330
fiscalização e regulamentação da caça. Nesse sentido, a ação humana é que é uma força
externa que desestabiliza as relações ecológicas, ameaça o equilíbrio ambiental.
Diante da associação cooperativa entre rebanhos bovinos, matilhas caninas e
comunidades humanas, podemos nos perguntar, reproduzindo algumas indagações
feitas por Stengers sobre o lobo na fábula dos três porquinhos
96
: Quais seriam as outras
onças possíveis, implicadas em outras histórias que não aquelas contadas pelos
especialistas em onças ameaçadas ou em onças ameaçadoras? O que faz com que o
problema seja colocado como problema de proteção? Não teriam sido possíveis outras
relações com a onça?
97
Além de seu papel como matéria-prima para a indústria e para a cultura material dos
pantaneiros, o gado pantaneiro produz ‘cultura’ também no sentido de que fabrica o
ambiente, produz o pantanal tal qual ele é conhecido pelos fazendeiros. O gado se
adapta ao ambiente e ao mesmo tempo é um agente de transformação ambiental; abre o
campo, produz as trilhas, é seguido pelos vaqueiros, atentos a esta ‘cultura bovina’
(Campos Filho 2002). No mesmo sentido, poderíamos falar em culturas caninas, em
ambientes próprios constituídos pelo faro. O reconhecimento, nos mestres, de
habilidades e talentos específicos é a forma de associação cooperativa que conduz os
humanos até as onças.
As onças, por sua vez, são animais solitários, que resistem à formação de rebanho ou
matilha. Biologicamente, portanto, não há propriamente uma sociedade de onças, o que
no entanto não exclui o problema da socialidade entre as onças. O trabalho de campo
dos exemplos biólogos da conservação nos fornece narrativas de diferenças individuais,
como nos exemplos de Grandão e Orelha, os irmãos que compartilham o território, ou
da mãe deles, a onça Elisa, que cai diversas vezes na mesma armadilha depois de
encontrar alimento na gaiola de ferro e se recuperar da anestesia. Poderíamos falar
também, nesse sentido, em culturas felinas, diferenciando onças mansas e bravas,
andejas e moradeiras, onças matadeiras, viciadas, onças de colar.
96
Utilizada para ilustrar o desafio colocado pelo ‘Parlamento das coisas’, formulado por Bruno Latour em
Jamais Fomos Modernos (1994): “antes de ouvir os experts que discutirão tijolos e cimento, é necessário
poder questionar o que a solução de tijolos e cimento considera incontestável, o que a história dos três
porquinhos, como história moral, tem como certo. (...) No “Parlamento das coisas”, a primeira
prioridade seria buscar, e mesmo estimular, os representantes que pudessem fazer valer a distinção
eventual entre o lobo que é destruidor e outros lobos possíveis, que não o seriam, ou seriam menos, ou de
outra forma, implicados em outras histórias”. (2003: 196)
97
Stengers pergunta:“Não teria sido possível criar outras relações com o lobo? De que depende a
definição do lobo como ameaça, isto é, a definição do problema como ‘problema de proteção’?” (: 196).