossa), “quando deveremos escolher este ou aquele, o Liberalismo 1 ou o
Liberalismo 2”.
Como o nosso âmbito se restringe às sociedades democráticas liberais, sociedades
estas que, como a brasileira, são marcadas por uma grande diversidade cultural, dificilmente
nós poderíamos optar, ao pensarmos na estruturação de uma sociedade liberal justa, por um
35
A esse respeito é elucidativa a seguinte passagem de um texto de Rawls (2003, p. 220): “se uma concepção
abrangente do bem é incapaz de perdurar numa sociedade que garanta as familiares liberdades básicas iguais e a
tolerância mútua, não maneira de preservá-la que seja coerente com os valores democráticos articulados pela
idéia de sociedade como sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais”.
36
Tal pluralismo Rawls caracteriza como consistindo “em profundas e irreconciliáveis diferenças nas
concepções religiosas e filosóficas, razoáveis e abrangentes, que os cidadãos têm do mundo, e na idéia que eles
têm dos valores morais e estéticos a serem alcançados na vida humana” (RAWLS, 2003, p. 4).
65
Estado que devesse intervir na cultura e privilegiar determinados modos de vida, tal como
talvez seja o caso de Quebec, o exemplo analisado por Taylor. Em sociedades como as nossas
normalmente se espera que os direitos individuais sejam respeitados, mesmo quando
conflitam com deliberações majoritárias, e também que nenhum modo de vida ou concepção
de bem seja privilegiado pelo governo, pelas leis ou pela distribuição dos bens em detrimento
de todos os outros. Isso parece mostrar, como observa Walzer (1993, p. 142, tradução nossa),
que
a primeira classe de liberalismo é a doutrina oficial das sociedades imigrantes como
a dos Estados Unidos (e também do Canadá federal) e, deste modo, parece
inteiramente apropriada a seu tempo e lugar. Pois, ao fim, os Estados Unidos [assim
como as sociedades liberais em geral] não é uma nação-Estado, mas sim uma nação
de nacionalidades, como escreveu Horace Kallen no segundo decênio de nosso
século, ou uma união social de uniões sociais, na mais recente formulação de John
Rawls. Aqui a união singular afirma que se distingue de todas as uniões plurais,
negando-se a apoiar ou a endossar seus modos de vida ou a tomar um interesse ativo
em sua reprodução social ou a permitir que qualquer delas se apodere do poder.
No entanto, mesmo entendendo que um âmbito adequado para cada um dos
liberalismos apontados por Taylor, e que em sociedades marcadas pela diversidade cultural,
onde não há “minorias com uma poderosa base territorial” (WALZER, 1993, p. 142, tradução
nossa), como em Quebec, ainda assim carece de resposta a acusação feita por este autor no
início desta seção. Trata-se da acusação de que o liberalismo 1, que se baseia na não
discriminação dos cidadãos para tratá-los como iguais, é, na verdade, homogeneizante, uma
vez que é cego às diferenças entre os cidadãos, assim como também seria cega a noção de
justiça distributiva que lhe corresponderia.
De outro modo, mesmo se concordarmos com Habermas e atentarmos para ligação
interna entre a democracia e o Estado de direito, opondo-nos à visão de que as culturas
precisam ser preservadas pelo direito e afirmando, em lugar disso, a importância das lutas
políticas e dos movimentos sociais, ainda assim podemos nos questionar também a respeito
dos grupos ou indivíduos que não fazem parte de um movimento social expressivo. Pois, um
grupo que, por exemplo, não têm força política, não merece a sua consideração devida? Dito
de outra forma, será que podemos ser indiferentes à situação de pessoas e grupos que não têm
força política para reivindicar uma consideração justa? É suficiente que a esses grupos se
garanta uma distribuição de bens, sem os considerar concretamente, se, por exemplo, são
discriminados ou não, para lhes garantir a justiça nas sociedades democráticas liberais?
Uma alternativa que visa dar conta destas questões é a apresentada por Walzer,
sobretudo, em seu livro, Esferas da Justiça. A pretensão deste autor é a de apresentar uma
66
compreensão de Estado liberal justo, que, de um lado, considera todo cidadão e seu modo de
vida com igual valor, sem ser, todavia, homogeneizante, e que, de outro, não fundamenta a
noção de justiça distributiva inteiramente na base de um critério incerto de mérito, mostrando
ou, ao menos, indicando para o que deve significar o tratamento justo na sociedade liberal
atual. Entretanto, antes de passarmos à resposta deste autor, façamos uma pequena pausa e
abramos parênteses para analisar uma questão já levantada no capítulo anterior e que retorna
com força neste ponto com a crítica de que o liberalismo 1 é homogeneizante. Analisemos,
então, se o Estado liberal, como pensado por Rawls, é realmente neutro e, se este for o caso,
em que medida.
2.3.2 Afinal, o Estado liberal pode ser neutro?
Aqui, portanto, retomamos a crítica que deixamos em suspenso no capítulo anterior
feita por Charles Taylor à neutralidade do Estado liberal. Trata-se, como comenta Rawls
(2003, p. 216) de “uma velha objeção ao liberalismo [que afirma] que ele é hostil a certos
modos de vida e favorável a outros; ou que ele favorece os valores da autonomia e da
individualidade”. Em outras palavras, trata-se da crítica que acusa o Estado liberal
pretensamente neutro de ser, na verdade, perfeccionista, isto é, de refletir uma cultura
hegemônica, supor uma concepção de bem e, com isso, defender uma concepção de justiça
que é substantiva e não uma concepção de justiça que, tal como deseja e descreve Rawls em
Uma teoria da justiça (p. 104), seja “procedimental pura”
37
.
Quanto a essas acusações, se acompanharmos as observações de Kukathas e Pettit, em
Rawls: Uma teoria da justiça e seus críticos, talvez possamos afirmar que elas abalam apenas
o liberalismo tal como apresentado por Rawls em seus primeiros textos depois da publicação
de Uma teoria da justiça ou, nas palavras destes autores, nos seus trabalhos “de 1971 a 1982”
(KUKATHAS e PETTIT, 2005, p. 143). Como notam estes autores, a pretensão de Rawls,
neste período, é, tendo por base o que ele chama de “construtivismo kantiano”, que parte da
noção de justiça procedimental pura, “fornecer justificações para princípios morais cuja
legitimidade não depende dos caprichos da natureza humana de desejos, paixões ou
instintos humanos” (KUKATHAS e PETTIT, 2005, p. 149) –, tal como o imperativo
categórico. Em outras palavras, a sua pretensão é que a distribuição dos bens sociais possa ser
37
Por justiça procedimental pura, este autor entende aquela concepção de justiça na qual se garante um resultado
correto ou justo através de um procedimento correto ou justo ou, em seus termos, garante-se uma distribuição
justa de bens sociais através da estruturação de um sistema justo de instituições, descartando, “por irrelevância
no tocante à justiça social, grande parte das informações e muitas das complicações do cotidiano” (RAWLS,
2008, p. 106).
67
estabelecida e julgada como justa ou não, recorrendo a um ponto de vista geral, “o ponto de
vista de um indivíduo representativo relevante” (RAWLS, 2008, p. 106), sem considerar as
circunstâncias específicas de cada uma das pessoas. Desta maneira, a intenção de Rawls é,
claramente, estruturar uma teoria que nos ajude a formular o que é justo para nós, por meio de
um procedimento justo. O problema desta concepção, como perceberam alguns autores,
dentre os quais Taylor, é que ela, ao se apresentar como uma teoria moral, pressupondo
indivíduos autônomos, que se consideram livres e iguais etc., compreendendo a todos como
portadores de valor, aliás, de igual valor ou, se relembrarmos Kant, como portadores de igual
dignidade; nesta medida, nada mais faz do que reafirmar os valores morais e políticos
característicos das sociedades modernas ocidentais. Mais precisamente, ela nada mais faz do
que reafirmar, com base na justiça, a autonomia, um valor liberal fundamental.
Quando olhamos, no entanto, para os textos mais recentes de Rawls, nos quais este
autor salienta o aspecto político e, por conseguinte, independente de sua concepção de justiça
em relação às doutrinas morais, filosóficas e religiosas professadas nas modernas sociedades
liberais, vemos que, de certo modo, a critica não atinge mais o seu liberalismo. Pois, uma vez
que a sua preocupação passa a ser direcionada ao caráter político de sua teoria
38
, ou seja, uma
vez que o seu foco, face ao fato do pluralismo moral, dentro do contexto de um regime
democrático constitucional, agora está no consenso sobreposto de doutrinas abrangentes
razoáveis, pode-se observar que sua teoria não pode mais ser acusada de estar comprometida
com uma ou outra tese metafísica ou com uma ou outra concepção de bem, embora esteja
dentro de uma dada tradição, a das modernas democracias liberais. Para dar conta de seu
objetivo de garantir a estabilidade e a unidade sociais, ela se estabelece como um padrão
público aceitável por todos os cidadãos que se encontram nesta dada tradição, a despeito de
suas discordâncias. O que ela faz, desta maneira, no entender deste autor, não é nada mais do
que oferecer uma compreensão de justiça pública neutra sob a qual o Estado liberal não se
compromete com qualquer doutrina abrangente. Em outros termos, trata-se de uma
compreensão que, por ser neutra, possibilita um acordo político numa sociedade na qual as
pessoas são entendidas, e também se entendem, como livres e iguais
39
.
38
Utilizando as palavras do autor, “a teoria da justiça como equidade […] [não é] filosofia moral aplicada. […]
A teoria da justiça como equidade é uma concepção política de justiça para o caso especial da estrutura básica de
uma sociedade democrática contemporânea. Neste sentido tem um alcance muito mais restrito que doutrinas
morais filosóficas abrangentes como o utilitarismo, o perfeccionismo e o intuicionismo, entre outras. Aquela se
restringe ao político […], que é apenas uma parte do campo da moral” (RAWLS, 2003, p. 19).
39
A pretensão básica, com efeito, é não permitir, diz Rawls (2003, p. 4), que “uma comunidade”, isto é, “um
corpo de pessoas unidas por uma mesma doutrina abrangente, ou parcialmente abrangente” se confunda com
“uma sociedade democrática”.
68
É importante ressaltar neste ponto que, como descreve Vita, essa noção de
neutralidade, no contexto das sociedades liberais, “só entra em cena quando é preciso
solucionar os conflitos que dizem respeito ao que Rawls, em seus textos mais recentes,
denomina ‘fundamentos constitucionais’ e ‘questões de justiça básica’” (VITA, 2007, p. 277).
Isto quer dizer que ela se restringe à resolução de conflitos que concernem aos elementos
constitucionais essenciais, sendo seu papel básico, no trato destas questões, o não
favorecimento ou a não promoção de uma ou outra visão abrangente específica. Trata-se,
portanto, da neutralidade chamada por Rawls de “neutralidade de objetivo”, isto é, aquela
segundo a qual “as instituições e políticas [das sociedades liberais] são neutras no sentido de
que podem ser endossadas pelos cidadãos em geral no âmbito de uma concepção política
pública” (RAWLS, 2000, p. 240), apesar de suas divergências morais, religiosas e filosóficas.
Nesta medida, já que o escopo da noção de neutralidade liberal se resume ao âmbito de
justificação de princípios de justiça básica, nada se pode garantir sobre os resultados da
aplicação de tal noção à estrutura básica da sociedade, dado que, como assevera Rawls (2003,
p. 219), “é impossível evitar a existência de influências sociais que favoreçam algumas
doutrinas em detrimento de outras. […] [A ideia é que] não existe mundo social que não
exclua alguns modos de vida que realizam de maneira singular certos valores fundamentais”.
Para elucidar tal fato Rawls recorre ao exemplo da educação infantil no liberalismo político:
Haverá quem objete que exigir que as crianças entendam a concepção política dessa
maneira [ tal como apresentada por ele como sendo uma preparação para serem
membros plenamente cooperativos da sociedade e um estímulo às virtudes políticas
para que queiram honrar os termos equitativos de cooperação social em suas
relações com o resto da sociedade etc. –] é, com efeito, embora não seja esta a
intenção, educá-las numa concepção liberal abrangente. […] Deve-se concordar que
isso pode de fato acontecer em alguns casos. […] As inevitáveis conseqüências das
exigências razoáveis em relação à educação das crianças têm de ser aceitas, muitas
vezes com pesar. (RAWLS, 2003, p. 221-222).
Contudo, continua este autor, “essas exclusões inevitáveis não devem ser confundidas com
vieses arbitrários ou injustiça” (RAWLS, 2003, p. 219), visto que elas não têm como base a
pressuposição da superioridade ou da inferioridade intrínseca de qualquer doutrina
abrangente.
Assim, embora a crítica de Taylor, de certa maneira, seja procedente, ela não abala
completamente o liberalismo de Rawls, dado o fato de que o próprio autor, em seus textos
mais recentes, reconhece que sua concepção, a justiça como equidade, não pretende ser moral,
mas política e, mais do que isso, que ela não é absolutamente procedimental. Sobre isso, diz
Rawls (2000, p. 240), “é evidente que seus princípios de justiça são substantivos e expressam
69
bem mais que valores procedimentais”. Afinal, continua Rawls (2000, p. 242), “o liberalismo
político […] pode afirmar a superioridade de certas formas de caráter moral e encorajar certas
virtudes morais […], [por exemplo,] as virtudes da cooperação social eqüitativa, tais como as
virtudes da civilidade e da tolerância, da razoabilidade” etc. Todavia, completa, “essas
virtudes no âmbito de uma concepção política não leva ao Estado perfeccionista de uma
doutrina abrangente”
40
. Portanto, embora a justiça como equidade, mesmo sem a intenção,
possa estimular e desestimular certas doutrinas abrangentes, e seus respectivos valores,
pressupondo, com isso, em algum nível, certos valores como mais fundamentais que outros
os valores políticos ocidentais modernos –, tal como havia anteriormente notado Taylor, ela
não é, nas palavras de Rawls (2003, p. 221) “injustamente tendenciosa contra certas
concepções abrangentes”. Esse seria o caso, diz o autor, “se […] somente concepções
individualistas pudessem perdurar numa sociedade liberal, ou fossem tão preponderantes que
associações que afirmassem valores religiosos e comunitários não pudessem florescer”, e isso,
podemos verificar, não é o que acontece.
Com estas observações podemos concluir que, embora o Estado liberal, tal como
proposto por Rawls, realmente afirme certos valores, e, em algum sentido, também almeje um
bem nas palavras de Kymlicka (2006, p. 264), “[a proteção dos] interesses dos membros da
comunidade” –, ainda assim, vê-se que não a afirmação por ele de uma concepção de boa
vida. Em outras palavras, embora ele aprove sim certos valores políticos, não considera que
uma cultura superior às outras, ao menos, quando o que está em jogo é a definição de
questões de justiça básica. Ele, portanto, não pode ser tomado, ao que parece, como
perfeccionista, mesmo afirmando certos valores. Isso porque toda concepção de bem é tomada
por ele como possuidora do mesmo valor, o sendo cada uma delas, em face disso,
publicamente avaliadas, isto é, consideradas publicamente como melhores ou piores que
outras. Todas, na verdade, são consideradas, quando da definição dos princípios de justiça
básica, como iguais pelo Estado, o que garante uma postura neutra deste último, ao menos,
quanto aos objetivos de cada um.
2.3.3 A resposta de Walzer
Com efeito, com a determinação dos limites da neutralidade do Estado liberal,
podemos, enfim, fechar estes parênteses e dar continuidade à nossa investigação, agora
40
Por perfeccionista, entenda-se aqui, seguindo a definição de Rawls, a teoria ética teleológica, segundo a qual
há um bem a ser buscado socialmente e que esse bem é “entendido como a realização da excelência humana nas
diversas formas de cultura” (RAWLS, 2008, p. 30-31).
70
analisando a contribuição de Walzer ao debate sobre como estruturar um Estado liberal justo
que, sem promover políticas homogeneizantes e sem se basear em critérios que gerem
incerteza, reconheça a todos com igual valor tanto em seu sistema de direitos quanto na
distribuição dos bens aos seus cidadãos.
Antes, porém, de passarmos para uma análise mais pormenorizada dessa contribuição,
retomemos o ponto em que paramos em nossa investigação e relembremos as questões sobre a
justiça pública que ainda carecem de resposta. Em primeiro lugar, quanto à acusação de
Taylor de que o Estado liberal não é neutro, mas homogeneizante, pretendemos responder,
como visto na última seção, que se se trata do Estado liberal tal como apresentado por Rawls,
na verdade, ele é neutro sim, contudo, apenas no que se refere aos objetivos professados pelos
cidadãos que o compõem, quando trata de questões de justiça básica. Neste sentido, ele não é,
portanto, homogeneizante, que não elege uma cultura como superior às outras. Quanto às
outras questões, a saber, primeiro, sobre a espécie de mérito que ele deve se basear para ser
justo; e segundo, se ele é indiferente às distinções de seus cidadãos e à vulnerabilidade
destes, ainda, parece, não encontramos uma resposta satisfatória. Vejamos em que Walzer
pode nos ajudar, passemos, então, enfim, às suas observações sobre estas questões.
de início vale apontar que, de acordo Walzer, uma sociedade liberal justa é aquela
que se estrutura com base no igualitarismo político. Isto significa, para ele, que em tal
sociedade não se visa a eliminação de todas as diferenças entre os cidadãos e a promoção da
igualdade destes em todos os âmbitos da vida, mas a eliminação de um tipo específico de
diferença: a diferença que cria as hierarquias sociais. Trata-se, por conseguinte, da sociedade
livre das manifestações de superioridade social e também da dominação de um indivíduo
sobre os outros, o que, segundo o autor, pode ser evitado através de uma distribuição de bens
que utiliza motivos claros e respeita o que é caracterizado por ele como os seus motivos
“internos”.
Neste sentido, segundo o autor, para que tal compreensão de sociedade justa se realize,
em primeiro lugar, é preciso não perder de vista que em uma sociedade liberal justa todos os
cidadãos, independente de seus vínculos, desejos etc., precisam ser tratados como socialmente
iguais. Isto significa, para ele, que embora todos possam se diferenciar em diversos aspectos,
econômicos, culturais, físicos e por aí vai, nenhum pode ser tratado como um indivíduo
distinto dos demais quando o que está em jogo é a consideração dispensada pela justiça
pública. Todos, diz, unicamente pelo fato de serem cidadãos, devem ser tratados como iguais,
afinal, seguindo Miller (1997, p. 233), é preciso que “each person has an equal standing that
transcends particular inequalities”. Neste caminho, para sermos justos, antes de pensarmos
71
que o ponto de partida do entendimento da justiça distributiva é o mérito de uma escolha
realizada, ou melhor, da autonomia e da responsabilidade advinda dela, algo que, como
vimos, pode nos levar, em alguns casos, à incerteza, talvez possamos dizer, acompanhando
Miller e Walzer, que devemos começar pela consideração de que um grupo social tão
fundamental, a comunidade política, cujos membros têm o direito de receber igual tratamento,
e isso, única e exclusivamente, porque são membros de tal grupo. Assim, em nossa sociedade
que ainda não é justa, para tratar a todos como iguais necessita-se de medidas e de uma
distribuição de bens que visem justamente chegar a esta igualdade de status social entre os
cidadãos, ou seja, necessita-se considerar cada um, antes de tudo, em sua especificidade.
Feito isso, o próximo passo, conforme Walzer, para se estruturar tal sociedade é
compreender que uma das características da justiça distributiva é a multiplicidade. Em outras
palavras, o próximo passo é compreender que não há somente um sistema distributivo correto.
Ao contrário, os diversos bens sociais podem ser aliás, devem ser, segundo ele,
distribuídos por motivos, critérios e agentes diversos. De acordo com o seu entendimento, isto
se porque os bens em questão, antes de ser distribuídos, são concebidos e criados
coletivamente, ou seja, porque os diversos bens assumem significados diversos, dependendo
do contexto histórico e cultural de que se trata. Desta maneira, antes de se pensar em dar ou
receber este ou aquele bem, quando se pensa na justiça distributiva, seguindo este ponto de
vista, deve-se considerar as interpretações que tal bem neste momento recebe nessa sociedade,
isto é, como ele é definido, entendido e avaliado pelos indivíduos que dela participam. Com
base nisso, afirma este autor, “procurar unidade [tal como fazem alguns autores, dentre os
quais Rawls] é deixar de entender o tema da justiça distributiva” (WALZER, 2003, p. 3).
Assim, para a teoria de Walzer, todos os bens sociais não podem ser distribuídos de
uma única maneira, como, por exemplo, por um conjunto de princípios tal como entende
Rawls. Cada bem ou conjunto de bens tem, e deve ter, assevera o autor, o seu âmbito
específico e adequado de distribuição. O que está se pressupondo, segundo o entendimento
deste autor, é que “todo bem ou conjunto de bens constitui, por assim dizer, uma esfera
distributiva dentro da qual são apropriados certos critérios e acordos” (WALZER, 2003, p.
10). Isso faz com que, desta forma, seja indevida e injusta qualquer intrusão de um bem em
uma outra esfera que não a sua, como, por exemplo, pode-se dizer que seja o caso da
utilização do dinheiro fora da esfera do mercado, como na compra ou na influência da
distribuição de cargos públicos ou eclesiásticos etc. Seguindo a compreensão deste autor, a
ideia é que, quando os significados dos bens em questão são diferentes, as esferas de
distribuições dos mesmos, para que se respeitem os preceitos da justiça, precisam ser
72
autônomas. Elas não podem ser invadidas por bens que lhes são estranhos, que não
constituem o seu âmbito de distribuição, que não são adequados aos seus princípios internos.
Permitir essa invasão, usando o linguajar de Walzer, é permitir a tirania e o fim do
igualitarismo político, ou seja, é permitir o desrespeito aos princípios internos de cada esfera e
a conversão indevida de um bem em outro, mesmo não havendo ligação interna entre os dois.
Por outro lado, completa o autor, respeitar a esfera de cada bem significa respeitar o
regime de igualdade complexa. Por igualdade complexa ele entende o regime contrário ao da
tirania, ou seja, o regime que, segundo ele, consiste na igualdade que não permite que a
situação de um cidadão em uma esfera ou com relação a um bem social possa definir a sua
situação em outra esfera qualquer, com relação a outro bem qualquer. Trata-se, portanto, da
igualdade que não aprova a existência do que o autor chama de bens predominantes, a saber,
os bens que permitem aos indivíduos que os possuem, unicamente pelo fato de os possuírem,
poder comandar um grande número de outros bens fora de sua esfera distributiva. Em outras
palavras, trata-se da igualdade que não aprova que um indivíduo se beneficie na esfera dos
cargos públicos, da educação ou da política, por exemplo, unicamente porque na esfera do
dinheiro ele foi mais bem-sucedido do que os demais.
Deste modo, com esta exposição, vê-se que, diferentemente dos liberais, no que
concerne às questões de justiça distributiva, para Walzer, mais importante do que buscar
promover uma redistribuição de certos bens ou, em seus termos, mais importante do que
combater o monopólio de um bem ou de um determinado conjunto de bens
41
, é combater o
predomínio do mesmo. Fazer isso, diz este autor, significa elucidar “o que um conceito mais
amplo de justiça requer”, a saber, “que os cidadãos […] governem em uma esfera e sejam
governados em outra – donde governar não significa que exerçam o poder, mas que desfrutem
de uma parcela maior do que outras pessoas de um bem qualquer, a ser distribuído”
(WALZER, 2003, p. 440). Assim, para este autor, a maneira pela qual podemos dar conta de
tratar todos os indivíduos de forma a lhes considerar como iguais ou com justiça, sejam estes
fracos politicamente ou estigmatizados socialmente, não é simplesmente oferecer-lhes certos
bens específicos, mas, por outro lado, fazer com que algumas distribuições dos bens, como
talvez cargos públicos, políticos etc, sejam mais sensíveis aos significados socialmente
adquiridos por eles. Ou seja, fazer com que bens como estes sejam distribuídos levando em
conta, dentre outras coisas, se eles ajudam a promover a devida consideração de cada um ou
não, e quanto.
41
Um bem “é monopolizado”, segundo Walzer (2003, p. 11), “sempre que apenas uma pessoa, monarca no
mundo dos valores – ou um grupo, oligarcas – o mantém com êxito contra todos os rivais”.
73
Com isso, podemos, enfim, apresentar alguns encaminhamentos que parecem melhor
dar conta das questões que nos colocamos neste capítulo. Em primeiro lugar, no que diz
respeito à acusação feita por Taylor, a saber, a de que o Estado liberal é indiferente às
particularidades dos seus membros, a saída é entender que o Estado deve compreender a
igualdade de status social entre os cidadãos como fundamental e primeira, de tal maneira que
considere, portanto, as necessidades próprias de cada um. Em segundo lugar, quanto à espécie
de mérito que se deve basear a justiça distributiva, tendo sempre como pano de fundo a
concepção de que todos devem ser iguais em status social, sem abandonar, todavia, a base
proposta por liberais como Rawls de que se deve distribuir a cada um única e exclusivamente
os bens que estiverem de acordo com o que fora realizado por cada um, ou seja, os bens que
possam corresponder à responsabilidade advinda do exercício da autonomia de cada um, a
saída indicada aqui é que toda distribuição de bens seja sempre sensível aos significados
socialmente adquiridos por eles, podendo, desta feita, os bens ser distribuídos por motivos,
critérios e agentes diversos. A ideia é que a distribuição será justa, desde que se respeitem os
motivos internos de cada esfera de distribuição, sejam estes quais forem, e, além disso, que a
posse diferenciada de um bem qualquer não signifique o estabelecimento de uma hierarquia
social, de uma dominação de um indivíduo por outro.
É importante grifar neste ponto que aceitar estes encaminhamentos de Walzer não
significa, ao que parece, rejeitar a compreensão liberal tal como proposta por Rawls. Este
parece o caso, primeiro, porque a noção de que se deve sempre visar a igualdade de status
social não se mostra contraditória como inclusive vimos no capítulo anterior à justiça
como equidade. Se pensarmos que uma sociedade bem-ordenada apenas pode se estruturar se
os seus cidadãos receberem um tratamento como igual, entendidos como portadores de igual
status social, logo perceberemos a não contradição destas ideias. Segundo, porque não há o
abandono do critério liberal a ser tomado como base da justiça distributiva, o exercício da
autonomia e a responsabilidade correspondente, o que é feito apenas é uma ampliação desta
compreensão, ampliação esta que, se resguardada a abordagem política à estrutura básica da
sociedade, parece completamente de acordo com a justiça como equidade. Desta forma, tal
como se mostram, tais encaminhamentos não passam de alguns ajustes à concepção liberal,
como a de Rawls, ajustes estes que não descaracterizam o Estado liberal, já que não o entende
como devendo endossar uma concepção de bem e considera todos com igual dignidade, sendo
todos, assim, igualmente livres e autônomos. O que eles trazem de novo é apenas o ressalte da
importância de uma maior sensibilidade deste Estado a cada um de seus cidadãos.
74
2.4 CONCLUSÃO
Assim, com base no exposto, podemos concluir, que é possível, portanto, estruturar
uma sociedade liberal que estabeleça um critério mais claro para que a justiça pública seja
instituída, critério este que, de um lado, evidencie o que é relevante nos indivíduos para que
todos sejam tratados com justiça e, de outro, fixe os alicerces para que as distribuições que se
apoiam no mérito também possam ser edificadas. É possível, então, considerar a todos os
cidadãos como de fato de iguais. Para isso, entretanto, seguindo nossa argumentação, é
preciso que dois ajustes sejam feitos à teoria liberal, tal como apresentada por Rawls. É
preciso que, em primeiro lugar, não se tome a autonomia como critério primeiro do
estabelecimento da igualdade entre os cidadãos, mas, antes, a igualdade de status social,
considerando-lhes como iguais não porque, em algumas ocasiões, não como ter certeza de
quem é responsável pelo quê, mas unicamente pelo fato de serem membros de uma mesma
comunidade política. E, em segundo lugar, é preciso que entendamos o mérito de uma
maneira mais ampla de tal forma que possamos aplicá-lo a esferas distintas e autônomas de
justiça, esferas estas que, através de agentes diversos, distribuem bens diversos, tendo como
base motivos e critérios diversos.
Observe-se que, embora à primeira vista possa não parecer, aqui ainda se trata de um
pequeno reparo, ou talvez nada mais do que um aprofundamento da teoria liberal, tal como
apresentada por Rawls. Afinal, aqui nada mais estamos fazendo do que atentar para o fato de
que o Estado neutro liberal quanto aos objetivos – também deve se preocupar com os outros
âmbitos de justiça, por exemplo, a família, a igreja, o trabalho, a escola e assim por diante,
âmbitos estes que, caso queiramos ser justos, não podemos deixar de apontar quando são
invadidos por bens que não os constituem o que, aliás, já fazemos quando censuramos, por
exemplo, o nepotismo, o suborno etc.
A ideia é que, fazendo estes reparos é possível se aproximar de estruturar uma
sociedade, de fato, justa, sociedade esta que compatibiliza o princípio de respeito à dignidade,
por meio da proteção dos direitos individuais, e a necessidade de proteção diferenciada de
certas identidades. Em outras palavras, compreende-se que é possível se aproximar de,
portanto, estruturar uma sociedade na qual a distribuição de bens, por ser mais atenta aos
significados que estes assumem socialmente, é mais sensível às peculiaridades dos cidadãos e,
com isso, mais capaz de realmente tratar a todos como iguais, como portadores de iguais
direitos e dignos de igual respeito.
75
Assim, concluímos este capítulo. Nele pretendemos mostrar a possibilidade de
entender a justiça no contexto de uma sociedade liberal. Para isso, porém, entendemos que
dois reparos ou aprofundamentos à teoria liberal tal como apresentada por Rawls são
necessários, o que, também entendemos não compromete o que há de fundamental nela.
Lembrando que no primeiro capítulo pretendemos mostrar que um elemento precisa ser
destacado para que uma sociedade liberal se aproxime de apresentar as condições necessárias
para que os cidadãos possam realmente ser iguais em autonomia, a saber, o reconhecimento
de todos como portadores de igual status. No segundo, pretendemos mostrar que essa mesma
sociedade, para se aproximar de realmente tratar a todos como iguais, precisa: primeiro,
considerar que, se há um mérito mais basal, este não é o que se deriva da autonomia, mas da
cidadania; e, segundo, ampliar o entendimento de mérito, compreendendo que este é diferente
dependendo do contexto, das pessoas e dos bens de que se trata. A seguir, no próximo
capítulo, pretendemos nos concentrar em outro aspecto desta mesma teoria, pretendemos
verificar se ela oferece reais condições para que todos os cidadãos sejam de fato tratados
como iguais politicamente.
76
3 A IGUALDADE POLÍTICA
Muitos dos acontecimentos políticos mais marcantes e mais importantes da história
recente do Brasil, podemos notar sem grandes dificuldades, relacionaram-se transversalmente
à busca por melhorias da democracia, e, associada a esta, à busca por um aumento da
participação dos cidadãos nas instituições e nos processos de decisão blicos. De eventos
como o movimento pelas “diretas já”, que se desenvolveu tendo em vista a redemocratização
do país pós-Ditadura Militar, na década de 1980, até a discussão atual a respeito de orçamento
participativo e a utilização das iniciativas populares, percebemos essa mobilização e a
valorização – ouso dizer, cada vez mais incentivada da participação de todos os cidadãos na
vida política dessa sociedade. Claro está, no entanto, que, seja no Brasil, seja em qualquer
outra parte do mundo, o que se reivindica quando se cobra por um aperfeiçoamento da
democracia não é um aumento da possibilidade de participação direta dos cidadãos em todos
os casos que precisam de resolução, cobrando que este decida sobre todos os assuntos que se
coloquem a sua sociedade, mas apenas um aumento da participação deste em discussões
ocorridas em certas circunstâncias especiais, em ocasiões cruciais. A reivindicação é por uma
participação real, mais qualificada e diversificada, sendo direta unicamente em assuntos
essenciais à definição dos rumos mais importantes da vida social. Afinal, algumas vezes
cobrar tal participação pode trazer mais problemas à sociedade e aos cidadãos do que
soluções.
Neste capítulo, assim como foi nossa pretensão na análise das questões envolvidas nos
dois capítulos precedentes, pretendemos apontar algumas insuficiências do tratamento dado
pela perspectiva liberal ao tema abordado acima e, em seguida, apontar alguns possíveis
reparos ou, o que parece mais adequado neste caso, apontar alguns pequenos
aprofundamentos a tal tratamento. Se no primeiro capítulo nossa intenção foi a de mostrar que
é possível, a partir de uma perspectiva liberal, tratar os cidadãos como realmente iguais em
autonomia e se no segundo, que é possível, sob a mesma perspectiva, tratá-los como iguais ou
com justiça, desde que, como vimos, alguns reparos fossem feitos a esta perspectiva, tais
como, vimos no primeiro, a promoção da consideração da igualdade de status social, e no
segundo, o entendimento de que este campo da igualdade deve ser o primeiro a ser observado
pela justiça e a ampliação dos âmbitos de compreensão da própria justiça, no terceiro capítulo
entendemos que, no que se refere à igualdade política, a teoria liberal, quando amparada por
certos aprofundamentos, também pode dar conta de tratar a todos os cidadãos como iguais.
Aqui, mostrar a viabilidade dessa compreensão será nosso objetivo.
77
A ideia básica a ser defendida neste capítulo será, portanto, a de que é possível uma
leitura liberal da democracia, tal como a leitura de Rawls, na qual os cidadãos possam ser
compreendidos verdadeiramente, ou melhor, possam ser compreendidos de acordo com a
intuição geral difundida nas sociedades liberais, como iguais. Para isso, contudo, entendemos
que não basta, embora seja fundamental, que todos respeitem os direitos individuais de cada
um. De igual modo, entendemos que não basta que se resguarde também a cada um o direito
igual a um voto na escolha de representantes que decidirão, mediante uma deliberação na
qual a proposta aprovada será aquela que for escolhida pela maioria deles –, as questões
políticas dentro das instituições sociais. É preciso de um pouco mais do que isso. É preciso
que se incentive o debate público nos vários foros da sociedade, de tal maneira que se
possibilite aos cidadãos uma maior participação nas decisões destes foros. Além disso, é
preciso considerar que no debate público mais do que agentes racionais. pessoas nele,
pessoas com convicções, crenças, sentimentos etc, o que requer que seja o que nele for
apresentado, razões pragmáticas, persuasão, sentimentos etc, que seja apresentado sempre de
forma clara e aberta, de modo que todo cidadão tenha igual oportunidade de efetivamente
participar dele.
3.1 NOSSO PROBLEMA: O QUE DEVE SIGNIFICAR A IGUALDADE POLÍTICA NA
DEMOCRACIA LIBERAL ATUAL?
De maneira geral, podemos dizer que por democracia se concebe o governo dos
cidadãos, isto é, o governo não somente de um ou de poucos indivíduos, mas de todos aqueles
que desfrutam do direito à cidadania. Trata-se, por conseguinte, do governo que representa a
vontade de todos os cidadãos, o governo no qual todos estão envolvidos e, por isso, todos
participam. No entanto, sobre esta concepção ainda nos resta saber o que exatamente se quer
dizer quando se fala em governo de todos, o que isso significa, e mais, depois de estabelecido
isso, como se devem estruturar as instituições para que todos os cidadãos de fato sejam
considerados como igualmente participantes delas. Em outras palavras, para sermos mais
precisos, procuramos saber como os cidadãos devem ser entendidos pelas instituições sociais
de uma democracia liberal como a brasileira, por exemplo –, de tal maneira que todos
possam ser realmente considerados e tratados como iguais politicamente. Para elucidar um
pouco mais estas questões e alguns dos elementos mais relevantes que elas envolvem,
passemos a partir de agora a uma rápida abordagem da teoria de alguns filósofos que
78
pretenderam dar conta deste tema, apresentando brevemente suas concepções sobre a
democracia e a sua correlata compreensão da igualdade.
Um dos primeiros autores a tratar deste tema, da democracia grife-se, não
concordando absolutamente com a sua instituição e da igualdade requerida por ela, foi
Aristóteles. Para este autor, a democracia não constituía uma boa forma de governo, por isso,
para estruturar um melhor modo de governo ele parte de uma crítica à democracia
tradicionalmente entendida na Grécia antiga. Em seu lugar, deste modo, ele propõe o que
chama de governo constitucional que toma certas características da democracia e outras da
oligarquia, outra forma de governo considerada por ele como degenerada. A democracia ele
caracteriza como o governo de muitos, mais precisamente, o governo dos pobres, onde as
decisões se dão através de escolha da maioria dos cidadãos e também como o governo que
exibe, assim, uma igualdade entre ricos e pobres, na medida em que propicia a ambos a
possibilidade de participar das deliberações de sua cidade. O problema deste modo de
governo, para este autor, aparece quando o poder das leis diminui e a cidade fica à mercê dos
demagogos. Neste caso, diz, não se busca mais o bem comum, justamente o que faz com que
um modo de governo seja bom, mas unicamente aquilo que é conveniente aos que conseguem
o apoio do povo.
O que Aristóteles preserva da democracia ateniense em seu governo constitucional é a
alternância do governar e ser governado e, com isso, a igualdade dos cidadãos o que talvez
se possa caracterizar como o essencial da democracia moderna. Para ele, essa alternância é
fundamental para o funcionamento de um bom governo, por isso, acredita, o bom cidadão
deve ter “partes iguais em governar e ser governado” (ARISTÓTELES, 1973, p. 331, 1134 b),
isto é, deve ser aquele que sabe mandar e obedecer. A intenção é que ele, sob o governo
constitucional, junto com todos os outros, possa deliberar visando o bem comum, podendo
votar nas assembleias ou, em outros termos, podendo participar do exercício do poder
público. Neste sentido, Aristóteles define o governo constitucional ou, talvez possamos assim
dizer, o correspondente não degenerado da democracia, como a forma de governo na qual
todos os cidadãos, ou o povo, podem participar como iguais de forma direta nas decisões que
dizem respeito ao bem de sua cidade.
Analogamente a Aristóteles, para Rousseau, outro autor importante no que diz respeito
ao trato deste tema, a democracia nada mais significa do que o governo do povo, ou de todos
os cidadãos. Embora este autor afirme textualmente que ela é a forma de governo que convém
a Estados pequenos, assim como a aristocracia conviria a Estados médios e a monarquia, a
Estados grandes, ele não esconde seu entusiasmo com ela, chegando a asseverar que “se
79
existisse um povo de deuses, [este] governar-se-ia democraticamente” (ROUSSEAU, 1973, p.
92). O que agrada este filósofo na democracia é, sem dúvida, o fato de que nela se resguarda a
igualdade na decisão blica e a liberdade de participar desta decisão a todos os cidadãos, o
que segundo ele, são os maiores de todos os bens, devendo constituir, por isso, a finalidade de
todas as legislações, visto que a liberdade, diz, possibilita a independência de cada um e a
igualdade, por sua vez, o exercício da própria liberdade. Sendo assim, caso possamos resumir
em poucas palavras a compreensão de Rousseau sobre a igualdade a ser buscada entre os
cidadãos em uma democracia, talvez possamos dizer que, para ele, o importante é que todos
possam ser iguais na liberdade de se autodeterminar enquanto povo, ou seja, que todos
possam ser iguais na capacidade de exercer de forma direta o poder soberano de sua
sociedade.
Por outro lado, desposando de uma posição diversa e, em certo sentido, conflitante
com as duas acima apresentadas, temos Locke e Kant que, diferentemente de Aristóteles e
Rousseau, ajudaram no estabelecimento da tradição tomada como contrária àquela na qual são
normalmente associados estes últimos, da tradição liberal. Quanto a Locke, pode-se dizer, de
início, que, para ele, mais importante do que garantir que todos os cidadãos possam tomar
parte ativa no governo, é não perder de vista que o objetivo maior de um Estado é a
asseguração “da paz, da segurança e do bem público do povo” (LOCKE, 1973b, p. 90).
Conforme este autor, os indivíduos somente permanecem vinculados a uma sociedade civil e
se submetem à autoridade política desta para conservar a si próprio, a sua liberdade e
também a sua propriedade. Desta maneira, pode-se notar que não há, sob a perspectiva deste
autor, uma defesa contundente da participação de todos os cidadãos nos assuntos públicos.
Antes, a primazia da defesa de certos direitos individuais. A participação de todos se
resume, neste contexto, apenas à escolha da forma de governo e à escolha das pessoas que
comporão o poder legislativo, o poder supremo da comunidade, além, é claro, do contrato
social. Todas as outras escolhas políticas, fora as citadas, são tomadas pelos legisladores e não
pelos cidadãos em geral de forma direta. Vê-se, então, que o que se pretende resguardar aqui é
apenas que os cidadãos possam usufruir sua propriedade com paz e tranquilidade.
Neste sentido, a igualdade política fundamental, para esta perspectiva, parece, dá-se
sempre que os cidadãos possam escolher as pessoas que farão parte do poder legislativo, que,
por sua vez, tem a obrigação de, obviamente, respeitar os direitos fundamentais de cada um.
Basta que todos participem de tal escolha que pode ser feita tendo somente o endosso da
maioria destes. Assim, não lhes é cobrado, e nem lhes é garantido, nenhum outro
envolvimento com o exercício político, estando cada um, uma vez que o legislativo representa
80
o poder em conjunto ou a vontade geral de todos os membros da sociedade, livre para cuidar
de suas ocupações pessoais.
Por fim, quanto à compreensão de Kant como tratamos na introdução –, vê-se com
clareza que, para ele, , como também para Locke, um privilégio da defesa de certos
direitos e liberdades individuais frente à defesa da participação dos cidadãos nas questões de
sua sociedade. Para este autor, como já apontamos, a igualdade fundamental dos indivíduos
deve se basear primariamente na dignidade de cada um enquanto ser humano, não na sua
participação ou oportunidade de participação política, ou seja, acompanhando a compreensão
deste autor, na igual possibilidade de usufruto por cada qual de sua autonomia. Em virtude
disso, mostra-se como mais importante, de acordo com ele, a conservação aos cidadãos de
uma esfera de atuação privada ou um âmbito de exercício individual de liberdade em lugar da
garantia de uma atuação mais ativa e direta na esfera pública. Assim, no que concerne à
igualdade dos cidadãos, conforme sua concepção, não numa democracia, forma de governo
esta que ele rechaça dizendo que nela todos querem ser senhores, mas numa república, onde
a divisão do Estado em três poderes sendo o poder de legislar o poder soberano que
representa a vontade unida de todo o povo –, pode-se dizer que ela se estabelece não quando
os cidadãos têm o direito de votar leis positivas para o Estado, mas quando tais leis não ferem
a liberdade de cada um e a igual dignidade de todos. Nesta medida, dizer que todos eles são
iguais significa dizer que todos devem ser igualmente respeitados pelo Estado na medida em
que são igualmente seres humanos.
Com estes breves comentários, podemos observar que, entre alguns dos autores mais
importantes de nossa tradição política que trataram do tema em questão, a saber, que trataram
da igualdade entre os cidadãos em uma democracia, pelo menos, duas visões se destacam,
visões estas que, aliás, mostram-se, muitas vezes, como conflitantes. A primeira, identificada
com a perspectiva de Aristóteles e de Rousseau, vincula-se à defesa de uma participação mais
ativa dos cidadãos na vida pública de sua sociedade e valoriza a autodeterminação dos
mesmos enquanto povo. A igualdade destes, assim, numa democracia, para esta visão, dá-se
ao se possibilitar, e não só isso, mas também incentivar o ingresso de todos os cidadãos nas
discussões e decisões de sua sociedade. Por outro lado, a segunda, identificada, por sua vez,
com a perspectiva de Locke e Kant, vincula-se à defesa primordial de uma esfera de ação
privada dos cidadãos em detrimento da participação dos mesmos na esfera pública, se for o
caso de conflito entre as duas. Para esta visão, a igualdade dos cidadãos em uma democracia
deve se dar em primeiro lugar no âmbito da liberdade de determinação dos rumos de suas
81
próprias vidas, sendo, desta maneira, secundária a igualdade de participação dos mesmos nas
discussões e decisões que concernem a sua sociedade
42
.
Em face destas duas visões, uma questão se torna evidente: como se deve, enfim,
estruturar uma democracia de tal forma que todos os cidadãos sejam de fato iguais
politicamente? Eles devem ser incentivados a participar cada vez mais da política ou, de outro
modo, apenas um âmbito privado de ação e o direito a voto para eleger os seus representantes
lhes deve ser resguardado? Em suma, o que deve significar a igualdade política sob o governo
do povo na democracia liberal atual? Deve-se privilegiar a participação direta de todos nos
assuntos públicos ou garantir primordialmente o respeito à dignidade humana juntamente com
o direito a voto na escolha de representantes? Responder esta questão será nosso objetivo
aqui. Partiremos da definição do que estamos concebendo como democracia liberal, baseada
no projeto de Rawls, e do que significa a igualdade política dos cidadãos nela, para depois
investigarmos as criticas comunitaristas a esse respeito e em que medida elas poderiam afetar
a concepção liberal. Passemos, então, neste ponto à abordagem de Rawls.
3.2 RAWLS E A PERSPECTIVA LIBERAL
Tal como foi apontado mais de uma vez nos dois capítulos anteriores, para Rawls,
numa sociedade bem-ordenada, a igualdade fundamental e primeira entre os cidadãos está
relacionada à garantia a todos de determinados direitos e liberdades individuais frente a
qualquer decisão governamental mesmo que apoiada majoritariamente. Isto significa, em
breves palavras, que, para este autor, antes de qualquer resguardo aos cidadãos, constituídos
enquanto povo, de um direito à autodeterminação é mister proteger o direito inalienável de
cada um à autonomia contra leis ou políticas que, mesmo quando aprovadas por absoluta
maioria da população e direcionadas ao bem comum da própria comunidade política,
ameacem este último.
Neste contexto, a igualdade política pensada por este autor já de início torna-se
evidente não pode querer dizer, em primeiro lugar, igualdade de participação de todos os
cidadãos em todos os assuntos de sua sociedade. De outro modo, ela significa essencialmente
igualdade de respeito, principalmente, como veremos, quando o que está em jogo é a
justificação de ações governamentais, leis e políticas públicas. Além disso, significa também
igualdade de direitos e liberdades, incluindo entre estes, o direito a voto na escolha daqueles
que comporão o legislativo e ficarão responsáveis juntamente com os que compõem o
42
Isso fica visível com a defesa destes autores de, talvez se possa assim dizer, uma democracia representativa.
82
executivo e o judiciário por cuidar de tais assuntos. E, como consequência, a sua noção de
democracia que ele chama de deliberativa e que, conforme diz, tem como marca central o
debate, a deliberação –, isto é, a sua concepção de sociedade democrática constitucional bem-
ordenada, não tem como valor fundamental a participação política direta de todos nos
assuntos públicos, mas, de outro modo, o respeito a determinados direitos e liberdades
individuais entendidos como fundamentais a todos os cidadãos.
Para Rawls, a democracia em uma sociedade bem-ordenada envolve os seguintes
elementos – elementos estes que, segundo ele, são necessários para assegurar igualdade
política a seus membros. Em primeiro lugar, diz, “os cidadãos […] [devem ter] um direito
igual de participar do processo constituinte que define as leis às quais devem obedecer, bem
como seu resultado final(RAWLS, 2008, p. 273). Aqui, ao ler “participar” entenda-se tanto
“participar diretamente” como “ser representado”, pois, tal como caracteriza este autor, “a
autoridade de decidir as políticas sociais básicas [nas democracias liberais] pertence a um
corpo de representantes escolhido para exercer mandatos delimitados durante um período
determinado, por um eleitorado ao qual esses representantes devem prestar contas” (RAWLS,
2008, p. 274). Em segundo, as eleições devem estar livres de corrupções, elas precisam ser
limpas. Em terceiro, deve haver rigorosas proteções constitucionais para certas liberdades,
como a liberdade de expressão e de reunião, a liberdade de consciência e pensamento, além, é
claro, da liberdade de associação política. Outro elemento importante, diz o autor, é de que as
discordâncias quanto às convicções políticas devem ser aceitas como algo normal da atividade
política pública, posto que, tal como assevera, “a falta de unanimidade faz parte das
circunstâncias da justiça (RAWLS, 2008, p. 275). Além desses, outro elemento que deve
estar presente, para Rawls, é a oportunidade que pelo menos em um sentido formal deve ser
igual a todo cidadão de se filiar a um partido político, de se candidatar a um posto de
autoridade, a um cargo público, e também, obviamente, de ser eleito pelos outros cidadãos. A
ninguém pode ser negada essa oportunidade. E, por fim, também deve ser igual a
oportunidade de influenciar o processo político, pois, sendo tal processo público, todos devem
ter o direito de nele e sobre ele opinar autonomamente e, mais do que isso, de tentar obter,
para uma proposta sua, o apoio da maioria de seus concidadãos.
A esses elementos o autor acrescenta ainda a chamada regra da maioria. Conforme diz,
em meio ao debate público, que, por versar sobre questões políticas públicas controvertidas,
em sua maioria, questões estas nas quais não se buscam respostas corretas ou verdadeiras,
mas apenas uma resposta razoável e legítima, a resolução da maioria por meio de votação,
justifica o autor, possibilita que cheguemos a alguma decisão. Ela possibilita, então, uma
83
saída de impasses. Acompanhando o que comenta Rawls, embora nada garanta que a decisão
da maioria seja a decisão correta, como os dois princípios de justiça que regulam a sociedade
bem-ordenada nem sempre são claros ou precisos quanto ao que eles requerem, entre outros
motivos, diz, porque a sua própria natureza pode deixar em aberto um leque de opções ao
invés de determinar uma alternativa específica, uma lei endossada pela maioria pode ser
considerada justa se estiver dentro deste leque de opções. O papel de tal regra, com base
nisso, é, conforme este autor, servir como um bom meio de alcançar um acordo político ou
como a maneira mais viável de alcançar certos objetivos anteriormente definidos pelos
princípios de justiça.
Além de todos esses elementos listados, Rawls ainda introduz uma outra noção que
dentro de seu sistema teórico é fundamental para garantir a citada igualdade política. Trata-se
da razão pública, a noção que, de acordo com ele, define o tipo de razões em que os cidadãos
baseiam seus argumentos ao apresentar justificativas políticas uns aos outros. Porém, antes de
passarmos a uma descrição mais detalhada do significado desta noção, relembremos
rapidamente alguns pontos fundamentais da justiça como equidade que foram abordados até
aqui, pontos estes que são importantes para um melhor entendimento da noção aludida.
Como vimos, o objetivo maior de Rawls, com a justiça como equidade, é fornecer uma
base para o estabelecimento de uma unidade social estável que respeite a liberdade e a
igualdade de seus membros. Uma das noções fundamentais que ele utiliza neste
empreendimento e que, segundo ele, está presente implícita e intuitivamente na cultura
política pública de uma sociedade democrática, relembremos, é a de consenso sobreposto
razoável. Conforme assevera este autor, trata-se da noção que compreende a concepção
política de justiça numa sociedade bem-ordenada como “um ponto de vista comum a partir do
qual [os cidadãos] podem resolver questões que digam respeito aos elementos constitucionais
essenciais” (RAWLS, 2003, p. 45) ou, em outros termos, como um ponto de vista que pode
ser afirmado por todos, apesar do permanente desacordo razoável existente entre estes no que
se refere às suas doutrinas abrangentes. A ideia é que já que ele se apoia em uma concepção
política de direito e justiça – na justiça como equidade, por exemplo e não em uma doutrina
abrangente, religiosa ou moral, como foi o caso do catolicismo por grande parte de nossa
história e do fascismo em alguns países, em parte do século passado, ele possibilita, de acordo
com o autor, uma base para o estabelecimento do diálogo e do entendimento públicos. Ou
seja, ele possibilita uma base para o estabelecimento de um padrão público passível de ser
aceite por todos, por tomar todos como livres e iguais.
84
Feita esta retomada, podemos, então, dizer que, segundo Rawls, é exatamente dentro
deste contexto, isto é, dentro do âmbito do político, na esfera do desacordo razoável de
doutrinas abrangentes, que se sustenta a noção de razão pública. Nesta medida, seguindo a
compreensão deste autor, tal noção, por assim dizer, não é nada além do que a expressão do
consenso sobreposto, é a sua realização. Ela, com efeito, diz respeito às justificativas
apresentadas no debate político público pelos e para os cidadãos, explicitando ela, conforme
diz Rawls (2001, p. 174-175), “no nível mais profundo os valores morais e políticos que
devem determinar a relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos
e a relação destes entre si”. Assim, ela nada mais é do que o meio através do qual os cidadãos
podem discutir, discordar, entender-se ou desentender-se de uma maneira justa quando tratam
de questões políticas.
Um ponto a ressaltar aqui é que quando lembramos que o consenso sobreposto tem a
estrutura básica de uma sociedade bem-ordenada como objeto primário, podemos notar que a
razão pública, deste modo, pode ser aplicada, tal como demarca o autor, a um âmbito bem
determinado condizente à estrutura básica da sociedade, âmbito este que Rawls chama de
“fórum político público”. Sendo assim, ela não se aplica a todas as discussões políticas, mas
apenas, diz, a discursos de juízes, funcionários de governo, candidatos a cargos públicos e
chefes de campanha. Ela não se aplica, desta feita, às discussões travadas na sociedade civil,
às discussões dos cidadãos em geral. Como expõe Rawls, os cidadãos outros, fora os que não
estão no exercício dos cargos listados acima, discutem no âmbito da “cultura de fundo”, “a
cultura da sociedade civil” (RAWLS, 2001, p. 177), onde imperam, seguindo as suas
observações, as muitas formas de razão não-pública
43
, resultantes das várias visões religiosas,
morais e filosóficas professadas socialmente. A razão pública, desta maneira, tal como afirma
o autor, embora esteja vinculada a objetivos e projetos diversos, está no contexto da justiça
política e à disposição de apropriação dos cidadãos entendidos como livres e iguais.
Outro ponto importante a ser ressaltado é que, na medida em que com a razão pública
se pretende fazer funcionar de um modo justo uma democracia constitucional ou uma
sociedade liberal, seguindo o que observa Rawls, ela não pode ser confundida com a razão
apresentada a partir de uma perspectiva religiosa ou moral, isto é, de uma doutrina
abrangente. O seu conteúdo, e os valores que o com ele expressos, diz o autor, não são tão
amplos. Por outro lado, tal como salienta Rawls, do mesmo modo e pelo mesmo motivo, ou
43
Conforme Rawls, nela imperam, inclusive, aquelas razões que resultam, tal como caracteriza o autor, da
cultura política não-pública, a cultura que intermedeia a cultura política pública e a cultura de fundo, que abrange
os meios de comunicação, tais como jornais, tv, rádio, entre outros.
85
seja, por conta de sua amplitude, ela não pode ser confundida com uma razão secular.
Diferente dos dois tipos de razão abordados, a razão pública não é abrangente. Ela é restrita
ela e seus valores –, como visto, exclusivamente ao campo do político, o que significa,
relembrando a caracterização rawlsiana, que seus princípios se aplicam unicamente à estrutura
básica da sociedade e, por isso, podem ser apresentados independentemente das doutrinas
abrangentes e podem também ser elaborados a partir de ideias fundamentais, implícitas na
cultura política pública. Tendo como objetivo dar conta das questões que se relacionam com
elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica, e, em última instância,
preservar para todos os cidadãos liberdades básicas iguais, apesar destes apresentarem-se
separados por interesses distintos e, às vezes, opostos, ela demonstra assumir o papel
fundamental de assegurar a imparcialidade dentro do construto de Rawls. Ela demonstra,
portanto, assumir o papel de estabelecer o meio através do qual pode-se fazer a
compatibilização das doutrinas abrangentes, religiosas ou não.
Neste sentido, o seu âmbito de aplicação não pode ser outro senão unicamente a
estrutura básica da sociedade, isto é, apenas as principais instituições sociais, não a vida
interna de cada uma destas instituições diretamente. Para ilustrar esta distinção, Rawls nos
oferece o exemplo da família, uma das instituições de tal estrutura. Neste domínio, assevera, a
razão pública, ancorada em princípios políticos, não se aplica diretamente. Tal como comenta
o autor “distinguimos entre o ponto de vista das pessoas como cidadãos e o seu ponto de vista
como membros de famílias e de outras associações” (RAWLS, 2001, p. 209) e,
consequentemente, entre os princípios que se aplicam em um caso e no outro. Quanto aos
princípios de justiça, aplicados, obviamente, ao primeiro caso, completa o autor, “[eles] não
nos informam como criar nossos filhos e não exigem que os tratemos em conformidade com
princípios políticos” (RAWLS, 2001, p. 210). Tal distinção, no entanto, não significa que
cada uma das associações não seja afetada pelo exercício da razão pública. Na medida em que
elas não podem violar os direitos das pessoas enquanto cidadãos, garantidos pelo primeiro
princípio de justiça, podemos observar que não instituição isenta de justiça. Todas são
restringidas por ela, já que constituem a estrutura básica.
A intenção de Rawls ao restringir desta forma o âmbito da razão pública é tornar
possível o estabelecimento de uma base para alguma justificação pública, isto é, para algum
acordo. Ou melhor, a pretensão é tornar possível, ao menos, alguma redução de desacordos no
que tange “às controvérsias mais irreconciliáveis, e em particular no que se refere àquelas
relativas aos elementos constitucionais essenciais” (RAWLS, 2003, p. 39). A ideia básica do
autor é possibilitar a sustentação do consenso sobreposto e, desta feita, da legitimidade
86
política. Pois, ao se garantir que, frente ao fato da diversidade de doutrinas abrangentes e
razoáveis, o poder político “é exercido [por cidadãos livres e iguais constituídos em um corpo
coletivo] de acordo com uma constituição (escrita ou não), cujos elementos essenciais todos
os cidadãos, considerados como razoáveis e racionais, podem endossar à luz de sua razão
humana comum” (RAWLS, 2003, p. 57), garante-se também a legitimidade de tal poder, a sua
validade ou, em outras palavras, uma base para a sua aceitação por todos.
Um último comentário importante que se refere à democracia deliberativa rawlsiana é
que, como salienta o autor, as questões discutidas e votadas nela podem ser sempre
retomadas, rediscutidas e votadas novamente. Pois, segundo afirma o autor, “a argumentação
não está fechada para sempre na razão pública” (RAWLS, 2001, p. 223), ela sempre pode ser
reaberta.
Assim, com as observações acima é possível notar alguns dos traços fundamentais da
compreensão de Rawls a respeito do que significa a estruturação de um regime democrático
justo e qual entendimento deve-se ter da igualdade fundamental dos cidadãos sob esta
estruturação. Quanto ao primeiro ponto, vemos a partir dos comentários do autor que uma
democracia justa, sob uma sociedade bem-ordenada, é aquela que tem como valor capital o
debate, a deliberação blica. Nesta compreensão, como vimos, há, juntamente com outros
elementos, como o direito igual à participação, a necessidade de eleições limpas, de proteções
constitucionais, de espaço para a discordância política, dentre outros, o que o autor chama de
razão pública: aquela que exige que os dirigentes políticos das três esferas de governo
apresentem apenas justificativas que possam ser endossadas por todos ou pela maioria dos
cidadãos razoáveis de sua sociedade apesar da discordância existente entre estes no que diz
respeito às suas doutrinas abrangentes. Este debate, contudo, embora possa sofrer influência
de todos e possa, ao menos, de maneira formal, estar aberto à participação de todos os
cidadãos, desenvolve-se unicamente em nível institucional pelos citados dirigentes políticos,
com uma linguagem própria que possibilita as justificações políticas públicas. Neste sentido,
pode-se ver que a democracia de que Rawls fala é aquela na qual as decisões são tomadas
através de deliberação e votação de agentes públicos, que representam os cidadãos em âmbito
institucional, e que precisam apresentar razões políticas públicas para que sua proposta possa
ser aprovada, ao menos, pela maioria dos outros representantes políticos.
E quanto ao segundo ponto, a saber, quanto à igualdade política dos cidadãos sob esse
regime, Rawls entende que ela deve significar igual consideração. Isso significa, para ele, que,
em primeiro lugar, a todos os cidadãos devem ser resguardados iguais direitos e liberdades e,
em segundo, ninguém pode sentir que sua concepção de bem é tomada como intrinsecamente
87
inferior ou superior às outras. Todas, quando razoáveis, devem ser tomadas como iguais,
devendo ser, por isso, o discurso político independente destas concepções. Assim, é possível
dizer, a igualdade dos cidadãos na concepção de democracia justa estruturada por Rawls se
centra, parece, tal como o fizeram Locke e Kant, no resguardo à atuação individual. Ela
centra-se, portanto, embora demonstre também valorizar a participação de todos, basicamente
na igualdade de direitos e liberdades fundamentais, que são entendidos como invioláveis e
que devem ser resguardados a todos os cidadãos.
Dados estes comentários, passemos agora para a investigação das criticas
comunitaristas a esse entendimento e para a análise do quanto elas podem afetar este último.
3.3 CRÍTICA COMUNITARISTA
Como já era de se esperar, tal postura rawlsiana, e liberal, de defender a prioridade dos
direitos e liberdades individuais dos cidadãos como fundamentais em uma democracia justa
está longe de ser unânime ou consensual no debate político atual. Para muitos autores, dentre
estes, os comunitaristas, tal defesa não pode ser prioritária. Ela deve ser secundária,
dependente da vontade geral unida de todos. Conforme dizem estes autores, para que os
cidadãos sejam considerados como politicamente iguais numa democracia justa é preciso que
sempre prevaleça a vontade do povo, tendo os cidadãos uma participação mais ativa nos
assuntos públicos, e no que diz respeito à atuação do Estado, completam, é preciso que este
estimule cada vez mais essa participação, implementando medidas que a tornem possível.
Um dos autores a defender esta perspectiva é Taylor, por assim dizer, um dos mais
preocupados com as consequências negativas da implementação do ponto de vista contrário
ao seu, o da perspectiva liberal. Para este autor, contrariamente a Rawls, a soberania popular,
isto é, o direito à atuação ativa dos cidadãos nos assuntos públicos, deve ser privilegiado ou
defendido prioritariamente frente aos direitos individuais. O ponto de partida deste autor, para
defender esta compreensão como, aliás, em parte vimos é a sua compreensão de que a
autonomia dos indivíduos apenas é promovida quando há o compartilhamento de experiências
e trocas interpessoais na deliberação coletiva, isto é, num determinado contexto comunal, num
certo ambiente social. Partindo deste entendimento, assevera Taylor, se o Estado tem a
intenção de respeitar e promover a autonomia de todos os seus membros, ele deve criar as
condições adequadas para isso, ou seja, ele, segundo o autor, não pode pretender ser neutro ou
imparcial. Afinal de contas, para esta compreensão, “o Estado é a arena adequada para a
formulação de nossas visões do bem porque estas visões [1] requerem a investigação
88
compartilhada”, e, além disso, “[2] não podem ser buscadas, ou sequer conhecidas, por
indivíduos solitários” (KYMLICKA, 2006, p. 284). Neste sentido, segundo esta concepção,
primordial para ele para o Estado –, quando busca promover a igualdade política, não pode
ser assegurar por meio da garantia de direitos individuais espaços privados de atuação para
cada um dos cidadãos. Antes disso, ele deve assegurar a participação a todos enquanto iguais
no debate político público, promovendo, através da garantia dos direitos tomados como
positivos, a autodeterminação popular.
Nas sociedades modernas ocidentais, de acordo com o autor, três traços de nossa
cultura, apesar de serem associados frequentemente ao nosso desenvolvimento em geral,
experimentamos como perdas, afastando-nos do que, para ele, é essencial para a igualdade
política numa democracia. Um é o individualismo, que, conforme o autor, embora seja
considerado por alguns como a conquista mais admirável da civilização moderna, “aplaina e
estreita as nossas vidas, as empobrece de sentido, e nos faz perder interesse pelos demais ou
pela sociedade” (TAYLOR, 1994, p. 40, tradução nossa). Outro é a primazia da razão
instrumental, que, de seu turno, diz o autor, é imposta indevidamente a várias áreas, fazendo
com que o cálculo de custo-benefício determine âmbitos como, por exemplo, a medicina que
deixaria de ver o paciente como uma pessoa completa, com uma vida, uma história etc. e
passaria a vê-lo como um problema técnico. O terceiro e mais importante para nós que
não discutiremos os dois primeiros se relaciona com as consequências do individualismo e
da razão instrumental para a vida política, a saber, a homogeneização cultural e a
desvalorização da vida pública. Conforme o autor, seguindo as considerações de Tocqueville,
este terceiro traço abre espaço para uma forma de despotismo caracteristicamente moderna, o
despotismo “brando”, no qual um governo suave e paternalista, através de um imenso poder
tutelar, rege a sociedade e os cidadãos, estes que, diante de tal estrutura burocrática, sentem-se
impotentes, fragmentados, sós, incapazes de qualquer resistência a tal poder englobante.
A saída apontada pelo autor para este problema da falta de capacidade de reação
contra a fragmentação e o atomismo que impossibilitam, segundo ele, a organização política,
fundamental não para o bom funcionamento da democracia, mas para a igualdade
requerida nela, seria a promoção de políticas de formação da vontade democrática. Ou seja, a
saída, para ele, é incentivar a participação política dos cidadãos, criando mecanismos que
possibilitem a intervenção destes nos vários âmbitos da esfera blica. A ideia de Taylor é,
acreditando na força agregativa da ação comum bem sucedida, fortalecer a identificação dos
cidadãos com a sua comunidade política e, com isso, fortalecer a própria noção de autonomia
atribuída a cada um. Embora o autor admita a impossibilidade de receitas universais e a
89
dependência das peculiaridades de cada situação em particular, para a concretização de tal
objetivo, diz, uma medida, em geral, importante do Estado é fomentar a descentralização do
poder político: “o que parece pedir [em] nossa situação […] uma luta complexa, em múltiplos
planos, intelectual, espiritual e político, nos quais os debates da esfera pública se entrelacem
com os que se produzem em toda uma série de lugares institucionais, como hospitais e
escolas” (TAYLOR, 1994, p. 145, tradução nossa). Assim, de acordo com Taylor, para que a
igualdade política seja real em uma democracia, fundamental é que se garanta e incentive a
participação ativa de todos os cidadãos na vida política pública de sua sociedade, o que para
ele é mais importante até do que garantir direitos individuais a cada um.
No mesmo caminho, defendendo, todavia, com mais clareza do que Taylor a
inviolabilidade dos direitos individuais nas democracias liberais atuais, temos Walzer. Para
este autor, em sociedades que ele chama de imigrantes, as atuais sociedades liberais, aquelas
nas quais encontramos uma grande pluralidade de culturas, e não uma predominante, além de
entendimentos morais, religiosos etc. diversos, é absolutamente adequada a defesa da
inviolabilidade dos direitos individuais a todos. Isso se dá, segundo ele, primeiro, porque se
tratam dos direitos assumidos como fundamentais por nossa tradição política e, depois,
porque nestas sociedades se busca basicamente proteger de igual modo a cada um a
possibilidade de desenvolver por si mesmo a sua maneira própria de vida, e possibilitar
realmente a todos que participem, desta forma, da interpretação e concretização do significado
específico de tais direitos em sua sociedade.
Detalhemos mais a compreensão deste autor. O ponto de partida de Walzer é a
identificação de dois tipos de universalismo. O primeiro, segundo ele, configura e define os
indivíduos com base em direitos fundamentais atribuídos a eles, ao passo que o segundo
admite o valor universal de tais direitos, mas os toma como formulações abstratas, carentes de
uma interpretação particular e específica. Assim, enquanto o primeiro diz respeito a regras e
princípios globais, que estabelecem, por exemplo, a necessidade por justiça, válida em
qualquer sociedade, o segundo aponta para as várias razões particulares, situadas histórica e
culturalmente, que estabelecem e especificam os conteúdos de tais regras e princípios,
dizendo, neste caso, o que esta noção significa neste ou noutro contexto social. Com base
nisso, diz o autor, embora a noção de direitos individuais possa ser reivindicada
universalmente, o seu significado e o modo de sua concretização dependerão sempre dos
valores compartilhados pela sociedade, isto é, dependerão sempre da autonomia para
interpretá-los, esta que, para ele, é inalienável a todo e qualquer povo.
90
Desta maneira, podemos ver que para Walzer, assim como para os liberais, os direitos
individuais permanecem com a condição de invioláveis. A diferença entre os dois é que, se
para os liberais essa inviolabilidade é fruto do respeito a uma capacidade moral dos
indivíduos ou de direitos pré-políticos, para Walzer ela resulta da necessidade de garantir que
haja a autodeterminação do povo. Ela resulta, portanto, para ele, da necessidade de garantir
que prevaleça a autoridade e a vontade de todos os cidadãos, reunidos enquanto corpo
político, que devem definir e interpretar o conteúdo dos direitos fundamentais. Sendo assim,
uma vez que, para esta perspectiva, o que passa a ocupar o primeiro plano é a autonomia
pública, mostra-se como capital que o Estado assuma o papel de incentivar, mas não
incentivar, promover um ambiente no qual haja o exercício da cidadania ativa e engajada de
seus cidadãos. Torna-se, com efeito, responsabilidade sua não só a proteção de direitos
negativos, as liberdades e direitos individuais, como defendem os liberais, mas também, e
sobretudo, a proteção de direitos positivos, aqueles que garantem a participação de todos nas
deliberações políticas blicas. A ideia do autor é assegurar que sob o regime democrático
realmente todos os cidadãos, ricos e pobres, de culturas diversas etc. possam se autogovernar,
decidindo nos vários foros de sua sociedade, através de discussão pública, os rumos da mesma
e debatendo os riscos que advêm de tais decisões.
Além dessa discordância com a teoria liberal de que se deve dar prioridade à defesa
dos direitos de participação política frente aos direitos individuais, que os primeiros
determinariam os segundos, Walzer ainda apresenta uma segunda. Trata-se de sua crítica
direcionada à compreensão liberal sobre aquilo que está envolvido na discussão política
pública, isto é, sobre o que é central nela. No que concerne a esta crítica, assevera o autor,
quando os liberais passam do discurso dos direitos para o discurso da decisão das questões
públicas, nas democracias, eles equivocadamente estabelecem como central a deliberação, a
troca de argumentos racionais que poderiam possibilitar um acordo igualmente racional. Ao
fazer isto, continua o autor, eles pressupõem que a discussão política entre os cidadãos ocorre
tendo como pano de fundo a igualdade de seus participantes. Pressupõem também que estes
(os cidadãos que discutem as questões públicas), de seu turno, seriam nada mais do que
agentes racionais, insensíveis, capazes de resolver os seus conflitos e discordâncias políticas
por meio de discussão e votação, o que, segundo ele, não corresponde aos acontecimentos do
mundo real e a nossa experiência cotidiana.
A deliberação, na verdade, diz o autor, não é tudo na vida política, ela não abrange
todo o processo decisório em uma democracia. Ela é apenas uma parte de tal processo, uma
atividade dentre outras não deliberativas que constituiriam a maioria e que, segundo ele,
91
estariam envolvidas no processo político democrático legitima e talvez necessariamente
44
. O
exercício político democrático, assim, para este autor, demonstra ser muito mais abrangente,
envolvendo muito mais do que decisões nas quais se chega
através de um processo racional de discussão entre iguais, que ouvem
respeitosamente os pontos de vista do outro, examinam com cuidado os dados
disponíveis, ponderam as possibilidades alternativas, discutem sobre a pertinência e
o valor de cada uma delas e depois escolhem a melhor política para o país ou a
melhor pessoa para o cargo (WALZER, 2008, p. 132-133).
Nele encontramos, diz, a influência, a pressão, a persuasão etc. Encontramos também outros
valores para além da razão, como a solidariedade, a competitividade, o comprometimento,
dentre outros. Em suma, encontramos pessoas, pessoas que são concretas, que têm
convicções, interesses. Encontramos pessoas que são guiadas não somente pela razão, mas
também pela paixão, por seus engajamentos e que, neste contexto, embora também precisem
de uma cultura de discussão pública na qual, ao menos, em princípio os cidadãos estejam
abertos à argumentação mais convincente, demonstram precisar, segundo ele, mais de um
modus vivendi do que de um acordo racional, tal como sugerem os liberais.
Assim, com estes breves comentários podemos, grosso modo, tornar mais claro o
núcleo da crítica comunitarista ao entendimento sobre a igualdade política dos liberais e,
como consequência, ao entendimento de Rawls. Para estes autores, um equívoco da parte
dos liberais quando defendem a prioridade dos direitos individuais visando concretizar a
igualdade supracitada. O equívoco se dá, segundo eles, porque, na verdade, ao garantir
prioritariamente estes direitos, restringindo a participação dos cidadãos na vida pública apenas
ao consentimento ou contestação expressos por meio do voto em eleições periódicas, o Estado
está privando os cidadãos de um direito que lhe é inalienável, a saber, o direito ao exercício da
autonomia por todos, sendo paternalista, ao impor a todos aquilo que lhe parece melhor. A
resolução deste equívoco, para os comunitaristas, requer que o Estado incentive os seus
membros a participar ativamente dos debates públicos, isto é, que ele crie mecanismos que
facilitem e estimulem tal participação, instituindo, por exemplo, uma, cada vez maior,
fragmentação do poder político de tal modo que os cidadãos tenham a real possibilidade de
ativamente contribuir nas várias decisões dos diferentes grupos / instituições de sua sociedade.
A pretensão fundamental desta perspectiva é que haja uma diversificação dos âmbitos de
decisão, ou seja, dos foros públicos, e, inclusive, como vimos com Walzer, dos valores
44
Dentre estas atividades não deliberativas o autor lista a educação política, a organização, a mobilização
política, as manifestações, as negociações, o lobby, o debate, a corrupção, dentre outras.
92
envolvidos nestes foros, que permita que todos realmente, e não apenas formalmente, tenham
iguais possibilidades de participar das definições políticas de sua sociedade.
3.4 OBSERVAÇÃO LIBERAL
Como sinalizamos no capítulo anterior, entendemos que nas democracias liberais
atuais, que são marcadas pela diversidade e pelo conflito, entre priorizar as deliberações
públicas e a inviolabilidade dos direitos individuais, deve-se ficar com a defesa primordial dos
direitos individuais. A ideia é que nenhuma das uniões plurais ou nenhuma das concepções de
bem possa ter a chance de sobrepor-se às demais em poder político. Em suma, a ideia é
garantir a neutralidade quanto às diversas visões de bem professadas socialmente.
Assim, no mesmo caminho que seguimos durante todo esse texto, sem negar a
importância do liberalismo, o que essa crítica parece poder acrescentar a este é apontar
mecanismos que o façam aproximar-se um pouco mais de uma postura mais inclusiva política
e também socialmente. Ela parece, assim, de certo modo, forçá-lo a atentar para aspectos da
organização social tratados insuficientemente por ele. Neste sentido, um modo interessante de
vê-la é não entendê-la como forçando uma mudança total de perspectiva e o abandono do
liberalismo. Afinal de contas, mesmo quando notamos que embora de fato Rawls e os liberais
não priorizem os direitos positivos quando pensam em estabelecer uma estrutura social na
qual todos os cidadãos possam ser considerados como politicamente iguais, ou seja, embora
eles não acreditem que defender prioritariamente a autodeterminação coletiva frente a certas
garantias individuais seja o modo mais adequado para assegurar a igualdade tocada acima,
podemos ver que eles, no entanto, reconhecem a importância, e mais do que isso, a
necessidade, para que ela seja alcançada, da defesa, da manutenção e do estímulo à
participação política de todos.
Um exemplo desse reconhecimento dos liberais a respeito da importância da
participação política de todos os cidadãos nos assuntos públicos podemos encontrar com
Rawls. Ao comentar algumas críticas a sua teoria, este autor reconhece explicitamente que o
liberalismo político buscado por ele concorda com observações como essas dos autores
comunitaristas de que é positiva e também necessária a existência de discussão plena e aberta
entre os cidadãos na sociedade política. A sua discordância no que concerne a este assunto é
quanto ao local adequado para esta discussão. Para ele, o lugar adequado é a cultura de fundo,
a cultura da sociedade civil em geral, na qual os cidadãos trocam razões não públicas,
baseadas nas suas doutrinas abrangentes. O Estado, juntamente com seu aparelho coercitivo,
93
não pode constituir esta arena de formação da vontade discursiva. Isso porque, entende o
autor, para que ele, o Estado, possa ser neutro e inclusivo, isto é, para que ele possa se isentar
da avaliação das concepções individuais de bem, não julgando superioridade ou inferioridade
de nenhuma delas e permitindo, assim, que as pessoas que as compartilham, inclusive aquelas
que estão vinculadas a grupos minoritários na sociedade, sejam igualmente consideradas, ele
precisa não permitir que nas razões apresentadas no debate de questões constitucionais
essenciais, realizado pelos representantes dos cidadãos, dentro da arena política, não sejam
incluídas as diversas razões dos diferentes cidadãos. Ele deve garantir que apenas as razões
públicas, aquelas razões que podem ser endossadas pelas várias doutrinas abrangentes
professadas socialmente, sejam abordadas.
Como diz Rawls, no âmbito do Estado, desta maneira completemos –, deve haver
apenas um espaço restrito de deliberação pública, um espaço que pode ser compatível com a
noção de pluralismo adotada, ou melhor, constatada pelo autor
45
. Neste espaço, como vimos,
os cidadãos não podem discutir suas concepções acerca da vida digna e também não podem
ultrapassar os limites fixados pelos valores políticos. Desta forma, as suas deliberações
sempre se darão tendo como base estabelecida a justiça política, ou nas palavras de Rawls a
justiça como equidade e os seus dois princípios de justiça. Como consequência disso, o
processo democrático, de seu turno, sempre estará, sob esta perspectiva, restringido pelos
direitos e liberdades individuais, estando, desta feita, a participação dos cidadãos direta nos
assuntos do Estado – embora possa ser bem vista e incentivada – sempre limitada pela
vigência dos direitos fundamentais e reduzida às questões de justiça política.
Na esfera da sociedade civil, fora da arena estatal, portanto, para essa compreensão
rawlsiana, é que se deve abrir espaço para o diálogo aberto às várias razões provenientes das
diferentes concepções de bem. É nela, nas suas pequenas comunidades, nos seus diferentes
grupos e associações, ou, usando os termos de que nos utilizamos acima, nos diversos foros
públicos da sociedade, que se deve formar, conforme este ponto de vista, a vontade discursiva
dos cidadãos. Como observa Kymlicka (2006, p. 287), trata-se de uma “certa
[compartilhada por Rawls e pelos liberais em geral] na operação de fóruns e processos não
estatais para o julgamento individual e o desenvolvimento cultural e uma desconfiança da
operação de fóruns estatais na avaliação do bem”. Em outras palavras, trata-se de uma certa
crença de que nas sociedades liberais uma cultura tolerante e diversa que se sustenta por si
mesma. Seguindo este entendimento, podemos dizer que sim para Rawls e, é claro, para os
45
Como salientamos em outras partes, Rawls crê que o pluralismo seja um fato a ser constatado e pressuposto
pela teoria política.
94
liberais, assim como também para os comunitaristas, uma valorização da participação dos
cidadãos, e, obviamente, dos seus grupos, nos diversos foros públicos, a diferença é que para
Rawls (e para os liberais) estes foros, nos quais cabe a utilização da razão não blica, além
do recurso a outros valores fora a razão, como ressaltado acima por Walzer, não são estatais.
Outro exemplo do dito reconhecimento liberal da importância da participação
encontramos com Dworkin. O primeiro ponto a ser ressaltado na teoria de Dworkin, que
também está presente na teoria de Rawls, é que os direitos fundamentais ocupam um lugar de
destaque em seu ordenamento político, sendo tomados como limites às discussões e
deliberações públicas, isto é, como algo através do qual os cidadãos são protegidos contra
arbitrariedades de outras pessoas e também do próprio Estado. Para este autor, este fato deve
ser levado seriamente em consideração, isso, é claro, caso se queira igualar a todos, inclusive
politicamente. O fato, entretanto, de que os direitos fundamentais devem ser considerados
seriamente não implica, para este autor, que não deve haver por parte do Estado uma
preocupação em garantir e incentivar a inserção dos cidadãos nos assuntos públicos. Não é
este o caso. Para Dworkin, é papel do Estado promover a participação de seus membros nos
debates das questões de sua sociedade. É seu papel distribuir poder político de tal modo que
os seus cidadãos possam ser iguais, ou mais precisamente, de tal modo que possam ser
entendidos como igualmente juízes e participantes das discussões públicas.
Para tornar clara a concepção da democracia deste autor, a democracia constitucional,
é importante salientar o seu entendimento a respeito do liberalismo, pois é este que estabelece,
segundo o autor, os limites da primeira. Conforme Dworkin, o Estado liberal é aquele que se
funda em uma concepção de bem
46
segundo a qual todos os indivíduos têm um igual valor
moral, o que significa concretamente, de acordo com a sua perspectiva, que se trata do Estado
que atribui e garante a todos iguais direitos fundamentais através de uma constituição.
Estabelecido isto, a democracia constitucional justa é aquela que resguarda os direitos e
liberdades fundamentais mesmo que isso signifique contrariar uma proposta endossada
majoritariamente. Ela, desta forma, se estrutura como a democracia que nunca permite que os
cidadãos ultrapassem os limites estabelecidos pelos direitos e liberdades de cada um, ou seja,
46
Para Dworkin, dizer que o Estado liberal se funda em uma concepção de bem não significa dizer que ele não
seja neutro. Segundo ele, tal Estado é sim neutro, e, por isso, deve expressar uma perspectiva independente de
qualquer concepção acerca da vida digna. Visando explicitar esta tese, o autor introduz a seguinte contraposição:
contra o que ele denominou de estratégia da “descontinuidade”, identificada por ele na teoria de Rawls, ele
propõe a estratégia da “continuidade” que pretende unir ética e política, afirmando que o Estado liberal vincula-
se a uma teoria compreensiva, a que assevera que “correto” é que todos os membros da comunidade política
sejam tratados como iguais. Nas palavras de Cittadino (2000, p.155), o que o autor quer evitar é que “o
liberalismo […] [seja] uma política da esquizofrenia ética e moral que pede aos indivíduos que, ao atuarem
politicamente, coloquem entre parênteses as suas próprias convicções morais”.
95
que nunca permite que o exercício de cada um de sua autonomia possa desrespeitar a
autonomia de cada outro, seja este “outro” parte da grande maioria ou membro de uma
pequena minoria em sua sociedade.
Tal compreensão da democracia, conforme Dworkin, não se reduz, contudo, a
assegurar um espaço privado de atuação para cada um dos cidadãos. Para ele, também nela
uma preocupação em garantir que todos possam compartilhar das atividades políticas, isto é,
que todos possam ter iguais oportunidades de ser ativos politicamente em sua comunidade. É
importante comentar o fato de que Dworkin – assim como Rawls – separa as práticas políticas
das outras práticas da vida, apesar de vincular uma à outra. Para ele, a vida coletiva da
comunidade é apenas a sua vida política formal, não todas as atividades coletivas dos
indivíduos. Assim, Dworkin, partindo da ideia de que o bem-estar de cada um dos cidadãos
provém do bem-estar de sua comunidade política
47
embora reconheça que são diferentes –,
defende que a melhor compreensão do governo democrático é aquela que, assegurando a
inviolabilidade dos direitos fundamentais a cada um, possibilita ao povo agir em conjunto
como parceiros plenos e iguais no empreendimento coletivo do autogoverno. Isso significa,
para o autor, que suas instituições consideram cada cidadão como um membro ativo e igual:
sendo, desta maneira, o povo, governante; os cidadãos, participantes e juízes iguais das
disputas políticas, tendo todos, ricos ou pobres, iguais oportunidades de influenciar os seus
concidadãos; e, por fim, tendo todos os indivíduos a possibilidade de deliberar juntos.
Desta maneira, com esses exemplos, podemos notar a importância da participação
política dos cidadãos dada pelos liberais. A observação que eles fazem é que para se garantir
essa participação política igual, o Estado deve assegurar a todos os cidadãos certos direitos e
liberdades individuais. Para os liberais, ele precisa, antes de tudo, para que todos possam estar
protegidos contra arbitrariedades e decisões majoritárias que sejam agressivas a uma ou mais
visões de bem professadas, ou seja, para que se estabeleça uma situação na qual as pessoas
possam realmente participar da vida política, assegurar certas garantias constitucionais e
determinados direitos e liberdades entendidos como fundamentais a cada um dos cidadãos,
permitindo-lhes, assim, o que estes autores compreendem como o exercício da autonomia de
cada um. Pois, afinal, ninguém, nem mesmo um indivíduo, porque integra uma minoria ou
porque endossa uma proposta com poucos adeptos, pode ser desrespeitado ou tratado com
menos importância pelo Estado. Todos nossas intuições nos exigem devem ter segurança
47
Vale ressaltar que este autor não desposa a concepção de que há uma primazia ontológica da comunidade, mas
apenas uma integração da vida de cada pessoa com a vida de sua comunidade política, que formariam, assim,
uma unidade.
96
para expressar e defender publicamente os posicionamentos que desejarem ou acreditarem ser
corretos, desde que, obviamente, estes não sejam agressivos ou ofensivos a outros
posicionamentos. A observação, portanto, a ser salientada sob o ponto de vista liberal é que,
mesmo valorizando os diversos foros públicos, embora não priorizando as deliberações
públicas frente aos direitos individuais, precisa-se evitar que o Estado fique à mercê de
experiências, tornando-se instável, e os cidadãos, por conseguinte, vulneráveis.
3.5 PARA ALÉM DO LIBERALISMO
Essa observação liberal, no entanto, não é cabal, ela não encerra a discussão,
mostrando que está suficientemente apresentada a perspectiva que conta de estruturar uma
sociedade democrática que consiga tratar todos os seus membros como iguais politicamente.
Não é esse o caso. Ou melhor, a observação que apresentamos não mostra tal alcance e
também não tem essa pretensão. Deste modo, vemos, a nossa questão inicial ainda
permanece: como se podem igualar politicamente os cidadãos de uma democracia liberal? O
que deve ser resguardado para tal? Verifiquemos agora, numa breve retomada do que
dissemos se conseguimos encontrar, ao menos, indicativos da igualdade investigada.
Quanto ao que abordamos dos comunitaristas, sem dúvida, não podemos dizer que eles
apresentam críticas de todo despropositadas. Realmente caso queiramos uma sociedade liberal
que promova a igualdade política, não podemos abrir mão da importância da participação de
todos na vida política da mesma, e até mais do que isso, não podemos abrir mão de que
promover esta participação, criando mecanismos para tal seja papel do Estado, devendo este
incentivar cada vez mais essa participação de todos nas várias decisões de sua sociedade.
Neste sentido, seguindo as observações de Taylor, para que essa participação seja promovida
é difícil negar a necessidade de que o Estado deva fomentar a descentralização e a
fragmentação cada vez maior do poder político. Do mesmo modo, também é difícil negar,
seguindo as observações de Walzer, que caso queiramos defender determinados direitos
individuais, estes, para serem legítimos, precisam ter o endosso da comunidade na qual eles
serão aplicados e, além disso, que caso queiramos incluir o máximo possível os cidadãos nos
debates públicos, devemos considerar que não nele somente a razão como valor e não a
deliberação como meio de resolução de conflitos e tomada de decisões.
De modo análogo, no que concerne às observações de Dworkin, o mesmo pode ser
dito: não são observações que podemos descartar sem que antes as consideremos seriamente.
Pois, depois de todos os exemplos de repressão, violência e desrespeito, encontrados na
97
história de nossa civilização, praticados, muitas vezes, por governantes, em alguns casos, com
a alegação de que se pretendia promover o bem de todos, tendo em várias ocasiões, a
aprovação majoritária de sua sociedade contra pessoas diversas por conta de suas religiões,
convicções, etnias etc., não é fácil dizer, como, aliás, comentamos acima, que não são
necessárias certas garantias constitucionais que assegurem direitos e liberdades entendidos
como fundamentais, protegendo cada um dos cidadãos contra arbitrariedades de outros
cidadãos e do próprio Estado. Não é fácil dizer que tais direitos não devem ser protegidos
embora, como o próprio autor nota, também seja preciso considerar a todos como
participantes iguais das controvérsias e processos políticos públicos –, impondo um limite
claro às deliberações públicas, a saber, a não intromissão no âmbito de escolhas e
determinação de cada um sobre os rumos de suas próprias vidas.
E, por fim, no que se refere às observações de Rawls, também encontramos elementos
que parecem constituintes essenciais, isto é, que parecem dever compor necessariamente a
compreensão de igualdade política. O mais marcante, talvez, além, é claro, da defesa dos
direitos individuais como prioritários às deliberações públicas, destacada também nos
comentários sobre as observações de Dworkin, é a preocupação com o estabelecimento de um
discurso que permita que os diferentes cidadãos, com suas diversas e, muitas vezes,
irreconciliáveis visões sobre a vida e o mundo, possam de algum modo dialogar quando o que
está em jogo é a discussão de questões fundamentais de associação e organização políticas.
Pois, não se mostra tão simples negar a importância de tal estabelecimento. Afinal de contas,
para que todos os cidadãos possam ser politicamente iguais, um pressuposto óbvio é o de que
deve haver condições tais que, quando houver a discussão sobre as questões essenciais da
sociedade destes, cada um possa, antes de tudo, estar disposto a ouvir os outros e encontrar a
mesma disposição da parte dos outros em ouvi-lo.
Assim, com esta rápida abordagem, se não pudemos apresentar todos os elementos que
são necessários e suficientes para a concretização da igualdade política, ao menos, pudemos
apontar para alguns deles, os mais basilares, talvez, que resumidamente são: as garantias de
direitos fundamentais e as garantias de participação política. É importante dizer que, daquilo
do que tratamos até aqui, devemos guardar estes elementos, pois sem eles, dificilmente,
conseguiremos pensar a igualdade dos cidadãos na democracia liberal, nas palavras de Rawls
(2003, p. 186), “o status fundamental na sociedade política”. Como coaduná-los exatamente,
ou em outras palavras, quais mecanismos devem ser usados para que todos os cidadãos se
engajem cada vez mais na vida política pública, sem abrir mão, é claro, de seus direitos e
liberdades que se tratam de sociedades liberais –, em que circunstâncias, por quanto
98
tempo etc., estas parecem ser questões que devem ser colocas de tempos em tempos a cada
uma das sociedades inseridas na nossa tradição.
3.6 CONCLUSÃO
Desta maneira, podemos concluir este capítulo apresentando alguns dos aspectos mais
importantes da igualdade política. Em primeiro lugar, que nos encontramos numa
democracia liberal não parece acertado que as nossas garantias constitucionais sejam
colocadas em perigo. Assim, estando inseridos na tradição liberal não podemos fugir do fato
de que certos direitos e liberdades que são valorizados como fundamentais e que não
podem ser violados, tais como, por exemplo, as liberdades de consciência e religião e as
liberdades de associação, liberdades e direitos estes que, quer queira, quer não, constituem a
base de nossa organização política pelo menos duzentos anos e que devem ser assegurados
pelo Estado a todos os cidadãos indistintamente. Acerca deste aspecto da igualdade de
cidadania vimos com Rawls e Dworkin, que a ideia pretendida em impossibilitar a violação
desses direitos e liberdades é salvaguardar a cada indivíduo sua autonomia, mesmo que a
supressão desta, ainda que seja a supressão da autonomia de um único indivíduo, se dê devido
à deliberação ou vontade majoritária da população ou promova de algum modo o bem
comum.
Em segundo lugar, o fato de que se trata de uma democracia torna evidente a exigência
de que os cidadãos não podem ser excluídos das discussões que versam sobre questões
públicas. Já que nessas discussões, o que está em jogo é o destino de todos ou, em outros
termos, a determinação da distribuição, aplicação ou acumulação dos bens que são comuns a
todos, não se pode negar que todos devem poder participar delas como iguais. Este aspecto da
igualdade política nossa tradição política também engloba. Ela, inclusive, delega ao Estado o
papel de, sempre que possível, promovê-lo e incentivá-lo, o qual talvez não tenha outro
caminho senão, tal como assevera Taylor, estabelecer as condições tais nas quais as várias
instituições que o compõem tenham mais poder político e, consequentemente, mais autonomia
para poder determinar, inclusive, o tipo de razões serão consideradas válidas nas discussões
ocorridas em seu seio, fazendo com que, assim, os cidadãos possam ser mais engajados na
vida política de sua sociedade, o que, como vimos, é bom ressaltar, não é rechaçado pelos
liberais, sendo, até mesmo, apoiado por eles.
Assim, ao juntarmos estes dois aspectos, podemos ver que, embora a igualdade
política envolva necessariamente o resguardo de direitos individuais aos cidadãos, garantindo-
99
lhes uma esfera de atuação privada livre de interferências externas indevidas, ela não se
restringe unicamente a isso, ela é um pouco mais do que isso. Caso o intuito seja realmente
igualar a todos politicamente, é preciso que o Estado, seguindo as nossas tradições políticas,
tanto as advindas de autores mais liberais como Locke e Kant como as advindas de autores
conhecidos como mais republicanos como Aristóteles e Rousseau, conciliando-as ou, ao
menos, tentando fazer isso, assegure mais do que direitos individuais e direito de voto na
escolha de representantes, é preciso que ele assegure, sobretudo, igual oportunidade de
participação. A ideia é que ele assegure verdadeiramente a todos os cidadãos, sejam ricos ou
pobres, letrados ou não etc., a opção de participar ou não da vida política. Entendendo deste
modo, podemos dizer que os dois tipos de igualdade, quando corretamente compreendidos,
mostram-se interdependentes, embora um possa ser entendido como prioritário ao outro. De
um lado, a preservação das liberdades e direitos individuais exige a participação ativa dos
cidadãos para que as instituições não caiam nas mãos apenas daqueles indivíduos mais
gananciosos e que querem concentrar o poder político excluindo todos os outros cidadãos. Por
outro, tal participação exige o estabelecimento dessas garantias constitucionais para que todos
possam ter segurança para assumir publicamente as posições que acreditar, sejam estas quais
forem.
Com esta caracterização da igualdade política encerramos o terceiro e último capítulo.
Aqui tivemos a pretensão de apresentar mais um aspecto da noção de igualdade, neste caso,
sob o ponto de vista da democracia. Lembrando que no primeiro capítulo, ao analisarmos esta
noção sob a perspectiva do exercício da autonomia e no segundo, sob a perspectiva da justiça
distributiva, pretendemos mostrar a possibilidade de pequenos reparos ou talvez apenas de
certos aprofundamentos à teoria liberal, tal como a apresentada por Rawls, isto é, ao
liberalismo concebido como político. Neste capítulo, ao analisarmos tal noção sob o aspecto
da democracia, não pudemos pretender mais do que apresentar pequenos aprofundamentos,
visto que a nossa apropriação das críticas comunitaristas de Taylor e Walzer lançadas contra a
teoria liberal no que diz respeito a este aspecto da igualdade não evidenciou uma possível
carência desta última, mas unicamente certas noções já tocadas por ela que talvez precisassem
ser mais ressaltadas.
100
4. CONCLUSÃO
4.1 Chegamos, enfim, à conclusão da dissertação. Estando corretos ou não em seu
desenvolvimento, acredito que alcançamos o nosso objetivo principal, qual seja, o objetivo de
contribuir com a discussão, mesmo que negativamente, sobre a mitigação das desigualdades
indevidas em nossa sociedade democrática liberal ou, em outras palavras, o objetivo de
contribuir na elucidação do igualitarismo a ser buscado nas sociedades liberais. Tenho ciência
de que tal projeto em si, a saber, alcançar na prática a igualdade, tal como abordada por nós,
nessas sociedades, talvez esteja fadado ao fracasso, sendo sua concretização, na verdade,
impossível, não passando de uma ficção ou uma utopia, tentar formular uma versão do
liberalismo verdadeiramente igualitária. Do mesmo modo, também não ignoro que seja um
tanto estranho e, talvez, não factível pensar a noção de igualdade como se fosse dividida em
partes independentes e autônomas, entendendo-a sob o aspecto da autonomia, da justiça
distributiva e da cidadania, como se fosse possível aplicá-la em um aspecto excluindo por
completo os demais.
Sobre este último tópico, realmente, ao que parece, não é possível que, numa
comunidade política, busque-se igualar verdadeiramente duas pessoas em um dos aspectos
referidos, sem que os outros dois não estejam, de algum modo, implicados. Neste sentido,
não podemos deixar de notar que os temas de cada capítulo se confundem e que é difícil
separá-los. Um remete ao outro, e cada um parece dependente dos demais. Não pretendo
negar este fato. Aqui também, apesar de analisá-los separadamente, busco um fio condutor em
todos. Em outras palavras, busco uma compreensão una dessa noção, compreensão esta que
conta de nossas intuições gerais, e que possamos tomar como base para julgar se de fato
todos estão sendo tratados como iguais em uma democracia liberal, e também determinar
quando alguém é tratado indevidamente de um modo desigual. De outro modo, pretendo
apenas apontar para uma possível divisão analítica de modo a poder ressaltar alguns dos
elementos que entendemos como importantes das discussões a respeito da igualdade em
nossas sociedades.
É fundamental não perder de vista que o que está em jogo em nossa discussão em todo
este texto é, em última instância, qual deve ser o papel do Estado. Deste modo, seguindo as
investigações de Rawls, a nossa preocupação, é bom que se diga, é com o dever ou as
obrigações do Estado ou nas palavras de Rawls, das principais instituições sociais e não
dos grupos sociais, dos indivíduos ou dos cidadãos em particular. Neste sentido, note-se que
durante todo o desenvolvimento do texto nossa atenção esteve direcionada sempre às ações do
101
Estado que pudessem levar à igualdade de seus cidadãos. Em primeiro lugar, procuramos
investigar como ele deveria se portar para que os seus membros pudessem ter melhores
condições para poder ser iguais em autonomia. Em segundo, procuramos investigar como ele
deveria estruturar suas instituições de tal forma que estas pudessem se aproximar um pouco
mais de ser efetivamente justas, isto é, de garantir uma consideração igualitária e justa a cada
um de seus cidadãos. E, em terceiro, procuramos investigar, por fim, como ele deveria agir
para garantir que os seus membros pudessem se sentir como de fato membros de tal Estado,
ou seja, como seus cidadãos, iguais a qualquer outro, possibilitando que cada um, assim como
qualquer outro, pudesse ter iguais oportunidades de participar da vida política de sua
comunidade.
4.2 Feito esse preâmbulo, podemos, então, passar às nossas conclusões propriamente ditas.
Note-se antes disso que mesmo que tenhamos razão em nossos apontamentos das
insuficiências da teoria e da prática liberais ou, mais precisamente, do liberalismo tal como
apresentado por Rawls, acrescido de possíveis reparos ou, o que talvez possa representar
melhor esse caso, de possíveis aprofundamentos ou contribuições a uma compreensão mais
aprofundada do mesmo, suscitados pelas críticas comunitaristas, sobretudo pelas críticas de
Walzer, estes não parecem poder solapá-lo. Tais apontamentos não constituem um conjunto
de críticas capaz de tanto. Afinal de contas, eles em nada ameaçam as teses liberais mais
fundamentais quanto ao desenho institucional justo, que afirma a noção de igualdade humana,
a defesa da autonomia e do exercício das liberdades de todos, a inviolabilidade dos direitos
fundamentais, a neutralidade das instituições básicas da sociedade etc. Neste sentido, não
podemos negar a força e a importância de tal compreensão política, e também não podemos
negar que para que se possa oferecer um tratamento realmente igual aos indivíduos em nossas
sociedades não precisamos descartá-la completamente.
Quanto ao tratamento que dedicamos ao significado da igualdade nas sociedades
democráticas liberais, vejamos, finalmente, as conclusões a que chegamos em cada um dos
capítulos trabalhados neste texto. No que diz respeito ao primeiro aspecto abordado, qual seja,
a igualdade de liberdades ou de autonomia, seguindo a nossa hipótese interpretativa,
entendemos que é possível, ao menos, aproximarmo-nos de sua concretização dentro de uma
sociedade liberal, ou seja, que é possível, ao menos, em tais sociedades, aproximarmo-nos de
considerar os indivíduos, mesmo com suas diferenças religiosas, ideológicas, morais etc., com
iguais liberdades (ou com igual autonomia), respeitando igualmente o exercício livre da
102
concepção de bem professada por cada um. Para isso, contudo, como sustentamos, não basta a
instituição de um Estado absolutamente isento, que, em nenhuma circunstância, discrimina os
seus membros, tratando a todos como formalmente iguais. De outro modo, entendemos que
necessitamos, diferentemente, de uma compreensão do Estado como mais engajado na busca
dessa igualdade, de um Estado que se esforce para igualar o status social dos seus membros,
fortalecendo política e economicamente, quando houver necessidade, os grupos nos quais
estes estão inseridos.
É importante grifar que isso não significa, entretanto, que endossemos a tese de que se
deve desconsiderar completamente a proposta da neutralidade das instituições básicas da
sociedade feita por Rawls. Não é o caso. A hipótese sugerida foi a de que talvez esta proposta
não seja conflitante com a visão de um Estado que, por vezes, precisa intervir na sociedade
discriminando (positivamente) os seus cidadãos. Se isto proceder, significa que o que
precisamos realmente é aprofundar um pouco mais a noção de neutralidade das instituições
básicas, mostrando que ela pode, tal como propõe Rawls, reduzir-se aos objetivos professados
socialmente, podendo o Estado, assim, sem abrir mão dessa neutralidade, apresentar posturas
mais interventoras tal como faz quando promove, por exemplo, ações afirmativas –, que
possam, tal como reivindicam os comunitaristas, fortalecer os grupos vulneráveis na
sociedade para que, enfim, todos os indivíduos que nela habitam, vinculados a grupos
vulneráveis ou não, possam ter mais chances de ter iguais possibilidades de agir
autonomamente.
No que concerne ao segundo aspecto, à igualdade sob a perspectiva da justiça
distributiva, entendemos, de igual modo, que um Estado liberal, com seus recursos, também é
capaz de propiciá-la, garantindo uma justa estrutura de distribuição de bens a seus cidadãos.
Tomando como pressuposto o fato de que se deve garantir a autonomia a todos os cidadãos, o
que, normalmente entende-se que é feito nestas sociedades através da asseguração de certos
direitos individuais a todos, para que cada um possa fazer livremente suas escolhas e, com
isso, responsabilizar-se por elas (e exclusivamente por elas), entendemos que tal
compreensão, ao buscar distribuir os bens sociais a cada um de acordo com o seu mérito, isto
é, de acordo com o sucesso ou não resultante de suas escolhas, busca, como consequência, a
própria justiça.
A observação que fizemos neste ponto é que fundamental nesta compreensão é, sem
negar a sua importância, não perder de vista que duas noções são essenciais, a saber, a
primordialidade da igualdade de status de cidadão e a ampliação da noção de mérito, e que,
embora algumas vezes possam não ser assim concebidas, devem lhe ser associadas. Neste
103
sentido, quando pensamos aqui o papel do Estado, ou melhor, das instituições básicas
podemos observar que é claro que elas na medida em que são neutras devem resguardar iguais
direitos a seus cidadãos e apenas distribuir a cada a um o que lhe é devido de acordo com o
que merece. No entanto, isso não significa que elas não possam considerar a cidadania como
critério, mérito ou qualificação primeira da igualdade, não o resultado de suas realizações.
Não significa, portanto, que os cidadãos não possam ser encarados como merecedores de
igual consideração justamente porque são igualmente cidadãos e, depois disso, não significa
que, às vezes, o Estado não possa assumir uma certa postura ativa, tomando a noção de
mérito, quando necessário, como mais ampla, vendo esta diferentemente conforme a esfera na
qual será aplicada. Significa sim, por outro lado, que, quando tiver que distribuir os bens
comuns aos cidadãos, embora possam ser neutras quanto aos objetivos professados, não
considerando um ou outro projeto destes como intrinsecamente superior ou inferior, bem
como recomenda Rawls, elas não precisam, contudo, ser cegas às diferenças e desigualdades
estabelecidas entre eles, podendo, por conseguinte, aproximar-se de tratar a todos como
realmente iguais.
E, por fim, no que se refere ao terceiro aspecto, à igualdade política, entendemos que
um Estado liberal também é capaz de garanti-la, possibilitando aos seus cidadãos, deste modo,
realmente uma igualdade de participação política. Assumindo que os indivíduos que
convivem nestas sociedades são, ou devem ser, autônomos, entende-se que tal igualdade é
alcançada quando é garantido que todos possam escolher se tomarão parte ou não nas
deliberações das mesmas, isto é, se participarão ou não das decisões sobre os seus rumos. A
ideia é que todos aqueles caracterizados como cidadãos conceito que esperamos que, cada
vez mais, abarque mais pessoas –, sejam estes pobres, de etnias, culturas ou religiões diversas
etc., tenham reais condições para de fato como iguais poderem fazer esta escolha, decidindo
como e quando participarão.
É importante ressaltar que para isso, não negamos, a garantia da inviolabilidade dos
direitos individuais de todos, garantia genuinamente liberal, é crucial. Pois, é realmente
importante que os cidadãos possam se sentir protegidos contra arbitrariedades alheias e, além
disso, que se trata de uma sociedade inserida na tradição liberal, dificilmente se pode negar
este fato. No entanto, somente esta defesa, entendemos, talvez não seja suficiente para
assegurar a igualdade política de realmente todos, o que nos remete a alguns ajustes da teoria
liberal, tal como os propostos pelos comunitaristas, como a diversificação dos foros de
deliberação, a aceitação de que nestas deliberações mais do que agentes racionais, dentre
outros. Neste respeito, o Estado aparece como responsável por fazer estes ajustes, inserindo
104
alguns mecanismos de inclusão dos diversos cidadãos no debate público, além,
evidentemente, de garantir a inviolabilidade dos supracitados direitos, criando condições tais
com base nas quais se estabeleça verdadeiramente uma democracia e que os seus membros
sejam considerados como politicamente iguais.
Assim, com estes breves comentários, podemos, enfim, concluir esta dissertação,
apresentando uma tentativa de resposta à questão que norteou todo este trabalho, a saber, a
questão sobre a suficiência da compreensão liberal tradicional da igualdade nas sociedades
liberais. A nossa resposta é negativa. Como é de se esperar, aliás, de qualquer teoria ou
prática política, o liberalismo em seu formato tradicional, em uma de suas versões mais
recentes, o liberalismo político de Rawls (mesmo complementado pela versão de Dworkin)
não é suficiente. Ele precisa de ajustes para chegar mais perto de concretizar suas intuições
fundamentais. Assim, seguindo o que vimos neste texto, as críticas comunitaristas – as críticas
que tratamos - lhe complementam, aproximando-lhe um pouco mais de uma versão, por assim
dizer, mais engajada, mais comprometida com a busca da igualdade que talvez não tenha
fim. Elas, portanto, ao ressaltar alguns aspectos da associação política, colocam em evidência
para o liberalismo aquilo que, possivelmente, sem tais críticas, ele não perceberia.
Neste sentido, é importante ressaltar que, segundo a interpretação proposta, o
liberalismo e, por decorrência, a teoria de Rawls não sobrevivem às críticas comunitaristas
ao menos, às críticas que apresentamos - como também são reafirmados por elas. Ambos
saem fortalecidos com elas. Com Rawls e os liberais –, por exemplo, podemos ainda,
mesmo depois das críticas, defender que as instituições básicas da sociedade devem ser
neutras, referindo-se esta neutralidade aos objetivos professados socialmente; que elas devem
garantir que os direitos individuais ou fundamentais, dentre estes alguns direitos políticos,
sejam invioláveis e inalienáveis a todos os cidadãos que as compõem, pretendendo, com isso,
que estes sejam igualmente livres, e por vai. Portanto, mesmo que aceitemos de todo as
supracitadas críticas, permanecemos ainda com o essencial do liberalismo. Permanecemos
ainda dentro do próprio liberalismo, visto que não estamos fazendo outra coisa senão, com
estas críticas, tentar tornar este último cada vez mais igualitário.
E, por fim, sobre as críticas comunitaristas, vale ainda salientar que, apesar de elas se
apresentarem, em geral, como abrangentes, visando apontar que a teoria e / ou prática liberais
são incorretas, e que, por este motivo, devem ser descartadas, entendemos, seguindo o
entendimento presente neste texto, que elas podem ser vistas como mais restritas, e menos
ambiciosas, pretendendo apenas fazer algumas advertências, por assim dizer, pontuais ao
liberalismo. A ideia básica trazida por elas, segundo nosso ponto de vista, é somente que o
105
Estado liberal não pode ser completamente indiferente à maneira como se estrutura a
sociedade e também não pode aceitar passivamente que seus membros sejam tratados
indevidamente ou injustamente de forma desigual e nada fazer. Ao descrever cada uma das
críticas em cada um dos capítulos, sugeri esta leitura, entendendo que a finalidade destas
críticas, em todos os casos, é, seguindo a interpretação de Walzer, a de aprimorar a própria
compreensão do liberalismo, apresentando apenas algumas contribuições, aprofundamentos
ou correções a este, visando, com isso, apenas mostrá-lo como mais igualitário.
4.3 Um último comentário que gostaria de fazer é que não ignoro que talvez estruturar essa
sociedade, uma sociedade democrática e liberal realmente igualitária, não seja possível, não
passando tal estruturação de uma grande ficção ou uma utopia. Não ignoro isso e também não
nego. Sobre este intento, todavia, posso dizer que compartilho o entendimento de Santayana e,
por isso, fecho esse texto com uma citação sua, publicada no Jornal do Brasil, no dia 25 de
dezembro de 2009:
as utopias são necessárias. Ao tentar realizá-las as sociedades avançam. Assim, foi
possível abolir a escravidão, universalizar-se o ensino, melhorar o nível de vida e da
saúde para grande parte da humanidade. Antes que o homem faça, é necessário que
sonhe (SANTAYANA, 2009, p. A2).
106
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