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PPGAS - MUSEU NACIONAL - UFRJ
Felipe Süssekind
O RASTRO DA ONÇA
Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do Pantanal Sul
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS),
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção
do título de Doutor em Antropologia Social.
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
Rio de Janeiro, fevereiro de 2010
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O RASTRO DA ONÇA
Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do Pantanal Sul
Felipe Süssekind
Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS), Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.
Aprovada por:
__________________________________
Prof. Eduardo Batalha Viveiros de Castro
__________________________________
Prof. Mauro W. B. de Almeida
__________________________________
Prof. Tania Stolze Lima
__________________________________
Prof.ª Olívia Cunha
__________________________________
Prof. Marcio Goldman
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2010
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Süssekind, Felipe
O RASTRO DA ONÇA: Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de gado do
Pantanal Sul / Felipe Süssekind– Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, 2010.
ix, 348 f: 30 cm.
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
Tese (doutorado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, 2010.
Referências Bibliográficas: f. 343-348.
1. Antropologia da Ciência. 2. Etnografia. 3. Pantanal Sul. 4. Onça-Pintada. 5.
Conservação. 6. Ecologia I. Viveiros de Castro, Eduardo. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.
Para Mirna e Matias, companheiros de viagem,
e para aquela que está para chegar.
Agradecimentos
Agradeço a meu orientador, professor Eduardo Viveiros de Castro, pelo apoio ao
longo de todo o trabalho e o suporte necessário para o trabalho de campo; aos membros
da banca, Mauro Almeida, Tania Stolze Lima, Olivia Cunha e Marcio Goldman, por
seus comentários sobre o trabalho incentivos ao longo da pesquisa de campo; ao CNPQ,
instituição da qual fui bolsista.
Ao biólogo Fernando Azevedo, da Associação Pró-Carnívoros, coordenador dos
projetos Onça Pantaneira e Gadonça, por me receber em sua área de estudo e dar
suporte para a pesquisa de campo; aos biólogos Henrique Villas Boas Conccone e
Ricardo Costa e ao guia de campo João Batista Elias, integrantes das equipes de campo
desses dois projetos. Ao biólogo Ricardo Boulhosa, da Associação Pró-Carnívoros.
A todas as pessoas da fazenda San Francisco, em especial Dr. Roberto Coelho,
Elisabeth Coelho e Carolina Coelho, pelo suporte para a pesquisa de campo; um
agradecimento especial para Giuliano Acunha Dias, Luiz Guilherme Farias, Jacir Teles,
e Eliane Rocha.
Ao proprietário e aos administradores da Fazenda São Bento e todos os seus
funcionários, em especial ao Sr. Ormir do Couto, os campeiros Paulo Acunha, Ramon
Acunha, Edevaldo Antonio da Silva, Evandro Ramos Arguelho e Laucenildo Acunha
Roca. Ao Sr. João Celestino Ramos e a todos nas fazendas Xaraés e Nossa Senhora do
Carmo.
Aos pesquisadores Sandra Cavalcanti, Peter Crawshawe Ronaldo Morato, da
Associação Pró-Cranívoros; ao Centro Nacional de Predadores (Instituto Chico
Mendes). Aos pesquisadores Leandro Silveira, Mariana Furtado e Eduardo de Freitas
Ramos, do Fundo para Conservação da Onça-Pintada.
Por fim, agradecimentos especiais a Flora Süssekind e Jayme Aranha, pelos
comentários fundamentais na elaboração desta tese; e a Ana Luiza Martins Costa e Luiz
Cláudio Marigo pelo incentivo inicial para realizá-la. Aos colegas do Museu Nacional e
da Rede Abaeté, em particular Antonia Walford, Guilherme Sá, Orlando Costa, colegas
no Núcleo de Antropologia Simétrica.
RESUMO
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia
Social.
Felipe Süssekind
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
O RASTRO DA ONÇA: Etnografia de um projeto de conservação em fazendas de
gado do Pantanal Sul
O presente estudo é fruto de uma pesquisa etnográfica que acompanhou os
desdobramentos de dois estudos científicos sobre onças pintadas em fazendas de gado
na região do Pantanal do Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2006 e 2008. A
compilação dos diversos tipos de registros produzidos durante o trabalho de campo
fotografias, arquivos de vídeo, gravações e fichas de entrevistas e diários resultou em
um mapa, a partir do qual esta tese foi estruturada. Dois casos registrados durante a
pesquisa foram tomados como variações de um evento chave, usado como ponto de
partida para a redação da tese, no qual um bezerro é abatido por uma onça-pintada. A
partir deste evento de referência, o trabalho propõe uma cartografia de três redes de
práticas: a pecuária tradicional pantaneira, as caçadas de onça com cães farejadores e as
pesquisas de campo biológicas que utilizam a técnica da rádio-telemetria. Essas três
redes de práticas são estudadas também a partir de conexões transversais definidas em
termos de dispositivos de rastreamento, captura e espreita, e a articulação entre elas
define a rede sociotécnica que este estudo se propõe a descrever, designada como rede
onça.
ABSTRACT
In the trail of the jaguar: conservation on cattle ranches in Brazilian Pantanal
This study is the result of an ethnographic research that accompanied the unfolding of
two scientific studies on jaguars developed on cattle farms in the Pantanal region of
Mato Grosso do Sul, between years 2006 and 2008. The compilation of the various
types of records produced during the work - photographs, video, records of interviews
and field notes - has resulted in a map, from which this thesis has been structured. The
limits of the map correspond to the network that the thesis intends to describe, named
jaguar network. Two cases reported during the study were taken as variations of a key
event, used as a starting point for writing the thesis, in which a calf is killed by a jaguar.
This paper traces three networks of practices tracked in the network-map from this
event of interest: the traditional cattle of the Pantanal, the jaguar hunting with dogs and
biological field work using the technique of radio-telemetry. These three sets of
practices are also studied from cross connections defined in terms of tracking and
capturing devices, and the interaction between them defines the socio-technical network
that this study intends to describe, defined as a jaguar network.
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................... 1
ANEXO A - Imagens introdução ............................................................................ 5
Capítulo 1 – O bezerro predado .................................................................................. 7
1.1.Primeiro bezerro predado: Fazenda San Francisco ........................................... 7
1.2. Segundo bezerro predado: Fazenda São Bento .............................................. 18
ANEXO B – Imagens Capítulo 1 .......................................................................... 28
Capítulo 2: Rede Gado .............................................................................................. 31
2.1. Rastreamento .................................................................................................. 31
2.2. Clube do Laço ................................................................................................ 45
2.3. O abate ........................................................................................................... 50
2.4. Gado Branco ................................................................................................... 60
2.5. Gado Bagual ................................................................................................... 67
2.6. Crianças selvagens ......................................................................................... 80
2.7. Conservação e mercado .................................................................................. 92
2.8. O gado e as onças ........................................................................................... 98
2.9. Cores e sinais: associações não predatórias entre gado e onças ................... 112
ANEXO C – Imagens Capítulo 2 ........................................................................ 115
Capítulo 3 –Tradição de caça .................................................................................. 120
3.1. Onças e fazendeiros ...................................................................................... 122
3.2. Seu Inácio ..................................................................................................... 126
3.3. Caçadores naturalistas .................................................................................. 141
ANEXO D: Zagaieiros ........................................................................................ 169
ANEXO E – Imagens Capítulo 3 ........................................................................ 172
Capítulo 4 – Rede Cães ........................................................................................... 174
4.1. A história do cachorro Gigante .................................................................... 175
4.2. O rastro dos cães .......................................................................................... 181
4.3. Onças em fuga .............................................................................................. 190
4.4. Tonho da Onça ............................................................................................. 199
4.5. O cão mestre ................................................................................................. 212
Capítulo 5 - Rede coleira ......................................................................................... 226
5.1. Captura e divulgação .................................................................................... 228
5.2. A circulação das amostras pela rede científica ............................................ 235
5.3. Conflito e Conservação ................................................................................ 244
Conflito como tema conservacionista ................................................................. 254
5.4. O rastro das coleiras ..................................................................................... 264
ANEXO G – Imagens Capítulo 4 ........................................................................ 282
Capítulo 6: Rede Onça ............................................................................................ 284
6.1. Rascunho para um artigo científico .............................................................. 288
6.2. A onça-pantaneira: esboço para uma descrição associativa ......................... 315
Considerações finais ............................................................................................ 329
ANEXO H – Imagens Capítulo 6 ........................................................................ 332
Referência bibliográficas: ....................................................................................... 334
1
Introdução
A compilação, para este trabalho, de registros diversos, provenientes da pesquisa
etnográfica, resultou num mapa, elaborado a partir de uma série de anotações,
fotografias e listagens de referências, que foram fixadas num quadro. A construção
desse mapa-colagem acompanhou o meu próprio percurso na pesquisa de campo. A
primeira visita que fiz ao Pantanal foi em 2006. Olhando para o quadro, reconheço a
foto do canil da Fazenda Caiman, de um lado, e a do laboratório de campo da San
Francisco, de outro, duas propriedades turísticas na região de Miranda, no Mato Grosso
do Sul. Cada uma dessas fazendas corresponde a um quadrinho separado, e deles os
caminhos se bifurcam em duas seqüências possíveis, que são narrativas como as das
histórias em quadrinhos.
A primeira delas passa pelo Parque Nacional das Emas, em Goiás, e, em seguida,
pela Ilha do Bananal, em Tocantins, ambos visitados em 2007. Depois disso, o caminho
é interrompido bruscamente. Essa interrupção ilustra a negociação fracassada que tive
com o Fundo para a Conservação da Onça Pintada, uma ONG conservacionista, para a
realização da pesquisa etnográfica na Fazenda Caiman, em Miranda. Restam como
registros adicionais desse percurso uma longa troca de emails e um contrato não
assinado.
Foi através dos biólogos que estudavam onças que cheguei à região, e a constituição
de alianças entre eles e os fazendeiros locais, em primeiro lugar, foi o que abriu
caminho para a minha chegada até lá. Apesar de interessados na divulgação de seu
trabalho, no entanto, os pesquisadores com os quais entrei em contato nunca pareceram
à vontade com a idéia de serem, eles também, objetos de estudo, e a inclusão na minha
proposta de um estudo antropológico da rede científica (ou técnica) foi recebida sempre
com reservas por parte deles. O interesse que eu compartilhava com os biólogos era a
estudar as relações entre os moradores locais e as onças, e foi a partir desse horizonte
comum que este trabalho se tornou possível.
A segunda seqüência de quadrinhos no meu mapa é aquela na qual a história se
desdobra por toda a extensão cartografada. Na proposta inicial para este trabalho, eu
tinha pelo menos três objetivos diferentes, aparentemente difíceis de conciliar, que se
mantiveram como temas centrais ao longo do projeto. O primeiro era descrever as
práticas dos biólogos de campo nos estudos sobre as onças. O segundo era realizar uma
2
etnografia das fazendas de gado, com ênfase nos modos de percepção e classificação
dos animais pelas comunidades locais. O terceiro propósito era encontrar caçadores
tradicionais pantaneiros, e, se possível, algum zagaieiro como aquele do conto de
Guimarães Rosa “Meu Tio, o Iarauetê”
1
. Também pretendia acompanhar a captura de
uma onça para a colocação da coleira de rádio, um evento que eu via como uma
interação fascinante entre os métodos tradicionais de caça e a tecnologia empregada
pelos cientistas.
A parte principal da pesquisa etnográfica para este trabalho foi realizada no Pantanal
do Mato Grosso do Sul. A pesquisa se concentrou em duas fazendas de gado da região
que abrigam projetos de conservação de onças-pintadas (Panthera onca) e onças-pardas
(Puma concolor). A primeira delas foi a Fazenda San Francisco, localizada no
município de Miranda-MS, que contava com 114 moradores no período de estudos. A
segunda foi a Fazenda São Bento, com 29 moradores à época, localizada no município
de Corumbá-MS. A distância entre as duas é de cerca de 80 km em linha reta, e ambas
estão situadas na margem do Rio Miranda. Utilizando a divisão do ecossistema em dez
pantanais (CIT), a primeira delas fica na margem direita do rio, na região classificada
como Pantanal de Miranda, e a segunda na margem esquerda, na região do Pantanal do
Abobral.
Além dessas duas fazendas que serviram de bases principais para o estudo, durante o
trabalho de campo também estive durante períodos curtos (entre cinco e dez dias) em
três outras propriedades no entorno dessas duas primeiras. A minha primeira visita ao
Pantanal para dar início à pesquisa, com duração de duas semanas, foi realizada em
março de 2006. A segunda foi apenas em outubro de 2007, concluindo uma longa
negociação para acompanhar um projeto de campo científico que estava sendo iniciado
pelo pesquisador Fernando Azevedo, da Associação Pró-Carnívoros. Posteriormente, a
pesquisa foi dividida em duas viagens de campo, com duração de dois meses cada uma:
a primeira realizada entre março e maio, e a segunda entre outubro e dezembro de 2008.
A divisão em dois períodos foi motivada pelas diferenças ambientais notáveis entre os
períodos regionais da seca e da cheia na região.
O modo que encontrei de mobilizar um campo de estudos, delimitando um lugar
para a minha pesquisa etnográfica, foi o desenvolvimento de uma proposta de trabalho
inspirada em modelos provenientes da literatura conservacionista e da etnobiologia.
1
O conto foi um dos germes iniciais para este projeto.
3
Essa proposta constituiu o principal instrumento de negociação para a realização da
pesquisa, e se baseava na utilização de um questionário com formato semi-aberto,
incluindo vinte perguntas fixas, que foi utilizado ao longo de toda a pesquisa de campo
em um total de sessenta e cinco entrevistas. O uso deste questionário serviu de base para
uma discussão sobre os métodos empregados na minha pesquisa de campo, a partir da
qual procurei colocar em questão diversos impasses entre o enfoque das ciências
naturais e o das ciências sociais.
O projeto original foi orientado principalmente pela leitura de autores ligados à
antropologia da ciência (STS), principalmente Bruno Latour e Donna Haraway, e era
voltado somente para o estudo das práticas científicas no campo da conservação das
onças, o que posteriormente se transformou em um capítulo desta tese. Ao longo da
pesquisa, os focos deixaram de ser apenas a onça e a rede científica e passaram a ser
também o gado e as práticas e costumes pantaneiros. No final, o trabalho tornou-se uma
etnografia de fazendas onde o rebanho dividia o espaço com os animais selvagens e
onde a criação do gado e a conservação das onças e o turismo eram praticados lado a
lado, e procurei descrever todos os atores presentes nesses lugares.
A noção chave para a elaboração da tese foi o conceito de rede formulado por
Bruno Latour, utilizando duas referências principais. A primeira foi o livro
Reassembling the Social (2005), que propõe uma redefinição da noção de ‘social’ como
associação entre elementos heterogêneos (2005: 5), e não como uma explicação “por
trás” dos fenômenos, o que significa um rompimento alguns com modelos canônicos da
sociologia e da antropologia social. A segunda foi o artigo A Well-Articulated
Primatology: Reflexions of a Fellow-Traveller (2000), que coloca em questão as
relações entre os STS (Science and Technology Studies) e a prática científica (neste
caso, a primatologia), argumentando que ambas são disciplinas empíricas.
O trabalho envolveu tanto o estudo do gado quanto de coleiras de rádio, cães de
caça e toda uma série de atores não humanos, além de caçadores, cientistas e
fazendeiros, entre outros. A divisão dos capítulos utilizada se baseou na idéia de seguir
o percurso de determinados atores-chave ao longo do emaranhado de palavras e
imagens no mapa em que a pesquisa etnográfica ao final tinha se transformado.
A descrição, a partir da experiência etnográfica, de práticas de manejo e formas de
classificação do gado pelos vaqueiros do Pantanal, identifica nelas um tipo de
rastreamento visual orientado pelo cromatismo e pelos sinais que marcam o rebanho na
lida cotidiana. Circunscreve ainda o abate das vacas para o consumo interno da fazenda
4
e o processo de fabricação e de utilização do laço como dois modos distintos de captura
dos animais. Procurei abordar as designações regionais do gado a partir de uma
dimensão temporal, ligada à colonização da região pela pecuária e também a partir de
um diálogo com duas fontes etnográficas que apontam para múltiplas relações regionais
entre brabo e manso, doméstico e selvagem.
A captura de onças para a pesquisa científica envolve a utilização de cães de caça e a
assimilação de conhecimentos nativos, e a abordagem do tema se desdobra, de um lado,
na leitura de uma série de fontes literárias sobre as caçadas de onça, e, de outro, em uma
investigação sobre os modos de relação e de designação dos cães de caça como uma
tradição ligada à eliminação das onças que é redefinida como meio de preservação.
As práticas de campo ligadas à conservação e ao manejo das onças são baseadas
principalmente na rádio-telemetria, uma metodologia fundadora da moderna biologia
da conservação, e procurei mapear o uso histórico das coleiras de rádio na região e
também investigar o modo como elas produzem um novo tipo de conhecimento sobre os
animais. A partir de uma série de conexões transversais entre os horizontes de práticas
mapeados pela etnografia, a tese formula, ao final, o esboço de uma descrição da onça a
partir da noção de rede constituída ao longo do trabalho.
5
ANEXO A - Imagens introdução
Cenas do Pantanal na seca, em outubro esquerda) e na cheia, em março direita).
Abaixo está a jangada improvisada para se chegar até o barracão dos peões, no retiro da
São Bento.
6
Mapa da área de estudo com indicação aproximada de onde ficam as duas
fazendas que serviram de base para a etnografia.
7
Capítulo 1 – O bezerro predado
Utilizarei como pontos de partida, a seguir, dois casos semelhantes de predação (de
bezerros por onças). O primeiro foi registrado em março de 2008, na Fazenda San
Francisco; o segundo em novembro do mesmo ano, na Fazenda São Bento. A
apresentação desses dois eventos etnográficos em série, cada um em local e período
diferente, tem como objetivo a constituição de uma espécie de cena de referência ou
acontecimento-chave na etnografia.
1.1.Primeiro bezerro predado: Fazenda San Francisco
No dia 27 de março de 2008, durante uma estadia na Fazenda San Francisco, eu
havia combinado de acompanhar Ricardo Costa, o biólogo de campo responsável pelo
ProjetoGadonça, numa atividade de pesquisa. Sairíamos numa cavalgada em que ele
pretendia circular pela área da pecuária da fazenda, checando sinais de carcaças de
animais. O projeto é um desdobramento da pesquisa de doutorado do biólogo Fernando
Azevedo, sobre a relação entre as onças e o gado na fazenda e na região em torno dela.
Na pesquisa, realizada em 2003 e 2004, foram colocadas coleiras com rádio transmissor
em nove onças-pintadas e duas onças-pardas, capturadas com a utilização de dois
métodos distintos: a caçada com cães e armadilhas compostas de gaiolas de ferro,
utilizando pequenos porcos como iscas vivas.
As onças receberam coleiras de rádio e, em seguida, passaram a ser acompanhadas
por meio de monitoramento diário pelo pesquisador. Além disso, sua pesquisa incluía o
registro sistemático de animais abatidos pela onça na fazenda, dado significativo para o
estudo dos hábitos alimentares das onças. Os casos de ataques ao rebanho doméstico
foram tema de um estudo específico, ligado ao tema do conflito entre fazendeiros e
onças na região.
Quando a pesquisa de Azevedo terminou, e ele precisou ir para os Estados Unidos
defender sua Tese em Biologia da Conservação, na Universidade de Idaho, o projeto se
mostrara bastante interessante para o ecoturismo, uma das principais atividades
econômicas da fazenda. Os donos da propriedade fizeram então uma proposta para que
o biólogo mantivesse uma base local com as atividades de pesquisa, e a fazenda passou
a financiar a maior parte do projeto, incluindo o salário dos funcionários, o combustível
e a manutenção da caminhonete 4x4, além de equipamentos para pesquisa de campo.
8
Outras fontes de recursos para os pesquisadores são as atividades de turismo científico,
quando a pousada recebe pesquisadores ou fotógrafos e cinegrafistas interessados em
acompanhar o dia-a-dia da pesquisa de campo sobre as onças.
Em março de 2006, quando estive na fazenda pela primeira vez, as onças ainda
estavam sendo monitoradas. O monitoramento consistia em saídas na caminhonete do
projeto pela área da fazenda, sendo que o biólogo seguia na parte de trás da
caminhonete, usando um fone de ouvido acoplado a uma antena de rádio, que girava
acima da cabeça. Na época, o carro era dirigido por Wendel, o guia de campo do
projeto, um morador da região com experiência anterior em caçadas de onça. As onças
usavam coleiras que emitiam sinais em diferentes freqüências, a partir dos quais era
possível identificá-las individualmente. A partir daí, era feito o mapeamento com a
localização das onças, em coordenadas obtidas com aparelho GPS portátil.
Além disso, o projeto também trabalhava com a identificação de diversos animais
abatidos pelas onças na fazenda, por meio da coleta de carcaças, de ossadas, e da análise
de fezes de onças encontradas na área de estudo. Os pesquisadores também utilizavam
armadilhas fotográficas para identificar as onças, sendo o padrão das pintas de cada uma
o equivalente a uma impressão digital humana. As onças foram monitoradas pelo
biólogo até o início de 2007, quando terminou a vida útil das baterias dos transmissores
acoplados às coleiras de rádio-telemetria (que durou cerca de quatro anos).
Ao longo do ano de 2008, durante os períodos mais longos de pesquisa de campo na
fazenda, acompanhei algumas vezes este último pesquisador enquanto registrava casos
de predação. A maior parte dos animais encontrados por ele eram capivaras e jacarés,
principalmente na área da lavoura de arroz, sendo que a predação de capivaras por
onças era o tema do projeto no qual ele estava trabalhando naquele período.
Na manhã do dia 27 março de 2008 com a qual iniciei a narrativa nesta seção, eu
combinara acompanhar o biólogo numa cavalgada pelas áreas de pastagem da fazenda.
Os restos de uma ema haviam sido encontrados dias antes, e as armadilhas fotográficas
instaladas no local, e apontadas para a carcaça da ave, haviam capturado imagens de
uma onça-parda voltando até lá para se alimentar. As pardas costumavam andar pelas
áreas mais altas da fazenda, região de cerrado, e haviam atacado alguns carneiros nos
últimos meses naquela mesma área.
Ricardo pretendia investigar casos de predação de onça-parda, uma notícia de última
hora, no entanto, o levou a uma mudança de planos. Estávamos na estrebaria, ao lado da
sede do Projeto Gadonça, aprontando os cavalos, quando um dos guias de turismo da
9
fazenda avisou ao biólogo que o pessoal da pecuária tinha achado um bezerro predado
por uma pintada. As atividades turísticas da pousada giram em torno da observação de
animais, e os guias, todos moradores da região, estão sempre informados a respeito das
onças, assim como de rastros de anta e bandos de queixadas. Alguns animais estão por
toda a parte, como emas, capivaras e jacarés. Depois do encontro com o guia, tiramos a
tralha de montaria dos cavalos e eles foram soltos, e seguimos no carro do projeto de
encontro ao vaqueiro que havia encontrado os restos do novilho.
O primeiro evento de bezerro predado pela onça, que eu gostaria de registrar, se
daria cinco dias depois da minha chegada à propriedade. Seu Manoel, um dos
vaqueirosda fazenda, fora quem encontrara a carcaça. Ele narrou a descoberta da
carcaça e orientou Ricardo em relação ao local preciso onde devia procurá-la.
Aquele era o primeiro caso de gado atacado por onça na fazenda desde que eu havia
chegado, e provavelmente o único durante o tempo que permaneci nesta área (umas oito
ou nove semanas no total). Depois de conversarmos com o retireiro, Ricardo e eu
partimos para o local, deixando o carro estacionado ao lado da porteira que dava para o
retiro onde moram arrendatários de uma parte da plantação de arroz. A partir desse
ponto, seguimos a pelo capinzal ao lado da estrada, usando a picada que
acompanhava a cerca daquela invernada. Observando urubus pousados nos postes da
cerca, chegamos até a carcaça do animal, um novilho de dois anos, já bem decomposta e
quase totalmente devorada por urubus e carcarás.
Tirei fotos da cena, enquanto o biólogo fez anotações, pegou as coordenadas do GPS
e usou um facão para tirar a cabeça do animal, que queria levar para a coleção do
projeto. Em seguida, mostrou os furos no alto do crânio do bicho, provocados pela
mordida da onça, que também fotografei [ANEXO 1]. Voltando à caminhonete, colocou
o crânio apodrecido na caçamba, e seguimos uma estrada paralela à faixa de floresta que
se estende por toda a área de lavoura de arroz da fazenda. O local onde o havíamos visto
na outra noite era bem próximo, o que fazia Ricardo supor que o animal que tínhamos
avistado no outro dia era o mesmo que atacara o bezerro, suposição baseada também no
fato de a onça estar “de barriga cheia” na ocasião.
Ele já havia identificado o animal, um macho apelidado na fazenda de Grandão, que
vinha sendo observado pelos guias de turismo da fazenda e pelo pesquisador juntamente
com seu irmão, Orelha, apelidado assim por causa de uma marca peculiar, um rasgo na
orelha que permitia que fosse identificado e diferenciado. Os dois eram tidos pelo
pesquisador e pelos guias como irmãos e identificados como filhotes que foram
10
observados na fazenda com a mãe, uma das onças de coleira monitoradas anteriormente
pelo Projeto Gadonça, batizada de Elisa. Era surpreendente para os pesquisadores que
estivessem sendo observados andando juntos até a idade adulta, quando a expectativa
era que estabelecessem territórios individuais. Ricardo lamentava que os animais não
estivessem sendo monitorados pelo projeto por meio da telemetria, e havia uma
demanda de novas capturas para uma nova fase de pesquisa na fazenda, tema que estava
sendo discutido na época.
A Fazenda San Francisco tem uma área total de 15 mil hectares, sendo subdividida
internamente em três áreas distintas: a da pecuária, que fica na parte mais alta, onde
também estão situadas a sede e a pousada, com cerca de três mil hectares; a da lavoura,
que tem aproximadamente quatro mil hectares, e a da reserva, uma área de preservação
particular que se estende pelos oito mil hectares restantes, composta na maior parte das
matas entre a margem do Rio Miranda, limite norte da fazenda, e o Corixo São
Domingos, um braço do mesmo rio, que corta a propriedade.
A maior parte do rebanho pertence ao gado Nelore, o gado branco predominante em
toda essa região, mas a fazenda também trabalha com a raça Montana. A fazenda
produz gado de corte e também cria touros, vendidos como matrizes, utilizando técnicas
de reprodução artificial, como explica Dr. Roberto Coelho:
Trabalhamos com touro também, mas a força do trabalho aqui é a
inseminação. Porque, com inseminação, você usa o sêmen somente de
animais excepcionais, entendeu? Animais que são testados e aprovados e
que têm uma quantidade grande de filhos avaliados. (...) Então, como a
gente quer ter um progresso genético rápido, melhorar as características do
gado, então a gente usa mais a inseminação aqui.
Durante o último período de viagem de campo, em outubro de 2008, tive notícias
de que um bezerro avaliado em mais de 10 mil reais havia sido abatido por uma parda
na San Francisco, sendo que a média de preço para uma cabeça de gado de corte na
região, na época, era cerca de 600,00. Na entrevista feita com o proprietário, Dr.
Roberto, as pardas são apontadas por ele como responsáveis pelos maiores prejuízos na
sua produção:
Agora, o problema maior que ocorre é em cima da predação dos bezerros
pequenos. Na época da parição, tem onças especialmente a onça-parda
que se especializam em pegar o bezerrinho novinho. Ela sabe que aquilo
11
é uma presa fácil. O bezerro nasce, e geralmente a vaca fica em volta dele,
lambe ele, até que ele levante e consiga dar a primeira mamada, e tal... Ela
fica. O primeiro dia ela fica o tempo todo ali com ele. Ele não consegue
andar muito atrás dela. Então, logo, logo, depois da primeira mamada, ela
vai deixar ele numa moitinha e ela vai pastar. E nessa hora a onça-parda já
acostumou, observou, já percebeu essa rotina, e a onça-parda vem e
come o bezerro. A parda é mais flexível. A onça-parda é um bicho terrível.
Os ataques das onças-pardas aos carneiros também seriam abordados pelo
proprietário na palestra que fez durante o encontro (Workshop) organizado na fazenda,
quando falou a respeito da parceria entre a fazenda e o projeto de conservação das
onças:
Nós tínhamos um capril aqui na fazenda que era uma cerca baixa, com uma
casa de mais ou menos seis por oito, para em dia de chuva poder fechar. A
casa era totalmente protegida, mas tinha o pátio externo. Ele resolveu,
funcionou bem, para ataque de onça-parda, durante muitos anos. Desde
mais ou menos 1980 até uns quatro anos atrás. Daí, a onça-parda começou
a freqüentar esse capril pular, pegar ovelhas e sair. Nós ficamos uns dois
anos desse jeito até que, por orientação do projeto, decidimos construir um
capril todo telado. Uma parte dele é coberta, mas mesmo a parte que pega
sol é telada por cima e pelos lados todos. Agora, o problema que surgiu
esse ano foi o seguinte: apesar de ser num terreno firme, seco, durante o
período chuvoso começou a atolar até o joelho dentro da área fechada, e o
pessoal começou a deixar eles [os carneiros] soltos, porque ainda tem uma
área externa em volta desse. ela começou a pegar outra vez. Eu não
podia deixar dentro, porque os pequenininhos morriam pisoteados, e se
deixasse fora, a onça pegava. Um problema.
Em relação ao gado, o estudo realizado na fazenda por Fernando Azevedo durante
os anos de 2003 e 2004 apurou 12 mortes causadas por predação de onças no primeiro
ano, e 20 mortes no ano seguinte. As onças-pintadas foram responsáveis por 70% dos
ataques e as pardas por 30%. Os casos de predação corresponderam a 19% do total de
casos de mortalidade do rebanho da fazenda durante o período, sendo menos comuns
que outras causas, como picadas de cobras e a ingestão de ervas venenosas (Azevedo;
Murray, 2007). As taxas de predação na San Francisco são as mais baixas registradas
12
pelos projetos de pesquisa realizados nessa região do Pantanal até o momento
(Crawshaw & Quigley; Cavalcanti & Soslaio; Siveira). Na apresentação do projeto para
proprietários rurais, em maio de 2008, o biólogo faria um breve histórico do projeto,
apresentando seus objetivos:
O Projeto Gadonça teve início no ano de 2002, quando eu fiz a minha
primeira visita à essa região aqui. Um breve Histórico: eu trabalhava com
um projeto de ecologia de onças no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná,
e estava buscando uma área pra fazer o meu Doutorado. que eu
precisava duma área que tivesse onça bastante onça e gado bastante
gado e que houvesse uma interação entre eles. Que é conhecida como
uma interação negativa: a onça comendo o gado, causando prejuízo, e as
pessoas matando a onça.
O trabalho da fazenda com ecoturismo foi um fator determinante na vinda do
pesquisador, como ele relata neste outro trecho da apresentação:
E aí nós iniciamos uma idéia que era de fazer um projeto científico (...) mas
também tirar algo prático do estudo científico, que era aumentar, de
alguma forma, a visualização das onças aqui na fazenda. (...) E, ao passar
dos anos isso deu muito certo. Hoje em dia, uma das fontes de recurso mais
importante da fazenda é o turismo, a visualização da onça. Independente do
projeto.
A onça é o animal mais procurado pelos guias da fazenda nos passeios turísticos, e o
principal atrativo da fauna local para a maior parte dos visitantes; muitos deles chegam
à San Francisco em busca de vê-la. O gerente administrativo da fazenda, em
entrevista, aponta o projeto de pesquisa como fator importante para o desenvolvimento
do turismo. Por outro lado, afirma que as onças ficaram mais difíceis de ver no período
em que foram capturadas, e que isso foi um problema para a atividade. O fato foi
observado também pela maioria dos guias de turismo da fazenda entrevistados no
decorrer da pesquisa.
Uma alternativa para o uso dos cães, método de captura que encontrava resistência
por parte também dos proprietários da fazenda, seriam as armadilhas, que funcionavam
com um sistema simples de roldanas e com a utilização de iscas vivas. [FOTOS]
Algumas onças tinham sido capturadas durante o período do projeto com este método, e
13
um fato curioso a respeito disso era que determinada onça (Elisa) tinha caído cinco ou
seis vezes na mesma armadilha, alimentando-se do porco que servia de isca. Depois da
coleta de amostras biológicas e da checagem do equipamento, não havia mais motivo
para os biólogos a sedarem, e aparentemente a onça adaptou-se ao procedimento,
percebendo que seria solta mais tarde. O hábito de dar nomes às onças é uma tradição
das pesquisas de campo sobre a espécie, e foi incorporado às atividades de turismo da
fazenda, onde algumas onças de coleira ainda estavam sendo avistadas em 2008, apesar
dos aparelhos não funcionarem mais.
Além de criar gado e ser uma pousada turística, a San Francisco trabalha com arroz
irrigado desde a década de 80, o que confere a ela características ecológicas únicas na
região. Ainda em 2007, numa das minhas primeiras visitas à fazenda, fiz uma entrevista
com seu proprietário, Dr. Roberto Coelho. O arroz irrigado foi adaptado às pastagens
alagadas da região pantaneira, num projeto iniciado pelo pai dele, Dr. Hélio Coelho,
aproveitando a topografia plana e os recursos hídricos abundantes da região.
O cultivo de arroz gerou também um processo ecológico com múltiplos
desdobramentos para a fazenda, de acordo com Roberto Coelho. Na entrevista gravada
com ele, pergunto a quais condições específicas o fazendeiro atribuía a pouca
quantidade de ataques ao gado na propriedade, apesar da presença comprovada de onças
da região. Ele responde:
Depois que veio a agricultura, foi construída uma rede de canais, de valetas
para a drenagem das águas e valetas para conduzir a água da irrigação.
Então, hoje em dia, a cada cem, cento e cinqüenta metros, você está
encontrando um canal. Esses canais ficam com água o ano todo. Então
esses canais passaram a ser um habitat para capivara. Capivara e rato, em
função da agricultura.
E aumentou bastante o número de capivaras, e jacaré também, porque os
canais passaram a ter uma grande quantidade de peixe, sapo, perereca...
Então, houve um aumento de oferta de alimento, inicialmente para
capivara, jacaré, e isso acabou alimentando a onça também. A onça
começou a se alimentar dessas capivaras e desses jacarés, e deixou de se
alimentar tanto do rebanho.
Outro fator a contribuir para a diminuição das taxas de predação, de acordo como
seu argumento, é o seguinte:
14
Mas também tem uma questão estratégica. Porque nós temos a parte de
Reserva Legal, uma faixa grande beirando o Rio Miranda, depois nós temos
a agricultura de arroz, e depois é que nós temos essa parte mais alta onde
está o rebanho. Então, a agricultura, com esse fornecimento de capivara e
jacaré próximo da Reserva Legal e do Rio Miranda, que é o habitat
preferido da onça, praticamente formou um colchão de amortecimento.
Então, o que aconteceu é que, geograficamente, o nosso formato está nos
beneficiando muito em termos da predação da onça. Ela está tendo o nicho
dela mais separado.
O bezerro predado, que serve de fio condutor para esta narrativa, foi encontrado
justamente nessa “área de amortecimento”, na fronteira entre as áreas de pastagem e os
campos de arroz. Na mesma tarde em que o animal foi encontrado, fui até um dos
retiros da fazenda para fazer uma entrevista com Seu Manoel, o vaqueiro que havia
achado a carcaça do bezerro. Ele trabalhava havia 12 anos na fazenda, e contou que
começou a trabalhar com o gado ainda criança, com oito anos de idade. Morava com a
família a esposa e uma das filhas num dos retiros
2
da propriedade, aonde tomava
conta de uma média de mil e duzentas cabeças de gado. Abaixo, transcrevo a parte da
conversa em que ele narra o encontro do bezerro:
Foi na segunda cedo, eu fui tratar a boiada. cheguei e vi: a cerca
estourada, o gado esparramado... vi urubu e fui ver o que é que era.
Chegando perto eu vi que a mula não queria encostar; por causa do cheiro
dela que estava ali. eu consegui chegar e vi que ela comeu o couro
da barriga dele.
A mula dá o aviso?
Dá. Ela sente; porque a onça deixa o cheiro. Sente o cheiro. Ela não quis
chegar, mas de jeito nenhum. Eu deixei a mula e fui. eu vi que era
onça: sinal dos dentes dela. Arrumei lá, tirei a boiada e o rapaz tava
falando pra mim que ouviu pegar, era cinco e meia da tarde. Dia ainda. Boi
berrando, gado correndo.
2
Os retiros são pequenos sítios afastados da sede da fazenda, onde moram uma ou mais famílias, e de
onde o capataz administra uma determinada área e parte do rebanho.
15
Na terça, eu passei lá, e ela voltou e comeu o resto do boi. Escorneou
[abriu] o boi e comeu o resto. Ela comeu mesmo o couro da barriga no
primeiro dia. No segundo ela veio e comeu o resto.
E como é que ela pegou o bicho ali?
Ali, o boi estava provavelmente pastando, ela pulou nas costas do boi,
mordeu no cupim. Aí com a mão ela fisgou o nariz do boi e mordeu na nuca
do boi. Depois que ela morder na nuca do boi, já era. O boi não tem
mais reação nenhuma. Porque ali, enquanto o boi estiver se batendo, ela ta
apertando. E ali foi a hora que ela matou o boi.
E comeu ali mesmo?
Comeu ali mesmo. Nem arrastou, porque ali era um lugar apropriado pra
ela, sujo [fechado de mato]. Quando ela mata num lugar limpo, ela procura
puxar o boi pra um lugar sujo, mas como ela matou num lugar sujo, ela
nem tirou do lugar, ficou ali mesmo.
E o senhor já viu essa onça aí?
Já. Já vi umas duas vezes; eu vi. na frente e na bomba, eu e ela. Duas
vezes. Agora, a turma viu duas vezes na aviação, ali deitada. Ela mora
aí, essa onça, nesse lugarzinho aí. Tem ela e uma fêmea. A fêmea de vez em
quando está com filhote. Mas faz tempo que eu não vejo a fêmea. Mas o
macho, ele mora aí. É esse que pegou o boi. Ele é morador. É a rota dele.
Ele faz a rota dele, ida e volta. que ele pega capivara, pega queixada,
pega tudo.
E como é que é? Tem só esse macho morando aqui, aí os outros não vêm?
Não. é o território dele, os outros não vêm. ele mesmo. Porque a
gente mesmo ele. É o macho. Agora, perto do rio tem bastante. Lá
tem muita onça.
Esse é que fez o território pra cá...
Esse é antigo, aí. Morador velho. Tanto que ele é até manso, ele não é
arisco. A gente e ele não muita importância pra gente, não quer
correr, nada. Manso ele.
16
E o senhor toma conta de quantas cabeças aqui no retiro?
Tem época que está com 1.500, 1.200. Agora está com mais de mil.
E tem onça que pega só gado?
Tem. Tem a onça que vicia no gado. Pega só gado.
E o senhor diria que a onça é uma ameaça pro homem? Ela ataca o homem?
Se ela estiver com fome, ela ataca. Qualquer um. A onça ataca se ela
estiver com fome. Se ela não estiver com fome ela não ataca.
Seu Manoel afirma, entre outras coisas, que o lugar sujo” é apropriado para a onça.
No vocabulário pantaneiro, o sujo lugar de mato fechado é oposto ao campo aberto
– o limpo. Também diz que a onça comeu só o couro do boi no primeiro dia e voltou no
dia seguinte, quando “escorneou” [abrir, ele mostra com um gesto] a carcaça da onça.
Um mês depois, eu acompanharia o abate e a carneação de vacas da fazenda, e observei
que o evento apontava para uma relação de familiaridade entre o vaqueiro e a onça,
estabelecida não apenas pelo alimento comum, mas principalmente em relação à morte
animal e ao conhecimento de seus cortes, carnes e entranhas. As carcaças de gado
encontradas comidas pelas onças demonstram seus cuidados peculiares e preferências
alimentares: ela rasga o couro, retira a buchada (intestinos, etc) e começa a comer a
carne “de primeira” – o peito e as costelas do boi.
O biólogo Ricardo acompanhou a entrevista feita com o retireiro, no dia em que o
bezerro foi encontrado. Depois comentou comigo que acreditava que o pantaneiro
estava se referindo, na verdade, a vários felinos, e não apenas a um, quando falava sobre
o “velho morador” dali. Observou que o animal que avistamos na outra noite,
identificado por meio de fotos como Grandão, estava sendo visto constantemente em
outra parte da fazenda, e estaria circulando pouco tempo nas imediações do retiro de
Seu Manoel. O comentário é interessante na medida em que exemplifica as perspectivas
diferentes do vaqueiro e do biólogo quando falam da onça. O segundo se baseia em
evidências empíricas, em registros fotográficos e dados coletados no campo, enquanto o
primeiro, também a partir da experiência empírica, descreve a onça em termos da
relação de vizinhança.
Os dois crânios coletados, o do bezerro encontrado por Seu Manoel, e o do
queixada, foram levados para a sede do projeto Gadonça. Para prepará-los, o biólogo
deixou-os mergulhados em tonéis de água por alguns dias. Depois de livres das partes
17
moles, ele mergulhou os crânios numa solução contendo cloro e água oxigenada.
Fotografei os crânios do novilho e do queixada depois de limpos, e em ambos é possível
observar o furo produzido pela mordida da onça-pintada na base do crânio dos animais.
[ANEXO 2]
No laboratório do projeto, uma sala lateral contígua ao auditório, havia uma extensa
coleção de amostras de presas de onças, aos quais esses dois crânios se juntariam, e os
biólogos do projeto os utilizavam para ilustrar o modo como a onça abate suas presas
nas palestras oferecidas para os turistas. Nesse lugar, o material coletado no campo é
catalogado, numerado e arquivado. Amostras de fezes de onças, por exemplo, colocadas
em sacos plásticos com data, hora e local, passam por diversos estágios de tratamento, e
o que sobra no final são pêlos de animais, que serão identificados posteriormente com o
uso do microscópio. Sobre uma grande mesa, Ricardo havia montado o esqueleto da
onça, que encontrou morta na fazenda. Tinha sido talvez o primeiro caso registrado na
natureza de uma onça fêmea morta por outra onça, o que seria tema de um artigo a ser
publicado pela equipe do projeto.
O biólogo explicou que é um comportamento raro, ou pelo menos nunca
documentado antes. A carcaça tinha sido encontrada por trabalhadores da lavoura. A
princípio todos pensaram que a onça tivesse levado um tiro, mas Ricardo examinou os
restos e encontrou sinais evidentes de predação por outra onça, incluindo fezes contendo
pelos e uma unha. A hipótese que considerava mais provável por ele é que um casal
estabelecido na fazenda, Orelha e Dora, estivessem copulando naquela região, e que
Dora tenha matado a outra fêmea. Ele conjecturou, observando que não tinha nenhuma
comprovação científica, que era muito pouco provável que um macho tivesse matado
uma fêmea, e que achava que Orelha teria apenas compartilhado a carcaça da fêmea
morta por Dora.
Em torno da sala, estavam várias ossadas, a maioria de animais mortos pelas onças:
veados, catetos, queixadas, capivaras, jacarés, vacas e outros. Nessas ossadas, o
pesquisador identificava as marcas da mordida da onça e o modo como o animal foi
morto. Quando encontrou o bezerro, o biólogo tomou nota do seguinte: o tipo de terreno
onde o animal foi encontrado, se havia sido arrastado ou não do local onde foi abatido
(não), a que distância estavam da estrada mais próxima, o tipo de cobertura vegetal
(para a qual utiliza uma classificação de 1 a 5). Algumas peles de onças também
estavam expostas, e além delas alguns crânios, um deles de um dos animais capturados
pelo projeto, encontrado através da rádio-telemetria em uma fazenda vizinha. Nele, era
18
possível se observar o buraco produzido pelo tiro no topo do crânio. Era o maior animal
que capturado na fazenda, com 114 kg.
1.2. Segundo bezerro predado: Fazenda São Bento
Na manhã do dia 3 de novembro de 2008, Henrique Conccone, biólogo de campo do
projeto, recebeu uma mensagem pelo rádio enquanto estávamos na base do projeto
Onça Pantaneira: Paulo Acunha, o funcionário responsável pelo controle do gado, dava
notícia de que um bezerro da fazenda havia sido encontrado comido por uma onça. Seu
João Elias, o guia de campo do projeto, também pelo rádio, avisava sobre a carcaça de
um segundo bezerro, e passava o número do brinco deste animal para Paulo. Desde que
eu havia chegado à fazenda, duas semanas antes, esses eram os primeiros casos de
predação de gado.
Eu os havia acompanhado em dois tipos de práticas de campo nos últimos dias. O
objetivo da primeira era o estudo da densidade de animais silvestres na área, feito a
partir dos registros das espécies observadas em saídas de carro, no começo da noite. O
propósito da segunda era a localização de carcaças de animais, feitas em cavalgadas
durante o dia, nas quais os maiores aliados dos pesquisadores são os urubus, sendo a
observação do vôo desses pássaros o melhor sinal para se chegar até uma carniça.
Um dos primeiros passos para o início da coleta de dados do projeto, praticamente
um ano antes, em 2007, havia sido estabelecer uma série de percursos fixos dentro da
área da fazenda. Desde então, esses percursos passaram a ser feitos em intervalos
periódicos pela equipe de campo. O projeto está estabelecido na Fazenda São Bento,
uma propriedade particular de cerca de 10 mil hectares, que tem como principal
atividade a criação de gado de corte. A fazenda está localizada no município de
Corumbá, Mato Grosso do Sul. Tem como limites o Rio Miranda e o corixo
3
do
Abobral. A paisagem característica desta região são os capões de mata espalhados entre
o campo aberto, coberto de vegetação rasteira, sendo que as áreas mais contínuas de
floresta acompanham o percurso dos rios.
Naquela ocasião, o rebanho total da fazenda girava em torno de cinco mil cabeças de
gado, e era manejado por um grupo de oito vaqueiros. Na semana anterior ao caso do
3
Corixo é o braço de um rio, na linguagem pantaneira, que pode secar completamente na época da
seca.
19
bezerro encontrado morto, eu havia acompanhado os peões ao campo quando eles iam
colocar brincos, conduzir o gado e tratar dos animais, e estava interessado nas
marcações e signos usados para o controle do gado.
A área da fazenda é toda cercada e dividida internamente em pastagens de tamanhos
variados, chamadas no vocabulário pantaneiro de invernadas. No caso da São Bento, os
tamanhos das invernadas variavam entre duzentos e cinqüenta e quinhentos hectares
cada uma; área considerada pequena para os padrões pantaneiros, conforme havia me
explicado Seu Ormir Couto, o capataz da fazenda. As pastagens eram todas cercadas, e
o gado é levado de uma invernada a outra de acordo com a disponibilidade de capim e
as necessidades de manejo do rebanho, em um sistema que ele definiu como “manejo
rotácionário”, ou rodízio” [de pastos]. O manejo intensivo da fazenda, de acordo com
Seu Ormir, também é uma característica que a distingue da maioria das fazendas
vizinhas, onde o gado é criado em invernadas muito maiores e com menos controle. A
troca de informação com os pesquisadores pode auxiliar o trabalho dos vaqueiros, como
me explicou o capataz na entrevista que fiz com ele alguns meses antes:
A gente faz um trabalho em conjunto, porque também nesses lugares é que
eles vão, dia a dia, ver se a onça ‘predou’, se ela pegou, se ela está
passando, se ela está parando na área da fazenda ou não, se ela pegou só
um animal, comeu e foi embora... Acompanha as mortes por bicho predado,
por morte natural. É um acompanhamento geral, entre nós e eles. Então,
muitas coisas que nós as vezes não vemos, não achamos, eles acham:
capão, mata, beira rio, córrego, beira do corixo... É muito mais gente
vigiando a área da fazenda. Às vezes a gente, do gado, ia lá, via urubu, mas
de repente, você não foi dois, três dias, comeu tudo e acabou. Eles
andando devagarzinho, no dia a dia, acham.
No caso dos dois bezerros abatidos naquela manhã de novembro, o primeiro foi
encontrado por Seu João, em trabalho de campo pelo projeto; o segundo por Laucenildo
Acunha, conhecido como Bugrinho, um dos peões da fazenda. Encontrando-o no dia
seguinte ao incidente, pedi, usando um gravador portátil para o registro, que ele narrasse
como descobrira o bezerro. Transcrevo abaixo a gravação, incluindo, como de hábito, as
minhas perguntas:
A gente estava juntando as novilhas. Era umas sete e pouco, por aí. Eu saí
pra fazer uma volteada e o burro começou a assustar. Quando eu percebi
20
uma rês na moita, eu peguei e chamei o outro rapaz pra ir comigo, e
nós fomo ver e era um resto que onça tinha largado lá.
E estava fresca ainda?
Fresquinha. Sangue novo ainda. Cavalo não queria ir porque estava
sentindo ela, mas assim mesmo eu fui, depois que o outro chegou. Aí
chegamos para pegar o brinco e ver do que é que estava morto. Vimos
batida em volta, onde ela arrastou, que ela veio arrastando pra esconder
ali. Ela já tinha comido; já tinha comido um pouco, já.
Aí como é que vocês fazem? Vocês anotam?
Anotamos o brinco só, e passamos pro Paulo, daí o Paulo que põe a causa
da morte.
Paulo é o responsável pelo controle do rebanho. Assim como os pesquisadores do
projeto, ele também leva sempre consigo a sua caderneta de campo, e no caso das
carcaças dos animais encontradas naquela manhã, anotou o nome da invernada (local), a
causa da morte (onça), e o número do brinco dos bezerros. Depois, ele passa essas
informações para fichas que encaminharia para o escritório, junto com os brincos dos
bezerros encontrados.
O escritório é o local na sede da propriedade onde as perdas seriam registradas no
programa de computador usado para o gerenciamento do gado. O acontecimento seria
registrado pelo sistema de controle do computador no item “mortes” da opção “controle
sanitário”. A causa da morte no caso, a predação por onça é inserida no programa
como uma observação ao lado do registro do caso. A maior parte das perdas de gado na
fazenda é causada por outras causas como picadas de cobra, doenças e ervas venenosas,
entre outras. No período abarcado pelo projeto de pesquisa, entre 2007 e 2008, a
predação por onça representou aproximadamente 30% dos registros de mortalidade na
fazenda.
Os dois bezerros comidos pela onça naquela manhã seriam, portanto, registrados
tanto pela fazenda, como uma ocorrência de perda na produção, quanto pelo projeto
científico, como registro de um caso de predação de onça, numa planilha independente
reservada ao rebanho doméstico. O termo “predação” é utilizado especificamente para
este tipo de caso, sendo que o banco de dados do projeto registra todos os incidentes de
21
animais encontrados mortos na fazenda, incluindo animais silvestres e domésticos,
atacados por onça ou não.
O Projeto Onça Pantaneira é um desdobramento do trabalho do biólogo Fernando
Azevedo na Fazenda San Francisco, que é chamado de Projeto Gadonça, o qual,
como o nome diz, estuda a ecologia das onças tendo como foco a questão da predação
do gado. Transcrevo abaixo um trecho da palestra do biólogo (citada acima) por ocasião
do evento realizado na sede deste último projeto, no qual ele fala sobre a Fazenda São
Bento e ressalta a importância do manejo do gado da fazenda na pesquisa sobre as
onças:
Essas divisões que vocês estão vendo aqui [no mapa da fazenda] são as
invernadas. São 37 invernadas. Eles também trabalham muito duro em
cima da rotatividade, do manejo, e também anotam tudo o que acontece.
Por exemplo: você tem um lote com 200 novilhas, no pasto chamado
Pato 6, por exemplo. Fica 14 dias. Sai dali, vai pra Torre 3, que é uma
outra invernada. Eles anotam o dia em que saiu, o dia que entrou, e quanto
tempo vai ficar. Isso pra gente, em relação à onça, é muito bom. A gente
sabe exatamente como é que ela vai responder ao movimento do gado.
Os nomes das invernadas são as principais referências de localização dentro da
fazenda, o que havia permitido que Bugrinho indicasse com precisão o local onde estava
o bezerro para Paulo, e este repassasse a informação para Seu João no chamado pelo
rádio, na manhã em que o bezerro foi encontrado. Este último, por sua vez, passou ao
primeiro o número do brinco, conforme descrito anteriormente. As informações sobre o
gado, de acordo com o que foi demonstrado, circulam através da fazenda, sendo
filtradas na medida em que passam por cada um dos atores: do peão Bugrinho para
Paulo, o encarregado, e dele para Seu Ormir, o capataz.
Os peões são divididos em funções; que envolvem uma hierarquia. o praieiro cuida
das casas e do material de montaria; o tropeiro em geral é um peão mais novo, que sai
cedo para reunir a tropa (os animais de montaria), e é “o primeiro a acordar e o último
a dormir”, segundo me disseram. O salgador de coxo é o responsável por percorrer a
propriedade colocando sal e nutrientes para alimentar o rebanho. O campeiro, por sua
vez, é aquele que trabalha a cavalo, com o gado, sendo suas habilidades no campo e na
produção de artefatos de couro altamente valorizadas na fazenda. Quem comanda os
22
vaqueiros é o capataz, e um dos campeiros mais experientes é designado como o
encarregado.
O capataz é quem determina as tarefas dos peões a cada dia, e é o responsável pela
produtividade, além de ser o mediador entre os peões e a administração da Fazenda. Ele
é quem passa as informações para o escritório, de onde é possível para o biólogo
consultá-las, e de onde o gerente administra a produção do gado de corte, negociando
sua venda para frigoríficos e abatedouros. O proprietário da fazenda é um grande
empresário de São Paulo, ligado ao ramo da construção civil que patrocina o projeto de
pesquisa sobre as onças, como explica Fernando Azevedo no evento (op.cit) em que
apresentou o projeto:
O Projeto Onça Pantaneira foi iniciado em 2007. A gente recebeu a visita
[na Fazenda San Francisco] dum proprietário, em 2004, que assistiu a um
programa de televisão que mostrava o trabalho da nossa equipe. Ele pediu
que a gente visitasse a propriedade dele, e quis começar um trabalho lá,
totalmente financiado por ele próprio.
Resumindo, eles são de São Paulo, não são daqui do Pantanal, estão
começando um trabalho forte de criação de gado aqui, e representam uma
empresa que não mexe com gado, mexe com suco também. Então, eles
gostariam de ter um projeto que mostrasse a preocupação da empresa em
relação ao meio ambiente. Então, foi assim que ele me procurou, e nós
conversamos para começar esse projeto.
A base do projeto Onça Pantaneira está situada em uma pequena casa ao lado da
sede administrativa da fazenda, que funciona como laboratório de campo e escritório
para os pesquisadores. É para que são levadas as amostras coletadas no campo.
Alguns crânios também foram limpos e preparados, e etiquetados com o nome da
espécie, e ficavam expostas em torno do laboratório. Assim como no caso do projeto
Gadonça (na fazenda San Francisco), o novo projeto reunia amostras dessas presas
capivaras, queixadas, antas, jacarés e cervos, entre outras e também crânios de onças-
pintadas que haviam sido mortas por caçadores em fazendas vizinhas.
Cerca de uma hora depois da conversa pelo rádio sobre o bezerro predado, Seu João
retornou a base para encontrar Henrique, e eles reuniram os equipamentos que iriam
levar para o local onde estava a carcaça encontrada pelos vaqueiros. Como era provável
que a responsável pelos ataques fosse uma das dez onças monitoradas pelo projeto, eles
23
levaram também antenas de rádio-telemetria e um notebook este último necessário
para a obtenção (ou para “fazer o download”) dos dados armazenados no equipamento
GPS das coleiras.
Quando chegamos ao local indicado pelos vaqueiros o sol ainda estava alto, e o vôo
de uma grande quantidade de urubus sobre um capão de mata indicava onde estavam os
restos do bezerro. Como mencionei anteriormente, os urubus são colaboradores
importantes para os pesquisadores do projeto. O vôo deles também é observado
cuidadosamente pelos peões de gado ao se aproximarem para examinar uma carniça,
sendo que o fato de ficarem pousados nas árvores e não descerem ao chão pode indicar
que a onça ainda esteja por perto. Sendo assim, entramos no capão depois de Seu
João constatar que os urubus já tinham descido.
O bezerro estava sob um emaranhado de cipós, e somente uma parte das costelas
havia sido comida, o que aumentava as chances de que o predador voltasse ao local.
Henrique investigou a carcaça e identificou perfurações causadas pelos caninos da onça
na base do crânio do animal; sinais típicos do ataque da pintada. Ele anotou em sua
caderneta de campo as condições do terreno e as condições da carcaça, estimando o
tempo decorrido desde o ataque; anotou o mero do brinco do bezerro; depois,
registrou as coordenadas de localização através de um aparelho de GPS portátil.
Terminando as anotações, o biólogo preparou a antena de rádio e fez várias tentativas de
localização com ela, utilizando as freqüências referentes aos colares das dez onças
monitoradas pelo projeto desde que foram capturadas, cerca de dois meses antes.
Enquanto isso, Seu João preparou duas armadilhas fotográficas, amarrando-as em
troncos a cerca de dois metros do bezerro, e a uma altura de 30 centímetros do chão,
apontadas para a carcaça do animal. As câmeras, dotadas de sensores de movimento,
foram programadas para disparos consecutivos a cada dez segundos. Para aumentar as
chances de identificação da onça, amarrou também as patas traseiras do bezerro a um
cipó atravessado na horizontal, utilizando uma um cordão que tinha no bolso. Explicou
que aquilo não ia segurar a onça, mas poderia proporcionar um instante a mais para a
fotografia.
Depois disso, seguimos os rastros da onça até lado de fora do capão por cerca de 40
metros, através do campo aberto, chegando até o local que ele identificou como sendo
onde a onça havia atacado o bezerro. Pelo tamanho da pegada do animal, julgou se
tratar de um macho. Registrei todos os procedimentos relacionados ao bezerro em
fotografias, como havia feito em outras ocasiões, com a intenção de narrar como um
24
mesmo acontecimento era um dado relevante para duas redes de informação distintas, a
da administração da fazenda e a do projeto conservacionista.
As coleiras usadas pelas onças são equipadas ali com sistemas de rádio e GPS, e
apesar de não haver detectado nenhum sinal de rádio naquele momento, os
pesquisadores ainda queriam identificar o animal que havia atacado o bezerro. Durante
o restante da tarde, contornamos de carro a área aonde o bezerro foi encontrado,
percorremos a estrada federal que corta a fazenda, conhecida como Estrada Parque, e
voltando por dentro das invernadas da fazenda por estradinhas pequenas e atalhos. Seu
João ia dirigindo enquanto Henrique seguia na caçamba da caminhonete, com o fone de
ouvido, vasculhando em todas as direções com a antena de rádio. Dentro da fazenda, ele
localizou o sinal de uma fêmea, e pude ouvir o som: uma série de bips entrecortados de
estática, sendo que o intervalo entre os sons está relacionado à distância do equipamento
em relação à onça. Mas aquela não era a onça que havia atacado o bezerro, e
continuamos com as buscas até o final do dia.
Na manhã seguinte, voltamos ao local onde o bezerro foi encontrado, novamente
com o equipamento de telemetria. A carcaça do animal havia sido arrastada vários
metros até o campo aberto, onde foi consumida novamente. As armadilhas fotográficas
deixadas na tarde anterior haviam sido disparadas e foram levadas imediatamente de
volta ao laboratório. Chegando lá, Henrique conectou o equipamento ao computador,
onde foram descarregadas as imagens, e elas revelaram uma onça-pintada usando uma
coleira de rádio.
O biólogo selecionou um detalhe de uma das fotografias e aproximou em zoom,
selecionando uma área composta por algumas pintas da pelagem da onça, perto do
pescoço. Nesta nova imagem, procurou identificar um padrão a partir do desenho
formado por essas pintas. Utilizando o mesmo programa, abriu novos arquivos, com
fotos tiradas por ocasião da capturas de um macho, apelidado pelos pesquisadores de
Mirão. Comparou então os detalhes das duas fotos, usando como referência a mesma
área do corpo da onça, chegando à conclusão de que se tratava mesmo daquele animal.
Era justamente a onça que estavam procurando, o que foi motivo de comemoração,
que era o único animal do qual ainda não haviam conseguido obter os dados das
localizações armazenadas no equipamento preso à coleira. O sinal do colar desse macho
havia sido localizado através da antena de rádio, nos sobrevôos feitos recentemente para
a coleta dos dados, no avião da fazenda, mas os biólogos do projeto não tinham
conseguido completar o processo de download dos dados.
25
Depois que a onça foi identificada, passamos o restante daquele dia rodando, mais
uma vez, em torno da fazenda, depois por propriedades vizinhas, cobrindo uma área
muito extensa, mas o sinal de rádio da onça que procurávamos não foi detectado em
momento algum. Enquanto dirigia, Seu João se mostrava preocupado com o
funcionamento do equipamento, que achava que o animal não devido ter ido tão
longe logo depois de se alimentar. Conversamos sobre as capturas, que haviam sido
feitas ao longo de dois meses, e que tinham se encerrado em agosto.
Todas as onças monitoradas pelo projeto haviam sido capturadas com o auxílio de
Tonho da Onça, um caçador profissional contratado com sua matilha de cães onceiros
especialmente para a tarefa, e que já havia trabalhado com a equipe do projeto
anteriormente, na Fazenda San Francisco. Antes da contratação do caçador, havia sido
feita uma série de tentativas de captura desde que as coleiras de rádio chegaram à
fazenda São Bento, usando um grupo de cães comprados por uma fundação norte-
americana para um projeto semelhante no norte do Pantanal
4
e cedidos temporariamente
ao Projeto Onça Pantaneira.
Uma seqüência de três fotos tiradas pelas armadilhas fotográficas no dia por ocasião
do evento do bezerro predado mostra uma onça-pintada de coleira, parada na frente da
carcaça do bezerro, entre um emaranhado de galhos. Na primeira delas, a onça está
parada, observando bezerro; na segunda, ela continua na mesma posição, porém com a
cabeça virada, olhando para trás; na terceira, finalmente, ela puxa o bezerro com
violência. As fotos foram tiradas com flash, em intervalos de 10 segundos, como é
possível conferir nas legendas, entre 19:05:46 e 19:06:06, portanto não muito tempo
depois de deixarmos o local, na tarde anterior.
Meses depois da última viagem de campo para o pantanal, juntei fotografias e
anotações para a Tese e as distribuí em um quadro, na vertical, procurando ordenar os
acontecimentos cronologicamente. As fotos que registram o evento do bezerro, a
telemetria, e a preparação das armadilhas fotográficas, estão dispostas em uma
seqüência, e foram colocadas ao lado da seqüência com as três de fotos da onça.
então reparei que as pernas do bezerro estavam esticadas na terceira imagem, e
aproximando-a, pude perceber o cordão vermelho esticado, instantes antes de se romper,
e me lembrei dessa armadilha improvisada por Seu João naquele dia.
4
Em evento narrado no capítulo 3
26
Comentei isso com Henrique, em abril de 2009, escrevendo por email:“Estou
olhando agora para as fotos do Mirão na camera trap, puxando o bezerro do capão. São
de 3 de novembro de 2008, se vão 5 meses! Lembra da fitinha providencial? Sem ela
a foto talvez não fosse a mesma...”.O biólogo respondeu: “Pois esta foto do Mirão que
você está olhando é o último sinal que tivemos dele. Depois disso nunca mais apareceu,
ou a coleira estragou, ou ele mudou de área, ou foi morto”.
Quando o observo no mapa constituído a partir da minha pesquisa de campo, o caso
do bezerro predado na São Bento é um aglomerado de linhas, imagens em seqüência, e
anotações. No modo como esses elementos foram justapostos, ele é o evento singular
que apresenta o maior número de conexões com o restante do mapa, além de ser aquele
que agrega o grupo mais heterogêneo de atores. Por esses motivos tomei-o como ponto
de partida para a descrição etnográfica, sendo que a seqüência de três fotografias da
onça de coleira ao lado do bezerro predado, que chamarei de Seqüência 1, é o principal
registro que pretendo utilizar para fornecer uma narrativa visual ao trabalho, como um
que conecta diversos atores. Utilizei esta seqüência, cedida pelo Projeto Onçpa
Pantaneira, como uma referência importante para o restante da tese.
As armadilhas fotográficas são instrumentos na pesquisa de campo dos biólogos, e
as imagens produzidas por elas não são motivadas pelo exercício estético. O valor
científico delas está no caráter documental, na continuidade temporal e espacial com a
cena fotografada, no testemunho. Uma onça que pode ser identificada pelo padrão das
pintas passou em tal lugar, em tal hora; um ponto no mapa. A não ser em casos
totalmente fortuitos, portanto, falta a essas imagens as características das fotografias de
vida selvagem tais como as conhecemos em livros, revistas especializadas e congêneres,
imagem que excluem qualquer sinal humano.
Nenhum humano aparece nessas imagens, e elas retratam não o animal em seu
habitat natural, mas também seu comportamento: o predador com sua presa. No entanto,
ela é “poluída” de diversas formas por fantasmas humanos. A coleira no pescoço da
onça é uma interferência, mas o próprio reconhecimento do animal predado como um
bezerro indica uma “ação humana” sobre a natureza retratada. Além disso, um zoom
na imagem revela ainda um cordão vermelho amarrando a perna do bezerro ao
emaranhado de cipós ao redor, mais um vestígio.
Se eu olhasse para esta mesma imagem antes do início da pesquisa, todos esses
detalhes tirariam o interesse da foto. Não por ingenuidade, mas porque, como fotógrafo
amador interessado em imagens de animais selvagens, eu me orientava de alguma forma
27
pelo ideal de mostrar apenas a vida selvagem, a natureza pura
5
. Ironicamente, quando
concluí o trabalho de campo, foram justamente esses ruídos na imagem, seus vestígios
humanos, que tornaram a foto importante para a redação da minha tese. Os capítulos a
seguir foram estruturados a partir desses três elementos recortados da fotografia (1) o
bezerro, (2) a armadilha, (3) a coleira, e seguiram o percurso desses atores no mapa
etnográfico.
O primeiro elemento isolado da fotografia, a onça, é o tema desta tese, e portanto
aquilo que ao final agrega todos os outros elementos: o objetivo do trabalho é descrever
uma rede sociotécnica, que designarei como rede onça. O segundo item recortado da
imagem, o bezerro, descreve um percurso no mapa da etnografia que pode ser
acompanhado em imagens das práticas dos vaqueiros de marcação, manejo e controle.
Essas práticas incluem uma série de dispositivos visuais de rastreamento, como o brinco
e a marca da fazenda, e também dispositivos de captura, como o laço e o brete. A forma
do bezerro remete então a uma série de práticas, tematizadas no próximo capítulo.
O terceiro elemento, o cordão, é entendido aqui como uma armadilha, e está
associada ao sujeito oculto que programou as fotografias. Sendo assim, quando
recortado, ele é a face visível de uma cadeia de atores que inclui cães de caça, caçadores
tradicionais, e uma série de outros métodos necessários para capturas das onças.
A coleira, que é o quarto item recortado, ela mesma um dispositivo de rastreamento,
percorre a etnografia formando uma série de nomes de pesquisadores, marcas de
equipamentos de pesquisa e técnicas de campo, sistemas VHS e sistemas GPS.
O percurso de cada um desses elementos corresponde ao que chamarei na Tese de
redes de práticas, tendo a figura da onça como elemento de ligação entre essas redes.
Além dos elementos citados (o bezerro, a coleira e o cordãozinho amarrado), outros
dados da imagem, como o emaranhado de cipós, as pintas da onça, o fotógrafo ausente,
a cor do animal predado, serão abordados ao longo deste trabalho.
5
O que a fotografia de natureza evidencia para seus praticantes, no entanto, é o quanto esse elemento
selvagem é freqüentemente construído as duras penas, através do trabalho dedicado e de vários
dispositivos de ocultação – roupas camufladas, barracas – e de equipamentos caros e difíceis de manejar.
28
ANEXO B – Imagens Capítulo 1
© Projeto Onça-Pantaneira
© Projeto Onça-Pantaneira
Seqüência 1: Onça fotografada com armadilha fotográfica junto ao bezerro
predado na Fazenda São Bento. Imagens cedidas pelo Projeto Onça
Pantaneira.
29
São Bento, novembro de 2008
Seu João prepara a armadilha fotográfica depois de encontrar o bezerro predado.
30
Fazenda San Francisco, abril de 2008
O biólogo Ricardo Costa encontra bezerro predado na Fazenda San Francisco. Ao final, o crânio
depois de limpo exibe a perfuração típica da mordida da onça-pintada, na base da nuca. A
amostra, depois de preparada, é catalogada e anexada à coleção do projeto Gadonça.
31
Capítulo 2: Rede Gado
2.1. Rastreamento
Na imagem capturada pela armadilha fotográfica, a forma que corresponde ao corpo
do bezerro predado é uma mancha clara que se confunde com o emaranhado de cipós e
raízes na parte inferior da imagem. Identificar o animal aos pés da onça requer atenção a
alguns detalhes, tais como as pernas esticadas, os cascos, ou a cor do “gado branco” (ou
Nelore, a raça de zebuíno dominante na região).
O bezerro pertencia à Fazenda Real Ltda - Filial São Bento, a empresa rural
produtora de gado de corte que financia o ProjetoOnça-Pantaneira. A empresa é a
pessoa jurídica correspondente à Fazenda o Bento, situada no Município de
Corumbá, sede do projeto. Entre março e novembro de 2008, quando estive em trabalho
de campo na fazenda, ela era habitada por cerca de 40 pessoas, e seu rebanho oscilou
neste período entre quatro e cinco mil cabeças de gado (diminuindo bastante na época
da chuva, conforme veremos adiante).
O bezerro, abatido pela onça em novembro, no final da estação seca, teria sido
enviado para o ‘engorde’, meses mais tarde, juntamente com a produção daquele
período, e seria depois abatido para o consumo humano. Nesta primeira seção, descrevo
os eventos e práticas associadas ao bezerro vivo, como parte do rebanho da fazenda,
com foco nas práticas de manejo e nas associações entre o gado e os outros atores que
compartilham com ele o espaço da fazenda.
O funcionamento da propriedade é centralizado: o escritório, localizado na área da
sede, é a administração por onde passam informações sobre tudo que acontece dentro
dos seus limites. Da manutenção de estradas ao pagamento dos funcionários, da compra
de materiais de construção ao conserto da rede elétrica, da venda de um lote de novilhos
à identificação do bezerro que estava faltando em outro lote, tudo isso passa pela sede
administrativa. A maior parte dessas informações é trocada pelo rádio, que é o principal
meio de comunicação entre os funcionários da fazenda nas atividades diárias, e também
o canal de notícias entre eles e os moradores das redondezas. O caso do bezerro predado
é um exemplo desse tipo: um aviso pelo rádio que gera um bit de informação para a
propriedade rural, registrado como “perda” no controle sanitário da produção.
32
No programa de computador utilizado para a administração da criação, instalado no
escritório da São Bento, as informações sobre os lotes de gado são atualizadas a partir
da comunicação diária entre vaqueiros e administradores. O sistema de manejo e
controle do gado inclui dados sobre a quantidade de cabeças em cada uma das
invernadas (áreas de pasto) da propriedade, sua classificação vacas, touros, garrotes,
novilhas, vacas paridas ou outras classes e o registro individual feito a partir do
número do brinco.
Na sala principal do escritório, um mapa mostra a toda a propriedade: um polígono
correspondente a uma área de aproximadamente 10 mil hectares. Linhas retas
representam as cercas de arame que cortam a paisagem, dividindo o mapa em figuras
geométricas regulares correspondentes às invernadas, com cada uma delas identificada
por seu nome próprio.
Uma linha reta vertical que corta toda a área à esquerda do mapa indica uma estrada
estadual (de barro), conhecida como Estrada Parque. A estrada corta toda a faixa oeste
da fazenda, que se estende até o rio Miranda; para além dos limites do mapa, abaixo, ela
atravessa o rio em uma longa ponte de madeira passando pelo povoado pesqueiro do
Passo do Lontra e vai até o Buraco das Piranhas, na beira da BR-262 (que liga Campo
Grande à Corumbá). Também para além do mapa, mas acima, a Estrada Parque segue
em direção ao Porto da Manga, na beira do Rio Paraguai. Deste porto (que não cheguei
a conhecer nas viagens de campo) é possível se atravessar de balsa e prosseguir de volta
para Corumbá ou então seguir para os pantanais mais distantes das estradas de asfalto,
até as regiões da Nhecolândia e do Rio Negro, cada uma com características eco-
culturais próprias.
Uma linha horizontal acima do centro do mapa é a estrada principal interna da
fazenda. Ela começa na Estrada Parque, passa pelo Retiro onde moram os vaqueiros (o
capataz e os peões de gado), atravessa um grande capão e termina na área da Sede, onde
se bifurca entre o escritório administrativo, a nova casa do proprietário, e a antiga sede,
onde moram o gerente e sua família. Além dessas três casas principais, a pequena vila
da Sede conta com mais uma dezena de moradias, onde residem funcionários com as
suas famílias. O final da estrada principal coincide também com um galpão que
funciona como hangar para aeroplanos e oficina para tratores e outros veículos. A pista
de aviação, bem visível no mapa, corresponde a uma faixa reta em diagonal, de
tonalidade verde clara; ela é usada pelo proprietário para as visitas regulares que faz à
33
fazenda, utilizando um pequeno avião particular (no qual são feitos também os
sobrevôos para o monitoramento das onças para o projeto científico).
As variações de tonalidades usadas na cartografia indicam as diferentes coberturas
vegetais da região. O limite inferior da propriedade é o rio Miranda, e uma faixa larga
verde escura correspondente a sua mata ciliar. O limite superior é o Rio Abobral (ou
Corixo do Abobral), ele mesmo uma linha sinuosa acompanhada de outra faixa irregular
e contínua de mata ciliar verde escura. Entre os dois rios, manchas isoladas do mesmo
tom de verde, com vários tamanhos e formas, indicam os capões espalhados na
paisagem. O efeito é semelhante ao de um arquipélago em uma carta náutica: a área
clara que representa a região de campo aberto da fazenda é o fundo contínuo para essas
ilhas florestais. No período da cheia, os campos são inundados por uma lâmina de água
que oscila de meio metro a um metro e meio de profundidade, e os capões se tornam
literalmente ilhas, enquanto nos meses secos cresce no campo aberto o capim que serve
como pastagem para o gado.
O capataz responsável pelo manejo do gado da Fazenda São Bento é o senhor Ormir
do Couto, que antes de ser contratado, em 2007, trabalhou durante 36 anos na Fazenda
Bodoquena, uma das mais tradicionais da região. A Bodoquena pertence ao mesmo
grupo empresarial (Fazenda Real Ltda.) que é proprietário da São Bento, e o capataz foi
trazido pelo proprietário para tocar o novo empreendimento.
Seu Ormir, como é conhecido, é casado com Dona Leda, e os dois moram na sede do
único Retiro da fazenda. Um dos cômodos da residência do casal funciona como
cantina, e Dona Leda é a funcionária responsável pelas refeições – café, almoço e jantar
– servidas diariamente para os peões solteiros e outros funcionários da fazenda (além de
visitantes ocasionais, como era o meu caso).
O retiro é um conjunto de duas casas próximas a do capataz e mais uma segunda
casa, menor, habitada por um funcionário e sua família – cercadas por cerca de arame, e
uma terceira casa um pouco afastada, que é o galpão dos peões. O galpão ou
“alojamento” fica ao lado de uma grande figueira e é uma construção bem ampla com
uma série de cômodos voltados para um varandão frontal. Os quartos têm ventilador de
teto, água aquecida, e na parte central uma sala com TV. Foi onde fiquei hospedado
nos períodos de trabalho de campo na fazenda.
Na época da seca, quando aconteceu o evento do bezerro, o percurso de 100 metros
entre a cantina, na casa do capataz, e o alojamento ou galpão dos peões, era feito a
em questão de poucos minutos. Na cheia, porém, quando cheguei à fazenda para a
34
primeira temporada de campo, o caminho havia sido interrompido pela enchente, e os
moradores do galpão tinham improvisado uma pequena balsa para atravessar a pequena
baía formada entre as duas casas. Na chegada à região em março, no período da cheia,
anotei no meu diário de campo:
Os campos estão alagados. Alguns pedaços das cercas estão submersos, e o
gado às vezes pasta dentro d’água. O que no ano passado era campo aberto e
pastagem agora é um grande lago. Em alguns pontos, a água corre com
intensidade pelas canaletas construídas sob a estrada da fazenda. Há jacarés por
toda parte. No jantar, conheço alguns dos funcionários: Sr. Ormir, o capataz,
Paulo Acunha, o “segundo”, Irineu, Seu Máximo e outros. Depois sou
conduzido por ele até uma pequena jangada, feita com madeira e tambores de
plástico amarrados, na qual colocamos minha bagagem, e que usamos para
atravessar área alagada que se formou na frente do alojamento. A zinga é uma
vara ou remo que utiliza o apoio da vegetação rasa para a locomoção pelo
espelho d’água. Esse método é utilizado pelos moradores de áreas alagadas em
seus deslocamentos nessa época, quando utilizam canoas para atravessar o
campo. (11/3/2008)
Na margem oposta à estrada principal, que corta o retiro, fica o mangueiro onde o
gado da fazenda é trabalhado. Durante as duas semanas em que estive na fazenda, nesse
período, a jangada foi usada até a água ficar rasa o bastante para ser cruzada a pé. Era a
primeira vez que ficava na fazenda, e tive a oportunidade de conviver diretamente com
os peões e acompanhar algumas atividades no mangueiro. Alguns dias depois eu
encontraria dificuldades em atravessar sozinho na jangada:
Vou tomar o café da manhã de jangada, zingando. No caminho, recebo uma
carona de Suesley, um dos campeiros, que está passando de cavalo. Ele joga o
laço, eu seguro do lado de cá, me equilibrando na jangada, e sou rebocado até o
outro lado. (16/3/2008)
Durante os períodos que passei na fazenda, em março e depois em novembro e de
2008, fiz um total de 15 entrevistas gravadas com pessoas que moravam e trabalhavam
na propriedade. Com algumas delas convivi bastante, principalmente com os moradores
do retiro, entre elas Dona Leda. A tal entrevista com ela, no entanto, não nunca
aconteceu, como também virou motivo de brincadeira, que ela não queria de jeito
35
nenhum ser entrevistada ou responder ao questionário que eu usava. Sempre que eu
chegava de volta, alguém perguntava se desta vez ela não ia fazer a entrevista, e ela
dava risada.
O diário de campo de março segue relatando o encontro com outros moradores da
fazenda, naquele mesmo dia, que era um domingo:
Quando estou voltando, encontro com Seu Máximo e Irineu [pai e filho], que
vão lavar roupa e arrumar o alojamento. Junto-me a eles. Quando chego para
lavar a roupa, encontro Irineu mexendo em uma pequena máquina de lavar, e
ele me mostra uma cobra que acabou de matar, que estava dentro da máquina.
Barriga bem clara e dorso marrom. Cabeça triangular. Seu Máximo diz que é
venenosa; Irineu vira a cobra, segurando-a pela ponta do rabo e comenta que o
couro dela parece um cinto trançado. É um marrom claro, quase ocre. Eles não
parecem muito surpresos, deixam a cobra de lado e vão lavar roupa.
Na ocasião, fui até o quarto buscar a câmera fotográfica, com a intenção de
fotografar a cobra. Quando voltei, porém, Irineu a havia jogado numa moita de mato
fechado, e não conseguimos mais achar o animal. As minhas anotações de campo
reportam a nossa conversa:
Conversamos um pouco. Irineu tem um filho de quatro anos, que mora com a
mãe em Miranda. Pretende trazê-los para a fazenda, mas está esperando para
ver se consegue vaga em uma das casas. Ele dirige o trator e cuidar das cabras,
e é formado como técnico agrícola, recebendo quase o dobro do que ganham os
peões [que ganham um salário mínimo].
Na hora do almoço, 11:30, seguimos a para a cantina. A baía que se formou
em frente ao alojamento seca a cada dia, e é possível atravessá-la com água na
altura das canelas. A jangada já quase não é utilizada.
Na volta, Irineu me pede para passar, no meu notebook, algumas fotos que
estão na sua câmera digital para um CD. Abrimos as fotos no computador, mas
não é possível gravá-las no disco porque o computador diz que não espaço
suficiente. Ele conta que aprendeu informática na Fundação Bradesco, onde
estudou, e diz que pretende comprar um computador assim que puder.
Olhamos algumas fotos da fazenda: o filho de Irineu, a esposa, o pessoal da
fazenda passando de cavalo no campo alagado, um bezerro grande e magro na
caçamba atrás do trator. Ele explica que o bezerro ficou perdido no fundo de
36
uma invernada e virou bagual
6
, e que os peões o laçaram e trouxeram amansar.
Prometo que vou falar com o Vanderlei no escritório para tentar conseguir um
CD virgem e gravar as fotografias.
Mostro para Seu Máximo e Irineu as filmagens que fiz nos dias anteriores. O
pessoal desatolando uma vaca no mangueiro, os vaqueiros conduzindo a boiada
por dentro da água, Seu João usando o esturrador. Em seguida, filmo seu
Máximo contando algumas histórias de onça. Irineu estava numa rede na
varanda e ficamos conversando, os três. Eles explicam que iam pescar, mas
ficaram no alojamento para ajudar no mangueiro se fosse necessário.
Seu Máximo distingue dois tipos de sucuri, uma preta e uma amarela. Diz que
a preta não pega o gado não, capivara e jacaré. Conto a história do livro que
estou lendo [Jaguar, Alan Rabinowitz 1986], em que um ajudante do
pesquisador, índio, é picado por uma cobra e acaba morrendo. Comento que ele
estava no hospital, mas a esposa tirou e levou para o curandeiro, e que o autor
afirma que por isso ele acabou morrendo.
Seu Máximo diz que ele morreu porque não se pode misturar: o sujeito tem que
ir para o hospital ou então para o curandeiro, as duas coisas ao mesmo tempo
não certo. É a mesma coisa com a bicheira do gado ele diz ou benze ou
remédio; fazer as duas coisas não funciona. Irineu afirma que ele e o pai
sabem benzer a bicheira do gado. Pergunto se tem alguém que benza picada de
cobra na região. Eles dizem que na fazenda não, mas na região sim. Pergunto
se a pessoa usa algum tipo de remédio, e Seu Máximo diz que não, reza.
Também contam que existe uma forma de benzer a fazenda, e que as cobras
vão para um determinado lugar mas se alguém for até elas vão morder
mesmo.
A conversa deixa transparecer uma espécie de ‘choque cultural’ que iria reaparecer
em uma série de eventos descritos e entrevistas feitas ao longo da etnografia, onde os
conhecimentos tradicionais e os conhecimentos ‘científicos’ (representados pelo
médico, no exemplo) de alguma forma se misturam. Irineu, na época, me parecia
alguém que estava entre os dois mundos, entre a escola técnica e a benzedura do gado.
Voltarei ao tema mais tarde.
As anotações do dia prosseguem:
6
Ogado bagual éo gado “selvagem”, e a categoria será tema de uma próxima seção.
37
Irineu conta que uma vez mataram uma cobra grande perto da sede e que o pai
do dono da fazenda quis ver a cobra, e não gostou que o pessoal matasse.
Pergunto se o pessoal sempre foi a favor de preservar os animais. Conta que
antes de ter o projeto (do Fernando), eles saiam para caçar o porco-monteiro
para comer. Mas era para comer, afirma, e comenta que depois do monteiro
a melhor carne é mesmo do queixada. (16/3/2008)
Em depoimento registrado ainda em março de 2008, numa entrevista gravada, Seu
Ormir descreve o tipo de manejo do rebanho utilizado na propriedade:
A gente usa o (...) esquema de manejo rotacionário
[e.m.]. Por exemplo:
tem uma invernada, você coloca um lote de gado. (...) [L]ogo vai
pegando a prática: quanto tempo esse lote vai ficar nesse pasto? De repente
fica 15 dias, de repente é 20... Aí você já pega e já passa pra outro.
Geralmente você deixa 2 ou 3 invernada pra um lote grande de gado.
O sistema descrito por ele diz respeito ao aproveitamento da pastagem e também ao
comportamento do gado:
É o meu manejo favorito: fica bom, o gado fica manso
, você não fica com
muito lotinho esparramado, o gado pastoreia a invernada por inteiro...
Roda os quatro canto, que a gente fala, quatro canto e meio. Então, de
repente tem uma invernada muito grande e põe pouco gado, o gado
fica... roda meio, por exemplo, e um canto... Então, o resto do pasto fica
meio vago, e aí não dá um aproveitamento total da área (...)
De acordo com o relato do capataz, a Fazenda São Bento tinha originalmente uma
área de 17 mil hectares, e foi vendida cerca de 20 anos para um grupo empresarial
dono de uma rede de açougues na cidade de Corumbá e de dezenas de fazendas na
região, além de milhares de cabeças de gado. O proprietário atualé um grande
empresário de São Paulo ligado ao grupo Votorantim, do ramo da construção civil, que
adquiriu no início deste século cerca de 10 mil hectares, dividindo a fazenda. A parte
comprada inclui a Sede, e o nome da propriedade foi mantido. O restante da área, cerca
de 7 mil hectares, corresponde atualmente a uma fazenda vizinha, mas estava ainda em
negociação.
Em novembro de 2008, na época em que ocorreu o ataque da onça ao bezerro, o
capataz da São Bento tinha sob sua responsabilidade cerca de 5.400 cabeças de gado,
400 búfalos e 100 carneiros, conforme a listagem que me mostrou na época. No
38
decorrer da pesquisa de campo, conversei bastante com Seu Ormir a respeito do gado,
tema sobre o qual ele tinha predileção e era um grande especialista.
O bezerro predado pela onça fazia parte de um lote de gado que estava em uma das
invernadas da propriedade, e havia sido “tatuado” e recebido o brinco de
identificação. Na mesma semana de novembro em que este animal foi encontrado, pelo
menos mais três bezerros apareceram mortos na fazenda, de acordo com minhas
anotações de campo:
Nos últimos dias apareceram quatro bezerros comidos por onças na fazenda. Os
ataques são comentados na cantina, durante o almoço. Seu Ormir brinca, dizendo
que "foi o Fernando sair para a onça começar a comer"; Concha, o motorista de
caminhão, diz que “época que começa a chuva que a onça mais pega”. Converso
mais tarde com Seu João, que concorda que é quando acontece a maioria dos
ataques; ele comenta que essa onça “já estaria morta em muitas outras fazendas”.
A proposta desta primeira seção do capítulo é colocar em rede as associações
produzidas pelo bezerro como parte do rebanho da fazenda. Isso significa que o foco da
narrativa serão as práticas de manejo do gado e a relação entre os vaqueiros e o rebanho.
Nenhum dos animais encontrados na ocasião pelos vaqueiros passava de um ano, e o
animal fotografado foi inteiramente consumido na noite do retorno da onça. O próprio
predador, como narrado no capítulo anterior, não foi mais avistado, e o destino dele e do
colar que portava são desconhecidos, como vimos no final do capítulo anterior. Neste
sentido, em relação ao ‘sistema de informação’ referente à pesquisa científica, ele
representa uma ‘perda’: o equipamento, a captura, grande parte do que foi investido no
manejo daquele animal não produziu dados. A idéia do ‘prejuízo’ o aproxima do
bezerro e do sistema de informação da fazenda; por outro lado, a idéia de que ele
‘escapou’ de alguma forma ao controle humano, depois de ter fugido dos cães em outra
ocasião, o aproximam de outra rede: a ‘onça que escapa’ é uma figura chave nas
narrativas de caça abordadas adiante.
Em 12 de março de 2008, acompanhei o dia dos peões trabalhando com o gado,
enquanto pesavam os bezerros e separavam os que estavam mamando dos que iam ser
desmamados. Tentando entender melhor o processo, filmei as atividades deles e fiz uma
série de perguntas, anotando as respostas na hora numa caderneta, que passaria a limpo
naquela noite:
39
O Mangueiro é o lugar em que se trabalha com o gado, o curral. É dividido em
partes. O embute ou seringa é o funil que conduz até um corredor estreito de
madeira chamado de brete, por onde passa o gado, uma rês por vez. No início e
no fim do corredor, portas de correr, que são controladas por um dos peões.
Passando pela segunda porta, a rês que vai ser pesada é segura pela guilhotina,
uma estrutura de madeira que se fecha no pescoço da vaca. A guilhotina é
utilizada para segurar o animal na balança, nesse caso um tronco-balança. No
final de tudo isso está o ovo, composto de cinco portas, controladas de cima por
uma pessoa (Seu Máximo) através de alavancas. Quando passam pelo ovo, os
animais são classificados em voz alta por Seu Ormir: vaca, macho desmame
[bezerro], fêmea desmamemacho mamando, fêmea mamando, touro; e cada
classe é conduzida a um curral diferente. O encarregado, Paulo, anota tudo em
uma prancheta. Os bezerros desmamados machos são os que a fazenda vai
vender. O trabalho é demorado e envolve todos os funcionários da pecuária;
termina depois que já escureceu.
No dia 21 de outubro, quando regressei à fazenda para um segundo período de
campo, a paisagem mudara completamente A área ao redor do barracão estava
completamente seca, e servia de pasto para um lote grande de bezerros. Da equipe de
peões trabalhando com Seu Ormir restavam Paulo Acunha e seu irmão Ramon, e
outros quatro campeiros tinham sido contratados. No final da tarde em que cheguei,
percebi, de dentro do meu quarto, que o rebanho corria em círculos ao redor da casa,
aparentemente sem motivo. Na varanda, dois peões que eu não conhecia tinham
chegado do campo e estavam sentados na sacada; de vez em quando, um deles
assoviava alto, sem se mover dali. Então percebi que estavam brincando: era isso que
provocava a disparada dos bezerros.
Dois dias depois, acompanhei um grupo de peões que levava um lote de gado para
uma área do outro lado da Estrada Parque. Para conduzir os novilhos, doze bois
“sinuelos” os acompanhavam; esses animais mansos, acostumados a seguirem os
cavaleiros, mantêm o resto do rebanho unido. Antes da partida, Paulo, que era o
encarregado, anotou em sua caderneta os números de cada um dos animais. Para
conduzirem a boiada, os peões falam manso: booi, boooi, boooi. Três cães de pastoreio
australianos (zorro, falcão e delta) seguem sempre ao lado de Jiló, o peão que os criou
desde pequenos. Quando um boi escapa na estrada, um cavaleiro sai atrás a galope,
40
dando gritos agudos, e os cães cercam o animal em disparada, correndo entre suas
pernas e conduzindo-o de volta para junto da boiada.
De noite, mostrei as filmagens do pessoal laçando, na tela do notebook que, desta
vez, era o meu caderno de campo. Risos, provocações. O barracão é para os peões
solteiros e também para receber funcionários por temporada como tratoristas e
mecânicos. A condição de “solteiro”, no caso, se refere à situação dentro da fazenda,
sendo que alguns peões que moram no barracão são casados, e têm mulheres e filhos na
cidade (Miranda ou Corumbá).
Alguns dias depois, os vaqueiros iam colocar brincos e tatuar bezerros novos, e me
chamaram para filmá-los no trabalho com o gado. Eles competem entre si para ver
quem acorda mais cedo. Quando tomo café da manhã, às 4 da manhã, os cavalos já
estão preparados, e saímos em seguida para o campo. Depois de meia hora de
cavalgada, encontramos batidas recentes de onça-pintada, que eles me mostram,
apontando a direção para onde ela seguiu. Enquanto procuram pelos bezerros,
comentam brincando: se o gato não comeu...
Para o trabalho daquele dia, um lote de vacas e bezerros pequenos, esparramado pela
invernada, foi sendo reunido pelos peões, e encaminhado para um piquete (um cercado
reduzido). dentro, os peões se dividiram: dois deles pegavam os bezerros a laço, um
por um, para trazê-los até onde estavam os responsáveis pela marcação e pelos
medicamentos (antibióticos e remédios para tratar bicheira).
Um dos campeiros se aproxima do bezerro laçado e o “vira” (derruba), mantendo o
animal no chão com o joelho enquanto outro peão usa uma corda para amarrá-lo pelas
quatro patas. Em seguida, eles pegam os instrumentos preparados com a numeração e
tatuam as duas orelhas do animal, uma com o número da mãe e outra com o número do
próprio bezerro. Nesta última orelha, fixam o brinco, no qual está o mesmo número da
tatuagem, e que identificará o animal na fazenda (os brincos são numerados em
seqüência direta). Enquanto tatuam, eles fazem também a aplicação de remédios,
vacinas, e "curam" as bicheiras do bezerro; no final, um deles levanta-o pela corda que
amarra as patas, para a pesagem. Durante o procedimento, as vacas não se afastam de
seus filhotes e avançam no peão que segura o bezerro, precisando ser afastadas com
gritos e gestos bruscos pelo outro.
Paulo, que é o encarregado, carrega uma prancheta na qual anota todas as
informações. Fiz fotos da seqüência do trabalho, que mostram o processo pelo qual
passam todos os bezerros da fazenda. O bezerro que foi encontrado comido pela onça,
41
dias depois, havia passado por aquele mesmo processo, e a preocupação imediata dos
peões na ocasião seria a recuperação do brinco e sua identificação. Como ainda era
muito novo, aquele animal não trazia as marcas que o gado grande traz nos quartos
traseiros e dianteiros. Estas são feitas depois que o bezerro é desmamado, quando
recebe as inscrições, a ferro, com a marca da fazenda e o ano do seu nascimento.
Nas atividades de manejo dos bezerros, os peões pediam que eu os filmasse laçando,
e se revezavam na atividade, provocando-se mutuamente na vez dos outros. Depois de
uma manhã inteira debaixo do sol de 40 graus, quando os bezerros foram tatuados,
seguimos para um barracão (apenas um telhado erguido no meio do campo, que oferece
um pouco de sombra), aonde um caminhão levaria as marmitas para todos. Seu Ormir
comentou como é dura a vida do campeiro, dizendo que eles não têm hora extra (eles
anotam os horários e ganham dias de folga de acordo com o trabalho a mais). Na hora
do almoço, comecei a sentir sintomas de insolação e a passar mal, precisando pegar uma
carona no caminhão de volta para o Retiro, o que foi motivo de diversão mais tarde para
os outros.
Em relação às marcações e sinais do gado, observei neste período que os corpos do
gado eram o suporte, o “papel” (usando como referência o gado branco), para uma
escrita. Olhando o rebanho, os vaqueiros lêem uma série de informações nas marcas,
códigos incompreensíveis para “analfabetos” urbanos como eu. Tirei diversas
fotografias das marcações durante o período de campo, mas não sou capaz de
reconhecer o significado desses sinais. Apenas posso afirmar que os vaqueiros ‘lidam’
com o gado de uma forma predominantemente visual.
Grande parte do trabalho dos vaqueiros, na lida diária, é o de vigiar o gado e segui-
lo à distância pelo campo. Essa relação visual é recíproca, e o gado identifica o salgador
de coxo quando chega para alimentá-lo, e observa os movimentos dos campeiros: a
disparada de um cavalo, o volteio de um laço por cima da cabeça, são as deixas para que
o rebanho se movimente. Quando um estranho passa na estrada, muitas vezes o gado se
reúne todo ao lado da cerca encarando-o fixamente, e é o coletivo que olha: os animais
voltam sua atenção em conjunto.
A vigilância recíproca entre o gado e os vaqueiros é marcada pelo movimento
contínuo e repetitivo e pela distância espacial. Assim como são observados, os peões
observam de longe o gado, avaliando as condições de saúde dos animais, procurando
bicheiras e ferimentos à distância, de cima da montaria. Apenas quando é necessária
uma identificação adicional, assim como nos momentos em que vão “cuidar” ou marcar
42
os animais, o movimento contínuo da ‘vigia’ é interrompido por algum movimento
repentino: um garrote em disparada, os cães a persegui-lo, o cavaleiro volteando o laço
por cima da cabeça; acontecimentos abruptos que precedem a captura.
Ao contrário do rastreamento, a captura com o laço é marcada pela proximidade
espacial e pelo movimento abrupto. Quando o animal está sob controle ele passa para
outro registro: o laço é o que corta a distância e que permite a aproximação; a relação
visual dá lugar então à manipulação e à interação física.
Para o trabalho com o gado, o peão e sua montaria precisam estar em sintonia, e
grande parte do tempo dos vaqueiros é dedicada a amansar e domar os cavalos. Apenas
quando precisam abrir uma porteira ou um ‘passador’ entre uma invernada ou outra é
que são obrigados a descer, sendo que geralmente essa tarefa é reservada aos mais
novos. A qualidade do cavalo ou da mula é destacada pelos peões como fundamental
para o sucesso no laço, que é a principal ‘arte’ do campeiro e também aquilo que o
distingue e valoriza perante os demais, conforme veremos adiante.
O código visual, além da vigilância recíproca descrita acima, também está presente
em outro tipo de associação. Quando buscam o gado disperso pelo campo, os vaqueiros
procuram sinais na paisagem: ‘trilheiros’ no chão ou no mato alto, fezes ou qualquer
tipo de sinal revelador da passagem do rebanho. Também identificam as ‘batidas’
(pegadas) de qualquer animal que possa representar uma ameaça para o rebanho, como
uma onça à espreita (a relação das onças com o gado, definida nesses termos, será tema
de um próximo capítulo). Essa procura por pistas é outro tipo de rastreamento, não
um rastreamento visual, mas sim um rastreamento indicial, que envolve a leitura de
rastros, vestígios e sinais na paisagem.
Campos Filho (Op.Cit), em seu trabalho sobre as práticas tradicionais da região de
Poconé, descreve o processo da domesticação dos animais de montaria:
A primeira domesticação do cavalo acontece quando a espécie deixa-se
dominar pelo manejo no campo. As fêmeas, machos jovens e alguns adultos,
os garanhões, ‘cuiudos’, ‘pastores’, são ‘xucros’, isto é, não têm
conhecimento da ‘lida com o gado’.
Outra parte do rebanho eqüino é chamada de ‘tropa’, composta de machos
castrados, ‘mansos’ de serviço, ‘que conhecem o serviço’, ‘a lida’,
resultado da segunda domesticação do cavalo, chamado genericamente, na
região de Poconé, de ‘animal’. (2002: 123)
43
O autor descreve a partir daí a associação cooperativa entre o peão e sua montaria:
Fontes orais descrevem cavalos que tinham verdadeiro conhecimento da
‘lida’, participando dela como parceiros, fonte de orgulho ao peão. Conta-
se de cavalos que ‘choravam’ quando não conseguiam ‘pegar a rês’,
animal bovino, que estavam perseguindo. (...) Perseguindo uma rês no
mato, é o ‘cavalo prático’ que segue a ‘batida’, pegadas, pois não há tempo
e visão ao peão para isso. ‘Rompem o mato juntos’ (...) no desbravamento
dos ‘lugares brutos’... (2002: 124-125)
Além dos cavalos, os cães de pastoreio também são parceiros constantes dos
vaqueiros, ajudando-os a reunir e dispersar o rebanho. Os bois ‘sinuelos’, que são
mansos, acompanham os cavaleiros quando é preciso deslocar uma boiada ou lote
grande, então o manejo do gado (arredio ou brabo) é uma colaboração muitas vezes
entre peões, cavalos, cães e bois (mansos).
Além das dessas duas formas de rastreamento, ambas visuais, o manejo do rebanho
também inclui também códigos auditivos como os diversos tipos de gritos dos vaqueiros
‘eeei’, ‘iiiie’ ‘ioooo’ ‘iiiiiuuu’ (agudos), ou então ‘eh, boooi, booi’(graves), para fazer
o rebanho dispersar ou reunir-se – e os mugidos e sons do rebanho aos quais os
primeiros estão atentos. Os gritos também são usados para a manutenção do contato
entre os peões no campo, assim como na comunicação com os cães.
Apesar dessa diversidade de códigos, o que procuro mostrar ao longo do capítulo é a
predominância da visualidade na relação entre o gado, os vaqueiros e seus ‘auxiliares’
animais. As formas de classificação e a linguagem utilizada pelos vaqueiros no campo
se caracterizam por sua eficácia: eles são capazes de ‘ler’ o rebanho O sinal da fazenda,
por exemplo, está em todos os animais, então é um sinal com significado ‘fora’, mas
não no manejo interno. Outras marcas, como o ano do nascimento, permitem uma
identificação à distância, assim como o número do brinco.
Procuro mostrar que essas marcas, que fazem parte do vocabulário visual dos
vaqueiros, são inscritas sobre uma primeira camada a pele dos animais na qual se
baseia grande parte da linguagem descritiva utilizada por eles, enfatizando cores e
atributos físicos. Durante o trabalho de campo, solicitei várias vezes aos vaqueiros que
identificassem as cores de cavalos (e mulas) e também do gado. Os termos usados para
cores de cavalos e mulas foram: tordilho (branco), tordilho perdez (banco salpicado de
pintas), baio (amarelado), ruano (mais claro que o baio), pampa (malhado de branco e
44
preto ou vermelho), alazão (vermelho), mouro (marrom escuro), e rosilho (marrom
salpicado de branco); para o gado foram citadas as seguintes cores: branca, fumaça
(branca com cinza), brasina (baio com escuro), lobuna (amarelado bem escuro);
vermelha, vinagre (vermelha com preta) e tostada (escuro).
As cores branca e fumaça referem-se especificamente ao gado zebuíno branco, ou
nelore, que predominava na fazenda, e sobre o qual falarei adiante. Esse tipo de gado,
mais recentemente, substituiu em todo o pantanal gado pantaneiro ou Tucura, de
origem ibérica, que atualmente é apontado como ameaçado de extinção (Mazza 1994;
Campos Filho 2002).
Referindo-se especificamente ao Tucura oriundo do norte do Pantanal, Campos
Filho (2002) reporta o seguinte cromatismo:
[A]s cores variam do amarelo, baio ao preto, havendo cores mistas, como:
malhado, manchado, pintado, jaguané, mouro, apatacado, fusco, galante,
araçá, bamba; e cores compostas, como pêlo de rato, ruço. (: 49)
O cromatismo do gado e dos cavalos são elementos centrais para os peões
descreverem uma vaca ou um garrote individualmente, o que fazem acrescentando
também outras características físicas, o formato e o tamanho dos chifres ou qualquer
outro traço peculiar daquele animal. Assim, eles identificam, por exemplo, a mãe de um
determinado bezerro no meio de um ‘lote’ de gado ‘branco’, no qual distinguem
tonalidades de ‘fumaça’ (branca com partes cinza mais ou menos escuras). O elemento
cromático é utilizado numa espécie de descrição breve do animal, um substituto do
nome em um gado que não é nomeado.
Procurarei mostrar adiante que o cromatismo é também um elemento central na
nomeação das onças pantaneiras, aproximando a classificação delas desta espécie de
pré-nomeação do gado utilizada pelos peões no campo, na lida com o rebanho.
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2.2. Clube do Laço
O laço é a arma do campeiro.
Seu Zé Carlos, Fazenda Caiman (10/3/2006)
Domingo é dia de folga dos peões na São Bento. Aqueles que não estão fazendo
faxina, lavando roupas ou arrumando a casa trabalham com seus apetrechos de trabalho
e de montaria. O couro de gado é a base de fabricação da maior parte dos utensílios dos
vaqueiros. É o material usado na fabricação do laço, dos chicotes, bainhas de facas,
rédeas, badranas (que prendem a sela), o coldre do revólver, o “embornal”
(onde carregam alimento), dos arreadores [N. usados para produzir um estalo
alto e provocar movimento no rebanho (Banducci 1995)] entre outros acessórios.
Um chifre de formato adequado também é usado para se fazer a “guampa”, o recipiente
no qual se toma o tereré, o mate gelado que mata a sede e reúne os vaqueiros.
Grande parte do trabalho de curtume diz respeito à fabricação e à manutenção do
equipamento de cada campeiro, que é responsável por todos os seus utensílios,
incluindo o laço e toda a “traia” de montaria. É o caso do campeiro Bugrinho, que
fabrica para si um novo laço na varanda do galpão dos peões, aproveitando seu
domingo de folga no retiro da São Bento. Ele é um dos mais jovens da turma da
pecuária na São Bento, e explica que esperou a sua vez, revezando com os outros peões,
para ficar com o couro de uma das vacas carneadas ali mesmo, no retiro. Fico
acompanhando o trabalho, enquanto conversamos.
Ele usa quatro tiras compridas de couro, cada uma com uma medida de trinta e cinco
braços. Quatro novelos com essas tirasestão espalhados pelo chão, e as cordinhas vão
sendo trançadas com apoio de uma das colunas de madeira da varanda do galpão. Cada
vez que trança as tiras, o peão usa o peso do corpo para puxar e dar aperto ao laço. O
modo como trança e aperta são determinantes no resultado final. Ele demonstra as
etapas de trabalho para uma série de fotografias [FIG].
A casca do angico obtida no mato diz o peão é tradicionalmente usada para
curtir o couro, sendo batida na água onde a peça fica mergulhada. Antes de ser curtido,
o couro foi esticado ao ar livre para ser limpo e salgado. A tira de couro, chamadas de
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“tento” ou “cordinha” é obtida a partir do corte em espiral do couro curtido, o que é
feito à faca e requer uma grande habilidade por parte do peão. A fabricação dos
utensílios de trabalho é um conhecimento altamente valorizado nas fazendas, e um laço
de qualidade pode ser trocado ou vendido na cidade por um bom preço, o que pode ser
uma fonte de renda adicional para o peão.
Em seu trabalho sobre os vaqueiros da região da Nhecolândia, Banducci (2007
[1995]) afirma que:
Em algumas fazendas a fabricação de laço é estimulada e o resultado de
seu comércio na cidade - de fácil aceitação, já que são tidos como de
excelente qualidade - é revertido em bens de uso para o peão, como botinas,
capas de chuva, calças de lona, argolas para a traia, etc., uma forma de
estimular as suas habilidades e permitir-lhes um meio alternativo de
adquirir bens manufaturados, ainda que sob o controle do fazendeiro.
(2007[1995]: 50)
Em nota, o autor observa que:
É o proprietário quem leva os laços para a cidade e, chegando lá, troca-os
em selarias por artigos que, no retorno à fazenda, entrega aos peões. Se a
troca foi feita por uma botina, por exemplo, no final da transação os peões
recebem um par do calçado por cada laço trançado.
Observando o valor de ambos os produtos numa selaria de Campo Grande,
que comercializa os laços pantaneiros, verificou-se que o preço de venda do
laço equivale ao de duas botinas de qualidade inferior. (Idem)
Os serviços de um artesão habilidoso no trabalho com o couro são apreciados tanto
por outros vaqueiros quanto por fazendeiros e conhecidos, e sua reputação assim
como a de um bom laçador se estende por toda a região, sendo que o trabalho circula
principalmente em um sistema de trocas. Banducci reporta ainda que:
As fazendas costumam pagar pela doma de cavalos xucros, pois eles são
fundamentais para o trabalho com o gado. Algumas chegam a pagar o
equivalente a um salário e meio para cada cavalo amansado pelo peão,
outras presenteiam-nos, no final do ano, com novos arreios e indumentárias
para o trabalho no campo, em pagamento por todos os animais domados.
(Idem: 71)
47
Quando deixei a São Bento pela última vez na pesquisa, fui de carona com o
caminhão da fazenda para a cidade de Miranda, com a intenção de acompanhar um
evento que ocorreria no Clube do Laço, na sede do Sindicato Rural do Município, no
primeiro final de semana de novembro de 2008. Era final de semana de pagamento, o
único em que o pessoal que mora nas fazendas da região costuma ir para a cidade trocar
os cheques e visitar a família.
No sábado de manhã, saí do hotel para ampliar algumas fotos e gravar CDs com as
filmagens e fotografias feitas nas últimas semanas na fazenda, conforme havia
prometido aos campeiros. Encontrei por acaso no caminho um jovem campeiro da
fazenda, que estava numa loja de roupas na rua onde eu procurava uma loja de
revelação. Ele explicou-me que costumava trocar seu pagamento nessa loja, onde
aproveitava para comprar suas roupas, que o cheque da fazenda era de um banco que
não possui agências na cidade. Esperamos alguns minutos até a chegada de uma
funcionária que trazia o dinheiro. Queimadinho era o mais jovem peão da São Bento, e
segundo ele o final de semana de folga era o único em que precisava de dinheiro, em
geral gastando quase tudo o que recebia.
Paulo passou então de bicicleta também por acaso, e se juntou a nós. Os dois me
acompanham até a loja de fotografia, e escolhem algumas imagens para serem
ampliadas. Durante a estadia na fazenda, eu carregava sempre uma câmera, e várias
vezes tinha filmado ou fotografado o trabalho deles com o gado. As imagens preferidas
eram àquelas nas quais apareciam laçando (na fazenda, as fotos e filmagens eram
assistidas com interesse no Galpão, e os peões se divertiam com os erros dos outros e
pediam para eu gravar quando achavam a cena ou a foto boa).
Na própria loja havia uma série de ampliações grandes de campeiros laçando, em
vaquejadas, com público assistindo, e numa delas reconheci Seu Carlos, retireiro da
Caiman que tinha conhecido em 2006, participando de uma vaquejada na pista da
fazenda. Quando deixamos a da loja de fotografia, tomamos cada um três copos de
caldo de cana (“guarapas”), que Paulo faz questão de pagar. Entre os moradores de
Miranda, ele e seu irmão Ramon são casados, e as esposas e filhos moram na cidade;
Queimadinho e Bugrinho, mas jovens, são os únicos (“realmente”) solteiros da turma.
Chego cedo ao local do evento, que ainda está sendo preparado. No cercado, os
primeiros peões testam seus cavalos, preparando-se para a competição da "vaca gorda",
o maior prêmio da noite. O nome é por causa da antiga premiação, e o maior prêmio no
48
evento atual é de 600 reais em dinheiro. A inscrição custa 30 reais o trio e pode ser feita
na hora, com corridas à tarde toda.
A principal competição, no entanto, é por equipes. Os peões de muitas fazendas da
região vêm uniformizados para a competição, que é a mais tradicional e mais procurada
pelo público. As fazendas concorrem por taças, e encontro entre os conhecidos a equipe
da Fazenda San Francisco, composta pelo guia de turismo Giuliano, Seu Adão e os dois
filhos – Elmo e Nildo, e Júnior, um técnico em pecuária que havia deixado a fazenda
alguns meses. Este último conta que ficou um período em Miranda fazendo bicos como
topógrafo e está no caminho de volta para Alegrete, no Rio Grande do Sul, sua terra
natal.
Assistimos à competição e vou aprendendo as regras, como quem assiste pela
primeira vez a um jogo de futebol: Laçadores se revezam em várias categorias. O
campeiro precisa acertar entre o focinho e o pescoço do boi, fechando o laço em torno
dos chifres, para marcar o ponto; se o laço fica apenas no pescoço, a laçada é negativa.
Um "bandeirinha" a cavalo sinaliza os pontos: bandeira branca para os positivos e
vermelha para os negativos. Quando o laçador perde o chapéu ou ultrapassa a marca de
cem metros no meio da pista, também perde os pontos, independentemente de acertar a
laçada.
Sobre as habilidades dos vaqueiros, Banducci afirma:
Se numa vaquejada o peão deixa escapar alguma rês, a frustração é
imediata, e sua contrariedade, que pode durar horas ou dias, é ainda
avivada pelas brincadeiras dos colegas, que devem ser aceitas com
resignação. Se não consegue domar um cavalo xucro ou demonstra temor
em fazê-lo, na certa será ridicularizado. No entanto, a prova de destreza
nessas atividades resulta num reconhecimento que ultrapassa em muito os
limites da fazenda. Na rodas de conversas, volta e meia o assunto centra-se
na capacidade deste ou daquele peão em laçar, domar, cavalgar, etc.
(1995[2007]: 96-98)
As provas mais importantes do Clube do Laço acontecem no domingo, segundo dia
de competição. Finalmente acho o pessoal da São Bento, de quem havia me
desencontrado no dia anterior. Encontro novamente Júnior, o gaúcho, e desta vez
também nosso amigo comum Éberton, fotógrafo que trabalha na San Francisco. Este
último, como único profissional presente, me leva até a torre onde ficam o narrador e os
49
organizadores do evento, de onde temos o melhor enquadramento. Éberton usa uma
Canon de última geração, e é especialista em fotos de animais selvagens, e usa um
disparador rapidíssimo, como um fotógrafo de esportes. Com equipamento bem mais
modesto, meus resultados não são tão impressionantes, mas finalmente consigo algumas
imagens boas das laçadas, tendo o público ao fundo. Nelas, é possível perceber
claramente algumas laçadas positivas, e também desenhos interessantes que o laço
produz no ar; boi, cavalo e cavaleiro capturados em disparada na tensão do movimento;
o jogo de olhares entre os três participantes; a perfeita sincronia que produz uma laçada
positiva.
Laçadores profissionais e amadores podem participar, e o concurso reúne
fazendeiros, peões e capatazes. Alguns laçadores totalmente inexperientes competem
com outros que treinam diariamente. O narrador do evento diz de determinado
competidor, que é também um dos patrocinadores do evento, que "vem montado em
duas carretas de novilhas", referindo-se ao valor do cavalo montado por ele. A grande
maioria dos participantes é de homens (e nas fazendas só conheci também peões
homens), mas algumas laçadoras participam do concurso, e assisto a três duplas
femininas competindo. Elas são, é claro, as mais aplaudidas pelo público.
Nas provas por equipes, os laçadores trazem camisas ou coletes com os nomes das
respectivas fazendas. Enquanto tomamos cerveja assistindo a vaquejada, Júnior afirma
que ganhou prêmios no Sul, mas que parou de levar a sério as competições. Ele
comenta que o pai tem uma pista de laço, e que treina desde os oito anos de idade, mas
que está ali para se divertir, usando cavalo e equipamentos emprestados. Afirma
também que existem diversos profissionais que vivem de competições de laço, em
diversas partes do Brasil, e menciona nomes conhecidos, só acentuando meu total
desconhecimento a respeito do assunto. A melhor colocação da San Francisco foi um
terceiro lugar obtido em 2007, e mais tarde eu teria a oportunidade de ver o troféu,
exposto no escritório da Pousada.
Essa dimensão ‘esportiva’, ritualizada, do jogo com regras, encena a ‘lida’, o jogo
com o gado nas fazendas, no qual o laço é o principal equipamento de trabalho dos
vaqueiros. No controle e manejo do rebanho ele é, literalmente, aquilo que conecta o par
vaqueiro-e-cavalo ao animal perseguido; aquilo que permite ao vaqueiro subjugar seu
adversário. Ao mesmo tempo, no entanto, o laço é fabricado com o couro, e resulta,
portanto de uma captura anterior. Mais que o controle e dominação, quero chamar
50
atenção aqui para o laço como elemento de associação, de conexão, a partir do qual os
pantaneiros e seus rebanhos seguem amarrados.
É com o laço que o bezerro é pego para ser ‘cuidado’, o gado que se solta conduzido
de volta ao rebanho, o cavalo xucro amansado e o boi bagual (bravo) capturado. É com
ele também que se conduz a matula para o sacrifício. Minha intenção nessa breve
descrição da fabricação e da prática do laço é justamente designá-lo como esse duplo
dispositivo de captura ele é fabricado do mesmo animal que serve para capturar. Na
seção seguinte, o abate também será designado como um dispositivo decaptura, mas
neste caso uma captura de segundo grau, na medida em pressupõe a primeira.
2.3. O abate
Faz parte da rotina das fazendas do Pantanal o abate periódico de animais para o
consumo dos moradores. Na São Bento, o responsável pela “carneação” é o próprio
capataz, Seu Ormir. De acordo com ele, a fazenda costuma abater duas vacas por mês,
uma para os funcionários ‘casados’ (sendo que o custo, abaixo do mercado, é abatido no
final do mês no salário), outra para a cantina, onde almoçam os ‘solteiros’. Logo que
cheguei à fazenda para o trabalho de campo pela primeira vez, entrevistei o capataz, e
ele me mostrou uma listagem com todos os animais da fazenda, divididos em
categorias, e explicou os termos que ainda não eram familiares para mim. Além do
gado, a fazenda cria búfalos e carneiros. Tambero é o gado manso’ anotei na época
‘e inclui as vacas de leite e sinuelos. ‘Matula’ é a vaca separada para o abate. O
sinuelo’ é o boi que conduz a boiada’. A listagem de Seu Ormir diferenciava ainda o
“gado de corte” do “gado manso” incluindo “vaca de leite” e o “sinuelo” que “tem
até nome”. Assim como a “tropa” cavalos e éguas de montaria da fazenda, que são
os companheiros de trabalho dos campeiros, o gado manso tem nome e vive na sede (ao
contrário do gado de corte). Seu Ormir reponde ainda que é comum que bezerros,
cabritos ou potros órfãos sejam criados na mamadeira pelos peões; esses animais são
chamados de “guachos”, e se incluem também entre os mansos.
Em nota sobre o tema, Banducci (2007) reporta que:
Bezerros "guachos" são animais "órfãos", normalmente deixados nas
fazendas por boiadeiros, que não resistem à marcha junto com o
rebanho, ou cujas mães não conseguem amamentá-los, sendo presenteados
51
pelo fazendeiro aos peões. São criados como animais de estimação,
alimentados com o leite da ordenha através de mamadeiras improvisadas,
recebem nomes carinhosos, como princesa, boneca, garoto, mimoso, entre
outros. (2007[1995]: 93)
“Em geral” explica Seu Ormir “o animal negociado pela fazenda é o garrote
macho, e a fêmeas fica na propriedade” (10/2008). Falando sobre o fornecimento da
carne para consumo interno, ele afirma que o ideal é a vaca ter um bezerro por ano;
“passa muito tempo sem produzir, entra na fila para o abate” conclui. E complementa
ainda que, em alguns casos, um lote de “vaca gorda” ou “vaca meio-cheia” pode entrar
também na negociação com criadores ou frigoríficos.
Durante a estadia na São Bento não acompanhei nenhuma vez um abate de gado,
apenas o de carneiros. Descrevo a seguir o processo em 16 imagens, tomando como
ponto de partida a carne cortada no açougue. Minha intenção com essa inversão da
cronologia das imagens é descrever a carne como aquilo que é capturado numa
seqüência de eventos que se inicia com o animal sendo laçado.
Na primeira foto, Ramon exibe um pedaço de carne recém cortado, tendo ao lado
Jiló e seu filho, John Erbert (que participa ativamente da seqüência de fotos), com Paulo
ao fundo. Antes disso, a carne foi trazida em grandes pedaços, e pendurada em ganchos
dentro do açougue. Os três campeiros estão responsáveis por cortar a carne, dividindo
os pedaços de acordo com a solicitação dos moradores. Eles comentam, brincando,
sobre a dificuldade de satisfazer a todos os pedidos. John Erbert está curioso com a
câmera, e quer a parecer em todas as fotos. Ele pede também para fotografar-me.
O açougue, para onde a carne cortada foi levada, fica ao lado do “disco de cimento”
três carneiros acabaram de ser abatidos. O disco onde os animais são abatidos é uma
estrutura circular com cerca de três metros de diâmetro que culmina numa canaleta feita
para o escoamento do sangue. Vários carcarás se aglomeram pelas redondezas à espera
de sobras. Queimadinho, o peão mais jovem da turma foi incumbido de a levar os restos
– incluindo as cabeças dos três carneiros – ao local onde são depositados.
Na foto tirada 20 minutos antes, Jiló faz pose para a fotografia junto ao animal ainda
sendo carneado, enquanto termina de tirar o couro. Seu Ormir observa, ao fundo,
enquanto esguicha água para limpar o disco. Antes disso, enquanto dirigimos de volta
para o retiro, Concha comenta que matou carneiros, mas que não gosta de ver porque
eles ficam pendurados pelas patas de trás, e é necessário deixar escorrer todo o sangue
52
para a carne ficar branca. Assim, a próxima foto foi tirada uma hora antes, quando os
carneiros estavam amarrados ao poste em formato de forquilha no centro do disco,
enquanto eram feitos os preparativos para a carneação. [ANEXO 2]
Enquanto levava o primeiro carneiro para amarrar ao poste, Seu Ormir observa o
animal, lamentando abater carneiros “de raça” como aqueles. Concha concordando,
complementou que cada um deles devia valer até 500 reais, o salário de um campeiro.
Os carneiros foram trazidos do capril, na sede, na caçamba do caminhão. Acompanhei
então o pessoal de manhã quando saia para buscar esses carneiros. Fomos até a o capril
localizado na Sede, atrás do escritório de da pista de pouso, onde encontramos Irineu,
que além de tratorista era também o encarregado pela criação de carneiros.
Os animais foram selecionados por Paulo, laçados, e trazidos a bordo com a ajuda de
Concha o motorista, e Aluísio, o peão salgador de coxo. A fazenda estava se
desfazendo, na época, da criação de carneiros – que tinha cerca de cem cabeças – e tinha
oferecido alguns animais para serem sacrificados para o consumo interno dos
funcionários, na cantina.
Na mesma semana, outro carneiro foi sacrificado na sede e servido em um
churrasco, seguido da pelada entre os times da sede e do galpão. O abate de carneiros,
no entanto, é uma exceção nos hábitos alimentares na fazenda. A ‘regra’ é que a cantina
sirva carne bovina nas três refeições diárias, incluindo o café da manhã, quando
tradicionalmente se come o arroz carreteiro. No almoço e no jantar a carne é servida
ensopada ou assada, normalmente acompanhada de arroz, feijão e mandioca.
A partir de seu trabalho na região da Nhecolândia, Banducci (2007) afirma sobre os
hábitos alimentares:
Vale ressaltar que quando fala em carne
, o pantaneiro refere-se à carne de
gado, do contrário acrescenta um denominativo: carne de caça, de frango,
etc., que não têm (...) o mesmo valor da primeira. (...)
O autor reporta ainda que:
A carne é (...) o principal alimento para os campeiros; sem ela, sentem-se
como se não tivessem comido. Um dos informantes disse que suporta uma
ou duas refeições sem carne; mais que isso, passa fome. (...) Existem casos
de peões que deixaram de trabalhar nas propriedades em que estavam
53
empregados porque achavam que não havia fartura na distribuição de
carne. (2007 [1995]: 36-37)
Peixes como o pintado e o pacu são também bastante apreciados na região, e a São
Bento é cortada pelo rio Miranda, onde muitos moradores vão pescar no final de
semana. Nas refeições servidas na cantina, contudo, não foi servida carne de peixe
enquanto estive na fazenda, a não ser uma única vez durante o período da quaresma,
sem contudo substituir a carne vermelha. Pude perceber que o tabu da carne vermelha
nessa época é respeitado tradicionalmente pelos moradores, principalmente na Sexta-
Feira Santa, e um assunto pelo qual me interessei na ocasião era essa interdição
alimentar. De acordo com um dos peões, que tinha morado em uma região que, segundo
ele, tinha “pouco peixe”, o pessoal comia jacaré e até capivara nessa época, animais
“de água”. Por pura coincidência, deixei a São Bento um dia antes do dia santo, numa
quinta, então não pude constatar neste dia a cantina servia apenas carne branca. Depois
disso, o assunto desaparece das minhas anotações quase completamente. Mas retomarei
o tema da quaresma adiante a respeito da caça.
Filmar uma carneação, apesar das minhas resistências ‘urbanas’, significava assistir
a um evento que nunca tinha presenciado antes, apesar de sempre ter comido carne. A
idéia surgiu na São Bento, mas acabei realizando a filmagem em outra propriedade
visitada durante o trabalho de campo
7
, que designarei aqui como Fazenda B. O local
onde os animais eram abatidos e carneados na Fazenda B. ficava a uns cinqüenta metros
da casa onde os peões guardam seu equipamento de montaria, no piquete principal da
área da pecuária. Ao lado do disco de cimento onde são feitos os abates, havia uma
pequena casa, na qual o couro é salgado. Fixada no centro do disco fica uma estrutura
de madeira em forma de “T”, vertical, com cerca de quatro metros de altura. Em cada
uma das pontas do “T” ficava uma roldana com correntes, e na circunferência do disco
passavam valetas de escoamento que desembocam em uma de suas extremidades.
Olhando retroativamente para o material, percebo o registro em vídeo como um
desenvolvimento de um tema discutido no primeiro capítulo. A intuição que motivou o
registro em vídeo foi a de que o bezerro era o alimento comum, o elemento familiar
entre o vaqueiro e a onça. A seguir, procurarei descrever as cenas do ângulo de quem
assiste, sem me colocar ‘na minha própria pele’ enquanto filmava:
7
Optei neste caso por não especificar a fazenda onde o evento foi registrado, nem os nomes das
pessoas envolvidas.
54
O vídeo começa com um plano aberto do campo. Em primeiro plano está a
pastagem verde do piquete, e é possível ver-se uma cadeia de montanhas no
horizonte e o céu azul, sem nuvens. O mangueiro e o curral de gado aparecem a
média distância; uma vaca preta corre. É a primeira matula. A distância é
possível se observar o laço que está preso em seu pescoço, puxado um peão
campeiro que está fora do quadro. Um segundo peão, que passa a cavalo por trás
da vaca, de camisa amarela, canta agudo e desafinado, brincando com os
companheiros:
– Hei, hei hei, hei! Adeus, adeus, prenda querida...
Ouvem-se risos e vozes ao redor. A vaca tenta se desvencilhar, puxando o
laço para trás, num movimento inesperado. O peão que está atrás dela toca o
cavalo, a meio passo, enquanto começa a girar o seu próprio laço. Respondendo
ao movimento, o animal corre, mas faz a volta novamente e se aproxima mais da
câmera. Os risos ficam mais tensos.
– Ô... Ih, vem lá! – diz alguém.
O laço está bem apertado e a vaca respira ofegante enquanto pára por um
momento jogando a cabeça para trás. O peão avança e gira novamente o laço. A
vaca muge rouco, sufocada; ela sacode a cabeça e, súbito, investe.
– Olha a vaca... olha! Iihhh – grita o campeiro.
Ela corre na direção do cinegrafista, que foge. [Como não é possível
identificá-lo na imagem de vídeo, é preciso a informação complementar de que
quem filmava era o autor]. A câmera balança e aponta para o chão,
desgovernada. No fundo vê-se uma pessoa em pé, enquanto ouvem-se gritos e
risos:
– Êita! Uouuu!
A câmera balança sem parar, e é possível ver novamente a sombra do
cinegrafista correndo, de boné. Alguém brinca:
– Biólogo
corre, rapaz!
O peão que vinha atrás da vaca responde:
– Viu o biólogo correr! Achei que biólogo
não corria, não!
– Ah lá guri, ah! Êh! – diz um terceiro
(Muitos peões deste grupo já haviam sido entrevistados individualmente,
antes da filmagem. Nessas entrevistas eu explicava o que estava fazendo na
55
fazenda, que era antropólogo, etc, mas isso não impediu que eu fosse classificado
aqui como “biólogo” a partir da minha aproximação com o estudo sobre onças).
Quando a câmera fica fixa novamente, a vaca esa uma distância segura, e
puxa o laço, que agora aperta seu pescoço. O campeiro que a segura aparece
agora em primeiro plano. Entre ele e a vaca está o poste central do disco de
abate, e mais dois peões montados são vistos ao fundo.
O primeiro campeiro espera que a vaca se mova e vai para a esquerda, saindo
novamente do quadro, de modo que o laço, que o liga a vaca, fica esticado em
“V”, passando em torno do poste central. O cavalo então puxa na direção oposta,
usando o poste como apoio, para que animal chegue cada vez mais perto do local
do abate. Os outros peões ajudam a puxar a rês, que ao tentar se afastar salta e
oferece resistência, ficando cada vez mais asfixiada. Ao fundo os peões se
movimentam para direcioná-la, e ela vai chegando cada vez mais perto até
encostar a cabeça no poste.
Assim que isso acontece, os dois peões praieiros responsáveis pelo abate
andam em direção ao disco. Ambos são bastante jovens e usam galochas.
Enquanto diminui a marcha, ele puxa a faca fina e comprida de sua bainha de
couro, que fica presa no cinto às suas costas, como é costume local. Seus
movimentos agora são mais lentos. O outro peão pega uma mangueira no chão e
começa a molhar o disco. Enquanto isso o primeiro se posiciona ao lado da vaca
enquanto apóia no poste, parando por um momento. Alguém fala:
– Agora, agora.
Ele faz um movimento à frente e se afasta, rapidamente, e alguns passos
para. Depois volta novamente e espera o animal parar de para puxar a faca, que
ficara presa. A vaca esperneia algumas vezes, mas por fim fica parada puxando a
corda para trás. O sangue jorra do pescoço do animal, enquanto o segundo peão
usa a mangueira para direcionar o líquido vermelho para a extremidade do disco.
Os campeiros, que estão observando, discutem se o golpe foi certeiro ou não, em
tom zombeteiro:
O que a gente vai fazer aí? Você quer dar outra punhalada nela? diz um
dos peões provocando o responsável pela carneação.
O tempo passa; dizem:
– Vai caí, vai caí...
– Já foi. Virou os olhos, tombou.
56
Depois de três minutos de pé, a vaca finalmente dobra os joelhos e cai
pesadamente no chão.
– Demorou demais a morrer. Não acertou o “morredor” dela, cortou o gogó
dela – diz o campeiro novamente brincando com o carneador.
– Já foi, bigode! – responde um deles.
O campeiro volta ao curral para trazer uma segunda matula.
A segunda vaca, menor, é branca. Repete-se o mesmo ritual. Um peão vem a
galope, por um lado do disco, correndo paralelamente à vaca, do outro, de modo
que o laço passa pelo poste. Assim, o cavaleiro faz com que o cavalo puxe a vaca
indiretamente utilizando esse ponto de apoio fixo no qual a força é concentrada.
Rapidamente a cabeça fica encostada no tronco. Desta vez o responsável por
sangrar o animal é o segundo peão praieiro. Ele se aproxima caminhando
resoluto. Alguém diz:
– Do lado de cá, lado de cá.
A matula esperneia, mas escorrega no cimento molhado. O peão contorna e
se aproxima pela frente do animal. Espera ela levantar.
– Não vai dá, a lá, tem que frouxa um pouquinho [o laço] pra ela levantá.
– Agora, agora! Engrunvinhou tudo.
O responsável pelo abate passa por cima do laço e se posiciona ao lado da
vaca, apoiado no poste. Segura a faca reta, paralela ao chão, na altura do
pescoço, e, finalmente, a estocada. A vaca muge e escoiceia, enquanto ele
recua três ou quatro passos para trás. Ele volta e repete o golpe.
Fora de cena, alguém comenta:
– Essas novilhinha são nervosas, né...
A vaca tomba para a frente e encosta a cabeça no chão. Em menos de um
minuto ela cai, o sangue jorrando vermelho sobre o couro branco. Os dois
praieiros ficam parados observando, enquanto um deles joga água com a
mangueira, limpando o sangue.
– Caiu já, caiu.
57
Os outros peões cantam e contam piadas. Enquanto isso o peão se aproxima e
uma nova estocada. A cabeça da vaca tomba e o praieiro retira o laço dos
chifres, mas ele fica preso por baixo do animal:
– Ah, não vai não hein...
– Vai ficar boa essa carne hein – provoca um dos que assistem ao abate.
Os campeiros se afastam. Um dos praieiros dirige um trator até o local, com
caçambas grandes de plástico na aonde será colocada a carne. Depois de abatidas as
duas vacas, os campeiros se retiram, e ficam trabalhando os dois praieiros
responsáveis pela carneação. As patas traseiras das vacas são presas num objeto de
metal de mais ou menos um metro, com ganchos em ambas as pontas, que fica
pendurado nas correntes da estrutura em T. A vaca é então içada através de um sistema
de roldanas, e a carneação começa pela retirada do couro.
Chega um senhor, vaqueiro da fazenda, numa pequena carroça e começa a ajudar os
dois jovens praieiros. Os três trabalham, parando de tempos em tempos para afiarem as
facas. Enquanto o couro vai sendo retirado, inteiro, a não se pela cabeça e os cascos,
eles vão içando a vaca mais para cima, até que fica quase toda suspensa no ar. Minha
impressão ao assistir é de que, quando o couro vai sendo retirado, aquela vaca vai
deixando de existir, até que em determinado momento o que pende do gancho é um
grande pedaço de carne fresca, num açougue ao ar livre.
O jovem responsável pelo abate vai mostrando os pedaços que tira com a faca o
filé, a picanha, o cupim e os leva até um recipiente grande de plástico que está na
de um trator. O vaqueiro recém chegado diz, numa piada que não entendo,
possivelmente em referência à carneação na semana anterior:
– Hoje eu vou abençoar ela de novo?
– Diz que ajuda, né... – responde o praieiro, rindo.
O couro é levado para uma casa ao lado onde é salgado e deixado para ser curtido. A
cabeça e os restos que não são aproveitados são jogados em tonéis de plástico. Um dos
homens usa um machado para quebrar os ossos e abrir a vaca, pela frente, e retira os
órgãos internos, que passa a cortar com cuidado. O vaqueiro mais velho seleciona
algumas partes:
– Levar essas tripa aqui...
58
Os dois praieiros recolhem as patas e cabeças de vaca que joga em um tonel de
plástico. O vaqueiro coloca os pedaços que selecionou na carroça.
– Já está acabando as férias?
– Dia primeiro está. Tchau pra vocês.
Ele se afasta, tocando a mula.
Então semana que vêm não vai mais pra você ajudar seus
companheiro – diz o praieiro.
Os pedaços de carne estão cortados e foram colocados nas caçambas plásticas, na pá
do trator. Eles terminam de limpar o disco de cimento, guardam os ganchos e recolhem
a corrente, e finalmente se afastam.
– Está filmando com áudio?
– Estou.
O processo todo, com as duas vacas, leva cerca de uma hora. No final, restam as
cabeças (só é aproveitada a língua) e alguns pedaços da coluna e das tripas dos animais,
que são colocados em um tambor de plástico para serem levados até o buraco onde
serão despejados. O couro é imediatamente levado para uma casinha de madeira e
salgado. O trator é ligado e se afasta. Urubus e carcarás, que estão reunidos nas árvores
ao redor, pousam no exato momento em que o trator se afasta, disputando as migalhas
deixadas para trás.
O trator leva então a carne para a sede e os pedaços ficam pendurados no açougue da
sede. Os dois peões que abateram as vacas são também os responsáveis pelo corte e pelo
atendimento aos moradores que vão comprá-la; eles vão chegando, se reúnem em frente
à portinha de metal, conversam com os açougueiros, e saem com seus pacotes. No final
da tarde a carne tinha sido toda vendida.
No final da carneação, os peões estavam voltando do campo, e me juntei a eles no
galpão para uma rodada de tereré. Logo em seguida chegaram o capataz da fazenda e
outro peão, identificado como responsável por salgar os coxos. Falando sobre as vacas
recém abatidas, o capataz pergunta se o vaqueiro que participara da carneação havia
deixado um pouco do bucho para ele. Um peão provoca, dizendo que a carroça do velho
estava lotada, e que ele tinha falado para o capataz pegar buchada de carneiro. O
primeiro respondeu que estava falando de carne. Eles comentam sobre o hábito
nordestino de comer buchada de bode, com evidente desgosto.
59
Minhas reflexões no campo foram sobre o modo como o abate marcava uma
diferença significativa entre a vida na fazenda e a minha experiência na cidade. Por
outro lado, a carne de vacas como aquelas, criadas na fazenda, chegam aos
supermercados do Rio de Janeiro, onde moro.
O abate faz parte do cotidiano da fazenda e o clima entre o pessoal que estava
trabalhando durante o evento filmado era de descontração: os peões falavam alto e
brincavam a respeito do tamanho da vaca e das peças de carne que iam querer. Banducci
(2007) caracteriza a designação damatula e o tratamento jocoso e a agressivo
dispensado a ela nas fazendas do pantanal como processo de afastamento em relação ao
animal selecionado para ser abatido, ao qual é dispensado um tratamento diferente
daquele usado com outros tipos de gado. Os “mecanismos de defesa” do abatedor, no
entanto, foram temas que desenvolvi pouco durante a pesquisa de campo. Apesar de ter
entrevistado a grande maioria dos funcionários (moradores adultos) da fazenda, eu
sequer entrevistei o responsável pela carneação, mesmo depois de ter assistido à cena do
abate.
Um texto clássico de E. Leach (1964) sobre categorias animais divide a parte
comestível do ambiente, para uma dada cultura, em três grupos: Primeiro, existem
osanimais que compõem a dieta normal de um grupo cultural (como o boi, no caso
pantaneiro); em segundo, substâncias que são consideradas comestíveis somente em
ocasiões especiais ou rituais. O terceiro grupo é composto de animais comestíveis
interditados culturalmente, que não são consideradas alimento (o cão nas culturas
ocidentais, por exemplo, ou o gado na índia).
Em Cultura e Razão Prática (1976), Marshall Sahlins, citando Leach, apontam
algumas categorias animais que se baseiam na participação do animal como sujeito ou
como objeto na sociedade norte-americana contemporânea. O autor descreve como o
modelo americano default de refeição está firmemente fundado numa centralidade da
carne bovina, sendo elamuitas vezes um símbolo de saúde e de prestígio social. A
sociedade ocidental urbanatambém opera uma desvinculação simbólica radical entre o
produto alimentar e sua origem animal. Nas fazendas industriais, os animais são
mantidos longe da visão dos consumidores; não os abatedouros ficam distantes das
cidades e os animais são sacrificados anonimamente, como ao consumidor urbano em
geral seria intolerável a visão do animal morto. O ocultamento da natureza orgânica da
carne, de acordo com Sahlins, se também através de dispositivos verbais, o que é
60
evidenciado pela distinção, na língua inglesa, entre carne como alimento (meat) e como
parte do corpo (flesh).
No ambiente rural, por outro lado, existe um engajamento do vaqueiro do com o
animal que vai ser comido enquanto ele está vivo, e a passagem entre os dois tipos de
carnese é uma experiência vivida cotidianamente. O ato do sacrifício animal também
está na base dos hábitos alimentares e do modo de vida urbano, mas a violência nele
contida é desvinculada simbolicamente do alimento consumido pelos habitantes das
cidades.No ensaio Porque olhar os animais
8
, John Berger afirma:
“Um camponês gosta do seu porco e fica contente ao salgar sua carne. O
que é significativo, e é tão difícil para o estranho urbano entender, é que as
duas afirmações são ligadas por um e
, e não por um mas”.
9
(2009: 16)
Da mesma forma, ospantaneiros admiram o animal nas vaquejadas, valorizavam o
desafio, a rapidez e a agilidade do novilho, e mais tarde se deleitam ao salgar sua
picanha. A aproximação entre a cena do abate e a familiaridade do vaqueiro quando
descreve o ataque da onça, no capítulo 1,remete a um conhecimento compartilhado da
morte animal, das entranhas do gado. Por outro lado, o que é significativo nas relações
entre os vaqueiros e o rebanho, o que marca a sua diferença em relação ao observador
urbano, é a experiência cotidiana dos animais vivos, a lida, o reconhecimento de suas
características singulares e traços marcantes.
2.4. Gado Branco
O bezerro predado pela onça na fazenda São Bento, capturado pela armadilha
fotográfica, era um representante do gado ‘branco’, o zebuíno da raça nelore, que
predomina na região sul do Pantanal. O tipo e a raça do gado trazem consigo um
emaranhado de elementos relacionados ao atual e ao tradicional no material
etnográfico. Para abordar o papel do ‘gado branco’ e do ‘gado pantaneiro’ em um
sentido etno-histórico, me reporto a seguir a alguns eventos e entrevistas feitas na
8
Why Look at Animals? (1977)
9
Tradução minha: A peasant becomes fond of his pig and is glad to salt away its pork. What is
significant, and is so difficult to the urban stranger to understand, is that the two statements in that
sentence are connected by an and
and not by a but.
61
fazenda no mesmo período em que o bezerro foi encontrado, relacionados a esses
diferentes ‘gados’.
No dia primeiro de novembro de 2008, fiz uma entrevista com o funcionário da São
Bento que dirigia o caminhão, chamado Concha. Assim como Seu Ormir, ele tinha veio
da Bodoquena, onde trabalhou desde os 14 anos de idade, a maior parte do tempo no
retiro Mutum. Eu havia tomado “Concha” como um “apelido” de fazenda, como os dos
campeiros “Jiló”, “Queimadinho” e “Bugrinho”, por exemplo, e pergunto a ele se é
mesmo. Ele diz: Concha é o apelido: Odinei Santos Concha”. Então é sobrenome
mesmo? – pergunto. Ele responde:“Concha é sobrenome”.
Ele me convidou então para acompanhá-lo quando ia levar sal e vitaminas para os
touros da fazenda, porque queria me mostrar como eles eram mansos. Percorremos de
caminhão a estrada até a sede, onde ele e Aluísio, que trabalhava como salgador de coxo
recolheram os pacotes de ração para o gado em um galpão isolado. O lugar era o mesmo
onde, meses antes, estavam os cachorros trazidos de Poconé para trabalharem na captura
das onças.
Seguimos então até o local onde alguns touros estavam reunidos, e muitos outros
se aproximaram enquanto estacionamos. Chegando à invernada onde estavam os
animais, no entanto, Concha chamou atenção para o comportamento dos animais e fez
algumas recomendações, que incluíam não fazer movimentos bruscos e não encará-los.
Ele e Aluísio saltaram começaram a tirar os sacos de ração do caminhão e a despejar seu
conteúdo em nos coxos, recipientes feitos com caçambas de plástico afixadas em postes
de madeira. Seguem as minhas anotações no dia:
Nos touros, é possível ver diversas marcas a ferro, símbolos e números, que vão
sendo traduzidos para mim: a marca da São Bento, outra da Bodoquena, o ano de
nascimento, entre outras; alguns animais são identificados como “rastreados”
também a partir das inscrições [um termo ao qual voltarei adiante]. São todos
zebuínos, da raça nelore, o “gado branco” dominante em toda a região. Animais
muito grandes. Concha faz uma demonstração de como é possível andar entre
sem perigo entre eles. Na volta para o retiro, ele usa os touros como exemplo de
como gado da fazenda é manso e relaciona isso a um contraste entre o atual e o
tradicional:
Agora está tudo diferente; antigamente o fazendeiro dizia: na minha
fazenda tem cavalo xucro, peão bom mesmo pra montar! Hoje em dia o
62
fazendeiro diz que até criança monta na tropa dele, que o gado é manso.
Hoje em dia, o cara que fala que tem gado baguá na fazenda, que tem
cavalo xucro, ficou pra trás.
Conversamos também sobre a onça e o projeto de conservação na fazenda:
O fazendeiro antigo também gostava de dizer que matava, que punha gente
para ir atrás dela. Falava: na minha fazenda a onça pega mesmo, pega
vinte, trinta rês... Hoje em dia ele quer mais é que tenha onça na terra dele.
Mas, depois de pensar um pouco, observou:
Quer dizer, não é todo mundo, é pouca gente que aceita. Aqui do lado, na
fazenda vizinha, com projeto e tudo, o cara falou que se comer a vaca
dele ele mata, não quer saber se a onça tem colar, se não tem.
Anotei a conversa com Concha nas paradas do caminhão, já que a tarefa era
impossível com o caminhão passando pelos solavancos da estrada de terra. Nessa
mesma tarde, quando estávamos de volta ao retiro, e pedi para gravar novamente
enquanto conversávamos na cantina, e perguntei o que os fazendeiros mais antigos
achavam dessa idéia de preservar a onça. Na gravação, ele diz:
Eu falo assim: hoje muitos acham como um predador pra estragar, pra dar
prejuízo. Muitos ainda são assim, têm esse pensamento: ‘Matou meu gado,
eu mato ela’. Um fazendeiro que é forte, que tem dinheiro, ele não vai sentir
no lucro dele, mas que também não vai afetar muito. Mas o cara que é
pequeno... Se ele tem trezentas vacas. Vamos falar que num mês ela
pegou quinze vacas. O que é que ele vai fazer? Ele vai lá e vai matar.
Em seguida faz uma ressalva a respeito da responsabilidade do fazendeiro, na qual
menciona o “gado branco”, que é o tema desta seção:
Isso, no modo geral, o fazendeiro tem a tendência. O que ele quer fazer?
Ele quer limpar a invernada, limpar o campo e formar pasto pra colocar o
gado. Isso qualquer fazendeiro; até eu mesmo se tivesse fazenda ia fazer
isso. que daí não vem a conscientização do fazendeiro, dele pensar:
‘não, eu limpei lá, eu tirei a capivara, tirei o queixada, tirei o cateto, tirei o
cervo’ no caso do Pantanal ‘e vou colocar o gado branco’. O que ela
vai comer? Obviamente que ela vai comer o gado branco.
63
Em seguida, desenvolve o argumento situando a questão do ponto de vista da onça.
De certa forma, aqui o predador aparece como um “castigo” pela atitude do fazendeiro,
que “culpa” a onça por uma falta que ele mesmo cometeu:
Então o que acontece? O que tinha de comida pra ela comer ficou escasso,
não tem mais. E ela patrulha a área dela. O que acontece? Ela vai e
acha uma vaca parida , um garrote, uma novilha, o que ela vai comer? O
que ela comia foi embora. Ela vai passar a comer o gado branco, que o
cara colocou lá. No pensamento da gente, o que eu penso assim é que pra
ela não mudou nada. Continua tendo comida. Então ela não vai sair dali.
(E. 01/11/2008)
As declarações de Concha são semelhantes as do Dr. Roberto Coelho, proprietário
da fazenda San Francisco, no evento (op.cit) organizado na Fazenda, em maio de 2008,
que debatia a relação entre a pecuária e a conservação da onça. Na ocasião, o fazendeiro
falou a respeito de sua experiência com o projeto de pesquisa desenvolvido na
propriedade:
Isso é outra coisa que a gente pode fazer: a gente tem que ter muita
capivara, muito jacaré, muito queixada, não deixar o parente caçar no fim
de semana, porque você está tirando a comida dela. E colocando o seu
bezerrinho lá, entendeu? É isso que você está fazendo. (WSF, 5/2008)
O “gado branco” substitui as espécies nativas, é “o gado que o cara colocou lá”.
Mas porque ele fala especificamente deste, e não de qualquer gado? Na época não
perguntei isso, porque estava mais interessado no que dizia respeito à onça. O gado
branco, no entanto, desempenha um papel importante na história da pecuária regional,
como eu perceberia mais tarde a partir do material de campo, e justamente no que diz
respeito ao contraste entre o fazendeiro atual e o antigo, tema da conversa com Concha.
De acordo com autores que trabalham com a historiografia do gado Pantaneiro de
uma perspectiva da etnoconservação, como Campos Filho (2002) e Mazza et al (2006),
o zebuíno de origem indiana – principalmente da raça nelore – substituiu historicamente
o bovino pantaneiro, ou tucura, uma etno-espécie ou raça de gado considerada por
ambos como ameaçada de extinção.
O trabalho de Mazza et al (1994), Etnobiologia e Conservação do Bovino
Pantaneiro, faz parte de um projeto da Embrapa-Pantanal, que envolve a criação e a
64
pesquisa do gado pantaneiro. Os autores chamam atenção para a importância de
medidas de conservação frente à ameaça representada pela introdução do zebuíno:
“Durante pelo menos três séculos, o bovino Pantaneiro foi a base da
economia da região do Pantanal, numa atividade que permitiu a
convivência harmoniosa do homem com a natureza. Entretanto, nas
primeiras décadas deste século, esse tipo local foi substituído
gradativamente por raças zebuínas, instalando-se um acentuado processo
de diluição genética, culminando atualmente, em sua quase extinção, o que
tem exigido a adoção de medidas urgentes para a sua conservação”. (: 33)
Sobre a constituição de um tipo local, afirmam:
“Através do processo de adaptação evolutiva e da ação da seleção natural
sobre os bovinos de origem ibérica, que se reproduziram por várias
gerações nas condições ecológicas do Pantanal, surgiu um tipo local”.
(Idem)
Em seguida citam as denominações usadas para defini-lo:
“Este (...) constituiu uma raça característica da baixada paraguaia,
regionalmente denominada de Pantaneiro
, Cuiabano ou, mais
recentemente, Tucura
”. (33-34)
Os pesquisadores reconstituem a história dessa raça pantaneira, que remete
aos índios Guaicuru, também conhecidos cavaleiros:
“Vale lembrar que as introduções de bovinos nas planícies do rio Paraguai
se intensificaram a partir da segunda metade do século XVI, devido ao
ataque dos indígenas às expedições que faziam a rota Peru-Assunção,
prosseguindo até por volta do final dos anos setecentos (...). Os índios
conduziam todos os animais capturados para dentro da baixada paraguaia,
que permaneceu livre do elemento branco até próximo do início do século
XIX”. (: 34-35)
E concluem que:
“[Q]uando os primeiros fazendeiros chegaram no Pantanal com o objetivo
de promover a pecuária, já encontraram bovinos em grandes rebanhos
ariscos (...) multiplicando-se sob as leis da seleção natural”. (: 35)
65
A alusão à “seleção natural” situa o gado em uma relação adaptativa com o
ambiente. A partir de fontes históricas, Campos Filho (op. Cit) reporta para a região do
Pantanal “bovinos e eqüinos introduzidos a partir das missões jesuíticas e
posteriormente (...) criados pelos Guaicuru” (2002: 45). A definição pelo autor o tipo
local diz respeito à exclusão histórica do gado pantaneiro:
“O bovino que tem maior participação na história e na cultura pantaneira é
o tucura
. No Pantanal, é assim chamado o bovino introduzido pelos
colonizadores antes do zebu indiano, assim como seus mestiços”. (idem:
54)
A introdução do zebuíno é apontada como índice de um processo de
homogeneização do rebanho associado à desvalorização e à crise da pecuária extensiva
regional:
“A mudança genética do gado bovino pantaneiro iniciou-se com o comércio
de bois magros para São Paulo. (...). Iniciou-se, aqui, uma contradição não
resolvida até hoje, onde os animais mais adaptados às condições de criação
pantaneiras eram desvalorizados pelo mercado frigorífico. Isso criou um
risco de extinção do grupo animal ‘tucura’ e os tipos animais introduzidos
causaram problemas de sustentabilidade econômica, ecológica e cultural
para o povo regional. Esse processo de substituição genética foi
efetivado com a importação do zebu”. (Ibidem: 154)
A mudança no gado é desencadeada pela pressão imposta pelo mercado, pela lógica
do mercado, pautada apenas em parâmetros de produtividade. A partir de seu trabalho
de pesquisa, Campos Filho procura situar a cultura pantaneira numa ótica
conservacionista, dentro da qual a preservação do gado é fundamental.
A preservação tucura e o contraste entre o gado pantaneiro e o gado branco
também aparecem no debate realizado na San Francisco (op. Cit, 05/2008). Transcrevo
a seguir um trecho gravado na ocasião, em que os participantes do encontro falam sobre
o tema (inclui a instituição que cada um deles representava no encontro), durante a
apresentação do biólogo Ricardo Boulhosa. O pesquisador trabalha com a com a
preservação da onça pantaneira e o tema do conflito causado pela predação do gado, e
associa à conservação dos felinos à dos bovinos pantaneiros:
66
Boulhosa: E daí cria-se um fenômeno interessante, que é o preconceito com
o gado Tucura. Você fala em Tucura, e o pessoal: “Ah, isso é uma
porcaria, não serve para nada”. E se você for ver, ele tem umas
características muito melhores para a produção, dependendo do tipo de
Pantanal. Ele seria o gado ideal para ser desenvolvido, ao invés do gado
branco...
[Participante]: Principalmente em relação à qualidade da carne...
Dr. Roberto: Um aspecto muito importante para a pecuária pantaneira hoje
é o seguinte: a predominância do gado zebuíno em todo Pantanal e esse
sentimento de rejeição em relação ao taurino. (...) Existe uma resistência
muito grande por parte dos pecuaristas em função de ter ficado uma parte
desse rebanho taurino abandonado, e do aumento do zebuíno. Então,
uma incompreensão do pecuarista em relação a isso, em função de um
conhecimento empírico, histórico, que está atrapalhando que ele faça uma
avaliação positiva desse gado...
Walfrido [pesquisador, Embrapa Pantanal]: mais uma curiosidade,
inclusive em relação à predação. na Embrapa tem um número de gado
pantaneiro, e a onça-parda mata o bezerro do Nelore, mas não consegue
matar o do Tucura. O que a gente vai usar é colocar um touro Tucura,
rufião, junto com as vacas nelore, para tentar diminuir, mas é um mero
bem diferente...
Boulhosa: Minha experiência anterior no Pantanal, que foram 10 anos de
Pantanal do Jofre, onde ainda existe o tucura em forma bagual
, é que você
percebe que o comportamento deles é totalmente diferenciado, eles fazem
proteção, eles vocalizam muito mais do que o outro gado... Outra questão
interessante que a Sandra colocou é essa questão da palatabilidade da
carne: a carne dele é mil vezes melhor. A gente tinha o costume de comer
esses animais quando ia fazer a bagualhação
. Então, a matula era feita com
esses animais, e em questão de sabor, comparado com o zebuíno, não tem
comparação. Então, seria um filão, e isso é uma coisa que a gente quer
discutir hoje, essa questão. Um filão que pode ser explorado pelo
pantaneiro: resgatar isso, para conseguir um produto diferenciado dentro
do mercado brasileiro e dentro do mercado internacional.
67
Os processos ecológicos e adaptativos do gado incluem, neste caso, sua co-evolução
entre com a onça, numa associação predador-presa. O gado branco, nelore, é referido
como uma presa mais fácil, que não possui os mesmos mecanismos de defesa do tucura.
2.5. Gado Bagual
O gado bagual ou baguá não está virtualmente extinto nas regiões dos Pantanais do
Miranda ou do Abobral, onde fiz o trabalho de campo. Esse tipo de gado foi
mencionado nas primeiras entrevistas que fiz com vaqueiros da região, em 2006, e a
categoria foi incorporada no questionário que levei comigo para o restante da pesquisa
de campo, em 2008. Nas entrevistas gravadas a partir de então, o bagual foi definido
como gado solto, sem dono, que vive no mato ou não marcado, entre outros termos,
sendo quase sempre referido no passado e classificado como ausente das fazendas
pesquisadas.
Nas minhas anotações de campo referentes à minha estadia na FazendaSão Bento, a
única menção à presença recente de um animal bagual na propriedade provém de um
trecho do diário de março de 2008, transcrito na primeira seção deste capítulo, que
descreve uma série de fotografias tiradas por Irineu, filho de Seu Máximo. Numa delas,
de acordo com as minhas anotações (Op. Cit) vê-se ‘um bezerro grande e magro na
caçamba de um trator’. O fotógrafo relatou que aquele era um animal que ‘ficou perdido
no fundo de uma invernada e virou bagual’,e acrescentou ainda que a fotografia tinha
sido tirada quando os peões o laçaram e trouxeram amansar (Op. Cit. 16/3/2008).
Uma segunda referência ao bagual na mesma fazenda, desta vez em resposta a uma
pergunta minha, aparece no material compilado no segundo período de campo na São
Bento, em outubro e novembro de 2008. Por coincidência, a citação também surge a
partir de uma seqüência de fotografias:
O capataz trouxe algumas fotos para me mostrar. Numa delas, posava com uma
das onças capturadas para o projeto. Pequena disse mas saiu bem na foto.
Mais uma foto da onça; em seguida, ele aparece carneando uma vaca; na última
imagem, monta um búfalo. Seu Ormir é comedido nos gestos e fala muito
baixo. Seu assunto predileto é a pecuária, e ele conta que trabalhou na
Bodoquena, com todo o tipo de gado. Pergunto sobre o gado bagual. Ele
menciona o episódio [sobre o qual havíamos conversado antes] em que um
68
pedaço da fazenda foi vendido para o Doutor Laucídio Coelho, um grande
fazendeiro da região. Sobrou então uma boiada abandonada na área, na qual o
novo dono não tinha interesse, e Seu Ormir conta que ele e os outros campeiros
da Bodoquena saíam para bagualhar. De acordo com o relato do capataz, é
um gado difícil de amansar; quando ouve o pio de um passarinho ele já
dispara”. Ele conta que “pegava o boi e deixava amarado no pau até trazer o
sinuelo.” (22/10/2008).
Alguns dias antes, havíamos conversado sobre a compra da Bodoquena pelo Doutor
Laucídio Coelho, em 1972. A Fazenda Bodoquena foi formada a partir da compra da
antiga Fazenda Francesa, ou Franco Territorial S.A, por um grupo de banqueiros
brasileiros e norte-americanos. O episódio citado acima, da venda de uma parte da
propriedade, ocorreu quando Seu Ormir era recém chegado no local. Essa negociação
era particularmente interessante para mim porque daria origem à outra fazenda onde
estava desenvolvendo a minha pesquisa de campo, na região de Miranda. De acordo o
capataz, toda a área entre o Rio Miranda e a Serra da Bodoquena fazia parte da
propriedade que foi comprada junto aos franceses, incluindo áreas de pantanal e áreas
de morraria. Ele também lembrou que por dentro da propriedade corria a linha férrea
ligando Corumbá à capital do Estado, Campo Grande. Durante muito tempo, o trem foi
a principal via de transporte e de escoamento da produção da pecuária regional.
A genealogia das propriedades San Francisco surgindo de uma parte da
Bodoquena; esta, por sua vez, originada da Fazenda Francesa tinha despertado meu
interesse a partir da leitura de Tristes Trópicos (1998[1955]), o célebre relato de viagem
de Claude Lévi-Strauss. No livro, o etnólogo narra sua passagem pela região, no ano de
1935, sendo que a Fazenda Francesa foi usada como base para a sua expedição ao
encontro dos índios Cadiueu. O antropólogo chegou à propriedade em viagem de trem
atravessando o sul do Pantanal, e foi recebido pelos seus dois conterrâneos que a
administravam. No trecho a seguir, ele descreve o lugar:
“A Fazenda Francesa, como a chamavam na linha férrea, ocupava uma
faixa de cerca de 50 mil hectares que o trem percorria por 120 quilômetros.
Nessa extensão de matagal e gramíneas duras vagava um rebanho de 7 mil
cabeças (...), periodicamente exportado para São Paulo, graças à estrada
de ferro que fazia duas ou três paradas dentro dos limites da propriedade”.
(1998: 154)
69
A seguir, faz algumas observações sobre as relações de trabalho na fazenda e o
negócio do gado:
“[D]ez anos depois de sua fundação, a Fazenda Francesa definhava em
virtude da insuficiência dos primeiros capitais, absorvidos pela compra das
terras (...). Num espaçoso bangalô à inglesa, nossos anfitriões levavam uma
vida austera, meio criadores e meio donos de armazém. Com efeito, o
entreposto da fazenda era o único centro de abastecimento a cem
quilômetros ao redor, ou praticamente. Os ‘empregados’, isto é,
trabalhadores ou peões, ali iam gastar com uma mão o que ganhavam com
a outra; um jogo de escriturações permitia transformar-lhes o crédito em
dívida e, desse ponto de vista todo o empreendimento funcionava mais ou
menos sem dinheiro”. (: 154-155)
Trazida para os dias de hoje, mais de setenta anos depois, a afirmação descreveria
ainda de forma notável a situação de muitas fazendas atuais, estagnadas
economicamente pela crise da pecuária tradicional. As fazendas onde fiz trabalho de
campo são exceções a esta regra, mas me parece que a idéia de que os peões gastam
com uma mão o que ganham com a outra define com absoluta clareza a situação da
grande maioria dos funcionários locais. As fazendas atuais, apesar das mudanças
históricas nas relações entre patrões e empregados, reproduzem de alguma forma esse
sistema de “escriturações” que elimina a circulação de dinheiro. É comum ainda que o
fornecimento dos alimentos (tanto da carne quanto dos itens básicos) seja controlado
pela administração e o valor descontado no final do mês no salário dos funcionários. Os
peões, por sua vez, ao receberem o pagamento, em cheque (em geral um salário
mínimo), vão para a cidade descontá-lo no banco, geralmente para gastarem o restante
naquele único final de semana por mês em que o dinheiro vale alguma coisa, que é
quando deixam a fazenda.
O trabalho historiográfico de Benevides e Leonzo (1999) sobre a Miranda Estância
a Companhia inglesa que ficava na margem oposta do Rio Miranda cita a Fazenda
Francesa, ou Franco Territorial Brasileira S.A como um dos grandes empreendimentos
estrangeiros de pecuária instalados na primeira metade do século XX no Sul do
Pantanal, e reporta que a propriedade tinha 414 mil hectares quando foi nacionalizada,
nos anos 1950. De acordo com os autores, ela estava entre as grandes companhias
estrangeiras instaladas na região, as quais foram sendo vendidas, na época, a partir do
70
desenvolvimento da política de nacionalização de Getúlio Vargas, inserida pelos no
movimento histórico conhecido como Marcha para o Oeste. (1999: 3-23). Além disso,
Benevides e Leonzo conectam o processo a uma transição de modelo econômico na
pecuária regional, com a passagem da indústria do charque para a dos frigoríficos
(Idem: 43-51).
O relato de Seu Ormir sobre a venda de uma parte das terras para um grande
fazendeiro regional pode ser ligado, a partir daí, a uma segunda etapa desse processo, na
medida em que a negociação que marcaria o início da divisão da propriedade em
fazendas menores. Minha intenção aqui é mapear essa mudança histórica com foco na
pecuária, mostrando como o depoimento dele associa o desmembramento da grande
fazenda original ao amansamento do gado bagual.
Algumas semanas depois da conversa com o capataz da São Bento, eu voltaria à
Fazenda San Francisco para um novo período de pesquisa, e procuraria mais
referências sobre as conexões históricas entre as fazendas. O salão de visitantes da
pousada, onde os turistas se reuniam depois dos passeios oferecidos pela fazenda, era
também um pequeno museu, com vitrines nas quais estavam expostas ossadas de
espécies de animais da região, identificadas e acompanhadas por fotografias e
descrições de cada uma delas. Sobre essas vitrines havia uma árvore genealógica da
família Coelho e uma série de documentos e imagens ligados às origens da fazenda.
Entre eles, encontrei um documento interessante referente à origem desta última
fazenda. A negociação de parte da Bodoquena desta vez era descrita da perspectiva do
comprador, a partir de um testemunho pessoal escrito por Antonio Barbosa de Souza,
antigo funcionário da Agropecuária LS.
O texto estava exposto no salão de visitantes na pousada da fazenda, junto com uma
série de outros materiais escritos, imagens e outros documentos que eu havia
examinado antes, mas não havia dado muita importância a ele antes. Foi escrito para
uma solenidade em uma homenagem ao patriarca da família, Dr. Laucídio Coelho,
falecido em 1977 [N. Ano em que, de acordo foi apontado pelo Guinness Book como “o
maior fazendeiro do mundo”]. Barbosa de Souza descreve a negociação em detalhes.
Transcrevo o texto abaixo:
“Em junho de 1971 o Sr. Laucídio faz sua última compra de terra. Comprou
cem mil hectares da Fazenda Bodoquena, onde nós criamos (...) a
Agropecuária LS Ltda – Fazenda Doze Irmãos.”
71
Os vendedores citados são todos banqueiros e empresários bastante conhecidos:
“A Fazenda Bodoquena era controlada 51% por Valter Moreira Salles,
25% por David Rockefeller e 24% pelo Sr. Anderson, da Atlantic
Americana. Eram gente muito forte. A fazenda deles tinha em torno de
400.000 hectares. O Sr. Laucídio comprou 100.000 hectares que eles
ofereceram”.
A narrativa tem a forma de uma parábola, e expressa uma lição de moral. O autor
descreve a personalidade do Dr. Laucídio a partir da posição que ele assume, não se
curvando diante dos representantes do grande capital internacional:
“É interessante lembrar, eu prestei bem atenção nisso, quando os filhos
trouxeram o negócio para o Sr. Laucídio, estavam muito entusiasmados.
Não trouxeram negócio para a venda, mas uma proposta do Sr. Moreira
Salles para o senhor Laucídio ser sócio e administrador da fazenda.
Os filhos ficaram entusiasmados porque era um grupo muito forte e
participar desse grupo de poder internacional os fascinava. Notei que o Sr.
Laucídio não tinha nenhum entusiasmo. Eu pensava comigo: ‘porque será
que ele não se entusiasma?’”
O “entusiasmo dos filhos” é o elemento narrativo que se contrapõe às atitudes do pai
como chefe da família e responsável pela palavra final:
“Depois de feitas todas as exposições do negócio ele ficou quieto. Então
eles perguntaram:
– Como é papai? Qual a sua decisão?
– Vocês não acham que eu estou muito velho para ser empregado do
Moreira Salles e Rockefeller?
– Não papai, não é empregado. É sócio!
Vocês viram sócio pequeno de gente grande que o grande não engole o
pequeno?
– Papai, o senhor vai desistir do negócio?
Não, vamos colocar as coisas no devido lugar. Esses senhores de nomes
nacional e internacional são banqueiros muito fortes, mas eles estão
demonstrando que não são fazendeiros. Não estão dando conta da
administração da fazenda deles. Estão querendo aproveitar o pouco que
72
nós sabemos. Se eles não dão conta de ser fazendeiros que determinem uma
área conveniente, nos ofertem, ponham um preço adequado e nós vamos ver
se o negócio interessa.
E assim foi feito.”
A sabedoria do patriarca consiste trazer a negociação para o seu próprio terreno.
Quando diz “[e]sses senhores de nomes nacional e internacional são banqueiros muito
fortes”, porém “não são fazendeiros”, ele re-configura a negociação. Não não tem
interesse em se associar, como também faz uma proposta para a compra das terras:
“Levada a opinião do Sr. Laucídio aos interessados eles analisaram e
puseram a disposição do Sr. Laucídio 100.000 hectares, que ele comprou
dando nove milhões de cruzeiros sendo quinze mil novilhas a 300 cruzeiros
cada uma, sendo cinco mil novilhas entregues em 1971, cinco mil em 1972,
cinco mil em 1973, e mais quatro milhões e meio de cruzeiros em dinheiro”.
A transação envolve pelo menos três deslocamentos rebanhos com cinco mil cabeças
de gado cada um. Nota-se também que o valor é calculado em ‘novilhas’, sendo essas
últimas a principal moeda corrente da região. A partir do negócio, o autor reporta que:
“O Sr. Laucídio criou uma firma no valor de 18 milhões de cruzeiros, o
valor do dobro, ou seja, a Agropecuária LS tinha o valor correspondente a
60 mil novilhas. Todo o capital integralizado pelo Sr. Laucídio.”
Mais uma vez o “câmbio” é feito em novilhas. Em seguida, o narrador descreve a
ocupação da área:
“No primeiro ano formamos 1896 alqueires. Começamos em junho e
terminamos em janeiro. Formamos toda a margem do Rio Salobra, numa
extensão de cerca de 40 quilômetros. Não tinha estrada, nós descíamos de
barco e distribuíamos a peonada onde os invasores tentavam entrar.
Fizemos a ocupação física da área ao invés de colocar gente fiscalizando.
Foi tomada a decisão de ocupar a terra e ninguém iria invadir. Assim foi
feito e não tivemos dor de cabeça.”
E, em seguida, reporta-se ao aspecto jurídico da ocupação:
“Compramos três demandas judiciais deles de invasores que acertamos
tudo com acordo. Foi tudo pago em dinheiro.”
73
Como documento histórico, o relato evidencia uma série de elementos interessantes
relacionados à compra de terras e as relações regionais entre fazendeiros e grileiros;
além de ser um marco de origem para a San Francisco. O final da narrativa diz respeito
a um aprendizado pessoal do autor em relação ao gado:
“Durante o trabalho vimos que tinha muito gado bagual
na área que foi
vendida. Uma parte dessa área tinha bastante pedra, serra, pantanal, e boi
bagual de 6, 7 e 8 anos. O máximo de bagual.
Era uma luta enorme, mas tínhamos um pessoal bom, conseguimos pegar de
início um lote de mais ou menos mil bois, e perguntei ao Sr. Laucídio:
– Sr. Laucídio, podemos comprar essa boiada? Acredito que eles nos façam
um bom preço. Devem vender bem barato.
Antônio, nem dada! De jeito nenhum. Se tirar essa boiada e colocar com
outra os mansos vão acompanhá-la e ficarão bravos também. Ela vai ficar
ligeira a vida toda. Isso é um veneno. Feche no mangueiro e peça que eles
venham buscar. Você tenta eliminar qualquer sementinha de gado bagual se
não eles levam o manso para ficar bagual.
E assim foi feito. Dentro de aproximadamente um ano e meio nós limpamos
tudo. Devolvemos a eles quase dois mil baguais (...).”
A conclusão é surpreendente pela síntese dos elementos heterogêneos da narrativa
em uma única frase:
“Eu aprendi a lição: Boi bagual não serve para nada mesmo.”
A “lição” aprendida, portanto, diz respeito especificamente ao bagual, tomado como
um índice de ‘atraso’ e uma ameaça de contaminação para as boiadas mansas que
ocupariam o território. Ele é caracterizado, assim, como um animal daninho, um
“veneno” que precisa ser eliminado. A sabedoria do fazendeiro consiste em uma recusa
a trabalhar com esse tipo de gado, associada pelo autor do texto a uma visão
progressista da pecuária.
O episódio narrado primeiro por Seu Ormir e depois por Barbosa de Souza remete a
um rastreamento de fontes históricas sobre as fazendas da região. No caso do segundo, o
gado bagual aparece como um animal daninho, na medida em que contamina o rebanho
manso e dificulta o manejo. No primeiro caso, Seu Ormir fala do desafio de bagualhar
aquela boiada, mas desta vez como um gado que é amansado pelos peões; ele evoca
74
outros tempos, e fala da lida com o gado brabo também como um atraso pantaneiro,
defendendo um manejo diferente do tradicional, uma lida diferente daquela do passado.
Um exemplo disso é o modo de amansar os cavalos. A doma tradicional pantaneira é a
doma bruta, onde o cavalo é pego no laço e domado, literalmente, à força, ficando
amarrado até perder as forças.
Alguns peões com quem conversei haviam aprendido a doma racional, e essa
prática era adotada em algumas fazendas da região. O tratamento dispensado à tropa e
também ao gado, de acordo com a posição de Seu Ormir, deixa os animais mais mansos
e manejáveis. Em entrevista feita em março de 2008, ele fala da mudança na postura dos
fazendeiros em relação à onça, e se define como um profissional que se dedicou a vida
inteira ao gado e que, de certa forma, não se apega às tradições:
Não vejo movimento nenhum do pessoal perseguindo ela. Tá tudo quieto,
tudo calmo... Tem ela, mas não pega muito [gado]. E a maioria dos
fazendeiros fala até o seguinte... Falam: Ah, mas onça comeu seu bezerro...
E ele fala: Melhor, deixa que come. Tem uns cara que quer ser caçador,
quer ir atrás, mas ninguém tá dando cobertura pra esse tipo de coisa.
Fazendeiro nenhum da região. Porque as coisas vem, dia a dia, vem
mudando.
(...)
Eu sou um cara o seguinte: criado aqui no Pantanal, e comecei a andar a
cavalo desde oito anos de idade. Sou peão de lombo de cavalo desde oito
anos. Tô com 55. Cê pegá o tempo de lombo de cavalo, dá 48 ano, de lombo
de cavalo. Então, daí eu fui me dedicando no gado. Morando na fazenda, e
dedicando no gado. Tentar conhecer e fazer o serviço, aprender alguma
coisa, de uma forma ou de outra. E fui... mesmo que eu moro na região
há muitos anos, então, eu não tomo tereré. O pessoal admira. Sou da
região, faz mais de 20 anos que eu não tomo tereré, resolvi largá de tomar
tereré. Não mexo com caçada. Se eu falar pra você que eu pesquei, durante
esses 30 anos, não pesquei. Não tive tempo de pescar. (E. 12/3/2008)
Um mês e meio depois dessa primeira entrevista com Seu Ormir, depois de um
período na San Fancisco, eu procuraria Seu Felipe, o mais antigo funcionário fazenda
que conheci, tendo trabalhado na abertura da propriedade, nos anos 1970. Ele foi era
também um antigo funcionário da LS, e havia trabalhado diretamente para o Doutor
75
Laucídio Coelho. Entrevistei-o em Miranda, na casa para onde havia se mudado depois
de se aposentar. Seu Felipe tinha então 83 anos, e a entrevista com ele, em termos
cronológicos, é a primeira em que abordei o assunto da compra da Bodoquena e a
conexão histórica entre as duas fazendas. Transcrevo a seguir um trecho da gravação da
entrevista, no qual pergunto a ele também sobre o gado bagual:
F: O Sr. Laucídio comprou as terras da antiga Fazenda Bodoquena?
É, comprou. O Seu Laucídio queria comprar tudo, porteira fechada! Então,
não deu pra comprar porteira fechada, o queriam vender assim.
Venderam pra ele esse pedaço. Porteira fechada o que está aqui dentro:
cachorro, gado, tudo!
F: Dizem que ele tinha muita terra, não era?
Esse velho tem muita terra. Foi rico, foi. Tinha banco dele. Trabalhei com
ele. Quando saí do quartel, décima cavalaria, eu trabalhei. ele morreu,
fiquei com a gurizada: Doutor Helio, Doutor Lúdio... Trabalhava para um
aqui, quatro, cinco meses, me passavam pro outro. E foi indo assim. Até que
chega: fiquei velho também.
F: E onde é que era a Fazenda Francesa?
Aqui pra baixo. Mas aquela, acho que a Bodoquena comprou tudo. Ficou
tudo pra Bodoquena. Saiu uma briga, com grileiro, sei que aquela acabou.
F: Na época do Seu Laucídio era muito diferente de hoje em dia?
Muito diferente. Aquele tempo, do velho Laucídio, bala era barata. Minha
arma era quarenta e quatro, atirava muito bem. No tempo do velho
Laucídio, todo mundo usava quarenta e quatro. No cabo tinham: “L.S.”
A marca LS no cabo do revólver. O revólver da fazenda não ficava com a
polícia. Não ficava mesmo.
F: E dava muita confusão por aí?
Não, não dava não. Na cadeia não ia também. Não era para brigar com
polícia também, era a ordem do Velho. Não podia mexer com polícia. Tem
peão que abusa muito... Eu nunca abusei não. Vai lá pra namorar um pouco
a mulher por lá, pra que é que vai querer garrucha?
76
F: Então o senhor usava só no campo?
no campo. Tinha touro brabo, brabo! É laçar que ele vem em cima da
gente. Então aquele você não pode deixar machucar o cavalo. Se machucar
o cavalo, atira! Derruba, mata!
E: E tinha gado bagual nessa região?
Ih, naquele tempo tinha! Porque era mato, nos tempos do velho. Agora
não tem mais mato pra ele ficar. Agora acabou o baguá
, nessa região aqui.
Tem em alguma parte, nessa companhia
pode ser que tenha, mas é pouco.
Porque limparam tudo, puseram cerca nova, e aí o gado amansa.
Leva sal, põe no coxo, solta o gado manso lá, quando vai lá, aquele gado
manso não corre. O baguá
sai correndo um pouco, e para, fica olhando pra
trás; o manso não corre, ele fica lá. Mas não pode mexer com ele o;
deixa ele por ali, em outro canto; ele volta de novo, e assim vai
amansando tudo. (30/4/2008)
A entrevista de Seu Felipe fornece uma série de novos vestígios para uma
historiografia. Os “tempos do velho” são designados pela posse de armas e pela figura
do grande fazendeiro, cujas relações de poder que se estendem à esfera pública. Quando
fala do “baguá”, no entanto, ele narra um processo de extinção a partir da destruição do
habitat desse animal, o “mato”. Assim como na narrativa de Seu Ormir, aqui é o gado
baguá que “vai amansando”, e não o contrário, como afirma a lição de Barbosa de
Souza. Em cada caso a extinção do gado selvagem é descrita de uma maneira: no
primeiro caso ele desaparece ao ser absorvido e misturado (geneticamente) ao gado
branco, o que pode ser definido como um processo ecológico de extinção por
hibridização. No segundo, ele é retirado das terras da fazenda, e essa eliminação se
baseia também em uma substituição pelo gado branco. Em ambos os não há mais
espaço para o bagual diante da ocupação do espaço e das novas práticas da pecuária, e
ele traça uma série de significados para a tradição da pecuária e para a história das
fazendas pantaneiras.
A “companhia”, destacada por Seu Felipe como um último reduto possível desse
tipo de gado na região é uma referência à antiga Miranda Estância, a Companhia
inglesa que teve sua história cartografada por Benevides e Leonzo (1999).
Nacionalizada em 1952, quando foi comprada por empresários brasileiros, a fazenda foi
77
dividida pelos herdeiros desses compradores em 1985, dando origem na ocasião a nove
novas fazendas (: 149).
Estive em uma delas no início do trabalho de campo, ainda em 2006, com o objetivo
de desenvolver ali a pesquisa de campo, a Fazenda Caiman. Esta fazenda foi pioneira
no desenvolvimento de um modelo que conjuga a pecuária tradicional pantaneira ao
ecoturismo. Trabalha com um turismo caro e destinado basicamente ao público
estrangeiro, no qual o visitante pode conhecer os animais e os ecossistemas regionais e,
ao mesmo tempo, participar de cavalgadas e assistir às atividades dos vaqueiros. Na
época em que estive lá, a propriedade, com mais de 50 mil hectares, tinha cerca de 30
mil cabeças de gado, sendo 11 mil (mais do que na maioria das outras fazendas que
conheci) apenas no Retiro Novo, onde fiquei hospedado.
Logo depois de retornar do campo, escrevi um relato no qual procurei descrever o
trabalho com o gado a partir da experiência no retiro, referindo-me ao bagual como
parte da rotina da fazenda:
Duas vezes por ano, os peões reúnem o gado no mangueiro para vacinação e
marcação. Vão atrás do gado bagual, que está disperso pelos campos. Para ser
amansado, cada um desses bois é amarrado a um boi manso, chamado de
sinuelo, com uma corda presa em uma espécie de tesoura grande e com a ponta
chata, que fica presa nas narinas do bagual, que desta forma é obrigado a seguir o
boi manso para onde quer que vá.
Nos registros fotográficos e em vídeo feitos na ocasião, no entanto, é notável o
predomínio do gado branco, zebuíno, o que torna possível que o uso do termo bagual,
no caso, seja uma forma fraca (ou turística), usada para definir o gado de corte que vive
solto no campo em contraste com o gado manso que vive perto do retiro. Nas minhas
anotações de campo isso não fica claro. Conclui também, a partir do material, ao chegar
de volta do campo, em 2006, que:
A dualidade entre o animal doméstico e selvagem é, portanto, interna à relação
com o gado, que pode ser sinuelo ou bagual. São categorias fundamentais para
os peões, que podem se referir também a uma onça como mansa ou braba.
Ou seja, criei uma dualidade, opondo precipitadamente o bagual ao sinuelo e
impondo a “minha” oposição universal natureza e cultura sobre o material. No decorrer
78
da pesquisa eu perceberia mais tarde que sinuelo não é um sinônimo, mas sim um dos
tipos de gado manso, entre outros, como a vaca de leite e o bezerro guacho (órfão,
criado na mamadeira). O gado de corte, que vive nos campos e é trazido para ser
trabalhado no mangueiro apenas uma ou duas vezes por ano, pode ser referido em
termos de manso ou brabo de acordo com o manejo de cada fazenda.
No trecho a seguir, Campos Filho define o baguá como símbolo simultaneamente de
atraso e de autenticidade para a pecuária pantaneira:
Este grupo animal ainda hoje é uma forte inspiração para a cultura e a
identidade pantaneira. O ‘baguá’ é também símbolo de um atraso
econômico, pela sua condição ‘selvagem’ em comparação com animais
manejáveis, ‘mansos’. Por isso é que muitos fazendeiros negam possuí-los,
escondendo o fato. Ao mesmo tempo, valorizam o ‘baguá’ como símbolo do
pantaneiro. (2002: 139)
Banducci (2007[1995]), que trabalhou na região do Pantanal da Nhecolândia,
afirma nesse mesmo sentido que:
Na fazenda onde existe o gado bagual o peão se como "autêntico", pois
deve acordar cedo, ficar muitas horas sem comer e correr maiores riscos no
campo, ao passo que enxerga no outro um vaqueiro indolente, fraquejado
pela "facilidade" do trabalho. O "ideal" do gado é estendido e se
transforma, assim, no "ideal" do peão, colocando em jogo não apenas a
qualidade dos animais, constantemente referida nas conversas, como
também, a capacidade do trabalhador, seu valor e, conseqüentemente, sua
"identidade" enquanto pantaneiro. (: 134)
A identidade do pantaneiro é definida pelo autor, portanto, em termos das
dificuldades e dos desafios enfrentados pelos vaqueiros em seu trabalho, se refere a um
tipo de transferência entre o vaqueiro e o animal que ele é capaz de dominar, ou
amansar, o que confere prestígio e valor ao peão. O autor afirma que a noção pantaneira
do espaço ‘social’ se constrói em um embate permanente com a dimensão selvagem da
‘natureza’; uma alteridade que precisa ser ordenada, controlada e domada nas atividades
dos peões.
O gado selvagem pantaneiro tem um papel fundamental tanto no trabalho de
Banducci quanto no de Campos Filho, que foram as minhas duas principais referências
79
etnográficas para o trabalho nas fazendas e o tema da pecuária tradicional pantaneira.
Para designá-lo, o primeiro autor utiliza o termo “bagual”, enquanto o segundo usa a
grafia “baguá”, seguindo a pronúncia regional. Apesar das diferenças culturais entre as
duas regiões, acredito que a diferença diga respeito mais a uma opção pela oralidade
feita por Campos Filho. Nas gravações e registros orais coletados durante a minha
própria pesquisa, observa-se esta mesma pronúncia, e optei neste trabalho pela
utilização do termo baguá apenas para os casos da transcrição do material. Quando eu
mesmo escrevo sobre este gado, contudo, utilizei o termo bagual, como faz Banducci,
acompanhando a grafia usada também em outras fontes bibliográficas (Benevides e
Leonzo 1999; Mazza et al 1994).
Em todo caso, observo que a definição do bagual (ou baguá)nesses dois trabalhos de
referência designa uma condição e não um tipo de gado. Mais do que algo que define a
priori determinadas espécies, o ‘selvagem’ é formulado, assim como uma condição
reversível, sendo que qualquer tipo de gado contém a possibilidade de tornar-se manso
ou de tornar-se selvagem.
Nos três depoimentos provenientes da minha pesquisa de campo que citei ao longo
do capítulo, o gado selvagem aparece associado a um contraste histórico. No primeiro
caso, Seu Ormir o descreve a partir da dificuldade que representou para os vaqueiros do
passado, que precisavam pegá-lo no laço. No segundo, Barbosa de Souza escreve, a
partir de sua experiência com o gado, que o bagual não serve para nada mesmo” (Op.
Cit.). Finalmente, Seu Felipe o define como habitante da região selvagem de outros
tempos, como um animal que não tem mais lugar atualmente, que foi domesticado a
partir da ocupação do território por fazendas e da proliferação do gado manso. Sendo
assim, as citações referentes ao desaparecimento do gado selvagem se entrelaçam com
narrativas sobre a história da região, e ele aparece como um marco daquilo que foi
conquistado pelos vaqueiros no processo de colonização.
Além desse rastreamento temporal, no entanto, é possível abordar o tema do bagual
a partir de outra perspectiva – apontada acima pelas referências ao trabalho de Banducci
e de Campos Filho tomando-o como uma dimensão constitutiva das relações dos
pantaneiros. Para seguir essa segunda trilha, retomarei o tema a seguir partindo de uma
narrativa registrada em campo, a qual associa o bagual a uma série de outras criaturas
com as quais ele compartilha seu devir selvagem.
80
2.6. Crianças selvagens
Nesta seção, procuro abordar o bagual não mais como um elemento historiográfico,
e sim como um conceito ou idéia nativa que define, de certo modo, uma série de
relações entre humanos e animais. Para seguir essa segunda trilha, retomarei o tema a
partir de uma entrevista feita na Fazenda São Bento, no início de novembro de 2008. O
entrevistado é o campeiro conhecido na fazenda como Jiló, e residia no galpão dos
peões, na época, com seu filho de sete anos de idade. Ele trabalhava na fazenda havia
quatro meses, e, assim como Seu Ormir, tinha trabalhado anteriormente na Fazenda
Bodoquena. Assim como a maioria dos peões assim chamados “solteiros” (moradores
do galpão), ele era casado, e afirmou que queria levar a família para a fazenda, mas não
havia nenhuma casa disponível uma situação bastante comum entre os funcionários,
principalmente os mais novos.
Seu filho, John Herbert, tinha ido morar na fazenda para tentar uma vaga na
Fundação Bradesco, uma escola técnica em regime de internato que recebe
principalmente crianças residentes nas propriedades da região. O menino era a única
criança no retiro, e ficava brincando sozinho ao redor da cantina, na casa de Dona Leda.
Quando eu cheguei à fazenda, mostrou-se muito tímido e nem respondia quando eu
tentava falar com ele. Depois de algum tempo, porém, revelou grande curiosidade pelos
meus equipamentos de campo gravador, câmera, binóculo, e principalmente o
computador portátil e passou a participar sempre das entrevistas e filmagens feitas no
galpão.
O próprio Jiló estudou na Fundação, mas largou a escola aos 16 anos de idade para
trabalhar como tropeiro da Fazenda Bodoquena. Nasceu em Corumbá e foi criado nesta
última fazenda, onde seu pai trabalhava até aquele momento. Perguntei a ele se o filho
seria campeiro também. Ele afirmou que achava que não, porque o menino gostava
mesmo era de trator, mas contou que tinha uma filha e que ela queria mexer com gado.
Perguntei se mulheres campeiras eram muito raras, porque não conhecia nenhuma; ele
respondeu que era difícil, mas comentou provocando os companheiros que tinha
encontrado algumas melhores que muitos peões por lá.
O gado bagual aparece na entrevista de uma forma diferente de todas as citações
feitas até aqui, mas foi mencionado na parte final da gravação. Antes de chegar até
ele, a narrativa coloca em cena uma série de elementos a partir dos quais o tema aparece
em uma nova configuração, então o trecho transcrito abaixo antecede em algumas
81
páginas a referência ao gado selvagem. O trecho se inicia com a pergunta que em geral
encerrava o questionário utilizado durante o trabalho de campo:
F: E você tem alguma história de onça para contar? Alguma que você
encontrou, ou que seu pai contava...
Tem uma história. Na hora que eu vim pro Pantanal, no tempo da
Companhia [a Bodoquena]. Eu fui abri uma cimbra... E os mais novos
nunca deixam os mais antigo, mais velhos, abrirem cimbra, e eu sempre
andei na frente. um dia, eu e um cachorro o tal do Rintintim fomos
andando, e tinha dois capões, e a cimbra era bem no meio dos dois. fui.
(E até era esse burro que eles estavam falando lá na mesa, o Jacaré, que
era minha montaria; era burro novo, naquela época). o burro esbarrou.
Eu falei: Ah, burro velho... e dava chicotada nele! E o burro sentando... E
eu, pau nele! Burro velho não quer ir... E a turma já vinha chegando.
Estava daqui lá, o capão, daqui naquele cavalo lá [aponta um cavalo
pastando, talvez a uns 40 ou 50 metros].
Um recurso usado algumas vezes pelo narrador é este: situar a distância espacial a
partir de um elemento que indica ao falar.
cheguei perto, e o burro velho sentava, querendo tomar o cabo de mim.
Eu apeei pra abrir, assim, e o cachorrinho foi pra dentro do mato (e ele
nunca tinha acuado onça, nunca tinha ido, era cachorro novo). deu pra
abrir a cimbra assim, o burro tomou o cabo e ó [faz o gesto de que foi
embora]. Era um macharrão. Sorte que ele já tinha comido, já tinha comido
um bezerro que nós vimos na vazante. ele daqui assim, na porta
[talvez a 2 ou 3 metros] – ele só ‘reganhou’ pra mim. Tinha um pé de pau, e
eu não sei como que eu não subi em cima, cheio de espinho... Sei que eu
subi lá em cima dele. Aí ele ficou, foi lá embaixo onde eu estava, na árvore,
aí saiu assim, e o cachorro atrás dele, acuando ele.
F: E o resto do pessoal?
Eu dei um grito, assim, e a turma veio. Mas ele tinha entrado num outro
capão, aí largaram mão dele.
Aqui ele termina a história. Em entrevistas feitas durante o trabalho de campo, a
maioria dos vaqueiros afirmou ter avistado alguma onça durante seu trabalho com o
82
gado, mas sempre em ocasiões esporádicas e rápidas, e um encontro cara a cara como
esse era bastante raro. Por ora, transcrevi a narrativa do encontro com a onça como uma
introdução para o que estava por vir; chamo atenção apenas para o modo como o
narrador descreve a paisagem, em particular os capões nos quais a onça se abriga. Além
disso, o evento se no momento em que o vaqueiro abre uma cimbra, o que marca
uma divisão e o cruzamento de uma fronteira espacial, e este será um fator relevante
para o restante das narrativas analisadas neste capítulo.
Depois de um instante de silêncio, retomei o tema de uma das questões anteriores
(não transcritas aqui), sobre os animais dos quais a onça se alimentava, perguntando:
F: Acontece de onça pegar cavalo também?
Acontece. no Tupaceretã [um retiro da Bodoquena], pegô uma mula
grande. Nós soltamo a tropa, né... E era duas onça-pintada. Aí eu
escutando a mula relinchá... Escuto ela – puf, puf – e era pertinho o
piquete, do nosso galpão. Escutava coice... Mas só que nós não liguemo, a
mula brinca, né, gosta de corrê... Aí, outro dia fomo vê. Foi mais dois,
três dias pra mula morrê, a mula era grande memo, uma mula alazona, do
tamanho dessa do Paulo.
F: Mas então a onça atacou só que não comeu?
Não, não chegô de matá. Ela machucou muito, aí não agüentou, depois de
dois, três dias ela morreu.
Na resposta, Jiló menciona um dos retiros da Bodoquena, por acaso um local a
respeito do qual eu tinha ouvido falar, e a partir dessa citação o assunto da conversa
muda:
F: O Seu Ormir me falou que esse retiro Tupaceretã é mal-assombrado... Você
já ouviu falar isso também?
Ahã, aparece um carro, daqui no capão lá... Não sei se é um carro ou
uma luz de trator... Cê olha assim, rapaiz, e nunca chega no retiro. Uma vez
eu fiquei lá, mas eu não cheguei de vê, nunca vi. Agora, um colega viu, né...
Que era medroso, né... [risos]
Aquele parecia que ele viu uma ilusão, memo, né... Tinha uma... Era uma
privada, né, era uma privada que fazia no chão, e nós fizemo, lá. E ele ia
com revórver, ia cagá com o revérver na mão assim, com medo da onça.
83
esse dia ele viu a luz. E Seu Ormir também viu, o outro administrador
também viu...
F: Era de noite?
De noite. De dia não tinha nada.
Neste momento agradeci e desliguei o gravador. No entanto, continuamos
conversando, e perguntei a ele a respeito do saci louro”, que Seu Ormir havia também
relatado ter visto, e de assombrações da região. Não registrei essa parte da conversa,
mas Jiló citou então o Maozão, criatura sobre a qual eu havia lido na etnografia de
Banducci (2007[1995]), pesquisador que coletou uma série de casos a respeito dessa
entidade no Pantanal da Nhecolândia. Essa referência fez com que eu retomasse a
gravação, e o segundo trecho transcrito da entrevista começa com uma pergunta minha:
Como é que o nome do bicho mesmo?
O filho de Jiló é quem responde, com voz de criança: “Maozão”. Em seguida o pai
completa:
É Maozão. Pai do Mato. Diz que um paraguaio tava cortando, cortando, e
de dentro do mato, no capão, um aguaçuzá assim, uma voz falou pra ele:
Ei, você pediu pra cortar aí? E ele tinha um cachorrinho que começou:
rrrr, começou a arrepiar tudo. E ele taca o machado. E o bicho falando pra
ele lá do mato: você pediu pra cortar madeira aí? E daí ele viu que o
cachorrinho tava olhando, assim, eo bicho tava daqui já, nele.Pretão
mesmo, mas diz que bem feio hein...
O homem largou ferramenta, tudo e passou, montou, e esse bicho atrás.
Mas o bicho não ‘travessa’ dentro d’água. E ele já tava cansando, e
atravessou uma vazantinha com água, assim, aí o bicho falou uma coisa pra
ele. Falou alguma coisa, mas ele nunca contou. Ele nunca podia falar pra
ninguém, porque o dia que ele falasse, ia acontecer uma coisa com ele.
Chegava nesse final assim, ele não contava não. A gente perguntava pra ele
né, o que ele viu, mas ele nunca falou. Esse é protetor. E tem ele mesmo,
hein, no fundão aí. Eu fui pro fundo (aponta) Pro lado da
Nhecolândia, Paiaguás, já andei aí.
A referência à Nhecolândia era mais um elemento de ligação entre o caso narrado
pelo campeiro as narrativas coletadas por Banducci nesta região. Mais uma vez, chamo
84
atenção para o local do encontro, que acontece dentro de um tipo específico de capão de
mata. Os registros são bastante semelhantes no caso do Maozão, porém não é a partir
deles que pretendo aproximá-los, e sim do caso contado a seguir na entrevista:
F: E lá tem umas coisas estranhas...
tem, o aguaçuzá. Você viu aguaçuzá, né?Nunca viu? Ele é um pezão,
assim, mas grosso mesmo, e escuro por dentro. É um capão. E você
vazantão assim, daqui lá, assim, na sede. Só dele. Lá você não pode entrar.
O caráter sobrenatural do lugar é associado pelo entrevistado à presença de um tipo
de planta e às características do capão formado por ela. É comum na linguagem dos
vaqueiros a designação dos capões de mata a partir da espécie vegetal dominante:
carandazal, pirizeiro, entre outros. O termo aguaçuzá é referido também por Banducci
(2007: 183). Quando Jiló define a seguir este tipo de vegetação, ele menciona
finalmente o gado e a categoria de que trata este capítulo:
F: É um capão de mato?
É, que as folha dele é grossa, e animal não güenta romper. E gado,
quando baguá
, corre pra lá, pra dentro dele. não pode entrar.
quem conhece mesmo.
O aguaçuzá é, portanto, o lugar aonde o baguá se abriga quando perseguido. Assim
como a onça e outros animais selvagens, a fuga para o capão é seu movimento
defensivo. Quando o peão fala que “animal não güenta romper”, ele refere-se à
montaria, ao animal de trabalho. Nota-se ainda que a narrativa refere-se ao gado
“quando baguá”, designando um estado ou uma condição e não um tipo de gado.
Até aqui, procurei assinalar o modo como os capões são descritos como zonas de
sombra, lugares onde se escondem os animais selvagens e também onde se dá o
misterioso encontro com o Maozão. Busquei com isso situar a fala de Jiló, preparando o
terreno para o caso que ele conta a seguir, que será o tema principal desta seção. Nele, o
gado selvagem tem papel destacado, e o termo baguá adquire um novo sentido:
Diz que muito tempo, a minha bisavó meu pai contava. Minha bisavó
foi pega a laço. Ficava no lote de gado baguá. Aí a turma ficou assondando
pra pegar ela. Diz que corre duro, hein? A pessoa fica totalmente selvagem,
né, muda.
85
F: Mas pegou ela no mato, como é que fez?
Ela se perdeu, ficou quase um ano, assim, e a turma procurando. Mas
um dia, saíram, cedo e viram que num capão, tinha um gado parado. (...) O
gado usa muito aqueles bichos: curicaca, anhuma, que avisam o gado
baguá. Cantou lá, o gado rodou e foi embora.
A turma só com cavalo bom mesmo, de pegar bem pego. E ela tava sentada,
bem quebrando coco no coxo. Era ela. No comedouro, perto do gado. O
gado nem... Era a bisavó do meu pai. Ficou selvagem, baguá duma vez!
A turma falou: ah lá! Foi circulando, assim, foi por aqui, outro por aqui.
Quando ela viu, o capão tava daqui ali, naquele outro capão ali. Aí a turma
arrancou! Ah, mas a turma falou que corre duro. O cavalo suou pra dar
nela. Só um cara que alcançou, quase entrando no capão. Jogou laço,
cerrou nela. puxou, mas ela vinha de unha e pé. Aí jogaram outro laço, e
juntou todinho o pessoal e pegou ela. trataram, levaram na igreja, tudo,
e ela voltou ao normal.
Em entrevista feita no mesmo período, Seu Ormir observara a mesma relação entre o
gado selvagem e o canto dos pássaros: “[é] um gado difícil de amansar: quando ouve o
pio de um passarinho ele dispara”. A associação do gado selvagem aos pássaros
aparece tanto no trabalho de Banducci quanto no de Campos Filho, os quais, como
mencionado, foram minhas principais referências etnográficas.
A partir desta associação, o primeiro autor aproxima o gado bagual aos animais de
caça:
“Os animais também comunicam-se entre si e o vaqueiro com freqüência é
vítima das aves que denunciam sua presença aos outros animais. A anhuma
,
a curicaca
, o quero-quero e até a arara, quando pressentem a aproximação
do homem, começam a gritar, alertando o gado bagual
ou a caça, que
podem assim se proteger na mata”. (Banducci 2007: 84)
No segundo caso, a associação aparece na própria definição do “baguá”:
“Este gado é ‘amedontrado de gente’. (...) Ao menor anúncio de novidade,
como o canto da anhuma – Chauna torquata, do carão – Aramus guarauna,
entre outros, ‘levantam a boca do chão’ [por estarem pastando]. ‘Se um
deles troteia, correm todos’. Da mesma forma, quando sentem o cheiro
86
humano ou ouvem sons do ‘movimento dos cavaleiros’, fogem”. (Campos
Filho 2002: 137)
A associação do baguá ao canto dos pássaros remete também a uma série de relatos
sobre as onças, e retornarei ao tema no capítulo 5. Na narrativa de Jiló, a menina “corre
duro” e é “pega no aço”, como o gado selvagem. Ao dizer que a criança ficou
baguá
de uma vez, o campeiro estende o uso do termo aos humanos, e este é
o ponto principal a partir pretendo abordar a categoria nesta seção. O processo
de tornar-se selvagem, no caso, é uma possibilidade latente não para o gado, como
também para todos os habitantes (não-humanos e humanos) do lugar.
O trabalho de Banducci (2007[1995]) sobre os vaqueiros da Nhecolândia identifica
três modos de classificação a partir do estudo etnográfico: entre abençoado e
praguejado, caça e criação, e manso e brabo. O último par é o que mais interessa aqui,
e é a partir dele que o autor descreve como a noção pantaneira do espaço ‘social’ se
constrói em um embate permanente a dimensão selvagem da ‘natureza’; uma alteridade
que precisa ser ordenada, controlada e domada nas atividades dos vaqueiros. O autor
afirma:
“O gado bagual, vivendo nos campos largos, sem marcas, longe do contato
com o vaqueiro, é um criatura feroz, perigosa e, como tal, pertence à classe
das espécies selvagens. No momento em que os vaqueiros "trabalham" esses
animais, ou seja, marcam-nos com ferros e cortes nas orelhas, manejam
seus rebanhos, conduzem-nos ao curral, alimentam-nos com sal, eles se
acostumam à presença humana e passam a responder a seus comandos. A
partir daí tornam-se animais ‘mansos’, ainda que permaneçam no campo.
Assim, no mesmo ambiente ou contexto espacial, é possível encontrar duas
classes distintas de gado: o ‘bravo’ e o ‘manso’”. (2007: 110)
Os animais “mansos” são caracterizados por Banducci a partir do “controle
humano” e da “posse de marcas”, ou então por habitarem o ambiente doméstico e
social da sede da fazenda (2007: 110). Os animais bravos, por outro lado, são definidos
pelo “comportamento imprevisível e incontrolado” ou por habitarem “campos e
matas”, longe das habitações humanas (: 110).
Campos Filho (2002) observa que o ‘baguá’ também pode tornar-se noturno ou
crepuscular, escondendo-se durante o dia” (: 137), ligando também o seu
comportamento ao de animais perseguidos na caça. O autor também associa o
87
baguáao gado pantaneiro, na medida em que define este último a partir de uma
relação com o ambiente que extrapola o controle humano, e inverte o processo
da domesticação. O autor reporta para o gado que “nunca viu gente” o termo
“visonho”, diferenciando-o do “baguá” no trecho a seguir:
“A última categoria elencada é o ‘baguá’. Este gado é ‘amedontrado de
gente’ por ser ou ter sido ‘escarrerado’, ‘bagualhado’, perseguido para ser
pego. Os ‘baguás’ correm maiores distâncias que os ‘visonhos’, não se
escondendo, por terem grande desconfiança dos cavaleiros”. (: 137)
Nesse sentido, são as ações humanas de perseguir e amedrontar que
produzem o gado bravo,sendo mais mansos os visonhos, animais que nunca
tiveram contato com os cavaleiros.
Banducci (2007) estabelece, a partir dos modos de classificação pantaneiros, um
dispositivo que integra animais e seres sobrenaturais, e analisa, a partir dele, diferentes
versões para um caso no qual uma criança desaparece no mato por algum tempo e
depois é resgatada. No caso, a criança perdida é um menino acompanhado por uma anta:
“Os diversos episódios envolvendo a “anta sobrenatural” têm por base um
fato intrigante que teria ocorrido alguns anos na Nhecolândia com um
garoto, de aproximadamente sete anos, que teria desaparecido de sua casa
acompanhado de uma anta” (2007: 176).
Nela, o menino é perseguido a cavalo e capturado quando “panhava bocaiúva” (no
caso de Jiló, a menina quebrava coco junto ao gado). Assim como no caso narrado por
Jiló, o menino precisa ser capturado a laço, e trazido de volta para a fazenda. Nos dois
casos, a criança é então levada para a cidade para “Corumbá” ou para a “igreja”
onde é curada, o que remete à distinção animais abençoados e praguejados
(Banducci 2007: Op. Cit).
O enredo das duas histórias é praticamente o mesmo, a não ser por alguns poucos
elementos. Um deles é a conclusão do caso da anta sobrenatural”, na qual o menino
não conta a experiência a ninguém (assim como faz o personagem do caso do Maozão,
transcrito acima). Outro elemento diferenciador entre as narrativas é o momento da
captura, sendo que no relato reportado por Banducci, o menino grita: “pelo amor de
Deus, num me capa! (2007[1995]:178-179).
88
A diferença mais marcante entre as duas histórias são as espécies animais às quais a
criança se associa – no primeiro caso o gado baguá e, no segundo, a anta. A partir dessa
exclamação final, no entanto, Banducci associa a criança ainda a outro bicho:
“O menino tem de ser go a laço, tem de ser caçado. Em diversas versões
a sua captura é narrada como a de uma caçada de porco-monteiro. Ele
corre de um capão a outro, é perseguido a cavalo, depois a pé, é laçado e,
por fim, se fossem seguidos os procedimentos normais na captura de um
animal ainda novo, deveria ser castrado”. (2007 [1985]: 181)
O porco-monteiro é o animal doméstico que, de acordo com o autor, alonga para o
mato”, e se torna selvagem. O termo “alongado corresponde, segundo ele, a uma fase
de transição, e “[n]o momento em que os porcos alongados adquirem as
características, sejam comportamentais, sejam morfológicas, dos porcos monteiros, são
identificados e considerados totalmente selvagens” (2007: 111). Banducci afirma ainda
que “o representante ideal para o consumo humano é o macho, previamente castrado
no campo para a engorda e para perder o cheiro característico - a ‘miscazinha’, como
se referem ao odor comum às carnes de caça” (Idem)
Além disso, ao ser capturado para a castração, o autor reporta que o animal é
marcado com um corte na orelha ou no rabo, o que serve posteriormente para a
identificação do “capado” na caça. A captura do porco-monteiro, uma atividade de caça
tradicional, aparece nesse sentido como espécie de versão fraca da lida com o gado. O
mesmo tipo de marcação é feito inicialmente no gado:
“Como a primeira marca que o peão imprime no gado é um corte na
orelha, feito grande parte das vezes no campo, a rês que não possui esse
indicativo de manejo e propriedade é também denomidada "oreia",
tratando-se de um animal selvagem, bagual” (Idem: 113).
A etnografia de Campos Filho (2002) define a castração, no mesmo sentido, como
marco fundamental a partir do qual os animais são incorporados à cultura, ou
domesticados:
“A castração de bovinos pode ser tomada, a partir da visão local, como um
marco fundamental da cultura pantaneira, que tem no boi, enquanto
produção de vida campestre, seu peincipal objetivo e fonte de beleza. (...)
Tidos como nativos, os bovinos não necessitam dos humanos para
89
sobreviverem enquanto espécie no Pantanal. A única categoria efetivamente
criada pelos humanos é o ‘boi’, que é o macho emasculado resultado da
castração” (2002: 140).
Em relação especificamente ao baguá, o autor afirma:
“Sua castração confere aos homens uma maior segurança quanto ao seu
controle, mas continuam sendo percebidos como ‘bichos’, numa forma
atenuada do selvagem, inserida na cultura”. (Idem)
No caso da bagualhação, portanto, os procedimentos são os mesmos feitos com o
porco-monteiro. Minha intenção aqui, a partir dessas indicações, é aproximar a caçada
do porco e o manejo do gado, particularmente ao do gado selvagem, a partir dos
procedimentos em comum, em que os princípios da lida são simplificados ao mínimo:
castração, marcação, e abate. O guaiaca, nesse sentido, seria o equivalente do touro,
também impróprio ao consumo. Em relação à escrita do gado, descrita na primeira parte
deste capítulo, essa simplificação se traduz em um código binário marcado e não
marcado.
No caso da anta sobrenatural, Banducci observa:
“O horário em que o menino desaparece, meio-dia, (...), é propício aos
acontecimentos sobrenaturais. Da mesma forma, a liminaridade da hora se
reproduz no que diz respeito ao espaço. Numa das versões o menino
desaparece quando está num ‘varador’; em outra, é capturado junto a uma
‘porteira’, denunciando, assim, o caráter ambíguo da situação que envolve
o seu desaparecimento”. (: 179)
Chamei atenção para o papel da cimbra no caso do encontro com a onça, contado
por Jiló antes de narrar o episódio da criança bag. Seu relato sobre o caso da menina,
no entanto, não especifica as condições do desaparecimento, apenas descreve a captura
da criança. Na mesma entrevista, porém, ele referiu-se ao horário de meio-dia como
propício para o aparecimento do saci, que descreveu como uma ameaça para as crianças
pequenas, que podem ser levadas para o mato.
Conversei depois com Dona Leda e Seu Ormir a respeito do assunto novamente, e
ele descreveu o saci louro que havia visto uma vez quando era guri e falou sobre o
assovio que é usado para atrair as crianças. O tema motivaria um caso brando de
‘conflito cultural’ entre moradores da fazenda, descrito a seguir. Na entrevista gravada
90
com outro morador da fazenda, Concha (op. Cit), também nesse mesmo período,
pergunto-o a respeito do tema. Ele narra mais um caso de criança selvagem:
Horário de meio-dia, horário assim, que é horário que ele anda. Então
vinham os pais da gente falar: ‘guri, meio-dia não é hora de estar
brincando, é perigoso, vem pra dentro’. Então nos mandavam sempre pra
dentro de casa. E ele chama criança, criança que ele. Eu nunca vi,
mas a gente escuta os pais falarem.
E: É com criança que não é batizada?
A criança que não é batizada ele leva embora, fica com ele. Leva no mato.
Ele dá de tudo. A criança não passa mal, não passa nada, ele dá de tudo, só
que anda no meio dos bichos, anda no meio do gado, tudinho. Eu tenho uma
prima minha, ela ficou 15 dias ‘alongada’ assim, no meio do mato.
E: Depois apareceu de novo?
Não, tiveram que pegar ela. Tem que tomar dele de novo. E pra pegar
dele não é fácil. Ele corre, esconde, vira um bicho. E ele que guia tudinho.
F: E ela lembrava de tudo?
Não. Ela só falava que era bem tratada e o que ela queria ela tinha.
F: E como é que ele é?
O saci ele é loiro. O que leva a criança é loiro, loirinho. E ele leva mesmo,
ele chama, ele oferece as coisas pra criança; a criança vê. E hoje em dia é
coisa mais difícil. É difícil você vê. Só quem conhece o canto dele, o assobio
dele sabe distinguir se é ele ou não. Nesse horário assim é o horário dele
andar. De meio-dia até uma hora. E ele percebe a criança que não é
batizada.
Dona Leda, que acompanha a entrevista, concorda: “Eu não deixo criança andar
meio-dia” – ela diz. Concha e Dona Leda afirmaram na ocasião que Fernando, o
biólogo que coordena a pesquisa sobre as onças, não acreditava no saci, ambos
referindo-se à brincadeira feita pelo biólogo na tarde anterior, dizendo que ia “colocar
coleira nesse saci louro”. Concha respondeu à provocação afirmando que ele “tá igual o
cara que o saci deixou amarrado no campo, no ‘Guaicuruz’”. Quando questionado na
entrevista a respeito dessa descrença do biólogo, ele diz:
91
É o seguinte: A pessoa que é estudada, que tem estudo, é mais pela ciência,
né... que tem muitas coisas que na cidade o tem, você não vê. Essas
coisas anormais assim não acontecem na cidade. Você onde é
sossegado, onde é tranqüilo. Aí que você vê essas coisas.
Giorgio Agambem (2002) afirma que de Lineu, fundador da taxonomia científica
moderna, apesar de não questionar a diferença que separa o humano do animal em um
nível moral e religioso, ele se referia à dificuldade de se identificar essa diferença do
ponto de vista da ciência natural. Um ponto interessante que o autor observa sobre essa
demarcação histórica da espécie humana, é que a classificação de Lineu fala de casos de
crianças selvagens, “wolf-children”, descobertas criadas entre animais, colocando-os à
parte da espécie humana. Ele as chama de Homo ferus, uma forma de transição da
inumanidade animal para a humanidade. Uma das características descritas para a
espécie é a mudez, ou ausência de linguagem.
O humano não se distingue, assim, como uma espécie claramente definida, mas
antes por aquilo que Agambem denomina de máquina antropológica do humanismo:
“uma máquina ou dispositivo para a produção do reconhecimento do que é humano” (:
29). Um aparato que verifica a ausência de uma natureza própria para a espécie humana.
Tornar-se baguá, no exemplo da criança que precisa ser resgatada, é um processo que
assombra os habitantes da fazenda, algo que aponta para o caráter reversível das
classificações regionais, a fluidez das fronteiras entre doméstico e selvagem, humano e
animal.
92
2.7. Conservação e mercado
Uma das abordagens conservacionistas para o chamado conflito entre criadores de
gado e predadores silvestres como a onça é a criação de modelos que associam a
pecuária tradicional e a preservação da biodiversidade. O pesquisador Ricardo Boulhosa
é um dos que defende esse tipo de abordagem para o Pantanal. Em apresentação sobre o
tema durante o encontro organizado pela WWF e pela Pró-Carnívoros em maio de 2008,
na Fazenda San Francisco, ele afirma:
Um termo que hoje é muito utilizado na nossa discussão é a biodiversidade.
E os biomas brasileiros têm essa riqueza (...). Se você perde a
biodiversidade, você vai perder uma outra coisa que a gente tem que
discutir, que é a questão de mercado. Você está criando gado em um local
de biodiversidade, então qualquer técnica que você esteja aplicando em
cima daquele rebanho, se vai ser uma opção você procurar um mercado
diferenciado, baseado em biodiversidade. Qualquer técnica [de mitigação
do conflito] tem que ser bem detalhada, esmiuçada, para ver se ela não está
provocando algum problema dentro disso.
O biólogo cita o projeto da Embrapa de preservação do gado pantaneiro (ou Tucura)
como parte desse processo, e aponta a pecuária como elemento fundamental para se
pensar a conservação no Pantanal:
[A] gente sabe que 95% da área do Pantanal é de propriedades privadas,
sendo que (...) a atividade mais desenvolvida no local é a pecuária. Então,
um ponto importante quando a gente fala em trabalhar com a conservação
no ambiente pantaneiro, é que a pecuária deve ser levada em consideração
em qualquer tipo de programa de conservação.
Esta associação, formulada por Boulhosa a partir de seu trabalho para a WCS,
apresenta como novidade, em relação a propostas anteriores de organizações
conservacionistas, uma estratégia que vincula diretamente a conservação ambiental e a
cadeia produtiva do gado. Este mesmo tema foi abordado também por um dos
coordenadores do encontro, Ivens Domingos, como exemplo para as estratégias
desenvolvidas atualmente na região por outra grande Ong internacional – a WWF
(World Wildlife Fund). Esta organização não-governamental, criada na Suíça, em 1961,
93
é atualmente a maior organização independente de conservação no mundo, atuando em
mais de 90 países ao redor do mundo [Wikipédia].
O pesquisador trabalha em um programa voltado especificamente para a região, e
sua apresentação mostrou de forma didática a constituição da cadeia produtiva da carne
bovina, na seguinte seqüência de atores: Produtores, Frigoríficos, Varejistas,
Consumidores. Uma série de novos conceitos que surgiram na apresentação como
elementos cruciais para esta cadeia produtiva: Sustentabilidade, Consumo responsável,
Segurança do alimento, Rastreabilidade, Sustentabilidade sócio-ambiental. Um
exemplo das novas tendências no mercado citado por ele foi o Global Gap Global
Partnership for Good Agricultural Practice, uma organização de varejistas europeus
ligada à questão da conservação ambiental e aos chamados Selos verdes.
De acordo com Ivens Domingos, um bom selo precisa ter critérios e padrões
definidos em relação à conservação da biodiversidade, ao uso da água, e aos impactos
no ecossistema; e tem como desafio transformar capital natural em capital econômico.
Entre outras coisas, defendeu que neste caso deve-se “começar por baixo, articulando
os atores para pressionar o governo”. Em relação à busca de um caminho para a
pecuária sustentável, ele pergunta: “Como tornar mais vantajoso preservar do que
desmatar? Qual a origem dos recursos que paga pela preservação?
Algum tempo depois do encontro, procurei o pesquisador no escritório da WWF em
Campo Grande, MS, para uma entrevista em que pretendia aprofundar mais o tema da
interligação entre o gado e a conservação da onça, em particular. Transcrevo abaixo
uma parte da entrevista. A entrevista aborda diretamente o papel do gado dentro das
estratégias de conservação da WWF. O primeiro movimento diz respeito a um projeto
com a carne orgânica, e não tem uma relação direta com a onça:
Em 2003, veio um pecuarista do Pantanal com a alternativa da pecuária
orgânica certificada. E daí a gente começou como estratégia do programa
trabalhar com a pecuária orgânica certificada como uma alternativa pra
valorizar a pecuária tradicional de planície pantaneira.
A onça aparece mais diretamente apenas em um segundo momento da entrevista, e
em seguida o pesquisador apresenta o enfoque com o qual a organização lida com a
questão do conflito no plano regional, dentro das fazendas, a partir de ações
participativas feitas com a comunidade local:
94
Em 2006, a gente começou a ter algumas conversas que foi quando
começou o trabalho do Ricardo Boulhosa com a WCS, com o questionário,
pra tentar entender a pecuária pantaneira e como é que poderia fazer essa
busca de minimizar ou mitigar esse conflito da pecuária com a onça no
Pantanal. A gente sabia, pecuária pantaneira e onça têm uma ligação muito
íntima, a conservação dessa espécie com a pecuária pantaneira. Uma coisa
identificada, e um exemplo claro, é San Francisco pra quem trabalha
com turismo. Então, isso está muito claro, mas com a questão da pecuária
não está muito clara. Ou seja, o cara ver a onça na sua fazenda como uma
oportunidade de negócio ou de algum tipo de ganho, não uma ameaça e sim
uma oportunidade.
F: O turismo é o que a gente pensa de imediato...
O problema é que o turismo ainda não é economicamente representativo
pro estado. É muito pouco, e não muito estruturado ainda; tem todo o
problema de logística de chegada nas fazendas.
Em onça, especificamente, a gente fez a primeira parceira com a Pró-
Carnívoros, ano passado, em 2007. E a idéia é a seguinte, que surgiu,
tentando ligar conservação de onça e pecuária: primeiro é uma questão de
envolvimento e capacitação dos produtores da região. Cada fazenda é
diferente, e a idéia é que, no final do ano que vem, os fazendeiros tragam
propostas de manejo adequadas pra tentar mitigar o ataque da onça.
O pesquisador descreve então um projeto de longo prazo no qual a onça desempenha
um papel fundamental como espécie bandeira para a conservação da biodiversidade
regional. O projeto é inteiramente voltado para a dinâmica do mercado de gado:
Outra linha de trabalho é assim: Bom, a gente tem diversos selos
ambientais hoje no mercado. Isso está trazendo uma confusão pro
consumidor. Então, no caso do WWF Brasil, que vem trabalhando com
certificação orgânica; a gente sabia que a certificação orgânica na parte
ambiental era boa, mas podia buscar uma melhoria contínua.
E dessa experiência toda de envolvimento dos produtores, o que seriam
boas práticas produtivas da pecuária, seja em manejo, seja em condição de
organização de cerca ou etc., que o cara fazendo esse tipo de manejo tenha
95
menor impacto, por exemplo, sobre a onça. Então ele ajuda na conservação
da onça ou na conservação de outra espécie pantaneira, mas usando a
onça, talvez, como bandeira disso.
F: E de algum modo esse selo teria que traduzir isso?
A gente tem duas idéias iniciais: Uma tentativa é colocar isso dentro dos
selos dos orgânicos, mas tem fazendas que têm um bom manejo e etc.,
podem até conservar a onça, mas não têm interesse, ou por um detalhe ou
por outro, não conseguem certificar pra pecuária orgânica. Então isso é um
limitante de ser o orgânico, especificamente.
Tem outro selo, do Instituto Biodinâmico, que é o selo Eco-Social. Esse selo
traduz que ele tem boas práticas produtivas de pecuária, tem uma pecuária
sustentável e que dentro desse selo sustentável de pecuária ele conserva a
onça, ganhando, sei lá, 5% a mais na arroba da carne... Tem que ter
indicadores; tem que ter coisas mensuráveis, auditáveis, e que posam
comprovar para o consumidor isso. Então agora tem um movimento, uma
onda muito favorável a esse tipo de visão.
F: Mas você diz um movimento de que tipo?
Um movimento nacional. Com toda essa questão da pecuária sobre a
Amazônia e desmatamento, etc., forçando, e isso começou em outubro de
2007, se criou um grupo puxado pelo IFC, International Finance
Corporation, que é o braço privado do Banco Mundial e outras instituições
que montaram e criaram o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável.
Com esse movimento todo e essas indústrias preocupadas em mostrar pro
consumidor que tão comprando carne de sistemas de pecuária que não tão
destruindo a Amazônia, não estão destruindo o Pantanal, pode ser um
canal, via um grande varejista, de a gente conseguir implementar isso. A
Embrapa Pantanal está fechando os indicadores de sustentabilidade pra
pecuária pantaneira. Então a idéia é: primeiro passo é discutir, ter as bases
do que seriam esses critérios e indicadores.
F: E quais seriam esses grandes varegistas nacionais?
Pão de Açúcar, Carreffour, entre outros. São os grandes varejistas que
podem influenciar mercado.
96
F: Mas como eles explorariam isso?
Ele força a indústria da qual ele compra carne a comprar tal tipo de carne:
‘Não, eu quero a carne selo Pantanal’, por exemplo. Mas ele tem que ter
garantias de que esse selo Pantanal, esse selo Eco-Social Pantanal, o que
seja, tenha um respaldo científico e tenha um respaldo técnico realmente.
Isso é um processo de longo prazo, mas é um caminho.
F: Você tinha falado, no encontro na San Francisco, que os frigoríficos têm uma
coisa importante nessa cadeia, nos preços. Como é que funciona isso?
Simplificadamente, o que é a cadeia produtiva? É o consumidor, o varejo, a
indústria processadora e a indústria de abate, e o produtor. Normalmente,
como é que você mede quem é o elo mais forte na cadeia? É o que está mais
próximo do consumidor. E cada vez mais o produtor e a indústria têm que
estar conectados com o consumidor pra saber que tipo de produto ele está
querendo.
O que chama atenção neste último trecho da entrevista é a multiplicidade de atores
que entram em cena a cada passo do processo descrito. Eles compõem não uma
extensa lista de instituições financeiras, empresas, órgãos públicos e atores sociais em
uma rede produtiva (o que por si seria interessante), mas fornecem também alguns
bons exemplos da zona de fronteira que é o conservacionismo, uma prática que se move
o tempo todo entre o social e o ecológico (não por acaso a certificação de
sustentabilidade se chama selo eco-social).
A onça é citada mais de uma vez como uma bandeira para a conservação da
biodiversidade no Pantanal. O papel de espécie bandeira, ou espécie símbolo (flagship
species) faz parte do léxico usado pelo conservacionismo para designar espécies
carismáticas de grandes mamíferos carnívoros no mundo todo. O caso da onça encontra
exemplos semelhantes em projetos da WWF com tigres, leões, guepardos, ursos e lobos
ao redor do mundo, todos invariavelmente em conflito com criadores de rebanhos
domésticos. Essas espécies são designadas também neste âmbito como espécies chave
(keystone species), categoria relacionada ao papel ecológico desses animais no topo da
cadeia alimentar, controlando as populações de outras espécies. Uma terceira categoria
também usada no vocabulário conservacionista é o da espécie guarda-chuva (umbrella
97
species), que designa animais cuja preservação abarca a das muitas outras espécies que
estão abaixo dela na cadeia trófica (Morato Et Al. 2006; Silveira 2008).
Apesar de não ser classificada como criticamente ameaçada de extinção [ela é
classificada como vulnerável (o menor grau entre os três de ameaça) no Brasil e
internacionalmente como near treaten (um grau abaixo) pela IUCN], a onça-pintada é
de longe a espécie de carnívoro mais estudada pela Biologia de campo nos últimos
trinta anos. Seguramente está também entre as espécies que atrai o maior volume de
investimentos internacionais e que tem o maior número de programas voltados para sua
conservação no país.
No caso da entrevista a espécie desempenha um papel bem evidente de bandeira,
mas isso adquire um sentido bastante específico: ela aparece estampada no produto
carne que vai ser vendido nas grandes redes de varejo. A idéia de que ela possa
desempenhar um papel crucial no marketing para a rede produtiva é o que sustenta sua
participação dentro do programa conservacionista.
O principal objetivo desta seção não é discutir exaustivamente as estratégias de
preservação das onças, mas sim demonstrar de que modo o manejo e a conservação
delas no pantanal são irremediavelmente entrelaçados com o manejo e a conservação do
gado. A preservação da pecuária tradicional e de uma reavaliação do papel da onça
dentro desta pecuária, como vimos, são os principais temas das ações conservacionistas
na região. Em termos financeiros, em termos de alianças regionais, de áreas de pesquisa,
de representação pública, de conflitos entre grupos de interesse, de relações ecológicas,
as associações entre a onça e o gado se multiplicam interminavelmente. Elas se
estendem do campo à prateleira do supermercado na esquina da minha casa: Daqui a
pouco tempo se tudo correr conforme o planejado eu poderei comprar carne de uma
fazenda que preserva as onças através de um certificado que rastreia o produto até a sua
origem.
Todo esse percurso tem a ver com a rastreabilidade, um critério importante dentro
do modelo da pecuária sustentável, como vimos acima. O termo rastreado é também
utilizado nas fazendas pantaneiras para designar o gado que, além do manejo interno da
propriedade, é controlado também por uma empresa externa. Esse controle é também
um certificado de qualidade e um marcador fundamental na relação da unidade
produtiva que é a fazenda os compradores do seu produto.
A categoria completa a série de gados apresentados ao longo deste capítulo:
predado, branco, pantaneiro, bagual e, finalmente, rastreado. O sentido que este último
98
termo toma aqui diz respeito à carne. Retomando a nossa imagem de referência, a
fotografia-armadilha da onça com sua presa, a forma do bezerro neste caso teria que ser
recortada não como a silhueta do animal vivo, circulando dentro da fazenda, mas como
um pedaço de carne que projeta uma sombra para fora da fazenda: aquilo que o bezerro,
como produto, não realizou.
2.8. O gado e as onças
Bruno Latour define uma boa narrativa, pelos princípios da Teoria do Ator-Rede
(ANT),como aquela capaz de traçar uma rede (network). Uma das definições que propõe
para o termo rede é:
“Uma cadeia [‘string’] de ações onde cada participante é tratado como um
mediador. Um bom relato ANT é uma narrativa ou uma descrição ou uma
proposição onde todos os atores fazem alguma coisa (...). Em vez de
simplesmente transportar os efeitos, cada um dos pontos do texto pode
tornar-se uma bifurcação, um evento, ou a origem de uma nova tradução”.
(: 128)
10
A associação entre “network” – traduzida aqui por rede – e “string”cadeia ou fio,
corda, tira pode ser interessante, nesta conclusão, para um pequeno exercício
metafórico, a partir do material etnográfico: A imagem do fio ou corrente de eventos
(“string of actions”) descrito pela narrativa ANTseria, neste caso, análoga à imagem do
laço, o utensílio fundador da cultura dos vaqueiros. Feito com o couro dos mesmos
animais que captura, a imagem apresenta de saída este paradoxo cíclico que já o
aproxima de qualquer tipo de narrativa. O laço é produzido com quatro tiras de couro
(tentos) trançadas, sendo que cada uma delas resulta de um corte em espiral no couro.
Digamos, a partir desta imagem, que a forma do bezerro na Seqüência 1 recorte uma
série de linhas no tecido da etnografia; linhas que conectam atores eventos e imagens,
ou que associam uma rie de registros gravações, fotografias, filmagens em uma
determinada seqüência. Analogamente ao laço, a narrativa seria o processo pelo qual
essas tiras são trançadas.
10
[A] string of actions where each participant is treated as a full-blown mediator. (...) A good ANT
account is a narrative or a description or a proposition where all the actors do something (…). Instead of
simply transporting effects, each of the points of the text may become a bifurcation, an event, or the
origin of a new translation.
99
Latour estabelece também algumas precauções para este tipo de narrativa, ligadas a
uma prática simétrica de evitação das explicações sociais quanto das causas científicas.
De acordo com ele, estas últimas implicariam na atribuição, aos não humanos, das
qualidades não intencionais, materiais e sólidas dos fatos objetivos (matter of fact”)
científicos (2005: 107). A explicação social, por outro lado, implicaria na atribuição a
eles do papel de símbolos, repositórios de projeções humanas ou sociais (Idem: 107-
108).
No caso do gado, que é o objeto de interesse deste capítulo, isso deixaria duas
alternativas: Por um lado, ele poderia ser tomado objetivamente como matéria-prima
natural ou agente de transformações ecológicas; por outro, seria estudado como
representação simbólica de um determinado grupo social. Essas são as duas formas de
purificação (grosso modo) que Latour nos propõe abandonar. Assim que o gado é
filtrado por uma delas, ele se torna simplesmente o efeito de alguma causa anterior,
social ou natural.
Ao longo do capítulo, estabeleci uma série de continuidades entre a minha própria
pesquisa e duas fontes etnográficas que utilizei como principais referências para o tema
da pecuária pantaneira: Campos Filho e Banducci. Ambos os autores realizaram
trabalhos de campo em fazendas do Pantanal e compartilham um horizonte etnográfico
comum, que se mantém bastante homogêneo apesar das variações regionais. Procurei
fazer leituras dos dois autores a partir daquilo que considero o ponto forte de ambos: a
maneira como descrevem o gado como uma entidade múltipla, que estabelece relações
inesperadas entre aquilo que é comumente tratado separadamente pela ecologia e pela
antropologia.
Esta leitura, no entanto, foi baseada em certas precauções destinadas a evitar o uso
de uma oposição universal entre natureza e cultura; oposição que é utilizada como ponto
de partida pelos dois autores. Em cada caso esse dualismo tradicional recebe um
tratamento diferente, relacionado às áreas de conhecimento a que pertencem os autores
(respectivamente a Antropologia Social a Etnoecologia), mas ele aparece em ambos
como um fundamento não questionado. Minha intenção neste ponto é chamar atenção
para o modo como ambos utilizam a oposição, não para criticá-los, mas precisamente
para evitar acompanhá-los autores no movimento de tomar o dualismo clássico como
um a - priori.
100
No caso de Campos Filho (2002), a oposição entre natureza e cultura privilegia o
pólo da natureza como elemento explicativo, que utiliza como ponto de partida o
enfoque da ecologia. O autor afirma:
O bovino que tem maior participação na história e na cultura pantaneira é
o tucura. No Pantanal, é assim chamado o bovino introduzido pelos
colonizadores, antes do zebu indiano, assim como seus mestiços. É bastante
comum a crença
de que são animais nativos, como também o cavalo, sendo
assim naturalizados pela cultura
. (2002: 44)
No argumento do autor, o processo adaptativo do gado ao ambiente é superposto a
esse processo de ‘naturalização’ a partir da qual surgem as etno-espéciespantaneiras
(nativas para os pantaneiros, porém exóticas para a Ciência). O risco desta passagem,
ao introduzir simultaneamente na etnografia a idéia de “crença” e a oposição natureza-
cultura. Quando afirma que o pantaneiro “crê” que são nativos os animais, ele pressupõe
que “sabemos” que eles são “na verdade” são exóticos, o que introduz em seu
argumento um ponto de vista “de fora”, um conhecimento científico externo que acessa
diretamente o real, sem a mediação da ‘crença’ cultural. Ao classificá-los dessa forma, o
autor estabelece (ainda que inadvertidamente) uma diferença de grau entre o
conhecimento científico e o conhecimento local. Evoca uma causalidade científica que
pressupões o primeiro está um grau mais próximo do real do que o segundo, e corre o
risco de limitar o alcance de seu próprio projeto, que é o da legitimação do
conhecimento tradicional:
(...) [A] cultura local não tem sido respeitada em seus conhecimentos, à
medida que sua população, empobrecida economicamente e sem discurso
legitimado, é preconceituosamente vista como atrasada, ou ignorante.
(2002:167)
Alvaro Banducci, por sua vez, é um autor oriundo da Antropologia Social, e sua
análise utiliza o dualismo moderno em sentido inverso, ao considerar os animais como
representações, ou projeções simbólicas dos atores humanos; como na seguinte
declaração:
Na verdade
, gado, cavalo e cães são, nas fazendas da Nhecolândia,
instrumentos por meio dos quais os vaqueiros expressam e promovem, de
forma simbólica, as suas qualidades pessoais. (Banducci 2007: 97)
101
A afirmação é um exemplo de como a análise antropológica pode reduzir o escopo
das relações sociais à intencionalidade humana. Os animais citados, inseridos na
etnografia em múltiplas relações, são então reduzidos ao papel de objetos passivos.
Neste caso produz-se uma rede de causas culturais que restringem visivelmente o campo
de ação daqueles que, na própria etnografia interagem de formas múltiplas com o
ambiente e com a cultura humana e com humanos.
As precauções latourianas apontadas no início desta seção visam à produção de uma
descrição do gado – no caso deste capítulo – que não recorra nem às causas sociais nem
às causas naturais, ou biológicas. Tomando-as como princípios, é necessário evitar tanto
o movimento feito por Campos Filho, de explicar ‘cientificamente’ a explicação nativa,
quanto o de Banducci, o qual limita os não-humanos a repositórios de projeções
simbólicas dos agentes humanos.
Aponto esses dois movimentos não com uma intenção crítica, mas apenas para
identificá-los como interrupções no fluxo das narrativas. A leitura dos dois autores, no
meu entender, tem a ganhar quando abdicamos deles, afinal os dois trabalhos
apresentam dados etnográficos ricos e intuições inovadoras a respeito dos temas com os
quais trabalham (dados inéditos, que o território é praticamente inexplorado). Depois
de lê-los – e é este o ponto no qual queria chegar – o gado torna-se muito mais
interessante do que era antes; cheio de possibilidades, agenciamentos e sentidos novos,
como procurei enfatizar ao longo de todo este capítulo. Deixa de ser somente a
entediante matéria-prima cultural e industrial, ou o monolítico agente antrópico passivo,
para tornar-se em múltiplo, híbrido, ativo.
É neste o sentido que Campos Filho (2002) fala em uma cultura do gado (op.cit) na
passagem a seguir:
Assim, cada grupo bovino desenvolveu história em seu ‘lugar’,
apresentando comportamentos singulares de migração e utilização de
territórios, ambientes e alimentos nas várias ‘épocas do ano’, chamados de
‘jogo do gado’, repassados aos animais mais novos, o que permite dizer de
uma ‘cultura bovina pantaneira’ (Idem: 126)
Aqui o gado tem sua própria “cultura”, definida em termos de uma “utilização de
territórios, ambientes e alimentos”. A “cultura” estendida aos não-humanos ganha um
novo sentido. O gado e os cavalos ‘já estavam lá’ quando o Pantanal começou a ser
colonizado pelos fazendeiros, construindo ou fabricando ativamente o “lugar” ao
102
habitá-lo. Um Pantanal sem a presença desses animais é, portanto, tanto desconhecido
pelos pantaneiros quanto pela própria ciência, e a questão aqui seria então tratar a idéia
de que são “exóticos” como projeção ou idealização (por parte dos cientistas), e não a
idéia de que são “nativos”, como formulada pelo autor em referência aos pantaneiros.
Levando em consideração todo o esforço feito até aqui, o gado neste momento não
deve ser um bom exemplo para os processos de purificação científicos e sociais que
apontei nas duas fontes citadas. Outros animais são exemplares bem melhores. Uma
imagem que contrasta com esse caráter múltiplo do gado é a das onças no trabalho de
Campos Filho. Uma das causas da crise da pecuária pantaneira, de acordo o autor, foi o
processo de empobrecimento dos criadores regionais gerado pelas grandes enchentes de
1974 e 1995 (Idem). Quando relaciona os animais da região afetados por esses
acontecimentos, ele afirma:
“A onça pintada, conforme conhecimento local, não é prejudicada pelas
enchentes e, estando no topo da cadeia alimentar, se alimenta de todas as
espécies nativas e introduzidas, com tamanho e comportamento próprios à
predação. A proibição da caça também foi fator de aumento populacional,
que seu único predador é o homem. Após a grande enchente de 1995,
passou a ser risco de extinção para muitas espécies nativas e, com as
pequenas populações destas, intensificou sua predação a animais
domésticos, o que tem trazido prejuízo adicional inadministrável. Como se
não bastasse isso, é ainda um grande risco à integridade humana,
comprovado por ataques a sedes de fazendas, turistas, empreiteiros e peões,
principalmente quando solitários”. (: 165-166)
Talvez esta seja representação mais negativa da onça que encontrei ao longo de toda
a pesquisa. Vale lembrar que o autor é também proprietário rural, o que possivelmente
acrescenta um sentido importante à declaração, na medida em que ele mesmo
experimenta esses prejuízos. É a partir de seu compromisso com a etnoconservação, no
entanto, que ele define sua posição, defendendo a manutenção e a recuperação da
pecuária tradicional pantaneira como uma forma de conservar ao mesmo tempo a cultura
e a biodiversidade locais:
“Pela ótica da conservação da natureza, é evidente que o sistema
tradicional vem mantendo nas propriedades uma biodiversidade maior do
que onde transferência para proprietários ‘de fora’, com exceção de
103
alguns, dentre os empreendimentos turísticos, onde a conservação da
natureza é mantida”. (2002:168)
O bovino pantaneiro, ou Tucura é digamos, a espécie bandeira para esse modelo de
conservação. Ameaçado de desaparecimento por imposições externas, e por uma lógica
‘moderna’, ‘de mercado’, ele é um dos pilares que sustenta, em suas múltiplas relações
ambientais e culturais, aquilo que identificamos como uma tradição ou como uma
identidade local. A visão externa no argumento de Campos Filho rompe com o
sistema tradicional e desvaloriza o boi mais adaptado em função daquele que tem maior
valor de venda. Neste sentido, ele traz para o primeiro plano a conservação do bovino e
não a de outras espécies animais para os quais os esforços conservacionistas costumam
se voltar. Alguns animais são definitivamente excluídos dessa lista de prioridades:
“A população local tem interesse em controlar a atual superpopulação de
jacaré e onça, propondo seu Aproveitamento econômico como alternativa
suplementar à crise econômica da região”. (: 165)
Quero deixar claro que o autor fala da conservação da onça em um comentário
lateral, e esse não é um tema ao qual se dedica. Minha intenção aqui é contrastar a
imagem multifacetada que ele traça do gado produtor de cultura e ao mesmo tempo
agente cultural, exótico e ao mesmo tempo nativo com essa imagem fixa da onça. Ela
é definida unicamente como uma espécie daninha, uma ameaça para os moradores
locais e para os outros animais. Uma imagem, por sinal, que se encaixa perfeitamente
àquela com a qual os biólogos que trabalham diretamente com a onça definem o conflito
(como vimos, um importante tema conservacionista) regional.
Especificamente no que diz respeito à onça-pintada, a posição de Campos Filho
contrasta diretamente com os pontos de vista apresentados na seção anterior por
pesquisadores ligados à biologia da conservação. Não pretendo discutir profundamente
aqui o debate que está por trás dessas duas posições, apenas apontar esse contraste entre
elas como algo que evidencia um conflito entre dois códigos, ou modelos
preservacionistas: o que coloca a preservação da vida selvagem em primeiro plano, de
um lado; e de outro, aquele que situa em primeiro plano a preservação das tradições
culturais.
O debate em torno da conservação da onça, apresentado na seção anterior, é um bom
exemplo de como esses dois modelos não são excludentes, e como podem convergir em
diversos momentos. O modelo descrito no encontro, em termos gerais, é o que se
104
poderia chamar de um modelo de conservação participativa, que advoga o envolvimento
da população local nas iniciativas conservacionistas a partir da valorização de práticas
tradicionais. Contudo, ao colocar em primeiro plano a conservação da vida selvagem,
ele utiliza um ponto de partida diferente daquele esboçado aqui através da posição de
Campos Filho, que coloca em primeiro plano a conservação cultural. O que é
interessante é que ambos advogam a preservação do gado pantaneiro.
O antropólogo britânico John Knight (2000), ao analisar o tema do conflito
humanos-animais, diferencia o modelo clássico ambientalista do conservacionismo
profundo (deep ecology). De acordo com ele, o primeiro para o qual foi cunhado o
termo sustentabilidade é baseado no gerenciamento dos recursos naturais, enquanto o
último tem como finalidade a proteção da vida selvagem (“wilderness”) como um fim
em si mesmo, e não apenas como um recurso para as atividades humanas (Knight, 2000:
17). O autor afirma que essas duas correntes permeiam muitos temas ambientais, mas se
tornam especialmente evidentes nos debates em torno de espécies ameaçadas.
Knight mostra que este último modelo, o conservacionismo (principalmente em sua
versão norte-americana), é acusado por seus críticos de etnocentrismo, por ignorar o
conhecimento local e considerar o manejo da vida selvagem como um conhecimento
especializado acadêmico. Por outro lado, argumenta, o modelo participativo é acusado
muitas vezes por ecologistas e defensores da conservação da vida selvagem de
reproduzir o antropocentrismo clássico, colocando o interesse humano acima das
demais espécies. O autor observa ainda que a conservação participativa resgata a visão
utilitária do ambientalismo clássico, na medida em que, na maior parte das vezes, “[a]
lógica subjacente é a de que a vida selvagem será conservada pelas populações locais
na medida em que for útil para elas” (2000: 17).
No caso das etnografias sobre o Pantanal, a idéia de conflito ganha um sentido
propriamente local no trabalho de Banducci (Op.Cit) sobre os vaqueiros da
Nhecolândia. O antropólogo apresenta uma rica descrição etnográfica das atividades de
laçar, domar e cavalgar e caçar, onde animais como o gado, os cavalos e os cães
desempenham múltiplos papéis. Essas atividades são caracterizadas como processos de
enfrentamento de uma natureza selvagem que precisa ser continuamente capturada,
controlada e amansada. As relações de conflito, de acordo com o argumento, não se
restringem às espécies nocivas ou selvagens, mas regem a maior parte das interações
dos vaqueiros com os animais com os quais compartilham o espaço das fazendas.
105
Como vimos na seção sobre o bagual Banducci descreve o dualismo entre manso e
selvagem como um processo reversível, utilizando para isso os exemplos deste tipo de
gado, do porco-monteiro e também dos moradores que são capturadas por assombrações
e passam a viver no mato, como bichos. Ele aponta a dupla direção deste processo
tornar-se manso e tornar-se selvagem como elemento central da cultura pantaneira. O
argumento entrelaça uma série de ações e eventos da etnografia, e os animais citados
são investidos de múltiplos significados culturais.
O papel da onça nesta cultura, no entanto, é restrito apenas a poucas passagens da
etnografia, sendo definido a partir da idéia do enfrentamento com o selvagem como
valor cultural. O autor afirma:
“No Pantanal, a onça é a criatura que melhor realiza essa representação
‘pura, ‘extrema’, de selvageria. Existem inúmeros relatos que tratam da sua
força descomunal, de seus feitos extraordinários e assustadores, do poder e
do perigo inerentes à sua animalidade. Os indivíduos que conseguem
capturá-la são distinguidos entre seus pares por sua coragem e ousadia. A
onça (...) desperta o respeito e o temor do pantaneiro”. (2007: 125)
Nessa passagem, ela aparece como um tipo ideal cultural, dando continuidade ao
argumento anterior do autor sobre ‘tipos ideais’: o ‘tipo ideal’ do gado para a vaquejada,
o ‘tipo ideal’ do porco para a caça... Todos esses casos, no entanto, se situam no plano
etnografia, enquanto o exemplo da onça parece recorre a uma purificação (ela é, nas
palavras de Banducci, uma “representação pura) que remete para fora do campo. [Um
‘tipo ideal’ de onça na caçada seria, entretanto, algo compatível com o caráter ‘êmico’
do restante do argumento, e pretendo voltar a esta idéia adiante]. O antropólogo
acrescenta, em nota:
“É importante salientar que o pantaneiro não caça a onça simplesmente em
função do significado simbólico que a classificação animal lhe confere. A
onça é uma espécie predadora. Ela ataca os rebanhos, mata bezerros e
novilhas; é um transtorno real para o criador. Desse modo, sempre que o
mundo é representado idealmente não se deve esquecer que ele também é
vivido, concretamente, e que as necessidades humanas básicas interferem
no pensar o mundo tanto quanto as categorias mais abstratas e
autônomas”. (Idem)
106
Banducci distingue, assim, um campo simbólico no qual a onça é um ícone para o
pantaneiro e um campo real (“vivido concretamente”) no qual a onça é uma espécie
daninha ou nociva. Se tomarmos essa dupla inscrição como uma posição marcada da
Antropologia, é interessante observar que ela é praticamente uma inversão simétrica de
formulações feitas a partir doponto de vista da Biologia da Conservação, os quais
colocam em primeiro plano o aspecto utilitário do conflito entre os vaqueiros e a espécie
daninha como problema para a Conservação, e os aspectos sócio-culturais aparecem em
segundo plano. Neste caso, a onça é descrita como uma espécie animal ameaçada pela
perseguição humana, e busca-se acesso, através do aparato técnico-científico, dos
fatores objetivos que causam o conflito entre carnívoros e humanos. A causa da
perseguição, no caso, é percepção pelos fazendeiros da onça como ameaça.
Se para os biólogos citados a onça pode ser representada empiricamente como
ameaçada ou como ameaça, para Bancucci, no trecho anterior, ela representa, antes de
tudo, um tipo ideal para um grupo social. No primeiro caso, ela seria um índice do
animal empírico em determinada relação ecológica (o conflito); no segundo, seria uma
metáfora para a experiência simbólica humana em determinada relação social. O ponto
de vista antropológico, neste exemplo, descreve a relação entre humanos e onças como
algo que tem uma causa cultural e um pano de fundo utilitário, sendo que cabe ao
analista estabelecer essa causa a partir dos fatos registrados na etnografia.
O ponto de vista ecológico, por outro lado, descreve a mesma relação como algo que
tem causas empíricas e um pano de fundo cultural, e cabe aos analistas identificarem
essas causas a partir das tecnologias de pesquisa. Nos dois casos, o rótulo ‘social’ ou
‘natural’ se aderem imediatamente a cada uma das relações descritas: Para os
ecologistas, as “práticas de manejo do rebanho” são sociais, enquanto a “abundância e
distribuição das presas naturais” são ecológicas; Por outro lado, para o antropólogo, a
“representação pura da selvageria” é social, enquanto o “mundo vivido concretamente”
pelo criador, onde “a onça é um transtorno real” é natural.
No momento em que a natureza é unificada, as culturas, no plural, passam a ser
filtros a partir dos quais se olha para ela, o que deve ser evitado a todo o custo quando o
que temos em vista é uma antropologia simétrica (Latour 1998). Ao abandonarmos a
oposição natureza-cultura, deixaremos de falar em uma onça ‘real’ e em vários pontos
de vista sobre ela e passaremos a falar em onças, no plural, a cada vez que
introduzirmos um ponto e vista.
107
O método descritivo de Latour é uma alternativa para a cristalização dos dados
científicos em caixas-pretas os “matter of fact” da ciência criadas pela idéia de que
a prática científica tem um acesso privilegiado ao real, e propõe tratá-los da mesma
forma como os cientistas tratam os “facts in the making”. Simetricamente, busca evitar
a formulação de ‘fenômenos sociais’ como explicação das ações e das associações entre
os atores, por trás do que está sendo descrito. [o “fantasma do Social”] O campo (o
field site biológico ou antropológico) é, de acordo com a definição do autor, o lugar
onde os elementos estão misturados, onde é impossível dissociar os processos
ecológicos dos processos culturais sem a introdução de um observador ausente
vinculado ao aparato realista clássico da ciência (a câmera oscura do renascimento, as
coordenadas cartesianas).
A proposta deste trabalho é descrever as práticas de campo sem fazer essa distinção
prévia. Porém, muitas vezes isso simplesmente não basta, e é preciso um esforço
adicional no sentido de desfazer aquelas distinções que estão, de alguma forma,
estabelecidas. O gado, no presente caso, por exemplo, é um agente na formação da
paisagem e das relações ecológicas, tanto quanto é um agente na formação da paisagem
cultural e das relações sociais. A interseção entre o vocabulário da ecologia e o das
ciências sociais, no entanto, pode produz uma série de quimeras, como no exemplo de
Campos Filho (2002: op. cit), em que o autor é obrigado a falar em “espécies
naturalizadas pela cultura”. Com o dualismo colocado de antemão, precisaremos
sempre decidir em qual dos lados colocaremos cada um dos atores, ou explicar em qual
lado os outros os colocam.
A idéia de uma “cultura bovina”, formulado por Campos Filho para designar as
relações ecológicas em jogo no Pantanal, não restringe o papel do gado apenas ao
paradigma da produção, nem tampouco ao da seleção natural. Ele descreve a
pecuária pantaneira tradicional a partir de um jogo no qual o gado desempenha
um papel que não é circunscrito pelo controle humano:
Dizem as fontes orais sobre o gado que ‘eles mesmos cuidavam deles’. (...)
Assim, cada grupo bovino desenvolveu história em seu ‘lugar’,
apresentando comportamentos singulares de migração e utilização de
territórios, ambientes e alimentos nas várias ‘épocas do ano’, chamados de
‘jogo do gado’, repassados aos animais mais novos, o que permite dizer de
uma ‘cultura bovina pantaneira’ (: 126)
108
No trecho acima, o “jogo do gado” é formulado ao mesmo tempo como uma
“utilização dos ambientes” por parte do gado e aquilo que os vaqueiros aprendem a
reconhecer para jogar; ou seja, trata de interações ao mesmo tempo ecológicas e
culturais. Ao fazer essa operação, o autor coloca o gado como um agente, produtor de
cultura, e não apenas como uma matéria-prima ou um símbolo para uma cultura
humana. Esse sentido da “cultura bovina” resulta de uma associação ecológica entre os
humanos e os bovinos, sendo que esses últimos, ao habitar o lugar, também constroem
ou reproduzem a paisagem e o espaço reconhecido pelos primeiros.
Tim Ingold (1989) critica simultaneamente o relativismo cultural e o
determinismo biológico contrapondo a noção clássica de sociedade da antropologia
social ao conceito de sociedade formulado no âmbito da ecologia. Enquanto o primeiro
remete ao sistema de regras ou ambiente das instituições sociais, dos costumes e
projeções simbólicas de um determinado grupo cultural, o segundo remete a um sub-
campo da ecologia, que estuda a interatividade entre organismos da mesma espécie ou a
constituição do componente intra-específico do ambiente. Ingold critica os modelos
deterministas da biologia evolutiva por abordarem a vida orgânica como pura
conseqüência: introdução de uma “forma a-priori em um substrato material”, o que
leva a uma visão do mundo natural como um processo a-histórico, externo à civilização
humana.
Da mesma forma, a cultura entendida especificamente como projeto ou
produção de um ambiente humano artificial, simbólico, tecnológico – implica na
existência de um material bruto, um substrato natural, ao qual corresponde um
determinado modo de concepção do animal. Como aponta Ingold, (1994), o animal, no
singular genérico, se refere a uma ausência daquilo que se convenciona como sendo a
singularidade humana: inteligência, sentimento, consciência de si e da morte,
linguagem. Nesse sentido, a noção de biodiversidade da ecologia contém uma crítica ao
antropocentrismo, ao pensar a animalidade (incluindo a espécie humana) a partir da
ecologia em termos de uma pluralidade que não se deixa reunir em um conceito único,
oposto ao de humano.
Ingold utiliza as idéias do zoólogo Jacob Von Uexkull, um dos fundadores da
ecologia, para pensar a relação organismo e ambiente como interdependência: a noção
de “ambiente próprio” é formulada pelo zoólogo como aquilo que o organismo projeta
pela percepção, através dos órgãos sensoriais próprios de determinada espécie. A noção
de ambiente, neste caso, não projeta essências, mas antes se refere a um conjunto de
109
dispositivos acionado pelo organismo sensível. No sentido de Uexkull, um organismo
natural não se relaciona uma natureza única, mas sempre com um determinado ambiente
de possibilidades; o ambiente é o conjunto de disposições que o organismo oferece ou
projeta sobre aquilo que percebe.
Agambem (2002) também se refere ao trabalho de Uexkull sobre os ambientes
animais, desenvolvido na década de 1930, como abandono da perspectiva
antropocêntrica: “Onde a ciência clássica via um mundo único, (...) Uexkull supõe uma
variedade infinita de mundos percebidos”(: 40). Esses mundos percebidos são descritos
pelo zoólogo como carregadores de significado, ou marcas, projetados pelo organismo
perceptivo; a tarefa do cientista, neste caso é reconhecer essas marcas no ambiente
humano, sendo que o exemplo canônico de Uexkull, que trabalhava com invertebrados,
é o do carrapato. Agambem relaciona-o historicamente ao surgimento da física quântica
e da fenomenologia. Ele afirma:
“[I]maginamos que a relação que um determinado sujeito animal possui
com as coisas de seu ambiente acontece no mesmo no mesmo espaço e no
mesmo tempo que aquelas que nos conectam aos objetos em nosso mundo
humano. Essa ilusão provém da crença em um mundo único no qual todos
os seres vivos estão situados” (2002: 40)
De acordo com Evans-Pritchard (1940), cherchez la vache(e.m) é o melhor
conselho que pode ser dado àqueles que desejam compreender o comportamento nuer.
(2005 [1940]: 23). Em sua etnografia clássica sobre este povo de pastores da África
Oriental,afirma:
“Os Nuer e seu rebanho formam uma comunidade corporativa com
interesses solidários, a cujo serviço as vidas de ambos estão ajustadas
(...)”. (: 50)
E descreve a relação de interdependência entre os vaqueiros africanos e o gado como
uma simbiose:
“Já foi observado que os Nuer poderiam ser chamados de parasitas da
vaca, mas pode-se dizer igualmente que a vaca é um parasita dos Nuer,
cujas vidas são gastas em garantir o bem estar delas. Eles constroem
estábulos, alimentam fogueiras, (...) desafiam animais selvagens para
110
protegê-la
11
. Nesse íntimo relacionamento simbiótico, homens e animais
formam uma única comunidade”. (: 45)
As afirmações podem ser tomadas como ponto de partida para uma reflexão sobre a
comunidade formada pelos vaqueiros do pantanal e seus rebanhos, guardadas as
diferenças culturais
12
. Essa reflexão passa por uma diferenciação entre o gado
produzido para fora da fazenda o gado de corte e aquele que é abatido dentro da
fazenda, uma produção em escala industrialdirigida para fora da fazenda e uma
produção interna, em pequena escala, voltada para as necessidades das pequenas
comunidades rurais residentes. A alimentação da fazenda é feita com vacas que não
produzem mais bezerros (as chamadas matulas), enquanto a produção de gado de corte
é composta principalmente de garrotes. O gado de corte, no entanto, étratado de
umaforma completamente diferente das vacas leiteiras e bois sinuelos, animais mansos
que recebem nomes e com os quais os pantaneiros estabelecem vínculos.
Talvez mais até do que a em relação ao gado, a associação entre os pantaneiros e
seus cavalos revelam unidades formadas por homem e animal. Cavalos e cães são
animais de trabalho envolvidos em relações de aliança e de identificação nas fazendas, e
da mesma forma como um cavalo pode valer um caminhão de novilhas numa
vaquejada, um bom cão onceiro pode valer muitas cabeças de gado. A relação com
esses animais envolve uma subordinação pela força, mas ao mesmo tempo o prestígio
do vaqueiro ou do caçador associado diretamente a qualidade da sua montaria ou dos
seus cães. A comunidade pantaneira, no sentido usado por Evans-Pritchard, além de
humanos e gado, é composta por cavalos e cães.
De acordo com Campos Filho (2002), a pecuária tradicional pantaneira tende a
aumentar a biodiversidade, enquanto a ausência do gado significa um processo de
descaracterização da paisagem, em que o campo se torna sujo, categoria que diferencia-
se tanto do campo aberto (pastagens) quanto dos capões e cordilheiras (florestas). A
pecuária tradicional revela agenciamentos heterogêneos do gado: bagual, visonho,
11
O antropólogo observa, a esse respeito, que ataques de predadores ao rebanho são associados pelos
Nuer à faltas anteriores cometidas pelo dono do gado.
12
Vale lembrar que, embora o gado tenha muitos usos para os Nuer, ele é útil principalmente pelo
leite que fornece. Além disso, tal como em outros povos pastoris da África Oriental, o sangue do gado é
extraído eusado como suplemento na alimentação. O abate de animais para o consumo de carne, contudo,
se restringe a ocasiões rituais. Nesse sentido, é possível contrastar o sistema nuer ao pantaneiro, este
último orientado por pelo modo de produção capitalista, a escala industrial do rebanho e a ênfase na carne
como principal produto da pecuária local.
111
leiteiro, guaxo, e uma série de categorias que designam uma interação complexa. O
gado branco, em contraste com o gado pantaneiro, pode ser tomado como exemplo de
uma relação de produção industrial, de uma série de práticas que em toda parte substitui
os antigos costumes e tornam o ambiente homogêneo, antropomorfizado.
A ação do gado sobre o ambiente pantaneiro, por outro lado, é transformadora,
mantém a paisagem tal qual ela é conhecida e valorizada pelos moradores locais; a
pastagem contínua do gado limpa o campo e abre as trilhas por onde os vaqueiros
circulam.O gado brancoexemplifica a idéia do animal como recurso, matéria-prima para
a empresa humana, enquanto o gado pantaneiro revela outros agenciamentos, aponta
para a idéia de um jogo complexo entre organismos e ambientes. O contraste entre os
dois evidencia uma distinção entre sistemas complexos e caóticos criativos,
dinâmicos, imprevisíveis – e sistemas lineares comportamento previsível e determinista.
Banducci (2007) observa, a respeito das transformações em curso no Pantanal, que a
cultura local se transforma sem necessariamente perder suas características, sendo que a
formulação de uma auto-definição “pantaneira” absorve uma rie de mudanças nas
fazendas ligadas ao mundo moderno e as relações capitalistas. Ele argumenta que não
necessariamente a ausência do gado bagual e a mudança na genética bovina implicam
em diluição e desaparecimento da tradição.
O meu próprio trabalho de campo foi baseado em fazendas não tradicionais. Nas
duas fazendas onde pude observar mais de perto as práticas dos vaqueiros, a
predominância do gado branco era notável, e o manejo era intensivo e voltado para a
produtividade. No entanto, esse manejo era feito também por pantaneiros, que se
reconheciam como tais, que mantinham e valorizavam a montaria, o curtume e a prática
do laço, e que tinham seu trabalho valorizado pela habilidade nessas práticas
tradicionais.
O manejo intensivo dentro do mangueiro, em episódios de vacinação e contagem
dos animais, são aspectos da relação produtiva, são momento nos quais o gado é tratado
como coisa, objeto, rebanho indiferenciado. Ao mesmo tempo, a lida com os animais no
campo é atravessada pela diferenciação, pelos indivíduos excepcionais, brabos, que
varam cerca, escapam do rebanho, pelos cavalos difíceis de domar, pelas reses
reivindicadas pelas onças, pelas enchentes e pelas cobras.
O gado, ao longo deste capítulo, demonstrou ser – assim espero – um agente
simétrico, no sentido em que age sempre, digamos, nos dois pólos da oposição. Esse
agenciamento natural-cultural, no entanto, não deve ficar restrito a ele, mas, ao
112
contrário, estendido aos outros não-humanos com os quais o gado se articula em uma
rede exemplificada visualmente pela Seqüência 1, incluindo cães, onças e coleiras de
rádio.
2.9. Cores e sinais: associações não predatórias entre gado e onças
Por fim, quero apresentar duas proposições relacionadas ao gado que pretendo
tomar, adiante, como elementos para uma classificação das onças. A primeira delas diz
respeito ao cromatismo como elemento central na nomeação e na descrição dos animais
por parte dos vaqueiros: O início deste capítulo descreve de que modo a lida do gado se
baseia em uma rie de códigos visuais a partir dos quais os animais são classificados,
selecionados e manejados pelos vaqueiros. As formas do corpo, dos chifres, e as cores
são elementos que fazem parte de uma individualização, uma espécie de nomeação que
é ao mesmo tempo uma descrição sucinta de cada animal.
Como relatei ainda na primeira seção deste capítulo, durante o trabalho de campo
solicitei várias vezes aos vaqueiros que identificassem as cores de cavalos (e mulas) e
também do gado. A partir das anotações feitas nessas ocasiões, preparei uma listagem
dessas cores e de suas respectivas descrições baseada num certo consenso entre diversas
citações.
Apresento em seguida alguns termos usados pelos entrevistados para designar cores
de cavalos e do gado. A lista é bastante provisória, e o papel do cromatismo do gado no
vocabulário pantaneiro mereceria uma investigação mais aprofundada. A intenção na
tabela é mostrar o caráter predominante da visualidade e do cromatismo nas duas séries,
que aproximo a seguir de algumas designações das onças:
Cavalos
Tordilho
Branco
Tordilho Perdez
Branco salpicado de pintas pretas
Ruano
Mais claro que o baio
Baio
amarelado; ocre
Pampa
Malhado de branco e preto ou vermelho
Saíno
Vermelho mais escuro
Lazão
Vermelho mais claro
Mouro
Marrom escuro
Rosilho
Marrom salpicado de branco
113
Vacas
Branca
Brasina
Baio com escuro
Fumaça
Branco com partes cinza ou escuras
Lobuna
Amarelado bem escuro
Vinagre
Vermelho bem escuro com preto
Tostada
Onças
Malha larga
Mais amarela; rabo comprido
Malha miúda
Canguçu
Cabeça grande
Suçuarana
Lombo preto
Escura no lombo
Pata rajada
Parda
Palha ou amarela
Lombo vermelho
O cromatismo do gado possui uma série de referências importantes na literatura
antropológica. Lienhardt, por exemplo, em seu célebre trabalho sobre os Dinka, afirma
que “Praticamente todo o extenso vocabulário de cromático dos Dinka é de cores de
gado” (Lienhardt 1961: 37)
13
. No caso pantaneiro, vimos que esta classificação
cromática se refere a uma primeira camada, sobre a qual se inscrevem as marcas usadas
no manejo do rebanho, a escrita do gado. A primeira função da marcação é a definição
da propriedade: a marca da fazenda, feita a ferro, diz a quem pertence o animal. A partir
daí, é possível distinguir os animais mansos (domesticados) como marcados e os
animais selvagens como não marcados, o que fica claro no exemplo do gado bagual.
Também procurei mostrar que a bagualhação é uma espécie de simplificação da lida a
seus mínimos fundamentos, e essa mesma linguagem é usada na caçada tradicional dos
porcos monteiros.
Mas este código minimalista do manejo tem ainda um possível desdobramento em
relação às onças, que apresento como uma segunda proposição. Ele está presente, por
exemplo, nos seguintes comentários:
É pouca gente que aceita. Aqui do lado, na fazenda vizinha, com projeto e tudo,
o cara falou que se comer a vaca dele ele mata, não quer saber se a onça tem
colar
, se não tem. (...)
13
“Almost the whole extensive colour vocabulary of the Dinka is one of cattle-colours”. G. Lienhardt,
Divinity and Experience: the Religion of the Dinka. Oxford: Clarendon Press, 1961
114
O pacto entre os fazendeiros locais é não atirar nas onças de colar
. (...)
Dizem que teve onça de colar
que foi morta numa fazenda vizinha, porque o
capataz que tomava não concordou com o pagamento pelo gado dele. (...)
Tem um cara em Miranda que diz que ele atirou numa onça de colar
; não
sei se é verdade...
O que pretendo indicar com os exemplos é que as práticas de pesquisa científica na
região, com a utilização da telemetria, introduziram sistemas de rastreamento e controle
reconhecidos como tais e incorporados pelos vaqueiros em sua própria lida e na relação
com outros atores regionais. Nas declarações acima, provenientes de gravações feitas
durante o trabalho de campo, o colar parece adquirir um sentido local a partir do manejo
do gado: ele é o elemento visual que marca as onças do projeto. A onça de colar, nesse
sentido, é percebida como um animal ‘que tem dono’; ela é identificada visualmente
como pertencente a alguém. O código binário da lida, com sua distinção básica entre
marcado e não marcado, é estendido, neste sentido, às onças.
115
ANEXO C – Imagens Capítulo 2
Os campeiros da São Bento capturam, vacinam, tatuam, e colocam os brincos com a
numeração nos bezerros. No alto, o capatas Seu Ormir. Abaixo, ao centro, o encarregado
Paulo, responsável pelas notas.
Fazenda
São Bento, outubro de 2008
Acima, a fabricação artesanal do laço, trançad
couro curtido. Abaixo, competição no Clube do Laço, em Miranda.
São Bento, outubro de 2008
Acima, a fabricação artesanal do laço, trançad
o
com quatro tiras previamente cortadas do
couro curtido. Abaixo, competição no Clube do Laço, em Miranda.
116
com quatro tiras previamente cortadas do
117
Fazenda São Bento, outubro de 2008
A linguagem da fazenda. Marcações e inscrições no gado e no cavalo.
118
Abril de 2008
Etapas da carneação de duas matulas para o consumo interno da fazenda.
119
Fazenda São Bento, outubro de 2008
Acima; John Erbert, filho de um dos Campeiros; no centro, Jiló, Paulo, Ramon e
John Erbert no açougue; abaixo, o pessoal do retiro na São Bento (o autor é o segundo
da esquerda para direita).
120
Capítulo 3 –Tradição de caça
Introdução
A fotografia da onça com o bezerro predado aos seus pés pode adquirir diversos
significados, de acordo com quem olha para ela. A proposta deste capítulo é tomá-la
como a cena de um crime, como índice de uma tradição regional onde o predador é
encarado como um animal daninho, que deve ser eliminado.
A imagem pode produzir uma série de questões necessárias para mapear o seu
processo de produção, tais como as perguntas por quem colocou a coleira na onça, como
e para que. Essas questões, assim como a coleira de rádio em si, ela mesma um
dispositivo da pesquisa científica que estuda as onças, serão temas do capítulo 5. O
modo como a onça foi capturada remete diretamente a outros atores ‘invisíveis’ na
captura: os cães de caça. Antes de prosseguir são necessárias algumas considerações em
relação ao papel deles neste capítulo. São os cães que conduzem os humanos tanto
caçadores quanto biólogos – até as onças.
O tema da caça, no que diz respeito às práticas atuais, é difícil de ser abordado, na
medida em que as espécies nativas da fauna silvestre são protegidas por lei, e a prática é
proibida ou restrita na maior parte das fazendas da área de estudo. Isso pode influenciar
diretamente uma pesquisa envolvendo a utilização de questionários, por exemplo, como
será tematizadono capítulo 5.
A legislação caça é regulamentada no Brasil desde 1967, quando foi
declarada proibida para qualquer espécie da fauna silvestre nativa
(Lourival 1997; Silveira et al. 2008). A Lei vigente foi modificada pela
última vez em 1998, estabelecendo “detenção de 6 meses a um ano e multa”
para crimes contra a fauna. A pena é dirigida a quem “[m]atar, perseguir,
caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota
migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade
competente” (Art. 29).
O Artigo 37 da mesma Lei, no entanto, afirma:
“Não é crime o abate de animal, quando realizado (...) em estado de
necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; para proteger
121
lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de
animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade
competente; por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo
órgão competente”. (Lei Nº 9605-12/03/1998).
Reinaldo Lourival, em estudo sobre a sustentabilidade do modelo de caça tradicional
no Pantanal da Nhecolândia (publicado um ano antes das mudanças na legislação
referida acima), afirma:
“A legislação referente ao tema não encontra ressonância nas realidades
regionais (...) Buscamos demonstrar que, no caso estudado, a atividade de
caça tradicional não deve ser proibida, mas sim compreendida, de modo a
gerar recomendações para a região pantaneira. Esta análise poderá
subsidiar uma revisão da legislação, conceitos e normas, de modo a
adequar as necessidades de conservação às realidades sócio-econômicas
locais”. (Lourival 1997: 123-124)
O autor estuda comparativamente as quantidades de animais domésticos e de
animais silvestres consumidos em fazendas da região, assim como o cálculo de
densidade das espécies desses últimos, e aponta o porco-monteiro como o animal de
preferência na caça de subsistência local:
“No processo de caça de subsistência, o habitante local é dependente dos
porcos tanto como fonte de gordura para a culinária como forma de variar
a dieta, que se baseia no consumo de carne bovina fresca ou salgada”.
(1997:157)
A partir da característica seletiva da caça, o autor considera que o modelo tradicional
da caça na região é ecologicamente sustentável. Ele afirma:
“A popularidade do porco-monteiro como espécie prioritária na caça
tradicional tem um componente extremamente positivo no que tange à
conservação do restante da fauna cinegética da Nhecolândia. É seguro
afirmar que se esta espécie não tivesse se estabelecido na região,
certamente ocorreria uma pressão de caça adicional sobre todas as outras
espécies com potencial cinegético”. (: 157)
Porém faz, o autor a seguinte ressalva:
122
“Com relação às espécies daninhas, as análises devem ser interpretadas
com cuidado. As onças-pintadas foram praticamente eliminadas da
região. As pardas, por sua vez, sofrem perseguição (...) freqüente no
Pantanal”. (: 162)
Analisando a situação atual, a efetividade da legislação e as propostas existentes
para o manejo da predação no país especificamente para o caso da onça-pintada, Siveira
e outros (2008) abordam o aspecto político da conservação:
"Licenças para eliminar animais daninhos só podem ser dada por uma
autoridade competente não especificada. (...) Não nenhuma autorização
oficial ou estatísticas do governo sobre o manejo de predadores no país".
14
(: 30)
O capítulo é dividido em três partes. A primeiraparte de duas entrevistas feitas com
fazendeiros e do registro da minha visita ao Seu Inácio, um caçador de onças que havia
se mudado recentemente área de estudo de campo na região do Abobral. A segunda
parte remete a uma historiografia da caçada de onça no pantanal e se baseia em quatro
fontes literárias: Tony Almeida (1976), Sasha Siemel (1953), Pereira da Cunha (1922) e
Theodore Roosevelt (1914). O tema principal a ser abordado neste capítulo é a caçada
tradicional. A conclusão exercita uma aproximação entre o material coletado no campo
e os registros literários de caçadas abordados ao longo do capítulo.
3.1. Onças e fazendeiros
Ao longo da pesquisa de campo, tanto na região do Abobral quanto na região do
Miranda, fiz algumas visitas a propriedades localizadas no entorno das duas fazendas
que serviram de base para o estudo, ambas sedes de projetos de conservação de onças-
pintadas. A prática tradicional de eliminação dos felinos com a utilização de cães
onceiros foi mencionada em entrevistas feitas em quatro fazendas visitadas durante o
período do estudo, de um total de dez
15
. Um exemplo é a entrevista de um proprietário
rural transcrita a seguir:
14
Tradução Minha: Permits to eliminate such pests can only be given by a not specified “competent
authority”. (…) There is no official authorization or government statistics of predator management in the
contry.
15
Isso não é de um resultado significativo em termos estatísticos para as regiões de estudo, na medida
123
F: E qual você diria que é a importância da onça aqui pro pantaneiro? Tem alguma
importância cultural?
Para falar como pecuarista, se ela não existisse pra mim era muito melhor.
que a gente sabe que ela faz parte de uma cadeia alimentar, que ela
preda os outros animais e por isso ela está fazendo o controle. Ela por si
fazendo o controle da população desses outros animais. Mas não tem nada
que mata ela, certo? Só o homem que mata ela.
F: E o que é que a onça mais come aqui na região? Você acha que é mais o gado
mesmo ou mais outros bichos? Ou depende da onça?
Depende. Que nem agora está na minha fazenda: a gente anda no campo,
muita batida de onça, que ela não está comendo o gado. Não está
mexendo; ou se está, é mito pouco, porque a gente não chega nem a
perceber. Então, essa onça não me atrapalha, eu não vou atrás dela, e não
me incomodo com ela. Se ela ficar no meu campo o resto da vida sem me
atrapalhar dessa forma. Pode até comer um pouquinho, não tem problema
nenhum. Agora, existem umas que são daninhas mesmo. Dizem isso é
palavra dos antigos que quando a onça vicia em comer bezerro, você tem
que eliminar ela porque se não você vai afundar.
F: E vocês fazem um controle?
quando ela atrapalha. Quando num determinado local está tendo direto
carniça, você está vendo que ela está atacando, você procura ir atrás
dela.
F: Em relação ao risco para o homem, você acha que a onça é uma ameaça?
Eu acho. Inclusive, um tempo atrás eu tinha uma perto da fazenda que
andou dando carreira em peão meu. Tem umas que se tornam perigosas. E
a gente houve relatos todo dia por de onça pegando gente, então a gente
fica com medo. Nesse ano foram vários que a gente viu no jornal. Não é
um bicho muito amistoso não.
F: E em relação à caçada de onça, na sua opinião, a legislação deveria manter a
proibição ou deveria permitir em alguns casos?
em que trabalhei em áreas de influência de projetos conservacionistas e áreas turísticas.
124
Eu acho o seguinte: Do jeito que é a legislação, proíbe mas não proíbe,
porque não há uma fiscalização. Você pega o meu exemplo. A minha
família está na região cinqüenta anos. A gente faz o controle
cinqüenta anos. E cinqüenta anos está se falando que o bicho vai
acabar. que no nosso caso ela tem aumentado. Então, quer dizer, o
que a gente está fazendo? Como ela não tem nenhum predador natural aí, a
gente acaba fazendo um controle, eliminando as que estão atrapalhando.
Então, a gente está fazendo um papel também fundamental pro negócio
continuar sendo viável.
Porque a gente está aqui no Pantanal. Nós preservamos o Pantanal. Se
você pegar a minha fazenda, muito tempo ela é do mesmo jeito; quer
dizer, tem animais, tem o gado. E eu preciso tirar dinheiro dela. Eu vivo
daí, certo? Então, a única saída que eu tenho é eliminando os indivíduos
que tão me dando prejuízo econômico. Eu estou te falando isso: está
trilhado de onça no meu campo. que elas não estão me atrapalhando.
Então, deixa elas viverem lá! Eu não estou me incomodando com elas. Não
está tendo problema nenhum.
16
A caçada de onça é definida em termos de um controle necessário para a
manutenção do negócio. Em contraste, apresento a seguir um caso em que a atividade
do ecoturismo redefine o papel da onça dentro de uma propriedade pantaneira. No final
do meu trabalho de campo, em dezembro de 2008, visitei a Fazenda Xaraés, uma
propriedade vizinha da São Bentoque trabalhava com ecoturismo, e era a principal
parceira do Projeto Onça Pantaneira na região do Pantanal do Abobral. Entrevistei na
ocasião o dono da fazenda, João Celestino Ramos, nascido em 1972 no Alentejo, em
Portugal. Ele estava no Pantanal desde 2002, quando adquiriu a Fazenda Nossa Senhora
do Carmo, onde residia, e se definiu como um pecuarista que se tornou hoteleiro.
O fazendeiro relatou que começou a trabalhar com turismo em 2004, quando
comprou a Xaraés. Afirma que é um turismo caro, feito sem nenhum incentivo do
governo, e que "tem pago as contas", mas considera um investimento a longo prazo
(87% dos visitantes da pousada são estrangeiros, na maioria europeus). O proprietário
também reiterou que o projeto turísticoera interessante para a população pantaneira,
como alternativa de emprego, que a mão-de-obra era toda local.Para ilustrar esse
16
Neste caso, por motivos evidentes, preservo a identidade do entrevistado, assim como a localização da
fazenda.
125
ponto, mostrou que aXaraés, com uma área de 380 hectares, emprega 14 funcionários,
entre guias, cozinheiros, copeiros e outros funcionários, enquanto aNossa Senhora do
Carmo, uma fazenda de gado de 4 mil hectares, e emprega apenas 4 funcionários fixos:
o capataz, dois peões e uma cozinheira.
A quantidade de cabeças na fazenda de gado girava em torno de duas mil, e a
fazenda trabalha com cria, recria e engorde, utilizando somente o capim nativo. Em
relação às perdas anuais de gado, a média total era de 5% do rebanho, sendo 1,5% para
a onça (30 cabeças) e o resto causado por outras causas, como picadas de cobra,
problemas com cercas e doenças.
João Ramos comentou que a chegada do projeto de pesquisa na São Bento, de início,
não foi muito bem recebida pelos outros vizinhos e pelos vaqueiros da região, mas que a
postura dos biólogos, baseada no diálogo, aos poucos estava mudando esta situação.
Apontou, nesse sentido, a atitude de ecologistas radicais, que querem "ensinar" os
pantaneiros e dizê-los como agir, como fonte de uma série de conflitos regionais. “O
Pantanal é um lugar ativo economicamente” disseo proprietário. “Muita gente não
sabe disso. Existem os ecologistas radicais que querem tirar as pessoas da área e
deixar só a vida selvagem”.
Afirmou ainda que a chegada do projeto havia inibido a atividade de caça na região,
apesar de ser algo que ainda acontecia em muitas fazendas. Em relação à caçada de
onça, considerou que existe uma tolerância entre os fazendeiros tradicionais, que, de
acordo com ele, eliminam as onças quando apenas quando identificam um animal que
está causando prejuízos. Por outro lado, observou que eram comuns também na região
caçadas comerciais.Sobre esse tipo de prática, afirmou que clientes, caçadores, cães e
armas eram trazidos em aviões particulares, e relatou casos em que os primeiros
chegavam a pagar 25 mil dólares para abater uma onça.
Em fazendas que estão em dificuldades financeiras, observou que isso muitas vezes
se torna uma alternativa econômica para os proprietários. Neste caso, no entanto,
ressaltou que são contratados caçadores profissionais, que diferenciou dos caçadores
tradicionais, vaqueiros especializados na criação de cães. Estes últimos, de acordo o
fazendeiro, fazem parte de uma tradição que tende a preservar o meio ambiente, e que
mantém um equilíbrio entre os vaqueiros e onças.
126
3.2. Seu Inácio
Ouvi falar de Seu Inácio
17
pela primeira vezlogo que cheguei naFazenda São Bento.
Ele trabalhava como capataz de uma fazenda vizinha, e era procurado pelos fazendeiros
da região para eliminar as onças que estivessem atacando o gado. No entanto, ninguém
na fazenda sabia como encontrar o caçador, e a única informação que consegui foi o
nome do patrão dele, dono de uma fazenda vizinha, um grande fazendeiro de Corumbá.
No segundo período da pesquisa, em outubro de 2008, recebi a notícia de um dos
funcionários da fazenda: “Os ventos estão soprando a seu favor: Seu Inácio está aí,
acompanhando uma negociação de terras”. Encontrei-o na hora do almoço, no retiro. O
caçador era um velho pantaneiro muito simpático, e ao final da conversapedi para fazer
uma entrevista rápida com ele usando um gravador portátil (receando não ter uma nova
chance), que transcrevo abaixo:
F: E desde novo o senhor mora aqui na região?
Aqui, eu conheço tudinho. Eu nasci e criei aqui nessa zona, no Abobral.
F: E como foi que o senhor aprendeu a mexer com onça?
Com meu pai e o meu ada parte do meu pai. Meu avô pegava onça na
zagaia. Nesse tempo não existia essas armas que tem agora. Era zagaia,
chumbeira que carregava, e vinte e dois de um tiro. Eu ajudava meu avô.
Ele mandava fazer picada pra ir na onça eeu fazia, com facão. na
hora que a onça vinha nele ele punha a zagaia nela, matava.
F: Mas o senhor chegou a ver ele matando na zagaia?Como é que é? O cara fica
esperando?
É.Ela vem. Quando ela vem, que ela levanta, você põe a zagaia. Quando
ela pega a zagaia, o senhor ajuda a empurrar. ela cai no chão, mas tem
que pular também, pra segurar ela no chão. Porque ela quer pegar a zagaia
com o de trás. Se ela pegar, ela manda o senhor com tudo no chão.
Bicho é danado.
17
Neste caso, optei por utilizar um nome fictício para preservar a identidade do caçador, assim como
daqueles diretamente ligados a ele.
127
Estavam presentes na gravação da entrevista Seu Ormir, capataz da São Bento, e
outros dois homens que acompanhavam Seu Inácio um senhor que pilotava o avião,
que também tinha experiência com caçadas, e o jovem administrador de uma fazenda
vizinha, que negociava terras com o proprietário da São Bento. No trecho a seguir todos
eles participam da conversa:
F: E tem gente hoje em dia que pega na zagaia ainda? O senhor já chegou a pegar?
Seu Inácio: Se querem que eu pego, eu tenho coragem de pegar ele. Porque
eu lacei uma onça, a cavalo, lacei com o laço. Fui correndo no cavalo,
cruzei, e lacei. Peguei no pescoço dela. Ela pegou o laço e queria por na
boca pra cortar, mas eu puxei. Ela saiu arrastando o negócio. chegaram
mais companheiros e mataram ela, mas ela cortou o laço de uma vez. Lacei
ela no pescoço...
Seu Ormir: Se desse pra rodar um pau, uma forquilha... Uma rapaz aqui na
Bodoquena, o Benedito, laçou na mão a onça. E ela zangando, brigando,
brigando, brigando, o outro companheiro nosso apeou, foi lá, deu um
tiro de pertinho, de dois metros nela. Eu não ia não, eu não tinha essa
coragem. E se tora esse laço? E o cara que atirou trabalhou comigo.
Chamava Ataíde, Ataidão. Eu falei: mas e aí, Seu Ataíde, o senhor não ficou
com medo? Ele falou que não, que na hora ele não pensou. Ele não pensou,
porque se o laço tora...
Piloto do avião: Também laçou uma aquele peão que trabalhou aqui, o
Nico. Montando numa égua. Acharam três comendo um boi, bem aí do lado,
perto da São Bento. E tinha água, um pouquinho de água já. Uma entrou no
Pirizeiro, outra foi embora, e outra o Nico laçou, laçou meia espada
18
. Mas
tava sem revólver e enfiou a faca. Apeou do cavalo. Ela não tem força, eu
acho, pra arrebentar o laço, e nem peso, masse ela colocar na boca e
morder, aí ela pode cortar.
Eu estava surpreso com a boa vontade de todos em falar sobre o tema da caçada de
onça (muitas vezes um tabu sobre o qual ninguém gosta de comentar, por causa da
proibição), e principalmente com a abertura de Seu Inácio, que não demonstrava
nenhum pudor ao falar das onças abatidas recentemente
19
. Peguei na ocasião o telefone
18
Termo usado em concursos e vaquejadas para designar um tipo de laçada.
19
Em três encontros anteriores com caçadores, nas cidades de Miranda-MS e Poconé- MT, eu havia
128
dele para procurá-lo mais tarde, e, depois de deixar a São Bento, combinei diretamente
com ele uma visita à fazenda para onde havia se mudado e administrava como capataz.
Embarquei no dia 11 de novembro para a propriedade, com o auxílio do
administrador do grupo empresarial responsável por ela, sediado em Corumbá. Peguei
carona no caminhão da firma, na cidade, até uma pousada na beira do Rio Paraguai que
serviria de ponto de partida para a viagem de barco até a fazenda. Conversando com
funcionário da firma que dirigia o caminhão, fiquei sabendo que o Grupo tem mais de
vinte fazendas de gado na região, frigorífico próprio e açougues na cidade, além de
exportar parte da produção que vai para Campo Grande. Na pousada encontrei Seu
Inácio acompanhado do neto, Jéferson, e seguimos para a fazenda em uma pequena
lancha dirigida por este último, que não disse uma palavra até chegarmos à fazenda.
Eles tinham vindo buscar um motor, levado pelo caminhão no qual peguei carona.
A viagem de barco durou mais ou menos uma hora e meia, subindo o rio. No
caminho fui conversando com Seu Inácio. Ele quis saber também sobre a minha vida no
Rio de Janeiro, e perguntou sobre a minha família, se tinha filhos e o que era que eu
estava estudando. Expliquei que era um estudo sobre a relação do pantaneiro com a
onça. Transcrevo abaixo minhas anotações (precárias) de um diálogo no barco:
Nós vamos sair pro campo, levar os cachorros pra dar uma volta. vamos
ver se sorte de achar uma parda, o senhor pode filmar, fotografar...
não pode tirar foto dela morta, depois de atirar. O senhor sabe atirar?
Eu ensino pro senhor.
F: Mas eu não quero atirar na onça, não, Seu Inácio. Queria mesmo ver uma, mas
por mim ela ficava viva.
Hoje em dia tem demais, o povo parou de matar. Se ninguém matar esse
bicho, vai acabar tudo aí, capivara, cervo... Onça come tudo. Aí, daqui a
pouco, ela vai começar a comer gente. Se a onça vier na esposa do senhor,
o senhor não atira nela? Ela às vezes mata, é feito um assassino, assim,
tem dente, unha, para matar. Aquela unha dela é venenosa. A gente acha o
animal machucado, cuida, bota remédio, mas morre assim mesmo.
Mas é um bicho bonito...
sido recebido com bastante desconfiança, sendo que a entrevista foi recusada em dois casos e no terceiro
o depoimento não pode ser gravado.
129
Passamos por baixo da ponte da via férrea, e vemos o porto aonde é embarcado o
minério pelo Rio Paraguai, em grandes barcos de carga. Seu Inácio mostra de longe os
campos da fazenda:
Ali tem mil e seiscentos bois. Naquele campo a onça comia muito, achava
quatro, cinco rêis morta. nesse campo, matei oito pintadas. Elatravessa
o rio e vem comer garrote no campo da fazenda.
A fazenda tinha quase 13 mil hectares e cerca de cinco mil cabeças. Trabalhava com
recria de garrotes. De acordo com o capataz, a perda por onça era de cem a duzentas
cabeças por ano, antes da chegada dele. Seu Inácio explicou que os outros fazendeiros
da região começaram a chamá-lo para ir atrás de onça nas fazendas vizinhas, mas que o
patrão não permitia.
Desembarcamos então na sede da fazenda, à beira de um pequeno braço do
Paraguai, na região conhecida comoPantanal do Nabileque. A sede da fazenda era bem
antiga, de madeira, muito espaçosa, porém em mal estado de conservação, compinturas
de flores e paisagens nas paredes. "Diz que foi uma pousada", afirmou Seu Inácio, e
também contou que P.C. Farias
20
tinha ficado no local quando estava foragido da
polícia, de acordo com relatos de antigos moradores do local. A propriedade havia sido
recentemente adquirida pelo patrão de Seu Inácio em um leilão judicial.
Seu Inácio explicou que saiu da região do Abobral para vir para a nova fazenda,
primeiro para ajudar com as onças, mas acabou ficando como capataz. Sua filha e a
neta tinham vindo depois com ele para a fazenda. A primeira tomava conta da casa e
cozinhar para os campeiros, trazendo sua filha de três anos. Mais dois homens viviam
na sede: o rapaz que veio conosco no barco, também neto de Seu Inácio, e mais um
peão campeiro.Em outra pequena casa próxima vivia um terceiro peão com sua família
um casal e quatro crianças. A energia elétrica era fornecida por um gerador movido a
diesel, que ficava ligado das seis da tarde às seis da manhã. Fui muito bem recebido por
todos, especialmente por Seu Inácio, sempre muito simpático e um ótimo anfitrião.
Conversamos a tarde toda no dia da minha chegada.
Alguns dias depois, saí para pescar com Jéferson, o neto de Seu Inácio. Ele também
tinha crescido na região do Abobral, e tinha trabalhado numa fazenda vizinha da São
Bento, a Nossa Senhora do Carmo (fazenda que eu conheceria mais tarde). Usamos uma
20
Conhecido personagem público dos anos 1990 no Brasil, tesoureiro do ex-presidente Fernando
Collor, envolvido em escândalos de corrupção.
130
varinha pequena com sebo de boi de isca para fisgar sardinhas, que serviriam como isca
para a pesca do pintado. As iscas para pegar o pacu, que é o outro peixe preferido dos
moradores ribeirinhos, eram frutas. No entanto, naquele dia pescamos apenas piranhas,
que foram devolvidas à água.
Depois do almoço, a sesta. Cada um procurava uma sombra com um pouco de brisa,
para escapar do calor intolerável. Conversando depois com Anísia, filha de Seu Inácio,
ela se mostrou preocupada com a ida da menina Lívia para a Escola. Ainda não sabia se
ia ou não para a cidade no próximo ano. Afirmou que queria que a filha estudasse para
ter outras oportunidades de trabalho, que não fossem apenas os serviços domésticos, e
que muitas mulheres agora trabalhavam como veterinárias ou técnicas, voltadas para
campos como a inseminação, por exemplo.
Como bom pantaneiro, Seu Inácio acordava todo dia às três horas da manhã. Fazia
fogo para a filha preparar o café da manhã e cuidava da casa até o dia amanhecer. No
dia 13 de novembro, acompanhei os vaqueiros quando iam procurar uma boiada no
fundo de uma das invernadas da fazenda. Seu Inácio identificou marcas de porco na
entrada de um capão de mata, e me explicou que na região não tinha porco-monteiro,
somente porco de casa alongado”. Ele entrou no capão com a intenção de surpreender
os animais, mas não os encontrou. Ao contrário dos peões mais jovens, no entanto, ele
não tomava tereré. Quando saíamos de manhã, e os jovens campeiros pegavam água
congelada (como é costume) para levar, explicou-me que mascava fumo, e não tinha
sede no campo. Só bebia água quando voltava para a fazenda.
Reproduzo a seguir algumas anotações de campo:
A menina Lívia mostra o olho inchado para o avô. Seu Inácio examina, faz o
sinal da cruz sobre o olho e murmura algumas palavras. Pronto diz. Pergunto
se ele benze picada de cobra. Ele mostra uma marca na mão direita: mordida de
boca de sapo. Conta que estava colhendo mandioca e a cobra grudou na mão.
Ficou imediatamente sem enxergar. O companheiro que estava junto matou a
cobra, e Seu Inácio rezou a picada. Logo voltou a enxergar, e não quis ir para a
cidade. De noite, a mão estava inchada. Ele apertava e saía o veneno. Numa
outra vez, teve que ir para a cidade, conta. Foi quando um cavalo caiu por cima
dele, atingindo a bacia. Passou quatro meses em Corumbá, indo ao hospital.
Por isso usa uma cinta ao redor da cintura. Seu Inácio mostra as marcas de uma
vaca que o arrastou pela perna e de uma mordida de jacaré que tomou na batata
131
da perna. Pergunto se tem alguma cicatriz deixada pela onça. Ele diz, com
orgulho: "Ela nunca me encostou uma unha".
Ao longo da semana, fiz uma série de entrevistas com Seu Inácio, algumas em
vídeo, dentro de casa, outras em áudio, durante pescarias. No primeiro desses registros,
pergunto sobre a história de vida dele, repetindo algumas das mesmas perguntas que
tinha feito antes, quando o conheci na São Bento:
F: E o senhor nasceu em que ano, Seu Inácio?
Eu nasci em 1942, na zona do Abobral.
F: Onde hoje é a Fazenda São Bento?
Não, eu nasci na Fazenda Santa Catarina, que chamava a nossa fazenda,
do meu avô. Bom, eu nasci no Porto da Manga, que eu fui pra fazenda
Santa Catarina.
F: E o senhor aprendeu a mexer com onça com o seu pai?
Com meu pai. Eu tinha idade de doze anos, enaquela época não era
proibido matar esse bicho. Vendiam a pele. Então, meu pai tinha cachorro,
né, mas não tinha muita onça, tinha pouca. nós íamos atrás pra matar,
pra tirar pele, pra vender.
F: E isso era na região do Abobral?
Na região do Abobral. Meu avô tinha fazenda. Naquele tempo, todos os
fazendeiros que tinham fazendinha aí, tinham cachorro que caçava. Vendia
pele de capivara, lontra, ariranha, jaguatirica, tirava a pele pra vender,
naquela época. Então, eu aprendi tudo essas coisas com meu pai, meu avô e
meus tios. Meu avô pegava onça na zagaia.
F: E o senhor chegou a acompanhar ele?
Ah, ajudei até matar na zagaia.
F: E tem alguém que ainda caça na zagaia?
Já faz muitos anos que não.
F: O senhor mesmo já tentou?
132
Eu já, peguei a parda. Mas ela subida. Cheguei em cima e fui e
furei, no sangrador dela, derrubei de cima. Mas a pintada, também já fui
nela com a zagaia. Queriam tirar foto, eu pegando ela na zagaia, mas ela
não levantou pra me pegar. Ela vinha e voltava, vinha e voltava, até que foi
embora. Pegaram ela, depois.
Ele me contou mais tarde que o avô tinha perdido tudo com as enchentes naquela
região (em trecho não gravado, sem citar o ano), e que depois disso o pai ficou
trabalhando para outros proprietários como capataz de fazenda. Em outra gravação,
indaguei-o a respeito de encontros dele com onças, e o caçador narrou uma série de
casos. Transcrevo dois deles. O primeiro relata a aproximação de uma onça enquanto
ele e um empreiteiro dormiam num acampamento:
Eu fui numa fazenda eu e um companheiro e não tinha casa, nem nada.
Jantamos e fomos armar o barraco, pra ficar. Nós trabalhamos o dia
inteiro. O fogo aceso... E era uma lona, dessa loninha preta. falei pra
ele: vamos terminar logo aqui, pra jogar a lona em cima, pra poder a gente
dormir de noite.
Ele falou: então vamos Seu Inácio. ficamo lá. quando foi de
tardezinha, pras cinco hora, tinha um corixo, e a onça chegou, começou
a bufar.Ehãuu... ele falou: Ô Seu Inácio, essa onça vai vir. Eu falei: ela
não vem, ela no corixo. Nós ficamos. E a onça braba por lá, bufando.
escureceu, fomos jantar a onça, bufando e ele falou pra mim: vou
fazer uma zagaia. Eu falei: mas o que? Ele falou: ah, tem um ferro aí, eu
vou fazer ponta nele, e amarrar num pau.
F: Vocês estavam sem arma, sem nada?
Eu com meu revólver 22. Falei: então faz; vamos acender bem o fogo;
botar lenha bastante no fogo, porque aí clareia e ela não vem.
escureceu, ela atravessou o corixo e veio. E a nossa vara tava pertinho
do mato. Ficou lá, bufando. E aí, não tem perigo?Ele falou. Não tem... Se
não mexer com ela, ela não vai atacar nós. E se ela vier pra cá, nós somos
dois e ela é uma. É você não correr dela. O perigo é correr. Você
correu dela, aí que ela pega! Gritou com ela, falou com ela, ela obedece.
133
Aí, armamos a rede e ficamos. Peguei meu revólver, pus na rede. Ficamos,
eestá o bicho brabo, lá... Deu onze horas da noite, nós cansados,
trabalhando, e ele pôs a zagaia dele atrás da rede. Eu fui e dormir, e ele
também. E devia ser de madrugada já, nós com sono, tinha ido cedo
trabalhar, e dormimos.Acordamosjá o sol vinha subindo.
Pois a onça veio ali no nosso barraco! Foi no fogo, arremexeu ali, andou
tudo por ali, e não entrou. Foi até pertinho da minha rede, assim, mas não
foi na minha rede. E ela voltou e travessou corixo. Nós pegamos a
batida dela.Ela travessou corixo e foi embora.
ele falou assim: Bem que o senhor falou que a onça não ataca se não
mexer com ela. Falei: se ela estiver com fome ou então a pessoa
roncando... aí ela vai lá pra onde aquela pessoa tá roncando.
E ela andou ao redor da nossa rede, da lona que nós pusemos assim, mas
aquilo não era arrodeado, não tinha proteção nenhuma nas beiradas. Era
tudo aberto. Pusemos por causa do sereno, pra não molhar nosso
mosqueteiro, essas coisas. ele virou pra mim e falou assim: se ela viesse
aqui, pegava um de nós dois, comia, e nós não ia nem vê. Falei: é isso aí.
Não falei com o senhor, se ela estivercom fome, ela vem em mecê. E
ele acreditou. não veio mais ela. Sumiu ela. Era passageira né?
andando. Mas a gente não facilita aí.
O segundo caso termina com algumas considerações sobre os cães:
Um dia eu tava caçando com meu pai – meu pai tinha um cachorro,
chamava até Campeiro... Vamos caçar moleque! Caçar onça e capivara ele
é bom. eu saí à tarde com meu pai, deixamos o cachorrinho amarrado,
na beira do rio Abobral. Deixamos o cachorro amarrado e fomos caçar, de
tardinha. Aí matamos três capivaras e viemos. Meu pai limpou os couro das
capivaras, e tem aquela manta, que fala, que tira do couro a gordura. E
bem pra fora assim, do nosso acampamento, era uma lona. meu pai pôs
aquela carne nas duas lonas, e falou: Vamos deixar aí pra salgar, pra levar
pros cachorro lá. papai armou a rede, assim, o cachorro ali do lado e a
carne ali também no resto dos postes.
Bom, eu como eu fumo meu pito, né, eu escutei meu pai, roncando:
rhhmm... rhuum... escutei um barulho: vufff... Um troço que caiu. Do
134
lado de fora. Demorou um pouco, outra vez: vufff... Eu chamei,falei: papai,
acho que algum bicho pegou a tralha da capivara que o senhor pôs fora.
Aonde, meu filho? Se tivesse pego aí o cachorro sentia, ele não deixa
chegar nada. Falei: mas eu escutei barulho. Bom, o vento tava do lado da
onde tava a carne, e o cachorro tava deitado aonde nós fizemos o fogo pra
fazer comida. Ali deitado. Meio frio que tava. papai levanta na
madrugada, pra tomar o mate dele, e quando acendemos o fogo, o cachorro
saiu ali, barruou: auuauia... Fez o cachorro assim, e correu pra beira
do rio.
Pois a onça veio, pegou as duas mantas da capivara, comeu, e ainda tava lá
comendo o resto que ficou quando o cachorro bateu nela.Ela caiu no rio
Abobral e travessou pro lado de lá. O cachorro atravessou atrás dela e
ficou acuando, lá, até mais ou menos era umas quatro horas da manhã,
assim. Aí, eu tinha levantado. O barulho do cachorro, essas coisas...
fomo, pegamos a canoa, a arma, e fomos. Papai só tinha uma 22 de um tiro.
Era a arma dele. E um revólver, mas o revólver você não podia confiar
nele. Era um revólver velho, não saíam os seis tiros. Você tinha que armar,
saía um tiro era um 38. Eu fiquei com o revólver e nós fomo lá. Papai
alumiando com a lanterna, fomo indo, fomo indo, e o cachorro acuando.
Papai alumio assim, e você via o olhão dela, olhão grande...
E meu pai acertava bem o tiro. De noite, de dia, era a mesma coisa pra ele.
Mais ou menos uns trinta metros de nós. Papai com a 22 de um tiro, táa!
Acertou. Chegamos, o cachorro tava mordendo ela, fomos e
pegamos. Sangrou ela. Tiro pegou dentro do olho dela. Um cachorro
acuou ela. Um cachorro, ele sendo bom, você mata ela melhor de que com
bastante.Com três, quatro, cinco cachorros...
F: Ela sobe?
Não, ela acua e não fica braba, não zanga. Não fica zangada de vez.
Porque com bastante cachorro ela arranca demais nos bichos.
F: E tem onça que aprende? Ela aprende a fugir ou matar o cachorro?
135
Aprende. Ela aprende matar o cachorro, e fugir. Ela corre e volta e fica
esperando o cachorro. E na hora que o cachorro vem na batida dela assim,
ela pula e pega. Assim que é.
Num registro em vídeo, feito no dia 12 de novembro, Seu Inácio me leva até o canil,
no quintal da casa, para mostrar os cães. O canil era gradeado e dividido em três
compartimentos de mais ou menos 10 cada um. Um deles abrigava uma ninhada de
filhotes pequenos, e os outros dois, um casal de cães e um trio, respectivamente. Todos
eles tinham a aparência do americano, que é como é designada no pantanal a raça mais
comumente usada na caçada de onça. Outros cinco ou seis filhotes grandes andavam
livres pela área da sede.
Através da grade podemos ver os dois cães mais velhos. São muito magros e com
aparência frágil, e lembram os foxhounds ingleses. Seu Inácio diz:
O mestre é esse que tá deitado aí. Esse é o mestre. Aquele lá também, a mãe
dos filhotes.
F: E como é que é o nome dele?
Num sei. Num sei!
F: Ah, é o nome dele...
Aquela lá é Princesa. Num Sei e Princesa.
F: Os dois são americanos?
É beagle com americano, misturado. E aqui tem... [Som de abertura de
porta, Seu Inácio grita com os cães, entramos no último recinto]. Aquele
é Deique. Deique, Sinaia e Artilheiro.
F: E eles são bons também?
São novos, aqueles estão com dez meses. Não acuaram ainda, ainda vão
trabalhar.
F: E o senhor cria também às vezes pra vender o cachorro ou pra dar?
Não. O senhor tem que criar, ter uma cadela pra ter a produção deles, pra
o senhor não perder a cruza, a raça deles, que é boa. Então eu crio. , o
patrão diz queo que sobrar tem que dar. Ele leva pra outras fazendas, por
136
aí. Eu fico com um de cada barrigada que a cadela pare, eu fico com
um cachorrinho.
F: Então, desses filhotinho aí, o senhor vai ficar com um só...
Só com um, é um cachorrinho que tá ali, eu vou mostrar pro senhor.
Soldado! Soldado! Aqui ele [mostra o filhote no colo]. Esse aqui que é o
meu, que eu vou ficar com ele. Chama soldado, esse cachorrinho. Eu pus
nele nome de soldado. Esse vai ser mestre mesmo. Quando completar um
ano ele já tá caçando onça, matando onça, já tá ajudando a matar, ele.
Perguntou-me em seguida se eu tinha visto os cachorros acuando a gatinha que mora
em casava. Disse que eles já tinham acuado uma jaguatirica, mas que não mexeram com
ela. Depois, me levou para ver o couro de uma onça-parda, caçada no domingo anterior,
que estava guardado numa casinha de mantimentos. O couro, amarelo escuro, estava
embrulhado no sal. Seu Inácio mostrou como era macio, e explicou que depois ia ser
passado no cal e esticado. Ele explicou que não vendia o couro, mas que valeria um
bom dinheiro se fosse negociado com os navios estrangeiros (paraguaios, argentinos,
bolivianos) que circulavam pelo Rio Paraguai. Em seguida mostrou-me também o
crânio e a pata de uma onça-pintada, a última que tinha matado na fazenda [Anexo 4].
No trecho a seguir, falando como se estivesse na zona do Abobral, Seu Inácio
descreve as conseqüências da construção da Estrada Parque e sua percepção das
mudanças trazidas pelas atividades humanas na região, associando a proliferação das
onças a uma série de mudanças ambientais:
F: E naquela época tinha mais onça que hoje em dia, ou menos?
Tinha menos. Tinha pouca onça!
F: Hoje em dia tem mais?
Ah, hoje em dia te demais. Aqui na nossa região, zona do Abobral, aqui,
todo mundo criava gado bastante. Não tinha onça que comia gado, nada;
porque tinha muita caça: porco-monteiro, queixada, caititu, cervo, veado,
tudo, tudo quanto era bicho tinha, demais. Hoje em dia você num a
quantia que tinha.
F: Os outros bichos diminuíram?
137
E não enchia como enchia agora, de um certo tempo pra cá. Quando surgiu
a Estrada Parque, essa estrada represou muita água. Então, a água
chegava, arrombava as pontes, aquelas pontes, aquelas coisas.Foi
enchendo demais! Então com essa desmatação que teve daí pra cima, perto
de Campo Grande, esses lados aí, plantando pasto, fazendo essas coisas, foi
limpando onde ficava mais esses bichos: as onças, esses outros. Então, não
tinha onde a onça se esconder, e ela vinha descendo, beirando o rio. Vinha
descendo tudo pra cá. Veio descendo pro Pantanal. Esses bicho veio
descendo pro Pantanal.
Seu Inácio descreveu as enchentes causadas pela Estrada Parque como parte de um
mesmo processo de crise (incluindo desmatamento e plantação de pastagens exóticas)
que aumentou a quantidade de onças na região:
Então, foi aumentando. não podia mais matar ela.Ninguém matava, é
proibido, todos nós sabemos que é proibido matar ele, é um bicho que isso,
que aquilo. Então, ela foi aumentando. Ela foi aumentando e foi acabando
com os bichos, matando jacaré, cervo, veado, capivara, ema, tudo que ela
encontrar ela vai comer, porque elas estão com fome. E se achar uma
pessoa no jeito ela come mesmo, se tá com fome.
O senhor que hoje em dia até capivara difícil. Tem capivara, assim,
mas não como antigamente.Esses tempos atrás, que o senhor via cardume
dela assim. Então foi acabando...Aquele lobo, aquele lobão, guará, tudo
isso ela corre atrás. E se facilitar ela mata ele. Até isso acabou aqui na
zona do Abobral, não tem mais.
F: Mas o senhor acha que é importante preservar a onça, Seu Inácio? Ou seria
melhor que ela não existisse?
Eu, na minha opinião, é o seguinte: por exemplo, pra nós, aqui pro
Pantanal, ele acabando com os outros bichos. E se deixar aumentar vai
acabar e vai ficar ela. ela. E aí? vai perseguir gente. Vai começar
a pegar gente. Aí, aquele que tem aquelas criação, ela vai atacar muito,
vão matar ela.
Isso resultaria no pesadelo de uma natureza só de onças, uma visão do pior dos
mundos para o criador de gado. Minhas perguntas, a partir daí, são sobre temas
138
conservacionistas, como a ameaça de extinção, o animal problema e, especialmente, o
conflito. O papel de responsável pela manutenção do equilíbrio dos outros animais,
designado pelo vocabulário da ecologia pelo termo espécie chave, é atribuído por Seu
Inácio não às onça, mas ao caçador:
E vai acontecer isso aí: vai acabar os outros bichos. Mas agora, se
acabasse um pouco com ela, por exemplo, vamos supor: a onça comeu uma
vaca, duas, mata ela! Mata ela. Porque aí ela não vai matar mais. E se você
deixar ela vai continuar. E se é a mãe que tá com os filhotes, ela vai
ensinar. Às vezes é quatro que ela pare dois, três, quatro, ela vai ensinar. E
aquilo vai ficar ali naquele setor. Aí, quando os filhos já tão pra sair, eles
sozinho, pra caçar, ela abandona. Aí eles viram que a mãe pegou aquilo ali,
e vão. Eu já vi: os quatro brigando por causa dum veado. Os quatro
comendo, já gatinho grande que a mãe largou.
F: Mas então o senhor não queria que o bicho acabasse. É esse que pega o gado que
tem que controlar...
É isso que tem que fazer. A onça pegou! Uma rês, duas rês, tira foto e
apresenta. Vamos matar ela. Ela me dando prejuízo... E deixa o resto.A
que não está comendo, deixa. Aqui, o patrão manda matar se comer. Se
comer três, quatro, pode ir atrás.
F: Mas tem onça que fica só em cima do gado? Que acostuma?
Tem. Costuma comer gado e não come outra coisa. se não tiver gado
aí que, ela estando com muita fome, ela pega outros bichos pra comer.
F: Aí essa não tem jeito...
Essa vai atrás. O bicho é danado. Tinha uma onça aqui, ela vinha,
atravessava o rio Paraguai e vinha matar boi aqui. Comia o boi, o senhor
ia atrás, ela atravessava o rio de volta, ia embora. Passava um dia, no
outro dia a mesma coisa. E essa custou pegar. Bicho é danado.
F: E tem onça que não pega o gado?
Não, tem onça que não mexe. Você anda nesse campão aí, mundo de
campo, o senhor encontra caveira de caititu, caveira de queixada, jacaré,
cervo, ema...
139
F: Mas esse negócio, então, que o pessoal fala que a onça está ameaçada de
extinção... Aqui no Pantanal o senhor acha que está?
Não.
F: E o que o senhor acha desses projetos, como o da São Bento, de colocar colar
nas onças?
Da São Bento? Pois é, bom, tudo bem, vamos por. Vamos estudar aonça.
Mas que ela vai aumentar. Então, aquelas onças, que puseram o colar
nelas, não vão sair daquela região ali. Elas vão parindo, vão ficando ali,
comendo gado, comendo.Na hora que tiver acostumado vai ficar ali.
Ninguém vai mexer com ela mais. Então, elas vão reproduzindo. Então lá se
vai cuidar dela, ter uma reserva pra ela. Ela fica ali. Agora, quando acabar
as coisas pra ela se alimentar, aí elas vão sair à procura.
F: Porque se deixar por ela mesma acaba... ela come tudo?
Ah, acaba, come tudo. A onça-parda, v vê, ela bate num bando de carneiro,
o que ela pode matar ela mata.Você não ouviu falar nisso? Ela mata três
quatro, ou cinco, carneiros, e vai comer um. E se uma onça-pintada
bater num lote de gado, virar aqui, ela mata um; se no jeito, ela mata
outro. Pra comer um. E é assim que vai acontecer, com o tempo. Então,
essas onças que eles vão pondo colar, ali, não vão mexer mais com elas,
vão deixar ali, ela vai aumentando e vai querendo comer. Ela vai ficar ali,
moradeira daquele trecho. Então, a fêmea vai parir, vai ensinar eles pegar
também a criação...
Agora, pra quem tem bastante gado, não é nada. Deixa ela. Têm muitos
que até mata pra dar pra ele, pra criação; fazer aquele coisa pra criar ele.
Agora, um criador que tem pouca reses, umas mil cabeças, se ele não
cuidar... o imposto, quanto que ele num vai pagar? Medicamento pro
gado, essas coisas. Aí não dá pra pagar um peão, sal...
F: E qual é a que dá mais prejuízo?
É a pintada. E a parda também prejuízo quando tem gado de cria,
carneiro e bezerro. Vaca parida. Com cinco meses, seis meses, ela come
mesmo. pra arriba, do patrão aí, ela matava quatro bezerro por dia.
numa semana, mataram doze bezerros controlados..
140
F: E era a mesma onça?
A mesma onça. mandaram me chamar, me buscaram na fazenda. Eu fui
de avião, trouxe, matei as duas. O casal. Abrimos a barriga dele assim, o
bucho, couro e osso do bezerro. A miudeza do bezerro. parou, nunca
mais comeu. Agora, nesses tempos, apareceu outra e comeu. Mas que
pintada. Bezerro de um mês. Está lá, comendo. O bicho é danado. E é um
bicho bonito, né...
No último dia da minha estada na fazenda, saí de cavalo com Seu Inácio para uma
última volta pelo campo da fazenda. Ele quer me mostrar o estrago que a onça causa.
Perguntei sobre os tipos de onça. A pintada, explicou, tem duas qualidades: malha
miúda e malha grande. Esta última, também chamada de canguçu, é maior. A parda tem
a baia e a vermelha, e tem uma que tem o fio do lombo meio preto. Uma área de campo
tinha sido queimado para a renovação da pastagem, e o pantaneiro explicou que as
queimadas eram feitas em épocas certas, mas que tinham sido proibidas e isso acabava
gerando incêndios descontrolados no Pantanal.
Na volta, transcrevi alguns temas da conversa durante a cavalgada:
Seu Inácio diz que vai atrás de uma onça depois que acha as carniças.
Conversamos sobre capturas e caçadas para fotografar a onça. Ele acha que
essas últimas são muito perigosas, que não como tirar os cachorros da
acuação sem atirar, nem que seja "tiro adormecente". Dos filhos e netos,
nenhum quis apreender a caçar, mas ele não parece preocupado com isso. Ele
faz questão de dizer que não mata à toa; se uma onça passa na sua frente, nem
mexe com ela, porque não sabe se é aquela que está mexendo com o gado --
"Aí não adianta nada atirar ela...". A onça-parda que matou no domingo
estava numa fazenda vizinha, explica, aonde já tinha comido dez bezerros.
Meu guia mostra a árvore da "para-tudo", usada para tratar tosse, dor de
estômago, dor de barriga... Mostra também as palmeiras de tucum, cujos frutos
são usados como isca para a pesca do pacu. Também podem ser utilizados o
genipapo e a laranjinha. Outra planta serve como remédio para problemas de
pele. Pergunto sobre a onça, se tem algo que se aproveita dela. Ele diz que a
gordura trata bronquite. É retirada, colocada em tiras dentro de uma garrafa de
vidro, e aquecida no sol. O nervo que fica dentro das almofadas, nas patas da
141
onça, é usado para melhorar o faro dos cães. Pode ser torrado e dado para o
cachorro comer, ou então faz-se com que ele aspire a fumaça.
Depois de cavalgarmos por mais ou menos uma hora, Seu Inácio mostrou-me
três ossadas espalhadas num pequeno trecho de campo, acompanhando a vegetação
fechada na beira de um corixo. Ali é que tinha aparecido o macharrão do qual tinha me
mostrado a cabeça e a pata. Ele narrou como achou a carniça daqueles bois em dias
consecutivos. As cenas daqueles animais mortos eram os índices da presença da onça. O
bicho pode ser bonito, como repetia Seu Inácio, mas é quase invisível: o que o vaqueiro
encontra são apenas os vestígios dele: cenas de animais mortos, e rastros. Os cachorros
tiveram que voltar duas vezes naquela carniça até pegarem a batida da onça
responsável. Ela foi perseguida e acuada até ser abatida pelo caçador.
3.3. Caçadores naturalistas
What qualities did it take to make an animal “game”?
One answer is similarity to man, the ultimate quarry, a worthy opponent.
The ideal quarry is the “other”, the natural self.
21
Donna Haraway
No livro Nas Selvas do Brasil (1914), Theodore Roosevelt descreve em detalhes sua
primeira caçada de onça no Pantanal, desde os preparativos até o abate do animal:
Na tarde desse mesmo dia, um dos caçadores de jaguar (um simples
trabalhador do rancho, que entendia alguma coisa dessas caçadas), que
saíra à procura de rastros, voltou informando que havia descoberto sinais
frescos num certo lugar nos pantanais, a cerca de três léguas de distância.
Na manhã seguinte levantamo-nos às duas da madrugada, saindo para a
caçada às três. A caravana se compunha do Cel. Rondon, Kermit, eu e mais
dois caçadores; cada um de nós montava um cavalinho ágil e acostumado a
21
Que atributos foram necessários para que um animal se tornasse “caça”? Uma resposta é a semelhança
com o homem, a presa final, um oponente de valor. A presa ideal é o “outro”, o eu natural.
142
atravessar aquelas vastas extensões lamacentas. Acompanhava-nos ainda
um rapaz escuro, carregando dois surrões com a nossa “matula”. Vinha
montado em um novilho trotador, de chifres longos e que era manejado por
uma corda amarrada nas ventas e no focinho. (1976: 63)
Os detalhes compõem um retrato de época interessante: Rondon, T. Roosevelt e seu
filho, acompanhados de dois caçadores, cada um deles montado em um cavalinho ágil
(uma boa descrição do tipo pantaneiro). O detalhe do quinto personagem, que monta
um “novilho trotador”, descreve o costume tradicional de montar bovinos, característico
das antigas fazendas pantaneiras (Banducci 2007; Leite de Barros 1998). Sobre os cães,
o então ex-presidente americano comenta:
“A nossa matilha era, aliás, insignificante. Além dos nossos dois cães que
nunca tinham sido experimentados em caçadas de jaguar, havia os da
fazenda, de pouco valor, e mais dois, que eram de fato caçadores de felinos
e que nos tinham sido emprestados por um fazendeiro, morador a umas seis
a oito léguas de distância”.
Em seguida, o autor narra a perseguição da onça pelos cães:
“Pelo menos em cada borda de clareira, nos bosques, em terreno molhado,
percebíamos rastros frescos do tigre americano. Os dois cães de caça
deram logo o alarme. Foram desatrelados e galoparam seguindo a trilha,
acompanhados dos outros cães, e, em grande assuada. A matilha enveredou
firme pelo pantanal”. (Idem)
A descrição da caçada informa também sobre os hábitos do animal perseguido:
“Naturalmente, o jaguar não tinha o menor receio da água. Por certo
estava à caça de antas e capivaras, o que o obrigava a se meter por
banhados e por estreitos e tortuosos fossos ou canais, onde teria que nadar
cada vez que lhe fosse dado investir contra a presa”. (Ibidem)
O fluxo dos acontecimentos e das informações sobre a vida selvagem é interrompido
brevemente para a captura de um belo quadro, a exposição de uma experiência singular:
“Os cães enveredaram por uma clareira com algumas árvores altas e,
enquanto galopávamos através do pântano, avistamos o jaguar bem no alto,
entre galhos bifurcados de um tarumã. Era um belo quadro o daquele
143
grande e formidável gato -- a pele marcheteada -- rosnando a desafiar a
matilha, em baixo. De minha parte, não confiava nos cães, pois não eram
fortes, e, se o felino descesse para atacá-los, estariam liquidados”. (: 64)
O desfecho da narrativa é o abate preciso e limpo. As observações são imbuídas do
espírito do sporty way of hunting do narrador: Ele cita a arma utilizada e o tipo de
munição e em seguida faz observações casuais sobre a onça morta:
“Desse modo atirei imediatamente, de uns 60 m de distância, usando minha
‘Springfield’ pequena, com a qual já havia abatido muitas espécies de
caças africanas, desde o leão ao elefante e outros menores. As balas eram
pontiagudas, com pontas de aço puro. Com o tiro, o jaguar caiu como um
fardo pelos ramos abaixo e, embora vacilante nas patas, não pôde dar
senão poucos passos e deixou-se esvair. Quando cheguei, estava morto
debaixo das palmeiras, sendo devorado por três ou quatro cães”. (Idem)
Fala sobre a qualidade do exemplar caçado e sobre o evento da caçada, baseados em
sua experiência internacional como big game hunter:
“A caçada de jaguar é a mais interessante da América do Sul, equivalendo
à dos mais nobres animais da América do Norte, e inferior apenas à dos
maiores e mais ferozes da África e da Ásia. Essa que fizemos foi de um
exemplar adulto e fêmea. O animal tinha mais peso e mais volume do que
um cougar ou pantera norte-americana, dando a impressão, pelo seu
tamanho, de um tigre ou um leão, impressão que não se tem quando se
abatem os ágeis leopardos ou os pumas”. (Ibidem)
Por fim, tece alguns comentários sobre a carne da onça:
“A propósito, devo dizer que sua carne, apesar de não ter sido preparada
convenientemente para o jantar, demonstrou ser bem gostosa. Eu a provei
porque sempre me apeteceu a carne do cougar, e até lamentei não ter
comido também a carne do leão africano, que deve ser excelente. (: 65)
Roosevelt pode ser considerado o patriarca paradigmático para a linhagem literária
que será abordada nesta seção. O estadista esteve no Brasil em 1913-1914 e participou
com o Marechal Rondon da expedição ao território desconhecido do Rio da Dúvida.
Quando retornou dessa aventura brasileira, ele publicou o relato da viagem e de suas
caçadas.
144
A seguir analiso três outros livros escritos por caçadores, de épocas diferentes, que
narram caçadas de onça no Pantanal e, por meio desse conjunto, pode-se estabelecer, a
partir de Roosevelt, uma seqüência histórica. O mais antigo dos três é o relato Viagens e
caçadas em Mato Grosso (1922), de Pereira da Cunha, comandante do exército
brasileiro que acompanhou o então ex-presidente americano em suas caçadas de onça no
Pantanal, no ano de 1913. O segundo na seqüência cronológica é o livro Tigrero!, de
Sasha Siemel, publicado em 1953, no qual o caçador aventureiro lituano narra seu
aprendizado do manejo da zagaia indígena e suas caçadas solitárias de onças. O último
livro da série é Jaguar Hunting in the Mato-Grosso (1976), de Tony Almeida, com
dados sistemáticos de medidas, pesos e conteúdos estomacais dos animais abatidos em
anos de experiência do autor como guia de caçadas de onça para um público
internacional. Este último é citado como precursor dos estudos científicos sobre a onça-
pintada no Pantanal (Crawshaw e Quigley 1984).
Procurei fazer duas leituras diferentes dessas fontes bibliográficas: a primeira, nesta
seção, é orientada pela formulação, em cada uma das narrativas, dos papéis do caçador e
da onça e pela figuração do zagaieiro, o caçador nativo. Neste caso, minha intenção é o
modo como o personagem aparecenas narrativas em questão. Essa primeira abordagem
das fontes bibliográficas estabelece de saída uma ruptura entre as caçadas tradicionais e
o ethos atual da preservação das onças.
A segunda leitura procura caracterizar um horizonte comum de práticas, códigos e
categorias na caçada, referentes principalmente aos cães onceiros. A linha de
continuidade entre a captura de onças para pesquisa e a tradição regional de caça é
descrita a partir de um texto de George Schaller (2007[1980]), sobre o primeiro estudo
conservacionista abrangente a respeito da onça-pintada no Pantanal. Um dos
personagens do relato do pesquisador é um cão de caça que participa da captura das
onças para o estudo, e o mesmo cão aparece no livro de Tony Almeida, citado acima. A
trajetória deste cão em particular descreve uma série de conexões e rupturas entre a
conservação e a caça, como procurarei demonstrar, e ele é também um exemplo para as
definições do cão onceiro, ou mestre, a principal categoria utilizada pelas fontes orais de
caçadores apresentadas neste capítulo.
Pereira da Cunha
145
O livro do Comandante Pereira da Cunha, Viagens e caçadas em Mato Grosso foi
publicado originalmente pela Editora Francisco Alves, no Rio de Janeiro, em 1922.
Nele, o caçador relata suas caçadas pela região do Pantanal dos anos de 1913 até 1919,
ano em que é inaugurada a via férrea entre Campo Grande em Corumbá. O tema
principal é a caçada do jaguar, apresentada com tintas naturalistas pelo narrador:
“As caçadas de feras em todos os continentes têm sido abundantemente
descritas: os leões, como os tigres, búfalos, elefantes, rinocerontes e ursos
têm tido quem lhes exalte o valor, descreva as manhas e astúcias, mostre o
perigo em enfrentá-los, narre, enfim, as caçadas que lhes tem movido; o
nosso nobre jaguar, forte como poucos e ágil como nenhum; ignorado nas
brenhas da nossa ignorada terra, ainda não encontrou quem dissesse o
bastante das maravilhosas emoções da caçada, a mais perigosa entre todas
(quando o animal é acuado no bamburro), e a que requer os auxiliares mais
interessantes, mais originais e mais corajosos que se possa desejar: os
zagaieiros.” (1949: 9)
O zagaieiro é descrito como um “auxiliar interessante”, um coadjuvante para o
embate entre o caçador branco e o “nobre jaguar”. O livro registra uma série de
costumes das fazendas da época, fornecendo dados interessantes para uma historiografia
das caçadas de onça na região:
“Em geral, tira-se o couro da onça no local em que ela é morta, trazendo
com ele a cabeça e as patas (...) A primeira operação para o preparo do
couro consiste em dissecar as patas e a cabeça, (...) sendo nesta conservado
o crânio completo. Trata-se, depois, de fazer a costura dos cortes
produzidos pelas zagaias. (...) Em todas as fazendas do pantanal de Mato
Grosso existe, pelo menos, um “quadro” para estaquear couro de onça; e
esse quadro consiste em um grande caixilho retangular, medindo, mais ou
menos, dois e maio por dois metros, e feito, geralmente, com quatro
“carandás” bem aprumados”. (1949[1922]: 101)
Em seguida descreve em detalhes as etapas de preparação do couro:
“O couro é esticado através de cabos que passam por furos feitos na sua
orla. Operação mais difícil e delicada grosar”. A operação de grosar
consiste na retirada completa da gordura e exige uma grande habilidade: é
146
à faca que ela é feita e, como se tratasse de fazer a barba, o grosador vai
com uma das mãos afastando a gordura em com a outra passando a faca
bem junto ao couro. (...) Depois do couro grosado, novamente molhado e
esticado definitivamente, procede-se à lavagem do pelo, com água e sabão,
e deixa-se que o sol se incumba de secá-lo bastante, tendo o cuidado de ter
o quadro o mais verticalmente possível e com a cabeça da onça para
cima”. (: 101-202)
O subtítulo do livro é Três semanas em companhia de TH. Roosevelt”, e este é um
dos motes da narrativa, pontuada pelo culto à figura do personagem célebre: a chegada
dele aos rincões do Mato Grosso, as recepções pelos representantes locais, a disposição
jovial do caçador, as comidas que provou, suas “palestras sócio-políticas”, tudo isso é
descrito com reverência pelo autor. A proximidade entre o narrador e o personagem
evoca autoridade e importância aos fatos descritos, como no trecho em que ele narra seu
primeiro encontro com o ex-presidente norte americano, a quem foi apresentado pelo
Coronel Rondon:
“Não tardou a estabelecer-se grande intimidade entre mim e o Sr.
Roosevelt, o qual, levando-me ao seu camarote, desencapou a sua
‘Springfield’, mostrou-me o acondicionamento das munições, e discutiu as
vantagens desses sobre aqueles projeteis. Depois, conversamos sobre as
nossas caçadas e separamo-nos muito camaradas”. (: 26-27)
Ou então quando se refere a um trecho do livro publicado pelo ilustre companheiro
de viagem:
“Esse fato, com menos detalhe, é citado no livro de Roosevelt, ‘Through the
Brasilian Wilderness’, excursões nas quais tomei parte durante cerca de um
mês”. (: 33)
O papel de Roosevelt como uma espécie de patrono da vida selvagem norte
americana é dissecado por Donna Haraway em Teddy Bear Patriarchy (1989). No
artigo, ela descreve a entrada do Natural History Museum, de Nova York:
“Para entrar no Theodore Roosevelt Memorial, o visitante deve passar por
uma estátua eqüestre de Teddy, de autoria de James Earle Fraser, onde ele
está aparece montado majestosamente como um pai e protetor entre dois
147
homens ‘primitivos’, um índio americano e um africano, ambos vestidos
como ‘selvagens’”. (Idem: 33)
22
A imagem paternalista do líder da nação, além da mensagem etnocêntrica, é
extensiva também à vida selvagem:
“Há inscrições nas paredes das palavras de Roosevelt sob os títulos
Natureza, Juventude, Maturidade, o Estado. (…) A natureza é um mistério e
um recurso, uma união crítica na história da civilização. (…) As paredes do
átrio estão cheias de murais mostrando a vida de Roosevelt, a perfeita
ilustração de suas palavras”. (1989:28)
23
Pereira da Cunha é um admirador declarado de Roosevelt. Em suas conversas com o
ex-presidente americano, a postura explicitamente etnocêntrica, o racismo e o ideal da
eugenia são evocados com naturalidade e de forma casual. O texto de Haraway (1989)
mostra como essas referências se entrelaçam no ideal norte americano da história
natural da época, uma forma de naturalismo constituída a partir do ponto de vista não
marcado de homem, branco e anglo-saxão. A relação entre o caçador branco e o nativo,
no caso de Pereira da Cunha, indica uma aproximação do narrador com esse mesmo
ponto de vista. A seguir ele apresenta o caçador nativo:
“Zagaieiro é o homem que, armado da “zagaia”, acompanha (geralmente
em número de dois) o atirador e o defende.”
E sua arma característica:
“Zagaia é uma lança cujo ferro, forte e afiado, regula ter perto de trinta
centímetros de comprimento sobre oito na maior largura, e cujo cabo, de
madeira de lei, bastante grosso, regula dar à lança um comprimento total
de cerca de dois metros”. (1949: 29)
Neste outro trecho, a descrição de uma perseguição da onça pelos caçadores é
interrompida pelo enquadramento de uma figura idealizada:
22
To enter the Theodore Roosevelt Memorial, the visitor must pass by a James Earle Fraser equestrian
statue of Teddy majestically mounted as a father and protector between two “primitive” men, an
American Indian and an African, both dressed as “savages”. (…)
23
The walls are inscribed with Roosevelt’s words under the headings Nature, Youth, Manhood, the State.
(…) Nature is a mystery and a resource, a critical union in the history of Civilization. (…) The walls of
the atrium are full of murals depicting Roosevelt’s life, the perfect illustration of his words. (1989: 28)
148
“Esse homem (...) afastou-se um pouco procurando a macega mais baixa, e,
em meio à grande planície, de pé, zagaia em punho, com sagacidade e um
instinto quase sobre-humanos, investigou, não sei se com o olhar, não sei
com que sentido, e voltou dizendo singelamente ‘cruzou ali’ e apontou
distante”. (: 91)
A figura heróica do “bugre” desta vez adquire ares românticos. Seu papel, no
entanto, é o de servir de apoio ao caçador branco, este sim o verdadeiro herói da
história. O narrador descreve uma série de caçadas com a participação dos zagaieiros.
Entre o caçador armado e a “fera”, eles são os primeiros a serem atacados:
“A fera não nos dava a frente, e o Nelson, sem perder tempo, procurando
atingir a coluna vertebral perto do crânio, visou um pouco atrás do maxilar
e um pouco acima, fazendo partir o tiro; o animal rolou por terra e a
cachorrada avançou; (...) o nosso grupo também tinha avançado, e o
macharrão, deparando-se com ele, salta sobre um dos zagaieiros”. (1949:
124)
O papel dos nativos é segurar a onça ferida durante a caçada para que o atirador
possa mirar novamente com precisão:
“Ao estampido, os zagaieiros partiram sobre a onça; e, felizmente, havia
mais de um; porque, o primeiro, tendo pegado a onça muito atrás, junto ao
quarto traseiro, o animal voltou-se, e o teria apanhado se os outros não
tivessem secundado. Alanceada e mantida por terra por três fortes
zagaieiros, dois dos quais renovavam seus golpes mudando as zagaias para
melhores pontos, a fera lutava com tanta bravura e força que a todos ia
arrastando”. (1949: 97)
A caçada é um espetáculo” testemunhado pelo narrador, que ele compartilha com
seus leitores. Em outro momento, o autor retira todas as impurezas da imagem, e
registra, crua, a cena ideal de seu relato:
“Mais dois passos para a frente e um espetáculo sublime oferecia-se aos
olhos dos caçadores. A denodada cachorrada, com os pelos eriçados, os
dentes à mostra, latindo com fúria e raiva, acuava um enorme macharrão
que, entre sentado e de pé, com as costas protegidas por um acuri, a boca
escancarada donde partiam urros de guerra, as presas ameaçadoras a
149
descoberto, os braços abertos e as fortes garras saltadas, fazia frente aos
valentes cães”. (: 124).
Mais uma vez, a descrição naturalista é interrompida por um quadro estático. A
imagem ideal da fera, purificada, é construída a partir de uma série de atributos
icônicos:
“Era um macharrão em plena pujança, extremamente forte e bravo, e,
repito, não pode haver espetáculo mais emocionante do que ver uma fera,
de tal corpulência, força e agilidade, a dois metros de nós, de pé, com os
braços abertos, as garras de fora, as enormes presas à mostra, a testa
franzida, o olhar em fogo, e a grande boca aberta, de onde parte um urro
formidável, toda a ameaçadora ferocidade do rei dos nossos sertões”.
(1949: 188)
A fera é um símbolo ao mesmo tempo de sublimação e de patriotismo. No caso, os
exemplos citados apontam também um exemplar ideal, formulado pelo autor, e também
um tipo de caçada ideal, a partir da qual o autor exalta novamente os valores nacionais:
“Realmente, só vendo é que se pode fazer idéia do que seja uma onça
acuada no sujo; então compreende-se...” (: 98)
Não é, portanto, qualquer onça que o caçador procura. Aquela exaltada por ele é um
tipo particular: o macharrão, a onça acuada no sujo. É neste exemplar ideal que se
fundamentam seus argumentos acerca da superioridade da caçada nacional:
“Se compararmos as caçadas africanas com as nossas concluiremos
forçosamente pela supremacia das nossas em beleza e emoção (...) claro
que me refiro à onça acuada no sujo
). (...)[A] proximidade a que fica o
animal, o seu aspecto feroz e sanhudo, tudo isso, por certo, ultrapassa, e de
muito, a sensação que se possa ter nas tão decantadas caçadas africanas e
asiáticas, descritas por tantos exploradores e caçadores de nomeada”. (:
98-99)
O autor publicou seu relato autobiográfico poucos anos depois da primeira edição do
livro de Roosevelt sobre sua aventura no Brasil. Ao encontrar na natureza o orgulho
patriótico e essa nobreza selvagem da onça, ele se mantém fiel a esta referência, através
principalmente da exaltação à caçada esportiva. Nós também temos big game hunting,
afirma Pereira da Cunha. Ele não menciona se esteve ou não na África, porém aponta a
150
superioridade das caçadas nacionais, lamentando que o ilustre visitante americano não
tenha podido apreciá-las da devida forma.
Sasha Siemel
O primeiro livro autobiográfico de Sasha Siemel, Tigrero!, foi publicado em 1953
pela editora Ace Books, de Nova York. Escrito em inglês, ele é apresentado pelo
presidente do The Adventurers Club of New York, que relata como o caçador foi
recebido com honrarias pelos associados em visitas anteriores. Na capa da edição de
bolso, o gênero é descrito como “true adventure stories” e a ilustração, com cores puras
remete ao faroeste e à cultura popular norte-americana. O caçador lituano ficou famoso
nos EUA com as narrativas de suas caçadas a partir de 1930, quando a revista Time
publicou um artigo sobre ele Time [“Tiger-Man” Apr. 21, 1930]. Benevides e Leonzo
reportam que ainda que o filho de Roosevelt, Kermit, procurou-o como um velho
conhecido quando voltou à região, em 1935 (1999: 89), o que também demonstra a
extensão da fama do caçador.
A história narra o processo de transformação do autor a partir de sua busca pelo
índio Joaquim Guató, o detentor dos segredos dessa técnica única, que Siemel seria o
primeiro homem branco a experimentar. Quando finalmente encontra o zagaieiro, o
autor contrasta a imagem do índio corrompido pela bebida, vivendo quase como um
bicho, com a imagem do perfeito caçador, dotado de “qualidades e instintos quase sobre
humanos” (parafraseando Pereira da Silva op. cit). A caçada da onça é descrita pela
primeira vez no pela figura paternal de um velho justiceiro, que se dirige ao narrador
nos seguintes termos:
“Eu tinha visto um conflito que poucos homens têm o privilégio de assistir –
um conflito rude, homem contra natureza, nos termos mais primitivos. (…)
Eu sou um caçador razoável e atiro bem, mas isto não era uma cicada. Era
uma batalha de deuses…sendo que nenhum homem branco, até onde sei,
jamais travou uma batalha dessas e, posso acrescentar, poucos índios.
Não mais nenhum vivo hoje que eu saiba, exceto Joaquim. Você precisa
achá-lo, meu filho, e aprender com ele”.
24
24
I had seen a conflict such as few man are privileged to watch a raw conflict, man against nature, on
the most primitive terms. (…) I am a fair hunter and a good shot, but this was not a hunt. It was a battle
151
A luta entre o índio e a onça representa “o homem contra a natureza nos mais
primitivos termos”, a essência da caçada. Essa imagem pode aproximada a análise que
Donna Haraway faz das representações dos caçadores de leão africanos no Museu de
História Natural de Nova York. Depois de falar sobre a figura patriarcal de Theodore
Roosevelt, na entrada do museu (Op.Cit), ela apresenta Carl Aekeley, o caçador,
naturalista, escultor e taxidermista que coletou e preparou uma série de exemplares
expostos no museu, e que vai ser o personagem principal do texto:
“Finalmente, no Átrio erguem-se as impressionantes esculturas de bronze
de Carl Akeley dos atiradores de lanças Nandi da África Oriental numa
caçada ao leão. Estes africanos e o leão que eles matam simbolizam, para
Akeley, a essência da caçada, do que mais tarde seria chamado de ‘man the
hunter’.” (1989:28).
25
No livro de Siemel, o índio Joaquim Guató é o mestre que o ensina a caçar onças. É
quem lhe os primeiros cães e apresenta-o aos segredos da técnica da zagaia. Entendo
a cena da luta entre Joaquim e o tigre como o ponto culminante da narrativa, onde essa
imagem do embate primitivo é formulada de forma mais evidente:
“Joaquim havia passado para o outro lado do tigre, e fiquei talvez
cinqüenta metros atrás com o meu Winchester pronto. Sem qualquer sinal
de Joaquim, eu sabia que essa seria a sua caçada, e eu sentia, aliás, que era
para ter a natureza de uma demonstração. O velho índio estava a cerca de
dez metros do felino, que tinha se virado para observar este novo inimigo. A
lança de Joaquim estava quase paralela ao solo, segura com as duas mãos.
Ele estava agachado para frente, de modo que a ponta da lança era estava
a mais de meio metro acima do solo. A grama era curta e não havia
nenhuma obstrução entre Joaquim e o tigre”. (1953: 177)
Também não nenhuma obstrução entre o narrador e a cena. A descrição é em
câmera lenta, e registra mínimos detalhes:
of the gods… as no white man has ever, to my knowledge, engaged in such a battle and, I may ad, few
Indians. There are none living today that I know of, except Joaquim. You most find him, my son, and
learn from him.
25
Finally, in the Atrium stand the striking life-size bronze sculptures by Carl Akeley of the Nandi
spearmen of East Africa on a lion hunt. These African men and the lion they kill symbolize for Akeley
the essence of hunt, of what would later be named “man the hunter” (1989: 28).
152
“O de Joaquim de repente disparou para frente. Nesta altura eu
estava recuperada desde o primeiro momento de suspense, e estava
concentrado em todos os movimentos do felino e de Joaquim. Havia uma
nuvem de poeira. O gato balançou sua cabeça, e mostrou as garras. Um
grande rugido veio da garganta vermelha (...). Joaquim tinha chutado um
tufo de grama seca na cara do tigre.
O núcleo do conflito tinha mudado. (...) A partir desse momento, o tigre
não prestou mais atenção aos cães. A grande cabeça estava agora voltada
completamente para Joaquim (...). Durante o que pareceu uma eternidade -
mas provavelmente foram apenas um ou dois segundos - Joaquim parecia
suspenso no ar, com o corpo ligeiramente inclinado para frente. Então, a
ponta da lança foi arremessada para fora, como um boxeador fintando com
um jab de esquerda. O tigre bateu na lâmina de ferro com sua pata, e por
um instante pareceu atingido nas ancas”. (Idem)
O movimento do boxeador remete à primeira parte do livro, em que o autor descreve
sua experiência como lutador no Rio Grande do Sul, em desafios motivados por apostas.
Em seguida ele menciona outro golpe:
“A lança de Joaquim foi puxada de volta para ele novamente. Então como
um ‘one-two punch’ de um boxeador, ele voltou a atacar exatamente
quando o felino arremeteu. A lança encontrou o choque da carga, entrando
no pescoço do tigre. Pareceu-me que Joaquim, frágil e vacilante e
surpreendente pequeno na frente do corpo enorme, iria dissolver-se na sua
investida. Era uma luta inacreditável. O gato era uma bola de fúria,
rosnados e unhadas, se curvando para frente enquanto se esforçava com
cada movimento de suas quatro patas para afastar o objeto que espetava
sua garganta e cortava sua respiração. Joaquim era visível apenas em
lampejos de pele marrom. Volta e meia eu via as pernas dele se moverem
em uma espécie de dança derviche, e seus pés descalços pareciam quase
agarrar-se ao chão, enquanto ele lutava para manter o equilíbrio e
continuar direcionando mais profundamente a lança na garganta de tigre”.
(: 177-178)
A cena continua sendo descrita nos mínimos detalhes, em contrastes sucessivos
entre a figura da onça, enorme e ameaçadora, e a do índio frágil e etéreo. Em
153
determinado momento os golpes coordenados por parte do zagaieiro são descritos como
uma dança. A precisão dos movimentos dele contrasta com a “bola de fúria” em que a
onça se converte. Finalmente, o golpe de misericórdia:
“O gato cedeu terreno primeiro, tentando retirar a lâmina da lança, e no
instante em que recuou um passo, Joaquim puxou a ponta da lança e
investiu novamente, quase mais rápido do que o olho poderia seguir - desta
vez em linha reta no peito do animal que se contorcia. Os pés de Joaquim
dançaram para os lados, e eu percebi que o gato estava agora de costas,
contorcendo-se num último impulso de vida enquanto o índio empurrava a
lâmina mais profundamente no peito do animal”. (: 178)
26
Assim como a cena dos caçadores africanos na escultura do Museu de História
Natural, a luta entre o zagaieiro e a onça é um acontecimento recortado no tempo e no
espaço, um exemplar ideal que poderia ser exposto numa vitrine do museu. Referindo-
se ao naturalismo de Carl Akeley, Haraway afirma que ele é movido por um ideal de
não haver nenhum tipo de mediação, nenhum impedimento para a contemplação do
observador dos animais como eles realmente são. A autora relata os dez anos de
desenvolvimento de câmeras para a filmagem da vida selvagem que Akeley teve que
esperar para filmar com sucesso sua imagem da caçada de leão com a lança. O projeto
pessoal dele era uma câmera tão fácil de disparar quanto uma arma, o que ela associa ao
ideal da representação realista e objetiva da vida selvagem, contra a qual formula seu
próprio projeto narrativo:
“Akeley quis apresentar uma visão imediata; eu teria preferido dissecar e
tornar visível uma camada depois da outra de mediação”. (1989: 35)
27
Sasha Siemel é um símbolo da caçada de aventura praticada no Pantanal, a qual se
sobrepõe à imagem utilitarista da eliminação dos animais nocivos à criação de gado. O
caçador admira o tigre como um inimigo honrado, e enfrenta-o extrapolando o código
da nobreza esportiva e colocando em risco a própria vida. Ao mesmo tempo, apresenta
em segundo plano o sacrifício do animal como algo necessário, um serviço para a
comunidade:
26
A descrição de Siemel pode ser comparada com registros de campo no ANEXO 1 ao final do
capítulo.
27
Akeley wanted to present an immediate vision; I would like to dissect and make visible layer after
layer of mediation. (1989: 35)
154
“Os fazendeiros sabiam das minhas caçadas e frequentemente mandavam
avisar que havia tigres destruindo seu gado. (...) Os fazendeiros me
pagavam com mantimentos, ou com um cavalo ou uma mula, e eu tinha o
privilégio de abater uma novilha ou boi para alimentar a mim e meus
cachorros”. (: 240)
28
O segundo clímax do livro é quando o próprio autor, experimentado zagaieiro,
parte em busca de uma onça com características extraordinárias, um animal denominado
“Assassino”:
“A história de Assassino era bem conhecida em todo o Pantanal do
Xarayes. Muitos anos antes este enorme tigre tinha sido ferido por um
caçador inexperiente. (...) uma única patada com aquelas garras afiadas
seria capaz de destruir um cachorro. (...) Foi este truque de armar
emboscada para os perseguidores que deu nome ao trigre Assassino.
Duas vezes antes os grandes fazendeiros tinham me pedido diretamente
para caçar aquele demônio”. (253)
29
A descrição do animal como um criminoso aparece também quando o caçador é
questionado pela futura esposa, em Nova York, sobre a importância de se preservarem
os animais selvagens. Ele diz:
“Eu expliquei (…) que também não gostava de matar animais; e que minha
caçada era para abater um animal assassino
, do mesmo modo que um
policial
seria capaz de matar um assassino humano”.
30
(: 274)
Neste outro trecho, convence-a a atirar numa onça-parda, acuada em cima de uma
árvore pelos cães, argumentando:
“O puma era um destruidor de gado, e um dos raros animais da selva que
matam unicamente por matar. (...) Eles [pumas] são covardes”.
31
(:276).
28
The fazenderos knew of my hunting, and often sent Word of tigres destroyng their cattle. (…) The
fazenderos would pay me in supplies, or with a horse or mule, and I had the privilege of slaughtering a
young heifer or bull for food for my dogs and myself. (: 240)
29
The story of Assassino was well known along the Pantanal do Xarayes. Several years before this
enormous tigre had been wounded by an inexperienced hunter. (…) One sweep of the razor claws would
destroy a dog. (…) It was this trick of ambushing pursuers that gave the tigre its name – Assassino. Twice
before I had been asked directly by the big fazenderos to hunt this devil. (253)
30
... I explained (…) that I also did not like to kill animals; and that my hunting was to destroy a kind of
animal murderer
, in the same way a policeman might shoot a human killer (: 274).
155
Os termos usados acima para descrever os animais “assassino”, “covarde”,
“demônio” – contrastam com a nobreza da fera enfrentada pelo zagaieiro:
“Você vai ver que o tigre não responde à lógica humana, e não entende o
significado de piedade. E o tigre é um dos inimigos mais honrados que você
irá encontrar” (:16)
32
A ambigüidade entre o animal nocivo e o adversário de valor atravessa toda a
narrativa, e é ela que define a identidade do caçador. Durante o trabalho de campo,
observei diversas vezes as fotografias do caçador expostas na sala de visitantes da
pousada da Fazenda San Francisco, em Miranda. Sobre elas, estava pendurada sua
zagaia. Sasha Siemel ficou famoso também com as imagens que produziu de si mesmo
enfrentando as feras com a zagaia na Miranda Estância, fazenda onde viveu nas
décadas de 1930 e 1940, e onde guiava caçadores e visitantes ilustres, atraídos pela
grande variedade de animais silvestres da região.
No prefácio do livro sobre a história da fazenda (Benevides e Leonzo 1999), o
médico e naturalista Jorge Schweizer apresenta um testemunho pessoal da filmagem da
onça morta na zagaia:
“Foi numa dessas visitas que assisti, em novembro de 1947, à filmagem da
luta entre a onça e Sasha, apenas munido de zagaia. Essa luta foi encenada
num curral feito de carandá a pau-a-pique com aproximadamente quatro
metros de altura. Em toda extensão elíptica do curral havia, no lado
externo, um andaime de onde podia-se olhar para dentro dele (...).
Finalmente chegou a hora de o nosso herói entrar em cena. Sasha Siemel,
lituano naturalizado nos Estados Unidos, havia matado 30 pintadas na
zagaia, mas jamais alguém conseguira documentar os acontecimentos, que
sempre se davam inesperadamente e nos capões mais densos. Para
completar o seu filme The jungle family necessitava ainda dessa cena
dramática. Dos três filmadores somente mamãe foi bem sucedida e fez as
imagens que depois deram a volta ao mundo. (...) Depois do show tiramos
31
The puma was a destroyer of stock, and one of the rare beasts of the jungle who kill merely for the
sake of killing. (…) They [pumas] are cowards
… (: 276).
32
You will discover that the tigre does not respond to human logic, nor does he understand the meaning
of pity. And the tigre is one of the more honorable enemies
you will meet” (: 16).
156
fotos do herói sexagenário e de seu filho de apenas um ano de vida com o
macharrão”. (1999: viii-ix)
Alguns instantâneos dessas imagens (que, de acordo com o depoimento, correram o
mundo) faziam parte da coleção exposta na San Francisco [Foto]. No entanto, a situação
mais repetida nessa coleção de fotografias era a dos caçadores em torno da onça abatida.
Siemel com a mulher e o filho, sorridentes, apareciam em uma série delas portando
zagaia, espingarda ou arco e flecha, sempre agachados atrás do corpo do animal. Em
algumas, o caçador abre a boca do felino para mostrar as presas para a câmera.
Não pude deixar de observar a semelhança de algumas dessas imagens de caça com
as fotografias atuais feitas pelos pesquisadores da fazenda, em que eles se reúnem em
torno da onça anestesiada. Comentei isso com Henrique, o biólogo responsável pelo
projeto Gadonça em 2006, na primeira vez em que vi as fotos. Ele não concordou muito
com a idéia, e mais tarde procurou me mostrar como nessas últimas fotos, que ficavam
no auditório do projeto, havia um cuidado com a posição assumida em relação ao
animal, para que ele não parecesse um troféu de caça.
As imagens antigas de Siemel matando a onça com a zagaia seriam uma segunda
versão para o tema da figura ideal do caçador nativo, que aproximei do modelo man the
hunter apontado por Donna Haraway. Neste caso, o caçador explora um território
desconhecido, e retrata-se como o primeiro branco a enfrentar a fera nas condições
primitivas. A iconografia ligada ao caçador pode ser considerada também como
precursora de uma transição histórica, especialmente quando lembramos o local onde as
fotos estavam expostas: a sala de visitantes de uma pousada ecológica. Na pousada,
onde os safáris fotográficos substituem as antigas caçadas, a figura antes ameaçadora da
onça-pintada se transformou no símbolo da vida selvagem ameaçada. No ensaio Sobre
Fotografia (1977), citado por Donna Haraway, Susan Sontag afirma:
“Um caso em que as pessoas estão mudando de balas para filmes é o safári
fotográfico, que está tomando o lugar do safári na África Oriental. Os
caçadores levam Hasselblads em vez de Winchesters; em vez de olhar por
uma mira telescópica a fim de apontar um rifle, olham através do visor
para enquadrar uma foto. (...) As armas se metamorfosearam em câmeras
nessa comédia séria, o safári ecológico, porque a natureza deixou de ser o
que sempre fora algo de que as pessoas precisavam se proteger. Agora a
natureza – domesticada, ameaçada, mortal – precisa ser protegida das
157
pessoas. Quando temos medo, atiramos, mas quando ficamos nostálgicos,
tiramos fotos”. (2006 [1977]: 25)
A coleção de fotografias de Siemel aparece novamente em minhas anotações de
campo em 2008, no registro de uma conversa com o biólogo Ricardo Costa, responsável
na época pelo projeto em Gadonça. Eu comentava com ele sobre uma fotografia que
vira emoldurada no escritório de um fazendeiro entrevistado para a pesquisa. A imagem
[foto x] mostrava uma onça morta apoiada de dentro de um mangueiro de gado, mas
a estranha posição do animal denunciava o artifício, confirmado pelo meu entrevistado,
tratando-se, provavelmente, de um animal morto apoiado em pedaços de madeira.
Observando a qualidade fantasiosa das situações em que os animais apareciam também
nas fotografias de Siemel, o biólogo apontou uma imagem de duas onças se
alimentando da carcaça de um boi, segundo ele tida por muitos pesquisadores como
uma montagem feita com animais dopados ou mortos [foto x].
Um elemento que revela a ausência de compromisso documental da literatura de
Sasha Siemelestá no próprio nome do livro; a primeira gina dele mostra uma crítica
favorável na qual se lê:
“No Brasil o jaguar é chamado de tigre, e nas florestas daquela país Sasha
Siemel é conhecido como Tigrero o homem que mata tigres com uma
lança.”
33
Almeida comenta sua estranheza com o uso do termo pelo admirado antecessor:
“O nome usado para o jaguar em todo Brasil é ‘onça’ (...) A palavra ‘tigre’
nunca é usada no Brasil. Por que, em todos os seus livros, Sasha Siemel
sempre se refere ao jaguar como tigre, considerando que ele nunca caçou
fora do Brasil, é uma questão que sempre me intrigou”. (1976:61)
34
[O termo tigre é usado em outros países da América do Sul, e minha própria
hipótese (não testada) é que tenha sido adotado por Siemel por sugestão do editor, a
partir da referência da cultura popular americana aos termos hispânicos. Mas isso é
apenas uma suposição].
33
In Brazil the jaguar is called a tigre, and in the jungles of that country Sasha Siemel is known as
Tigrero – the man who kills tigres with a spear.
34
The name for “jaguar”, all over Brazil, is “onça” (…). The word “tiger” or “tigre” is never used in
Brazil. Why, in all his books, Sasha Siemel always refers to the jaguar as tiger, since he never hunted
outside Brazil, is a matter which has long intrigued me. (1976: 61)
158
O artificialismo dos eventos autobiográficos narrados pelo caçador também são
tematizados por Benevides e Leonzo (1999), num esforço documental para desmarcar o
mito Sasha Siemel. Os autores de Miranda Estância questionam a veracidade da
imagem heróica construída por ele mesmo em seus livros:
“[E]stamos diante de um homem inteligente que utilizou o Pantanal mato-
grossense para sobreviver, mas , com certeza, não apenas com a zagaia. Os
livros e documentos contábeis da The Miranda Estância Company Limited
comprovam sua ligação com os caçadores da fazenda (...) e o denunciam
como habitual comprador de munições”. (: 89)
Os caçadores nativos que trabalhavam na fazenda, como mostram os autores,
acompanharam durante muitos anos as caçadas de Siemel, mas não são citados em
nenhum momento nos seus livros. Os historiadores concluem que:
“[A] questão do uso exclusivo da zagaia é uma farsa, que funcionava
apenas com animais domados (...)”. (Idem)
Para chegar a esta conclusão, defendem que a zagaia popularizou-se no Pantanal
com a expedição de T. Roosevelt pela região, citando Pereira da Cunha.
“Até o célebre Sasha Siemel retornou em 1955 acompanhado de alguns
visitantes. (...) [E]ra um “guia de caçadas” que, quando possível,
procurava apanhar vivas as feras, domá-las e fotografá-las, com o objetivo
maior de vendê-las para os parques zoológicos da Europa e dos Estados
Unidos”. (: 115)
Usando o mesmo procedimento adotado pelos autores, observo apenas que o
Comandante Pereira da Cunha (Op.Cit.), apesar de descrever os zagaieiros como
'ajudantes' do caçador armado, menciona também a caçada de onça dos índios Guató
com o uso da zagaia. Vale lembrar também que o uso da lança indígena para a caçada
da onça, por um caçador solitário, é mencionado na literatura etnológica sobre a região
também para os Bororo (Crocker), o que está em desacordo com a tese dos
historiadores.
Uma referência ao uso da zagaia aparece também no livro de Tony Almeida, o
terceiro e último caçador da linhagem de Roosevelt comentado neste capítulo (também
citado em Benevides e Leonzo 1999). Almeida conheceu um dos caçadores que
trabalhou com Siemel na Miranda Estância, e descreve-o assim:
159
“A técnica de atacar o jaguar com a lança, que o velho tinha aprendido
com Siemel, exigia exatamente aquele temperamento frio e determinado.
Lauro tinha sido o braço direito de Siemel por muitos anos e matado meia
dúzia de jaguares sozinho, armado apenas com uma lança.
Agora uma etiqueta presa no crânio branqueado sobre a lareira do Major,
com o nome de Lauro, a data e a medida escritas nela eram o único
testemunho daquela batalha solitária e da proeza do homem que combateu
o gato monstruoso com uma arma tão primitiva quanto as usadas por seus
antepassados pré-históricos”. (:10)
35
A imagem final corrobora a associação entre a figura do zagaieiro e aquilo que
Haraway designa pelo termo man the hunter (1989: Op.Cit), o protagonista masculino
da história evolutiva. Minha intenção aqui não é ignorar o aspecto artificial ou
fantasioso da narrativa de Siemel. Apenas chamo atenção para o fato de que o
personagem do índio Joaquim Guató e o testemunho do uso da zagaia não são tão
frágeis quanto os atores fazem parecer. Ao contrário do modelo realista baseado na
comprovação científica, o princípio metodológico que procuro adotar aqui não se baseia
em desmascarar as fontes citadas, mas antes em tornar visíveis todas as camadas de
mediações que as narrativas apresentam.
Tony Almeida
Tony Almeida publicou seu livro de caçadas – Jaguar Hunting in Mato Grosso – em
inglês, pela editora britânica Safari Press, em 1976. A obra, destinada ao público
específico dos caçadores esportivos amadores, foi reeditada em 1997 com o título
Jaguar Hunting in Mato Grosso and Bolivia. Assim como Siemel, o autor é um caçador
profissional e guia de safáris internacionais. O próprio Almeida se inscreve
(tardiamente) na linhagem de Roosevelt, ao citar o presidente norte americano como
referência para um modelo de preservação no qual o caçador esportivo desempenha um
papel fundamental na proteção da vida selvagem:
35
The technique of taking jaguar with the spear, which the old man had learnt with Siemel, required
precisely such a cool and steely temperament. Lauro had been Siemel’s right-hand man for many years
and had since taken half-a-dozen jaguars himself in single-handed combat armed only with a spear.
Now a label tied to the bleached skull on the Major’s mantelpiece with Lauro’s name, the date and the
measurement written on it was the only testimony to that lonely battle and to the prowess of the man who
fought the monster cat with as primitive weapon as those used by his prehistoric ancestors. (: 10)
160
“O Presidente Theodore Roosevelt, o mais conhecido caçador americano
de nossa época, que caçou animais de grande porte das Montanhas
Rochosas à África e Brasil, foi o homem responsável por criar a maior
parte dos parques nacionais e reservas florestais que existem hoje na
América. (...) Então quem irá proteger a caça nesses países onde os
guardas não querem ou não podem fazer isso? A resposta é: (...) os
caçadores profissionais”. (1976: 123)
36
O autor diferencia dois tipos diferentes de caça:
“Uma vez que a caça proibida ameaça a própria existência da caça
esportiva, da qual nós dependemos para ganhar a vida, nós obviamente
fazemos todo o possível para que não haja caça proibida nas regiões em
que caçamos”. (124)
37
Transportado para o Pantanal, uma espécie de modelo ideal da vida selvagem
protegida e caçada da maneira correta aparece representado pela Miranda Estância, não
por acaso uma fazenda de origem inglesa. No trecho a seguir, Almeida descreve a
propriedade, onde caçou sua primeira onça:
“A Estância Miranda é um triângulo de terra entre os Rios Miranda e
Aquidauana. Este é o território do Major, com o acesso pela estrada
permanentemente vigiado do posto de vigilância que é ligado à casa da
fazenda por telefone, com os limites e cercas da fazenda constantemente
patrulhados por vaqueiros armados e pelos dois caçadores, e com as
fronteiras do rio defendidas por um barco a motor com homens armados”.
(Almeida 1976: 11)
38
O território fortificado, controlado, reforça uma imagem quase feudal:
36
Tradução minha: President Theodore Roosevelt, the best-known America hunter of this day, who hunted
big-game from the Rocky Mountains to Africa and Brazil, was the man responsible for establishing most
of the National Parks and forest reserves that exist in America today. (…) So who will protect the game in
these countries where the guards are unwilling or unable to do so? The answer is: (…) the professional
hunters. (1976: 123)
37
Since poaching threatens the very existence of continued sport hunting, on which we depend for a
living, we obviously do all in our power to see that there is no poaching in the areas we hunt. (124)
38
Miranda Estancia is a triangle of land between the Miranda and the Aquidauana Rivers. This is the
Major’s territory, the access by road guarded permanently at his border outstation which is connected to
the main ranch house by telephone, his land borders and fences patrolled constantly by armed “vaqueiros”
(cowboys) and by the two hunters, and his river boundary defended by a motor boat with armed men. (…)
161
(seria interessante observar como essa figuração feudal das gdes fazendas brasileiras
se impôs na ficção e nas ccs sociais)
“Roubo de gado, sem falar em caça ilegal, é portanto muito difícil dentro
da propriedade do Major. Ninguém que não seja conhecido tem permissão
para entrar na fazenda sem autorização expressa do Major”. (Idem)
39
A descrição da figura patriarcal do Major é uma tradução exata, para a realidade
local, da representação de Roosevelt como “father of the game” (Haraway 1989). A
posição de Almeida é a do caçador esportivo que reconhece no Senhor da fazenda os
seus próprios valores:
“Ele mesmo um ótimo esportista, com um amor pelo enorme gato do
pântano que aqueles que passaram anos medindo forças com ele
possuem realmente, o Major não dava permissão para matar um jaguar,
fosse por caçadores nativos ou em visita, a menos que o animal tivesse sido
pessoalmente condenado por ele como assassino de gado. Até jaguares que
matavam gado ocasionalmente para variar sua dieta de animais
selvagens eram tolerados”. (:11)
40
Os parâmetros éticos da atividade esportiva são cuidadosamente referidos antes da
descrição da caçada propriamente dita, desta vez com a presença do anfitrião:
“Um dia, no final de maio, eu fui a Miranda uma segunda vez. O próprio
Major estava em casa: Major Alfredo Ellis, um dos pioneiros da força
aérea brasileira, um homem d bigode, queimado de sol e de fisionomia
dura, um veterano do Mato Grosso, um grande caçador no seu tempo e um
ótimo anfitrião”.
41
A seguir o caçador trata da escolha do animal que vai ser caçado:
39
Cattle hustling, not to speak of poaching, is therefore very difficult within the confines of the Major’s
property. Nobody is allowed inside who is not well known to the ranch without the Major’s express
permission.
40
A fine sportman himself, with a love for the great cat of the swamps which only those who have spent
years crossing swords with him truly possess, no permission was given by the Major for the killing of a
jaguar, whether by gests or native hunters, unless the animal had been personally condemned by him as a
confirmed stock-killer. Even jaguars who only occasionally killed cattle as a change for their normal diet
of wild game were tolerated (…) (: 11)
41
One day in late May I arrived in Miranda for the second time. The Major himself was in residence:
Major Alfredo Ellis, one of the pioneers of the Brazilian air-force, mustached, sunburst and craggy-faced,
a veteran of the Mato-Grosso, a great hunter himself in the old days and a fine friend at host.
162
“Sim, o Major me disse, um jaguar tinha sido acusado, julgado e
condenado. A acusação: um inveterado assassino de gado, o julgamento:
uma inspeção das depredações do felino, normalmente feitas pelo próprio
Major, e uma contagem das cabeças de gado mortas pelo felino a partir de
notícias trazidas pelos vaqueiros e vigias de cercas. O veredito neste caso:
culpado, o castigo: morte. Este jaguar tinha de fato sido condenado três
meses antes, mas o major tinha dito aos caçadores nativos para poupá-lo
até o fim da estação chuvosa e então o tinha guardado para a minha
caçada. O fato deste adiamento da execução ter custado ao rancho quinze
ou vinte cabeças de gado não foi ignorado por mim e eu fiquei devidamente
agradecido”.
42
O caçador descreve julgamento e uma condenação da onça pelos seus crimes, que
servem como justificativa para o abate. As citações de Roosevelt, do Major e de Sasha
Siemel, todas feitas com reverência no texto, repetem sempre uma mesma fórmula
“Roosevelt himself”, “Sasha Siemel himself”, “the Major himself” – que indica a
autoridade e a distinção moral da figura referida. O trecho citado coloca em cena o
código moral do caçador, que opõe a “caça esportiva” (Sport hunting) e a “caça furtiva”
(poaching). No capítulo “The Role of the Hunter” (: 121-125), Almeida apresenta
argumentos enfáticos contra aqueles que condenam a caça:
“Antes de acusar caçadores de animais de grande porte de destruir os
maiores animais do mundo, as pessoas deviam parar para pensar quem, de
fato, tem mais interesse na sobrevivência de animais grandes.
São os chamados amantes da natureza que jamais sonhariam em ir a um
lugar onde pudessem ser picados por um mosquito ou ver uma cobra, e que
nunca viram um animal grande fora de um zoológico?
Ou são os caçadores amadores que passam a maior parte do seu tempo
livre e gastam o seu dinheiro visitando os lugares selvagens da terra, e os
42
Yes, the major told me, a jaguar had been accused, tried and condemned. The accusation: inveterate
cattle-killing, the trial: an inspection of the feline’s depredations, often carried out by the Major himself,
and a count of the heads of cattle taken by the cat from news brought in by the “vaqueiros” and fence-
riders. The verdict in this case: guilty, the penalty: death. This jaguar had in fact been condemned three
months previously, but the major had told the native hunters to spare him until the end of the rainy season
and so had saved him for my hunt. That this stay of execution must have cost the ranch fifteen or twenty
head of cattle was not lost on me and I was duly thankful.
163
caçadores profissionais que vivem no meio dos animais selvagens e
dependem deles para ganhar a vida?” (:121)
43
Baseado no exemplo dos safaris africanos, ele considera o papel dos caçadores
esportivos fundamental na conservação da vida selvagem:
“Organizações esportivas (...) nos }Estados Unidos e (...) Europa m
subsidiado e financiado projetos de preservação da natureza de milhões de
dólares. os programas africanos têm inclusive construído estradas ao
redor de reservas de animais para permitir o acesso de patrulhamento
contra caça ilegal, construído poços artesianos para salvar os animais
durante a seca, pago os salários de guardas de muitos parques africanos
importantes (..) e doado veículos e outros equipamentos para os
departamentos de caça dos países africanos. Estes veículos têm sido usados
para reprimir a caça ilegal”. (:121-122)
44
A posição do autor frente aos “ecologistas de poltrona” remete a um ideal de
decadência moral da sociedade moderna urbana, contra o qual a qual o caçador
estabelece seu lugar. Sobre a fotografia e os filmes de vida selvagem feitos por Akeley,
Haraway diz:
“A ambigüidade da arma e da câmera perpassa toda a obra de Akeley. Ele
é uma figura de transição da imagem ocidental da África mais sombria
para a mais luminosa, da natureza merecedora de temor masculino para a
natureza necessitada de carinho materno”. (1989:43)
45
43
Before accusing big-game hunters of destroying the world’s large animals, people should stop to think
who, in fact, have the most interest that big-game should survive.Are they so-called nature lovers who
would never dream of going anywhere where they might be bitten by a mosquito or see a snake, and who
have never seen a large wild animal outside a zoo?
Or are they the amateur sport-hunters who spend most of their spare time and money visiting the wild
places of the earth, and the professional hunters who live among wild animals and depend on them for a
living? (121)
44
Sportsmen’s organizations (…) in the United States and (…) Europe have subsidized and sponsored
projects for preserving wildlife worth millions of dollars. Just their African programs have including
building roads around game preserves to permit anti-poaching patrols, building water holes with
artesian wells to save game during droughts, paying the salaries of white game wardens of many
important African game parks (…) and donating vehicles and other equipment to the game departments
of African countries. These vehicles have been used to suppress poaching (…) (: 121-122)
45
The ambiguity of the gun and camera runs throughout Akeley’s work. He is a transitional figure from
the western image of darkest to lightest Africa, from nature worthy of manly fear to nature in need of
motherly nurture. (1989:43)
164
A figura de Tony Almeida seria também um bom exemplo, talvez não de uma
transição entre a arma e a câmera, mas de uma superposição entre as duas. Quando fala
sobre os equipamentos utilizados no campo, ele cita sua marcas preferidas de
armamentos:
“Quanto a armas, o revólver Smith & Wesson, é claro, tem uma longa
tradição em Mato Grosso, onde nenhum homem cavalga desarmado”.
(1976: 145)
46
E, na seqüência do mesmo capítulo, acrescenta:
“Sempre que vou para o pantanal levo uma câmera comigo. Não é de
espantar, portanto, que minhas duas Pentaxes tenham tido sua quota de
mergulhos”. (: 148)
47
No caso, atirar e clicar são expressões do mesmo desejo de documentação que move
o autor. Ambos os gestos produzem dados, e também troféus. No primeiro caso, a onça
abatida gera medidas, registros de conteúdos estomacais, e também peles e cabeças. No
segundo, registram o caçador junto à sua presa.
A oposição feita pelo autor entre hunting e poaching é reveladora do papel não
marcado de homem branco na narrativa, um papel ligado diretamente à linhagem que
procuro traçar nesta seção. Em relação às esculturas dos caçadores de leão, que
simbolizam o ideal de caça no Museu de História Natural, Donna Haraway comenta:
“Ao discutir os caçadores de leão que usam lanças, Akeley se refere a eles
como homens. Em todas as outras circunstâncias, ele se refere aos machos
africanos adultos como rapazes”. (:28)
48
O papel do nativo no relato do caçador branco é o de auxiliar; um auxiliar tratado de
forma paternalista. No livro de Almeida, da mesma forma, todos os caçadores nativos
que trabalham com ele, homens adultos e caçadores experientes recrutados nas áreas de
caça, são tratados como “boys”:
46
As for hand-guns, the Smith & Wesson revolver, of course, already has a long tradition in Mato-
Grosso, where no man rides unarmed. (1976: 145)
47
Wherever I go in the swamps a camera goes with me. Not surprisingly, therefore, my two Pentaxes
have taken their share of dunkings. (: 148)
48
Discussing the lion spearers, Akeley referred to them as men. In every other circumstance he referred
to adult male Africans as boys. (:28)
165
“…chega uma hora em que eu tenho saudades daquela região pantanosa e
fico louco para me sentar outra vez diante da fogueira (…), antecipando a
caçada do dia seguinte, ouvindo o zumbido dos insetos, as vozes abafadas,
sonolentas dos rapazes
[‘boys]em suas redes”. (: 163-164)
49
Se tivemos um rapaz
mais corajoso do que Raimundo, foi Gonçalo (:166)
50
Assim como seus antecessores, Almeida formula também um tipo ideal para a
caçada: o maior prêmio é o jaguar maior, o mais desafiador para o caçador. A estrutura
da narrativa o aproxima de Sasha Siemel. A história que costura o livro é o embate do
caçador com um animal nomeado, individualizado e condenado como matador de gado
(stock killer); um fora da lei. Aqui o adversário de valor é nomeado e devidamente
apresentado:
“O jaguar que fugiu tinha uma das maiores pegadas que eu já tinha visto,
medindo quinze centímetros de largura. Daquele dia em diante ele foi
apelidado de Big Richard” pelos Vaqueiros (...) em homenagem aos pés
de Richard. Muitas vezes nós tentamos encontrá-lo enquanto caçávamos
com clientes nos anos seguintes, mas ele sempre fugia para o mato fechado,
aleijando e matando cachorros e indo embora quando homens se
aproximavam”. (: 50)
51
No final do livro, o nobre inimigo finalmente é abatido. Usando um recurso
empregado por seus precursores, o narrador interrompe a seqüência de eventos para
recortar um quadro estático, antecipando o desfecho:
“Uma incrível visão primitiva foi iluminada: a vinte metros de distância,
com a cabeça perto do chão, Big Richard estava emitindo seu ultimo
49
…there comes a time when I am homesick for that marshy wilderness, and long to sit again beside the
camp fire (…), anticipating the next day hunting, listening to the hum of insects, the subdued, drowsy
voices of the boys
in their hammocks. (: 163-164)
50
If we had one boy
braver than Raimundo it was Gonçalo (: 166)
51
The jaguar who escaped had one of the biggest tracks I have kown, measuring five inches across the
print of the forefoot. From that day on he was nicknamed “Big Richard” by Mariano’s Vaqueiros, in
honor of Richard’s feet. Many times did we attempt to come up with him while hunting with clients over
the next years, but he always made for the thickest brush, mauling and killing dogs and moving out as
men approached. ( :50)
166
chamado. As notas roucas ecoaram (..) por toda a floresta pantanosa que
tinha, por tanto tempo, sido o seu reino”.
52
Por fim, registra o fim da onça:
“Antes que Thornton pudesse perceber o seu erro, ele disparou o tiro. (...)
Uma das balas tinha atingido seu cérebro, interrompendo instantaneamente
sua carreira. (...) O rei estava morto”. (:193)
53
Posteriormente, ao medir o crânio animal, se conta de que está diante de um
prêmio maior do que esperava:
“Eu pude ver que sua cabeça era fora do comum, mas não percebi na hora
que tínhamos conseguido um novo recorde mundial”.
54
Por fim, resume o próprio ideal de caçada:
“Pareceu-me perfeitamente adequado que este velho jaguar, que tinha por
tanto tempo medido forças conosco, tivesse quebrado o recorde, e que
agora, totalmente reconstituído pelo grande taxidermista Mario Aguilar, na
Cidade do México, estivesse imortalizado para a posteridade, para um dia
tomar seu lugar num museu público”. (:194)
55
O adversário de valor, enfrentado pelo caçador em seu hábitat, é imortalizado pela
Ciência. Sobre a relação de Aekeley com os espécimes coletados por ele expostos nos
dioramas do Museu de História Natural, Haraway afirma:
“O conhecimento científico anulou a morte; a morte antes do
conhecimento era final, um ato abortivo na história natural do progresso”.
(:34)
56
52
A vision of primeval wonder was illuminated: twenty meters away, his head close to the ground, Big
Richard was sending out his last call. The hoarse notes rolled away (…) through the entire marshy
wilderness which had for so long been his kingdom.
53
Before he could realize his mistake Thornton’s shot rang out. (…) One of the pellets had reached his
brain, putting an instant end to his career. (…) The king was dead. (: 193)
54
I could see his head was quite out of the ordinary but did not realize at the time that we had a new
world’s record.
55
It seemed to me altogether fitting that this ancient jaguar, who had for so long crossed swords with us,
should break the record, and that now, fully mounted by the great taxidermist Mario Aguilar, in Mexico
City, he should be immortalized for posterity, to eventually take his place in a public museum. (: 194)
56
Science knowledge canceled death; only death before knowledge was final, an abortive act in the
natural history of progress. (: 34)
167
Apesar da distância temporal Almeida é o autor que melhor realiza esse ideal entre
os citados neste capítulo. Ele é um exemplo da sobreposição entre caça e estudo
científico preconizada pelo modelo da história natural e um defensor do modelo do
caçador esportivo, do “father of the game”, um herdeiro legítimo de Akeley e
Roosevelt; exemplo tardio da posição não marcada do explorador branco que
caracteriza o modelo de história natural representado por eles.
O ideal naturalista de ver tudo de lugar nenhum, de verdades científicas puras,
indisputadas, é um legado desta tradição, assim como a busca por esse tipo ideal de
animal, do macharrão, o animal ideal de caça. Essas duas coisas se fundem na tradição
patriarcal que procurei mapear aqui, como modelo para uma determinada história
natural. O que Donna Haraway mostra é que machismo, sexismo, racismo, e
colonialismo não são questões externas, mas sim forças ativas tanto nas representações
naturalistas tanto da vida selvagem quanto nas da vida alheia. A mudez animal, nesse
sentido, é um dos espelhos contra o qual o ‘Ocidente Branco’ projetou sua dominação
moral e masculina ao longo de séculos de colonialismo.
Essa mudez também é crucial para as reflexões de Jacques Derrida (1999) sobre a
história do conceito de animal, no singular genérico, contraproduzido na “autobiografia
do sujeito ocidental”, que é como ele nomeia a história da filosofia. Derrida afirma que
todos os filósofos dizem a mesma coisa: o animal é “privado de linguagem”, “não tem
o poder de responder”(: 62). O termo animal se refere a essa falta, privação e
corresponde a uma mudez e passividade do animal como objeto científico. A
animalidade como conceito filosófico, designa assim, precisamente, a condição oposta à
condição humana; a negação ou ausência daquilo que se convenciona como sendo a
singularidade humana: inteligência, sentimento, consciência de si e da morte,
linguagem, abertura.
O abate do Big Richard é uma experiência de comunhão com a natureza e, ao
mesmo tempo, é um novo recorde para os registros científicos; um belo exemplar para
um museu de história natural. No entanto, ao mesmo tempo em que Almeida é o último
representante na linhagem de caçadores naturalistas apresentada aqui, ele é também, em
muitos sentidos, um precursor da biologia de campo. Como bom naturalista, o caçador
anota diversas medidas dos animais que abate: peso, comprimento, tamanho do crânio,
entre outras. Além disso, analisa o conteúdo estomacal, observa uma série de aspectos
do uso do habitat e do comportamento da espécie; produz, enfim, um volume
substancial de dados quantitativos (tabelas com pesos e medidas dos animais) que são
168
citados posteriormente pela literatura científica especializada. Muitos os dados
quantitativos que produziu foram incorporados ao corpus científico, e nesse ele se
inscreve como pioneiro nos estudos sobre a onça pantaneira.
169
ANEXO D: Zagaieiros
Entrevista 1:
Seu Felipe (Miranda, março de 2008)
E: E essas histórias que falam antigamente dos zagaieiros, O senhor conheceu
algum?
ajudei. Aqui tem um velho, o Ventura. Ele tá pro Guaporé. A onça
acuava assim, e o cachorro latindo aí. E aqui eu tenho um machetinho,
assim, pra limpar bem. “Vai limpando” ele falava pra mim assim “que
não tem perigo não companheiro. Ele não vai vim não”. Aí quando chegava
pertinho, ele ficava assim [agachado]. Olhava no cachorro assim,
travessava, olhava no cachorro assim, voltava. “Pode voltar agora aqui”.
“Agora vamos tocar” falava com o cahorro. ela começou a dar um
bufo. “Não vem ainda”. outro, ameaçando o cachorro. Nada. Ele Fala:
“Com três ela vem. Fica desse lado, que eu vou ficar aqui. Com três bufo,
bufos ela vai virpra mim.” Tem aquela zagaia. vem e levanta a pintada.
Vem com os dois pés. ele passa pra ela a coisa. Ela pega assim [junta as
mãos] e trás no gogó. Ele empurra, enfia bem no gogó, e pula por cima.
Com três bufos ela vem, com três ela vem certinho.
E: Mas o cara tem que saber manejar...
Tem que saber. É a mesma coisa que um jogador.
Entrevista 2
Seu Cassimiro(Miranda, abril de 2008)
F: E o senhor já viu caçada na zagaia?
Vi só uma vez. Um poconeano.
F: Lá no norte?
170
Não, esse foi aqui mesmo, no Nabileque. Ele era de Poconé. Eu esqueci o
nome dele, chamavam ele muito de ‘gato’. Ele era baixinho, era um pouco
mais baixo que eu, mas era troncudinho, assim; tinha muita força. E eu tava
com medo. Cachorro tava acuando a onça. E ele falou: “Vai limpando
pra mim, vai roçando”. Eu era bem mais novo, e ele falava: “vai roçando
aí, meu filho, não tenha medo não, eu estou aqui firme”.E eu com a foice
cortando, e ele falava: “corta bem baixinho, bem rentinho, vai limpando
tudo”.
E a onça lá, os cachorros trabalhando ela. De vez em quando ela dava um
bufo lá, e eu com um medo danado. Eu falei “se esse bicho partir de lá...” e
ele falava pra mim: “a hora que ela vier de lá, que você que o bicho
arrancou de lá, você cai fora, deixa que eu enfrento ela aqui”. E eu fui
roçando. Ele falou: “Pode sair da frente, que agora ela vem”. Diz que a
onça tem um jeito que ela faz lá, na hora que ela tá querendo vir. E de certo
ele viu que elatava se preparando pra vir e me mandou sair dali.
E ele mandou cachorro mestre. Cachorro mestre dava aquela avançada,
assim, e corria pro lado dele. E foi a hora que ela veio em cima dele. Só que
ele firmou, assim, a zagaia nela, e quando ele empurrou, assim, um
pouquinho, ela... Parece que ela mesma se ferra, né?
Eu sei que ela deu uma gatanhada ali. Eu sei que empurrou, assim... O
bicho caiu de lombo e ele firmando aqui assim, ele deu um salto pra lá,
seguro no cabo da zagaia, deu aquele salto. Mas pegou aqui mesmo, assim,
no do pescoço, bem no sangrador. Foi uma só. O bicho esperneando ali,
não fez mais nada. De certo alcançou o coração logo, porque é ela tem uma
folha desse tamanho mais ou menos. E aquilo corta dos dois lados e tem
ponta, a zagaia. Eu falei: “eu não tento pegar na zagaia, não”.
F: Mas será que tem algum desses zagaieiros por aí ainda?
Eu acho que hoje em dia é difícil. Esse mesmo que eu assisti pegando, eu
acho que ele morreu, porque ele era bem de idade e eu era novo, eu
tava com uns trinta anos; eu já tô com setenta e três.
Entrevista 3
Seu Getúlio (Miranda, maio de 2008)
171
F: E é verdade que nos tempos antigos o pessoal matava onça na zagaia?
Matava. Meu sogro ajustou aqui na fazenda Miranda Estância, na época,
pra matar. Veio com outro caçador.Ele veio pra matar onça, aí. Ele
matou duzentos e oitenta onças aí.
F: E era só na zagaia?
Quando acuava no chão, ele pegava na zagaia. Quando subia, atirava.
F: E aonde foi que ele aprendeu?
Ele aprendeu com o sogro dele, muito tempo atrás, quando ele era solteiro
ainda. O sogro dele tinha um ditado, assim, que para casar com a filha dele
tinha que pegar uma onça na zagaia. (risos) Ele gostava da filha dele, e
teve que encarar o velho pra pegar onça na zagaia.
F: E a zagaia é uma tradição dos índios?
É uma lança com uma cruzeta, assim, e um cabo de dois metros. É, igual
flecha. A flecha e a zagaia foram invenção dos índios. Não tinha arma pra
eles matar bicho pra eles comer, às vezes porco, queixada... eles pegavam
na zagaia e na flecha.
ANEXO E –
Imagens Capítulo 3
Imagens do arquivo de Sasha Siemel; No alto, onças se alimentando de boi; Sasha enfrentando a
fera; Abaixo à esquerda Joaquim Guató; à direita fotografia da família de Siemel, do livro
Jungle Family.
Imagens Capítulo 3
Imagens do arquivo de Sasha Siemel; No alto, onças se alimentando de boi; Sasha enfrentando a
fera; Abaixo à esquerda Joaquim Guató; à direita fotografia da família de Siemel, do livro
172
Imagens do arquivo de Sasha Siemel; No alto, onças se alimentando de boi; Sasha enfrentando a
fera; Abaixo à esquerda Joaquim Guató; à direita fotografia da família de Siemel, do livro
The
173
Dezembro de 2008
Autor desconhecido
Autor desconhecido
Autor desconhecido
Autor desconhecido
Acima os restos de uma onça-pintada fotografados durante o trabalho de campo; no centro e
abaixo, cenas de caçadas tradicionais.
174
Capítulo 4 – Rede Cães
Introdução
As práticas heterogêneas que compõem a conservação da onça incluem de uma série
de maneiras o gado. Discernir a fronteira entre os aspectos ecológicos e os aspectos
sociais colocados em jogo é especialmente difícil, no caso, pela superposição entre o
ambiente selvagem e o ambiente cultivado no Pantanal. É também uma tarefa à qual não
pretendo me dedicar, por motivos que espero deixar mais claros adiante. Em todo caso,
existem outros mediadores regionais na relação entre a onça e os humanos que precisam
ser incorporados à descrição, no entanto, sem os quais tanto o conflito quanto a
conservação seriam bem mais difíceis.
Desta vez, porém, o elemento recortado é um detalhe, e é preciso aproximar a
imagem para identificá-lo. Trata-se de um cordão esticado, que amarra a perna do
bezerro a um galho de cipó. Ele é uma pequena armadilha, o único dispositivo de
captura que aparece na imagem. Como tal, ela torna visível uma série de agentes que
não aparecem na imagem. O detalhe que acrescenta uma dimensão visível a esses
agentes ocultos.
O cordão também é uma pista, um vestígio da passagem de quem preparou a
armadilha. Ela foi amarrada por alguém com a intenção de reter a onça por alguns
instantes e aumentar as chances de uma boa fotografia. O autor é Seu João, o ex-caçador
que trabalha no projeto de pesquisa para o qual a foto foi produzida (e no qual ela é um
dado) e, por isso, é o primeiro personagem que deve ser apresentado. Ele aparece
preparando o equipamento na série de fotos feitas antes do registro da onça.
A caçada com cães é referida na literatura científica em geral apenas como um
método de captura (entre outros) pelos próprios cientistas, que estão mais interessados
na descrição do que é capturado do que propriamente nos meios usados para captura.
Levando em conta a distinção tradicional entre o dentro e o fora da ciência, ou os
elementos científicos e não científicos que compõem o estudo e a conservação da vida
selvagem, os cães são representados como um elemento externo aplicado com uma
determinada finalidade. O trabalho dos vaqueiros com o gado aparece, nesse mesmo
175
registro, como um pano de fundo para essa outra atividade, que é o manejo e a
conservação da natureza.
Neste capítulo, pressuponho – como fizeram Henrique e Seu João a partir da
fotografia que a onça seja a mesma que foi perseguida meses antes, pouco antes da
minha chegada, e que matou dois cães antes de escapar. Sigo então a trajetória do grupo
de cães que participou da tentativa fracassada de captura para depois me reportar à
descrição de Tonho do mesmo evento. Essa onça – um macho identificado como Mirão
– foi capturada cerca de um mês e meio antes de ser fotografada, entre agosto e
setembro de 2008. Ela havia sido perseguida antes, sem sucesso, e foi finalmente
anestesiada para a colocação da coleira de rádio e a obtenção de amostras (sangue,
sêmen, etc.) com a participação de Tonho da Onça, um onceiro profissional contratado
pelo Projeto juntamente com seu grupo de cães.
4.1. A história do cachorro Gigante
O marco inaugural dos modernos estudos científicos sobre a onça-pintada em seu
habitat natural é o trabalho do naturalista norte americano George Schaller. Ao
descrever sua chegada à área de estudo, Schaller inscreve-se na tradição da história
natural norte americana, citando Roosevelt para apontar o desconhecimento científico
sobre a vida selvagem local:
“Este mosaico de florestas, pântanos, lagos e lamaçais abriga uma das
grandes concentrações de vida selvagem na América do Sul. Depois de uma
visita à região em 1912, Theodore Roosevelt escreveu, ‘Trata-se
literalmente de um lugar ideal onde um naturalista pesquisador poderia
passar seis meses ou um ano.’ Agora, sessenta e quatro anos depois, eu
estive no Pantanal na esperança não de estudar sua vida selvagem mas
também de incentivar o governo brasileiro a criar um parque nacional ali”.
(2007 [1980]: 67)
57
57
This mosaic of forests, marshes, lakes, and sloughs harbors one of the great wildlife concentrations in
South America. After a visit to the area in 1912, Theodore Roosevelt wrote, “It is literally an ideal place
in which a field naturalist could spend six months or a year.” Now, sixty-four years later, I was in the
Pantanal hoping not only to study its wildlife but also to encourage the Brazilian government to establish
a national park there. (2007 [1980]: 67)
176
O projeto era patrocinado pela New York Zoological Society (atual Wildlife
Conservation Society), em parceria com o governo brasileiro, e foi iniciado na Fazenda
Acurizal, norte do Pantanal, em 1977. O pesquisador havia realizado estudos de
campo com leões, leopardos e tigres no velho mundo, e trazia para o Brasil a rádio-
telemetria, a técnica por excelência da moderna biologia da conservação (field biology),
sobre a qual ele afirma:
“Para obter detalhes sobre a vida privada do jaguar – suas rotinas diárias,
freqüência de matança e tipos de contato social eu precisava usar
radiotelemetria. Pegar um jaguar e colocar uma coleira em seu pescoço
com um rádio transmissor devia ser fácil, eu pensei”. (2007:68)
58
Mas o pesquisador, que trazia na bagagem experiências anteriores com outros
grandes felinos, incluindo leões, tigres e leopardos, é surpreendido pela dificuldade da
empreitada:
“Não só os jaguares me enganavam, como pareciam realmente zombar dos
meus esforços: uma fêmea passou vagarosamente pelas nossas redes
enquanto dormíamos, e um macho depositou sua presa uma capivara não
comida – a cem metros do acampamento”.
59
A qualidade elusiva das onças o obriga então a recorrer aos métodos locais:
“Uma vez que minhas tentativas para capturer um jaguar tinham falhado,
eu recorri aos métodos tradicionais brasileiros de caçar os felinos”. (:69)
60
O cientista é forçado então a recorrer então um caçador local, sobre o qual comenta:
“Richard Mason, um expatriado britânico, possui a melhor matilha de cães
caçadores do oeste do Brasil, onde ele acompanhava clientes estrangeiros
em caçadas até que uma lei federal de 1967 protegendo o jaguar afetou o
seu negócio. Ele concordou em ajudar e chegou em Acurizal com cinco
58
To obtain details of the jaguar’s private life its patterns of daily movement, frequency of killing, and
kinds of social contact I needed to use radiotelemetry. Catching a jaguar and collaring it with a radio
transmitter should be easy, I reasoned. (2007: 68)
59
Not only the jaguars elude me, they actually seemed to taunt my efforts: a female ambled past our
hammocks as we slept, and a male deposited his kill an uneaten capybara three hundred feet from
camp.
60
Since my attempts to snare a jaguar had failed, I turned to the traditional Brazilian methods of hunting
the cats. (: 69)
177
cachorros e seu mateiro, Manuel Dantas, que como caçador e guia tinha
passado vinte e cinco anos no Pantanal”. (:69-70)
61
Richard Mason vem a ser sócio de Tony Almeida, autor que é a principal referência
para a posição do caçador-naturalista traçada na última seção, e que publicou seu livro
em 1976, um ano antes da chegada de Schaller à região. Tanto Mason o “expatriate
Britisher” quanto “his tracker” Manuel Dantas são personagens de Jaguar Hunting in
the Mato-Grosso. No entanto, o principal personagem da captura narrada por Schaller é
um dos cachorros:
“O cão líder, Gigante, um cão mestiço amarelo, castrado, ia na frente,
examinando a floresta em busca de rastos frescos de jaguar. Os outros cães
ganiam e se agitavam em suas guias enquanto seguíamos um latido
ocasional de Gigante. Dantas ia na frente, abrindo uma picada com golpes
curtos de seu facão. Hup, brrriii,” Richard gritava de vez em quando,
incentivando Gigante a prosseguir e deixando que ele soubesse que ainda
estávamos com ele”. (2007: 70)
62
O pesquisador relata em primeira pessoa a experiência da perseguição à onça,
liderada por Gigante. Coincidentemente, o mesmo cão aparece em diversas caçadas
narradas por Almeida, e sua trajetória pode ser rastreada de forma surpreendente entre
os dois autores. No trecho a seguir, Almeida descreve como o cachorro foi incorporado
ao seu grupo de onceiros:
“Foi aqui que encontramos Gigante, um cão mestiço castrado que
pertencia a um vaqueiro local que nos acompanhou como guia durante esta
caçada. Gigante nos seguir de perto durante os primeiro três dias, perto
demais, de fato, sem demonstrar nenhum interesse em caçar. Um dia nós
soltamos a matilha num rasto de puma, e todos exceto o mestiço estavam
61
Richard Mason, an expatriate Britisher, owns the best pack of hunting dogs in western Brazil, where he
took forein clients on hunting trios until a 1967 federal law protecting jaguar affected his business. He
agreed to help and arrived at Acurizal with five dogs and his tracker, Manuel Dantas, who as hunter and
guide had spent twenty-five years in the Pantanal. (: 69-70)
62
The lead dog, Gigante, a castrated yellow mongrel, roamed ahead, quartering the forest in search of
fresh jaguar spoor. The other dogs strained and whimpered on their lashes as we followed Gigante’s
occasional yip. Dantas went first, cutting a trail with short strokes of his machete. “Hup, brriiii”,
Richard called at intervals, urging Gigante on and letting him know that we were still with him. (2007:
70)
178
latindo a cerca de duzentos metros à nossa direita. Então começamos a
ouvir um latido fraco à esquerda e olhando melhor vimos um puma em cima
de uma árvore, com Gigante parado sozinho embaixo. Depois disso, é
claro, nós o olhamos com muito respeito, e à medida que ele ia ficando
cada vez melhor durante esta caçada, na qual mais três felinos foram
mortos, nós mais ou menos obrigamos o vaqueiro a vendê-lo para nós.
Desde então, o latido deste eunuco magro tem sido sempre um sinal seguro
de rasto fresco de felino”. (1976: 117)
63
O livro de Almeida não é citado por Schaller no texto, datado de 1980, e nem na
bibliografia da coletânea onde o artigo foi publicado, de 2007. O trecho acima, no
entanto, evidencia que o cachorro era considerado pelo caçador como um de seus
principais mestres, o que é corroborado pela narrativa do pesquisador:
“Um dia nós estávamos na região mais remota de Acurizal, um desfiladeiro
sombrio, coberto de mata. Gigante estava na frente – seus latidos nos
diziam que ele estava interessado em alguma trilha recente, mas não
incrivelmente excitado enquanto nós nos demorávamos no leito seco de
um riacho, sem saber onde procurer em seguida. De repente, Gigante latiu
várias vezes,como se estivesse sendo atacado. Depois, silêncio”.(:70)
64
O narrador descreve a soltura do restante da matilha, até então presa, e o encontro da
onça acuada:
“Nós corremos atrás dos cachorros, esbarrando em galhos de palmeira e
caindo em buracos, até chegar onde eles estavam reunidos em volta de uma
63
It was here that we found Gigante, a castrated mongrel belonging to a local vaqueiro who
accompanied us as a guide during this hunt. Gigante followed us closely for the first three days, far to
closely, in fact, showing no interest whatsoever in hunting. One day we set the pack loose on a puma
track, and all except the mongrel were barking some two hundred meters to our right. Then we began to
hear a thin yapping to our left and looking further saw a puma up a tree, with only Gigante underneath.
After this, of course, we regarded him with a great deal of respect, and as he got better and better
throughout this hunt, during which three more cats were killed, we eventually more or less forced the
vaqueiro to sell him to us. Since then this thin eunuch’s yap has always been a sure sign of fresh cat
spoor.
64
One day we were in Acurizal’s most remote area, a somber, wooded gorge. Gigante was ahead his
barks telling us that he was interested in, but not unduly excited by, some scent trail – while we loitered in
the dry bed of a mountain stream, uncertain of where to search next. Suddenly Gigante yelped repeatedly,
as if being beaten. Then, silence.
179
árvore inclinada sobre o leito do rio. Excitados, os cachorros pulavam
sobre o tronco e mordiam as lianas penduradas nele”. (Idem)
65
A passagem até este momento se inscreve perfeitamente na tradição dos caçadores-
naturalistas. Somente no encontro com a onça é que o contraste com a tradição se
oferece:
“Deitado num galho a cerca de sete metros acima do caos estava uma
onça-pintada, uma fêmea jovem, estranhamente calma enquanto olhava
inexpressivamente para nós e os cachorros histéricos. “Finalmente nos
encontramos,” eu disse para mim mesmo. Enquanto eu enchia uma seringa
com uma droga para dormir, Dantas tirou os cachorros dali e os amarrou
numa árvore a algumas dezenas de metros de distância”. (Ibidem)
66
Desta vez, o “caçador” não atira. Ele prepara uma seringa com anestésico. O relato
prossegue, descrevendo a espera pelo efeito da droga, e o rastreamento da onça
adormecida cem metros adiante do local onde foi atingida. Em seguida o autor comenta:
“Para recompensar Gigante por seu excelente trabalho, nós o levamos até
o felino. Embora as garras do felino tivessem ferido o corpo dele poucos
minutos antes, ele olhou para o corpo imóvel dele sem expressão. Nós não
sabíamos na hora que esta seria a última caçada do cão, que sua vida
estava se esvaindo lentamente”. (: 71)
67
O comentário casual é o obituário de Gigante, o que torna ainda mais surpreendente
seu papel ao conectar as duas narrativas. Este não é certamente o primeiro registro
literário de um mestre morto pela onça, e a tradição de Almeida, Sasha Siemel e Pereira
da Cunha é farta neste tipo de acontecimento. Neste caso, porém, a história do cachorro
é o gran finale que aponta para um novo paradigma: ele é quem morre na caçada. A
65
We hurried after the dogs, crashing through palm thickets and plunging over deadfalls to where they
crowded around a tree inclined over a streambed. Seething with excitement, the dogs leaped against the
trunk and bit at the lianas hanging from it.
66
Lying on a branch twenty-five feet above the chaos was a jaguar, a young female, strangely calm as she
gazed expressionlessly at us and the frenzied dogs. “Finally we meet,” I said to myself. While I loaded a
syringe with a sleep-indulcing drug, Dantas removed the dogs and tied them to a tree a few hundred feet
away. (: 70)
67
To reward Gigante for his excellent work, we led him to the cat. Even though her agate claws had only
minutes earlier sliced into his body, he looked at her quiet form without expression. We did not know then
that this was the dog’s last hunt, that his life’s blood was slowly draining away within him.
180
onça não sobrevive, como passa a ser rastreada por outros agentes que não os cães
onceiros.
No final da narrativa, Schaller descreve o estranhamento do caçador nativo diante
daquela nova modalidade de caça, e em seguida registra os dados tomados na captura:
“‘Em outras caçadas, o felino estaria morto muito tempo. Eu estaria
tirando sua pele agora’, Dantas comentou enquanto nós nos preparávamos
para registrar seus dados vitais. Ela pesou setenta quilos e mediu quase
dois metros da ponta do nariz à ponta do rabo um animal pequeno pelos
padrões do Pantanal, onde jaguares são maiores do que em qualquer outro
lugar na América do Sul. Richard, que pesa cuidadosamente troféus, me
disse que uma fêmea adulta pesa em média noventa quilos e que seu macho
mais pesado chegou a cento e vinte quilos. (...) Peter e eu colocamos o
colar de rádio”. (:71)
68
Os dados da pesagem dos troféus de caça, atribuídos ao trabalho cuidadoso de
Richard Mason, são referendados com exatidão por Almeida (1976: 62-63). O texto de
Schaller narra duas caçadas de onça: A primeira, descrita acima, registra a captura até
então inédita de um exemplar da espécie para a colocação de um colar de rádio. A
segunda se refere a uma segunda fêmea identificada pelo pesquisador, abatida a mando
do capataz da fazenda em retaliação ao projeto de conservação das onças. No trecho
abaixo ele descreve o encontro da pele do animal:
“A nosso pedido, um funcionário do serviço florestal visitou Acurizal para
investigar a matança de onças. Ele também confiscou a pele de onça-
pintada que Aníbal tinha escondido na casa dele. Agora, pela primeira vez
eu o vejo o jovem animal que me enganou em vida. A pele com sua triste
beleza, seus olhos vazios, seu buraco de bala eu não queria guardar esta
lembrança”.
69
(: 76-77)
68
Tradução minha: In other hunts the cat would be dead long ago. I would be skinning it now”,
commented Dantas as we prepared to record her vital statistics. She tipped the scales at 133 pounds and
measured sixty-six inches from tip of nose to tip of tail a small animal by Pantanal standards, where
jaguars grow larger than anywhere else in South Americ; a. Richard, who carefully weighs trophies, told
me that the average adult female is about 165 pounds and that his heaviest male reached 262 pounds.
Peter and I attached the radio collar.
69
At our request, a forest department official visited Acurizal to investigate the jaguar killings. He also
confiscated the jaguar hide that Anibal had secreted in his home. Now, for the first time I met her the
young animal who in life eluded me. The hide with its sorrowing beauty, its hollow eyes, its bullet hole – I
did not want this memory. (76-77)
181
Somada a essa outra, a onça rastreada por Gigante oferece um contraponto para a
imagem da onça formulada por Almeida. Big Richard, o macho dominante descrito
pelo caçador, numa excelente síntese da tradição a qual ele pertence, é o exemplar ideal
preservado através da taxonomia no Museu de História Natural. A onça capturada por
Schaller, em contraste, é uma jovem fêmea, ameaçada pelos criadores de gado e pelos
caçadores de troféus. Ela é idealmente frágil, e sua sobrevivência, equipada com o novo
dispositivo de rastreamento, é o que permite a escrita de uma nova história natural.
4.2. O rastro dos cães
A história desse grupo de cães aparece pela primeira vez no material etnográfico
produzido para este trabalho em outubro de 2007. Na época, eles estavam sendo
comprados por uma instituição conservacionista norte americana para um projeto de
pesquisa na região do Porto Jofre, norte do Pantanal, e seriam cedidos provisoriamente
ao Projeto Onça Pantaneira alguns meses depois. Antes da viagem à região norte, eu
havia acabado de visitar este projeto na São Bento pela primeira vez, com a intenção de
negociar um período de trabalho de campo na fazenda com o biólogo Fernando
Azevedo, responsável pela pesquisa. O contato com o biólogo foi feito através da ONG
à qual ele é associado, a Pró-Carnívoros, uma organização sediada no interior de São
Paulo.
Da fazenda, segui viagem até Cuiabá para encontrar outro pesquisador associado à
mesma instituição, Ricardo Boulhosa – especialista na relação entre a onça e o gado que
havia realizado grande parte de sua pesquisa na região do Porto Jofre, Pantanal norte.
Na época, o biólogo trabalhava para a WCS (World Conservation Society) em um
grande levantamento sobre o tema, entrevistando fazendeiros de todo o Pantanal. Na
época, ele intermediava também a implantação do novo projeto de pesquisa da
Fundação Panthera, uma ONG internacional voltada para a conservação de grandes
felinos que havia acabado de comprar mais de 100 mil hectares na região para a
conservação do hábitat pantaneiro do jaguar. Entre muitos outros assuntos, o
desenvolvimento do projeto envolvia a compra de um grupo de es que pertenciam ao
administrador contratado para gerenciá-lo, um antigo caçador de onças.
No dia 23 de outubro de 2007, encontrei então com Ricardo Boulhosa no aeroporto
de Cuiabá, e de seguimos diretamente para Poconé. No carro, ele foi me falando
sobre o projeto no qual estava trabalhando, e sobre o novo programa financiado pela
182
Fundação Panthera. A fundação, criada por um milionário americano, é a maior
financiadora de projetos de preservação de grandes felinos no mundo todo, incluindo
uma parceria com a WCS (World Conservation Society) para a preservação da onça-
pintada.
A implantação do projeto envolveu a criação de uma empresa em São Paulo, e o
programa incluía, além do estudo das onças, a pecuária, um projeto de capacitação de
peões e a criação de escolas locais. De acordo o pesquisador, a conservação da natureza
no Pantanal passa necessariamente pela pecuária, que é a principal atividade econômica
da região, sendo 96% dela composta de propriedades particulares. Ele argumentou que a
onça em geral é vista como uma peste pelos pantaneiros tradicionais e que um peão não
perde a oportunidade de atirar quando encontra uma. Contou que às vezes é recebido
com desconfiança pelos proprietários, por estar trabalhando com a preservação do
animal.
Boulhosa mencionou o turismo de observação de onça como parte de uma mudança
regional, afirmando que pousadas de pesca começavam a ficar abertas o ano todo para
receber pessoas que querem ver de perto as onças. Segundo ele, é uma atividade que
ainda precisava ser regulamentada, mas Poconé seria o melhor lugar para observação
dos felinos.
Chegando à cidade, fomos ao encontro do Sr. Joaquim, o administrador da área
comprada pela Fundação Panthera eproprietário dos cães que estavam sendo
negociados. A ONG havia recém adquirido algumas fazendas para formar uma área
voltada especificamente para o estudo e a conservação da onça-pintada. Transcrevo
abaixo a entrevista feita na ocasião:
F. Como é que o senhor começou a trabalhar com fazenda?
Meus pais tinham propriedade tem até hoje e a gente desde criança já
tinha essa vocação de trabalhar com fazenda. Fomos estudar fora [em
Campinas], mas chegou um tempo em que resolvemos voltar para a origem,
para trabalhar na fazenda, auxiliando os pais. Depois fomos convidados a
trabalhar para outras pessoas. Eu fui trabalhar para a Camargo Correia,
durante doze anos, e agora para essa nova fase, do trabalho, que é com a
Agropecuária PO [A empresa que administra o projeto na região].
F. E desde cedo o senhor começou a mexer com onça também?
183
Isso daí era uma tradição do Pantaneiro. Desde criança você acompanhava
os pais, ou aqueles empregados mais velhos da fazenda; estava sempre
mexendo com onça. Na época era liberado, você matava onça.
E naquela época era assim: você abatia jacaré, capivara, lontra, e vendia
era meio contrabando, porque vendia para o Paraguai mas com aquele
dinheiro você comprava sal, comprava remédio; o sustento da pecuária era
basicamente pele de animais. Mas aí, depois, começou a ter invasão. Em
vez de ser só dos proprietários, começaram a invadir as propriedades
pessoas da Bolívia, do Paraguai, e os brasileiros mesmo que invadiam as
áreas. E nessa invasão, além de matar o jacaré e a capivara, matavam o
gado também.
F. Mas como é que conseguiram isso? Foi o governo brasileiro?
Ah foi. Na época era o IBDF que veio para o Pantanal. Porque antes não
tinha órgão do governo fiscalizando o Pantanal. Não existia. que veio o
IBDF, que fez a base de pesquisa [em 1982]. Então, dessa fase para que
foi intensificando, para não ter mais matança. Porque antes disso não tinha
órgão nenhum que fiscalizava.
F. E o senhor acha que daquela época pra esses bichos jacaré, capivara
aumentaram de quantidade?
Aumentou muito. Porque com essas matanças clandestinas eles não tinham
tamanho, abatia o grande e o pequeno. Eles classificavam em primeira,
segunda e terceira classe. Então eles em vez de abater só o de primeira, que
era o couro de tamanho grande, adulto, não. Eles abatiam até o de terceira,
que era o couro pequeno, mas que era vendável. Então, não tinha
classificação. Abatia tudo.
F. Mas primeiro era um comércio menor...
Era local, pouca coisa. Porque o pecuarista era assim, ele tinha
consciência do que estava fazendo. quando chegou a invasão que
começou a matança desordenada.
F: E a caçada de onça, o senhor aprendeu desde criança na fazenda?
184
Todas as fazendas criavam cachorro pra caçada, e o forte era caçar com
cachorro. Então, todas as fazendas tinham cachorro e tinham aquelas
pessoas que gostavam de caçar. Além do patrão gostar, o empregado
gostava de acompanhar o patrão nas caçadas.
F: E depois o senhor foi tendo seus próprios cachorros?
Isso. A gente ia adquirindo. Como era uma família pantaneira, então um
auxiliava o outro. Quando você ficava com pouco cachorro, trocava com
um, com outro, pra ninguém ficar sem cachorro bom na fazenda, de caçar
onça.
F: Esses cachorros vinham de onde? Era daqui mesmo da região ou era alguma raça
trazida de fora?
É, já tinha, e sempre as pessoas que tinha condições de trazer uma raça pra
melhorá a raça dos nossos, essas pessoas trazia né... E ia tirando...
Cruzava com um, com outro, pra adquirir os mesmos cachorros bons.
F: Tem alguma raça que seja melhor ou a ideal?
A gente fala o americano
. É o cachorro uivador.
F: E tem que ter conhecimento, para ir atrás da onça?
É o que eu falo: tem que gostar e ter o conhecimento. E outra: você não ia
viver de caçada de onça. Sempre você via uma onça que está prejudicando,
matando bezerro no lugar... Porque se você for viver a vida inteira
caçando, sua atividade seria caçador e não pecuarista.
F: Mas tem pessoas que só caçam?
Existia na época. Pessoas que viviam só de caça.
F: E o senhor tem cachorros que vão para o projeto?
É porque eu sempre criei, e tinha uma quantidade grande. Esses cachorros
são meus. E esses cachorro, quando o Tom [o presidente da Fundação
Panthera] me contratou, ele falou que uma das coisas que ele gostaria é
que eu não desse os cachorros, não vendesse pra ninguém, porque nós
íamos aproveitar esses cachorros para o projeto, que é captura, colocação
de colar, fazer estudo. Então as onças vão estar ligadas ao projeto.
185
Ele explicou que havia cerca de dezoito cães que estavam sendo negociados com a
WCS para serem usados nas capturas, sendo cinco deles mestres. Um cachorro desses,
de acordo com ele, chegava a valer mais do que cinco mil reais. Mais tarde, Boulhosa
comentou que quase todo mundo é ou foi caçador de onça na região.
Só fui encontrar de fato o grupo de cães que pertencia a Seu Joaquim no ano
seguinte, quando retornei para o trabalho de campo na São Bento, em março de 2008.
Na época, os cães haviam acabado de ser trazidos de Poconé para as capturas do Projeto
Onça Pantaneira. Durante a minha primeira semana na fazenda, os cães estavam sendo
tratados, e alguns deles estavam com problemas de saíde, Seu João dedicava-se como
ninguém aos cachorros, e Henrique apelidou-o de Dr. Elias. Os dois tratavam
especialmente de um cachorro que estava muito magro e que chegara de Miranda depois
dos outros, e desconfiavam que ele estava com uma fratura causada por ter sido
espancado. O canil ficava improvisado num pequeno galpão de provisões da fazenda e
uma das fêmeas havia recém parido uma ninhada. Entrevistei Seu João no local
enquanto ele dava banho nos cachorros; transcrevo abaixo a gravação:
F: Qual é a raça desse cachorro?
Esse aqui é o americano. é cruzado um pouco com o cachorro daqui, o
vira-lata, o pelo duro mesmo. Então, ele não é um cachorro puro. Ele é
cruzado. Porque ele é mais pra velocidade. Cachorro mais apertador. Não
são cachorros grandes, são cachorros pequenos, de bom tamanho. Porque
o cachorro grande, ele atrapalha muito no sujo. E aí, é mais fácil pra onça
pegar ele.
F: Cachorro grande não é bom não?
Não, cachorro muito grande no mato não é muito bom, não. Não é bom pro
caso dela, porque é mais fácil pra ela pegar e machucar o cachorro.
F: E esses pequenos [filhotes que estão no canil] vão junto?
Não, por enquanto não. A gente vai sair com eles depois de um ano.
Depois de um ano de idade aí que começa já a tirar eles pra treinar eles.
F: E o senhor faz algum tipo de treino? Como é que é?
186
Eles vão treinando com o próprio mestre, porque o mestre, ele não vai
correr outro bicho, então você já solta na hora certa que o mestre vai
trabalhando na batida, aí você solta os novos atrás, pra poder encaminhar.
F: Mas como é que faz para os que estão começando acostumarem com o cheiro
dela? Eles indo junto com o mestre já aprendem?
Não, porque onde ela passa, o cheiro dela vai ficar nas folhas. É um tipo de
um vício. No momento que eles aprendema sentir aquele cheiro, eles vão
viciar. É um vício que ele tem. Então, por isso é que quando ele vai ficando
mestre, você pode levar. O mestre vai solto, e o que é que acontece: quando
ele chega,não precisa achar o rastro: se ele sentir o cheiro na folha, ele
dá o sinal.
Esse é o cachorro mestre, que você chega e ele vai dar sinal, então você
precisa procurar a batida. Na hora que ele latir, você sabe que é a onça que
passou ali, você não precisa ficar no chão olhando. Na caçada é assim. A
não ser quando você acha a carcaça de algum bicho, fresca. você vai
e vai soltar o mestre e ele vai procurar o lugar aonde ela saiu. Ela vem,
come, e sai pra algum lugar, e o mestre vai achar a saída. Depois que ele
acha a saída, vosolta o resto atrás. vão embora, não param mais. Só
quando alcançarem ela.
F: E os outros vão atrás do mestre?
Os outros vão atrás, porque eles tão acostumados juntos. Os cachorros de
caça têm que ficar juntos. Então eles formam a equipe deles e quando um
late, o outro atende o mestre. Então, quando o mestre late, ele sabe que é
alguma coisa. Mesmo que ele está preso na corda aqui, se o mestre deu
sinal, ele já sabe, já fica louco pra ir.
F: Eles fazem uma espécie de uma matilha...E quando a onça sobe na árvore, a
caçada é mais tranqüila?
você chega tranqüilo, ela está subida, você anestesiae pronto, o que é
que vai acontecer? Quer dizer: subiu, o veterinário preparou o dardo na
hora ali, está com tudo preparado. Agora, no chão, pro nosso trabalho
aí, tem que pensar bem, pra ver onde que ela está. Porque é difícil
anestesiar no chão. É arriscado. Então, não é uma coisa boa de fazer um
187
trabalho no chão com ela. A gente evita. É preferível que ela embora,
ou, se for na parte da manhã, você tem como trabalhar mais tempo com ela.
F: E não é todo o cachorro que vira mestre, né?
Depende um pouco. O cachorro, ele tem uma tendência já pra onça.Quando
ele vai trabalhar a onça, é uma raça que às vezes não trabalho pra
você ensinar. Ele nasce pronto. Vai uma vez, duas, e ele vai ficando
mestre. Têm outros que demoram mais, tem uma raça de americano que ele
é mais demorado. Mas tem uma raça que eles são próprios pra isso
mesmo.
F: Mas qual a melhor raça é o americano?
Geralmente eles tão cruzando o ‘bludi’ [bloodhound], né, que é uma raça
mais pra rastrear, com essa raça que a gente tem aqui. É um cachorro mais
lento, esse bludi, mais rastreador. Não tem velocidade. Você cruza com essa
raça daqui, ele sai um cachorro bom de faro e bom pra apertar o bicho
também.
F: E acontece de perder cachorro, Seu João?
Acontece de perder sim. Acuação no chão às vezes machuca, outras vezes
mata, perde sim. Por isso que a gente trabalha com bastante cachorro. Às
vezes com um cachorro até você consegue pegar, dois cachorros, mas para
o nosso trabalho, você tem que trabalhar com bastante.Trabalha com dez,
doze cachorros numa acuação, e, se ela pegar um, dois, nós temos mais
para insistir nela.
Alguns dias depois da entrevista, Seu João comentou que aquela não era uma época
boa para caçar, a quaresma. E indaguei-o a esse respeito. Ele atribuía os problemas
recentes ocorridos nas capturas a esse período do ano, e explicou que é o costume dos
antigos não caçar, nem comer carne vermelha nessa época. Afirmou que, se alguém sair
para caçar, nada certo. Seu João considerava que eles não deveriam ter saído com os
cachorros. Complementou ainda que na sexta-feira santa os mais velhos nem acendem
fogo, e o pessoal prepara toda a comida daquele dia na véspera, e concluiu:
188
Quem é da cidade pode achar que é superstição, mas a verdade é essa. Não
falo nada, porque o Fernando é muito católico, mas nessas coisas não
acredita.
As evidências apresentadas por ele de que não se devia caçar na quaresma: as duas
armas de ar-comprimido que seriam usadas para anestesiar as onças deram problema ao
mesmo tempo. Uma delas disparou acidentalmente no laboratório, quebrando o vidro da
janela. Eles conseguiram encontrar uma onça e ela chegou a estar acuada, mas os
cachorros eram inexperientes e não conseguiram segurar o bicho. Os cães que Henrique
foi buscar em Poconé saíram com atraso de lá, por conta de dificuldades na negociação
com o caçador que estava vendendo os animais [para a Fundação Panthera, cujo vínculo
é com a Sandra; um acordo entre Fernando e Sandra para a utilização dos cães].
Complementou que ia ter sido até pior eles conseguirem chegar na onça, porque
estavam somente com a pistola, que também deu problema.
Em entrevista gravada feita na época, Seu João fala sobre sua experiência pessoal, e
relata como começou a trabalhar com o projeto de preservação das onças, implantado na
Fazenda San Francisco na época em que trabalhava lá:
F: E quando foi a primeira vez que você foi caçar para um projeto de pesquisa?
Quando eu comecei, eu tinha cachorro e não caçava mais, mas eu tinha
cachorro e tinha que desfazer porque a fazenda que eu trabalhava não
queria mais que eu tivesse cachorro. E na época o Fernando precisou de
um caçador em Foz do Iguaçu, e foi a primeira vez que eu saí para caçar
para um projeto. Ele me convidou pra ir, mesmo trabalhando na San
Francisco. Já tava trabalhando como guia, mas eu tinha os cachorros.
Então na época eram oito cachorros que eu tinha e eram uns cachorros
muito bons. E para não me desfazer, eu comecei. E depois, como o
Fernando veio para a San Francisco, eu passei a trabalhar diretamente
com ele, só pra capturar.
Em seguida, pergunto sobre a percepção dele, como caçador e agora como
integrante do projeto, sobre a relação dos moradores da região com as onças e com o
projeto de preservação:
F: E nas fazendas aqui do Pantanal, o pessoal fala muito das onças, que dão
prejuízo? Fala mais de qual tipo de onça?
189
Sempre a onça-pintada. A mais falada, em qualquer lugar que você vai, é
ela mesma, não tem jeito, sabe. O pessoal sempre tem raiva dela. Em
algumas fazendas realmente ela ataca mesmo, né? Em outro lugar não, em
outro lugar menos. Mas tem fazenda que o pessoal fala: não, esse bicho não
adianta, não tem porque ter esse tipo de projeto, esse bicho tem que acabar!
É que o pessoal não sabe o que é preservar... Porque realmente a onça é
dali mesmo, a pessoa que entra no lugar dela, mas eles querem tirar.
Normalmente quando você tira uma, aparece outra. Então, no lugar que
tem onça nunca fica sem. Isso aí é uma coisa que eu sempre vi. Podia matar
uma aqui, outra ali, mas depois de um mês, dois meses, tem outra no
lugar. Sempre vai repondo. O pessoal muitas vezes fala que têm muita onça,
mas não é. Às vezes tem uma mãe com dois filhotes ou três, que estão ali
juntos; ou um macho e uma fêmea com filhotes, e o pessoal vê muita batidae
fala ‘não, aqui tem demais de onça, tem muita onça’. Mas não é isso. O
pessoal não tem o conhecimento.
F: E agora no projeto, como é que o senhor está vendo a recepção disso pelo pessoal
do pantanal? O pessoal que trabalha com gado, que está nas fazendas que não tem
turismo, como é que recebe a idéia de preservar a onça?
É um pouco difícil. Hoje, na região do Pantanal, só preserva quem trabalha
com turismo. É mais é quem trabalha com turismo mesmo. Às vezes ela
apanha algum gado, assim, mas não é muito, então, o fazendeiro não liga
muito. Mas tem uns que vai atrás mesmo.
F: E tem onça que fica comendo só o gado?
Eu acho sim. Às vezes no território de um macho, acontecedele ir no
gado,só no gado mesmo. E à noite, o gado geralmente fica berrando, então
o bicho vem vindo e ele sabe aonde que tá. Então, ele vai passar por outros
bichos no meio da noite, mas não vai atacar. Ele vai mesmo é pegar o gado.
Então eu acho que ele acaba viciando mesmo, o gado é uma presa mais
fácil para ele.
Mais tarde, fui com Seu João até a casa dele, onde me mostrou fotos de onças
capturadas e acuadas pelos cães. Fotos dele com Fernando na San Francisco e com os
biólogos da Caiman, além de outras fazendas. Mostrou-me também a ponta de uma
190
zagaia, que tinha em casa: uma lâmina de cerca de 30 cm com um apêndice horizontal
na base, que funciona para impedir que a onça chegue até o caçador quando é
atravessada pela lança. Sobre a fotografia de uma onça abatida na região do Rio Negro,
quando ainda era caçador, Seu João comenta que atirou quando ela avançou no filho da
proprietária, que estava montado no cavalo. Ele trabalhava na época na San Francisco,
antes da fazenda mexer com turismo, e era responsável pela eliminação das onças na
propriedade, mas o patrão o liberava o caçador para matar onças em outras fazendas da
região.
4.3. Onças em fuga
No dia 16 de abril de 2008, voltei à Fazenda São Bento com o objetivo acompanhar
a fase de capturas do projeto. Henrique e Rica, dois de meus amigos biólogos, foram até
o Buraco das Piranhas no carro do projeto para me buscar. Perguntei a eles como estava
indo o trabalho, e me contaram que haviam chegado perto de pegar uma onça na última
tentativa, no dia anterior, mas que ela tinha escapado. A onça disseram chegou a ser
acuada seis vezes, mas não subiu nenhuma vez. O único que a viu foi Seu João, quando
estava brigando com os cachorros. O macharrão tinha matado dois cachorros, além de
ferir mais dois. Cheguei à fazenda, no meio da tarde, e fui apresentado a Cyntia e
Yvens, dois veterinários que participavam das capturas.
No dia seguinte, saí para o campo com o grupo, às 4 e meia da manhã. Fomos em
dois carros. No primeiro, foram Henrique, Yves e Seu João, com os cachorros na
caçamba, em busca de batidas frescas. No segundo, fomos eu, Rica, Cyntia e Fernando,
para checar as armadilhas. As armadilhas eram feitas de grades de metal e utilizavam
um sistema de cabo e roldana. Um porco pequeno ficava preso em uma gaiola numa das
extremidades, e era alimentado todos os dias pelos pesquisadores. Se a onça entrasse
para pegá-lo, ela precisaria passar por um pedaço de metal preso a um cabo, que
atravessava a roldana suspensa e segurava a porta da armadilha.
Não encontrando nada nas armadilhas, começamos então a buscar rastros de onça
pelas estradas que cortam a fazenda. Depois de algumas horas, Fernando encontrou
alguns rastros que identificou como sendo de onça-parda, numa estrada de areia, e
chamou Seu João e Henrique como os cães. Valente o cão mestre foi solto, mas se
191
mostrou completamente desinteressado. Circulou pela estrada e pelo seu entorno sem
parecer captar nenhum tipo de rastro.
Depois disso, circulamos pelas estradas de areia da fazenda, procurando rastros de
onça. Nada. Muitos rastros de anta, capivara, ema, cachorro-do-mato; de onça, nada.
Encontramos com o capataz novo da fazenda Fátima, Seu Duarte. Ele e outro capataz
estavam cortando árvores na beira da estrada. O capataz usava camisa aberta exibindo a
barriga, chapéu, e um 38 na cintura. Foi bastante simpático na conversa com Fernando,
e falou que tinha visto rastros recentes em uma área do outro lado do Rio Abobral,
inacessível de carro. Ele e o outro peão repetiram mais de uma vez que essa onça mora
ali, num grande capão, em um lugar chamado Cerradinho.
No final, quase voltando, Rica pediu para parar o carro, mas era um rastro de um
cachorro grande. Fernando brincou com ele, dizendo que ele era macaco velho para
se enganar com isso. O cachorro Valente seguia na caçamba do nosso carro, e o biólogo
comentou quantas coisas esse cão não deve ter visto. Desapontamento geral. Nem
sinal de onça. Para Seu João, as onças se afastaram porque o gado foi retirado da
fazenda: “Elas vão aonde está o gado” disse. Perguntei a ele sobre os cachorros que
foram mortos. Ele lamentou, dizendo que o Piloto ia ser um bom cão, mas era
inexperiente. “A onça acuou em uma moita”, contou, “e ele quis partir para cima dela,
para morder. Aí não teve jeito, ela mordeu no pescoço e na cabeça, puxou para a água”.
Fernando contou uma história interessante quando estávamos chegando na fazenda,
sobre um grupo de biólogos que estava fazendo uma pesquisa sobre cegonhas (não se
lembrava aonde). Havia uma comunidade de pescadores na região, que eles ignoraram,
enquanto tentavam capturar as cegonhas usando redes e outros métodos, sem sucesso.
Depois de muitas tentativas, um pescador se aproximou, perguntando o que eles
estavam fazendo. Quando soube que o objetivo era pegar as cegonhas, ele trouxe a
varinha de pescar, botou um peixe no anzol, e jogou para a cegonha, capturando-a
facilmente.
Quando estava escrevendo essas últimas linhas, no escritório, com Henrique e Rica,
Yvens apareceu chamando-nos. Um filhote de búfalo fora morto por uma onça em um
capão lá perto. Seu Máximo foi quem deu a notícia. Ele estava trabalhando com Seu
Lauro, o empreiteiro, em uma cerca, perto de onde vimos as batidas de manhã. O capão
é cortado pela cerca, e eu tinha andado na direção dele mais cedo. Fomos até lá de carro,
toda a “equipe”, todos animados com o evento, que podia representar uma captura no
192
dia seguinte. Encontramos Seu Lauro na cerca, e ele disse que a carcaça estava ainda
fresca. Fernando, Henrique e Seu João foram até o local.
Depois de alguns minutos, Seu João retornou dizendo, para surpresa de todos, que se
tratava de uma onça-parda, pois mesmo a onça-pintada raramente atacava um búfalo.
Fui chamado para fotografar a cena “do crime”, que era o único com uma câmera
disponível. Fernando se mostrou decepcionado com o fato de se tratar de uma onça-
parda, constatado através das batidas da onça, e também pelo fato de haver terra puxada
para perto do animal (a onça-parda é conhecida por cobrir suas presas com terra para
despistar outros predadores). O jovem búfalo foi morto perto de uma cerca, em uma
área aberta dentro do capão. Quando nos aproximamos, a manada de búfalos se manteve
perto, sendo que quando me abaixei para fotografar, um deles chegou até muito perto e
cheirou a cabeça do búfalo morto
70
.
Fernando levantou a cabeça do animal usando um pedaço de madeira, e observou
que ele aparentemente não estava com o pescoço quebrado. Seu Lauro afirmou que se
tratava de um animal doente, que tinha um problema para andar, o que foi confirmado
também pelo gerente Célio, pelo rádio. O biólogo achou que o búfalo deve ter sido
morto por sufocamento, e que possivelmente já estava deitado por ocasião do ataque.
Esperando que a onça voltasse para se alimentar, foram tomadas providências para
voltarmos cedo com os cães, para tentar capturá-la.
No mesmo dia, conversei um pouco com Seu João sobre a história da fazenda San
Francisco, na qual ele trabalhou por quase vinte anos. Ele contou que antigamente, na
época do Sr. Laucídio, a marca de gado LS era uma das mais conhecidas da região, e
havia muitas brigas e mortes na região, tanto por disputas de terras quanto por
confusões causadas pelos peões entre si, motivadas pelo álcool. “A polícia tinha ordem
de não prender os peões da LS”, disse.
Na manhã seguinte, acompanhei o grupo na tentativa de captura da onça-parda que
tinha sido avistada na tarde anterior. Saímos às 4 hs da manhã. Enquanto Fernando e
Rica foram checar as armadilhas, o restante do pessoal foi preparar os cachorros e
cavalos que seriam utilizados na captura. Depois disso, segui na caminhonete, com
Yvens e Cyntia, os veterinários do projeto, levando os cães para o local onde seriam
soltos, no capão aonde o filhote de búfalo foi encontrado. Os cães iam presos na
caçamba, em uma estrutura de madeira construída para esse fim. Apenas Valente teve o
70
O comportamento defensivo dos búfalos, além de seu porte, é motivo de recomendações para a
criação desses animais no Pantanal, em lugar do gado (Rafael Hoogenstei; ent 11/2008.)
193
privilégio de ser transportado em cima dessa estrutura, tomando ar enquanto os dez cães
restantes se amontoavam no espaço de 3 metros quadrados.
Seu Lauro foi de carona, para trabalhar na cerca (aonde ele e Seu Máximo haviam
achado o búfalo). Chegamos ao local ainda de madrugada, antes do sol sair, e ficamos
aguardando por Seu João e Henrique, que vinham de cavalo, trazendo mais dois animais
de montaria. Fiz algumas imagens da caminhonete e dos cães enquanto o dia clareava.
Quando chegaram os dois cavaleiros, os cães foram soltos e levados para uma volta.
Henrique estava particularmente nervoso, e ficou irritado por que eu estava filmando a
cena dos cães sendo soltos ao invés de ajudar. As cordas que prendiam os cães haviam
ficado emaranhadas. Depois de ajudá-lo a soltar o nó, cada pessoa levou dois dos cães
para uma volta, atrelados entre si.
Minha expectativa era grande. Eu planejava filmar a soltura dos cães e a caçada, e
havia conversado sobre isso Fernando e depois com Seu João na tarde do dia anterior
(ele queria ter imagens de uma captura, e listou os momentos mais importantes para que
eu filmasse os momentos mais importantes).
O dia estava raiando quando surgiu no horizonte a caminhonete branca que trazia
Fernando e Rica. Eles haviam encontrado batidas frescas de onça-pintada na estrada
principal, mas consideraram melhor manter o plano original e tentar capturar a onça-
parda que havia se alimentado no capão. Seu João e Fernando foram então até o capão,
para verificar se o animal havia voltado. Desapareceram na mata, aonde permaneceram
por uns cinco minutos. Na saída, Fernando virou-se para o grupo e disse que o bicho
havia mexido na carcaça. Começou a dar ordens para a equipe: cada um levaria alguns
cães, sendo que valente seria solto primeiro. Rica levaria os cavalos e amarraria na
entrada do capão, e além disso, filmaria a soltura dos cães.
Foi aí que tomou a atitude que para mim permanece difícil de explicar, e que foi um
grande choque naquele momento. Eu ficaria na base, dentro do carro, ouvindo as
notícias pelo rádio. “Aconteça o que acontecer, você não saia da base” o biólogo me
disse, para a minha perplexidade. Eu havia viajado até ali, preparado o equipamento,
pedido para acompanhar a captura, e, no momento crucial, ele me excluiu da ação. A
atitude do biólogo foi determinante, no processo da etnografia, para a definição dos
limites da minha relação com o projeto eu iria ser uma testemunha, mas não um
participante.
Meu principal objetivo na fazenda era filmar a captura, e poder presenciar aquele
que era um evento tão importante para os envolvidos no projeto. Na noite anterior à
194
captura, havia conversado rapidamente com o biólogo sobre a idéia de editar o material
que fosse filmado ali, e expliquei que pensava que um dos resultados da tese seria um
documentário.
Em apenas duas oportunidades eu estive em fazendas onde estavam sendo realizadas
capturas. A primeira delas foi na Fazenda Caiman, em 2006, e a segunda foi esta, na
São Bento. Nas duas situações eu estava disposto a acompanhar as caçadas e minha
participação foi vetada. O caso da São Bento foi bem mais difícil de digerir, porque eu
tinha, na ocasião, um contato bastante longo com a equipe e fizera amizade com
todos, então foi, de fato, uma surpresa a atitude do coordenador da pesquisa.
Vale lembrar que essas mesmas capturas haviam sido filmadas, na fazenda, por uma
equipe de televisão poucos meses antes, nas mesmas condições com o campo alagado
e envolvendo os mesmos riscos. No caso, as imagens feitas por uma grande emissora
passaram em rede nacional, e exemplificam um aspecto importante do trabalho
científico, que é o da divulgação. Acho hoje que a decisão do biólogo foi mais uma
declaração de propriedade sobre o evento do que uma restrição do acesso a um
determinado aspecto da pesquisa. Para mim, essa talvez seja a explicação mais plausível
para a atitude que ele tomou naquela manhã, tendo se sentindo incomodado com a idéia
de ter alguém filmando ali para fins pessoais.
De qualquer forma, essa experiência na São Bento me faz repensar um pouco minha
inserção na pesquisa, principalmente com relação ao fato de não depender de ninguém e
fazer meu trabalho, mantendo o foco nas entrevistas. O significado do acontecimento,
no entanto, foi reduzido pelo fracasso da caçada: um a um, os cachorros foram voltando
sozinhos para a caminhonete. No final, a onça deu um baile nos cães e nos caçadores. A
decepção de todos os participantes foi grande, já que se criara uma expectativa em todos
os funcionários da fazenda a respeito daquela captura. O gerente da fazenda perguntava
pelo rádio, o capataz passou e queria saber como andava a caçada, os peões de gado
também estavam envolvidos, enfim, tudo isso colocava uma pressão adicional no
trabalho dos biólogos.
No carro de volta, Fernando e Seu João conversaram a esse respeito, afirmando que
essa demora em pegar uma onça criava um ambiente negativo. Os dois falaram sobre a
experiência na San Francisco, e a época que antecedeu a incorporação de Tonho da
Onça, o caçador contratado pelo projeto naquela ocasião (e que voltaria a ser procurado
algum tempo depois). Seu João dizia que os cachorros que tinham eram melhores do
que esses, reclamando que Valente, o cachorro mestre, não latia. Fernando classificou-
195
os como “cachorros de campo que também caçavam”, considerando que nenhum deles
parecia ser um onceiro realmente bom.
Seu João observou que o caçador que os vendeu talvez não tivesse mandado seus
melhores cães, e Fernando retrucou que talvez ele tivesse somente aqueles mesmos, e
tivesse parado de cuidar dos cães. O antigo dono dos cães aparentemente não
concordava com o transporte dos cães para o sul, que eles iriam depois voltar para o
projeto na região de Poconé. Valente não tinha mostrado ao que veio.
Depois das atividades matinais, ainda fomos até a estrada com os cães, que foram
colocados na batida da onça-pintada. Seu João levou-os até o outro lado de um Corixo,
mas rapidamente viu que aquilo não ia dar em nada. Cães e humanos já estavam
cansados, e Henrique ponderou com Fernando que eles deviam manter a cabeça no
lugar e não sair no desespero debaixo do sol do meio-dia. Quando estavam se
preparando.
Essa foi a minha última tentativa de acompanhar pessoalmente o trabalho dos cães
em uma captura de onça. As tentativas de captura pela equipe do projeto se estenderam,
ao todo, por um período de três meses, nos quais nenhuma onça foi capturada. O único
registro direto dessas tentativas compilado durante a pesquisa é o relato do biólogo
Henrique Conccone, narrando alguns eventos da época em seu blog na internet. Cito
abaixo os trechos em que ele descreve encontros com uma mesma onça:
Postado por Henrique Villas Boas Concone em 23 de maio de 2008
Na batida da onça
faz um certo tempo que estamos na batida das onças aqui do Abobral e
ainda não tivemos a oportunidade de capturar nenhuma. Na verdade,
tivemos alguns confrontos, e dois em especial foram de amargar.
No dia 14 de Abril de 2008, foi acuado um macharrão que tivemos a
oportunidade de fotografar em uma carcaça predada. Eram 6h30 da manhã
quando eu cheguei de moto da San Francisco, na São Bento, no exato local
onde o resto da equipe do projeto tinha saído na batida do macharrão com
os cachorros, 15min antes. Dali eu podia escutar a cachorrada
barruando, e ao mesmo tempo, eu me sentia como o cachorro que ficou pra
trás! (...)
196
Foi tudo muito rápido, e logo seguimos a galope para encontrar o resto da
equipe do projeto. Eles foram seguindo os cachorros por dentro da
invernada com a água na altura das coxas, hora na cintura, e foram até
atravessar a divisa com a outra fazenda. No meio dessa corrida, o
macharrão havia, em um momento, matado dois dos nossos cachorros
e machucado mais dois. (...)
Segunda-feira passada, dia 19 de Maio de 2008, tivemos um novo encontro
com esse macharrão, e novamente ele conseguiu escapar. Desta vez não
tivemos nenhuma baixa, mas ele mandou mais três cachorros para a
enfermaria. Em um deles, foi necessário até uma cirurgia para recuperá-lo,
enquanto os outros tiveram cortes menos graves. Todos passam bem, e
estão de folga dos trabalhos por um tempo.
O animal fotografado em novembro com a coleira ao lado do bezerro, Mirão, foi
identificado por Seu João e Henrique como sendo este animal, perseguido várias vezes
pelos cães nas tentativas anteriores, mas que tinha sempre conseguido escapar.
Quando voltei à São Bento, em outubro, para um novo período de campo, as dez
coleiras compradas pelo projeto estavam em uso. As onças foram capturadas em um
período de 53 dias, durante os quais Tonho ficou hospedado na fazenda juntamente com
seu filho, além do grupo de cães. Um dia depois da minha chegada, fui visitar Seu João,
para conversarmos sobre as capturas. Sobre a participação de Tonho, afirmou:
Ele não tem igual. Vive disso, então é muito prático, tem uma
cachorrada muito boa.
Ele me mostrou na ocasião algumas fotografias das capturas, junto com uma série de
outras de seu acervo particular imagens de capturas e antigas caçadas. No final deste
último período na fazenda, resolvi pedir a Seu João para registrar em áudio enquanto
fazia algumas perguntas sobre essas fotos, que ele também permitiu que eu reproduzisse
como material iconográfico para o meu trabalho de pesquisa. Ele foi identificando então
cada uma das imagens. Uma fotografia mais antiga mostrava uma onça morta, dos
tempos em que Seu João ainda caçava:
F: Essa aqui por exemplo, de quando é?
Isso é 82 mais ou menos. Nessa caçada morreram três cachorros. Essa
onça tinha comido um boi, e a gente soltou os cachorros nela mais ou
197
menos uma hora da tarde. Ela matou quatro cachorros e sobraram esses
três aí. Ela entrou numa toca de árvore, e quando ela foi pra saí pra fora
pra pegar o cachorro e eu atirei ela.
Um cachorro que aparecia numa das imagens havia sido mencionado diversas
vezes por Seu João em conversas anteriores, apontado por ele como o melhor que já.
Olhando a coleção de fotografias, perguntei se ele tinha alguma do cachorro. Ele
respondeu que achava que tinha, e encontrou-o sem muito esforço em uma foto antiga,
que mostra dois cães ao lado dele e de um capataz de fazenda, tendo aos pés uma onça
recém abatida.
F: E esse aqui é aquele cachorro do senhor?
IO cachorro mais novo é o Maroto. Essa foi a primeira onça que ele ajudou
acuar. É esse aqui (aponta). Ele tinha mais ou menos uns dez para onze
meses. Foi o primeiro bicho que ele correu. Chegou numa idade de cinco
anos mais ou menos, e só corria onça, não corria outro bicho. Era u
cachorro de confiança. E não precisava achar rastro não. Onde ele passava
e sentia ele dava sinal.
F: E foi o dono da fazenda que te chamou?
Eles me chamavavam, né? Quando tava comento muito, ele me chamava.
eu ia. Sou eu e o praieiro da fazenda.
O cachorro Maroto tinha sido citado pela primeira em uma entrevista feita com Seu
João alguns meses antes, no trecho reproduzido a seguir. O tema eram as qualidades
necessárias para um cachorro ser chamado de mestre, uma categoria fundamental para
designar seu papel na caçada. Na gravação da entrevista, pergunto:
F: E qual foi o melhor cachorro que o senhor já teve?
Rapaz, eu tive um cachorro que, assim, pode até ser que tenha algum
caçador que tem, acho que ainda tem, mas pra mim, no que eu tive, foi o
cachorro mesmo de confiança. Ele foi morto por tiro, numa caçada, antes
de chegar na acuação. Outra pessoa sem experiência acabou matando o
cachorro. Em vez de matar a onça, matou meu cachorro.
O nome dele era Maroto. Mas era uma raça de cachorro que era boa.
Todos os filhos dele. Foi uma raça que eu tive... Hoje, tem vários
198
caçadores, não só por aqui, como outros lugares de fora. O pessoal vai
criando uma raça de cachorro que é pra aquilo. Mas foi um cachorro
que podia ser qualquer hora. Ele dava sinal e podia confiar nele. O caçador
pode ter dez, quinze, mas ele tem um de confiança, né? Ele sabe que ele não
vai sair fora de nada. O que ele der sinal é aquilo. Geralmente, quanto mais
velho vai ficando, mais experiente fica.
Ele vai trabalhar de longe, não vai lá mais, porque sabe do perigo. É difícil
matar ele na acuação, porque ele não vai mais lá. Acaba matando mais os
outros, porque os outros mais novos vão querer ir pra cima e ele não. Se ela
subir ele vai dar sinal, mas no chão não vai lá. Então o cachorro pra
chegar, o cachorro de caçador, pra chegar hoje nuns sete a oito anos, não é
fácil. Se ele chega nessa idade como mestre aí ele é bom.
O cão Maroto era um representante da raça conhecida no Pantanal como americano.
[foto]. Seu João lista acima algumas dos atributos do mestre, um termo chave na
descrição dos cachorros onceiros, ao qual retornarei na conclusão. As fotografias mais
recentes de Seu João eram todas de capturas, incluindo a participação dele em uma série
de projetos de pesquisa, incluindo o da San Francisco, onde trabalhou durante mais
tempo. Sobre uma foto que mostrava ele e Tonho cercados pela cachorrada, Seu Jão
comentou:
Esses cachorros eram um pouco do Tonho e um pouco nossos, na San
Francisco.O Tonho fez umas três campanhas com a gente.
F: E tem algum dele, assim, que ele trouxe dessa vez, ou então lá, que o senhor
lembre que era muito bom?
É. Então ele tinha o Baixote. Cachorro muito bom, de confiança dele né. E
ele tinha confiança no cachorro, porque o cachorro podia ir solto e não
corria nenhum outro bicho.
F: E o principal que faltou nesses que cachorros que estavam aqui [nas capturas] o
que era?
Esses que vieram para a campanha agora? Eles chegaram a acuar a onça,
sabe, que tinha muita água. A onça andou batendo neles, machucando, e
eles ficaram covardes, acovardaram. Eles não conseguiam nem acuar mais.
199
O bicho tava subido ou parado, e chegava num ponto que eles voltavam pra
trás, e aí a gente não podia chegar aonde tava o bicho.
Uma das fotos que mostrava uma onça anestesiada, cercada pela equipe que a
capturou e por funcionários da fazenda:
F: Isso aqui já é aqui?
Já é aqui já. Essa é a Brava. A gente chamou de Brava.
F: E porque chamou ela de Brava?
É porque ela é uma onça que acuou num lugar muito sujo e não dava pra
gente chegar pra anestesiar. E brigava com os cachorros. Muito brava.
demorou pra gente chegar nela pra anestesiar. Não subiu.Foi uma onça que
brigou bastante.
4.4. Tonho da Onça
Todas as onças monitoradas pelo projeto Onça Pantaneira, cujas atividades
acompanhei ao longo de 2008, foram capturadas com o auxílio de Tonho da Onça, um
caçador especializado contratado com seus cães onceiros especialmente para a tarefa.
Antes da contratação do caçador, haviam sido feitas uma série de tentativas de captura
desde que as coleiras de rádio chegaram ao projeto. Durante três meses, como relatado
na seção anterior, no primeiro semestre de 2008, os pesquisadores utilizaram um grupo
de cães de caça cedidos temporariamente ao projeto Onça Pantaneira pela WCS,
trazidos de Poconé, no norte do Pantanal. Além do uso dos cães, durante o mesmo
período foram mantidas abertas, na São Bento e nas áreas em torno da fazenda, oito
armadilhas com iscas vivas (porcos), mas nenhuma onça foi capturada.
No segundo semestre, Tonho da Onça foi chamado, e seus es trazidos com ele de
Rondonópolis, cidade próxima de Cuiabá, MT. Ele foi contratado para a colocação das
dez coleiras com sistemas de rádio e GPS adquiridas para o projeto, o que foi feito em
um período de 53 dias, terminando no final de agosto de 2008. Mirão, a onça
fotografada pela armadilha fotográfica (Fotos 1, 2 e 3) foi um dos animais capturados
durante a campanha.
No final do período de trabalho de campo, em dezembro, eu estava em Campo
Grande e o tempo da pesquisa estava se esgotando. Meu principal objetivo, antes de
200
voltar para o Rio de Janeiro, era conseguir uma entrevista com o caçador contratado
para as capturas. Eu estava disposto a ir até a cidade dele, em Rondonópolis, para tentar
encontrá-lo, mas a viagem era longa e seria arriscado ir sem conseguir marcar por
telefone uma data. Eu havia estado uma vez, quando ia de Poconé para Campo
Grande, em 2007, levado pelo biólogo Ricardo Boulhosa, mas ele não estava em casa.
Depois de quase uma semana em Campo Grande, com ligações diárias para os
números de telefone dele e do filho, este último finalmente atendeu, com a maior
naturalidade, a uma ligação feita na manhã do dia 10 de dezembro de 2008. Consegui
em seguida falar com o próprio Tonho, marcando um encontro para dois dias depois.
Naquela mesma manhã, peguei o ônibus na rodoviária de Campo Grande, próxima ao
hotel onde estava hospedado, para uma viagem de 11 horas em direção à Rondonópolis.
Cheguei à cidade, um pólo industrial com 180 mil habitantes, a 200 quilômetros de
Cuiabá, no final da noite, e no dia seguinte fui até o endereço dado por Tonho.
Ele mesmo me recebeu na porta, e fomos um pouco mais tarde até a sua chácara, nos
limites da cidade, onde ele mantinha os cachorros. Entrevistei-o quando chegamos ao
local. No trecho da gravação transcrito abaixo, ele comenta as capturas na fazenda, e
descreve seu trabalho nelas:
F: E como é que é, Seu Tonho, como é que é a caçada? O senhor chega num lugar
como na São Bento. O pessoal estava há um tempão sem achar a onça, né... É
questão de que? De saber achar a batida certa? Porque estava tão difícil?
Não, porque quando a gente vai caçar com a equipe é o seguinte: o último
que chega sou eu. Mas quando você chega lá, o veterinário sabe onde
ela passa, o biólogo sabe. Igual ao João que trabalha com eles, ele sabe.
Então você procura um lugar onde está o passador dela.
F: Aí tem que achar o que? A batida fresca?
Aí você acha a batida ou a carniça. Cachorro bom, pega ligeiro.
F: E dá pra caçar onça sem cachorro?
não. Porque eu ainda brinco com esse povo. Eles têm um negócio de
pegar onça de jaula... As nossas aqui pode até pegar, mas é difícil. Porque,
primeiro, ela não passa fome. Tem bastante bicho, bastante gado. E a onça
de barriga cheia não vai procurar a jaula. Lá mesmo o Fernando
experimentou. Noventa dias. Não deu certo.
201
F: Não pegou nenhuma...
Nenhuma. Foi em Poconé, buscou os cachorros que a Sandra tinha
comprado. Segundo eles eu não vi, eu não posso confirmar. Segundo o
João que tava caçando: todo dia punha cachorro em onça, e não dava
certo. Não dava certo. Eu fui daqui, embarcamos a cachorrada,
pegamos,com um compromisso forçado, porque dez onças são muitas onças
pra você pegar, né? E ele quer ver o resultado...
No trecho a seguir, o caçador se refere à diretamente à Fotografia de Referência, da
onça junto ao bezerro predado:
O povo fala também onça braba, isso e aquilo outro... A onça, quem faz é a
gente mesmo. A mesma coisa se você prender um ser humano. Se você
chegar na onça e anestesiar rápido, pronto.
Uai, no Fernando, essa onça braba, lá, o João falou: essa onça não
pega, Tonho, ela mata cachorro. Eu falei, rapaz, mas,eu pensando, né?
Nem comentei com ninguém, eu mais o Marco [filho de Tonho]: essa
onça não güenta cachorro no rabo não. A onça que deu menos trabalho foi
a mais braba.
Aquelas onças lá são graúdas, né? Cento e vinte e oito uma pesou. Pegamos
uma com o dono da fazenda de cento e vinte quatro. A outra [Mirão] foi
cento e treze, parece... Macho. Pegamos três machos e sete fêmeas.
Em seguida, pergunto sobre os cães, mas ele traz o assunto para os procedimentos de
captura (em especial a anestesia) e sua participação nos mesmos:
F: Mas o ideal é levar muito cachorro ou pouco? Como é que é?
Não, eu gosto de caçar com muito cachorro pelo seguinte: Porque você
anestesiar uma onça no chão é complicado. Você tem que olhar a onça e o
cachorro,porque você é o dono e não vai querer perder nenhum.
Então, o Fernando, eu trabalho com ele mais de dez anos. Eu gosto
muito do Fernando. Nós temos muito diálogo trabalhando. Às vezes você dá
uma questionada aqui e ali, mas o que você pede ele atende você na hora.
Então nunca deu problema. Já anestesiamos várias onças.
Retomo então o tema dos cães, que era meu principal foco de interesse na ocasião:
202
F: E nessa campanha agora o senhor perdeu algum cachorro?
Não, arranhou. Tivemos sorte. Era umas onça mexida deles lá, né...
Mas tivemos sorte, cachorrada boa, prática. Só arranhou.
F: Porque antes do senhor chegar a onça chegou a matar alguns...
Porque a gente diz o seguinte: o caçador, nenhum é igual ao outro. Então,
primeiro você tem que ter confiança no material que você tem, que é o
cachorro. Sem o cachorro você não é nada. Você, pra embarcar uma
cachorrada aqui, pra ir na São Bento, você tem que ter confiança no
cachorro, depois em você.
F: Mas foi como a viagem até lá?
O Fernando mandou a caminhonete, nós embarquemos eles aqui, e fomos.
Chegamos lá, fizemos o trabalho. Com cinqüenta e três dias pegamos dez
onças. Bem trabalhado. Porque eles estavam com noventa e não tinha
dado certo. Cachorrada fraca, né...
Então, eu gosto de trabalhar assim: respeitando sempre o adversário. A
gente nunca pode dizer assim: eu sou bom. Porque cada onça é um tipo de
trabalho que você faz. Às vezes uma acua no chão. Igual acuou uma lá,
pequeninha. Eu tive que subir no cipó. Aí o [veterinário] passou a anestesia
pro João, o João passou pra mim, eu fui lá, atirei. Trabalhamos tranqüilos.
Pegamos umas onças brabas. Porque é braba, né, acuada de cachorro. Mas
fizemos o trabalho certo. Não teve problema cachorro arranha com
nós, de falar assim, que a onça deu algum piripaque com anestesia...
Porque isso sempre acostuma dar.
Ele cita a cachorrada como elemento fundamental da captura, destacando-a como
prática ou fraca para explicar o sucesso ou o fracasso da empreitada. Em seguida,
pergunto sobre os colares de rádio, imaginando a estranheza que eles teriam causado
para o caçador:
F: Mas o senhor não achou estranha a idéia de colocar colar na onça, na primeira vez
que o senhor ouviu falar nisso?
Não, coisa, o colar, o colar eu acho melhor o seguinte: pra mim que ganho
dinheiro, pra eles também que ganham, e pro bicho. Eu acho melhor o
seguinte: você põe o colar hoje, e ele tem um vencimento. Do GPS é três
203
anos. Antes de fazer os três anos você troca o colar. Você pega ela na hora
que você quer. Então, é bem mais fácil do que a outra.
F: Do que o colar antigo?
É. Então, é bem mais fácil. Você trabalha com mais segurança, você sabe
aonde é que o bicho está, você conhece o bicho...
Ele não demonstra nenhum estranhamento, ao contrário, refere-se aos colares com
conhecimento de causa. Insisto:
F: Mas o povo não estranha não, o pessoal da fazenda, quando uma onça de
colar?
Não, geralmente eles não adotam isso aí. Porque nós brasileiros...É o
seguinte: você quer matar o que tem. Por exemplo: você vai andando num
carro na estrada e você cem queixadas;se você não atirar neles, mas
mesmo na boca você atira. E não é só um, que matar tudo. Então, o
brasileiro sempre é o brasileiro. Sempre ele não concorda com as coisas. O
negócio dele é matar e acabou, né...
Essa área que eu tenho aqui, eu possuí isso aqui em 86. Eu não vou dizer
pra você que eu fui sincero; eu matei duas onças pro coronel e ele me deu
esse pedaço de terra aqui. Eu matei duas pintadas: matei uma naquele
canto de serra ali, ó [mostra o local], quando eu recebi aqui. O barraco
meu era ali embaixo. Aí eu matei lá.
Onde o homem entra acaba tudo. Então, não tem jeito. Então, a gente, pra
segurar. Pra você trabalhar tranqüilo, você tem que estar numa área
apropriada.
Tonho fala de dentro, como um agente na rede conservacionista, e em nenhum
momento se coloca, digamos, em conflito, quer seja com as onças quer seja com os
ambientalistas ou pesquisadores. Ao contrário, é como um participante nos projetos, que
ele critica a curta duração deles no trecho a seguir:
Porque rapaz, você ir daqui, com uma cachorrada dessa, pra ir num
projeto,ele tem que aturar no mínimo oito anos. Pra você pegar o primeiro
filho da onça nova, você pegara produção do filho daquela, vim, saber
aonde que tem, como é que está. Porque ali na São Bento, tem onça
204
moradeira. Ali no João, no português, tem umas onças boas. Sadia, graúda.
Então, você ir acompanhando. Isso é bom.
Porque hoje eu to velho. A qualquer momento acaba, aonde é que vai
arrumar outro? Outro Tonho da Onça? É difícil. Tem. O caçador de fundo
de quintal, tem vários. Porque o projeto é seguinte: pra você sair daqui,
dependendo... Porque a onça tem uma parte de lua. Umas gostam de andar
na nova, outras na minguante, outras na cheia, quarto crescente. Então, o
caçador experiente, que entende... Eu tenho pessoa de idade aqui que tem
esse trem. Então, você chega lá, por exemplo: Você pega um caçador velho,
que entende, e você fala: olha, tem uma onça comendo gado meu lá. O cara
não te fala nada. Ele vai na folhinha, e olha. Às vezes o cara é prático, olha
na lua de noite e ele sabe que lua que é. Ele fala: agora dá certo. Tem vezes
que você sai e não dá, você fica dez dias e não dá certo.
A ênfase da fala do caçador é na dificuldade da caçada de onça e na eficiência e na
especialização dele mesmo como caçador e de seus cachorros. Tonho descreve não a
caçada tradicional, mas especificamente a captura para a pesquisa científica, onde a
dificuldade é maior por causa da anestesia. Ele explica o contraste entre as dez onças
capturadas num período de 53 dias e a ausência de capturas anteriores em três
meses – através da eficiência dos cães e o conhecimento do caçador.
No trecho a seguir, ele relata como a caçada de onça, tradicionalmente praticada por
peões ou capatazes de fazendas, se tornou uma profissão para ele:
F: Como foi que o senhor começou a mexer com onça? Foi com que idade?
Pois é, eu comecei com uns tios meus. Eu perdi meu pai com um ano de
idade, saí da minha mãe e fui com eles. Meus tios tinham cachorro, meu
avô tinha cachorro. A primeira onça que eu fui e coisa, eu tinha sete anos
de idade. Pegava boi lá. Naquela época não vendia boi gordo, era boi
magro.
Onça pegou um boi, nós fomos. O velho foi na frente e eu fui meio
escondidinho por detrás. Quando chegou lá, o velho falou: agora você vai.
fomos: botou cachorro, acuou. Na loca, o velho empurrava eu nas
costa, assim, pra chegar, que o trem tava meio brabo, bufando duro,
arrancando na cachorrada. Foi junto com o velho, aí matou. E aí continuei.
205
A cadela da minha avó pariu, ela falou: tira um pra você. Tirei. comecei.
E fui. Aí eu perdi meu tio, ele caiu dentro do rio Taquari com um caminhão.
Tinha ido buscar uma carga. eu passei pro outro. Meu tio falava assim:
Onça e peixe não leva ninguém pra frente.
E meus primo, filho do velho, hoje é formado, é médico, é advogado, é
engenheiro... Os cara da minha idade. o velho falava: Peixe e onça, isso
não dá dinheiro! E eu pensava assim (fui criado meio embolado com peão):
Ué, mas todo mundo tem um serviço. Será que esse não vai dar?
minha avó tinha dado esse cachorro. Depois, passou, a cadela pariu, eu
pedi uma cadela. Aí eu vim. Não tinha dinheiro pra comprar uma arma, pra
matar, aí cortava, furava a faca assim, punha no pau, amarrava com
arame, subia no pau e soltava. Parda. Pintada não podia...
Aí, com treze anos, um tio meu foi em Campo Grande e me deu um revólver
de presente. eu fui começando, e fui indo. Tomava conta da fazenda dos
velhos, meus tios.Eles diziam: hora que você quiser caçar, onde você
quiser, você só me avisa...
F: E essa história de que antigamente o pessoal caçava na zagaia?
Eu conheço vários. Povo antigo, assim, de oitenta anos, noventa. Tem aqui
em Rondonópolis. Tem Seu Velho Fino mesmo... Ele é um homem muito
prático. Muito prático. Mas eu ver, na zagaia, nunca vi. Eu conheço a
zagaia, Seu João tem lá guardado. Porque aquele tempo era o tempo,
vamos dizer assim, dum povo bruto. Porque primeiro: arma num existia,
naquela época. Era igual carro antigamente seu pai deve ter alcançado
isso daí. Por exemplo: antigamente, quem usava um carro era Seu Doutor.
F: Mas quando o senhor ganhou o primeiro cachorro, e começou a treinar... foi
aprendendo na prática mesmo, a pegar onça?
É, eu ia com os outro mais velho, porque naquela época não tinha esse
negócio, por exemplo: você era uma criança. O que o velho falou ali, ou
certo, ou errado, falou, né? Aí eu ia com eles e fui aprendendo...
F: E o filho do senhor aprendeu também a mexer com onça?
Olha, ele faz o serviço, coisa, mas ele ainda está um pouco novo. que a
gente mais nova precisa de mais uma experienciazinha. Porque às vezes
206
afoba em certas horas, então você tem que ter mais um pouco de
tranqüilidade. Mas se precisar de eu mandar ele em São Paulo, Goiás,
qualquer lugar aí: Pega os cachorros, vai faz o serviço porque eu o
posso por isso, por aquilo... Ele vai. Acabar não acaba não. Tem muita.
Em outro trecho da entrevista, ele observa:
Eu tenho bastante conhecimento com onça. Porque a vida toda é essa, né?
Quarenta anos de onça é muito tempo. Isso aqui onde nós estamos hoje
[aponta em volta], é tudo de onça: gado, terra, essas coisa que eu tenho. Só
não mulher e os filho... E você segurando a coisa.
Depois de um momento de silêncio, complementa:
E aí, nós mudamos o trem, de passamos pra anestesia. Porque na época
o conhecimento era pouco.
F: Mas foi com quem, com o Peter Crawshaw?
O Peter. O Fernando foi também. Essa gurizada que está mexendo com
onça, tudo passou aqui, toda essa gurizada.
F: E como é que prepara a anestesia na hora? Tem que dar uma olhada...
Não, eu gosto assim, eu trabalho assim: eu gosto de chegar na frente, olhar
o bicho. Às vezes você perde, você fala assim: essa onça 100 quilos. É
preferível você dar a menos um pouquinho do que dar a mais. Se você der a
mais pode complicar depois se você der a menos você tem o recurso.
Em seguida ele reforçaria a importância da anestesia para o sucesso da
empreitada:
Sempre eles reclama que eu sou um pouco chato. Porque eu gosto de olhar
tudo. Porque cê olhando,sabe aonde tá. Porque o veterinário entrega
a anestesia procê aqui o dardo eu ponho na espingarda... Você viu
como fez, então cê sabe aonde você tá. Porque às vezes, no momento, o
veterinário é novo, o biólogo é novo... Pode acontecer. Não é que o culpado
é o veterinário... Às vezes a onça é braba, ela bufa aqui... arranca no
cachorro ali... Às vezes o cara pode errar a coisa. Aí errou. Errou a
anestesia, errou tudo. Errou pra nós, errou pro cachorro, errou pra onça.
Tudo.
207
Em outro trecho, a referência é à captura de uma fêmea na São Bento. Ele lista os
medicamentos disponíveis, definindo o de sua preferência:
Então eu gosto de trabalhar com aquela Zooletil. Eu não gosto daquela
Quetamina, Roncon, eu não gosto não. Zooletil, você dá, por exemplo,
calcula a onça... Aí você pede: oitenta quilos a fêmea, por exemplo. Aí cê dá
pra oitenta. Ela segura duas horas, três horas, cê trabalha tranqüilo...
Como essa de noventa e dois quilos. Eu perdi doze quilos nela, pedi
oitenta... Mas tava no chão, né... lugar ruim, né...
Outro aspecto importante, nesse caso, é a escolha do tipo e da dosagem da droga de
acordo com o peso da onça. Reações aos medicamentos já causaram a morte de animais
capturados (Crawshaw e Quigkey 1984), e todo o processo precisa ser sempre
acompanhado por um veterinário especializado.
Tonho participou de alguns dos principais projetos de pesquisa sobre a onça-pintada
no Brasil, trabalhando com pesquisadores como Sandra Cavalcanti e Peter Crawshaw,
entre outros, além da colaboração mais recente com Fernando Azevedo. Foi também o
caçador mais mencionado em entrevistas feitas no decorrer da pesquisa para este
trabalho, sendo talvez o mais conhecido de toda a região pantaneira.
No decorrer da entrevista, evitei fazer perguntas diretas sobre as caçadas que
pudessem ser remetidas a uma espécie de abordagem investigativa da situação atual da
caça. Essa escolha respeitou principalmente a forma como meu interlocutor descreveu
sua trajetória e sua inserção nos projetos de pesquisa. A definição detalhada da “onça
comedeira” (acima), no entanto, foi a deixa para que eu perguntasse a opinião dele
sobre a proibição da caça. Na resposta, o caçador define o que considera um modelo de
preservação das onças ideal:
F: E na opinião do senhor, a caçada de onça tinha que ser mesmo proibida pelo
governo ou permitida em alguns casos?
Eu sou contra. Eu vou ser sincero pro senhor, que eu sou contra. Tudo é
igual a um casamento: se você vai casar, voe a sua noiva, você tem que
ter estrutura. Então, eu acho que o Ibama, ele falha nessa parte. Mas isso é
comum, qualquer um de nós pode falhar. Porque se ele tem uma área de
cento e trinta mil hectares, cento e vinte... Ele tem que ter cinco mil
formada, tem que ter umas duas mil vacas. A onça come,sobra, e
208
manutenção dentro da área;um fogo que vai entrar. Você corta a boca do
vizinho – nãoestá comendo só a minha, está comendo a minha e está
comendo a dele também, então vamos parceirar, vamos chegar onde tem
que chegar.
Agora, hoje pra nós, por exemplo: se pegar um bezerro meu aí. Eu tenho
dez! Se pegar um é um prejuízo grande pra mim. Eu vou perder o bezerro e
vou perder a vaca boa de leite; só daí a nove meses, pra frente...
F: E não tem a quem recorrer, não é?
Nãm tem. Porque você vai no Ibama, ele não está nem pra você. Porque
o dele (gesto de dinheiro) vem. Fim do mês o dele vem, e ele não quer
saber. Você paga imposto,o dele vem. O dele vem e o seu pula. Então, as
coisas têm que ser bem conversadas, bem arrumadinhas, pra chegar à
realidade. Porque se o senhor no meio de uma vacada de cinqüenta vacas,
você perde dez...
F: É diferente do cara que tem dezesseis mil...
É diferente. Você perde dez, e aqueles dez ali são uma manutenção que vo
tem de fazer. Agora, o cara segura a sua renda.Você só vai pro bicho
comer, só vai lá. Não, vamos sentar, vamos conversar, vamos ver aonde que
está o erro. Eu sou dessa opinião. Juntando tudo,você tem força pra chegar
aonde precisa. Eu, de preservar qualquer tipo de bicho, eu sou a favor.
F: Mas hoje em dia tem mais onça que antigamente ou menos? Ou continua a
mesma coisa?
Olha, do conhecimento de vida que eu tenho, de sete anos pra cá, que eu
comecei a ver os bicho... Com sinceridade: hoje tem mais. Tem mais. E
antigamente o povo matava mais. que hoje, em muitas áreas aí,o povo
mata muito com veneno. A gente tem que ser sincero, tem que falar a coisa
boa e falar a parte crítica, mas com sinceridade. Então, eles põe estricnina,
eles põe atrin...
F: Bota na carcaça...
A gente tem que ser sincero em todas as partes. A parte boa a gente tem que
contar, a parte crítica, você tem que situar isso daí, pra todo mundo saber.
209
Porque às vezes o cara põe o veneno assim – se ele ir lá matar o cara vai lá
e prende. Ele põe o veneno, e acabou. Vai morrer pra lá. que não morre
ela. O que pôs a boca ali vai. Cachorro, urubu, vaca... Por exemplo: a
gente não gosta de citar o lugar e quem é quem, quem não é quem. Você
bota uma estricnina numa carniça, num bezerro.Aí a onça vem ali, come,
morre. o seu fulano pega aquilo ali e joga dentro do rio. Eu pergunto
pra você: que é que dá? Dá coisa errada. Então isso é errado.
Porque hoje,qualquer um de nós, por exemplo, se uma onça está te dando
prejuízo, você pode ir no Ibama, e eles vão te dar a mão. Demora um
pouquinho, mas eles têm que dar uma mão pra você. Eles têm onde pegar,
têm o recurso certo. Porque nós aqui em Rondonópolis não temos essa
arma.
F: De anestesia?
Eu não tenho porque eu não posso ter. Porque eu não sou um biólogo, não
sou um veterinário. Isso daí está lançado por eles mesmo, é lei. Tem que
ter licença.Então eu não posso ter uma arma dessa aqui, se não eu tinha
há muito tempo.
F: Mas a maioria dos fazendeiros, hoje em dia, o senhor acha que está mais pra
preservar a onça, ou o pessoal vai mesmo atrás?
Olha, eu vou ser sincero pra você com toda a sinceridade: nós brasileiros
Não é um não, nós... Noventa e nove por cento o negócio é acabar. Isso daí
tem que ser sincero.Porque hoje, pra você ter uma onça de colar... O Brasil,
eu conheço de ponta a ponta. Pouco fazendeiro que tem onça na região com
colar, pouco. O Ibama tem condição de fazer projeto bom. Mas que ele
não faz.
F: Mas o que é que o senhor acha desse tipo de projeto? Dá certo?
Dá. O projeto certo. Enquanto o fazendeiro queira, certo. Mas na
área do Ibama é melhor ainda. Aqui nós temos uma reserva aqui do Ibama,
Caracará, aqui em Poconé. Uma área igual aquela, no Brasil é difícil. Tem
onça, lá. Só que nós que trabalha, acha difícil o acesso. Que está em vigor é
da Sandra, que eu conheço, e do Fernando. Eles estão de parabéns
210
.Então, se você fazer o projeto no lugar adequado ali é bom. Agora não
pode é pingar, assim, aqui e ali.
F: Entendi... Mas às vezes acontece também do fazendeiro do lado não gostar do
projeto...
Não, a maioria é contra. É contra o projeto. Porque o problema dele é o
gado. Agora, se o Ibama tivesse um jeito, os menino lá, de pagar o que
come registro tem, certinho... Esse trem do Fernando lá é bem
arrumadinho, o da Sandra também é. Porque nós trabalhamos juntos
muito tempo. Então, a coisa é bem certinha. Você, com um projetinho certo,
você vence a batalha. Funciona. Porque ali, o Fernando também acho que
vai fazer isso, comeu, pagou, né... Porque se não, o cara do lado pode ficar
revoltado, falar: ah, está protegendo a onça e ela está comendo meu
gado.
As perguntas a seguir, em outro trecho da entrevista, abordam diretamente o tema do
conflito na relação entre fazendeiros e onças:
F: E a onça, como é que é? Que bicho que ela pega mais? É mais o gado ou é mais
bicho do mato?
Rapaz, as nossa, aqui da região, gosta muito do gado. Gosta muito do gado.
Porque uma onça comedeira, pelo conhecimento que eu tenho, uma onça
comedeira come quinze bezerros por mês. Uma onça. Dois dias em cada
carniça. Esse é o normal da onça comedeira.
F: E é uma onça que fica só no gado?
no gado. Porque a onça é o seguinte: a onça é igual a nós: o cara não
vicia com porcaria aí... A onça, por exemplo, que pegar um cavalo, ela vai
comer cavalo. Se ela pegar carneiro, vem no carneiro; se ela pegar o
bezerro, vem no bezerro. Por exemplo, no Seu João: a tabela que
come de lá é bastante.
F: Pega muito bezerro dele?
Óia, tem um prejuízo assim duns quinhentos, seiscentos bezerros por ano. E
isso eu falo pra você porque eu tenho conhecimento. Eu fico direto
com ele.
211
F: Tudo pra onça, isso?
É, tudo na onça.
F: E quantas cabeças ele tem lá?
Ele tem umas dezesseis mil vacas. O dele é tudo registradinho. não
tem o negócio, por exemplo, diz que... Diz que eu vi... Não: lá ou é ou não é.
Lá você tem de anotar e trazer pra ele. Se for bicheira é bicheira.
Em outro trecho, ele compara o papel do caçador ao de um policial:
Você vê: vou fazer sessenta e três anos. O único bicho que eu gosto de
caçar é onça. Primeiro: É difícil.Porque se ela fosse fácil não tinha mais
nenhuma no mundo. Caçador de onça, todo mundo quer ser, por causa do
nome. É igual a você pegar um policiamento. O bandido perigoso vai e
faz o que faz, e coisa, mas se não é o polícia você não pega ele. Porque nós
não temos aquele conhecimento pra pegar o trem, então, cada macaco no
seu galho.
(...)
Eu comparo a onça igual um trabalho da polícia um bandido. que a
onça não tem o que nós temos. Ela tem força, tem tudo, mas não sabe usar.
F: E o senhor, na sua carreira de caçada, chegou a matar quantas onças?
Rapaz, eu, de noventa pra eu não contei mais. Até noventa eu tinha
seiscentas. Já anestesiei bastante. Não é que a gente seja melhor... No
Brasil, o único homem que anestesiou mais onça fui eu. E eu acho que
passa de mil onças, anestesiada, pega a primeira vez, a segunda vez...
Porque quarenta anos são muitos dias, né?
F: E pra matar ela, qual arma que o senhor usava? Trinta e oito?
É. Hoje eu uso ele. Nesse trabalho eu uso, levo. Porque é uma segurança
da equipe. Se a onça vir, você tira o revólver e atira no chão. No baque, ela
não vem em você. Ela volta. Você não está com aquele material ali pra
fazer o outro lado. Tem uma segurança. É igual a um polícia hoje. O polícia
trabalha, por exemplo, ele vai prender um bandido. Ele vai puxar aquele
trem quando precisa. Então, a gente é a mesma coisa.
F: E o senhor usa algum tipo de esturrador, ou já usou?
212
Rapaz, eu sou um tipo dum cara assim: O trem que eu gosto mesmo é do
cachorro. Eu gosto de ver o cachorro trabalhar. Eu gosto de trabalha
assim: vamos? Vamos. Pega cavalo de madrugada, sai. Ó a carniça, ó a
batida. Ver o cachorro trabalhar, ver a peça que você tem boa.
O conhecimento do caçador se refere principalmente aos cães: o reconhecimento
daqueles que são os melhores farejadores, as formas de comunicação com eles na
perseguição, a ordem em que eles são soltos, tudo isso faz parte do saber aplicado na
caçada.
4.5. O cão mestre
Os cães onceiros são os principais elementos de ligação entre as fontes
bibliográficas e as fontes orais citadas ao longo deste capítulo. Se, por um lado, a figura
do zagaieiro representa nessas fontes o passado de uma tradição de caça, o símbolo
extinto do enfrentamento entre o homem e a fera, os cães, por outro lado, representam
sua continuidade, a eficiência e a possibilidade de sucesso na caçada. Pereira da Cunha,
o primeiro caçador naturalista da linhagem estabelecida no capítulo anterior, a partir de
Roosevelt, afirma:
“Uma das maiores, senão a maior dificuldade para a realização de uma
caçada de onça consiste em Mato Grosso ou em qualquer parte, na
obtenção da cachorrada; esses cães onceiros, não constituindo uma raça
fixada como a dos nossos veadeiros, ou como as diversas raças de cães
estrangeiros, são de obtenção assaz difícil e trabalhosa e, se considerarmos
o número dos que morrem “em combate”, fácil tornar-se avaliar das
dificuldades a que aludo”. (1949: 77)
Nesta outra passagem, o narrador aguarda com expectativa a chegada de cães vindos
de outra fazenda para uma caçada, e refere-se a onceiros com os quais havia caçado
anteriormente:
“O veterano mestre onceiro “Visconde”, cuja grande prole fazia-lhe glória,
estava, com outro cão mestre seu descendente, “Mestrinho”, na Fazenda
Firme”. (: 82)
213
Mas em seguida, ele é surpreendido pelas péssimas condições dos mesmos:
“No outro dia (...) chagaram os pobres cães. Coitados! (...) o velho e
valente ‘Visconde’ (...) viera magro, cheio de bichos, gafeirento e trôpego”.
(: 83)
A primeira viagem do Comandante Pereira da Cunha pela região é de 1913, e seu
livro foi publicado em 1922. A referência ao cão “mestre” é o registro mais antigo
citado aqui, e aponta para quase um século de história dessa tradição regional. Sasha
Siemel, que viveu no Pantanal entre 1923 e 1947, escreveu seus livros de aventura
depois que deixou a região. Em Tigrero! (1953), publicado em inglês, ele utiliza o
termo “master-dog”. No trecho a seguir o caçador descreve a cena em que recebe seu
primeiro cão do zagaieiro Joaquim Guató:
“Na manhã seguinte, Joaquim veio à minha cabana. Com ele, na guia,
havia dois cachorros. (...) ‘Eu vou caçar de novo na segunda lua’, o
velho índio disse. (...) É você que vai caçar, e estes dois cachorros são
mestres. Mas o maior é mudo na caçada e você vai ter que conhecê-lo
melhor para caçar com ele.”
Eu vou levar o menor (...)
‘O cachorro pequeno é Valente’, ele disse. ‘Ele é um mestre’”. (Siemel
1953: 117)
71
Nesta outra passagem, Siemel cita seus outros cães e relata que a fama de seus
auxiliares de caça entre os fazendeiros era igual à dele próprio:
“Os fazendeiros sabiam da minha caçada e frequentemente mandavam
notícias de tigres que estavam dizimando seu gado; e eu atravessava os
pântanos a cavalo ou em lombo de mula, com meus quatro cachorros
Valente, Vinte, Pardo e Tupi – que eram tão famosos quanto eu”. (:240)
72
71
The next morning Joaquim came to my hut. With him on leach were two dogs. (…)“It will be the
second moon before I hunt again”,the old Indian said. (…) You are the one who will hunt, and either of
these dogs is a master-dog. But the larger one is mute on the chase, and you will need to know him better
to hunt with him.”
“I shall take the smaller one (…)”
“The small dog is Valente,” he said. “He is a master-dog.” (Siemel 1953: 117)
72
The fazenderos knew of my hunting, and often sent word of tigres destroying their cattle; and I would
set out across the marshes on horse or mule, with my four dogs – Valente, Vinte, Pardo and Tupi which
were as well known as I was. (: 240)
214
Tony Almeida, o último citado na linhagem histórica deste capítulo, faz observação
semelhante à de Pereira da Cunha, cinqüenta e quatro anos depois da publicação do
livro deste sobre as caçadas com Roosevelt. Sobre a dificuldade de se conseguirem os
cães onceiros, Almeida afirma:
“[B]ons cães de jaguar são a coisa mais difícil de encontrar em Mato
Grosso. Aqueles que os têm normalmente se recusam a vendê-los por
dinheiro algum. Nem mesmo um belo revólver Smith & Wesson niquelado, o
sonho de qualquer vaqueiro, consegue comprar um bom cachorro”.
(1976:13)
73
Relatando as dificuldades que enfrentou até conseguir caçar sua primeira onça, o
autor considera os cães essenciais para o sucesso da caçada:
“Não adiantava caçar mesmo na melhor região de jaguar se você não
tivesse cães bons e bem treinados. Caçar um felino tão esquivo quanto o
jaguar (...) sem bons cachorros era uma perda de tempo e esforço. Agora,
depois de muitos anos de experiência, nós descobrimos que às vezes outros
métodos podem ser empregados para atrair o jaguar (o chamado com
esturrador). Basicamente, no entanto, bons cachorros são essenciais a uma
caçada bem sucedida”. (Idem)
74
Os cães onceiros possuem uma série de características específicas a partir das quais
são designados pelos caçadores nesses relatos históricos. A categoria fundamental para
uma atualização do tema na etnografia é a do mestre, que procuro explorar nesta seção.
A designação foi mencionada em todas as entrevistas realizadas com caçadores (ou ex-
caçadores) para esta pesquisa. Na entrevista feita com Seu Inácio, em que ele mostra
seus cães (Op. Cit.), por exemplo, pergunto o que faz com que um cão seja chamado de
mestre. Ele responde:
73
[G]ood jaguar-dogs are the hardest thing to come by in Mato-Grosso. Those who have them usually
refuse to sell at any price. Even a shiny, nickel-plated Smith & Wesson revolver, the dream of every
vaqueiro, will often not buy a good hound. (1976: 13)
74
[T]here was no use in hunting even in the best jaguar country if you did not have good, well-trained
hounds. To hunt a cat as elusive as the jaguar (…), without good dogs, was a thorough waste of time and
effort. Now, after many years of experience, we have found that at times other methods can be employed
to bring a jaguar to bag [O chamado com esturrador]. Basically, however, good dogs are essential to a
successful hunt. (Idem)
215
Ah, ele tem que ser bom. Ele tem que apanhar a batida e ir até acuar ela. Se
ele achou a batida da onça, ela pode andar essa hora assim, ou então
pras seis da tarde... E pras oito hora da manhã do outro dia, ele panha a
batida e vai até acha ela. Ele não larga, vai até descobrir ela. Ele cansa,
vai na água, daí traz ele, põe ele na batida outra vez e vai embora. Ele
panha a batida e acua, vai te descobrir ela. Fica junto ali acuando ela. E se
ela subir, ele fica em baixo acuando. Aí os companheiro ajuda ele, né...
F: E o senhor escuta o latido?
E sei a hora que ela subida e que ela no chão... Pra cima ele tem
outro latido, né... e pra baixo já é outro, outra acuação.
O principal atributo do mestre é, portanto, o faro. De acordo com o caçador, o que o
distingue é a capacidade de seguir o rastro mais de doze horas depois da passagem da
onça. Seu Inácio se refere ainda à onça “subidae à onça “no chão”, e reconhece o tipo
de acuação ouvindo os latidos.
Os cães foram também o principal assunto abordado na entrevista que fiz com
Tonho da Onça (a última durante o trabalho de campo), e na ocasião tive a oportunidade
de visitar com ele o canil onde criava seus mestres, numa chácara afastada da cidade.
Logo que chegamos ao local, o caçador me levou por uma trilha ao lado da casa
principal até os recintos dos cachorros. Segui-o filmando em deo, e transcrevo abaixo
seus comentários:
Então vamo lá ver algum cachorro agora?[som de passos, latidos]
F: Tem quantos aí, Seu Tonho?
[Começa a contar:] Quatro, seis, oito... (...), dezenove... Tem vinte.
Na imagem filmada, os cachorros aparecem divididos em grupos, dentro de recintos
simples, gradeados na frente. Ele vai apontando um a um:
Esse aqui é mestre. Aquele branco é mestre; aquele preto lá no meio é
mestre... Essa cadela aqui; aquele cachorro vermelho – aquele que tá
deitado lá. Aquele peludinho do canto... Essa cadela aqui é boa também.
Essa daqui... Essa vermelha... Aquele preto lá... Novo aqui têm três: essa
daqui é nova, aquele vermelho lá, e aquele que tá deitado ali...
F: Mas tem algum que seja o que o senhor mais confia, que bota na frente mesmo?
216
Essa cadela branca aí pode soltar na frente; esse branco aqui... Esse
vermelho aqui... Aqueles quatro lá do canto pode...
F: E como é que é o nome dos mestres aí?
Olha, o nome daquele pretão chama Maconha. Aquele chama
Brinquedo; aquele que está ali, branco, chama Palanque... Esse aqui chama
guri, esse vermelhinho aqui. Aquela cadela que ali chama Doida...
Aquele que tá deitado ali chama Barão, e aquele outro peludinho é um
cachorro de madame, a raça dele. O nome dele é Vovô... Mas é bom:
pode andar com ele solto e não corre outro bicho, só onça.
E tem aquela cadela vermelha, mestre também, chama Chalana; e tem a...
Como é que é o nome da outra cadela? Eu esqueci o nome da outra
cadela...
F: O senhor é que botou o nome dos cachorros todos?
É, eu ponho, os meninos meus põe, os netinhos meu põe...
F: E por que é que é Maconha?
Não, é porque quando nós peguemo ele, ele era um cachorro bem ligeiro.
Ele saía, passava na frente dos mestres e ia. o (...) falou: vamo por o
nome desse cachorro de Maconha. Aquele cachorro ali é bem bom, coisa...
Aquele ali, ele não vale nada. Nego pode me dar duzentos mil, trezentos mil,
que eu nem olho. Qualquer um deles aí...
F: E qual é o melhor deles todos?
Rapaz, tudo faz a parte deles aí. cada um quer ser melhor do que o
outro...
F: E tem, assim, um que é melhor no faro, outro que é melhor na acuação...
Tem, tem. Por exemplo: o Maconha mesmo, no pau ele não é bom, pra
acuar no pau... Ele acua de roda. Mas se o bicho pular, ele sai. Aí, no pau
mesmo, é o Brinquedo mesmo, esse pequenininho, e esse Palanque... E a
cadela lá, e aquela outra cadela vermelha lá. O Barão... O Barão, se ele
acuar a onça, ele fica de baixo do pau, mas não late. Então, cada um tem
um jeito. Batida não, batida todos eles trabalha bem.
217
F: Mas tem um cachorro que o senhor fale que foi o melhor que o senhor já teve?
Rapaz, eu tive vários cachorro bom, coisa... O melhor que eu tive era um
tal do Aparecido, velhinho, duro. Ele durou onze anos na minha mão.
Morreu aqui, gordo. Esse você podia por no meio de dez cachorros, de
vinte, de trinta, sozinho... O trabalho dele era um só.
Minha principal preocupação, quando procurei Tonho, era obter uma descrição
detalhada do trabalho dos onceiros. Eu não conseguira observá-lo trabalhando, e queria
tentar suprir a ausência dessa descrição in loco da captura com narrativas dos
participantes. Transcrevo abaixo trechos da gravação (feita em vídeo) procurando
estabelecer vínculos entre as categorias utilizadas por ele e as que aparecem nas outras
fontes citadas neste capítulo:
F: Tem um cachorro que o senhor bota primeiro?
É, tem um. É o mestre que eles fala.
F: E como é que a gente sabe quando o cachorro é mestre?
Olha, vai andando aí, você acha a batida da onça, ou a carniça,
põe o cachorro. ele sai trilhando, vai. Vai na onça, esse é mestre.
Agora o cachorro que vopõe e ele sai louco procurando, não acha... não
é mestre não. (...)
Você chegou e achou a batida, a carniça tá aqui, você põe. O cachorro sai
barruando, você solta mais cachorro, vai lá, acua, pega... Então, você
trabalhando com a cachorrada, você tá vendo quem é quem.
F: E pelo latido o senhor sabe se ele achou a onça?
Sabe. Eu sei se é pintada; eu sei se é parda; eu sei se é bicho à toa...
F: E um mestre, hoje em dia, vale muito?
Rapaz, pra mim não tem preço não. Pra vender eu não vendo não. Porque o
cachorro você tem que ter o mestre, tem que ter o meio, que é o que
aperta... e tem que ter o bom de pau... É, então você tem que ter tudo
essa média. Porque o cachorro ruim, ele te prejuízo. Aqui não pára. Nós
pros outros, qualquer coisa nós faz. Não adianta você ter, porque o
gasto é grande.
218
O tema da compra e venda dos cães onceiros é mencionado por Almeida (1976:
Op.Cit) e é abordado também na seção 2.3 deste capítulo. No primeiro canil de cães
onceiros que conheci, em 2006, pertencente a um projeto conservacionista instalado
numa fazenda tradicional pantaneira, o administrador da propriedade relatou que
“antigamente um bom onceiro podia ser trocado por várias cabeças de gado” (FC
03/2006). Ele levava dois cães atrelados na guia, um deles um pequeno vira-lata,
chamado Mestrinho, que explicou que era o único mestre no canil.
Os cães de caça têm a reputação de não se tornarem obedientes como os cachorros
de casa, e são amarrados em pares para facilitar seu controle [Cit: Distinção entre
hounds e dogs]. Perguntado sobre as características do mestre, mencionou a reputação
desses cães de saber que a onça pode subir nas árvores e, principalmente, o fato de o
mestre seguir apenas o rastro da onça, e de nenhum outro animal.
Essa característica fundamental do onceiro seria citada muitas vezes durante a
pesquisa de campo. Um exemplo é a entrevista de Seu João, na Fazenda São Bento.
Quando questionado sobre as características do mestre e a criação dos cães, ele afirma:
É um cachorro que ele não vai ligar pra outros tipos de bicho, ele vai
trabalhar naquilo. Então, mesmo cachorro novo, você vai olhar nele no
meio de dez, doze cachorros, e sempre tem um ou dois que vai ser o mestre,
e você já escolhe pra mestre. (FSB 04/2008)
O tema também seria abordado, mais tarde, na entrevista com Tonho da Onça:
F: E é verdade que o cachorro mestre não corre outro bicho?
Não. Porque o cachorro novo, ele corre tudo quanto é porcaria, se você
deixar... Sempre eu brinco com todo mundo: cachorro de pobre corre tudo
quanto é porcaria. Porque tem aqui no Mato Grosso. Tem vários... Mas
que é um cachorro que corre tudo. Não tem uma cachorrada firme.
O caçador ilustra seu argumento com uma história ocorrida na campanha de capturas
(então recente) na Fazenda São Bento:
Aconteceu um caso comigo mais o Fernando, lá... A onça tinha pegado a
novilha era onze horas da manhã. o João foi lá, ligou. No outro dia nós
foi de madrugada. Eu cheguei na carniça e falei: Fernando, essa carniça
aqui tá meio variada, essa carniça aqui... a onça não voltô essa noite. Aí eu
soltei os cachorro lá, fui trabalhando, trabalhando... o veado correu
219
assim, do lado direto, e a cachorrada passou aqui [mostra]. Tinha cachorro
na frente, cachorro no meio, cachorro atrás, cachorro mais atrás... ia
trilhando um cachorrinho (até dum amigo meu que tinha levado, doutor
Brás), passou mais o cachorro mestre.
O Fernando falou: cachorro tá correndo veado...
Eu falei: vai te lascar, rapaz! – E arranquei o cavalo até ali o mato.
tinha quatro cachorro na onça, já. Cheguei lá, a onça braba demais,
daí foi chegando a turma. Peguemo a onça, essa, noventa e dois quilos.
Fernando falou: Tonho, eu achei que o cachorro tava correndo o veado.
Eu falei: rapaz, você repara... ta é acostumado com mercadoria ruim.
Você repara cachorro trabalhá, né?
A resposta do caçador à provocação mostra como é a reputação dele que está em
jogo na ação dos cães, em particular do mestre. Tony Almeida (1976) observa, sobre
este tema específico, que a categoria do mestre se refere a um ideal nunca plenamente
realizado na prática:
“Na teoria esses cães mestres perseguiriam apenas onças, porém mesmo
com os cães de caça mais bem treinados isso às vezes não acontece na
prática”. (: 13)
75
Dois métodos foram citados, durante a pesquisa de campo, para o treinamento dos
cães. O primeiro usava um gato previamente encharcado com banha de onça e solto no
campo para ser perseguido pelos cães. O segundo utilizava o couro de uma onça, preso
no alto de uma árvore. Na entrevista com Tonho, ele não menciona nenhuma técnica
específica para este fim, e afirma apenas que colocava os mais novos junto com os
mestres, para eles irem aprendendo. Insisto no tema:
F: Mas e se o senhor pegar uma cachorrada que nunca correu onça?
não tem jeito, não tem jeito, tem que ter o mestre. Agora, o mestre que é
o difícil. O cachorro de você por ele na batida e ir no bicho.
F: Não tem nada que o senhor faz para ele aprender?
75
In theory these master-dogs are supposed to run nothing but cats, though even with the best-trained
hounds this sometimes doesn’t work out in practice.
220
Algum cachorro, algum cachorro nasce pronto. Eu to velho. Já poss
muito cachorro bom, muito mesmo.Tenho cachorro bom. O melhor
cachorro do mundo que eu vi é o tal do Baixote, desse João Carlos. Esse
cachorro não tinha dia. O único cachorro do mundo que eu vi bom. Esse
cachorro não tinha dia, não tinha hora. Podia a onça passar aqui hoje,
agora. Amanhã nesse horário você por e ele pegar. que era vagaroso.
Ele era baixinho assim, ó. Cachorro melhor do mundo que eu já vi. E eu
tenho muitos anos de caça, conheço cachorro.
F: Mas era por que, era o faro dele?
Não, o cachorro era fora de série. E esse cachorro era dum apartamento
em São Paulo, lá, duma colega dele lá. É, e não corria bicho à toa nenhum.
Barruou, era a parda ou a pintada. Aí ele foi no Estados Unidos e importou
esse bludihound, que veio ao contrário. Esse daí era vermelho e veio
preto. ele cruzou esse baixote com a cadela pura. Você podia pegar no
canil, igual os meus lá, e por na batida da onça, que ia embora. Então,
cachorro assim não dá trabalho.
Neste sentido, a declaração pode ser aproximada mais uma vez de Almeida (1976),
que dissocia a qualidade dos cães como onceiros de seu pertencimento a determinada
raça:
“A raça ajuda, mas às vezes um cão mestiço bem treinado vale muito mais
do que o melhor fox ou bear-hound importado”. (: 13)
76
O autor menciona cães de caça à raposa e ao urso. No trabalho de campo, registrei
menções às seguintes raças: Foxhound, Bloodhound, Coonhound e Rodesiano. A raça
de onceiros mais comumente encontrada no Pantanal, pelo que pude constatar, é a dos
cães chamados localmente de americanos, que pressupus serem originários da raça
foxhound americano. No entanto, as declarações de Almeida (acima) e do próprio
Tonho sobre o cachorro “de apartamento” mostram que a raça do cachorro não é o fator
determinante na seleção do mestre. Ainda sobre a mesma questão, pergunto para este
último:
76
The breed is a help, but sometimes a well-trained mongrel will be worth much more than the best
imported fox- or bear-hound. (: 13)
221
F: Mas qualquer cachorro pode virar mestre ou depende da qualidade dele?
Rapaz, sempre a gente procura assim, de descendência. Não é qualquer um
não. Porque o cachorro você traz, vamos dizer assim, de família, né... Igual
a esse meu aqui. Aquela cadela vermelha lá é da linhagem antiga dos
cachorro meu, uma vermelha que tá ali [mostra]. Tem aquela cadela que eu
falei procê, que já tá velhinha, tem treze anos de serviço...
O que caracteriza os cachorros, neste trecho, é a linhagem produzida pelo caçador.
Esse mesmo sentido pode ser encontrado em Pereira da Silva (1949), que cita o nome
de um criador de cães como designação para uma “raça” de onceiros:
“No rio Taquari, afluente da margem esquerda do Paraguai, existe um
fazendeiro, Sr. “Janjão” de Barros, cujos cães onceiros têm fama
tradicional, fama tão grande que para dar idéia da excelência de qualquer
cão onceiro, basta que se diga: é raça do ‘Janjão’”. (1949: 77)
É o criador que valoriza seus cães, que responde pela qualidade deles. Tonho conclui
sua explicação:
É da linhagem antiga, de vinte anos pra trás, que eu tenho. Então, daquela
linhagem tem aquela cadela, tem aquela ali... E tem esse preto aqui e
aquele vermelho lá. E tem essa ninhadinha nova aqui, que é da mesma
família. Então você vem pegando a descendência.
A partir dos cães, como representantes da continuidade de uma prática tradicional,
procurei descrever a caçada de onça, neste capítulo, como um conhecimento
especializado dominado por especialistas. Tal conhecimento, além da própria
performance no campo, envolve a criação, o cuidado e a seleção dos cães como atores
principais. A caçada em si, regida pela interação entre humanos e cães, envolve o
trabalho cooperativo entre duas espécies, cada uma delas guiada por um sentido
diferente os humanos pela visão e os cães pelo olfato e capazes de se comunicar à
distância por chamados e sinais sonoros.
O que distingue o cão mestre é a qualidade do faro, em primeiro lugar, e a idéia de
que ele não segue outro animal que não seja a onça. Em seguida, a capacidade de se
comunicar com o caçador à distância, principalmente durante a acuação; é pelo som que
o caçador pode saber o que vai encontrar, se uma onça subida (fácil) ou uma onça
acuada no chão (difícil, e por isso mesmo, como vimos, o prêmio máximo da caçada
222
esportiva). Tonho aponta três especialidades de cães diferentes: o mestre, o do meio, e o
bom de pau. O primeiro é bom farejador, o segundo vai ajudar a subir a onça, e o
terceiro vai mantê-la no pau. O latido dos cães na caçada é chamado de barruar, termo
que descreve o uivo característico das raças de caça (hounds). Pelo latido do cachorro, o
caçador percebe quando ele “firma na batida”, e então vai soltando o restante dos cães
enquanto segue a matilha.
Os cães farejadores são capazes de detectar e rastrear a onça até encontrá-la, a partir
de vestígios que para os humanos são imperceptíveis. Mas, diferentemente da caçada às
raposas, por exemplo, na qual eles são os responsáveis também pelo abate do animal
perseguido, no caso dos grandes felinos, cabe ao caçador a tarefa da captura (seja ela
um abate ou uma anestesia). Os cães perseguem e acuam a onça para que o caçador
humano possa estabelecer contato visual com ela. A cena da onça em cima da árvore,
acuada pelos cães, substitui aqui a imagem dela diante do bezerro predado. Seguindo o
exemplo do capítulo anterior, a caçada pode ser descrita, assim como a lida, a partir de
dispositivos de rastreamento o faro dos cães e de captura a arma ou o
tranqüilizante.
No caso dos projetos científicos, as técnicas tradicionais de caça fazem parte de um
horizonte de práticas o campo (field site) onde elas se combinam com uma série de
outras técnicas. O objetivo da captura é a coleta de amostras biológicas e a colocação de
coleiras com rádio-transmissor nas onças, para que passem a ser monitoradas através de
sinais de rádio (mais antigos) e sistemas GPS (mais recentes). O rádio é também um
novo dispositivo de rastreamento, e o pesquisador captura coordenadas e produz mapas
a partir delas. A relação entre os métodos tradicionais de rastreamento (que envolvem o
conhecimento local e o uso de cães) e as técnicas de telemetria será o tema principal do
próximo capítulo.
223
ANEXO F – Imagens Capítulo 4
Capa livro sobre Tonho da Onça, o caçador que virou defensor dos animais.
224
Arquivo João E. Batista Arquivo João E. Batista
Arquivo Tonho da Onça
Março de 2008
No alto, Seu João e Tonho com os cães na época das capturas na San Francisco (2003-2004). No
centro, Ribusca e Valente, dois onceiros. Abaixo à esquerda, Tonho e seus onceiros; à direita, um
típico americano.
225
© Projeto Onça-Pantaneira
Funcionários da Fazenda São Bento posam a equipe do Projeto Onça Pantaneira
junto à onça anestesiada, em 2008.
226
Capítulo 5 - Rede coleira
Introdução
A série de fotos que serve como referência para a pesquisa etnográfica, que designei
na introdução como seqüência 1, mostra uma onça-pintada puxando a carcaça de um
bezerro, em meio a um emaranhado de cipós; ela usa uma coleira. O ponto de partida
para este capítulo é o recorte deste elemento isolado da imagem e o objetivo é seguir o
percurso dele na etnografia. Neste caso, a coleira é o elemento da imagem que se
articula mais diretamente às práticas científicas empregadas no estudo das onças, e ela
é, portanto, o principal agente da rede científica que procurarei mapear a seguir.
O conceito de redes sociotécnicas, forjado por Latour, foi o que tomei como
referência para os capítulos anteriores, que chamei de rede gado e de rede caça. Em
ambos os casos, é possível discernir uma série de horizontes de práticas diferentes: as
técnicas em si, as alianças necessárias para sua reprodução, a comunidade de
praticantes, e a face blica dessas práticas. Os exemplos fornecidos por essas duas
redes também demonstram a interdependência dessas práticas heterogêneas na rede de
conservação animal e no estudo da onça-pintada. Contudo, no que se refere a esta rede
científica, os temas tratados até aqui diriam respeito principalmente às alianças entre
cientistas e não-cientistas.
Latour situa a primatologia e os chamados science studies no mesmo plano, como
disciplinas empíricas, refutando a oposição tradicional entre natureza e cultura que
fundamenta o mito de que a realidade natural seria estudada pela biologia enquanto a
antropologia estudaria a construção social dos fatos científicos:
“A descoberta dos science studies não é que a ciência pode ser influenciada
ou distorcida por fatores “externos” como ideologia, política, preconceitos
culturais ou paixões psicológicas. (...) A descoberta é ainda muito mais
interessante: (...) é que os fatos são entidades em circulação em uma rede
complexa”. (2000: 365)
A partir dessa “descoberta” (o termo é usado com ironia), a oposição moderna entre
aspectos naturais e culturais é considerada uma interrupção artificial naquilo que os
“science studies” pretendem descrever:
227
“O objetivo da ciência é misturar, produzir mediações entre o que os
primatas fazem e o que os cientistas dizem sobre eles”. (Idem)
Latour argumenta que é justamente porque o cientista o fabrica que o fato se torna
independente do seu trabalho; a própria autonomia do fato científico residindo na
qualidade de sua fabricação:
“Para eles [praticantes de ciência], a intensidade do trabalho e autonomia
do que o seu objeto de estudo são sinônimos. Quanto melhor fabricado um
fato, tanto mais independente ele é”. (: 368)
Contrariando o que considera uma discussão ultrapassada sobre o determinismo
biológico e o determinismo social, Latour propõe, para o estudo desse sistema
circulatório da ciência, um modelo com cinco horizontes de práticas: (1) O campo ou
laboratório, uma unidade produtora de dados; (2) a comunidade científica que constitui
uma disciplina autônoma e torna os dados relevantes; (3) as alianças com não-cientistas,
relações com agências e fundações que financiam a pesquisa; (4) as relações públicas, a
divulgação por meios não-científicos e, por fim, (5) o conceito ou teoria que integra as
massas de dados e os contextos de circulação, o coração do sistema.
Como Latour argumenta, se qualquer um dos cinco horizontes for esquecido, a rede
complexa da prática científica torna-se insustentável. No caso particular das onças,
essas alianças parecem desempenhar um papel crucial na sustentação da rede, na
medida em que a conservação se associa de forma determinante tanto à pecuária, com a
qual forma uma unidade quase indissociável, quanto à tradição dos es onceiros,
auxiliares fundamentais no estabelecimento do campo.
O estabelecimento de unidades produtoras de dados é o principal aspecto que a
coleira de rádio torna visível no campo, e elas se referem, neste sentido, ao primeiro
horizonte do modelo latouriano. Procuro a seguir rastrear os aspectos técnicos e
históricos dessas práticas. Além disso, a coleira remete também a outros três temas
complementares, que dizem respeito à rede científica do estudo de carnívoros, a serem
explorados mais diretamente neste capítulo. O primeiro deles é a comunidade de
pesquisadores à qual o projeto de conservação das onças se acha vinculado; o segundo,
a divulgação científica; o terceiro, finalmente, o conjunto de conceitos ou teorias que o
estudo das onças produz.
228
5.1. Captura e divulgação
A divulgação científica tem uma importante função para a conservação e o estudo
das onças. As informações produzidas pela pesquisa de doutorado de Fernando
Azevedo na San Francisco, por exemplo, publicadas em uma série de artigos científicos
em revistas especializadas, circularam também em pelo menos outros dois registros. Em
primeiro lugar, ao longo do tempo, o projeto recebeu equipes de filmagem que
realizaram matérias e documentários sobre ele, destinadas não ao público científico
que sai em busca dessas publicações e se interessa de fato em ler este tipo de trabalho,
mas também a um público mais amplo, não especializado. Um exemplo dessa
circulação de informações é a origem do próprio projeto Onça Pantaneira, estabelecido
depois que o proprietário da Fazenda São Bento assistiu a um programa de televisão
sobre a pesquisa com as onças na Fazenda San Francisco.
Por outro lado, a face pública da pesquisa, além de atrair investimentos, é também o
que dá suporte ao diálogo entre os pesquisadores e os moradores locais, em particular os
vaqueiros, que são fundamentais para o sucesso das propostas locais de conservação.
Neste caso, além do contato dos pesquisadores com os moradores da fazenda onde o
projeto está sediado, as informações circulam também graças a encontros e workshops
organizados com representantes dos fazendeiros.
A divulgação, de forma geral, representa uma esfera de circulação dos dados
científicos em que eles são apresentados para o público leigo, então, a forma com que
aparecem neste âmbito é bem diferente daquela em que são discutidos nos artigos e na
literatura especializada. Ou seja: um determinado aspecto da pesquisa como, por
exemplo, a predação das onças sobre o gado, tem duas leituras distintas: Na tese de
doutorado do biólogo referido acima o assunto é complexo; apresenta resultados
parciais e discussões articuladas com uma série de outras questões ecológicas; é,
portanto, um problema em aberto (Azevedo 2006). Enquanto isso, em programas de TV
e matérias de revistas sobre a pesquisa, assim como nos encontros com fazendeiros, o
mesmo tema é exposto de modo diferente, buscando apresentar resultados concretos e
termos não problemáticos, isto é, soluções imediatas e fatos consumados bem diferentes
daqueles discutidos no âmbito científico.
Não intenção crítica na definição desse desdobramento ligado à apresentação de
dados para públicos diferentes. Ao apontar essas características, e as diferenças entre
veículos científicos e publicações de interesse mais amplo, como mencionei
229
anteriormente, não se trata de desqualificar essa popularização das discussões. Entendo
que a divulgação seja importante no campo científico. Assim como a publicação em
revistas especializadas. Apenas quero chamar atenção para esta dupla face da produção
científica, abordada por Latour em Ciência em Ação (1998), quando descreve o
processo de purificação dos dados científicos por meio de sua inscrição em diferentes
esferas.
Para abordar o tema da divulgação científica a partir da etnografia, descrevo nesta
seção um deo produzido pela National Geographic Society, em 2004, sobre o projeto
Gadonça, na Fazenda San Francisco. Retornarei depois ao tema na seção seguinte, ao
tratar de encontro organizado na fazenda com a participação de pesquisadores e
fazendeiros. Neste caso, a divulgação voltada para o público local aparece subordinada
a um dos principais temas conservacionistas ligados às onças, que é a questão do
conflito. Além de divulgar dados científicos, o encontro pode ser entendido também
como uma arena pública de debates entre criadores de gado e cientistas, colocando
frente a frente visões diferentes a respeito dos significados da preservação e do papel da
onça no Pantanal.
O vídeo em questão faz parte de uma série da National Geographic chamada
Animais do Brasil - Lutando pela sobrevivência, na qual, além da onça-pintada, foram
produzidos filmes curtos sobre outros animais da fauna brasileira, como o lobo-guará, o
muriqui, e o peixe-boi. O episódio sobre a onça-pintada foi filmado na Fazenda San
Francisco, em 2004. Assim como a maior parte da iconografia sobre a conservação da
vida selvagem, especialmente aquela produzida para televisão, o filme não é um
documentário, mas sim um programa com formato pré-determinado que utiliza imagens
documentais e informações científicas para passar uma mensagem conservacionista.
Minha intenção aqui é operar uma superposição das imagens da onça veiculadas nessa
mensagem audiovisual (entendendo-a como um exemplo de ecologia popular) às
imagens analisadas no capítulo anterior como parte do léxico da tradição naturalista
representada pelos caçadores.
O narrador resume o enredo da história logo no início do filme feito para a tv:
O reino da onça-pintada, o maior predador da América do Sul, está
ameaçado. Pecuaristas estão invadindo seu território. Quando matam o
gado para se alimentar, as onças-pintadas são perseguidas e mortas por
caçadores contratados por fazendeiros, com freqüência assustadora. O
230
biólogo Fernando Azevedo e seus amigos estão correndo contra o tempo
para encontrar as onças-pintadas antes que os caçadores o façam.
O roteiro do episódio provavelmente poderia ser aplicado a qualquer outra espécie
de predador em contato com rebanhos domésticos, que se trata de um programa em
série, que obedece a uma fórmula narrativa geral. A história de fundo é uma “corrida
contra o tempo” para salvar as onças; uma corrida disputada entre o biólogo e os
caçadores contratados por fazendeiros. O pesquisador é apresentado da seguinte forma:
O biólogo brasileiro Fernando Azevedo é um estudante de doutorado da
Universidade de Idaho. Ele não está conduzindo o seu estudo em algum
confortável laboratório climatizado, mas sim no Pantanal do Brasil, a
maior planície alagada do mundo. Esta é uma região onde poucos são
corajosos o suficiente para entrar. É o território de caça do maior e mais
temível predador da América do Sul: a onça-pintada.
No capítulo anterior, a partir de uma seqüência histórica de relatos de caçadores,
apontei duas imagens que, juntas, corresponderiam a uma visão tradicional, ou até
mesmo caricatural, das onças. A primeira é a de fera ameaçadora, do animal maior, mais
desafiador, valorizado como troféu, e a segunda é a da figura heróica do caçador ou do
zagaieiro que a enfrenta. A descrição da onça no trecho acima, extraído do programa de
televisão, como “o maior e mais temível predador” repete com exatidão a figura
tradicional, assim como a imagem do biólogo, descrito como o herói com coragem
suficiente para entrar no território selvagem.
A narração prossegue apresentando os personagens:
A missão de Fernando combina o objetivo de sua pesquisa científica com
um objetivo que ele considera ainda mais importante: promover a
coexistência de onças-pintadas e os fazendeiros região. (...)
Matar onças-pintadas é um crime ambiental, mas apenas no papel,e talvez
dezenas sejam mortas anualmente no Pantanal.
As imagens mostram o biólogo encontrando um bezerro ferido, e identificando o
ataque como sendo de uma onça-pintada. O narrador afirma:
Isso torna as coisas mais difíceis para Fernando, pois ele precisa organizar
uma expedição de caça tradicional para encontrar a onça-pintada que
231
matou o bezerro. O plano é capturá-la e instalar um colar de rádio para
que ela possa ser acompanhada e protegida.
A partir daí, o filme mostra uma caçada tradicional. Ao longo do vídeo, a caçada é
descrita como “um tipo diferente de expedição de caça” e uma corrida para salvar a
vida do grande predador”. Um plano longo mostra Seu João a cavalo soltando um
grupo de cães que estão atrelados em pares, e o seguem. Tonho da Onça se junta a ele
no caminho, segurando um laço a moda dos vaqueiros, assim como outros participantes
da caçada. Em outra cena, cavaleiros e cães atravessam uma baía, passando por dentro
d’água.
O narrador afirma que a caçada de onça é proibida somente no papel, e que dezenas
de animais são mortos todos os anos no Pantanal. Enquanto isso a câmera corta para o
plano da cintura de um homem não identificado, que mostra um revólver. Vemos, então,
Tonho caminhando e examinando o terreno, e há, em seguida, um corte para a imagem
das pegadas de uma onça. A narração prossegue, e descrevem-se as etapas da caçada:
O primeiro passo é localizar rastros das onças. Fernando examina a área
por sinais de arranhões, fezes ou pegadas. (...) Para que os cães para
seguir o rasto do felino, eles devem encontrar impressões frescas, deixada
por um jaguar não inferior a doze horas antes.
As imagens mostram Tonho da Onça e Seu João andando de barco procurando
rastros na margem de um Corixo. Os dois coadjuvantes são apresentados da seguinte
maneira:
O projeto de Fernando convenceu alguns caçadores a mudar de lado.
Caçadores como Tonho e João, que mataram dezenas de onças-pintadas
no passado. Agora, em vez de matar as onças, eles estão ajudando
Fernando a salvá-las.
A câmera em movimento acompanha o grupo que avança com dificuldade por
dentro da mata, com cipós e plantas de espinho. Um dos cães é ferido acidentalmente
por um dos membros da equipe, o que interrompe a caçada. A narração continua,
enfatizando o perigo e o desgaste físico do grupo:
A captura para salvar o animal pode ser tão perigosa e desgastante quanto
a caça para matá-lo. Ninguém no grupo pode ser deixado para trás, pois
este é o território da onça.
232
Uma nova seqüência de caçada mostra um grupo grande de cães. Tonho solta um
deles. O texto do programa vincula, então, o destino da onça ao faro do cão líder:
Os caçadores encontram uma pegada fresca. Tarugo é solto para perseguir
o animal.
E descreve a performance do cão mestre:
O cão líder segue os rastros da onça, e uiva para permitir que os caçadores
saibam que está nas proximidades.
Ouvimos, nesse momento, os uivos longos do cão, enquanto a imagem mostra dez
ou quinze cachorros sendo soltos pela equipe, e disparando em direção ao som. Os
participantes da caçada (inclusive o câmera) correm atrás dos cães, procurando
acompanhá-los. A narração do programa reforça a tensão das imagens:
O dia inteiro de perseguição, o grupo está exausto. Os caçadores devem
correr para onde a onça-pintada está acuada antes que ela pegue os cães.
Este é o momento mais tenso e perigoso da caça.
Em contraponto ao movimento desenfreado da câmera, o filme corta para um plano
fechado, estático, de Tonho, João e Fernando parados em silêncio, escutando
atentamente. Ouve-se o som de uivos e latidos incessantes e a câmera volta a se
movimentar na corrida pela trilha, até que finalmente o movimento se interrompe e
exibe-se uma cena com os cães embaixo da árvore, olhando para cima. O narrador
anuncia, para surpresa da equipe, que é uma onça-parda, e não uma onça-pintada, que os
cães estão acuando.
A onça-parda aparece deitada em um galho, e começam os procedimentos de
captura. Tonho e Fernando falam a respeito do peso do animal, e o primeiro aparece
fazendo mira com a espingarda. A narração diz:
Ao invés de balas, o caçador atira um dardo tranqüilizante.
Com o disparo, o puma salta por cima da câmera e sobe para um galho ainda mais
alto. Em seguida, o filme corta para a imagem do grupo esticando uma rede de pano
embaixo de um tronco, e, em câmera lenta, vemos o felino cair. Depois da
administração do anestésico, o vídeo registra alguns procedimentos realizados quando a
onça está sedada. Até que, por fim, a coleira de rádio é colocada no animal.
233
Antes da seqüência da captura da onça-parda, o filme da National Geographic
mostra também outra modalidade de caça empregada com sucesso na San Francisco. As
imagens mostram uma armadilha de ferro sendo preparada pela equipe, usando-se, para
isso, um filhote de porco como isca. É graças a esta estratégia que finalmente a onça-
pintada é capturada. O deo mostra o biólogo Fernando se aproximando da armadilha,
juntamente com Tonho, enquanto o narrador afirma que foi a primeira vez em que o
pesquisador capturou uma onça-pintada no Pantanal empregando aquele tipo de ardil.
Vemos Fernando chegar com uma pistola e atirar o dardo tranqüilizante, e depois o
acompanhamos enquanto ele olha para o relógio até a onça ficar desacordada. O
narrador observa que aquela é provavelmente a onça que estavam procurando, e
descreve mais uma vez os procedimentos de pesquisa:
Fernando mede a onça, e coleta amostras de sangue para uma análise das
condições de saúde do animal e controle estatístico da espécie. (...)
Em seguida assistimos à colocação da coleira, e a voz em off do narrador afirma:
É uma fêmea. Ela é levada para outro local para ser solta. Fernando agora
sabe exatamente por onde ela anda.
A seqüência final do filme mostra Fernando com uma antena de rádio andando sobre
uma trilha suspensa. Ele encontra a carcaça de um cervo do Pantanal. De acordo com o
narrado no programa da National Geographic, isso se deu dois dias após a colocação do
colar de rádio na onça-pintada fêmea. Ouvimos, então, os bips do sinal de rádio, em
intervalos cada vez menores. Fernando afirma que a onça está parada embaixo de uma
ponte de madeira, e aponta em certa direção, dizendo: “Essa onça está exatamente aqui.
Utilizou uma trilha que a gente usou nesta manhã”.
O narrador volta a dar explicações, enquanto vemos a carcaça do cervo na imagem
esverdeada de uma câmera noturna:
Uma câmera filmadora é deixada por Fernando diante do corpo do cervo
durante a noite. Ele precisa saber se os animais que ele está acompanhando
estão mais uma vez caçando e se alimentando de presas silvestres.
Por fim, ele narra a aproximação da onça, e conclui a história:
A partir da escuridão do Pantanal, o maior predador da América do Sul
surge. É uma onça enorme, e tem um colar de rádio. Isso mostra que as
234
onças monitoradas estão mais uma vez se alimentando de presas silvestres,
e não o gado.
O filme pode ser compreendido em pelo menos dois registros diferentes. O primeiro
é a história narrada em off, que descreve a captura. A mensagem conservacionista se
completa com a onça sendo salva pelos pesquisadores, e voltando a se alimentar de
animais silvestres. A coleira é apresentada como um símbolo dessa salvação da onça. A
idéia de ‘salvar’ os animais talvez seja a mais básica no que se refere à mensagem
conservacionista. Apesar de alguns registros documentais e da citação de fatos
científicos, o objetivo do vídeo é moralista, é passar certa mensagem, e não documentar
o processo de trabalho dos cientistas, investigar ou documentar uma predação. Isso
justifica a ausência de dados sobre o tema, ou sobre o animal em questão. O recurso
narrativo é metonímico: aquela onça em particular que está sendo perseguida pelos
criadores representa a espécie, ameaçada. Ela é devolvida para a natureza pelos
biólogos. A imagem do macho dominante, o ideal apresentado no capítulo anterior, é
substituída aqui pela da fêmea em perigo.
Para que a mensagem funcione, é preciso, no entanto, que acompanhemos o narrador
no tratamento dispensado a todos os outros atores, tratados apenas como intermediários
que transportam passivamente o sentido salvacionista da conservação. Minha intenção
aqui é seguir o procedimento adotado nos capítulos anteriores, e procurar colocar em
cena todas as camadas de mediação que se interpõem entre o espectador e aquilo que ele
observa.
Os dois caçadores nativos funcionam como coadjuvantes no filme, e são
apresentados como ajudantes do biólogo em sua missão. O vídeo documenta, ainda, em
diversas imagens, aspectos do trabalho com os cães: a perseguição, a comunicação entre
o cão mestre Tarugo e seu dono, Tonho, a acuação, todas essas etapas da caçada
aparecem no filme. O enredo do programa reforça a imagem dos caçadores que
passaram a capturar a onça para preservá-la:
E assim, este magnífico predador retoma o seu lugar no topo da cadeia
alimentar do Pantanal, sem saber que a sua vida tinha sido salva por
Fernando e pelos mesmos homens que, no passado, teriam acabado com
ela.
Assim como a onça, também eles, os caçadores, de alguma forma, são “salvos” pela
ecologia. O final feliz do programa se sustenta nessa idéia da causa nobre que move o
235
grupo. O vídeo da National Geographic retrata a atividade da caça, mencionando as
onças mortas anualmente por fazendeiros. Em determinado momento o narrador do
afirma:
O destino da onça depende do faro do cão Tarugo. A ironia em tudo isso é
que, para salvar a vida do grande gato, tarugo pode perder a sua.
Talvez a ironia não esteja na segunda frase, mas na primeira: Se ignorarmos a
narrativa em off e a mensagem salvacionista, o filme torna-se um documentário
interessante sobre a caçada tradicional com cães, mostrando a aplicação dessa técnica
aos estudos de campo. A diferença na captura, com relação à caçada tradicional, se
do momento do tiro em diante.
Os procedimentos realizados entre a anestesia e a colocação da coleira incluem a
pesagem da onça, a avaliação da arcada dentária (o que permite ao pesquisador calcular
a idade do animal), a coleta de amostras de sangue. Durante todo esse processo, os
batimentos cardíacos do animal são monitorados. Diversas medidas são anotadas
(comprimento do corpo, cauda, dentes, orelhas, entre outras). As amostras coletadas
podem vir a dar origem a uma série de pesquisas posteriores, e a circulação delas fora
do campo é o tema da próxima seção.
5.2. A circulação das amostras pela rede científica
A seguir apresento registros de campo que descrevem de alguma forma uma rede de
pesquisadores e instituições conectadas a partir do estudo das onças no ambiente
natural. Esses registros se referem a duas visitas a laboratórios que trabalhavam com
amostras coletadas nas pesquisas de campo que acompanhei no Pantanal, e um
Workshop sobre a onça-pintada do qual participei como observador.
Pró-Carnívoros
Em junho de 2007, época em que eu ainda não tinha conseguido estabelecer uma
área de trabalho no Pantanal, visitei o Centro de Pesquisas para Conservação dos
236
Predadores Naturais em Atibaia, no interior de São Paulo. No dia em que cheguei ao
centro, por acaso, dois estagiários estavam trabalhando com amostras de sangue de
onça-pintada. Eles utilizavam a pipeta de precisão para distribuir o conteúdo de um tubo
de ensaio em seis pequenos frascos. Nas etiquetas, eram registradas as seguintes
informações: no alto, o nome da espécie, Panthera onca, em seguida o mbolo gráfico
feminino ou masculino, depois o local e a data da coleta. Entre as amostras, observei
que havia algumas provenientes das fazendas San Francisco e Caiman, as duas que
visitara no ano anterior.
Esses frascos etiquetados eram então dispostos em caixas com compartimentos
quadriculados, divididos em coordenadas cartesianas com números e letras. Além do
sangue, chegam ao laboratório do CENAP amostras de sêmen, tecidos e pelagem de
animais carnívoros. Conforme me explicou um dos técnicos do laboratório, os tecidos
não precisavam ser refrigerados, sendo preservados em solução de álcool; e a partir
desse material podem ser obtidas amostras de DNA. O sêmen, por sua vez, ficava
guardado em recipientes de nitrogênio líquido. O projeto do coordenador do Centro,
Ronaldo Morato, era formar uma coleção de gametas e futuramente de embriões,
visando a um possível manejo genético de técnicas de reprodução assistida.
Numa sala lateral do centro, congeladores e tanques de nitrogênio líquido ficavam
ao lado de equipamentos novos ainda encaixotados, aguardando o espaço adequado para
serem montados. Amostras de sangue enviadas de projetos em todo o Brasil se achavam
acumuladas nos freezers. Era neste local que estavam sendo armazenadas as caixas
contendo as amostras de sangue preparadas pelos estagiários. Elas seriam, depois,
guardadas em um congelador especial, numa temperatura de 80 graus negativos. Antes
disso, a posição de cada frasco devia ser registrada no banco de dados do computador,
assim como os dados referentes a cada uma das amostras.
Rodrigo, veterinário formado pela USP e responsável pelo banco de amostras,
explica que elas são divididas em vários recipientes para que possam ser aproveitadas
em diferentes pesquisas. Além disso, são registradas e armazenadas, pelos próprios
pesquisadores, em congeladores convencionais, nos laboratórios de campo. O sangue é
centrifugado, separando soro e coágulo. A partir do soro, o pesquisador explica, é
possível detectar a presença de anti-corpos, que podem indicar se um animal foi
exposto a determinada doença.
Uma parte do sangue é misturada a um líquido de preservação para análise de DNA.
Além do CENAP, as amostras são enviadas também ao Centro de Biologia Genômica e
237
Molecular da PUC-RS, onde estão sendo feitos estudos genéticos sobre as onças. A
determinação do grau de parentesco entre os indivíduos permite estudar a viabilidade
genética de uma determinada população.
O CENAP é um órgão do Ibama, e foi criado em 1994. Dois anos mais tarde surgiria
a Pró-carnívoros, um braço não-governamental das pesquisas sobre animais carnívoros
no Brasil. O modelo um órgão ambiental oficial vinculado a uma ONG seguiu o
exemplo do projeto Tamar com as tartarugas marinhas (o primeiro grande projeto desse
tipo no Brasil, dos anos 80). A organização e a manutenção do banco de amostras
biológicas é uma das principais atividades do centro de pesquisas, que atua também em
outras duas frentes. A primeira é a organização de um banco de dados com registros de
espécimes em zoológicos e criadouros particulares no Brasil. A outra é a prevenção e o
atendimento de casos de predação de animais domésticos, que envolve o
armazenamento de dados e o atendimento de ocorrências de conflito entre esses animais
e as populações humanas.
Uma das principais apostas dos pesquisadores do centro, como método de prevenção
de ataques de onça, era a utilização de cães guardiões. Alguns filhotes da raça Kuwasz –
pastor húngaro usado para proteger os rebanhos europeus dos lobos e ursos tinham
sido levados, com excelentes resultados, para propriedades no interior de Minas e São
Paulo, que estavam enfrentando problemas com ataques de onça-parda. No entanto, eles
ainda não sabiam até que ponto o uso desses cães funcionaria com a onça-pintada e com
o gado. O principal problema desse método, de acordo com Rogério, era financeiro:
pois são raças caras, e um filhote pode custar mais de dois mil reais. E a proposta do
pesquisador era a criação de um canil que atenderia aos casos de conflito.
Fundo para a Conservação da Onça Pintada
Em agosto de 2007, ocorreu o I Workshop sobre Distribuição, Manejo e
Conservação da Onça-Pintada no Brasil, organizado pelo FCOP Fundo para
Conservação da Onça Pintada, em parceria com a CI Conservation International. O
congresso realizado na sede do Parque Estadual do Cantão, na Ilha do Bananal. Como
havia conhecido recentemente os pesquisadores, pedi ao coordenador do grupo, Leandro
Silveira, para participar do evento. Ele respondeu que, “apesar de ser um evento muito
especifico a pessoas que tem dados sobre a espécie...”, eu poderia participar.
238
O objetivo principal do Workshop era a elaboração do “Plano de Ação para a
conservação da onça-pintada no Brasil”. Três categorias foram utilizadas no evento
para se falar das estratégias de conservação das onças. A primeira era Espécie-chave, o
que se refere à importância ecológica do predador em determinado ambiente. A
segunda, Espécie bandeira, por se tratar de um animal carismático, que chama a atenção
pública para a conservação ambiental. Por último, foi utilizado o termo espécie guarda-
chuva, que junta um pouco as duas coisas, ou seja, a idéia é que, preservando um
predador de topo de cadeia, preserva-se toda a cadeia.
O interessante na utilização desses termos me pareceu a constituição das estratégias
discursivas conservacionistas específicas para a espécie. Animais como baleias,
golfinhos e primatas, por exemplo, sucitam estratégias conservacionistas ligadas à
identificação e à inclusão: todo um arsenal retórico ligado às discussões sobre os
direitos dos animais, aos sentimentos, e à inteligência. Animais predadores, por outro
lado, especialmente aqueles que são uma ameaça para os seres humanos – “men-eaters”,
como se diz em inglês motivam outras modalidades de argumentos. E termos muito
mais ligados ao gerenciamento dos recursos ecológicos, e à lógica do manejo dos
recursos naturais. Os grandes felinos se incluem nesta última categoria, mas são
admirados, ao mesmo tempo, por sua beleza, força e agilidade, sendo considerados
animais carismáticos, o que coloca a retórica da conservação em uma posição
intermediária.
O exercício proposto inicialmente no workshop era denominado PHVA (Population
habitats and viability analysis), e consistia na compilação de dados e na elaboração de
variáveis a serem inseridos em um programa de computador (RAMAS). O computador
elaborava, então, mapas complexos e previsões de quadros futuros para a espécie em
termos estatísticos. Um cálculo importante para a elaboração de planos de manejo desse
tipo é o da “capacidade de suporte” de determinado ambiente. As informações brutas
foram colocadas em mapas quadriculados, nas paredes de um grande auditório, com os
registros de presença de onças no Brasil, subdivididos em biomas: Amazônia, Cerrado,
Pantanal, Caatinga e Mata Atlântica. Os participantes do workshop foram convidados a
marcar nesses mapas seus próprios registros, usando as seguintes categorias para definí-
los: rastros, observação direta, relatos e armadilha fotográfica.
Uma etapa importante das pesquisas sobre onças é o chamado “geo-
referenciamento”, com a utilização de coordenadas de GPS e fotos de satélite. Um
conceito da ecologia ligado a esse aspecto geográfico é o de “área fonte”, definida por
239
abrigar populações residentes de uma espécie. O tamanho dessas populações e a
conexão entre essas áreas são os elementos utilizados para a os cálculos da distribuição
atual e da viabilidade populacional. A conectividade entre elas é formulada a partir de
conceitos como “corredores” e “trampolins”.
Para elaborar os mapas, no Workshop, foram incluídas como “áreas fonte”
(possíveis refúgios), as Unidades de Conservação e as terras indígenas em território
brasileiro, sendo que praticamente não existem dados científicos sobre essas últimas. É
curioso que onde existe mais conhecimento etnográfico é onde existe menos
conhecimento científico sobre a onça. Um fator importante, muito discutido no evento,
foi a implantação das RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Nacional), que são
consideradas um instrumento chave na preservação do Pantanal.
Os pesquisadores participantes foram convidados também a indicar três ameaças
principais para cada bioma a partir de uma lista. Houve um consenso em torno da
“perda de habitat”, mas os outros itens variavam. A caça, de modo geral, é considerada
a segunda ameaça principal. Os grupos, divididos por bioma, discutiam a partir daí os
mesmos temas, pré-estabelecidos, em torno de estratégias de conservação e de manejo
para a onça. As ameaças eram analisadas, e recomendações de soluções eram
selecionadas a partir de tabelas. Essas recomendações incluíam cercas elétricas, animais
sentinelas, alarmes sonoros, barreiras visuais, entre outros.
Leandro Silveira, organizador do evento, comentou em sua apresentação que
considerava mais difícil repelir espécies de predadores do que de presas com métodos
como alarmes sonoros e barreiras visuais, por causa da curiosidade natural dos
primeiros. (Ou seja, é mais fácil manter um bando de queixadas longe de um campo de
milho do que uma onça longe de um cercado de ovelhas). O biólogo contou, por conta
disso, a história das armadilha para pacas, usando tiros de espingarda, que atraiam
onças-pintadas. A onça aprendeu a associar o barulho do tiro às pacas mortas, e passou
a se aproveitar das armadilhas, chegando antes dos caçadores.
Acompanhei mais de perto a discussão do grupo do Pantanal, já que era o bioma
onde pretendia concentrar minha pesquisa de campo. Participaram dessa discussão
pessoas com pesquisas feitas na região: além do citado Leandro Silveira, organizador
do evento, havia Ricardo Boulhosa, ligado à Pró-carnívoros e à organização WCS, e
Cyntia Cavalcante, da REPAMS, uma ONG que trabalha com RPPNS, ligada à
Secretaria Regional de Meio Ambiente do MS e ao IPP Instituto Parque Regional do
Pantanal.
240
Os pesquisadores distinguiram duas realidades: pecuaristas tradicionais e
proprietários que investem no turismo, enfatizando que esses últimos são uma minoria
na região. Perguntei a Boulhosa quem seriam os representantes dos pecuaristas nessa
discussão, e ele me apontou, entre outros, a Associação dos proprietários rurais do Mato
Grosso do Sul. também uma Associação dos donos de pousadas. O conflito de base
é entre a expansão da fronteira agropecuária e a conservação ambiental ligada ao
ecoturismo.
Assim como nas outras regiões, a principal ameaça ao meio ambiente foi
considerada, como já assinalei, a “perda de habitat”. As recomendações apontadas
foram relacionadas às seguintes questões: fiscalização, incentivo às RPPNS e o manejo
das propriedades rurais. Segundo Boulhosa, o custo elevado da limpeza de campo, que
preserva a vegetação nativa, se torna tão alto, por causa da burocracia do Ibama, que é
mais fácil e mais barato desmatar. Essa primeira discussão apontava para questões a
serem apresentadas, para todos os participantes, no último dia do evento. Nessa segunda
arena, Boulhosa declarou que considerava fundamental fazer o fazendeiro ver a onça
como benefício, e sugeriu uma espécie de certificado orgânico, com fazendas com
presença de espécies-bandeira.
Um trabalho citado como exemplar foi o programa de compensação financeira usado
pela equipe de Silveira em fazendas do Pantanal, financiado pela CI (Conservation
International). Os peões da fazenda receberam câmeras para registrar os ataques de
onça, e os pesquisadores tinham dois dias para fazer a comprovação. Se fosse
comprovado o ataque, a ONG arcava com o prejuízo, pagando o preço médio do boi na
região. (Um pesquisador do CENAP, que entrevistei em outra ocasião, afirmou sobre
isso que as onças matam muito menos gado do que os fazendeiros sempre alegaram, e
que o projeto era bom por mostrar a eles a quantidade real).
O complemento desse trabalho, tendo em vista uma mudança na imagem local da
onça, era o chamado Projeto Onça-Social, que oferecia assistência médica aos
moradores das fazendas. O problema do programa de compensação financeira, de
acordo com os participantes, era que ele tinha um prazo para acabar, o que poderia gerar
um efeito rebote quando os proprietários deixassem de receber os recursos.
A “caça cultural” foi considerada a segunda principal ameaça para a onça-pintada no
Pantanal. Foi muito discutida no evento a questão do manejo dos “animais-problema”,
passíveis de identificação. A remoção desses animais é a maior demanda dos
proprietários rurais, mas é considerada a última opção pelos pesquisadores. Um
241
problema sério é para onde levá-los. Por lei, o Ibama pode autorizar o abate desses
animais. A discussão teve um desdobramento especifico no caso do Pantanal,
relacionado à legalização da caça esportiva. Um dos representantes do Ibama, presente
ao encontro, defendeu a regulamentação da caça com o argumento de que os
pantaneiros sempre fizeram esse controle. Para minha surpresa, muitos pesquisadores
concordavam com o argumento. Em relação ainda à questão da caça, um dos presentes
deu o exemplo do porco-monteiro, um animal exótico que teria seu impacto local no
ecossistema compensado pelo alívio na pressão da caça das espécies nativas de porco do
mato. “Quando o exótico é bom...”, completou.
Durante o Workshop, havia também um grupo de discussão em torno da medicina
veterinária, ou medicina da conservação, que também fazia parte do evento. Mariana
Furtado, veterinária ligada ao FCOP, Fundo para a Conservação da Onça-Pintada, que
organizou o evento, me falou que esse era um campo em formação, e que apenas
recentemente o trabalho com animais silvestres se tornara uma disciplina opcional na
USP. O trabalho de doutorado da pesquisadora envolvia a identificação de doenças e
parasitas em onças-pintadas, por meio da análise das amostras de sangue das onças e de
animais domésticos que vivem em torno do Parque Nacional das Emas, em Goiás.
Os principais campos envolvidos no workshop foram genética, medicina da
conservação, ecologia e biologia. No plano institucional, são diversos atores envolvidos
com a conservação da onça-pintada. Três Ongs trabalham diretamente com onças: o
FCOP, que organizou o evento, o Ipê, que atua principalmente na Mata Atântica, e a
Pró-carnívoros. A estrutura do workshop revelava um modelo de produção de
conhecimento baseado no estabelecimento de consensos em torno de estratégias de
conservação para a espécie. Uma questão fundamental para o sucesso de um evento
daquele tipo é a validação dos dados. Quem são os participantes que falam pelas onças?
Qual o peso deles no campo científico? São perguntas ligadas à questão da
representação.
Nesse sentido, era notável a ausência de pesquisadores importantes, do ponto de
vista da estrutura política: principalmente de pesquisadores ligados ao CENAP e à Pró-
carnívoros. Essa ausência era reveladora de um conflito político interno, que culminaria,
mais tarde, no rompimento definitivo entre os responsáveis pelo FCOP (que
organizaram o evento) e o Instituto Pró-Carnívoros, ao qual eles se achavam vinculados
até então.
242
Genética da conservação
Outro destino para as amostras biológicas obtidas nas pesquisas de campo com as
onças no Pantanal é o laboratório de genética da PUC-RS. Em julho de 2007, visitei o
laboratório, em Porto Alegre, para fazer uma entrevista com Eduardo Eizirik,
pesquisador associado à ONG Pró-carnívoros. O laboratório era equipado com
tecnologia de ponta, e o geneticista me explicou que os equipamentos não deixavam a
dever a nenhum dos laboratórios nos quais ele trabalhara fora do Brasil. Enquanto tirava
de uma gaveta uma série de chapas de raio-X, o pesquisador afirmou que dez anos,
quando fizera o mestrado, ele era obrigado a radiografar a seqüência de bases de DNA e
contar uma a uma, usando uma régua, para passar os dados para o computador. Em
2007, ele podia realizar no próprio lap-top análises que seriam inconcebíveis
alguns anos, o que usou como dado capaz de ilustrar a explosão recente de métodos e
possibilidades de pesquisa em genética.
Um dos principais métodos responsáveis por essa explosão, de acordo com
Eizirik, foi o desenvolvimento do PCR, a Reação em Cadeia da Polimerase. O método,
descoberto por acaso, se baseia em reações químicas que replicam as seqüências de
bases. Uma das salas do laboratório abrigava algumas máquinas de PCR: caixas-pretas,
devidamente patenteadas e produzidas em série, nas quais era possível ler
Termociclador; Effect cycling. A máquina como explicou o cientista replica uma
amostra de DNA, e o que ela produz são “seqüências” analisadas depois com o uso de
gelatina, gel, e corantes.
Isolado numa sala ao lado, o pesquisador mostrou também o equipamento principal
centro de pesquisas: um Seqüenciador Automático de DNA uma máquina grande e
compacta onde eram processadas as bases, após passarem pelo PCR. O equipamento
ficava conectado diretamente ao computador, onde podiam ser visualizadas as
seqüências de bases. Ele explicou que a PUC-RS foi uma das dez instituições que
recebeu uma daquelas máquinas, adquiridas pelo governo brasileiro para o projeto
genoma humano.
De acordo com Eizirik, a biologia da conservação devia muito a esses avanços
dos métodos de pesquisa em genética. Um exemplo disso era o trabalho realizado com
as amostras de fezes. Se pudesse escolher ele afirmou não trabalharia, no entanto,
com amostras de fezes ou pêlos, pois o DNA que pode ser obtido nessas amostras era
muito precário. Ele mostrou então as etapas da pesquisa: as amostras são guardadas em
243
uma sala isolada, e manipuladas nas chamadas Capelas, utilizadas para isolar o material
no momento da manipulação.
Esse avanço no campo da genética pode ser diretamente relacionado ao surgimento
de uma nova técnica de pesquisa de campo, apresentada no Workshop de Tocantins
(2007) pela pesquisadora Carly Vynne, da Universidade de Washington. Carly
desenvolveu sua pesquisa no Parque das Emas, em parceria com a equipe do FCOP,
mapeando a presença de onças e outros animais através das fezes. A indicação do local
onde foram encontradas as amostras era lançada no computador gerando mapas com a
localização dos animais, enquanto o material coletado no campo podia gerar
informações genéticas graças às novas técnicas desenvolvidas em laboratório.
Entre outros resultados interessantes, Eizirik e sua equipe haviam identificado a base
molecular do melanismo na onça-pintada, isolando a modificação genética que gera essa
característica (Eizirik et al. 2003). O pesquisador contou que foi estabelecida uma
relação entre esse trabalho, publicado em uma prestigiada revista americana, e alguns
estudos sobre um gene que afetava a resistência à AIDS, e que, por conta disso, houve
uma grande repercussão dos resultados dessa pesquisa no campo da genética. O estudo
da genética dos felinos também levara a uma reavaliação recente da classificação das
sub-espécies da Panthera onca, mostrando que a maioria das categorias tradicionais
(determinadas por diferenças taxonômicas) não descreviam uma diferenças genotípicas
significativas. As diferenças de tamanho entre as onças de campo aberto como as do
Pantanal e as de mata fechada foram identificadas pelo estudo com diferenças
fenotípicas, associadas ao tipo de habitat e à disponibilidade de presas em cada uma das
regiões (Eizirik 2006). Uma das conseqüências disso é que o termo Panthera onca
palustris, usado para designar a onça pantaneira (Almeida 1976; Crawshaw e Quigley
1984) caíra em desuso em 2007 na literatura especializada.
O livro Manejo e Conservação dos Carnívoros Neotropicais, publicada pelo Ibama
em 2006 (Morato et al), é um apanhado de toda a produção recente da área no Brasil. O
sumário do livro é um excelente resumo das áreas de pesquisa associadas sob este
guarda-chuva interdisciplinar. Ele é dividido em cinco partes: Genética e Sistemática de
Carnívoros, Conservação situ (levantamento e monitoramento, estudos de distribição,
padrões de uso, hábitos alimentares), Predação de Animais Domésticos por Carnívoros
Silvestres; Banco Genômico e Manejo em Cativeiro; e Medicina da Conservação. A
genética e o manejo em cativeiro se referem, de modo geral, a estudos de laboratório.
244
As práticas de campo, por sua vez, estão ligadas aos três outros campos e agregam
principalmente pesquisadores provenientes de biologia, veterinária, zoologia e ecologia.
A Conservação in situ pesquisa os processos ambientais, a relação entre as populações
de animais e plantas, a ecologia da paisagem e a ecologia das espécies animais, como os
seus hábitos alimentares e o seu uso do hábitat, por exemplo. A Medicina da
Conservação é desenvolvida pelos médicos veterinários que trabalham com animais
silvestres de vida livre; eles são os responsáveis pela preparação dos anestésicos nas
capturas de animais pelos biólogos, e realizam pesquisas com as amostras de materiais
biológicos coletadas no campo.
A Predação de Animais Domésticos é o campo de pesquisas voltado
especificamente para o tema do conflito entre produtores rurais e os carnívoros
silvestres, em engloba estudos sobre a própria predação (a relação predador-presa entre
os carnívoros e os rebanhos domésticos), técnicas de manejo, estratégias de
conservação, além de estudos sobre a Percepção Local (voltados para as comunidades
rurais que convivem com os carnívoros).
No que se refere à produção de textos e material discursivo, as práticas ecológicas
do Manejo e da Conservação operam em (pelo menos) três diferentes circuitos: (1) A
área científica, que inclui os artigos científicos e acadêmicos, que circula pela rede de
colegas, o público interno; (2) a área de divulgação, com matérias de jornal, revistas e
programas televisivos, voltados para o público externo urbano; e (3) a área técnica:
manuais sobre o problema da predação, técnicas de manejo, que é destinada ao público
rural: agricultores, pecuaristas, e produtores. No caso das práticas de campo, os projetos
de pesquisa sobre onças trabalham dentro das fazendas e em contato direto com os
vaqueiros, e o trabalho de Conservação é fortemente voltado para as comunidades
rurais.
5.3. Conflito e Conservação
No dia 26 de maio de 2008 foi organizado na Fazenda San Francisco, em Miranda,
um encontro entre pesquisadores, representantes de órgãos públicos, Ongs e
proprietários rurais para debater os rumos da conservação da onça na região. O evento
foi coordenado por Fernando Azevedo, pesquisador associado ao Instituto Pró-
carnívoros, e pelo técnico do programa Pantanal do WWF-Brasil, Ivens Teixeira
Domingos. O objetivo dos organizadores era reunir fazendeiros e ambientalistas para
245
apresentarem e debaterem propostas que associavam de diversas formas a preservação
da biodiversidade à criação do gado, tendo a onça como elemento chave para a
discussão.
Além das instituições mencionadas, o encontro contou também com a
participação de representantes de uma série de outras entidades: a Embrapa Pantanal,
principal instituição governamental de pesquisa na região; a World Conservation
Society (WCS); o Centro Nacional dos Predadores (Cenap), vinculado ao Instituto
Chico Mendes (antigo Ibama); a Secretaria de Meio Ambiente e a Polícia Florestal do
MS; além Federação de Agricultura do Estado do Mato Grosso do Sul (Famasul) e da
Associação de Proprietários de Reservas Particulares do Patrimônio Natural de Mato
Grosso do Sul (Repams). A platéia era composta pelos representantes das instituições
citadas, alguns proprietários rurais da região, funcionários da Fazenda San Francisco,
do Projeto Gadonça e do Projeto Onça Pantaneira. Acompanhei o evento, registrando
as apresentações dos participantes em um gravador portátil, e transcrevo o trecho em
que o pesquisador apresenta a equipe de trabalho e os parceiros dos dois projetos:
Eles têm objetivos mais ou menos parecidos, e eles têm como equipe de
trabalho eu; o Henrique, que é o biólogo de campo responsável na São
Bento; nós temos o Ricardo Costa, que é o biólogo responsável pelo
trabalho aqui; nós temos nosso prático de campo de campo que é o João,
que é o famoso João da Onça. O restante da nossa equipe está na São
Bento. São vinte e dois cães, e seis cavalos, que é nossa tropa de lá.
Também fazem parte da nossa equipe.
(...) Nós temos como principais apoiadores e financiadores esses institutos:
o Pró-carnívoros; a Fazenda San Francisco; a Fazenda Real - Filial São
Bento, que é a fazenda do Projeto Onça Pantaneira; temos o WWF Brasil;
o Centro Nacional dos Predadores, que é o antigo Ibama, que agora foi
dividido e que no Senado está sob a jurisdição do Instituto Chico Mendes de
Biodiversidade; temos o apoio da Fapesp, que é um fundo de financiamento
do Estado de São Paulo; e da empresa Premier Pet.
Foi por meio desses projetos que eu cheguei às duas fazendas. Meu objetivo era
desenvolver um estudo etnográfico nos dois locais, que estivesse voltado para essa
relação complexa entre a conservação das onças e a criação de gado, e para os múltiplos
papéis que a onça parecia desempenhar nessas regiões. O tema da predação das onças,
246
que é como os pesquisadores designam os eventos de ataque ao rebanho doméstico,
representa uma área específica de pesquisa e também de um conjunto de práticas
conservacionistas, e as publicações ligadas a ele se desdobram tanto em artigos
científicos (como o citado) quanto em manuais para proprietários rurais e para o público
não-científico em geral. Na apresentação para os proprietários rurais, (op.cit) o biólogo
também aborda o tema da seguinte forma:
Com relação ao gado, a gente tinha a preocupação de examinar... descobrir
quais os fatores que levam uma onça a decidir comer o gado, ao invés de
comer, por exemplo, uma capivara, um cervo... E é a grande pergunta que
tem nessa região aqui do Pantanal, da gente que convive com o gado e com
a onça. A onça sempre é vista como um problema, porque ela come o gado.
Ora, se ela come o gado, a gente tem que descobrir porque é que ela come
o gado.
E conclui sua apresentação apontando uma aliança possível entre a pesquisa e a
criação do gado:
Bom, o que eu tentei fazer até agora pra vocês foi mostrar o que é que o
biólogo tem de bom pra poder produzir para o entendimento da predação
no Pantanal. Quer dizer: como é que a gente pode, de uma forma bem
simples, ajudar os pecuaristas também. Não está sendo um trabalho
simplesmente científico. foi publicado em revistas internacionais, etc. e
tal, mas a nossa preocupação não é de isolar a onça pra ela não ser extinta.
É fazer com que haja um convívio da onça com a pecuária. Porque as duas
coisas vão continuar; por mais que a gente queira acabar com a onça,
ainda tem onça aqui...
Uma das publicações em revistas internacionais mencionadas nessa comunicação é
um artigo sobre o tema da predação do gado pelas onças-pintadas (Azevedo; Murray,
2007). O artigo é resultados do estudo realizado na Fazenda San Francisco, entre 2003 e
2004, que serviu de base para sua Tese de Doutorado na Universidade de Idaho (EUA).
Nele, os autores definem esse tipo de predação como uma fonte de conflito (“human-
carnivore conflict”) e um fator de ameaça para a espécie.
O conflito entre humanos e animais, no caso, se refere particularmente à atividade
da caçada de onça, utilizada como forma de solucionar o problema da predação pelo
247
criador de gado. Pretendo manter o tema conservacionista do conflito no plano das
categorias, por assim dizer, nativas, e não tomá-lo como categoria analítica, o que foi
feito no campo da antropologia por John Knight (2000). O termo “predação”, em seu
sentido ecológico mais amplo, se refere a qualquer relação predador-presa. No caso das
práticas de campo dos biólogos que trabalham com as onças, no entanto, a expressão
ganha um sentido mais específico, e é utilizado para designar especificamente a
predação do gado pelas onças, ou como substituto para ‘o problema da predação’. É
nesse sentido que vou utilizar o termo em meu trabalho. Outra dimensão da relação
predador-presa presente no tema do conflito seria o caso (ou a ameaça) do ataque a um
ser humano por uma onça.
Minha intenção no presente trabalho é descrever o tema da predação do gado por
onças a partir de outra perspectiva. No caso desta etnografia, feita em fazendas onde
existem projetos voltados para a conservação das onças, esse tipo de predação não
remete apenas ao tema do conflito, mas também em diversas relações de aliança
estabelecidas no campo pesquisadores, vaqueiros, proprietários e caçadores.
O evento aconteceu ao final do meu primeiro período de pesquisa de campo na
região, e obtive o consentimento dos participantes para registrar todas as apresentações
em áudio, utilizando um gravador portátil. Os principais temas discutidos no encontro
estavam relacionados à conservação da vida selvagem e ao conflito entre criadores de
gado e onças, a primeira entendida aqui como uma ciência multidisciplinar e o segundo
como seu principal objeto de preocupação (“matter of concern”, para usar uma
expressão latouriana).
De acordo com o que foi apresentado, a necessidade de lidar com aqueles que vêem
a onça como ameaça e a busca de um modelo participativo parece ser a tônica das
estratégias das entidades ambientalistas que atuam na região. Algumas das questões
colocadas foram: Quanto de lucro uma onça proporciona a um fazendeiro que trabalha
com turismo? Quanto de prejuízo causa a um criador de gado? Como aferir valor à
biodiversidade? Como reverter o incentivo ao desmatamento através de ferramentas
político administrativas?
Um dos motivos para a criação do Centro Nacional dos Predadores (Cenap), em
1994, pelo governo federal foi a necessidade de lidar com o tema do conflito, conforme
explicou em sua palestra Rogério Cunha de Paula, representante da instituição. O
pesquisador falou sobre o programa que coordena, voltado especificamente para o
atendimento a casos de conflito, e comentou que a espécie responsável pela maior parte
248
deles é a onça-parda. De acordo com sua apresentação, uma série de experiências com
manejo desses animais, como a captura e translocação daqueles que atacassem os
rebanhos, resultou em exemplos mal sucedidos no passado. Em relação ao Pantanal, o
palestrante apontou a valoração da onça-pintada como representante da biodiversidade
local e abertura de um canal mais direto de discussão com os produtores rurais como
estratégias fundamentais de conservação da biodiversidade.
O Dr. Roberto Coelho, dono da San Francisco, discorreu no encontro a respeito da
questão: O que representa para um produtor rural pantaneiro abrigar um projeto de
pesquisa sobre a onça?” De acordo com ele, o interesse da fazenda em receber o
projeto foi gerado por dois motivos: o incremento do turismo e a preocupação com a
predação da onça sobre o gado. Os dados sobre a morte de cada animal já eram
registrados na fazenda, o que auxiliou o trabalho de pesquisa. O fazendeiro relatou que a
onça é a espécie mais procurada por turistas, fotógrafos e visitantes na San Francisco,
tendo um papel central no turismo ecológico regional. De acordo com ele, o diferencial
das fazendas pantaneiras é a vida selvagem, e a diminuição da predação é possível
graças à manutenção da fauna nativa e à adoção de medidas mais intensivas de manejo
do rebanho. As maiores causas de morte de gado na fazenda afirmou não são as
onças, mas sim cobras e ervas tóxicas.
De modo geral, as propostas que foram apresentadas durante o encontro,
relacionadas ao tema do conflito (e de sua mitigação), poderiam ser divididas em duas
vertentes. A primeira voltada para as onças tecnologias preventivas (a eficácia de
diversos tipos de repelentes e barreiras), instrumentos de controle de pragas, e a
capacidade do ambiente e alterações ecológicas – e a segunda para os fazendeiros e para
o desenvolvimento sustentável da pecuária e da cadeia produtiva da carne selo
orgânico, selo de biodiversidade, entre outros assuntos. A seguir vou apresentar alguns
exemplos de cada uma dessas duas vertentes e das discussões que eles suscitaram.
O biólogo Ricardo Boulhosa apresentou no encontro alguns resultados do trabalho
que desenvolveu entrevistando fazendeiros de todas as regiões do Pantanal. No trecho a
seguir, o pesquisador define o conflito e aponta para algumas propostas de mitigação
voltadas para a diminuição do ataque dos predadores sobre os rebanhos domésticos:
[O]nde ocorrerem os carnívoros e a presença do homem com alguma
atividade econômica com a criação, vai ter conflito. Você tem diferentes
espécies no mundo todo: leão na África, tigre na Ásia, a onça aqui, o lobo
249
no hemisfério norte... Sempre vai ter esse tipo de problema quando você tem
esses tipos de animais. Então, uma das coisas que dentro desse problema da
predação, e de tentar mitigar conflitos. (...) E tem essa questão, que o
carnívoro é um animal de adaptação. Então, ou ele se acostuma com o
estímulo antagônico, ou aprende um jeito de driblar, de passar... Então, o
animal descobre que tem cerca elétrica lá, mas tinha um vãozinho que o
cara esqueceu de eletrificar a cerca, e ele passa por ali... Descobre e passa.
A pesquisa do biólogo, utilizando um questionário extenso, foi realizada para um
programa de extensão da WCS. A Wildlife Conservation Society é uma ONG
internacional, com sede no Bronx Zoo, em Nova York, uma das mais antigas
organizações não-governamentais que existem no mundo, criada em 1895. A
instituição, chamada então de New York Zoological Society, foi responsável, no final
dos anos 1970 e início dos 1980, pelo primeiro grande projeto de pesquisa envolvendo a
técnica da telemetria aplicada à onça-pintada na natureza, desenvolvido por George
Schaller.
Boulhosa relata que epois disso a WCS permaneceu algum tempo sem projetos na
região, até que um novo programa no Pantanal se iniciou em 2002. Mais tarde este
programa interrompido para uma reavaliação porque, de acordo com o biólogo,
continha alguns erros estratégicos:
Então, em 2005, eu fui contratado, fiquei contratado até janeiro deste ano
[2008], para fazer essa reavaliação, entender melhor a questão do conflito
e dos problemas que os fazendeiros têm no Pantanal. (...)
E um dos grandes problemas que teve o programa, no Brasil, foi que no
início eles chegaram querendo ensinar o fazendeiro como é que se fazia
isso. E chegaram aqui e quebraram a cara, porque a realidade era de
uma coisa muito distinta da outra, e sem a experiência do pessoal local,
você não vai conseguir criar um novo modelo. E esse modelo tem que ser
freqüentemente adaptado a modificações comportamentais e também
modificações do ambiente.
Em seguida ele lista os objetivos atualizados do programa:
[O] programa de extensão visa trazer o pecuarista para trabalhar em
conjunto com a conservação.(...) [E]m poucos locais no mundo você pode
250
encontrar uma biodiversidade tão grande convivendo com uma atividade
econômica, como é o caso no Pantanal. (...)
O pesquisador observa que o projeto era voltado especificamente para a onça-
pintada, o que diz respeito mais à dimensão externa da captação de recursos para o
projeto do que propriamente à realidade local:
por uma série de questões: é mais fácil conseguir financiamento, fora
é um bicho muito mais carismático em termos da importância e do status de
conservação dela. (...)
Ele comenta, contudo, que:
E se você for pensar em conservação de onça-pintada, você tem que pensar
na conservação dos grandes felinos, e incluir o problema que a parda traz.
Quando Boulhosa descreve a reavaliação do programa e todo o investimento que foi
necessário ao estudo do tema para se chegar ao ponto atual, é este o aspecto que gostaria
de reter: a qualidade na formulação do problema. O biólogo formula da seguinte forma
o conflito, como objeto para o qual as ações conservacionistas se voltam:
Então, estão os objetivos do programa (...). O objetivo principal era
promover a conservação da onça-pintada no Pantanal. E as ações para
mitigar o conflito entre a onça-pintada e os fazendeiros. Essa era a ação
principal do projeto, você tentar diminuir o conflito que existe entre essas
duas partes.
Por atacarem os rebanhos domésticos, as onças tendem a gerar atitudes negativas, e
são perseguidas pelos criadores de gado. Por outro lado, são animais considerados
ameaçados de extinção, objetos de investimento em pesquisa e de campanhas
conservacionistas promovidos por organizações ambientalistas. No primeiro caso, o que
está em jogo é a invasão do espaço humano pelo animal selvagem: a onça come o que é
do homem, e por isso é perseguida. No segundo, a invasão do espaço natural pelas
atividades humanas. Boulhosa acrescenta ainda esta nova dimensão ao problema,
quando afirma:
Ou então o conflito que existe com a outra parte, que são os pesquisadores,
Ongs, e os fazendeiros. Que é o que a gente tem visto muito aqui no
Pantanal. Existe um conflito muito grande, e às vezes não é nem em relação
251
à onça, mas sim entre os caras que trabalham com a onça e os caras que
são os fazendeiros. É uma outra coisa que esses programas de extensão têm
que criar: permitir que exista um diálogo, e troca de informações e ações,
entre as duas partes. É uma coisa que a gente tem batido: na necessidade
de vocês conseguirem ter um diálogo harmônico entre as partes, para
procurar soluções.
A palestra do Dr. Roberto Coelho, no encontro, apresenta um caso que pode ser
tomado aqui como exemplo dessa cadeia de conflitos. O evento narrado pelo fazendeiro
evidencia as dificuldades envolvidas na conservação de uma espécie. Atividade que
tende a gerar atitudes negativas de determinados grupos, e que, ao mesmo tempo, é
objeto do investimento em pesquisa e de campanhas conservacionistas promovidos por
outros grupos.
Reproduzo abaixo o caso narrado por ele e os comentários feitos pelos participantes
do encontro. O trecho propositadamente longo que transcrevo a seguir permite observar
as respostas e reações diversas apresentadas no calor da hora:
Dr. Roberto: Nós temos uma reação negativa dos vizinhos, por questões
relativas à indenização do gado morto. O projeto conseguiu agregar as
fazendas vizinhas... O Fernando teve um excelente relacionamento com o
pessoal, mas a expectativa deles era serem indenizados pelas perdas,
totalmente... E na medida em que o projeto aumentou de área, aumentaram
as despesas também. Então, na hora de indenizá-los, não se pôde fazer a
indenização de acordo com o que o cara imaginava que o gado dele valia...
E no encerramento da primeira fase, o pessoal ficou decepcionado. Então,
numa das fazendas, que é arrendada, um manejo horrível; o cara é
usineiro, arrenda... O dono não entende nada de fazenda, mora em Campo
Grande, vem uma vez por ano; arrendou para outro cara que é um desastre
alto nível de perda. Então, na hora que o projeto deu uma paradinha,
entre a fase 1 e a fase 2, o cara começou a perseguir as onças e... Eu o
posso falar, mas a minha percepção foi que ele deve ter eliminado várias
onças, porque aqui na fazenda a gente diminuiu a constatação de presença
delas, o rádio-sinal também desapareceu...
Então, houve uma reação negativa. A outra fazenda (do outro lado) é uma
fazenda limpa, bem conduzida, mas que, com o aumento da predação,
252
passou a não admitir mais perdas. Os caras tomaram a chave da fazenda
que a gente tinha para entrar e estar vistoriando, e devem ter perseguido as
onças lá...
Walfrido Tomaz (Embrapa): E esse aumento da predação, foi em função de
que?
Carol Coelho: Eles pararam de matar enquanto o projeto estava
implantado, e houve uma certa... E quando se desentenderam com o
projeto e teve esse aumento da predação, aí eles voltaram [a matar].
Dr. Roberto: Tem uma discussão muito grande se a indenizar as perdas é
bom ou não, então eu estou apresentando porque eu percebi isso daí. Eu
percebo até no tratamento, como eu sou tratado na cidade, pelos colegas...
Então, é uma coisa que tem que se pensar. Eu acho que essa questão de
indenização é complicada por isso, porque todo o projeto de pesquisa, ele
não tem garantia de verba ao longo do tempo. Então ele tem o rebote: se
você entra, promete muito e depois não consegue manter, você tem um
rebote negativo, então tem que tomar cuidado com isso também. Por isso
que eu acho...
Participante (Polícia Florestal): O pessoal passou a olhar o seu trabalho
com olhos... De forma depreciativa...
Dr. Roberto: É, o pessoal falava: “O Roberto está ganhando dinheiro
com turismo, então ele agüenta, lá, cuidar das onças... Mas eu não, eu
tenho que ganhar dinheiro com meus bezerros...” O cara pensa assim,
entendeu?
Fernando Azevedo: para explicar, alguém perguntou se teve
indenização. Não, o que a gente tinha intenção, como o Roberto explicou
era de... No início, a gente ia trabalhar só aqui dentro, então o dinheiro que
viria, por exemplo, dos ecovoluntários, serviria para eu repassar para o
Roberto, e poder minimizar. que aí, o que acontece: a onça começou a
estender a área dela para as fazendas vizinhas. O que era uma fazenda
passou a ser três, não tinha recursos mais. a gente rateou esses
recursos, e dividiu igualmente. Mas não era o valor da perda que eles
tinham... E uma coisa importante de se falar: o fulano do lado de lá, não
tem manejo, o do lado de cá tem, então a realidade é completamente
diferente. Ele vai ter muito mais perda do que esse daqui... Então, como é
253
que você vai tratá-los de forma igual? Não pode. Então, tudo isso a gente
precisa pensar, antes de começar a definir o que é um programa de
ressarcimento.
Participante [pesquisadora da Embrapa]: Então, quer dizer, teve um tipo
de indenização... Fernando: Não foi indenização. Indenização vopaga,
foi uma tentativa de valorizar quem estava participando do projeto...
Rogério [Cenap]: Mas, só um parêntese: as pessoas entenderam o incentivo
como um ressarcimento... na hora que acaba o incentivo, o cara fala
“pô, continua predando...” Esse é o grande problema do ressarcimento. Na
hora que seca a fonte, aí vem toda a... Parece um açude: você vai enchendo,
na hora que estoura a barragem a água transborda para tudo que é lado...
Participante (Polícia Florestal): Mas porque acontece um caso como esse
de lá, da falta de manejo?
Fernando: Porque é o seguinte: você pega uma propriedade, dentro de uma
invernada de seis mil hectares... você põe dois peões só, morando num
barraco, sem energia, sem nada, sem nem comida eles ficavam pescando,
etc. e tal – e você põe lá duas, três mil cabeças de gado, numa invernada só,
sem divisão nenhuma... Não tem manejo. ela come. É diferente do outro
vizinho, que tem dez funcionários, várias invernadas... Então, no caso um, o
manejo era totalmente deficitário, e ele tinha a mesma expectativa do outro
lá...
É importante falar isso pelo seguinte: o que vocês estão escutando do
Rogério, por exemplo, é o final do assunto, que é o pedido da indenização,
a expectativa da indenização. Mas tem o outro lado da moeda também.
Porque tem o proprietário que mereceu, são coisas desiguais. Nós tivemos
uma onça que utilizava a San Francisco, foi para essa [fazenda] sem
manejo comer o gado porque era um chamativo: “vem comer aqui que
aqui não tem nada de manejo” – e foi morta (...)
Dr. Roberto: É a rádio-peão. Esse é o caso que o Fernando estava falando:
em setembro de 2005, ela foi atirada com espingarda 12... Ela foi atirada
assim, deve ter levado uns dois dias para morrer...
Rogério[Cenap]: É por isso que acontece a maioria dos acidentes.
Dr. Roberto: Feita a denúncia pela equipe do projeto... Nós denunciamos
em todos os níveis: Polícia Militar Ambiental, Secretaria do Meio
254
Ambiente, Ibama... E não aconteceu absolutamente nada... Para receber a
denúncia... Eles não querem saber o que aconteceu. (...) [E]sse assunto
não tem repercussão nenhuma. Por isso é que eu estou dizendo: não tem
indicação nenhuma de que a sociedade brasileira tenha desejo de preservar
esse animal. Nem as autoridades.
Rogério: Dentro do governo, a nossa dificuldade para botar o caçador de
onça na cadeia... Mesmo dentro do governo, com todos os canais, a polícia
federal, com a parte de fiscalização, é muito difícil.
O conflito entre fazendeiros e onças, neste caso, aparece como uma reação a um
conflito anterior, entre fazendeiros e pesquisadores. Uma das questões de fundo,
definidas abaixo pelo Dr. Roberto Coelho é: quem paga a conta pela preservação?
acontece o seguinte, onça-pintada tem aqui no Pantanal e na
Amazônia. Se querem realmente preservar, não é dar porrada no
fazendeiro não! As ONGs tem que dar porrada no governo, e a Embrapa
também. Porque o governo não está fazendo nem um tipo de ação nesse
sentido, então, a leitura nossa é que para ele não interessa...
Os desdobramentos do caso conectam uma série de atores e mobilizam o que
poderíamos chamar de diversos níveis nos quais eles atuam. O caso discutido durante o
encontro na fazenda relata ao mesmo tempo um conflito local a eliminação de onças
que atacam o gado e um segundo conflito, gerado em cascata, entre o agente
conservacionista e o fazendeiro.
Ele coloca em cena, assim, um tema recentemente abordado, de diversas formas, na
antropologia, seja por autores que têm o conservacionismo como tema (Milton), seja
por aqueles que trabalham com as controvérsias entre as organizações ambientalistas e
as populações nativas (Einarson; Knight 2001; Guha 2002).
Conflito como tema conservacionista
O conflito entre o projeto conservacionista e os fazendeiros aparece no primeiro
estudo de campo sobre a espécie, realizado por George Schaller. As considerações de
Schaller sobre o ocorrido mostram como a Fazenda Acurizal, que servia como base para
o estudo na época, teve que ser abandonada depois que duas onças foram mortas pelos
peões:
255
Duas onças-pintadas foram mortas. Se não houver uma mudança de
atitudes local, apenas um grande parque nacional pode salvar a onça do
Pantanal. (2007[1980]: 75)
Um dos vaqueiros relatou que as ordens para atirar em todos os jaguares
tinha sido dada por Geraldo, o gerente que verificava o rancho de tempos
em tempos em nome do proprietário ausente. Na opinião de Geraldo, o
gado e onças não podiam coexistir
77
. (: 72)
Depois que a maioria dos animais de estudo foi morta pelas mãos de
vaqueiros da fazenda, em 1978 (...), o projeto estabeleceu uma nova base
mais ao sul do Pantanal. (: 63)
Quando apresenta, numa coletânea recente de artigos, o seu relato de campo da
época (1980), Schaller afirma: “O trabalho continua no Pantanal, especialmente com o
conflito entre onças e fazendeiros, os quais não gostam dos felinos por causa dos
ataques ocasionais ao gado” (2007: 63. Tradução minha). Na literatura posterior sobre
os temas da conservação e do manejo da vida selvagem na região do Pantanal, o tema
do conflito entre as comunidades rurais e os predadores carnívoros afirmou-se como
importante área de estudos.
O trecho abaixo, transcrito da entrevista feita com Peter Crawshaw, que também
participou desse estudo pioneiro, evidencia que o trabalho quase foi interrompido por
causa do evento:
E depois que eles [Mason e Dantas] foram embora, a gente estava dizendo:
mas onde é que está essa fêmea? A gente sabia, procurava em todos os
lugares que sabia que ela andava... que eu fui saber, quase que por
acaso, (...) que tinham matado as nossas onças. sim, o George se
desesperou, né? Ia desistir do estudo, ia voltar para os EUA. sentei lá,
ficamos conversando: não, vamos achar outro lugar...
77
Two jaguars were killed. Unless local attitudes change, only a large national park can save the
pantanal jaguar. (…)[A] cowhand further related that orders to shoot all jaguars had been given by
Geraldo, the absentee manager who checked on the ranch at intervals on behalf of the absentee owner. In
Geraldo’s opinion, cattle and jaguars cannot coexist. (…) After most of our study animals were killed by
ranch hands in 1978 (…) we established a new base farther south in the Pantanal on the Miranda ranch.
256
Em seguida, Crawshaw descreve a descoberta da fazenda para onde o projeto seria
transferido:
também, coincidentemente, dois ou três dias depois, chega o George
Schwaitzer. Pousou com o avião dele lá em Acurizal – ele tinha escrito para
o George [Schaller] dizendo que qualquer hora iria visitar e, quando ele
chegou, nós estávamos nesse momento negro do projeto. E ele conhecia os
Klabin, da Miranda Estância. Ele que nos apresentou para a família
Klabin.
Na época da entrevista eu ainda não havia lido o livro de Tony Almeida (1976). No
trecho abaixo ele tece alguns comentários a respeito:
F. Mas esse Tony Almeida, antes disso, ele já fazia todas essas anotações?
Isso é que é impressionante dele, né? Você vê, isso foi publicado em 1976, o
original. Antes da gente começar. Quer dizer, até o nosso estudo, isso aqui
era tudo que tinha. Ele anotava dieta, tinha tudo anotado. Extremamente
metódico.
Em seguida ele comenta as práticas de caça:
Eu comecei como caçador, então eu não tenho preconceito. Eu tenho
preconceito, sim, conta crueldade desnecessária. Mas se você não tem um
pré-conceito muito negativo contra os caçadores, e você esse livro aqui
(do Tony Almeida), o que eles faziam era manejo de onça. Era uma forma
de manejo. Porque era um esquema muito bem montado. Eram fazendeiros
específicos que entravam em contato com ele (...). E você vê a aventura que
era cada caçada dessa daqui, os caras tinham que trabalhar mesmo para
conseguir chegar, não era uma coisa fácil.
O estudo na Fazenda Miranda Estância, Sul do Pantanal, teve início em 1980, ano
em que Schaller deixou o Brasil para iniciar um projeto sobre os pandas na China.
Howard Quigley chegou então ao projeto, para substituí-lo, trabalhando juntamente com
Crawshaw até 1984. Na mesma entrevista, este último relata que o período na Miranda
Estância foi o mais produtivo no estudo das onças, tanto do ponto de vista da técnica
quanto da logística, com a captura e o monitoramento de um número significativo de
animais. Um dos fatores determinantes para isso eram, a seu ver, os cães:
257
E que nós começamos a pegar mais onças. Eu comecei a investir. Nós
treinamos a nossa cachorrada... Eu pegava cachorro emprestado, treinava.
E acabamos ficando independentes: Nós tínhamos os nossos próprios
cachorros, cavalos, tudo.
Crawshaw não faz nenhum tipo de juízo moral ou recriminação em relação à caça
esportiva. Ao contrário, aponta-a como uma forma legítima de manejo. O tema,
entretanto, é controverso. A colaboração de caçadores nativos para o estudo da onça é
herdeira da longa tradição pantaneira das caçadas, e, como tal, ela talvez possa ser
abordada maneiras diferentes. Em artigo sobre os métodos de campo para o estudo das
onças, Furtado e outros (2008) observam:
“A captura de onças-pintadas com cães treinados são atualmente o método
de captura mais freqüente”.
78
(: 41)
Fazendo as seguintes ressalvas:
“Apesar de eficiente, o método oferece algum risco para todos os
envolvidos.” (Idem)
“Finalmente, é importante se considerar que a caçada de onças-pintadas é
proibida na maior parte dos países onde a espécie ocorre e a contratação
de caçadores e cães de caça viola princípios legais e éticos.”
79
(: 42)
Em geral, até meados o início da década de 1990, todas as fazendas da área de
estudo praticavam a caçada de onça como retaliação aos ataques ao gado, e era costume
a manutenção de cães onceiros e um caçador local entre os funcionários na maioria das
propriedades pantaneiras. As únicas fazendas da região a proibir a caçada de onças na
região de estudo antes dos anos 1990 foram as fazendas resultantes da divisão da antiga
Miranda Estância, partilhada em processo hereditário em 1985. Entre 1980 e 1984, a
fazenda foi também sede da primeira pesquisa sobre a onça-pintada realizada no Brasil,
por Peter Crawshaw e Howard Quigley, dando continuidade à pesquisa iniciado por
George Schaller em 1977 na Fazenda Acurizal, região de Cáceres (Crawshaw 2006;
78
Tradução minha: Capturing jaguars with trained hounds is currently the most frequently used
captured method.
79
Although efficient, the method does offer some risks to all parties involved. (…) Finally, it is
important to consider that hunting of jaguars is prohibited in most of the jaguar’s range contries and the
contracting of hunters and hounds violates legal and ethical principles.
258
Crawshaw e Quigley 1991; Crawshaw e Quigley 1984; Schaller e Crawshaw 1980). No
relatório final do projeto realizado na fazenda, Crawshaw e Quigley afirmam:
“Em Miranda, a taxa de mortalidade de filhotes é baixa, atingindo
principalmente os animais adultos, sob forma de caça direta, movida por
fazendeiros, empregados e "desportistas". Como exemplo, até 1966, a
fazenda Miranda contratava caçadores profissionais para diminuir o
número de felinos e a sua predação no gado. Um desses caçadores [Seu
Celestino] matou, em um período de 8 anos (1959-1966), 68 pintadas e 275
pardas, apenas na área da fazenda”.
(...)
“Embora essa atividade tenha sido proibida a partir de 1966, o controle é
dificil e, ocasionalmente, alguns animais são mortos para "diversão" dos
peões e para treinar cachorros, uma vez que um bom cachorro onceiro e
um revolver 38 são os maiores símbolos de status entre pantaneiros. Pelo
menor risco que a caçada envolve e pelo seu maior número, geralmente são
as pardas que mais sofrem. Tivemos conhecimento de 10 onças pardas
mortas durante o período do projeto na fazenda (1980-1984), excluindo
aquelas mortas acidentalmente por anestesia no projeto, e 5 onças pintadas
entre 1979-1983”.
Os autores observam ainda que:
“Considerando-se a ação persistente e localizada dos caçadores, não é de
se estranhar o fato de a espécie ter sido virtualmente erradicada em várias
regiões do Pantanal, dado o seu baixo potencial reprodutivo e à
sensibilidade a alterações no habitat, provocadas pela pecuária”.
(Crawshaw e Quigley 1984)
O tema da colaboração dos caçadores nativos aparece também em uma série de
entrevistas realizadas ao longo do trabalho de campo com pesquisadores ligados a esses
estudos. Um exemplo é a entrevista com a pesquisadora Sandra Cavalcanti, da
Associação Pró-Carnívoros, registrada em 2007. Na gravação, formula a seguinte
questão:
F: Um assunto que tem aparecido desde que eu comecei a investigar isso é o assunto
dos caçadores, da contratação de caçadores para as capturas. Tem caçadores que são
259
contratados definitivamente pelos projetos de pesquisa e outros que são contratados
ocasionalmente nos períodos de captura. Como é que você vê isso?
Minha opinião nisso daí eu até já discuti, dentro da Pró-carnívoros, a gente
já conversou. Cada um tem a sua opinião. A minha é que o ideal – e a gente
está caminhando nesse sentido é a gente ter o nosso próprio canil, com
cachorro treinado, e uma pessoa contratada para fazer isso. No entanto,
a realidade é um pouco longe disso, hoje. Leva tempo até você ter os
cachorros bons. Mas o ideal eu acho que é você ter os seus cachorros e o
seu time.
Em Foz do Iguaçu [1990-1995], a gente demorava cento e não sei quantas
noites com armadilha aberta vai todo dia, checa, e tal – até você pegar
uma onça. No Pantanal, quando nós começamos a trabalhar aqui, em 2001,
que foi o primeiro projeto com onça na região [depois do projeto na
Miranda Estância da década de 80], a gente pegou oito onças em menos de
um mês, com cachorro. É muito. Então, é muito mais eficiente.
Agora, tem aquele problema: eu estou ali, tenho que fazer aquele trabalho,
eu vou pegar quem tem experiência. Por um lado, tem gente que fala: ah,
mas o cara caça... É, mas é uma realidade. O cara caça. Ponto. Eu vejo
isso como uma faca de dois gumes, porque eu preciso de uma pessoa que
saiba o que fazer, e ao mesmo tempo tem a questão da caça. Tudo bem, o
cara caça. Agora, ele trabalhando com a gente, a gente está dando para ele
a oportunidade de ver o outro lado. Porque, trabalhando com a gente ou
não, o cara caça. Ponto final. Só que tem caçador e tem caçador…
O tema é abordado também na entrevista com Fernando Azevedo (2008: Op. Cit),
responsável pelos projetos que acompanhei durante o trabalho de campo. Em entrevista
com o biólogo, pergunto:
F: E os antigos caçadores que estão trabalhando com vocês... Como é que você
isso? Tem pessoas que pararam de caçar e estão trabalhando pela preservação... Até que
ponto o trabalho de vocês muda a mentalidade do pessoal?
Olha, na verdade a impressão que eu tenho é que não muda, não, viu? O
que acontece é que, enquanto eles estão empregados de um lado, de uma
forma oficial – contratado, com carteira, etc – eles deixam de caçar. Agora,
260
no momento que faltar, e não tiver outra opção, ele volta a caçar. É uma
questão mais econômica, não é uma questão de mudança de mentalidade. A
mudança se faz do fato de que, por trabalhar com a gente, os caçadores
tomam consciência de que é errado. É contra a lei... E começam a perceber
que existe um outro lado, gente que trabalha para o outro lado. Mas a
partir do momento que for necessidade mesmo, precisar fazer, eles vão
fazer. Não conheço nenhum que parou. (Ent.03/2008)
A caçada com cães é o principal método de captura utilizado no campo, e minha
intenção neste trabalho é enfatizar a continuidade dessa prática na pesquisa científica. O
dilema ético apresentado acima pode ser entendido como um desdobramento interno do
tema conservacionista do conflito. Entendo-o, neste caso, primeiramente como um
conceito proveniente da Ecologia. Como todo o conceito científico, ele é algo que diz
respeito simultaneamente a uma realidade observável no campo e a uma construção
teórica.
Tematizando o conflito entre humanos e animais de uma perspectiva antropológica,
John Knight (2000) contrasta o simbolismo conservacionista às imagens produzidas no
âmbito da eliminação de espécies daninhas às atividades humanas, em particular a
agricultura e a pecuária:
“Enquanto o simbolismo do animal nocivo (wildlife pestilence) tem a ver
com uma ameaça natural sobre a cultura, o simbolismo da conservação
animal (wildlife conservation) é baseado numa ameaça cultural à
natureza”. (2000: 17)
80
.
O autor opõe o simbolismo da conservação ao simbolismo das espécies nocivas ou
pragas. De acordo com o autor, o tema específico do conflito humanos-animais recebeu
pouca atenção da antropologia, apesar de estar presente em estudos clássicos da
disciplina. Ele cita como exemplo a afirmação de Evans-Pricchard de que os ataques de
predadores ao gado são associados pelos Nuer a faltas cometidas pelo dono do gado.
Outra perspectiva sobre o tema, de acordo com a genealogia estabelecida por
Knight, é dada pelas abordagens antropológicas do simbolismo animal e das
classificações: Edmund Leach estuda o uso do termo “vermin” nas categorias animais
80
While the symbolism of wildlife pestilence has to do with nature’s threat to culture, the symbolism
of wildlife conservation is based on culture’s threat to nature.
261
do vocabulário inglês em termos de um cruzamento de fronteiras simbólicas. Um
aspecto histórico do conflito abordado também pelo autor é o modo como a colonização
humana sobre o território selvagem, em diversas culturas, é descrito a partir da expulsão
de animais:
“Os ‘wolfers’ na América colonial eram conhecidos como ‘bulwark’ do
progresso no Oeste, porque erradicavam os lobos, tornando a terra de
fronteira segura para o estabelecimento dos rebanhos e comunidades”.
(Knight 2001)
Knight investiga em particular o simbolismo negativo de determinadas espécies de
predadores para populações nativas que convivem com elas, ligado a um processo de
criminalização e condenação moral que freqüentemente acompanham a eliminação ou o
controle sistemático dessas espécies.
Na reflexão ambiental, por outro lado, Knight aponta que o tema do conflito se
refere às ameaças humanas sobre o espaço natural, um dos temas-chave do
conservacionismo. Os termos predação e conflito, no âmbito da conservação das onças,
designam exatamente a eliminação sistemática movida pelos fazendeiros como forma de
retaliação diante dos ataques das onças ao gado. É este o conflito sobre o qual os
projetos de conservação atuam.
A seguir cito definições diferentes para esse mesmo tema em três artigos científicos,
procurando descrever a instauração dele como uma área independente de pesquisa. No
primeiro deles, Crawshaw e Quigley (1984) não utilizam o termo conflito, mas
descrevem as práticas tradicionais para lidar com a predação e registram uma série de
dados sobre o abate de onças na região de estudo durante o período em que estiveram lá.
Entre os dados, os autores reportam a morte acidental de onças causada pela anestesia.
Por fim se referem à erradicação local da espécie em áreas do Pantanal:
“Como exemplo, até 1966, a Miranda Estância contratava caçadores
profissionais para diminuir o número de felinos e a sua predação no gado.
Um desses caçadores matou, em um período de 8 anos (1959-1966), 68
pintadas e 275 pardas, apenas na área da fazenda”.
(...)
Embora essa atividade tenha sido proibida a partir de 1966, o controle é
dificil e, ocasionalmente, alguns animais são mortos para "diversão" dos
262
peões e para treinar cachorros, uma vez que um bom cachorro onceiro e
um revolver 38 são os maiores símbolos de status entre pantaneiros”.
Azevedo e Murray (2003: op. cit) utilizam o termo “conflito humanos-carnívoros” e
estabelecem como tema central desse conflito a predação do gado. Os autores ressaltam
a importância do estudo quanto aos fatores causadores dessa predação para a
conservação da espécie.
A predação de gado por grandes carnívoros é uma fonte importante, mas
pouco compreendido de conflitos humanos-carnívoros.
(...)
A ameaça potencial ou real aos seres humanos e seus animais domésticos
pode levar à perseguição ativa dos carnívoros por seres humanos, e
constituir um fator significativo de declínio de muitas populações de
grandes carnívoros no mundo.
(...)
No entanto, a avaliação da magnitude predação do gado pela onça-pintada
ou de fatores predisponentes à predação de gado por onças-pintadas tem
sido limitada.
Silveira e Boulhosa (2008), por sua vez, falam em “conflito humanos-predadores”, e
indicam modos de manejo deste conflito. Citam também as onças-problema e a caça
esportiva como ferramenta nessa prática:
Os grandes carnívoros, como a onça-pintada, que necessitam de áreas
extensas e uma base estável de presas naturais para viver, são empurrados
para situações em que competem com os seres humanos por comida e
espaço.
(...) A identificação e implementação de práticas de boa gestão exige um
bom conhecimento do local dos conflitos e suas características ecológicas,
sociais e culturais.
(...)
O Pantanal constitui a terceira grande zona de conflito onça-fazendeiro no
Brasil. (...)
263
A eliminação de onças-problema deve ser considerada apenas onde a alta
abundância do felino é comprovada. A caça esportiva como ferramenta de
gestão poderia ser testado neste bioma.
Como se pode observar, a partir dessas citações, o tema tem uma série de
ramificações e recebe tratamentos diferentes em cada artigo. Minha intenção com esta
breve compilação foi apenas a de ilustrar alguns dos modos de exposição do problema e
chamar a atenção para sua afirmação como um campo específico dentro da discussão
sobre a conservação.
O que Knight propõe como tarefa para a antropologia, numa perspectiva “cross-
cultural”, é investigar a multiplicação desse tipo de conflito local (entre fazendeiros e
onças, por exemplo) em uma série de outros conflitos, desta vez entre grupos humanos:
entre ambientalistas e ruralistas, entre comunidades rurais e órgãos de manejos da vida
silvestre ou entre o conservacionismo stritu-senso e a Etnoconservação. Em relação à
posição dos grupos nativos de agricultores e fazendeiros, ele afirma:
O controle de espécies daninhas é visto como uma atribuição da lei.
Quando há uma condenação da opinião pública urbana em relação às
práticas locais (caça) ou o apoio a campanhas conservacionistas, essa
interferência externa pode estimular o conflito local com animais selvagens,
na medida em que se torna o símbolo de dominação externa. (: 21)
Chama atenção também para o fato de que esse tipo de conflito coloca
freqüentemente em campos opostos, do ponto de vista político, biólogos da conservação
e antropólogos, nos casos em que o conflito se refere aos grupos estudados por esses
últimos. Casos nos quais os antropólogos evidentemente tendem a tomar partido da
comunidade humana estudada e a denunciar a dominação externa. As acusações parte a
parte de antropocentrismo e etnocentrismo, no entanto, fazem parte de uma longa e
desgastada tradição.
O argumento de Knight contrasta dois tipos de simbolismo: um nativo, que condena
a espécie nociva, e um conservacionista, que condena a ação humana. A partir deste
argumento, o conflito entre pesquisadores e fazendeiros colocaria em cena duas visões
distintas, ou explicações distintas para o comportamento da onça. A explicação nativa
diria que a onça vicia no gado e por isso precisa ser abatida. A explicação
conservacionista diria que a onça ataca de forma oportunista o gado e precisa ser
preservada.
264
A partir da crítica feita por Knight (2000), o papel da antropologia seria explicar o
papel simbólico da onça na cultura local, enquanto o papel da biologia seria explicar o
papel da onça no ecossistema local. Apesar de se colocarem em pólos opostos no plano
político, tanto o antropólogo quanto o biólogo compartilham assim o mesmo modelo
epistemológico.
Ambos pressupõem o que Tim Ingold designa como um duplo afastamento em
relação à experiência empírica: um plano das relações ecológicas, acessado pela ciência
(no qual se a predação), e um segundo plano das relações sociais, simbólicas
(inclusive as científicas) acessado pela antropologia (Ingold 2000). Para que a
antropologia social possa falar das outras culturas em termos simbólicos ou metafóricos,
como mostra Ingold, ela precisa estar ancorada nessa realidade única à qual uma
determinada cultura (não por acaso a sua própria) tem acesso privilegiado (Idem).
No entanto, o que o próprio Knight faz, no final das contas, é tratar igualmente o
simbolismo da espécie nociva (tradicional) e o simbolismo conservacionista (moderno),
tomando o conflito humanos-animais como dado, como uma realidade lá fora. Ao fazer
a comparação entre as duas culturas, ele se baseia nas oposições clássicas da
antropologia social, reforçando a idéia da realidade estudada pela biologia e da
construção social estudada pela antropologia. Os fantasmas do universalismo e do
relativismo permanecem. Os animais, no caso, apesar de não se restringirem ao papel
material dos fatos objetivos científicos, são tomados como repositórios de projeções de
grupos humanos; ameaçados ou ameaçadores, eles ou são representações ou então são
representados por esses grupos.
5.4. O rastro das coleiras
A coleira que aparece nas três fotografias da sequência 1 era um das dez coleiras
utilizadas pelo Projeto Onça Pantaneira, e combinava um sistema de telemetria
tradicional (por rádio) a um GPS portátil. A união desses dois dispositivos diferentes no
mesmo objeto representava um avanço tecnológico importante em relação aos modelos
usados no projeto anterior de Fernando Azevedo, na Fazenda San Francisco.
No dia 23 de outubro de 2008, o biólogo fez um sobrevôo sobre a São Bento,
utilizando essa nova tecnologia. O pesquisador me explicaria mais tarde que o novo
sistema de GPS era programado para registrar localizações via satélite de três em três
horas, e que as localizações iam sendo armazenadas no dispositivo durante os intervalos
265
entre a captura dos dados.Assim, enquanto com o modelo antigo ele conseguia apenas
uma localização para cada onça quando sobrevoava a área de pesquisa (na San
Francisco), com o novo (na São Bento), ele podia obter centenas de localizações com
um único sobrevôo. O monitoramento aéreo, fundamental para a pesquisa, era feito em
intervalos regulares no avião particular do proprietário da fazenda, que acompanhava na
ocasião o trabalho do biólogo.
Cerca de meia hora depois que o pequeno aeroplano pousou naquele dia, duas
caminhonetes vindas da pista de pouso, na sede, passaram apressadamente pelo retiro.
Seu João tinha chegado logo antes para pegar água gelada no freezer da cantina, onde eu
estava almoçando. Antes de entrar na caminhonete, ele explicou que o grupo estava
indo fazer o download de um macho que o Fernando localizou”. Uma das coleiras
falhara durante o processo de captação dos dados, e os pesquisadores fizeram nova
tentativa por terra a partir do sinal de rádio, mas não conseguiram completar o
procedimento.
O macho referido por Seu João era Mirão, que seria fotografado dez dias depois
junto à carcaça do bezerro predado. A identificação do animal, como relatei na
introdução, foi feita pelo biólogo a partir da comparação entre a imagem obtida pela
armadilha fotográfica naquela noite uma fotografia anterior tirada durante a captura. O
evento ilustra a importância dessa técnica de rastreamento para o projeto.
Originadas no manejo de animais de caça nos EUA, as armadilhas fotográficas
(camera traps) foram desenvolvidas na biologia de campo em pesquisas de campo com
tigres na índia (Sunquist 1981). O equipamento é composto por caixas de plástico
resistente, sensores de movimento e câmeras automáticas, sendo que o animal é
identificado pelo padrão das pintas, que produzem uma espécie de impressão digital de
cada indivíduo (Silver, 2005: 3). A partir daí, a técnica passou a ser utilizada para outras
espécies “crípticas” de felinos, tais como leopardos e onças-pintadas (Silver, 2005: 3),
sendo utilizadas para estimar a abundância e a distribuição dessas espécies no ambiente
natural. Na pesquisa de campo, as câmeras são dispostas em pontos chave, a partir da
observação de rastros e outros sinais da passagem de animais, ou então apontadas para
os restos de uma preza, como no caso do bezerro predado.
Em 2006, quando visitei pela primeira vez o projeto da San Francisco, as armadilhas
ainda usavam filme em película, e o mesmo Henrique precisava ir até a cidade de
Miranda para revelá-los. Conforme pude apurar mais tarde, a adaptação das câmeras
digitais à função era dificultada pelo gap que havia entre o disparo e o registro da
266
imagem. Contudo, o problema fora solucionado em 2008, e isso permitiu, no caso do
bezerro abatido na São Bento, a identificação quase imediata da onça responsável pela
predação.
Conforme relatado na introdução, o objetivo de Seu João e Henrique, a partir do
momento em que identificaram o animal na fotografia, foi obter as localizações
armazenadas no colar que não tinham sido coletadas no dia do sobrevôo. Acompanhei
naquele dia os pesquisadores na tentativa de monitoramento do sinal de rádio específico
da coleira daquela onça, com Seu João dirigindo enquanto Henrique vasculhava a área
com a antena. O equipamento para a captura dos dados do GPS incluía ainda um
notebook e uma segunda antena receptora, levados conosco no carro, mas eles não
chegaram a ser utilizados. Conforme narrado na introdução, apesar das insistentes
tentativas feitas naquele dia, o indivíduo procurado não foi localizado. Na estrada
interna da fazenda, o biólogo detectou a presença de uma das fêmeas monitoradas pelo
projeto, mas os dados daquela coleira estavam atualizados. Com a antena direcionada
para um capão de mata nas proximidades, pude ouvir no fone de ouvido os bips em
intervalos regulares que indicavam que a onça não estava em movimento, conforme me
explicou o pesquisador, observando que provavelmente ela estava descansando durante
as horas mais quentes do dia.
Minha intenção durante o trabalho de campo era registrar todas as etapas do
processo, do sinal de rádio até o resultado final do processo. Um dia depois do registro
fotográfico da onça com o bezerro predado, no entanto, Henrique precisou deixar a
fazenda inesperadamente, e algumas questões sobre o trabalho de monitoramento
ficaram incompletas nas minhas anotações. Alguns meses depois de encerrar a pesquisa,
enviei para o biólogo algumas perguntas sobre a obtenção das localizações, que ele me
respondeu gentilmente por email. Transcrevo abaixo as minhas perguntas seguidas
dessas respostas, que fornecem uma boa visão geral do procedimento utilizado no
campo:
F: As localizações das onças em GPS são obtidas a partir de que procedimento?
Você liga um dispositivo no computador para fazer o download no local? A que
distância precisa estar?
Uma vez que localizou o animal que você quer com o receptor VHF, você
vai precisar de um receptor UHF conectado a um computador para obter
as localizações armazenadas no GPS da coleira. Com eles em mão, você
267
usa um software próprio dos colares para entrar em contato com a coleira,
e então pode baixar os dados armazenados nela até o momento que quiser
(tipo a última data da última vez em que fez esse procedimento), ou baixar
tudo que estiver armazenado. Este mesmo software é usado para mandar
fazer o "drop off" da coleira, ou seja, mandar ela se soltar do animal se for
do seu interesse. A distância que a gente precisa estar p/ o procedimento
varia um pouco, mas não é muito grande, cerca de 150m do animal, às
vezes menos.
F: Esses dados depois são lançados em um programa específico para gerar os mapas
com os territórios usados pelas onças? Qual?
Os dados são transformados em uma planilha de excell, e esta é usada para
gerar o mapa em um software próprio para isso. Esses softwares são
conhecidos como Sistemas de Informação Geográfica - SIG (ou GIS em
inglês). Existem alguns disponíveis e nós usamos um programa chamado
ArcView ou ArcGIS (ambos da ESRI).
F: Os dados de predação (as localizações das presas) e as localizações das onças
podem ser combinados? Ou são planilhas separadas?
Nós temos um banco de dados com várias planilhas diferentes, cada uma
específica para um aspecto da pesquisa. (...). Todas as planilhas têm um
campo onde você insere as coordenadas geográficas do evento, de forma
que possa gerar os mapas no SIG a partir das planilhas. O SIG permite que
com uma imagem de satélite da área de pano de fundo, você adicione
quantas camadas de dados quiser por cima. Como se fossem transparências
sobrepostas sobre um mapa geral da área. Assim você sobrepõe os dados
de predação com as localizações de onça e assim por diante.
Observei algumas vezes no laboratório de campo os dados referentes às outras onças
do projeto. As localizações e os seus respectivos horários podiam ser visualizados em
séries de pontos espalhados, formando, em alguns locais, o que Henrique identificou
como “aglomerados”, ou podiam ser convertidos em tipos diversos de polígonos
irregulares, de acordo com o tipo de análise que o biólogo quisesse fazer.
O equipamento usado no projeto era de uma marca suíça chamada Televilt. O
projeto ainda estava em fase inicial, e era cedo para uma avaliação do modo como a
268
nova tecnologia incidia nos dados sobre o comportamento e a história natural das onças.
O tema será retomado adiante a partir de entrevista realizada em 2007 com a
pesquisadora Sandra Cavalcanti, responsável pelo primeiro trabalho de campo sobre a
onça-pintada a usar coleiras GPS, realizado também no Pantanal.
Peter Crawshaw iniciou a carreira como biólogo de campo em 1978, no projeto
pioneiro de George Schaller (Op. Cit) sobre a onça-pintada no Pantanal, sendo depois
responsável pela seqüência do estudo na fazenda Miranda Estância, juntamente com
Howard Quigley (Crawshaw e Quigley 1984). Mais tarde o pesquisador brasileiro
coordenou o Projeto Carnívoros do Iguaçú, no sul do Brasil, onde surgiu uma nova
geração de pesquisadores voltados para o estudo desses de animais. No início da década
de 1990, Crawshaw fundou, juntamente essa nova geração que havia trabalhado com
ele, o Instituto Pró-Carnívoros e o Centro Nacional de Predadores do Ibama, os pilares
institucionais da conservação e da conservação e da pesquisa das espécies de carnívoros
no Brasil. A trajetória pessoal do biólogo se confunde, portanto, com a história de seu
campo de pesquisa, em especial no que diz respeito à onça-pintada, espécie com a qual
trabalhou durante a maior deste tempo.
“A história da pesquisa sobre carnívoros no Brasil”, texto de Crawshaw que
introduz a coletânea Manejo e Conservação de Carnívoros Neotropicais (2006), é uma
das raras abordagens sobre o tema com um viés histórico. No artigo, que poderia ser
definido como uma peça de divulgação científica, ou popular, o autor narra sua própria
experiência pessoal e faz um panorama dos últimos trinta anos. No trecho a seguir, ele
aponta as origens do campo:
“Pelo que entendo, a assim chamada "moderna" pesquisa sobre carnívoros
no Brasil começou em finais dos anos setenta, com dois estudos que foram
realizados quase simultaneamente. Um deles era um estudo sobre a onça-
pintada (Panthera onca) pelo Dr. George Schaller, no Pantanal de Mato
Grosso, e o outro um estudo sobre o lobo-guará (Crysocyon brachyurus),
por James Dietz, na Serra da Canastra , no Estado de Minas Gerais,
sudeste do Brasil (Dietz, 1984). Ambos os estudos usaram a rádio-
telemetria, então em seus primórdios, para acompanhar animais individuais
na natureza; assim, constituíram a base de uma nova era para a pesquisa
de campo moderna sobre carnívoros no Brasil”. (2006: 18. Tradução
minha)
269
Em relação aos antecessores e precursores dessa nova era para a biologia, o autor
afirma:
“Antes dos estudos acima mencionados, a maioria das informações sobre
carnívoros provinha de relatos de naturalistas e exploradores, geralmente
associados a acervos de museus para estudos taxonômicos. No caso da
onça-pintada, uma das únicas fontes de informações publicadas sobre a
espécie na natureza era o livro por Almeida (1976). Como guia para
caçadores de troféus, Tony Almeida mantinha registros detalhados sobre
medidas, sexo e conteúdo do estômago de animais abatidos por ele próprio
e seus clientes. Ele também fornecer algumas informações sobre as escalas
do território estimado de cada animal, com base em rastros e outros sinais
de indivíduos previamente identificados”. (2006 a: 18-19)
Além disso, o caçador e seu associado Richard Mason participaram diretamente das
primeiras capturas, como o biólogo relata em seguida:
“Para aumentar a eficiência na captura de indivíduos a serem equipados
com colares de rádio e acelerar o estudo de telemetria, Schaller decidiu
aproveitar a competência de um caçador experiente. (...) O projeto
contratou Tony Almeida e seu sócio Richard Mason para capturar as onças
na fazenda Acurizal”. (Idem)
O elemento crucial na definição de uma origem histórica para a pesquisa de campo
moderna, de acordo com ele, é a introdução da técnica da telemetria, que distingue os
estudos inaugurais de Schaller e Dietz de todo conhecimento sobre a história natural
produzido antes deles (2006 a). Em uma conferência intitulada Histórico da rádio-
telemetria no estudo de felinos no Brasil (2006 b) Crawshaw apresenta três diferentes
sistemas utilizados no decorrer das pesquisas das quais participou, apontando uma série
referências a outros cientistas:
“O primeiro sistema utilizado para onças-pintadas no Pantanal foi
produzido por Johnson & Smith, EUA, sendo o mesmo utilizado na época
por Maurice Hornocker no puma americano, operando na faixa de 30 MHz.
O colar era um conjunto formado por uma cinta de cobre, que servia como
antena para transmissão do sinal, acoplada à uma caixa metálica que
protegia os componentes eletrônicos do transmissor.
270
O segundo sistema utilizado para onças-pintadas no Pantanal foi produzido
pela Davtron Eletronics (150 Mhz), por indicação de John Weaver, que teve
uma breve participação no projeto. Foram aparelhadas duas fêmeas de
onças-pardas e uma fêmea de onça-pintada, no início do projeto na
Miranda Estância.
O terceiro sistema utilizado, produzido pela Telonics (150 MHz) foi
introduzido com a chegada de Howard Quigley no projeto em Miranda.
Com esse sistema, foram aparelhadas seis onças-pintadas (2 machos e 4
fêmeas) além de uma fêmea jovem de onça-parda. Das onças-pintadas, 4
animais pertenciam a uma mesma família (1 fêmea adulta com três filhotes
de duas ninhadas subseqüentes), e os outros dois eram mãe e filha”.
O estudo acompanhou, em certo sentido, a consolidação da técnica da telemetria
como principal ferramenta nos estudos de campo da biologia da conservação. Em
outubro de 2007, durante a primeira fase da minha pesquisa de campo, fiz uma
entrevista com Peter Crawshaw na casa onde ele morava em Corumbá. Na conversa
transcrita a partir do registro de áudio, pergunto sobre a chegada dele no primeiro
projeto, onde trabalhou com Schaller a partir de 1978, e ele acrescenta alguns novos
dados ao histórico da telemetria:
F. E como é que eram as técnicas de pesquisa? Já utilizava telemetria?
Ele tinha inclusive posto um colar em um macho de onça-parda, lá. Mas
ele não tinha muita experiência lembra que era bem no início... Quer
dizer, os únicos outros projetos que tinham trabalhado com carnívoros
eram nos EUA, que foi com o urso-pardo o Grizzly. Foram o irmãos
Craighhead que desenvolveram o sistema de telemetria especificamente
para trabalhar com o urso pardo. um orientado deles, um estudante
desses irmãos, que trabalhavam em Yellowstone, começou a desenvolver
o sistema para trabalhar com o puma. E esse cara, o Maurice Hornocker,
era muito amigo do George Schaller, e foi ele que recomendou e ajudou o
George a comprar o equipamento todo que nós usamos aqui. que eram
uns colares enormes, pesadões, com mais de um kg, e falhavam muito.
O livro de Frank Craighead Track of the Grizzly (1979) narra como ele e o irmão
John, ambos biólogos, iniciaram, em 1959, um estudo sobre o urso Grizzly em
271
Yellowstone, sendo ajudados por dois amigos, um operador de rádio amador e outro
engenheiro eletrônico, no desenvolvimento do sistema de rastreamento dos animais via
rádio. A nova técnica abriria uma série de possibilidades de pesquisa ligadas à
consolidação de um novo ramo científico, o da Biologia da Conservação. A técnica
seria utilizada em pumas por Hornocker, ainda nos EUA, e através dele seria trazida ao
Brasil, mas ainda era um modelo rudimentar de coleira, conforme relatado por
Crawshaw. Ele prossegue:
“Aí o George trouxe um outro rapaz [John Weaver], em fevereiro de 1978,
que, esse sim, tinha feito o mestrado dele com coiote, usando rádio-
telemetria, então tinha mais experiência. Foi ele que começou a introduzir a
metodologia correta no monitoramento por rádio-telemetria. (...) Aí,
quando o Howard [Quigley] veio, no início de 81, ele trouxe todo um
esquema novo, que era da Telonics que é esse que a gente usa até hoje”.
(Ent. 10/2007)
O sistema Telonics seria adotado, por exemplo, no projeto de doutorado de
Fernando Azevedo sobre as onças na Fazenda San Francisco, em 2003 e 2004, o que
sugere que ao longo de vinte anos ele tenha se estabelecido como padrão no campo da
pesquisa sobre felinos feita no Brasil. Apesar da ausência de mudanças significativas na
tecnologia de transmissão de rádio, no entanto, durante o período, o registro da posição
dos animais foi imensamente facilitado ao longo do tempo com o desenvolvimento de
programas de computador e, posteriormente, de equipamentos portáteis de GPS, na
década de 90. Não demoraria muito para que o GPS fosse incorporado à coleira de
rádio, o que marcaria uma nova geração de equipamentos de telemetria. A seguir
Crawshaw narra os procedimentos necessários para o monitoramento dos animais antes
disso:
“Uma vez encontrado um animal, a sua posição era determinada por
triangulação, com o auxilio de uma bússola. Três azimutes de diferentes
pontos determinavam o cruzamento de três retas, marcando a sua
localização. A localização era plotada em um mosaico de fotos aéreas”.
(escala 1:20.000)
272
O projeto Carnívoros do Iguaçu, coordenado por Crawshaw, foi responsável pela
formação de uma nova geração de pesquisadores de campo, alguns dos quais
estabeleceriam projetos próprios no Pantanal mais tarde, como Azevedo. Outro exemplo
é a pesquisadora Sandra Cavalcanti, responsável pelo primeiro projeto a utilizar a
coleira equipada com GPS para a onça-pintada, entre 2001 e 2007. Também entrevistei
a pesquisadora em outubro de 2007, alguns dias depois do encontro com Crawshaw. A
entrevista também foi gravada. No trecho a seguir pergunto sobre a experiência dela
com as mudanças nas técnicas de campo:
F: Quando você começou, lá em Foz do Iguaçu, a tecnologia de telemetria era muito
diferente? Mudou muito? O tamanho do colar...
O tamanho do colar o mudou tanto. Os colares não mudaram muito de
tamanho, mas a técnica mudou muito, muito mesmo. Na época que eu
comecei com o Peter [Crawshaw], na primeira vez em Iguaçu, era VHF.
Então, por exemplo: você punha um colar em cada onça. Então, isso não
era problema, porque no seu receptor você programava determinada
freqüência e você sabia que era a onça número um, isso não era
problema. No entanto, você precisava achar o indivíduo, e você fazia o
que nós chamamos de triangulação. A gente usava uma antena
unidirecional. Então a gente achava o animal e pegava a coordenada de
onde a gente estava, pegava a bússola e lia o azimute, e tal, e então punha:
coordenada tal, azimute tal. (...) a gente andava mais pra frente, pegava
outra leitura na onça, outra leitura com a bússola. Depois andava mais
para frente... Então pegava as três leituras. E tudo isso, assim, meio rápido,
né? Porque entre uma e outra você não queria que a onça já tivesse
andado.
E era bem legal, por que na época, o Peter tinha um mapa de Foz do
Iguaçu, do Parque, e ele tinha uma folha de papel vegetal em cima para
cada onça. Uma folha de papel vegetal para cada onça! Então a gente
punha aquele papel vegetal meio transparente ali em cima, e a gente via
a estrada no mapa e falava: tá, a gente está aqui. a gente pegava uma
régua com o compasso e a gente desenhava o ângulo, tal, e a gente fazia
a triangulação no mapa, para ver onde estavam as onças.
273
depois, na verdade, teve um programa, o “Locate”, que era um
programa que você só punha a coordenada, de onde você estava, e ele fazia
a triangulação pra você, e te dava a coordenada da onça. já ficou bem
mais moderno! Mas depois, com o advento do colar GPS, a coisa mudou
de figura... (...)
Quer ver, vou te mostrar uma foto: isso aqui é o território de uma onça.
Olha o tanto de informação que a gente tem. Basicamente, ele desenha o
território da onça para você, vendo? Aqui, ó: essa vermelhinha é aqui,
essa daqui é isso aqui... Antigamente, na época do Peter em Iguaçu, a gente
tinha, sei lá: Em cinco anos que a gente trabalhou em Foz do Iguaçu, a
gente tinha quinhentas localizações no total. Hoje, aqui, a gente tem treze
mil [em dois anos].
O estudo sobre a onça-pintada coordenado por Sandra Cavalcanti significava um
retorno, vinte anos depois, à área de estudo de Crawshaw e Quigley, na Miranda
Estância. Nesses vinte anos, muita coisa havia mudado, e a antiga fazenda fundada
pelos ingleses tinha sido dividida em propriedades menores (Benevides e Leonzo 1999).
O projeto de Sandra foi sediado numa delas, a Fazenda Sete.
A pesquisa de Fernando Azevedo na San Francisco, nessa mesma região, é um
pouco posterior, tendo sido iniciada em 2003. Neste intervalo temporal entre o trabalho
de Crawshaw e Quigley (1984) e as duas novas pesquisas, o campo de pesquisas sobre
carnívoros tinha se estabelecido institucionalmente no Brasil, e os métodos de pesquisa
haviam evoluído bastante. Podemos citar entre as principais mudanças no campo: a
revolução da genética, o avanço da informática, o surgimento dos dispositivos portáteis
de GPS e a evolução dos métodos de análise dos dados na área da biologia da
conservação.
As coleiras de rádio haviam sido testadas e desenvolvidas em inúmeros estudos de
campo durante esse intervalo, tornando-se mais leves, fáceis de manusear e confiáveis,
porém a tecnologia da telemetria permaneceu praticamente inalterada até então. O
sistema de telemetria empregado no estudo de campo de Fernando Azevedo na San
Francisco, por exemplo, em 2003 e 2004, foi o mesmo (Telonics) usado por Crawshaw
Quigley entre 1980 e 1984. O projeto de Sandra Cavalcanti teve início no ano 2000,
utilizado o mesmo método, mas passaria no ano seguinte a pesquisadora adotaria os
274
novos colares GPS, uma tecnologia ainda muito cara na época e nunca testada com
onças até então.
Os trabalhos desses dois representantes da nova geração, ambos associados ao
instituto Pró-Carnívoros e ex-assistentes de campo de Peter Crawshaw em Iguaçu,
tinham como principal referência científica o estudo pioneiro na Miranda Estância, e
podiam comparar os seus resultados sobre a região os de seus antecessores. O trabalho
de Crawshaw e Quigley (1984) é amplamente citado em artigos científicos e trabalhos
científicos produzidos pelos dois pesquisadores (Azevedo e Murray 2007; Cavalcanti
2006; Azevedo 2006), mas a referência histórica aparece também de depoimentos
registrados durante o trabalho de campo, mesmo que indiretamente. Quando apresenta o
seu trabalho desenvolvido na San Francisco para o público (Ap. 05/2008), por exemplo,
Fernando Azevedo se refere a diversas informações estabelecidas pela tradição sobre o
comportamento da onça:
A princípio, eu tinha dois objetivos: um era estudar como é que a onça se
distribui numa região e os hábitos alimentares dela; e o segundo objetivo,
mais prático, era analisar o que é que faz a onça comer o gado. Porque é
que ela come o gado?
E apresenta uma série de hipóteses de trabalho com as quais trabalhou, contrastando-
as com essa tradição:
A gente achava, em princípio, analisando outros trabalhos, de outras
regiões, que a onça estabelecia território. Para onça, ninguém tinha feito
isso antes: analisar se ela é territorialista ou não. As pessoas falavam que
era, mas não tinham dados científicos. Então, nós analisamos isso. E
também, saber se dentro do território da onça, tem áreas que elas usam
mais; seria o centro do território. Era uma coisa que a gente queria
estabelecer, para ver se existia mesmo.
Como a apresentação não era para uma platéia de especialistas, e se destinava
principalmente ao público leigo, incluindo produtores rurais, ambientalistas e
administradores de fazendas, o biólogo não cita as fontes com as quais está dialogando.
Essa distinção entre a face pública e a face técnica da ciência, que é marcante aqui, foi
discutida na seção 4.2. Assumo como hipótese que o biólogo se referia principalmente
aos estudos de Crawshaw e Quigley (1984) e Schaller e Crawshaw (1980), sem
275
descartar que algumas declarações possam ser referidas também ao conhecimento dos
caçadores nativos. Ele prossegue:
Também se falava muito que a onça, tendo um território, não deixava outra
onça entrar no território dela. Nós estudamos isso também. E também se
dizia que a onça comia de tudo; o que tinha na frente ela comia. Ou seja,
ela é oportunista, qualquer coisa ela come. Isso é que a gente queria
analisar também: se é assim, ou ela seleciona, ou não. Foi motivo do nosso
campo essa pesquisa também.
Em seguida o biólogo reporta alguns dos resultados de seu trabalho de campo:
A pesquisa mostrou que as onças são seletivas e não oportunistas.(...)
Os tamanhos de áreas de vida foram semelhantes entre os sexos, quer dizer,
não teve muita diferença do tamanho do território do macho pro território
da fêmea. Tiveram mais ou menos um tamanho igual, tanto na área geral do
território, quanto no centro do território deles. Quer dizer, os centros, onde
as onças usam mais, também tiveram tamanhos semelhantes entre os
machos e as fêmeas. (...)
E contrasta mais uma vez as informações (sem citar fontes) com a tradição:
Os resultados foram diferentes daqueles com outros grandes felinos, que
registram nenhuma sobreposição territorial entre os machos. Houve
sobreposição, mas não no centro do território. O mesmo com as fêmeas.
(...)
Isso aqui vai de encontro com o que a gente achava, quer dizer, dentro do
território do macho, está o território de mais de uma fêmea. Realmente,
foram de duas fêmeas para cada macho, praticamente. que não é uma
diferença muito grande. A gente esperaria ter machos com territórios bem
maiores.
As observações do cientista são exemplos de como um novo estudo apresenta
inovações ou confirma aquilo que estabeleceu como hipóteses. Ele coloca como
hipótese que a onça constitui territórios, o que depois é confirmado por seu estudo,
observando que “as pessoas falavam que era, mas não tinham dados científicos
(Op.Cit). Trata-se de um bom exemplo do modelo baseado na comprovação científica.
Em outro trecho, o cientista afirma que, ao contrário do que preconizava a tradição, “A
276
pesquisa mostrou que as onças são seletivas e não oportunistas (...)”. Desta vez, não
a hipótese disseminada pela tradição mostrou-se falsa, como também a pesquisa revelou
algo que o biólogo articularia depois uma série de outros dados, como a distribuição das
capivaras nos canais de irrigação da fazenda e os registros de predação do gado
divididos em classes de idade.
Em 2001, depois de trabalhar um ano com a telemetria convencional, a pesquisadora
Sandra Cavalcanti introduziu nos estudos sobre a onça-pintada um novo tipo de
equipamento: o colar GPS. Os sistemas de GPS, que entraram em operação em 1995, já
vinham sendo usados nos estudos de campo sobre as onças algum tempo, e não
tardaram a aparecer no mercado coleiras de rádio equipadas com os dispositivos. O
equipamento ainda era recente e dispendioso quando a pesquisadora se propôs pela
primeira vez a utilizá-lo, enfrentando a resistência de pesquisadores mais antigos,
conforme ela relata em entrevista:
Mas eu lembro que na época, quando eu escrevi a primeira proposta
pedindo esses colares para onça-pintada, os grandes nomes de onça na
verdade o Howard Quigley, o Allan Rabinovitz – disseram:
Não, nós já pensamos nisso, para esse bicho, mas o problema é que esses
colares hoje são muito grandes, muito brutos, e o animal é um predador,
então a gente tem que tomar cuidado, porque quando ele for matar uma
presa, pode ser que na hora do ataque, que ele vai abrir a boca, aquilo lá
pode atrapalhar...
O que na verdade não foi bem o caso, né... Eu escrevi essa proposta, fui
visitar essa empresa, o representante na Califórnia, peguei os colares lado
a lado, comparei com o VHF, e eles eram praticamente do mesmo tamanho.
F: E o fabricante era na California?
Não, o fabricante era na Suiça, da marca Televilt
81
. E na época tinha
três colares que faziam o que eu queria fazer, que era o remote download,
que você puxa a informação sem ter que tirar o colar do pescoço da onça.
Mas eu acho que na época era a única sem ter que tirar o colar. As outras,
você tinha que pegar de volta, para aí você conectar o colar no computador
e repassar as informações. E o da “Televilt” era legal porque você podia,
81
A mesma marca usada por Fernando Azevedo na São Bento a partir de 2008
277
se você programasse o colar para ele fazer o upload num determinado dia,
você ia e fazia isso quando você... A cada três semanas eu pegava as
informações.
A nova tecnologia, originada pela junção entre o GPS e os colares de rádio
tradicionais, é apontada pela pesquisadora como uma espécie de segunda revolução no
campo (depois da introdução da telemetria), responsável por uma série de revelações
inovadoras sobre o comportamento das onças, informações subverteram paradigmas
estabelecidos e modificaram diversos aspectos da história natural das onças tidos antes
como fatos consumados.
A partir de um modelo realista estrito, o colar GPS seria mais um filtro, um
intermediário entre o conhecedor e o objeto de conhecimento. E, nesse sentido, ele
atualizaria o ideal de um conhecimento racional tecnológico feito de verdades objetivas.
Por outro lado, enquanto prótese visual que permite visão totalizante, e um olhar de
cima, se aproxima de algo que Donna Haraway define como “god-trick”, corporificado
pelos satélites. A visão de lugar nenhum ligada ao militarismo, ao capitalismo e ao
colonialismo norte americanos são o ‘outro paradigmático para o projeto científico
feminista da autora, de uma objetividade corporalizada (‘embodied objectivity’), que
recusa de qualquer transcendência:
“O conhecedor é sempre parcial, nunca inteiro, simplesmente lá, é sempre
construído e reunido de forma imperfeita, e assim capaz de se juntar ao
outro”. (: 193)
A alternativa formulada por Haraway é um conhecimento situado, baseado na
agência do objeto de conhecimento, na visão do mundo como entidade ativa e não
passiva. Nessa perspectiva o corpo se tornaria indistinto da mente, um agente, uma
localização, não um recurso, e as fronteiras entre animal e humano, ou entre máquina e
organismo, se mostrariam como questões em aberto.
A técnica reduz a forma das onças de habitarem o mundo a um pequeno número de
marcas relevantes, bits de informação, sinais que podem ser rastreados pelos cientistas.
O colar faz apenas uma coisa: emite um sinal para o satélite. Esse sinal pode ser
rastreado e deixa uma série de vestígios que os cientistas são capazes de localizar a
partir desse sinal: pelos, fezes, pegadas, animais abatidos todos esses rastros fazem
parte de uma história natural que as ações da onça escrevem.
278
A unidade produtora de dados, a onça-de-colar, um sistema de comunicação atrelado
ao animal vivo, pode ser definida, nesse sentido, como um cyborg, no sentido original
do termo (organismo cibernético) mencionado por Haraway na formulação de um de
seus conceitos chave. Os objetos diz Haraway são “projetos de fronteira”, não existe
uma visão passiva, sem mediação:
“Os dispositivos protéticos da visão mostram que todos os olhos, incluindo
os nossos próprios olhos orgânicos, são sistemas perceptivos ativos”.
(1989: 190)
É nesse mesmo sentido que Latour propõe o abandono da metáfora ótica no estudo
das práticas científicas, da idéia de uma janela a partir da qual olhamos para o real. De
acordo seu argumento, o realismo tradicional apaga todas as mediações e preconiza um
olhar direto, sem mediação, um observador que o mundo através de uma janela.
Assim, todos os aparatos de estudo aparecem como filtros que distorcem o real,
tornando tanto o trabalho quanto o observador invisíveis (: 367). A idéia da proposição,
formulada por ele como alternativa, provém do modo como os próprios cientistas falam
sobre o seu trabalho quando estão em campo ou no laboratório:
“Na prática científica, o trabalho e a autonomia do objeto de estudo são
sinônimos: quanto mais um fato é fabricado, mais ele é independente”. (:
370)
A partir do sentido dado por Latour (2000), a coleira GPS deve ser tratada como um
mediador ativo em uma cadeia de mediadores (que inclui os militares e o capitalismo), e
não como um intermediário passivo entre o observador e os animais lá fora. Desta
forma, ela deixa de ser um símbolo desse olhar divino, de uma espécie de visão total na
qual o próprio dispositivo tecnológico desaparece, e passa a ser um elemento que
introduz mais um ponto de vista; um mediador que torna o objeto de estudo mais
articulado com aquilo que o cientista declara sobre ele.
Um dos principais temas da pesquisa de Sandra Cavalcanti é o da predação da onça
sobre o gado, assunto diretamente conectado por ela ao tema da conservação:
Eu acho que hoje você tem um problema que eu acho que é o problema
principal, o maior desafio hoje para a gente: O Pantanal tem o habitat
quase intacto. Claro que estão transformando algumas áreas de pastagem,
mas o ambiente está lá, e as espécies de presa estão presentes. Então, na
279
verdade, no pantanal, não é a falta de presas naturais que faz a onça atacar
o gado. Hoje, no Pantanal, o gado faz parte da dieta natural de onça. Eles
estão disponíveis. São fáceis, são muito mais bobos e fáceis de pegar do que
uma espécie de presa nativa.
Mostrando no computador as localizações obtidas através da coleira GPS ela afirma:
E aí a gente vê a proporção, do que elas matam de doméstico para nativo. E
aqui você que não tem aquela onça que você fale: uma vez que ela
começa a matar o gado, ela fica especialista, ela só quer matar o gado.
Mentira...
F: E essa questão do chamado animal problema?
O animal-problema não existe. O animal é oportunista, e se tiver animal
dando sopa, ela vai matar. Mas ela mata outras espécies também. Então,
por exemplo, essa aqui matou pouquíssimo (o azul escuro é gado). Essa
matou bastante.
Um exemplo proveniente da pesquisa, citado pela pesquisadora, era o de um velho
macho de onça-pintada monitorado pelo projeto, apelidado de Vovô, que seria o
protótipo do animal-problema: previamente ferido por caçadores, o animal tinha perdido
dois caninos, e os restantes estavam bastante desgastados. No entanto, era uma onça que
se alimentava de porcos-do-mato e outras presas silvestres e raramente atacava o
rebanho da fazenda, enquanto animais jovens e saudáveis utilizavam o gado como presa
principal.
Ela explica também que o colar GPS permitiu que encontrasse muito mais presas do
que se achava antes. Nas imagens que ela mostra no computador, as coleiras produzem
pontos no mapa, com localizações e horários. Cada onça corresponde a uma mancha de
cor diferente e muitos pontos juntos significam o que ela chama de “aglomerados”, que
indicam possíveis locais onde a onça se alimentou. Visitando esses locais logo que
obtinha os dados, a equipe de campo encontrou restos de animais como tatus, que nunca
seriam localizados através da telemetria convencional.
Ao longo da entrevista, a pesquisadora aponta uma série de novidades que o estudo
produziu. Mitos, modelos, conceitos que antes eram tidos como fatos e que caem por
terra com o uso da nova tecnologia. Por exemplo, em relação às interações sociais entre
as onças, ela afirma:
280
a gente olhou essa associação espacial-temporal. E a gente tinha vinte
um pares de onça para os quais a gente tinha localização simultânea, no
mesmo dia e na mesma hora... A gente viu que o observado na verdade era
bem diferente do esperado
. A gente tinha 54 pares de localizações de onças
que a gente sabia exatamente a distância entre as duas onças naquele dia e
naquela hora, e a média foi 40 metros. E você pode ter certeza que, se tiver
uma onça a quarenta da outra, elas sabem que a outra está ali. O mais
legal é que não teve diferença entre as distâncias entre macho e fêmea e
macho e macho, então, quer dizer, esses encontros ou interações sociais
não eram necessariamente relacionados com cruzamento de macho e
fêmea. A gente tinha macho e macho perto um do outro também.
Em seguida acrescenta algumas observações sobre o acasalamento e a dispersão dos
filhotes:
E os dados mostram que os machos e fêmeas se associam ao longo do ano
inteiro, não tem estação de monta. Não tem uma época de acasalamento.
Eles se encontram o ano inteiro. Então, a gente descobriu que tem uma falta
de uma estação de cruza definida, as fêmeas entram em contato com os
machos mesmo antes dos filhotes dispersarem... Que era também outro
mito
: a mãe está com os filhotes, ela dispersa os filhotes, ela vai
acasalar de novo... E a gente viu essa fêmea com esses filhotes, depois a
gente a viu com um macho colarizado, um dos nossos de colar, e depois
fotografamos ela com os filhotes de novo.
Ela encerraria, em seguida, o assunto citando um artigo clássico sobre o
comportamento de gatos, que associa às novas descobertas sobre as onças:
De fato tem esse cara que escreveu um artigo clássico de comportamento
do gato doméstico, Leyhausen
82
, e ele sugere que, talvez, a palavra
“solitário” não seja necessariamente oposta a “social”. Você não precisa
ser ou “solitário” ou
“social”... Você pode ser um animal solitário, que se
vire sozinho, mas de tempos em tempos, você vai se encontrar com outros
indivíduos da sua espécie.
82
Paul Leyhausen 1979. Cat Behavior: The Predatory and Social Behavior of Domestic and Wild
Cats, translated by Barbara A. Tonkin.New York: Garland STPM Press.
281
Talvez o exemplo mais interessante de proposição dado por Sandra Cavalcanti na
entrevista seja o modo como ela descreve o uso do território pelas onças:
Em teoria, eles diziam que os machos não sobrepõem os territórios. Então,
dentro do território de um macho, vo tem o território de duas ou três
fêmeas, mas os machos em si não sobrepõem os territórios. E na verdade a
gente descobriu que não tem nada a ver isso. Isso [mostra na tela] são os
territórios de fêmeas, durante a cheia e durante a seca... Então, na cheia
elas sobrepõem os territórios sim, e na seca elas têm territórios mais
exclusivos. Mas na verdade, quando você vai nos machos... aí: são todos
machos [mostra na tela o mapas com os territórios contornados em cores
diferentes]. Um é esse território, o outro é esse, outro esse... A taxa de
sobreposição é gigante, chega a até 70% do território de um macho. Então,
na verdade, quem tem os seus territórios definidos são as fêmeas, e os
machos estão em tudo que é lugar, andando o máximo possível...
A partir dos dados gerados pelo estudo, ela desconstrói o paradigma da descrição de
ocupação do território baseada no macho dominante estabelecido pela tradição
(Almeida 1976, Schaller 1980). As onças se tornam mais sociáveis, e a sociedade delas
é determinada pelo território das fêmeas e não dos machos. A questão se torna ainda
mais interessante quando formulada por uma mulher num campo dominado
historicamente por cientistas homens.
A pesquisadora, usando uma expressão de Latour (2000), dá às onças a oportunidade
de se comportarem de maneira nova, diferente do esperado. Nesse sentido, a partir da
introdução de um novo instrumento de pesquisa, ela pode falar de ações e
comportamentos das onças aos quais não tínhamos acesso antes. É um exemplo de
como a inclusão de novos mediadores ativo entre aquilo que as onças fazem na natureza
e aquilo que podemos dizer sobre elas significa um acréscimo de realismo na descrição.
282
ANEXO G – Imagens Capítulo 4
©Projeto Gadonça
Cenas do trabalho de campo dos biólogos. Na primeira foto, Henrique identifica o predador
fotografado pela armadilha fotográfica; na imagem seguinte, Fernando examina a carcaça
de um búfalo; No meio, Henrique usa o equipamento de telemetria; em baixo, onça
capturada na Fazenda San Francisco pelo Projeto Gadonça, em 2004.
283
Acima, o biólogo Ricardo Costa coleta fezes de onça que em seguida o levadas para o
laboratório de campo do Projeto Gadonça; no centro, o crânio e o esqueleto de uma fêmea
morta por outras onças; Abaixo à esquerda, o crânio de uma das onças do projeto que foi
encontrada morta com um tiro numa fazenda vizinha; à direita, coleção de crânios de
animais predador pela onça na São Bento.
284
Capítulo 6: Rede Onça
Introdução
Antes de avistar uma onça pela primeira vez, eu havia passado pelo menos seis
semanas no pantanal, a maior parte do tempo acompanhando projetos de pesquisa sobre
a espécie. Na San Francisco, tive a oportunidade também de algumas saídas nos
chamados “safáris noturnos”, e apesar da grande quantidade de animais nativos, não
havia visto nenhuma onça. Em todo o período de pesquisa de campo na região, com
duração aproximada de cinco meses, observei (e filmei) onças em apenas duas
oportunidades, nesses passeios turísticos noturnos. Nos dois eventos (aparentemente
com a mesma onça) o animal faz o mesmo movimento: se afasta lentamente dos olhares
humanos, atravessando um canal de irrigação de arroz em direção à mata na outra
margem. No segundo caso, segundos depois que desliguei a câmera, ele esturra,
produzindo o som característico da sua espécie, não registrado.
Mesmo os biólogos que trabalham com a espécie, pelo que pude perceber, raramente
vêem seu objeto de estudo, e sua presença é documentada no campo na forma de
vestígios, traços deixados pela sua passagem, como animais abatidos, rastros, além das
fotografias feitas com as armadilhas fotográficas. A presença da onça é, em geral,
documentada no campo sob a forma de vestígios, de traços deixados pela sua passagem,
como animais abatidos, pegadas, além das fotos captadas por meio das armadilhas
fotográficas. Na primeira viagem de campo que fiz à fazenda, em 2006, para conhecer
o Projeto Gadonça, Henrique, que era o biólogo de campo naquela ocasião, afirmou:“A
maior parte do tempo a gente trabalha com rastros, vestígios, parece que estamos
perseguindo um fantasma”.
Também naquela oportunidade, o biólogo me mostrou algumas fotografias
resultantes da pesquisa realizada até então, que incluíam imagens de onças
surpreendidas quando passavam na frente das armadilhas fotográficas, tiradas com
flash, além de uma série de fotos de animais mortos; corpos ensangüentados e semi
devorados de presas das onças. Essas fotos eram chocantes para um “leigo” como eu,
mas os olhos treinados do pesquisador enxergavam nelas somente as evidências e os
sinais deixados pelo predador: a forma como abateu a presa, o tipo de local onde a
consumiu, entre outras coisas. Perguntado sobre esse aspecto de “médico legista”
285
daquele que realiza o trabalho de campo, o biólogo brincou, na época, dizendo que
quem quer estudar onças tem que se acostumar com bicho morto.
Eu ia ter mesmo afinal que me acostumar com as carniças, que acabaram sendo o
mote do primeiro capítulo. Durante o período todo de campo, fiz também o meu próprio
inventário de vestígios, acumulando fotos de animais mortos ebatidas de onça em
algumas ocasiões [ANEXO 7]. Numa dessas oportunidades, em 2008, anotei:
Caminho da Fazenda São Bento até o Buraco das Piranhas No caminho,
cruzamos com o pessoal da fazenda, e Seu Máximo comenta com Henrique
que um caminhoneiro havia visto um ‘arrastador’ na estrada. Quando
chegamos ao local, encontramos rastros frescos. Henrique identifica como
sendo de duas onças, e acha que provavelmente se trata de uma fêmea com
filhote. Um pouco mais à frente, encontramos marcas de um animal arrastado
ao longo de pelo menos uns cinqüenta metros. O barro está amassado e
rastros da onça ao longo do trecho do arrastador. Em algumas partes, as
pegadas entram para o mato na beira da estrada, onde há um corixo, e
marcas ainda molhadas.
A relação possível com a onça é quase sempre indicial, indireta: Os rastros de
animais mortos deixados por ela são também o principal tema da relação entre
vaqueiros e os biólogos. Também a escrita desta tese, afinal, é feita com diversos tipos
de vestígios, resultantes da minha própria experiência com um objeto em fuga, um
fantasma.
De acordo com Latour (2000), uma declaração pode ser verdadeira ou falsa,
enquanto uma proposição pode ser articulada ou inarticulada, sendo a primeira forma
ligada à idéia de comprovação científica e a segunda à prática da ciência. O contraste
pode ser aproximado da distinção feita por Isabelle Stengers entre ciências de campo e
ciências de laboratório emA Invenção das ciências modernas (1993[2002]). O livro
narra o surgimento das ciências modernas conectado a esse dispositivo singular que é o
laboratório, um dispositivo de definição daquilo que é e daquilo que não é científico,
distinção entre verdade e ficção. Enquanto o laboratório é formulado a partir de um
modelo jurídico, o campo tem como propriedade intrínseca a relação indicial dos
cientistas com seus objetos de estudo, onde cada testemunha é percebida como tendo
uma história singular e local.
286
De acordo com Stengers, a ciência moderna nasce da “descoberta de que o poder da
ficção, a invenção do laboratório, pode ser voltado contra o arbitrário da ficção (...).
[Pode] remeter ao arbitrário da ficção tudo o que não é ciência”( :154). As ciências de
laboratório são caracterizadas a partir daí como modelos teórico-experimentais. Em
contraste, ela afirma que a incerteza irredutível é a marcadas ciências de campo”. (:
174). O experimento de laboratório, presenciado por especialistas é substituído pelo
caráter contingente, narrativo de práticas que envolvem uma relação diferente com o
objeto de estudo:
“Encontra-se, na prática de “campo” (...) tantos instrumentos sofisticados
quanto num laboratório experimental, a mesma invenção que concerne ao
significado de uma medida. Porém, não encontram dispositivos
experimentais no sentido galineano, que conferem ao cientista o poder de
pôr em cena sua própria questão, ou seja, de depurar um fenômeno e de lhe
conferir o poder de depor a esse respeito; os instrumentos do naturalista,
ou do cientista de campo, abrem-lhe a possibilidade de reunir os indícios
que o orientarão na tentativa de reconstruir uma situação concreta, de
identificar relações, não de representar um fenômeno como uma função
munida de suas variáveis independentes”. (: 169)
Mais do que apenas demarcar fronteiras entre práticas laboratoriais e práticas de
campo
83
, entretanto, Stengers se refere neste caso a uma concepção de ciência orientada
pelos princípios que o campo instaura. Utiliza como referência, nesse sentido, a crítica
de Stephen Jay Gould ao modelo teórico-experimental dos chamados neo-darwinianos,
os quais, de acordo com ela, conferem um caráter finalista à evolução, encontrando na
seleção natural a razão de ser de qualquer característica dos seres vivos. Gould é
designado por ela como um narrador darwiniano”, alguém que pensa a evolução sem
a pressupor nela uma noção de finalidade, e cuja crítica ao determinismo biológico “não
se faz em nome de outro paradigma, mas constitui antes o adeus da ciência da evolução
à ambição de julgar segundo um paradigma” (: 169).
As práticas dos cientistas de campo e naturalistas são descritas, neste sentido, em
termos de reunir indícios, identificar relações, acompanhar, ao invés de provar
cientificamente:
83
Cientistas que trabalham no campo podem se pautar apenas por princípios teóricos-experimentais em
suas pesquisas, enquanto pesquisas de laboratório podem se basear nos parâmetros narrativos do campo.
287
“[O] autor, aqui, sabe que o campo não fará dele um juiz. Nenhum campo
vale por todos, nenhum pode dar crédito aos ‘fatos’ no sentido experimental
do termo. O que um campo pode afirmar, outro pode contradizer sem que
por isso um dos testemunhos seja falso(...). “Os cientistas nesse caso não
são juízes e sim investigadores (...). A dinâmica do ‘fazer existir’ e da prova
não são mais assunto de poder, e sim questão de processos que se trata de
acompanhar
”. (: 171)
A autora estabelece, portanto, uma distinção entre aquilo que os cientistas fazem no
laboratório (comprovar, simular) e aquilo que fazem no campo (acompanhar, narrar).
Além da distinção entre ciências de campo e ciências de laboratório, no entanto, ela
especifica nas práticas do campo uma terceira situação, na qual podemos incluir
simultaneamente a primatologia, a antropologia e os science studies:
“Completamente outra, entretanto, é a situação do autor científico quando
aqueles com quem lida (...) são suscetíveis de “se interessar” pelas
questões que lhes são propostas, de interpretar de seu próprio ponto de
vista o sentido do dispositivo que os examina com atenção, ou ainda de
passar a existir num modo que integra ativamente o problema”. (1993:
177)
A diferença estabelecida por Bruno Latour (2000) entre o modelo icônico clássico e
um segundo modelo, que podemos chamar de indicial (orientado pela imagem da trilha,
conforme visto anteriormente), se refere ao papel conferido aos atores em cada um
desses modelos:
“Enquanto uma declaração
implica na existência de humanos falantes
cercados de coisas mudas, uma proposição
implica em que nós somos
levados a falar de determinada forma por aquilo de que falamos”. (2000:
374)
Este capítulo final, em que procuro formular uma rede onça, é dividido em duas
partes, e propõe uma discussão sobre diferentes métodos de pesquisa. Na primeira parte,
apresento as entrevistas que fiz durante o período de campo utilizando um questionário
fixo. As entrevistas produziram dois tipos de material: fichas que preenchi na hora
resumindo as respostas dos entrevistados e transcrições dos registros em áudio.
288
A partir das primeiras, elaborei uma série de análises quantitativas, usando
ferramentas estatísticas para comparar as respostas, produzindo tabelas, gráficos e
números. As segundas foram colocadas em série e usadas para formular uma espécie de
classificação pantaneira, uma compilação do vocabulário para descrever as onças. Tanto
as narrativas quanto os quantitativos são apresentados como declarações sobre o
comportamento animal (no sentido latouriano) e esse experimento do questionário pode
ser definido como aplicação de um modelo teórico-experimental (nos termos de
Stengers). Na discussão final desta primeira parte procuro contrapor este modelo a uma
interpretação simbólica ou cultural das mesmas declarações, definindo o contraste entre
as duas possibilidades como uma espécie de double-bind conceitual.
Na segunda seção, diversos registros narrativos e materiais iconográficos sobre as
onças são conectados aos temas discutidos nos capítulos anteriores, tomando como
ponto de partida a noção de proposição formulada por Latour e o caráter narrativo e
indicial das ciências de campo apontado por Stengers (2003). Utilizando como guia o
Reassembling the Social (2005) Latour, obra que funcionou de modo paradigmático,
para mim, na construção da perspectiva e da argumentação adotada neste trabalho, a
parte final do capítulo é o esboço de uma descrição associativa da onça pantaneira, que
procura definir os contornos darede sociotécnica traçada ao longo da tese.
6.1. Rascunho para um artigo científico
Introdução
Procuro analisar, nesta seção, o conjunto de entrevistas realizadas por mim durante o
período de trabalho de campo, registradas em áudio e, ocasionalmente, em vídeo. Elas
utilizavam um questionário composto de perguntas abertas, mas não ficavam restritas a
essas questões iniciais, que serviram de roteiro geral para as conversas. O formato
questionário foi inspirado principalmente em estudos provenientes dos campos da
Biologia da Conservação e da Etnobiologia.
O questionário estava incluído na proposta apresentada por mim para os biólogos, e
posteriormente para gerentes e proprietários das fazendas onde fiz trabalho de campo, e
foi uma peça importante de negociação para a estadia nesses locais ao longo de 2008.
289
Depois que retornei da última viagem, o material gravado foi transcrito, mas somente a
parte narrativa me interessava naquele momento. Quando passei a usar o questionário
nas entrevistas, em março de 2008, anotei:
O papel do questionário era servir como uma explicação para o que eu estava
fazendo ali, tanto para os biólogos quando para os fazendeiros. Os moradores
locais são muito importantes para as estratégias de conservação da onça na
região, e a relação deles com a onça é o horizonte comum entre a minha
pesquisa e a dos biólogos. Como método de pesquisa, não gosto dos
questionários. Acho o resultado de uma pesquisa feita somente com entrevistas
bastante duvidoso, porque as perguntas muitas vezes condicionam as respostas.
Apesar disso, o trabalho com as entrevistas tem sido bastante produtivo, que
credibilidade à minha pesquisa, me faz conhecer muitas pessoas das
fazendas e cria um ambiente favorável para novas conversas. Por outro lado, a
convivência com os entrevistados no dia-a-dia me ajuda a tentar entender
melhor as motivações daquilo que falaram quando perguntados diretamente, e
também daquilo que não falaram.
As fichas que iam sendo preenchidas por mim ao longo das entrevistas, material que
continha anotações feitas no calor da hora, com base no roteiro de perguntas, foi
deixado de lado até o início da redação da tese, quando resolvi, afinal, utilizá-lo. O que
essas fichas contêm são, basicamente, dados quantitativos. As questões fixas envolvem
diversos temas ligados à conservação das onças, identificados a partir da minha
experiência de campo anterior com cientistas e conservacionistas (relatada brevemente
na primeira parte da tese) e também a partir da literatura pesquisada a respeito do tema
(Banducci 2007; Conforti e Azevedo 2003; Lourival 1997; entre outros).
De um ponto de vista etnográfico, eram as perguntas que eu levava prontas comigo,
que eu levava “de casa”. Eu ainda não conhecia a maior parte das pessoas com as quais
iria trabalhar ao preparar o questionário em 2007, durante a negociação fracassada com
uma das ONGs atuantes na região, e tendo passado apenas duas semanas na região
durante o ano anterior. Naquele momento, eu tinha, portanto, muito mais dados sobre os
cientistas, e sobre as práticas conservacionistas, do que sobre as fazendas e seus
moradores.
O papel do questionário, além da utilização como chave para a minha entrada no
campo, era abordar um assunto de interesse comum entre a ecologia e a antropologia: os
290
modos de classificação e de percepção dos moradores locais em relação ao ambiente
natural e à fauna regionais, em particular às onças. A premissa que utilizei para a análise
do material é de que a relação entre humanos e onças, como objeto de estudos, está
situada em uma zona interdisciplinar, uma zona de fronteira entre as ciências humanas e
as ciências da natureza. O que a análise do material demonstra, no entanto, é que relação
entre cultura e ambiente na divisão acadêmica entre as ciências humanas e ciências
naturais é muitas vezes uma escolha entre cultura ou ambiente, o que inviabiliza
qualquer efetivo diálogo interdisciplinar.
Apresento em seguida duas abordagens a respeito das entrevistas. A primeira delas,
predominantemente quantitativa, é uma análise comparativa das respostas contidas nas
fichas. O formato é intencionalmente inspirado em artigos científicos (Op.Cit) que
investigam aspectos da cultura local relacionados à vida selvagem, modelos textuais
provenientes das áreas da biologia da conservação e da etnobiologia. O objetivo do
questionário era investigar as formas utilizadas pelos moradores das fazendas
pantaneiras para classificarem e interagirem com as onças e com os outros animais que
os cercam. E ele talvez pudesse ser mesmo definido, nesses termos, como um
experimento etnobiológico. Na discussão final deste experimento, as mesmas questões
são abordadas a partir dos registros de áudio das entrevistas, resultantes de transcrições.
Tratando-se, nesse caso, de testemunhos pessoais, relatos de encontros e descrições do
comportamento das onças.
Área de Estudo e Entrevistas
O trabalho de campo foi realizado em fazendas localizadas na região da bacia do Rio
Miranda, no Pantanal do Mato Grosso do Sul, e dividido em duas áreas diferentes.
Utilizo como referência para classificá-las a divisão da região em dez pantanais
distintos, com base nas características ecológicas de cada região (Adámoli 1982). A
partir dessa classificação, a primeira área (área 1) está situada na região do Pantanal do
Miranda, com influência do Pantanal do Aquidauana, enquanto a segunda área (área
2), apesar de se estender até as margens do Rio Miranda, tem sua maior parte situada na
zona do Pantanal do Abobral. [Mapa].
Foram entrevistados moradores de 11 fazendas diferentes, sendo todas elas
dedicadas à criação de gado de corte. Além da pecuária, as outras atividades
291
desenvolvidas nessas propriedades foram o ecoturismo (em três delas) e o plantio de
arroz irrigado (em apenas uma). A área somada de todas as fazendas totalizou 162 mil
hectares, e a quantidade total do rebanho bovino nelas girava em torno de 70 mil
cabeças na época da pesquisa.
Um total de 65 entrevistas com moradores da região de estudo foi registrado ao
longo do trabalho de campo, em 2008, sendo que todas elas foram registradas em
gravador portátil na ocasião e posteriormente transcritas. No que se refere ao perfil dos
entrevistados, foram registradas as seguintes ocupações: proprietários rurais (5),
capatazes (11), peões de gado (17), empreiteiros (7), tratoristas (5), cozinheiras (4),
faxineiras (3), profissionais de turismo (6), administradores (2), guias de campo (2), e
caçadores (2). Um total de 40 entrevistados (62% do total) trabalhava diretamente com a
pecuária, incluindo capatazes, peões (campeiros, salgadores e praieiros), empreiteiros
(responsáveis por cercas e serviços gerais) e tratoristas.
Metodologia
O primeiro objetivo do questionário era investigar as terminologias nativas e a
classificação das onças no vocabulário regional, assim como aspectos da ecologia e do
comportamento dois animais observados pelos entrevistados. A partir da compilação
das designações das onças, procurei formular um esboço para uma classificação
pantaneira. O questionário utilizava em seguida algumas hipóteses ecológicas sobre o
ambiente do pantanal e o conflito entre fazendeiros e onças na região, a partir das quais
foram formuladas na entrevistas. As perguntas incluem imagens utilizadas nas
estratégias de conservação das onças-pintadas, entre elas as da espécie bandeira, da
espécie chave e da espécie guarda-chuva (Silveira 2004; Morato et al 2006) .
Em termos ecológicos, a interação entre as onças e as comunidades rurais da região
pantaneira incluiria potencialmente relações de conflito e a predação (Azevedo e
Murray 2003). A relação de competição pode se referir tanto à predação do gado por
parte das onças como também à caça de animais silvestres por parte dos humanos
(Silveira et al 2008). As relações de predação, por sua vez, incluiriam a eliminação das
onças, percebidas ou como uma ameaça ao gado ou à própria vida humana, assim como
a relação inversa, isto é, casos de ataques onças a pessoas (Knight 2001).
292
A partir da formulação genérica do conflito por Knight (2001), estabeleci como
hipóteses de trabalho que as onças poderiam ser percebidas: como causadoras de
prejuízo (espécies “nocivas” ou “daninhas”), como competidoras (em relação ao gado
ou em relação às presas silvestres) e também como uma ameaça direta para os
moradores locais. As perguntas feitas nas entrevistas abordavam diretamente esses
temas, assim como os conceitos da ameaça de extinção e do animal problema,
provenientes do léxico conservacionista.
O questionário foi dividido em seis temas: (1) relações com animais, (2)
comportamento das onças, (3) tradição regional de caça, (4) predação do gado, (5)
ataques ao ser humano e, finalmente, uma (6) a classificação pantaneira das onças. Cada
um desses temas inclui um conjunto de questões, apresentadas a seguir:
1. Relações com a fauna
1.1. Qual é o animal ou bicho que melhor representa o pantanal?(Para colocar numa
capa de livro, por exemplo).
1.2. A quantidade dos seguintes bichos está diminuindo, aumentado, ou continua
igual? (a) Capivara; (b) jacaré, (c) porco, (d) onça.
1.3. Algum animal causa prejuízo à fazenda? (espécies daninhas)
1.4. Já observou alguma onça no ambiente natural?
1.5. As onças estão ameaçadas na região?
1.6. Qual a importância da onça para o Pantanal?
Resultados
1.1. O primeiro tema das entrevistas era a relação dos moradores das fazendas com a
fauna regional, de forma geral. Inicialmente, os entrevistados eram solicitados a
escolher um animal para representar o Pantanal na capa de um livro. Foram citados os
seguintes animais: onça, tuiuiú, cervo-do-pantanal, tamanduá-bandeira, capivara,
lobo-guará, jacaré-do-pantanal, periquito-rico, ariranha, carcará, e cavalo pantaneiro.
A inclusão deste último se deve em parte ao uso local dos termos “animal” e “bicho”;
sendo o primeiro reservado pelos pantaneiros aos animais de criação e o segundo aos
293
animais silvestres (Banducci 2007). Os três mais citados foram: a onça, em 52% das
entrevistas, o tuiuiú, em 13%, e o cervo, em 6%.
1.2. A segunda questão tinha o formato de múltipla escolha. Eu mencionava 4
animais, e perguntava se a quantidade deles na área da fazenda estava aumentando,
diminuindo, ou continuava a mesma. O aumento na quantidade de jacarés foi
mencionado por 62% dos entrevistados, e o de capivaras por 60%, enquanto a
quantidade de porcos-do-mato foi considerada estável em 65% das entrevistas.
Praticamente a metade dos entrevistados (49%) apontou um aumento na quantidade de
onças, enquanto 42% consideraram a população delas estável.
1.3. A terceira questão era se algum animal causava prejuízo aos moradores da
fazenda. Os animais citados como prejudiciais à criação de gado foram: onça, cobra
(boca-de-sapo e cascavel), morcego, mosca, porco, e tatu, os dois últimos por fazerem
buracos no campo, perigosos para o trabalho a cavalo; em relação à lavoura de arroz,
foram citados: capivara, rato e paturi; e, finalmente, em relação aos pomares das casas:
papagaio e periquito; o jacaré foi apontado como problema para a pesca e também para
pecuária, por ficar nos reservatórios de água feitos para o gado. A onça foi a mais
citada, por 38% dos entrevistados, seguida pela capivara (18%) e pela cobra (17%).
1.4 A grande maioria dos entrevistados (92%) afirmou ter visto pelo menos uma vez
na vida uma onça no ambiente selvagem. O resultado foi diretamente influenciado,
entretanto, pela presença do turismo na fazenda. Quanto à freqüência dos encontros
25
12
11
5
4
onça capivara cobra papagaios jacaré
38% 18% 17% 8% 6%
animais que causam prejuízo
citações
294
entre vaqueiros e onças no campo, excluindo portanto situações de captura e turismo, o
tempo médio citado em relação ao último avistamento foi maior do que três anos.
1.5. Num total de 41 respostas, 23 entrevistados (56%) consideraram que a onça não
está ameaçada na região, enquanto 18 (46%) afirmaram que está.
1.6. A importância da onça foi conectada ao turismo em 8 entrevistas, sendo que em
uma delas foi feita a ressalva de que “pro pantaneiro não é de proveito”. Outros 8
entrevistados mencionaram a “beleza” do animal. O equilíbrio na cadeia alimentar foi
citado em 6 ocasiões. Em 5, a onça foi considerada um “símbolo” para a região, e o
mesmo número de entrevistados (5) citou a ‘herança para os filhosou para as futuras
gerações’, como motivo para a preservação da espécie. Em 3 entrevistas, a resposta foi
“nenhuma”[importância], e em 2 ocasiões os entrevistados consideraram as onças em
geral propriamente nocivas dizendo que “era melhor se ela [a onça] não existisse” e que
“se pudesse matava tudo”.
2. Ecologia das onças
2.1. Quais são os animais que a(s) onça(s) atacam para comer?
2.2. Existe algum animal que a onça não ataca?
2.3. As espécies de onças disputam entre si o território e as presas?
Resultados
2.1. No que se refere aos hábitos alimentares, os entrevistados listavam livremente
os animais dos quais a onça se alimenta. Um total de 48 respostas foi obtido para a
onça-pintada, sendo que 17 entrevistados (26%) não souberam ou não quiseram
responder a questão. Em 22 entrevistas, foram citadas presas da onça-parda. No caso da
onça-pintada, a análise levou em conta o número de citações e também os animais
citados em primeiro lugar (como presa principal), enquanto no caso da parda, devido ao
menor número de dados, foi usado somente o número total de citações. Os animais
citados como presas da onça-pintada (o número de citações se acha entre parênteses)
foram os seguintes: Capivara (33), gado (32), jacaré (24), cervo (16), porco (8),
queixada (6), veado (5) cateto (3), ema (2), cachorro (2) tamanduá (2), tatu (1), cavalo
(1) e anta (1).
295
Tabela 2: Hábitos alimentares da onça-pintada (Panthera onca)
PRESAS DA ONÇA-PINTADA
Citação Nome científico Nº cit. Em 1º
CAPIVARA Hydrochaeris hydrochaeris 33
18
GADO Bos taurus 32
16
JACARÉ Caiman crocodilus 24
6
CERVO Blastocerus dichotomus 16
1
PORCO Sus scrofa ou Tayassu sp. 8
1
QUEIXADA Tayassu pecari 6
1
VEADO Mazama sp. 5
1
CATETO Tayassu tajacu 3
EMA Rhea americana 2
CACHORRO Canis familiaris 2
TAMANDUÁ
Myrmecophaga tridactyla 2
CAVALO Equus caballus 2
ANTA Tapirus terrestris 1
TATU Dasypus sp. e outras 1
Para fazer uma análise estatística das principais presas, incluí as citações referentes
ao queixada, ao cateto e ao porco em uma categoria: porcos. Fiz o mesmo com o
cervo e o veado, incluídos na categoria cervídeos. O gráfico seguinte mostra as cinco
categorias mais citadas em relação ao total de respostas válidas (48) e o número de
vezes em que apareceram em primeiro lugar nessas respostas. Apesar da coincidência
entre as cinco categorias mais citadas nas áreas 1 e 2, o número de citações para cada
uma variou, o que alterou de forma significativa a ordem delas em termos de
importância. Na área 1, a capivara foi a mais citada (84%), seguida pelo jacaré (64%), e
o gado (52%); na área 2, o gado foi o mais citado (83%), seguido pela capivara
(57%), e pelos os porcos (52%). A causa mais evidente dessa diferença é a grande
concentração das entrevistas (80%) em uma única fazenda da área 1, sendo que nela os
casos de predação do gado são raros e uma pesquisa científica (conhecida pela maioria
dos entrevistados) apontou capivaras e jacarés como as principais presas silvestres da
onça-pintada.
296
As categorias utilizadas para as presas das onças-pardas (novamente com o número
de citações entre parênteses) incluíram entre os animais domésticos: bezerro (11),
69%
67%
50%
44%
35%
42%
33%
15%
4% 4%
CAPIVARA
GADO
JACARÉ
CERVÍDEOS
PORCOS
PRESAS DA ONÇA-PINTADA (TOTAL)
Nº CIT EM 1º
84%
64%
52%
48%
20%
60%
24%
12%
4%
CAPIVARA JACARÉ GADO CERVÍDEOS PORCOS
ÁREA 1
Nº CIT EM
83%
57%
52%
39%
35%
61%
22%
9%
4% 4%
GADO
CAPIVARA
PORCOS
CERVÍDEOS
JACARÉ
ÁREA 2
Nº CIT. EM
297
carneiro (9), cabra (1), potro (4) e galinha (1); e entre os animais selvagens: ema (7),
tatu (4), capivara (2), veado (2) e passarinho (1). Para análise estatística, incluí carneiros
e cabras na categoria “caprinos”.
No que se refere à divisão entre animais domésticos e selvagens, as citações
referentes às 5 principais presas da pintada incluem apenas uma categoria doméstica
(gado), enquanto as citações referentes às 5 principais presas da parda incluem somente
duas categorias de animais selvagens (ema e tatu). Além disso, dois termos utilizados
neste último caso designam classes de idade específicas para as espécies domésticas
(bezerro, potro). Essas diferenças vão reaparecer no tema 5 do questionário, específico
sobre a predação do rebanho bovino pelas onças. De forma geral, estudos científicos
feitos na região apontam uma diferença no tamanho dos animais predados pelas duas
espécies e sugerem uma distinção nos tipos de hábitat usados por cada uma (Azevedo &
Murray 2007; Silveira 2004), o que é confirmado pelas entrevistas do presente estudo.
Os gráficos abaixo mostram uma comparação entre as classe de presas citadas para a
onça-pintada e para a onça-parda:
CAPIVARA
24%
GADO
24%
JACARÉ
18%
PORCOS
12%
CERVOS
15%
OUTROS
7%
PRESAS DA ONÇA-PINTADA
5 ANIMAIS MAIS CITADOS
Nº CIT = 132
298
2.2. Os animais citados como evitados pela onça foram: o búfalo, o gado tucura
(bovino pantaneiro), a anta e o [tamanduá] bandeira.
2.3. De um total de 31 respostas para a questão, 20 entrevistados (65%) afirmaram
que a onça-parda vence a onça-pintada em confronto direto, o que indicaria uma relação
[inesperada] de dominância da segunda em relação à primeira.
Entre as 20 declarações desse tipo, 5 foram afirmações atribuídas a terceiros,
antecedidas pelas expressões “diz que...”, ou o povo antigo fala que”. Apenas um
desses 5 entrevistados, no entanto, disse não acreditar no fato quando foi indagado a
respeito. Afirmações dizendo o contrário a pintada como vencedora do confronto
foram feitas por 7 dos entrevistados que responderam à questão (23%).
Outros 4 entrevistados disseram que as duas onças evitam-se mutuamente. A relação
de cada onça com o ser humano foi diferenciada a partir de uma série de parâmetros: A
parda foi descrita como habitante das mesmas áreas onde vivem os moradores das
fazendas (cerrado, parte alta), enquanto os territórios que foram citados para a pintada
(sujo, pantanal, brejo, beira de rio) foram em geral locais inabitados e selvagens.
Em 3 entrevistas foi mencionado ainda que a parda “cuida da gente”, “acompanha
no campo” e protege a pessoa”.
BEZERRO
26%
CAPRINOS
24%
EMA
17%
TATU
9%
POTRO
10%
OUTROS
14%
PRESAS DA ONÇA-PARDA
5 MAIS CITADOS
299
3. Predação do gado
3.1. Quais são as principais causas de mortalidade do gado na fazenda?
3.2. Existem onças que se alimentam só de gado?
3.3. Existe algum método para prevenir os ataques e o prejuízo?
3.4. Quantidade de gado abatido por onças na fazenda (apenas para proprietários e
capatazes)
Resultados
O tema da predação foi abordado apenas com funcionários de fazendas que
trabalhavam diretamente com a pecuária, incluindo capatazes, retireiros, peões,
empreiteiros e tratoristas, num total de quarenta entrevistas. Os dois últimos grupos
correspondem, somados, a 7 entrevistados, e não podem ser considerados propriamente
“vaqueiros” especializados, mas são pessoas que trabalham no campo e cujo trabalho é
fundamental para o funcionamento da unidade produtiva da fazenda.
3.1. Nessas 40 entrevistas, as categorias usadas como causas para a mortalidade do
gado foram: onça”, cobra”, “erva” (plantas tóxicas), “doença” e “seca”. A onça
foi citada por 69% dos entrevistados (27), sendo mencionada em primeiro lugar por
62% deles (24). A segunda de mortalidade causa mais citada foi a cobra, em 44% das
entrevistas, sendo 38% das vezes como primeira (15). Nenhuma outra categoria foi
mencionada como causa principal, sendo que a erva foi citada em 5 oportunidades, a
seca em 4, e a doença em 3.
3.2. Em relação ao ataque das onças ao gado, uma questão discutida no campo do
manejo da vida selvagem é a individualização do chamado animal problema. Entre os
40 entrevistados, 7 negaram a existência de onças que usam exclusivamente o rebanho
doméstico (18%), enquanto 11 não quiseram ou não souberam responder à questão
(28%). Os 22 restantes (55%) consideraram que determinadas onças se alimentam
exclusivamente do gado, classificando-as com os termos: “matadeira”, comedeira de
gado”, “comedeira de carneiro” (parda), e “[onça] que vicia no gado”.
Essa relação de proximidade e distância também aparece na distinção entre as presas
das onças, sendo que as presas citadas para a pintada incluíram principalmente o gado
300
solto no campo, enquanto a parda foi descrita como responsável pelos ataques à criação
de carneiros e de animais que vivem nos quintais das casas. Muitas vezes esses são
animais que pertencem aos moradores e não à ‘Fazenda’, como é o caso em geral do
gado. Isso fez com que a parda fosse qualificada de “sem vergonha”, “abusada” e
“covarde”, entre outros adjetivos negativos.
No trecho abaixo, o morador de uma fazendarelata os ataques aos seus carneiros:
A parda tem mais mas é mais difícil ver, porque ela é velhaca. (...) Ela
pegando mais é meus carneiro, aqui, e os carneiro da fazenda. Agora,
deixou solto ela pega.
E: Então está dando mais prejuízo que a pintada...
Ah, ela tá... pra mim ela já me matou sete carneiros. E bem dentro do retiro
aqui, ó, bem nesse quintalzinho ela matou. (...) E o pior é que você nem
o barulho... o bicho é desgramado, comeu sete carneiro. Comeu não,
ela mata, mas não conseguiu tirar de dentro. (...) Uns dois ela comeu.
(E08/FSF 2008)
3.3. Dentro do mesmo universo de 40 entrevistas, 5 (13%) consideraram que não
solução para prevenir os ataques da onça ao rebanho. Nas entrevistas restantes, as
formas de prevenção mencionadas foram: manejo do gado (14), preservação da fauna
local (9), eliminação da onça (9), remoção da onça (6), investimento em turismo (4),
limpeza do campo (2), e criação de reservas (2). No geral, o manejo da onça (através de
remoção ou eliminação) foi o método mais citado, em 15 casos, ou 38% das entrevistas,
enquanto o segundo método foi o manejo do rebanho (através do sistema rotativo),
citado em 14 casos, ou 35% das entrevistas. Outras causas foram citadas em 10
ocasiões, ou em 25% das entrevistas.
4. Ataques ao ser humano
4.1. A onça é uma ameaça para o ser humano?
4.2. Uma onça pode atacar uma pessoa em quais situações?
4.3. Conhece algum caso de ataque? Qual?
Resultados
301
4.1. Nas respostas à primeira questão, a maioria dos entrevistados (42) não
considerou a onça como uma ameaça à vida humana, o que corresponde a 65% do total
de entrevistas. Em 21 entrevistas (32%) ela foi apontada como ameaça, enquanto 2
entrevistados não souberam ou não quiseram responder à questão.
4.2. As situações mencionadas como perigosas para um encontro foram: quando a
onça está acuada por cães, citada 19 vezes; quando ela está se alimentando (“na
carniça”), citada 13 vezes; e quando está com filhotes (“parida”, ou “de cria”), citada 12
vezes. Os três casos foram considerados situações de defesa. Nos casos em que a onça
foi considerada uma ameaça, foi mencionada a situação de uma “onça que deu carreira
em peão” e também da “onça que perdeu o medo de gente” por causa do turismo, o eu
foi apontado um risco para trabalhadores.
4.3. O caso de ataque de onça com o maior número de referências na pesquisa foi o
de um funcionário do governo que trabalhava com prevenção da malária. Esse foi o
caso mais citado nas entrevistas, por 7 entrevistados, sendo que todos eles afirmaram se
tratar de um ataque de onça-pintada:
No tempo que o... Sucam, que eles fala, que é malária, né... ele andava de
bicicleta, tirando sangue... aí, essa história que os mais antigo conta eu
conheço o lugar, lá é que a onça pegou o cara. (...) Inclusive, a turma
chama: Morro do Malária. (...) Ele vinha vindo, né, na estrada, carreteiro
antigo, né... ela pegou ele e arrastou pra cima lá. A turma (...) achou
pedaço do calçado, só. (E11. FSF, 2008)
(...)
Aqui no Pantanal, nunca ouvi falar que já pegou uma pessoa, mas teve uma
história que contaram, não sei, isso não sei se é verdade... lá pro lado do
Nabileque, naquele fundo lá do cafezal tem um cafezal aqui pra morraria
ali. Diz que pra pegou um ‘malária’ andava de casa em casa, assim,
vendo esse bicho, o barbeiro, né... diz que ele vinha (...), ele entrou
num capãozinho, assim, e... a onça tava por lá, pegou ele. Aí, depois
de passado uns quatro dias, por aí, acharam a caveira dele já. A onça
tinha comido tudo, já. Assim a turma conta, né, eu não vi. (E2 FSB 2008)
302
Apenas outros dois casos apareceram mais de uma vez nas entrevistas. O primeiro
foi um ataque ocorrido durante a captura de uma onça para um projeto científico (3
citações) na região, em que um peão da fazenda, que ajudava os pesquisadores, ficou
gravemente ferido (Dois entrevistados afirmaram que a onça foi morta no episódio, e
um não soube responder a essa questão).
O segundo, mencionado também em 3 entrevistas, foi o caso de um pescador
atacado em Cáceres (MT), enquanto acampava na beira do Rio São Lourenço. Este
caso, ocorrido em junho 2008, foi o primeiro registrado oficialmente no Brasil pelo
CENAP (Ibama) de um ataque de onça-pintada a um ser humano envolvendo predação.
O acontecimento foi tema de uma série de matérias de jornal e televisão na época, e foi
mencionado em diversas outras ocasiões, além de referências em entrevistas durante o
período de campo posterior ao ocorrido. Outros dois eventos nesse mesmo período
foram associados pela imprensa local, o que gerou novas matérias com entrevistas de
especialistas na fauna silvestre da região.
Em nenhuma entrevista a parda foi apontada como perigosa para o ser humano,
sendo caracterizada também como onça “mansa” em 4 depoimentos; a pintada foi
considerada uma ameaça em 32% das entrevistas, e apontada como perigosa apenas em
determinadas situações (“com filhote” ou “na carniça”) em 51% delas.
5. Tradição de caça
5.1. Os moradores da fazenda costumam sair para caçar?
5.2. Quais são (ou eram) as caças preferidas do pantaneiro para alimentação?
5.3. Já matou alguma onça ou participou de caçada ou captura?
Resultados
No vocabulário pantaneiro, o termo “caça” designa não a atividade, mas também
os animais de caça, ou a carne desses animais, e a utilização desta palavra na
formulação da pergunta causou alguns mal-entendidos nas primeiras entrevistas feitas
com os moradores da área de estudo. Perguntados a respeito da “caça”, os entrevistados
interpretavam que a pergunta era sobre a quantidade de animais da região e não sobre a
303
atividade de caça. Para corrigir isso no questionário, passei a especificar a atividade na
pergunta, formulando-a como ela está apresentada acima.
5.1. No presente trabalho, foram feitas entrevistas com moradores de um total de 11
fazendas. Em cada uma delas foi entrevistado ou o proprietário ou o capataz, ou um
retireiro’ [responsável por uma determinada área e um lote de gado] da propriedade, o
que foi utilizado como critério para inclusão das fazendas nesta questão.
De acordo com essas entrevistas, em 2 fazendas qualquer tipo de caça é proibido
atualmente. Na primeira delas, a atividade foi totalmente proibida a partir do
desenvolvimento do turismo na propriedade, no final da década de 90. Na segunda,
onde não turismo, a caça foi proibida há pelo menos cinco anos, desde que a área foi
adquirida pelo atual proprietário.
Em outras seis fazendas é praticada atualmente apenas a caçada do porco-monteiro.
Esse tipo de caçada é permitido por lei e praticado em muitas fazendas da região, apenas
para o consumo interno. Existem restrições em termos legais apenas para o transporte de
carne de caça para fora das fazendas por razões sanitárias.
Em outras três propriedades (nas quais o porco-monteiro está ausente), foi citada
como ocasional a caça das outras duas espécies de porcos-do-mato da região, o
queixada e o cateto.
A caçada de onça como forma de controle da predação do rebanho foi reportada em
entrevistas referentes a quatro fazendas, sendo especificada em três casos como dirigida
à onça “que mexe muito com o gado”, “que fica no gado”, ou “quando mexe muito
com gado”. No caso restante foi mencionado o abate ocasional quando algum dos
cachorros que acompanha os peões acua uma onça no campo.
5.2. Nas respostas sobre as espécies preferidas de caça pelos entrevistados, quatro
animais forma mencionados mais do que cinco vezes; são eles: porco-monteiro (39),
queixada (24), cateto (5) e capivara (4). As outras citações foram: cervo (3), jacaré (3),
veado (3), paca (2), anta (1) e jacutinga (1). A tabela a seguir mostra o número de
citações e o percentual correspondente ao total de respostas válidas para a questão (53).
304
Tabela 3: Animais de caça
Animais de caça
Citações Nome científico
Nº de
cit.
porco-monteiro Sus scrofa 39
74%
Queixada Tayassu pecari 24
45%
Cateto Tayassu tajacu 5
9%
Capivara Hydrochaeris hydrochaeris
4
8%
Cervo Blastocerus dichotomus 3
Jacaré Caiman crocodilus 3
Veado Mazama am. e outras 3
Paca Agouti paca 2
Anta Tapirus terrestris 1
Jacutinga Aburria jacutinga 1
Tatu Dasypus sp. E outras 1
Em todas as fazendas onde foram feitas as entrevistas havia fornecimento de carne
de boi para os empregados, sendo a carne de porco (doméstico ou selvagem) apontada
como substituta eventual na dieta dos moradores.
Houve também uma diferença significativa entre as áreas, sendo que, na área 1, o
porco-monteiro foi citado em ‘apenas’ 52% das entrevistas, enquanto, na área 2, foi
citada em 96% delas (ou seja, por quase todos os que responderam à questão). O
queixada também foi citado com muito mais freqüência na área 1 (em 48% das
entrevistas), mas as citações foram concentradas principalmente em fazendas onde a
caça atualmente é proibida, sendo portanto referentes ao passado, e o à realidade
atual.
Como teste para a hipótese da competição ecológica entre onças e humanos pelas
espécies silvestres, é possível relacionar os resultados desta questão com os da questão
sobre as presas da onça (questão 3.1). Uma comparação entre os cinco animais mais
citados como caça (para alimentação humana) e os cinco mais citados como presas da
onça-pintada mostra um grau bastante baixo de superposição entre as classes:
305
O resultado indica que uma relação de competição alimentar entre humanos e onças
por animais silvestres seria pouco significativa para a região. A competição estaria
concentrada nas espécies de porcos-do-mato que foram consideradas, de modo geral, o
quinto item mais importante para na dieta da onça-pintada, e sequer foram mencionados
para a onça-parda.
5.4. Um total de 27 entrevistados (42%) afirmaram já ter participado de caçadas de
onça, sendo em 5 desses casos referentes à capturas para pesquisa científica.
6. Classificação das onças
6.1. Quais são os tipos de onça que existem na fazenda?
6.2. Qual o tipo de lugar que cada uma delas prefere?
Resultados
6.1. A classificação resultante das entrevistas distingue basicamente os mesmos dois
tipos de onça, chamadas na maior parte das vezes de pintada e parda. Os termos
74%
45%
9%
8%
6%
49%
12%
3%
2%
3%
monteiro queixada cateto capivara cervo
ANIMAIS DE CAÇA
NºCIT EM 1º
69%
67%
50%
44%
35%
42%
33%
15%
4% 4%
CAPIVARA
GADO
JACARÉ
CERVÍDEOS
PORCOS
PRESAS DA ONÇA-PINTADA (TOTAL)
Nº CIT
EM 1º
306
apareceram em todas as 65 entrevistas, sendo os únicos tipos mencionados em 30 (46%)
delas. O termo suçuarana (mencionado também como “suçarana” ou “soçarana”) foi o
terceiro mais empregado, 18 vezes utilizado para definir uma das qualidades da parda
(11), para definir um terceiro tipo de onça (5), e como um sinônimo para parda (2).
Um total de 35 entrevistas (54%) distinguiu duas qualidades para a pintada e duas
para a parda, cada uma delas com características físicas específicas. As qualidades da
pintada citadas foram: a (1) ‘malha larga’ (ou ‘malha grande’), uma onça ‘maior’, ‘mais
comprida’, e ‘mais amarelada’; e a (2) ‘malha miúda’ (ou ‘malha pequena’), ‘menor’,
chamada também de canguçu’ para designar a onça ‘cabeçuda’. As duas qualidades da
parda foram a (1) ‘parda’ ou ‘pardinha’, ‘menor’ e ‘mais clara’, de ‘cor palha’; e (2) a
“suçuarana” (variantes “suçarana” ou “suçorana”) ou ‘lombo preto’, uma onça ‘mais
escura’, ou ‘com uma listra preta no lombo’, e ‘maior’.
Neste caso, porém, a suçuarana (como utilizarei de forma genérica), pronunciada
também “suçarana” ou “soçarana”, foi definida como uma variedade da parda em 11
entrevistas, (sendo que outras 10 utilizaram o termo “lombo preto” no mesmo sentido),
enquanto apenas cinco entrevistados definiram-na como um terceiro tipo de onça.
Nas entrevistas compiladas para o presente trabalho, a jaguatirica (Felis pardalis)
foi incluída em três oportunidades como um tipo de onça (oncinha), o que aponta algo
semelhante, mas não desenvolvi o tema da família dos felinos. O termo guarani
jaguaretê foi citado também duas vezes como sinônimo para pintada.
A etnografia de Álvaro Banducci (2007), em etnografia realizada no pantanal da
Nhecolândia distingue três “qualidades” de onças:
“A onça, por exemplo, um tipo específico de ‘bicho’, possui três
qualidades: a pintada, a parda e a ‘socorana’. (...)‘Soçorana’ é uma onça
de menor porte que a pintada e de coloração escura, quase preta. Alguns
informantes a definem como sendo uma variedade da onça-parda”. (: 105)
O que o autor chama dequalidade’ corresponde, no presente trabalho, ao que
classifiquei como tipos. Apesar de muitas vezes mencionarem “a onça” de forma
genérica, a maior parte dos entrevistados distinguiu tipos de onça, reservando o termo
qualidade para as diferentes “qualidades” da parda ou da pintada. Isso, contudo, não foi
uma regra, e o termo qualidade também foi aplicado no mesmo sentido daquele usado
por Banducci em algumas entrevistas. A distinção mencionada pelo autor entre a
‘pintada’, a ‘parda’ e a ‘soçorana’, como três onças diferentes, apareceu também no
307
presente trabalho, porém foi menos freqüente do que a utilização do termo (com as
variantes “suçarana” ou “suçuarana”) para definir uma variedade da parda.
Tabela 1: Esboço da classificação pantaneira
TIPOS QUALIDADES CARACTERÍSTICAS HABITAT PRESAS (5 PRINC.)
1
MALHA GRANDE (5) MAIOR (5) SUJO (2) CAPIVARA (33)
PINTADA MALHA LARGA (4) MAIS AMARELA PIRIZEIRO (1) GADO (32)
JAGUARETÊ (2) MALHA VERMELHA (1) RABO COMPRIDO BREJO (3) JACARÉ (24)
ALTA PANTANAL (2) CERVÍDEOS (21)
2
MALHA MIÚDA (5) MENOR (5) BEIRA RIO (1) PORCOS (17)
CANGUÇU (5) CABEÇA GRANDE (2) MATA (2)
MALHA PEQUENA (2) MAIS ESCURA REGIÃO SELVAGEM (1)
MALHA FINA (2) MAIS BRABA PARTE BAIXA
MALHA PRETA (1) TRONCUDA CAMPO SUJO
CORIXO
1
SUÇUARANA (11) MAIOR (7) CERRADO (2) BEZERRO (11)
PARDA LOMBO PRETO (10) LOMBO PRETO (7) CERRADÃO (2) CAPRINOS (10)
PARDÃO (1) MAIS BRABA (2) MORRO (2) EMA (7)
PATA RAJADA (2) MAIS ESCURA (6) SERRA (1) TATU (4)
2
PARDINHA (5) MENOR (7) PARTE ALTA POTRO (4)
LOMBO VERMELHO (1) PALHA (1) CAMPO LIMPO
PARDA MAIS CLARA (6) PERTO DAS CASAS (4)
AMARELA (1)
TIPOS PRESAS DOMÉSTICAS ATRIBUTOS RELAÇÃO COM HUMANOS
PEGA GADO GRANDE FEROZ CASOS DE ATAQUE
PINTADA COMEDEIRA DE GADO BRABA PERIGOSA
VICIA NO GADO PERIGOSA ENFRENTA CACHORRO
DANINHA TRAIÇOEIRA AMEAÇAS:
CORAJOSA PARIDA
ANDEJA NA CARNIÇA
PEGA BEZERRO NOVO VELHACA NÃO É UMA AMEAÇA
PARDA COME BICHO PEQUENO MEDROSA FOGE
COMEDEIRA DE CARNEIRO CURIOSA TEM MEDO DO HOMEM
GOSTA DE POTRILHO ABUSADA CUIDA DA GENTE
SEM VERGONHA PROTEGE A PESSOA
MANSA ACOMPANHA NO CAMPO
308
Discussão1: cromatismo
O código cromático foi amplamente utilizado pelos moradores da região na
nomeação das onças. Um exemplo é esta descrição feita pelo capataz de uma das
fazendas da área de estudo:
Aqui tem a onça parda– aquela onça amarela e a pintada. Tem uma
parda que o pessoal fala suçuarana uma parda maior e a outra parda,
menor, que fala parda, normal. E a pintada tem uma malha larga e uma
malha miúda. É a mesma onça, que elas têm diferença; uma é mais
malha larga e outras é mais malha miúda. E a malha miúda é mais preta e
mais branca. A outra, mais malha larga, é preta, mais amarelada, e branca.
Ela meio que faz o acompanhamento da cor do sol. Mas, se você falar isso
pro Fernando [biólogo], ele fala não, tudo é uma onça só. (risos)
(E15.2008)
Em relação à onça-pintada, a distinção entre as qualidades, neste outro registro, se
baseia no desenho das pintas de cada animal:
Da malha tem diferente. Tem uma que tem a malha pequena, miúda (a maia
que a gente fala é as pintas. Ela é mais escura. Agora, tem a da malha
grande, da malhona amarela, assim, grandona. Aquela grande a onça.
Dessa malha pequena é mais miúda. O tamanho é menor, mas a mão dela e
a cabeça são grandes. Ela é mais escura um pouco que a outra, que a
pintada grande. (E32. 2008)
O cromatismo e os padrões gráficos são os elementos centrais na designação dos
tipos e qualidades. O nome, neste caso, corresponde a uma espécie de descrição sucinta
do animal. Esse tipo de resumo visual estabelece uma conexão imediata entre a
classificação das onças o tema do cromatismo e das marcações do gado, abordado no
capítulo 2. No caso do gado, o cromatismo da pele é uma primeira camada sobre a qual
se inscrevem os signos gráficos da linguagem dos vaqueiros. Enquanto isso, a própria
pele da onça-pintada é gráfica, e o desenho da ‘maia’ um modo de designação do
animal.
Outro critério adotado pelos entrevistados para diferenciar as onças foi o tipo de
habitat usado por cada uma. As áreas citadas como habitats para a pintada foram:
309
pantanal, brejo, mata, beira rio, pirizeiro e sujo. Para a parda foram: cerrado,
morraria, serra e Nhecolândia (uma região do pantanal mais seca, descrita como
cerradão). Também foi indicado um contraste entre locais mais selvagens (distantes)
para a primeira e mais perto das casas (próximos) para a segunda.
Seu Adão, o capataz de um retiro na Fazenda San Francisco, em Miranda. Na
passagem ele descreve como o mato tomou conta de onde antigamente havia uma trilha:
Tem muita onça aí. Agora que a gente não mais porque sujou muito. Pra
ver é assim, só no caso dessas em cima da gente, mesmo.
F: Sujou como? O mato está muito alto?
É, foi proibido o negócio de queimada...O Pantanal, parou de queimar, ele
suja. Tem parte antiga, que eu entrei aqui, que você andava, corria, que
hoje você não passa. Como diz o ditado: nem cobra engraxada não entra
mais. Sujou tudo.
Um dos aspectos significativos nessa oposição local entre limpo e sujo, que foi
reiterada nas entrevistas analisadas neste capítulo, é o seguinte: enquanto, de acordo
com eles, os vaqueiros apreciam esteticamente o limpo, a onça-pintada apreciaria o sujo
e a onça-parda é a que gosta (como eles) do campo limpo (tabela 2.1).
A idéia do pantaneiro de ‘limpeza’ e de ‘sujeira’, qualidades associadas ao mato
fechado e ao campo aberto, seria ainda muitas vezes repetidas em conversas com outros
vaqueiros, mas aquela era a primeira vez em que eu a ouvia. Além da evidente
associação estética, a sujeira, no caso do trecho acima, é também aquilo que impede o
movimento (nem ‘cobra engraxada’ passa!). Esta impenetrabilidade de certos matos, um
dos sentidos locais da “sujeira” é também citada em uma série de relatos de caçadas,
tanto em entrevistas como em fontes literárias. Como é o caso dos “pirizeiros”,
“caraguatazeiros” e de outras vegetações nas quais a onça gosta de se esconder, e onde
os caçadores não conseguem avançar, como descreve Almeida (1976). Veja-se, nesse
sentido, o trecho abaixo:
“O "caraguatá" (Bromelia paraguayensis) é da mesma família dos
abacaxis, e suas folhas longas e finas se estendem para cima a partir do
centro da planta até uma altura de dois metros, armadas com espinhos
enganchados longo da folha que rasgam homens e animais tentando
passagem. Mesmo os cavalo recuam para longe deles, mas um jaguar os
310
usará freqüentemente para despistar uma matilha de cães de seu encalço.
Se um capão de "caraguatá" é suficientemente grande, quando os cães
acham uma maneira de contorná-lo o jaguar está muito distante”.(1976:
107)
84
O caçador descreve cuidadosamente as espécies de plantas às quais se refere,
acrescentando:
“A planta que fornece maior proteção para os jaguares, entretanto, é sem
dúvida a moita conhecida como ‘pombeiro’ (o nome científico ainda não
descoberto por mim
85
[e onde esta planta cobre grandes áreas, nem um
jaguar em cada dez irá subir em uma árvore. O pombeiro é um arbusto
denso, que cresce a uma altura máxima de três metros, com muitos das
características uma trepadeira. Os ramos têm a espessura dos pulsos de um
homem, e se espalham e contorcem em todas as direções, conectando-se
com aqueles da moita seguinte, e áreas freqüentemente com alguns acres
em extensão são cobertas por ela, tornando-se impenetráveis. Os jaguares
são capazes de se moverem sobre estas moitas com relativa facilidade, mas
elas são um pesadelo para os homens, que têm que rastejar e forçar sua
passagem através delas para tentar alcançar o felino. (Idem)
A associação da onça ao sujo traz consigo, no sentido dado pelo caçador, uma
questão ligada à acessibilidade do animal, uma idéia que podemos remeter talvez à
metáfora latouriana da trilha (2000), proposta pelo autor como imagem alternativa à
metáfora da janela, ao realismo cientificista. No caso da caçada, os caminhos
84
The “caraguatá” (Bromelia paraguayensis) is the same family as pineapples, and the long, thin
leaves sprout up from a central steam to a height of six feet, armed with wickedly hooked thorns along the
rims which tear at man or beast attempting passage. Even a horse will shy away from them, but a wily
jaguar will often use them to throw a pack of hounds off his track. If a clump of “caraguatá” is large
enough, by the time the dogs have found their way around it the cat is a long way off.
The plant which affords greatest protection to jaguars, however, is doubtless the bush known as
“pombeiro” (scientific name as yet undiscovered by me [Iresine macrophylla (Pott 1984)], and where
this plant covers large areas not one jaguar in ten will ever go up a tree. The pombeiro is a dense shrub,
growing to a maximum height of eight feet, with many of the characteristics of a creeper. The branches,
up to the thickness of a man’s wrists, lace and twine in every direction, connecting with those of the next
bush, until areas often a few acres in extent are impenetrably concealed by it. Jaguars can move in and
over this with relative ease, but it is a nightmare for men who have to crawl and chop their way through it
to try to reach the cat. (: 107)
85
Iresine macrophylla (Pott 1994) é citado como “pombeiro-branco” em Plantas doPantanal.
EMBRAPA ISBN 85-85007-36-2. www.cpap.embrapa.br/publicacoes/online/Livro025.pdf
311
percorridos pelos cães são as vias de acesso fundamentais para o caçador chegar até a
onça, mas ela se vale da paisagem para impedir-lhes o acesso.
Discussão 2: Parda e Pintada
O tema do conflito entre onças (q. 2.3) surgiu na primeira visita que fiz à área de
estudo em 2006, quando entrevistei em vídeo o capataz de um Retiro da antiga Miranda
Estância no local onde pretendia na época desenvolver a etnografia. Ele era um legítimo
‘pantaneiro’, um termo usado na região para definir os moradores antigos e que
mantém os costumes tradicionais. Disse o retireiro:
A onça-parda surra a pintada. A parda protege a pessoa, acompanha no
campo. Onça mansa... Pega rês nova, carneiro, bicho macio. Come muito
carneiro. Tem dois tipos: parda e lombo-preto, maior e mais escura no
lombo.(03/2006)
As declarações foram surpreendentes para mim na época, mas depois seriam
confirmadas pela grande maioria dos “antigos” pantaneiros’, na acepção local do termo.
A surpresa era principalmente causada pelas conversas anteriores com o capataz e com
outros moradores do retiro, nas quais a pintada tinha sido apontada como bicho
“valente”, “forte”, que “enfrenta gado grande” e a parda como ‘covarde’ e ‘maldosa’,
por pegar muito “bezerro pequeno” e “carneiro”.
Quando elaborei o questionário para usar no trabalho de campo, em 2008, incluí a
disputa entre a parda e a pintada (por território ou por presas) como uma questão fixa.
Reproduzo abaixo alguns dos depoimentos:
A pintada perde pra parda. Ela é maior, ela é mais perigosa, mas na hora
da briga ela perde. (4/2008)
(...)
Elas não combinam muito não. briga. que, a suçuarana, a pintada
tem medo dela. Tem receio dela. Diz que ela é bem mais valente do que a
pintada. E o povo antigo sempre falava meus tios mesmo falavam que a
suçuarana, aonde ela tava, mesmo, que a pintada tivesse ali por perto, ela
escorraçava com a pintada pra cuidar o homem. Ela cuida, ela escorraça
com a pintada pra ficar cuidando a gente.
(...)
312
Onde é que tem onça parda, a pintada não para. Porque a parda bate nela.
E a parda é menor do que a onça pintada, mais fininha, mas a pintada
corre de onde tem a parda.
(...)
A parda, se ela achar a onça pintada na carniça, ela põe a onça pintada
pra fora. Onça parda conhece ela. E a pintada também: que ela vai lá,
ela larga. Ela sai rosnando, e vai embora. a parda come. Às vezes
briga. Quando um macharrão, assim, já velhão, quer enfrentar.Aí eles
brigam. Mas a parda tem mais destreza de que a pintada. Porque a pintada,
quando ela pula mal, ela até cai, porque ela é um bicho pesado.Enquanto
isso, a onça parda em cima. A onça pintada, ela um tapa, assim, e a
parda dá duas vezes, rápido, igual gato.
(...)
Eu ouvi falar que a parda bate na pintada, mas eu não acredito não. Diz
que a parda é muito mais rápida, tem muito mais destreza. E não foi nem
um e nem dois que eu ouvi falar. Eu conheci um bugre velho que cansou de
falar: A parda bate na pintada. Ela é bem menor, mas a agilidade dela é em
dobro da pintada. Você vê, e onça pintada não é um bicho parado...
Apenas em uma das citações acima o entrevistado afirma “não acreditar” na hipótese
pantaneira. A hipótese torna-se contra-intuitiva quando contrastada a outros elementos
descritivos, como a um tipo de onça menor e que não representa uma ameaça para o ser
humano. Em média, a onça-pintada tem praticamente o dobro do tamanho da parda, e
essas declarações em diversas situações eram vistas com ironia pelos meus amigos
biólogos no campo.
O que torna a ‘hipótese pantaneira’ especialmente interessante é o fato dela ser
mencionada no trabalho de Crawshaw e Quigley (1984). Eles afirmam:
“É comumente dito no Pantanal, por pessoas familiarizadas com a fauna,
que, em luta corporal, a parda derrota a pintada. (...) Tal afirmação o
pode ser comprovada em nosso estudo, mas em dezembro de 1982 foi
encontrada uma fêmea subadulta de onça parda, morta com uma mordida
na nuca, por um casal de onças pintadas. Nessa ocasião, foi capturada e
aparelhada a fêmea desse casal (F11). A 15 m da carcaça da parda, as
pintadas se alimentavam de um macho subadulto de anta (Tapirus
313
terrestris), recém-abatido, fugindo à nossa aproximação (Crawshaw, 1982
d). A julgar pela rigidez cadavérica, a parda havia sido morta antes da
anta, o que sugere que ela não tenha sido morta como alimento.
(... ) Outra fêmea de onça parda, adulta, foi encontrada morta em setembro
de 1980, com evidentes sinais de luta no local, mas, uma vez que se
haviam passado vários dias, não foi possível determinar qual havia sido o
adversário. Entretanto, com base em pegadas encontradas várias vezes, o
capão era regularmente usado por onças pintadas”. (Crawshaw e Quigley
1984: 18)
E concluem que:
“Esse conjunto de observações sugere que o grau de tolerância
interespecífica deve variar com o status etário e social dos animais
envolvidos e também com as circunstâncias particulares de cada encontro.
Situações semelhantes de competição entre espécies simpátricas de grandes
felinos ocorrem na Africa entre o leão, guepardo e leopardo (Schaller,
1972), e na Asia, entre o tigre e o leopardo (Schaller, 1967; Sunquist,
1981). Schaller (1972) descreve duas instâncias em que leopardos foram
mortos por leões”. (Idem)
De acordo com a literatura científica consultada, o peso médio de uma onça-pintada,
na região, é aproximadamente o dobro do peso de uma onça-parda (Azevedo 2006;
Silveira 2004; Crawshaw e Quigley 1984; Almeida 1976). No caso, os autores se
referem a “pessoas familiarizadas com a fauna”, o que é também consonante com o
material de entrevistas analisado acima, na medida em que a hipótese é formulada por
antigos caçadores, capatazes e retireiros, isto é: vaqueiros mais velhos, com ampla
experiência de campo. Quando que “[t]al afirmação não pôde ser comprovada em
nosso estudo”, os autores pressupõe, de forma perfeitamente razoável e aberta ao
conhecimento tradicional, que os pantaneiros não estão descrevendo sua própria cultura
ou usando qualquer tipo de ‘metáfora’, mas ao contrário, que eles estão falando do
comportamento empírico das onças em seu ambiente natural.
O texto contrapõe a declaração dos moradores da região a duas evidências
encontradas durante pesquisa de campo, ambos casos de pardas encontras mortas. No
entanto, são duas evidências ‘fracas’ do ponto de vista científico, como os autores
314
deixam claro: um dos animais é um sub-adulto e o outro não permitia uma
identificação conclusiva.
A hipótese pantaneira, entretanto, não aparece no artigo publicado pelos dois
cientistas a partira da mesma pesquisa (1991) e nas fontes pesquisadas não foi
encontrada nenhuma outra menção direta a ela para a região. No livro Jaguar (1986),
sobre a experiência de campo de Alan Rabnowitz em Belize, na América Central
86
,no
entanto, a mesma afirmação é atribuída aos índios Maia residentes na região. O autor
afirma:
Apesar de pumas e onças-pintadas serem aproximadamente do mesmo
tamanho, o puma não é classificado entre os grandes felinos, que rugem
87
.
(...) A cabeça do puma é pequena, e seu corpo é ágil e longilíneo. Ele se
parece mais com um gato do que a onça-pintada, com seus membros curtos
e volumosos. Talvez sua constituição física, indicando que o puma seja
relativamente rápido e ágil, ajude a explicar por que o puma é muitas vezes
o vencedor nas histórias indígenas de batalhas entre onças-pintadas e
onças-pardas.
88
(1986: 206)
Os exemplos refletem bem as opções que nos fornece o dualismo tradicional, em
relação às declarações de que a parda vence a pintada. No caso de Rabinowitz, ele
apenas menciona histórias indígenas (maia), sem especificar quais são, mas não parece
inclinado a levá-las muito a sério. Neste caso, elas são simplesmente descartadas como
“mitos”. Do ponto de vista do simbolismo animal, entretanto, certamente essas histórias
poderiam ser analisadas em uma rede complexa de significados culturais (sem que isso
dependesse de as onças estarem ou não se batendo lá fora).
A alternativa seria tomar as declarações dos pantaneiros como provenientes de
experiências empíricas, como fazem Crawshaw e Quigley (1984). No caso, a hipótese
não pôde ser comprovada (nem descartada definitivamente pelo estudo).
86
Uma obra de ciência popular, ou de divulgação científica.
87
O tamanho das onca-pintadas nas áreas abertas do Pantanal é praticamente o dobro daquelas das
florestas tropicais, como é o caso de Belize.
88
Trad. Minha: Through pumas and jaguars are about the same size, the puma is not classified with the
other great, or roaring, cats. The puma’s head is small, and its body, lithe and narrow. It gives the
impression of being much more catlike than the short-limbed and bulky jaguar. Pehaps its physical build,
allowing the puma to be relatively quick and agile, helps explain why the puma is often the victor in
Indian accounts of battles between jaguars and pumas.
315
A oposição entre natureza e cultura, colocada de saída, condiciona qualquer
observação sobre o comportamento animal: ou alguma coisa é dada ou então é
construída. Assim, seríamos obrigados a escolher se vamos descrever relações
ecológicas ou relações sociais, e esse ‘double bind’ é precisamente o que tentamos
evitar.Com relação à hipótese pantaneira, podemos apenas conjecturar, já que ela não
foi suficientemente testada. O mais interessante nessa história toda seria se ela fosse
cientificamente comprovada: uma situação contra-intuitiva, que não possuía nenhuma
característica científica, produziria então novas articulações em relação àquilo que se
sabia. Mas isso é apenas conjectura.
6.2. A onça-pantaneira: esboço para uma descrição associativa
Espreita e captura
Imagens ou vídeos registrando caçadas de onça-pintada são muito raros,
principalmente em vida livre, e não em ambientes cercados e situações controladas
(estes últimos são pródigos na iconografia da vida selvagem compilada no youtube). Em
termos de filmagens de animais em ambiente natural, conheço apenas duas, ambas feitas
no Pantanal. A primeira é um vídeo feito pelo cinegrafista Haroldo Palo Jr (cit), que
mostra uma onça capturando um jacaré, na margem de um rio. Neste caso, o vídeo
começa depois que ela deu o bote, e mostra a onça puxando o réptil para fora da água,
imobilizando-o com uma mordida no pescoço, junto da mandíbula.
O segundo deo, mais recente, também envolve uma caçada na beira de um
rio, e foi filmado por cinegrafistas amadores que visitavam o pantanal, às
margens de um rio em Cárceres (MT), julho de 2008
89
. Existem algumas
versões da filmagem no youtube. A mais completa tem sete (6:58) minutos de
duração, e foi batizada de “Ataque de onça-pintada”. Vou utilizá-la como
referência principal para descrever toda a seqüência:
O vídeo começa com uma filmagem feita de um barco a motor em movimento,
mostrando algumas capivaras na praia de um rio. Enquanto o barco passa pelas
capivaras, uma voz exclama:
89
Vídeo disponível no website: http://www.youtube.com/watch?v=FaxPBnIfcYQ.
316
-- A lá, a onça! A onça!
(Ouve-se um murmurinho de vozes)
-- A onça atrás da capivara.
A câmera procura, em movimento, até parar, ainda tremida, em um objeto
ainda bastante indefinido acima da praia, aonde termina a areia e começa a
vegetação. Com algum esforço é possível identificar a cabeça da onça na cena.
Alguém pede silêncio: Shhh!
O barco continua em movimento. A câmera agora mostra as capivaras, que
observam o movimento um pouco apreensivas, sem contudo se afastarem,
enquanto ritmo do motor diminui gradualmente.
(Nesse ponto há um corte).
O quadro seguinte já mostra a onça deitada, imóvel, totalmente deitada no chão
e com a cabeça abaixada, olhando fixamente para frente. O motor do barco foi
desligado, deste ângulo é possível vê-la de corpo inteiro.
-- Tranqüila, né!
A câmera faz um movimento da esquerda para a direita, percorrendo a praia do
ponto até onde a onça está deitada até o bando de capivaras. As capivaras
aparentemente não percebem o predador, e estão atentas aos barcos. A
aproximação em zoom da câmera faz com que os grandes roedores preencham
todo o quadro.
-- Tá magra ela – diz uma voz masculina, referindo-se à onça.
-- Ou tá parida ou é uma onça velha. – Um segundo observador acrescenta.
A câmera volta novamente para a onça, percorrendo a praia de volta. Calculo a
distância entre ela e as capivaras como algo em torno de sete ou oito metros.
As pessoas no barco continuam falando entre si:
-- Desse jeito aí ela ataca!
-- Pronta pra dar o bote.
A câmera não tem estabilidade, e sacode com o movimento do barco. Agora
está fixa na onça, e logo em seguida se afasta um pouco. É possível perceber a
tensão no corpo da onça, estendido para a frente em absoluta imobilidade.
317
Ouve-se o barulho de mais um barco que se aproxima ao longe. Alguém
comenta:
-- Ó que esses cara vão assustar!
A câmera volta novamente para as capivaras. Ouve-se o pio estridente de um
pássaro aquático. As capivaras parecem também parecem alarmadas, mas
aparentemente atribuem isso aos barcos; nada parece indicar que estejam
cientes da presença da onça. Uma voz no barco talvez do cinegrafista
exclama:
-- Dá pra chegar pertinho dela. Deitada...
A câmera se aproxima novamente da onça, até o limite de zoom da lente, e
com isso treme mais, o quadro flutua em volta da onça até que ela preencha
quase todo o quadro. O barulho do motor do segundo barco aumenta enquanto
ele se aproxima, fora do enquadramento. Alguém grita:
-- Ó a onça aqui! Ó a onça aqui, ó!
A câmera se afasta até mostrar uma ampla faixa da praia, com a onça na linha
central da imagem, à esquerda, não é possível ver as capivaras. A câmera não
pára: faz um novo zoom, e o foco flutua entre a onça e alguns galhos na beira
do rio, na praia. O murmurinho aumenta, enquanto o motor do outro barco vai
sendo desligado.
-- Vai espantá a onça aí...
-- Ó a onça lá traz, lá, ó...
A câmera sacode, mostrando o rio, e aparece rapidamente a mão de uma pessoa
tirando uma fotografia com flash. A câmera se afastou ao máximo, e procura
enquadrar no mesmo plano a onça e as capivaras.
-- Olha ela, tá pronta pra dá o bote!
O barco onde está o cinegrafista liga novamente o motor, e se move um pouco
para a frente. A onça continua imóvel o tempo todo, e a câmera sacode,
mantendo-a em foco.
-- Vamo cercá ela e laçá ela! – diz alguém.
Uma outra pessoa pede silêncio:
318
-- Deixa ela caçá, vamo vê ela pegá o bicho aí...
O primeiro responde:
-- Ela não pega. Não vai pegá mais não.
Uma pessoa de costas passa pelo quadro, no outro barco, usando camiseta e
chapéu.
-- Tem gente, ela não pega mais – afirma um.
-- Se for pro lado dela lá, ela pega...
O vento sopra no microfone da câmera, que se afasta novamente até vermos
quase toda a extensão da praia. Em primeiro plano, os chapéus das pessoas no
barco da frente passam da direita para a esquerda, na direção contrária à do rio.
Um motor é ligado. Alguém diz:
-- Desliga! Vamo vê se ele vai terminá...
Agora uma das capivaras se aproximou, e pode ser vista na praia, no mesmo
quadro em que está a onça. A câmera continua se movimentando, e vemos
partes de barcos e pessoas de costas olhando para, para a qual dirigem
máquinas fotográficas e filmadoras.
-- Isso aí é empalhado! – zomba uma voz.
-- Parece que tá morta... Tá nada...
-- Ela só vai na certeza.
-- Ó o tanto que aquela [capivara] de lá tá gorda!
A câmera agora está fixa na onça. Durante todo o tempo da filmagem ela
esteve imóvel, deitada no mesmo lugar. O vídeo até aqui, com a onça
espreitando a capivara, durou exatamente 4 minutos e cinqüenta e dois
segundos. Nesse ponto, ela dá um salto abrupto e se lança em direção à
capivara. Uma outra filmagem, feita de um ângulo um pouco diferente, mostra
como a capivara se aproxima até o ponto em que percebe a onça, quando fica
totalmente paralizada por alguns instantes. Quando a capivara faz um
movimento para o lado em direção à água, que é o seu método de fuga, ela tira
os olhos da onça. É nesse ponto preciso que a onça o bote. Em
aproximadamente 2 segundos, a capivara mergulha na água e a onça também.
A câmera acompanho o movimento do bote, e mostra a mancha branca de água
319
que o impacto do mergulho levanta. Em primeiro plano um observador de boné
se recolhe instintivamente.
-- Que lindo, cara! -- diz uma voz em off – Que dez!
Mais duas pessoas estão em um outro barco muito próximas do grande borrifo
levantado pela pancada dos animais na água. Um deles rema, se afastando.
-- Eu não acredito num negócio desses.
-- Quase que pula no barco dos cara!
Enquanto isso, a câmera mostra a superfície agitada da água, e é possível ainda
perceber o movimento em círculos que se expandem a partir do ponto do
impacto. Gritos:
-- A lá, a lá ela!
-- Ihhhhh!
A câmera se move um pouco para a direita, onde surge da água a forma ainda
um pouco indefinível, da cabeça da onça vista de costas. Cinco segundos se
passaram entre o mergulho, a partir do qual predador e presa desapareceram,
submersos, e o reaparecimento da onça, aos 4:57 do vídeo. A onça nada, se
afastando, e aos poucos é possível ver que ela arrasta consigo a capivara,
mordendo-a firmemente no topo da cabeça. Esta última se debate, jogando as
pernas para fora da água. Mais gritos e exclamações.
A onça agora parece firma as patas no chão do rio, e arrasta a capivara para
fora d’água enquanto esta se debate freneticamente. Gritos:
-- Muito bem menina!
-- Ahhh!
-- Cê viu? Ela só vai na certeza mesmo!
-- Pode botar no youtube! Vai ser um dos vídeos mais vistos afirma um
dos presentes.
-- Nem no national geographic cê vê um negócio desse.
A capivara é arrastada pela areia da praia e novamente por um trecho de água
até a vegetação mais alta da margem. A onça mantém a mordida, e olha
rapidamente em direção aos barcos antes de desaparecer em direção ao mato
fechado.
320
Vários gritos de comemoração são ouvidos, e a câmera agora mostra pelo
menos cinco barcos que com turistas que estavam observando a cena, incluindo
aquele onde está o cinegrafista. Cada barco tem pelo menos três pessoas, o que
significa que ela foi acompanhada por uma platéia de quinze pessoas. Fim.
Os turistas observam a onça, e capturam a cena em fotografias e filmagens. Também
eles praticam a espreita e a captura, nesse sentido. Dentre as imagens a que tive acesso
até hoje, contudo, considero-o o melhor registro visual de uma onça em situação de caça
já produzido, dentre os três ou quatro feitos sem a utilização de animais em cativeiro.
Meu primeiro impulso quando encontrei o vídeo na internet foi desligar o som, para
tirar o ‘ruído’ desagradável das declarações dos turistas e guias, com os comentários
jocosos de quem parecia não se dar conta daquilo que estavam presenciando: uma
experiência única, um vislumbre inédito da história natural.
Depois disso, passei a olhar a cena de outro modo, e optei por descrever o vídeo
(acima) incluindo o áudio. As falas evidenciam o caráter caseiro do vídeo, e, juntamente
com as imagens dos barcos de turistas, acrescentam uma série de mediadores entre nós e
a cena; não a vemos “sentados confortavelmente na poltrona”, como num vídeo sobre a
vida selvagem, mas a partir do barco em movimento, acompanhados por uma série de
outros curiosos igualmente munidos de câmera. O que significa uma estocada
considerável na aura da cena.
Mais tarde, o vídeo seria mencionado no debate em torno de acusações de que as
onças dessa região estariam sendo cevadas, e por isso estariam se tornando
perigosamente acostumadas à presença de turistas. Minha impressão como espectador,
inclusive, é que o movimento dos barcos talvez tenha sido de fato um fator de distração
para as capivaras e que a onça tenha tomado partido disso em sua emboscada. Outra
estocada, desta vez no ideal da observação do comportamento selvagem autêntico.
Apenas quando esquecemos esse ideal de autenticidade e abandonamos o modelo
ingênuo da ciência que ele alimenta (ainda seguindo o exemplo proposto por Latour), é
que a série de mediadores deixa de ser um ruído e passa a acrescentar algo novo à
imagem. Mas o mais interessante é que, além de tudo isso, trata-se de um registro
inédito de um comportamento da onça.
Transcrevo abaixo alguns trechos do verbete referente à espécie (jaguar, Panthera
onça) na Wikipedia, na versão em língua inglesa da enciclopédia virtual (neste caso bem
mais rico e completo do que a versão em português). Minha intenção é mostrar como o
321
vídeo documenta visualmente com precisão alguns dos elementos chave da descrição
enciclopédica do comportamento da onça.
A onça-pintada caça por emboscada e não por perseguição. O felino
caminhará devagar pela floresta para ouvir e espreitas suas presas até
preparar uma emboscada. Os ataques da onça a partir da cobertura vegetal
normalmente partem de um ponto cego do alvo com um bote rápido; e as
habilidades de emboscada da espécie são consideradas quase inigualáveis
no reino animal tanto pelos povos indígenas quanto por pesquisadores de
campo, e provavelmente são um produto do seu papel como um predador
ápice em vários ambientes diferentes. (http://en.wikipedia.org/wiki/Jaguar)
A perseguição seria o método empregado em geral pelos canídeos (incluindo a
maior parte dos cães e dos lobos) para capturar a sua presa, mas é empregado também
por um felino como o guepardo africano, por exemplo. A onça, por sua vez, de acordo
com o trecho acima, não persegue a presa, ficando de tocaia. A enciclopédia prossegue,
mencionando exatamente o tipo de ataque que vimos no vídeo:
A emboscada pode incluir um mergulho na água atrás da presa, já que uma
onça-pintada é perfeitamente capaz de transportar a carcaça de uma presa
grande enquanto nada; sua força é tal que carcaças tão grandes como uma
novilha podem ser transportadas até o alto de uma árvore para evitar a
inundação.(Idem)
Neste outro trecho descreve-se o tipo de mordida característico da espécie:
Apesar de a onça-pintada empregar a mordida na garganta e a técnica de
sufocamento típica entre as espécies do gênero Panthera, ela prefere um
método único entre os felinos: ela penetra diretamente com seus dentes
caninos através dos ossos temporais do crânio, entre as orelhas de presa
(principalmente a capivara), perfurando o cérebro. Esta pode ser uma
adaptação de abrir cascos de tartaruga, seguindo-se exemplos de extinções
do Pleistoceno tardio, quando répteis blindados como as tartarugas que
formaram uma base de presas abundante para a onça
90
. (Idem)
90
While the jaguar employs the deep-throat bite-and-suffocation technique typical among Panthera, it
prefers a killing method unique amongst cats: it pierces directly through the temporal bones of the skull
between the ears of prey (especially the Capybara) with its canine teeth, piercing the brain. This may be
322
Traduzi a expressão “stalk-and-ambush” acima como “emboscada”, mas minha
intenção, a seguir, é designar o método de caça empregado pelas onças como “espreita e
captura”. A descrição acima é produzida por especialistas, e é fundamentada em
diversos trabalhos científicos sobre a espécie. A mordida na base do crânio é também
um dos elementos utilizados pelos biólogos em trabalho de campo para identificar o
animal responsável por um ataque de pintada, como foi demonstrado no capítulo 1.
A referência para este tipo especial de mordida da onça-pintada, descrito na
enciclopédia, é um artigo científico de George Schaller de 1978
91
, e o artigo indica que
o tema fora analisado antes em estudos taxonômicos sobre a espécie. No artigo
popular de Schaller , de 1980 (2007: Op. Cit), ele a descreve da seguinte maneira:
“Como de costume, o felino tinha matado a capivara com uma mordida na
base do crânio. A onça-pintada traz a cabeça dentro de sua boca e, com os
caninos opostos, perfura os ossos até o cérebro. Esta técnica é notável não
pela precisão com que os caninos perfuram o crânio, sobre ou perto das
orelhas, mas também pela a força necessária para penetrar meia polegada
de osso. Jaguares podem matar até vacas por quebrando seus crânios,
utilizando uma força primitiva estranha mesmo aos leões e tigres, que
normalmente matam grandes presas mais facilmente por estrangulamento”
92
. (2007: 68)
O exemplo apresentado aqui é um caso bastante simples do processo de purificação
científica descrito por Latour (1994; 1998), no qual as evidências de um fenômeno
natural são comprovadas no campo, publicadas em artigos científicos e estabelecidas
an adaptation to "cracking open" turtle shells; following the late Pleistocene extinctions, armoured
reptiles such as turtles would have formed an abundant prey base for the jaguar.
The jaguar is a stalk-and-ambush rather than a chase predator. The cat will walk slowly down forest
paths, listening for and stalking prey before rushing or ambushing. The jaguar attacks from cover and
usually from a target's blind spot with a quick pounce; the species' ambushing abilities are considered
nearly peerless in the animal kingdom by both indigenous people and field researchers, and are probably
a product of its role as an apex predator in several different environments. (...)
The ambush may include leaping into water after prey, as a jaguar is quite capable of carrying a large
kill while swimming; its strength is such that carcasses as large as a heifer can be hauled up a tree to
avoid flood levels. (http://en.wikipedia.org/wiki/Jaguar)
91
Schaller, G. B; Vasconcelos, J. M. C. (1978).Jaguar predation on capybara. Z. Saugetierk. 43: 296-301
92
Trad. Minha: As usual, the cat had killed the capybara with a neat bite into the skull. The jaguar takes
the head into its mouth and, with opposing canines, punctures the bone to the brain. This technique is
noteworthy not only for the precision with which the canines pierce the skull on or near the ears but also
for the strength needed to penetrate half an inch of bone. Jaguars may even kill cows by crunching open
their skulls, using a primitive force alien to lions and tigers, which usually dispatch large prey more
fastidiously by strangulation. (2007: 68)
323
como fatos consumados na literatura enciclopédica
93
. O que pretendo, neste capítulo, é
traçar associações entre essas referências científicas e alguns registros orais coletados
no campo, sem estabelecer entre eles nenhuma diferença a priori (tratando, digamos,
uma delas como projeção cultural e a outra como constatação objetiva, o “matter of
fact”).
O que está em jogo neste capítulo é a articulação entre diversas descrições a respeito
do comportamento animal baseadas na experiência empírica de quem as enuncia.
Retomo a partir daqui a descrição dos métodos de caça empregados pela onça nos
quais ela utiliza dispositivos de espreita e rastreamento (“stalk and ambush”) citando
uma entrevista com Seu Inácio gravada durante o trabalho de campo, em novembro de
2008. O caçador pantaneiro descreve em detalhes, a certa altura, os sentidos da onça na
perseguição de sua presa:
Olha, ela quando sai pra caçar, ela não sabe se o vento assim, porque
ela não tem faro, moda cachorro. Ela escuta e enxerga. É igual a nós.
Mesma coisa que você sentir uma catinga dum troço.Você não sabe, o
sente. Então a onça, ela sai pra caçar; se ela enxergou um cervo, ou uma
capivara, ela vai assondar (sic.). Mas se a capivara sentiu, a capivara
vai embora. Ela não liga mais.
A idéia de assondar”, no sentido empregado por ele, corresponderia a um dos
aspectos do que estou procurando definir como “espreita”. O caçador prossegue:
E se ela achou o cervo é a mesma coisa, se o cervo entretido, pastando
ali, tá comendo, ela vai chegando, chegando, vai chegando e o cervo não
ver ela e não sentir ela ela pega o cervo. Mas se o cervo sentir ela o
pega. Se ele entrar pra lá, virar pra e virou pra cá, ela não sabe aonde
que foi. Só enxergar ele que ela vai atrás, mas se não ela não vai.
O jogo entre predador e presa que o caçador descreve está baseado na relação entre
ver e ser visto. A onça é capaz de seguir sua presa na medida em que a vê, mas, a
partir do momento em que é avistada, ela abandona imediatamente a caçada. Neste
outro trecho da entrevista, o caçador narra a captura de uma vaca que assistiu, junto com
o pai, durante uma caçada:
93
Um processo por sinal cada vez mais rápido, como mostra esse exemplo da Wikipédia.
324
Ela andava um bocadinho, assim, e na hora que a vaca tava pastando ela
andava ligeiro, pra chegar onde a vaca estava. Quando a vaca levantava,
ela parava; do jeito que ela ia andando ela parava. Não mexia nem com o
rabo, nem com nada. Paradinha. Aí, quando a vaca baixava pra pastar ela
continuava outra vez. Quando a vaca ia assustar, ela já tava junto, bufando.
Ela deu um berro assim, correu, e quando a vaca quis correr, ela pulou
na vaca e pegou.
O caráter furtivo da aproximação se refere a essa alternância entre movimento e
imobilidade, entre visibilidade e invisibilidade. No caso do vídeo do Youtube, a onça
permanece oculta para a capivara até o último segundo antes do bote, apesar de ela se
manter desde o início evidente para nós. A espreita, neste caso, se resume a um estado
de completa imobilidade, uma longa espera pelo momento exato do bote. Essa espera é
compartilhada pelos turistas que observam (e filmam) o evento, num jogo de cena onde
as capivaras, como protagonistas ingênuas, estão cientes da platéia que as observa dos
barcos, mas ignoram a presença ameaçadora da outra personagem com a qual
compartilham o palco.
Seu Inácio compara os sentidos das onças aos dos cachorros. Os cães usados nas
caçadas de onças são farejadores (hounds, em inglês), e caçam perseguindo a sua presa
a partir do código olfativo. Sobre a onça, ele observa que ela não tem faro e atribui as
limitações da onça a um equilíbrio natural entre os seres vivos:
Porque se ela tivesse faro, não escaparia nada dela. Ela pegava a batida do
bicho e ia até alcançar. Deus põe toda a natureza bem feita. Por que se ela
tivesse o faro dum cachorro, não escaparia nada dela. O que pegasse na
batida, ia até pegar. Porque ela tem resistência, na água e no seco é a
mesma coisa, não tem problema nenhum.
Como foi descrito no capítulo 3, os cães trabalham de modo cooperativo com o
caçador humano para a captura da onça, fornecendo, para este último, os códigos
auditivos (o barruar dos cães) e visuais (a acuação) de que ele precisa para a captura de
sua presa. Os sentidos do caçador são, por assim dizer, ampliados naqueles de seus cães.
Os cães se vêem na estranha situação de caçarem um animal que pode abatê-los, e
mantêm com a onça essa ambígua relação predador-presa. Somente a participação do
caçador humano faz com que a perseguição através do faro resulte em algum tipo de
captura, seja a eliminação da onça, seja a anestesia.
325
Em termos de modalidades de caça, temos, portanto, dois códigos descritos pelo
caçador: a caçada dos cães baseada no rastreamento olfativo e na perseguição e a
caçada da onça – baseada na aproximação furtiva e no código visual da espreita. Os cães
se comunicam à distância com os humanos pelos uivos característicos. Seu Inácio se
refere de forma breve também ao código auditivo: “Escutar, ela escuta de longe.
Qualquer movimento de qualquer bicho ela sabe que bicho que é aquilo”.
O depoimento de Seu Adão, retireiro da San Francisco, e de seu filho Nildo,
registrado em 2006, narra o encontro inesperado com uma onça-pintada que eles
tiveram no ano anterior, na área da fazenda. Neste caso, a interação é descrita pelos dois
entrevistados principalmente a partir do código auditivo:
Nildo: Eu acho que ela pensou que era boi. Porque tinha chovido e tava
aquele barrinho só, no trilheiro.
Seu Adão: Ela escuta muito, e enxerga também. Se ela saiu nele ali, é
porque ela tava pensando que era boi. Inclusive naquela noite ela pegou
dois bois. E era o casal. que a gente viu uma. A gente que mora no
mato, e sabe como é que é o bicho, não tem como falar: ah, ela saiu porque
ela não escutou nosso barulho. Aonde? Tava escondida, não ia nem sair...
Como eu falei pra ele, se a gente viesse conversando, ela não ia sair em
nós. A gente ia passar pertinho dela. Ela sentiu, falou: vem uma caça aí,
vou pegar.Porque era trilheiro de boi mesmo. E ainda, por azar, tinha uma
moita bem fechada de espinho, assim, e ela tava decerto do outro lado.
Quando o cavalo meteu a cara, assim, ela veio.
Desta vez, a onça não está enxergando a presa; ela está de tocaia em uma moita, e
aguarda a passagem dos animais pelo trilheiro de gado. A espreita neste caso é auditiva.
Seu Adão fala em barulho,escuta, e atribui a investida da onça ao fato de ele e o filho
terem vindo cavalgando em silêncio. A narrativa do evento prossegue:
Nildo: Do jeito que ela saiu, ela ia pegar bem na cabeça do meu cavalo.
Veio de baixo. No que ela levantou, eu gritei: ô bicho! Depois que ela
sentou e rosnou que eu falei: é onça! O pai chegou com o cavalo do lado e
gritou. ela deu tipo um mortal, assim, e saiu pra dentro do mato. E saiu
roncando. Mas antes, na hora que eu gritei, ela sentou, igual gato senta.
E deu aquela rosnada grossa mesmo. Daí eu falei: É a onça!
326
Seu Adão: Se ela quisesse pegar, ela pegava. Não tinha mais como fazer
nada, era ela levantar e abraçar o pescoço do cavalo. Ela veio ali na
mente que era o boi. Quando ela viu que é gente ela: opa! Acho que
conheceu já.
Nildo: Mas eu não sei não, se não é o grito, eu acho que ela pegava no meu
cavalo.
F: E se for um cara sozinho andando a pé?
Adão: Aí, se ela viesse, assim, ficava perigoso. Mas se você gritar com ela,
ela não pega, não. Eu acredito que não.
A onça rosna e depois ronca, e o pai e o filho gritam com ela, e atribuem a esse
grito a reação ‘de gato’ da onça quando esbarra em algo inesperado, primeiro sentando e
depois dando um “mortal” para trás. Uma série de outros registros etnográficos se refere
à sonoridade como elemento fundamental em relação à onça. Um exemplo é o caso
narrado por Seu Cassimiro, um antigo funcionário das fazendas San Francisco e
Caiman, que entrevistei em março de 2008 em Miranda. Ele descreve como evitou o
encontro com uma onça, nesta última fazenda, sendo avisado da presença do felino pelo
canto dos pássaros:
Eu corri duma onça [na Caiman]. Me levaram lá: “desmancha pra nós
essa cerca aí, vai, enrola o arame e arranca os poste”, era uns postesde
aroeira. Eu levei uma foice pra cortar aqueles matos que tavam
atrapalhando. Acerei toda a cerca, tirei todo o mato que ia atrapalhar
puxar o arame pra tirar dos postes. Aí vim afiando a foice ali pra cortar uns
pés de carandá novos que tinha. escutei: passarinho brabo, brabo, que
tá. Tudo que era passarinho, ali, e aquele piozeiro. eu falei “mas isso
não tá certo...
No capítulo 2 citei alguns registros da associação entre os pássaros e o gado bagual,
nos quais a presença do vaqueiro é denunciada para os bois. Neste caso, é o vaqueiro
que escuta os sinais sonoros. Seu Cassimiro prossegue:
tava perto, assim, a uns cem metros da onde eu tava, e aqueles
passarinhos ficavam no alto e aquele piozeiro ali, gritando. vi um de
árvore bem galhado, assim, e subi nela. Eu falei “vou subir daqui e olhar”
E o capim era baixinho onde tava em baixo do de árvore. Tava uma
327
árvore bem copada, assim, e a onça tava ali em baixo deitada, e os
passarinhos vinham naquela árvore e gritando, acuando ela ali. Eu subi na
árvore, aqui, pra ver. E daí a um pouco aquele bicho levantou. Olhei bem.
Ela virou a cabeça e eu vi as duas orelhinhas dela – pintadona. Mas
grande... Falei: “de certo esse bicho querendo engraxar o bigode em
mim. doido!”; peguei a foice e larguei até minha garrafa ali. Saí da
beira da cerca andei uns cem metros e saí na estrada. E toma até a sede.
O canto dos pássaros, assim como o chamado de outros animais, pode ser também
um sinal para quem está perseguindo a onça, o que é descrito por Almeida (1976). No
trecho a seguir, o caçador descreve a trama complexa dos sons do Pantanal:
“Quando a onça faz suas rondas durante a noite para caçar suas presas, o
grito de diversas criaturas da selva anuncia a sua presença na área. O
chamado rouco da garça enquanto levanta vôo, o grito da anhuma e o pio
alto do arancuã estão entre sons dos pássaros que denunciam o perigo
rondando na noite do Pantanal”. (1976: 60)
94
As referências à anhuma e ao arancuã remetem mais uma vez às descrições do gado
bagual por parte dos vaqueiros, apresentadas no capítulo 2. O caçador continua seu
rastreamento sonoro do ambiente:
“Um sinal seguro de um jaguar nas proximidades é o chamado da capivara
seguido do barulho dela mergulhando na água. Freqüentemente todo o
caminho do jaguar tudo ao longo de um córrego ou rio pode ser seguido
através da noite pelos gritos e mergulhos do roedores”.(Idem)
E aponta seus principais colaboradores na caçada:
94
Trad.minha: “As the jaguar makes his rounds at night and hunts his prey the cry of several jungle
creatures announce his presence in the área. The hoarse caw of the heron as it flies off, the scream of the
southern screamer, o p are among the birds sounds that tell of danger abroad in the night of the swamp.
An even surer sign of a jaguar on the prown is the sharp cry of the capivara and then a splash as it belly-
flops into the water. Often the progress of a jaguar all along a stream or river can be followed
throughout the night by the cries and splashes of the rodents. The most usefull of all jungle animals to the
jaguar hunter, however, is the howler monkey. These, when they perceive a cat on the prowl, will give a
hoarse bark quite unlike their usual soughing growl. They will follow the jaguar as he goes through their
territory, handing him over, as it were, to their brethren in the next stretch of forest, so that unless the cat
moves out into open grassland they will keep track of him until he lies up for the day and mark him down
to his resting place. We have often led dogs right up to barking howler monkeys in the early morning and
had them lift the jaguar from his bed. The definitive proof of a jaguar’s proximity is its own booming call,
echoing out over the swamps, a sound to trill the heart of the hunter, a sound that tells us there are still
some wild places left on earth”.
328
“No entanto, o mais útil de todos animais selva para o caçador de onças é o
macaco bugio. Estes, quando percebem um felino nas proximidades, dão um
latido rouco bastante diferentemente de seu urro usual. Eles seguirão o
jaguar enquanto ele atravessa seu território, conduzindo-o até o próximo
capão de floresta habitado por um novo grupo, de modo que, a não ser que
o felino saia para o campo aberto, eles o manterão sob observação até que
ele pare para descansar, marcando o local. Diversas vezes nós conduzimos
os cães pelos chamados dos bugios no raiar do dia, tirando a onça de sua
cama”. (Ibidem)
A passagem da onça pelo território é toda mapeada a partir dos chamados de outros
animais. O caçador conclui:
“Contudo, a prova definitiva da proximidade uma jaguar é seu próprio
chamado crescente ecoando através do pantanal, um som para excitante
para o coração do caçador, que nos diz existirem ainda alguns lugares
selvagens na terra”. (Ibidem)
O esturro da onça desempenha papel importante no livro de Almeida (1976), sendo a
base de uma modalidade de caça nativa utilizada por ele, com a utilização de
instrumentos para reproduzir o som das onças. O abate do Big Richard, evento chave no
capítulo 3, é um exemplo desse tipo de caçada. O autor descreve a utilização da técnica
pelos caçadores nativos que trabalham com ele usando principalmente esturradores
fabricados com cabaças
95
.
O uso desses instrumentos é mencionado também por Pereira da Cunha (1949), que
reporta seu uso pelos no Pantanal pelos índios Guató, os mesmos que, de acordo com o
autor, empregavam a técnica da zagaia. Os chamados ‘esturradores’ são mencionados
ainda por Crawshaw e Quigley (1984) a partir de experiências feitas Miranda Estância,
sendo que os autores citam o livro de Almeida como referência:
“O esturro de jaguares durante o período de estudo, foi registrado apenas
em quatro ocasiões, uma vez em março de 1982 (envolvendo 3 ou talvez 4
animais), abril de 1982 (2 vezes, provavelmente a mesma fêmea), e uma vez
95
Durante o trabalho de campo, eu mesmo observei instrumentos deste tipo e também outros feitos
com troncos de palmeira e couro, usados como uma cuíca. Observei diversas tentativas com esses
instrumentos, mas nunca vi funcionarem.
329
em dezembro de 1983 (1 fêmea). Em adição, um macho e uma fêmea
aparelhada responderam aos esturros por nós feitos, provocados em uma
cabaça, em outubro de 1982. Aliás, essa técnica é comumente empregada
por caçadores para atrair animais à distância de tiro (Almeida, 1976,
1984). Segundo esse autor, de 11 jaguares abatidos com o emprego dessa
técnica, todos eram machos, com exceção de uma fêmea no cio; ainda
segundo o mesmo autor, várias fêmeas respondiam ao chamado, sem, no
entanto se aproximarem”. (1984)
Além desses múltiplos sons que fazem parte das relações entre humanos e onças, a
pesquisa de campo introduz também uma mediação auditiva na forma do sinal sonoro
emitido pelo equipamento de telemetria. Ao invés dos chamados do bugio ou dos pios
da anhuma, é pela intensidade dos bips ouvidos no fone de ouvido conectado à antena
de rádio que ele é capaz de determinar a distância e a direção que o animal está e
rastrear os seus movimentos. A sonoridade neste caso é a tradução do sinal emitido pela
coleira de rádio em mensagens significativas para os sentidos humanos.
Considerações finais
O problema que origina toda a controvérsia sobre as onças pantaneiras é a relação
predador-presa que elas desenvolveram com o gado. De um ponto de vista ecológico,
podemos aferir que a introdução do gado no ecossistema regional significou uma oferta
de alimento para as onças. Os ambientalistas identificam esse problema e procuram
buscar soluções para os conflitos gerados por ele.
Ocaso das onças pantaneiras, nesse sentido, pode ser referido tanto à proteção da
comunidade constituída por humanos e animais domésticos, quanto à proteção da onça
diante das ameaças humanas; tanto à figuração da onça enquanto ameaça quanto a sua
figuração como ameaçada. O primeiro caso envolveria discussões sobre a eficácia de
métodos de evitar o ataque das onças ao gado. Nesse sentido, a onça é uma força
externa que desestabiliza as relações estatais da fazenda, que ameaça as instituições
sociais. O segundo caso envolveria a eficácia de métodos de compensar financeiramente
o criador de gado pela presença de onças em suas terras, ou então métodos de
330
fiscalização e regulamentação da caça. Nesse sentido, a ação humana é que é uma força
externa que desestabiliza as relações ecológicas, ameaça o equilíbrio ambiental.
Diante da associação cooperativa entre rebanhos bovinos, matilhas caninas e
comunidades humanas, podemos nos perguntar, reproduzindo algumas indagações
feitas por Stengers sobre o lobo na fábula dos três porquinhos
96
: Quais seriam as outras
onças possíveis, implicadas em outras histórias que não aquelas contadas pelos
especialistas em onças ameaçadas ou em onças ameaçadoras? O que faz com que o
problema seja colocado como problema de proteção? Não teriam sido possíveis outras
relações com a onça?
97
Além de seu papel como matéria-prima para a indústria e para a cultura material dos
pantaneiros, o gado pantaneiro produz ‘cultura’ também no sentido de que fabrica o
ambiente, produz o pantanal tal qual ele é conhecido pelos fazendeiros. O gado se
adapta ao ambiente e ao mesmo tempo é um agente de transformação ambiental; abre o
campo, produz as trilhas, é seguido pelos vaqueiros, atentos a esta ‘cultura bovina’
(Campos Filho 2002). No mesmo sentido, poderíamos falar em culturas caninas, em
ambientes próprios constituídos pelo faro. O reconhecimento, nos mestres, de
habilidades e talentos específicos é a forma de associação cooperativa que conduz os
humanos até as onças.
As onças, por sua vez, são animais solitários, que resistem à formação de rebanho ou
matilha. Biologicamente, portanto, não propriamente uma sociedade de onças, o que
no entanto não exclui o problema da socialidade entre as onças. O trabalho de campo
dos exemplos biólogos da conservação nos fornece narrativas de diferenças individuais,
como nos exemplos de Grandão e Orelha, os irmãos que compartilham o território, ou
da mãe deles, a onça Elisa, que cai diversas vezes na mesma armadilha depois de
encontrar alimento na gaiola de ferro e se recuperar da anestesia. Poderíamos falar
também, nesse sentido, em culturas felinas, diferenciando onças mansas e bravas,
andejas e moradeiras, onças matadeiras, viciadas, onças de colar.
96
Utilizada para ilustrar o desafio colocado pelo ‘Parlamento das coisas’, formulado por Bruno Latour em
Jamais Fomos Modernos (1994): “antes de ouvir os experts que discutirão tijolos e cimento, é necessário
poder questionar o que a solução de tijolos e cimento considera incontestável, o que a história dos três
porquinhos, como história moral, tem como certo. (...) No “Parlamento das coisas”, a primeira
prioridade seria buscar, e mesmo estimular, os representantes que pudessem fazer valer a distinção
eventual entre o lobo que é destruidor e outros lobos possíveis, que não o seriam, ou seriam menos, ou de
outra forma, implicados em outras histórias”. (2003: 196)
97
Stengers pergunta:“Não teria sido possível criar outras relações com o lobo? De que depende a
definição do lobo como ameaça, isto é, a definição do problema como ‘problema de proteção’?” (: 196).
331
O que procurei fazer neste último capítulo foi formular articulações entre descrições
heterogêneas das interações entre as onças e seu ambiente. O objetivo final do trabalho
foi utilizar essas articulações, sustentadas pelos dispositivos comuns de captura, espreita
e rastreamento, para traçar ao final do percurso uma rede sociotécnica, designada como
rede onça. Ao longo do trabalho, estabeleci uma série de referências a digos visuais,
sonoros e olfativos estabelecidos entre a onça e uma série de outros atores com os quais
ela entra em relação. Essas relações dizem respeito tanto à interação do predador com
suas presas quanto às práticas da caçada tradicional com es (na qual a onça se torna
uma presa) e aos métodos de pesquisa utilizados por pesquisadores para estudá-la no
campo.
Os códigos visuais, auditivos e olfativos mencionados a partir da interação entre as
onças e os outros atores que entram em relação com elas podem ser descritos também
como elementos em dispositivos de rastreamento, espreita e captura: a predação da
capivara pela onça, a caçada com cães, os esturradores, e a pesquisa científica. Todos
esses horizontes de práticas podem ser abordados a partir dessas três categorias. O
objetivo deste capítulo foi produzir uma descrição a partir da associação de discursos e
práticas heterogêneas, interligando-os a esses dispositivos comuns.
São exemplos de dispositivos de rastreamento, por exemplo, o método de caça dos
cães onceiros (olfativo), o manejo do gado (visual), a rádio-telemetria (via rádio). A
espreita, por outro lado é o método de caça empregado pelas onças, e também a base da
fotografia de natureza, do turismo ecológico e dos vídeos de vida selvagem. Entre os
dispositivos de captura, por fim, posso listar o matadouro, o laço do campeiro, as
armadilhas fotográficas, a câmera fotográfica, o tiro do caçador, o dardo anestésico, a
localização GPS e etnografia.
A identificação desses dispositivos atravessa os horizontes de práticas descritos em
cada capítulo desta tese, traçando na etnografia associações perpendiculares entre eles.
Também o meu próprio trabalho pode ser pensado a partir deles: o rastreamento dos
acontecimentos e dos agentes na pesquisa de campo, a espreita como elemento crucial
da experiência etnográfica, e finalmente, a escrita do trabalho como uma captura dessa
experiência.
332
ANEXO H – Imagens Capítulo 6
Vestígios coletados no campo
O mapa da
Rede Onça
Rede Onça
.
333
334
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